Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
György Lukács e o stalinismo
*
Nicolas Tertulian
Hoje em dia são raros aqueles que, ao evocar a luta dos intelectuais contra os
regimes totalitários do Leste, fazem referência a formas de oposição distintas daquela
dos dissidentes. O mérito destes homens corajosos que, de Andrei Sakharov a Václav
Havel e de Leszek Kołakowski a Aleksandr Soljenítsyn, conquistaram uma audiência
legítima não deve, contudo, fazer-nos esquecer, por um reflexo anticomunista
compreensível, mas, de todo modo, simplificador, o fato de que a contestação teve
início no próprio interior do sistema, e que intelectuais marxistas como Bertolt Brecht,
Ernst Bloch ou György Lukács denunciaram com vigor as práticas stalinistas e o
“socialismo de caserna”. O conteúdo e a finalidade de suas críticas eram,
evidentemente, diferentes daqueles dos dissidentes: eles desejavam a reforma radical
dessas sociedades, sua reconstrução sobre bases autenticamente socialistas, e não a
restauração do capitalismo.
Em 1958, Ernst Bloch confidenciou com amargura a seu amigo Joachim
Schumacher que ele próprio e seus discípulos foram objeto de uma repressão brutal
na RDA. Em carta, expedida por prudência desde a Áustria, ele explicava a seu
correspondente que a crítica contra a “
Satrapen-Misswirtschaft
” (desastrosa economia
de sátrapas) foi, por certo tempo, tolerada e, apesar dos pesares, aceita, mas que
desde a aparição do movimento de contestação na Hungria o Círculo
Petöfi
começou
a se reunir em 1956 a situação mudara completamente. Seguiram-se a isso
humilhações e proibições, como a proibição de lecionar e publicar o terceiro volume
de seu livro
Princípio esperança
. Bloch sintetizou a situação na rmula lapidar:
Man
brauchte einen deutschen Lukács
...”.
1
Era necessário, portanto, um Lukács alemão na RDA de Walter Ulbricht, que
*
Publicado pela primeira vez em
Les Temps Modernes
, junho 1993, pp. 1-45. Tradução de Carolina
Peters (agradeço a Murilo Leite. o auxílio no cotejo e revisão da tradução). Revisão técnica de Ester
Vaisman. As inserções entre colchetes são de responsabilidade da tradutora.
1
É necessário um Lukács alemão...
[N.T.]. Ernst Bloch,
Briefe, 1903-1975
, hrsg. von Karola Bloch,
1985, Suhrkamp Verlag, Band II, pp. 614-615.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.621
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justamente tremia ante a ideia de que o espírito do Círculo
Petöfi
, do qual o filósofo
foi entusiasta, se propagasse por ali. Como mandava a boa tradição stalinista, ele
montou um processo bombástico, destinado a prevenir qualquer veleidade de
questionamento dos métodos do poder ali existente. Os principais indiciados nesse
processo foram Wolfgang Harich e Walter Janka.
Graças às obras publicadas
2
por Walter Janka, antigo comunista, ex-combatente
da guerra civil espanhola e, no período de sua detenção, em 1956, diretor da grande
casa editorial de Berlim,
Aufbau-Verlag
, nós podemos ter uma ideia mais clara das
repercussões do papel desempenhado por Lukács no levantengaro sobre o
establishment
alemão-oriental.
Durante os eventos na Hungria, enquanto reinava a confusão, Johannes Becher,
ministro da cultura, aconselhado por Anna Seghers, pediu a Walter Janka que fosse a
Budapeste para trazer Lukács à RDA. Amigo do filósofo, o ministro-poeta temia por
sua vida. A operação, digna de um filme policial, foi barrada por Walter Ulbricht, que
não pretendia se imiscuir nos assuntos dos
camaradas soviéticos
”. Durante o
processo, Janka, a quem não pertencia, todavia, a iniciativa do projeto, foi repreendido
por tencionar trazer ao ps um
agente secreto do imperialismo [...] disfaado de
comunista
”. No cenário construído pela justiça da Alemanha Oriental, sob as ordens
de Walter Ulbricht, o filósofo aparecia como mentor ideológico de um complô
perpetrado pelos acusados para derrubar o regime. O procurador-geral, [Ernst]
Melsheimer (que exercia a magistratura desde o regime nazista) proferiu uma
verdadeira peça de acusação contra Lukács, servindo-se de suas intervenções nos
debates do Círculo
Petöfi
, bem como das declarações feitas antes e durante os eventos
de 1956, como provas.
3
Uma entrevista concedida por Lukács em 31 de outubro de
2
Walter Janka,
Schwierigkeiten mit Wahrkeit,
1989, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt;
Der Prozess gegen
Walter Janka und andere, Eine Dokumentation,
1990, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt; Walter Janka,
Spuren eines Lebens
, 1991, Berlin, Rowohlt.
3
Citamos, a partir de Walter Janka, a conclusão da acusação proferida pelo procurador, um texto, em
verdade, preparado com antecedência, de cerca de quinze páginas, dirigido contra Lukács, a quem
considerava
o pai espiritual da contrarrevolução ngara
”:
Und diesen Verräter Lukács, der schon
immer ein virkappter Agent des Imperialismus in den Reihen der internationalen Arbeiterbewegung war,
wollte der hier auf der Anklagebank sitzende Verräter und Feind des Ersten Deutschen Arbeiter- und
Bauernstaates namens Janka, der sich wie Lukács als Kommunist tarnte nach Berlin haben und zum
geistigen Inspirator der Konterrevolution in den DDR machen
” (“
E Lukács, esse traidor que sempre foi,
sob a máscara, um agente do imperialismo nas fileiras do movimento operário internacional, esse traidor
e inimigo do primeiro estado operário e camponês alemão, sentado aqui no banco dos réus, o chamado
Janka que como Lukács se camuflou de comunista queria trazê-lo a Berlim e torná-lo o mentor
espiritual da contrarrevolução na RDA
”) (
Schwierigkeiten mit der Wahrheit
, pp. 36-37;
Spuren eines
Leben,
p. 270). Anna Seghers, que teve a ideia de tirar seu amigo Lukács da Hungria e determinou que
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1956 a um jornalista polonês, Woroszilsky, e largamente reproduzida pela mídia
ocidental, escandalizava muito particularmente o procurador-geral.
4
Se houvesse
eleições livres na Hungria, afirmava Lukács, o Partido Comunista, que estava no poder,
receberia entre 5% e 10% dos votos; este, segundo ele, era o resultado da política
conduzida havia anos pelo regime de Rakosi.
5
Não pretendemos nos demorar mais sobre a história rocambolesca e trágica do
processo Harich-Janka, que terminou com pesadas penas de prisão. Os excessos do
promotor, que a certa altura chegou a acusar Lukács de ter convocado as tropas da
Otan contra o exército soviético,
6
eram uma prática corrente na justiça de tipo
stalinista. Também eram rotineiras declarações como as feitas por Johannes Becher,
durante uma coletiva de imprensa em fevereiro de 1957. Sem deixar de homenagear
o
historiador da literatura
Lucs, o ministro agora o repreendia por ter realizado
uma ação
dissolutora
junto ao Círculo
Petöfi
e, assim, apoiado a contrarrevolução.
Interrogado sobre a sorte do filósofo, Johannes Becher assegurou aos jornalistas que
ele se encontrava em casa, em Budapeste, e que se retirara da vida pública para se
dedicar ao projeto de escrever uma
Ética
.
7
Enquanto acontecia a coletiva de imprensa,
Imre Nagy e seu grupo, entre os quais se encontrava Lucs, eram deportados para a
Romênia. Pouco tempo depois, na Hungria, como na RDA e como em todos os países
ditos socialistas, a violenta campanha da imprensa contra o Lukács
revisionista
se
desencadearia.
Esse episódio dos anos 1956-1957, brevemente evocado, mostra bem a que
estava exposto um filósofo marxista que desejasse harmonizar seus princípios e sua
ação; esse episódio pode servir de introdução à nossa discussão.
Seria arriscado dizer que o colapso do mundo comunista teria surpreendido
Lukács. O autor de
Para uma ontologia do ser social
considerava que os regimes da
Becher e Janka implementassem o plano, estava entre o público da sala no momento da acusação; ela
teria ouvido, com os olhos baixos, sem levantar o menor protesto.
4
Walter Janka,
op. cit.
,
p. 90
.
5
A declaração de Lukács foi citada por Tibor Meray em seu livro
Budapest: 23 octobre 1956
, Robert
Laffont, 1961, p. 280:
O comunismo está totalmente comprometido na Hungria. Certamente serão
agrupados em torno do Partido círculos intelectuais progressistas, escritores, alguns jovens. A classe
trabalhadora, por sua vez, seguirá os social-democratas. Nas eleições livres, os comunistas obteriam
cinco, no máximo dez por cento dos votos. Provavelmente o comporão o governo, e passarão à
oposição [...]. Mas o Partido vai existir, vai salvar sua ideia, vai se tornar um centro intelectual e, daqui
a alguns anos, quem sabe?
6
Walter Janka,
Spuren eines Leben,
p. 368.
7
Ibid
., p. 271.
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Europa Oriental, imobilizados em seu triunfalismo e afetados pela indigência estrutural,
estavam condenados ao fim, e que era necessário reformá-los profundamente com
urgência para preservar a alternativa de um futuro socialista. Trata-se do próprio
sentido da luta travada pelo filósofo durante seus últimos quinze anos de vida,
mantendo-se fiel ao compromisso assumido na juventude. Para tanto, era preciso
atingir o mal na raiz, em outros termos, enfrentar o descaminhamento de um ideal de
liberdade, de emancipação e de justiça por parte dos regimes que pretendiam servi-
lo. Alimentando a convicção, em certo sentido, premonitória, de que essa perversão
do marxismo chamada stalinismo representa um perigo mortal para a causa do
socialismo, o filósofo se s a denunciar apaixonadamente o abismo que separava a
teoria e a prática de Stalin do espírito marxiano.
A importância do combate levado a cabo por György Lukács durante o último
período de sua vida foi, até o presente, amplamente subestimado. E hoje, após a queda
de regimes carcomidos, que de socialistas tinham o nome, um seguidor fiel de Marx
não corre o risco de ser considerado como um modelo de clarividência. É preciso
seguir, em seus escritos, as pistas desse combate para poder julgá-lo.
Entre 1956 e 1971, ano de sua morte, ele se voltou, tanto em textos pontuais
ou especialmente dedicados ao problema da democracia quanto em suas grandes
obras teóricas, ao fenômeno stalinista, que infestava, segundo ele, até as raízes o
movimento comunista. Encontramos essa preocupação desde suas intervenções nos
debates do Círculo
Petöfi
, passando pelo
post scriptum
de “Meu caminho para Marx”,
publicado em 1957 na revista
Nuovi Argomenti
; pela
Carta a Alberto Carocci
,
publicada em 1962, na mesma revista; por
Socialismo e democracia
, pequena obra
redigida em 1968, até as grandes obras como a
Estética
e
Para uma ontologia do ser
social
, em que o problema é debatido no nível de uma concepção de conjunto da vida
social. Isso mostra o quanto ele apostava alto no debate. Nem Ernst Bloch, nem Henri
Lefebvre, nem Louis Althusser, entre os filósofos marxistas contemporâneos,
assombrados inevitavelmente pelo fantasma do stalinismo, desenvolveram uma
reflexão tão aprofundada sobre a natureza do fenômeno.
Duas razões foram determinantes para que Lukács dedicasse tanta energia a esse
problema. A primeira, de ordem mais geral, estava ligada ao destino do movimento
comunista internacional; a segunda, mais pessoal, estava intimamente ligada à sua
própria história.
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No plano geral, Lukács estava convencido de que, longe de ser um fenômeno
histórico passageiro, circunscrito à vida daquele que lhe deu o nome, o fenômeno do
stalinismo, tornado
forma mentis
, devastaria, ainda por muito tempo, o movimento
comunista internacional. Buscando as motivações teóricas de certas ações políticas
pontuais de Stalin, ele pôde distinguir certa coerência em sua atividade, situada em
oposição ao espírito autenticamente dialético. Dito de outro modo, ele remonta às
origens
filosóficas
do stalinismo se é esta a palavra apropriada para designar uma
reflexão tão primária e intenta demonstrar que, além de uma prática política, ele [o
stalinismo] é um conjunto de visões teóricas e um todo de pensamento, que ao
longo das décadas deturpou o sentido original do comunismo.
