DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.533
Bruno Daniel Bianchi
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Arte autônoma ou arte política?
Bruno Daniel Bianchi
1
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo compreender a discussão entre a alternativa
entre uma arte autônoma e uma arte política/de tendência. A partir do
referencial teórico do marxista húngaro György Lukács, o texto busca criticar
o caráter enrijecido do debate devido à limitação da concepção de sujeito e
sociedade inerente à ideologia burguesa, assim como sua tentativa de produzir
uma filosofia da arte desvinculada das questões histórico-sociais de seu tempo.
Palavras-chave: partidarismo; arte de tendência; autonomia da arte.
Autonomous art or political art?
Abstract:
This article aims to understand the discussion between an autonomous art and
a tendency/political art. Based on the theoretical reference of the Hungarian
Marxist Gyorgy Lukacs, the paper seeks to criticize the stiffened character of
the debate due to the limitation of the conception of subject and society
inherent in bourgeois ideology, as well as its attempt to produce a philosophy
of art detached from the historical-social questions of its time.
Keywords: partisanship; tendency art; autonomy of art.
O debate entre a politização ou não da obra de arte, ainda que presente
pelo menos 150 anos, é bastante recente na história da arte. Ainda que a
obra passe por um processo de autonomização, por exemplo, de instituições
como a religião no Renascimento, é apenas com o desenvolvimento de
teorias estéticas como as obras de Kant e Schiller que se tem início uma
discussão sobre uma arte livre ou pura (BÜRGER, 2017). Como consequência,
abre-se também a discussão sobre a possibilidade (ou exigência, em alguns
casos) da arte assumir abertamente uma função política. A questão da
existência de uma “contaminação” da arte pela política ou da existência de uma
arte pura, acima dos debates e lutas do cotidiano ainda é um tema recorrente
quando tratamos da relação entre arte e sociedade.
1
Especialista em Gestão Pública pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail:
brunodbianchi@gmail.com.
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Em primeiro lugar, esse debate sobre a politização ou não da arte se
revela como uma discuso mais geral da relação entre forma e conteúdo, na
qual, por um lado, a visão de uma “arte pura” (ou uma arte pela arte) seria uma
exacerbação da forma em detrimento do conteúdo, ou seja, colocaria o
conteúdo em segundo plano. Por outro lado, a “arte política” (ou arte de
tendência) representaria uma inflação do conteúdo, da priorização dos temas
e tópicos de conteúdo político, de agitação e propaganda, sobre os aspectos
mais formais das obras.
Isto se pela interpretação não-dialética da relação entre forma e
conteúdo, pela rígida e inflexível tentativa tanto de autores quanto de críticos
de perceber aquilo que Hegel definiu de uma perspectiva idealista: “o conteúdo
não é senão o mudar da forma em conteúdo, e a forma não é senão o mudar
do conteúdo em forma” (HEGEL, 1995). Não é, contudo, do da alçada deste
texto responder à relação entre forma e conteúdo, sendo aqui somente
necessário apontar como essa priorização de um ou de outro leva,
inevitavelmente, a erros e obstáculos teóricos e práticos.
Mais importante neste momento é ressaltar a polarização entre aqueles
que acreditam na possibilidade de uma “arte pela arte”, autônoma, ou como
colocava Lukács (2010), a arte na torre de marfim, e aqueles que defendiam a
tarefa da arte de tomar posição e intervir diretamente nas lutas sociais – uma
arte dirigida por uma tendência política. Historicamente, não faltaram
representantes destas duas perspectivas, inclusive dentro dos próprios
movimentos socialistas, como o caso da União Soviética
2
.
Em aparência, este debate gera um impasse: deve a arte sujeitar-se a
uma direção política (seja ela interna ou externa) ou o artista deve ser um
sujeito desinteressado, distanciado das mazelas sociais de sua época?
