DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.588
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
432
Capitalismo periférico: do desenvolvimento atrofiado à
reiteração das desigualdades globais
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
1
Resumo: Após a II Guerra Mundial, parte importante do eixo industrial dos
países centrais deslocou-se do Ocidente para o Japão, Tigres asiáticos e, mais
recentemente, China. Nesse período, países como Argentina, México, Brasil e
África do Sul também passaram por forte industrialização. Porém, eles nunca
foram centrais como o Japão e nem experimentaram as condições excepcionais
que permitiram aos Tigres asiáticos ascenderem a essa posição. Igualmente,
também não se tornaram, como a China, um misto de atraso e modernidade
permeado por muitas indústrias de alta tecnologia e pesquisa de ponta. Por
meio da apresentação e análise de algumas informações econômicas e sociais
obtidas em bancos de dados de organismos internacionais, objetiva-se
demonstrar como a imensa maioria dos países de industrialização hipertardia
continua ocupando posições desfavoráveis na divisão mundial do trabalho, na
hierarquia de poder dos estados e reproduzindo enorme desigualdade interna
entre seus cidadãos. Nesse sentido, por subvalorizar as lutas de classes
nacionais e a força econômica inibidora que é a concorrência das empresas dos
países centrais, considera-se que, cultivando expectativas de desenvolvimento
sem rupturas revolucionárias, as ideias reformistas precisam ser
definitivamente enterradas.
Palavras-chave: capitalismo; sistema-mundo; países centrais; países
periféricos; China.
Peripheral capitalism: from stunted development to the
reiteration of global inequalities
Abstract: After the II World War, an important part of the industrial axis of
the central countries moved from the West to Japan, Asian Tigers and, more
recently, China. During this period, countries like Argentina, Mexico, Brazil
and South Africa also underwent strong industrialization. However, they were
1
Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Autor de John Stuart Mill: apontamentos críticos
às relações entre propriedade, liberdade e poder político (Charleston, USA: CreateSpace, 2014)
e co-organizador de Cem anos da Revolução de Outubro (1917-2017): balanços e perspectivas
(Londrina: Eduel, 2020). E-mail: ronaldogaspar@uel.br.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
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never as central as Japan, nor did they experience the exceptional conditions
that allowed Asian Tigers to rise to that position. Nor have they, like China,
become a mixture of backwardness and modernity permeated by many high-
tech and cutting-edge research industries. Through the presentation and
analysis of some economic and social information obtained from databases of
international organizations, the objective is to demonstrate how most
countries with hyper late industrialization continue to occupy unfavorable
positions in the world division of labor, in the hierarchy of power of the States
and reproducing enormous internal inequality among its citizens. In this
sense, by underestimating the struggles of national classes and the inhibiting
economic force that is the competition of companies from central countries, it
is considered that, cultivating expectations of development without
revolutionary ruptures, reformist ideas must be definitively buried.
Keywords: capitalism; world-system; central countries; peripheral
countries; China.
Capitalismo periférico: del desarrollo atrofiado a la
reiteración de las desigualdades globales
Resumen: Después de la II Guerra Mundial, una parte importante del eje
industrial de los países centrales se trasladó de Occidente a Japón, Tigres
asiáticos y, más recientemente, China. Durante este período, países como
Argentina, México, Brasil y Sudáfrica también experimentaron una fuerte
industrialización. Sin embargo, nunca fueron tan centrales como Japón, ni
experimentaron las condiciones excepcionales que permitieron a los Tigres
asiáticos llegar a esa posición. Tampoco, como China, se han convertido en una
mezcla de atraso y modernidad permeada por muchas industrias de
investigación de alta tecnología y de vanguardia. A través de la presentación y
análisis de alguna información económica y social obtenida en bases de datos
de organismos internacionales, el objetivo es demostrar cómo la gran mayoría
de países con industrialización muy tardía continúan ocupando posiciones
desfavorables en la división mundial del trabajo, en la jerarquía de poder de
los estados. y reproducir una enorme desigualdad interna entre sus
ciudadanos. En este sentido, al subestimar las luchas de clases nacionales y la
fuerza económica inhibidora que es la competencia de las empresas en los
países centrales, se considera que, cultivando expectativas de desarrollo sin
rupturas revolucionarias, las ideas reformistas deben ser definitivamente
enterradas.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
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Palabras clave: capitalismo; sistema-mundo; países centrales; países
periféricos; China.
Introdução
Nas décadas imediatamente subsequentes à II Guerra Mundial, em
meio à guerra fria e à descolonização da África e da Ásia, a industrialização de
alguns países periféricos (na linguagem da época, atrasados) surpreendeu e
criou expectativas em relação à diminuição da distância econômica e social
ante os países centrais
2
(industrializados). Inspirados nas experiências de
intervenção estatal ocorridas na Alemanha, Japão, Estados Unidos e na União
Soviética, e influenciados pelas elaborações teóricas keynesianas, muitos
intelectuais se dedicaram a analisar os motivos pelos quais a maioria dos países
se mantinha em condição de atraso. O próprio objeto de análise, porém, os
impulsionava a se afastarem de uma visão meramente contemplativa dos
problemas; por isso, a maioria tinha por objetivo contribuir para que os países
periféricos iniciassem ou intensificassem a sua industrialização e superassem
os seus mais graves problemas econômicos e sociais
3
. Entre os estadunidenses,
a busca pela compreensão da nova realidade também visava a orientar ações
de modo a consolidar a recém-conquistada posição do país como potência
hegemônica do mundo capitalista
4
e modelo para as outras nações (ROSTOW,
1964).
Como lembra Immanuel Wallerstein, “em 1945, o mundo mudou de
maneira decisiva, e como resultado de tal configuração as ciências sociais se
viram submetidas a importantes desafios” (WALLERSTEIN, 2005, p. 23).
Sendo que, naquele momento, o desenvolvimento passou a ser o novo assunto
centralizador do trabalho intelectual (2002, p. 123). Para Arndt, importante
historiador da ideia de desenvolvimento, este era entendido basicamente como
“sinônimo de crescimento da renda per capita nos países menos
desenvolvidos” (ARNDT, 1981, p. 485). Mesmo um marxista como Paul Baran
2
Centro e periferia são “nomes que na verdade refletem a estrutura geográfica dos fluxos
econômicos” (WALLERSTEIN, 2001, p. 30).
3
Dentre os muitos intelectuais da época, o engajamento científico e político do brasileiro Celso
Furtado foi certamente um caso exemplar: “a análise dos processos econômico-sociais não tem
outro objetivo senão produzir um guia para a ação. Em verdade, essa mesma análise aponta
para a ação” (FURTADO, 1962, p. 16).
4
Segundo Immanuel Wallerstein (2015, p. 24), “o estado ‘mais desenvolvido’ podia ser
oferecido como modelo para os estados ‘menos desenvolvidos’, exortando-os a iniciarem um
certo tipo de ação mimética que prometesse encontrar uma melhor qualidade de vida e uma
estrutura governamental mais liberal (‘desenvolvimento político’) ao final do arco-íris. Isso era
obviamente uma ferramenta intelectual útil para os Estados Unidos, e seu governo e suas
instituições fizeram todo o possível para incentivar a expansão dos estudos de área em grandes
(e até pequenas) universidades”.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
434
(1986, p. 132) assim o definia: “o que caracteriza todo país subdesenvolvido, o
que na realidade responde pela sua classificação como subdesenvolvido, é a
exiguidade de seu produto social per capita”. Mas, com abordagens e matizes
variadas, o termo desdobrou-se em novas dimensões social, política,
ambiental, cultural etc. (MOREIRA, CRESPO, 2012). Surgiram campos de
conhecimento próprios no interior de ciências sociais, como a economia do
desenvolvimento (AGARWALA, SINGH, 2010; BRANDÃO, 2018) e a
sociologia do desenvolvimento (FERREIRA, 1993). Contudo, apesar das
especificidades e ênfases, a industrialização era (e, em geral, ainda é) vista
como cerne do desenvolvimento e “um imperativo no processo de catch up
dos países periféricos em relação aos centrais (NAYYAR, 2013, p. 98).
Por décadas, sob governos mais à direita ou mais à esquerda, de feições
mais autocráticas ou democráticas, muitos países periféricos se urbanizaram e
desenvolveram alguma produção industrial. Em certos aspectos, alguns países
“atrasados” se “modernizaram”. Poucos, porém, construíram um parque
industrial com elevado grau de complexidade, conjugando indústrias de bens
de consumo não-duráveis, duráveis e até mesmo de bens de capital. Embora
em novas condições, a divisão axial do trabalho numa economia-mundo
capitalista [continuou a dividir] a produção em produtos centrais e produtos
periféricos” (WALLERSTEIN, 2005, p. 43). Dentre os periféricos que
alcançaram uma industrialização mais complexa estão Argentina, Brasil,
México, Índia, África do Sul e poucos outros. Segundo Wallerstein,
o que todos os países não-centrais membros das Nações Unidas da
URSS à Argentina, da Índia à Nigéria, da Albânia a Santa Lúcia
tinham em comum era o objetivo público geral de aumentar a
riqueza da nação e modernizar a sua infraestrutura. Também era
compartilhado o otimismo subjacente a esse objetivo. A isto se
somava a ideia de que seria mais fácil atingir o objetivo com a plena
participação no sistema internacional (2002, p. 122).
