Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
Sobre os elementos da crítica
lukácsiana a Heidegger
de
A destruição da razão
a
Para uma ontologia do ser social
Ronaldo Vielmi Fortes
*
Resumo: O artigo busca estabelecer os
elementos centrais das críticas de György Lukács
ao filósofo Martin Heidegger, expostas em rios
momentos de suas obras. Busca demonstrar os
elementos de continuidade e descontinuidade ao
longo de suas obras, desde a ênfase dada pelo
autor na questão da crítica ao irracionalismo até
a explicitação de sua ontologia do ser social.
Palavras-chave: Ontologia do ser social; Martin,
Heidegger e György Lukács; marxismo e
ontologia.
Abstract: The article proposes to follow along
the works of György Lukács the central elements
of the criticism that the author directs to the
philosopher Martins Heidegger. It seeks to
demonstrate the elements of continuity and
discontinuity throughout his works, from the
emphasis given by the author on the issue of
criticism of irrationalism to the explanation of
his ontology of social being.
Keywords: Ontology of the social being; Martin
Heidegger and György Lukács; Marxism and
ontology.
A determinação social do pensamento
As obras de Lukács m como elemento central a compreensão do pensamento
de Marx como ponto de inflexão na história da filosofia. Para Lukács, Marx constitui o
ponto de chegada do longo decurso do pensamento filosófico e, uma vez atingido
esse patamar, é preciso, à luz de suas conquistas e aquisições, retomar criticamente a
tradição e estabelecer de outra forma os rumos para a compreensão do ser social. Por
mais que pareça pretencioso o entendimento de Lukács, seus escritos principalmente
em sua fase tardia expressam essa empreitada, toma o pensamento de Marx para a
crítica da trajetória da filosofia e busca desdobrar as consequências abertas por suas
reflexões. Trata-se de considerar o que há de grandioso no pensamento ocidental,
assim como seus equívocos, e é Marx quem possibilita o metro crítico filosófico para
a determinação do que o antecede. Há, portanto, uma tripla diretriz que perpassa obra
lukácsiana: os escritos de combate em que refuta os descaminhos das formações ideais
anteriores e de seu tempo, a compreensão dos limites e da grandeza das filosofias
pregressas e a determinação de caminhos reflexivos inovadores decorrente da inflexão
*
Prof. Adjunto da Faculdade de Serviço Social - UFJF. Doutor em filosofia pela FAFICH-UFMG. E-mail:
vielmi.ronaldo@ufjf.edu.br.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.601
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 241
filosófica de Marx.
A crítica de Lukács possui uma peculiaridade que deve ser destacada: a
percepção da determinação social do pensamento. Longe de ser uma crítica teórica
sob critérios meramente gnosiológicos, com base na simples explicitação das querelas
dos fundamentos, das disputas “escolásticas” entre as diversas correntes de
pensamento, Lukács considera que todo pensamento deve ser compreendido a partir
do tripé analítico, qual seja: a gênese e função social do pensamento e a análise
imanente do pensamento do autor estudado. O pensamento expressa a atmosfera de
um tempo, nesse sentido as formações ideais podem corresponder e refletir em si as
tendências e fenômenos específicos da realidade social, na medida em que ao
pretender explicitar as dinâmicas, diretrizes sociais etc. existentes traz à consciência a
percepção dos grandes dilemas sociais e adentra no combate das ideias que buscam
estabelecer direcionamentos capazes de intervir na resolução dos conflitos sociais. Em
outras palavras, todo pensamento filosófico relevante parte dos conflitos presentes em
sua sociedade, procura compreender quais os grandes problemas de determinada
época, e a partir dprocura construir caminhos para a sua resolução. A questão que
se coloca, desse modo, é a natureza do entendimento dos conflitos e das prospectivas
propostas, que podem tanto servir como forma de conservação da estrutura social
posta, como podem confrontá-la diretamente, propondo a urgência da transformação
social.
Sob tal aspecto, as formações ideais próprias da
reação
não são formas do falso
voluntariamente constituídas que visam a dominação ou a justificação do
status quo
,
algo que as reduziria à condição das construções filosóficas como meros aparatos da
instrumentalidade política. O que não quer dizer que existam teorias inocentes, pelo
contrário,
“es gibt keine ‘unschuldige’ Weltanschauung”
[não visão de mundo
“inocente”] (LUKÁCS, 2020, p.10). No caso das assim chamadas ideologias
reacionárias, ou seja, aquelas que favorecem a preservação da sociabilidade vigente,
pode-se afirmar que a posição social do filósofo, do pensador que assume as formas
de compreensão de mundo com base nas posições de sua classe, o leva a formar suas
ideias a partir de suas opções sociopolíticas, o que por vezes, ainda que sem uma
intencionalidade política direta, pode conduzir a justificações e à defesa da forma de
sociabilidade posta. Nesse sentido, os produtores das formações ideais, das assim
chamadas ideologias justificatórias da sociabilidade, terminam por refletir de maneira
espontânea os processos sociais com base nas concepções de mundo da classe social
Ronaldo Vielmi Fortes
242 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
com a qual se identificam. Ainda que por vezes o façam de um modo honesto, o fazem
a partir de uma perspectiva subjetiva, e mesmo que de maneira involuntária, terminam
por atuar na preservação dos modos de exploração e domínio da sociabilidade do
capital
1
.
O aparente paradoxo consiste em que mesmo na crítica à sociabilidade podem
estar contidas ideias justificadoras do
status quo.
Para sermos mais diretos, na própria
crítica ao capitalismo feitas por dadas vertentes do pensamento filosófico (Lukács
demonstra isso a partir de Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche etc e, evidentemente,
de Heidegger), podem estar presentes ideias que, em última instância, defendem a
irredutibilidade e insuperabilidade da forma social vigente. Lukács explicita tal ideia a
partir da imagem do “grande hotel abismo” (LUKÁCS, 1984)
2
. Vale aqui tecer algumas
considerações para compreender essa observação crítica de Lucs.
Para o autor, o processo de desilusão com o capitalismo inicia-se em meados do
século XIX. As revoluções de 1848 põem em xeque a ideia do progresso da
sociabilidade capitalista. Esse período conturbado do século XIX fizeram com que se
agudizassem os conflitos e revelassem contradições impossíveis de serem resolvidos
sobre as bases próprias da sociabilidade capitalista. Encerrou-se nesse contexto o
período heroico da revolução burguesa
3
, as ideias revolucionárias necessárias para a
edificação do novo mundo foram substituídas pelas ideias e filosofias que passaram a
justificar das mais diversas maneiras a sociabilidade capitalista
4
. O processo de
decadência da sociedade do capital termina por produzir uma filosofia pessimista,
1
“Seria um erro crer que esse estreitamento abstrato da realidade e essa desfiguração idealista
pudessem ser o efeito, num pensador de elite, de uma intenção consciente de enganar seu mundo. Ao
contrário: pode-se dizer que as experiências vividas, sobre as quais se funda o comportamento que se
manifesta pela intuição da
Wesensschau
, são tão sinceras e espontâneas quanto possível. É evidente,
no entanto, que essa sinceridade não poderia ser a garantia de sua verdade objetiva.” (LUKÁCS, 1979,
p.77).
2
Lukács escreveu, em 1933, um pequeno artigo intitulado “Grande hotel abismo”. O artigo não chegou
a ser publicado, vindo a público somente após a sua morte. No Brasil, foi traduzido por Claudinei Cássio
que traduz o texto a partir da tradução da língua espanhola estabelecida por Miguel Vedda.
<https://www.marxists.org/portugues/lukacs/1933/mes/91.pdf>, acesso em 20 jun. 2021.
3
“A filosofia burguesa clássica deu lugar ao nascimento e ao desenvolvimento de uma ideologia
universal e potente, colocada sob o signo do progresso. Nessa época, a filosofia ocupava o cume das
ciências humanas; era o termo, a base e o quadro de todo o conhecimento. A ideologia constituía então
o objeto propriamente dito da filosofia, ela própria produto orgânico do progresso social ininterrupto,
término e corolário do conjunto da atividade científica de cada etapa da evolução social.” (LUKÁCS,
1979, p.43).
4
“O período economicamente repleto de compromissos sociais desviou-se com preguiça e covardia de
toda questão ideológica, cujo estudo julgava inútil, declarando anticientíficas as grandes realizações
ideológicas do peodo precedente. Quanto à "intelligentsia" do peodo de crise, aspira à resignação e
ao reconforto que uma ideologia nova devia fornecer-lhe.” (Idem, ibidem)
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 243
erguida com base no desespero mediante o diagnóstico que dilacerou a ideia de
progresso social que inspirara as fases anteriores do período revolucionário da
burguesia
5
. Impossibilitados de ignorar os conflitos cada vez mais complexos e
insolúveis da sociabilidade do capital, parte dos intelectuais se puseram a denunciar
as contradições da realidade. No entanto, desenvolveram sua crítica pondo de lado as
raízes concretas, as causas materiais efetivas das crises sociais, ou seja, desprezaram
a raiz econômica como dimensão de última instância dos enlaçamentos sociais. O
campo da reprodução material da sociedade foi rejeitado e posto “em segundo plano
como desprezível submundo da existência” (LUKÁCS, 2013, p.513). Os problemas
concretos assumiram nessas perspectivas críticas caráter existencial ou mesmo se
ergueram sob critérios morais ou religiosos (caso de Kierkegaard), apartando-se da
compreensão das bases materiais da gênese e dos desdobramentos dos conflitos
sociais. Nos termos de Lukács, “o nível espiritual para a intelectualidade burguesa
consistiu] precisamente em tratar os problemas ideológicos de um modo puramente
ideológico, isolados no círculo mágico da ideologia” (LUKÁCS, 1984, p.190). Em última
instância, é a forma de lidar com os conflitos da sociedade burguesa a partir do ponto
de vista da própria burguesia. Ao invés da crítica para a revolução, constroem a crítica
resignada
6
da realidade. A transformação social sai de foco, a formação histórica do
capital é vista como insuperável, como condão universal da humanidade, fazendo
com que as alternativas recaiam quase exclusivamente sobre as formas de reação
possíveis da do sujeito diante da objetividade social fatídica.
Daí decorre a figura do “Grande hotel abismo” forjada por Lukács:
Todos podem ter a satisfação de representar o único ser sensato na Torre de
Babel da loucura universal. A daa macabra das cosmovisões que tem lugar
a cada dia e a cada noite neste hotel se volta, para seus habitantes, numa
agradável e excitante banda de jazz, com cuja música se podem recuperar da
desgastante atividade do dia. Deveríamos nos assombrar que muitos
intelectuais, ao final de um caminho desgastante e desesperador, se
contentem em dar conta dos problemas insolúveis da sociedade burguesa de
um ponto de vista burguês; de que, ao chegar na borda deste abismo,
preferiram se instalar com comodidade neste hotel antes de quitar seus
5
Na conferência de 1946, constante nessa edição, Lukács descreve quatro dimensões dessa crise: “crise
da democracia, crise da ideia de progresso, crise da crença da razão, crise do humanismo. Cada um
desses complexos surgiu do triunfo da grande Revolução francesa. Todos os quatro atingiram seu ponto
de culminação no período imperialista” (
Rencontres Internacionales,
200).
6
“... uma ‘revolução’ que conserva inteiramente os privilégios da burguesia, que, sobretudo, defende
apaixonadamente o modo privilegiado de viver da intelectualidade burguesa, imperialista e parasitária;
uma “revolução” que se dirige contra as massas, que confere ao medo que os privilegiados têm de
perderem seus privilégios econômicos e culturais uma expressão patético-agressiva, que disfarça o
caráter egoísta desse medo.” (LUKÁCS, 2020, p.277).
Ronaldo Vielmi Fortes
244 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
resplandecentes vestidos e se atrever a dar o salto vital por cima do abismo?
Deveríamos nos assombrar que este hotel, luxuosamente equipado para as
cúpulas mais elevadas da intelectualidade, tenha por todas as partes suas
pias mais provincianas e menos luxuosas no interior da intelectualidade e
da pequena burguesia? Na sociedade burguesa de nossos dias, toda uma
série de transições que vão desde as bandas de jazz, orquestradas com
refinamento, de dança macabra das cosmovisões, até os coros ordinários e
gramofones de bares autênticos, donde também se bebe e tem lugar a dança
macabra das cosmovisões burguesas, a maioria das vezes, de um modo
completamente inconsciente para o pequeno-burguês ali presente. (Grande
Hotel Abismo, p.189-90).
Em seu livro
A destruição da razão
, onde parte dessas ideias vem a público pela
primeira vez de maneira mais elaborada, ao tratar da filosofia de Schopenhauer o autor
expõe sua crítica com base na mesma figura do
Grande hotel abismo:
A filosofia de Schopenhauer recusa a vida de qualquer modo e lhe contrapõe,
como perspectiva filosófica, o nada. Mas é possível viver semelhante vida?