No plano mais pessoal, Lucs, vinculado havia mais de meio século ao
movimento comunista, foi até certo ponto um protagonista do período de Stalin e, em
todo caso, testemunha de destaque. As revelações de [Nikita] Khrushchov não
poderiam deixar de atingi-lo. Em primeiro lugar, colocava-se a seguinte questão: quais
relações havia entre seus escritos redigidos durante o período stalinista (em sua maior
parte publicados em Moscou na década de 1930 e início dos anos 1940) e o clima
ideológico então reinante na União Soviética? Em seguida, levantava-se outra questão:
como ele havia atravessado aqueles anos terríveis? A formidável máquina de perversão
stalinista não deixou moralmente ilesos aqueles que nela não perderam sua vida. Não
faltaram críticas e acusações contra ele. Ele deveria se explicar. E, de fato, suas análises
do stalinismo implicam também respostas às perguntas mais pessoais que lhe foram
feitas. Ele dedicou, ainda, um texto especial à história de suas relações com Stalin e o
stalinismo, em que oferece seu ponto de vista sobre esse aspecto importante de sua
biografia política e intelectual.
8
Lukács é o típico exemplo do intelectual comunista com trajetória complexa, que
se encontrou muitas vezes no fogo cruzado. Por um lado, ele foi vilipendiado como
revisionista
”, acusado de inventar o conceito de
stalinismo
,
uma ficção não científica
”,
e de utilizar
o combate contra o stalinismo
para levar a cabo uma revisão do
leninismo e, devido às circunstâncias de 1956, para
reunir e desencadear o ataque
das forças contrarrevolucionárias
”;
9
por outro, foi censurado por ser um intérprete
8
G. Lukács, Sozialismus als Phase radikaler, kritischer Reforme,
Enzyklopädisches Stichwort
; posfácio,
datado de 20 de novembro de 1969, para a coletânea
Marxismus und Stalinismus, Politische Aufsätze,
Ausgewählte Schriften,
IV Reinbek bei Hamburg, Rowohlt, 1970, pp. 235-240.
9
Cf. Andras Gedö, Zu einigen theoretischen Problemen des ideologischen Klassenkampfes der
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dócil das injunções stalinistas, interiorizando-as até o ponto de sublimá-las em seu
discurso crítico e filosófico (esse é o sentido, por exemplo, do artigo que Isaac
Deutscher dedicou, em 1966, aos estudos de Lukács sobre Thomas Mann). Mesmo
aqueles que admiravam e respeitavam sua obra consideraram que, durante a estada
na União Soviética, ele se dobrou às exigências oficiais.
Seria interessante, parece-nos, determo-nos primeiro sobre as reações do
próprio interessado diante dessas repreensões.
Em abril de 1961, Frank Benseler, seu editor, enviou-lhe o prefácio que Peter
Ludz escreveu para uma coletânea de textos seus. Sociólogo e politólogo aleo,
autor de duas outras antologias de textos de Lukács, Ludz afirmava em seu prefácio
que o filósofo, durante o exílio na União Soviética, havia se sacrificado
temporariamente à “
degradação do pensamento teórico marxiano por Stalin
”. Lukács
rejeita energicamente essa asserção como
falsa
”. E, um dado bastante significativo,
ele recusa a periodização de sua atividade proposta por Ludz, que distinguia um
quarto e um quinto períodos para estabelecer uma clivagem, melhor dizendo, uma
oposição entre o período de 1930-1955 e o seguinte. Não há nenhuma razão,
explicou ele a Frank Benseler, para fazer
uma distinção de princípio
entre os escritos
desses dois peodos, que compartilhavam do mesmo espírito. A única diferença era,
segundo ele, que após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética
(1956), ele pôde expressar abertamente ideias que antes era obrigado a transcrever
em linguagem cifrada:
Zwischen der vierten und der fünften Periode ist also kein
prinzipieller Unterschied, bloss der, dass nach dem 20. Kongress man Dinge offen
aussprechen konnte, über die man früher nur in versteckten Anspielungen, in
geschickten Gruppierungen reden konnte
(“
Entre o quarto e o quinto períodos não
nenhuma diferença de princípio, a não ser que após o 20º Congresso foi possível
expressar abertamente as coisas que anteriormente podíamos dizer com alusões
veladas e agrupando-as com habilidade
”).
10
Ao contrário de seus numerosos críticos e adversários, Lukács considerava que
seus escritos do período em questão tinham um caráter fundamentalmente antis-
Gegenwart
,
no volume
Georg Lukács und der Revisionismus,
Berlim, Aufbau Verlag, 1960, pp. 32-36;
Hans Koch,
Theorie und Politik bei Georg Lukács
, no mesmo volume, p. 135.
10
G. Lukács, Carta inédita de 27 de abril de 1961 a Frank Benseler; consultada por nós nos Arquivos-
Lukács de Budapeste.
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stalinista. Em
Questões de método
, obra redigida em 1957, ano bastante
movimentado para Lukács (ele acabara de passar seis meses deportado), Sartre
afirmou como algo evidente que o filósofo carregava nas costas
vinte anos de prática
de um marxismo enrijecido, tipicamente stalinista, e acrescentou ironicamente que, por
essa razão, ele estava em condições adequadas para falar da pseudofilosofia stalinista
como sendo um
idealismo voluntarista
”.
11
Um ano mais tarde, Adorno reiterou as
mesmas críticas em “Reconciliação extorquida” (
Erpresste Versöhnung
), acusando
Lukács de ter rebaixado “
sua potência de pensamento, manifestamente inalterada, ao
nível lamentável do ‘pensamento’ soviético, que degradou a filosofia [...] a um simples
instrumento de dominação
”.
12
Mas houve também intervenções, é verdade que mais
escassas, a seu favor. Em uma carta a Benseler, de 7 de dezembro de 1963, Lukács
evocou, nesse sentido, o estudo de Leo Kofler, publicado em Colônia em 1952, em
plena Guerra Fria,
Der Fall Lukács: Georg Lukács und der Stalinismus
. Foi a primeira
tentativa de apresentá-lo em uma relação antinômica com o poder stalinista. O autor
do estudo apreendia, segundo ele, o essencial do problema e se encontrava muito
mais próximo da realidade.
Na mesma carta, Lukács listou artigos e estudos, publicados durante seu período
moscovita, que iam de encontro à linha oficial. Ele recordou, por exemplo, seu estudo
intitulado “Tribuno do povo ou burocrata?” (
Volkstribun oder Bureaukrat?
), publicado
em 1940, e que Leo Kofler também havia destacado, como sendo, em substância,
um
ataque frontal, naturalmente em linguagem cifrada, contra a burocracia stalinista no
domínio da cultura
”.
13
Contra aqueles que o acusaram de
esposar todas as sinuosidades da linha
stalinista
a rmula pertence a um exegeta recente, Alain Brossat,
14
mas esse tipo
11
Jean-Paul Sartre,
Questions de méthode
, 1960, idée, Gallimard, p. 41.
12
Theodor W. Adorno,
Notes sur la littérature,
1984, Flammarion, pp. 171-172.
13
G. Lukács. Carta de 7 de dezembro de 1963 a Frank Benseler; carta inédita, consultada por nós nos
Arquivos-Lukács.
14
Alain Brossat, Brecht et Lukács, staliniens en situation
, L'Homme et la société
, 1988, p. 100. O
autor do artigo constrói por vezes cenários fantasiosos para justificar sua tese sobre a caução conferida
por Lukács ao stalinismo. Ele afirma, por exemplo, que Lukács havia sido detido pela NKVD
à época
do idílio entre Stalin e Hitler
” em razão de sua atitude favorável à Frente Popular antifascista. Brossat
erra a data; Lukács foi detido em Moscou pela polícia secreta de Stalin em 29 de junho de 1941, uma
semana após a invasão da União Soviética pelas tropas alemãs. Ele foi acusado de ser um agente da
polícia política hortysta e, ao mesmo tempo,
trotskista
”. O oficial da NKVD encarregado da investigação,
para quem “
esquerdismo
” e
trotskismo
” eram sinônimos, pensava que a crítica endereçada por Lênin
a Lukács, em 1920, era a prova de seu “
trotskismo
” precoce... Na verdade, Lênin reprovara sua atitude
esquerdista
concernente à questão da participação dos comunistas nos parlamentos. Cf. G. Lukács,
Pensée vécue.
Mémoires parlées, 1986, L'Arche, p. 137.
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de crítica já era difundida havia muito tempo , Lukács invocou os textos escritos em
momentos particularmente sensíveis como, por exemplo,
Aktualität und Flucht
,
publicado em 1941, época da
confraternização
germano-soviética, ou
Über
Preussentum
, datado de 1943, que não encontrou espaço em nenhuma publicação
soviética, e por um bom motivo. No primeiro desses textos, ele denunciava os críticos
literários nazistas que exigiam uma eurica
literatura de guerra
”; seu
combate
antifascista
”, ele recordava a Benseler, foi mantido mesmo na época do “pacto”. O
segundo texto, no qual fazia a distinção entre o espírito da velha Prússia e a barbárie
nazista em uma análise memorável, ia claramente de encontro aos
slogans
da
propaganda soviética, que a atrocidade da guerra tornou ainda mais simplificadores.
Redigidos, por vezes, em linguagem cifrada, esses textos não implicavam nada menos
que uma “diferença” em relação à linha oficial.
Admirador do realismo, crítico da vanguarda e defensor do realismo socialista,
Lukács não poderia escapar à acusação de conformismo estético. Não apenas o
acusaram muitas vezes de haver feito suas as orientações fundamentais da crítica
soviética da época, como de haver tentado enobrecê-las com sua análise e sua
argumentação, que estavam situadas em um nível sensivelmente diferente daquele dos
escribas stalinistas.
Lukács refutava tal acusação, baseada em um lamentável mal-entendido. Uma
distância incomensuvel separava, a seus olhos, a
politização
forçada da literatura,
praticada pela crítica soviética, e sua própria estética do realismo. Na aludida carta a
Frank Benseler, de 27 de abril de 1961, ele faz referência a rgen Rühle, exemplar
nesse discernimento. No seu livro
Literatur und Revolution
, publicado no início dos
anos 1960, ele notava que, de fato, as semelhanças entre a posição de Lukács e aquela
dos defensores do realismo socialista eram
periféricas
e que na realidade sua estética
se situava como antípoda à linha oficial. Para sustentar essa tese, não faltavam
argumentos ao filósofo: ele recordava que seu segundo livro traduzido para o russo,
Sobre a história do realismo
, publicado em Moscou em 1939, suscitou uma
tempestade na imprensa soviética: nada menos que quarenta artigos hostis. Ele
acrescentava que, dez anos mais tarde, os ideólogos de Rakosi utilizariam contra ele,
durante um primeiro “caso Lukács”, montado quase simultaneamente ao processo
Rajk, o mesmo tipo de argumentos que os críticos soviéticos dos anos 1939-1940.
Julgadas em perspectiva histórica, as teses expostas pelo filósofo nos seus
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escritos da década de 1930 sobre o
triunfo do realismo
apareciam como uma defesa
sub-reptícia da autonomia da literatura e da imaginação criadora contra toda injunção
ideológica, compreendido nela o discurso dos próprios escritores. O autor do ensaio
“Tribuno do povo ou burocrata?” professava a ideia de que cada obra literária se
desenvolvia a partir de um cleo, um foco irradiador de caráter necessariamente
utópico
, os preconceitos ideológicos e os laços empíricos dos escritores sofreriam no
ato da criação uma transformação radical; era uma provocação lançada contra os
burocratas da literatura, que se esforçavam por fazer da arte um instrumento de
propaganda e prescrever regras a ela.
15
Autores como Leszek Kołakowski ou, mais recentemente, David Pike e Arpad
Kadarkay empreenderam sua guerra fria contra o
stalinismo
de Lukács sem
considerar o que distingue sua argumentação da linha soviética oficial, atendo-se a
procurar unicamente as semelhanças. Nenhum deles parece ter lido seus escritos sobre
o realismo dos anos 1930 à luz das análises propostas pelo filósofo em sua grande
Estética
(1963); apesar da continuidade entre os dois períodos (que, aliás, faz cair por
terra toda especulação conjuntural), tal leitura não deixaria de tornar mais difícil a
redução da estética lucsiana aos esquemas típicos do stalinismo.
Harold Rosenberg se recorda, em um artigo, todavia, bastante crítico a Lucs
(publicado quando do lançamento do livro
Realismo crítico hoje
em inglês), a forte
impressão que lhe causou, nos anos 1930, a leitura de certos ensaios do filósofo,
particularmente “A fisionomia intelectual na figuração artística”, publicado em 1936
pela revista
Internationale Literatur
. À época, Harold Rosenberg foi atingido pelas
considerações sobre “
o difícil problema das relações entre o intelecto e a intuição
” na
criação de personagens literias. Lukács sublinhava em seu ensaio a importância da
fisionomia intelectual
graças à qual o escritor pode concretizar e amplificar as
vivências e os movimentos puramente intuitivos das personagens. Ele se opunha
vigorosamente à literatura que se atém à superfície do real e à vivência naturalista. A
exigência de
intelectualização
e a defesa da ideia segundo a qual as situações
literárias são, por sua natureza, excepcionais era uma condenação implícita das
ilustrações ideológicas e dos chavões naturalistas que comandavam as letras
15
O escritor inglês John Berger se mostrou particularmente sensível às análises lukácsianas dedicadas
aos “diferentes níveis da espontaneidade” e, particularmente, ao “ponto de Arquimedes” das grandes
obras assim que Lukács chamou o foco irradiador de cater utópico) e à oposição decidida entre
naturalismo e realismo. Cf. a carta de 6 de abril de 1965 de Berger a Lukács, no Arquivo-Lukács.