Para a economista Alice Amsden (2009, p. 29), “a ascensão do ‘resto’ foi
uma das mudanças fenomenais da segunda metade do século XX”. E ela tem
razão. Mas, qual o saldo econômico e político dessa ascensão/modernização
para a resolução dos problemas estruturais desses países? Diminuiu a
diferença da renda per capita ou eliminou a dependência tecnológica e
financeira em relação aos países centrais (governos, empresas e bancos)? Suas
estruturas econômicas se tornaram mais homogêneas? Foram criadas
condições socioeconômicas compatíveis com sociedades menos desiguais e
mais democráticas? E mais, é racional manter a expectativa de superação
desses problemas sob o domínio do capital? Essas são algumas questões que
permitem avaliar os resultados dessas últimas décadas e refletir sobre o
desenvolvimento econômico e social dos países periféricos.
Com base em algumas reflexões de Wallerstein (2001; 2002; 2005),
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
435
Arrighi (1997; 2013) e Amin (2006) sobre a articulação entre os estados
nacionais e o sistema-mundo, de Duménil e Levy (2014) sobre a crise
estrutural do capital e de István Mészáros (2002) também sobre este tema e a
necessidade de superação do capital (e não apenas do capitalismo), objetiva-
se investigar alguns dados sobre a evolução e a atual situação econômica e
social de diversos países, procurando avaliar se a industrialização tem efetuado
(NAYYAR, 2013) ou não (REINERT, 2016) a redução do gap dos países
periféricos ante os países centrais
5
e, de algum modo, contribuído para a
construção de regimes políticos mais democráticos. Para essa avaliação, serão
analisados livros, artigos, jornais e bancos de dados de instituições
multinacionais e governamentais. Não se trata de uma reflexão sobre as ideias
e políticas econômicas (com acertos e erros de governos) efetivadas em cada
país ao longo do período, mas de investigar num olhar de médio prazo e num
contexto de condicionamentos econômicos globais alguns aspectos do saldo
econômico e político daquele período decisivo (e esperançoso) de efetivação e
consolidação da indústria em alguns países periféricos.
Capitalismo global: uma “economia-mundo” dividida e desigual
uma vasta literatura que questiona as análises de desenvolvimento
econômico assentadas na priorização das características étnico-raciais,
5
Como veremos, a linha básica das diferenças entre os grupos de países está relacionada ao
modo de integração ao mercado mundial e, portanto, ao capitalismo , bem como ao
desenvolvimento industrial. Obviamente, toda classificação implica em escolhas assentadas
em certas características dos objetos classificados. Sendo assim, utilizando como referência
(mas não reproduzindo literalmente) a classificação utilizada por Wallerstein (2001; 2002;
2005) e Arrighi (1997; 2013), consideram-se centrais os países que primeiro se
industrializaram e/ou passaram por profundas transformações econômicas e políticas que os
alçaram a níveis elevados de renda per capita, certo bem-estar de suas populações (acesso a
bens de consumo, educação, saúde etc.) e, em geral, direitos civis e políticos consolidados
(Estados Unidos, Canadá, Europa Central e do Norte, Japão e Oceania). Por países
semiperiféricos, entende-se aqueles que não foram colônias, mas chegaram a meados do
século XX com industrialização ainda frágil, renda per capita bem abaixo dos países centrais
(Europa do Sul) e/ou passaram por revoluções ou guerras (civis ou não) que levaram a
transformações profundas em sua configuração social e política (Europa do Leste e Rússia).
Por periféricos, os países não industrializados ou de industrialização hipertardia, baixa renda
per capita, regimes políticos de feições fortemente autocráticas ou, quando existem,
democracias frágeis (de modo geral, países que foram colônias ou sofreram processos de
colonização/espoliação econômica: África, América Latina e Ásia excetuando Japão, Tigres
asiáticos e China). Quanto aos Tigres asiáticos, são países de industrialização hipertardia, mas
que, por motivos históricos excepcionais (ARRIGHI, 2013), alcançaram renda per capita e
condições gerais de vida (acesso a bens de consumo, saúde, educação, complexidade
tecnológica etc.) muito próximas ou iguais às dos países centrais. Por fim, há o caso da China,
que, embora tenha sido economicamente espoliada por mais de um século, nunca foi
propriamente uma colônia e, além disso, passou por uma revolução social e transformações
dela decorrentes que criaram uma potência econômica global com características simultâneas
dos diversos grupos de países.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
436
geográficas, culturais ou institucionais. E, embora o institucionalismo ainda
seja muito presente no pensamento político e econômico (como demonstra o
imerecido sucesso de Por que as nações fracassam, de Daron Acemoglu e
James Robinson, 2012), as análises mais consistentes sobre o desenvolvimento
consideram que os traços essenciais dos países do mundo contemporâneo
remontam às suas relações capitalistas originárias, estabelecidas no período
mercantilista e vigorosamente consolidadas com a industrialização. Isso não
significa negar a relevância das particularidades sejam elas econômicas,
políticas ou culturais que atuam na conformação de países e regiões, mas
considerar que as suas diferentes histórias de desenvolvimento estão
prioritariamente relacionadas ao modo de constituição e integração ao
capitalismo especialmente a articulação de interesses (e conflitos) entre as
classes dominantes centrais e as periféricas e suas consequências. Por isso,
não é casual que, com raras exceções, a despeito da grande variedade de
situações específicas de cada país (população, território, recursos naturais,
perfil das atividades econômicas e, claro, dinâmica da luta de classes), a
polarização originária entre, de um lado, os colonizadores (dos ingleses aos
japoneses) e suas colônias de povoamento (dos Estados Unidos e Canadá à
Austrália e Nova Zelândia) e, de outro, as colônias de exploração (América
Latina, África e Ásia excetuando Rússia) corresponda em larga medida à
atual divisão centro-periferia, países desenvolvidos e em desenvolvimento
6
.
Outrossim, com a Revolução Industrial e a industrialização pioneira
(Inglaterra, França, Bélgica, Países Baixos, Estados Unidos) ou tardia
(Alemanha, Itália, Japão) dos atuais países centrais, essa polarização tornou-
se muito mais tenaz e facilmente identificável pela divisão do trabalho
(existente sob a vigência das manufaturas, e que foi amplamente reforçada)
entre industrializados e atrasados (exportadores de matérias-primas agrícolas
e minerais). Portanto, com modos e ritmos distintos de desenvolvimento
capitalista, configurou-se um mundo marcado pelo desenvolvimento desigual
e combinado (LÖWY, 1998; NOVACK, 1998).
Ocorre que, a partir dos anos 1930, por caminhos muito diversos (por
exemplo, URSS e Brasil), alguns países “atrasados” passaram por um rápido
desenvolvimento industrial e trouxeram novos desafios práticos e teóricos,
como demonstra a explosão da literatura sobre desenvolvimento e
dependência nas décadas de 1950-60.
Num recente estudo sobre as “sociedades em desenvolvimento”, no qual
avaliza a ideia de que a industrialização tem contribuído para o catch up dos
países periféricos em relação aos países centrais, o economista indiano Deepak
6
Inclusive, essa compreensão antecede marxistas e cepalinos. Num artigo recente, Monastério
e Ehrl (2019) apresentaram uma sintética e competente explanação da evolução dessa tese da
colonização como condicionante do tipo de evolução da sociedade, que, segundo eles, remonta
a Adam Smith e a pensadores alemães e franceses.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
437
Nayyar (2013, p. 50) sustenta que 1950 talvez tenha sido um importante
momento da viradana corrida pela industrialização e pelo desenvolvimento,
com significativas implicações geopolíticas. E, de fato, alguns países periféricos
tiveram um importante incremento de seus parques industriais nesta década e
nas posteriores. Inclusive, por um bom tempo, o Brasil foi “o caso mais típico
de subdesenvolvimento industrializado” (PEREIRA, 1986, p. 63). Nele, a
segunda metade da década de 1950 efetivamente demarcou a transição do
período de substituição de importações para a constituição de uma economia
industrializada com forte presença de empresas estatais e multinacionais, “o
Brasil transformara-se em um país industrializado, ainda que permanecesse
notoriamente subdesenvolvido” (FURTADO, 1975, p. 33)
7
. E mais, “depois do
extraordinário surto industrial ocorrido nele, as oposições e as dúvidas de
caráter fundamentalmente ideológico quanto às possibilidades de
industrialização do Brasil desapareceram. A crença na vocação agrícola do
Brasil perdeu qualquer substância” (PEREIRA, 1976, p. 53). A industrialização
avançou e, como proporção da composição das atividades econômicas, o ápice
da indústria brasileira ocorreu em 1985, quando correspondeu a 48% do PIB
(IBGE).
No entanto, se realmente houve um importante crescimento da
produção industrial de alguns países periféricos, deve-se frisar também que,
em 1970, a produção dos países centrais ainda correspondia a 72,6% do total
mundial.
PIB
Nas décadas seguintes, como se pode observar no Gráfico 1, algumas
mudanças significativas realmente ocorreram. Dentre elas, chamam muito a
atenção: 1) o forte declínio proporcional da produção industrial dos países
centrais de 72,6% para 40,2% e dos países semiperiféricos (sul e leste da
Europa e Rússia) de 14,3% para 7,1%; 2) o baixo crescimento da produção
dos países periféricos, de 14,3% para 20,5%; 3) e a forte presença da produção
industrial chinesa no século XXI, cujos dados disponíveis demostram
corresponder a 28,6% da produção mundial em 2018. Hoje, a produção
industrial chinesa é maior do que a soma da produção industrial dos países
periféricos e semiperiféricos.
7
Não cabe aqui indicar um ou outro livro, pois há vasta literatura sobre o tema, com especial
relevo as obras de Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Maria da Conceição Tavares e
Francisco de Oliveira.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
438
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
Junto com a produção industrial, a participação dos países no PIB
mundial também sofreu forte modificação no referido período. Há, porém,
algumas diferenças. No Gráfico 2, também se observa o declínio proporcional
do PIB dos países centrais, mas relativamente menor do que o industrial,
passando de 68,1% para 50,1%. No caso dos países semiperiféricos, os números
do PIB total foram muito próximos daqueles do PIB industrial
respectivamente, de 13,6% para 8,2%. Os números dos Tigres asiáticos foram
idênticos aos do Gráfico 1, de 0,4% para 3,7%.
