Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à
ontologia de Nicolai Hartmann
*
Ronaldo Vielmi Fortes
**
Resumo: No artigo, propõe-se explicitar a crítica
que György Lukács realizada à ontologia de
Nicolai Hartmann, em sua obra
Para uma
ontologia do ser social
. Contra o que
argumentam vários comentadores de Lukács,
busca demonstrar a inexatidão da tese da forte
influência que Hartmann exerceu no pensamento
das obras tardias lukácsianas.
Palavras-chave: ontologia do ser social; Nicolai
Hartmann e György Lukács; marxismo e
ontologia.
Abstract: In the article, it is proposed to make
explicit the criticism that György Lukács made
to Nicolai Hartmann's ontology, in his work
Ontology of Social Being
. Against what several
Lukács commentators argue, it seeks to
demonstrate the inaccuracy of the thesis of the
strong influence that Hartmann exerted on the
thought of Lukács' late works.
Keywords: ontology of the social being; Nicolai
Hartmann and György Lukács; marxism and
ontology.
Entre os comentadores da obra tardia do filósofo húngaro György Lukács, é
comum afirmar a proximidade de seu pensamento com as reflexões desenvolvidas por
Nicolai Hartmann em suas obras voltadas à ontologia. Em parte, tal motivação se deve
ao próprio pensador magiar que dedicou um capítulo exclusivo a Hartmann em sua
derradeira obra
Para uma ontologia do ser social
. Esse, no entanto, não parece ser o
único motivo da constante referência comparativa entre ambos os pensadores. Essas
aproximações quase sempre vêm acompanhadas por certo entusiasmo por parte de
alguns comentadores pelo pensamento de Hartmann. Tal entusiasmo leva, por vezes,
à negligência de aspectos importantes da crítica desenvolvida por Lukács a Hartmann,
tendendo a atenuar diferenças relevantes e, por via de consequências, induzindo a
uma aproximação indevida e precipitada de suas posições filosóficas.
Em um dos mais importantes comentadores da obra lukácsiana, Nicolas Tertulian,
encontramos a discussão mais difundida em torno dessa relação. Tertulian sugere a
influência decisiva de Hartmann nos caminhos e nas construções da ontologia de
*
Reedição, com modificações, do artigo originariamente publicado em: VAISMAN; VEDDA.
Arte, filosofia
e sociedade
. São Paulo: Intermeios, 2014.
**
Prof. Adjunto da Faculdade de Serviço Social - UFJF. Doutor em filosofia pela FAFICH-UFMG.
E-mail
:
vielmi.ronaldo@ufjf.edu.br.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.598
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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Lukács:
Na realidade, Lukács começou a interessar-se pelo pensamento de Hartmann,
e especialmente por seus trabalhos de ontologia, no momento em que ele
mesmo sentiu a necessidade de dar fundamentos categoriais sólidos ao seu
pensamento sobre a sociedade e sobre as diferentes atividades do espírito
(arte, ciência, religião), fundamentando sua filosofia marxista em uma teoria
geral das categorias do ser (TERTULIAN, 2003, p. 665).
A “admiração incondicional” (Cf. TERTULIAN, 1986, p. 32) de Lukács por
Hartmann, nas palavras de Tertulian, se justifica pela teoria das categorias encontradas
na obra desse último. Elas fornecem para o pensador húngaro a matéria filosófica
necessária para colocar sobre bases lidas a fundamentação da filosofia marxista. Em
outro momento, insistindo no “entusiasmo” (Cf. TERTULIAN, 1986, p. 33) lukácsiano
pela filosofia de Hartmann, de forma mais determinante ainda, o comentador afirma:
É legítimo perguntar se Lukács teria se orientado no fim de seu percurso intelectual
para a ontologia enquanto ciência filosófica do ser e de suas categorias, sem a
impulsão decisiva dos escritos de Hartmann (TERTULIAN, 2003, p. 671).
1
É como se
o pensamento de Hartmann houvesse propiciado o solo fértil, portanto imprescindível,
para o desenvolvimento das raízes ontológicas do pensamento de Lukács.
Não como abordar aqui em detalhes a interpretação de Tertulian, porém
bastaria para levantar suspeitas contra tal tese citar uma pequena passagem na qual
Lukács faz uma clara diferenciação entre a velha ontologia e a construção que ele vinha
trabalhando na segunda metade da década de 60. Na famosa entrevista
Gesprache
mit Lukács
, em resposta a Hans Heinz Holz que o indaga sobre o objeto de sua
propositura ontológica, Lukács sugere a necessidade de romper com a tradição
filosófica clássica para quem o objeto da ontologia é definido como a
teoria das
categorias
”. No sentido clássico, a “teoria das categorias” tem tido caráter da
exposição sistemática: consiste no procedimento que ordena e articula o conjunto das
categorias sob a forma da sistematização hierárquica logicamente definida. Em
confronto direto com tal procedimento, Lukács enfatiza que para a ontologia marxiana
"o objeto é o ente real. A tarefa é a de investigar o ente com a preocupação de
1
Em outro contexto, o mesmo comentador escreve: Uma das chaves do pensamento de Lukács é sua
ávida simpatia pela obra de Nicolai Hartmann e, sobretudo, pelas suas principais obras de filosofia
ontológica:
Zur Grundlegung der Ontologie
, que inaugura o
ciclo ontológico
, e, em seguida,
Der Aufbau
der realen Welt
e
Teologisches Denken
. Essa simpatia é bastante compreensível. A existência autárquica
do ser em relação à consciência é a tese fundamental da ontologia realista, tanto a de Nicolai Hartmann
como a de György Lukács que, por sua vez, prefere falar em ontologia materialista (TERTULIAN, 1986,
p. 13).
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compreender o seu ser e encontrar os diversos graus e as diversas conexões em seu
interior" (ABENDROTH, 1967, p. 12 [ed. bras. 1969, p. 15]).
2
Conforme tratei em outra ocasião,
A análise das categorias fundamentais do ser social assume em Lukács
contornos claramente distintos daqueles comumente verificados na tradição
filosófica. Em momento algum o pensador húngaro se preocupa em
estabelecer sua reflexão nos moldes do tratamento sistematizador lógico-
hierárquico característico dos grandes sistemas filosóficos, nem mesmo
dedica capítulos ou seções de seu livro à elucidação desses temas sob a
forma da exposição esquemática de cada categoria em separado. O
tratamento conferido a elas aparece em meio à análise dos “complexos
problemáticos mais importantes” do ser social. Por meio da elucidação dos
complexos e elementos dessa forma do ser se fazem presentes as reflexões
sobre as categorias ontológicas tradicionais, quase sempre acompanhadas
de críticas ao modo pelo qual a tradição filosófica lidou com esse conjunto
de problemas. A opção por essa forma expositiva não significa uma
deficiência do texto, pelo contrário, condiz com a perspectiva do autor, para
quem o desvelamento e a especificação das categorias devem proceder da
análise dos próprios nexos presentes na matéria tratada, de modo a eliminar
toda consideração e articulação meramente lógica ou gnosiológica dos nexos
categoriais fato que, segundo o autor, caracteriza grande parte das
elaborações da filosofia em torno das categorias (FORTES, 2013, p. 23).
Obviamente Tertulian não desconhece as diferenças entre ambos os pensadores,
contudo ao formular com tais palavras as intenções de Lukács leva a entender a
necessidade de uma fundamentação nas velhas categorias da filosofia e nos
procedimentos tradicionais dos sistemas filosóficos para a sustentação mais adequada
do pensamento marxista. Tais aspectos não condizem com o pensamento do próprio
Lukács, pois, segundo ele e essa é uma das críticas centrais, como veremos,
levantadas contra Hartmann , a sistematização das categorias tende a deformar a reta
apreensão dos efetivos nexos categoriais postos na realidade.
Guido Oldrini, outro importante comentador da obra lukácsiana, compartilha em
grande medida das considerações feitas por Tertulian acerca da relação entre ambos
os autores. Entretanto Oldrini localiza a ruptura central do pensamento de Lukács as
raízes de seu pensamento da maturidade no final da década de 30,
3
momento em
que Lukács rompe definitivamente com o voluntarismo no campo da política (ou seja:
“o empenho em intervir no campo da política com absoluta desatenção pelas
2
A tradução brasileira opta por traduzir
der Gegenstand ist das wirklich Seiende
por “o objeto é o
que realmente existe”. No entanto, na sequência traduz o mesmo termo
Seiende
por “ente”. Julgamos
que o correto é traduzir o termo, em ambos os casos, por “ente”.
3
No nosso entendimento, o livro de Oldrini constitui a mais importante obra que trata da biografia
intelectual de Lukács. Cf. OLDRINI, Guido;
Gÿorgy Lukács e i problemi del marxismo del novecento
;
Napoli: La Città del Sole, 2009.
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condições objetivas concretas”) e se aproxima de maneira mais definitiva da
compreensão objetiva da realidade claramente estampada em seus textos escritos a
partir desse período , superando desse modo os traços idealistas de
História e
consciência de classe
. A reviravolta ocorrida na década de 30 em Lukács foi motivada
primordialmente, como bem demonstra Oldrini, pela leitura dos
Manuscritos
econômicos-filosóficos
, nos quais o pensador húngaro trabalhou diretamente em sua
decifração a convite de Riazanov. A análise de Oldrini, muito embora corrobore com
Tertulian em diversos pontos, atenua em certa medida a decisibilidade da presença de
Hartmann sobre a trajetória da maturidade lukácsiana, possibilitando vislumbrar traços
importantes de sua ontologia tardia como elementos constituídos e conquistados a
partir da obra de Marx já na década de trinta (Cf. OLDRINI, 1986, p. 115).
Wolfgang Harich é provavelmente o comentador que se dedica com maiores
detalhes e cuidados dessa relação. O fato de ter sido editor das obras de Lukács na
Alemanha Oriental intensificou bastante seus contatos com o pensador húngaro. A
importância de Harich, nesse debate, se deve ao fato de não apenas ter sido aluno de
Nicolai Hartmann, mas também ao fato de no decorrer da segunda metade do século
XX ter mantido frequente contato com Lukács por meio de encontros pessoais, mas
principalmente pelo intermédio de cartas. Em meio a essa troca de correspondências,
Harich, no ano de 1952, chama a atenção do pensador húngaro para a produção
teórica de Hartmann. Harich transcreve uma série de passagens da obra hartmanniana
buscando demonstrar o caráter objetivista de seu pensamento. Em sua resposta,
Lukács confessa o desconhecimento da obra do autor e relata ter visto pela primeira
vez o pensador em uma conferência sobre Hegel, na qual constatou “a tendência à
objetividade da realidade” em Hartmann. Porém, na sequência, declara sua decepção
ao ler o livro de Hartmann sobre Hegel. Ao comentar as citações de Hartmann
reproduzidas por Harich em sua carta, Lukács observa se tratar de um “fenômeno
peculiar” no quadro do pensamento contemporâneo.
É também Harich quem adverte para o fato de que bem antes de suas
investigações acerca da obra ontológica de Hartmann, Lukács chega a citá-lo pelo
menos em duas ocasiões. A primeira referência do autor a Hartmann encontra-se em
seu escrito de 1933, publicado postumamente, intitulado
Wie ist die faschistische
Philosophie in Deutschland entstanden?
Na única referência feita ao pensador alemão,
Lukács injustamente o estigmatiza como membro na nova geração da Escola de
Marburgo, a qual acusa ser uma tendência neo-hegeliana “tingida” com as cores da
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“filosofia da vida” (LUKÁCS, 1982, p. 194).
4
Tal compreensão é totalmente desprovida
de fundamento, pois Hartmann nunca manteve qualquer forma de aproximação com a
Lebensphilosophie
. Posteriormente, em
A destruição da razão
, Lukács faz outra rápida
menção ao filósofo alemão, muito imprecisa e protocolar, em que o relaciona
injustamente, segundo vários comentadores no rol dos pensadores do século XX que
fazem concessões a certos conteúdos irracionalistas. Tais indicativos presentes nas
obras de Lukács, bem anteriores à sua estética e à sua ontologia, demonstram o
desconhecimento quase completo que o autor tinha do pensamento de Nicolai
Hartmann. Conforme bem acusa Harich opinião endossada por Nicolas Tertulian
apenas a partir de 1952 a atenção do filósofo magiar se volta de maneira mais apurada
à consideração de suas obras.
Segundo Harich, o primeiro contato com a obra de Hartmann provocou grande
impacto. Ele narra encontro que teve com Lukács, no qual levou a seu conhecimento
diversas passagens das obras de Hartmann, e segundo ele, tal conhecimento causou
em Lukács grande entusiasmo.
5
Exagerando bastante nos termos, Harich insiste em
destacar a importância da obra de Hartmann em toda a fase tardia do pensamento de
Lukács, em particular em sua
Estética
e sua
Ontologia
.
Por um lado, a recepção de Hartmann por Lukács vai além do que o capítulo
dedicado a ele, como revela e parece ser assumido por Benseler. É, acima de
tudo, importante para todo o seu trabalho tardio, isto é, também pela
Peculiaridade do estético
e não apenas pela
Ontologia
(HARICH, 2004,
p. 204.
6
Se considerarmos a presença de Hartmann em
Peculiaridade do estético
, fica
evidente o exagero desta consideração. Nas poucas vezes que Hartmann é referido, o
tom crítico à estética de Hartmann, por vezes, predomina nas considerações de Lukács
conforme veremos mais à frente. Considerando os escritos de Lukács sobre
Hartmann, fica evidente o tom exacerbado das tentativas de vincular o pensamento do
último Lukács ao filósofo alemão.
Os termos desta aproximação forçada precisam refutar alguns elementos que
4
lebensphilosophisch gefärbten Neuhegelianismus
” (
apud
TERTULIAN, 2003, p. 667).
5
Cf. HARICH, 2004, p. 238.
