DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.523
Renata Altenfelder Garcia Gallo
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Origem do reflexo estético, mundanidade e considerações
preliminares sobre a obra de arte na Estética (1963)
de György Lukács
Renata Altenfelder Garcia Gallo
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Resumo:
A partir da descrição das noções de reflexo artístico e de mundanidade na
estética de maturidade de György Lukács, este estudo pretende apresentar
algumas questões preliminares acerca do que vem a ser a obra de arte, suas
particularidades e seus pressupostos na Estética (1963), com o intuito de
ressaltar, por fim, o caráter absolutamente humanista dessa obra lukacsiana.
Palavras-chave: György Lukács; estética; humanismo.
Origin of the aesthetic reflex, worldliness and preliminary
considerations about the work of art in Aesthetics (1963)
by Gyorgy Lukacs
Abstract:
Based on the description of the concepts of reflexo artístico and mundanidade
presented in Gyorgy Lukacs' Aesthetics (1963), this study aims to offer some
preliminary considerations about what is a work of art, its particularities and
assumptions, in order to emphasize the profound humanistic trace of this
work.
Keywords: Gyorgy Lukacs; aesthetics; humanism.
Introdução
Ao longo de seus últimos 15 anos de vida, Lukács centralizou os seus
esforços na redação de duas obras consideradas sínteses de sua trajetória
intelectual: a Estética, que veio a público em 1963 e A ontologia do ser social,
cuja conclusão data, aproximadamente, de 1968. Apesar de ter iniciado a
escrita da Estética um pouco antes de 1956, o autor teve de suspender o projeto
por causa de acontecimentos políticos na Hungria. Devido a tais episódios, no
1
Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e professora do curso de Letras e Publicidade da PUC-Campinas e do Colégio Técnico de
Campinas/Unicamp. E-mail: renataag@unicamp.br
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inverno de 1956, Lukács seguiu para a Romênia na companhia de políticos que
protagonizaram o outono húngaro de 1956, dentre os quais estava Imre Nagy,
de quem fora ministro da educação. Contudo, em abril de 1957, ao retornar a
Budapeste, o filósofo retomou a redação do texto e, em menos de três anos,
escreveu as mais de 1700 páginas que compõem a obra.
Sobre a sua publicação, afirmou para Tertulian a incrível dificuldade de
obter uma autorização para o envio da obra ao seu editor alemão; bem como
confessou que a publicação da Estética, na Alemanha Federal, ocorreria, à
época, com a condição de que ele deixasse a Hungria. A respeito da recepção
do texto, Tertulian afirma que sua publicação, pela Luchterhand Verlag, em
1963, não provocou: “os grandes ecos que poderiam ser esperados”
(TERTULIAN, 2008, p. 291); o que pode ser igualmente notado até os dias de
hoje, se observarmos a circulação ainda incipiente do pensamento estético do
autor.
Ainda sobre a recepção da Estética, um dos primeiros pensadores a se
pronunciar publicamente sobre a obra foi George Steiner. Em junho de 1964,
publicou, no Times Literary Supplement, uma das primeiras resenhas acerca
do texto, assinalando, categoricamente, a relevância da obra. Ao obter
conhecimento da resenha de Steiner, Lukács lhe endereçou uma carta em que
dizia que as questões suscitadas pela estética permaneciam abertas para o
futuro, asseverando a necessidade de um tempo longo de incubação da obra.
Ao refletir sobre o cenário da recepção das obras lukacsianas,
especialmente no que tange à estética de maturidade, Tertulian afirma que
Lukács se via como “um pensador de uma “época de transição”, cujo trabalho
teórico era inevitavelmente marcado por tentativas e incertezas”
(TERTULIAN, 2008, p. 292). Esse momento de transição é compreendido a
partir da perspectiva de uma acentuada crise dos antigos valores – tanto
daqueles concernentes ao Ocidente capitalista como daqueles voltados ao
socialismo a Stálin –, somada à crise de uma insurgência incerta de novos
valores. Tertulian diz que, motivado por essa conjuntura, Lukács entende
como necessário o questionamento aos artistas sobre o modo que refletem o
homem e o mundo. Certamente, este é um dos elementos motivadores da
redação da Estética, o que conduz Tertulian a afirmar que a tônica do
pensamento estético lukacsiano reside na “defesa da integridade humana,
partindo de uma imagem muito exigente do que é a substância humana”
(TERTULIAN, 2008, p. 295).
Assim que iniciou o seu projeto estético de maturidade, Lukács
pretendia a redação de uma obra que se organizaria em duas partes. Contudo,
os seus planos originais sofreram modificações, pois a completude do texto só
se realizaria com a redação de um terceiro tomo. Originalmente, a primeira
parte se ocuparia da particularidade do fato estético e, em um segundo
momento, o texto se ateria aos problemas do reflexo estético, tomando por
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objeto a estrutura da obra de arte e a tipologia filosófica do comportamento
estético. Por fim, a terceira parte discutiria a questão da arte como fenômeno
histórico-social. Entretanto, Lukács, octogenário, conseguiu finalizar,
somente, a primeira parte da Estética, publicada, então, em 1963.
Dentre as diversas noções que perpassam a obra, uma delas é a de que
a vivência estética é oriunda de um processo histórico evolutivo, isto é, foi
necessário um longo desenvolvimento humano para que o homem adquirisse
a capacidade de produzir objetos artísticos e a competência de fruí-los. A fim
de entender essa questão, é indispensável uma investigação sobre a origem do
reflexo estético, temática sobre a qual nos debruçaremos no início deste
estudo.
A partir da compreensão desse tipo de reflexo, voltaremos os nossos
esforços para a descrição da noção lukacsiana de mundanidade na esfera
artística. Afinal, se a obra de arte reflete o mundo próprio dos homens e é um
objeto em que as possibilidades e potencialidades concretas do mundo e dos
sujeitos se colocam frente ao receptor com a mais ampla profundidade, a
mundanidade deve ser compreendida como uma característica própria da
esfera estética.
Percorrido o caminho das representações artísticas rumo à
mundanidade e diante do entendimento de que esta é um atributo da esfera
estética, delinearemos, por conseguinte, algumas questões preliminares sobre
o que vem a ser a obra de arte, suas particularidades e seus pressupostos na
Estética (1963). Desta feita, pretendemos endossar o caráter absolutamente
humanista da estética de maturidade de Lukács.