Com números um pouco diferentes, a trajetória dos países periféricos
também repetiu a pequena ascensão industrial, de 14,3% para 20,5%. Se, como
o faz Deepak Nayyar (2013), incluirmos a China entre eles, o crescimento
realmente se demonstra bastante significativo. Dentre as 10 maiores
economias em 2018, 3 não eram dos países centrais (China (2º), Índia (5º) e
Brasil (9º)). Em 1970, apenas o Brasil (10º) estava entre elas. Porém, se há
motivos que justificam a inclusão da China como um país periférico, há outros
tantos que não; e o principal deles é: a China é um país de proporções
continentais e gigantesca população que passou por uma revolução social, os
outros não. Isso trouxe enormes consequências para todas as dimensões da
vida naquele país. Daí que a inclusão da China como mais um país entre os
40,2%
7,1%
20,5%
28,6%
3,7%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
Gráfico 1. Participação dos países na produção mundial da
indústria (%) - 1970-2018
Países centrais Países semiperiféricos Países periféricos
China Tigres asiáticos
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
439
periféricos distorce os dados e os fatos. Por maiores que sejam as economias
de Brasil e Índia, ambas possuem características próprias dos países
periféricos (na classificação de Arrighi (1997), o Brasil é um país
semiperiférico). Este não é caso da China, cuja excepcional trajetória resultou
num país que conforma um híbrido de centrais e periféricos não encontrado
em nenhum outro lugar. Por isso, não é o catch up dos periféricos e nem a
“ascensão do resto” o fato fenomenal das últimas décadas, mas o enorme
crescimento da economia chinesa, que passou de 1,3% para 16,3% do PIB
mundial em 50 anos (Gráfico 2). Isso a tornou, na atualidade, a segunda
potência econômica e política global, capaz de rivalizar com em alguns casos,
superar os Estados Unidos e outros países centrais. Como salientou Perry
Anderson (2018, s. p.): pela primeira vez em sua história o Reino do Meio se
tornou uma verdadeira potência mundial, estendendo sua presença a todos os
continentes.
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
muitas controvérsias sobre a natureza da formação social chinesa e
os motivos de sua ascensão (JABBOUR, 2010; ANDERSON, 2013; CHAOHUA,
50,1%
8,2%
22,6%
38,9%
16,3%
2,8%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
Gráfico 2. Participação dos países no PIB mundial (%) - 1970-
2018
Países centrais Países semiperiféricos
Países periféricos (sem a China) Países periféricos (com a China)
China Tigres asiáticos
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
440
2013; KROEBER, 2016). Mas, a despeito delas, fato é que a China alterou
abruptamente a sua participação no PIB global. E se mudanças significativas
(positivas ou negativas) nessa participação não implicam em alterações
imediatas no equilíbrio geopolítico (basta pensar na falta de correlação entre
economia e poderio bélico, em sentidos opostos, da Alemanha e da Rússia na
atualidade
8
), elas podem, pela alteração na capacidade produtiva e no
potencial de investimento dos estados em forças militares, incentivar
tentativas de recomposição dos poderes e interesses econômicos regionais ou
globais.
Os estados situam-se numa hierarquia de poder que não pode ser
medida nem pelo tamanho e a coerência das suas burocracias e
exércitos nem por suas formulações ideológicas sobre si mesmos,
mas sim por sua capacidade efetiva, ao longo do tempo, de promover
a concentração do capital acumulado dentro das suas fronteiras, em
comparação com a capacidade dos estados rivais /.../ No médio
prazo, o que mede realmente a força dos estados é o resultado
econômico. (WALLERSTEIN, 2001, pp. 48-9)
No caso da China, o fortalecimento econômico tem sido acompanhado
(não no mesmo ritmo) do aumento do seu poderio bélico e, tendo alcançado o
posto de terceira maior potência militar
9
, do movimento de reestruturação da
ordem geopolítica internacional.
Por outro lado, a hierarquia de poderes dos estados não é simétrica à
hierarquia das condições de vida de suas respectivas populações. Com histórias
e rendas per capitas muito diversas, essas características podem estar na razão
inversa uma em relação à outra: economias pequenas com elevadas renda per
capita e boas condições (materiais e educacionais) de vida para a imensa
maioria da população (caso extremo da Islândia) e grandes com rendas per
capitas baixíssimas e precárias condições de vida para a maioria (por exemplo,
Índia).
Num mundo integrado e com referências econômicas (produção e
consumo) e culturais globais (ideias, modos de vida), esses
desencontros/descompassos podem intensificar competições e conflitos
internos (entre as classes) e entre os estados
10
. Portanto, a ascensão de
8
Respectivamente, e 1 PIB (World Bank), mas e 13ª maior capacidade bélica
(GlobalFirepower GFP. In: https://www.globalfirepower.com/countries-listing.asp).
9
GlobalFirepower GFP.
10
Para os cepalinos, com ênfase especial na obra de Celso Furtado, o consumo supérfluo ou
conspícuo por parte das classes dominantes e da alta classe média, especialmente por aquelas
frações beneficiárias das atividades integradas (e subordinadas) ao mercado mundial,
constitui um importante componente da manutenção do “subdesenvolvimento”. Isso porque,
baseando-se nos padrões de consumo (tipos, marcas e preços de produtos) das classes
congêneres dos países “desenvolvidos”, as dos países periféricos desviam para o exterior
recursos que poderiam ser utilizados para a acumulação de capital (novas instalações e o
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
441
economias periféricas grandes (China, Brasil, Índia, México, Indonésia) e
novos estados com elevada capacidade militar (China, Índia) constitui um
aspecto importante das mudanças econômicas e políticas ocorridas nas
últimas décadas.
Outro aspecto relevante que afeta de modo desigual os países (índices
de crescimento, posições em escala global) é a vulnerabilidade aos movimentos
cíclicos da economia. Em outras palavras, todos os países passam por períodos
de crescimento e crise e, ainda que desigualmente, são afetados pelo
movimento mais amplo da economia mundial. Como vimos, excetuando os
países semiperiféricos, os outros grupos e a China tiveram crescimento do PIB
maiores do que os países centrais nessas décadas. Porém, em razão de sua
posição nas relações econômicas e de poder mundial, os países semiperiféricos
e periféricos são mais reativos do que condicionantes das crises globais e estão
mais sujeitos às flutuações externas e suas consequências isto é, os efeitos
internos delas tendem a ser mais drásticos do que os sofridos pelos países
centrais.
No Gráfico 3, observemos as taxas de crescimento do PIB dos grupos de
países. Nele, impressiona quão sustentados são o crescimento chinês e, apesar
da crise asiática de 1997, o dos Tigres asiáticos, o declínio dos países
semiperiféricos nos anos 1990 e a forte correlação entre o movimento clico
das economias dos países centrais e periféricos até final dos anos 1980 e, da
economia mundial, até fim da década seguinte. Igualmente, é visível como na
década de 1990 excetuando os semiperiféricos, com índices fortemente
impactados pela ruína da URSS e dos ditos regimes socialistas ou pós-
capitalistas
11
, mas sobretudo a partir dos anos 2000, o crescimento médio
das economias dos outros grupos de países e da economia mundial colocou-se
acima da média dos países centrais. Esse crescimento foi claramente
impulsionado pela economia chinesa. De caudatária dos países centrais
incremento tecnológico) das empresas instaladas no país. Tal fato não apenas expressa como
reforça a concentração de renda, agravando os empecilhos à industrialização desses países
(FURTADO, 1974; 1975).
11
Na economia política tradicional, seja (neo)liberal ou keynesiana, o capital é tratado como
coisa. Mesmo um intelectual considerado progressista como Piketty (2014, p. 51) afirma que
em seu livro “capital é definido como o conjunto de ativos não humanos que podem ser
adquiridos, vendidos e comprados em algum mercado”. Em contraposição, na esteira de Marx,
Mészáros define capital como uma relação social. Em suas palavras: o capital “é, em última
análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico(MÉSZÁROS, 2002, p. 96
itálicos do autor). Uma relação sociometabólica que implica numa estrutura de comando que
sujeita os produtores a uma lógica implacável de autovalorização, cujas personas que a
representam podem ser tanto “capitalistas privados” quanto, nas sociedades pós-capitalistas,
“funcionários públicos do estado de tipo soviético” (MÉSZÁROS, 2002, p. 98). Portanto, o
capital preexiste ao capitalismo e pode sobreviver à sua destruição. Isso significa que, em
sentido socialista, uma transformação social radical não demanda apenas a superação do
capitalismo, mas a superação do capital como modo de controle sociometabólico. Obviamente,
algo ainda nunca realizado.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
442
situação dos países periféricos , a China tornou-se o polo mais dinâmico da
economia mundial.
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
No entanto, tratar das contradições do desenvolvimento do capital e sua
concretização desigual implica não ficarmos presos somente aos grandes
números do PIB, pois estes são muito influenciados, por exemplo, por fatores
demográficos. Inclusive, no período em questão (1970-2018), a distribuição da
população mundial entre os países passou por significativas mudanças. Na
Tabela 1, vemos declínio populacional nos grupos dos países centrais,
semiperiféricos, Tigres asiáticos e China. Acréscimo proporcional de
população ocorreu apenas no grupo dos países periféricos.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
443
Tabela 1 População por grupos de países
1970
2018
Países centrais
609.122.625
16,5%
833.060.638
10,9%
Países semiperiféricos
403.640.119
10,9%
446.427.832
5,9%
Países periféricos
1.821.709.826
49,2%
4.859.022.213
63,7%
China
827.601.394
22,4%
1.427.647.786
18,7%
Tigres asiáticos
38.363.082
1,0%
64.932.571
0,9%
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
Quando relacionados aos PIB totais, esses números fornecem dados
relevantes para analisarmos com mais cuidado não apenas a grande distância
que separa os países centrais dos periféricos que, há tempos tem sido
analisada e denunciada , mas também os resultados dos esforços em prol do
desenvolvimento feitos nesses últimos, os quais, ao longo do tempo, tiveram
governos e políticas econômicas de matizes distintas no espectro político.