[...] Se observarmos a filosofia de Schopenhauer
em seu conjunto
, a resposta
é sim, pois a ausência de sentido da vida significa, sobretudo, a libertação
do indiduo de todas as obrigações sociais, principalmente, da
responsabilidade diante do desenvolvimento da humanidade, que, aos olhos
de Schopenhauer, sequer existe. E o nada, como perspectiva do pessimismo,
como horizonte de vida, de modo nenhum é capaz, segundo a já referida
ética schopenhaueriana, de impedir o indivíduo, ou mesmo de inibi-lo, de
conduzir a vida de maneira prazerosa e contemplativa. Pelo contrário. O
abismo do nada, o fundo obscuro da ausência de sentido da existência,
confere a esse gozo da vida apenas um fascínio picante. [...] Assim o sistema
de Schopenhauer [...] erige-se como um elegante e moderno hotel, equipado
com todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo. E a visão
cotidiana do abismo, entre refeições ou criações artísticas confortavelmente
saboreadas, pode aumentar a alegria desse sofisticado conforto. (LUKÁCS,
2020, pp.218-9).
Com Schopenhauer tem início o que Lukács designou como a classe de
intelectuais rentistas, por vezes referida por ele com grande escárnio como a
intelligentsia
parasitária:
Schopenhauer é, portanto, na Alemanha, o primeiro grande exemplo de um
escritor rentista, um tipo que há muito já havia se tornado importante para a
literatura burguesa dos países capitalistas desenvolvidos. (É significativo que
também Kierkegaard e Nietzsche possuam uma independência de rentista
em muitos aspectos semelhante.) Essa falta de qualquer preocupação
material na vida constitui a base da independência de Schopenhauer não
em relação às condições semifeudais de vida determinadas pelo Estado
(carreira universitária etc.), mas também em relação às correntes espirituais a
elas ligadas. Nesse sentido, é-lhe possível, em todas as questões, assumir,
sem sacrifício, uma posição pessoal livremente escolhida. Nisso ele se torna
o modelo da intelectualidade burguesa “rebelde” da Alemanha. (LUKÁCS,
2021, pp.177-8).
A atmosfera histórica ganha conotação decisiva na determinação social do
pensamento, ela reflete o contexto de época e a percepção criada por determinadas
classes sociais acerca da realidade social. Em uma relação de determinação de reflexão,
o pensamento nasce do “clima” histórico, aparece como influente exatamente por ser
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 245
a expressão dessas condições, por ser capaz de traduzir os sentimentos de dada classe
social em determinada época, e, assim, retroage sobre o próprio campo social podendo
impactar sobre ele de maneira decisiva, na medida em que pode vir a atuar como
forças sociais operativas e eficazes.
A grande filosofia se reporta constantemente ao mundo, à realidade humana de
determinadas épocas, enfim, ao pensar o mundo a filosofia constrói o mundo, atua na
edificação dos caminhos que são assumidos pelos indivíduos mediante o campo das
possibilidades postas pela malha social. Todo grande pensamento tem sua nese e
função determinadas socialmente, para ser influente precisa de um modo ou de outro
ser capaz de expressar e corresponder ao campo das formões sociais, atendendo
às expectativas dos indivíduos assim como das classes sociais. Isso somente pode se
cumprir na medida em que são capazes de expressar estados de ânimo oriundos da
crise da sociedade capitalista, atuando de forma a tomar consciência dos conflitos e
problemas sociais concretos e a construir uma posição diante deles.
Esses aspectos são válidos tanto para aquelas formações ideais que atuam na
preservação do
status quo
, quanto para aquelas que visam de maneira direta a
transformação das bases societárias então vigentes. Nesse sentido, Lukács reitera e
explicita com maior precisão em sua obra tardia,
o marxismo viu a si mesmo desde o início como órgão, como instrumento
para combater nos conflitos de seu tempo, e acima de tudo o conflito central
entre burguesia e proletariado. [...] Por outro lado, o marxismo pretende
sempre, em todos os seus discursos teóricos, históricos e de crítica social,
ser científico. (LUKÁCS, 1986, p.495)
Em Marx não vemos, portanto, a negação de seu pensamento como ideologia, o
que não significa que sua filosofia sucumba à condição de mera doutrina dogmática
de cunho politicista, ou seja, não é de modo algum a redução a uma forma de ideologia
no sentido pejorativo, como de fato aconteceu no stalinismo. Para Lukács, o marxismo
combina de maneira consciente a ciência e a ideologia como elementos que se
complementam: de um lado o rigor na apreensão da realidade social, de outro a
necessidade de intervir nesta realidade. Princípio decisivo de todo o pensamento de
Marx, cujo fundamento pode ser identificado na última tese
Ad Feuerbach
que
propugna a unidade entre a interpretação e a transformação do mundo.
A crítica a Heidegger em
A destruição da razão
É com base nesses elementos que Lukács critica Martin Heidegger assim como
Ronaldo Vielmi Fortes
246 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
a outros pensadores do irracionalismo , não como mera querela filosófica de
fundamentos, ou como a dencia de uma defesa cínica e direta das formações
capitalistas, mas por meio da consideração do papel que tal pensamento cumpre
mediante as grandes questões humanas postas pela sociabilidade do capital. Como
bem ressalta Lukács, em
A destruição da razão
, Heidegger não se furta a apresentar a
crítica de fenômenos contraditórios concretos da sociedade capitalista, mas o faz sob
a perspectiva bem peculiar que reflete em sua filosofia os estados de ânimo e as
expectativas próprias aos indivíduos de determinada classe social:
Heidegger traça, com os recursos da fenomenologia, uma série de imagens
interessantes da vida interior, da concepção de mundo em que se reflete o
processo de desintegração da intelectualidade burguesa dos anos do pós-
guerra. Imagens sem dúvida alguma sugestivas, pois são, no plano descritivo,
imagens autênticas e fiéis daquele reflexo da consciência que a realidade do
capitalismo imperialista, no período do pós-guerra, provoca naqueles que
não têm nem a capacidade nem o interesse de se colocar para além das
vivências de seu ser-aí individual em prol da objetividade, ou seja, da
indagação das causas histórico-sociais que as produzem. (LUKÁCS, 2020,
p.438).
O que é referido aqui como falta de capacidade e de interesse é sem dúvida
provocada pelo forte vínculo que esses indivíduos mantêm com as concepções de
mundo próprias a certas classes sociais. Esse aspecto crítico é decisivo, pois adverte
para a tendência filosófica de tomar fenômenos histórico-sociais específicos como
determinações gerais, como condição humana a-histórica, portanto, de natureza
universal. Na teoria heideggeriana, a discussão sobre a gênese histórica da
objetividade social e os aspectos mais gerais de sua dinâmica é escamoteado em prol
das vivências próprias dos indivíduos.
Lukács identifica a forte ligação do pensamento de Heidegger com o pensamento
de Kierkegaard, na medida em que esse último aparece como uns dos precursores da
crítica resignada ao mundo social capitalista. Antes dele, como mencionamos, Lukács
refere o papel que a filosofia de Schopenhauer cumpriu nesse contexto, em cuja obra
o pessimismo e o desespero diante das condições sociais postas surgem como
prerrogativas que induzem aos indivíduos buscarem saídas em sua interioridade,
que o mundo aparece como forma fatídica e irrevogável de realidade.
Porém, em Heidegger, o contexto em que está imerso não permite a mesma
forma de resolução tal como se verifica em Kierkegaard. A época de Heidegger foi
marcada por mudanças profundas provenientes do impacto da Primeira Grande Guerra:
Os tempos duros da Primeira Guerra imperialista, marcados por mudanças
abruptas e imprevistas, junto com o período de suas consequências,
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 247
trouxeram consigo uma poderosa mudança no estado de ânimo. A tendência
subjetivista o desaparece, mas seu tom fundamental, sua atmosfera, é
completamente outra. O mundo não é mais um grande palco repleto de
acontecimentos variados, em que o Eu, mudando sempre de roupas e de
cenário, representa suas próprias tragédias e comédias interiores. Aquele
mundo havia se transformado num campo de escombros. Nos tempos do
pré-guerra era elegante assumir o ponto de vista da filosofia da vida para
criticar o que a cultura capitalista tinha de inerte e mecânico. (LUKÁCS, 2021,
pp.428-9).
Tais argumentos justificam o título altamente crítico e sarcástico que Lukács
confere à seção dedicada a Heidegger em
A destruição da razão
: “A quarta-feira de
cinzas do subjetivismo parasitário”. Com tais palavras, Lukács adverte não apenas para
a nova atmosfera sobre a qual se move o pensamento existencialista, mas também
para a posição ainda mais subjetivista e pessimista frente à realidade social assumida
por Heidegger. O mundo como ruína, como o inauntico, como o “campo de
escombros” que não oferece alternativas, a o ser um retorno para o interior de si
mesmo, como única possibilidade de construção de uma autenticidade para a
existência. De Kierkegaard não é possível mais manter a religiosidade ortodoxa
protestante como resposta aos problemas do período pós-guerra, no entanto sua
filosofia tem a serventia de se voltar contra qualquer aspiração à objetividade e
universalidade do pensamento racional”, precisamente por ancorar grande parte de
seus argumentos justificativos na crítica à filosofia hegeliana. Nesse sentido, propusera
a refutação da dialética, do fundamento último da racionalidade e da história como
elementos decisivos da compreensão do ser social. Esses aspectos em particular
favorecem a fundação da filosofia existencial, “nascida do profundo desespero de um
subjetivismo extremo e autodilacerante” (LUKÁCS, 2020, p.429).
Em outro escrito,
Existencialismo ou marxismo?
7
, redigidos no mesmo período
do livro supracitado, o pensador magiar destaca o papel do estado de ânimo da época
e a correspondência do existencialismo heideggeriano e de Karl Jaspers com a
atmosfera social do período:
É relativamente fácil resumir a experiência vivida que serve de base para essa
filosofia: o homem encontra-se em face do vazio, do Nada; a relação
fundamental entre o homem e o mundo corresponde à situação do
vis-à-vis
de rien
. Essa situação decorre, segundo o existencialismo, da essência da
7
O livro em questão é a compilação de vários ensaios independentes escritos por Lukács nos anos
1946-7. Redigidos em húngaro, a coletânea de artigos, ao que tudo indica, foi publicada pela primeira
vez em francês, editado como parte da
Collection Pensées
sob o título
Existentialisme ou Marxisme?
.
Foi traduzido por E. Kelemen e publicado pela editora Nagel, Paris, em 1948. Somente teve sua
tradão para o alemão na edição
Existentialismus oder Marxismus
? Aufbau, Berlin 1951[52], na qual
foi acrescido o artigo
Heidegger Redivivus
.
Ronaldo Vielmi Fortes
248 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
realidade humana. De fato, corresponde a um estado da consciência
individual fetichizada, que reflete a crise do imperialismo. (LUKÁCS, 1979,
p.80).
A insolubilidade mundana-terrena é mantida em Heidegger, muito embora a
necessidade de transcender os problemas práticos humanos seja colocada em outros
patamares, dessa vez, sem a ideia de deus e do reino da salvação como salvaguarda.
O fundamento formado com base na negação da prerrogativa da realidade social
conduz Heidegger, sob o influxo da herança kierkegaardiana, a postular uma teologia
sem deus, ou, como variante da mesma ideia, um ateísmo religioso.
Esses apontamentos críticos precisam ser demonstrados, e de fato Lukács
desenvolve nas páginas de seu livro a análise dos escritos de Heidegger para
fundamentar de modo rigoroso sua crítica. A este propósito, é preciso enfatizar o outro
aspecto importante da análise do pensamento dos filósofos por nós rapidamente
mencionado acima. A identificação da nese e função social de um pensamento não
bastam para a análise de uma filosofia. Todo pensamento deve ser submetido à análise
imanente, ou seja, a crítica de dado pensamento não pode prescindir da precisa
compreensão e análise rigorosa das ideias do autor. Para realizar a crítica é necessário
dar provas da compreensão do pensamento analisado, demonstrar as possíveis
aporias internas, suas suficiências e insuficiências, a forma como os problemas tratados
são apreendidos e desdobrados. Esse tripé analítico é uma constante em todo o
tratamento que Lukács confere não apenas ao pensamento de Heidegger, mas aos
diversos pensadores que são trazidos à reflexão em suas obras.
Por meio do tratamento analítico de passagens extraídas dos escritos de
Heidegger, Lukács traz particularmente de
Ser e Tempo
os aspectos teóricos mais
centrais e mais problemáticos do filósofo existencialista. O primeiro elemento crítico
refere a pretensão heideggeriana de superar a dicotomia entre idealismo e
materialismo (realismo no dizer do pensador alemão) e do par categorial subjetividade-
objetividade, como forma de estabelecer a
terceira via
entre esses extremos. A
superação tem por base a noção da “intuição da essência” apropriada da filosofia de
Husserl. Porém, ele a toma de uma maneira bem própria, fazendo da fenomenologia a
via de acesso para a ontologia. A passagem lapidar de Heidegger, recolhida por
Lukács, explicita de maneira suscinta as bases gnosiológicas sobre as quais se move
a filosofia do existencialista alemão: “todo ente é independente de experiência,
conhecimento e apreensão através do que ele se abre, descobre e determina. O ser, no
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 249
entanto, apenas é na compreensão dos entes a cujo ser pertence uma compreensão do
ser” (HEIDEGGER, p.246, itálico nosso).