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soviéticas. Mas seu ensaio visava também, explicitamente, a autores como Nikolai
Pogodin, F. Panferov e até Alexandr Fadeev e Ilya Ehrenburg, que não alcançavam a
fusão entre a riqueza intuitiva das personagens e a reflexão em um conjunto estético.
Rosenberg dava então boas razões para apreciar esse ensaio:
[...] Eu admiro há muito
tempo a teoria da ‘fisionomia intelectual’, bem como seu autor, admiração confirmada
pela resistência de Lukács ao realismo socialista’ do período stalinista e por sua prisão,
aos 70 anos, pelos russos durante o levante húngaro
”.
16
Testemunhos desse tipo, que atestam a atitude estruturalmente anti-stalinista de
Lukács nos anos 1930, são raros. Para Leszek Kołakowski, David Pike e Arpad
Kadarkay não há dúvida: durante seu exílio na União Soviética, não apenas ele apoiou
a linha política de Stalin, como integrou em seus escritos o espírito funesto do ditador.
Nenhum desses autores percebeu o caráter anticonformista dos ensaios sobre o
realismo, e todos opõem uma objeção de admissibilidade à ideia de que existiria uma
continuidade entre o espírito de seus escritos moscovitas e a condenação do stalinismo
que ele expressa abertamente a partir de 1956. Não obstante, os esclarecimentos
feitos pelo filósofo sobre a natureza do fenômeno stalinista permitem lançar um novo
olhar sobre sua atividade durante os anos passados em Moscou.
Em um de seus últimos textos dedicados ao stalinismo, Lukács escreve:
Ich
glaube ruhig sagen zu können, dass ich objektiv ein Gegner der Stalinschen Methoden
war, schon als ich selber noch glaubte, Stalin anzuhängen
” (“
Eu creio que posso dizer
com toda tranquilidade que era objetivamente um adversário dos métodos stalinistas,
mesmo quando eu ainda acreditava apoiar Stalin
”).
17
Ele seria, então, um adversário
de Stalin mesmo à época em que acreditava ainda ser seu partidário. Essa afirmão,
que pode parecer paradoxal, merece ser confrontada com a realidade.
Lukács nunca escondeu o fato de que, após a morte de nin, ficou ao lado de
Stalin na controvérsia sobre a possibilidade de construir o socialismo em um país,
id est
na União Soviética. Contrariamente à tese sustentada hoje por diferentes
historiadores, segundo os quais a Revolução de Outubro teria sido um golpe
organizado por uma minoria, Lukács nutria a convicção de que as massas populares
haviam levado os bolcheviques ao poder em 1917. Sua vitória seria explicada por
16
Harold Rosenberg,
Georg Lukács et la troisième dimension,
Les Temps Modernes,
novembre, 1964,
p. 918.
17
G. Lukács,
Marxismus und Stalinismus
,
op. cit
. pp. 239-240.
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razões históricas; eles queriam pôr fim à guerra e dar terra aos camponeses, duas
reivindicações das mais amplas massas, que não podiam mais esperar. Sob a pressão
da realidade,nin então se afastou de Marx, que previu a possibilidade de edificar o
socialismo apenas a partir de uma economia capitalista desenvolvida, para começar
sua construção unicamente na União Soviética. Foi com base nessa ideia de Lênin que,
certo ou errado, Lukács aderiu na década de 1920 aos argumentos de Stalin, contra
a opinião de Trotsky e seus partidários. Em seu texto
Socialismo e democracia
(escrito
quando a Europa era agitada pelos graves eventos do verão-outono de 1968), Lukács,
sem deixar de aprovar o projeto de construção do socialismo em um só país, sublinha
os severos limites históricos da ação de Stalin. Analisando o período que, após a morte
de Lênin, consagrou a vitória de um personagem tão despótico e ardiloso contra seus
adversários, ele, todavia, considera que todos, carrascos e futuras vítimas, cometeram
o mesmo erro. Obnubilados pelas questões econômicas (“a acumulação primitiva
socialista” a fim de assegurar uma base econômica à sociedade futura), eles
negligenciaram os grandes problemas políticos e, principalmente, a democratização
do regime, condição
sine qua non
para frear o processo de burocratização.
18
Se Lukács sempre defendeu apaixonadamente nin contra aqueles que
atribuíam a ele a origem dos métodos empregados por Stalin, é porque ele distinguia
uma oposição irredutível entre os princípios que haviam inspirado a ação do primeiro,
e a prática fundamentada em rudimentos de princípios do segundo. Hoje, quando a
criminalização de Lênin se tornou moeda corrente, o empreendimento de Lukács, que
julgava urgente estabelecer essa distinção, pode ser visto como anacrônico. Parece-
nos, pelo contrário, que suas análises e seus argumentos merecem que nos
detenhamos sobre eles.
Um episódio de sua biografia intelectual pode nos ajudar a melhor compreender
as relações bastante particulares do filósofo com Stalin e o espírito de sua política,
vistas à luz de sua grande simpatia pela ação de Lênin, aqui compreendida no campo
da filosofia.
No início da década de 1930, Stalin organizou em Moscou um debate filosófico
que se encerrou com o redio da escola de Deborin
19
e da interpretação
18
Cf. O capítulo intitulado “La victoire de Staline sur ses rivaux” em
Socialisme et démocratisation
,
1989, Messidor/Editions sociales, pp. 69-80.
19
Abram Moiseyevich Deborin (1881-1963), filósofo e membro da Academia Soviética de Ciências a
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plekhanoviana do marxismo. Utilizando a ortodoxia leninista como estandarte, o
mestre de obras estabeleceu, por meio de uma deliberação aparentemente livre, sua
influência sobre a filosofia (além disso, ele interveio pessoalmente na discussão).
Perfeitamente consciente do caráter tipicamente stalinista desse debate, Lukács não
concedeu um julgamento menos favorável aos seus resultados; mais de uma vez, ele
afirmou que as conclusões a que chegou nessa ocasião tiveram um efeito positivo
sobre sua atividade.
Essa atitude não deixou de atrair críticas. Mesmo aqueles que se defendem de
atribuir a ele
a menor responsabilidade na legitimação teórica do stalinismo
consideram que, nesse caso, ele havia dado aval à instauração de uma ideologia de
estado. Georges Labica escreveu a respeito da canonização do marxismo-leninismo na
União Soviética:
A singular cumplicidade
filosófica
entre Stalin e Lukács, entre o
homem de estado e o filósofo, é reveladora de uma trama maior da instauração do
marxismo-leninismo. A categoria da
universalidade
subsume aquelas do
absoluto
e da
totalidade”.
20
Desconcertante, de fato, a posição de Lukács. Será que sua satisfação diante
certas orientações impressas pelo ditador à filosofia soviética, no início dos anos 1930,
implica a aprovação do stalinismo enquanto doutrina e prática política? Tomada
distância histórica, podemos certamente recriminá-lo pelo fato de ter subestimado as
consequências dessa vitória manipulada sobre as atividades do espírito. Mas, ainda à
distância histórica, não podemos deixar de observar que as conclusões do debate
seguiam o sentido de seu próprio itinerário. A rejeição da
ortodoxia plekhanoviana
”,
o fato de conceber o marxismo como uma filosofia radicalmente
nova
, de vocação
universal, e a valorização da contribuição de Lênin pareciam ser opiniões comuns ao
“homem de estado” e ao “filósofo”, o que autorizava este último a se declarar satisfeito;
a realidade demonstrará que eles não haviam feito a mesma opção.
Lukács considerava que Plekhânov superestimou a influência de Feuerbach sobre
o jovem Marx, no processo de forjar sua própria filosofia.
21
Defender a interpretação
partir de 1929 [N.T.].
20
Georges Labica,
Le marxisme-léninisme,
1984, Paris, Editions Bruno Huisman, pp. 70 ; 72.
21
Ver o prefácio escrito por Lukács, em 1967, para a reedição de seu livro
História e consciência de
classe, Werke, Frühschriften
II,
Geschichte und Klassenbewusstsein
, Vorwort, 1968, Neuwied und Berlin,
Luchterhand, p. 23; cf. também
Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins,
2 Halbband,
Werke,
Band.
14, p. 566.
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de nin contra a de Plekhânov era, para Stalin, uma forma de manifestar sua
“ortodoxia”; para Lukács, era uma forma de recuperar a herança hegeliana, de
sublinhar a importância do grande filósofo (ocultada pelo excesso de
“feuerbachianismo”) na gênese do marxismo (hoje não escapa a ninguém o aspecto
antimecanicista dessa posição).
A leitura dos escritos filosóficos do jovem Marx (mais tarde escondido a sete
chaves pelos stalinistas) determinou, naquela época (1930-31), uma verdadeira
reviravolta na reflexão de Lukács. Sua nova interpretação do pensamento de Marx
impôs-lhe também um exame crítico da concepção de Mehring, simétrica àquela de
Plekhânov. Em sua autobiografia,
Gelebtes Denken
, ele revela a inspiração comum a
essas duas etapas críticas, ambas beneficiárias do debate filosófico do início dos anos
1930.
Ao defender, contra Mehring e Plekhânov, a ideia de que o marxismo era mais
que uma mera interpretação “sociológica” da história, à qual era necessário aditar uma
psicologia e uma teoria autônoma das atividades do espírito (que o primeiro buscava,
para seus escritos de crítica literária, em Kant, e o segundo, nos positivistas), Lukács
lhes contrapunha um conceito da
universalidade filosófica
do marxismo, que se
revelará, por seu caráter antirreducionista, um inimigo formidável da vulgata stalinista.
As potencialidades dessa concepção eminentemente
filosófica
do pensamento de Marx
se realizariam plenamente nas grandes obras escritas por Lukács no final de sua vida,
a
Estética
e a
Para uma ontologia do ser social
, mas os fundamentos dessa abordagem
aparecem claramente em seu trabalho a partir do início dos anos 1930.
22
O paradoxo da situação merece ser destacado. Lucs se vinculou com convicção
às conclusões da discussão filofica patrocinada por Stalin, pois a ideia de que o
pensamento de Marx tinha sua coerência e sua autonomia filosófica em relação às
filosofias anteriores lhe parecia perfeitamente precisa. O marxismo não era, para ele,
uma mescla de determinismo econômico e interpretação sociológica” das atividades
do espírito. Mas é justamente sua concepção sobre a autonomia filosófica do marxismo
que o levará a denunciar o marxismo institucionalizado da Uno Soviética e (ironia do
22
Cf. Guido Oldrini, Le basi teoretiche del Lukács della maturità, no volume
Il marxismo della maturità
di Lukács,
a cura di Guido Oldrini, 1983, Napoli, Prismi, pp. 65-90, e, do mesmo autor,
Le mythe du
jeune Lukács
, em
Réification et utopie.
Ernst Bloch & Georg Lukács un siècle après
.
Actes du colloque
Goethe Institut, Paris 1985, Actes Sud, 1986, pp. 122 ss.
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destino!) a agravada recaída nos erros mecanicistas e deterministas de Plekhânov.
uma continuidade evidente entre, por exemplo, o estudo sobre Franz Mehring,
redigido em 1933 (o primeiro grande texto teórico que publicou após o regresso à
União Soviética), e a visão expressa na
Estética
e em
Para uma ontologia do ser social
.
Dado o caráter eminentemente antisstalinista dessas últimas obras, essa continuidade
torna-se a melhor prova do fato de que, segundo suas próprias palavras, Lukács era
um adversário de Stalin ainda na época em que acreditava ser seu partidário.
Se a ideia de que o pensamento de Marx se articula em um conjunto sistemático
de categorias, que abarca as diferentes esferas do ser e que tem vocação universal, já
aparecia nos textos datados de 1933, como o aludido texto sobre Mehring (ele
representa “
uma mudança completa da filosofia
eine vollständinge Umwälzung der
Philosophie
”, escreveu),
23
mas também em um texto anterior, de 1931, dedicado ao
debate de Marx e Engels com Lassalle a respeito da tragédia
Franz von Sickingen
, o
desenvolvimento que ela conhecerá mais tarde apenas aumentará a lacuna que
separou, desde o início, sua interpretação do “materialismo dialético” da escolástica
stalinista.
