DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.559
Vitor Bartoletti Sartori
16
A crítica marxista do direito diante de Friedrich Engels: a tensão
entre exposição e pesquisa em sua análise da esfera jurídica
Vitor B. Sartori
1
Resumo: Tendo em conta a crítica marxista ao direito, principalmente em sua
vertente mais estruturada colocada na esteira de Pachukanis, analisaremos a
contraposição de Friedrich Engels à esfera jurídica. Ao considerar certa tensão
entre a exposição e a pesquisa engelsiana, veremos como que o autor do Anti-
Dühring relaciona a circulação capitalista de mercadorias ao direito. Tendo
realizado tal tarefa, tratemos à tona a crítica de nosso autor ao direito racional
e à justiça. Exporemos como que a posição de Engels é mais sofisticada que
normalmente se supõe. Notaremos, porém, que o risco de leituras apressadas
de seus textos não é exógeno ao modo pelo qual eles são articulados. Por fim,
veremos como a crítica engelsiana ao direito ainda pode ser muito importante
para a crítica marxista.
Palavras-chave: Engels; direito; marxismo; crítica marxista ao direito.
The Marxist critic of law and Friedrich Engels: the tension
between research and exposition in his analysis of the juridical
sphere
Abstract: Considering the Marxist critique of law, especially in its most
sophisticated aspect, which follows Pachukanis´ tracks, we will analyze the
criticism of Friedrich Engels of the legal sphere. Having a certain tension
between exposure and research in Engels texts, we will see how the author of
Anti-Dühring relates the capitalist circulation of commodities to law. Having
accomplished this task, we try to bring the critics our author of the rational
right and justice. This will prove how Engels' position is much more
sophisticated than is normally supposed. We will note, however, that the risk
of hasty readings of your texts is not exogenous to the way in which they are
articulated. Finally, we will see how Engelsian criticism of law can still be very
important for Marxist criticism.
Keywords: Engels; law; Marxism; Marxist critic of law.
1
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor de Ontologia nos extremos:
o embate Heidegger e Lukács, uma introdução (Intermeios, 2019). Coeditor da Verinotio. E-
mail: vitorbsartori@gmail.com.
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Introdução
Por mais que o tratamento marxiano sobre o direito seja abundante, ele
não é sistemático; e, é preciso dizer: isto traz bastantes dificuldades na análise
deste aspecto da obra de Marx. Levando isto em conta, pode-se dizer que, em
verdade, muito embora o competente e vigoroso trabalho de Márcio Bilharinho
Naves (2014) tenha trazido à tona uma importante contribuição para o estudo
da temática, ainda muito a se pesquisar nesta seara. É preciso ainda tratar
deste objeto passando-se pelos diversos posicionamentos do autor alemão
sobre o direito durante sua vida; e isto é algo que, ao menos com o cuidado
devido, não está presente nos escritos de Naves. Na esteira de Pachukanis
(2017), Naves enfoca sua análise no Livro I de O capital. Mas uma gama
muito mais ampla de textos marxianos (mesmo no Livro II, no III, bem como
nas Teorias do mais-valor, para que fiquemos em textos cujo relevo é unânime
na crítica marxista ao direito) em que a crítica ao direito tem um papel bastante
importante na conformação da posição marxiana (cf. SARTORI, 2020)
2
. Assim,
por mais estranho que possa parecer, pode-se dizer que o estudo da crítica
marxiana ao direito ainda está em seu começo. E isto faz com que seja
necessário relativizar qualquer pretensão de acabamento da crítica marxista
ao direito. Esta última, acreditamos, ainda deve passar por aspectos
importantes da obra de Marx, que não foram estudados com o devido cuidado
(cf. CHASIN, 2009).
Sem uma análise de fôlego e rigorosa dos próprios textos marxianos, o
marxismo corre o risco de estar aquém daquilo colocado pelo autor que
nome à tradição. Diante de parte do marxismo do século XX, de viés stalinista,
e frente à retomada do stalinismo por partidos e intelectuais brasileiros
3
é
necessário o que Lukács chamou de renascimento do marxismo (cf. LUKÁCS,
2013). O marxismo precisa ser visto com cuidado no século XXI. Grande parte
do que foi produzido em nome de Marx não passou de um tacanho
esquematismo, contra o qual autores importantes como Lukács (de quem nos
aproximamos mais) e Althusser (em quem parte substancial da crítica
marxista ao direito brasileira se inspira) se colocaram. Ao ter em conta este
contexto, escrevemos o presente texto, que pretende resgatar o primeiro autor
a falar em nome de Marx depois de sua morte, Friedrich Engels.
Pelo que mencionamos, no que diz respeito ao direito, mesmo que se
2
Poderíamos mencionar outras obras do autor. Porém, para que marquemos nosso ponto,
basta citar as obras que os althusserianos (linhagem na qual Naves se enquadra) acreditam ser
essenciais ao pensamento maduro de Marx.
3
Neste texto vamos criticar algumas posições dos pachukanianos, no Brasil, inspirados pela
obra de Márcio Naves. Um ponto importante a se destacar desde já é que esta tradição, tal qual
Naves, continua com uma posição crítica, não aceitando certa retomada do stalinismo, a qual
acreditamos ser nefasta para uma tradição como a marxista. Neste ponto, não se pode deixar
de indicar o estudo sério de Naves (2000) sobre Pachukanis e sua posição diante de Stálin.
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tenham autores sérios debruçados sobre os textos de Marx a partir de
Pachukanis, a obra marxiana ainda está para ser estudada. Aqui, porém, não
poderemos realizar esta tarefa. Voltar-nos-emos à obra engelsiana.
Engels, por outro lado, está em uma situação bastante diferente ao se
ter em mente os estudos da crítica marxista ao direito: ele tem muitos textos
em que, ao atacar seus adversários teóricos e políticos (como Menger, Dühring
e os proudhonianos) passa por uma análise mais sistemática sobre o terreno
do direito. A tradição de crítica marxista ao direito, por sua vez, se
compararmos sua lida com Marx, soube aproveitar-se muito mais destas
análises. O estudo destes textos, como o Anti-Dühring, O socialismo jurídico
e Sobre a questão da moradia, foi comparativamente muito mais cuidadoso
do que o estudo dos textos de Marx. E, assim, muito embora a crítica marxista
ao direito – que até hoje, em geral, tem por base a seminal obra de Pachukanis
(2017) pretenda partir de uma análise rigorosa e cuidadosa dos textos de
Marx, ela acaba fazendo algo um pouco diferente: a partir de Pachukanis, ela
toma emprestado de Engels um tratamento polêmico sobre o direito e vem a
deixar em segundo plano a análise exaustiva dos textos do autor de O capital
(cf. SARTORI, 2015a).
Com isso, as bases para a crítica marxista ao direito estão, até certo
ponto, em Marx, e principalmente na leitura conjunta dos capítulos I e II do
Livro I de O capital, que são analisados de modo bastante interessante pelo
autor da Teoria geral do direito e o marxismo
4
. No entanto, embora muitos
digam o contrário
5
, é da leitura sistemática de Engels que parte a tradição
iniciada por Pachukanis e cujos expoentes são notórios no Brasil (cf. SARTORI,
2015a; PAÇO CUNHA, 2015).
Isto não necessariamente é um problema. No entanto, a posição
segundo a qual a leitura pachukaniana é a mais fiel ao texto de Marx (cf.
NAVES, 2000, 2014; MASCARO, 2012), ao se ter isto em conta, precisa ser
vista com alguma desconfiança (cf. PAÇO CUNHA, 2014; 2015).
Não entraremos aqui no debate sobre as implicações disto, o que
renderia, ao menos, um texto bastante extenso à parte. Nele, seria de grande
relevo analisar a recepção de Pachukanis por autores inspirados em Althusser
(como Edelman, e, no Brasil, o próprio Naves), bem como pela teoria
derivacionista, cujo principal expoente é Hirsch
6
; outro ponto fundamental
seria trazer à tona textos como os Grundrisse, as Teorias do mais-valor, os
4
As leituras pachukanianas se colocam muito próximas daquelas de Isaac Rubin (1987) e, tal
qual este último autor mencionado, trazem um enfoque bastante grande no fetichismo da mer-
cadoria.
5
Diz Márcio Naves: “Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às refe-
rências ao direito encontradas em O capital e não seria exagero dizer que ele é o primeiro
que verdadeiramente as mas, principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx,
ao recuperar o método marxiano” (NAVES, 2000, p. 16).
6
A influência do autor na obra de Alysson Mascaro é patente (cf. MASCARO, 2013).
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livros II e III de O capital (só para que fiquemos nas “obras econômicas” de
Marx) que estes textos foram pouquíssimo analisados pela crítica marxista
ao direito (cf. SARTORI, 2020). Seria necessária uma análise cuidadosa do
papel que a crítica ao direito tem na formação do pensamento propriamente
marxiano; e igualmente necessária seria uma crítica ao modo pelo qual a noção
de corte epistemológico althusseriano fez com que parte substantiva dos textos
marxianos não fossem estudados com o devido rigor. Aqui, portanto,
analisaremos a obra de Engels no que diz respeito à sua crítica ao direito. Isto
se dá porque, se é verdade que é impossível um tratamento marxista da esfera
jurídica sem passar pelo tema em Marx, igualmente verdadeiro é que Friedrich
Engels, e seu papel no movimento socialista, são essenciais para o assunto em
referência. Para a compreensão, e embate, com a crítica marxista ao direito, é
de grande relevo passar pelo autor que primeiramente tentou difundir o
pensamento marxiano.
A partir daquilo que J. Chasin chamou de análise imanente
7
,
pretendemos passar pela contribuição do autor do Anti-Dühring ao termos em
mente o legado da crítica marxista ao direito, que, como mencionamos, tem
em Pachukanis, salvo raras exceções
8
, seu ponto de partida. Pretendemos, com
isto, demonstrar que Friedrich Engels tem um tratamento rico do direito. Seus
posicionamentos, muito embora problemáticos em alguns sentidos como seu
modo de exposição, que lembra o hegeliano em alguns pontos –, como veremos,
coloca-se de modo dúbio diante da crítica marxista ao direito: traz uma base
sólida para esta, expressando também méritos desta, que são muitos (cf.
SARTORI, 2015a); ao mesmo tempo, remete para além desta, trazendo à tona
uma análise do direito que tem na relação entre a esfera jurídica e a circulação
mercantil algo importante, mas que é mais ampla e multifacetada que parece
supor o tratamento pachukaniano. Assim, se a insuficiência da tradição
mencionada acima diante da análise cuidadosa da obra marxiana existe – são
muito raros os textos da crítica marxista ao direito que tratem de outra obra
que o Livro I de O capital –, talvez estejam presentes também insuficiências
na leitura da obra engelsiana. Mesmo que esta tenha sido tratada de modo
muito mais sistemático pelos estudiosos marxistas do direito, a análise da obra
7
Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto a formação
ideal – em sua consistência autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o
conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e
suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta
que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses,
iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo
investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de
entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por
isso, de existir” (CHASIN, 2009, p. 26).
8
Hoje, certa tentativa de retomar o legado de Stucka, bem como seu embate com
Pachukanis. Para um rico panorama deste debate, cf. Goldman (2014). Para uma análise do
debate diante do stalinismo, cf. Naves (2000).
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engelsiana ainda pode explicitar questões essenciais à temática aqui proposta.
No presente artigo, começaremos por trazer alguns aspectos mais gerais
do pensamento engelsiano, procurando demonstrar como sua exposição pode
ser dúbia: ao mesmo tempo, tem um papel importante na popularização do
pensamento de Marx e traz a possibilidade de leituras apressadas. Depois,
analisaremos o tema clássico da crítica marxista ao direito: a relação entre
esfera de circulação de mercadorias e direito; posteriormente, passaremos pelo
modo pelo qual Engels estabelece uma crítica à moral e à justiça, que se
colocariam principalmente na esfera da distribuição. Com isto, haveria, no
autor, uma crítica, também, às teorizações sobre a esfera jurídica. Por fim,
analisaremos como que haveria, segundo o autor do Anti-Dühring,
possibilidade da superação da igualdade jurídica naquilo que chama de
igualdade econômica e social, havendo necessidade simultânea de lutas que se
coloquem no terreno do direito e da crítica decidida deste terreno.
Engels como sistematizador do pensamento de Marx: as
dificuldades e trunfos da exposição do autor do Anti-Dühring
A discussão sobre o pensamento de Engels não é nada nova. Ao menos
desde o começo do século XX, o debate sobre a diferença de seu pensamento
diante de Marx marcou o marxismo. Temas polêmicos como a dialética da
natureza, o papel do indivíduo na história, a relação entre método dialético e o
pensamento de Hegel, a posição diante das ciências positivas, dentre outros
permearam um debate árduo (cf. SARTORI, 2015b). Aqui não poderemos nos
posicionar sobre cada um destes pontos; enfocaremos na análise engelsiana do
direito, mesmo que reconheçamos a importância destes aspectos tanto em sua
obra quanto na tradição marxista. Assim, para que possamos começar nosso
tratamento da obra de Friedrich Engels, devemos dizer que o estatuto do
pensamento engelsiano é, até certo ponto, bastante dúbio: ao mesmo tempo
em que pôde concordar com Marx quando este disse que “a única coisa que sei
é que não sou um marxista” (MARX; ENGELS, 2010, p. 277), ele viu-se como
divulgador e propagador da tradição que viria a se tornar o marxismo (cf.
SARTORI, 2015b).
Ou seja, com Marx, foi um crítico de primeira hora daqueles que
pretendiam falar em nome de autor de O capital e que procuraram transformar
a concepção materialista como Engels gostava de chamar a posição que
desenvolveu com Marx em uma espécie de dogmatismo. Porém, ao fim, o
autor do Anti-Dühring, depois da morte de seu grande amigo em 1883, veio a
ser um grande divulgador da obra marxiana, falando em nome de Marx e sendo,
de certo modo, conivente com certos deslizes de autores como Karl Kautsky e
Edward Bernstein, que seriam vistos posteriormente como os papas do
marxismo do século XX, um em uma vertente ortodoxa, outro buscando o
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reformismo.
Com isto, não se deve desmerecer o pensamento engelsiano – que tem,
inclusive, aspectos interessantes e originais diante do contexto do final do
século XIX (cf. SARTORI, 2016; 2018a) – no entanto, há de se reconhecer, de
imediato, que o autor não tem o pensamento idêntico ao de Marx.
Compreender os autores separadamente é impossível, mas
simplesmente identificá-los é também equivocado. Também se tem que, como
veremos, o pensamento engelsiano é muito mais complexo do que supõem
grande parte da tradição da II Internacional (em grande parte, inspirada em
Kautsky e Bernstein). Ele também é bastante mais cheio de meandros do que
o stalinismo estipulou. Ou seja, é preciso ver com cuidado como que se
conforma o pensamento do autor. Aqui, pretenderemos analisar a questão a
partir da crítica engelsiana ao direito e à justiça. Continuemos, pois.
O próprio autor do Anti-Dühring diz que, enquanto seu amigo se
dedicava aos estudos que levariam à redação de O capital, sua função era
distinta: “em consequência da divisão de trabalho existente entre Marx e eu,
coube-me defender nossos pontos de vista na imprensa periódica,
particularmente na luta contra opiniões adversárias, para que Marx tivesse
tempo necessário para elaborar sua grande obra” (ENGELS,1988, p. 8).