Ao recolher essa passagem do texto heideggeriano, importa para Lucs
constatar que Heidegger, de contrabando, introduz “ontologicamente” a
“compreensão”, ou seja, introduz um puro ato da consciência no ser objetivo,
de modo a com isso tentar criar entre a subjetividade e a objetividade um
claro-escuro semelhante ao que, em sua época, Mach
8
pretendia introduzir
na esfera da percepção; na realidade, trata-se em ambos os casos sob formas
distintas que correspondem a intenções distintas, de rebatizar atitudes
subjetivo-idealistas e apresentá-las como objetivas (pseudo-objetivas). [...] É
claro que ele não vai mais longe que os primeiros fenomenólogos quando se
trata de mostrar o caminho para a autêntica objetividade independente da
consciência a partir da “realidade objetiva” (posta entre parênteses). Pelo
contrário: ele estabelece uma vinculação orgânica e estreita entre
fenomenologia e ontologia, fazendo com que a segunda brote diretamente
da primeira... (LUKÁCS, 2020, p.433).
São essas considerações que permitem a Lucs afirmar a presença na filosofia
de Heidegger de um “malabarismo com categorias aparentemente objetivas sobre
bases extremamente subjetivistas” (ibidem). Por via de conseqncias, Lukács afirma
que encontramos em Heidegger a rejeição da realidade objetiva, muito embora com
seu linguajar bem peculiar e “pitoresco” ele procure dar a entender que a objetividade
é contemplada em seu pensamento. Nos termos de Lukács, embora Heidegger
se apresente com a pretensão de fundar uma doutrina objetiva do ser, uma
ontologia, no entanto, a essência ontológica daquilo que constitui justamente
as categorias centrais do seu mundo é determinada, no fundo, de modo
puramente subjetivista, a despeito de seus termos pseudo-objetivistas. (Idem,
p.434).
As palavras de Heidegger são contundentes a este respeito: “O ente [...] somos
nós mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez
meu
” (HEIDEGGER: ed. bras.:
ibid.
,
p. 69-70), conforme reproduz Lucs em seu texto. Que seja demarcado, de saída
a distinção que Heidegger promove entre o ser e o ente, separação diretamente
afirmada em outra passagem recolhida do mesmo livro,
Ser e Tempo
:
Justo o que
não
se mostra diretamente e na maioria das vezes e sim se
mantém velado frente ao que se mostra diretamente e na maioria das vezes,
mas ao mesmo tempo, pertencente essencialmente ao que se mostra
diretamente e na maioria das vezes a ponto de constituir o seu sentido e
8
Aqui é feita a referência a Ernest Mach que, em vários momentos ao longo de suas obras Lukács faz
referência. Lukács se apoia nas considerações de Lênin, em seu livro
Materialismo e empiro-criticismo
,
em que o líder soviético realiza um combate atroz com o pensamento de Mach, demonstrando o caráter
de extremo subjetivismo de seu positivismo. Mach sugere que nada podemos conhecer diretamente,
independentemente de nossas impressões dos sentidos. Tal ideia pode ser ilustrada na obstinação com
que ele refutou a existência real, objetiva, dos átomos, por ele definida como uma simples crença dos
cientistas.
Ronaldo Vielmi Fortes
250 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
fundamento. (idem, 66).
Em suma, o que fica obliterado é o princípio decisivo da ontologia, a
independência do ente em relação à consciência nesse sentido, afronta de maneira
direta a tese materialista: “o ser é anterior à consciência”. A tentativa heideggeriana
de superar a dicotomia entre subjetividade e objetividade não consegue, por fim,
justificar sua pretensão e termina por sucumbir às interpretações provenientes da
compreensão, negligenciando aspectos relevantes da objetividade. O método da
“intuição das essências”, tal como o compreende Heidegger, termina por “pôr entre
parênteses” exatamente as questões da gênese e dos processos formativos da história,
restringindo sua análise àqueles fenômenos sociais mais imediatos, procedendo dessa
forma a universalização da particularidade histórica de certos fenômenos sociais.
Postos nesses termos a ontologia de Heidegger se revela, para Lukács, uma
“antropologia disfarçada sob roupagem objetivista” (LUKÁCS, 2020, p.435). Os termos
e conceitos usados por ele dão a ideia da consideração da objetividade, contudo a
arbitrariedade do todo fenomenológico de Heidegger é de natureza subjetivista, na
medida em que suas descrições privilegiam sempre os reflexos anímicos da realidade
econômico-social” (idem, p.439). Vale insistir: a filosofia heideggeriana torna as
condições sociais de dada época, de dado contexto social, atributos universais, ou
como dirá Lukács mais tarde, os considera como
condition humaine
.
Esses aspectos do pensamento de Heidegger encontram-se diretamente
relacionados a outros pontos importantes de seu pensamento, igualmente salientados
e criticados por Lukács: a vida cotidiana entendida como inautêntica e a concepção de
tempo tal como a compreende de maneira peculiar o existencialista alemão.
Segundo Heidegger, quando o indivíduo dirige seus cuidados (expressão
importante para o autor) para a dimensão dos entes em sua facticidade, ele incorre na
existência inautêntica. Trata-se do plano prático em que o indivíduo se limita a
manipular as coisas e estabelecer relações sociais com outros indivíduos de acordo
com o estabelecido. Os projetos que eles desenvolvem nesse âmbito da vida,
restringem os homens no nível dos fatos, fazendo com que a utilização das coisas se
transforme em um fim em si mesmo. Nesse sentido, a “existência social equivale ao
reino anônimo do impessoal’” (idem, p.437), termo decisivo que Heidegger vincula à
existência imprópria, à queda na inautenticidade. O impessoal heideggeriano, adverte
Lukács, não é outra coisa além da “vida pública, democrático-burguesa do período
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 251
imperialista” (ibidem), o que revela, inclusive, aspectos da natureza anti-democrática
do pensamento de Heidegger
9
.
Os termos da relação do indivíduo com o seu mundo alteram-se de maneira
significativa em Heidegger. Não se trata mais, “na vida social dos homens” da “relação
entre o subjetivo e o objetivo”, da determinação de reflexão entre sujeito e objeto,
“mas do ‘próprio’ e do ‘impróprio’ dentro do mesmo sujeito” (LUKÁCS, 2021, p.442).
A questão se desloca, retira-se da esfera da interação do indivíduo com a sociedade,
da interdependência da subjetividade com as formas da objetividade social, e se
refugia nos processos da interioridade do indivíduo, na medida em que é nele que se
vislumbra a possibilidade da autenticidade mediante a inautenticidade da vida vivida.
No pensamento heideggeriano, a determinação da inautenticidade da vida
cotidiana parece como asserção que tem por base uma
crítica dissimulada
da existência
na cotidianidade da sociedade capitalista. Em outros termos, a vida vivida é o espaço
por excelência do estranhamento, a vida autêntica somente pode ter lugar para além
da cotidianidade. A tarefa da ontologia, tal como Heidegger a compreende, é retirar o
homem da condição de soterrado na cotidianidade,
locus
em que se dá o complexo
esquecimento do ser. Ao mover-se no mundo e em conformidade às situações postas
pela vida cotidiana, o homem vive o “impróprio”, o inauntico. Segundo Lukács, em
Heidegger
O aclaramento do ser-pode brotar do interior, já que todo conhecimento
objetivamente orientado para objetividade supostamente para Heidegger
leva à queda, ao impessoal, isto é, ao “impróprio”. (Idem, p.448).
A superação da realidade objetiva posta pela inautenticidade da vida cotidiana,
somente é ultrapassada na aparência, seu método de pô-la entre parênteses no intuito
de sua superação, é na verdade o endereçamento a outra camada, supostamente mais
profunda”, ou seja, “da subjetividade(idem, p.442). Desse modo, a superação entre
sujeito e objeto tamm é aparente, na medida em que na vida social a questão se
torna a análise do “próprio” ou do “impróprio” dentro do sujeito. A contraposição de
Lukács nesse ponto é enfática, no entanto, somente na fase mais tardia de seu
pensamento o problema da cotidianidade é enfrentado de maneira mais detalhada e
precisa, em sua obra
A peculiaridade do Estético
, conforme veremos mais à frente.
9
O caráter anti-democrático era uma das características comuns a todas as filosofias irracionalistas. Lukács o
demonstra nas obras de Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche e outros.
Ronaldo Vielmi Fortes
252 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
Para Lukács, a decorrência de tal pensamento leva necessariamente à incursão
nas tenncias irracionalistas de seu tempo, muito embora o pensador alemão insista
em afirmar ter superado a oposição entre racionalismo e irracionalismo, tal como o
fizera em relação ao contraste entre subjetivo e objetivo. Ao reproduzir determinadas
passagens de Heidegger, Lukács demonstra que a severidade com que o autor alemão
trata o racionalismo, a qual qualifica como cego, revela na verdade um combate direto
contra a admissão de “fatos cognoscíveis” e contra “as leis da realidade objetiva”.
Nesse sentido, conclui taxativamente Lukács: se uma objetividade não é vista à luz de
nenhum critério relacionado com a realidade cognoscível, se a objetividade surge da pura
interioridade, é inevitável que o resultado da investigação possua um caráter irracionalista”
(idem, p.443). Vale lembrar, que “irracionalismo no campo da filosofia não é, desse modo,
apenas uma tendência filosófica nascida da
disputatio
interna do pensamento ocidental.
No caso específico do pensamento alemão, ele reflete tendências sociais oriundas
particularmente do processo de transição alemão para o capitalismo” (VAISMAN, FORTES
in:
LUKÁCS: 2020, XIII). Nesse sentido, o pensamento de Heidegger o rompe com os
filósofos que o antecederam, pelo contrário, apresenta uma linha de continuidade com os
já citados Schopenhauer, Kierkegaard, e com Nietzsche e outros.
Por necessidade metodológica, Heidegger deriva destas postulações sua própria
teoria do tempo, uma vez que tempo para ele não possui o significado que usamos no
pensamento comum, cronológico, nem mesmo corresponde ao tempo tal como o
concebe a ciência, estes são para ele o tempo inautêntico. Na seqncia da citação
acima, Lukács prossegue em suas considerações:
Nesse sentido, Heidegger é consequente consigo mesmo quando, ao instituir
a historicidade do ser-aí rechaça também, com a mesma força, tudo o que é
historicamente objetivo; portanto, a historicidade heideggeriana nada tem a
ver com o fato “ser-aí se dar em uma história universal”. (LUKÁCS: 2021,
447)
O tempo habitual, é considerado por ele como “tempo vulgar”, é o tempo do
relógio, por assim dizer, corresponde “ao tempo do mundo ‘decaído’ do ‘impessoal’”.
O que ele designa como o tempo auntico, não possui nenhuma ordem de sucessão
cronológica. Reconduzido à interioridade do indivíduo, posto sob o critério da
existência individual, o "porvir não
vem depois
do ter-sido, e este não
vem antes
da
atualidade. A temporalidade se temporaliza como porvir atualizante do ter-sido"
(HEIDEGGER, 2007, p.437), tal como afirma Heidegger por meio de suas costumeiras
frases tortuosas e enigmáticas. Em suma, o conceito de tempo heideggeriano foge a
qualquer aproximação conceitual do tempo objetivo, é de fato, apenas a forma
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 253
inusitada do tempo subjetivo, do tempo reduzido à perspectiva da vivência, tal como
fora compreendida por muitos de seus contemporâneos.
Desse modo,
a história real é “imprópria”, assim como o tempo real é tido como vulgar.
Com essa fundamentação da história aparentemente conforme a estrutura do
ser, Heidegger no fundo suprime a historicidade, na medida em que
reconhece como histórica a atitude moral de “estado de decisão” de um
filisteu qualquer. Em sua análise do ser-aí cotidiano, Heidegger rechaça toda
atitude humana orientada aos fatos objetivos ou às tendências da vida
histórico-social. (LUKÁCS, 2021, p.447).
A história é cindida em dois campos distintos, a
própria
e a
imprópria
. A raiz
dessa duplicação da história remonta a Kierkegaard em sua polêmica contra Hegel.
Contra a ideia de progresso que perpassa a filosofia hegeliana, o filósofo dinamarquês
somente reconhece a história do desenvolvimento do indivíduo, enfim do movimento
religioso-moral que conduz a deus. Ainda que em Hegel existam aspectos
problemáticos em relação à sua filosofia da história
10
, Lukács reconhece nele o “ponto
mais alto da filosofia da história, ao interpretar a história como “um produto da prática
humana”, elemento que se perde completamente em Kierkegaard. Sem os contdos
teológicos deste último, Heidegger estabelece uma dicotomia de ordem muito
semelhante, ao mascarar seu ser-a-históricodefinindo-o como “história própria”
por “contraste com a negação da história real (da história imprópria)(idem, 452).
Posto nesses termos, Lukács vê razões suficientes para afirmar que concepção
heideggeriana “é um veículo para a proclamação de uma filosofia irracionalista” (idem,
446).
É importante destacar que o pensamento de Heidegger não se limita a ser uma
contraposição à dialética, ao pensamento hegeliano. O inimigo oculto contra qual
Heidegger se volta é, segundo Lukács, o “materialismo histórico”, ainda que em
momento nenhum haja quaisquer referências diretas ao pensamento marxista. No
entanto, todos esses filósofos, ainda que não declarem abertamente tal fato,
encontram-se sob o impacto a ascensão da classe trabalhadora como força social
efetiva.