Reflexo estético
A leitura da estética lukacsiana, de antemão, deixa claro para o seu leitor
que as investigações relativas ao fenômeno artístico não podem versar, apenas,
sobre a compreensão de elementos que mais corriqueiramente o descritos
nas estéticas, como a questão da forma artística ou da fenomenologia da
recepção e da criação das obras de arte. Para Lukács, é importante entender,
sobretudo, a gênese do reflexo e as especificidades relativas aos reflexos
estético e científico, de modo que este se torna o tema central da primeira parte
da Estética.
Segundo Lukács, arte e ciência são reflexos próprios do homem e têm
como função possibilitar aos sujeitos conhecer o mundo que os circunda e, por
conseguinte, fazer com que esses indivíduos possam dominá-lo. Nesse sentido,
a estética de maturidade lukacsiana assume como pressuposto que a esfera da
vida cotidiana é o plano de onde parte e o ponto para onde retornam os efeitos
das objetivações humanas, pois é da vida cotidiana que:
provém a necessidade de o homem objetivar-se, ir além de seus
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limites habituais; e é para a vida cotidiana que retornam os produtos
de suas objetivações. Com isso, a vida social dos homens é
permanentemente enriquecida com as aquisições advindas das
conquistas da arte e da ciência (FREDERICO, 2000, p. 303).
Conforme mencionamos, o reflexo artístico e o reflexo científico se
alimentam da realidade cotidiana e refletem-na, o que motiva Lukács a afirmar
que o comportamento cotidiano dos sujeitos é, igualmente, o começo e o fim
de toda ação humana. Para ilustrar essa perspectiva, o autor constrói uma
analogia entre o rio de Heráclito e o plano da vida cotidiana. Nesse sentido, o
cotidiano assume a forma do rio, que se mantém em seu permanente fluxo
onde tudo se movimenta e se transforma -, embora tudo retorne, sempre, ao
seu leito. É assim, também, com o com a esfera do cotidiano, pois dela se
depreendem, em formas superiores de recepção e de reprodução da realidade,
a arte e a ciência; esferas que se diferenciam e que se organizam de acordo com
suas próprias finalidades. Neste movimento, arte e ciência alcançam sua forma
pura, que nasce das necessidades da vida social, para, em consequência de seus
efeitos, isto é, de sua influência na vida dos homens, desembocar, novamente,
na corrente da vida cotidiana.
O reflexo artístico e o científico funcionam como polos de recepção
subjetiva do mundo e como momentos do mesmo processo de
desenvolvimento histórico e social da humanidade, entretanto, distinções
marcantes entre ambos. Dentre elas, podemos destacar que a esfera artística
tem como peculiaridade receber forma no particular e o reflexo científico, por
sua vez, recebe forma através do universal ou do singular. Isto é, a ciência deve
perseguir as determinações gerais do objeto a que se propõe a investigar
enquanto a arte deve se orientar exclusivamente a um objeto particular:
A generalização estética realiza-se, portanto, na intensificação do
traço individual, que assim caracterizado expressa no objeto da arte
sua entificação especial, particular, única e, por isso mesmo,
universal. (COSTA, 2012, p. 81)
O elemento que define a esfera estética como um tipo específico de
reflexo é a capacidade de representação da realidade, de modo que aparência
e essência sejam reveladas, conjuntamente, em sua imediaticidade e de
maneira sensível. Isto é, aparência e essência se manifestam unidas e de forma
harmônica no reflexo artístico, em uma determinada representação sensível.
Essa adequação e coincidência entre essência e aparência não ocorre no reflexo
científico.
Na esfera artística, percebe-se a constituição de um mundo próprio, o
que o se verifica na esfera da ciência, em cuja o conhecimento é entendido
como um processo no qual cada nova descoberta invalida a anterior ou a
supera. No campo da arte, o objeto estético não é invalidado ou ameaçado
quando surgem outras obras, essencialmente, porque são mundos próprios
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que não dependem de outros para existir. Por conseguinte, pode-se afirmar
que a arte reflete uma totalidade intensiva da vida, ou seja, ela é “uma
totalidade fechada que figura de modo concentrado o mundo dos homens num
contexto particular” (FREDERICO, 1997, p. 62). Se a arte reflete a totalidade
intensiva da vida, o mesmo não ocorre com a ciência, que procura refletir a
totalidade extensiva da vida, visto que “o cientista busca refletir o infinito, o
universo em seu conjunto” (FREDERICO, 1997, p. 61).
Ainda sobre as especificidades do reflexo estético e do científico, Lukács
assegura que a individualidade da obra de arte é sempre determinada pela
subjetividade de seu criador, ao passo que as proposições científicas
encontram-se desvinculadas de qualquer momento subjetivo em sua origem,
podendo, apenas, de acordo com Patriota:
cumprir a finalidade que lhe foi destinada socialmente se capta a
realidade em sua legalidade ou essencialidade, depurando-a ao
máximo de condicionamentos subjetivos e formando, através de
conceitos, uma cadeia de determinações generalizadoras
(PATRIOTA, 2010, p. 18).
Por esse motivo, afirma-se que o reflexo científico é marcado por seu
caráter desantropomorfizador, pois a sua finalidade é o conhecimento da
realidade objetiva, levando à consciência seus conteúdos, suas categorias etc.,
ao passo que a arte carrega como marca um caráter antropomorfizador, pois
liga a objetividade à subjetividade, a essência ao fenômeno, aproximando,
assim, os contrários. Nesse sentido, afirma-se que o reflexo artístico atua por
meio de um movimento contrário ao reflexo científico, pois a sua projeção é
marcada por um movimento de dentro para fora. Sendo assim, a arte opera
sobre o sujeito enquanto a ciência age através de leis próprias, de forma que,
no reflexo científico, a realidade objetiva independe da consciência e
transforma em propriedades da consciência humana uma realidade que
independe da consciência do homem. Na arte, contrariamente, é alcançada a
unidade do sujeito individual com o objeto, de modo que nesta esfera o homem
está implicado como objeto e como sujeito, o que corrobora a ideia de que não
há mundo artístico sem um sujeito criador e um fruidor. Esse processo resulta
que a obra de arte, embora seja uma coisa “em-si”, é, a um só passo, um “para-
nós”, pois nela está sempre contido o sujeito criador e o fruidor.