6
Auf der einen Seite geht Lukács
Rezeption Hartmanns weiter, als das ihm gewidmete Kapitel erkennen
läßt und als Benseler anzunehmen scheint. Sie ist, vor allem, belangvoll für sein gesamtes Spätwerk, d.
h. auch schon für die ‚Eigenart des Ästhetischen‘ und nicht erst für die ‚Ontologie
’”). É preciso salientar
que o modo pelo qual Harich estabelece sua frase, leva a entender que o próprio Benseler faz tal
afirmação no posfácio que escreve para a
Ontologia
de Lukács. O que não é o caso. Benseler se limita
a citar o evento no qual Harich apresenta Hartmann a Lukács, e localizar o lugar e a função do capítulo
sobre Hartmann escrito por Lukács em sua ontologia (Cf. BENSELER, 1986, p. 734).
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Lukács dirige contra Hartmann. É o caso da principal refutação feita por Lukács a
Hartmann que aparece logo na epígrafe do capítulo que ele dedica ao pensador
alemão: “o idealismo inteligente está mais próximo do materialismo inteligente do que
o materialismo burro” (LÊNIN,
apud
LUKÁCS, 2012, p. 129). Ainda que de uma forma
elogiosa, vem assim denunciado o idealismo fundante do pensamento de Nicolai
Hartmann. Essa é provavelmente a pedra de toque que incomoda bastante aqueles
que insistem na tese da “aliança fecunda” entre ambos os pensadores. O tom elogioso
e atenuado não é mantido ao longo de suas críticas, pelo contrário, termos mais
ríspidos aparecem em suas considerações, tais como a atribuição a Hartmann de um
verdrängter Idealimus
(idealismo deslocado), ou ainda
ontologische Fabelwesen
.
7
Assim, encontram-se em Hartmann, ao lado de autênticas descobertas no
âmbito da ontologia geral, as da natureza inorgânica e da natureza orgânica,
não só a imagem desfigurada e desalinhada do ser social, mas também
seres
ontológicos fabulosos
, como o ser ideal ou o ser psíquico. .
8
(LUKÁCS, 1986,
p. 456 grifo nosso)
Lukács observa que o pensador alemão traz elementos decisivos para o debate
dos caminhos das ciências da natureza, contribuindo de maneira importante na
discussão do conhecimento na filosofia de seu tempo. Entretanto, de imediato as
considerações críticas se fazem presentes, denunciando os desvios e deformações das
reflexões de Hartmann em torno do ser social para Hartmann cindido entre ser
psíquico e ser espiritual e da tese de difícil aceitação para todo pensador materialista:
o ser ideal.
Para escapar dessa crítica, vemos Harich insistir na assertiva de que não se trata
propriamente de idealismo em Hartmann, mas de um “materialismo inconsequente”.
Segundo ele, em suas obras de maturidade, em particular em
Zur Grundlegung der
Ontologie
¸ Hartmann já não se prende tanto à tese do ser ideal, distancia-se da forte
presença do platonismo, que caracterizou, por exemplo, sua
Ética,
obra de 1925, em
que afirma: “Os valores são a forma de ser segundo as ideias platônicas”. Para Harich,
se acompanharmos a trajetória do pensamento de Hartmann, podemos verificar “o
processo de seu afastamento gradual da concepção de ser ideal’” (HARICH, 2004, p.
62). Contra Lukács, Harich afirma que o pensador húngaro teria razão se a obra a
7
A pretensa neutralidade no que diz respeito a idealismo e materialismo se traduz em um idealismo
deslocado de seu posicionamento em relação ao mundo e leva-o a cometer inconsequências fatais. (
Lukács, Op.cit., p. 135).
8
So stehen bei Hartmann neben echten Entdeckungen in der allgemeinen Ontologie, der der
unorganischen und organischen Natur, nicht nur das verzerrtzerfließende Bild des gesellschaftlichen
Seins, sondern auch ontologische Fabelwesen wie das ideale oder das seelische Sein
.”, .
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partir da qual cita,
Zur Grundlegung der Ontologie
, a idealidade “dá forma e governa”
o mundo real” (
id
.
ib
.). Chega ao ponto de afirmar que Hartmann no contexto de suas
obras sobre a ontologia, já havia desistido “em grande parte” da tese do ser ideal
(
idem
, pp. 62-3). Seu principal argumento é trazido à luz por meio de uma citação de
Hartmann: “não há razão para considerar as relações ideais anteriores compreensíveis
como algo que existe isoladamente e, por assim dizer, constitui um segundo mundo
ao lado do mundo dos casos reais(HARTMANN, 1949, p. 257). E acrescenta, ainda
citando Hartmann, “o ser ideal, em comparação com o ser real, é o ser inferior” (
idem
,
p. 299). Sem antecipar uma refutação cabal dos contra-argumentos de Harich, caberia
provisoriamente repetir as palavras de seu interlocutor, Paul Forster, nas entrevista
que Harich confere sobre o pensamento de Hartmann:
Dois terços da “nova ontologia” e três quartos dela estão “cheios” de
idealismo: “ser psíquico”; "ser espiritual"; "espírito pessoal"; “espírito
objetivo”; "espírito objetivado", "consciência do problema" como motor do
progresso científico; mas acima de tudo: o "ser ideal" (HARICH, 2004, p. 62).
A tese do ser ideal marca de maneira decisiva todo o desdobramento da
ontologia hartmanniana. Os comentários de Harich, nesse sentido, parecem forçar uma
aproximação difícil entre ambos os pensadores, trazendo Hartmann para o interior das
tendências materialistas, ainda que, segundo ele, não estejam devidamente
explicitadas.
A polêmica gerada por tais questões entre os estudiosos da obra tardia do
filósofo marxista deve ser analisada à luz dos textos e documentos deixados pelo
próprio autor, no intuito de determinar com maior precisão o real caráter das
referências de Lukács a Hartmann, assim como das possíveis influências desse último
na obra tardia do pensador húngaro. Há dois caminhos para determinar essa relação:
investigação dos documentos (cartas, notas, etc.) que retratam o início do contato de
Lukács com a obra de Hartmann e a consideração da crítica realizada por Lukács a
Hartmann em sua obra derradeira, a
Ontologia
.
A presença de Hartmann nos trabalhos preparatórios da ontologia
Quanto às investigações da obra de Hartmann realizadas por Lukács, o
Versuche
zu einer Ethik
[
Esboço para uma ética
],
9
em que se encontram reunidos um conjunto
de anotações esparsas escritas na primeira metade da década 1960, constitui um dos
9
LUKÁCS, G.
Versuche zu einer Ethik
; Budapeste: Académiai Kiadó/Lucs Archium és Könyvtár, 1994.
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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documentos mais significativos dessa trajetória. Ele contém anotações escritas no
exato momento em que Lukács está concluindo sua
Estética
e rascunha elementos para
seus estudos subsequentes, a
Ética
. Como é do conhecimento de muitos, o que estava
previsto para ser uma simples introdução preparatória à ética, adensa em volume de
páginas e temas correlacionados, ganhando a feição de um problema autônomo e, em
grande medida, prioritário em relação ao tratamento da ética. O projeto da ética,
paulatinamente, foi posto de lado e deu lugar às suas elaborações acerca da ontologia
do ser social.
Característico dessas anotações é a presença bem delineada dos grandes
temas tratados em sua
Ontologia
. Embora escritas como materiais preparatórios para
a construção de sua ética, a maior parte das notas contém fundamentalmente
considerações voltadas à temática do ser social, ou como Lukács anuncia
explicitamente em suas anotações, os fundamentos para uma ontologia do ser social
como pressupostos necessários para a redação de uma ética. Grandes temas como:
complexo trabalho, complexo da alienação e estranhamento, reprodução, ideologia e
uma farta coletânea de citações e comentários em torno do problema das categorias
modais, moldam as linhas gerais dos materiais ali reunidos. Na realidade, salvo melhor
juízo, as notas acerca da ontologia do ser social parecem ter um peso similar às
anotações voltadas à ética. Não seria ariscado dizer que nessas anotações se
encontra, em grande medida delineado, o esboço de alguns capítulos ou pelo menos
dos principais temas que serão desenvolvidos mais tarde em sua
Ontologia
. O trabalho
subsequente a essas anotações parece ser um desdobramento, um adensamento e
descrição mais minuciosa dos temas ali anunciados.
No que diz respeito à presença de Hartmann em seus estudos do período, como
observou Nicolas Tertulian, as anotações revelam a presença de um “bom número de
referências significativas”
10
às obras de Hartmann. Tertulian, ao enfatizar essa
presença, pretende sobretudo destacar a importância e relevância do pensamento de
Hartmann nos caminhos da construção lukácsiana de sua
Ontologia
. No entanto, não
10
Les
Versuche zu einer
Ethik (Notes préparatoires à
l’Ethique),
qui permettent de pénétrer dans le
laboratoire de la pensée lukácsienne des années 1960-1964, contiennent bon nombre de références
significatives à des ouvrages comme
Zur Grundlegung der Ontologie
(1935),
Möglichkeit und
Wirklichkeit
(1938),
Der Aufbau der realen Welt
(
1940
)
ou
Philosophie der Natur
(
1950
)” [TERTULIAN,
2003, p. 665]. No entanto, é preciso destacar, contra Tertulian, que nessas anotações não há uma
referência sequer à
Aufbau
, e que a
Ethik
de Hartmann, não referida nesse momento por Tertulian, tem
uma presença marcante em seus estudos diretamente voltados para o tema.
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basta destacar que Lukács se dedicou à leitura dessas obras, mais importante é
explicitar o teor da compreensão do autor em torno dos grandes temas da ontologia
abordados por Hartmann. Quanto a esses aspectos, encontramos um fato curioso em
suas anotações: a maior parte delas são apontamentos críticos ao pensamento de
Hartmann. Em linhas gerais, a única referência positiva mais significativa é feita à
Philosophie der Natur
, o que não é nenhuma novidade, pois revela as origens da
mesma linha de raciocínio das considerações de Lukács na
Ontologia
, em que
claramente a define como a principal e mais aproveitável obra de Hartmann. Quanto
às outras obras, elas são citadas quase sempre em um tom crítico. Por exemplo, as
referências a
Möglichkeit und Notwendigkeit
; alertam para o problema da teoria
megárica da possibilidade em Hartmann, apontando para os equívocos de sua posição
e fazendo clara defesa de Aristóteles frente a estes dilemas;
Zur Grundlegung der
Ontologie
é atacada com frequência dado suas teses acerca do ser ideal da
matemática. Para os nossos propósitos, é interessante discorrer sobre os
apontamentos críticos presentes nessas notas preparatórias.
O que se percebe em
Versuche zu einer Ethik
é uma posição crítica bem
formada em torno do pensamento de Nicolai Hartmann. Encontramos nessas notas e
rascunhos pelos menos duas importantes críticas concretizadas, críticas essas que
anos mais tarde foram tornadas públicas e elaboradas de forma mais consistente nas
páginas de sua
Ontologia
. A primeira delas dirige-se contra a ideia do ser ideal
matemático, formulação de Hartmann explicitada em
Zur Grundlegung der Ontologie
.
Dado o caráter fragmentário das anotações não é muito compreensível a formulação
de Lukács no contexto das notas “O/258, O/255”, no entanto, é significativo o fato
de ela aparecer contraposta ao caráter de ser da economia em Marx, ao problema da
realidade social fetichizada. A indagação de Lukács nesse contexto se dirige ao
problema da realidade das categorias, o autor se pergunta “até que ponto o
espelhamento da realidade (verdadeiro ou falso) influencia realmente o ser social”
(LUKÁCS, 1994, p. 40). Talvez o paralelo traçado aqui seja entre a coisificação das
relações sociais sob a forma da categoria valor e a coisificação de procedimentos
cognitivos, de processos do espelhamento tomados como elementos autônomos,
efetivamente existentes independentemente da consciência, ou seja, o caráter de ser
atribuído aos axiomas matemáticos.
Mais relevante ainda para nossa consideração é a reprodução feita pelo
organizador do livro, György Mezei, das glosas marginais escritas pelo pensador
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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húngaro no volume de Hartmann presente em sua biblioteca. Em notas genéricas, mas
bem claras em seu sentido, Lukács condena a noção de ser ideal, tachando-a de infiel
ao método de Hartmann: “
H. hier wie bei Möglichkeit untreu zur eigenen Methode
(Sophisma: aus ‘mathematischen’ Charakter d. Natur: ideales Sein ableiten ebd 265)
.
11
O sofisma está então na constatação inicial do caráter matemático da natureza por
parte de Hartmann que demonstra sua efetiva presença nessa esfera para depois dotar
a matemática de completa independência, colocando-a como um ser extrínseco à
realidade [
Realität
],
12
ser esse que por meio de seus princípios fundamentais a
determina e a conforma segundo sua própria legalidade. Sob esse aspecto, sua análise
deixa de ser a investigação do “ente enquanto ente” e passa a atuar como uma
dedução lógica da forma do ser.
Ainda sobre o problema do ser ideal, em outra página do volume sobre a qual
se debruça para realizar seus estudos (página 318 de
Zur Grundlegung der Ontologie
),
de maneira mais taxativa, Lukács anota: “
Keine ideal Ontologie”
[“nenhuma ontologia
ideal”]. Lukács se dirige nesse contexto contra o título da subseção “e” do “capítulo
50” que tem início exatamente na página 318 da edição de
Zur Grundlegung der
Ontologie
:
e. Idealontologie und Realontologie
[“Ontologia ideal e Ontologia real”].
A ontologia do ser ideal é negada em prol da ontologia do ser real, única admitida
pelo pensador húngaro. Em
Para uma ontologia do ser social
, tais questões e
problemas são retomados e tratados com mais detalhes. Voltaremos a esse tema mais
à frente, já que constitui um dos pilares decisivos da crítica lukácsiana.