Perceba-se: é verdade que cumprir uma função diferente não significa
necessariamente trazer um pensamento substancialmente distinto. No
entanto, a exposição típica da imprensa periódica da época e deve-se dizer
que mesmo a grande obra de Engels, o Anti-Dühring, foi primeiramente
publicada nesta imprensa é diferente daquela de um livro como O capital,
em que a relação entre exposição e pesquisa
9
é de grande relevo e é
problematizada pelo próprio autor (cf. GRESPAN, 2019). Ou seja, pelo menos
no que diz respeito à forma (e esta nunca é simplesmente estilística nos
grandes autores), a exposição engelsiana é mais sistemática que a marxiana,
tratando de assuntos (como o direito) de maneira mais temática (cf. SARTORI,
2015b).
Marx não tem um texto cujo tema seja o direito; Engels, por sua vez,
possui ao menos um livro (O socialismo jurídico) e três capítulos do Anti-
Dühring em que a argumentação é estruturada em torno das possibilidades e
dos limites constitutivos da esfera jurídica. E isto é bastante coerente com a
função de divulgação engelsiana, sendo seu texto, até certo ponto, mais
acessível devido ao seu caráter sistemático e menos imanente se comparado ao
9
Segundo Marx “é, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente do
método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas
várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima.” A exposição, aparece “só depois de
concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real” (MARX, 1996a,
p. 140). Para posições distintas sobre a relação entre exposição e pesquisa, cf. Reichelt (2013);
e, doutro lado, Alves (2013b).
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marxiano (cf. SARTORI, 2015b). Pesquisadores do direito podem se servir de
seus textos de modo muito mais direto do que, por exemplo, de O capital de
Marx, cuja publicação na íntegra, diga-se de passagem, ficou a cabo de nosso
autor. Aqui devemos destacar: a exposição engelsiana leva a certa facilidade na
divulgação de posições sobre a esfera jurídica, e isto ajudou muito no estudo
do direito pelo marxismo. Ao mesmo tempo, porém, o risco de autonomizar
tais análises, que são expostas separadamente. Há, deste modo, um aspecto
bastante dúplice na função de Engels, e no modo pelo qual ela se deu.
Uma das tônicas do pensamento engelsiano, aliás, é a divulgação das
descobertas de Marx. Mesmo que elas tenham sido feitas, em grande parte, em
parceria com Engels, o autor do Anti-Dühring sempre se colocou em uma
posição secundária (cf. ENGELS, 1988). Isto se dá, seja ao publicar textos
marxianos (como os livros II e III de O capital), seja ao polemizar com autores
da época a partir daquilo que desenvolveu conjuntamente com o seu grande
amigo. Isto fez com que, diante de um tom polêmico, Engels tenha sido muito
mais afeto às generalizações teóricas do que Marx (cujo prefácio de 1859 talvez
seja um dos poucos momentos em que se trazem posicionamentos mais gerais
sobre seu modo de pesquisa
10
). Assim, na esteira da divulgação do que chamou
de concepção materialista da história, disse Engels que haveria um fator
decisivo na história, colocado, em última instância, na produção e reprodução
da vida material; na Origem da família, da propriedade e do estado, ele diz:
De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na história
é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata.
Mas essa produção e reprodução são de dois tipos: de um lado, a
produção de meios de existência, de produtos alimentícios,
habitação e instrumentos necessários para tudo isso; de outro lado,
a produção do homem mesmo, a continuação da espécie. (ENGELS,
2002, p. 10)
Se a passagem marxiana de 1859 (que remetia à relação entre base, infra
e superestrutura) deu margem a leituras apressadas, esta passagem de Engels
e algumas outras abriram espaço para certo determinismo e certo
mecanicismo, mesmo que não tenha sido isto que o autor do Anti-Dühring
pretendesse com suas generalizações
11
(cf. SARTORI, 2015b). A conjunção da
última instância com o fator decisivo, mencionados pelo autor, fez com que a
dialética, em grande parte, parecesse ser uma questão de compreensão de leis
gerais da história, que deveriam ser aplicadas em quaisquer casos. E é bom
dizer que o próprio Engels, de certo modo, colaborou para que tal leitura se
perpetuasse; ao tratar das chamadas leis da dialética, o grau de generalização
que o autor traz é bastante contundente. E, em um claro diálogo com a lógica
de Hegel tão criticado no que toca seu caráter sistemático pelo autor (cf.
ENGELS, 1982) tem-se no texto engelsiano uma exposição bastante
10
Vale notar que este talvez seja o texto de Marx que deu mais ensejo a interpretações
simplistas e manipulatórias.
11
Sobre o papel das generalizações e das abstrações no marxismo, cf. Chasin (2009) e Lukács
(2012; 2013; 2010).
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sistemática do que ele sabe trazer uma tessitura, em verdade, aberta e marcada
pela processualidade e pela historicidade:
As leis da dialética são, por conseguinte, extraídas da história da
Natureza, assim como da história da sociedade humana. Não são
elas outras senão as leis mais gerais de ambas essas fases do
desenvolvimento histórico, bem como do pensamento humano.
Reduzem-se elas, principalmente, a três: 1) A lei da transformação
da quantidade ·em qualidade e vice-versa; 2) A lei da
interpenetração dos contrários; 3) A lei da negação da negação.
(ENGELS, 1979, p. 34)
A passagem é retirada de um texto (Dialética da natureza) em que,
talvez sem o cuidado necessário, Engels procura aplicar as leis da dialética na
esfera do ser natural (cf. SARTORI, 2015b)
12
. É verdade que o texto não estava
ainda acabado, e pronto para a publicação; no entanto, salta aos olhos seu
caráter muito mais generalizante e sistemático. Em determinados momentos,
parece que o autor, a partir de certos elementos da lógica hegeliana, faz
analogias com aspectos diversos da natureza. E isto faz com que o caráter quase
que experimental da escrita engelsiana deste texto
13
– que precisaria de muito
mais estudo para poder ser concluído – leve o nosso autor a afirmações
descuidadas. o se pode ler de modo apressado a passagem, pois. Ao mesmo
tempo, não é possível deixar de notar que o raciocínio por trás da exposição se
aproxima perigosamente daquele que se critica com veemência em Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1982), em que Engels ataca
duramente o caráter sistemático de Hegel, bem como certa logicização da
realidade.
Com isto, ao menos em uma primeira visada, parece que basta aplicar
estas três leis da dialética para que se passe das leis gerais dialéticas para a
efetividade e materialidade da história.
Parece haver autorização para a famigerada distinção entre
materialismo dialético e materialismo histórico
14
. Tal aplicação mecânica
constituiria, como o autor sabe, uma violação patente do seu modo de proceder
e daquele de Marx. E, com isto, pode-se dizer que, se o autor torna categorias
complexas mais acessíveis àqueles que não estão embebidos no embate
filosófico da época, o faz, por vezes, a um custo bastante alto. Tem-se, em meio
à popularização daquilo que chama de concepção materialista, a possibilidade
de uma compreensão simplificadora por parte dos leitores que têm acesso a
somente alguns dos textos engelsianos. Dizemos isto porque certamente a
12
Seria importante uma análise cuidadosa de como que há distinções grandes entre A dialética
da natureza e o Anti-Dühring sobre o assunto. Aqui, porém, não poderemos abordar o assunto.
13
Neste texto que mencionamos parece haver certa justaposição indevida entre uma exposição
que se parece com a hegeliana e a pesquisa, que não poderia estar estruturada em torno de um
pensamento logicizante (cf. SARTORI, 2014).
14
A distinção ficou célebre devido a seu uso esquemático pelo stalinismo. Porém, é preciso
dizer que autores importantes e sérios do século XX, como Lukács e Althusser, utilizaram, cada
um à sua maneira, tal distinção.
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leitura conjunta dos posicionamentos do autor leva a uma compreensão muito
mais sofisticada que aquela de uma primeira análise superficial (cf. SARTORI,
2015b). Porém, a relação entre a exposição engelsiana e o modo de se proceder
diante do objeto pesquisado não é simplesmente contingente. Até certo ponto,
no espírito da época, há também uma valorização das descobertas das ciências
naturais do século XIX, levando a certo perigo no parcelamento, por demasia
analítico, da realidade efetiva
15
.
A questão certamente tem diversos contornos (cf. SARTORI, 2015b;
PAÇO CUNHA, 2015). Entretanto, não pode deixar de ser destacada, mesmo
não podendo ser analisada aqui com todo o cuidado. Nesta esteira, porém,
de se destacar o que diz o autor sobre a ciências, a dialética e a filosofia.
Primeiramente, sobre a dialética, no Anti-Dühring diz-se o seguinte:
Ela não é uma filosofia, mas uma simples concepção de mundo,
que tem de comprovar-se e atuar não numa ciência à parte, mas nas
ciências reais. A filosofia foi, portanto, “suprassumida”
[aufgehoben], isto é, “tanto superada como preservada” – superada
em sua forma, preservada em seu conteúdo real. (ENGELS, 2015, p.
168)
A citação ensejo a que se enxergue a dialética como uma concepção
de mundo [Weltanchauung], tendo-se ela não mais como parte da filosofia
(especulativa), mas em meio às ciências reais
16
. Estas últimas, por sua vez,
podem, de certo modo, aproximar-se das ciências parcelares se não forem
vistas com cuidado, o que é bastante problemático (cf. SARTORI, 2015b).
E, assim, novamente, por mais que não queira, Engels abre espaço para
certas leituras (errôneas) do marxismo do século XX, como aquelas da II
Internacional, e de Kautsky em especial; elas vieram a tomar o marxismo como
uma espécie de doutrina baseada nas ciências parcelares do século XIX, ao
passo que Marx e Engels são, em grande parte, críticos decididos da
conformação da ciência da época, que seria descendente da economia vulgar e
da decadência da ciência burguesa (cf. LUKÁCS, 2010, 2013). Tem-se, porém,
ainda outra questão relacionada; o uso – um tanto hegeliano – da categoria de
suprassunção [Aufghebung] é central à passagem de Friedrich Engels
17
.
Segundo o autor alemão, com tal relação com a filosofia, supera-se, suprime-
se e se preserva ao mesmo tempo aquela que vinha se colocando de modo
especulativo (cf. SARTORI, 2015b). E isto faria com que não se tenha qualquer
apologia das ciências parcelares. Antes, ocorreria o oposto. Porém, em meio a
15
É preciso que se aponte que, mesmo que de modo um pouco apressado, Engels não deixa de
criticar duramente estas ciências em sua Dialética da natureza (cf. 1979). Também de se
perceber que os meandros da relação de Engels com o materialismo e com as ciências de sua
época são muitos, como fica claro no Anti-Dühring (2015).
16
Para uma crítica ao tom demasiadamente epistemológico desta expressão, cf. Lukács (2010;
2013). Uma discussão sobre a questão da “visão de mundo” em Engels também pode ser
importante (cf. SARTORI, 2015b).
17
Sobre a categoria Aufhebung e a crítica de Marx a ela, cf. Sartori (2014).
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uma exposição bastante sistemática e que busca certa popularização da
concepção materialista, isto, em grade parte, corre o risco de passar
despercebido. E, é preciso que apontemos para o modo pelo qual a exposição
engelsiana abre espaço para elementos problemáticos: a outra face da
suprassunção da filosofia é o uso engelsiano das ciências individuais. No Anti-
Dühring, destaca-se:
No momento em que cada ciência individual é conformada com a
exigência de obter clareza sobre sua posição dentro do nexo global
das coisas e do conhecimento das coisas, torna-se supérflua toda a
ciência específica dedicada ao nexo global. Depois disso, o que de
toda a filosofia pregressa ainda preserva seu caráter independente é
a teoria do pensamento e de suas leis – a lógica formal e a dialética.
Tudo o mais é absorvido pela ciência positiva da natureza e da
história. (ENGELS, 2015, p. 54)
Se é verdade que a filosofia enquanto ciência específica dedicada ao
nexo global e, portanto, de uma generalidade especulativa, é negada por Engels,
tal generalidade acaba adentrando sua teoria (principalmente no que toca a
exposição) pela porta dos fundos. A suprassunção da filosofia estaria, de um
lado, em sua dissolução nas ciências individuais, doutro, em sua preservação
nas leis da lógica formal e da dialética. A ciência positiva da natureza traria à
tona um tratamento da totalidade dos fenômenos naturais ao passo que a
ciência positiva da história diria respeito à sociabilidade e ao seu
desenvolvimento processual na realidade efetiva. Assim, tem-se algo bastante
dúbio na exposição engelsiana: nas ciências positivas, ele critica, ao mesmo
tempo, o parcelamento do conhecimento (mas reconhece a diferença específica
entre a história e a natureza); porém, isto se com o reconhecimento dos
méritos das ciências individuais, que, na época, já adquiriam um caráter
apologético (cf. LUKÁCS, 2010). Sobre a filosofia, tem-se algo similar. Há um
rechaço do caráter especulativo e apartado da filosofia de um lado e, doutro, a
generalização típica da filosofia especulativa está presente nas leis da lógica
formal e nas leis da dialética. de se reconhecer: a exposição mais
sistemática de Engels faz com que uma apreensão mais superficial de seus
posicionamentos – e dos de Marx – seja facilitada, quando não incentivada. A
compreensão mais rigorosa e profunda do que o autor traz passa a necessitar
de idas e vindas, que tornam o estudo de suas obras muito mais permeado de
meandros do que se supõe. Engels, assim, contraditoriamente, é muito difícil
de se estudar ao se ter em conta uma compreensão cuidadosa de seu
pensamento justamente porque ele tenta trazer uma exposição que facilite a
divulgação e tal compreensão.
Seria, porém, equivocada uma crítica unilateral a tais procedimentos
engelsianos. Não é possível, pois, simplesmente colocar em suas costas as
vicissitudes do pior do marxismo do século XX, como certos cientificismo,
reducionismo e ultrageneralização. Em verdade, Engels pode se voltar
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facilmente contra todas estas posições se olharmos seus textos de modo
cuidadoso (cf. SARTORI, 2015b). Porém, de igual cegueira é não perceber que
na própria exposição de Engels, que não pode ser dissociada do seu modo de
pesquisar, germes que poderiam levar a posições, no mínimo, questionáveis
pelo marxismo sério e rigoroso
18
. Ou seja, não é possível deixar de reconhecer
os méritos de um autor que popularizou a posição de Marx, divulgou e publicou
as obras do autor de O capital. Porém, não se pode deixar de destacar que o
autor do Anti-Dühring teve um papel indireto no modo, eivado de problemas,
pelo qual se desenvolveu o pior da tradição marxista no século XX.
Engels como crítico do direito: igualdade jurídica e circulação
mercantil
Pelo que vemos, tratar do pensamento de Engels pode ser importante
para analisar o marxismo, tanto em suas virtudes históricas, quando em suas
adversidades que apareceram no século XX. Para o que nos interessa aqui,
porém, é bom analisar o autor do Anti-Dühring somente frente à crítica
marxista ao direito. Para tratarmos da questão, trazemos uma passagem
importante do autor:
Ao transformar as coisas em mercadorias, a produção capitalista
destruiu todas as antigas relações tradicionais e substituiu os
costumes herdados e os direitos históricos pela compra e venda, pelo
“livre” contrato. (ENGELS, 2002, p. 93)
Engels destaca um aspecto muito enfatizado por Pachukanis (2017), a
relação entre a circulação de mercadorias, o direito e o “livre” contrato
19
. Neste
sentido, pode-se dizer que o autor soviético está bastante correto no aspecto
principal de sua análise, caso olhemos também para o autor da Origem da
família, propriedade privada e do estado. Ao tratar das coisas como algo que
não é por natureza mercadoria, bem como ao abordar a liberdade de contratar,
uma aproximação clara da passagem engelsiana com a famosa passagem do
capítulo II de O capital
20
, tomada como apoio para grande parte da
18
Isto fica bastante claro na diferença de abordagem de Engels e de Marx quanto ao caso russo.