Deve-se ressaltar, portanto, que a autoconsciência do sujeito fruidor
não está dissociada do mundo exterior; o que conduz à afirmação de Lukács de
que as reproduções artísticas da realidade transformam o ser-em-si da
objetividade em um ser-para-nós do mundo, representado na individualidade
de cada totalidade intensiva que é a obra de arte. Essa propriedade estética
amplia, alarga e aprofunda a consciência do homem sobre a natureza, sobre a
sua condição humana, sobre a história e a sociedade. É no domínio da estética
e, através da mediação entre as obras de arte e o sujeito, que o indivíduo pode
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se transformar de homem como um todo em sujeito plenamente humano,
mantendo-se ao nível do gênero de maneira autoconsciente.
A polarização entre autoconsciência (arte) e consciência (ciência) é um
elemento que distingue, também, os dois tipos de reflexo, todavia, é
importante ressaltar que essa polarização é um resultado de um processo
histórico, visto que o reflexo científico e o artístico nascem como que
misturados. É objeto de o materialismo dialético investigar as condições
históricas sob as quais se desenvolveu essa polarização. Nesse sentido, a nossa
discussão se volta ao mapeamento da origem do reflexo estético e à sua relação
com a categoria da mimese artística, aspectos fundamentais para a
compreensão do fenômeno estético em sua relação com o desenvolvimento do
gênero humano.
Lukács afirma que a arte se define pelo processo de imitação, isto é, pela
mimese, cujo papel consiste na “conversão de um reflexo de um fenômeno da
realidade na prática de um sujeito” (LUKÁCS, 1972, p. 7). A validade da
imitação é um elemento universal na vida dos seres dotados de alto grau de
organização, pois a conservação e a transmissão de experiências entre seres de
uma mesma espécie não podem se consumar a não ser pela imitação;
procedimento responsável por fixar os reflexos condicionados. Pensemos, por
exemplo, na conservação das espécies de pássaros – como as andorinhas que
têm de migrar para garantir a sua sobrevivência. Se as espécies mais jovens
não seguirem o modelo de migração das mais experientes, possivelmente
sucumbirão ao frio e às adversidades impostas por parte das estações do ano
que não lhes oferece um ambiente adequado à sobrevivência.
Quanto aos homens mais primitivos, o movimento de captação da
realidade requeria, ao menos, uma aproximação elementar e consciente
voltada para essa mesma realidade. O peculiar caráter subjetivo da seleção
dessa realidade refletida tem que conter, em si, uma tendência à objetividade
autêntica, processo que se realiza por meio da distinção dos conteúdos
essenciais e inessenciais do reflexo. O princípio de seleção desses conteúdos é
orientado pelos interesses vitais do homem, ou seja, quanto mais um conteúdo
remete a tais interesses, maior a sua essencialidade. Sendo assim, se o reflexo
não afetar um momento essencial da vida humana, a finalidade subjetiva do
homem não se realiza o que conduz à afirmação lukacsiana de que a práxis
se impõe como critério de verdade para a captação da realidade a partir da
seleção dos conteúdos do reflexo. No interno deste processo, é importante
destacarmos o papel essencial do trabalho:
pois o progresso e o desenvolvimento do homem são possíveis
pela prática, pelo trabalho, de modo que ambos pressupõem, por sua
vez, um reflexo mais correto e mais rico da realidade (LUKÁCS,
1972, p. 31, tradução nossa).
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Por meio do trabalho, o homem suspende a imediaticidade da vida
cotidiana para tentar investigar a realidade objetiva tal qual ela é. Essa
realidade comporta em si um movimento dialético de essência e aparência, o
que ressalta, ao mesmo tempo, o seu aspecto contraditório e unitário. Sendo
assim, todo o comportamento prático e intelectual dos homens, bem como o
reflexo humano, deve se adequar a essa realidade. Tal argumentação
margem ao debate sobre a prática artística do naturalismo. Se a vida cotidiana
comporta em si um movimento dialético, que se consolida como elemento
básico da vida, o reflexo artístico não pode ignorar esse movimento, tal como
o faz o método naturalista de composição artística. Essa prática tende, segundo
Lukács, a dissolver a contraposição e a diferenciação entre essência e aparência
da realidade, de modo a anulá-las. Nesse sentido, o naturalismo seria uma
tendência tardia na evolução histórica da humanidade, de modo que essa
prática pretende
aproximar-se dos fenômenos aparentes e superficiais da vida
cotidiana e eliminar, de forma mais radical possível, todas as
categorias de mediação que apontam para os fenômenos essenciais
da realidade (LUKÁCS, 1972, p. 22, tradução nossa).
Essa tendência à eliminação dos conteúdos essenciais da vida cotidiana
surge somente, segundo Lukács, quando determinadas classes sociais esboçam
temor em relação à descoberta desses conteúdos. Daí a afirmação do autor a
respeito do aparecimento tardio dessa tendência artística, a qual expressa
desorientação e caminha para o encerramento das perspectivas de
desvelamento dos conteúdos aparentes; aspectos que contribuem à tendência
fetichista do capitalismo.
O empenho de Lukács em compreender as especificidades do reflexo
estético conduz o autor à discussão da relação intrínseca entre arte e magia,
uma vez que a gênese do reflexo artístico só pode acontecer quando a intenção
estética já se apresenta consolidada e arraigada na vida subjetiva dos homens.
Somente a partir deste movimento podem ser percebidos como estéticos os
processos cuja intenção inicial não tinha essa finalidade. Para o filósofo,
algumas distinções são notáveis quando mencionados os termos arte, magia e
religião; apesar dessas esferas partilharem de um princípio comum: o seu
caráter antropomorfizador.
Tais atividades humanas congregam um potencial de conectar a
objetividade à subjetividade, a essência ao fenômeno, aproximando, assim,
polos contrários. Entretanto, distinções que delimitam tais campos. Se, na
esfera estética, a imagem refletida da realidade é percebida e compreendida
como reflexo; às esferas da religião e da magia atribui-se uma realidade
objetiva ao sistema de seus reflexos, de modo que se exige uma
correspondente. No campo artístico, as obras de arte constituem um sistema
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fechado em si, que se refere, sempre, à realidade objetiva. o reflexo de
natureza mágica ou religiosa se refere, sempre, a uma realidade transcendente.