A segunda referência a Hartmann igualmente oferece provas da natureza precoce
de suas refutações, quando referindo a teoria da possibilidade [
Möglichkeit
] formulada
por Hartmann, Lukács faz menção explícita de sua intenção de contrapor Hegel
(LUKÁCS, 1994, p. 178)
13
contra a tese megárica retomada por Hartmann: “possível
somente existe como efetivo” (LUKÁCS, 1994, p. 54; Cf. “O/235”). Essa crítica se
11
Nota 13: “H[artmann] aqui como em
Möglichkeit
[
und Wirklichkeit
] infiel ao seu próprio método
(sofisma: por causa do caráter ‘matemático’ da natureza: ser ideal deduzido [derivado]
ibidem
265”;
(LUKÁCS, 1994, p. 134).
12
O termo alemão
Realität
possui no pensamento hartmanniano clara diferença com
Wirklichkeit
. O
segundo termo designa uma das categorias da modalidade, o primeiro refere-se às esferas do ser, por
ele separadas entre “ser real” (
realen Sein
) e “ser ideal” (
idealen Sein
). Desse modo, para Hartmann, o
ser ideal possui efetividade, tanto quanto o ser real.
13
HEGEL,
Ciência da lógica
, primeira frase da Segunda Parte -
Die Wirklichkeit
e, principalmente, cap.
2.
Die Wirklichkeit
em que claramente Hegel investiga em que medida a possibilidade é realidade
[HEGEL, 1986, p. 186].
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encontrava assinalada também no contexto de suas anotações marginais ao
Grundlegung
acima citada, na qual também a teoria da possibilidade de Hartmann é
tomada como infiel” ao seu método. Tal infidelidade encontra-se claramente
explicitada na crítica mais tarde exposta em sua ontologia. Por ocasião da análise da
teoria da modalidade de Hartmann, Lukács acusa a presença em Hartmann de duas
concepções distintas da possibilidade: uma sistemática, logicamente estabelecida em
Möglichkeit und Wicklichkeit
, outra extraída da análise minuciosa e detalhada da
investigação dos seres da natureza orgânica presente em
Philosophie der Natur
(LUKÁCS, 2012, p. 174). A inversão, ou a infidelidade com o método autenticamente
ontológico, está em construir uma teoria à parte da análise direta do “ente enquanto
ente”. A
intentio recta
, a direta investigação do “ente enquanto ente” é o método
hartmanniano traído ao longo de suas construções exclusivamente lógicas e dedutivas
das categorias modais.
Menos recorrentes que as menções ao livro de Hartmann
Möglichkeit und
Wirklichkeit
são as referências à
Philosophie der Natur
. No entanto, o sentido dos
comentários a esta obra são significativos na medida em que mudam a tônica de
Lukács na análise das teses de Hartmann. Em relação a ela, as observações de Lukács
não possuem o tom majoritariamente crítico; pelo contrário, quando citada, tal obra
serve muito mais para reforçar suas teses ou apontar caminhos autênticos a serem
seguidos nas reflexões de Hartmann. Algo semelhante se poderia dizer em relação a
Teleologische Denken
, obra que, salvo algumas ressalvas, Lukács tem profundo
apreço.
O autor também menciona em suas anotações preparatórias a ética
de Hartmann
para auxiliar em sua crítica a Kant e contra Aristóteles vale-se da ética e
Teleologischen
Denken
no intuito de se contrapor às tendências finalistas de seu pensamento. Porém
nem mesmo a
Ethik
permanece incólume a suas críticas, de maneira direta a tese de
Hartmann dos valores como ser ideal, objetivamente existentes independentemente
dos homens é rechaçada nas notas do
Versuche
(Cf. LUKÁCS, 1994, pp. 228-9).
Do Versuche à
Zur Ontologie des gesellchasftlichen Seins
: a continuidade
crítica
O importante é destacar no contexto das investigações do período, ainda que
não explicitada de maneira minuciosa e devidamente argumentada, a crítica ao
problema do ser ideal, à teoria da possibilidade etc. se encontram presentes de
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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maneira clara em seus estudos. Este é sem dúvida aspecto de grande relevância, pois,
se de um lado mostra o interesse do pensador magiar pela ontologia de Hartmann,
por outro destaca de modo evidente a refutação cabal de teses centrais do seu
pensamento, isso nos idos de 1960-4. Nesse sentido, o teor das remissões feitas
ao intelectual alemão, as críticas agudas e certeiras dirigidas contra sua obra, parecem
indicar muito mais a demarcação de fronteiras entre as reflexões ontológicas que
vinham sendo elaboradas por ele do que propriamente uma aproximação entre os dois
pensadores ou, como querem alguns comentadores, uma influência (ou aliança)
decisiva nos caminhos assumidos na construção de sua ontologia. Se o argumento é
a quantidade de referências feitas por Lukács a Hartmann no contexto de suas
investigações, poderíamos contra-argumentar destacando a maior quantidade de
remissões feitas às obras de Hegel e a ainda maior quantidade de referências às obras
de Marx. Esse aspecto condiz com o modo como Lukács encerra o capítulo crítico a
Hartmann, em que após destacar a “grandeza e os limites” da ontologia do referido
filósofo demarca a necessidade de retorno aos grandes dialéticos, ou seja, a Hegel e
a Marx:
Portanto, se quisermos tornar as conquistas de Hartmann, que são
importantes apesar de todas as limitações, realmente fecundas para a
ontologia atual, teremos de prosseguir a partir dele na direção dos grandes
dialéticos, isto é, na direção de Hegel e sobretudo de Marx (LUKÁCS, 2012,
p. 180).
Chama a atenção nessa passagem o indicativo de que seu pensamento apenas
pode ser devidamente iluminado mediante a confrontação com a obra de Hegel e Marx,
pois nelas se encontram os princípios efetivos para a construção de uma autêntica
ontologia. E isso em uma dupla direção: permite vislumbrar os equívocos e limites do
pensamento hartmanniano e ao mesmo tempo colocar sobre trilhos corretos o
desenvolvimento de elementos e conteúdos presentes em Hartmann que somente
podem se tornar “realmente fecundos” vistos à luz da filosofia desses dois grandes
dialéticos (Hegel e Marx). Tal relevância maior dos dois pensadores sobre a
consideração respeitosa feita por Lukács a Hartmann justifica, a nosso ver, a presença
mais maciça e decisiva de menções a ambos nos
Versuche zu einer Ethik
.
Ainda em relação à “atmosfera” das considerações lukácsianas presente na
Ontologia
, é oportuno destacar a semelhança no estilo adotado por Lukács ao escrever
sua crítica a Hartmann com a sugestão feita por ele a Harich, anos antes, na parte final
da carta de 1952, acima referida. Nas linhas finais de sua resposta, Lukács recomenda
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a seu amigo realizar “um estudo detalhado sobre a obra completa de Hartmann”. Tal
estudo:
Deveria mostrar que por um lado [Hartmann], conduz uma luta, criticamente
em muitos aspectos correta, contra o idealismo subjetivo e o irracionalismo,
que entretanto não é possível tal oposição desde o idealismo. Tal ensaio
deveria ser escrito em um tom decidido desde o ponto de vista do conteúdo,
mas de maneira muito calma e respeitosa, para que possa surtir efeito na
intelectualidade ocidental (HARICH-LUKÁCS Briefwechsel, 1997, p. 286).
O conselho que Lukács à época dirige a Harich, no qual sugere a ele redigir um
estudo sobre Hartmann destacando os aspectos de seu pensamento que podem
contribuir para a crítica dos descaminhos do presente, sem, no entanto, deixar de
apontar respeitosamente seus equívocos e limites, é em grande medida a forma
expositiva por ele adotada no capítulo da ontologia sobre Hartmann. O tom respeitoso
recomendado, sem deixar escapar a crítica séria e rigorosa aos aspectos problemáticos
de seu pensamento, assemelha-se ao roteiro assumido na construção do capítulo. Além
disso, as vias sugeridas a seu correspondente alemão aparecem também estruturando
a própria construção do tomo I de sua obra. O capítulo destinado a Hartmann aparece
logo após os capítulos sobre o neopositivismo e o existencialismo. Nessa posição, o
capítulo funciona como linha demarcatória de ruptura com as tendências hegemônicas
da filosofia, que por um lado refutam cabalmente toda questão ontológica e, por outro,
edificam uma falsa ontologia de cunho subjetivista, negando as vias corretas da
construção de uma ontologia objetiva. Tal aspecto condiz com outra passagem da
mesma carta:
Poderíamos muito simplesmente aproveitar a Hartmann apesar de toda
crítica e toda reserva como aliado na propaganda entre os burgueses do
ocidente. Quero dizer, desde um ponto de vista metodológico, da maneira
em que naturalmente
mutatis mutantis
Lênin aproveitou a Haeckel na luta
contra os discípulos de Mach (HARICH-Lukács Briefwechsel, 1997, p. 286).
Decerto o tom fortemente pragmático aqui sugerido não predomina nas
formulações acerca dos aspectos positivos do pensamento de Hartmann, porém não
podemos deixar de observar o intento de Lukács ao figurar a análise da obra
hartmanniana logo após a crítica do pensamento contemporâneo. Insistimos: a análise
de Hartmann funciona como elemento de passagem para a formulação de uma
autêntica ontologia e não como uma autêntica ontologia já configurada. Na
ontologia, a estruturação dos capítulos deixa clara a ordem de relevância dos
pensamentos, logo após o capítulo de Hartmann surge, na sequência, o capítulo sobre
Hegel e posteriormente sobre Marx.
O desdobramento da análise presente no capítulo sobre Hartmann na
Ontologia
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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não parece apresentar uma ruptura com as considerações de suas anotações
preparatórias e com as convicções que o autor nutria antes da redação definitiva de
sua obra. Ao contrário. Os elementos e críticas expostos com mais detalhes nas
páginas de sua obra derradeira apresentam uma linha de continuidade com as notas
de seus estudos preparatórios. Nesse sentido, não se pode deixar de observar a
retomada do problema do ser ideal e da teoria da modalidade de Hartmann nas
páginas da
Ontologia
, na qual, de uma maneira mais cabal e argumentada, tais
problemas são tratados com maiores detalhes.
A crítica a Hartmann: objeções a “
Zur Grundlegung der Ontologie
No que concerne propriamente ao capítulo de sua
Ontologia
dedicado a seu
contemporâneo alemão, a discussão sobre a relação do pensamento de Lukács com
Hartmann deve começar, assim compreendemos, pela epígrafe contendo uma citação
direta de nin: “O idealismo inteligente está mais próximo do materialismo inteligente
do que o materialismo burro” (
apud
LUKÁCS, 2012, p. 129). Tal afirmação demarca
logo de saída a base idealista da filosofia de Nicolai Hartmann.
Não por mero acaso ou por simples formalidade Lukács inicia suas considerações
advertindo para o idealismo hartmanniano,
14
muito embora, isso não signifique uma
impugnação cabal de toda a construção de seu pensamento. Pelo contrário, para
Lukács, cumpre ao analisar o pensamento de Hartmann criticá-lo em suas deficiências
no intuito de desenvolver as autênticas questões ontológicas a partir das indicações
frutíferas passíveis de serem encontradas em suas obras. Em Lukács, a intenção de
desenvolver uma ontologia materialista
a partir dos lineamentos presentes no
pensamento de Marx
impõe absorver o que de
fecundo
e pioneiro na ontologia de
Hartmann” e, ao mesmo tempo, refutar a fundamentação idealista de sua ontologia e
denunciar os momentos nos quais se manifesta a
inconsequência
de Hartmann”
(LUKÁCS, 2012, p. 150).
15
Contudo iniciar por essa afirmação é delimitar logo de saída
o campo das diferenças filosóficas no qual se movem ambos os pensamentos.
14
Para Lukács um “idealismo objetivo consequente” (LUKÁCS, 2012, p. 130).
15
Usamos aqui intencionalmente as palavras de Lukács no intuito de destacar a passagem que parece
inspirar tanto o título dado por Tertulian à sua análise da relação Lukács/Hartmann (“
Une alliance
feconde
”) quanto a expressão
inkonsequenten Materialismus
utilizada por Harich em suas críticas a
Hartmann. Ainda em relação à adjetivação fecundo” (
Fruchtbar
), vale ressaltar o uso frequente por
parte de Lukács para caracterizar o pensamento de Hartmann: aparece também em outros momentos
da
Ontologia
, assim como em
Gespräche mit Georg Lukács
(ABENDROTH, 1967, p. 12 [ed. bras. 1969,
p. 15]).
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Na
Ontologia
, o primeiro aspecto desse idealismo é acusado de maneira clara e
inequívoca: o ser ideal. Para Hartmann, a ontologia se divide em duas esferas de ser
bem determinadas, ou seja, a do ser real e a do ser ideal. O que o pensador húngaro
acusa no ser ideal da matemática e no ser ideal dos valores também esses tomados
como uma esfera autônoma e
a priori
é exatamente o idealismo hartmanniano.
Vale traçar algumas considerações para expor a trama de determinações armada
em
Zur Grundlegung der Ontologie
. Para Hartmann, o ato do conhecimento é o ato de
apreender o ente-em-si. O objeto permanece intacto frente a esse ato, apenas a
subjetividade se transforma nessa ação de “apreender”. Consequentemente, para
Hartmann, “se não há um ente-em-si não conhecimento”. A questão, portanto,
consiste em saber se a “razão matemática” [termo meu] pode ser determinada como
ser, para isso é necessário apresentar argumentos que demonstrem sua independência
frente aos atos da consciência; em outras palavras, a matemática como “apreensão” e
não como raciocínio lógico imanente à consciência. Para determinar a existência do ser
ideal é necessário demonstrar a presença de conteúdos ideais na consciência
existentes por si mesmos, isto é, não dependentes dos atos imanentes da consciência
como o raciocínio, o pensamento, a fantasia. Os axiomas matemáticos devem ser
evidentes por si mesmos e se impor como necessidade extrínseca à consciência. Nessa
medida, não é ato puro da consciência, mas apreensão de uma necessidade externa,
de um ente-em-si.