Ao passo que o autor que tratamos aqui defende uma posição que, de certo modo, não enxerga
a especificidade do caso russo, Marx defende que seria possível uma passagem direta da
comuna agrária russa ao socialismo, desde que o país se aproveitasse do desenvolvimento das
forças produtivas presentes no ocidente. Para uma análise comparativa destes aspectos, cf.
Sartori (2015b). No mesmo sentido, vale a leitura de Felipe Musetti (2015).
19
Este é o aspecto central para o autor soviético, que correlaciona forma jurídica e forma
mercantil a partir da mencionada relação (cf. PACHUKANIS, 2017).
20
Diz Marx que “as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos,
portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias
são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a
ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas
coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se
relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um,
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argumentação de Teoria geral do direito e o marxismo. Neste sentido, pode-
se dizer que autores como Mascaro e Naves podem ter, em grande parte,
Engels como um aliado.
Para Engels, há uma correlação entre a relação econômica que torna as
coisas mercadorias e a relação jurídica que faz com que as pessoas operem
livremente pelos contratos após se colocarem como livres de sua propriedade
dos meios de produção. Tem-se também a liberdade para que se utilize, como
bem entender dos mesmos meios de produção (no caso da burguesia).
Segundo Engels, em complemento a isto, porém, existe uma ligação íntima
entre a dissolução de relações tradicionais, bem como dos costumes herdados.
E isto se daria pela compra e venda, colocada juridicamente no contrato. Neste
sentido, uma grande convergência entre a teorização engelsiana e a
pachukaniana.
de se destacar, porém, que existem divergências. Se, para o autor
soviético (2017), o direito devido à relação entre equivalência, forma
mercantil e forma jurídica é, por natureza, capitalista, o autor do Anti-
Dühring, tal qual Marx
21
, aponta a existência de direitos anteriores ao
capitalismo.
Os direitos históricos
22
, relacionados aos privilégios, seriam superados
pelo direito burguês. E, assim, por mais que a aproximação entre Engels e
Pachukanis seja grande, ela não é, nem pode ser, completa. Há de se destacar,
porém, ainda outro ponto de aproximação entre os dois autores:
Para firmar contratos, é necessário que haja pessoas que possam
dispor livremente de si mesmas, de suas ações e de seus bens, e que
se defrontem em igualdade de condições. Criar essas pessoas “livres”
e “iguais” foi exatamente uma das principais tarefas da produção
capitalista. (ENGELS, 2002, p. 94)
Tal qual para o autor de Teoria geral do direito e o marxismo, Engels
traz como mediação entre as relações econômicas pré-capitalistas e as
propriamente capitalistas as pessoas “livres” e “iguais”, dando certa ênfase à
categoria “pessoa”. Esta última é essencial na teorização pachukaniana, pois
corresponderia, em verdade, segundo o autor, à categoria jurídica sujeito de
direito (cf. PACHUKANIS, 2017). Aqui não podemos discutir até que ponto tal
aproximação é ou não acertada (cf. SARTORI, 2015a; 2019; 2020). No entanto,
somente de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas mediante um ato de vontade
comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem,
portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica,
cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se
reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por
meio da relação econômica mesma.” (MARX, 1996a, p. 79) Para a análise da passagem, de
modo distinto de Pachukanis, cf. Sartori (2019).
21
Sobre o assunto, cf. Sartori (2020).
22
Ao tratar de direitos, Marx e Engels remetem à existência do direito, em diversos momentos
de suas obras, como em O capital, ou na Origem da família, propriedade privada e do estado.
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também em Engels, tal qual na tradição com a qual dialogamos, é clara a
correlação entre a igualdade e a liberdade contratuais, a categoria pessoa e a
emergência da produção propriamente capitalista. E, assim, tem-se que o
trabalho realizado, no Brasil, por Márcio Naves, tem uma grande valia e um
grande acerto, também, ao se ter em conta Engels.
A igualdade de condições, que é necessária para que as pessoas possam
dispor de si mesmas ou seja, vender sua força de trabalho emerge com a
produção capitalista, cuja tarefa relacionada à superação dos privilégios de
nascimento é essencial, segundo Engels, na constituição da moderna sociedade
civil-burguesa. Assim, o papel da igualdade jurídica na transição do feudalismo
para o capitalismo seria evidente e deveria ser ressaltado em qualquer análise
séria do tema:
A emancipação dos entraves feudais e a implantação da igualdade
jurídica, pela abolição das desigualdades do feudalismo, eram um
postulado colocado na ordem do dia pelo progresso econômico da
sociedade, e que depressa alcançaria grandes proporções. Embora
proclamado este postulado da igualdade de direitos no interesse da
indústria e do comércio, não havia mais remédio senão torná-lo
extensivo também à grande massa de camponeses que, submetida a
todas as nuanças de vassalagem, que chegava até a servidão
completa, passava a maior parte de seu tempo trabalhando
gratuitamente nos campos do nobre senhor feudal, além de ter de
pagar a ele e ao estado uma infinidade de tributos. Postos neste
caminho, não havia outro remédio para os burgueses senão exigir
também a abolição dos privilégios feudais, da isenção de impostos
para a nobreza, dos direitos políticos singulares de cada categoria
social feudal. E como a sociedade não vivia mais num império
mundial como o romano, mas sim dividida numa rede de estados
independentes, que mantinham entre si relações de igualdade e
tinham chegado a um grau quase burguês de desenvolvimento, era
natural que aquelas tendências adquirissem um caráter geral,
ultrapassando as fronteiras dos estados e era natural, portanto, que
a liberdade e a igualdade fossem proclamadas direitos humanos.
Para compreender o caráter especificamente burguês de tais direitos
humanos, nada mais eloquente que a Constituição norte-americana,
a primeira em que são definidos os direitos do homem, na qual, ao
mesmo tempo, se sanciona a escravidão dos negros, então vigente
nos Estados Unidos, e se proscrevem os privilégios de classe,
enquanto que os privilégios de raça são santificados. (ENGELS,
1990, p. 89)
Na leitura engelsiana, o papel ativo do direito aparece no rompimento
com os entraves feudais, tendo a igualdade jurídica, ao mesmo tempo, como
uma necessidade do processo econômico que redundaria na grande indústria
e como algo essencial no encaminhamento de tal movimento econômico. Em
outras palavras, para o autor do Anti-Dühring, sem a mediação da esfera
jurídica, o seria possível tal passagem da sociedade feudal à capitalista.
Neste momento, aquele da transição, porém, as coisas seriam mais mediadas
do que normalmente se supõe: a igualdade de direitos traria consigo o
interesse da indústria ao mesmo tempo em que se estendia aos camponeses.
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Ou seja, a igualdade jurídica, que é essencialmente burguesa (cf. ENGELS,
2015), traz consigo a emergência da hegemonia burguesa, ao mesmo tempo em
que libera os camponeses dos entraves feudais.
O papel do direito, portanto, coloca-se à serviço da sociabilidade
emergente, mas não somente à serviço dos interesses burgueses, embora estes,
neste terreno, venham a prevalecer no final das contas. A questão precisa ser
destacada porque direitos políticos, impostos e privilégios feudais são
suprimidos, não no interesse burguês, mas no interesse da grande massa
dos camponeses. E, com isto, há de se notar que, na análise do autor alemão, a
igualdade jurídica é essencialmente burguesa, mas não opera somente no
sentido dos interesses da burguesia. Os direitos humanos, nesta esteira,
rompem com os privilégios feudais trazendo o domínio burguês, certamente.
Mas o fazem, em um primeiro momento, com grande benefício dos pequenos
camponeses. E, desta maneira, o caráter ativo do direito não reflete
imediatamente a forma mercantil, mas algo que se coloca no processo em que
esta se consolida no metabolismo social passando por relações de produção
que não são subsumidas imediatamente à forma assalariada. E, assim, ao
contrário do que diz Naves (2014) sobre Marx, em Engels, o papel do direito se
coloca, primeiramente, naquilo que Marx chamou de subsunção formal ao
capital (cf. MARX, 2004). A efetividade do direito é bastante destacada
justamente quando a relação-capital está se colocando sobre os próprios pés,
antes da preponderância da grande indústria.
Deste modo, a relação entre forma-mercadoria e direito passa também
pelo papel do campesinato nas lutas que redundam na emergência do
capitalismo. E estas lutas têm um elemento religioso bastante claro, como
mostra a análise engelsiana das guerras camponesas na Alemanha (cf.
ENGELS, 2008). Um tema essencial a Engels, portanto, é o modo nuançado
pelo qual o elemento religioso e o jurídico se entrelaçam na emergência e na
consolidação da sociedade capitalista. No que se tem algo importante: longe
da tônica de Engels estar colocada na relação-capital consolidada e na
subsunção real ao capital, ao tratar da igualdade jurídica, ela passa pela
emergência desta relação, em que o papel da religião e do direito são grandes
nas lutas de classe tanto burguesas quanto camponesas (cf. SARTORI, 2018b).
A crítica engelsiana ao direito tem por essencial, tanto a relação entre as lutas
de classe medievais e modernas, quanto a relação entre religião e o campo
jurídico.
Assim, não é simplesmente por uma questão estilística que Engels trata
do universalismo do cristianismo primitivo (1979), da noção de pessoa que
aparece na religião cristã, principalmente em meio às lutas camponesas
(2008), para, a partir das transformações nestas formas ideológicas, abordar
a emergência dos direitos humanos na figura da pessoa e da igualdade
jurídicas. E se é verdade que Pachukanis (2017) trata do modo pelo qual
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uma correlação entre a ideologia religiosa e a igreja em um primeiro momento,
para que depois se tenha a ideologia jurídica e o direito, há de se destacar que,
em Engels, as correlações entre religião e direito são muito mais fortes e
marcantes, havendo, inclusive, uma ligação entre o universalismo do
cristianismo e aquele dos direitos do homem (cf. SARTORI, 2018b). Para o
autor do Anti-Dühring, as personificações, bem como as máscaras que
adquiriam as lutas de classe no medievo eram essencialmente religiosas; na
moderna sociedade capitalista nascente, tais máscaras seriam
preponderantemente jurídicas (cf. ENGELS, 2008).
Ou seja, não se trata tanto da relação entre a forma-mercadoria e “a”
forma jurídica, como em Pachukanis, mas do processo pelo qual as lutas de
classe passam de um terreno, o religioso, para outro, o jurídico, na moderna
sociedade civil-burguesa. As lutas burguesas começam no terreno da nobreza,
o religioso, para, somente com o desenrolar do processo, colocarem-se sobre o
terreno propriamente burguês, aquele do direito (cf. ENGELS; KAUTSKY,
2012) A tonalidade engelsiana na análise da relação entre a igualdade jurídica
e a circulação mercantil é aquela em que se tem o preparo para a circulação
propriamente capitalista de mercadorias. E, deste modo, tem-se o foco nesta
transição, e não tanto na acumulação de capital regida pelas suas próprias
leis imanentes.
Assim, este momento de transição aparece nos temas do autor na
medida em que tal processo expressa-se na passagem da religião ao direito,
sendo o papel da esfera jurídica colocado imediatamente na subsunção formal
ao capital, e não na salvaguarda da relação-capital por meio da ideologia
contratual. Isto certamente se daria, mas o tratamento engelsiano passa por
outros aspectos.
Dizemos tudo isto, não para destacar um caráter histórico que é
essencial ao pensamento engelsiano. Também trazemos isto à tona porque não
é de menor importância o autor alemão mencionar que o caráter
especificamente burguês dos direitos humanos apareceria na constituição
americana, em que os privilégios de classe são proscritos em nome do direito
burguês. Na análise engelsiana, tem-se a igualdade jurídica e política
colocando-se juridicamente sobre a desigualdade social; porém, e isto é
essencial para nosso ponto: há certa santificação dos privilégios de raça.
E dois pontos a serem destacados imediatamente sobre isto:
primeiramente, deve-se apontar que a linguagem e a mistificação religiosas
não são suprimidas no direito burguês; elas são elevadas a um patamar
superior. Os vícios da visão de mundo religiosa, de certo modo, permanecem,
mesmo que de modo mais sofisticado, na visão de mundo jurídica. Em segundo
lugar, de se apontar como que a igualdade jurídica é plenamente compatível
com o privilégio de raça, que não se coloca somente no campo jurídico e
político, mas em meio à conformação objetiva das relações sociais, no caso,
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com a escravidão moderna. Engels, deste modo, traz uma relação bastante
mais complexa – se comparada à de Pachukanis – entre a forma-mercadoria e
o direito; este último, inclusive, pode aparecer de diversas formas
23
. É verdade
que em ambos os autores se tem a propriedade privada como uma relação
econômica bastante pronunciada nas relações jurídicas; porém, em Engels, a
correlação entre igualdade jurídica e forma-mercadoria aparece tanto na
configuração mais básica da relação-capital quanto, de modo mais mediado,
no processo contraditório da formação do campesinato e dos escravos
modernos. Isto faz com que a análise do autor alemão traga muito em comum
com aquela do jurista soviético (cf. SARTORI, 2016b). Porém, também
explicita como que as consequências destacadas por Engels são bastante mais
abrangentes e de maior alcance do que aquelas que são enfatizadas por
Pachukanis (2017) em sua obra magna (cf. SARTORI, 2016a).
Outro aspecto importante que aparece na passagem engelsiana é a
ligação da circulação de mercadorias capitalista com o desenvolvimento do
mercado mundial. Isto faria com que – na correlação entre os diferentes
estados – os direitos humanos tendessem a ultrapassar as próprias fronteiras
nacionais, dando espaço a relações sociais extremamente contraditórias. Os
direitos humanos, tal qual a produção capitalista, ultrapassam as barreiras dos
estados nacionais, portanto.
E, deste modo, seria preciso, inclusive, uma análise mais detida das
relações jurídicas no campo internacional ao se ter em conta a correlação entre
mercado mundial, igualdade e liberdade. De certo modo, tem-se que, tal qual
o cristianismo ultrapassava um povo eleito com sua concepção universal de
igualdade, o mesmo se daria com o direito (cf. SARTORI, 2018b), tendo-se
certa passagem do universalismo e da igualdade religiosos para aqueles do
direito burguês e da produção capitalista de mercadorias (cf. ENGELS, 1977;
1979). Também por isto que, diz o autor: “a bandeira religiosa tremulou pela
última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de 50 anos mais tarde
aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se
tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo(ENGELS;
KAUTSKY, 2012, pp. 17-8). Tal concepção clássica precisaria ser estudada
tendo em mente a formação do modo de produção capitalista, em que a
centralidade política da igreja lugar ao papel centralizador do estado
moderno. E, assim, a gama de temas que perpassa a crítica engelsiana ao
direito é extensa, e mais ampla que a de Pachukanis.
A categoria “pessoa”, que trazia consigo a universalidade da
pecaminosidade cristã (cf. ENGELS, 2015) teria dado lugar à universalidade
da pessoa que aparece em meio à igualdade jurídica e política, correlatas do
23
Tal qual em Marx, a noção de forma jurídica aparece de modo muito mais trivial que em
Pachukanis, para quem há uma correlação íntima entre “a” forma jurídica e a mercantil. Para
uma análise da questão, cf. Sartori (2020).
