DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.570
Ingo Elbe
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Estado dos capitalistas ou estado do capital? Linhas de recepção do
conceito de estado de Engels no século XX
1
Ingo Elbe
2
Resumo: O artigo identifica uma ambiguidade no pensamento político de
Friedrich Engels. Por um lado, algumas de suas formulações conferiram
substrato a concepções limitadoras da compreensão do estado no modo de
produção capitalista, tais como, em polos opostos, o marxismo tradicional da
tradição leninista e a social-democracia sustentada em Hans Kelsen. Em
contrapartida, ao lado da visão do “estado dos capitalistas”, há em Engels
também uma percepção do estado do capital” que permitiria dar conta da
forma política do capitalismo de modo teoricamente mais fundamentado.
Palavras-chave: teoria política; filosofia do direito; Friedrich Engels;
marxismo.
State of capitalists or state of capital? Reception lines of the state
concept of Engels in the 20th century
Abstract: This article identifies an ambiguity in the political thought of
Friedrich Engels. On the one hand some of his formulations provided a basis
for conceptions that limited the comprehension of the state in the capitalist
mode of production, such as the opposed visions of the traditional Marxism-
Leninism and of the social democracy theorized by Hans Kelsen. On the other
hand one might find in Engels, besides the view of a “state of the capitalists”, a
perception of the “state of the capital” which could explain the political form of
capitalism with a theoretically sounder understanding.
Keywords: political theory; philosophy of law; Friedrich Engels; Marxism.
No início do século XX, o movimento socialista dos trabalhadores viu-
se diante da questão quanto à postura que se deveria assumir diante do
estado, com o qual se havia confrontado na política cotidiana, e do qual, se
1
Título original: Staat der Kapitalisten oder Staat des Kapitals? Rezeptionslinien von Engels'
Staatsbegriff im 20. Jahrhundert. In: SALZBORN, Samuel. "...ins Museum der Altertümer":
Staatstheorie und Staatskritik bei Friedrich Engels. Baden-Baden: Nomos, 2012, pp. 155-181.
Tradução de André Vaz.
2
Privatdozent na Universidade de Oldenburgo (Alemanha).
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era o caso de manter uma perspectiva "revolucionária", era preciso ter um
conceito que permitisse, enfim, imaginar alternativas sociais. Os textos
daquele que dá nome à influente "escola marxiana" não continham uma
teoria do estado acabada, ainda que uma tal teoria estivesse prevista nos
planos da construção da crítica da economia política de Marx (MARX, 2008,
p. 47). As reflexões de Engels sobre teoria do estado preencheram essas
lacunas e marcaram decisivamente as concepções de estado dos teóricos
socialistas do século XX.
Inobstante encontremos em Engels definições de estado ainda
altamente contraditórias, que variam entre as fórmulas "estado do capital /
capitalista global ideal" e "estado dos capitalistas / capitalista global real", a
recepção na segunda metade do século XX acolheu em geral esta última, e a
partir daí desenvolveu ou uma teoria crítica ao estado autoproclamada
“ortodoxa”, ou, usando tais fórmulas como pretexto, um conceito alternativo
e afirmativo do estado. A seguir, inicialmente serão apresentadas, a partir de
Vladimir Ilitch Lênin e Hans Kelsen, elaborações paradigmáticas dessas
concepções, que se relacionam a Engels como imagens simétricas. A reflexão
sobre esses modelos de pensamento socialista sobre o estado não representa
interesse ultrapassado; ela reflete modos ainda hoje correntes de concepções
sobre o estado que perambulam como fantasmas na qualidade de fragmentos
teóricos e ideologias cotidianas através de panfletos e práticas da esquerda.
Num terceiro momento, deverá ser finalmente esboçado o propósito
fundamental de uma linha de recepção [do pensamento de Engels], que
com exceção do precursor Evguiéni Pachukanis surgiu somente a partir dos
anos 1970, e assumiu a definição do estado como estado do capital” e
capitalista global ideal”, e pela qual se toma o rumo de uma elaboração das
implicações teóricas acerca do estado e do direito diretamente a partir da
crítica marxiana da economia.
Ambas as abordagens aqui apresentadas como clássicas e
paradigmáticas enfrentaram a principal questão política do movimento dos
trabalhadores na e logo depois da I Guerra Mundial: o estado capitalista, a
nação ou, no mínimo, determinadas formas estatais democráticas devem ser
caracterizadas como estado de todo o povo”, ou são todos “instrumentos da
classe dominante”? Lênin responde a tal questão no último sentido; Kelsen e
a maioria da social-democracia, no primeiro
3
. A linha instrumentalista e de
conteúdo fixo [inhaltsfixierte] do pensamento engelsiano acerca do estado
serve, com isso, tanto ao comunista revolucionário nin quanto ao
reformista social-democrata Kelsen como modelo “da” teoria do estado
marxista. No centro desse conceito de estado encontram-se as seguintes
assunções fundamentais, que exporei com base em sua recepção,
sistematização e crítica:
3
Nos anos 1930, também o leninismo acolhe o mote do estado popular. Essa mudança tem
pouco que ver com Lênin (cf. ELBE, 2008, pp. 385-91).
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A forma da vontade estatal é evidente; é seu conteúdo de classe que
deve ser desvendado e criticado (ENGELS, 2012b, p. 157); o estado se revela
então como instrumento da classe economicamente dominante para a
opressão dos explorados (ENGELS, 2012a, pp. 215-6). A verificação da
imprescindibilidade do estado é enfocada diretamente nas classes.
Com isso, as formas do domínio de classe e do estado são histórico-
universalmente niveladas: “O” estado é um poder público que está presente
em todas as sociedades de classe, e constitui uma dominação “política”, a ser
diferenciada da “econômica” (ENGELS, 2012a, pp. 214-5).
O caráter de classe do estado, sua relação funcional com a economia é
concebida de modo personalista e teórico-manipulativo(ENGELS, 2012a, p.
215).
A autonomização do estado é uma ilusão, mas que se torna real em
situações excepcionais (ENGELS, 2012a, p. 215).
I. Estado dos capitalistas
As reflexões teóricas de Lênin sobre o estado, sobretudo a obra O
estado e a revolução, de 1917/1918, são de significado decisivo para a
posterior tradição do “marxismo-leninismo”, e se dirigem explicitamente
contra a afirmação do estado por parte da socialdemocracia de seu tempo.
Em correspondência quase textual com Engels (2012a, p. 214), Lênin
compreende o estado inicialmente como aparato de força especializado,
dirigido por especialistas em dominação (LÊNIN, 2019, p. 353), aparato que
consiste em grupos especiais de homens armados, que têm à sua disposição
as prisões etc. (LÊNIN, 2011, p. 40).
Para ele, são condições históricas para a especialização de um aparato
desse tipo, por um lado, um nível de produtividade que possibilite um mais-
produto (LÊNIN, 2019, p. 353) e, por outro, o surgimento de um
antagonismo inconciliável” de classes (LÊNIN, 2011, p. 37), que divide a
sociedade em grupos de pessoas, algumas das quais se apropriam
permanentemente do trabalho alheio (LÊNIN, 2019, p. 351).
A imprescindibilidade de uma dominação de classe regulada pelo
estado é fundamentada a partir dessa contradição entre classes. Isso parece,
se seguimos Lênin, levar permanentemente os subalternos a “protesto e
revolta” (LÊNIN, 2011, p. 138), o que, sem o monopólio estatal da violência,
conduziria as classes a um “armamento espontâneo”, e finalmente a
deflagrarem a “luta armada” entre si (LÊNIN, 2011, p. 41). A condição para
isso é um processo de exploração explícito que é tido como ilegítimo pelos
explorados, pois estes se confrontariam sem absurdas ilusões e fantasias”
com os supostamente “desnudados, abertamente explícitos processos de
expropriação e apropriação da economia capitalista” (LÊNIN, 1963b, p. 417).
O estado é definido então como instrumento da classe economicamente
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dominante para a opressão dos explorados (LÊNIN, 2011, pp. 37-9; 42-5); ele
é, como Lênin cita a partir de Engels, sua autoridade principal em termos de
teoria do estado, estado da classe mais poderosa, da classe economicamente
dominante, classe que, por intermédio dele, se converta também em classe
politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e
exploração da classe oprimida (ENGELS, 2012a, pp. 215-6, também citado
em LÊNIN, 2011, p. 44).