Se acompanharmos os argumentos de Hartmann desenvolvidos em seu livro
Zur
Grundlegung der Ontologie
, veremos que a prova do ser ideal da matemática funciona
como elemento chave em sua demonstração do ser ideal. Ao longo dos primeiros
capítulos dessa seção em que trata do assunto, Hartmann faz um imenso esforço para
demonstrar a validade de sua tese. Reporta-se criticamente a Kant, às visões da
validade e fundamentação subjetivas dos matemas, etc. Independente da consciência,
argumenta o autor, uma reta é a menor distância entre dois pontos, e, outro exemplo
insistentemente citado pelo autor, a determinação: qualquer número elevado a zero
será sempre igual a 1 [aº=1].
Após “demonstrar” o ser matemático, Hartmann, precisamente com base nos
argumentos ali utilizados, procura demonstrar o ser ideal da essência e o ser ideal dos
valores. É nesse ponto que o idealismo de Hartmann aparece de forma mais evidente.
Tal como Lukács argumenta sobre a dificuldade de demonstrar como o ser ideal da
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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matemática determina o ser real, o vínculo entre ser ideal da essência e ser real aparece
aqui de maneira mais gritante ainda. Vale ressaltar que, estranhamente, Lukács o
leva suas objeções ao ponto de considerar essa dimensão do pensamento
hartmanniano, limitando-se a considerar a problemática do ser matemático. As
formulações subsequentes de Hartmann são, para efeitos de uma crítica materialista,
ainda mais decisivas.
Embora aqui seja possível apenas chamar atenção para o tema, vale lembrar que
constantemente Hartmann retoma o problema da distinção entre as esferas do ser ao
longo de suas obras ontológicas. Basta citar a definição das categorias fundamentais
da ontologia (que para Hartmann significa aquelas categorias encontradas na base de
toda forma do ser), na qual a categoria tempo é retirada e restringida apenas a
dimensão dos processos do ser real, mais especificamente, do ser orgânico e
inorgânico, estando ausente do substrato do ser psíquico, das dimensões mais
universais do ser espiritual e completamente ausente dos seres ideais. Ele retira, por
esse motivo, o tempo e o espaço da classe de categorias pertencentes do ser em geral,
deixando vestígios dessas efetivas relações do ser, na afirmação da “quantidade” como
categoria mediadora, pois espresente tanto no ser real quanto no ser ideal, em
particular, nesse último, por meio de relações quantitativas presentes nas leis
matemáticas.
A relevância da esfera do ser ideal em Hartmann não pode ser considerada
apenas como aspecto residual (um resíduo idealista), pois marca uma profunda cisão
em suas reflexões, cisão esta responsável por determinar de maneira decisiva todos
os desdobramentos de seu pensamento, criando como o próprio pensador sugere
duas ontologias: a do ser real e do ser ideal. Cada uma dessas esferas possui
categorias específicas e quando apresentam categorias similares, sua função e
determinidade guardam especificidades marcantes e inconciliáveis basta pensar na
categoria dimensional espaço e maneira de ser fundamentalmente distinta nas duas
esferas do ser.
A refutação lukácsiana do ser matemático tem por base a teoria da
mimesis
. O
autor observa como na filosofia contemporânea o problema da
mimesis
desapareceu
quase completamente, e argumenta em prol da necessidade de recolocá-la em voga,
não apenas na dimensão da estética em que foi consagrada por meio das análises de
Aristóteles, mas também em outros âmbitos da dimensão das construções intelectivas
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humanas, como é o caso da matemática. O desenvolvimento do problema em Lukács
tem uma formulação diretamente voltada aos grandes temas da estética, porém, como
demonstra o próprio autor, não aparecem restritos a esse campo das atividades do
espírito humano. A mimese própria à matemática é explicada comparativamente à sua
especificidade na estética; convém seguir o raciocínio do autor:
A mimese estética sempre cria um “meio homogêneo” (por exemplo, o meio
da pura visibilidade etc.), com o auxílio do qual todos os objetos do
espelhamento são deslocados qualitativamente para o mesmo plano: a
homogeneidade assim obtida simultaneamente intensifica sua própria
substância e torna todas as relações mais ricas e mais essenciais do que
poderiam ser na realidade, em princípio sempre heterogênea; nesse
processo, essa aparente aplicação da realidade diretamente dada no plano
de uma “segunda imediatidade” conduz de volta para as suas essências,
enriquecendo-as. O que se quer com isso é apenas indicar o poder de
intensificação do meio homogêneo como forma objetivada da mimese
(LUKÁCS, 2012, p. 166).
Estas determinações m validade também para o caso da matemática. Também
nesse campo se cria o meio homogêneo em que se reduz todas as determinações às
relações puramente quantitativas e espaciais. No entanto, o próprio autor não tarda a
estabelecer as diferenças que esta guarda com a dimensão estética.
É claro que o meio homogêneo da matemática nada pode ter de
concretamente comum com o da arte: este é antropomorfizante, aquele
desantropomorfizante, colocando uma pluralidade sensivelmente
determinada de qualidades num nível unitário e diferenciador; aquele visa
alçar o puramente quantitativo, livre de seus substratos não quantitativos no
mundo real, ao nível de um sistema relacional dinâmico de relações
puramente quantitativas; este, sendo pura qualidade, só pode ser remontado
à essência do todo da realidade; aquele, em contrapartida, também pode ser
aplicado diretamente a fenômenos singulares, a grupos de fenômenos etc.
da realidade; este é atomístico, “insular”, e, em cada objetivação, exclui de si
diretamente todas as demais; aquele forma uma continuidade que se
complementa e se amplia de maneira ininterrupta etc. etc. (LUKÁCS, 2012,
p. 167).
Após destacar as diferenças, conclui Lukács criticamente:
Portanto, se a matemática for concebida como mimese dessa maneira
dialética, explica-se automaticamente aquilo que, em Hartmann, era o
enigmático, a saber, que fios conduzem da realidade mesma até esse
espelhamento, por que a dialética imanente do meio homogêneo permite e
requer operações autônomas em seu próprio âmbito e como estas podem
em parte ser novamente postas em relação com a realidade. Mas mesmo
que os conteúdos últimos na realidade e na mimese sejam os mesmos, um
abismo separa a homogeneidade mimética da heterogeneidade da realidade
existente em si, e esse abismo é justamente o ser de uma e a essência
mimética da outra (LUKÁCS, 2012, p. 167).
Com essas palavras, o autor de
Para uma ontologia do ser social
busca
demonstrar o “absurdo” da tese hartmanniana do ser ideal. Um ato da consciência
humana que cria abstratamente uma forma de consideração de determinados
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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elementos da realidade, reduzindo a heterogeneidade de sua composição a um meio
homogêneo específico, neste caso, às relações quantitativas, é tomado pelo pensador
alemão como uma forma de ser autônoma e independente à própria consciência.
16
Não se poderia deixar de mencionar as análises feitas por Lukács acerca da
relação entre as categorias quantidade e qualidade, presentes em sua obra
A
peculiaridade do estético
. Muito embora não sejam dirigidas a Hartmann, mas escritas
a propósito da relação matemática na música, suas formulações são válidas para
refutar a pretensa autonomia e independência desmedidas operada por Hartmann. As
considerações se voltam contra a tendência de alguns filósofos da arte de atribuir
excessiva relevância aos aspectos técnicos e à temporalidade rítmica, matemática, à
música. A contraposição de Lukács adverte para a necessidade de considerar os
aspectos gerais do meio homogêneo da música, ou seja, o fato de asica voltar-se
à interioridade dos indivíduos, de por meio de sua peculiaridade ser capaz de ativar
neles sentimentos e emoções das mais diversas ordens. A música evoca emoções, põe
em movimento a sensibilidade humana relativa a seus sentimentos. Nesse sentido,
Lukács observa que a música é um complexo, em que estão envolvidos tanto os
elementos da proporcionalidade, do ritmo, do tempo, e igualmente, aspectos da
interioridade da alma, ou seja, o caráter quantitativo forma um conjunto inseparável
aos aspectos qualitativos. Aqui não nos importa o problema estético propriamente
dito, mas as consequências que Lukács extrai dessa discussão.
O problema remonta à história da filosofia, à querela de Aristóteles com Platão
acerca do mundo das ideias. Aristóteles rechaça as “ideias” de Platão, e com isso,
igualmente refuta sua concepção segundo a qual “os números e as relações numéricas
possuem “existência independente dos fenômenos”, ou seja, recusa a tomá-los como
elementos “completamente autônomos em relação à existência” e que sejam
“causalmente determinantes” da existência (LUKÁCS, 1987, p. 318). Em contraposição
a Platão, Aristóteles “vincula a idealidade do número com a posição em primeiro plano
da relação numérica ou proporção, que ele não concebe como ideia, mas como
determinação concreta dos objetos, ligada à substância material” (
idem
, p. 319). O
número é relação, é sempre proporção de algo que possui qualidades. Desse modo, o
16
Francesco Barone em seu livro
Nicolai Hartmann nella filosofia del novecento
desenvolve, em termos
distintos, porém muitos próximos ao de Lukács, uma decisiva crítica à noção do ser matemático em
Hartmann (Cf. BARONE, 1957, pp. 102-6).
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“numérico não aparece, pois, como a garantia última da verdade objetiva, pelo
contrário, sua própria verdade deve ser medida em relação aos fatos da realidade
objetiva” (
ibidem
).
Porém, é a Hegel que cabe o mérito de esclarecer de maneira precisa a relação
entre qualidade e quantidade. O conceito de medida em Hegel põe o problema de
uma forma resolutiva, é determinada como “unidade e quantidade e qualidade”, está,
portanto, “inseparavelmente vinculada com o ser das coisas, suas relações, suas
legalidades etc.” (
ibidem
). Lukács reproduz a passagem em que Hegel define a
“medida”, mostrando a relação ineliminável entre qualidade e quantidade:
A medida é de fato uma maneira externa, um mais ou menos, mas que ao
mesmo tempo também se reflete em si mesma, não é apenas indiferente e
externa, mas uma determinidade que é em si mesma; é, portanto, a verdade
concreta do ser... Medida é a relação simples do
quantum
consigo mesmo,
sua própria determinidade consigo mesmo; então o
quantum
é qualitativo
(HEGEL, 1934, pp. 409-413).
Na sequência, ainda citando Hegel, completa o argumento: a medida é o
comportamento
imanente
quantitativo de duas qualidades entre si” (
idem
, p. 422).
Não é mero acaso que a gênese da concepção de Hartmann sobre o ser ideal e
o ser matemático remonta a seu livro
Platos Logik des Seins
, de 1909. A
independência do ser matemático, tal como Hartmann sustenta, tem suas raízes em
Platão, evidentemente, como referimos, suas ideias se modificam em suas obras
posteriores, conferindo ao ser matemático certa relação com o ser real, no entanto,
mantém-se o princípio decisivo da ontologização das relações matemáticas, ou seja,
como leis independentes e autônomas de uma maneira do ser, do ideal.
Com suas críticas, Lukács põe abaixo um dos pilares fundamentais das reflexões
de Hartmann que, conforme dissemos, marca profundamente todos os
desdobramentos subsequentes de sua ontologia. Ainda que Lukács não estenda o teor
de sua crítica às raízes e consequências presentes na obra de Hartmann, a refutação
do ser matemático desconstrói a base dos argumentos da tese do ser ideal e destaca
de maneira evidente os traços idealistas de seu pensamento.
17
17
Um estudo específico sobre o problema seria de enorme relevância para a discussão aqui em tela. Na
literatura sobre o problema, encontramos apenas estudos esparsos. Um dos mais significativos estudos
foi desenvolvido por Wolfgang Harich em seu livro
Nicolai Hartmann: Grösse und Grenzen
. Outro livro
também importante, muito embora trate do problema de maneira tópica sem se dedicar ao conjunto da
obra de Hartmann, foi escrito por Francesco Sirchia (Cf. SIRCHIA, 1969, pp. 10-21). O autor compreende
Hartmann como um pensador idealista e argumenta que este jamais foi capaz de romper completamente
com a influência de Kant.
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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Traços de idealismo na Estética de Hartmann
Não se pode esquecer no contexto dos argumentos de Lukács da existência de
uma forma de idealismo em Hartmann, as considerações presentes em
A peculiaridade
do Estético
, que igualmente acusam traços de idealismo na estética do filósofo alemão.
O problema do meio homogêneo é também a dimensão da crítica proferida contra a
estética de Hartmann, também refutada em seus aspectos idealistas. Vale citar:
O idealismo de Hartmann que apesar de todos seus esforços objetivistas
está em última instância determinado por Kant confunde frequentemente
suas corretas observações, interpretadas, teoricamente de um modo muito
sensato. A confusão se produz sobretudo por negar a reconhecer na audição
musical ou na visão arquitetônica uma síntese sensível das diversas
percepções sensíveis imediatas. Com isso o problema estético se desloca
para um terreno alheio à arte; assim ocorre, por exemplo, quando Hartmann,
continuando a exposição que citamos em segundo lugar, escreve que o todo
da obra arquitetônica é sem vida “onticamente real”, mas não visível
sensivelmente com um olhar. Esta última afirmação é sem dúvida verdadeira
de modo imediato, mas apesar disso a unidade estética de uma peça
arquitetônica não é de caráter visual. A composição consiste precisamente
que surjam para o contemplador em movimento aspectos, diversos, mas
sempre alusivos a algo que segue, dentro daquele todo, os quatro aspectos,
precisamente sua ininterrupta transição, em uma síntese sensível, em uma
vivência sensível do todo. [...] A arquitetura evoca vivências espaciais cuja
necessária sucessão, por causa de sua ininterrupta conservação na mudança,
é mais que uma mera sucessão de imagens espaciais soltas e independentes.
Hartmann subestima o caráter dialético da receptividade sensível [...]
(LUKÁCS, 1987, v. I, p. 628 [ed. esp. 1982, v. II, p. 364]).