Renda per capita
Na Tabela 2, os dados demonstram o crescimento da renda per capita
dos grupos de países ao longo de quase meio século. Como vemos, apesar da
industrialização e do aumento do PIB proporcional dos países periféricos no
PIB mundial, o percentual da renda per capita teve ligeira queda em relação
àquela dos países centrais, passou de 8,1% para 7,7% em outras palavras, a
população dos países periféricos se tornou proporcionalmente mais pobre do
que a dos países centrais. Novamente, com imensa diferença em relação aos
outros países, os destaques ficaram com a China, que teve um crescimento de
3.252% ao longo de período, e os Tigres asiáticos, com 1.159%. Com esse
crescimento absoluto, as respectivas rendas per capita proporcionais à média
dos países centrais passaram de 1,3% para 19% e de 14% para 73%. Portanto,
mesmo com esse crescimento vertiginoso, a renda per capita dos chineses não
chega a 1/5 daquela dos países centrais. O que nos faz pensar sobre as
consequências ambientais e, por conseguinte, econômicas e sociais se a
renda per capita dos chineses e, com isso, o consumo chegar ao nível dos
países centrais, cuja população total corresponde a 58,4% da população da
China. E, mais do que isso, sobre a própria viabilidade de um modo de
produção e organização da vida social cuja acumulação incessante de capital e
a proliferação de consumo supérfluo e destrutivo com o simultâneo não
atendimento das necessidades básicas de muitos são suas características
estruturais e inelimináveis (MÉSZÁROS, 2002, pp. 605-74).
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
444
Tabela 2 Renda per capita por grupos de países
1.970
1.980
1.990
1.995
2.000
2.010
2.018
Cresc.
Países centrais
20.193
25.762
32.988
35.309
40.298
44.018
49.262
144%
Países
semiperiféricos
6.092
8.736
10.414
9.490
10.935
13.681
14.958
146%
Países periféricos
1.626
2.165
2.196
2.345
2.550
3.299
3.802
134%
China
280
423
873
1.477
2.147
5.509
9.369
3.252%
Tigres asiáticos
2.844
5.723
11.747
16.090
19.368
29.182
35.820
1.159%
Fonte: United Nations Statistics Division. 2020. Elaboração própria
Importa salientar que a renda per capita pode obscurecer aspectos
importantes para o entendimento dos poderes de compra distintos das
populações dos países e, igualmente, grandes diferenças internas entre as
classes sociais, populações regionais, grupos profissionais etc. Mas, como
esclarece Arrighi (1997, p. 221, n. 5), essa informação também nos permite
uma medida de comparação sobre o comando econômico “exercido pelos
residentes de uma dada jurisdição sobre os recursos possuídos pelos residentes
de todas as outras jurisdições, em relação ao comando exercido pelos últimos
sobre os recursos possuídos pelos primeiros”, além de fornecer um importante
instrumento de comparação de cada país a longo prazo
12
. E, além disso, essa
comparação é feita em dólares constantes e não em Paridade de Poder de
Compra (PPC) porque, como salienta Nayyar,
não é apropriado ou correto, mesmo que esteja na moda, somar o
PIB em termos de PPC nos países, para estimar o PIB mundial em
termos de PPC, porque essas estimativas são baseadas em um ajuste
ascendente artificial no preço de bens e serviços não
comercializáveis nos países em desenvolvimento. Isso leva a um viés
ascendente nas estimativas do PIB PPC para os países em
desenvolvimento, as quais não o comparáveis com outras
variáveis macroeconômicas, como comércio exterior, investimentos
internacionais ou produção industrial, avaliados a preços de
mercado e taxas de câmbio de mercado (2013, p. 56).
De qualquer modo, para não incorrer em equívocos, o crescimento
proporcional da renda per capita não pode ser utilizado como dado isolado,
mas precisa ser analisado com um olhar sobre outros indicadores econômicos
e sociais. Por exemplo, a renda per capita dos Tigres asiáticos tem uma
correlação com as condições de vida e os direitos civis e político das suas
populações muito diferente daquela dos chamados “estados petroleiros”
13
.
12
Na análise da desigualdade mundial, Piketty (2014, pp. 69-72) explica os motivos de sua
preferência pelos dados em formato PPC, mas ressalva que “isso em nada afeta as ordens de
grandeza” (2014, p. 72).
13
De acordo com dados do site World Inequality Database, em 2016, os 10% mais ricos da
população da Arábia Saudita ficaram com 62,18% da renda nacional. No Oriente Médio, o
percentual foi de 58,26%, enquanto na Coreia do Sul foi de 43,32%.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
445
Complexidade econômica
Sobre outro aspecto importante nas distinções entre os países e nas
possibilidades de superação das condições que caracterizam os países
periféricos, afirma-se que a industrialização e o crescimento absoluto e
proporcional do PIB podem resultar em (ou serem impulsionados pelo)
aumento da complexidade econômica. No século passado, muito se chamou a
atenção para o fato de que os países periféricos que se industrializaram não
conseguiram o domínio sobre a produção de bens de capital (sendo muito
dependentes da importação de máquinas e equipamentos) e, com raras
exceções, nem sobre as tecnologias de ponta da produção industrial. E, de fato,
excetuando a China e os Tigres asiáticos, a tendência geral das últimas décadas
tem sido a manutenção das diferenças de complexidade das estruturas
econômicas entre os países centrais e periféricos, as quais se expressam nos
distintos níveis de investimentos em pesquisa e desenvolvimento técnico-
científico e, portanto, no domínio tecnológico pelas empresas e governos
dos respectivos grupos de países, bem como no perfil das trocas comerciais e
do fluxo de investimentos.
Um modo bastante eficiente de analisar a complexidade das estruturas
econômicas foi desenvolvido pelos pesquisadores César Hidalgo (MIT) e
Ricardo Hausmann (Harvard). Segundo a explicação do principal entusiasta
brasileiro do uso da complexidade como ferramenta de análise econômica,
Paulo Gala (2017, p. 20), os dois conceitos básicos utilizados para aferir se um
país é complexo economicamente são a ubiquidade e a diversidade de produtos
encontrados em sua pauta exportadora
14
. Produtos ubíquos e pauta
exportadora pouco diversificada significam economia pouco complexa.
Produtos não ubíquos e pauta exportadora diversificada significam economia
de alta complexidade. Correlacionados com o tamanho da população e da
economia, esses dados fazem com que a complexidade seja tratada como índice
relativo, permitindo a comparação entre uma grande economia como a indiana
(4lugar) ou a brasileira (47º) e a pequena economia finlandesa (12º). Por
conseguinte, o ranking de complexidade das estruturas produtivas dos países
organizado pelo Observatório da complexidade econômica
15
reflete, em linhas
gerais, a classificação aqui adotada, com predomínio dos países centrais e dos
14
Embora problemático por incorrer num voluntarismo apologista das virtudes da
gestão/intervenção política corretiva e orientadora da economia capitalista, subvalorizando
assim os condicionantes estruturais da economia sobre a política, diferenças e conexões
estruturais entre países centrais e periféricos e a relevância da luta de classes por
conseguinte, naturalizando a sociedade capitalista , o livro de Paulo Gala (2017) é
interessante por explicar, em linguagem bastante acessível, o que é a complexidade econômica
e seus modos de aferição, bem como frisar com diversos exemplos a correlação entre
complexidade econômica e renda per capita.
15
Fonte: <https://oec.world/en/rankings/eci/hs4/hs12>.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
446
Tigres asiáticos nas primeiras posições, alguns pequenos semiperiféricos entre
as 20 economias mais complexas e os periféricos (em número muito maior)
ocupando as posições intermediárias e inferiores da tabela. Dentre as maiores
economias, destacam-se o Japão (1º), a Alemanha (4º), a Coreia do Sul (5º), o
Reino Unido (11º), os Estados Unidos (14º) e a China (21º).
Pesquisa e desenvolvimento científico-tecnológico
Para o capital, a complexidade econômica é relevante porque indica que
o investimento em P&D tem resultado em desenvolvimento científico-
tecnológico e, assim, com novos (ou inovações em) serviços, bens de consumo
ou meios de produção, ele possibilita às empresas inovadoras (ou, no caso de
terceiras, das beneficiárias imediatas de uma inovação na estrutura produtiva),
a conquista (novos produtos) ou ampliação (melhoria, barateamento) da
participação no mercado, o aumento da produtividade do trabalho e, por
conseguinte, o incremento da mais-valia e do lucro. Inclusive, não custa
lembrar que o lucro (e o aumento da taxa de lucro) “é a força motriz que impele
a produção capitalista”. E, ademais, como “o preço das mercadorias é
determinado por seu valor de mercado, as empresas que têm alto nível de
tecnologia e produtividade do trabalho encontram-se forçosamente numa
posição favorável. Recebem lucro adicional, ou superlucro(NIKITIN, 1967,
p. 111 grifos do autor). Essa posição torna-se ainda mais favorável para os
oligopólios e monopólios. Em ambos os casos excetuando o monopólio
assentado em condições alheias ao mercado (políticas, geográficas) , o
domínio da tecnologia mais avançada tem enorme importância.