10
Lukács destaca a impropriedade da filosofia da história de Hegel, que termina por conferir à filosofia
um caráter contemplativo, na figura da coruja de Minerva que alça voo ao entardecer. Nesse sentido,
o fim da história retira o caráter prático do construir a própria história e confere o caráter contemplativo
da realização final do reino da razão. Esses aspectos, apenas mencionados, no livro em questão, são
devidamente considerados em sua última grande obra,
Para uma ontologia do ser social
, conforme
veremos mais à frente.
Ronaldo Vielmi Fortes
254 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
Evidentemente não cabe nesse contexto esgotar toda a gama dos apontamentos
levantados por Lukács contra Heidegger, que nosso objetivo é tão somente destacar
a evolução desta crítica ao longo de sua obra. Convém, por fim, insistir que a
demarcação da determinação histórica da filosofia de Heidegger não significa afirmar
que o autor incorre na prática da apologia direta do sistema do capital, mas ao
transformar um fenômeno particular do capitalismo em fator ontológico fundamental
termina por negar a possibilidade de transformação dessa condição, nessa medida
coincide com aquilo que Lukács designou em
A destruição da razão
como a apologia
indireta do capital. A crítica da vida cotidiana, os apontamentos em relação à alienação
da vida vivida, a exacerbação do individualismo contemporâneo, o decerto
conteúdos que favorecem a perpetuação da influência de Heidegger em nossos dias.
Esses aspectos somente são devidamente demonstrados na medida em que o
pensamento do autor é confrontado por dentro de seus próprios argumentos, enfim,
por meio da incontornável necessidade da crítica imanente.
O lugar de
Heidegger Redivivus
no conjunto da obra de Lukács
Pelo que já antecipamos fica evidente que as remissões críticas a Heidegger não
se limitam às páginas do livro
A destruição da razão
. A nenhum outro autor, Lukács
retornou de forma frequente e minuciosa como o fez em relação a Heidegger. Decerto,
isso se deve a percepção da crescente influência do pensamento do filósofo
existencialista alemão. As pouco mais de vinte páginas que dedica a Heidegger
11
nessa
obra são, no curso de suas retomadas críticas, acrescentados elementos que
complementam e aprofundam suas refutações. É o caso do livro
Existencialismo ou
marxismo?
, já mencionado acima, e do artigo
Heidegger redivivus
ambos elaborados
praticamente na mesma década em que Lukács dá prosseguimento às suas críticas.
Em termos cronológicos, se poderia conjecturar que o primeiro enfrentamento
da obra de Heidegger ocorre nos anos da Segunda Grande Guerra
12
, exatamente com
o conjunto de estudos e escritos que deram origem ao livro
A destruição da razão
,
11
Ainda que cuidadosas e com mostras de grande rigor em suas considerações, as considerações críticas
endereçadas a Heidegger, se comparadas a outros capítulos de sua obra, são bem menos extensas.
Poder-se-ia dizer que a crítica a Schelling, Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche, que são sem dúvida
mais extensas, destacam o grau da influência e importância atribuído por Lukács a esses pensadores na
época em que foram redigidas suas análises.
12
Cabe lembrar aqui que Lukács chegou a publicar artigos sobre o existencialismo ao longo da década
de 1940, como é o caso do artigo
Az exisztencializmus
, que compõe a edição da
Forum
, no.12, p. 295-
313, em húngaro, publicado em 1946.
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 255
embora essa obra tenha sido publicada bem mais tarde no ano 1953. Apesar de
vir a público após os escritos referidos
Existencialismo ou marxismo?
(1948) e
Heidegger redivivus
(1948)
13
a obra de Lukács fora concebida e elaborada nos anos
finais da Grande Guerra e finalizada no início de 1950. Os elementos presentes nos
próprios escritos permitem estabelecer essa cronologia. Bastaria mencionar que no
livro de 1953, Lukács trata principalmente da obra
Ser e tempo
, enquanto no artigo
Heidegger redivivus
, ele estabelece a crítica ao escrito posterior de Heidegger,
Carta
sobre o humanismo
(publicado em 1947)
.
O caso de
Marxismo ou existencialismo?
é
mais peculiar, pois aparenta ser a um capítulo à parte aos debates empreendidos em
A destruição da razão
, sob a forma de uma derivação e ampliação das críticas que
fizera ao existencialismo alemão (Heidegger e Jaspers), que agora se desdobra sobre
o pensamento existencialista francês (Sartre). No entanto, não se pode falar de uma
simples transposição dos elementos de um para o outro, uma vez que Lukács não
deixa de considerar a natureza específica do existencialismo alemão e do francês. As
diferenças específicas entre as nacionalidades filosóficas ficam patentes, dentre elas se
destaca: enquanto na França o existencialismo se permite ao diálogo com o marxismo
(Sartre), na Alemanha ele surge exatamente como contraposição a ele
14
.
A crítica lukácsiana a Heidegger apresenta em suas elaborações posteriores uma
linha de continuidade, porém vem acrescida de elementos novos. Em
A destruição da
razão
, o critério crítico se assenta principalmente sobre o par
racionalismo-
irracionalismo
, de certo modo fortemente marcado por elementos do pensamento de
Hegel. Conforme observa Nicolas Tertulian,
As origens da crítica a respeito do irracionalismo remontam ao famoso
prefácio da
Fenomenologia do espírito
, em que Hegel tomou o partido contra
o “formalismo monocromático” da intuição intelectual schellinguiana. O
enfrentamento Hegel-Schelling tornou-se, assim, o primeiro episódio
marcante de uma longa confrontação entre duas posições filosóficas opostas,
confrontação da qual as reviravoltas mais espetaculares pertencem à
13
No arquivo Lukács, consta uma cópia datilografada, em alemão do ano de 1948. Em alemão, veio a
público na edição da revista
Sinn und Form
, n. 3 (pp. 37-62), em 1949. Antes de sua publicação em
alemão, o artigo fora publicado em italiano na revista
Studi filosofici
, n. 4 (pp. 177-90), em 1948. Foi
também traduzido para o francês e publicado em
Revue mensuel EUROPE
, Paris, année 27, nr 39, mars
1949.
14
As polêmicas suscitadas a propósito da Conferência de Genebra ilustram muito bem estes aspectos.
As discussões terminam por polarizar de um lado a exposição de Lukács e de outro a de Karl Jaspers.
É notório o ataque frontal ao qual Lukács se submetido por quase todos os participantes do debate,
sendo em parte, e de modo com o qual o próprio pensador húngaro não concordaria, defendido por
Lucien Goldmann e pelas tentativas de conciliação das divergências explanadas por Merleau-Ponty.
Esses dois últimos, vale lembrar, flertam com o marxismo em momentos específicos de suas obras. Cf.
a tradução nessa edição.
Ronaldo Vielmi Fortes
256 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
movimentada história da filosofia do século XX. (TERTULIAN, 17).
A rigor, apesar das remissões ao pensamento de Marx e aos “clássicos do
marxismo” o cerne crítico levado a cabo por Lukács é marcado por esse princípio de
talhe hegeliano. Não seria inoportuno lembrar que a mesma atmosfera que move a
crítica incisiva de Lucs aos vários pensadores do assim designado irracionalismo
alemão (de Schelling a Heidegger, passando por Schopenhauer, Kierkegaard,
Nietzsche etc.) é a mesma que anima o livro
O jovem Hegel,
em que o filósofo ngaro
defende Hegel contra a apropriação irracionalista de seu pensamento.
15
Se em
A
destruição da razão
e de maneira considerável também em
O Jovem Hegel
predomina
o par racionalismo-irracionalismo de conotações fortemente hegelianas, no artigo
Heidegger Redivivus
, o pensamento de Marx assume lugar central no combate ao
filósofo existencialista alemão.
Nesse artigo, a confrontação direta do existencialista alemão com o pensamento
de Marx ganha corpo. Não se trata apenas de se opor a forma enviesada pela qual
Heidegger redige um rápido elogio a Marx, é preciso confrontar as bases do
pensamento heideggeriano tomando como elemento crítico princípios fundamentais
das reflexões marxianas. Marx aparece agora de maneira direta, a partir da
confrontação do problema do estranhamento e da questão do fetichismo. Não é recusa
das refutações anteriormente estabelecidas, mas nesse momento é o pensamento de
Marx, a crítica à sociabilidade do capital com base na análise científica das “legalidades
sociais e econômicas objetivas do ser dos homens no capitalismo”, que aparece como
elemento central. Ao invés das designadas “vivências basilares” propugnadas por
Heidegger, em Marx, a condição social do homem é revelada “em sua objetividade real
e objetiva”. São as descobertas de Marx sobre a dinâmica da sociabilidade do capital
que permitem revelar que as “vivências ‘intencionais’ do fenomenólogos, como todas
as vivências subjetivas, presas no horizonte da burguesia na era imperialista, ocorrem
15
Na introdução deste livro, Lukács destaca o primeiro movimento de rejeição do pensamento hegeliano
por parte dos autores irracionalistas, e a subsequente interpretação de Hegel como um precursor do
irracionalismo. Dilthey tem para Lukács um papel fundamental nessa apropriação irracionalista de Hegel:
“Já falamos da importância crescente das correntes irracionalistas, da ‘filosofia da vida’. A grande
popularidade da forma diltheyana de renovação do hegelianismo está associada exatamente ao fato de
que nela a dialética hegeliana foi falsificada no sentido da recepção filosófica do irracionalismo. Nesse
aspecto, a monografia de Dilthey sobre o jovem Hegel, datada de 1906, representou uma reviravolta
na concepção alede Hegel. Nesse tocante, o essencial do ponto de vista da história da filosofia é
que Dilthey vai ao encontro das tendências reacionárias imperialistas de renovação do romantismo pelo
fato de situar Hegel no contexto mais próximo possível do romantismo filosófico desconsiderando ou
distorcendo os fatos históricos mais importantes.” (LUKÁCS, 2018, p.50).
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 257
necessariamente com uma falsa consciência” (LUKÁCS, 2021, p. 57).
A constatação anteriormente mencionada, segundo a qual a eficácia das ideias
reacionárias pressupõe certo entendimento da realidade social, é novamente
salientada no artigo em questão. A remissão rápida ao estranhamento na sociedade
contemporânea, a referência
en passant
feita por Heidegger a Marx cumpre o papel
de
tomar de empréstimo elementos da crítica social da ideologia
correspondente à classe revolucionária”, no entanto estes “se convertem, por
um lado, em instrumentos de demagogia da classe dominante; por outro,
eles mesmos caem, em seu próprio campo, na ilusão geral da pequena
burguesia, colocando-se, entre as classes decisivas, senão por cima de todas
as classes da sociedade. (LUKÁCS, 1984, p. 182).
Grande parte da polêmica aberta por Lukács em sua crítica dirige-se a um dos
conceitos centrais de
Carta sobre o humanismo
, a apatricidade, que Heidegger, por
meio de interpretação muito própria dos textos de Hölderlin, extrai do poema
Lembrança
, dando a ele o sentido de abandono ontológico do ente”, “sinal do
esquecimento do ser” (cf. LUKÁCS, 2021, p. 58).
É claro que o mote principal do artigo em questão é demonstrar a continuidade
do pensamento de Heidegger em seus aspectos mais fundamentais. Contra o que
pretende Heidegger, isto é, mostrar que superou deficiências de sua obra anterior,
Lukács de demonstrar que há uma clara linha de continuidade entre seus estudos
posteriores e sua obra
Ser e tempo
. Em termos mais duros e diretos, se com
Carta
sobre o humanismo
, Heidegger pretendeu superar limites de
Ser e tempo
, que para
Lukács significa a obra mais expressiva do existencialismo pré-fascista
16
, o artigo em
questão mostra que os fundamentos sobre os quais Heidegger ancora seu pensamento
no pós-guerra permanecem os mesmos.
Precisamente com base nessa conclusão, ao final de
Heidegger Redivivus
, o
filósofo magiar encerra as linhas de seu artigo com a advertência sobre a importância
que a filosofia heideggeriana vinha adquirindo no período em questão: “Esta primeira
obra pós-fascista de Heidegger pode muito facilmente desempenhar um papel
proeminente no desenvolvimento ideológico reacionário do futuro, como
Ser e tempo
desempenhou no pré-fascismo (LUCS, 2021, p. 87). Tal passagem destaca a
16
“[...] o compromisso pessoal [de Heidegger] com o regime de Hitler em 1933-34 certamente não foi
mera coincidência e certamente está conexão com sua visão de mundo” (LUKÁCS, 2021, p. 48).
Ronaldo Vielmi Fortes
258 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
percepção lucsiana da crescente influência do pensamento de Heidegger não apenas
na filosofia, como nas ciências humanas e sociais em geral, inclusive, no campo da
cultura. Dado esse recrudescimento do pensamento heideggeriano foi preciso retomar
a crítica e aprofundá-la.
Refutação da concepção da vida cotidiana como o inautêntico
Lukács volta a carga contra Heidegger em seu livro
A peculiaridade do estético.
Dessa vez Heidegger aparece em meio a uma digressão feita a propósito de suas
reflexões sobre o reflexo na vida cotidiana.