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rompimento dos privilégios medievais. Esta categoria – a “pessoa” portanto,
ao contrário do que diz Pachukanis e seus seguidores (cf. KASHIURA, 2009;
2014), precisa ser vista em um contexto muito mais amplo que aquela da
categoria sujeito de direito, que não aparece explicitamente, seja em Marx, seja
em Engels (cf. SARTORI, 2015a; 2020) O processo em que a concepção de
pessoa tem sua tônica modificada aparece em Marx ao se ter em conta a
correlação entre fetichismo da mercadoria, reificação, a pessoa e a esfera da
troca (cf. SARTORI, 2019); em Engels, por outro lado, é preciso que se passe
por uma compreensão detalhada da correlação entre direito e religião na
passagem do feudalismo ao capitalismo, da visão de mundo religiosa à jurídica.
A universalização da circulação de mercadorias no mercado mundial,
portanto, segundo Engels, é um fruto da produção capitalista. Com isto, os
privilégios de classe dão lugar à igualdade jurídica, plenamente compatível
com o privilégio de raça e com relações de produção essencialmente modernas,
mas não assalariadas, como a escravidão, bem como aquela do pequeno
camponês
24
. Tal processo é essencialmente econômico, mas, segundo Engels,
não poderia ter se dado se não fossem diferentes formas pelas quais a categoria
pessoa se colocou, primeiramente, relacionada com a universalidade cristã,
depois com a jurídica. As personificações e as máscaras pelas quais se deram
as lutas de classe foram do medievo ao capitalismo, da religião ao direito. A
relação entre liberdade, igualdade e contrato, portanto, é bastante íntima,
como destacam corretamente a escola pachukaniana e o próprio Pachukanis;
porém, já em Engels, é preciso que se veja o tema com cuidado e analisando os
diversos meandros da questão, presentes também em vários textos em que o
autor não trata imediatamente do direito. Assim, os méritos e os deméritos da
exposição engelsiana se explicitam, no caso, ao se ter, por vezes, uma leitura
apressada do autor alemão; porém, também a muito maior complexidade
de seu pensamento e de sua análise do papel do direito na emergência do
capitalismo.
Igualdade jurídica, emergência do proletariado e crítica à
sociedade capitalista
O terreno em que teria se colocado as lutas de classe medievais teria sido
aquele da religião, ao passo que, com a emergência da moderna sociedade civil-
burguesa, tais lutas estão no terreno do direito. Engels é bastante claro quanto
a isto. Porém, como já mencionamos, sua análise trata deste processo histórico
justamente em seu elemento transicional. Deste modo, a burguesia teria
24
Isto se mesmo que, com o desenvolvimento do capitalismo, tais relações de produção
tendam a desaparecer progressivamente (cf. ENGELS, 2015). Para uma análise da questão, cf.
Marx (1986a; 1986b; 1980).
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começado suas lutas em um terreno que não era propriamente o seu, e assim
também se daria com o proletariado.
Assim como outrora a burguesia, em luta contra a nobreza, durante
algum tempo arrastara atrás de si a concepção teológica tradicional
de mundo, também o proletariado recebeu inicialmente a concepção
jurídica e tentou contá-la contra a burguesia. As primeiras
formações proletárias, assim como seus representantes teóricos,
mantiveram-se estritamente no jurídico “terreno do direito,
embora construíssem para si um terreno do direito diferente do da
burguesia. (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 20)
Tal qual o terreno da religião não era aquele da burguesia, o do direito
não é o do proletariado. Porém, há de se notar algo essencial. Primeiramente,
no que toca à burguesia, tem-se: as lutas burguesas só conseguem se assentar
sobre uma base adequada passando pelas lutas religiosas. E, assim, certamente
a maturidade das lutas sociais na quais a classe burguesa é proeminente
extrapola o terreno religioso; mas isto pode se dar ao atravessar, superando-
a, a concepção teológica e tradicional de mundo. E, segundo Engels, ao ter em
conta o proletariado, tem-se algo, de certo modo, similar.
O autor é explícito, inclusive, no sentido de as primeiras e imaturas
formações proletárias terem se colocado no “jurídico” terreno do direito. A
maturidade da classe do moderno proletariado, portanto, ultrapassa as lutas
jurídicas, mas certamente, em um primeiro momento, não prescinde delas. Tal
aspecto, embora seja ressaltado por Pachukanis (2017), é muito pouco
destacado pela tradição pachukaniana no Brasil (cf. SARTORI, 2018a). Para o
autor alemão, porém, isto teria se dado de modo exemplar para os socialistas
utópicos – bastante criticados por Engels (1962; 2015) –, para quem o direito
e a concepção de justiça eram essenciais, na esteira do iluminismo e da
ascensão da burguesia com classe dominante (cf. ENGELS, 1962). Engels, ao
ter em conta o final do século XIX, porém, destaca algo bastante diferente ao
tratar do jurídico terreno do direito: ainda haveria em sua época pessoas como
Menger, Proudhon e outros que estariam apegados, seja ao modo burguês, seja
ao modo do proletariado imaturo, ao jurídico terreno do direito. Ou seja, longe
de o autor do Anti-Dühring trazer uma análise em que não há qualquer
ambiguidade na igualdade jurídica, ele destaca justamente estas
ambiguidades, que seriam decisivas às lutas do proletariado do final do século
XIX (cf. SARTORI, 2018a). As lutas burguesas apareceram primeiramente
como religiosas, para que, então, a burguesia conseguisse se colocar sobre os
próprios pés no terreno jurídico. O proletariado, do mesmo modo, lutaria
primeiramente no terreno do direito, mas precisa superá-lo caso quisesse
passar ao terreno da revolução social
25
. Somente neste último, conseguiria
25
A oposição entre terreno do direito e da revolução é essencial na Nova Gazeta Renana, em
que Marx e Engels analisam, principalmente, a Alemanha de seu tempo (cf. MARX, 2010;
COTRIM, 2010).
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romper com a visão de mundo burguesa. E, deste modo, ao mesmo tempo em
que o autor alemão não tem uma visão unilateral sobre o papel do direito, ele
é muito claro quanto aos seus limites, atrelados à sociabilidade marcada pela
circulação mercantil, bem como pela acumulação de capital e pela extração do
mais-valor.
As ambiguidades de tal processo, em que o direito cumpre um papel
importante, são destacadas por Engels. Isto se dá, não só porque há elementos
transicionais entre os terrenos mencionados, mas porque, ao trazer à tona as
lutas do proletariado, de se destacar que este formou para si mesmo um
terreno do direito diferente daquele da burguesia. Ou seja, a especificidade do
direito (na fórmula pachukaniana, a forma jurídica
26
) não aparece sempre ao
se afirmar imediatamente a forma-mercadoria e a equivalência da troca
mercantil; por vezes, as mediações são bastantes maiores; e, deste modo, ao
mesmo tempo, é preciso afirmar os limites intrínsecos à esfera jurídica e se
deve ter em mente que esta não se apresenta de um mesmo modo, seja na
história anterior ao capitalismo, seja no desenvolvimento do próprio modo de
produção capitalista. No que toca este último aspecto, para Engels, o direito
burguês é, sim, indissolúvel da circulação mercantil capitalista; porém, o autor
destaca a ambiguidade deste terreno ao passo que, sem conseguir se
desvencilhar dos pressupostos do próprio modo de produção capitalista,
ergue-se uma crítica proletária e jurídica aos efeitos do capitalismo. Neste
momento do desenvolvimento destas formulações ideais, as ideologias em
questão, na melhor das hipóteses, são utópicas (cf. ENGELS, 1962). Ou seja,
mesmo que não consiga se colocar como uma crítica ao próprio capitalismo,
formulações jurídicas e proletárias que, no terreno do inimigo, tentam, sem
nunca ter êxito duradouro, voltar a máquina jurídica contra a própria
burguesia.
Segundo Engels, houve, assim, uma crítica permeada pelo direito que se
dirigiu, de modo sincero, contra os sintomas da implementação do modo de
produção capitalista. Esta crítica foi o resultado tanto da ambiguidade do
terreno jurídico quanto da imaturidade do moderno proletariado.
Depois de determinado momento do desenvolvimento social, porém,
tem-se algo totalmente distinto: a concepção jurídica de mundo, com tons
“socialistas”, aparece de modo vulgar e apologético, em indivíduos como
Dühring e Menger, bem como nos discípulos de Proudhon. O texto engelsiano,
portanto, passa por estes aspectos, destacando, também, este elemento
ambíguo da visão jurídica de mundo, que não se apresenta de modo
indiferenciado na história. Ela o faz trazendo consigo as consequências da
maturidade, da imaturidade, das vitórias e das derrotas da classe trabalhadora.
Em um primeiro momento, portanto, a concepção jurídica de mundo,
26
Para uma crítica à noção pachukaniana de forma jurídica, cf. Sartori (2020).
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bem com o direito, trazem a emergência da burguesia, juntamente com a
oposição entre campesinato e nobreza; depois, tem-se a construção de um
terreno do direito distinto daquele da burguesia, o que aparece principalmente
nos movimentos que Engels caracterizou de socialistas utópicos.
27
Por fim, a
influência da visão jurídica de mundo se dá de modo, até certo ponto, reativo,
para que se tivesse um socialismo que não toma a revolução social (e a própria
Comuna de Paris, posteriormente) como modelo; ter em conta estes diferentes
momentos da análise engelsiana é central à compreensão de sua posição.
Porém, como anteriormente, tem-se a exposição de Engels trazendo uma
posição muito bem marcada, mas com afirmações que, devido ao caráter
sistemático da escrita do autor, podem ser mal compreendidas.
O tom polêmico de Engels contra seus adversários faz com que suas
afirmações precisem marcar uma posição decidida, por vezes, deixando de
lado meandros de questões complexas. Isto certamente se quanto ao direito,
cuja análise engelsiana, em grande parte, desenvolve-se contra os expoentes
teóricos de sua época, em que há uma reação, mesmo que “socialista”, à
revolução.
É importante marcar certo salto qualitativo: para o autor do Anti-
Dühring, os próprios socialistas do final do século XIX momento em que as
ilusões dos socialistas utópicos não estavam presentes, nem tinham como
estar (cf. ENGELS, 1962) – apegaram-se ao terreno do direito em oposição ao
terreno da revolução. As ambiguidades do terreno que aqui analisamos são
grandes; ao mesmo tempo, ao termos em conta o espectro do comunismo,
deve-se dizer que elas podem se manifestar na sinceridade dos socialistas
utópicos ou no caráter reativo à revolução social, em uma espécie de socialismo
jurídico. E este último foi criticado por Engels, e pela crítica marxista ao
direito.
Tem-se uma posição muito dura contra aqueles que, no final do século
XIX, apegam-se ao terreno do direito. Porém, Engels também é explícito no
sentido de que é necessário ao moderno proletariado tanto passar pelo terreno
do direito quanto superá-lo de modo decidido; o caráter sistemático da
exposição de Engels faz com que ele não tenha passado por esta questão, tal
27
Diz Engels que as contradições da sociedade civil-burguesa ainda não estavam maduras ao
tempo dos socialistas utópicos: “essa situação histórica dominava também os fundadores do
socialismo. Ao estamento imaturo da produção capitalista, à condição imatura de classe
correspondiam teorias imaturas. A solução para as tarefas sociais ainda oculta nas relações
econômicas pouco desenvolvidas deveria ser gestada por cérebros pensantes. A sociedade
nada proporcionava além de precariedades; eliminá-las era tarefa da razão pensante. Tratava-
se de inventar um novo sistema mais perfeito de ordem social e outorgá-lo à sociedade a partir
de fora, mediante a propaganda e, quando possível, pelo exemplo de experimentos-padrão.
Esses novos sistemas sociais estavam de antemão fadados a permanecer utopias; quanto mais
elaborados eram em seus pormenores, mais se esvaíam necessariamente na pura fantastiquice”
(ENGELS, 2015, p. 291).
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qual Marx realiza até certo ponto em O capital e em textos sobre a França, ao
analisar movimentos dos trabalhadores, por exemplo, na Comuna de Paris. Ou
seja, ao mesmo tempo em que a análise engelsiana é histórica, ela vem a
enunciar somente os aspectos mais gerais da questão, deixando aos seus
herdeiros (os marxistas) a tarefa de dar continuidade ao seu trabalho
28
. O
autor, sobre o ponto aqui mencionado, é claro no sentido de que foi preciso
colocar a reivindicação de igualdade (antes presente na religião e, agora, no
direito) contra a própria burguesia. Porém, com isto, a classe dos
trabalhadores precisaria ter consciência do caráter irreconciliável existente
entre igualdade jurídica e social
29
. A igualdade burguesa teria aparecido na
sombra da religião, colocando-se sobre o terreno do direito; a igualdade
proletária, por seu turno, pressuporia a igualdade burguesa, e precisaria a
superar decididamente.
Sabe-se, por outro lado, que a burguesia, desde o instante em que sai
do embrião da burguesia feudal, instante em que, de camada feudal
se converte em classe moderna, se vê ladeada, sempre e em todas as
partes, inseparavelmente, como por sua própria sombra, pelo
proletariado. E ao movimento da igualdade burguesa acompanha,
também, como a sombra ao corpo, o movimento da igualdade
proletária. Desde o instante em que se proclama o postulado
burguês da abolição dos privilégios de classe, ergue-se o postulado
proletário da abolição das próprias classes postulado esse que adota
primeiro a forma religiosa, baseada no cristianismo primitivo, e que,
mais tarde, se apoia nas próprias teorias burguesas da igualdade. Os
proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a
igualdade exista não na aparência, que não se circunscreva
apenas à órbita do estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-
se extensiva à vida social e econômica. E, desde que a burguesia
francesa, sobretudo depois da Grande Revolução, passou a
considerar em primeiro plano a igualdade burguesa, o proletariado
francês coloca, passo a passo, as suas próprias reivindicações,
levantando o postulado da igualdade social e econômica, e, a partir
dessa época, a igualdade se converte no grito de guerra do
proletariado, e, muito especialmente, do proletariado francês.
(ENGELS, 1990, p. 89)
A burguesia, que utilizou do terreno do direito para romper com o
terreno da religião ao trazer uma nova forma de sociabilidade, tem o
proletariado como sua sombra. Isto se devido à natureza moderna das
classes na sociedade burguesa em que “tudo que era sólido e estável se
desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado e os homens são obrigados
finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e suas relações com
outros homens” (MARX; ENGELS, 1998, p. 43). As classes que se
28
Grande parte dos marxistas que tratam do tema sequer se atentaram à complexidade do
pensamento do autor, porém.
29
Aqui também se nota o grau de generalidade das afirmações engelsianas. Como estamos
demonstrando, elas têm um profundo substrato histórico; porém, a exposição engelsiana nem
sempre o explicita, o que pode gerar dificuldades.
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apresentavam anteriormente à maneira de estamentos não o fariam mais.
Tem-se também que a defesa da igualdade, trazida pela burguesia, certamente
tinha no essencial um conteúdo ligado à produção capitalista de mercadorias,
tal qual destacam com bastante afinco tanto Pachukanis quanto a tradição
pachukaniana; no entanto, a igualdade jurídica trazida com a burguesia não
deixava de ser acompanhada pelos pequenos camponeses em um primeiro
momento e, depois, do seu oposto.
Tem-se, assim, como potência, a igualdade econômica e social, que se
colocava na boca do proletariado contra a burguesia, o modo de produção
capitalista e a própria existência das classes.
O mesmo movimento que traz as condições de exploração do moderno
proletariado tem consigo os pressupostos de sua libertação, bem como da
supressão das classes sociais.