Chama a atenção a orientação histórico-universal, igualmente
recolhida de Engels, desse paradigma de teoria do estado que deixa
esmaecidos os contornos de conceitos centrais: em especial, escapa a
diferença entre, por um lado, a apropriação direta do mais-produto sob
violência e sua apropriação especificamente econômica e, por outro, a função
do monopólio da violência física. No estado de direito capitalista, segundo
Lênin, é certo que “todos são iguais perante a lei”. Dessa afirmação, porém,
ele não extrai nenhuma consequência seria possível perceber o
deslocamento de sentido na frase seguinte: A lei protege todos por igual;
protege a propriedade dos que a possuem contra os ataques das massas que
[não possuem] nenhuma propriedade (LÊNIN, 2019, p. 356). “Todos”,
“proprietários”, “massa sem propriedade”: o sujeito de direito é reduzido aos
possuidores dos meios de produção. na próxima página, portanto, Lênin
subentende na máxima antifeudal da liberdade para os proprietários
(LÊNIN, 2019, p. 356) o que aqui, uma vez que a classe trabalhadora é
compreendida como destituída de propriedade, pode referir-se aos
proprietários dos meios de produção. Embora, portanto, também Lênin
conheça diferenças de forma no que se refere ao domínio de classe, e faça
menção à específica igualdade moderna de todos os cidadãos perante a lei, a
liberdade no modo de produção capitalista parece-lhe sempre, “mais ou
menos, o que foi nas repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade de senhores
fundada na escravidão” (LÊNIN, 2011, pp. 134-5)
4
.
A forma mediada de exploração específica do modo de produção
capitalista, em que a coerção física exerce um papel totalmente distinto do
que na Antiguidade, é eliminada por decreto; a liberdade burguesa é
desmascarada como evidente “preconceito (LÊNIN, 2019, p. 359), com o que
Lênin segue o diagnóstico de desmistificação de Marx e Lênin no Manifesto
(MARX; ENGELS, 2015, pp. 42-3; 49-5)
5
. A apropriação violenta e direta do
mais-produto na escravidão serve, para Lênin, como modelo para assertivas
generalizantes como esta: É impossível obrigar a maior parte da sociedade a
trabalhar em forma sistemática para a outra parte da sociedade sem um
4
O fato de que democracia e isonomia na Antiguidade apenas valiam para os senhores de
escravos, e não para os escravos (as mulheres são ignoradas por Lênin [2019, pp. 353-4]) é
referido como "fato fundamental", que " deita mais luz do que qualquer outro sobre o
problema do estado, e apresenta a nu a natureza do estado" (LÊNIN, 2019, p. 354).
5
Aqui a exploração nua e crua é vislumbrada como característica do capitalismo. Isso será
modicado em Marx a partir da teoria da mistificação da vida cotidiana capitalista, que Lênin,
no entanto, ignorou (cf. PROJEKT KLASSENANALYSE, 1972, pp. 74-5).
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aparelho permanente de coerção (LÊNIN, 2019, pp. 353-4). No capitalismo,
porém, não é mais essa coerção direta que compele ao mais-trabalho. O
estado assegura aqui unicamente as relações de propriedade, cuja coerção
estrutural reproduz a exploração. Por fim, o conceito de força pública, que
Lênin extrai de Engels, é altamente problemático para descrever formas
antigas e feudais de dominação, que lá, apesar da parcial diferenciação de
agentes da dominação, vigem amplamente os princípios da posse pessoal do
poder
6
e da unidade entre violência (ou ameaça de violência) física e
apropriação dos produtos do trabalho alheio. Não pode tratar-se, em absoluto,
de um monopólio “público” da violência, que se confronta com uma
“sociedade” despolitizada
7
.
A conquista de poder sobre os subalternos permanece, na concepção
“hipotético-repressiva”
8
de Lênin, puramente externa e sob a forma de
violência (LÊNIN, 2011, pp. 138-40). Os subalternos são sempre tidos,
portanto, mais ou menos como inimigos públicos da ordem sustentada na
violência. A história”, segundo Lênin, está cheia de constantes tentativas
das classes oprimidas de se libertarem da opressão (LÊNIN, 2019, p. 355
grifo IE)
9
. A própria dominação torna-se extremamente personalista,
enquanto poder de uns poucos milionários sobre toda a sociedade” (LÊNIN,
2019, p. 358)
10
, como disposição direta de uma minoria sobre o mais-
trabalho das massas e sobre o poder do estado. Sob esse ponto de vista, não
há lugar sistemático para a coerção estrutural e o domínio anônimo do capital,
em cujo âmbito também os dominantes podem exercer dominância
heterônoma.
Especialmente por sua explicação teórico-manipulativa do caráter de
classe da violência democrático-burguesa, fica claro que Lênin compreende o
estado burguês não como estado do capital, mas dos capitalistas. Uma vez
6
Cf. Hoffmann: “dominação pessoal significa /.../ uma relação direta de dominação entre as
pessoas, sustentada na violência diversamente de uma dominação mediada econômica
(venda de força de trabalho) ou juridicamente (domínio da lei)” (1996, p. 532).
7
Cf., a respeito da unidade entre dominação e expropriação nas sociedades pré-capitalistas,
Gerstenberger (1990, pp. 497-532); Teschke (2007, pp. 63-9; 93).
8
Foucault (1988) entende por isso uma concepção específica da forma de eficácia do poder,
pela qual este é concebido no sentido de um regime de proibição” sustentado no aparato
central de poder, que se confronta externamente aos dominados como instância limitadora e
geradora de impotência.
9
Cf., contrariamente, Godelier (1984, pp. 163-6), que mostra que uma condição para
ordenamentos duradouros de dominação é a construção desta como dominação a serviço dos
dominados. É certo que Lênin leva em conta, em outro ponto, também a “escravidão /.../
espiritual” (LÊNIN, 2020, p. 123) dos oprimidos, mas ela é tida sempre como mentira,
fraude e dissimulação, que prescindiria de qualquer realidade e, sobretudo, “poderia contar
sempre com a ignorância e os preconceitos das camadas populares mais atrasadas” (LÊNIN,
1963a, p. 232).
10
O que inicialmente parece uma expressão de agitação, recebe consagração teórica na
abordagem do estado capital-monopolista, de que Lênin é cofundador: substituição da
dominação anônima da lei do valor pela dominação pessoal “de um punhado de capitalistas
monopolistas” sobre toda a sociedade. Conferir Jordan (1974), numa crítica à abordagem do
estado capital-monopolista.
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que em momento algum ele se lança à empreitada de esclarecer a forma
específica da dominação de classe regulada pelo estado no capitalismo,
necessariamente passa-lhe despercebida também a relação imanente do
conteúdo de classe com sua forma a da força coerciva pública, que domina
por meio de leis gerais e abstratas. O estado capitalista, segundo Lênin,
“nega” seu caráter de classe e afirma “exprimir a vontade do povo todo”
(LÊNIN, 2019, p. 356). Mas isso não seria mais do que um expediente
fraudulento o porquê de tal expediente funcionar é algo que permanece
obscuro. O caráter de classe do estado e da legalidade burguesa é
obstinadamente assumido por Lênin, dito de modo mais exato, concebido de
modo puramente personalista: O estado seria “atado à burguesia por
milhares de fios”. Isso deveria ficar claro sobretudo pela corrupção,
mecanismos de exclusão, possibilidades formais insuficientes de participação,
pauperização do proletariado, a “experiência /.../ [de] cada trabalhador”
(LÊNIN, 2011, p. 64) com a repressão aberta, por parte do estado, contra
greves
11
, e revoltas do proletariado (cf. LÊNIN, 1977a, p. 14; 1918a, pp. 45; 64;
86; 133-5; 1929, pp. 473-4; 477-8). São os desvelamentos da relação entre
‘operações’ financeiras e a alta política” que demonstram o real fundamento
sobre o qual se sustenta a direção do estado na sociedade capitalista” (NIN,
1963a, p. 231). A reflexão sobre o caráter de classe do estado é, portanto, uma
tarefa jornalística, e não científica. Também aqui Lênin se baseia sobretudo
na consideração de Engels de que, na república democrático-burguesa, a
riqueza exerceria seu poder de modo indireto”, o que nesse contexto não
significa nada além de “nos bastidores”, ou seja, na forma “da corrupção
direta dos funcionários públicos” e da “aliança entre governo e bolsa de
valores” (ENGELS, 2012a, p. 217, também citado em LÊNIN, 2011, p. 45).
Permanece obscuro, assim, como esse caráter de classe pode assumir
até mesmo a forma do estado democrático de direito. A concentração
exclusiva no caráter de classe
12
se deve, entre outros motivos, à empreitada
engelsiana no sentido de uma teoria materialista do estado, que Lênin segue
fielmente: Engels constata em Ludwig Feuerbach que o fato de, nas
sociedades de classe, serem todas as necessidades articuladas através da
vontade estatal constituiria “o lado formal da coisa, que se compreende por si
mesma”. A questão principal de uma teoria materialista do estado seria, ao
revés, apenas “o conteúdo desta vontade puramente formal seja do
11
“Qualquer tentativa dos operários por atingir a menor melhoria efetiva da sua situação
provoca imediatamente a guerra civil”; a “burguesia /.../ contrata soldados e reprime a
greve” (LÊNIN, 2019, p. 359). Aqui não apenas se está fazendo referência a um fenômeno
histórico a ausência de um sistema tarifário / de lutas dos trabalhadores
institucionalizadas e juridicamente reguladas como essência (capitalista) do estado. Pelo
uso da expressão “soldados” (mercenários), fica também claro que Lênin não leva a sério o
caráter público da organização moderna da força. Para falar com Pachukanis: em Lênin, o
estado se transmuta em aparato privado da classe dominante.