No desenvolvimento de sua
Estética
, Lukács estabelece a diferenciação entre as
formas do reflexo, no intuito de determinar a
diferença específica
do reflexo da vida
cotidiana, da ciência e da arte assim como outras formas, como a magia e a religião.
A gnosiologia burguesa, e igualmente o idealismo, segundo o autor, sempre
negligenciou o pensamento cotidiano, tomando-o como forma vulgar do pensamento,
permeado por ilusões e pelo falso, válido tão somente para o comportamento imediato
e prático da vida. Ao contrário dessas tendências, Lukács estabelece os princípios
sobre os quais se efetiva o reflexo na cotidianidade; não se trata de ilusões, ou de
aproximações deformadas da realidade, mas suas características, pela própria
necessidade de operacionalização da existência, implicam formas de conhecimentos
mais imediatos, e por sua vez uma relação mais estreita entre teoria e prática. Não
são, portanto, formas do falso, ou do ilusório, são reflexos que permitem respostas
práticas e efetivas às situações práticas e imediatas postas na vida vivida. Contém em
si percepções corretas e eficazes da realidade, e precisamente por sua eficia
permitem a operacionalização da existência individual e social. O comportamento
cotidiano o poderia se tornar operativo se o reflexo nessa esfera da prática humana
não apreendesse corretamente aspectos importantes da realidade. Por esse motivo, o
autor fez referência a esse aspecto da vida vivida como “ontologia da vida cotidiana”,
em sua obra posterior.
17
No entanto, Lukács considera que essas formas dos reflexos podem conter
deformações. Não por um princípio intrínseco a ela, mas por condições específicas,
17
Muito embora nessa obra o termo ontologia apareça poucas vezes, e com conotação pejorativa, os
alicerces de sua ontologia podem ser encontrados em sua
Estética
. A esse propósito remetemos o
leitor às interessantes considerações que Lukács estabelece no
Prefácio
desta obra, em que diferencia
o método da
definição
e o método da
determinação
Cf. Lukács (1987: I, pp.23-4).
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 259
principalmente de motivação histórico-social. A forma do reflexo da cotidianidade pode
se fixar sob a forma de costumes, tradições, que quase sempre apagam seus processos
constitutivos. Em sua origem precisam estabelecer respostas e comportamentos
eficazes a determinadas questões e problemas que aparecem na vida dos indivíduos
em determinada época e sociedade. A mudança das sociedades, as novas exigências
postas em situações e condições inusitadas, podem tornar tais fixações ineficazes e
obsoletas. Impõe dessa forma conflitos e contradições no campo da dinâmica social.
Mas, não apenas. As respostas prontas, postas pelas tradições, costumes, moral
instituída, podem também levar o indivíduo a ações mecânicas, nas quais ele termina
por agir sem a plena consciência dos princípios que movem seus atos e decisões. Dá-
se assim, a fetichização dos reflexos da vida cotidiana, pom, vale insistir nesse ponto,
não como necessidade intrínseca ao processo, mas como obsolesncia de certas
respostas instituídas.
A ciência e a arte são para Lukács, nesse sentido, derivações da própria
necessidade da vida. A ciência, como desantropomorfizadora, fornece e intensifica os
conhecimentos sobre os nexos da natureza, permitindo a superação dos reflexos
imprecisos ou incorretos, viabilizando a mudança de comportamento e de concepção
sobre a natureza e até mesmo sobre questões relativas aos próprios homens. Surge,
portanto, a partir das próprias necessidades postas na vida cotidiana, que por vezes
carece de maior rigor e precisão frente aos fenômenos com que os indivíduos precisam
lidar ao longo de sua vida (pense-se aqui no metabolismo homem natureza, no
desenvolvimento do trabalho, como necessidade de reprodução material da vida). O
reflexo artístico, cumpre o papel de retirar o indivíduo da sua mera particularidade
[
Particularität
] elevando-o à particularidade [
Besondenheit
] do nero. Trata-se de
superar as formas fetichizadas do reflexo cotidiano, retirando o indivíduo do em-
simesmamento da vida e levando-o a tomar consciência das grandes questões sociais
de seu tempo. Podemos então dizer, que para Lucs, a vida cotidiana não é o falso
ou o inauntico, e não se restrita à essa condição da inautenticidade, pois o reflexo
desantropomorfizador da ciência, e a peculiaridade antropomorfizadora da arte
revelam caminhos para a superação das formas fetichizadoras que pode vir a se dar
na cotidianidade.
Fica bem evidente, como as considerações de Lukács destoam do modo como
Heidegger considera o problema. Por isso, Lukács adverte que Heidegger
Ronaldo Vielmi Fortes
260 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
Ao chamar as coisas que se apresentam nessa esfera [na cotidianidade] de o
"instrumento", o "quem", "o impessoal", os comportamentos mais comuns e
típicos de "a conversa", a "ambiguidade", a "decadência" etc., ele pode ter a
ilusão de que está dando apenas uma descrição objetiva e o um juízo de
valor emocional; objetivamente, a cotidianidade é para ele um mundo de
inautenticidade, de decadência, de afastamento do real. O próprio Heidegger
chama essa "motilidade" do ser-aí de queda no precipício. (LUKÁCS, 1987,
p.61).
Desse modo, prossegue nosso autor:
Este pessimismo profundo, que transforma a vida cotidiana em uma esfera
de decadência desesperada, de derrelição "na esfera pública do homem", "a
falta de solo da conversa", deve ao mesmo tempo empobrecer e desfigurar
sua essência e estrutura: se a prática da cotidianidade perde seu nculo
dinâmico com o conhecimento, com o a ciência - fenomenologicamente-
ontologicamente -, se estas não surgem das questões colocadas pela
cotidianidade, se esta o se enriquece constantemente com os resultados
que produzem aquelas, nem torna-se mais ampla e profunda por meio deles,
então a cotidianidade perde precisamente seu traço essencial autêntico, que
faz dela a fonte e a desembocadura do conhecimento na ão humana.
(LUKÁCS, 1987, p.61-2).
A “cotidianidade aparece em Heidegger como dominada pelas forças do
estranhamento [
Entfremdung
]
que deformam o homem” (ibidem). A forma histórica da
sociabilidade do capital, os fenômenos específicos da sociedade capitalista, são
tomados por Heidegger como “determinações ontológicas essenciais do ente” (idem,
ibidem). Assim, Lukács retoma mais uma vez nesse contexto sua crítica anterior, porém
nesse momento, como advertirmos, Heidegger figura apenas como uma pequena
digressão em meio a exposição mais detalhada de seu pensamento.
Por fim, por meio do cotejamento crítico com suas próprias ideias, conclui Lukács:
O isolamento abstrativo da vida cotidiana realizado desta forma, sua redução
àqueles momentos que parecem corresponder exclusivamente a ele em tal
delimitação conceitual artificial acarreta, como foi enfatizado no início, um
empobrecimento e uma distorção de toda esta esfera. Um empobrecimento
em que de maneira metodologicamente deliberada é esquecido quão
profundamente todos os modos de comportamento cotidiano estão
conectados com toda a cultura e desenvolvimento cultural da humanidade;
uma distorção, na medida em que se elimina mentalmente o papel da vida
cotidiana que dissemina o progresso e cumpre seus resultados. (idem, p.63).
Tanto na
Estética
quanto em sua obra posterior como já veremos a crítica a
Heidegger não é a motivação central de seus escritos. A partir desse momento,
aparece sempre a propósito do desenvolvimento de suas próprias ideias, fazendo da
filosofia heideggeriana o contraponto necessário de ser refutado em vista dos
desdobramentos desenvolvidos por Lukács, sejam aqueles relativos ao campo da
estética, sejam aqueles relativos ao campo da ontologia que o autor escreve na fase
final de sua vida. Desse modo os apontamentos refutativos se veem mais bem
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 261
fundamentados, pois não se trata apenas de apresentar de maneira mais geral o
disparate e a oposição do existencialismo em relação à filosofia marxiana, a crítica a
Heidegger aparece agora no desdobramento e aprofundamento da resposta marxiana
aos problemas e questões mais decisivas do ser social e da filosofia em geral
(ontologia e estética).
A falsa ontologia: Heidegger e a filosofia do século XX
Em
Para uma ontologia do ser social,
Heidegger é a figura central da crítica
exposta no capítulo
O existencialismo
. A crítica, por ocasião de sua ontologia do ser
social, adquire novos contornos e traz elementos que não se encontravam presentes,
ou não se encontravam devidamente explicitados, nas obras anteriores. Além de
retomar elementos importantes de suas críticas até então proferidas, a refutação do
pensamento de seu antagonista é de natureza bem mais ampla, pois aparece como
um capítulo particular no conjunto da primeira parte de sua obra, em que aborda a
“situação atual dos problemas” da ontologia, na qual o pensamento de Heidegger
aparece como uma das vertentes filosóficas que se hegemonizaram no século XX. Não
se trata apenas de uma repetição ou uma compilação de suas críticas anteriores, esse
momento de suas reflexões, precisamente no ensejo a explicitação dos “princípios
ontológicos fundamentais” de Marx, apresenta uma refutação mais densa e aguda da
filosofia heideggeriana. A percepção da necessidade de extrair as consequências da
ontologia do ser social presente em Marx, permite a confrontação dos desvios
heideggerianos na construção de uma ontologia autêntica. À ontologia existencialista
é contraposta a ontologia do ser social desdobrada a partir da obra marxiana. A crítica
a Heidegger já não figura como o cerne do problema, surge a propósito das
consequências dos desdobramentos do próprio pensamento lukácsiano.
Novos aspectos da crítica podem ser vistos na demarcação da ausência da
ontologia da natureza na obra de Heidegger. Passagens diretamente citadas de
Ser e
tempo
revelam que Heidegger “leva em conta tão somente o ser humano e suas
relações sociais. Ele esboça, portanto, uma ontologia do ser social, na qual todos os
problemas ontológicos autônomos da natureza desaparecem como irrelevantes. [...]
Desse modo, a natureza se converte em mero componente do ser social.” (LUKÁCS,
2012, I, p. 83). Claramente as proposições heideggerianas contraditam a ontologia de
base materialista, segundo a qual, o ser na natureza, orgânica e inorgânica, são
pressupostos para o ser social. O metabolismo da sociedade com a natureza é
Ronaldo Vielmi Fortes
262 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
elemento imprescindível para estabelecer em termos corretos o processo histórico da
autoedificação humana. A esse propósito Lukács, se pronuncia do seguinte modo:
a ontologia da natureza inorgânica como fundamento de todo existente é
geral pela seguinte razão: porque não pode haver qualquer existente que
não esteja de algum modo ontologicamente fundado na natureza inorgânica.
Na vida aparecem novas categorias, mas estas podem operar com eficácia
ontológica somente sobre a base das categorias gerais, em interação com
elas. E as novas categorias do ser social relacionam-se do mesmo modo com
as categorias da natureza orgânica e inorgânica. A questão marxiana sobre
a essência e a constituição do ser social pode ser formulada racionalmente
com base numa fundamentação assim estratificada. A indagação acerca da
especificidade do ser social contém a confirmação da unidade geral de todo
ser e simultaneamente o afloramento de suas próprias determinidades
específicas. (LUKÁCS, 2012, p.27).
Essa discussão encontra-se associada aos temas desenvolvidos na parte primeira
de sua obra, onde escreve contra o neopositivismo, contra o existencialismo e
apresenta a crítica à ontologia de Nicolai Hartmann
18
. Heidegger é analisado a partir
de outros parâmetros, não mais apenas como a manifestação filosófica do “estado de
ânimo de época, mas por meio do lugar que ocupa no pensamento que se
hegemonizou ao longo do século XX. A filosofia heideggeriana é compreendida como
uma face da moeda, cuja contraface é o neopositivismo. Embora crítico do
neopositivismo, Lukács demonstra que a Heidegger desemboca na mesma seara
presente no pensamento neopositivista de Rudolf Carnap, cuja exigência teórica sugere
a “teoria da completa manipulação de todos os fenômenos sociais”, ou seja, tem a
função de buscar “o enquadramento do social numa ciência neopositivista unitária”
(LUKÁCS, 2012, p.84). Lukács toma em consideração a famosa proposição de
Wittgenstein “do que não se pode falar, deve-se silenciar” que, mantendo-se fiel
ao neopositivismo, cala-se ante aos “problemas da vida”, sucumbindo à
“universalidade da manipulação”, uma vez que a toma como “nula, anti-humana e
degradante para o pensamento humano autêntico”. Lukács considera que
a filosofia de Heidegger não constitui uma antítese exata ao neopositivismo,
sendo apenas a complementação deste: ambos pisam o mesmo chão,
examinam os problemas da sua época da mesma maneira, não vislumbrando
neles autênticas questões histórico-sociais, mas fundamentos imutáveis de
um pensamento científico, ou então fenomenológico; com a diferença de que,
onde Carnap se detém satisfeito consigo mesmo, Heidegger manifesta um
desconforto wittgensteiniano. Pode-se dizer, portanto, numa generalização
ampla: com a descrição da manipulação geral do pensamento e da vida
Carnap manifesta sua aprovação revestida de neutralidade em relação a essa
condição. (LUKÁCS: 2012, 84)
18
A este respeito cf. o artigo publicação nessa edição: “O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à
ontologia de Nicolai Hartmann”.