Engels, assim, identifica na igualdade jurídica a igualdade burguesa, ao
passo que a igualdade econômica e social seria oposta à jurídica, tal qual o
proletariado se coloca em uma relação antagônica diante da classe burguesa.
O proletariado moderno nasce junto com a burguesia, com a abolição e
supressão dos privilégios de classe. A burguesia, assim, coloca-se contra os
privilégios de classe; o proletariado posiciona-se contra a existência das
próprias classes sociais. correlações entre estes movimentos, que se
constituem na oposição entre burguesia e proletariado. E, deste modo, o
caráter contraditório da sociedade civil-burguesa se explicita: ao mesmo
tempo em que o proletariado se opõe à burguesia com as próprias armas
forjadas por esta, ele as transforma de modo mais ou menos substancial: a
igualdade, que foi o brado de guerra da classe burguesa, volta-se contra ela.
Com isto, em um primeiro momento, tem-se um terreno do direito
distinto, a busca pela complementação, sempre ilusória, da igualdade jurídica
com a social. Depois, porém, tem-se a oposição ao próprio terreno do direito e
à sociedade capitalista. E, se é verdade que o proletariado pega a burguesia
pela palavra, ele o faz, segundo Engels, transitando do terreno do direito ao da
revolução social. O modo pelo qual isto ocorre concretamente, porém, não é
deixado claro por Engels.
Para nosso autor, o movimento destas categorias é um processo
essencialmente histórico e marcado pelos distintos conflitos e lutas de classes;
a exposição engelsiana, assim, ao mesmo tempo, também sobre este aspecto,
explicita posições importantes, mas traz um grau de generalidade que pode
levar a leituras marcadas por certa unilateralidade na compreensão do
processo social.
Sua pesquisa é essencialmente histórica, mas a exposição de seu texto
muitas vezes não traz explicitamente tal movimento histórico em sua
especificidade e em seu ser-propriamente-assim.
certo processo de desenvolvimento na exposição engelsiana: a
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igualdade religiosa colocada no universalismo do cristianismo e, de modo
revolucionário no cristianismo primitivo (cf. ENGELS, 1969) abre espaço
para a igualdade burguesa que, por sua vez, remete à igualdade proletária.
Passa-se, assim, do terreno da religião, ao do direito e, por fim, da revolução.
A complexidade deste processo é analisada, fragmentariamente, por
Engels em diversos textos; porém, não podemos deixar de notar: caso
tomemos somente a passagem acima como referência, e se o cuidado
necessário não for tomado, certo risco da exposição engelsiana dar a
impressão que as categorias brotam umas das outras, como se daria em Hegel
(cf. MARX, 2011). A exposição mais acessível e voltada à popularização da
concepção materialista sobre determinados temas, como o direito, novamente,
tem seu preço. Nota-se que o grau de generalização do autor é bastante grande.
Porém, mesmo assim, é preciso que se aponte que, não há uma fórmula
simplesmente aplicável a todas as realidades. Como se percebe na passagem,
remissão do autor ao contexto francês, que é tomado como modelo para a
passagem, embora não se possa resumir todas as situações distintas a este
contexto. Engels, portanto, destaca o papel da religião, do direito e da
revolução de modo histórico. Porém, os meandros deste processo, por vezes,
não ficam tão claros em sua exposição.
Aliás, é curioso que mesmo que a visão jurídica de mundo seja aquela a
se tornar clássica da burguesia, não é tanto esta visão de mundo que é
analisada de modo mais explícito, histórico e sistemático por nosso autor.
Antes, é a visão de mundo teológica que em As guerras camponesas na
Alemanha, bem como, em menor grau, no Cristianismo primitivo, é tratada
em seu desenrolar efetivo em meio às lutas de classe de um país. Ou seja, a
rigor, a análise engelsiana sobre a religião é mais completa que sua análise do
direito, de modo que, também por isso, não se pode deixar de tratar da esfera
jurídica no autor sem ter como referência o processo de passagem do
feudalismo ao capitalismo.
-se, portanto, que os meandros do tratamento engelsiano da
igualdade, do direito e da circulação mercantil são bem mais complexos do que,
por vezes, a tradição pachukaniana parece supor. A mesma coisa se dá, aliás,
com a questão da moral
30
. Esta última não é tomada como uma algo
30
Diz Engels sobre a moral e seu papel ativo no capitalismo: “que espécie de moral nos pregam
hoje? Temos, em primeiro lugar, a moral cristã-feudal, que nos legaram os velhos tempos da
e que se divide, fundamentalmente, numa moral católica e numa moral protestante, com
toda uma série de variações e subdivisões que vão desde a moral católica dos jesuítas e a moral
ortodoxa dos protestantes, até uma moral de certo modo liberal e tolerante. E, ao lado dessas,
temos a moderna moral burguesa e, ao lado da moral burguesa moderna, a moral proletária
do futuro. Portanto, somente nos países mais cultos da Europa, nos defrontamos com três
grupos de teorias morais, correspondentes ao passado, ao presente e ao futuro, pretendendo
esses três grupos dominar, concorrente e simultaneamente. Qual delas é a verdadeira? Em
sentido absoluto e definitivo, nenhuma; mas, evidentemente, a que contém mais garantias de
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inerentemente burguês, embora não seja, nunca, por si resolutiva,
colocando-se como uma força ativa na tomada de consciência dos homens
diante da forma pela qual a igualdade é real e efetiva no capitalismo
31
. Neste
sentido também, as mediações da crítica engelsiana ao direito são muitas,
como veremos mais à frente de nosso texto. Sobre o que tratamos aqui, porém,
ainda é preciso apontar mais um ponto em que Engels se diferencia em relação
à tradição de crítica marxista ao direito.
No que toca a tradição iniciada por Pachukanis, há também de se
explicitar que Engels traz de modo bastante claro a necessidade de
reivindicações proletárias na forma de leis, e por meio de reivindicações
jurídicas. Não que os pachukanianos e o autor de Teoria geral do direito e o
marxismo não o façam, e com as devidas ressalvas. Mas é preciso que se
destaque que é notável a ênfase do autor do Anti-Dühring na necessidade de
se passar pelo jurídico terreno do direito para se chegar ao terreno da
revolução (cf. SARTORI, 2018a; 2018b). Após dizer que seria impraticável e
uma insensatez um socialismo jurídico, sendo o direito o terreno da burguesia,
e não do proletariado, diz o autor:
Isso naturalmente não significa que os socialistas renunciaram a
propor determinadas reivindicações jurídicas. É impossível que um
partido socialista ativo não as tenha, como qualquer partido político
em geral. As reivindicações resultantes dos interesses comuns de
uma classe podem ser realizadas quando essa classe conquista o
poder político e suas reivindicações alcançam validade universal sob
a forma de leis. Toda a classe em luta precisa, pois, formular suas
reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações
jurídicas. (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 47)
Nota-se, deste modo, que Engels é extremamente crítico quanto ao
terreno do direito. Mas ele admite que não há como simplesmente abandoná-
lo. As reivindicações do proletariado como classe passam pelo direito e mesmo
pelas leis. Tal classe não nasce pronta para a revolução; ela precisa passar pelo
terreno do direito, tal qual a burguesia passou pelo terreno da religião.
Reivindicações que alcançam validade universal na forma de leis são
necessárias, embora não sejam resolutivas. E, também aqui, resta certa
dubiedade na exposição engelsiana: na citação acima há uma defesa do uso do
direito. O autor marca sua posição dizendo que não como simplesmente
saltar das lutas políticas imediatas para o terreno da revolução; tal qual
ocorreu com a burguesia com respeito ao terreno religioso, formas
transicionais que se explicitam ao passo que uma classe ainda não se coloca
sobre os próprios pés. Até este momento, sem problemas na compreensão de
permanência é a moral que, no presente, representa a destruição do presente, o futuro, ou seja,
a moral proletária.” (ENGELS,1990, p. 78)
31
Para uma análise das aporias do pensamento engelsiano sobre este ponto e sobre o modo
pelo qual o tratamento do estado e da transição para o socialismo acabam prejudicados devido
a esta posição, cf. Sartori (2016).
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40
nosso autor. No entanto, há de se notar que a passagem, se vista isoladamente,
e se não é situada no contexto da obra engelsiana, pode dar margem a uma
posição simplesmente oportunista sobre o direito. Poder-se-ia, inclusive,
pensar que a forma transicional que menciona Engels seria a elaboração de um
outro terreno do direito, sendo que o próprio autor é explícito na crítica a esta
posição. Ou seja, também neste ponto, de se tomar muito cuidado com a
exposição engelsiana: ela é enfática e marca posição de modo exemplar. Porém,
suas posturas sempre precisam ser analisadas em conjunto, mesmo que não
estejam presentes em uma só obra. A facilidade de compreensão de sua obra é
aparente, pois.
Pelo que dissemos, em verdade, a compreensão do direito em Engels
traz consigo a análise da religião e da passagem do feudalismo ao capitalismo.
E isto não é pouco. Envolve, por exemplo, o papel proeminente da igualdade,
seja em sua figura religiosa, jurídica ou econômico-social.
No que diz respeito a este último aspecto, a exposição engelsiana passa
por diversos aspectos históricos e que podem ser trazidos à tona ao se ter
em conta a análise concreta das lutas de classe de uma época e país. Engels
procura fazer isto. Porém, o tem como realizar tal empreitada;
primeiramente, porque o grau de generalização de suas formulações é bastante
grande e, depois, porque não estuda e nem teria como estudar com o
devido cuidado todas as distintas formações sociais. E, também aqui, nota-se
que as formulações do autor do Anti-Dühring são cheias de mediações e mais
complexas que a análise pachukaniana por vezes faz parecer. O tratamento das
ambiguidades do terreno do direito também é bastante importante para o
autor, tendo-se este assunto como central em sua compreensão, não da
esfera jurídica, mas das lutas do proletariado no final do século XIX, em que
uma espécie de socialismo jurídico se opunha ao seu socialismo e ao de Marx.
Justiça, moral, concepção jurídica e terreno do direito
A crítica de Engels ao direito visa, portanto, à sociedade em que se tem
a autovalorização do valor como télos. E, ao mesmo tempo em que o autor não
deixa de considerar que as lutas cotidianas passam pela dimensão jurídica, é
explícito no sentido de o direito não ser resolutivo. Sobre aqueles que buscam
a crítica da sociedade capitalista sem a crítica ao valor, diz o autor do Anti-
Dühring:
Querer abolir a forma de produção capitalista mediante a instituição
do “valor verdadeiro” significa, por conseguinte, querer abolir o
catolicismo mediante a instituição do “verdadeiro” papa ou querer
instituir uma sociedade em que os produtores finalmente
dominariam seu produto mediante a execução consequente de uma
categoria econômica, que é a expressão mais abrangente da
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41
escravização do produtor por seu próprio produto. (ENGELS, 2015,
p. 344)
Como vem sendo recorrente, a correlação entre a posição engelsiana e a
crítica à igreja e à religião aparece aqui. E, deste modo, deve-se destacar: se a
visão de mundo teológica teria tentado resolver as contradições que marcam a
sociedade feudal buscando algo como o verdadeiro papa, aqueles que tomam
os pressupostos da sociedade capitalista explícitos no valor como base,
teriam buscado o verdadeiro valor. Pelo que vemos, a base da crítica engelsiana
ao direito é a crítica à moderna sociedade civil-burguesa, aquela em que os
produtos dominam os produtores, em que os homens são dominados pelas
coisas
32
. Portanto, por mais que a visão de mundo clássica da burguesia seja a
jurídica, isto só poderia se dar devido a determinada base econômica, que, em
última instância, para que se use a famigerada expressão do autor,
determinaria a existência dos indivíduos desta sociedade. A última instância
engelsiana, assim, não deixa de trazer uma relação, inclusive positiva, com sua
exposição: ela permite que Engels trate da autonomia e da especificidade de
cada esfera, trazendo-as à tona uma análise sistemática várias esferas do ser
social, como o direito. Ao mesmo tempo, é preciso dizer também que, após
tratar da visão religiosa, da visão jurídica de mundo, de sua relação com a
igualdade etc., o autor pode dizer que, em verdade, o movimento das categorias
que trouxe à tona tem uma determinação, em última instância, econômica. De
um lado, isto não deixa de ser essencial à compreensão da especificidade e do
papel ativo de cada esfera do ser social. E isto é fundamental para uma análise
cuidadosa da realidade efetiva da sociedade capitalista. Doutro lado, certo
risco, como mencionado acima, da conexão imanente das categorias entre si
poder ser perdida de vista. Ela está na posição engelsiana; porém, não deixa de
haver certo perigo, decorrente da exposição do próprio autor, em haver certa
leitura unilateral de seus textos (cf. SARTORI, 2015b).
momentos do texto engelsiano, no entanto, em que ele justamente
aponta para o perigo da perda da conexão entre os elementos distintos de um
contexto. Ou seja, também se marca posição contra aquilo que seria
desenvolvido a partir de uma leitura apressada de sua obra. Em nosso caso, ao
tratar da noção de justiça, e de sua relação com a moral, é justamente este
aspecto que aparece na linha de frente contra Proudhon, os proudhonianos e
contra Dühring, principalmente.
O nosso autor diz o mesmo sobre os juristas e os políticos de profissão,
que, partindo de suas posições na divisão social do trabalho, pretendem que as
esferas em que atuam sejam as determinantes, autonomizando-as de modo
absoluto diante da esfera economia e as colocando como o demiurgo da
32
Deve-se notar que este é um tema central ao primeiro capítulo de O capital, que tem
centralidade na análise pachukaniana. Para uma análise dos limites desta abordagem, cf.
Sartori (2019).
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42
realidade. Há, portanto, certa autonomização do direito e do estado, que é
tratada pelo autor do Anti-Dühring; mas estes não são absolutamente
autônomos diante da base real da sociedade-civil-burguesa:
O estado, porém, uma vez tornado poder autônomo face à sociedade,
produz logo uma ulterior ideologia. Nos políticos de profissão, nos
teóricos do direito público e nos juristas do direito privado,
nomeadamente, por maioria de razão, perde-se a conexão com os
fatos econômicos. (ENGELS, 1982, p. 418)
Para Engels, a conformação da ideologia e da visão de mundo jurídicas
passaria pelo estado. Não haveria como estabelecer uma ligação direta entre a
circulação mercantil e o direito, tal qual ocorre em Pachukanis (2017). O modo
pelo qual a ideologia parece ser autônoma diante da esfera econômica decorre,
também, da autonomização do estado; a determinação do direito e da política
diante do movimento econômico faz com que eles apareçam como marcados
por uma autonomia absoluta; e isto nunca pode ser dar. Tanto as formações
ideais dos políticos de profissão quanto dos teóricos do direito público e dos
juristas do direito privado teriam uma conexão indissolúvel com os fatos
econômicos. Engels, portanto, está mostrando que uma das características da
ideologia jurídica e da ideologia política é que elas pretendem estar
desconectadas da determinação econômica.
Deste modo, nosso autor adentra em um campo pouquíssimo tratado
na crítica marxista ao direito, a análise da conformação da ideologia jurídica,
inclusive, em suas expressões aparentemente mais críticas. Engels, portanto,
elabora uma análise sobre os próprios teóricos do direito, bem como à
concepção de direito natural e de justiça que estes desenvolvem contra o
direito positivo.