12
Cf. Arndt: “com a afirmação de que o estado seria instrumento da dominação de classe, a
teoria do estado se move no típico nível da crítica da economia, quando identifica o fato da
exploração, mas seu mecanismo de funcionamento ainda não está desvendado” (1985, p. 90).
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indivíduo ou do estado e saber de onde provém este conteúdo e por que é
precisamente isso o que se deseja, e não outra coisa (ENGELS, 2012b, p.
157).
Uma vez que Lênin confunde democracia com sua forma política (cf.
SCHÄFER, 1994, p. 73) e a vincula a violência estatal, igualdade formal
burguesa, divisão de poderes e princípio parlamentar-representativo
13
,
também ela se sujeita à crítica (LÊNIN, 2011, p. 128) mas não, frise-se, o
princípio majoritário e os órgãos representativos per se (cf. LÊNIN, 2011,
[respectivamente] pp. 128; 86). Lênin constrói, com isso, uma limitada
correspondência entre república democrática e capitalismo: A democracia
corresponde à livre concorrência. A reação política corresponde ao
monopólio” (LÊNIN, 1984, p. 13). À parte a absurdidade histórica dessa
colocação, Lênin consegue também aqui vincular-se à tese, derivada
igualmente da pena de Marx e Engels, da democracia como forma final, do
regime autoritário-bonapartista como forma de existência conservadora
última da dominação burguesa (cf. MARX, 2011b, pp. 36-7). Se isso
representa uma ruptura fundamental com a ortodoxia socialdemocrata,
Lênin recorrerá então em outro ponto, porém, ao modelo de fundamentação
de tal ortodoxia. Ele afirma subitamente que a república democrática
contradiria logicamente o capitalismo “porque ‘oficialmente’ iguala o rico e o
pobre. Isto é uma contradição entre o sistema econômico e a superestrutura
política” (LÊNIN, 1984, p. 15), contradição que poderia ser superada
através de corrupção e do entrelaçamento pessoal entre estado e capital
financeiro. A mediação entre liberdade/igualdade política e não-
liberdade/desigualdade econômica segue, portanto, um enigma para Lênin.
Além disso, ele deveria também considerar a base econômica como
contradição com a base econômica, porque também aqui, com as
determinações do processo de troca, entram em cena os momentos de
equivalência
14
entre todos os proprietários e de ausência de dependência
econômica, o que, no entanto, como demonstrado, é por ele ignorado.
A ignorância relativamente às determinações da estatalidade
democrática de direito e a completa confusão na compreensão da
emancipação política têm também consequências para o conceito de Lênin de
estatalidade de transição e de democracia socialista, em relação aos quais, no
entanto, não nos aprofundaremos aqui (cf. ELBE, 2008, pp. 370 ss;
SCHÄFER, 1994, pp. 71 ss). Porém, deve ao menos ser mencionado que o
13
Cf., sobre os pontos, na ordem em que foram elencados: Lênin (2011, pp. 128; 150, 84-5;
83-6). Para a crítica da democracia representativa (cf. LÊNIN, 2011, pp. 83-4), Lênin serve-
se claramente do argumento crítico republicano radical da vontade popular não
representável em Rousseau (1999, p. 114): no intervalo de alguns anos, o povo tem a
liberdade de escolher seus ‘representantes’ e “[,assim que estes são eleitos,] ele é escravo, não
é nada”.
14
O autor utiliza a expressão “Gleich-Gültigkeit”, o que constitui um jogo de palavras.
Literalmente, trata-se de “validade igual”, ou seja, “equivalência”, tal como traduzido no
texto. Mas o termo remete ao substantivo “Gleichgültigkeit”, que significa “indiferença”. [NT]
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modelo centralizado de Lênin de educação popular e de planejamento
econômico no socialismo representa um coerente desdobramento da tese
engelsiana do estado capitalista desenvolvido como "capitalista global real"
(ENGELS, 2015, p. 314), que cada vez mais suprimiria a anarquia da
produção
15
: uma vez que, para Lênin, o "capitalismo monopolista" é tido
como época da dissolução da dominação da lei do valor, as instituições do
"capitalismo monopolista de estado", sobretudo do "comunismo de guerra"
alemão imperial e da produção em massa taylorista, para ele apresentam-se
economicamente como modelos da economia socialista: no capitalismo
seriam verificáveis amplo planejamento estatal e uma forma direta de divisão
social do trabalho, não mais mediada pelo valor, assim como uma
simplificação de funções administrativas e de setores dispositivos de
atividades (cf. LÊNIN, 2011, pp. 80-2; 88-9; 111-2; 152-3). Com isso, o
socialismo pode ser compreendido simplesmente como um capitalismo de
estado posto a serviço do proletariado
16
.
II. Estado no capitalismo
Hans Kelsen, socialdemocrata moderado e corresponsável pela
Constituição Federal austríaca de 1920, posiciona-se contrariamente à teoria
do estado engelsiana sobretudo em seu escrito Marx ou Lassalle (1924). Na
sequência, abordarei superficialmente o conceito teórico-jurídico de estado
de Kelsen, para em seguida apresentar sua compreensão de estado,
exemplificativa do estatismo socialdemocrata, e como ela se desenvolve em
contraposição à abordagem instrumentalista de Engels/Lênin.
É necessária a diferenciação entre as compreensões política e jurídico-
teórica do estado, porque aqui uma discrepância: o juspositivismo
kelseniano supõe que a validade jurídica é independente estabelecimento
conteudístico de metas. “Toda e qualquer finalidade social pode ser
perseguida” do "modo específico do direito" o da vinculação de um
15
Engels deixa clara, com isso, uma restrita compreensão da produção privada capitalista. Na
Crítica do projeto de programa de Erfurt (ENGELS, 1982), escreve ele: Eu conheço uma
produção capitalista como forma de sociedade, como fase económica; [conheço] uma
produção privada capitalista como um fenômeno que sobrevém desta ou daquela maneira
no interior desta fase. Que significa, portanto, produção privada capitalista? Produção pelos
empresários isolados, e esta torna-se cada vez mais uma excepção. Produção capitalista
através de sociedades por ões não é nenhuma produção privada, mas produção por
conta associada de muitos. E, se passarmos das sociedades por ões aos trusts, que
dominam e monopolizam ramos inteiros da indústria, então, acaba não apenas a produção
privada, mas também a ausência de planejamento”.
16
A Alemanha no ano de 1918 é por ele considerada como a «última palavra» da grande
técnica capitalista moderna e da organização planificada, subordinada ao imperialismo
Jünker-burguês. Ponde de lado as palavras sublinhadas, colocai em vez de estado militar,
Jünker, burguês, imperialista, também um estado, mas um estado de outro tipo social, de
outro conteúdo de classe, o estado soviético, isto é, proletário, e obtereis toda a soma de
condições que dá como resultado o socialismo. (Cf. LÊNIN, 1977b, p. 332)
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comportamento tido por indesejado a um ato considerado negativo,
sobretudo um ato de coerção estatal. O direito não é caracterizado como
finalidade, mas como um determinado meio. (KELSEN, 2008, p. 43)
17
Isso
se aplica ao estado, uma vez que este nada mais é do que um ordenamento
jurídico. O direito é, portanto, uma norma de coerção e uma técnica social. A
obrigação jurídica não se fundamenta na moralidade ou na utilidade do
conteúdo da norma, e nesse ponto Kelsen se diferencia consideravelmente de
Lassalle, sua principal influência no campo da política. O indivíduo é, ao
contrário, "juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma
oposta conduta sua é tornada pressuposta de um ato coercitivo (como
sanção)" (KELSEN, 2009, p. 133). O direito tem a função de produzir um
"estado social desejado" pela instância legislativa, de modo que "ao
comportamento humano que representa a oposição contraditória a tal estado
/.../ é vinculado, como consequência, um ato coercivo" (KELSEN, 2008, p.
40). Com isso, sublinha-se expressamente que "todo e qualquer conteúdo”
pode “ser direito" (KELSEN, 2008, p. 74). No que tange à compreensão
política do estado de Kelsen, ao revés, trata-se de uma definição mais precisa
do conteúdo das tarefas do estado, definição que, em sua perspectiva
juspositivista, é rejeitada e ultrapassa os limites de uma teoria descritiva.