Como mencionado, as formações artísticas são sempre reflexo da
realidade objetiva e sua verdade e seu significado residem, essencialmente, na
capacidade que esses reflexos possuem de captar corretamente a realidade,
reproduzindo-a em sua forma verdadeira, de modo a evocar, no seu receptor,
a imagem da realidade contida em tais reflexos. Essa orientação do reflexo
estético volta-se para a cismundanidade da arte, que, segundo Lukács,
significa, de um modo imediato, que a ação evocadora daquilo que
fora representado se orienta exclusivamente à recepção do sujeito,
ou seja, que com o efeito evocador obtido, a formação mimética
alcançou totalmente a sua finalidade (LUKÁCS, 1972, p. 45,
tradução nossa).
Nesse sentido, a noção de cismundanidade assume como marca o
antropocentrismo, pois evoca um sistema de pensamento que coloca o homem
no centro do mundo, de forma que tudo a ele se refere. Apoiado nessa
concepção, Lukács afirma que a autoconsciência da humanidade é a autêntica
subjetividade portadora da arte. Se as obras de arte refletem de modo fiel os
conteúdos da realidade objetiva, fazendo com que o receptor consiga evocá-
los, o processo de recepção artística passa a funcionar, por conseguinte, como
um movimento de autoconsciência do fruidor, o que revela o caráter
profundamente humanista da estética lukacsiana.
Essa autoconsciência, sobre a qual fizemos menção, só pode existir em
um mundo onde o homem tenha certo domínio do seu mundo interior e
exterior. De acordo com Lukács, o sujeito primitivo não poderia ou não
conseguiria dominar no âmbito teórico ou prático o mundo que o
circundava. Essa configuração fez com que tal sujeito negligenciasse o mundo
exterior para que pudesse empreender um movimento para “dentro”, isto é,
voltado à sua interioridade. Como este caminho não é natural, pois os instintos
do homem o orientam para “fora”, o indivíduo elimina as suas limitações
através de meios artificiais.
Um dos exemplos resgatados pelo filósofo para retratar essa questão são
os rituais dionisíacos. Embalados pelo uso de substâncias alucinógenas, ou
ainda, pelos longos rituais dançantes, seus participantes empreendiam um
caminho rumo à interioridade por meio de vias artificiais, configurando,
assim, uma situação de êxtase. Para Lukács, a mimese e o êxtase são
excludentes, a não ser quando aparecem simultaneamente, o que se verifica no
período mágico. Suas formações miméticas são reflexos de fragmentos da vida
e, não, de sua totalidade, apesar de essas mesmas formações tenderem a
remontar essa totalidade. Nesse sentido, o êxtase proporcionado pelos rituais,
por exemplo, tem como finalidade arrancar e arrebatar o sujeito da
normalidade da vida, impondo a ele uma realidade transcendente que rompe
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com a normalidade e com a continuidade da vida cotidiana, gerando um
comportamento que não se orienta à objetividade, à evocação e à recepção,
elementos essenciais à conduta mimética.
Na vida cotidiana, a vinculação entre o evocador e o mimético tem como
fundamento o desenvolvimento dos sentidos. Lukács ressalta dois aspectos
essenciais sobre a questão. Um deles é a fantasia do movimento, ou seja, em
uma peça de teatro, por exemplo, a imitação de um movimento pelo ator pode
reproduzir evocativamente esse mesmo movimento na fantasia do espectador,
de forma que, quanto mais desenvolvida e elaborada essa fantasia, maior a
possibilidade de os homens se tornarem mais hábeis em suas ações cotidianas
no que tange ao desenvolvimento desse movimento. O segundo aspecto
enfatizado é a divisão do trabalho entre os sentidos, fator que se configura,
igualmente, como um produto do trabalho. Para Lukács, o desenvolvimento
dos sentidos na vida cotidiana é possível a partir da vinculação entre o
evocador e o mimético, elementos fundamentais à esfera estética.
A vivência estética, oriunda de um processo histórico evolutivo, se
configura, “como uma entrega imediata a um complexo unitário de imagens da
realidade, as quais são refletidas sem que haja a ilusão de se estar diante da
própria realidade” (LUKÁCS, 1972, p. 76, tradução nossa). Pensemos, por
exemplo, em uma morte cênica. Nesse sentido, Lukács enfatiza que, na vida
cotidiana, as erupções emocionais dos sujeitos possuem fundamentos
objetivos, ao passo que, nas formações miméticas, não uma realidade que
suceda esses sentimentos na intenção de fundamentá-los. As emoções do
fruidor podem ser suscitadas devido à orientação das imagens refletidas, as
quais conduziram a evocação para uma direção específica. Essas considerações
encaminham a argumentação do filósofo para a seguinte afirmação:
A forma artística surge como meio para expressar um conteúdo
socialmente necessário, de tal modo que se produza um efeito
evocador concreto e universal, que constitui também uma
necessidade social. (LUKÁCS, 1972, p. 101, tradução nossa)
O caminho da mundanidade
Uma das peculiaridades das obras de arte é a criação de mundos
autônomos, isto é, o objeto artístico reflete uma totalidade intensiva da vida,
pois figura, de modo concentrado, o mundo dos homens em determinados
contextos, entretanto um longo caminho do desenvolvimento humano teve de
ser traçado para que adquiríssemos a capacidade de produzir obras de arte.
Seguiremos descrevendo os traços mais essenciais desse desenvolvimento,
segundo Lukács.
Primeiramente, o filósofo tece algumas considerações acerca das
pinturas rupestres produzidas pelos caçadores no período paleolítico. Sobre
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elas, Lukács assinala um traço bastante curioso: apesar de apresentarem em si
um traço amundanal (ausência de mundo), ainda assim apresentam certo
realismo. Entende-se, assim, que essas figuras, normalmente reproduções de
animais, não possuem qualquer ligação com elementos presentes em seu
entorno, visto que são realizadas de modo solto” no espaço em que foram
produzidas. É, precisamente, nesse sentido que Lukács assinala a ausência de
mundo dessas representações, apesar de apontar que elas reúnem um certo
caráter realista. Pode parecer estranho este traço, entretanto ele se apresenta
devido à alta capacidade de observação que esse homem do período Paleolítico
possuía, pois a necessidade da caça, da pesca e da coleta em prol da
sobrevivência fez com que essa habilidade observação fosse potencializada.