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 263
As determinantes histórico-sociais da sociabilidade do capital são elevadas às
condições universais em ambos os casos, em um autor Heidegger como condição
imanente do homem, no outro Wittgenstein, apesar de seu desconforto como
conteúdo programático do todo neopositivista de Carnap, sob a forma da
manipulação geral da realidade. Os elementos postos em
Heidegger Redivivus
retornam com mais força ainda, que o problema do estranhamento adquire
novamente uma posição central na argumentação crítica. Novamente é denunciado o
fato de Heidegger encarar “a realidade social da vida estranhada como
condition
humaine
absoluta e imutavelmente dada” (idem).
Ademais, outros elementos críticos presentes em suas obras anteriores são
reafirmados ao destacar que o pensador aleo “examina essa condição
ontologicamente imutável com um olhar pessimista-irracionalista e tenta pôr
ontologicamente à mostra a perspectiva de uma saída religiosa (religiosa ateísta) para
cada indivíduo, uma saída que deixe os fundamentos intactos” (LUKÁCS, 2012, p. 84).
Ao estabelecer o “império do impessoal” em relação à esfera pública, reafirma Lukács
também nessa obra, Heidegger escamoteia o aspecto decisivo presente na sociedade
capitalista, qual seja, a “tendência importante da manipulação social”.
Um novo elemento crítico é acrescentado em suas considerações. Ao se
contrapor a tal compreensão dos fenômenos sociais, Lukács adverte que os processos
sociais relativos ao estranhamento são formas manipulatórias que visam forjar a
opinião pública, no intuito de “dominar e regular o mercado”. Desse modo, terminam
por atender às exigências e necessidades por ele postas e a reproduzir em outros
campos as bases da ppria sociabilidade. Lukács traz à luz a ideia importante
desenvolvida em sua obra, qual seja, o caráter manipulatório do capitalismo. Este se
reflete tanto na filosofia do neopositivismo como no pensamento de Heidegger.
“Heidegger transforma uma tenncia tão profundamente condicionada pelo tempo
em fator ontológico fundamental de toda a vida humana” (LUKÁCS, 2012, p.91),
identificando de maneira arbitrária e pouco justificada para um leitor de Marx,
evidentemente a esfera pública com a inautenticidade. Assim, a concepção
heideggeriana termina por promover a “exclusão consequente de toda nese
histórico-social no caso de fenômenos eminentemente sociais” (idem, 90). Em outras
palavras, as características do capitalismo manipulatório são elevadas à condição
essencial da vida, e nessa medida não pode ser transformado, pois é a forma essencial
da cotidianidade.
Ronaldo Vielmi Fortes
264 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
Assim, Lukács considera que Heidegger e Wittgenstein comungam com a ideia
de que as foas “irresistíveis da vida” são forças “supratemporais e supra históricas”
(idem, p.84). Os pensamentos de ambos os autores são complementares, na medida
que em Heidegger encontramos a tentativa de “preencher com conteúdo, articular
filosófica, ontologicamente, o silêncio’ de Wittgenstein, em que se expressa a rejeição
neopositivista de nossos problemas vitais (ou da incapacidade de solucioná-los)”
(ibidem).
Lukács insiste em destacar que
se a intenção é, como em Heidegger, fazer uma investigação ontológica da
vida cotidiana, todos os seus objetos e sujeitos, todas as suas relações
objetivas e subjetivas, aparecem exclusivamente à luz de como se manipulam
reciprocamente, de como são manipulados uns pelos outros. E reiteramos
que essa imagem, que já nos termos da sociologia descritiva é unilateral e
distorcida, é elevada, na ontologia fenomenológica de Heidegger, à condição
de essência atemporal da existência humana - ao menos no sentido negativo.
(LUKÁCS, 2012, p.87).
Por meio dessas considerações, Lukács destaca que a peculiaridade do todo
da fenomenologia como chave para a ontologia heideggeriana conduz ao
empobrecimento categorial. Lukács é taxativo a esse respeito: “assim que a realidade
é colocada entre parênteses, desaparecem justamente a complexidade, o processo, a
interação etc. de todo grupo fenomênico, e até o próprio procedimento significa
essencialmente uma reificação que isola o próprio fenômeno” (LUKÁCS, 2013, p.675).
Convém desenvolver esse aspecto da refutação lukácsiana acerca da pobreza
categorial da ontologia de Heidegger.
Apropriando-se a seu modo de elementos da filosofia de Kierkegaard, Heidegger
retoma os sentimentos de pessimismo diante da vida, porém, tal como Lukács
constatara em suas obras anteriores, a reposição dos princípios da crítica da vida, da
angústia tal como compreendida pelo filósofo dinamarquês, aparece nele sem a
necessidade de deus. Trata-se, tal como fora assinalado em
A destruição da razão
, do
ateísmo religioso, ou da teologia se deus:
embora a antítese teológica intransponível entre insolubilidade mundana-
terrena e solubilidade transcendente dos problemas práticos humanos seja
conservada de modo estruturalmente fundante e determine de maneira
decisiva toda a formação conceitual de Heidegger. (LUKÁCS, 2012, p.93).
Nesse ponto, o problema do ser e do nada
19
reaparece nas considerações críticas
19
Conforme vimos, presente nas considerações realizadas em
Marxismo ou existencialismo?
Ainda
que Lukács o faça menção a Marx nesse contexto, não seria inoportuno lembrar suas palavras em
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 265
de Lukács, mas desta vez aspectos fundamentais são acrescentados em sua objeção.
Em
O que é a metafísica?
, Heidegger estabelece o seguinte problema em suas
formulações: “Por que existe afinal o ente e não antes o nada?”. Para Lukács, a questão
é da máxima abstração, não é passível de ser respondida de maneira científica, pois
não viabiliza estabelecer um por quê causal, mas tão somente um para q teleológico.
Nesse sentido, é uma questão fundamentalmente teológica
20
. Deriva dessa pergunta
inicial duas conclusões decisivas para o desdobramento do pensamento
heideggeriano. Se o nada não é uma derivação direta da negação, ou seja, somente
ao negar o existente o ente chega-se ao nada, afirma-se por via de consequências
que "o nada é mais originário do que o 'não' e a negação" (idem, p.133), e por fim,
pode-se concluir: "o nada é a negação completa da totalidade do ente" (HEIDEGGER:
2007, p.120). Enfim, temos o “nada nadificante”, na medida em que não é mais a
negação que conduz à ideia abstrata do nada, mas é o Nada substantivado que conduz
à negação.
Diante do beco-sem-saída a que sua questão conduz, como o próprio Heidegger
admite, ele se foado a modificar o conteúdo inicial de seu problema, ou seja,
diante da dificuldade de demonstrar como o nada pode ser a “negação completa da
totalidade do ente, afirma-se a impossibilidade da apreensão da totalidade do ente-
em-si. Tal ideia se expressa na seguinte afirmação: “há uma diferença essencial entre
a apreensão da totalidade do ente-em-si e o encontrar-se em meio ao ente em sua
totalidade. A primeira é fundamentalmente impossível. O segundo acontece
constantemente em nosso ser-aí" (idem, 125). Mais uma vez, Lukács é irônico em suas
considerações: “sendo assim, é brincadeira de criança tomar os afetos e estados de
ânimo humanos como fenômenos sicos e, mediante sua análise fenomenológica,
chegar ao nada como categoria ontológica” (LUKÁCS, 2012, p.94). O “encontrar-se ao
seus
Manuscritos econômico filosóficos
que destaca a natureza absurda da abstratividade da questão:
“[...] quem gerou o primeiro ser humano e a natureza em geral? Só posso responder-te: a tua pergunta
é, ela mesma, um produto da abstração. Pergunta-te como chegas àquela pergunta; interroga-te se a
tua pergunta não ocorre a partir de um ponto de vista ao qual eu não posso responder porque ele é
um ponto de vista invertido. Pergunta-te se aquele progresso como tal existe para um pensar racional.
Se tu te perguntas pela criação da natureza e do ser humano, abstrais, portanto, do ser humano e da
natureza. Tu os assentas como o-sendo e ainda queres, contudo, que eu te os prove como sendo.
Digo-te eu, agora: se renuncias à tua abstração também renuncias à tua pergunta ou, se quiseres manter
a tua abstração, sê então consequente, e quando pensando pensas o ser humano e a natureza como
não-sendo ||XI|, então pensa-te a ti mesmo como não-sendo, tu que também és natureza e ser humano.
Não penses, o me perguntes, pois, tão logo pensas e perguntas, tua abstração do ser da natureza e
do homem não tem sentido algum. Ou és um tal egoísta que assentas tudo como nada e queres, tu
mesmo, ser? (MARX, 2004, p.114).
Ronaldo Vielmi Fortes
266 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
meio ao ente em sua totalidadetorna-se a angústia que manifesta o nada, decorrendo
daí a tese ontológica: “Ser-aí quer dizer: estar suspenso dentro do nada(HEIDEGGER,
2007, p.125).
O problema de base fundamentalmente teológica adquire a partir de então sua
forma ontológica expressa em uma das categorias mais “famosas e influentes” de
Heidegger, a derrelição [
Geworfenheit
]. O ser lançado no mundo, tal como o concebe
Heidegger, ainda que seja um existente não possui gênese nem mesmo uma
perspectiva, parece como o “puro que ele é”, indica apenas a facticidade da entrega”.
Desse modo, o ser- é o acompanhamento permanente da existência, enquanto
derrelito o ser-aí é jogado na inautenticidade do impessoal. No mundo da
inautenticidade criado por Heidegger, o indivíduo age por impulsos provenientes de
fora, o significa afirmar, sua manipulação. A consequência dessa condição é que, nos
termos do próprio Heidegger, o seu “de onde” e “para ondepermanecem obscuros.
Nesse sentido, Lukács interroga criticamente:
Assim se profere o trancafiamento definitivo do ser-aí terrenal no mundo de
"o impessoal
[das Man]".
Ele possui uma existência apenas fática, que não
tem de-onde nem para-onde - o que poderia dar conteúdo ou rumo às suas
ações? (LUKÁCS, 2012, p.95).
Não uma indicação sequer, insiste Lukács, que aponte a via para a
autenticidade, não há sequer um indicativo acerca do “contdo e do rumo da
sublevação contra o ‘impessoal’” (ibidem). Aspecto inusitado e contrário a qualquer
teoria autêntica da prática humana mesmo aquelas de talhe kantiano , para quem
a questão do “de onde” e do “para onde”, do apontamento de orientações a serem
seguidas, é fundamental para determinar a prática do indivíduo. Estabelecer uma
nese e um devir significa afirmar a possibilidade de compreender a origem da
condição humana e mediante tal compreensão estabelecer a possibilidade do devir.
Mas, em Heidegger a condição da inautenticidade da cotidianidade é definitiva e
irrevogável, a derrelição heideggeriana tolhe o caminho da apreensão de sua gênese
e de sua perspectiva de superação das contradições da realidade social.
Resta a Heidegger apenas indicar o caminho do ser para a morte. Dentre as
várias possibilidades que se manifestam na vida, há uma de natureza completamente
diferente, pois é inescapável, a morte. O indivíduo pode em sua vida dedicar-se a um
objetivo ou outro, mas nunca podedeixar de morrer. A morte como possibilidade
constante na vida é a possibilidade de todas as outras possibilidades tornarem-se
impossíveis. Ela nos revela assim, a nulidade de todo projeto, ela impede que alguém
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 267
se prenda a dada situação, destaca a nulidade de todo projeto, ela liberta das ilusões
do impessoal, da faticidade. É com base no ser para a morte que Heidegger pretende
resgatar o indivíduo da malha de mentiras e falsidades da cotidianidade, é o meio que
permite abandonar a decadência e alçar ao autêntico. O impulso para além das
seduções da inautenticidade é dado pela angústia com a morte. A angústia torna
manifesto do nada. Por conseguinte, a derrelição cumpre o papel do deus criador,
conclui Lukács criticamente, ao comparar os resultados de Heidegger com o
deus
absconditus
de Kierkegaard
20
.
Porém, para Lukács, “essa angústia também é totalmente destituída de contdo
e de direção. Por mais resolutamente que se contraponha, no plano verbal, essa
angústia autêntica ao medo do inautêntico, não há como obter disso um conteúdo,
uma direção para a vida real” (idem, p.98). Não passa, no dizer do filósofo magiar, “de
um protesto oco e abstrato, que permanece puramente interior que não compromete
a nada, contra o barulho absurdamente intenso do mundo do impessoal” (ibidem). É a
crítica resignada de Heidegger em relação à vida manipulada da forma histórica do
capital. Desse modo, os mais autênticos problemas éticos, as questões humanas mais
centrais, permanecem no filósofo alemão restritos ao “pequeno mundo”, enquanto,
para Lukács, somente seriam passíveis de resolução no “grande mundo”, isto é,
mediante a ação diretamente voltada à realidade, às formas concretas da vida social.
Somente “uma vida com sentido pode terminar numa morte com sentido”, aduz
Lukács contra o ser-para-a-morte, contra a derrelição, para na seqncia mencionar
Spinoza e Epicuro, na intenção de contrapor os resultados de Heidegger a outras
filosofias de grande envergadura. Para o primeiro, “uma filosofia autêntica deve se
ocupar com a vida e não com a morte”, para o segundo, “quem está vivo não tem nada
a ver com a morte justamente por estar vivo” (idem, p.99).