Contrariamente a entendimentos que vinculam a unidade do estado à
identidade natural ou a interações empíricas, Kelsen sublinha inicialmente o
caráter normativo do vínculo estatal. com isso se permitiria falar numa
ordem estatal duradoura. Todos os outros princípios de ordenamento
produziriam no máximo aglomerações efêmeras de massas ou práticas não
compatíveis com os critérios de estado, por exemplo o comércio exterior. A
atuação estatal seria definível apenas juridicamente. Ele recusa um conceito
de estado que se supõe "por trás" do direito um estado que, embora criador
de direito, não seja ele mesmo compreendido juridicamente. É que os atos do
estado são ações que partem de indivíduos determinados. Elas podem ser
atribuídas ao estado, o que nada significa além de que são ações de
indivíduos normativamente autorizados. A diferença entre a ação de um
indivíduo enquanto policial ou guerrilheiro pode ser verificada pela
referência a tais normas:
[O] estado apenas é existente nos atos do estado, que são atos
postos por indivíduos e são atribuídos ao estado como pessoa
jurídica. E tal atribuição apenas é possível com base em normas
jurídicas que regulam especificamente estes atos. Dizer que o
estado cria o direito significa apenas que indivíduos, cujos atos são
atribuídos ao estado com base no direito, criam o direito. Isto quer
dizer, porém, que o direito regula a sua própria criação (KELSEN,
2009, p. 346).
Kelsen diferencia entre imputação e atribuição. A primeira é definida
como "ligação normativa de dois fatos" (KELSEN, 2009, p. 167 p. 425 nota
17
Ele observa que mesmo a função de pacificação não integra necessariamente o direito
(KELSEN, 2009, p. 225).
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de rodapé n. 11) e caracteriza a norma jurídica: se ocorre A, então deve ser B,
em que B é um ato de coerção estatal. Atribuição, ao revés, designa a
vinculação do comportamento de um indivíduo com a comunidade,
ficticiamente concebida como pessoa. Se o estado é o ordenamento jurídico,
então nenhum estatal é ato extrajurídico. É conceitualmente excluída a
possibilidade de injusto estatal (KELSEN, 1962, p. 234). Que o estado seja
uma ordem jurídica, e com isso normativo-coerciva, não significa que com
isso se descreva uma coerção empírica, mas que um ordenamento normativo
declara que, sob determinadas condições, deve ser exercida coerção física
(KELSEN, 1962, p. 82). Isso porque a coação puramente fática o constitui
coerção estatal, pois somente um ato de coerção normativamente ordenado
pode ser identificado como estatal. Uma vez que a pura violência ("ser") não
pode fundamentar a validade da norma ("o que objetivamente deve ser"),
uma outra norma pode fazê-lo. As normas que conferem significado jurídico
a um fato são criadas por um ato jurídico, que por sua vez "recebe de outra
norma seu significado" (KELSEN, 2008, p. 19). Não um fato, mas a
coincidência com o conteúdo de uma norma é o que transmuta um ato
empírico em ato jurídico. A norma, por seu turno, se constituiu por um ato
empírico, que coincide com o conteúdo de uma outra norma, que com isso
transforma tal ato num ato jurídico etc. Isso leva a uma dinâmica regressiva,
caso não se suponha uma última norma, que por sua vez não é posta: a
norma fundamental. Esta é pressuposta por todo aquele que pretenda
interpretar um ordenamento coercitivo como direito. Essa interpretação de
um ato coercivo como direito, no entanto, não é obrigatória, pois Kelsen
rejeita todo critério normativo de conteúdo pré-positivo (ou seja, não
estabelecido empiricamente). Com isso, falta o paradigma com o qual um ato
coercivo específico possa ser comparado e, portanto, ser reputado válido. A
todo ato coercivo pode ser concedido caráter normativo, por meio da
suposição da norma fundamental, de cunho exclusivamente formal
18
. Com
isso, segundo Kelsen, o ato coercivo não é considerado puramente efeito do
indivíduo físico que o executa, mas é atribuído ao estado enquanto
ordenamento jurídico válido. A obediência a atos estatais, assim, não é
obediência à vontade fática de uma pessoa concreta, mas ao estado enquanto
ordem normativa coerciva anônima. Mas isso não diz ainda nada sobre o
estado burguês, que para Kelsen toda ordem coerciva, quando interpretada
juridicamente, deve basear-se numa norma fundamental "dominante". Seu
conceito de forma jurídica é explicitamente a-histórico.
O estado é, por certo, um ordenamento jurídico, mas nem todos os
ordenamentos jurídicos o estado. O ordenamento jurídico estatal
diferencia-se dos outros pelo fato de que aqui normas jurídicas são criadas e
aplicadas por órgãos em divisão funcional de tarefas, pela qual tais atos são
de certa maneira centralizados. Por exemplo, a jurisdição e a execução do
18
A validade objetiva se torna, com isso, subjetiva: anarquismo epistemológico (cf. ELBE, p.
2.011).
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direito são tarefas de órgãos qualificados como tribunais ou unidades da
administração. Em ordenamentos jurídicos pré-estatais, ao contrário, os
"próprios membros da comunidade [jurídica]" (KELSEN, 2009, p. 358) são
dotados de poderes, a) através dos costumes, de criar normas jurídicas, b) de
exercer justiça pelas próprias mãos, c) de prestar assistência, isto é, de
estatuir sanções no caso de ações criminosas por si próprio identificadas.
Em qualquer ordem estatal, segundo Kelsen, uma classe não é
submetida às outras imediatamente, mas todas são subsumidas ao
ordenamento normativo. Nesse sentido, impera sempre a norma, que por sua
vez é um conteúdo (conceito) propositivo não empírico do pensamento
empírico. Uma norma tem por conteúdo que algo deve acontecer. Ela é “um
ato intencional [de vontade] dirigido à conduta de outrem” (KELSEN, 2008,
p. 6). O ato de vontade é um fato empírico; a norma, enquanto conteúdo de
sentido daquele ato, é um dever ser. E "o estado nada mais é do que um
conceito, um conceito de ordenamento!" (KELSEN, 1962, p. 91). A ordem
jurídica estatal não é regularidade de comportamento no sentido da
observação de atos costumeiros, de uma média empírica ou de uma
probabilidade de ações. No ser empírico, Kelsen vislumbra unicamente "um
caos, uma sequência sem gica" de vontades humanas, cuja unidade pode
ser construída por intermédio da "unidade ideal do estado" que, por sua vez,
de modo totalmente neokantiano, "é constituída através do conhecimento
científico" (KELSEN, 1962, p. 123). O estado é o conteúdo de sentido de ações,
ao passo que a probabilidade de ocorrência do comportamento realmente
orientado àquele sentido permanece fora de consideração (e depois, porém,
deve ser novamente recuperada como condição de validade jurídica):
enquanto apenas conteúdo de sentido /.../ ou esquema
interpretativo /.../, o estado existe tanto ou tão pouco quanto o
teorema de Pitágoras: sua existência é sua validade, e nisso ele é
essencialmente distinto da factualidade das ações cujo sentido ele é
(KELSEN, 1962, p. 160).
O estado é, portanto, um complexo de "coisas do pensamento
normativas" (KELSEN, 1962, p. 73). Estas podem, por intermédio da
representação da norma, motivar o querer empírico dos homens, e assim
tornar-se efetivas. O poder estatal é, desta forma, a "força /.../ motivante de
certas representações normativas" (KELSEN, 1962, p. 89) que leva os
homens a exercer coerção física sobre outros, e não o arsenal de armas e as
prisões, ou os grupos de homens que têm isso à sua disposição. Com isso,
Kelsen critica implicitamente a definição de Lênin, retirada de Engels, da
violência estatal como reunião de "homens armados" e de "materiais
acessórios, prisões e instituições coercivas de toda espécie" (ENGELS, 2012a,
pp. 215-6; LÊNIN, 2011, p. 4o). A violência estatal nada mais é do que a
efetividade idealmente mediada do ordenamento jurídico centralizado. Para
Kelsen, portanto, o estado é, assim como Deus, algo que, para ser negado,
devemos apenas tirá-lo da cabeça: A existência de Deus", no sentido em que
mesmo o ateu deve admiti-la,
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é a mesma existência do estado que o anarquista combate,
consistindo na força motivadora de certas representações
normativas. Assim, Deus e estado existem se e na medida em
que alguém crê neles, e são aniquilados - junto com seus imensos
poderes que saturam a história universal - quando o espírito
humano se liberta de tais crenças (KELSEN, 2012, p. 52).
Kelsen, nesse mesmo ponto, elogia expressamente o "anarquismo
como mera crítica do conhecimento" de Max Stirner, com sua "dissolução da
/.../ hipostasia do estado" (KELSEN, 1962, p. 239 - nota de rodapé) e seu
reconhecimento do modo de ser do estado enquanto "fantasma /.../ ficção"
(KELSEN, 2012, p. 52). Nesse sentido posso "eu, que realmente sou eu", a
qualquer momento remover do estado "comedor de grama /.../ sua pele de
leão" (STIRNER apud KELSEN, 1962, p. 239 - nota de rodapé)
19
.