Nesse sentido, devemos novamente ressaltar a noção de que tudo surge a partir
da e na vida cotidiana. A habilidade estética dos povos caçadores do Paleolítico,
ao reproduzir imagens individualizadas e típicas de animais surge,
precisamente, de sua necessidade cotidiana de sobreviver.
Lembremos que essas pinturas rupestres tinham como finalidade, por
exemplo, o logro na caça ou na pesca e não um êxito estético. Desse modo,
essas reproduções obedecem a finalidades mágicas, impostas por uma
determinação externa, que, neste caso, é a comunidade. Observando as
condições de nascimento dessas pinturas bem como as suas finalidades, é
altamente compreensível que os homens que produziram tais figuras se
voltassem, somente, para a representação do animal que pretendiam caçar e,
não, para questões estéticas. Sendo assim, não era necessário desenhar uma
paisagem de fundo para abrigar a presa pretendida e incrementar, assim,
aquela pintura, pois as finalidades deste homem não demandavam tal
comportamento, exigiam, somente, a representação do animal para que
impusessem sobre ele um domínio no momento da caça. Lukács sintetiza a
questão:
O paradoxo das obras primas da pintura rupestre paleolítica
consiste que os animais reproduzidos, considerados objetos soltos,
parecem possuir aquela totalidade intensiva das determinações, ou
seja, uma intenção de mundanidade, ao passo que, ao mesmo
tempo, são representados isoladamente, em seu abstrato ser-para-
si, como se a sua existência não interagisse com o espaço que
imediatamente o rodeia, nem, ao menos, com o seu ambiente
natural. Essas figuras estão artisticamente fora de todo o mundo,
e sua configuração é em última instância amundanal (LUKÁCS,
1972, p. 126, tradução nossa).
Pelos motivos apontados por Lukács, a pintura paleolítica carrega em si
uma situação contraditória, haja vista que magia e arte, em sua essência, se
opõem: “aquela visa à consecução de finalidades materiais pela manipulação
de forças transcendentes, essa visa à transformação da subjetividade do
homem pela afirmação de sua terrenalidade” (PATRIOTA, 2010, p. 157). Se a
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pintura rupestre paleolítica ainda obedecia às finalidades da magia,
carregando em sua estrutura uma contradição, a civilização grega será
responsável por fazer com que tal paradoxo desapareça.
No decurso evolutivo da humanidade, a cultura grega representa o
início da civilização, pois constrói, por meio de um processo autoconsciente,
um mundo de acordo com as suas demandas, ampliando o domínio humano
sobre as barreiras naturais, o que lhe confere certa segurança em seu estar no
mundo. Nesse sentido, questões que nos parecem triviais, como a construção
de casas seguras, diminui a hostilidade dos homens para com o mundo que
habitam. Pensemos, desta feita, na construção de telhados e de muros voltados
para a proteção desses sujeitos e para a amenização das ameaças externas ou
naturais.
Se o alheamento entre sujeito e mundo diminui a partir do momento
que o homem amplia o seu domínio em relação ao mundo, consequentemente,
os indivíduos passam a reconhecer o seu entorno como algo que lhes
corresponde, que lhe é familiar, e que pode ampliar, até certa medida, a sua
própria personalidade. Surge, portanto, a concepção de um mundo como lar,
ou melhor, como pátria. Essa nova conformação inaugura um tipo de
representação artística voltado à mundanidade, o que permite uma evolução
artística que desfaz o paradoxo das pinturas do paleolítico: amundanidade
versus realismo. Ao se deparar com um novo contexto histórico filosófico, a
arte teve de resolver, em sentido estético, os problemas apresentados pelas
novas configurações históricas.
A partir do momento em que o homem se viu mais seguro em seu
mundo, pois ampliou o seu domínio prático e intelectual sobre ele, a resposta
artística a essa configuração foi a gênese do espaço pictórico, mais
essencialmente, a necessidade de representação dos objetos unidos
indissoluvelmente ao espaço que os rodeia, configurando, assim, uma
interação vivia entre os objetos representados nas pinturas. Se este novo
homem dominou o espaço que o rodeava; em suas representações pictóricas, a
distribuição das cores, por exemplo, não poderia mais ocorrer de forma
arbitrária, o que configurou uma revolução na sensibilidade humana. Para dar
suporte a essa argumentação, Lukács retoma os resultados do trabalho do
historiador austríaco Franz Wichoff (1853-1909):
A paisagem, com o céu em cima, o mar e os rios, o interior e o
exterior dos edifícios, suas coberturas, as ferramentas, etc., não
eram mais compreensíveis em sua conexão a não ser que fossem
representados por meio de suas cores naturais, o que levava
rapidamente à uma representação plenamente natural das figuras
que se moviam naquele ambiente. (LUKÁCS, 1972, p. 138, tradução
nossa)
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Essa interação entre os objetos presentes nas pinturas e a transição da
cor fisiológica para a cor local são os elementos que marcam, segundo Lukács,
a mundanidade. Foi aberta, assim, a possibilidade de construção de um mundo
próprio e articulado que configura o reflexo artístico. A partir desse novo tipo
de representação, a evocação artística de um mundo fechado pode ocorrer nas
obras de arte. Sobre a questão, Patriota desenvolve afirma:
Em torno da categoria de “mundo próprio” aglomeram-se três
determinações básicas. Em primeiro lugar, a conformação de uma
realidade humanamente digna, própria do homem, em plena
conformidade com suas carências e potencialidades, onde ser e
dever ser não apenas se harmonizam, mas se apresentam numa
identidade tica. Na obra de arte não postulados, mas
efetividades. O dever-ser é sempre ser efetivo. Em segundo lugar,
este mundo se põe ao receptor como uma totalidade intensiva,
totalidade que emana de dentro da moldura espaço-temporal da
vida refigurada na obra. Cada obra de arte é vivida como um mundo
em si completo. Em terceiro lugar, trata-se de um mundo próprio no
sentido artístico, isto é, criado a partir de uma gica estética
autárquica. (PATRIOTA, 2010, p. 159)
Essa evolução artística, oriunda de uma alteração da quadratura
histórica e filosófica de certo período da humanidade, é expressa pela
capacidade do homem de articular objetos distintos, criando a imagem de uma
totalidade orgânica e unitária de um todo. No âmbito estético, esse
desenvolvimento encaminha as observações de Lukács para um aspecto basilar
de sua Estética: os conteúdos selecionados pelos artistas para a criação de sua
obra já indicam as possibilidades das realizações formais desse mesmo objeto
artístico. Isso equivale a dizer que forma e conteúdo se condicionam e se
determinam reciprocamente.