Aqui, antes de tudo, devemos deixar claro o que significa a arte de
tendência na sua origem. Sem a intenção de entrar de modo aprofundado no
aspecto histórico da questão, o debate sobre a politização da arte já está
presente na primeira metade do século XIX, tendo, inclusive, participação
ativa do jovem Marx. Em uma época de forte mobilização política (nos anos
anteriores às revoluções de 1848 que tomaram conta da Europa), entra em
debate se o poeta deve tomar partido (a visão, por exemplo de Herwegh) ou se,
como sugeriria Freiligrath, o poeta estaria em uma torre de observação mais
2
Aqui, dois grupos são de relevância: o LEF, que defendia uma arte “operativa”, de intervenção
direta sobre a realidade (através, por exemplo, do agitprop), que buscava unir atividade
artística com a produção em geral, chegando ao ponto de anunciar “abaixo à arte! Viva a
técnica!”, ou seja, anulando a especificidade do reflexo artístico; e o Proletkult, que buscava
principalmente produzir uma “cultura proletária”, através, principalmente, de mudanças
linguísticas e formais. Ambos os movimentos utilitaristas em essência foram influentes
após a Revolução Russa, tendo seu fim decretado com a institucionalização do Realismo
Socialista em 1934.Sobre os movimentos artísticos soviéticos, ver Napolitano (1997) e
Frederico (2018).
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alta que as muralhas do partido
3
. O próprio termo “tendência” ganharia
notoriedade por servir de título a um poema de Heinrich Heine.
O que significa o termo “tendência”? Como este surge no contexto
prussiano do século XIX? De início, vale apontar que o termo “tendência”
precede seu uso estético, como feito por Herwegh, Freiligrath, Heine e outros.
Sua origem pode ser encontrada na crítica de Marx à censura prussiana. Aqui,
Marx critica a evidente parcialidade do órgão censor do estado, que defende a
publicação “livre” quando o estado concorda com a tendência do escritor, mas
é “extremamente exigente quando a tendência do autor não é prescrita pela
lei” (LIFSCHITZ, 1933, p. 63).
Portanto, a “tendência”, inicialmente, revelava um teor de censura
reacionária teor que, ao ser transposto para o campo propriamente estético
não é completamente apagado, embora não possua o caráter literal visto no
caso do estado prussiano. Isto porque, como apontou Lukács, tendência é algo
bastante relativo: “uma obra aparece como ‘tendenciosa’ quando possui uma
base classista e é hostil à orientação dominante em termos de classe; a
própria ‘tendência’ não é realmente uma tendência, mas sim somente aquela
do oponente” (LUKÁCS, 1971, p. 25). Em outras palavras: uma arte é
“tendenciosa” se posiciona-se criticamente ao status quo, à ordem
estabelecida, seja ela uma ordem estética ou sócio-política. Se antes a censura
vinha na forma do estado e da lei, agora uma censura da própria instituição
arte que retira o status de obra de arte de forma arbitrária, seguindo um ideal
de “arte pura”. Não é incomum o valor estético de uma obra entrar em questão
quando uma tendência política explícita na sua representação
especialmente se é uma tendência que ataca de frente a ordem estabelecida.
Não é à toa que, justamente devido a esse posicionamento reacionário
ainda hoje presente, inclusive entre autores “progressistas” houve uma
certa defesa da “tendência” da produção artística. Contrário à visão ideal da
arte como “ausência de tendência”, defendeu-se uma arte politizada,
engajada, inclusive tendenciosa, sem perceber que, ao aceitar participar desse
jogo de palavras do idealismo burguês, o se fez nada além que aceitar a
derrota. Pois para existir um ramo da arte que seja “tendenciosa”, que possua
“tendência”, assume-se a priori a existência de uma “arte pura”, isenta e
apartidária.
Antes, portanto, de cair na armadilha burguesa da “arte pura”,
precisamos compreender melhor o conceito de autonomia da obra de arte que
subjaz o ideal de arte pura ou arte livre. Para entendermos o conceito, é preciso
em primeiro lugar compreendê-lo como produto de um desenvolvimento
histórico-social, e não como um aspecto inerente da atividade em si.