Nessa passagem da
Estética
constata-se a mesma necessidade de tomar os
elementos “fecundos” do pensamento de Hartmann, refutando de maneira cabal as
tendências idealistas presentes em suas reflexões. A correta percepção de Hartmann
da não apreensão da totalidade da composição estética na imediatidade da recepção
não implica, para Lukács, a necessidade de supor a síntese da receptividade estética
em uma esfera além do próprio meio homogêneo em que se efetiva a recepção do pôr
artístico. A totalidade musical é apreendida como totalidade
a posteriori
no próprio
âmbito da escuta (meio homogêneo) e não enquanto síntese que transcende o campo
específico do meio estético em que se a percepção. A presença do idealismo
kantiano em Hartmann denunciada neste contexto está em compreender a síntese da
receptividade estética como ato do entendimento as categorias
a priori
do
pensamento , negando sua possibilidade na exata dimensão da sensibilidade onde
esta ocorre. A concepção de Hartmann remete pois à ideia de um “resumo meramente
representativo-intelectual” como uma atividade capaz de “substituir a nascente síntese
de base sensível” (LUKÁCS, 1987, v. I, p. 628 [ed. esp. 1982, v. II, p. 364]), constituída
por meio da “ininterrupta conservação na mudança”, ou seja, por meio do necessário
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processo de sucessão. Desse modo, conclui Lukács: “Hartmann subestima o caráter
dialético da receptividade sensível”.
A ausência de uma compreensão dialética dos processos e categorias é uma
constante em Hartmann. Pelo menos é o que acusa Lukács não apenas na
Estética
como também em
Para uma ontologia do ser social
. Para o pensador, magiar a obra
de Hartmann é entrecortá-la por apreensões efetivas e perspicazes dos elementos da
realidade e por contrapartidas que o levam a deformações dos aspectos mais
relevantes dessa mesma realidade. Por exemplo, em outro momento de sua estética,
ao tratar do papel da vida cotidiana na esfera da arte, Lukács observa em nota de
rodapé: “Nicolai Hartmann, que muita importância a esse momento da direção ou
orientação consciente, passa por alto [
übersieht
] as vinculações reais, e por isso
também as autênticas contraposições entre a vida cotidiana e a arte” (LUKÁCS, 1987,
II, p. 896 [ed. esp. 1982, 2, pp. 68-9). Por meio de uma demarcação similar a essa se
abre a crítica a Hartmann na
Ontologia
. A ontologia da vida cotidiana é o ponto de
partida da análise, porém Hartmann o toma de maneira acrítica desconsiderando
aqueles momentos da cotidianidade que desviam, ofuscam ou impossibilitam a correta
apreensão das bases efetivas da dinâmica da realidade. Esses momentos responsáveis
pelas deformações e desvios na apreensão do “ente enquanto ente” são em grande
medida determinações histórico-sociais do pensamento. A
intentio recta
18
proposta
por Hartmann negligencia, desse modo, a percepção das deformações que se
processam no exato contexto da vida cotidiana, em que as determinações históricas e
sociais tendem a encobrir e desvirtuar as bases efetivas dos processos reais do ser.
Em suma,
a
intentio recta
tal como concebida por Hartmann estaria, pois, inviabilizada
de efetuar a autêntica crítica da ontologia da vida cotidiana, por não tomar
em consideração as mediações sociais que constituem aspectos decisivos
para a formação das ideias e perspectivas assumidas pelos homens em
relação a si mesmo e ao mundo em que vivem (FORTES, 2013, p. 257).
Crítica à estratificação dos seres em Hartmann e a obsolescência da ontologia
do ser espiritual
18
Hartmann assim a define: “A atitude natural, dirigida ao objeto a
intentio recta
, por assim dizer, o
endereçamento para o que faz frente ao sujeito, se apresenta ou oferece a este, em suma, o dirigir-se
no sentido do mundo em que se vive e do que se é parte , esta atitude fundamental é a corrente em
nossa vida e segue sendo ao longo desta. É aquela mediante a qual nos orientamos no mundo, em
virtude da qual nos adaptamos com nosso conhecimento às exigências da vida cotidiana. Mas esta
atitude é abandonada na teoria do conhecimento, na gica e na psicologia, para torcê-la em uma
direção em sentido oblíquo a ela uma
intentio obliqua
” (HARTMANN, 1948, p. 42).
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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Curiosamente, Lukács acusa no pensador alemão os mesmos erros tão bem
criticados por ele na fenomenologia de Husserl, ao destacar como Hartmann termina
por “colocar entre parênteses” o caráter histórico social do ser quotidiano. A crítica
construída por Lukács tem como cerne matrizador de seus argumentos a ausência em
Hartmann do elemento da maior importância para o materialismo marxiano: a
historicidade.
Lukács observa como
os professores alemães se aferram à concepção de história de Ranke, de
raízes profundamente a-históricas, a qual lhes proporciona a possibilidade
de reconhecer a história como ciência, mas simultaneamente dar relevo a
todos os “valores” essenciais para eles na cultura, eximindo-os do processo
histórico e considerando-os “supra-históricos”. Essa orientação da filosofia
para longe da sociedade e da história e na direção de uma “teoria dos
valores”, independentemente de como esta se configure, cinde
ontologicamente o ser social unitário em, de um lado, fatos empíricos,
tendências empíricas etc. e, de outro, valores “atemporais” (LUKÁCS, 2012,
p. 154).
Tal vinculação a Ranke e também a Rickert fica evidente em
Das Problem des
gestigen Seins
, em que abertamente se encontram expostas as concordâncias com as
teses destes autores (HARTMANN, 1949a, pp. 26-7). Vale ainda referir, o aspecto que
corrobora com o tema do idealismo hartmanniano, o caráter a-histórico dos traços
mais essenciais do ser espiritual, claramente estampados nas páginas desse mesmo
livro, em que contrapõe o caráter universal supra-histórico do espírito aos traços
históricos contingentes de seu desdobramento no tempo (HARTMANN, 1949a, pp. 42-
4). A dimensão dos valores morais, também analisada nesta obra, tem precisamente
esse caráter da atemporalidade.
Certamente Lukács considera Hartmann um “profundo dissecador das autênticas
teleologias”, mas no mesmo instante em que reconhece seus méritos, chama a atenção
para seus limites. Por exemplo, toda a correta consideração do trabalho como um dos
poucos lugares onde se manifesta uma teleologia autêntica não é levada às devidas
consequências pelo pensador alemão. Foge a Hartmann o problema genético das
formas do ser, aspecto que remonta diretamente ao problema do caráter histórico,
pois implica de modo direto a consideração da origem e dos desdobramentos dos
complexos do ser na natureza (orgânica e inorgânica) e do ser social. Por decorrência,
uma ontologia sem dialética, sem consideração da gênese dos complexos do ser, em
que o complexo trabalho é tratado sem sua devida medida de salto para o devir
homem do homem e do seu processo de socialização afastamento das barreiras
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naturais leva à completa confusão na formulação de uma ontologia do ser social.
Esse problema aparece em
Der Aufbau der realen Welt
, obra que amplia e
estabelece as bases da estratificação dos seres presentes em
Das Problem des
gestigen Seins
. Lukács chama a atenção para a ausência de um tratamento acerca da
gênese dos extratos do ser. Tudo isso se assenta sobre a total ausência da história em
seu pensamento: sua filosofia é implícita e explicitamente a-histórica. O rechaço de
toda consideração sobre a gênese da estratificação dos seres é plenamente consciente
em Hartmann. Em
Aufbau
, ele diz: “Todas as interpretações genéticas, partam de cima
ou de baixo, são construções especulativas. A ontologia não está obrigada de nenhuma
sorte a dar semelhante interpretação, assim como em geral não entra em suas
intenções resolver todos os enigmas do mundo” (LUKÁCS, 1949b, p. 511). O problema
está precisamente em pretender escrever uma ontologia sobre o fundamento da
estratificação dos seres sem fornecer de maneira clara uma argumentação que
evidencie a gênese desses processos de diferenciação. Para Lukács, “somente quando
tiverem sido aclarados pelo menos os contornos gerais de como e em que
circunstâncias pode ocorrer tal transição para algo qualitativamente novo, esses graus
do ser poderão adquirir plena força de persuasão ontológica” (LUKÁCS, 2012, p. 157).
O problema ganha dimensões bem maiores nas derivações metodológicas
presentes na análise empreendida por Hartmann. Segundo Lukács, Hartmann quer uma
ontologia, mas constrói seus argumentos de maneira fortemente contaminada por
considerações gnosiológicas. Uma importante comparação com Kant possibilita
compreender os pontos débeis da formulação hartmanniana a propósito destas
questões:
Isso satisfaria plenamente uma consideração gnosiológica. O modelo mais
importante foi proporcionado por Kant com a pergunta “como eles são
possíveis?”, em referência aos juízos sintéticos
a priori
. Ora, a ambiguidade
no próprio Kant é que ele, de forma inconsequente e inconfessada, levou
esse ponto de partida gnosiológico adiante na direção da ontologia; da
problemática originalmente gnosiológica originou-se a teoria da
fenomenalidade do mundo cognoscível, a teoria da antítese do
phenomenon
e do
noumenon
etc. Mas foi no neokantismo e no positivismo que essa
problemática adquiriu sua imanência propriamente gnosiológica, o que levou
a que todos os problemas ontológicos fossem descartados e à filosofia
coubesse o papel de justificar incondicionalmente a respectiva práxis
científica (como vimos em Carnap, incluindo todas as convenções da
respectiva atividade científica). Ora, na abordagem dos graus do ser por
Hartmann aflora o mesmo perigo, de cujas primeiras consequências ele
consegue escapar porque, ao tratar a pergunta básica “como eles são
possíveis?”, apoia-se mais em Kant do que nos sucessores deste. Pois está
claro que Hartmann simplesmente considera os graus do ser como dados e,
apoiado nisso, empreende a investigação do seu ser-assim. Ele se distingue
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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de Kant pelo fato de não partir de meras constelações do conhecimento, mas
daquelas dos tipos do ser, pelo fato de não tentar investigar a validade do
conhecer (fazendo um desvio inconfessável pelo ser), mas se dedica à análise
dos tipos do ser. Nesse ponto passa a evidenciar-se a ambivalência de seu
pensamento: ele tenta resolver questões importantes da ontologia com o
aparato intelectual da gnosiologia (LUKÁCS, 2012, p. 157).
As considerações de Lukács se tornam na sequência bem mais severas e atestam
um recuo de Hartmann para aquém dos equívocos metodológicos de seus
antecessores:
Hartmann se desvia do ontológico mais fortemente do que os representantes
dos métodos anteriores que ele com razão considerou ultrapassados. Pois
quando na teologia Deus cria o ser humano, quando na antiga atomística o
movimento dos átomos produz os objetos materiais, trata-se, nos dois casos
no plano puramente metodológico, abstraindo de qualquer correção efetiva
, de que um ente, de alguma maneira, produz outra forma do ser, ao passo
que, em Hartmann, os tipos de ser são vistos pura e simplesmente como
datidade que de modo enigmático são exatamente como são. Para que,
nesse ponto, surja um conhecimento ontológico autêntico do ente, está claro
que, para a ontologia, única e exclusivamente a gênese real é capaz de
constituir o método pelo qual se pode compreender o ser-aí e o ser-assim, o
ser-propriamente-assim, de um tipo de ser. Naturalmente, na natureza
inorgânica a pergunta pela gênese pode ser levantada em relação à
estrutura e à dinâmica específicas de determinadas formas (estruturas
dinâmicas); em relação à sua totalidade, a pergunta é desprovida de sentido
(LUKÁCS, 2012, p. 158).
Decorre daí novo ataque de Lukács aos limites da
intentio recta
postulada por
Hartmann: esta se restringe à consideração da datidade imediata. A
intentio recta
em
Hartmann tem, portanto, o “defeito” de tomar o
Sosein
como algo dado em si mesmo,
sem interpelar sobre sua origem. Fixa-se exclusivamente na análise do
Sosein
de forma
que esse passa a funcionar no interior de suas reflexões como o
fenômeno
kantiano,
abandonando por completo a necessária consideração do processo genético das
formas do ser, que assumem, dada sua completa desconsideração, a feição do
noumenon
, ou seja, a parte não apreensível do ser, essencialmente irracional no
sentido daquilo que se põe para além do que pode ser abarcado pela racionalidade.
Essas críticas estão encadeadas, de modo que o defeito central de sua ontologia
a-historicidade leva a uma cadeia de derivações equivocadas, conduzindo seu
pensamento a uma completa imprecisão na construção de uma ontologia do ser social.
Para Lukács, “só a partir desse ponto se torna compreensível porque a ontologia do
ser social de Hartmann se encontra tão abaixo do nível de sua ontologia da natureza.
Nem mesmo se pode dizer que ele de fato tenha uma real ontologia do ser social”
(LUKÁCS, 2012, p. 159). A inexistência de uma ontologia do ser social é retratada por
meio de palavras que expressam a cabal refutação do livro
Das Problem des gestigen
Seins
.
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Naturalmente, é impossível para um homem talentoso como ele escrever um
livro volumoso que não contenha também considerações singulares corretas
e certeiras. Neste ponto, no entanto, o que importa é exclusivamente qual a
contribuição de sua obra para a elucidação da ontologia do ser social. E a
única resposta para isso é: nada além de gerar confusão sobre as questões
fundamentais. Quando Hartmann, por exemplo, oferece uma visão
panorâmica sobre o conteúdo por áreas, surge uma enumeração solta de
pormenores, à qual não cometemos nenhuma injustiça por caracterizá-la
como mistura de alhos com bugalhos (LUKÁCS, 2012, p. 162).
A evidente dureza dessas palavras atinge no âmago os pilares da construção
ontológica de Hartmann. Quanto à quadriestratificação dos seres postulada por
Hartmann, nosso autor observa a autonomização de esferas secundárias do ser social.
A raiz de tais problemas se encontra, em parte, no caráter professoral da filosofia de
Hartmann. A justificação da quadriestratificação, isto é, inorgânica, orgânica para os
seres da natureza e, espiritual e psíquica para o humano, apoia-se diretamente no
argumento da divisão acadêmica das ciências do homem. Contra essa argumentação
Lukács assevera:
A concepção de que o ser psíquico do ser humano compõe uma esfera do
ser tão autônoma quanto a do ser orgânico ou a do ser social brota
diretamente da postura de não tomar conhecimento da origem. Apelando
para a ciência, está claro que, segundo os resultados da antropologia, da
etnografia etc., o ser humano pôde desenvolver vida psíquica
simultaneamente com sua socialidade: o melhor da ciência moderna
confirmou de modo brilhante a profunda intuição de Aristóteles (LUKÁCS,
2012, p. 159).