Considerações iniciais sobre o objeto estético
Para Lukács, o mundo refletido na da obra de arte comporta em si uma
rica contradição, pois o objeto estético é uma totalidade intensiva, uma
objetividade fechada em si, que independe do sujeito, ao mesmo tempo em que
desnuda conteúdos essenciais relativos à vida humana. Para que essa
contradição pudesse tomar forma, dois elementos recebem destaque: 1) a vida
humana teve que se desenvolver a ponto de se converter em objeto de
representação, isto é, em obra de arte; e 2) o homem pode se tornar um sujeito
estético. No desenrolar deste estudo, expusemos, de acordo com Lukács, como
o desenvolvimento humano se deu no sentido de que o homem pudesse se
tornar um sujeito estético e como a vida humana se tornou objeto de
representação. Desta feita, a contradição que a estrutura da obra de arte
comporta objetividade fechada em si, independente do sujeito, ao mesmo
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tempo em que revela conteúdos essenciais da vida humana expõe um
movimento de identidade absoluta de conteúdos externos e internos, que, a
partir das determinações da forma artística, se convertem em uma unidade.
A conexão e a síntese desses conteúdos internos e externos é, para
Lukács, a expressão imediata de um conteúdo ainda mais profundo: a verdade
da vida, segundo a qual o homem conhece a si próprio à medida que conhece
e domina o mundo que o cerca; espaço onde tem de viver e agir. Essa premissa
da esfera estética impulsiona o sujeito ao autoconhecimento e ao
conhecimento do mundo que o circunda, em um movimento circular. Ao
retomar o conselho do Oráculo de Delfos aos antigos gregos, “conhece-te a ti
mesmo”, o marco inicial da longa trajetória da humanidade rumo ao
autoconhecimento, Lukács nos coloca diante de sua compreensão da autêntica
obra de arte, afirmando que ela impulsiona o ser humano a conhecer tudo
aquilo que o rodeia – seus semelhantes, a sociedade em que vive, a natureza, o
seu campo de ação etc. ao mesmo tempo em que o coloca frente à
compreensão dos estratos mais profundos do seu ser. Essa é, certamente, uma
das maiores potencialidades da esfera estética.
A partir dessa reflexão, o filósofo afirma que o mundo particular das
obras de arte não é utópico, objetiva ou subjetivamente falando, pois não
aponta para algo transcendente, para além do homem ou do seu mundo. A arte
compreende, portanto, o mundo próprio dos homens, carregando o seu traço
de mundanidade. Ela é, ainda, um objeto em que as possibilidades e
potencialidades concretas do mundo e do sujeito se colocam frente ao homem
com a mais ampla profundidade. No âmbito estético, até as obras de arte que
apontam ao receptor um mundo do dever são vividas pelo ser como seu mundo
próprio. Nesse sentido, para Lukács, a canção mais idílica ou a natureza morta
mais elementar expressam, em certa medida, um dever-ser que exige do sujeito
da cotidianidade o alcance da unidade e da altura realizadas na obra de arte,
movimento que configura o que o autor adjetiva de o dever de toda vida plena
e autêntica.
Se a obra de arte possibilita ao homem o autoconhecimento e o
conhecimento do mundo, ela compreende, ainda, o papel de objeto portador
da memória da humanidade, pois materializa em si os conteúdos que ampliam,
enriquecem e aprofundam a noção de homem e as relações deste com a
natureza. Fruir um objeto estético é, portanto, um fenômeno que nos coloca
diante dos destinos vividos pela humanidade e dos feitos humanos, de modo
que podemos nos conectar a eles e revivê-los em cada obra de arte,
interiorizando, portanto, os caminhos passados e presentes dos homens,
participando, destarte, da vida da humanidade. A fruição estética, enfim,
preconiza a transformação de um passado espacial e temporal em um
momento presente vivido, despertando, no sujeito fruidor, a consciência de
viver em um mundo do qual ele faz parte e do qual é co-criador.
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É necessário, por conseguinte, enfatizar a questão da essencialidade da
esfera estética em relação à memória, pois “a memória da humanidade não fixa
mais do que o importante e não se sobrecarrega com o supérfluo” (LUKÁCS,
1972, p. 183, tradução nossa). Nesse sentido, os artistas devem selecionar os
conteúdos essenciais para a criação da obra, procedimento que deve se realizar
por meio de um movimento que impulsiona o artista a refletir, no objeto,
situações e personagens típicos. As figuras que correspondem à formação dos
tipos sociais são aquelas que congregam, em seu caráter, as relações que estão
nascendo e as que nasceram na história da humanidade, ou seja, os
personagens ou situações típicas sintetizam as tensões sociais latentes de um
período histórico em conexão com aquelas que já se materializaram. Essa
compreensão da obra de arte não exige que todos os objetos estéticos tenham
que refletir todo o conjunto de fenômenos de seu contexto de produção. Cada
objeto artístico deve captar, reproduzir e refletir um conglomerado de
situações, de destinos e de caracteres típicos que devem se converter em tema
de representação, configurando, assim, uma universalidade em sentido
intensivo. A comédia humana, de Balzac, é um exemplo que justifica a
afirmação precedente, pois cada um dos livros que compõe essa obra
representa um conjunto de tensões que nem sempre é o objeto de
representação dos outros títulos.
A relação entre a produção estética e a essencialidade suscita uma
compreensão da obra de arte como objeto que reflete a realidade de modo
amplo e rico, corroborando a concepção do escritor e filósofo holandês
François Hemsterhuis (1721-90) de que a alma humana tende, naturalmente,
a se apropriar de um grande número de ideias no menor tempo possível.
Transposto ao objeto estético, esse princípio determinará, para este autor, a
noção de belo. Desta feita, a esfera estética é marcada pela capacidade de
concentração e de intensificação, na obra de arte, dos conteúdos da realidade
que o artista procura refletir. Lukács resgata as ideias de Hemsterhuis e afirma
que o autor seria o precursor de manifestações importantes na esfera estética,
como a divisão do trabalho dos sentidos e a formação de um meio homogêneo,
bem como descreve de que forma ele entendia as finalidades da mimese.