3
Para saber mais sobre o debate entre Herwegh e Freiligrath, ver o texto Tendência ou
partidariedade? (1932), de Lukács, ou a obra A filosofia da arte de Karl Marx, de M. Lifschitz.
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A relação da autonomia da arte historicamente é tanto um tema da
estética propriamente dita quanto da história da arte. Nesta, podemos destacar
o papel sempre presente da determinação social da produção artística,
determinação não no sentido do materialismo vulgar, de uma instância
superior (a sociedade), que determinaria uma instância inferior (a atividade
do sujeito). Neste sentido, podemos exemplificar o papel da pólis na atividade
artística da Grécia Antiga, ou o papel a que ocupou a Igreja durante a Idade
Média, ou a participação dos mecenas durante o período do Renascimento
sendo que nestes últimos dois exemplos, é óbvio o caráter de “encomenda” da
arte.
Ora, no presente, a ideia de uma arte “encomendada” certamente
atribuiria a si olhares de escárnio, visto que a arte seria imposta de fora, por
uma força alheia à própria subjetividade do artista. Entretanto, dificilmente
alguém questionará o valor estético da Pietà de Michelangelo ou A ronda
noturna de Rembrandt, por exemplo, por sua característica de encomenda.
É, portanto, apenas com a consolidação da sociedade capitalista e da
ordem burguesa no século XIX que se institui o ideal de uma arte autônoma,
livre das amarras dos curadores e dos órgãos institucionais como a Igreja e o
estado. Entretanto, isso não significa uma liberdade total das determinações
sociais, mas apenas que os elementos constituintes dessa determinação social
são radicalmente alterados com a consolidação da sociedade capitalista. É esta
complexidade do local que a produção artística ocupa dentro da produção em
geral que permite a Bürger definir a autonomia da arte como uma “categoria
da sociedade burguesa, que, a um tempo, torna reconhecível e dissimula um
desenvolvimento histórico real” (2017, p. 87).
O autor segue avaliando a relação entre o surgimento da autonomia da
arte e seu desligamento da práxis vital, de sua vinculação imediata ao sagrado.
É de importância fundamental a consideração de Bürger de que, para atingir o
seu novo status na sociedade capitalista, isto é, sua transformação em
mercadoria, não mais submetida à encomenda do mecenas ou da Igreja, a arte
precisa ter atingido um grau de autonomia: tendo como pressuposto a
autonomia que a arte atinge sua condição de heteronomia.
A autonomia, sendo uma categoria pertencente ao todo do completo
ideológico burguês, retém um momento de verdade (o deslocamento da arte
da práxis vital) e um momento de não verdade (a hipóstase de um estado
produzido historicamente como algo da essência da arte). Para Bürger:
A autonomia da arte é uma categoria da sociedade burguesa. Ela
permite descrever a ocorrência histórica do desligamento da arte do
contexto da práxis vital, descrever o fato de que, portanto, uma
sensibilidade não comprometida com a racionalidade de fins pode
se desenvolver junto aos membros das classes que, pelo menos
temporariamente, estavam livres da pressão da luta cotidiana pela
sobrevivência. Aí reside o momento de verdade do discurso da obra
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de arte autônoma. No entanto, o que essa categoria o consegue
abarcar é que esse desligamento da arte do contexto da práxis vital
representa um processo histórico, vale dizer, socialmente
condicionado. E nisso, justamente, consiste a o verdade da
categoria, o momento da deformação, que é próprio de toda
ideologia contanto que se use esse conceito no sentido da crítica
da ideologia do Jovem Marx. A categoria da autonomia não permite
compreender o seu objeto como tendo se tornado histórico. (2017,
p. 109)
Agora, melhor delimitado o caráter idealista da autonomia da arte em
relação às determinações sociais, podemos dizer que a questão da autonomia
diz respeito ao momento subjetivo da produção artística, ou seja, a escolha do
artista do que representar e como representar. Aqui, entra-se em uma série
sem fim de contradições e pressupostos para tentar sustentar o argumento. Por
um lado, o artista deve ter a autonomia para representar o que bem entender.