Componente fundamental da complexidade econômica, o domínio
técnico-científico demanda elevados investimentos em pesquisa e
desenvolvimento (P&D). E, quanto a isso, dois aspectos chamam bastante a
atenção. Primeiro, a enorme distância dos investimentos em P&D entre as
empresas sediadas nos respectivos grupos de países. Segundo, a forte
correlação entre elevado percentual de investimento privado em P&D nos
países centrais e, inversamente, baixo nos países periféricos. De acordo com
estudo da Comissão Europeia, as 2.500 maiores empresas classificadas de
acordo com os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) têm sede
em 44 países. Em 2018, cada uma investiu mais de 30 milhões em P&D para
um total de € 823,4 bilhões, o que equivale a aproximadamente 90% da P&D
financiada por empresas [e não governos] no mundo (HERNÁNDEZ et al.,
2019). Dentre elas, 1709 estão sediadas nos países centrais, 507 na China, 165
nos Tigres asiáticos, 71 nos países semiperiféricos, 48 nos periféricos (Tabela
3). Na América Latina, o país representado com o maior número de empresas
é o Brasil, com seis e investimento total de 1,01 bilhão. Não bastasse essa
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
447
enorme discrepância, também chama a atenção o fato de que em apenas 10
países os investimentos das empresas sediadas ultrapassam € 10 bilhões.
Tabela 3 2500 maiores empresas em investimentos em P&D (grupos de
países) 2018
Nº de empresas
%
Países centrais
1709
68,4%
Países semiperiféricos
71
2,8%
Países periféricos
48
1,9%
Brasil
6
0,2%
China
507
20,3%
Tigres asiáticos
165
6,6%
Total
2500
100%
Fonte: HERNÁNDEZ et al., 2019. Elaboração própria
Com algumas exceções, dentre elas os casos do Brasil (7º) e da Rússia
(8º) países que têm populações e PIB grandes , os investimentos
governamentais em P&D reproduzem a situação dos investimentos das
empresas privadas sediadas nos respectivos países, com ampla liderança dos
Estados Unidos, China, Japão e outros países centrais (especialmente
europeus), bem como da Coreia do Sul. Na Tabela 4, tomando como referência
o número de sedes das maiores empresas investidoras em P&D, temos os
seguintes valores absolutos dos 44 maiores investimentos governamentais.
Nela, destacam-se os elevados valores absolutos dos países mais bem
colocados em relação ao restante, especialmente os dois primeiros, e a maior
presença proporcional de países semiperiféricos e periféricos no conjunto. Isso
demonstra que, tal como nas implicações políticas do descompasso entre o PIB
total e o per capita, o tamanho da economia também influencia na capacidade
de investimento estatal em P&D, eis porque países que não sediam
nenhuma empresa dentre as 2.500 maiores em investimento e estejam entre
os 44 maiores investidores estatais. São esses os casos da Argélia, Chile,
Colômbia, Egito, Eslováquia, Indonésia, Paquistão, República Tcheca,
Romênia, Tailândia e Vietnã.
Tabela 4. Os 44 maiores investimentos estatais em P&D (em mil US$ PPP, preços
constantes de 2005) 2017
1
Estados
Unidos
102.559.859
16
Turquia
4.777.697
31
Finlândia
1.483.552
2
China
80.062.692
17
Países Baixos
4.466.527
32
Israel
1.382.828
3
Índia
32.719.367
18
México
4.425.422
33
Portugal
1.346.068
4
Alemanha
26.828.439
19
Polônia
3.323.628
34
Hong Kong
1.345.329
5
Japão
21.107.572
20
Suíça
3.291.562
35
Paquistão
1.289.819
6
Coreia do
Sul
17.236.210
21
Suécia
3.287.891
36
Tailândia
1.228.203
7
Brasil
16.559.041
22
Cingapura
3.191.219
37
Grécia
974.271
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
448
8
Rússia
16.326.745
23
Argentina
2.924.455
38
Hungria
859.910
9
França
15.613.013
24
Áustria
2.861.125
39
Vietnã
745.269
10
Reino
Unido
10.159.954
25
Argélia
2.585.022
40
Nova
Zelândia
679.519
11
Canadá
7.773.487
26
Noruega
2.545.381
41
Ucrânia
593.170
12
Itália
7.608.275
27
África do Sul
2.410.380
42
Romênia
553.206
13
Espanha
6.306.437
28
Bélgica
2.197.642
43
Chile
516.460
14
Egito
5.842.014
29
Rep. Tcheca
1.818.498
44
Eslováquia
426.288
15
Indonésia
5.159.240
30
Dinamarca
1.730.633
Fonte: UNESCO. Institute for Statistics (UIS). Elaboração própria
Por sua vez, ao analisar o investimento governamental como proporção
do investimento total, vemos que, numa lista de 85 países aqueles cujos
dados estavam consolidados em 2017 , os primeiros 31 fazem parte dos
grupos de países periféricos ou semiperiféricos. No Gráfico 4, vemos o
Tadjiquistão com 100% do investimento em P&D feito pelo governo. Porém,
quinze países cujo investimento governamental ultrapassa os 75%. De um
lado, isso demonstra como o baixo nível de acumulação de capital das
empresas desestimula o investimento em P&D, tornando-as dependentes da
tecnologia (ou apêndices) das empresas de outros países e incapazes de
disputar mercados em âmbito global, limitando a possibilidade de obtenção de
lucro adicional e a sua expansão. De outro, em razão dessa situação, como o
investimento estatal em P&D é fundamental para o desenvolvimento
científico-tecnológico (ainda que muito limitado) das empresas nos países
periféricos
16
. Quanto aos países centrais, o primeiro da lista é a Noruega (32º),
com 47%. Os investimentos estatais de Estados Unidos e China, os dois
maiores orçamentos absolutos para P&D, correspondem a 23,1% e 19,8% dos
gastos totais das pesquisas realizadas nos respectivos países.
16
No Brasil, este é o caso da relação entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Embrapa e a expansão do agronegócio nas últimas décadas.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
449
Fonte: UNESCO. Institute for Statistics (UIS). Elaboração própria
Outrossim, embora seja condição necessária, o investimento em P&D
não é condição suficiente para a superação do atraso e da dependência
científico-tecnológica, seja porque a raiz do problema é de natureza social e
não propriamente tecnológica ou, ainda, pelo motivo mais prosaico de que
ciência não se faz apenas com investimento nos meios materiais, mas também
em força de trabalho altamente qualificada, em pesquisadores. Sobre este
aspecto, outra informação relevante para a compreensão desta situação de
dependência dos países periféricos é a quantidade de pesquisadores por
milhão de habitantes. Em primeiro lugar nesse quesito, a Dinamarca possui
quase 12 vezes mais pesquisadores por milhão de habitantes do que o Brasil
(55º): 7.925 x 686. Enquanto isso, na 44ª posição em números relativos, o
primeiro lugar da China em números absolutos (4.381.443) expressa tanto o
tamanho de sua imensa população quanto o esforço recente de formação da
força de trabalho. Como em outros aspectos, a vantagem quantitativa aqui se
transmuta em vantagem qualitativa.
100
98,6
93,8
93,6
93,1
91,4
89,5
85,3
82,3
78,7
77,4
77,4
76,8
75,8
75,0
73,4
72,6
67,2
66,2
66,0
49,7
46,7
41,2
23,1
19,8
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Tajiquistão
Iraque
Egito
Burkina Faso
Argélia
Armênia
Quirguistão
Mongólia
Indonésia
Maurícia
Myanmar
Paraguai
México
Moldávia
Trinidad e Tobago
Etiópia
Argentina
Azerbaijão
Rússia
Cuba
Brasil
Noruega
Bósnia e Herzegovina
EUA
China
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 29 32 44 76 80
Gráfico 4. Investimentos governamentais em P&D 2017
(% do investimento total realizado no país)
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
450
Fonte: UNESCO. Institute for Statistics (UIS). Elaboração própria
Para o capital, esses investimentos só fazem sentido se tiverem retorno
financeiro. Um dos modos de mensurar os resultados econômicos dos
investimentos em P&D (governamental e privado) e força de trabalho é por
meio da comparação referente à quantidade de patentes registradas em cada
país. Sobre isso, vemos que a concentração dos registros de patentes por
origem do proprietário (Tabela 5) reproduz amplamente o padrão da origem
dos investimentos em P&D. Talvez, a mais significativa exceção seja a inversão
de posições entre Estados Unidos e China quando comparados os resultados
em patentes com os respectivos investimentos totais, pois o país asiático passa
da segunda para uma distante primeira posição.