Com isso, movemo-nos, entretanto, na esfera de validade
autossuficiente da norma, porquanto para Kelsen uma validade da norma é
assumida subjetivamente, por meio da aceitação da norma fundamental. Por
outro lado, existem sistemas coercitivos efetivos, e Kelsen decide por atribuir
a estes e somente estes o caráter jurídico(-estatal): ele transforma um
mínimo de efetividade em condição de validade de uma ordem coerciva. Caso
se aceite esse critério, não sobra muito do anarquismo epistemológico. Mas
este é em todo caso irrelevante para ordenamentos coercitivos fáticos:
certamente, é correto que ordens coercitivas só podem ser efetivas se as
pessoas de alguma forma as assimilam (uns porque elas lhes são úteis ou eles
as consideram sagradas; outros porque, por medo da sanção, agem em
conformidade), mas isso não diz nada sobre os as origens e as bases sobre as
quais uma ordem coercitiva surge numa forma histórica específica. As
19
Trecho estendido da passagem de Stirner citada por Kelsen (STIRNER, Max. O único e sua
propriedade. [1845] Trad. João Barrento. Lisboa: Antígona, 2004, p. 177-178): Um estado
existe sem que eu tenha de fazer nada por isso: eu nasço nele, cresço nele, tenho os meus
deveres para com ele e tenho de lhe prestar homenagem”. Por sua vez, o estado recebe-me
na sua “graça”, e eu vivo dela. Assim, a existência autónoma do estado fundamenta a minha
dependência, a sua “naturalidade”, o seu organismo, exigem que a minha natureza não
cresça livremente, mas se lhe ajuste. Para que ele se possa desenvolver de forma natural,
aplica-me a mim a tesoura da “cultura”; dá-me uma instrução e uma educação que lhe
servem a ele, mas não a mim, e ensina-me, por exemplo, a respeitar as leis, a não agir contra
a propriedade do estado (isto é, propriedade privada), a venerar uma autoridade, divina e
terrena, etc.; em suma, ensina-me a ser irrepreensível, exigindo com isso que eu sacrifique”
a minha singularidade própria a algo de “sagrado” (e muitas coisas podem ser sagradas, por
exemplo a propriedade, a vida dos outros, etc.). Nisso consiste o tipo de cultura e formação
que o estado me pode dar: educa-me para eu ser uma “ferramenta útil”, um “membro útil da
sociedade”. Todo o estado tem de fazer isso, tanto o popular como o absolutista ou
constitucional. Tem de fazê-lo enquanto nós continuarmos a insistir no erro de que ele é um
eu, o que o autoriza a atribuir a si próprio o nome de uma “pessoa moral, mística ou estatal”.
É esta pele de leão do eu que Eu, que sou verdadeiramente eu, tenho de arrancar a esse
imponente comedor de cardos. Em quantos roubos, de toda a espécie, não tive eu de
consentir ao longo da história do mundo, concedendo a Sol, Lua, estrelas, gatos e crocodilos
a honra de passarem por eus; depois veio Jeová, Alá e Nosso Senhor e ofereci-lhes também o
presente do eu; e vieram famílias, tribos, povos e por fim até a humanidade, e todos foram
honrados com o nome de eus; e veio o estado, a Igreja, com a pretensão de serem eus, e eu
deixei-me ficar calmamente a olhar. [NT]
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condições de reprodução socioestruturais do estado permanecem aqui
ocultas, e o discurso abstrato do ‘tirem o estado da cabeça’ não serve a
ninguém que viva numa ordem coercitiva histórico-específica
20
.
Certamente Kelsen está muito distante de avalizar um "anarquismo
ético-político" que "nega absolutamente toda validade às normas coativas
obrigatórias " (KELSEN, 2012, p. 52). Ao revés, ele não enxerga, a partir do
instinto natural egoísta do homem, qualquer outra possibilidade de vida em
conjunto que não por intermédio de uma tal ordem coerciva, isto é, ele
reintroduz as condições materiais do estado enquanto condições
antropológicas. Não seriam condições específicas de reprodução material,
mas a eterna natureza humana que faria o estado necessário. A "natureza do
homem" produziria espontaneamente "exploração econômica", e deveria ser,
por meio do estado, "permanentemente refreada" (KELSEN, 1931, p. 467).
Nesse ponto, não nada de extraordinário na afirmação de Kelsen de que o
estado seria obra dos homens e “da essência do estado, consequentemente,
não se pode derivar nada que contra o homem" (KELSEN, 2012, p. 52).
Isso pode dizer respeito a estados específicos, não ao estado enquanto tal.
Com isso, entretanto, novamente se deduz indiretamente algo sobre o estado
no contraste com o homem: 'você não pode existir sem estado (ou no mínimo
sem ordem coercitiva)'!
vimos, na contradição entre anarquismo voluntarista da validade
(cada um decide por si se uma ordem coercitiva é direito/estado) e
antropologismo da coerção (ordens coercitivas brotam inevitavelmente da
natureza humana), que Kelsen, apesar de todos os esforços no sentido da
pureza metodológica de sua teoria do direito, não consegue deixar de se
apresentar como teórico político. Se ele também abdicasse de tais assertivas
materiais mínimas sobre os fundamentos, origens e funções de ordens
coercitivas, ele permaneceria preso ao nirvana teórico da validade o estado
seria então, na realidade, pouco diferenciável do teorema de Pitágoras.
Kelsen via a função da ordem normativa estatal em domar a natureza
a-social dos homens e protegê-los uns dos outros, sobretudo da exploração e
da violência. Com essas definições, ele abertamente se posiciona na disputa
política no seio da socialdemocracia europeia após a I Guerra Mundial. Na
compreensão tradicional do marxismo a respeito do estado, em tal período,
dois modelos se contrapõem: para Engels e Lênin, como visto, o estado é
entendido como instrumento da classe economicamente dominante para a
20
Enquanto o anarquismo epistemológico se satisfaz com a assertiva de que se ninguém
acreditar no estado, ele não existirá”, a teoria materialista do estado investiga a razão de não
ser mero acaso que as pessoas acreditem no estado e produzam uma ordem coercitiva. O
segredo reside na formulação: as pessoas têm de conferir à sua vontade condicionada por
essas relações* [sociais específicas] bem determinadas uma expressão geral como vontade
do estado, como lei” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318, grifos IE).
*N.T.: na edição da Boitempo por nós referenciada, comete-se um equívoco na tradução da
palavra Verhältnisse utilizada por Marx e Engels originalmente, que foi vertida para
“condições” (e não relações, como é o correto).
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opressão dos explorados. A forma específica da organização moderna da
violência é ignorada, ou desqualificada como preconceito burguês. A
socialdemocracia majoritária, ao revés, compreende o estado como instância
de proteção dos subjugados, ferramenta para um desenvolvimento cultural
superior do homem e garantia do bem-estar geral (cf. LASSALLE, 1963, pp.
235-6). A forma neutra do estado moderno, sua autonomia relativa, é posta
de lado não como ilusão, mas é tida como encarnação da moralidade geral.
Kelsen, apesar de rejeitar em absoluto o “páthos” moral, defende a segunda
posição.
Ele considera O estado e a revolução, de Lênin, a autêntica
interpretação da "teoria do estado" marxiana: ele a teria "reconstituído" por
meio de seu escrito (KELSEN, 1967, p. 264). Ou seja, ele imputa a Marx uma
compreensão instrumentalista do estado, segundo a qual o estado teria
"servido exclusivamente à exploração de uma classe pela outra" (KELSEN,
1967, p. 266), representaria apenas "um comitê executivo dos capitalistas"
(KELSEN, 1967, p. 268), e até mesmo "só poderia ser a classe proprietária"
(KELSEN, 1967, p. 293). Kelsen compartilha essa compreensão do estado
com marxistas de seu tempo; ele coloca apenas um sinal negativo. Em
especial após a I Guerra Mundial, contudo, essa tendência se impõe também
no marxismo ortodoxo da II Internacional, o que Kelsen observa com
satisfação. Ele cita, para fins de comprovação, Kautsky, Bauer, Renner,
Hilferding, Cunow
21
e também Engels. Com isso, Kelsen demonstra, em parte,
uma visão acerca dos problemas teóricos do estado mais clara que a dos
chamados socialdemocratas: em especial, Kelsen reconhece corretamente a
"posição claudicante" de Engels (KELSEN, 1967, p. 277 - nota de rodapé)
entre instrumentalismo estatal (estado como meio não independente) e
diagnóstico de autonomização (estado como instância relativamente
autônoma, mediadora e localizada sobre as classes). Engels fala de
independência apenas momentânea do estado, por meio de contrapesos entre
as classes, que ele, por outro lado, qualifica como aparência: o estado seria
"ferramenta" direta da classe dominante. Somente "por exceção”, há períodos
nos quais a violência estatal, em contexto de "equilíbrio" entre classes, "como
mediador aparente, adquire certa independência momentânea relativamente
em face das classes" (ENGELS, 2012a, p. 216). Isto é, seu diagnóstico de
autonomização é sustentado puramente em termos da sociologia dos grupos
e referido a tendências bonapartistas de autonomização do executivo, que
descrevem algo essencialmente mais específico que a autonomia relativa do
estado. Kelsen reconhece também, mais claramente que os mais
entusiasmados estatistas radicais do austromarxismo de direita, que a
questão não pode versar sobre um equilíbrio de forças entre classes na
Áustria do pós-guerra (KELSEN, 1967, p. 287) e, por outro lado, que a ideia
21
Renner afirma que “já se verifica hoje o núcleo do socialismo em todas as instituições do
estado capitalista” (apud KELSEN, 1967, p. 272). Cunow finalmente conclui que hoje seria
verdadeiro o seguinte: “O estado somos nós” (apud KELSEN, 1967, p. 290).