Após 1956, Lukács retornou várias vezes à ideia de que sua atividade, durante
os anos passados em Moscou, implicava uma resistência objetiva à ideologia oficial,
tese fortemente contestada, como vimos, por muitos de seus críticos, de David Pike e
Giuseppe Bedeschi a Leszek Kołakowski e Arpad Kadarkay. Teria o filósofo idealizado
seu passado, retendo dele apenas o que pudesse reforçar sua imagem de resistência
e apagando atos de adesão ou mesmo de cumplicidade?
A fim de facilitar um debate que não tem como evitar reacender paixões
ideológicas, propomos, como se poderá ver, uma abordagem que leva em
consideração a estrutura do pensamento de Lukács, a morfologia e a sintaxe de suas
ideias, e que questiona os aspectos de continuidade e descontinuidade de sua obra.
Nos
Prolegômenos para uma ontologia do ser social
, seu último texto filosófico,
redigido no outono de 1970, Lukács se dem sobre o famoso capítulo IV da
História
do Partido Comunista (b[olchevique]) da URSS
, no qual Stalin expõe
os traços
do
materialismo dialético e do materialismo histórico, e enfatiza a incompatibilidade entre
23
G. Lukács,
Franz Mehring (1846-1919),
Werke,
Band 10, 1969, Neuwied und Berlin, Luchterhand,
p. 350.
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este catecismo do “
marxismo-leninismo
oficial e o espírito do pensamento marxiano.
O fundamental historicismo de Marx, ancorado ontologicamente na ideia da
historicidade do ser e de suas categorias, acomodava-se mal ao lado da codificação
em um sistema
fechado
de categorias, que se tratava “de aplicar”,
indiscriminadamente, às diferentes regiões do ser. A própria fonte do dogmatismo
stalinista, e de modo mais geral uma
forma mentis
, era assim denunciada. A tese
segundo a qual o
materialismo histórico
não seria mais que uma
extensão
e uma
aplicação
dos princípios universais do
materialismo dialético
não guardava
nenhuma relação com Marx, pois a própria ideia de uma
aplicação
de princípios
invariáveis contradizia a historicidade consubstancial de seu pensamento. Além disso,
o próprio Marx jamais havia usado a expreso
materialismo dialético
”, observava
Lukács, que via nisso uma recusa em se encerrar em um
sistema
fechado de
categorias, à maneira da filosofia antiga.
24
Ao estigmatizar o dogmatismo stalinista, Lukács abriu caminho para seu próprio
desenvolvimento filosófico: a interpretação do pensamento de Marx como uma
ontologia
. A rejeição do reducionismo stalinista baseava-se na ideia de que um
pensamento verdadeiramente ontológico não pode abstrair a diferenciação e a
heterogeneidade das regiões do ser, cada uma com suas categorias específicas, de
modo que é impossível encerrar esta riqueza categorial em um sistema de princípios
imutáveis.
No próprio corpo de
Para uma ontologia do ser social
, Lucs levanta outra
questão importante a propósito dos erros teóricos de Stalin. Trata-se da
naturalização
da economia, mais precisamente da tendência a olhar para a atividade
econômica como um domínio submetido a um rígido determinismo, governado por leis
quase naturais. (Na prática do stalinismo, as atividades da vida espiritual, nas quais,
teoricamente, a liberdade de escolha e a flexibilidade eram incomparavelmente
maiores, seriam tratadas como simples auxiliares do poder.) O erro de haver tratado a
economia como uma
segunda natureza
”, mais precisamente como um campo de
forças puramente materiais, no qual a conscncia apenas desempenha o papel de
agente executivo, foi igualmente compartilhado pelos marxistas da Segunda
Internacional e por Plekhânov. Tais aproximações podem surpreender, embora Lukács
24
G. Lukács,
Prolegomena zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, Werke,
Band 13, 1984, pp. 276-
277.
György Lukács e o stalinismo
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tenha se voltado mais de uma vez aos pontos comuns entre o dogmatismo de Stalin
e a concepção que personalidades, por sua vez, tão diferentes dele, como Plekhânov
ou certos representantes da social-democracia do período anterior à Primeira Guerra
Mundial, tinham do marxismo.
25
Assim como as outras atividades humanas, a atividade econômica é guiada pelo
finalismo da consciência; também ela possui um caráter
ideal
”, e não puramente físico.
Ao sublinhar essa ideia, Lukács destacou fortemente o carácter teleológico e a
dimensão
humana
por excelência, e não
natural
”, dos atos econômicos. As críticas
formuladas ainda em um artigo de 1925, dirigido contra Bukharin, que em seu manual
do
Materialismo histórico
identificava abusivamente
economia
e
cnica
, são
retomadas e ampliadas na discussão das teses stalinistas. Lukács submete a uma
análise cerrada a tendência de Stalin a tratar a economia como um objeto puro, no
qual espaço apenas para o cálculo e a manipulação, e a ocultar os valores
subjacentes à razão econômica (irredutível à razão tecnológica) e, sobretudo, sua
interação com outros tipos de valores, aqui compreendidos os éticos.
O filósofo se empenhará em demonstrar, nos seus últimos escritos, que a prática
política do stalinismo não teria sido possível sem dissimular o pensamento de Marx
em um determinismo raso e rígido. A visão monolítica de Stalin era pouco compatível
com uma concepção flexível e pluralista dos complexos sociais, que fazia justiça à sua
heterogeneidade e à desigualdade do seu desenvolvimento; ele deveria
necessariamente empobrecer o pensamento de Marx e esvaziar sua substância.
Um dos pontos fortes de sua crítica do stalinismo é precisamente a análise das
teses expostas por Stalin em seu último escrito teórico,
Os problemas econômicos do
socialismo na URSS
, publicado em 1952. Em
Socialismo e democratização
, Lucs
mostra que, ao negar à lei do valor um alcance universal, Stalin limitou sua ação à
esfera da produção de mercadorias, o que distorceu o pensamento de Marx, que
considerava que a lei do valor permanecia decisiva em qualquer sociedade,
compreendida a socialista; do mesmo modo, ao contestar a legitimidade do conceito
de
trabalho excedente
no quadro de uma economia fundada sobre a socialização
dos meios de produção, Stalin dissimulou grosseiramente o pensamento de Marx com
o objetivo tático de validar sua concepção puramente manipulatória da
superioridade
25
Ver, por exemplo,
Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins,
2 Halbband,
Werke,
Band 14, 1986, p.
322.
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do socialismo
”. A eliminação da noção de
trabalho excedente
por um golpe teórico
levava necessariamente ao
socialismo de caserna
”, pois a questão central da
democracia no socialismo se ligaria diretamente ao controle dos
produtores
associados
sobre o
trabalho excedente
”. Ao insistir na ideia de que o stalinismo é,
para além de uma prática política, um conjunto de visões teóricas e uma certa prática
ideológica, Lukács afirmou que isto bastava para lhe garantir um lugar de honra na
história de descaracterização do marxismo. Ele passou a exigir que se dispensasse aos
erros teóricos de Stalin a mesma atenção crítica que se dispensara no passado aos de
Proudhon ou de Lassalle.
26
Vimos que, ao explorar as raízes teóricas do stalinismo, Lukács encontrou nelas
semelhanças com certas visões de Plekhânov ou mesmo com certo
economicismo
da
Segunda Internacional. Ora, como mostramos também, elehavia defendido no início
dos anos 1930 (e, consequentemente, ao longo de todo o seu
período stalinista
)
uma interpretação de Marx distinta daquela feita por Plekhânov e Mehring. Tinha
muitos motivos para repreendê-los: uma representação reducionista das relações entre
a economia e outros complexos sociais, o
feuerbachianismo
”, a subestimação da
herança hegeliana, certa insensibilidade em face das relações indiretas, mais mediadas,
entre a ideologia e sua base socioeconômica e o esquecimento da tese marxiana sobre
o desenvolvimento desigual dos diferentes complexos sociais. O
período stalinista
de Lukács contém, portanto,
in nuce
, as ideias norteadoras de sua grande obra de
síntese,
Para uma ontologia do ser social
, em nome das quais ele perseguiria, até o
fim de sua vida, o stalinismo a suas últimas trincheiras.
Poder-se-iam fazer iguais observações,
mutatis mutandis
, a respeito de seus
escritos de estética e de crítica literária. Ele reprovou, por exemplo, Mehring e,
sobretudo, Plekhânov por uma abordagem excessivamente retilínea das relações entre
a base econômica e a ideologia e, consequentemente, entre as concepções filosóficas
dos escritores e a estrutura de suas obras. Sem deixar de testemunhar uma grande
estima pela corajosa atividade do marxista alemão Mehring, Lukács achava que, ao
analisar as obras de Lessing, Hebbel ou Nietzsche, ele estabelecia correlações muito
diretas. As mediações mais sutis da expressão ideológica lhe escapavam; a dialética
interna das obras o era suficientemente posta em relevo, sua especificidade estética
26
Ibid
., p. 499.
György Lukács e o stalinismo
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ou filofica era negligenciada em favor da expressão ideológica direta, a
complexidade das relações entre posição histórico-social e sublimação literária ou
filosófica, às vezes, sacrificada (como no caso de Hebbel, por exemplo).
Pelo significado conferido por ele à especificidade dos fenômenos literários e seu
respeito pelas mediações que separam qualquer produto estético da realidade
histórico-social, que lhe serve de ponto de partida, Lukács situou-se como antípoda
da politização forçada das artes, cara a Stalin. Durante seu exílio moscovita, ele nunca
parou, como vimos, de elaborar a subversão das teses correntes nas publicações
soviéticas. Um exemplo, tomado do domínio filosófico, mas que vale também para a
crítica literária: ao insistir, no capítulo final de seu livro
O jovem Hegel
, escrito em
Moscou entre 1937 e 1938, sobre a distinção hegeliana entre
espírito objetivo
e
espírito absoluto
”, ele lança inesperadamente um ataque contra a
sociologia vulgar
”.
Formas de expressão do espírito absoluto, segundo Hegel, a filosofia e a arte exigem,
afirmava ele, uma abordagem em relação a seu condicionamento histórico-social
distinta da política ou do direito. Enquanto a estrutura das instituições políticas ou
jurídicas, forjadas para atender a necessidades sociais precisas, aparece claramente
em relação à realidade histórico-social, o mesmo não ocorre com as obras de arte ou
os grandes sistemas de pensamento, cujo
conteúdo de verdade
revela, de modo
infinitamente mais sutil, seu ponto de ancoragem, pois a perspectiva dos artistas e dos
filósofos se eleva, necessariamente, além da empiria e do pragmatismo; eles adotam
para julgar seu tempo um ponto de vista que se quer universal, e ressoam uma
vox
humana
, que fala em nome da humanidade. Apoiando-se na distinção hegeliana entre
espírito objetivo e espírito absoluto, Lukács denunciou a insuficiência de um ponto de
vista estritamente genético (o dos interesses de determinada classe ou grupo social)
na explicação de obras literárias ou filosóficas e de sua estrutura. Na contramão do
que chamou de
a sociologia vulgar
(e que pode ser facilmente identificada com a
crítica oficial soviética), Lukács pôs em relevo a especificidade inalienável das grandes
criações do espírito, a capacidade dos artistas e dos filósofos de transcender
preconceitos e opiniões pessoais para se elevar, por meio da perspectiva de sua
consciência criadora, à universalidade.
27
Em um de seus últimos textos, redigido em março de 1970, Lukács lembrava
27
G. Lukács,
Der junge Hegel,
3 Auflage, 1967,
Werke,
Band 8, pp. 626-678.
Le jeune Hegel
trad. fr.
par Guy Haarscher et Robert Legros, Gallimard, 1981, vol. 2, pp. 310-317.
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que seu ponto de vista sobre a
socialidade
da literatura se opunha frontalmente à
concepção por muito tempo dominante no movimento comunista, particularmente na
era stalinista:
Freilich wenn ich hier vom Gesellschaftlichen als Prinzip spreche, so
bedeutet dies keineswegs, wie bei der Mehrzahl meiner sozialistischen Zeitgenossen,
ein unmittelbares Politisieren, erst recht nicht den Zwang zu einer Stellungnahme zu
politischen Tagesereignissen, sondern im Gegenteil: den Anfang einer Differenzierung
des dichterischen Gehalts, je nachdem, ob er die Gestaltung des bloss partikuren
oder über die Partikularität hinausgehenden Menschen (Typus) ins Auge fasst
(“
É claro
que, quando falo aqui do social como princípio, isto não significa de modo algum,
como para a maioria dos meus contemporâneos socialistas, uma politização imediata,
e certamente não a obrigação de se posicionar sobre os acontecimentos políticos do
dia, mas o contrário: o início de uma diferenciação do conteúdo poético, a depender
se vislumbra simplesmente representar o particular ou o homem que ultrapassa a
particularidade o tipo
”).