Tabela 5. Total de patentes por residência (país) do proprietário
do registro
País
1980
% total
País
2018
% total
1
Japão
165.766
31,3%
China
1.460.244
42,9%
2
União Soviética
164.852
31,1%
Estados Unidos
515.180
15,1%
3
Estados Unidos
62.561
11,8%
Japão
460.369
13,5%
4
Alemanha
28.973
5,5%
Coreia do Sul
232.020
6,8%
5
Reino Unido
19.713
3,7%
Alemanha
180.086
5,3%
6
França
11.181
2,1%
França
69.120
2,0%
7
Checoslováquia
7.606
1,4%
Reino Unido
56.216
1,6%
8
Rep. Democrática Ale
6.599
1,2%
Suíça
46.659
1,4%
9
Austrália
6.593
1,2%
Países Baixos
36.539
1,1%
7.925
7.498
7.383
6.803
6.722
6.350
6.131
5.530
5.450
5.401
5.388
5.304
5.077
4.960
4.887
4.730
4.561
4.479
4.412
4.368
1.475
1.225
1.192
691
686
494
0
1.000
2.000
3.000
4.000
5.000
6.000
7.000
8.000
Dinamarca
Coreia do Sul
Suécia
Cingapura
Finlândia
Noruega
Islândia
Nova Zelândia
Suíça
Irlanda
Áustria
Japão
Alemanha
Luxemburgo
Países Baixos
Bélgica
França
Eslovênia
EUA
Portugal
Irã
China
Argentina
Uruguai
Brasil (2010)
Chile
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 40 44 46 54 55 63
Gráfico 5. Pesquisadores por milhão de habitantes 2017
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
451
10
Itália
6.484
1,2%
Itália
32.286
0,9%
11
Polônia
6.199
1,2%
Rússia
30.696
0,9%
12
Suíça
4.164
0,8%
Índia
30.036
0,9%
13
Suécia
4.123
0,8%
Suécia
25.310
0,7%
14
Bulgária
3.303
0,6%
Canadá
24.483
0,7%
15
África do Sul
3.102
0,6%
Israel
15.482
0,5%
16
Romênia
2.569
0,5%
Bélgica
14.587
0,4%
17
Áustria
2.345
0,4%
Áustria
14.561
0,4%
18
Brasil
2.150
0,4%
Dinamarca
13.385
0,4%
19
Espanha
1.890
0,4%
Austrália
12.261
0,4%
20
Países Baixos
1.879
0,4%
Irã
12.074
0,4%
Subtotal
512.052
96,5%
Subtotal
3.281.594
96,3%
Outros países
18.350
3,5%
Outros países
126.165
3,7%
Total
530.402
100%
Total
3.407.759
100%
Fonte: WIPO Statistics database. Elaboração própria
Cabe também destacar a perda de fôlego do Japão, que havia
ultrapassado os Estados Unidos na década de 1970 (perda resultante da
generalização do toyotismo/acumulação flexível, que subtraiu o diferencial de
produtividade das empresas japonesas ante as dos outros países, e da pressão
dos Estados Unidos para mudanças na política cambial), e o ocaso dos países
do ex-bloco socialista com a conversão ao capitalismo (mais próximos dos
países periféricos do que dos centrais). Em 1980, enquanto o Japão ocupava a
dianteira, seis países do bloco socialista respondiam por 39% das patentes
registradas (por residência do proprietário) no mundo; mas, em 2018,
contando apenas com a Rússia entre os 20 primeiros, esse número caiu para
ínfimo 0,9%. Quanto aos países periféricos, em 1980, com 1% do total, apenas
Brasil e África do Sul; em 2018, com 1,3%, Índia e Irã. Enfim, aqui observa-se
uma presença chinesa ainda mais espetacular do que nos investimentos e a
manutenção da baixíssima participação dos países periféricos.
Esses e outros dados demonstram que, mesmo que Mészáros tivesse
motivos para suspeitar daqueles que, nos anos 1980, em razão do avanço
econômico dos países europeus e principalmente do Japão, anunciavam o
declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica (MÉSZÁROS, 2002,
pp. 1.087-9), a situação atual é diferente, pois, de fato, a China tornou-se uma
ameaça real à hegemonia estadunidense
17
. É verdade que o gigante asiático
ainda possui uma estrutura econômica marcada por muitas desigualdades no
17
E mais, a China tornou-se o centro da região mais dinâmica do capitalismo global: o leste
asiático. Um fenômeno cujas origens remontam à ascensão japonesa nas décadas posteriores
à II Guerra Mundial. Como diz Arrghi (2013, p. 345), “a arrancada do grande salto à frente
japonês antecedeu e liderou a arrancada regional”. Por sua vez, em conjunto com os Tigres
asiáticos e, last but not least, a China, “no que concerne à expansão material da economia
mundial capitalista, o capitalismo do leste asiático passou a ocupar [nos anos 1990] uma
posição de liderança” (ARRIGHI, 2013, p. 351 grifo do autor).
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
452
ritmo e alcance do desenvolvimento, com alguns setores/regiões atrasadas e,
outro/as, onde o avanço é muito rápido, rivalizando ou mesmo ultrapassando
os Estados Unidos. Um exemplo dessa desigualdade é que os quase 200% a
mais no registro de patentes nos últimos anos ainda não se manifesta nos
valores recebidos pelo uso de propriedade intelectual pelas suas empresas. Isso
porque, pelo caráter fortemente mimético de sua industrialização que, como
visto, resultou no maior parque industrial do mundo , as inovações de maior
valor comercial ainda pertencem aos países centrais especialmente aos
Estados Unidos
18
, o que expressa também a poderosa hegemonia cultural
deste país (ver Tabela 6). Embora seja claro que, pela velocidade das
transformações que ocorrem na China, nada impede que o competente uso do
hard e do soft power mude essa situação nas próximas décadas (DUARTE,
2012; STUENKEL, 2019).
Tabela 6. Valores recebidos pelo uso de propriedade intelectual (US$ 2019)
1970
1980
1990
2000
2010
2019
1
Estados
Unidos
2.330,0
7.080,0
16.640,0
51.807,0
107.522,0
128.931,0
2
Japão
0,0
0,0
0,0
10.227,4
26.680,3
46.853,1
3
Países Baixos
99,7
418,3
1.085,7
2.170,5
24.971,6
38.367,6
4
Alemanha
0,0
606,1
1.987,0
2.535,8
8.276,5
36.170,6
5
Reino Unido
340,8
1.135,1
3.055,0
6.748,8
14.202,6
25.289,4
Suíça
0,0
0,0
0,0
2.204,0
13.358,2
23.906,3
7
França
0,0
495,7
1.294,7
3.974,0
13.625,1
15.370,8
8
Irlanda
0,0
0,0
0,0
0,0
2.920,5
11.090,5
9
Cingapura
0,0
0,0
0,0
65,0
1.933,4
8.472,8
10
Suécia
15,5
89,9
563,0
1.414,4
5.813,0
8.189,3
11
Coreia do Sul
0,0
23,2
37,1
701,5
3.188,4
7.742,0
12
China
0,0
0,0
0,0
80,3
830,5
6.604,7
23
Rússia
0,0
0,0
0,0
91,3
386,2
1.013,7
25
Índia
0,0
0,0
1,3
82,5
127,4
871,6
28
Brasil
0,0
12,0
12,0
125,2
189,6
641,1
33
Argentina
0,0
4,0
4,0
36,8
152,2
270,4
41
África do Sul
4,2
16,7
18,9
49,1
114,0
108,1
64
México
0,0
21,0
73,0
43,1
8,8
7,3
Fonte: World Bank. Elaboração própria
Seja como for, os Estados Unidos ainda são a maior potência global. Por
isso, ainda que percam no número de patentes registradas, as empresas
estadunidenses possuem larga dianteira nos investimentos em P&D nos dois
setores que possuem os maiores gastos nesse quesito: farmacêutica e
biotecnologia e equipamentos de hardware. Neles, os investimentos em P&D
18
As empresas estadunidenses receberam 32,4% do valor contabilizado pelo Banco Mundial
em 2019.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
453
das empresas americanas correspondem respectivamente a 48,5% e 56,1%
19
.
Portanto, ainda é árduo (e incerto) o caminho chinês para a preponderância
econômica, política e cultural global.
Desigualdade
Nesse momento, importa salientar que a desigualdade que divide as
nações conforme o perfil do desenvolvimento capitalista, e as hierarquiza em
razão disso, também divide a população mundial claro, com situações
específicas em cada país em condições muito diversas de renda e acesso a
bens materiais e culturais, bem como quanto aos direitos civis e políticos. Sob
esses aspectos, a desigualdade também é muito significativa em alguns casos,
quase inacreditável, como é o caso de indivíduos com fortunas maiores do que
a maioria dos PIB dos países ou empresas cujo valor em Bolsa as colocariam
entre as maiores economias do mundo.
Em O capital no século XXI, Thomas Piketty (2014, p. 26) afirma, de
modo controverso, que a desigualdade não é necessariamente um mal em si:
a questão central é decidir se ela se justifica e se razões concretas para que
ela exista”. Se entendermos razões como motivos, causas, a afirmação está
certamente correta. Porém, não motivo algum para concordar com
qualquer traço finalístico que ela contenha, qualquer espécie de justificativa,
nem mesmo “que seja ‘fundada na utilidade comum’” (PIKETTY, 2014, p. 37).
Dizer que a desigualdade não é um mal em si pode ser racional para quem
ocupa uma posição social confortável na hierarquia da distribuição de riqueza
e poder, assim como se pode avaliar (geralmente a posteriori) seus efeitos
positivos para a totalidade social o caso, por exemplo, da relação entre o ócio
proporcionado aos senhores pelo trabalho escravo e o surgimento da filosofia),
mas dificilmente o é para quem sustenta com o seu trabalho e a sua submissão
o edifício social. Por isso, algumas páginas adiante no mesmo texto, o próprio
Piketty se trai com a seguinte (e, se a circunscrevermos à relação-capital,
correta) afirmação: “a questão da repartição da produção entre a remuneração
do trabalho e a do capital sempre constituiu a principal dimensão do conflito
distributivo” (PIKETTY, 2014, p. 45). Ademais, a própria preocupação
manifesta em suas obras sobre o tema e o monumental trabalho do seu grupo
de pesquisadores visando sistematizar dados da desigualdade em muitos
países demonstram a importância dessa questão para ele e para qualquer um
que cultive alguma expectativa de justiça, paz e estabilidade social. Mas, de
qualquer modo, à luz do que foi tratado até aqui, é inevitável perguntar: será
que a industrialização de alguns países periféricos e o desenvolvimento pelo
19
Fonte: European Commission. Economics of Industrial Research and Innovation.
<https://iri.jrc.ec.europa.eu/scoreboard/2019-eu-industrial-rd-investment-scoreboard>.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
454
qual passaram diminuíram as suas marcantes as desigualdades sociais? Em
outras palavras, internamente, esses países se tornaram menos desiguais? A
concentração de renda diminuiu e/ou se aproximou das taxas prevalecentes
nos países centrais? Pois bem, a resposta para essas questões é: não.
