Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Ingo Elbe
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direito são tarefas de órgãos qualificados como tribunais ou unidades da
administração. Em ordenamentos jurídicos pré-estatais, ao contrário, os
"próprios membros da comunidade [jurídica]" (KELSEN, 2009, p. 358) são
dotados de poderes, a) através dos costumes, de criar normas jurídicas, b) de
exercer justiça pelas próprias mãos, c) de prestar assistência, isto é, de
estatuir sanções no caso de ações criminosas por si próprio identificadas.
Em qualquer ordem estatal, segundo Kelsen, uma classe não é
submetida às outras imediatamente, mas todas são subsumidas ao
ordenamento normativo. Nesse sentido, impera sempre a norma, que por sua
vez é um conteúdo (conceito) propositivo não empírico do pensamento
empírico. Uma norma tem por conteúdo que algo deve acontecer. Ela é “um
ato intencional [de vontade] dirigido à conduta de outrem” (KELSEN, 2008,
p. 6). O ato de vontade é um fato empírico; a norma, enquanto conteúdo de
sentido daquele ato, é um dever ser. E "o estado nada mais é do que um
conceito, um conceito de ordenamento!" (KELSEN, 1962, p. 91). A ordem
jurídica estatal não é regularidade de comportamento no sentido da
observação de atos costumeiros, de uma média empírica ou de uma
probabilidade de ações. No ser empírico, Kelsen vislumbra unicamente "um
caos, uma sequência sem lógica" de vontades humanas, cuja unidade só pode
ser construída por intermédio da "unidade ideal do estado" que, por sua vez,
de modo totalmente neokantiano, "é constituída através do conhecimento
científico" (KELSEN, 1962, p. 123). O estado é o conteúdo de sentido de ações,
ao passo que a probabilidade de ocorrência do comportamento realmente
orientado àquele sentido permanece fora de consideração (e depois, porém,
deve ser novamente recuperada como condição de validade jurídica):
enquanto apenas conteúdo de sentido /.../ ou esquema
interpretativo /.../, o estado “existe” tanto ou tão pouco quanto o
teorema de Pitágoras: sua “existência” é sua validade, e nisso ele é
essencialmente distinto da factualidade das ações cujo sentido ele é
(KELSEN, 1962, p. 160).
O estado é, portanto, um complexo de "coisas do pensamento
normativas" (KELSEN, 1962, p. 73). Estas podem, por intermédio da
representação da norma, motivar o querer empírico dos homens, e assim
tornar-se efetivas. O poder estatal é, desta forma, a "força /.../ motivante de
certas representações normativas" (KELSEN, 1962, p. 89) que leva os
homens a exercer coerção física sobre outros, e não o arsenal de armas e as
prisões, ou os grupos de homens que têm isso à sua disposição. Com isso,
Kelsen critica implicitamente a definição de Lênin, retirada de Engels, da
violência estatal como reunião de "homens armados" e de "materiais
acessórios, prisões e instituições coercivas de toda espécie" (ENGELS, 2012a,
pp. 215-6; LÊNIN, 2011, p. 4o). A violência estatal nada mais é do que a
efetividade idealmente mediada do ordenamento jurídico centralizado. Para
Kelsen, portanto, o estado é, assim como Deus, algo que, para ser negado,
devemos apenas tirá-lo da cabeça: “A existência de Deus", no sentido em que
mesmo o ateu deve admiti-la,