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do estado como estado popular não estaria sociologicamente correta somente
com a existência de um governo de coalizão burguês-socialdemocrata, como
pensa Otto Bauer (cf. KELSEN, 1967, pp. 274-5)
22
: contrariamente à
compreensão do estado como instrumento da classe dominante, Kelsen fala
afinal no "colapso" da "teoria política marxista" (KELSEN, 1967, p. 271),
deflagrado pelas tendências socialistas estatais, pela organização sindical do
proletariado (KELSEN, 1967, p. 286), pelas crescentes possibilidades de
participação política - até a composição do governo, na Alemanha e na
Áustria, por partidos proletários (KELSEN, 1967, pp. 275-6; 290) - e pelo
nacionalismo de massas na I Guerra Mundial (KELSEN, 1967, pp. 268-9).
Agora estaria claro que o estado jamais seria puro instrumento de uma
classe, mas havia sempre se revelado um instrumento útil para proteger os
despossuídos contra exploração demasiadamente severa (KELSEN, 1967, p.
267). O ordenamento jurídico estatal seria uma estrutura de um
compromisso que "produz um equilíbrio de forças entre as classes" (KELSEN,
1967, p. 266), que deveria em geral ser também aceito pelos dominados, de
modo que os instrumentos coercivos do estado, colocados em primeiro plano
de maneira unilateral por Engels/Lênin, possam ser afinal utilizados
23
e,
assim, seja tal ordenamento compreendido como resultante de uma "relação
social de forças" (KELSEN, 1967, p. 274). Também aqui são novamente
sublinhadas a relacionalidade [NT: Relationalität] e a idealidade do estado,
em contraposição à representação de sua coisalidade [NT: Dinghaftigkeit] e
de seu caráter de fortaleza. Assim, o marxismo não conseguiria explicar a
"tendência imanente [dos órgãos estatais] a se autonomizar" (KELSEN, 1967,
p. 268). Kelsen "fundamenta" essa tendência de modo psicologista-metafísico,
a partir de um desejo por poder que é indestrutível e independente de todas
as condições econômicas /.../, e que domina o desenvolvimento de todas as
instituições conduzidas pelos homens", bem como a partir de ethos
preventivo de revoluções da burocracia, que induziria à atenuação da
oposição entre as classes e colocaria os funcionários do estado em "oposição
/.../ aos capitalistas" (KELSEN, 1967, p. 268). O estado seria, assim, "estado
não somente dos possuidores, mas também /.../ dos despossuídos" (KELSEN,
1967, p. 269), "também um estado dos proletários" (KELSEN, 1967, p. 274), o
que seria ainda fortalecido por meio de sua reivindicação de representar o
ideal nacional. Isso porque os despossuídos nunca seriam "tão despossuídos
22
Bauer reconhece na fase do governo de coalizão austríaco após a Primeira Guerra Mundial
a seguinte situação: “tratou-se de uma república na qual nenhuma classe era forte o
suficiente para dominar as demais, e com isso todas as classes deviam compartilhar o poder
estatal entre si. Então, todas as classes do povo tinham de fato sua participação no poder
estatal, a efetividade do estado era de fato a resultante das forças de todas as classes do povo;
desse modo, podemos designar essa república como república popular” (apud KELSEN, 1967,
pp. 275-6).
23
Cf. Kelsen: “também a violência’ opera, em última instância, através do esrito (1967, p.
285).
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/.../ que não possuíssem sua nacionalidade e estivessem decididos a manter
essa posse" (KELSEN, 1967, p. 269).
Mesmo que isso seja "um bem imaginário", para os proletários,
entretanto, seria uma realidade psíquica, um bem pelo qual eles estariam até
mesmo dispostos a dar a vida. Também o nacionalismo é antropologizado:
Kelsen fala do "instinto" de submissão e de autoeliminação do homem. Além
disso, o irremediável "desejo por poder" buscaria sempre novas "máscaras"
(KELSEN, 1962, p. 25), para satisfazer sua necessidade de poder e
importância e para submeter indiretamente os outros, pois estes estão
submetidos à autoridade do mesmo modo que nós mesmos, e indiretamente
é possível exaltar a si mesmo como parte da respectiva comunidade através
de soberba religiosa ou de glorificação nacional (KELSEN, 2012, p. 41). Uma
vez que o estado, portanto, traria em si essas tendências "popular-
estatistas", tratar-se-ia apenas de fortalecer tais tendências por vias
reformistas, a fim de satisfazer às demandas do proletariado
24
.
A teoria do estado de Kelsen funde uma euforia em torno da direção -
ele fala das "ilimitadas possibilidades que o estado oferece em termos de
técnica social" (KELSEN, 1967, p. 270) com um sociologismo no que toca
ao conteúdo das normas jurídicas do estado ele fala de uma resultante de
interesses de grupos e remete a autonomização do estado a tendências
psicológicas ou conscientemente estratégicas. Mas, se houvesse um impulso
do homem por poder que levasse à autonomização do político, então deveria
existir em todas as épocas uma organização de poder autônoma,
"independente" (KELSEN, 1967, p. 268) e ao lado das relações 'econômicas',
o que não é o caso. Por certo, dificilmente pode-se negar que haja uma
aspiração por poder por parte dos funcionários do estado e um imperativo
organizatório de autopreservação. Isso pressupõe apenas aquilo que Kelsen
pretende explicar a partir por meio do impulso ao poder: a existência das
instituições a serem preservadas. Afora isso, coloca-se a questão de se a
tomada em conta das necessidades proletárias, se compromissos entre
interesses burgueses e dos trabalhadores ou se a presença de partidos do
proletariado no parlamento ou no governo alteram algo a respeito do caráter
burguês do estado.
O que Kelsen aqui chama de conteúdo das normas jurídicas é
exatamente aquilo que, em Marx, constitui a forma do estado burguês, seu
caráter de poder público "que não pertence a ninguém em particular, que está
acima de todos e que se endereça a todos (PACHUKANIS, 2017, p. 148).
Essa forma escapa a Kelsen devido à carência de uma teoria econômica que
pudesse explicá-la a partir das específicas relações de troca de mercadorias, e
é por ele reduzida a uma teoria de disputa de interesses entre grupos sociais.
Kelsen ontologiza normativamente a forma jurídica numa esfera de validade
24
Kelsen explica o suposto posicionamento crítico ao estado por parte dos primeiros
socialdemocratas a partir do caráter avesso a reformas e antidemocrático do império
(KELSEN, 1967, p. 287).
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autossuficiente (a norma deve sempre imperar), e ela deve ser a posteriori
materialmente preenchida por interesses os conteúdos histórico-específicos
são reduzidos a uma soma de conteúdos de vontade e de interesses
particulares. Dito de outro modo: assim como Lênin, Kelsen compreende o
caráter burguês do estado moderno como expressão da predominância de
interesses de classe burgueses, o como forma institucional de
separação/relação entre política e economia. Se outros interesses que não os
da classe burguesa encontram também acesso ao estado, então, segundo esse
ponto de vista, está fundamentalmente colocado em questão o caráter de
classe do estado, e liberado o caminho para a ideologia do estado popular
25
. E,
com isso, o sóbrio juspositivista Kelsen se transmuta em social-democrata
estatista, que, como alternativa a Marx, recomenda Ferdinand Lassalle aos
ideólogos de uma substância moral do estado
26
e de um nacional-socialismo
27
.