28
Desde o início da década de 1930, quando estava exilado em Berlim, Lukács se
posicionou nas páginas da revista
Die Linkskurve
contra a
literatura proletária
da
época, celebrada pelos círculos oficiais do movimento comunista alemão. Tinha em
vista os romances de Willi Bredel, de Ernst Ottwalt, de [Hans] Marchwitza (e, na
filigrana,
peças didáticas
como
A decisão
, de Bertolt Brecht). Lucs lastimava nesses
escritores a ausência de uma consciência democrática mais ampla e de uma
sensibilidade para o
conjunto
dos problemas da sociedade; o sectarismo e a estreiteza
de sua perspectiva tinham como resultado, escreveu ele, um “
naturalismo proletário
”,
uma literatura na qual a
reportagem
(e às vezes o
kitsch
”) substita a verdadeira
figuração
”. O significado antidogmático desses artigos não escapou aos ideólogos do
marxismo oficial, que condenaram firmemente as críticas por ele dirigidas aos
representantes da nova
literatura proletária
(cf., por exemplo, os artigos de Hans
Koch, o principal porta-voz de Walter Ulbricht no domínio da cultura, no volume
Georg
Lukács und der Revisionismus
).
29
No polo oposto, David Pike, menos perspicaz que os
ideólogos de Walter Ulbricht, considera que, em seus artigos publicados em
Die
Linkskurve
, Lukács inicia uma
Selbststalinisierung
(“
autosstalinização
”) da
literatura.
30
Stalin fará as suas [críticas], mas críticas deste tipo não deixaram de ser
28
G. Lukács,
Nachwort
in
Essays über Realismus,
Werke
, Band 4, 1971, Luchterhand, p. 677.
29
Op. cit
., pp. 92; 98-100.
30
David Pike,
Lukács und Brecht,
1986, Tübingen, Max Niemeyer Verlag, p. 72.
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dirigidas ao filósofo. Recentemente, na biografia que lhe dedicou, Arpad Kadarkay
afirma que Lukács sacrificou o melhor de si mesmo no altar do totalitarismo stalinista.
Segundo ele, a visão de Lukács sobre a estética teria sofrido uma
estranha
metamorfose
durante seu exílio moscovita. Como provas, a perda do sentido
metafísico
” da arte, que o jovem Lukács possuiria, e o impulso do “
historicismo
que
se seguiu à sua reconciliação com a realidade do stalinismo. Essas provas, Arpad
Kadarkay encontrou-as ao comparar duas obras:
Entwicklungsgeschichte des
modernen Dramas
, publicada em 1911, e
O romance histórico
, redigido em 1936-
1937 e publicado ao longo de rias edições da revista
Literaturnyi Kritik
(1937).
Enquanto, na primeira, Lukács destacava, na esteira de Coleridge, o caráter
não
histórico
das personagens e a vocação
metafísica
das pas shakespearianas, na
segunda, ele teria cedido a uma visão puramente
historicista
”, buscando ancorar à
força a obra do grande elisabetano aos conflitos de classe da época. A verdade é
menos simples. É a bem diferente. Lukács, isto é perfeitamente correto, enfatizou na
segunda obra citada por Kadarkay o
historicismo
dos dramas shakespearianos.
Mesmo depois disso, ele se debruçaria mais de uma vez sobre a conexão entre a obra
de Shakespeare e o espírito do Renascimento, o pensamento de Maquiavel, de Étienne
de La Boétie, o jovem amigo de Montaigne etc. Mas, ao analisar as obras maduras de
Shakespeare em
O romance histórico
, Lukács tem apenas um objetivo: mostrar como
o grande dramaturgo consegue se libertar de qualquer fidelidade à história empírica
e estilizar conflitos reais, históricos, no sentido de conflitos morais, para se elevar a
uma universalidade
antropológica
”. (Lukács baseou-se, para sua demonstração, na
observação de Otto Ludwig sobre o caráter por excelência
antropológico
da obra
dramática em relação à prosa épica.) Seria
historicismo
enfatizar a dialética das
paixões humanas em Shakespeare, chamar a atenção para os conflitos éticos em suas
peças e mostrar como a matéria histórica, despojada de toda continncia, eleva-se à
universalidade? Arpad Kadarkay passa ao largo do que constitui a essência da estética
lukácsiana: o emaranhamento entre a análise histórica e a perspectiva estética. A
originalidade do autor de quem se ocupa é demonstrar como o
hic et nunc
aparece
transfigurado, sublimado em conflitos que nos fazem esquecer o seu real ponto de
partida para se elevar a um nível que diz respeito a todo o gênero humano.
31
31
Arpad Kadarkay,
Georg Lukács.
Life, Thought and Politics
,
1991, Cambridge, Massaschusetts and
Oxford, Basil Blackwell, p. 313. Para as análises lukácsianas da obra de Shakespeare, é necessário referir
Der historische Roman, Werke
, Band 6,
Probleme des Realismus
III, pp. 184-188, assim como
Die
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Mas Arpad Kadarkay, que deseja a todo custo demonstrar que Lukács teria
praticado um
sacrifizio dell'intelletto
durante seu exílio na União Sovtica, produz
outro argumento surpreendente. Ele afirma que o autor de
História e consciência de
classe
ocultou completamente, durante o acusado período, a importância dos
Manuscritos econômico-filosóficos
de Marx, que, contudo, lera no Instituto Marx-Engels
de Moscou no início dos anos 1930. Escreve ele:
Even more puzzling: if Marx's
Manuscripts
made a lasting impact on Lukács, why his virtual silence on them... The
reason was that the Manuscripts in the thirties, when Stalin condemned scholars to the
helotism of hagiography, had all the appearance of a shade
(“
Fato ainda mais
desconcertante: se os
Manuscritos
de Marx tiveram um impacto duradouro sobre
Lukács, por que seu virtual silêncio a respeito deles? [...] A razão era que, nos anos
1930, quando Stalin condenava os pesquisadores ao helotismo da hagiografia, os
Manuscritos
tinham toda a aparência de uma sombra
”). Pouco antes disso, ele havia
afirmado de forma mais geral que
Marx the humanist and philosopher’, in full
rebellion against alienation, is nowhere to be found as an influence on Lukács, though
he had earlier discovered him
(“Marx, o humanista e filósofo’, [em plena rebelião
contra a alienação], não deixou traço algum de sua influência nos escritos de Lukács
época], embora ele o tivesse descoberto anteriormente”). Profundo admirador de
História e consciência de classe
, que ele compara a
O príncipe
, de Maquiavel, o prolixo
biógrafo de Lukács chega mesmo a afirmar que
Lukács nunca se perguntou
especificamente se os
Manuscritos
de Marx
o levaram particularmente a mudar seu
ponto de vista sobre
História e consciência de classe
e, em caso afirmativo, como
(“
Lukács never specifically addressed the question of whether, and if so how,
Marx's
Manuscripts
led him, in particular, to change his views on
History and Class
Consciousness”).
32
Essas afirmações são falsas. Longe de haver silenciado sobre os
Manuscritos
de Marx e, de modo mais geral, de haver ocultado o Marx
humanista e
filósofo
”, Lucs utilizou-se abundantemente dos escritos do jovem Marx tanto, como
bem vimos, na década de 1930 quanto mais tarde. No supramencionado estudo sobre
Mehring, redigido em Moscou em 1933, Lukács reprovou a falta de interesse do
Eigenart des Ästhétischen,
vol. I,
Werke
, Band 11, 1963, Luchterhand, p. 727 e
vol. II,
Werke,
Band 12,
p. 563
.
A continuidade entre as análises de
O romance histórico
e aquelas da
Estética
é evidente. Ao
comparar as obras de maturidade de Shakespeare às produções contemporâneas do teatro elisabetano,
Lukács demonstra tanto seu enraizamento nos conflitos histórico-sociais da época quanto sua
transcendência
”, sua elevação à universalidade humana.
32
Arpad Kadarkay,
op. cit
. pp. 327-328.
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marxista alemão pelos escritos da juventude de Marx, citando explicitamente os
Manuscritos econômico-filosóficos
de 1844 e
A ideologia ale
. Mehring, que havia
editado os escritos da juventude de Marx, deixara de lado
(die) grundlegenden
philosophischen Manuskripte
(e não compreendera, segundo Lukács, a importância
de
A sagrada família
).
33
Encontram-se também numerosas citações de passagens dos
escritos da juventude de Marx na obra sobre as origens ideológicas do fascismo, ou
no ensaio
Marx und das Problem des ideologischen Verfalls
, publicado em 1938 na
Internationale Literatur
, na qual igualmente figura uma referência direta à questão da
alienação (ocultada, segundo Kadarkay, por conformismo).
34
Seria ainda necessário
recordar, fato que ninguém ignora, que
O jovem Hegel
, concluído em 1938 em
Moscou, está recheado de referências aos
Manuscritos econômico-filosóficos
, e que a
própria concepção do livro se deve à mutação produzida no pensamento do autor
após a leitura desses
Manuscritos
? Além disso, Arpad Kadarkay pretende nos fazer
acreditar que Lukács nunca explicou os motivos de sua mudança após a leitura dos
Manuscritos
. Basta ler o prefácio da edição de 1967 de
História e consciência de classe
para se convencer do contrário. Lukács, nele, apresenta as razões da mudança de
perspectiva, sublinhando a importância da distinção marxiana entre
objetivação
e
alienação
. É justamente a assimilação desta distinção que preparou a análise do
problema da alienação em
O jovem Hegel
. Mas Arpad Kadarkay se contenta em repetir
com tantos outros antecessores, sem submeter a exame, a ideia de que o filósofo teria
renegado
História e consciência de classe
por conformismo. Ele ignora serenamente o
processo de maturação filosófica de Lucs. Além disso, é difícil ver como um autor
que dedica três linhas a
Para uma ontologia do ser social
, obra da maior importância,
terminus ad quem
da evolução do filósofo, poderia dar provas de uma melhor
compreensão a respeito. Ele afirma, peremptoriamente, que em
Para uma ontologia do
ser social
the concept of individual autonomy is simply non-existent
” (“o conceito de
autonomia individual é simplesmente inexistente”),
35
ao passo que basta folhear o livro
para constatar que o florescimento da individualidade é a ideia central e a finalidade
da obra. Isso mostra que é possível escrever uma biografia de 500 páginas sobre um
33
G. Lukács,
Probleme der Ästhetik
,
op. cit
., p. 351.
34
G. Lukács,
Wie ist faschistische Philosophie in Deutschland entstanden?
, 1982, Budapest, Akademiai
Kiado, pp. 224-226;
Essay über Realismus
,
op. cit
., p. 263. Lukács cita os
Manuscritos econômico-
filosóficos
também em seu estudo de 1934,
Karl Marx und Friedrich Theodor Vischer,
ver
Probleme der
Ästhetik
, p. 249.
35
Arpad Kadarkay,
op. cit
., p. 465.
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autor sem ler atentamente sua obra-prima, ou mesmo sem lê-la de modo algum.
Uma grande obra teórica de Lukács, que gera contra ele uma oposição quase
unânime, é
A destruição da razão
. Tanto adversários como certos admiradores do
filósofo concordam em dizer que é um livro tipicamente stalinista, e em acusar o caráter
redutor
de suas análises. É, sobretudo, o capítulo dedicado a Nietzsche,
particularmente combativo, que causa indignação. Ainda há pouco tempo, um filósofo
ngaro denunciou este capítulo, por ocasião de um colóquio, como o exemplo típico
do “
julgamento stalinista
” de grande espetacularização.
36
Parece-nos útil, antes de pronunciar um juízo tão severo, reconstruir a história
desse livro. Hoje é possível acompanhar sua gênese laboriosa graças aos Arquivos-
Lukács de Budapeste, que acabam de publicar as duas versões anteriores à redação
definitiva, concluída em 1952 e publicada em 1954. A primeira dessas versões data
de agosto de 1933 e leva o título
Wie ist die faschistische Philosophie in Deutschland
entstanden?
; a segunda, escrita em Tasquente [capital do Uzbequistão], durante o
inverno de 1941-1942, intitula-se
Wie ist Deutschland zum Zentrum der reaktionären
Ideologie geworden?
.
Lukács deixou Berlim logo após a vitória nazista, em abril de 1933. A primeira
versão do livro foi, portanto, redigida alguns meses após sua chegada a Moscou. A
ideia fundamental de
A destruição da razão
já está presente ali. A questão colocada
por Lukács com notável precocidade, uma vez que à época nenhum pensador havia
ainda interrogado de modo tão agudo o passado alemão, era que, longe de haver
surgido
ex nihilo
, a ideologia do nacional-socialismo teria uma longa pré-história; seria
uma condensação, uma radicalização e uma vulgarização de certas teses do
irracionalismo, cujo peso filosófico é particularmente grande no pensamento alemão.