Hemsterhuis compreende duas finalidades para a mimese artística. A
primeira delas é a possibilidade objetiva de reprodução, na arte, dos objetos do
mundo e a segunda consiste na garantia do potencial da arte de superação da
natureza, de modo que não cabe ao objeto estético, somente, refletir a
realidade, mas criar, sobretudo, uma imagem que ultrapasse a natureza em
riqueza de determinações, criando efeitos que não podem ser por ela
produzidos. Tais premissas asseguram a essencialidade das noções de
concentração e de intensificação na esfera estética.
Se, para Lukács, Hemsterhuis entende o efeito da obra como superação
da natureza, Nikolay Gavrilovich Tchernyshevsky (1828-89), filósofo,
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jornalista e escritor russo, trará outra contribuição importante à estética
lukacsiana, a de que todas as reproduções artísticas da realidade - inclusive
aquelas em que o conteúdo imediato é a natureza - têm como ponto mais
significativo o homem. Tchernyshevsky acredita que a obra de arte deve figurar
o metabolismo da sociedade com a natureza, o que conduz à noção lukacsiana
de que cabe à obra levar ao sujeito cotidiano a natureza da objetividade da qual
ele próprio participa. Nesse sentido, Lukács observa que, na Poética
aristotélica, a expressão imitação da natureza não é utilizada, levando-o a
proferir que, para Platão e Aristóteles, o verdadeiro conteúdo da arte não é a
natureza, mas a própria vida dos homens. Assegura-se, assim, o caráter
antropomorfizador da obra de arte. Apesar das importantes contribuições de
Tchernyshevsky, Lukács assinala que suas noções não são mais do que
intuições que desembocam em certo formalismo, pois o autor limita-se a
adivinhar, sem reconhecer nem conhecer claramente a vinculação econômica
da humanidade com a natureza.
A crítica de Lukács dirigida ao filósofo russo tem como ponto central a
importância da vinculação econômica da história da humanidade ao seu
desenvolvimento. Trocando em miúdos, a tônica dessa discussão recai na
importância de se pensar os nexos que a categoria do trabalho – entendida no
sentido marxiano do termo – possui com a esfera estética; o que conduz
Patriota a afirmar que: “Todas as questões que surgem de dentro do mundo da
arte encontram no princípio da humanização do homem pelo trabalho sua
possibilidade efetiva de explicação” (PATRIOTA, 2010, p. 195). Na estética de
maturidade, essa compreensão fundamentará a relação sujeito-objeto, de
modo que o movimento da subjetividade em direção à esfera estética será
elucidado a partir do resgate do processo metabólico do trabalho.
Passando por essa compreensão, Lukács adota a ideia de trabalho
marxiana, compreendendo-o como o momento originário em que o homem
exterioriza a sua subjetividade e aquilo que o é em seu interior. Dessa forma, o
trabalho adquire o status de momento disparador do processo de
interiorização dos indivíduos:
E com o trabalho, também a objetividade natural surge como
determinação originária, pois o trabalho é a ação do sujeito frente a
uma objetividade independente e inderivável. Segue-se daí que, pelo
trabalho, o homem surge como sujeito e a natureza, que existe por
si, como objeto deste sujeito. Em seu movimento concreto, esta
relação sujeito-objeto é o processo de exteriorização do sujeito que
age sobre a objetividade dada, um movimento duplo: a alienação
deste sujeito de si mesmo e o retorno a si dessa alienação idêntico.
(PATRIOTA, 2010, p. 191)
Ao agir no mundo, por meio do trabalho, o homem manifesta ativa e
passivamente a sua generidade, pois busca uma utilidade social para o objeto
por ele produzido. Nesse sentido, Lukács retoma a ideia de Marx, contida nos
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Manuscritos econômico-filosóficos (2004), de que o objeto do trabalho é a
objetivação da vida genérica do homem, pois é, por meio dele, que o sujeito se
duplica intelectualmente em sua consciência, contemplando-se em um mundo
criado por ele próprio. No sentido oposto, o trabalho estranhado retira do
homem o objeto por ele produzido, arrebatando-lhe a sua vida genérica, ou
seja, sua real objetividade genérica. Ainda sobre a noção de trabalho marxiana,
Jesus Ranieri afirma que:
É nesse texto [Manuscritos econômico-filosóficos] que o lugar do
trabalho como forma efetivadora do ser social é realmente exposta e
desenvolvida, algo que, até então, mesmo em Marx, não havia sido
feito. É nele que o conjunto das esferas da existência humana (desde
o lugar da arte, da religião, da filosofia, passando pela conceituação
de liberdade, até as formas concretas e imediatas de realização do
trabalho) aparece como dependente da esfera de produção o
trabalho é mediação entre homem e natureza, e dessa interação
deriva todo o processo de formação humana. (RANIERI, 2004, p.
14)
Ao longo do processo de formação e de evolução da humanidade, o
homem interage com a natureza e a transforma conforme as exigências da vida
em sociedade. A culturização de antigos desertos é um exemplo de tal processo,
que modifica e enriquece o homem e as suas relações com o ambiente e com os
outros homens. A ideia de conformidade ou de adequação acerca da relação
metabólica do homem com a natureza pode ser tomada no sentido de uma
acepção prática, tal qual o exemplo citado, e em uma acepção voltada à
atividade estética, segundo Tertulian. Devemos ter em mente que a estética de
maturidade resgata a ideia de conformidade ao entender que a missão da arte
consiste em “evocar a realidade em sua plena objetividade, mas da perspectiva
única de sua conformidade com as exigências humanas” (TERTULIAN, 2008,
p. 253). A acepção estética que Lukács pretende à ideia de conformidade é
descrita da seguinte maneira por Tertulian:
como uma adequação do mundo (vista sob a forma de “troca
material de substância entre natureza e sociedade”) às exigências do
homem tomado em sua essência humana, como sua conformidade
com os atributos - equilíbrio ou perturbação, bem ou mal – da
personalidade humana em sua integralidade (TERTULIAN, 2008,
p. 253).