E isto se justamente ao passo que Engels destaca que esta
dependência mencionada se explicita na autonomização do estado diante da
sociedade civil-burguesa. No caso, trata-se de um fenômeno típico da
sociedade capitalista, embora possa se explicitar de modos diferentes, por
exemplo, no estado absolutista e no bonapartismo de Bismarck (cf. SARTORI,
2017a). Principalmente nestes dois casos, mas também, na atividade diuturna
dos juristas e dos políticos profissionais, o estado (bem como o direito)
pareceriam ter uma autonomia que nunca poderia ter. Noutros lugares, nosso
autor relacionará este aspecto à burocracia (cf. ENGELS, 2008). Aqui, porém,
surge algo bastante importante para a análise engelsiana: a base real para que
o direito (e a política, que não poderemos tratar aqui
33
) possa atuar como uma
33
Aqui, basta citarmos a polêmica de Engels sobre o poder político, que é visto como aquilo de
determinante por Dühring: “está claro qual é o papel histórico que o poder desempenha no
desenvolvimento econômico. Em primeiro lugar, todo poder político está baseado
originalmente numa função social, econômica e se intensifica à medida que, pela dissolução
dos sistemas comunitários originais, os membros da sociedade o convertidos em produtores
privados, ou seja, tornam-se ainda mais estranhos aos administradores das funções sociais
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espécie de fuga diante do reconhecimento dos nexos colocados pelos fatos
econômicos. É sobre esta base – a oposição entre sociedade civil-burguesa e o
estado autonomizado que aparece na moderna sociedade capitalista que a
visão de mundo jurídica se consolida como aquela a se tornar clássica da
burguesia (cf. SARTORI, 2018b).
A partir desta autonomização do direito surgem alguns temas
importantes à crítica engelsiana ao direito. Tem-se, por exemplo, os papéis da
teoria jurídica e da justiça analisados, por exemplo.
Segundo Engels, principalmente ao se ter em conta a noção de justiça,
bem como o papel do direito no campo econômico, autores como Dühring
teriam procurado uma crítica à distribuição de riquezas na sociedade
capitalista, e não às relações de produção desta sociedade. E, com isto, ao
contrário do que se em Pachukanis e na tradição pachukaniana, por parte
de nosso autor uma análise bastante interessante acerca de como o papel ativo
do direito e da moral, colocados no direito natural e na justiça, aparecem, na
distribuição
34
, como uma espécie de outra face de Janus da relação entre a
esfera de circulação de mercadorias e o terreno do direito. Diz Engels sobre o
Dühring:
Ele traslada toda a teoria da distribuição do campo econômico para
o da moral e do direito, isto é, do campo dos fatos materiais
estabelecidos para o das opiniões ou dos sentimentos mais ou menos
oscilantes. Portanto, ele não precisa mais investigar nem provar,
apenas declamar animadamente o que lhe vier à mente, e pode fazer
a exigência de que a distribuição dos produtos do trabalho se oriente
não por suas causas reais, mas por aquilo que parece moral e justo
para ele, para o sr. Dühring. (ENGELS, 2015, pp. 185-6)
Operando como teórico do direito público e filósofo, Dühring
primeiramente perde a conexão do direito e da moral com os fatos econômicos.
Concebe uma teoria de como as coisas deveriam se dar no campo da economia;
depois, a partir de uma autonomização arbitrária, procura tomar como critério
do campo econômico justamente o moral e o direito. Haveria, portanto, uma
patente inversão.
comuns. Em segundo lugar, depois que o poder político ganha autonomia em relação à
sociedade, convertendo-se de servidor em senhor, ele pode atuar em duas direções. Ou ele atua
no sentido e na direção do desenvolvimento econômico regular (nesse caso, não conflito
entre ambos e o desenvolvimento econômico é acelerado), ou ele atua na contramão desse
desenvolvimento (nesse caso, com poucas exceções, ele sucumbe regularmente ao
desenvolvimento econômico). Essas poucas exceções são casos isolados de conquista, nos
quais os conquistadores mais rudimentares exterminaram ou desterraram a população de um
país e devastaram ou deixaram deteriorar-se as forças produtivas com as quais não sabiam o
que fazer. Foi o que fizeram os cristãos na Espanha moura com a maior parte das instalações
de irrigação, nas quais estava baseada a agricultura e a jardinagem altamente desenvolvidas
dos mouros. Toda conquista por um povo mais rudimentar obviamente perturba o
desenvolvimento econômico e destrói numerosas forças produtivas” (ENGELS, 2015, p. 211).
34
Para o papel do direito na distribuição, e para uma crítica a Pachukanis sobre este aspecto,
cf. Sartori (2020).
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Engels é duro sobre tal posicionamento: tratar-se-ia de meras opiniões
e sentimentos oscilantes; no lugar da ciência, em que é preciso provar e
investigar com cuidado, ter-se-ia neste defensor da visão de mundo jurídica
uma animação moral decorrente do desconhecimento das causas reais do ser-
propriamente-assim da sociedade. Assim, de repente, o problema da sociedade
capitalista seria que ela não obedece aos desejos e caprichos do teórico do
direito e do filósofo, no caso, o sr. Dühring. Com a ideologia que decorre da
autonomização do estado – e passa pela burocracia (cf. ENGELS, 2008)
35
–, a
moral e a justiça parecem ser o critério da realidade. Perde-se, assim, toda a
conexão entre a esfera da distribuição dos produtos do trabalho com a forma
pela qual se organiza a produção social. Trata-se de uma inversão que fora
denunciada por Marx e Engels nos ideólogos da ideologia alemã (2007), mas
que aparece agora – no final do século XIX – de modo ainda mais pueril. Com
isto, a partir da suposição do valor e do direito, tenta-se voltar contra as
consequências da autovalorização do valor, que, por sua vez, são reconhecidas
oficialmente no direito
36
.
Uma posição que parte de tais premissas poderia redundar em um
profundo idealismo. A explicação deste último, porém, é essencial para o
entendimento do direito; as teorias jurídicas, bem como as teorizações sobre a
justiça e o direito natural usualmente são marcadas por tal idealismo.
No campo dos teóricos do direito público, portanto, tem-se certa
contraposição àquilo que é reconhecido em meio à naturalização da
circulação mercantil no direito privado. E, assim, uma contraparte da relação
entre forma-mercadoria, a circulação mercantil e o direito é a tentativa de
resolver os problemas sociais de modo moralizante e com um apelo à justiça.
Para o autor do Anti-Dühring, em verdade, a outra face dos juristas do direito
civil são os teóricos do direito público; e, assim, há, inclusive, uma correlação
ente direito natural e os sistemas jurídicos modernos:
Na medida em que os juristas classificam como direito natural
aquilo que mais ou menos de comum em todos esses sistemas
jurídicos. Porém, o padrão pelo qual se mede o que é e o que não é
direito natural é precisamente a expressão mais abstrata do próprio
direito: a justiça. A partir de agora, portanto, o desenvolvimento do
direito passa a ser, para os juristas e para aqueles que neles
acreditam à letra, apenas o esforço no sentido de aproximar
continuamente as situações humanas, na medida em que se
expressarem juridicamente, do ideal da justiça, da justiça eterna. E
esta justiça é sempre a expressão ideologizada, celestializada, das
relações económicas existentes, ora segundo o seu lado conservador,
ora segundo o seu lado revolucionário. A justiça dos gregos e dos
romanos achava justa a escravatura; a justiça dos burgueses de 1789
exigiu a supressão do feudalismo por ele ser injusto. (ENGELS, 1982,
p. 51)
35
Para uma análise da crítica de Engels à burocracia, cf. Sartori (2017a).
36
Sobre esta forma de reconhecimento, cf. Lukács (2013).
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de se notar que tal posição engelsiana pode vir à tona porque a
autonomização do estado é efetiva, mesmo que não seja absoluta. O
tratamento do autor, portanto, tem por elo essencial a mediação do estado na
conformação da ideologia jurídica. E isto, novamente, afasta o pensamento de
Engels daquele de Pachukanis de modo bastante claro. Com isto, ao contrário
do que ocorre com o jurista soviético, tem-se uma análise bastante
multifacetada da noção de justiça e de direito natural (cf. SARTORI, 2017b).
Ainda no que diz respeito à esfera em que o direito se coloca, outro ponto
importante: pelo que vemos, o direito, a moral, e a noção de justiça em
conjunto – aparecem sobretudo na crítica (superficial, sentimental e opinativa)
da esfera da distribuição.
Não há, portanto, como analisar o direito em Engels sem tratar desta
esfera. E, se levarmos a sério a contribuição de nosso autor, a crítica marxista
ao direito precisa tratar do assunto também.
É verdade que, como indicou corretamente Pachukanis, há uma ligação
íntima entre a circulação de mercadorias e a esfera jurídica; porém, igualmente
necessário é apontar o papel que exerce o direito na esfera da distribuição das
mercadorias. E isto se dá mesmo que a efetividade desta esfera do ser social se
coloque como uma espécie de impotência diante dos fatos econômicos
37
.
Para Engels, não há como negar que a contraposição entre o direito dos
juristas do direito civil e o direito natural e a moral do direito público seja parte
constitutiva do ser-propriamente-assim da esfera jurídica. Isto apareceria,
sobretudo, na noção de justiça (cf. SARTORI, 2017b). E, deste modo, seria
muito unilateral não considerar tal aspecto em uma crítica ao direito. Também
aqui, Pachukanis tem muitos méritos. Porém, ele destaca, essencialmente, a
relação entre troca equivalente, forma mercantil e a justiça; e, novamente, os
elos intermediários entre tais coisas são destacados pelo autor do Anti-
Dühring como essenciais, e de modo muito mais mediado do que se dá no
autor da Teoria geral do direito e o marxismo. Tal análise engelsiana pode ser
importante, não para a compreensão mais geral do tema, mas para uma
crítica àqueles que, como Dühring, Proudhon e Menger, colocam-se como
expoentes importantes do movimento socialista do século XIX. Tais autores
estariam ganhando proeminência na medida em que se apegam a uma visão
de mundo, em verdade, burguesa, aquela do terreno do direito
38
. A relação
entre a teorização, as classificações e a atividade dos juristas é vista de modo
bastante mais cuidadoso por Engels, portanto (cf. SARTORI, 2018a; 2018b).
37
Interessante notar que, com Marx, Engels havia dito anteriormente sobre a moral: “a moral
é a 'impuissance mise en action'” (MARX; ENGELS, 2003, p. 224), é a impotência posta em
ato. Para a análise da questão, cf. Sartori (2017b).
38
Em verdade, o apego ao terreno do direito é muito recorrente na esquerda, inclusive naquela
autoproclamada marxista. Aqui, porém, não podemos tratar do assunto com cuidado, valendo
destacar somente que, com isto, tal esquerda fica muito aquém da análise engelsiana do direito,
da justiça e da moral.
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E, acreditamos, a crítica marxista ao direito precisa de tal cuidado ao tratar de
assuntos que têm proeminência nos debates da esquerda, como aquele
relacionado à justiça das transações e da distribuição.
A análise do autor alemão, portanto, vem a caracterizar a justiça como
a expressão ideologizada e celestializada das relações econômicas, voltando,
assim, a um tema central de sua crítica ao direito: a relação entre direito e
religião, entre visão de mundo teológica e a jurídica. E, novamente neste ponto
a pesquisa essencialmente histórica de nosso autor aparece com proeminência.
No que é possível se dizer do tema sobre o qual nos debruçamos agora:
de certo modo, tal qual a religião oficial era criticada pela teologia, o direito
positivo é criticado pelos teóricos do direito público. Estes últimos, a partir da
autonomização do estado, pretendem imprimir à realidade determinada
concepção de justiça e de moral. E, assim, não como reduzir o direito
público e as teorizações sobre a justiça e a moral ao direito privado e à esfera
de circulação mercantil (como até certo ponto, parece fazer Pachukanis em
algumas passagens); ao mesmo tempo, não é possível, de modo algum,
dissociar o blico e o privado bem com a esfera da circulação de
mercadorias da esfera da distribuição no que diz respeito ao direito. Este
último tem por base a autovalorização do valor, bem como o domínio das
coisas sobre os homens, que são reconhecidos pelo direito uma espécie de base
natural tanto na busca por justiça quanto na regulamentação da circulação.
O tratamento desta questão, tal qual a relação entre o terrestre e o
celeste no caso da religião, é bastante importante a Engels. E deve-se notar o
tom quase que religioso da noção proudhoniana de “justiça eterna”, que é
criticada pelo nosso autor na passagem. O autor da Miséria da teoria
procuraria retomar o lado revolucionário da noção de justiça, que teria sido
bastante ativo na Revolução Francesa; tratar-se ia de trazer a justiça eterna à
realidade. Os contrarrevolucionários e reacionários poderiam por exemplo,
a partir de certa concepção tomista retomar o lado conservador do direito
natural. Engels, porém, atém-se à análise do lado “revolucionário” da coisa:
tanto Proudhon quanto os seus discípulos, bem como Dühring, pressuporiam
o assalariamento e, portanto, a relação-capital; no que o nosso autor é irônico
sobre a afirmação de hring sobre a igualdade quantitativa e qualitativa:
“salários iguais e preços iguais produzem a ‘igualdade quantitativa de consumo,
embora não produzam a igualdade qualitativa’, e, desse modo, é concretizado
economicamente o ‘princípio universal da justiça’” (ENGELS, 2015, p. 334).
Tratar-se-ia, assim, de um “sistema construído sobre um ‘princípio universal
da justiça’ ou seja, isento de todas as considerações relativas a fatos materiais
econômicos” (ENGELS, 2015, p. 323). Tal qual na religião seria preciso se
tomar o reino de Deus como critério da terra, no direito, a justiça e o direito
natural apareceriam como o crivo da realidade das relações econômicas. E isto
seria possível devido à conformação bastante específica das ideologias dos
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juristas e dos políticos profissionais, duramente atacados pelo nosso autor.
Ainda sobre os juristas, deve-se apontar a contraposição entre a letra e
a realidade efetiva; a inversão aqui seria patente, de modo que aos juristas e
aos teóricos do direito pareceria que aquilo a se fazer é a aproximação
progressiva da realidade econômica da letra jurídica. O jurídico terreno do
direito, assim, parece ser o critério da realidade econômica ao passo que
expressa de modo mais ou menos mediado, em última instância, esta. Tem-se,
assim, a expressão ideologizada e celestializada, de que fala o autor. E, também
neste ponto, é preciso trazer à tona o fato de que a análise engelsiana está
colocada em um grau de minúcias muito maior que aquela de Pachukanis. Ela,
inclusive, abre espaço para toda uma crítica marxista à ideologia jurídica, que,
em grande parte, ainda está a ser feita.
Para nossa análise, porém, é importante destacar que, para o autor do
Anti-Dühring, tal procedimento idealista presente nos juristas, bem como nos
políticos profissionais e nos teóricos do direito, não é algo como um câncer a
ser extirpado do direito. Ele faz parte do seu próprio método. Ao tratar de
Dühring, tal qual anteriormente em A ideologia alemã (2007), o nosso autor
ataca a inversão ideológica trazida, bem como o método adotado por aquele
que critica em sua principal obra:
Ora, quando algum ideólogo dessa linha formula a moral e o direito
a partir do conceito ou dos assim chamados elementos mais simples
“da sociedade”, em vez de fazê-lo a partir das relações sociais reais
das pessoas que o rodeiam, que material ele tem à disposição para
realizar essa formulação? Claramente, são dois tipos de material: em
primeiro lugar, o resíduo escasso do conteúdo real que
possivelmente ainda está presente nas abstrações colocadas como
base e, em segundo lugar, o conteúdo que nosso ideólogo reintroduz
a partir de sua própria consciência. E o que ele encontra em sua
consciência? Sobretudo, noções morais e jurídicas como expressão
positiva ou negativa, afirmativa ou polêmica correspondente, em
maior ou menor grau, às relações sociais e políticas nas quais ele vive;
além disso, talvez encontre concepções extraídas da bibliografia
pertinente; por fim, possivelmente ache ainda algumas
excentricidades pessoais. Nosso ideólogo pode virar e mexer como
quiser: a realidade histórica que ele jogou porta afora volta a entrar
pela janela e, acreditando esboçar uma teoria moral e jurídica para
todos os mundos e todas as épocas, ele de fato confecciona um
retrato desfigurado das correntes conservadoras ou revolucionárias
do seu tempo desfigurado por ter sido desarraigado do seu chão
real e posto de cabeça para baixo como num espelho côncavo.