No entanto, se escolher representar um conteúdo sócio-político, corre o risco
de ser chamado de “tendencioso”. Sua saída é representar esse conteúdo da
forma mais distanciada e imparcial possível, ou seja, sem tomar partido, ou
será acusado de “tendencioso”. Mas o artista deve ser livre para representar o
que bem entender! E assim, os defensores da autonomia subjetiva do artista
impõem restrições às escolhas do artista, correndo atrás do próprio rabo.
Tal defesa da autonomia subjetiva do artista encontra seus próprios
limites pois não supera uma visão mecanicista da relação entre indivíduo e
sociedade. Esta visão não consegue perceber a determinação dialética entre o
fator subjetivo do indivíduo (no nosso caso, do artista) e o fator objetivo do
desenvolvimento social, ou seja, o fato histórico de que os sujeitos determinam
o processo histórico da mesma forma como são determinados por ele.
Percebem o desenvolvimento social (e ideológico) como apartado da atividade
dos sujeitos singulares e, consequentemente, o sujeito isolado da totalidade
histórico-social.
A percepção do sujeito como átomo foi criticada enfaticamente por
Marx e Engels (2003) e, portanto, não cabe aqui retomar os argumentos. É
apenas de especial importância ressaltar que, assim como a autonomia da obra
de arte necessariamente recai numa distorção idealista da produção social da
arte, a autonomia subjetiva do artista demanda a mesma distorção idealista do
processo criativo interior da obra de arte, pois parte do pressuposto (falso) de
que a formação da subjetividade do artista não é fruto do desenvolvimento
social objetivo. Neste sentido, nem a obra, nem o artista se encontram na torre
de marfim, e podemos afirmar com segurança que toda arte é política. Isto, no
entanto, não acrescenta muito ao debate, visto que é terreno comum afirmar
que mesmo a obra que se declara imparcial e isenta está se posicionando
politicamente.
A subjetividade do artista é um elemento de extrema importância para
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a compreensão da obra porque é a partir dela que compreendemos as escolhas
feitas pelo artista do que representar e como representar. Mesmo que a obra
em si não coincida com sua visão de mundo (Balzac, aqui, é o exemplo mais
óbvio), de se considerar a subjetividade do artista na análise da figuração
artística do mundo próprio da obra. Isso porque, diferente de, por exemplo, a
ciência, a produção artística requer o fator subjetivo para sua consumação,
requer uma unidade entre objetividade e subjetividade
4
.
Até aqui, chegamos à conclusão que o rótulo de “tendência” muitas
vezes é utilizado de forma arbitrária para definir aquele tipo de produção
estética que mantém um caráter hostil à ordem estabelecida. Isso significa que
não existe um elemento objetivo da “tendência” da obra de arte? De forma
alguma. Dizemos que uma obra possui “tendência” quando sua figuração
artística da realidade objetiva não se sustenta sobre a realidade mesma, mas
sim sobre as opiniões e desejos do artista, seja ele progressista ou reacionário.
Veja bem: não se trata de, no reflexo artístico, de negar a subjetividade do
artista, seus desejos e opiniões, mas sim de compreender a diferença entre essa
unidade entre objetividade e subjetividade na obra de arte, tal como defendido
por Lukács, e a deformação da realidade na obra de arte como resultado de seu
caráter tendencioso. Isto não significa, no entanto, que uma obra de arte que
tome partido nas lutas de sua época é necessariamente “tendenciosa”, ou que
uma obra que almeje escapar do rótulo de tendência tenha que escapar para o
reino da reportagem imparcial e “objetiva” (como o caso de Upton Sinclar na
obra A selva).