As considerações até aqui realizadas nos encaminham à afirmação de
que o movimento da subjetividade em direção à esfera estética será elucidado
por meio da retomada do processo metabólico do trabalho, de forma que os
questionamentos suscitados sobre o mundo da arte devem ser explicados a
partir do princípio do processo de humanização do homem, realizado por meio
do trabalho. Diante dessa perspectiva, a estética de maturidade lukacsiana
ao compreender que o sujeito, ao se relacionar com o entorno, passa a conhecer
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e dominar o mundo ao seu redor, bem como tem sua interioridade enriquecida
resgata a noção marxiana de que: “o conhecimento de si do homem não
ocorre sem o conhecimento do conjunto de suas relações com o mundo”
(TERTULIAN, 2008, p. 253). Dito de outro modo, Lukács assegura o elo e a
correlação entre o ato de objetivação e o desenvolvimento da sensibilidade
humana, o que, transposto à criação artística, conduz à afirmação de que a
conexão estabelecida entre o conhecimento de si e o conhecimento do mundo
está no alicerce do equilíbrio entre objetividade e subjetividade no momento
da criação artística.
A Estética e o seu traço humanista
Como aferimos ao longo deste estudo, a vivência estética é
proveniente de um longo processo evolutivo da humanidade, isto é, a
capacidade humana de produzir e de fruir objetos artísticos não surgiu “do
nada”, mas de um acúmulo das experiências humanas a partir de sua relação
com a natureza. Neste decurso temporal, o reflexo mágico e o reflexo artístico
foram, gradualmente, se desprendendo, para que, assim, a criação das obras
de arte se tornasse possível.
Ao investigar o fenômeno estético, Lukács afirma que os objetos
artísticos autênticos criam mundos que refletem os conteúdos mais essenciais
da vida humana, que falam sobre os homens e para os homens. Nesse diálogo,
as obras de arte refletem as possibilidades e potencialidades concretas do
mundo e dos homens, de modo que o fruidor pode receber esses conteúdos,
mediados pela forma artística, com ampla profundidade.
Ao asseverar que as obras de arte refletem os conteúdos próprios da vida
humana, Lukács identifica o seu traço de mundanidade. Nesse sentido, o
percurso da evolução humana e dos objetos artísticos rumo à mundanidade
evoca um sistema de pensamento antropocentrista, que coloca o homem no
centro do mundo, de maneira que os mundos criados pelos artistas em suas
obras encontram sempre o homem e sua vida como referência.
Ora, a humanitas ou seja, o estudo apaixonado da natureza
humana do homem – faz parte de toda a essência da literatura e de
toda arte autêntica; dque toda boa arte e toda boa literatura sejam
humanistas, não ao estudarem apaixonadamente o homem e a
verdadeira essência da sua natureza humana, mas também por
defenderem apaixonadamente a integridade humana do homem
contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e a adulteram.
(LUKÁCS apud CARLI, 2012, p. 17)
Não é, entretanto, somente o mundo da obra de arte que congrega essa
perspectiva humanista, mas os efeitos que provém, principalmente, de sua
recepção. De acordo com Lukács, a arte autêntica, isto é, aquela denominada
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realista, possui uma missão desfetichizadora. Vejamos as considerações de
Bastos sobre a questão:
A arte ou é desfetichizadora ou não é arte. A isso Lukács chama
realismo: em sua missão desfetichizadora, a arte representa
situações de opressão, de degradação da humanidade do homem,
mas as personagens representadas podem perceber essas
situações como situações criadas pelos homens, não como próprias
de uma condição humana antistórica, e se assim as percebem,
percebem também as possibilidades de superá-las. (BASTOS, 2016,
p. 48)
Ao assegurar a potência desfetichizadora da arte, Lukács garante, por
conseguinte, a possibilidade de defesa da integridade da humanidade no plano
da vida cotidiana. Tal movimento é possível, pois a relação sujeito-objeto,
oriunda da fruição artística, possibilita ao receptor a perceão “natural” de
alguns aspectos da vida, que, no plano disperso da cotidianidade, ficam
obscurecidos. É nesse sentido que, ao fruir uma obra de arte, o sujeito pode ter
os seus sentidos ampliados e renovados, o que o conduz para uma nova
percepção do mundo objetivo.
Soma-se a isso o caráter profundamente social da obra de arte, visto que
Lukács a compreende como portadora da memória da humanidade, pois ela
reflete os destinos e os feitos dos homens. Ao assumir essa perspectiva, a
vivência estética permite ao fruidor a evocação dessa memória bem como
possibilita a conexão e a vivência do sujeito com os destinos típicos vividos
pela humanidade: esse movimento compreende uma recepção artística na qual
o sujeito incorpora tanto os caminhos passados e presentes da evolução
humana como a consciência dos homens que realizaram essas trajetórias. Ao
sujeito estético, portanto, é ofertada a possibilidade de participação efetiva na
vida da humanidade. Sobre esse movimento, também é necessário ressaltar a
ideia de que a fruição estética possibilita a transformação de um passado
espacial e temporal em um momento presente vivido, despertando, no
receptor, a consciência de viver em um mundo do qual ele faz parte e do qual
é, ainda, co-criador.
A implicação dessa experiência é a recepção e a apropriação pelo sujeito
estético de um mundo com sentidos renovados, pois a sua psique se amplia e
se enriquece a partir da captação desses novos conteúdos. Ao se reconhecer no
mundo dos objetos e ao se sentir parte dele, o sujeito estético pode restabelecer
a sua relação como o mundo objetivo, orientando suas práticas sociais para
transformá-lo. Essa transformação existencial pode ser direcionada, por
conseguinte, para a realização de possibilidades humanas autênticas, mais
significativas, ricas e amplas. A vivência estética evoca, assim, a possibilidade
de um desenvolvimento humano em que o sujeito, sem apagar a sua
singularidade, reivindica para si as tarefas do gênero humano, vivenciando-as
como suas e compreendendo os traços comuns da vida do gênero e de sua
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própria existência. É nesse sentido que afirmamos o traço marcadamente
humanista da estética de maturidade de Lukács.
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Como citar:
GALLO, Renata Altenfelder Garcia. Origem do reflexo estético, mundanidade
e considerações preliminares sobre a obra de arte na Estética (1963) de György
Lukács. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 1, pp. 106-25, jan./jun. 2020.
Data do envio: 27 fev. 2020
Data do aceite: 8 maio 2020