(ENGELS, 2015, p. 127)
Na passagem, Engels critica Dühring que, tal qual a economia política
antes dele, parte de uma espécie de robinsonada; nela, tem-se uma imagem
abstrata da sociedade civil-burguesa, que passa a ser vista como “a sociedade”.
Na economia política, porém, tratava-se “da antecipação da ‘sociedade
burguesa’, que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu
largos passos para sua maturidade” (MARX, 2011, p. 54). No autor criticado
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por Engels tem-se esta sociedade consolidada. Ou seja, se Smith e Ricardo
foram grandes autores que trouxeram ilusões decorrentes de suas épocas, o
mesmo não se dá mais com Dühring, cujo comportamento é de um ideólogo
39
,
de alguém que acredita que pode ignorar a realidade histórica na medida
mesma em que somente a coloca de cabeça para baixo, trazendo uma imagem
invertida e deformada da realidade, como em um espelho côncavo. O “método
ideológico” (ENGELS, 2015, p 127), assim, traria à tona tal inversão. Tal
aspecto é bastante proeminente na crítica de Engels e de Marx também (cf.
SARTORI, 2018c) à ideologia jurídica. Trata-se de uma teoria que é
desenvolvida, não mais diante das ilusões da burguesia, mas do caráter
anacrônico do domínio burguês. Não se tem mais gigantes como Smith,
Ricardo, Kant e Hegel, mas anões como Menger e hring na dianteira da
teoria e da ideologia burguesas.
E isto se mesmo que o tom destes dois autores seja autodeclarado
socialista.
O método de que parte a teoria moral e jurídica, assim, é extremamente
idealista, correspondendo àquilo que o autor alemão criticou, tratando como
ideológico
40
: “trata-se aqui apenas de outra formulação do velho e apreciado
método ideológico, em outras partes também chamado apriorístico, de
identificar as propriedades de um objeto não a partir do próprio objeto, mas
de derivá-las argumentativamente do conceito do objeto”. No que
complementa Engels: “primeiro, formula-se, a partir do objeto, o conceito do
objeto; em seguida, inverte-se tudo e mede-se o objeto por seu retrato, pelo
conceito. Dali por diante, não é o conceito que deve se orientar pelo objeto,
mas o objeto pelo conceito” (ENGELS, 2015, p. 127). A concepção de justiça e
de moral de Dühring pretendem, portanto, em primeiro lugar, uma fuga diante
da realidade efetiva do campo econômico; com isto, apega-se ao elemento
jurídico e moral e volta-se as costas às relações de produção e às forças
produtivas da sociedade capitalista. Ao fazê-lo, eterniza-se os pressupostos
desta sociedade, tratando-a como “a sociedade”. Com isto, os problemas da
economia capitalista deixam de estar ligados aos fatos econômicos e passam a
estar relacionados à regulamentação destes no interesse da moral e da justiça.
Se a economia política tentava uma resolução das questões sociais no
campo das relações econômicas, os socialistas” que Engels critica, dentre
outras coisas, por se apegarem à visão jurídica de mundo, fogem da
compreensão dessa. Isto se dá tanto com Dühring quanto com Proudhon:
“toda a doutrina de Proudhon assenta neste salto de salvação que vai da
39
Tal uso da noção de ideologia (e de seus derivados) não é o único em Engels (cf. SARTORI,
2015b).
40
Aqui não podemos tratar da categoria ideologia em Engels. Porém, de se ressaltar que,
não obstante certa oscilação no conceito, ele não corresponde somente a uma espécie de falsa
consciência (cf. SARTORI, 2015b).
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realidade económica para a frase jurídica”. No que continua Engels de modo
bastante irônico: “o valente Proudhon, sempre que deixa escapar a conexão
econômica — e isto acontece nele com todas as questões sérias — refugia-se no
campo do direito e apela para a justiça eterna” (ENGELS, 1982, p. 12). O
método ideológico, segundo nosso autor, faz parte do próprio campo do direito
e está bastante presente naqueles que pretendem voltar este campo contra a
economia a partir da moral e da justiça (cf. SARTORI, 2017a; 2017b). E, neste
sentido, tem-se em Engels uma crítica bastante dura àqueles que pretendem
ter no direito e na noção de justiça um ponto de apoio essencial contra as
consequências do domínio burguês.
Deste modo, podemos dizer que Engels trata da prática dos juristas e
dos teóricos do direito de modo mais cuidadoso que Pachukanis, que, embora
destaque tal aspecto em alguns momentos, não o faz com o mesmo grau e com
a mesma ênfase que o autor do Anti-Dühring.
No que é preciso que se diga: este método especulativo presente na
teorização sobre a justiça e o direito natural, mesmo em suas diferenças
específicas, é comum à religião, à filosofia da ideologia alemã dos neo-
hegelianos e aos juristas. A combinação entre o resíduo escasso do que resta
da representação invertida da realidade com a consciência do ideólogo faz com
que a justiça e o direito natural pareçam poder atuar como uma espécie de
demiurgo do real. E, a inversão realizada, assim, é gritante. Diz Engels sobre o
autor da Miséria da Teoria: “Proudhon coloca à sociedade de hoje a exigência
de se remodelar não segundo as leis do seu próprio desenvolvimento
econômico, mas segundo as prescrições da justiça.” (ENGELS, 1982, p. 49) A
crítica à figuração da ideologia como uma espécie de inversão especulativa
entre o conceito e a realidade, assim, ganha bastante espaço na posição de
Engels sobre aqueles que se dizem socialistas e se apegam à visão de mundo
jurídica. Embora esta não seja a única acepção de ideologia presente em Engels
(cf. SARTORI, 2015b), ela é importante e seu entendimento passa pelo modo
pelo qual o direito opera na esfera da distribuição.
Isto se dá na medida em que a moral e a justiça são o apoio dos juristas
e dos teóricos do direito. A aparência grandiosa dos clamores por justiça,
portanto, não é algo externo e contingente ao campo jurídico. Ela faz parte do
seu ser-propriamente-assim. Tal inversão ideológica, característica da
sociedade capitalista, passa pelo terreno do direito e traz um tom de sapiência
àquilo que, em verdade, é uma grande ignorância quanto ao real
funcionamento da sociedade civil-burguesa.
A teoria jurídica traz a imagem invertida da teoria dos economistas
burgueses vulgares.
Engels, novamente, é bastante duro: “Proudhon encobre a sua
ignorância econômica e impotência julgando todas as relações econômicas não
segundo as leis econômicas, mas sim consoante elas estejam ou o de acordo
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com a sua representação dessa justiça eterna.” (ENGELS,1982, p. 49) Na
sociedade capitalista do final do XIX, um modo bastante importante pelo qual
o método ideológico se coloca é aquele de uma crítica ao status quo a partir da
concepção jurídica de mundo, de uma teoria jurídica e moral sobre a justiça. E
nos parece que o estudo desta crítica ainda seja bastante atual para aqueles que
pretendem elaborar uma crítica marxista ao direito
41
.
E é preciso que se diga: tem-se com esta teorização sobre a justiça, até
certo ponto, e somente até certo ponto, um posicionamento “crítico” sobre a
distribuição da riqueza na sociedade capitalista. No entanto, esta crítica
pressupõe o essencial desta sociedade. E, também aqui, a relação entre esta
crítica jurídica da esfera da distribuição e o modo pelo qual o direito se
relaciona com a circulação de mercadorias é muito mais desenvolvido em
Engels que em Pachukanis
42
. O processo pelo qual as correntes revolucionárias
do direito natural criticam, com uma posição burguesa, a sociedade feudal é
trazido à tona por Engels; depois, o autor mostra como que os socialistas
utópicos também apelam a isto, em grande parte, ao modo dos iluministas; e,
por fim, mostra-se que os socialistas como Dühring, Menger e Proudhon não
se apoiam no realismo ou mesmo no cinismo (cf. MARX, 1980) da
economia política, nem a ingenuidade dos socialistas utópicos (cf. ENGELS,
1962). Tem-se uma posição reativa à possibilidade de uma revolução social
aos moldes da Comuna de Paris. E, assim, com a pretensão de superar tanto os
economistas quanto os socialistas anteriores, fica-se em uma versão tacanha
do método ideológico, que vem a ter por central a concepção jurídica de mundo.
Em grande parte, este seria o ponto de partida da teoria jurídica e da
conceituação sobre a justiça. E, assim, acreditamos que a análise engelsiana
tem muito a oferecer neste campo, o qual, reiteramos, ainda precisa ser
visitado com mais cuidado pela crítica marxista do direito.
Há, portanto, diferentes figuras da visão de mundo jurídica. E, também
aqui, mesmo que a exposição engelsiana seja bastante sistemática em diversos
momentos, sua pesquisa é essencialmente histórica; talvez seja exagero
apontar no autor uma contradição entre uma pesquisa essencialmente
histórica e uma exposição sistemática; mas certa tensão entre as duas. No
que diz respeito ao nosso tema, isto se explicita ao passo que o apelo à justiça
é visto como uma fuga diante da realidade do fato econômico; porém, o modo
pelo qual se esta fuga varia do iluminismo revolucionário burguês à
vulgaridade de socialistas como Dühring, Menger, os proudhonianos e, em
41
Tal aspecto está relacionado com um modo mais manipulatório de lidar com a filosofia (cf.
SARTORI, 2018c).
42
No campo pachukaniano, há um interessante desenvolvimento da questão (cf. KASHIURA,
2009). Mesmo que acreditemos que o ponto de partida do autor possa deixar algumas questões
importantes de lado, de se destacar o desenvolvimento inteligente e sofisticado da análise
de Celso Kashiura sobre campos do direito público, do direito do consumidor, bem como de
aspectos importantes da teoria da justiça de John Rawls.
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menor grau, o próprio Proudhon. A visão jurídica de mundo, na forma do
direito natural, poderia se colocar de modo conservador, como no mundo
antigo, ou de modo revolucionário, como na Revolução Francesa, como
dissemos. Ao se ter este último aspecto em vista, deve-se apontar que a herança
burguesa, segundo Engels, passa pelas ilusões do iluminismo e pela razão. E,
do mesmo modo como anteriormente, nosso autor traz apontamentos e marca
posições de modo firme, mas uma análise imanente do próprio
desenvolvimento histórico pelo qual isto se deu não aparece senão de modo
esparso.
Diz o autor que “os filósofos franceses do século XVIII, os precursores
da revolução, apelaram para a razão como juíza única de tudo o que existia. O
que se pretendia era organizar um estado racional, uma sociedade racional, e
tudo o que contradizia a razão eterna deveria ser eliminado sem dó nem
piedade” (ENGELS, 2015, p. 289). Deste modo, o apelo à razão – e à justiça
andaram juntos na ascensão da burguesia. Trata-se do momento heroico desta
classe social. No que complementa Engels: “vimos igualmente que essa razão
eterna, na realidade, nada mais era que o entendimento idealizado do cidadão
médio que, justamente, naquela época, estava evoluindo à condição de burguês”
(ENGELS, 2015, p. 289). Pelo que vimos, pode-se dizer que a razão eterna foi
acompanhada da justiça. Esta, em Proudhon, aparece posteriormente na
figura da justiça eterna. Porém, ainda diz nosso autor algo bastante importante
sobre o desenrolar histórico da sociedade e do estado racionais:
O estado racional ruiu completamente. O contrato social
rousseauniano concretizou-se no período do Terror, diante do qual
a burguesia, desenganada de sua própria capacitação para a política,
buscou refúgio primeiro na corrupção do Diretório e, por fim, sob a
égide do despotismo napoleônico. A paz perpétua prometida havia
se revertido numa interminável guerra de conquista. A sociedade
racional não se saiu melhor. O antagonismo entre rico e pobre, em
vez de dissolver-se no bem-estar universal, aguçou-se com a
eliminação da função intermediadora dos privilégios corporativos e
afins e da função mitigadora das instituições de caridade da Igreja;
o crescimento da indústria sobre bases capitalistas elevou a pobreza
e a miséria das massas trabalhadoras ao nível de condição de vida
da sociedade. (ENGELS, 2015, p. 289)
A realização dos ideais burgueses não poderia se dar em outra sociedade
que a burguesa. E, portanto, a sociedade, o estado e a justiça racionais são
efetivos contraditoriamente justamente na miséria das massas trabalhadoras.
A função mitigadora da igreja – e não podemos deixar de ressaltar novamente
a relação entre igreja e direito burguês de um lado, e entre a concepção
teológica e a jurídica doutro e da caridade se realizam no estado, nas working
houses e no cárcere modernos
43
. E, assim, segundo Engels, a defesa
consequente da razão e da justiça, mesmo que ainda se colocasse no terreno do
43
Sobre o assunto, cf. Medrado (2018).
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direito, não poderia mais estar com aqueles com uma posição puramente
burguesa.
A partir dos socialistas utópicos principalmente, o proletariado tenta
criar um terreno do direito diferente daquele da burguesia. O anticlericalismo
do Iluminismo, assim, não estaria mais em seu melhor terreno com a classe
burguesa, mas com os socialistas, que, nesta configuração presa a uma noção
idealizada de razão, ao estado e ao terreno do direito, aparece com certa
ingenuidade e com certo apelo ao gênio individual; tudo isto, sem que se
explicitasse com clareza os antagonismos classistas que marcam a moderna
sociedade civil-burguesa. Diz-se no Anti-Dühring:
A exemplo dos iluministas, eles não queriam libertar uma
determinada classe, mas a humanidade inteira. Como aqueles,
pretendiam introduzir o império da razão e a justiça eterna; mas o
império deles era completamente diferente do império dos
iluministas. O mundo burguês organizado segundo os princípios
desses iluministas também é irracional e injusto e, por conseguinte,
vai parar no caldeirão das coisas condenáveis, da mesma forma que
o feudalismo e todas as condições sociais anteriores. A verdadeira
razão e justiça ainda não chegaram para governar o mundo
unicamente pelo fato de não terem sido corretamente identificadas.
O que faltava era o gênio individual que agora entrou em cena e
reconheceu a verdade; o fato de ele ter entrado em cena logo agora e
não constituem acontecimentos inevitáveis, necessariamente
decorrentes do desenvolvimento histórico, mas puro acaso. Esse
gênio poderia muito bem ter nascido anos antes e, nesse caso, teria
poupado à humanidade quinhentos anos de erros, lutas e
sofrimentos. (ENGELS, 2015, pp. 47-8)
Não é indiferente a que figura desta visão de mundo um teórico se apega.