Em relação às críticas feitas por Lukács não grandes discordâncias ou objeções
por parte de seus comentadores. No entanto, nenhum deles enfatiza a explícita
denúncia lukácsiana dos limites da
intentio recta
, que no quadro dessas críticas ganha
dimensões passíveis de estabelecer uma significativa diferença entre a propositura de
Lukács do “direto endereçamento ao ser” vislumbrada na obra de Karl Marx, e a
propositura hartmanniana da ontologia como a investigação do ente enquanto ente”.
Por trás de tal diferença se encontra as bases ontológicas do conhecimento que o
pensador húngaro escava nos textos marxianos, nos quais, segundo ele, se estabelece
um correto e consciente método de investigação das coisas enquanto coisas.
19
Acerca do método em Hartmann, Lukács se pronuncia:
No método de trabalho de Hartmann, é visível o senso claro para o
tertium
,
embora nem ele tenha uma imagem nitidamente consciente do novo método.
Alguns de seus pronunciamentos parecem ter afinidade com o atomismo, a
saber, onde ele valor a que a construção ontológica da realidade proceda
de baixo para cima. Neles é dita uma verdade significativa, que com certeza
19
Tratei da determinação lukácsiana do procedimento investigativo de Marx em meu livro
As novas vias
da ontologia em György Lukács
(Cf. FORTES, 2013).
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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se aplica aos grandes tipos dos modos de ser: o ser orgânico está baseado
na existência da natureza inorgânica; o ser social possui ambos como seu
pressuposto incontornável. Esse é, porém, apenas o método da transição
ontológica de um modo de ser para outro, um complexo de problemas com
o qual Hartmann pouco se ocupou, apesar dessa concepção geral acertada
(LUKÁCS, 2012, pp. 147-8).
Der Aufbau der realen Welt
proximidade ou sutis diferenças?
A esse propósito e ainda em relação a
Der Aufbau der realen Welt
, devemos
observar que à primeira vista algumas das teses ali desenvolvidas aparentam grande
semelhança com as formulações feitas por Lukács sobre as inter-relações existentes
entre as esferas do ser inorgânico, orgânico e social. A atmosfera das teses
hartmannianas aparece nas considerações efetuadas por Lukács sobre as interações e
inter-relações existentes entre as três formas do ser inorgânico, orgânico e social
que guardam forte proximidade com os “axiomas da estratificação dos seres”,
desenvolvidos pelo pensador alemão. Conforme já mencionamos, Lukács adverte que
a correta compreensão da ontologia do ser social pressupõe a consideração da
interação entre os vários modos do ser, o que significa dizer que a ontologia do ser
social pressupõe a explicitação de uma ontologia geral:
A ontologia geral ou, em termos mais concretos, a ontologia da natureza
inorgânica como fundamento de todo existente é geral pela seguinte razão:
porque não pode haver qualquer existente que não esteja de algum modo
ontologicamente fundado na natureza inorgânica. Na vida aparecem novas
categorias, mas estas podem operar com eficácia ontológica somente sobre
a base das categorias gerais, em interação com elas. E as novas categorias
do ser social relacionam-se do mesmo modo com as categorias da natureza
orgânica e inorgânica. A questão marxiana sobre a essência e a constituição
do ser social pode ser formulada racionalmente com base numa
fundamentação assim estratificada. A indagação acerca da especificidade do
ser social contém a confirmação da unidade geral de todo ser e
simultaneamente o afloramento de suas próprias determinidades específicas
(LUKÁCS, 2012, p. 27).
As teses de Hartmann, consideradas em seus aspectos mais imediatos, possuem
forte proximidade com as determinações aqui presentes. Basta citar duas leis dos
axiomas da estratificação dos seres por ele explicitadas, para demonstrar a
similaridade das determinações desenvolvidas por Lukács:
2. As categorias de um extrato inferior constituem o fundamento ontológico
do superior e são indiferentes em relação a este. É certo que toleram a
supraconfiguração e supraconstrução; mas não as fundamentam. O extrato
ontológico superior não pode existir sem o inferior; mas este pode ser sem
aquele [...].
4. O
novum
do extrato categorial superior é por completo “livre” frente ao
inferior. Apesar de toda sua dependência, afirma sua autonomia. A estrutura
do mais alto, assim superposto, não tem espaço livre algum no inferior; mas
se põe acima dele (HARTMANN, 1978, pp. 183-4).
Ressalvado aqui a demarcação de Hartmann do “por completo ‘livre’”, conteúdos
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bem próximos podem ser encontrados em Lukács. Para ele, as esferas inferiores
possuem o caráter de uma base necessária sobre a qual se desdobra o processo de
reprodução dos seres imediatamente superiores. Base sem a qual as esferas mais
elevadas do ser jamais chegariam a se realizar. Todavia, a determinação dos complexos
inferiores não é o elemento mais decisivo para as esferas superiores, na medida em
que este vem sempre acompanhado de uma série de outras categorias e complexos
que, além de constituírem a especificidade da nova forma de ser, determinam de modo
preponderante a diretriz do seu processo de reprodução. A tendência evolutiva
universal e comum a todas as esferas do ser é, portanto, marcada pela subsunção das
propriedades e atributos dos graus inferiores àqueles mais complexos e evoluídos. O
que significa dizer que as categorias dos graus inferiores, quando retornam nos graus
superiores, são reprocessadas e alçadas a um novo patamar, configurando na nova
escala do ser um elemento articulado no interior de um complexo.
Comparados aos termos ditados por Hartmann, as elaborações de Lukács em
torno das mesmas questões aparentam uma harmonia indiferenciável. A similitude dos
lineamentos mais gerais das teses de ambos os autores leva, por exemplo, Guido
Oldrini a afirmar a “forte influência de Hartmann” (OLDRINI, 2009, p. 315) nas
elaborações de Lukács sobre o tema. No entanto, tal similaridade se desfaz, ou pelo
menos ganha contornos mais adequados, quando a atenção é dirigida para a raiz da
fundamentação apresentada no texto lukácsiano. Nesse sentido, uma vez posta a
proximidade, faz-se necessário esclarecer a ressalva.
Em primeiro lugar, tomando em consideração as formulações feitas pelo
pensador húngaro no capítulo
A reprodução
, a afirmação de categorias puras em um
movimento completamente livre das formas anteriores do ser, seria severamente
refutada por Lukács. Não seria aceitável a afirmação de que o extrato superior é por
completo livre frente ao inferior”. Lukács demonstra ser a gênese da liberdade do
homem algo somente realizável em sua relação dialética com a necessidade natural,
portanto não é algo que se põe acima dele, mas que com sua especificidade categorial
em uma relação indissociável com os estratos mais baixos é capaz de produzir o novo
na realidade. Lembremos, por exemplo, da relação entre liberdade e necessidade tal
como postulada no capítulo
O trabalho
, em que Hegel aparece como interlocutor
decisivo. Basta pensar também na categoria valor (economia), também essa uma
“categoria pura” do ser social, mas que somente pode existir em sua relação
indissociável com o valor-de-uso, ou seja, com uma mercadoria efetivamente existente.
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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A liberdade do estrato superior não é nesse sentido “completamente livre”, mas funda
os pressupostos de sua atividade em uma relação dialética constituída por
determinações decisivas oriundas de campos diferentes: processos naturais e humanos
sociais. Em Hartmann, vale lembrar, o ser psíquico por mais que dependa dos estratos
anteriores, desdobra-se por meios próprios e alheios às outras formas.
Em segundo lugar, chama a atenção o fato de Lukács não citar Hartmann em
nenhum momento de sua exposição da questão. Isso poderia suscitar comentários
condenatórios, por parte de alguns, por Lukács não ter dado os devidos créditos às
conquistas do pensador alemão. No entanto, deve-se observar que quando nosso
autor trata dos problemas relativos à interdependência entre os estratos quase sempre
aparecem passagens da obra de Marx como elementos de sua argumentação. Nas
interações entre os estratos decisivos, para Lukács, são os princípios ontológicos
fundamentais
momento preponderante
e
prioridade ontológica
, esses se distanciam
de maneira evidente das ideias de Hartmann. Bastaria lembrar aqui a denúncia feita
por Lukács em sua análise da filosofia de Hartmann em que demarca a inexistência das
categorias “sobreordenação e subordinação” (LUKÁCS, 2012, p. 162), categorias
essas diretamente associadas ao problema das interações entre estratos e à
determinação da prioridade ontológica no interior de um complexo. Não é, portanto,
a influência de Hartmann a base das argumentações de Lukács, mas sim Marx, por
meio de quem o autor sustenta suas principais teses sobre a interação entre as formas
do ser. Esse aspecto nos permite inclusive destacar diferenças importantes entre a
concepção lukácsiana de complexo, resguardando sua discrepância de raiz com a
noção de
Gefüge
(estrutura, formação, composição) hartmanniana. Em Hartmann não
se encontra a ideia da categoria que opera como momento articulador preponderante
no interior do complexo. É precisamente o momento preponderante que determina a
especificidade de cada forma de ser frente às demais, na medida em que ele
sobredetermina e coordena por cima a incidência das categorias dos estratos inferiores
nos estratos mais complexos do ser.
20
Precisamente, por isso, a base do raciocínio de
Lukács não pode ser Hartmann, basta pensar nas determinações feitas pelo autor
20
Quando Lukács procura elucidar sua compreensão de complexo assim como do momento
preponderante ele recorre à análise marxiana das categorias produção, consumo, distribuição e troca,
em que Marx as determina como “partes de uma totalidade, diferenciações no interior de uma unidade”
(MARX, 1953, p. 20), atribuindo à produção o papel de elo tônico na articulação categorial do complexo
(Cf. LUKÁCS, 2012, pp. 332-8).
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acerca do problema dos desdobramentos do ser social e de seu processo de
desenvolvimento que tem por base a ideia do “afastamento das barreiras naturais”
escavada na obra marxiana.
Em Lukács não se trata de estabelecer axiomas perfilando os lineamentos gerais
da inter-relação entre os estratos do ser, mas analisar as conexões concretas tais como
elas se põem na realidade. Por exemplo, ao tratar da questão, o autor analisa
atividades efetivas postas na cotidianidade, tais como a sexualidade, a nutrição, em
que procura demonstrar os liames da unidade constituída por determinações oriundas
de complexos díspares. Nesse sentido, é a análise de cada complexo em sua
especificidade e na composição indissociável desses complexos entre si; em outras
palavras, a totalidade é pensada como um complexo de complexos.
21
Basta, portanto,
referir que, no âmbito da reprodução do ser social na sociedade, o problema é sempre
considerado e analisado por meio das concretas interações históricas e sociais do
homem com a natureza. Em suma, tal procedimento analítico marca uma distância
muito grande ao que é empreendido por Hartmann. Não se trata, como pretende
Hartmann, de elaborar uma teoria das categorias, mas por meio da análise imanente
de complexos concretos estabelecer as relações de reflexão entre as categorias e entre
complexos, determinando os momentos preponderantes e os elementos subordinados
presentes no interior dessas interações.
Refutações a
Möglichkeit und Wirklichkeit
Acerca dos problemas identificados na teoria da modalidade de Hartmann
traçamos comentários introdutórios em observações anteriores. Nas páginas da
Ontologia
, conforme dissemos, o problema é desdobrado preenchendo as lacunas das
considerações presentes em
Versuche
. Convém expor aqui em linhas gerais os
argumentos refutatórios de Lukács.
Hartmann, em seu livro
Möglichkeit und Wirklichkeit
, retoma a quase “esquecida
tese megárica da possibilidade, segundo a qual qualquer possibilidade mantida na
condição de não efetivada em fato, deve ser excluída permanentemente do campo das
reais possibilidades. Contra Hartmann, Lukács é taxativo ao retomar Aristóteles,
lembrando seu famoso exemplo no qual um arquiteto ainda que sem condições de
21
Obviamente Lukács toma tal expressão diretamente da obra de Hartmann, a qual ele considera ser
uma ontologia de complexos. No entanto, aqui pretendemos estabelecer as diferenças entre formulações
genericamente similares.
O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de Nicolai Hartmann
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empreender esta atividade permanece potencialmente um arquiteto. As capacidades
adquiridas, ainda que inativas por um longo período de tempo, permanecem como
possibilidades reais e podem potencialmente ser traduzidas em ações uma vez
repostas as circunstâncias favoráveis.
A construção hartmanniana constitui no fundo um conjunto contraditório em que
fica claramente estampada a desarticulação ou a ausência de coerência entre a
determinação de cada categoria. Segundo Lukács,
tal aspecto fica evidente no fato de repetir literalmente, na questão da
necessidade sem o modelo megárico , a determinação da possibilidade:
“o que é realmente efetivo também é realmente necessário (efetividade real
positiva implica necessidade real); o que é realmente possível também é
realmente necessário (possibilidade real positiva implica necessidade real)”
(LUKÁCS, 2012, p. 175).
A artificialidade do tratamento sistemático aumenta mais ainda quando Hartmann
introduz em suas análises a categoria contingência. Quanto a esta categoria Hartmann
se atém aos limites de Hegel, reproduzindo quase literalmente as considerações desse
último acerca da referida categoria. As reflexões de Hegel foram sem dúvida, observa
Lukács, um avanço em relação a seus predecessores, porém frente às novas evidências
e exigências postas pelos avanços da ciência mostram sua insuficiência. Retomando
Hegel, Hartmann afirma: a contingência é “simultaneamente algo possível e, não
obstante, por nada possibilitado, simultaneamente determinado e, no entanto, “por
nada” determinado” (HARTMANN, 1938, p. 219). Contra tal elaboração, Lukács
argumenta “que o casual o consiste na junção de determinidade e não
determinidade em termos gerais, mas da heterogeneidade dos processos que incidem
de modo real uns sobre os outros na realidade” (LUKÁCS, 2012, pp. 176-7). Ficam
destacados, desse modo, os limites das determinações hartmanniana, marcada pelo
procedimento que se rende à dedução eminentemente lógica da categoria da
contingência, ao deduzi-la como a unidade de momentos contraditórios.