O trabalho genealógico empreendido por Lukács uma verdadeira
arqueologia das
ideias
não fica sem resultado. Ele demonstra de forma convincente como certos
topoi
da
Lebensphilosophie
(a crítica da causalidade, da legalidade e do progresso e
sua substituição pela “
tipologia
e pela
morfologia da história
”, a emergência da ideia
de
destino
e a preeminência do
mito
sobre a história) puderam ser assimilados,
integrados e radicalizados pela doutrina do nacional-socialismo. Esse trabalho, que
36
Endre Kiss, Les débuts de la récéption de Nietzsche parmi les intellectuels juifs hongrois, de Diner-
Dénes à Lukács
,
no volume
De Sils Maria à Jerusalem, Nietzsche et le judaïsme.
Les intellectuels juifs
et Nietzsche, édité par Dominique Bourel et Jacques Le Rider, 1991, Paris, Les Éditions du Cerf, p. 208.
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consiste em detectar na consciência filosófica alemã a formão progressiva de
esquemas ideológicos aptos a fornecer fundamentos teóricos para o pensamento
nazista, parece-nos perfeitamente legítimo. Ao mesmo tempo, essa versão de 1933,
que é um documento eloquente das funestas divisões na esquerda aleda época,
traz a marca de um forte sectarismo. A implacabilidade do autor contra os
social-
fascistas
mostra que ele compartilhava sem reservas da cegueira do Partido
Comunista Alemão e do Komintern em relação à social-democracia; a certa altura, ele
até se refere à fórmula de Stalin, que em 1928 estigmatizara os social-democratas
como
irmãos meos
dos fascistas.
37
A afirmação feita trinta anos mais tarde, em
1967, no prefácio a
Geschichte und Klassenbewusstsein
, de que essas palavras
infelizes o teriam
enojado
, não está de acordo com as convicções expressas no
manuscrito de 1933. É verossímil que não lhe viesse à mente essa primeira versão de
A destruição da razão
, esquecida entre seus papéis, antecipando assim a posição
antissectária que assumiria efetivamente alguns anos depois. Mas no momento da
redação, isto é, em agosto de 1933, sua visão política da Alemanha era, sem dúvida
alguma, extremamente sectária. Ele atirava pedras sobre todos os partidos que se
recusaram a cooperar com o Partido Comunista para impedir a chegada de Hitler ao
poder, taxando-os indiscriminadamente de colaboradores do nazismo. A única
alternativa válida, segundo ele, era: fascismo ou comunismo?
38
Pouco depois, Lukács
atiraria aos escombros essa visão simplista para tornar-se um ardoroso defensor da
política de frente popular, construída com a unidade das forças antifascistas. Nenhum
traço da condenação do
social-fascismo
subsistirá em seus escritos posteriores,
compreendida a segunda versão da obra dedicada às origens ideológicas do
nazismo.
O problema que se coloca é saber se o sectarismo político de 1933,
posteriormente corrigido, não dá as caras em outros lugares, por exemplo, nas análises
filosóficas de
A destruição da razão
. David Pike, que em seu livro
Lukács et Brecht
se
dem longamente sobre a versão de 1933, considera que o
fanatismo
” do autor se
encontra na dicotomia filosófica: racionalismo
versus
irracionalismo.
39
Ele cita como
reforço [de seu argumento] a diatribe de Leszek Kołakowski, segundo a qual Lukács,
37
G. Lukács,
Wie ist die faschistische Philosophie in Deutschland entstanden
?,
op. cit
., p. l60.
38
Ibid
., p. 39.
39
David Pike,
op. cit
., p. 86.
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por um reflexo tipicamente stalinista, teria atirado o conjunto da cultura filosófica
alemã posterior ao marxismo, em
A destruição da razão
, no campo do irracionalismo
e da reação:
O conjunto da cultura filofica alemã, com exceção do marxismo, é
reprovado em bloco como uma coleção de expedientes que prepararam a tomada do
poder por Hitler em 1933. De uma maneira ou de outra, todos eles abriram caminho
para os nazistas
”.
40
Antes de entrar na discussão sobre
A destruição da razão
, voltemos por um
momento à primeira versão do livro. Efetivamente, no quadro filosófico pincelado por
Lukács em 1933, de fato excessos e escorregões devidos a suas visões políticas.
Basta citar, a título de exemplo, a tendência de descobrir, mesmo em filósofos como
Nicolai Hartmann ou Ernst Cassirer, uma inflexão na direção de um
lebensphilosophisch gefärbten Neuhegelianismus
” (“
um neo-hegelianismo tingido de
filosofia da vida
”),
41
ao passo que pelo menos o primeiro desses pensadores,
absolutamente impermeável tanto à “
filosofia de vida
” quanto à corrente
neo-
hegeliana
da época, representada por [Hermann] Glockner, R[ichard] Kroner etc.,
orientava-se, pelo contrário, na direção de uma ontologia realista. E, em sua
desconfiança em relação ao liberalismo, chegou quase a relegar [Benedetto] Croce ao
campo de uma “pseudo-oposição” (
Scheinopposition
) contra o fascismo,
42
considerando a única verdadeira oposição aquela dos comunistas.
Retomando
A destruição da razão
, deve-se notar que esse grande
empreendimento de estabelecer a genealogia da
Weltanschauung
nazista não é
afetado pelo sectarismo político professado pelo autor em 1933.
43
Identificá-lo a um
processo do tipo
stalinista
equivale a ignorar sua substância. Os adversários de
A
destruição da razão
Leszek Kołakowski, David Pike, Arpad Kadarkay, Bedeschi, para
40
Leszek Kolakowski,
Die Hauptströmungen des Marxismus,
vol. 3, 1979, München, Piper, p. 311.
41
G. Lukács,
op. cit
., p. 194.
42
Ibid
., p. 238.
43
Durante sua conferência nos Rencontres Internationales de Genève, em 1946, Lukács indicou de
forma inequívoca o dano causado à luta antifascista pelo “
falso dilema
”: fascismo ou bolchevismo? Os
críticos da
esquerda
de
A destruição da razão
(de Isaac Deutscher a Bela Fogarasi) chegaram inclusive
a recriminar no livro o fato de colocar no centro das análises o conflito entre racionalismo e
irracionalismo (e não aquele entre materialismo e idealismo, disse Fogarasi), fazendo assim concessões
indevidas ao racionalismo burguês e a sua respeitabilidade (I. Deutscher). Eles não deixaram de ressaltar
a conexão entre o combate pelo racionalismo e aquele pela democracia em Lukács, e de deplorar o
ocultamento do ponto de vista “
classe contra classe
(cf. Isaac Deutscher, Lukács critique de Thomas
Mann
,
em
Les Temps Modernes,
juin 1966, p. 2.260, e Bela Fogarasi, Der revisionistische Charakter
einiger philosophischen Konzeptionen von Georg Lukács, no referido volume,
Georg Lukács und der
Revisionismus,
pp. 317-320).
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não esquecer de Theodor W. Adorno falharam em abalar os fundamentos filosóficos
do livro. Pior ainda, eles nem sequer iniciaram um verdadeiro exame de suas teses
fundamentais. A supracitada afirmação de Kołakowski, segundo a qual Lukács teria
atirado no campo do irracionalismo a totalidade das correntes filosóficas não
marxistas, está em contradição com o próprio desenvolvimento do livro. Lukács, por
exemplo, em nenhum momento atribui ao neokantismo da escola de Marburg (aquele
de [Hermann] Cohen ou de Cassirer), cujo idealismo filosófico é patente, uma tendência
irracionalista. Ao corrigir seu julgamento superficial de 1933, ele também não atribuiu
a Nicolai Hartmann o menor flerte com a
Lebensphilosophie
; pelo contrário, sublinha
a singularidade da posição do filósofo berlinense, favorável à dialética hegeliana, ainda
que, por outro lado, não se esqueça de criticar a sua tese sobre o caráter não
assimilável pelo aprendizado da dialética. O irracionalismo também não é tratado em
bloco. Lucs tem a cautela de nele distinguir diferentes tendências. Ele separa, por
exemplo, [Edmund] Husserl de seus posteriores que sofreram a influência da
Lebens-
philosophie
(de [Max] Scheler a [Martin] Heidegger), e o neokantismo de [Heinrich]
Rickert e de [Wilhelm] Windelband daquele debruçado sobre a mesma filosofia da vida
de [Georg] Simmel.
Em vão buscaríamos nos adversários do livro uma confrontação da sua
argumentação filofica. Leszek Kołakowski se contenta em afirmar, a propósito do
conceito de irracionalismo de Lucs, que este seria:
[...] demasiado indistinto, vago
e que assume uma extensão fantástica
”.
44
Ele não opõe qualquer contra-argumento
plausível às análises da nese e da estrutura de um dos mais potentes movimentos
do pensamento moderno. Lukács pincela um amplo quadro histórico do período
inaugurado pela Revolução Francesa, examinando as mutações que ocorreram no
interior do idealismo clássico alemão com a passagem de Schelling da primeira para a
segunda filosofia, com a orientação de Fichte em sua fase tardia em direção ao
irracionalismo, com a fulminante reação de Schopenhauer contra seus predecessores
Schelling, Hegel, Fichte e a identificação que ele opera entre a
coisa em si
kantiana
e o princípio irracional da
vontade
, com o surgimento de Kierkegaard e sua polêmica
contra a dialética hegeliana etc. Lukács propunha, então, uma vasta hermenêutica do
pensamento moderno, abordando de perto a unidade e a especificidade da corrente
irracionalista. Seus adversários preferiram “liquidar” o livro com julgamentos súbitos.
44
Leszek Kolakowski,
ibid.
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Arpad Kadarkay se contenta com fórmulas do tipo: “
The book is a historical document
on the intellectual miscarriages in Stalin's time
(“
O livro é um documento histórico
sobre as perturbações intelectuais na época de Stalin
”),
[a] silliest, Stalinist tract
(“
um
estúpido panfleto stalinista
”).
45
Nenhum deles se ao trabalho de discutir sua
argumentação (cujas conclusões poderiam se provar questionáveis, mas isso deve ser
demonstrado elevando o debate ao nível filofico de Lukács e não o rebaixando ao
nível das máximas polêmicas).
46
Em “Uma reconciliação extorquida”, texto polêmico por excelência, Adorno
dedica uma passagem desdenhosa a
A destruição da razão
. Ele recrimina o autor por
ocultar o fato de que correntes irracionalistas
exprimem, diante do idealismo
acamico, a revolta contra essa reificação da existência e do pensamento, cuja crítica
tornara-se justamente a questão de Lucs
”.
47
Mas, ao falar de Simmel ou Heidegger,
Lukács não silencia a respeito de suas críticas à reificação: “
Das eigentlich Interessante
am Philosophieren Heideggers
”, escreve ele,
ist nun die äusserst detaillierte
Beschreibung dessen, wie ‘der Mensch’, das tragende Subjekt des Daseins, ‘zunächst
und zumeist’ in dieser Alltäglichkeit sich zersetzt, sich selbst verliert
(“
O que é
verdadeiramente interessante na filosofia de Heidegger é, portanto, a descrão
extremamente detalhada do modo como o homem’, o sujeito portador do ser-
‘primeiramente e no mais das vezes’ se desintegra nessa cotidianidade e perde a si
próprio
”).
48
A diferença em relação a Adorno é que ele não se deixa seduzir pelo anti-
academicismo e pelo inconformismo de certos pensadores irracionalistas (Nietzsche,
em particular); ele concentra sua atenção na análise da sublimação
ontológica
da
reificação, portanto, na dissimulação metafísica de um fenômeno eminentemente
histórico-social. É nesse sentido que Lukács se detém sobre a ambão de Simmel,
continuada, segundo ele, por Heidegger, de
dar ao materialismo histórico um alicerce
(psicológico, quiçá metafísico).
49
O deboche de Adorno, segundo quem
A destruição
da razão
manifestaria
a destruição da razão do próprio Lukács
, pode nos fazer rir se
45
Arpad Kadarkay,
op. cit
., p. 421.
4646
Expusemos mais longamente nosso ponto de vista a propósito desse livro no texto
La Destruction
de la raison
trente ans après”
,
publicado em
Réification et utopie.
Ernst Bloch & Georg Lukács un siècle
après. Actes du colloque Goethe Institut, Paris, 1985, pp. 162-1811; trad. alemã no volume
Verdinglichung und Utopie,
1987, Frankfurt, Sendler pp. 93-111. [“
A destruição da razão
: 30 anos
depois” foi publicado pela
Verinotio
, n. 13, Ano VII, abr./2011. Disponível em:
<http://verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/article/view/114/104>. N.T.]