III. Estado do capital
Nem a doutrinação de Engels por Lênin, nem a crítica a Engels por
Kelsen podem dar uma resposta satisfatória à clássica questão formulada por
Pachukanis em 1924:
Por que o aparelho de coerção estatal não se constitui como
aparelho privado da classe dominante, mas se destaca deste,
assumindo a forma de um aparelho de poder público impessoal,
separado da sociedade? (PACHUKANIS, 2017, p. 143)
Pachukanis reconhece, portanto, que, com o estado moderno,
apropriação econômica e dominação política se dissociam, e a detenção do
domínio se torna despersonalizada. O estado é "um da classe dominante
particular e independentes /.../, que figura como força impessoal"
(PACHUKANIS, 2017, p. 144). A tradição da teoria da forma, ligada a
Pachukanis, relaciona-se, logo, também à definição de Engels do estado como
"estado do capital" e "capitalista global ideal”. Essa definição compreende o
estado não como ferramenta da burguesia, mas como uma
25
A respeito do dogma da estrutura externa ao sistema [systemfremden NT] do estado
democrático como estado somente no capitalismo (cf. BUSCH-WEßLAU, 1990, pp. 96-101).
Também os críticos do revisionismo Kautsky e Luxemburgo compartilharam, conforme a isto,
a posição de seus opositores no que tange ao suposto caráter exterior ao sistema
[systemfremden] da democracia (pp. 110-1). Criticamente a Kautsky, cf. também Projekt
Klassenanalyse (1976, pp. 84-104).
26
Cf. Lassalle: a finalidade do estado não é, portanto, a de proteger apenas a liberdade
pessoal e a propriedade do indivíduo isolado, com as quais este, segundo o pensamento da
burguesia, ingressa no estado ingressa; a finalidade do estado é a de, ao revés, através
dessa associação, colocar os indivíduos no posição de alcançar essas finalidades e um tal
nível de existência que eles enquanto indivíduos jamais puderam alcançar, capacitá-los a
exigir um conjunto de formação, poder e liberdade que para eles enquanto indivíduos seria
simplesmente inalcançável” (1963, p. 235).
27
Kelsen afirma isto (1967, pp. 294 ss) de bom grado.
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organização que a sociedade burguesa monta para sustentar as
condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra
ataques tanto dos trabalhadores como de capitalistas individuais
(ENGELS, 2015, p. 314).
Com essa indicação a respeito da função, porém, ainda não é
esclarecida a forma específica da estatalidade moderna.
A teoria da forma do estado indaga por que a coerção direta assume
duradouramente o formato de uma força monopolizada, extraeconômica e
pública, que domina por meio de leis abstratas e gerais; por que essa
violência reproduz a dominação do capital e, todavia, é reconhecida como
neutra e legítima. Não é exigido que se exponha uma história do estado
moderno, ou que se "expliquem" suas práticas a partir da funcionalidade
destas para a economia. A análise o precisa repassar o curso da história,
mas /.../ expor as formas na relação em que logicamente figuram, isto é, na
relação em que elas /.../ se reproduzem sob as condições de uma formação
social /.../ específica" (BLANKE et al., 1974, p. 65). A separação entre política
e economia vale, assim, tanto como “consequência quanto como pressuposto
(BLANKE et al., 1974, p. 69 - nota de rodapé) desse sistema. Investiga-se a
reprodução perene da separação [Diremtion NT] da economia e da política
sobre as próprias bases do modo de produção capitalista, e busca-se a análise
da relação sistemática de momentos necessários e mutuamente sustentados
de um ciclo de reprodução: não economia sem política, não política
sem economia. A sociedade civil, segundo os teóricos da forma, necessita do
estado na forma de sua separação em face dela mesma, separação que é ao
mesmo tempo a forma da relação constitutiva do estado para com tal
sociedade. Trata-se de explicar tanto a autonomização real quanto o laço em
comum constitutivo da política e da economia.
Os teóricos da forma reconhecem que partir diretamente das relações
de classe leva necessariamente a que se desperceba a forma específica da
organização moderna do poder. Ao contrário, dever-se-ia começar com a
maneira histórico-específica dos processos materiais de reprodução no
capitalismo: com a sociabilização do trabalho mediada pela troca e a
exploração do mais-trabalho. Com isso, a esfera de circulação funciona como
único ponto de partida possível para uma explicação do estado. A relação
entre forma mercadoria e forma estatal é concebida como mediada pela
forma jurídica. A reconstrução dessa “relação genética e identidade estrutural
entre valor e direito” (BLANKE et al., 1974, p. 73), ou melhor, entre valor e
direito/estado, orienta-se, portanto, fortemente pelas reflexões de
Pachukanis.
A relação de troca das mercadorias é entendida como relação de
mediação coisal-econômica [sachlich-ökonomischer - NT](BLANKE et al.,
1974, p. 70), como relação especificamente social entre coisas, relação em que
as coisas são postas por pessoas. As pessoas relacionam-se apenas por
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meio dessas coisas sociais, enquanto representantes de mercadorias
28
. A
relação social dos possuidores de mercadorias é mediada pelos produtos do
trabalho; eles não estão, no que tange à socialização de seus trabalhos, em
relação social direta uns com os outros. A relação de valor, enquanto relação
social entre coisas e autonomizada no dinheiro, implicaria uma relação social
específica, indireta das pessoas, que, afinal, as coisas “não podem ir por si
mesmas ao mercado” (MARX, 2013, p. 159). Ao mesmo tempo em que a
relação de valor, no que tange à constituição da forma econômica como
abstração real seria mantida independentemente da vontade dos homens
(cf. BLANKE et al., 1974, p. 70), ela conteria uma relação específica de
vontade dos possuidores de mercadoria uns com os outros, para
reciprocamente relacionar os produtos de seus trabalhos como mercadorias,
isto é, para trocá-los, e não deles se apropriar pela violência.
A "forma valor deve, portanto, 'do lado subjetivo', encontrar uma
forma adequada que permita unir os proprietários privados enquanto
sujeitos" (BLANKE et al., 1974, p. 68); as relações 'coisais' dos produtos do
trabalho têm lugar quando "os indivíduos se comportam de modo
adequado ao movimento do valor" (BLANKE et al., 1974, p. 73). Uma
abstração real dos valores de uso e dos trabalhos concretos exigiria, também,
uma abstração real dos homens enquanto indivíduos concretos com
propriedades diversificadas, o que constituiria os indivíduos como sujeitos de
direito iguais. Enquanto representantes de mercadorias de igual valor e com
livre movimento, os homens se reconhecem mutuamente como proprietários
privados livres e iguais de seus produtos, e o expressam no acordo de
vontades mutuamente vinculante, no contrato como "figura jurídica
originária" (BLANKE et al., 1974, p. 71): eles são, em igual medida,
possuidores de mercadorias, têm absoluto poder de disposição sobre a
própria mercadoria; não existe coerção extraeconômica para que seja
realizada a troca, mesmo com possuidores de mercadorias determinados, e
pode-se obter apenas um título de propriedade por meio da alienação do
próprio título. A forma abstrata do direito deve-se à "forma da relação do
trabalho social" (BLANKE et al., 1974, p. 70)
29
, mediada por coisas. Quando
Marx, então, diz que o conteúdo do direito define a forma jurídica, ou que
esta expressa aquela
30
, apenas fala de como esse conteúdo, a relação
econômica, exibe uma forma específica: a do valor como forma de
sociabilização de trabalhos privados-dissociados e de produtos, relação que
tem de reproduzir-se na relação de troca dos atores. De forma alguma pode
28
Cf. Marx: "os indivíduos confrontam-se apenas como proprietários de valores de troca, e
como tais deram-se reciprocamente uma existência objetiva através de seu produto, as
mercadorias. Sem essa mediação objetiva, eles não têm relação uns com os outros" (1980, p.
53).
29
Cf. também a definição de forma jurídica de Cerroni, como "forma da relação de vontade
dos indivíduos isolados, que através da real mediação das coisas são postos socialmente em
relação uns com os outros" (1974, p. 91).
30
Marx (2013, p. 159) fala também no reflexo do conteúdo através da forma jurídica.
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com isso estar-se referindo a que um particular interesse de classe ou uma
vontade particular diretamente se erija em direito, como se supôs na teoria
jurídica soviética (cf. ELBE, 2008, pp. 388-9).
no nível do processo de troca, deveria ser constatado o caráter
contraditório do interesse comum dos possuidores de mercadorias como
universalidade dos interesses egoístas” (MARX, 2011a, p. 188): a forma de
socialização, a forma da troca de equivalentes seria para os produtores
privados isolados apenas meio para os fins de perseguição de seus interesses
particulares. A apropriação da propriedade alheia seria definida como
conteúdo, ou melhor, como motivo da socialização.