O iluminismo aparece como inviável à burguesia depois de determinado
momento, de modo que ele, bem como a visão jurídica de mundo amparada no
direito natural revolucionário aparecem nos socialistas utópicos. Por meio de
uma concepção idealizada de estado ou de sociedade racionais, a justiça parece
poder ser realizada. Porém, devemos destacar que, se os iluministas franceses
e os socialistas utópicos são bastante respeitados por Engels, o mesmo não se
com os proudhonianos, com Dühring e com Menger. Eles buscariam uma
visão de mundo essencialmente burguesa ao passo que o caráter reacionário
da burguesia já estaria claro. Ou seja, os socialistas do final do século XIX, que
se opunham à concepção materialista que Engels desenvolveu com Marx não
se comparariam com os gigantes do passado burguês; trariam todos os seus
defeitos sem possuir nenhuma das qualidades.
Acreditamos que isto é essencial para que se compreenda a análise
engelsiana daqueles críticos que se colocam no terreno do direito. Tem-se
também um ponto de partida interessante para a análise da ideologia jurídica
e da visão jurídica de mundo que se coloca depois do século XIX.
O caráter enciclopédico dos iluministas, e o ímpeto revolucionário dos
socialistas utópicos dão lugar à ignorância e ao charlatanismo. No que diz
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respeito ao nosso tema, nosso autor diz sobre Dühring, por exemplo, que:
“devemos constatar, assim, que o sr. Dühring desconhece completamente o
único código burguês moderno baseado nas conquistas sociais da Grande
Revolução Francesa e que as traduziu para a linguagem jurídica” (ENGELS,
2015, p. 140). A vulgaridade do autor criticado no Anti-Dühring seria tamanha
que ele se apoiaria na concepção jurídica de mundo e na ideia de justiça ao
passo que, como filisteu provinciano, conheceria somente o direito alemão. E,
assim, em todos os aspectos, tal retomada do direito natural e da justiça faria
destes autores anões perto dos gigantes do passado. Se os iluministas
procuravam fazer ciência, para alguém como Dühring, “liberdade na ciência
significa, então, escrever sobre tudo aquilo de que nada se aprendeu e alegar
que esse é o único método rigorosamente científico”. No que complementa
Engels: “o sr. Dühring é um dos tipos mais característicos dessa atrevida
pseudociência que, na Alemanha atual, em toda parte, se apressa a ocupar o
primeiro plano e cujo som trovejante de tambor de lata se sobressai a todos os
demais” (ENGELS, 2015, p. 31). E, deste modo, percebemos que a crítica
engelsiana ao direito é incompreensível, não sem uma abordagem histórica;
tem-se a necessidade da compreensão do processo histórico em que a visão de
mundo jurídica passa de revolucionária à apologética.
E, também sobre isto, o tratamento engelsiano é bastante mais cheio de
meandros que o pachukaniano. Ele certamente não é completo, ou mesmo
suficiente sob diversos aspectos. Por vezes, marca-se posição de maneira
bastante firme, remetendo ao processo histórico concreto. Mas este mesmo
não é exposto em suas minúcias e em seu desenrolar concretos, reais e efetivos.
E, assim, se é verdade que o modo de exposição não se confunde com o
de pesquisa, igualmente correto é dizer que, em Engels, certa tensão entre
trazer a necessidade de realizar um tratamento histórico e uma exposição
sistemática, em que a relação imanente entre as categorias nem sempre fica
clara. Aquilo que dissemos sobre a relação entre direito e religião certamente
joga um papel bastante grande aqui também. Porém, se Engels realiza um
tratamento histórico-imanente em sua análise das Guerras camponesas na
Alemanha, isto se sem que tenha feito algo semelhante sobre os pontos que
destacamos acima. Nossos posicionamentos sobre a ligação entre razão,
iluminismo e justiça, bem como sobre as diferentes figuras desta tematização
estão no autor. Porém, isto se de modo esporádico, e sem uma análise
histórica cuidadosa do modo pelo qual real e efetivamente tais categorias
se colocam como uma potência ativa em situações concretas.
Tal abordagem histórica está presente na forma de posicionamentos
sobre diversos assuntos, certamente relacionados, mas tratados, até certo
ponto, separadamente, por temas, e de modo sistemático. A superação do
anticlericalismo e do deísmo dos iluministas pela visão de mundo materialista
é tratada por Engels no início do Anti-Dühring, bem como o modo pelo qual o
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materialismo e as ciências são uma força revolucionária na passagem do
feudalismo para o capitalismo; tem-se uma análise do materialismo na crítica
à sociedade civil-burguesa nascente, remetendo-se ao papel da ciência na
superação de uma visão teológica. Porém, a conexão imanente destas questões
com as relações econômicas, com a religião, com o direito e com a crise da
sociedade capitalista é apenas indicada pelo autor. E, assim, tem-se um
aspecto dúplice: tais indicações podem ser preciosas em uma análise histórica
do processo de desenvolvimento social; porém, corre-se o risco de, como
aconteceu não poucas vezes, tais posicionamentos sejam tomados de modo
dogmático.
Tais aspectos são indissolúveis na obra engelsiana, cuja exposição,
como mencionamos, traz as virtudes e as vicissitudes do melhor e do pior do
marxismo do século XX. Para o que diz respeito ao nosso tema, há de se notar
a dificuldade da apreensão da crítica de Engels ao direito.
Uma leitura do Socialismo jurídico e dos capítulos do Anti-Dühring
sobre o direito, de imediato, passa a impressão segundo a qual a relação entre
circulação de mercadorias, emergência da burguesia e a esfera jurídica é “o”
ponto de partida marxista. Isto foi desenvolvido com muita profundidade e
competência por Pachukanis e pela tradição pachukaniana. Aqui, pretendemos
ter demonstrado que, ao tomarmos Engels como referência, a crítica ao direito
precisa passar com cuidado por diversos temas que não são aprofundados pelo
autor da Teoria geral do direito e o marxismo. E, assim, de certo modo, Engels
se coloca de modo muito mais multifacetado e interessante que Pachukanis,
mesmo que a dificuldade na compreensão de sua real posição não seja pequena
e mesmo que a obra engelsiana não seja destituída de ambiguidades, que
aparecem, sobretudo, em certa tensão entre seu tratamento histórico e seu
modo de exposição, que tende a ser muito mais sistemático que o de Marx.
Apontamentos finais
Engels não é qualquer autor. Ao mesmo tempo em que é impossível que
não fique na sombra de Marx, ele tem uma estatura própria, que faz com que
desenvolva temáticas importantes para a compreensão da moderna sociedade
capitalista. É o que se dá com seu tratamento do direito.
O enfoque histórico no desenvolvimento do direito, da igualdade e da
justiça faz com que a contribuição engelsiana traga a especificidade da esfera
jurídica, e que esta seja analisada ao se ter em conta sua relação com a religião,
com a circulação de mercadorias e com a esfera da distribuição. O tratamento
de cada um destes momentos do desenvolvimento do direito, por sua vez,
remeteria, em última instância, às relações materiais de produção. Vimos que
um dos grandes méritos do autor é explicitar tais correlações e determinações
recíprocas, o que faz de sua crítica ao direito algo, ao mesmo tempo,
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multifacetado, e integrado à crítica ao valor e à sociedade capitalista. O
trabalho do autor, neste sentido específico, é grandioso. Decididamente foge
de simplismos e de unilateralidades.
A leitura atenta da obra engelsiana que procuramos abordar aqui no
que diz respeito ao direito deixa clara a existência de um grande fôlego em
suas análises, mesmo que elas, por vezes, sejam explicitadas ao marcar posição
contra autores de sua época, os quais, hoje, são ilustres desconhecidos.
Dühring, Menger e os proudhonianos, de certo modo, só são lembrados devido
aos estudos do contexto das obras de Marx e de Engels. Devemos destacar,
assim: a exposição engelsiana é rica e traz a correlação de todos os aspectos
que mencionamos neste pequeno texto. Porém, não podemos deixar de notar
certa tensão entre a pesquisa essencialmente histórica do autor e sua exposição
sistemática dos temas abordados, com o direito, a justiça e a visão de mundo
jurídica.
Isto faz com que, muitas vezes, mesmo autores cuidadosos e cuja
contribuição é essencial, como Pachukanis, tenham feito uma leitura parcial
da obra engelsiana. Se o autor soviético aponta com razão a centralidade da
relação entre a esfera de circulação de mercadorias e o direito, a análise do
autor do Anti-Dühring é mais complexa neste ponto. Ela se tratando do
papel ativo da esfera jurídica na passagem, não do feudalismo ao
capitalismo, mas ao trazer à tona a correlação entre a produção camponesa e o
direito, bem com a luta do proletariado e a necessidade de se superar o terreno
do direito na crítica ao capitalismo. Ou seja, o papel ativo do direito é visto pelo
autor com muito mais mediações, se comparado a Pachukanis. E isto se
porque sua pesquisa, essencialmente, configura-se por uma análise histórica
em que a autonomia relativa das esferas do ser social como o direito, a
ideologia e a religião, para que fiquemos no que tratamos joga um
importante papel.
Em um primeiro momento, no que toca o direito, isto se daria na
medida em que a superação do privilégio de classe é uma demanda tanto da
burguesia quanto do pequeno campesinato, que é analisado por Engels nas
Guerras camponesas na Alemanha. Depois, porém, com a burguesia se
colocando sobre os próprios pés, a igualdade jurídica que teve um papel
essencial na subsunção formal ao capital e que exerce também uma função
importante no capital consolidado com a subsunção real coloca-se
efetivamente como igualdade burguesa. Por fim, nosso autor procura
demonstrar como que as lutas do moderno proletariado passam pelo terreno
do direito, mas, tal qual a burguesia o fez quanto ao terreno da religião,
precisam remeter a um terreno mais próprio para suas lutas sociais, o terreno
da revolução. Desta maneira, há em Engels uma análise do modo pelo qual o
campo jurídico é tipicamente burguês, mas é necessário que a luta do
proletariado passe por ele.
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Ao passo que se trata de várias formas pelas quais a esfera jurídica se
configura historicamente, tem-se certamente este campo como aquele propício
ao domínio burguês, como mencionamos. Porém, destaca-se como que é
possível, até certo ponto, que o proletariado pegue a burguesia pela palavra, a
partir da igualdade, central ao direito. Mas, aí tem-se uma diferença essencial
para nosso autor: no proletariado, o clamor por igualdade é colocado em
oposição à igualdade jurídica na figura da igualdade econômica e social. A
análise engelsiana, também neste ponto, é muito mais complexa que a de
Pachukanis. E, deste modo, ainda hoje, pode ser importante aos críticos do
direito a leitura atenta da obra de Engels, sendo inaceitável, neste aspecto,
tomar a crítica pachukaniana como a última palavra na compreensão de algo
básico para qualquer marxista, as obras de Marx e de Engels.
No caso de Engels, não há como deixar de se destacar como sua análise
do direito é permeada por aspectos importantes da sociedade capitalista, como
o fato de que o proletariado e os seus representantes precisariam superar a
visão de mundo jurídica, mas não necessariamente o fazem.
Isto acontece, também, porque, com a perda do potencial
revolucionário da burguesia, a visão de mundo jurídica permeia aqueles que se
contrapõem à distribuição da riqueza na sociedade capitalista. É o que se
com Menger, Dühring, com os proudhonianos e com o próprio Proudhon no
final do século XIX. E a análise engelsiana da relação entre direito, razão,
justiça e a prática dos juristas e dos políticos profissionais é exemplar no que
toca a importância da ideologia jurídica na moderna sociedade civil-burguesa.
Com tal ideologia vai-se da crítica iluminista da sociedade feudal à visão mais
ou menos vulgar (no caso aqui analisado com um socialismo vulgar
44
) das
possibilidades da sociedade capitalista. Tem-se uma espécie de crítica que
parte da ideologia burguesa, assume os pressupostos da sociedade burguesa e
se opõem somente aos sintomas do modo de produção capitalista. Isto se
com um método ideológico, que, a partir da autonomização do estado, traz
uma verdadeira fuga diante da compreensão das reais razões de determinada
configuração social, colocadas em última instância, nos fatos econômicos. E,
também aqui, a visão engelsiana é muito mais ampla que a pachukaniana e a
dos pachukanianas. Tendo como pano de fundo a relação entre direito e
religião, bem como a emergência da sociedade capitalista, a análise de nosso
autor se coloca em termos históricos mesmo que sua exposição, por vezes,
possa ser demasiadamente sistemática.
E, sobre este aspecto, mesmo que se coloque contra isso de modo
explícito e decidido, o risco da autonomização dos diferentes temas tratados
por Engels está na própria análise do autor.
44
Devemos destacar que esta expressão é mais recorrente em Marx que em Engels. O autor de
O capital, por exemplo, critica Proudhon e aqueles que acreditam poder resolver as
vicissitudes da sociedade capitalista atacando os juros ou a distribuição da riqueza.
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Mesmo que não se possa culpar Engels pelas adversidades de certo
marxismo do século XX, de se admitir que sua pesquisa e sua exposição são
indissociáveis. Ou seja, o tratamento engelsiano do direito é histórico, mas a
análise histórica concreta de como a igualdade religiosa é superada na jurídica,
que, por sua vez, é suprimida pela econômico-social, não está presente no
autor. Ele anuncia aspectos fundamentais, traz posições certeiras, mas elas,
por vezes, correm o risco de aparecer como se fossem desenvolvidas ao modo
hegeliano, e não a partir da análise imanente da realidade efetiva.
Para o que nos interessa aqui, destacamos: a crítica engelsiana ao direito
é seminal e traz posições muito importantes para o desenvolvimento de uma
crítica marxista ao direito que, acreditamos, deve ir além da obra de
Pachukanis; porém, Engels muitas vezes anuncia ligações e conexões que ele
não explica rigorosamente com uma análise concreta e cuidadosa da história.
Ele se posiciona fortemente, marcando posição contra expoentes e
personagens importantes de sua época. Em uma peculiar divisão do trabalho
com Marx, Engels foi um autor de envergadura gigantesca, mas se mostrou
principalmente em polêmicas com outros autores, o que traz certo caráter, ao
mesmo tempo, fragmentário e sistemático em sua obra, por mais que isto possa
parecer uma contradição em termos; a realidade, muitas vezes, é tratada a
partir de temas essenciais ao momento, como o direito no final do século XIX.
Porém, posteriormente, o autor precisa trazer a abrangência real das questões
remetendo à famigerada determinação em última instância. E, assim, diante
de tal peculiaridade do pensamento do autor do Anti-Dühring restam duas
alternativas: a primeira delas, infelizmente tornada clássica, é tomar as
afirmações engelsianas separadamente, e como dogmas; a segunda, e mais
proveitosa, é enxergar nos escritos de nosso autor algo cuja leitura é muito
mais difícil que à primeira vista. Com isto, Engels pode ser visto como aquele
que realiza uma tarefa difícil que é importante a todo marxista -, e que
consiste em falar, até certo ponto, em nome de Marx, e com base no autor de
O capital, mas o fazer sempre ao trazer os nexos e as categorias em suas
conexões imanentes na própria realidade. A exposição do autor talvez tenha o
atrapalhado sob diversos aspectos; nós, marxistas, se tivermos consciência
disto, ainda precisamos achar uma correlação adequada entre exposição e
pesquisa hoje. Porém, como não temos o repertório e a capacidade de Engels,
e muito menos de Marx, uma coisa é certa: hoje, tanto no que diz respeito à
exposição quanto à pesquisa, o trabalho de investigação marxista da realidade
precisa ser coletivo.
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Como citar:
SARTORI, Vitor B. A crítica marxista do direito diante de Friedrich Engels: a
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Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
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Data do envio: 27 maio 2020
Data do aceite: 13 out. 2020