A retomada dos elementos mais gerais do pensamento de Heidegger tem o
propósito, conforme dissemos, de destacar o empobrecimento geral das categorias
em seu pensamento. Contrapondo a ele outros filosóficos, como Aristóteles, Hegel ou
mesmo Marx, Lukács considera como no conjunto das categorias postas na filosofia
20
“O lugar do
Deus absconditus
, no Kierkegaard tardio, é ocupado, numa terminologia distinta, mas
ontologicamente equivalente, pelo nada (e pelo ser que lhe corresponde, completamente transcendente
a todo ente); porém, isso altera a posição de Kierkegaard apenas quanto à disposição de ânimo, apenas
emprestando à sua linguagem um tom "ateísta". As perguntas e respostas de Heidegger têm um caráter
tão teológico quanto as de Kierkegaard”. (idem, p.94).
Ronaldo Vielmi Fortes
268 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
desses autores estão presentes parâmetros que permitem a apreensão das categorias
da realidade e desse modo são capazes de estabelecer conteúdos e diretrizes
concretas que visam a resolubilidades dos dilemas e conflitos da realidade social.
Conforme dissemos, a explicitação e o aprofundamento dos princípios de uma
ontologia do ser social constituem a motivação central o acerto de contas lucsiano
com o pensamento hegemônico de sua época, neste caso, o de Heidegger. Para
entender a crítica a Heidegger é preciso compreender a extensão dos desdobramentos
que Lukács estabelece em relação à ontologia do ser social. Sob este aspecto, vale
acrescentar que a refutação a Heidegger aparece a propósito do tratamento de obras
relevantes que se debruçaram sobre a ontologia, motivo pelo qual a referência aos
três filósofos supracitados não é fortuita, mas indica o apreço de Lukács pelas
conquistas provenientes do pensamento destes autores.
Por esse motivo, cabe salientar, na seção dedicada ao existencialismo e na
sequência da primeira parte de sua obra a grandeza e os limites de Hegel são
contrapostos à pobreza categorial da filosofia heideggeriana, pondo em curso a
necessidade de ir “na direção dos grandes dialéticos, isto é, na direção de Hegel e
sobretudo de Marx” (LUKÁCS, 2012, p.180) para estabelecer princípios ontológicos
fundamentais autênticos. Retornar os grandes dialéticos Hegel e Marx frente aos
descaminhos e equívocos do presente, como forma de criticar a renúncia às questões
essenciais da ontologia como querem os neopositivistas, e à falsa ontologia
existencialista de Martin Heidegger.
Ao considerar o problema da relação entre o ser e o nada, Lukács destaca as
raízes do problema na obra de Hegel. Sua intenção é demonstrar a natureza distinta
do modo como a relação aparece em Heidegger e destacar o empobrecimento
categorial de sua filosofia. Embora Hegel caía em resultados extremamente
problemáticos, por consequência da elevada abstração com a qual trata a identidade
entre o ser e o nada, subsiste nele o elemento da superação dialética; sua filosofia
abarca de maneira inusitada na história da filosofia a determinação da processualidade
dos complexos da realidade. Ainda que seu ponto de partida seja problemático, em
sua filosofia encontramos a imagem concreta da essência ontológica do mundo, cuja
totalidade, para ele, “se constrói com as interrelações dinâmicas de totalidades
relativas, parciais, particulares”. A grandeza e os limites de Hegel, aparecem descritas
do seguinte modo por Lukács:
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 269
na concepção de Hegel, a passagem ontológica do ser totalmente abstrato à
essência bem mais determinada e concreta permanece uma declaração
idealista, enigmática e inexplicável; mas toda essa névoa logicista é dissipada
quando, ao contrário, se assume que o caminho do conhecimento vai - por
meio da abstração - do ser abstrato à essência mais concreta, enquanto na
realidade, porém, a essência mais concreta e complexa constitui o ponto de
partida ontológico, do qual pode se obter através da abstração o conceito
do ser, que também é primariamente ontológico. (LUKÁCS, 2012, p.251).
Em contrapartida, em Heidegger a relação entre o ser e o nada é invertida, não
é o ponto de partida como em Hegel, mas o ponto de chegada de sua filosofia. O ser
como conceito central do existencialismo, termina por realizar a elevação da falsa
identidade do ser com o nada, colocando-a como tema central, como seu ápice, sua
plenitude”. Esse resultado é decorrência exata das duas tendências contrapostas
presentes em seu pensamento: de um lado, “a universalidade da vida manipulada” tal
como reconhecida na realidade social, de outro o protesto contra ela, que permanece
puramente íntimo” (idem, p.86). São assim suprimidas as mediações concretas da
realidade, os nexos originários e tendenciais dos fenômenos sociais. Desse modo,
Heidegger obstrui essa única via possível para estabelecer um nexo
racionalmente fundamentado entre os dois papéis contraditórios do
fenômeno (descobrimento ou então encobrimento da essência), e o faz
justamente mediante a abstração exacerbada de seu método, que não
procura, partindo das mediações e especificações concretas de um complexo
de fatos, chegar a uma concreção generalizada, mas, ao contrário, salta para
a imediatidade formal e, portanto, abstrato-universal da primeira datidade,
da primeira imediatidade, sem nenhuma mediação com o nexo último. Esse
método de abstração que exclui mediações concretas transforma a autêntica
dialética de fenômeno e essência numa contradição abstrativa, irrevogável,
sem fundamento. (ibidem).
Os termos de Lukács são bastantes claros nesse ponto, salta-se da imediaticidade
para a determinação mais geral e abstrata do ser, desprezando as mediações
concretas. A relação entre fenômeno e essência, nesta medida, é por completo
negligenciada.
No capítulo dedicado a Hegel a riqueza categorial de seu sistema filosófico
aparece como claro disparate à pobreza categorial da filosofia de Heidegger:
O feito filosoficamente revolucionário de Hegel, a descoberta das
determinações de reflexão e a atribuição de ponto central a elas, consiste
sobretudo em ter eliminado o abismo que separava, de modo absoluto, o
fenômeno e a essência. Dado que a essência o é entendida nem como
ente-transcendente, nem como produto de um processo ideal de abstração,
mas, ao contrário, como momento de um complexo dinâmico no qual
essência, fenômeno e aparência convertem-se ininterruptamente um no
outro, as determinações de reflexão revelam, nessa nova concepção, um
caráter primariamente ontológico. (idem, p.253).
Em Hegel, apesar da subsunção à lógica, encontram-se desenvolvidas relações
Ronaldo Vielmi Fortes
270 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
concretas entre as categorias da realidade. No que tange a relação entre fenômeno e
essência, as relações por ele explicitadas apreendem essas relações e condições no
mesmo nível de realidade em que os objetos estão postos. Mesmo com aspectos
problemáticos derivados do idealismo, o único critério da correção do pensamento a
respeito desta relação é a sua concordância com a realidade (idem, p.254).
Para explicitar o problema de maneira bem simples, Hegel parte da relação
idealista, abstrata, entre o ser e o nada, para ainda que por caminhos tortuosos
desembocar na apreensão da realidade; enquanto Heidegger, parte de percepções
concretas de fenômenos da realidade para negá-los em sua autenticidade, culminando
na abstração da identidade entre o ser e o nada, fazendo com que, por fim, as
mediações concretas da realidade desapareçam em prol de um sistema composto por
categorias abstratas, por isso empobrecidas.
Cabe aqui ainda fazer remissão ao problema da historicidade, igualmente tratado
no capítulo em questão. Não se poderia deixar de mencionar, no que concerne à
temporalidade, que Lukács volta a referir a rejeição por parte de Heidegger da
concepção de tempo cronológico e demonstra sua adesão a ideia de tempo tal como
a compreende Kierkegaard. O tempo vivido (subjetivo) é elevado à condição de
temporalidade autêntica, rejeitando de forma cabal o tempo objetivo como conceito
vulgar de tempo. Heidegger desconsidera o problema da gênese histórica dos
fenômenos da realidade social. Nesse sentido, a história: “tanto o tempo como a
historicidade, uma vez mais, não são buscados em seu ser-em-si, mas subjetivizados
e, por isso, distorcidos, adaptados à força aos modelos existenciais a ali obtidos”
(LUKÁCS, 2012, p.99). A subjetivização do tempo corresponde por via de
consequências à rejeição da história real como “vulgar”.
O contraste com Marx nesse sentido, revela-se de maneira bem evidente nas
formas pela qual Lukács estabelece o problema da historicidade na ontologia. As
considerações abaixo fornecem mostras claras das diferenças de fundo na
compreensão postas por esses pensamentos antagônicos:
A velha filosofia esboçava um sistema de categorias, no interior da qual
apareciam também as categorias históricas. No sistema de categorias do
marxismo, cada coisa é, primariamente, algo dotado de uma qualidade, uma
coisidade e um ser categorial. “Um ser não objetivo é um não-ser”. E dentro
desse algo, a história é a história da transformão das categorias. As
categorias são, portanto, partes integrantes da efetividade. Não pode existir
absolutamente nada que não seja, de alguma forma, uma categoria. A esse
respeito, o marxismo distingue-se em termos extremamente tidos das
visões de mundo precedentes: no marxismo o ser categorial da coisa constitui
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 271
o ser da coisa, enquanto nas velhas filosofias o ser categorial era a categoria
fundamental, no interior da qual se desenvolviam as categorias da realidade.
Não é que a história se passe no interior do sistema das categorias, mas sim
que a história é a transformação do sistema das categorias. As categorias
são, portanto, formas do ser. Naturalmente, à medida que se tornem formas
ideais, são formas do espelhamento, mas em primeiro lugar, são formas do
ser. (LUKÁCS, 1999, pp.145-6)
Por fim, ainda para traçar em linhas gerais outro aspecto relevante da
contraposição de Lukács, é necessário mencionar, ainda que rapidamente, o modo
como são por ele determinadas a nese e os desdobramentos dos processos sociais.
A realidade social, a cotidianidade, não constitui algo a parte das individualidades. Os
homens constroem a própria sociabilidade, não de um modo consciente, mas ao
tomarem decisões entre as alternativas e ao criarem alternativas novas para os
problemas, contradições, desafios que se apresentam no curso da trajetória histórica
da humanidade. Os indivíduos são responsáveis pelo próprio mundo que criam, seus
atos singulares, a síntese de todas as formas dos pores teleológicos dos indivíduos
criam na sociabilidade legalidades sociais, leis que determinam a vida desses
indivíduos. Essas constituem formas objetivas de objetividade social que estabelece o
campo das possibilidades para as ações individuais. A este respeito, Lukács cita
constantemente a passagem de
O capital
, em que Marx afirma: não sabem, mas o
fazem. “O homem é um ser que responde”, isso significa que busca compreender seu
mundo, social e natural, produz perguntas e responde. São as respostas e perguntas
que se solidificam em tendências, em formas de objetividade, que passam a agir como
legalidades sociais
21
. São frutos dos atos humanos, mas ganham força e objetividade
diante dos homens, que podem agir na manutenção dessas tendências, ou em
determinados contextos agir ativamente contra elas. Basta pensar na categoria valor,
enquanto forma objetiva de objetividade social, cuja gênese deve ser compreendida
pelas relações que os indivíduos estabelecem entre si na forma da sociabilidade do
21
A este respeito as palavras de Lukács sobre a estrutura fundamental dos processos sociais, são
bastante elucidativas: “eles partem imediatamente de pores teleológicos, determinados de maneira
alternativa, feitos por homens singulares, mas, dado o decurso causal dos pores teleológicos, estes
desembocam num processo causal, contraditoriamente unitário, dos complexos sociais e de sua
totalidade, e produzem conexões legais gerais. Portanto, as tendências econômico-gerais que surgem
por essa via são sempre sínteses de atos individuais, realizadas pelo próprio movimento social. Tais
atos recebem assim um caráter econômico-social tão explícito que os homens individuais, em sua
maioria, sem ter necessariamente consciência clara a respeito, reagem a circunstâncias, constelações,
possibilidades etc. típicas de um modo que é também tipicamente adequado a elas. A resultante
sintética de tais movimentos se torna a objetividade do processo global. (LUKÁCS, 2012, pp.355-6).
23
Cf. SARTORI, Vitor;
Ontologia nos extremos
; 2019; TERTULIAN, N. “O conceito de alienação em
Heidegger e Lukács”, in: TERTULIAN: 2016.
Ronaldo Vielmi Fortes
272 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
capital. Em suma, os indivíduos historicamente criam a legalidade, as formas objetivas
de objetividade social, essas, posteriormente, incidem sobre os próprios indivíduos, e
determinam suas vidas.
O indivíduo ativo face às determinações sociais contrapõe às vertentes que
tendem
por um lado, [a] fetichizar a substância humana em entidade mecânica, rígido-
abstrata, separada do mundo e da própria atividade (como acontece de
muitos modos no existencialismo), ou para, por outro lado, [a] fazer dela um
objeto que praticamente não oferece resistência a quaisquer manipulações
(o que constitui a consequência última do neopositivismo). (LUKÁCS, 2013,
p.284).