[O] interesse comum, que aparece como motivo do ato como um
todo, é certamente reconhecido como fact por ambas as partes,
mas não é motivo enquanto tal, ao contrário, atua, por assim dizer,
por detrás dos interesses particulares refletidos em si mesmos, do
interesse singular contraposto ao do outro. (MARX, 2011a, p. 187)
Do fato da socialização indireta, seguir-se-ia, portanto, a tendência
espontânea dos possuidores de mercadorias à violação das leis de
apropriação da troca de mercadorias
31
. Na forma jurídica do contrato, na qual
os atores mutuamente se reconhecem como proprietários privados e seria
vinculantemente fixado o acordo das relações de vontade de ambos os
possuidores de mercadorias em relação à forma do ato de troca”, não seria
ainda revogada [aufgehoben NT] a contrariedade de interesses dos
possuidores de mercadorias resultante da contradição entre valor de uso e
valor de troca” (LÄPPLE, 1976, pp. 126-7). A reprodução material dos
indivíduos em relações mediadas pela troca implicaria, portanto, exigências
contraditórias de comportamento, que necessitariam de uma forma de
movimento. Pachukanis constata que, entre os sujeitos do mercado coagidos
à concorrência devido ao ordenamento da propriedade privada,
[nenhum] deve ser capaz de surgir na qualidade de reguladora do
poder da relação de troca, mas, para isso, é preciso uma terceira
parte, que encarne aquela garantia mútua que os possuidores de
mercadorias na qualidade de proprietários dão um ao outro e que
são, consequentemente, as regras personificadas pela sociedade de
possuidores de mercadorias (PACHUKANIS, 2017, p. 150).
Aos proprietários de mercadorias defronta-se sua própria
racionalidade de cooperação sob condições antagônicas, enquanto instância
coerciva especial.
A forma jurídica estaria, no estado, por meio de uma força coercitiva
extraeconômica, codificada ("certeza jurídica quanto ao conteúdo") e
31
Cf. Läpple (1976, p. 126), bem como Marx e Engels: a atitude do possuidor de mercadorias
"para com as instituições de seu regime" é a seguinte: "ele as transgride sempre que isso é
possível em todo caso particular, mas quer que todos os outros as observem" (MARX;
ENGELS, 2007, p. 181). Os possuidores de mercadorias têm, portanto, " de conferir à sua
vontade condicionada por essas relações bem determinadas uma expressão geral como
vontade do estado, como lei" (MARX; ENGELS, 2007, p. 318).
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garantida ("certeza quanto à execução"
32
), o que constituiria as funções
legislativa e executiva do estado. Essa violência seria extraeconômica, pois a
coerção que ela exerceria sobre os sujeitos de direito deveria estar situada
fora das coerções coisais da circulação (dependência recíproca dos atores em
divisão do trabalho na produção privada, redução objetiva do trabalho
individual-concreto à medida social média do trabalho abstrato, coerção
"voluntária" à venda da força de trabalho), para que ainda possa se falar em
troca (BLANKE et al., 1974, pp. 169-70). A apropriação não pode, portanto,
suceder mediada pela violência; a violência tem de ser monopolizada para
além do campo de disposição dos guardiães de mercadorias isolados, numa
instância destacada e, se necessário, coagir violentamente à eliminação da
violência direta na economia
33
. A lei geral (em oposição ao privilégio no
feudalismo), a norma geral é a forma das medidas legislativas e executivas
estatais. Esta norma geral atua como princípio formal do estado, que seria
adequado às relações jurídicas anônimas da esfera da circulação, na qual os
indivíduos se inter-relacionam apenas como representantes de mercadorias
de igual valor: "seu pressuposto é a igualdade abstrata, portanto seu efeito
não pode ser outro que não um efeito igual para todos " (BLANKE et al., 1974,
p. 79). Regras estatais têm, por conseguinte, de assumir uma forma geral-
abstrata, normas devem ter validade sem consideração à pessoa concreta,
medidas estatais devem incidir em nome dessa forma legal, enquanto
dominação sem sujeito (BLANKE et al., 1974, pp. 72-3). Sublinha-se que a
realidade da forma abstrata-geral do estado de direito seu caráter de poder
coercivo extraeconômico que reina sobre todos os possuidores de
mercadorias em igual medida por meio de normas gerais e em nome dessa
forma legal não desaparece pela consideração das relações de classe, e não
se revela como névoa puramente ideológica. As determinações da circulação
simples (M-D-M), das quais provém a reconstrução da forma estatal, seriam
também determinações reais da relação de capital conceitualmente
desenvolvida (D-M-D'); as "modificações internas de função que surgem com
a emergência do capital não alteram em nada essa forma exterior" (BLANKE
et al., 1974, p. 73).
Devido à unidade [Ineinanders - NT] dialética - não reconhecível
empiricamente por força da mistificação do salário (MARX, 2013, p. 611) de
liberdade/igualdade no nível da circulação e ausência de
liberdade/desigualdade no nível da produção, o estado burguês preservaria
seu caráter duplo, como estado de classe e estado de direito que, em virtude
de sua função de estado de direito, de verdadeira garantia neutra do status
de proprietário privado de todos os possuidores de mercadorias, garantiria ao
mesmo tempo as condições de reprodução da relação de classes:
32
Ambas as expressões em Blanke et al. (1974, p. 72 - nota de rodapé n. 47).
33
"(...) segurança jurídica como exigência básica produz a coerção extraeconômica"
(BLANKE et. al., 1974, p. 72).
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Garantia de propriedade, que se refere à propriedade de
mercadoria, significa portanto, primariamente, garantia da forma
determinada do processo de produção, da relação do capital. A
partir da forma do direito, não se pode perceber, no todo, qualquer
mudança de função. Quanto à forma, é propriedade = propriedade
(e também isso não é uma “ilusão”! O poder coercitivo
extraeconômico protege também o direito de propriedade da força
de trabalho). Em termos de conteúdo, porém, a proteção da
propriedade do capital significa, ao mesmo tempo, proteção da
dominação do capital sobre o trabalho assalariado. (BLANKE et al.,
1974, p. 75)
O direito positivo pode, por conseguinte, ser compreendido como
forma de mediação e de movimento da relação de classes: o ato de troca sob
forma jurídica soluciona o problema específico dessa formação da
“conjugação de produtores e meios de produção sobre a base de sua
separação” (TUSCHLING, 1976, p. 16), e de maneira tal que, através da forma
específica de conjugação, essa separação é continuamente reproduzida. Isso
se tornaria possível na medida em que o direito abstrai das determinações,
em termos de conteúdo, dos possuidores de mercadorias e de seus valores de
uso, e a ambas as partes do ato de troca ‘trabalho assalariado-capital’,
tão logo sejam considerados como vendedores /.../, atribua-se a
apropriação do valor de uso da mercadoria alienada de um ao outro
ao trabalhador assalariado, portanto, o valor de uso da
mercadoria equivalente, e ao capitalista o valor de uso da força de
trabalho (TUSCHLING, 1976, p. 36).
Por meio disso, estaria garantida ao capitalista tanto a qualidade
gratuita do trabalho de preservar o valor dos meios de produção, como
também a parte material geral dos produtos do mais-valor produzido e
assim a reprodução da separação entre produtores e meios de produção como
resultado do processo de produção capitalista. Uma vez que o trabalhador,
por meio do ato de troca e sua forma contratual, teria concordado em “ceder
ao comprador o valor de uso de sua mercadoria temporariamente, assim
como o vendedor /.../ de todas as outras mercadorias promete ceder ao
comprador o valor de uso da mercadoria por outra equivalente”
(TUSCHLING, 1976, p. 37), não teria ele, igualmente, qualquer pretensão
jurídica ao produto por ele produzido.
Com essas poucas observações, foram expostos unicamente os
alicerces básicos abstratos da argumentação analítico-formal
34
. Deve,
contudo, ter ficado claro que esse conceito, por si, pode resgatar a ideia de
Engels a respeito do estado do capital e, com isso, evitar tanto a consideração
isolada e a entronização da forma abstrata-geral do estado na
socialdemocracia quanto a consideração isolada de seu particular conteúdo
de classe por Engels e Lênin. Estes não conseguem explicar como o conteúdo
de classe assume a forma do estado de direito; aquela não consegue explicar
34
Cf., mais minuciosamente, Elbe (2008, pp. 319-442), em especial quanto à crítica da tese
kelseniana de que o estado social seria uma parcela de socialismo no capitalismo.
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como essa forma reproduz necessariamente o conteúdo de classe. Fica
também claro que, na perspectiva analítico-formal, o caráter “burguês” do
estado é estabelecido num nível muito mais profundo que o do exercício
interessado de influência ou das relações políticas de força.
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Como citar:
ELBE, Ingo. Estado dos capitalistas ou estado do capital? Linhas de recepção
do conceito de estado de Engels no culo XX. Trad. André Vaz. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
pp. 168-93, jul./dez. 2020.
Data do envio: 22 jul. 2020
Data do aceite: 9 ago. 2020