Toda a articulação entre as categorias modais em Hartmann constitui, segundo
Lukács, uma “construção penosa e artificial”. Tal como nos
Versuche
,
Lukács observa
uma perda da objetividade nessas construções, o abandono da
recta
, intenção para o
objeto em prol de uma elaboração majoritariamente sistemática. A anterior
demarcação da infidelidade com seu próprio método é reposta nas páginas da
Ontologia
: A contraposição correta de
intentio recta
e
intentio obliqua
feita por
Hartmann poderia aclarar muita coisa nesse ponto, desde que ele prosseguisse, de
maneira consequente, em seu ponto de partida correto” (LUKÁCS, 2012, p. 176).
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Em contraposição ao procedimento de Hartmann, Lukács insiste em que a
interação autêntica das categorias modais deve ser determinada pela investigação de
processos concretos. Contra as determinações da contingência, o pensador húngaro
contrapõe suas próprias considerações. A investigação da peculiaridade da interação
do ser social com seres da natureza contribui de maneira decisiva para a correta
compreensão do problema. Conforme analisei em outro momento, para Lukács:
O ser social se constitui pela unidade de complexos heterogêneos, no qual
estão envolvidas tanto determinações de ordem estritamente social quanto
aquelas oriundas da constituição biológica do organismo humano. Essas
duas esferas, embora constituam uma unidade indissociável sob a qual se
assenta o processo reprodutivo do indivíduo, em alguns aspectos essenciais
operam em radical indiferença uma em relação à outra. Basta pensar na
morte, momento em que a determinação biogica ou seja, elementos da
necessidade da ordem específica do ser orgânico irrompe na esfera
imediatamente superior social sob a forma da fatalidade, quebrando toda
e qualquer continuidade dos processos de cunho essencialmente humano-
social. O que na dimensão biológica constitui a sucessão de nexos causais
que levam à falência orgânica, na dimensão social da vida humana aparece
como contingência, uma vez que não se justifica pela ordem de sucessão de
nexos próprios a essa esfera do ser (FORTES, 2013, p. 64).
O exemplo utilizado por Lukács neste contexto é bastante elucidativo:
Assim sendo, ninguém contestará, por exemplo, que a enfermidade e a morte
de Lênin estavam totalmente determinadas em termos biológicos, sendo que,
nas cadeias de determinação da Revolução Russa, elas necessariamente
aparecem como acontecimento não derivável” (LUKÁCS, 2012, p. 176).
A crítica não se atém às deformações sistemáticas da categoria possibilidade e
as consequências na determinação da categoria necessidade e contingência. Lukács
também observa a inadequação de tomar a negação como categoria ontológica.
É preciso enfatizar repetidamente que a negação de fato desempenha um
papel importante no conhecimento, mas nada tem a ver com o ser-em-si;
entretanto, para todos os entes singulares o resultado disso seria que o ser
de cada um é um ser-outro em relação ao outro, o que, no entanto
ontologicamente , nada tem a ver com negação (LUKÁCS, 2012, p. 170).
A crítica empreendida por Lukács é rica em detalhes e chega esquadrinhar de
forma mais depurada os defeitos das elaborações de Hartmann. Outros pontos capitais
também são apontados. Porém não cabe dentre nossos propósitos expor todos os
detalhes das objeções. Mais relevante é destacar que os pontos refutados por Lukács,
independentemente de corretos ou equivocados,
22
demarcam a impugnação cabal
22
Wolfgang Harich (HARICH, 2004, p. 32) e Werner Jung (JUNG, 2007, pp. 120-4) insistem em
denunciar a incompreensão lukácsiana das teses de Hartmann. Para ambos, sem que o pensador
húngaro se conta do fato, a teoria da possibilidade de Hartmann está muito mais próxima de suas
considerações do que imagina Lukács. Esta é sem dúvida uma questão importante, porém para os
propósitos específicos deste artigo não possui grande relevância, pois cabe aqui compreender o modo
como leu Lukács as obras do pensador alemão no intuito de determinar as possíveis influências em
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dessa obra. Nos textos tardios de Lukács, as referências a essa obra funcionam sempre
como exemplos de postulações a serem refutadas. Ficam resguardadas apenas, é
necessário lembrar, a teoria da modalidade presente em
Philosophie der Natur
, em
que uma distinta e autêntica teoria modal é desenvolvida sobre a base de uma correta
investigação das categorias da natureza.
A grandeza de “Philosophie der Natur”
É em
Philosophie der Natur
que se encontra uma autêntica compreensão da
categoria possibilidade, expressa sobretudo nas considerações tecidas por Hartmann
em torno da labilidade dos seres orgânicos. Segundo Lukács, “Hartmann avança na
descrição correta desse fenômeno a ponto de falar inclusive da multipotencialidade
dos organismos e designa isso expressamente de ‘edifício modal da ontogênese’”
(LUKÁCS, 2012, p. 173). Nos organismos vivos, a labilidade
assegura a adaptação, a capacidade de reconfiguração e, desse modo, a
preservação e até a evolução das espécies. Mas o que significa aqui, em
termos ontológicos, labilidade? Decerto nada além de um grupo de
qualidades (possibilidades parciais) no processo de transformação de uma
efetividade em outra. Consumado o processo concreto de transformação,
essa possibilidade, esse complexo de possibilidades, terá se transformado
numa nova efetividade, deixando de ser nesse tocante uma possibilidade.
Naturalmente, quando a labilidade do processo dinâmico é conservada no
organismo, continuam a existir determinadas possibilidades de uma mudança
renovada; essas, porém, serão qualidades de um novo ente-aí real e serão
concomitantemente possibilidades apenas em relação a um futuro incerto
(LUKÁCS, 2012, p. 173).
Ademais, ainda em relação à teoria modal presente nessa obra, uma leitura atenta
nos permite observar o equívoco de Lukács ao afirmar a inexistência de uma
abordagem sobre a legalidade estatística em Hartmann. Ao destacar tal carência no
pensamento de Hartmann, Lukács toma em consideração apenas o exposto em
Möglichkeit und Wirklichkeit
, desconsiderando o fato de que em sua obra derradeira
23
não apenas o pensador alemão aborda o tema como tece considerações muito
próximas às de Lukács, ao tomar a necessidade como síntese de determinações causais
multiversas. A desatenção de Lukács para esse fato justifica a ausência de qualquer
referência quando o autor trata do problema nos
Prolegômenos
.
Em relação a esta obra, as considerações de Lukács são sempre positivas. Na
primeira seção de sua análise do pensamento de Hartmann, as considerações elogiosas
suas elaborações da maturidade.
23
Philosophie der Natur
foi editada em 1950, enquanto
Teleologisches Denken
, apesar de ter sido
lançada em 1951 (um ano após a morte do autor), foi escrita em 1944.
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são fundamentalmente voltadas para essa obra. Ali figuram abertamente o entusiasmo
de Lukács pelas noções de estrutura dinâmica, pelas novas possibilidades abertas na
compreensão de categorias como substância, devir, persistência etc. Em suma, todas
as considerações de Hartmann nessa obra demonstram um preciso senso de realidade,
suas análises têm por base a investigação efetiva das formas de ser naturais.
Precisamente, por isso Lukács insiste em apontar os desvios das obras anteriores em
relação ao correto método de investigação da
intentio recta
, que toma o ente
enquanto ente” e procura a partir dele destacar e estabelecer as devidas articulações
categoriais.
Lukács, ao discutir os problemas concernentes à ciência moderna em várias
ocasiões, refere de maneira direta ou indireta na maior parte das vezes elementos
importantes das reflexões de Hartmann. Cremos que esse recurso se deve
fundamentalmente à necessidade de atualização dos problemas filosóficos e científicos
de seu tempo, e nem tanto, como sugerem alguns comentadores, como base de
sustentação para a construção de sua ontologia.
A única ressalva feita à
Philosophie der Natur
se deve fundamentalmente à
interferência de formulações decorrentes de outras obras sobre a concepção de espaço
e tempo, na qual talvez se mostre como o principal problema o fato de Hartmann
tomá-las como categorias especiais do estrato do ser inorgânico e orgânico. Conforme
mencionamos, elas não são determinadas como categorias fundamentais em função
da subdivisão problemática das esferas do ser: real e ideal. Lukács não desenvolve
longamente as observações que aqui fazemos, elas, porém estão também presentes
no conjunto de sua crítica, em particular na discussão feita sobre a contestada
estratificação dos seres de Hartmann (Cf. LUKÁCS, 2012, pp. 160-1). A estratificação
sugerida por Hartmann, bem como a forma problemática pela qual o autor a sustenta,
força-o a todo instante a especificar distinções da dimensão do espaço e do tempo (a
espacialidade e a temporalidade no campo da intuição) em cada um dos estratos,
ocasionando “idas e vindas” em todas as suas formulações. Para ser mais específico:
é preciso falar da forma de efetivação do tempo e do espaço nos seres da natureza,
no estrato espiritual, no estrato psíquico.
Confluência e inconciliabilidade com
Teleologisches Denken
A precisa separação entre teleologia e causalidade, assim como a determinação
fundamental da teleologia como uma categoria especificamente humana é algo que
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Lukács toma diretamente do pensamento de Hartmann. É também certo que Lukács
usa as postulações de
Teleologisches Denken
em sua crítica às teodiceias do século
XVII. Essa obra, em geral, recebe por parte de Lukács considerações elogiosas, e, em
diversos contextos de sua
Ontologia
, é feita referência às conquistas e correções ali
presentes.
Para os nossos propósitos vale chamar a atenção para as significativas remissões
feitas por Lukács no importante capítulo O trabalho de
Para uma ontologia do ser
social
. Alguns estudiosos favoráveis ou contrários a Lukács insistem na presença
decisiva de Hartmann na fundamentação da decomposição analítica feita do complexo
trabalho. Contra tais interpretações é essencial observar que a fundamentação das
determinações ali presentes não provém tanto de Hartmann. Apesar de ser possível
encontrar em sua obra a precisa determinação do lugar da teleologia na atividade
humana, o autor de
Teleologisches Denken
não compreende o trabalho como a gênese
e modelo de toda ação humana, conforme já mencionamos. Não, há nesse sentido, pôr
teleológico em Hartmann. Contra a identificação das teses do trabalho de Lukács com
as considerações de Hartmann acerca da teleologia, basta lembrar que as principais
determinações do complexo trabalho se encontram desenvolvidas em 1938-9,
momento em que Lukács redige
O jovem Hegel
portanto muito antes de seu contato
com a obra de Hartmann. A semelhança do capítulo da
Ontologia
com os temas ali
desenvolvidos é evidente. Praticamente são reproduzidas todas as críticas que o autor
faz a Kant e no geral as mesmas determinações feitas ali são retomadas na primeira
seção do capítulo. Hegel, talvez em determinados aspectos até muito mais do que
Marx,
24
tem papel fundamental em suas demonstrações. Lukács chega a atestar
claramente que “essa nova concepção de prática consiste que para Hegel, o trabalho,
a atividade econômica do homem, constitui, por assim dizer, a
forma originária da
prática humana
(LUKÁCS, 1967, p. 435).
25
Esta ideia se mantém viva em sua última
obra, que nessa, acompanhada da crítica aos excessos existentes no pensamento
de Hegel que transfere a operatividade da teleologia para além da esfera específica
do trabalho. Precisamente, nesse ponto, aparece sim a presença de Hartmann, como
grande crítico às teodiceias do século XVII.
24
Tratei desse problema na conclusão de minha dissertação de mestrado (Cf. FORTES, 2001, pp. 172-
91).
25
“...
da für Hegel die Arbeit, die ökonomische Tätigkeit des Menschen gewissermaen die Urform des
menschlichen Praxis bildet.
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Na sequência das reflexões de Lukács a propósito do trabalho como modelo de
toda prática social, em que trata das categorias dever-ser e valor, não se pode deixar
de observar na construção do texto a semelhança dos desdobramentos temáticos com
os caminhos trilhados por Hartmann em
Teleologisches Denken
. Esse último, após
tratar das determinações mais gerais acerca da teleologia, suas categorias, subdivisões
no interior do complexo, etc. efetua a crítica das concepções teleológicas metafísicas
e logo em seguida aborda o problema da objetividade dos valores, em particular, dos
valores morais. Resguardada a necessidade do desenvolvimento específico da análise
das categorias do trabalho é como se o autor da
Ontologia do ser social
apresentasse
uma refutação direta às teses de Hartmann. Toda a reflexão desenvolvida se põe
frontalmente contra a concepção da objetividade do valor tal postulada por Hartmann.
Cabe aqui expor em linhas gerais os aspectos centrais dessa profunda divergência.
Iniciemos por Hartmann. Diretamente em seu escrito, a tese subjetivista do valor
é refutada. Tal determinação aparece em Hartmann vinculada à negação de que os
valores tenham qualquer tipo de relação com a atividade final. Para o autor de
Teleologisches Denken
existe um “suposto tacitamente aceito” que vincula o valor ao
finalismo da atividade humana. “Isto significaria que o valioso somente poderia surgir
ali, onde se faz dos valores fins e se selecionam os meios para realizá-los” (HARTMANN
,
1951, p. 113). Contra tal vinculação Hartmann argumenta:
Este suposto não está justificado por nada. Nem sequer os valores morais se
realizam no homem porque se tenha a eles como fins da ação, senão
comumente porque se aspira a realizar outros valores (valores de situação).
Na ação moral não é o valor objeto da intenção idêntico ao valor da intenção
mesma. Mas por baixo dos valores morais, na ampla região dos valores de
bens, situações e vitais, tem, todavia, uma independência de muito mais
alcance em relação às aspirações. No mundo real, se realizam sempre e sem
eleição nenhuma valores e contravalores por obra do simples curso dos
acontecimentos, sem a atividade final, seguindo uma mera necessidade cega,
ou seja, por obra da contingência (ou seja, ao que se atinge) (HARTMANN
,
1951, p. 113).