47
Theodor W. Adorno,
op. cit
. p., 172.
48
G. Lukács,
Die Zerstörung der Vernunft,
3 Auflage, 1984, Berlin und Weimar, Aufbau Verlag, p. 397.
49
Georg Simmel,
Philosophie des Geldes
, 3 Aufl. München-Leipzig, p. 8; G. Lukács,
op. cit
., p. 399.
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lembrarmos que ele mesmo associou não apenas Bergson, mas também a
intuição da
essência
(a famosa
Wesensschau
) de Husserl ao irracionalismo da
sociedade
burguesa tardia
e que, em seus ataques contra Heidegger, não hesitou em estabelecer
a equação: o Ser = o Führer.
Curiosamente, é Sartre quem, a despeito de sua polêmica contra Lukács, parece
favoravelmente impressionado com
A destruição da razão
. Simone de Beauvoir,
quando enviou
Os mandarins
ao filósofo, recebeu o livro em troca.
50
Um eco da reação
de Sartre pode ser encontrado em seu artigo “Le réformisme et les fétiches”, publicado
em fevereiro de 1956 em
Les Temps Modernes
. Falando dos filósofos marxistas aos
quais cumpria a missão
de contrapor as últimas filosofias burguesas, de interpretá-
las, de quebrar sua casca, de incorporar sua substância
”, Sartre citou com aprovação
dois exemplos, Tran Duc Thao e Lukács. A respeito deste último, ele escreveu:
[...] o
único na Europa que tenta explicar por suas causas os movimentos de pensamento
contemporâneos é um comunista ngaro, Lukács, cujo último livro nem sequer está
traduzido para o francês
”.
51
Não há dúvida de que se trata de
A destruição da razão
.
Os adversários do livro, aturdidos pelas marcas da época as guerras quente e
fria erraram em condená-lo antecipadamente, baseados somente na linguagem que,
certamente, tem sua importância. É necessário quebrar os dentes no caroço filosófico
de
A destruição da razão
antes de concluir que é pura e simplesmente a stalinização
do pensamento. As análises redutoras podem jogar nos dois lados.
Como lembramos acima,
O jovem Hegel
, um livro escrito quase na mesma época
que as várias versões de
A destruição da razão
, não pôde ver a luz do dia na União
Soviética. Lukács aqui defendia a tese de que o pensamento de Hegel deu uma
expressão filosófica positiva ao período histórico inaugurado pela Revolução Francesa,
enquanto os jdanovistas viam nele, ao contrário, a reação aristocrática alemã contra
esta mesma revolução (em 1950, a
Enciclopédia Soviética
ainda apresentava Hegel
sob essa luz). A consubstancialidade das duas obras é evidente, bem como seu
distanciamento em relação às teses correntes do movimento comunista internacional.
50
Ao agradecer-lhe, em 10 de outubro de 1955, pelo envio do romance, Lukács recordou, em sua
correspondência, as
interessantes conversas
” que tivera com ela e Sartre em Helsinki. Nove anos mais
tarde, em 22 de setembro de 1964, Lukács escreveria a Sartre para agradecer-lhe pela publicação, em
Les Temps Modernes
, de um dos seus ensaios; ele lhe propôs, na mesma ocasião, um texto sobre
Soljenítsyn, pois apreciava o apoio concedido pela revista ao escritor russo. Cópias dessas cartas
encontram-se nos Arquivos-Lukács de Budapeste.
51
Jean-Paul Sartre, Le réformisme et les fétiches
,
Situations,
VII, 1965, Gallimard, pp. 111-112.
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Além disso, os ataques orquestrados contra o
revisionismo
de Lukács tinham por
alvo tanto
A destruição da razão
quanto
O jovem Hegel
. É o caso do artigo “Der
revisionistische Charakter einiger philosophischer Konzeptionen von Georg Lukács”,
publicado em 1959 pela revista oficial do Cominform,
Problemas da Paz e do
Socialismo
, e reproduzido com o mesmo título no volume
Georg Lukács und der
Revisionismus
. O signatário do artigo é Bela Fogarasi, já aludido, antigo companheiro
de luta de Lukács e autor de um tratado marxista sobre lógica.
Pode-se encontrar uma reação do filósofo a esses ataques (Elemer Balogh, entre
outros, publicou em 1958 uma crítica veemente de
A destruição da razão
, intitulada
“Zur Kritik des Irrationalismus”) em uma carta de Lucs a seu tradutor italiano, Renato
Solmi:
Os sectários se mostram, é claro, escandalizados pelo fato de que o dogma de
Jdanov sobre a oposição entre materialismo e idealismo como objeto único da história
da filosofia dogma considerado por eles incriticável tenha sido ridicularizado e
tentaram através das falsificações mais grosseiras de citações demonstrar o caráter
‘revisionista’ do livro
”. E o filósofo recordou, a título de comentário, as palavras de
Dante a Virgílio: “
Non raggionam di lor, ma guarda e passa
”.
52
Lukács não errou ao dizer que, desde as
Teses de Blum
, não parou de
lutar pela
democracia no comunismo
”. Após retornar da União Soviética, durante o período de
1945 a 1948, ele defendeu a causa de uma transformação
evolutiva
da sociedade; ele
não previa a abolição imediata do capitalismo e preconizava uma longa transição
orgânica
de uma forma de sociedade para outra. A eclosão do
caso Lukács
”, em
1949 complacência a respeito da literatura burguesa, cosmopolitismo”,
subestimação do realismo socialista soviético , coincidiu com a introdução de práticas
ditatoriais em larga escala e com o processo Rajk.
Em junho de 1956, Lukács preside as sessões do Círculo
Petöfi
, faz
intervenções notáveis, prossegue com seus ataques contra os graves erros
doutrinários e contra a perversidade da prática política do stalinismo em conferências
(sua conferência O combate entre progresso e reação na cultura contemporânea”,
proferida em junho de 1956, em Budapeste, é reproduzida na edição de setembro da
revista
Aufbau
) e na imprensa. Ele advoga que a estratégia do movimento comunista
não deve ser determinada por uma tradução mecânica, na prática, da oposição
52
Citamos esta carta em nosso texto sobre
A destruição da razão
; ver nota 47.
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fundamental entre socialismo e capitalismo, mas levando em conta as contradições
específicas de cada período histórico; a ascensão do fascismo na cada de 1920, por
exemplo, havia revelado, contra o plano de fundo da contradição fundamental, outra
contradição, mais aguda e mais urgente. Tratava-se da oposição entre fascismo e
antifascismo. O desencadeamento da Guerra Fria, após a Segunda Guerra Mundial,
trouxe do mesmo modo ao primeiro plano a contradição entre as forças da guerra e
as da paz. Em ambos os casos, o campo do progresso implicava numerosas forças
além do comunismo: militantes da social-democracia, da Igreja e de camadas da
burguesia. Essas teses provocaram a ira das autoridades comunistas e desencadearam
uma vasta operação de repressão ideológica.
53
Uma incompatibilidade de fundo se
desenha: o filósofo concebia a democracia popular como
um socialismo que nasce da
democracia
”, enquanto os apoiadores oficiais queriam
instaurar o comunismo por
meios ditatoriais
”; para estes últimos, a democracia popular foi
desde o início uma
ditadura
e
desde o início também aquele tipo de socialismo para o qual ela evoluiu
assim que passou o caso Tito
”.
54
Longe de serem circunstanciais tomadas de posição, os ataques de Lukács contra
o stalinismo eram fundados em profundas razões filosóficas, entre as quais a herança
hegeliana do marxismo desempenhava um grande papel. Apoiado nas categorias da
mediação
, da
particularidade
(campo de determinações intermediárias entre a
singularidade e a universalidade) e do
universal concreto
, ele exige uma prática política
que, ao rejeitar dicotomias abstratas e esquemas, se adapte à complexidade do real.
Embora reconhecesse em Stalin habilidades táticas, ele não deixou de apontar a
sujeição da reflexão teórica às necessidades imediatas como um de seus principais
erros. A estratégia do movimento não era mais definida levando em conta a
totalidade
do processo histórico, com suas principais tendências e com a multiplicidade de suas
contradições específicas, mas em função de exigências táticas, elevadas ao patamar de
constrição universal. Como exemplo, Lukács costumava citar a razão teórica fornecida
por Stalin para justificar o pacto germano-soviético (ao qual ele próprio o negou
certa legitimidade tática). A guerra entre a Alemanha e a coalizão anglo-francesa foi
considerada uma guerra entre países imperialistas, assim como a Primeira Guerra
Mundial. A palavra de ordem deveria, portanto, ser idêntica:
transformar a guerra
53
O volume citado, editado em 1960, na RDA,
Georg Lucs und der Revisionismus
, testemunha
isso.
54
G. Lukács,
Pensée vécue.
Mémoires parlés,
op. cit
.. pp. 160-161 ; 174-175.
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imperialista em guerra civil
”. Essa posição dogmática e míope teve consequências
desastrosas para o movimento comunista nos países envolvidos.
Em suas conversas com István rsi e Erzsébet Vezér, Lukács caracterizou o
stalinismo como um
hiperracionalismo
”.
55
Stalin e seus partidários, que desejavam
encerrar o processo histórico em um esquema, eliminaram de um golpe a
multiplicidade de mediações; eles ignoraram, com vaidade cega, a desigualdade no
desenvolvimento dos diferentes complexos sociais e o caráter não retilíneo da história,
seu curso por definição
aberto
, tateante e imprevisível, o que não se encaixa bem em
um esquema fechado e monolítico. Durante seus últimos quinze anos de vida, Lukács
se dedicou a conscientizar os comunistas do perigo representado pelas profundas
sequelas do stalinismo. Após a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de
Varsóvia, ele declara em uma conversa com Bernie Taft, comunista australiano, que os
dirigentes soviéticos são “
amadores estúpidos
”, que por muito tempo desacreditaram
a atração do comunismo
”, e acrescentou sarcasticamente que, por sua ação, [Leonid]
Brejnev havia tornado Nixon presidente dos Estados Unidos.
56
Uma afirmação frequentemente repetida considera que a ligação de Lukács com
o marxismo e a imbricão de sua existência na história do comunismo internacional
impõem necessariamente limites severos à sua crítica ao stalinismo. Sua implicação
ideológica e física o impediria de mensurar em toda sua extensão a castrofe histórica
das sociedades assim chamadas de
socialismo real
”. Mesmo um comentador que
deseja fazer justiça à atitude antisstalinista do filósofo assume essa tese. Ao considerar
que “
Lukács blieb stets der Wahrheit mehr verpflichtet als der Macht
(“
Lukács
permaneceu sempre mais obrigado pela verdade do que pelo poder
”), Detlev Claussen
pensa que sua crítica do stalinismo
die objektive Unvernunft des Realsozialismus
verkleinert
(“minimizou a ausência objetiva de razão no socialismo real”). Claussen
detecta aí uma tendência de
racionalizar
a história do stalinismo, o que leva a certa
idealização da forma de sociedade [...] que está ligada ao nome de Stalin
(“
Idealisierung der Gesellschaftsform [...] die mit dem Namen Stalin verknüpft ist
”).
57
Seque, temendo que uma atitude mais radical pudesse colocar em questão
55
Ibid
., p. 145.
56
Bernie Taft, Testament of Georg Lukács.
Australian Left Review,
september 1971, p. 45,
apud
Arpad
Kadarkay,
op. cit
., p. 461.
57
Detlev Claussen, Blick zurück auf Lenin, introdução ao volume
Georg Lukács, die Octoberrevolution
und Perestroika,
hrsg. von Detlev Claussen, 1990, Frankfurt am Main, pp. 30-33.
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seu próprio passado, Lukács conscientemente atenuou a crítica das sociedades do tipo
stalinista ou neosstalinista? Ou antes, pelo contrário, conhecer o stalinismo de perto,
as armadilhas em que ele próprio, por vezes, caiu e das quais, por outras vezes, foi
vítima, conferiu à sua crítica uma implacabilidade que não exclui sua pertinência e
lucidez? Busquemos tornar essa visão um pouco mais nítida nos referindo aos fatos.
Tomemos o exemplo dos processos de Moscou. Convencido que a ação da
oposição colocava em perigo a estabilidade da sociedade soviética num momento em
que a ameaça hitlerista se perfilava no horizonte, Lukács, longe de desaprová-los e
ele não esconde isso , considerou-os de certo modo inevitáveis. Ciente de que se
podia recriminar sua
cegueira
estas paródias sinistras prejudicaram a esquerda
comunista, disso ele não tinha dúvidas , ele exigia que nos colocássemos no contexto
da época para julgarmos sua atitude. Diante das campanhas lideradas pelos nazistas
contra a Uno Soviética, ele pensava, tal como outros emigrantes, refugiados em
Moscou, que não se deveria fazer nada que pudesse enfraquecer o poder instaurado,
o único, em seu modo de ver, capaz de fazer frente a Hitler.