Toda a discuso empreendida conclui-se no capítulo final de sua obra, em que
o problema do estranhamento [
Entfremdung
] é considerado. O terreno refutativo à
filosofia de Heidegger está estabelecido pelos capítulos iniciais, em que, como
vimos, denuncia-se o fato do filósofo existencialista tomar a condição histórico-social
do capitalismo como
condition humaine
. Adentrar nesse tema, foge ao escopo deste
artigo, importa enfatizar a trajetória expositiva da obra, apenas para insistir na tese da
posição da crítica a Heidegger como um acerto de contas em relação às filosofias
predominantes em seu tempo mediante a explicitação de suas próprias descobertas e
investigações acerca do ser social obviamente constituídas sobre bases
completamente distintas.
Tudo o que estabelecemos nas páginas acima não esgotam de maneira alguma
a riqueza dos detalhes postos por Lukács em sua crítica a filosofia de Heidegger. O
objetivo foi tão somente expor as linhas principais das refutações, destacando como
no decurso de suas obras, Lukács, mantendo elementos chaves de sua crítica, passa a
desdobrá-las em conformidade às ampliações e aprofundamentos de seu próprio
pensamento. A presença de Heidegger em vários momentos é devida à necessidade
de se contrapor ao constante crescimento de sua influência na filosofia, é preciso
mostrar a falsidade ontológica de suas teses, extrair as consequências da explicitação
da autêntica ontologia do ser social.
O sentido e a função da crítica a Heidegger para os dias de hoje
De
A destruição da razão
até sua obra póstuma
Para uma ontologia do ser social
,
o que se verifica é a percepção da crescente influência e hegemonia de Heidegger no
pensamento mundial. No primeiro livro, embora seja reconhecida a importância de
Heidegger, ele é um dentre outros (Schelling, Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche,
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 273
Simmel, Dilthey etc). Na medida em que ele é retomado em suas obras posteriores,
Lukács confere a ele um lugar mais central em suas refutações. Heidegger foi no tempo
de Lukács, principalmente na última década de sua vida, presença marcante nas
discussões filosóficas. Seu pensamento ganhou os espaços acadêmicos, culturais e
influenciou profundamente diversas outras vagas filoficas posteriores a Lukács. O
pensamento de Heidegger e de Nietzsche são hoje uma constante em diversos meios
sociais, invadem inclusive os espaços mais prosaicos da cotidianidade. Conforme
salienta Lukács, em 1966:
não é necessário, de maneira alguma, ler um filósofo para se tornar
ideologicamente influenciado por ele, às vezes até de um modo decisivo. Seja
por meio de literatura secundária, de artigos em revistas e jornais, edições
de rádio e muitas outras formas, estes propagam o conteúdo de diversas
visões de mundo, ainda que de maneira diluída ou distorcida, muitas vezes
até mesmo simplificando o essencial. Não é preciso ler o próprio Nietzsche,
não é necessário saber nada sobre o dionisíaco, sobre o eterno retorno do
mesmo e, apesar disso, de tais mediações, pode-se chegar a ter um bom
conhecimento para se comportar como um “super-humano” em relação à
esposa e aos seus subordinados. Tudo isso apenas indica claramente que
esse processo de popularização das visões de mundo filosóficas sempre
abrange aqueles momentos em que, em um estágio concreto do
desenvolvimento histórico, tornam-se significativos para uma corrente
socialmente influente. As interpretações, reinterpretações etc., apresentam
toda uma grande escala, que vai desde a apreensão correta da essência até
sua completa distorção. (Lukács, 2020,
Posfácio
, II).
Essa percepção da presença maciça da filosofia heideggeriana foi e é bastante
clara, e as derivações de seu pensamento não passaram desapercebidas para o filósofo
magiar. Não apenas suas ideias, mas o próprio método fenomenológico tal como
estabelecido por ele favorece a propagação dessa influência uma vez que responde a
anseios postos na própria realidade social. Seu método corresponde a funções sociais
que hoje imperam no campo das ciências sociais e da filosofia. Na medida em que
a realidade é colocada entre parênteses, desaparecem justamente a
complexidade, o processo, a interação etc. de todo grupo fenomênico, e até
o próprio procedimento significa essencialmente uma reificação que isola o
próprio fenômeno”. E por isso que o "colocar entre parênteses" se tornou um
método gnosiológico tão popular e moderno: não só para transformar o não
existente em existente, mas também para, dependendo das circunstâncias -
como ocorre diariamente tanto no existencialismo como no estruturalismo -,
fazer do não existente um existente próprio e essencial. (LUKÁCS, 2013,
p.675).
Decerto as críticas de Lukács a Heidegger podemos acrescentar também
aquelas dirigidas a Nietzsche podem ajudar a compreender a extensão de suas
influências na contemporaneidade, ajudar inclusive a explicar como e por que o
pensamento
reacionário
desses filósofos podem hoje servir de esteio e parâmetro
primordial para supostas vertentes políticas de esquerda. Se se pode falar de um
Ronaldo Vielmi Fortes
274 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
movimento contestatório de esquerda em nossos dias, de fato, é preciso ter claro que
não se trata de uma esquerda marxista, mas de um nietzscheanismo e
heideggerianismo de esquerda
22
.
Vale insistir nesse ponto: as derivações e persistências dos fundamentos
filosóficos de Heidegger se fazem notar nos mais diversos campos intelectuais,
políticos e culturais. Permeiam discursos das defesas mais cínicas do capital até o
anticapitalismo das autoproclamadas esquerdas. As consequências desta filosofia
levam, se formos coerentes com as considerações de Lukács, ao entorpecimento diante
da realidade social, à resignação frente às contradições e conflitos presentes na
sociabilidade de nossos dias. O refúgio para a interioridade, a colocação do problema
como o auntico e o inauntico, o próprio e o impróprio, terminam por deixar
irretocadas as malhas tendenciais da dinâmica da sociabilidade do capital, prestando-
se assim ao papel de uma apologia indireta deste. Uma crítica que declara a
insuperabilidade das condições sociais e vê como única saída o recurso do
voltar-se a
si mesmo
, é em última instância, uma forma de justificação e manutenção do
status
quo.
A extensão dessa influência transcende as raias do pensamento filosófico. As
ideias e as concepções de mundo dessas filosóficas se presentificam na própria
cotidianidade dos indivíduos. Conforme Lucs volta a salientar em 1966:
não é necessário, de maneira alguma, ler um filósofo para se tornar
ideologicamente influenciado por ele, às vezes até de um modo decisivo. Seja
por meio de literatura secundária, de artigos em revistas e jornais, edições
de rádio e muitas outras formas, estes propagam o conteúdo de diversas
visões de mundo, ainda que de maneira diluída ou distorcida, muitas vezes
até mesmo simplificando o essencial. Não é preciso ler o próprio Nietzsche,
não é necessário saber nada sobre o dionisíaco, sobre o eterno retorno do
mesmo e, apesar disso, de tais mediações, pode-se chegar a ter um bom
conhecimento para se comportar como um “super-humano” em relação à
esposa e aos seus subordinados. Tudo isso apenas indica claramente que
esse processo de popularização das visões de mundo filosóficas sempre
abrange aqueles momentos em que, em um estágio concreto do
desenvolvimento histórico, tornam-se significativos para uma corrente
socialmente influente. As interpretações, reinterpretações, etc., apresentam
toda uma grande escala, que vai desde a apreensão correta da essência até
sua completa distorção. (Lukács, 2020,
Posfácio
, II).
O que fica evidente nas considerações voltadas contra Heidegger e por via de
consequências contra as derivações de seu pensamento é a importância de recolocar
22
A propósito de Nietzsche e sua influência no pensamento de esquerda ver o interessante livro de
MONVILLE, Aymeric;
Misère du nietzschéisme de gauche: de Georges Bataille à Michel Onfray
; Paris:
Aden, 2007.
Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021 | 275
o problema da necessidade da transformação social. Conforme advertiu Lukács contra
as tenncias de complementações teóricas ao pensamento de Marx em entrevista
concedida no ano de 1969 , “é, em minha opino, uma ilusão se, [...], pessoas que
ficaram desapontadas com o stalinismo acreditarem que, com a ajuda do
estruturalismo, é possível resolver a situação do marxismo” (LUKÁCS, 2020, p.129); e
logo a frente aduz: “é ilusório acreditar, como as pessoas desapontadas com o
marxismo stalinista o fazem, que devemos aprender alguma coisa com Nietzsche”
(idem, p.130). Não há como conciliar o inconciliável. O pensamento de Marx e
Heidegger (de Nietzsche, do estruturalismo) são opostos, compreendem o ser social e
seus dilemas de formas evidentemente contrapostas. Segundo Lukács, “o todo do
marxismo está correto; devemos desenvolvê-lo ainda mais para que se torne adequado
como base para resolver os problemas atuais do socialismo e do capitalismo(idem,
p.48). Suas últimas obras são a expressão cabal dessa convicção: é preciso desdobrar
e aprofundar as conquistas provenientes do pensamento de Marx, buscar o
renascimento de sua teoria para estabelecer de maneira concreta o campo de possíveis
para a superação da sociabilidade do capital. Na construção desse caminho, segundo
Lukács, Heidegger, Nietzsche, o estruturalismo, não tem nada de concreto a contribuir,
antes pelo contrário.
Referências bibliográficas
GOLDMANN, Lucien.
Lukacs e Heidegger
. Verona: Bertani Editore, 1973.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.
Ciência da lógica - 1. A doutrina do ser
.
Petrópolis/Bragança Paulista-SP: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2016.
_________.
Ciência da lógica - 2. A doutrina da essência
. Petrópolis/Bragança Paulista
SP: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2016.
HEIDEGGER, Martin.
O que é metafísica?
. Petrópolis, Vozes, 2007.
_________.
Ser e tempo
. São Paulo: Vozes, 2005.
_________. “Sobre o humanismo.
In:
Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger.
Questão de
todo; Conferências e escritos filoficos
. Coleção “Pensadores”, V. 45. São Paulo:
Abril Cultural, 1973.
LUKÁCS, György.
A Destruição da Razão
. São Paulo: Instituto Lukács, 2020
_________.
Die Eigenart des Ästhetischen - Band I
. Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag,
1987.
_________.
Essenciais são os livros não escritos
. São Paulo: Boitempo, 2020.
_________.
Estética: la peculiaridade de lo estico, Tomo I
. Barcelona: Grijalbo, 1967.
_________.
Estética: la peculiaridade de lo estético, Tomo III
. Barcelona: Grijalbo,
1967a.
Ronaldo Vielmi Fortes
276 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 240-276 - jan./jun. 2021
_________.
Existencialismo ou Marxismo
. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1979.
_________.
Existentialismus oder Marxismus
. Berlin: Aufbau Verlag, 1951.
_________.
Goethe und seine Zeit
. WERKE 7; Berlin: Luchterhand, 1964.
_________. “Grand Hotel’Abgrund’”;
In:
Revolutionäres Denken. Eine Einführung in
Leben and Werke
. Luchterhand, 1984.
_________.
Pensamento Vivido: autobiografia em diálogo
. São Paulo: Estudos e
Edições Ad Hominem; Viçosa: Editora da UFV, 1999.
_________.
O jovem Hegel
. São Paulo: Boitempo, 2018.
_________.
Para uma Ontologia do Ser Social - volume 1
. São Paulo: Boitempo, 2012.
_________.
Para uma Ontologia do Ser Social - volume 2
. São Paulo: Boitempo, 2013.
_________.
Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971
. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2008.
_________.
Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins
; Band 13/14; Luchterhand,
1986.
_________.
Heidegger Redivivus
. Tradução de Ronaldo Vielmi Fortes.
Verinotio
, Rio
das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 48-87, jan./jun 2021.
MARX, Karl.
Das Elend der Philosophie
; Marx/Engels WERKE, Band 4; Berlin: Dietz
Verlag, 1974.
________.
Das Kapital
. Marx/Engels WERKE; Band 23, 24 e 25; Berlin: Dietz Verlag,
1968.
________.
Grundrisse
. São Paulo: Editorial Boitempo, 2011.
________.
Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie
. Berlin: Dietz Verlag, 1953.
________.
O capital, I
. São Paulo: Boitempo, 2013.
________.
Ökonomisch-philosophische Manuskripte
. MEGA I, 2; Berlin: Dietz Verlag,
1982.
SARTORI, Vitor Bartoletti.
Ontologia nos extremos: o embate Heidegger e Lukács, uma
introdução
. São Paulo: Intermeios, 2019.
________. O segundo Heidegger e Lukács: alienação, história e práxis.
Verinotio revista
on-line
, n. 11, Ano VI, abr./2010.
TERTULIAN, Nicolas.
Georges Lucs, Etapes de sa pensée esthétique
. Paris: Le
Sycomore, 1980.
________.
Lukács e seus contemporâneos
. São Paulo: Perspectiva, 2016.
VAISMAN, Ester e VEDDA, Miguel (org.);
Lukács: Estética e Ontologia
. São Paulo:
Alameda, 2014.
Como citar:
FORTES, Ronaldo Vielmi. Sobre os elementos da crítica lukácsiana a Heidegger: de A
destruição da razão a Para uma ontologia do ser social.
Verinotio
, Rio das Ostras, v.
27, n. 1, pp. 240-276, jan./jun 2021.