Numa visão panorâmica sobre a distribuição da renda entre frações da
população mundial isto é, tomada como um todo indiferenciado em relação
a regiões e países , o Gráfico 4 mostra o aumento da concentração da renda
tanto no 1% (de 16,2% para 20,4%) quanto nos 10% (49% para 52,1%) mais
ricos da população. Os 50% da base tiveram um pequeno incremento da sua
renda proporcional, passando de 7,9% para 9,7% o; mas, mesmo assim, em
2016 ficaram com menos da metade da renda total apropriada pelo 1% do topo.
No entanto, os ganhos das três faixas de renda (topo e base) ocorreram às
custas dos 40% da faixa intermediária, que passaram de 26,9% para 17,8%.
Fonte: WID WORLD Database. Elaboração própria
No Gráfico 5, vê-se como os países periféricos continuam a ser os mais
desiguais. Na liderança, os países da América Latina, com o 1% mais rico da
população se apropriando de 27,9% da renda nacional. Na sequência, Oriente
Médio e Índia, com 24,3% e 21,3%. Por sua vez, os menos desiguais são os
países europeus, com média de 10,4%. Também chama a atenção o
7,9%
9,7%
49,0%
52,1%
16,2%
20,4%
26,9%
17,8%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Gráfico 4 - Distribuição da renda entre topo e base da população
mundial - 1980-2016
50% da base 10% do topo 1% do topo 40% restantes
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
455
crescimento da desigualdade na China (13,9%), Estados Unidos (20,2%) e,
com muita rapidez, na Rússia e Ucrânia, que, entre 1980 e 2015, viram a fração
da riqueza nacional do 1% passar de 3,4% para 20,2%.
Fonte: WID WORLD Database. Elaboração própria
Por essas informações, a aproximação que, em alguns casos, têm
ocorrido nos níveis de desigualdade interna entre os países periféricos e os
centrais parecem dever muito mais ao crescimento da desigualdade nestes
sobretudo nos Estados Unidos do que à diminuição da desigualdade
naqueles.
10,4%
27,9%
19,1%
13,9%
21,3%
20,2%
24,3%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
Gráfico 5 - Percentual da renda nacional apropriada pelo 1% mais
rico - 1980-2015
União Europeia América Latina Rússia e Ucrânia África
China Índia Estados Unidos Oriente Médio
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
456
Fonte: WID WORLD Database. Elaboração própria
Como o sistema do capital é inerentemente polarizado e desigual, seu
incontrolável impulso de autovalorização não o leva a se expandir por novas
localidades, regiões, de modo suave e homogeneizante. Muito pelo contrário,
o seu processo de expansão é tortuoso, violento, com uma tendência altamente
concentradora de riqueza, processos, pessoas etc. Mesmo que haja tendências
que atuam em sentido oposto, estas são temporal e espacialmente circunscritas
e não estabelecem um impedimento absoluto às tendências de concentração
(MÉSZÁROS, 2002). Nesse sentido, com suas características peculiares, o
neoliberalismo é mais um momento de intensificação das forças que atuam em
prol da concentração da riqueza isto é, da recuperação do poder e da renda
das classes capitalistas” (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 63). E não o apenas aos
marxistas que reconhecem a inevitabilidade dessas tendências concentradoras
(que, é melhor dizer, não implica na falsa tese da tendência à “pauperização
absoluta” do proletariado). Segundo Piketty (2014, p. 33), as “forças de
convergência [que diminuem as desigualdades] /.../ em alguns países e
determinados momentos /.../ podem predominar; contudo as forças de
divergência têm sempre a capacidade de se restabelecer, como parece estar
acontecendo no mundo agora, neste início do século XXI”. Nesse sentido, a
tendência concentradora de riqueza e, portanto, disseminadora da
desigualdade não é um problema secundário, circunscrito e controlável das
sociedades assentadas na relação-capital, mas uma característica inextirpável,
49,0%
54,6%
55,6%
63,7%
64,3%
82,5%
50,8%
66,4%
66,5%
54,5%
62,8%
67,2%
67,9%
88,9%
51,9%
73,9%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
100%
China França Índia Coreia do
Sul
Federação
Russa
África do
Sul
Reino
Unido
Estados
Unidos
Percentual da riqueza líquida pessoal apropriada pelos 10% mais
ricos (países selecionados) - 2002-2012
2002 2012
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
457
que, podendo ser constrangida num certo marco temporal e espacial, tende
sempre a retornar e em níveis cada vez mais elevados.
Democracia
Dentre as expectativas de muitos daqueles que não circunscreviam o
desenvolvimento à sua dimensão econômica industrialização ou crescimento
do PIB e da renda per capita , a constituição de estados democráticos era um
dos mais importantes objetivos. Para Celso Furtado, por exemplo, a liberdade
somente poderia ser estabelecida como um componente fundamental da vida
nacional com a eliminação da pobreza, a diminuição das desigualdades sociais
e regionais e com o acesso às formas superiores da vida pública” (FURTADO,
1962, p. 22), sem as quais as massas populares jamais poderão dar-lhe o devido
valor. Em outras palavras, tanto quanto a melhoria das condições de vida
material, uma forma de “vida mais plena” exige a consolidação da forma de
organização político-social [que] constitui o marco dentro do qual se afirmam
as manifestações superiores da vida humana” (FURTADO, 1962, p. 27), a
saber, para ele, o estado liberal democrático ou seja, a democracia burguesa.
Mas, a despeito dessas ilusões sobre a profundidade das democracias nos
países centrais e a possibilidade de desenvolvimento de regimes políticos
congêneres nos países periféricos (ilusões presentes nele e em outros autores
ditos desenvolvimentistas ou progressistas), a crise do capital e o
neoliberalismo têm significado a erosão das democracias não apenas nestes
donde são recentes e pouco consolidadas , mas também naqueles.
No caso dos periféricos, os motivos da fragilidade das democracias são
conhecidos: no contexto de manutenção ou reconfiguração da polarização e
das desigualdades econômicas globais, tem-se o aprofundamento da
dependência econômica (técnico-científica e financeira) e política, a
incompletude da reprodução do capital e as consequentes contrafaces
objetivas e subjetivas de suas respectivas classes dominantes
20
, as enormes
desigualdades econômicas internas, além da acentuada pobreza material e
educacional de amplos segmentos das massas populares. Quanto aos países
centrais, também se observa neles o enfraquecimento das conquistas
democráticas do século XX, sejam elas formais (direitos civis e políticos) ou
materiais (perda de direitos trabalhistas e sociais, desmonte dos serviços
públicos). Domenico Losurdo considera que um processo que, diga-se,
não é novo, mas recorrente de des-emancipação” dos cidadãos nas
20
Nas palavras de Chasin (1977, pp. 44-5), “é numa configuração desta ordem que se põe o
capital industrial no Brasil, tendo por suporte, então, uma burguesia especialmente despojada
de ‘ilusões humanitárias’, e especialmente tolhida por fronteiras objetivas e subjetivas que
demarcam seu estreito espaço histórico”.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
458
democracias burguesas contemporâneas. Na teoria, ele encontra
demonstrações da “redução e redefinição da democracia” em autores como
Popper, Dahrendorf e até em um liberal bem quisto entre os progressistas
como Bobbio (LOSURDO, 2004). Para a cientista política estadunidense
Wendy Brown, a ruína da democracia está relacionada ao fato de que o
neoliberalismo é mais do que um processo de natureza política e econômica,
constituindo uma “ordem normativa da razão” que “transforma cada domínio
humano e cada empresa junto com os próprios seres humanos em
conformidade com uma imagem específica do econômico”, cuja “tarefa é
melhorar o seu posicionamento competitivo e fazer uso dele(BROWN, 2017,
s. p.). Mas, se ela tem razão em demonstrar a abrangência da hegemonia
neoliberal e suas conexões com a ruína da democracia, nunca é demais frisar
que o neoliberalismo é primariamente um complexo de ideias e práticas cujo
cerne é a desregulamentação das relações econômicas e das instituições com o
objetivo de aumentar a mobilidade do capital especialmente do capital
financeiro , a sujeição da força de trabalho e, com isso, recompor a taxa de
lucro das empresas as quais, tendo crescido nas duas primeiras décadas do
pós-guerra, começaram a declinar a partir de meados da década de 1960 e a
renda dos capitalistas (DUMÉNIL, LÉVY, 2014, pp. 63-79). E mais do que isso:
A desregulamentação, que é absolutamente uma política desejada e
conscientemente posta em ação e não um fato natural que se impõe
por si mesmo, permite às estratégias das grandes firmas escaparem
às obrigações que poderiam representar as políticas de estado, em
sua ausência. Entretanto, os fatos mostram que essas estratégias
independentes das firmas privadas não constituem um conjunto
coerente que garante a estabilidade de uma nova ordem. Elas, ao
contrário, geram o caos e, por isso, revelam a exatamente a
vulnerabilidade dessa mundialização que, por esse motivo, será
recolocada em questão. (AMIN, 2006, p. 135)
Embora afete duramente todos os países, o impacto político da ascensão
neoliberal é sentido com muito mais intensidade nos periféricos. Decerto,
partidos de direita e extrema-direita cresceram em todo o mundo. Em alguns
países centrais, representantes desses partidos ocupam posições de crescente
importância nos parlamentos (Áustria, Itália, Alemanha, França); em outros,
elegeram presidentes, cujo caso mais emblemático é o da mais consagrada
democracia ocidental, os Estados Unidos, que, em 2016, elegeu um presidente
que flerta abertamente com ideias segregacionistas e autocráticas. O mesmo
presidente que, mesmo tendo sido agora eleitoralmente derrotado por Joe
Biden e sua tradicional plataforma liberal, conseguiu uma votação expressiva
e mantém o país sob a espreita da extrema-direita. No leste europeu, Hungria
e Polônia têm governos de extrema-direita que impuseram uma ampla
regressão nos direitos civis e políticos. Nas franjas da Europa, a Turquia está
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
459
na mesma condição. Rússia e outras ex-repúblicas soviéticas têm democracias
com fortes traços autocráticos, nas quais os direitos civis e políticos são
bastante restritos. Na América Latina, na qual muitos países amargaram
décadas de regimes militares (1960/80), os últimos anos foram marcados pelo
fim da chamada “onda progressista” (anos 2000). Por meio de eleições
(Argentina, Uruguai, Chile, Peru), golpes jurídico-parlamentares (Honduras,
Paraguai, Brasil) ou militares (Bolívia), houve a substituição de governantes de
centro ou centro-esquerda por representantes das frações mais truculentas da
direita tradicional (Macri, Piñera) ou da extrema-direita (Bolsonaro, Jeanine
Áñez). E, embora sejam um alento, as recentes eleições de Hernández
(Argentina) e Luís Arce (Bolívia) e as mobilizações populares chilenas que
culminaram numa Assemblei Constituinte não foram suficientes para reverter
a conjuntura política e, muito menos, o quadro de retrocesso social da América
do Sul. Portanto, em meio a idas e vindas eleitorais, nada indica a abertura de
uma conjuntura política favorável às forças populares e à efetivação de suas
demandas.