Veja, aqui temos três situações distintas: na primeira, o artista deforma
a realidade na sua figuração artística de acordo com suas opiniões e interesses,
impondo uma primazia da sua subjetividade sobre a objetividade; na segunda
situação, a representação “objetiva e imparcial”, típica da reportagem
5
, anula
a própria representação ao impor uma primazia da objetividade da realidade
sobre a subjetividade anulada do artista, retirando aquilo que de
especificamente estico na obra, ou seja, um privilégio unilateral do conteúdo
sobre a forma (OLDRINI, 2019); e por último, temos uma representação que
compreenda e se utilize da dialética entre o fator subjetivo e o fator objetivo na
obra de arte, uma representação que tenha em unidade subjetividade do artista
4
Aqui, não dizemos que a ciência, por sua tendência à desantropomorfização (ou seja, à
retirada do elemento humano como ideal) exclui um componente subjetivo do pesquisador,
mas sim que sua atividade, se é realmente científica, segue a tendência da análise da realidade
por ela mesma, independente das opiniões do artista.
5
A discussão sobre a Reportagem como substituto da representação, presente durante as
primeiras décadas do século XX, é tema de debate de outro artigo de Lukács de 1932,
Reportagem ou figuração? [Reportage oder Gestaltung?].
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e objetividade do mundo representado
6
.
Aqui, nos encontramos em uma situação bastante complexa. Por um
lado, temos os artistas “apartidários”, que seguem na ilusão de que podem
distanciar-se dos conflitos ou da influência da realidade sobre sua própria
consciência. Por outro lado, temos os escritores “tendenciosos”, típicos, por
exemplo, da Segunda Internacional, que ao escolher conscientemente uma
tendência, deformam a realidade, porque aqui “não é uma tenncia de
desenvolvimento social em si, tornada apenas consciente pelo autor (no
sentido de Marx), mas um mandamento (subjetivamente concebido) cuja
realidade é exigida a atender” (LUKÁCS, 1971, p. 32). Entretanto, há um
terceiro tipo de autor, aquele que supera justamente esse falso dilema entre
“arte pura” e “arte de tendência”. É o caso, por exemplo, dos grandes realistas
dos séculos XVIII e XIX, como Goethe, Balzac, Tolstói etc. (LUKÁCS, 2013)
São estes que, apesar de suas visões de mundo particulares, conseguem
apreender o movimento do real na sua figuração artística, como a condição do
campesinato e dos servos na Rússia por Tolstói, ou a hipocrisia da aristocracia
francesa por Balzac. Aqui, se confirma também a afirmação de Benjamin
(2017) sobre uma tendência correta, ou seja, a tendência do movimento do real
tal como sugerido por Marx, possui em si todas as outras qualidades de uma
obra de arte.
Esta figuração é aquilo que Lukács chama de partidariedade ou
partidarismo [Parteilichkeit], ou seja, a “tomada de posição em face do mundo
representado tal como ela toma forma na obra através de meios artísticos”
(LUKÁCS, 1978, p. 209). Segundo o autor, é esta a superação do falso dilema
entre “arte pura” e “arte de tendência” por ir além dos limites da falsa
consciência típica da ideologia burguesa pela compreensão correta do
desenvolvimento social. É neste sentido que Engels, em sua famosa carta a
Minna Kautsky em 1885, defende a tendência – visto aqui como tendência do
desenvolvimento social, não como a exigência ideal do autor que se justapõe à
realidade:
Eu sou de opinião que a tendência deve surgir com naturalidade das
situações e da ão, sem que seja necessária a sua exposição especial;
e penso que o autor não está obrigado a apresentar ao leitor a futura
solução histórica dos conflitos sociais que descreve. Ademais, nas
nossas condições, o romance dirige-se preferencialmente ao leitor
do ambiente burguês, ou seja, que não pertence diretamente ao
nosso meio e, por esta razão, o romance de tendência socialista
6
Tal relação entre subjetividade e objetividade já está presente na primeira tese de Marx sobre
Feuerbach: “O principal defeito de todo o materialismo existente até agora o de Feuerbach
incluído é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, é apreendido sob a forma
do objeto [Objekt] ou da contemplação; mas não como atividade humana sensível, como
prática, não subjetivamente. Daí decorreu que o lado ativo, em oposição ao materialismo, foi
desenvolvido pelo idealismo mas apenas de modo abstrato, pois naturalmente o idealismo
não conhece a atividade real, sensível, como tal.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 537)
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cumpre, a meu juízo, o seu objetivo quando reflete com veracidade
as relações reais, rompe com as ilusões convencionais que existem
sobre estas, fere o otimismo burguês e fomenta dúvidas acerca da
imutabilidade das bases em que repousa a ordem existente – mesmo
que o autor não proponha uma determinada solução ou que sequer
se posicione ostensivamente (MARX e ENGELS, 2012, p. 66).