58
Essa atitude, por mais
injustificada que seja, pode ser considerada. Basta lembrar que espíritos tão diferentes
quanto Maurice Merleau-Ponty, Klaus Mann ou Isaac Deutscher, cada um a seu modo,
apelaram à situação internacional do momento para explicar, quando não aprovar, a
determinação com que Stalin dominou a oposição interna.
Por analogia com o julgamento de Danton e seu grupo, Lukács pensava que a
ameaça aos ganhos da revolução funcionava como um argumento plausível para
desculpar as piores violações do direito:
Eu considerei os processos como uma
abominação
disse a seus dois interlocutores, István Eörsi e Erzsébet Vezér, em 1971
mas eu me consolava dizendo a mim mesmo que estávamos do lado de Robespierre,
apesar de que o processo contra Danton, se nos colocarmos no terreno jurídico, o
foi muito melhor do que aquele contra Bukharin. Meu outro consolo, e este foi um
fator decisivo, consistia em dizer a mim mesmo que o problema essencial daquela
época era abater Hitler. Não era do Ocidente que se poderia esperar essa liquidação,
mas somente dos soviéticos
[em várias ocasiões, Lucs evocará neste contexto a
atitude de Chamberlain e Daladier em Munique, a fim de justificar
a posteriori
seu
diagnóstico de 1936-1937 N.T.]
E não havia outro poder anti-hitlerista a não ser
58
G. Lukács,
Marxismus und Stalinismus
, pp. 163; 236;
Pensée vécue.
Mémoires parlées, pp. 148-152.
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Stalin
”.
59
A recente publicação de certos documentos, como o estenograma de uma
reunião de escritores antifascistas alemães, membros do partido, que ocorreu em
Moscou entre 4 e 9 de setembro de 1936, poucas semanas após o fim do processo
de Zinoviev e Kamenev, mostra que Lukács se curvou, como os outros, ao ritual
stalinista dos grandes exibicionismos ideológicos que se seguiam às ões repressivas
do regime. Sua intervenção é pontuada por apelos à “
vigilância
revolucionária
(“
vigilância complicada
”, porque os inimigos não ousavam mais dar as caras) e à
liquidação das pragas
(que expressão infeliz!), o que mostra como no clima de medo
reinante após o veredicto, ele sabia se comportar como um stalinista ortodoxo. Ele o
era realmente? É possível encontrar em seu discurso acertos de contas com
adversários literários que prolongavam, segundo ele, a linha sectária da RAPP, e apesar
de não se esquecer de estigmatizar Zinoviev preciso lembrar que ele o detestava
desde a época em que este, então secretário-geral da Internacional Comunista,
protegeu Bela Kun, seu adversário de longa data), ele também exprime a sincera
preocupação com a coerência ideológica na linha antifascista da frente popular.
60
Outra decisão de Stalin que não foi desaprovada por Lukács é o pacto germano-
soviético. Ele o havia considerado na época como uma jogada habilidosa, destinada a
coagir as potências ocidentais, vacilantes, a formar uma frente comum com a União
Soviética contra o nazismo. A maneira como os eventos se desenrolaram
posteriormente teria feito justiça, afirmou Lukács, a essa ação de Stalin, mesmo que,
como vimos, ele não apenas não endossasse sua justificativa ideológica, como a tivesse
considerado como um exemplo típico de manipulação da história para fins puramente
táticos.
Apesar de uma existência difícil no interior do movimento comunista ataques
na imprensa, prisão, deportação e “
casos Lucs
, o filósofo não questionou
abertamente o stalinismo até o verão de 1956, poucos meses após o XX Congresso
do PCUS. É um fato. Em setembro de 1946, ele ainda defendia, nos Rencontres
59
Pensée vécue...
, p. 148.
60
G. Lukács/ Johannes R. Becher/ Friedrich Wolf u.a.
Die Säuberung, Moskau, 1936:
Stenogramm einer
geschlossenen Parteiversammlung, hrsg.von Reinhard ller, 1991, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt, pp.
184-197. Victor Serge, que encontrou Lukács em Moscou na década de 1930, escreveu em suas
Mémoires d'un révolutionnaire
que o filósofo deixou nele a impressão de alguém que
vivia
corajosamente no medo
” (p. 204).
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Internationales de Genève,
o espírito de 1941
”,
61
em outras palavras, a aliança das
forças democráticas da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da União Soviética
contra o fascismo. Essa atitude situava-se na sequência lógica de seu credo
democrático e antissectário, existente em germe nas
Teses de Blum
de 1928. Mas a
eclosão da Guerra Fria, que enterraria em breve
o espírito de 1941
”, tamm lançaria
Lukács nas armadilhas do maniqueísmo stalinista, ao qual deu seu quinhão. O posfácio
de
A destruição da razão
, escrito em 1953, é um exemplo disso. Nele vemos Lucs
defender no melhor estilo da Guerra Fria a política da União Soviética (incluindo a
Guerra da Coréia ou
o caso Lysenko
”), denunciar a ideologia pró-americana e celebrar
o grande movimento pela paz.
62
Sabemos, contudo, se acreditarmos em seus
testemunhos posteriores, que a semente estava plantada. O
caso Lukács
de 1949-
50, as pressões e humilhações de que foi objeto (ele foi coagido, entre outras coisas,
a uma segunda
autocrítica
”) e particularmente o processo contra Laszlo Rajk
preparariam o caminho para uma radicalização que veio à tona com suas primeiras
intervenções no Círculo
Petöfi
, no verão de 1956.
A partir de 1956, apesar das ameaças incessantes contra ele e das humilhações
sofridas, Lukács multiplica os textos dedicados à análise do stalinismo. Esses textos
dizem respeito tanto à prática quanto à
Weltanschauung
stalinista. Ele estava
obstinado, como vimos, a descobrir os fundamentos ideológicos dos atos de Stalin.
Isso pode parecer ridículo. Milhões de seres humanos pereceram, vítimas do paizinho
dos povos. Interessa realmente conhecer a
filosofia
do carrasco? Isso seria ignorar o
poder formidável do aparelho ideológico estabelecido por Stalin. Apenas quem viveu
na União Soviética ou nos países orientais conheceu a pressão moral a que cada
cidadão estava diariamente submetido, mesmo nas ações mais inocentes. A repressão
61
Uma tradução das intervenções de Lukács no evento pode ser lida nesta mesma edição da
Verinotio
[N.T.].
62
A violência desse texto não pode ser compreendida fora do contexto da época. O macartismo
intelectual que se propagava nos Estados Unidos, a radicalização anticomunista de certa elite da
intelligentsia
europeia, de [Albert] Camus a [François] Mauriac e de [Karl] Jaspers a Denis de Rougemont,
impulsionaram Lukács a endurecer simetricamente sua posição. Particularmente sensível à identificação
sumária das realidades do mundo soviético e das práticas stalinistas com o
totalitarismo marxista
”,
portanto, ao questionamento, em razão do stalinismo, do pensamento comunista em geral, ele reagiu
alinhando-se sem reservas atrás da bandeira de seu campo, como o demonstram suas críticas e seus
ataques generalizados contra os ideólogos do mundo ocidental, de James Burnham e Arthur Koestler a
Raymond Aron, e de [André] Malraux a [Ignazio] Silone. As simplificações e os excessos de linguagem
desse posfácio, datado de janeiro de 1953, registram claramente o clima de Guerra Fria da época.
Poucos entre os intelectuais ocidentais, pessoas como Karl Barth ou Jean-Paul Sartre, inspiravam sua
simpatia. A resposta deste último a Camus, na polêmica em torno de
O homem revoltado
[ensaio de
Camus de 1951, N.T.], teve para Lukács um valor exemplar.
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física andava de mãos dadas com a repressão do pensamento. Stalin realmente criou
um “
novo homem
”, que sobreviveu a ele. Era missão de um filósofo confrontar a
forma
mentis
do stalinismo e, sobretudo, a missão de um filósofo que, a despeito de sua
inteligência, de sua erudição e de sua sincera na causa do socialismo, não pôde
escapar totalmente das garras dessa formidável perversão do pensamento marxista e
do pensamento
tout court
.
Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer em Lukács uma lucidez
premonitória no que concerne ao socialismo
real
”. Na sua obra
Socialismo e
democratização
, redigida nos meses seguintes ao aniquilamento da
Primavera de
Praga
, ele denuncia o carácter artificial e o irrealismo fundamental das sociedades
estabelecidas nos países do Leste. As disfunções, os absurdos da planificação
autoritária, as distorções entre os diferentes setores da vida social, a apatia e a
passividade a que foram reduzidas as mais amplas camadas da população, a
manipulação da opinião blica, ele não se calou sobre nada. Com a mesma verve,
mas no campo da crítica literária, Lukács dedica dois estudos a Soljenítsyn, o primeiro,
em 1964, o segundo, em 1969; eles serão reunidos, em 1970, em um pequeno livro.
Ele é, portanto, o primeiro crítico contemporâneo a sublinhar o valor histórico e
universal da rejeição ao stalinismo, que ganhou expressão literária com o grande
romancista.
O Muro de Berlim não sepultou sob seus escombros a obra de Lukács. Vasto
empreendimento de renovação do marxismo, em grande parte baseado em uma
experiência social e política que reivindica o autor de
O capital
, essa obra,
incontestavelmente marcada pelas convulsões do movimento comunista, é uma
construção teórica demasiadamente lida para ser despachada por máximas
polêmicas e julgamentos precipitados, quer partilhemos ou o de suas conclusões
filosóficas.
A última grande obra de Lukács,
Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins
, é
inspirada pela convicção de que uma regeneração da práxis socialista passa,
inevitavelmente, pela ruptura com o marxismo enrijecido, que escorou, em seu
necessitarismo e em seu
economicismo
”, tanto o oportunismo da social-democracia
anterior à Primeira Guerra Mundial quanto, em outro plano, o stalinismo. Nela, Lukács
propõe restituir à política, ao direito, à moralidade e à ética seu devido lugar na
topografia da sociedade, demonstrando que a densidade e a complexidade do tecido
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social excluem qualquer codificação a partir de normas abstratas. Empreendimento
histórico gigantesco de regulação autoritária da vida social, o stalinismo não é uma
encarnação do marxismo, mas sua perversão teórica e prática.
Projetando coroar sua reflexão sobre a sociedade com uma
Ética
, que
infelizmente permaneceu sob a forma de anotações preparatórias, voltou-se
obsessivamente ao stalinismo como uma tentativa de abolir à força os critérios morais
e éticos que submetessem a vida social a uma codificação jurídica imposta desde cima.
Ele lembrou, nesse contexto, a visão premonitória de Hegel. Criticando o caráter
abstrato da moral kantiana, o grande filósofo chamou a atenção para a impossibilidade
de deduzir a ação moral a partir de critérios puramente lógicos (cf. o exemplo kantiano
do
depósito
, analisado no ensaio sobre o direito natural). Lukács se apoiou na famosa
demonstração hegeliana para reagir contra toda tentativa de homogeneizar
artificialmente um tecido por definição heterogêneo e sacrificar o concreto histórico-
social aos esquemas fabricados pelo entendimento abstrato.
63
A ontologia da vida social, na visão de Lukács, traduz-se
in politicis
por um misto
de inflexibilidade e flexibilidade; se o fardo da história, suas contradições e seus
desvios exigem grande flexibilidade na elaboração da tática e da estratégia políticas
para poder dar conta de toda a multiplicidade de mediações, o horizonte permanente
de ação o pode ser outro senão a livre autodeterminação dos indivíduos,
los
último da vida social.
No conceito de
Gattungsmässigkeit für sich
(a especificidade do gênero humano
para-si), Lukács faz convergirem todas essas aspirações à plena autonomia do
indivíduo e ao florescimento da personalidade, enfatizando, ao mesmo tempo, que
nada pode ser feito sem levar em conta o
Gattungsmässigkeit an sich
(a especificidade
do gênero humano em-si), portanto, o estado atual da condição humana. Realizar o
difícil equilíbrio entre a heteronomia e a autonomia do sujeito manteve-se, até o fim,
como a obsessão e a ideia motora de seu pensamento. Um antiutopismo fundamental
não o impediu de acreditar na emancipação do gênero humano.
63
G. Lukács,
Prolegomena zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins,
op
.
cit
., p. 309. O stalinismo foi
diretamente visado por uma utilização
sui generis
da crítica do dialético Hegel contra o dogmatismo
kantiano.
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Como citar:
TERTULIAN, Nicolas. György Lukács e o stalinismo. Trad. Carolina Peters.
Verinotio
, Rio
das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 88-124, jan./jun 2021.