Esse contexto de predomínio de neoliberais e da extrema-direita é um
gravíssimo problema para a esquerda e as massas populares. Porém, se a sua
gravidade não pode ser negligenciada, ela também não pode ser sobrestimada
e, muito menos, motivo para a criação de ilusões em saídas de composição com
forças políticas comprometidas com a eliminação das conquistas democráticas
substantivas. A necessidade de articulação das liberdades formais com
conquistas materiais é o motivo pelo qual as democracias liberais nunca foram
a forma dominante dos estados burgueses nos países periféricos e
semiperiféricos. Neles, estados democráticos são, com raríssimas exceções,
relativamente recentes e muito instáveis, tendo se generalizado como forma
política somente dos anos 1990 para cá. Ou seja, justamente com o fim da
guerra fria e da “ameaça socialista”.
Na verdade, se formos rigorosos, estados democráticos também são
exceções na história dos próprios países capitalistas centrais, basta lembrar
que a tão celebrada democracia estadunidense aceitava o tratamento dos
negros como cidadãos de segunda classe até os anos 1950/60. Nesse sentido,
se, como lembra Wendy Brown (2017, s. p.), o momento atual é de ocaso das
democracias ocidentais “ao final da Guerra Fria, enquanto os especialistas
celebravam o triunfo mundial da democracia, se desatava uma nova forma de
razão governamental no mundo euroatlântico que inauguraria a demolição
conceitual da democracia e sua evisceração substantiva” , é certo também
dizer que as democracias foram (e são) uma forma política excepcional na
história das sociedades capitalistas e, pelo curso dos acontecimentos recentes,
não nenhum motivo para crer que algum dia elas serão globalmente
dominantes ou temporalmente duradouras. Como o neoliberalismo parece
indicar, sem um outro que as ameacem no caso, os movimentos e forças
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
460
socialistas , as classes dominantes das sociedades capitalistas centrais
sentem-se suficientemente fortes para minar os aspectos mais universalistas e
substantivos das democracias burguesas e, com isso, aprofundar o seu caráter
primordialmente instrumental isto é, mantê-las de modo mais aparente do
que real. Inclusive, o espetacular crescimento econômico da China pode ser
não a esperança (cultivada pelos democratas) de democratização do país aos
moldes dos países capitalistas centrais, mas, para as classes dominantes
destes, a mais reluzente expressão da possibilidade de compatibilização entre
acumulação, crescimento da complexidade econômica e social e predomínio
de formas autocráticas de governo.
Enfim, não apenas a esperança econômica dos desenvolvimentistas dos
anos 1950-60 não se realizou com a industrialização como a reação neoliberal
ainda expôs completamente os simulacros de democracia burguesa dos países
periféricos e despedaçou as ilusões na consistência econômica e nas tendências
democratizantes e redutoras da desigualdade do capitalismo dos países
centrais. Com isso, foram corroídos os atributos das democracias burguesas
concernentes com certas liberdades e direitos civis e, assim, com qualquer
compromisso e ilusão que, sob força das circunstâncias, elas tenham nutrido
em relação a ideias e práticas de justiça social. Eis o que a esquerda teima em
não enxergar ou teme fazê-lo.
Considerações finais
Se a industrialização de alguns países alimentou as expectativas dos
teóricos do desenvolvimento no imediato pós-guerra sobre o futuro dos países
periféricos e a possibilidade de superação da desigual divisão mundial do
trabalho, a qual condenava alguns a exportadores de matérias-primas e,
outros, a usufruírem as benesses da produção e exportação de produtos
industrializados, o esgotamento do “ciclo sistêmico de acumulação norte-
americano” (ARRIGHI, 2013), o deslocamento do eixo industrial e econômico
global para o leste asiático, a crise dos anos 1970/80 e a reação neoliberal os
levaram à estagnação da industrialização ou, no máximo, ao crescimento de
indústrias de baixo incremento tecnológico ou de montagem de produtos sem
o correspondente domínio da produção dos componentes mais complexos.
Fora do novo centro da acumulação do capital (o leste asiático), países como
Argentina, Brasil, México, África do Sul e outros, mesmo que o crescimento
econômico absoluto tenha ampliado a sua participação na economia mundial,
estagnaram ou regrediram, em termos proporcionais e qualitativos, ante o
pouco conquistado no ciclo industrializante. E mais, também tiveram esse
decepcionante desempenho quando a renda per capita é comparada àquela
dos países centrais.
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
461
Não bastasse essa modernização” reprodutora das fragilidades
econômicas portanto, da dependência tecnológica e financeira em relação
aos países centrais , outros problemas estruturais também foram apenas
reciclados, mas não resolvidos. Para mais ou para menos, esses países
mantiveram praticamente inalteradas as suas enormes desigualdades internas
na distribuição da renda e do patrimônio, assim como, em países como o
Brasil, pouco ou nada mudaram em relação às desigualdades regionais.
Igualmente, as expectativas de construção de sociedades mais democráticas
não se realizaram com o fim as ditaduras militares e, mais recentemente,
também naufragaram com a ruína da “onda progressista” sul-americana, a
eclosão dos golpes jurídico-parlamentares, a permanência de regimes civis e
militares autocráticos e a ascensão da extrema-direita em diversos países.
Mesmo num país de desempenho econômico excepcional, que o alçou à
condição de potência global, como é o caso da China, as desigualdades não
foram resolvidas e nem amenizadas; ao contrário, foram agravadas. Esses,
portanto, são apenas alguns exemplos de como aqueles graves problemas
econômicos, sociais e políticos denunciados nos anos 1950/60 não foram
eliminados, mas reproduzidos em nível superior isto é, não em países
agrários, mas industriais e urbanos. E mais, continuam a sê-lo com intensidade
num contexto em que a reação neoliberal tem ampliado as desigualdades e
arruinado a democracia nos próprios países centrais.
Diante disso, uma questão feita no início precisa ser recolocada: é
racional manter a expectativa de superação desses graves problemas dos países
periféricos sob o império do capital?
Num posicionamento radical ante o problema e sendo fiel às
contribuições teóricas de Marx, István Mészáros sustenta que não qualquer
possibilidade de enfrentar os graves problemas das sociedades capitalistas
(centrais ou periféricas) e pós-capitalistas sem que uma real “alternativa
socialista” se imponha e, com ela, ocorra a superação de três contradições
fundamentais da relação-capital: “entre produção e controle, produção e
consumo, produção e circulação” (MÉSZÁROS, 2002, p. 115). E, embora não
possa surgir pronta das entranhas dessa relação, essa superação constitui o
âmago e, portanto, objetivo a ser permanentemente buscado de qualquer
mudança social radical. Todas as alternativas a esta podem implicar/induzir
mutações nas formas e dinâmica na reprodução do capital, inclusive com
deslocamentos em seu centro geográfico, como demonstram as pesquisas de
Wallerstein e Arrighi sobre os ciclos sistêmicos de acumulação de Gênova à
Holanda, desta à Inglaterra, aos Estados Unidos e, agora, ao leste asiático.
Ocorre que, deslocando-se de um lado a outro e alternando as suas
configurações sociais e políticas (do capitalismo ao pós-capitalismo, passando
pelas diversas articulações entre livre-comércio e intervenção estatal), as
experiências socialdemocratas e pós-capitalistas do século XX demonstram
Ronaldo Fabiano dos Santos Gaspar
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que, apesar de algumas restritas e agora cambaleantes “ilhas de prosperidade
(Europa do norte), os efeitos deletérios do domínio do capital permanecem em
âmbito global da desigualdade à crise ambiental, passando pela colossal
dilapidação de riquezas materiais e humanas sob a regência de seu infinito e
incontrolável processo de autovalorização. Sendo assim, em oposição ao lema
da dama de ferro do neoliberalismo There is not alternative! , Mészáros
considera que alternativa. Porém, essa alternativa não passa pela ilusão
desenvolvimentista de controlar o capital, mas por sua supressão. Como? Eis
a questão.
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Como citar:
GASPAR, Ronaldo Fabiano do Santos. Capitalismo periférico: do
desenvolvimento atrofiado à reiteração das desigualdades globais. Verinotio
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2,
pp. 432-64, jul./dez. 2020.
Data do envio: 9 set. 2020
Data do aceite: 2 dez. 202