Aqui, está claro que Engels defende a tomada de partido por parte do
artista. O autor deve encontrar a tendência no desenvolvimento social objetivo,
ou seja, deve conhecer profundamente a realidade em si, os conflitos que
permeiam suas relações, para que consiga romper com as ilusões
convencionais que existem sobre as relações reais, no sentido de Engels. É,
portanto, da especificidade da arte o seu caráter desmistificador, de romper
com a falsa consciência burguesa e com o reflexo cotidiano da realidade, de
revelar o movimento do real no seu aspecto mais humano; o partidarismo é,
portanto, a revelação do reflexo artístico como embate entre reação e progresso
e somente o proletariado – de acordo com Lukács – é capaz de romper com a
falsa consciência mistificada da decadência ideológica burguesa.
Em vias de uma conclusão, cabe ainda responder a dois possíveis erros
decorrentes da análise realizada acima. O primeiro diz respeito ao papel da
subjetividade do autor na produção artística. O segundo, em relação à defesa
da autonomia. Nenhum dos problemas pode ser abordado aqui em sua
totalidade, sendo necessário apenas mostrar os possíveis caminhos do
seguimento do debate.
A defesa do partidarismo na arte feita por Lukács, do artista conseguir
descobrir no real as tendências objetivas do movimento histórico, pode
desembocar numa falsa conclusão de que o artista deve realizar uma análise
científica da realidade. Portanto, ele deve se voltar para uma análise fidedigna
e fotográfica da realidade. Nada poderia ser mais oposto à visão lukacsiana de
reflexo artístico. de início, essa concepção se mostra falsa devido à
concepção do ato do trabalho que, segundo Lukács, por permitir a superação
da subjetividade espontânea, por suspender a imediatez da atividade (pelo seu
aspecto teleológico), permite ao sujeito não investigar a realidade objetiva
tal como ela é em si, mas justamente por isso, permite a distinção entre o
essencial e o não-essencial na realidade objetiva, refletida na consciência
humana (LUKÁCS, 1966).
De que forma isso se manifesta no reflexo estético? O mesmo processo
de distinção entre o essencial e o não-essencial se manifesta na atividade
estética do sujeito. É da possibilidade de superar a consciência imediata que o
ser humano consegue ir além da aparência fenomenológica da coisa em direção
à sua essência, o détour do processo de conhecimento, tal como categorizado
por Kosik (1976), ainda que esse détour realizado pelo reflexo artístico seja
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diferente do reflexo científico. A defesa do realismo da obra de arte significa a
capacidade da obra de ir além da simples aparência do fenômeno, capacidade
intimamente relacionado com a subjetividade criadora do artista de
conscientemente analisar a realidade objetiva.