O valor se coloca desse modo para além das ações humanas, não é o resultado
de atividades finalistas dos homens. Essas afirmações, muito embora se assentem
sobretudo no debate dos valores morais são válidas também para os processos
naturais em geral, ou seja, também no âmbito da natureza determinados
acontecimentos (necessidade cega) geram valores que independem completamente
das finalidades humanas. Exatamente por isso, no mesmo contexto, fazendo a distinção
entre “valor” e “sentido”, o autor acrescenta: “valores podem muito bem existir
também em si, e o valioso pode existir no mundo real sem haver qualquer referência
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a um sujeito, enquanto que o sentido somente pode existir para alguém” (HARTMANN
,
1951, p. 112). Desse modo, embora constituam valores, não guardam qualquer
relação com a teleologia. Os homens são capazes de apreender os valores que existem
em si mesmos
a priori
, mas não necessariamente são os partícipes indispensáveis de
sua constituição ou de sua determinação, ainda que possam por meio de suas ações
produzir coisas que possuem valor.
As determinações de Hartmann aqui expostas constituem apenas o início de suas
elaborações e argumentos em torno no tema. As postulações que decorrem dessa
base inicial são mais complexas e densas. No entanto, precisamente nesse ponto
aparecem as diferenças de fundo com as considerações de Lukács. Em Lukács, é
precisamente o contrário da tese de Hartmann o que se observa. A categoria valor é
específica do ser social, não podendo ser de modo algum encontrada na natureza.
Para o autor de
Para uma ontologia do ser social
, na forma originária vinculada à
prática laborativa humana, a objetividade do valor de uso envolve, necessariamente, a
relação das propriedades objetivas do elemento natural com as necessidades sociais.
Pela dimensão relacional que por esta via se instaura, algo pode possuir valor sempre
em referência a um pôr teleológico, ou em outras palavras, sempre em referência a
uma prática humana: “de fato a utilidade somente em alusão a um pôr teleológico
pode determinar o modo de ser de um objeto qualquer, somente no interior de tal
relação faz parte da essência desse último apresentar-se como um existente que é útil
ou não útil” (LUCKÁCS, 2013, p. 81). O valor não é uma propriedade natural do objeto,
mas essa propriedade em sua relação ao pôr teleológico. É a dimensão objetivante da
ação teleológica do homem que faz com que no objeto possa ser reconhecida a
existência de um valor. Em suma, o valor aparece determinado em Lukács como uma
síntese dialética entre subjetividade e objetividade.
Mesmo nos casos em que os objetos não são produtos diretos da atividade
humana, a afirmação do valor-de-uso como algo que se define como uma utilidade
sempre em referência a um pôr teleológico permanece válida, pois tais elementos
funcionam como base para a criação e realização dos produtos do trabalho, isto é, são
em grande medida matérias-primas sobre as quais incidem as ações dos homens. Tais
elementos naturais, nesta medida, também aparecem como valores, não na forma de
objetos que possuam valor em si mesmos, mas por meio da relação efetiva que esses
possuem com a atividade prática do homem. Para que as propriedades dos elementos
naturais ou os objetos da natureza possam constituir efetivamente valores, para passar
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a ato, é necessário que se apresentem em uma relação prática com os interesses e
com as necessidades sociais.
O raciocínio desenvolvido por Lukács demonstra a validade de sua tese o
apenas para os valores diretamente vinculados aos objetos naturais, ou àqueles
criados pelos homens, mas aponta sua validade para toda a axiologia, incluindo aí os
valores morais. Evidentemente, não há como desenvolver aqui as consequências
teóricas que cada um desses autores extrai dessas considerações axiológicas iniciais.
Decerto as bases distintas de seus postulados levam a resultados fundamentalmente
distintos. Tais diferenças e contraposições devem ser analisadas em um estudo a parte,
que considere não apenas as discrepâncias visíveis no confronto entre essas duas
obras, mas o conjunto das formulações de ambos os autores acerca do tema. Coube
aqui apenas destacar os caminhos distintos como forma de explicitar profundas
divergências do pensamento de Lukács com a obra de Hartmann
Teleologisches
Denken
, mesmo que estas divergências não tenham sido expressas de maneira clara
pelo pensador húngaro.
Considerações finais
As afirmações distintivas feitas acima o intencionam negar de maneira absoluta
a presença de Hartmann na ontologia de Lukács, mas determinar de forma mais precisa
o autêntico caráter dessa relação. Nesse sentido, não se pode negar que do debate
crítico com Hartmann, o pensador húngaro absorve determinações importantes,
principalmente, vale insistir nesse ponto, no que tange às suas considerações acerca
da filosofia da natureza. Quanto às outras obras, foi possível evidenciar uma crítica
que atinge de maneira profunda as bases do pensamento de Hartmann. Além disso,
pôde-se observar que críticas ásperas a Hartmann se encontravam presentes nos
materiais preparatórios da
Ontologia
, tal aspecto permite por em dúvida a influência
decisiva do pensador alemão como alguém imprescindível que abre os caminhos das
reflexões tardias de Lukács.
Pelas considerações aqui apresentadas, julgamos ter elementos suficientes para,
no mínimo, pôr em dúvida os exageros contidos na tese da fecunda aliança ou do
caráter indispensável da obra de Hartmann para a construção da ontologia de Lukács.
O que geralmente se nos comentadores é um tratamento parcial, no qual apenas
se enfatiza temas específicos, quase sempre os menos relevantes, negligenciando os
antagonismos entre os pensadores. O não tratamento a fundo dos problemas conduz,
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na maior parte dos casos, a apressadas aproximações das reflexões de ambos os
filósofos. Por esse motivo, optamos por transcrever longas passagens das
considerações lukácsianas em torno do pensamento de Hartmann, como forma de
trazer a luz conteúdos quase sempre negligenciados por seus comentadores.
Provavelmente, o caso mais exemplar dessa tendência pode ser identificado em Nicolas
Tertulian.
26
Sob esse autor em particular, vale insistir: Tertulian atenua as críticas de
Lukács, destacando de maneira suave e aquiescente apenas três das diversas críticas
27
endereçadas pelo pensador húngaro contra a obra ontológica de Hartmann, pondo de
lado pelo menos outras onze refutações de peso dirigidas contra seu pensamento. O
número exato das críticas não é importante, o fato relevante é estarem todas elas
articuladas entre si, sendo derivadas sequencialmente uma das outras, a partir da
demarcação da completa ausência na ontologia hartmanniana da categoria história. O
que se verifica em Lukács é uma crítica respeitosa, mas que desmonta teses cruciais
do pensamento de Nicolai Hartmann. Podemos dizer que pouca coisa dos três
primeiros livros (quatro se incluirmos aqui
Das Problem des geistigen Seins
) de sua
obra ontológica é deixada em pé, restando intactos apenas os livros
Philosophie der
Natur
e
Teleologisches Denken
(não em sua plenitude).
Tudo indica não haver a busca da fundamentação em Hartmann, mas a tendência
de, a partir da fundamentação já adquirida pela leitura das obras de Marx (e em menor
medida das conquistas da filosofia de Hegel), vislumbrar na obra hartmanniana aqueles
aspectos passíveis de contribuir para a explicitação e desenvolvimento de uma
autêntica ontologia. Essa tese encontra amparo no próprio Lukács, basta lembrar as
afirmações em torno do método das abstrações em Marx que encerram a primeira
seção do capítulo dedicado a Hartmann:
Marx foi o primeiro a formular, por volta de 1859, essas duas vias
metodológicas mutuamente complementares de apreensão da realidade com
referência ao ser social. O aspecto filosoficamente pioneiro nesse método
não foi levado adiante pelas ciências sociais e muito menos foi aplicado à
natureza depois de generalizado em termos universalmente ontológicos.
Com certeza, o método marxiano tampouco chegou ao conhecimento de
26
Não pretendemos com isso negar ou diminuir a importância de Nicolas Tertulian no resgate e difusão
do pensamento de György Lukács. Apenas compreendemos que nesse tocante seus comentários são
muito mais fonte de mal-entendidos do que uma efetiva compreensão das raízes ontológicas do
pensamento lukácsiano.
27
Vale especificar: a crítica de Lukács à “tese megárica da possibilidade”, “o problema do estatuto
ontológico das verdades matemáticas” associado à refutação do ser ideal (do apriorismo dos valores
morais) e, de uma maneira muito tópica sem extrair a consequências mais decisivas, a incapacidade de
Hartmann de compreender a “verdadeira especificidade da história” assim como das estruturas socais
(Cf. TERTULIAN, 2003, pp. 687-91).
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Hartmann. Tanto mais interessante e importante é constatar que suas
tentativas sérias de criar uma ontologia da natureza o levaram de ltiplas
maneiras às suas imediações, mesmo que isso nem sempre tenha ocorrido
com plena consciência. Longe de nós afirmar que, na ontologia de Hartmann,
esse método teria sido executado de modo sistematicamente concludente.
Porém, desde Marx, ele constitui o enfoque inicial para superar, por um
caminho novo, as inevitáveis antinomias das ontologias anteriores. E, mesmo
que sejamos obrigados a negar que Hartmann tenha tido plena consciência
de sua própria tentativa, não há a menor dúvida de que, como foi mostrado
aqui, seus instintos filosóficos e sua rejeição clara e consciente das
tendências falsas de seus contemporâneos o impeliram nessa direção. Muitas
de suas observações singulares mostram que, com bastante frequência, ele
vislumbrou com clareza momentos singulares, relações singulares,
consequências necessárias desse método (LUKÁCS, 2012, p. 149).
Duas importantes considerações ficam evidentes nessas palavras: primeiro, é o
método de investigação e de apreensão marxiano da realidade plenamente
desenvolvido que ilumina as “tentativas sérias” de Hartmann na criação de uma
ontologia da natureza. Segundo: se um método correto em Hartmann, esse se
efetiva sem plena consciência, é muito mais fruto da rejeição “das falsas tendências de
seus contemporâneos”. Mesmo assim, quanto às impostações falsas da atualidade,
segundo Lukács, a relação de Hartmann com elas o consistia em uma atitude de
pensar criticamente a fundo as impostações falsas da atualidade ou do desvelamento
histórico-social das fontes dessas tendências”, mas sua força estava muito mais em
“ignorá-las, não em decifrá-las” (LUKÁCS, 2012, p. 150). É sua imediação com o
método plenamente consciente em Marx o critério da correção de seus procedimentos.
Em suma: é Marx quem permite iluminar o pensamento de Hartmann e não o contrário
.
Vale citar, por fim, outra consideração esboçada por Lukács:
Uma crítica cuja intenção seja explicitar as limitações e a problemática da
ontologia hartmanniana de maneira justa, desenvolvendo a filosofia, deve
buscar um ponto de partida essencialmente imanente, isto é, que dê atenção
aos momentos nos quais se manifesta a inconsequência de Hartmann, aquela
estreiteza interna, que faz parar a meio caminho ou aimpele para uma
direção por princípio errada aquilo que por ele em termos bem genéricos
e muitas vezes apenas de modo abstrato foi intencionado de maneira
correta (LUKÁCS, 2012, p. 150).
Mesmo quando elogiosas, as ressalvas são duras e incisivas: as corretas
intenções de Hartmann somente estão presentes “em termos bem genéricos” e “de
modo abstrato”. A “estreiteza interna” de seu pensamento o impede de extrair as
consequências corretas presentes de forma parcial em sua filosofia. Merece destaque
as severas críticas de Lukács a Hartmann, conforme mencionado, concernentes ao
seu caráter professoral, à ausência sintomática da dialética em seu pensamento: é
necessário, dados os limites de Hartmann, retomar os grandes dialéticos, ou seja, a
Hegel e a Marx, escreve Lukács ao final de sua crítica a Hartmann. Essas palavras
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aparecem compondo a frase final da análise não de maneira incidental, mas como
advertência ao centro da deficiência de seu pensamento, ou seja, a ausência da
dialética e da historicidade. Sem elas torna-se impossível constituir uma autêntica
ontologia.
Decerto materiais ainda inéditos de Lukács cartas, anotações, etc. possam
talvez exigir uma reavaliação das conclusões aqui apresentadas. Porém a partir dos
materiais disponíveis os mesmos referidos por vários comentadores os resultados
alcançados se justificam. Obviamente dada a natureza polêmica do problema
abordado, de se esperar a crítica da crítica do aqui exposto. Nesse sentido, vale
esclarecer: as reflexões presentes nessas páginas visam contribuir para o debate e não
esgotar de maneira definitiva a questão. No essencial, as teses aqui defendidas se
voltam sobretudo contra a acusação indevida de um “contrabando idealista” presente
na obra tardia de Lukács oriundo da influência da filosofia hartmanniana. Contra isso
afirmamos: Marx é o sustentáculo, constitui a base do edifício de toda a ontologia do
ser social lukácsiana. Todas as teses presentes em seu livro buscam arrimo nas
elaborações marxianas. A presença de Marx chega a ser tão decisiva que em nenhum
local, das mais de mil e setecentas páginas escritas (incluindo os
Prolegômenos
),
encontramos ao menos uma ressalva à sua obra. O mesmo não se pode dizer de
Hartmann, cujas críticas e denúncias de limites, acompanham cada referência feita a
ele, tanto ao longo dessa obra quanto ao longo dos
Prolegômenos
. Assim também o
é com Hegel. Autor, no nosso entendimento, mais importante e mais influente do que
Hartmann no desenvolvimento da
Ontologia
de Lukács. Não queremos com isso
afirmar um hegelianismo lukácsiano esse é um tema para outro artigo , pretendemos
tão somente estabelecer a hierarquia entre autores tratados ao longo de sua obra.
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Como citar:
FORTES, Ronaldo Vielmi. O sentido e a extensão da crítica lukácsiana à ontologia de
Nicolai Hartmann.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 352-393, jan./jun 2021.