Tal concepção, ainda que não elaborada com a complexidade presente
na grande Estética, já está presente nos primeiros textos de Lukács após sua
“virada marxista”. Esta pode ser encontrada não somente em Tendência ou
partidarismo (1932), mas também em Reportagem ou figuração? (1932) e
Narrar ou descrever? (1937)
7
. No primeiro texto, o autor critica o método
jornalístico que objetiva a reprodução direta e fiel da realidade empírica, com
a intenção de demonstrar que o caso retratado é típico e representativo de uma
parcela maior da realidade, deixando de lado o aspecto subjetivo das
personagens. Essa lacuna é preenchida, segundo Lukács, pela subjetividade
não-retratado do autor, como um comentário moralizante que é supérfluo e
acidental”, sendo prejudicial à própria trama narrativa. na segunda
produção (Narrar ou descrever?), o autor critica a mera observação do
narrador, que se contenta em descrever de maneira fotográfica a realidade
retratada. Torna-se uma realidade morta, cristalizada e fetichizada, indo
contra a função social do reflexo estético, a dissolução do fetichismo das
relações sociais e econômicas sob o capitalismo” (COTRIM, 2016, p. 163).
É neste sentido que Lukács critica a reportagem e o naturalismo como
métodos de representação artística do real. O partidarismo defendido pelo
autor, portanto, não se baseia em uma mera reprodução fotográfica do real,
mas sim na capacidade do artista de configurar a “tendência” objetiva, possível
apenas devido ao ato consciente de selecionar entre o essencial e o não-
essencial. É neste sentido também que Steiner postula: “enquanto o realista
seleciona, o naturalista enumera” (STEINER, 1988, p. 293).
A outra questão mencionada diz respeito à autonomia da arte.
Defender o partidarismo/partidariedade da obra pode ser erroneamente
interpretado como uma crítica à autonomia da produção artística, que a obra
deva estar a serviço de um partido e, portanto, deve ser direcionada ou regida
por fatores externos à própria atividade criativa, como diretrizes ou normas.
De forma alguma. Para além da compreensão não-dialética da relação entre
sujeito e sociedade, como explicitado anteriormente, esta concepção
compreende autonomia apenas como autonomia absoluta, hipostasiada. No
polo oposto, temos, por exemplo, os movimentos vanguardistas e
neovanguardistas que buscam rebaixar a obra de arte ao nível da
cotidianidade, como um happening.
Ambos os extremos – a concepção idealista e descolada da realidade de
7
Uma análise mais completa acerca destes textos pode ser vista na obra Literatura e realismo
em György Lukács, de Ana Cotrim, baseada em sua dissertação de mestrado.
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autonomia e o rebaixamento da obra ao nível da cotidianidade são
repudiáveis na medida em que ignoram a peculiaridade específica da obra de
arte e ou a descolam do contexto histórico de sua produção, ou o reduzem a
uma determinação vulgar e mecânica. Aqui, deve-se entender a autonomia da
obra de arte da mesma forma como os outros complexos sociais: que, em
determinadas condições históricas, ganham uma autonomia relativa em
relação à totalidade social, nunca descolando-se totalmente desta totalidade.
Da mesma forma, defender esta autonomia, para Lukács, representa a
possibilidade da função da obra de arte de desvelar o fetiche da realidade
cotidiana imediata (ou como Kosík coloca, o mundo da pseudoconcreticidade),
contrariando a tendência aos movimentos vanguardistas de identificarem a
obra com essa mesma cotidianidade.
Aqui, torna-se evidente que defender a autonomia da arte não se coloca
em oposição à defesa do partidarismo da obra; pelo contrário, ambas são
essenciais para o sucesso ou não da obra de arte em sua missão
desfetichizadora. Superado o falso debate entre uma arte política e uma arte
livre, “autônoma”, abre-se o caminho para compreender o papel da autonomia
de uma perspectiva materialista e dialética. Somente indo além do falso dilema
entre autonomia ou politização da arte podemos compreender a subsunção da
arte dentro do modo de produção capitalista e suas possibilidades reais de
emancipação.
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Como citar:
BIANCHI, Bruno Daniel. Arte autônoma ou arte política? Verinotio – Revista
on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 85-95,
jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 mar. 2020
Data do aceite: 18 maio 2020