Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 232-267 - mar. 2022 | 241
subjetivista moderna a responsabilidade pela aniquilação da forma literária ao superar
a tipicidade por meio da generalização do alegórico.
Tudo pode significar tudo, quer se trate duma pessoa, duma coisa ou duma
relação. Esta possibilidade implica num julgamento aniquilante e, no entanto,
justificado, sobre o mundo profano; nesse mundo não há lugar para o rigor
dos pormenores. […] Finalmente, a alegoria torna-se vazia. O mal puro e
simples, que a sustenta firmemente do interior, só existe nela; é apenas
alegoria, significa uma coisa diferente dele próprio. Significa precisamente o
nada daquilo que ele representa. (BENJAMIN
apud
LUKÁCS, 1969, p. 70-71)
Para Benjamin, a alegoria é um fragmento do contexto original, esvaziado de seu
significado, e que precisamente por esse esvaziamento emerge com um novo
conteúdo, capaz de gatilhar uma renovação artística, ideia que se afina com sua
tentativa de “escovação da história a contrapelo”. Para Lukács, essa ruptura com um
sentido artístico fechado, como aposta de uma atualização poética, é a própria
supressão do estético motivada pela descrença, pela perda do
pathos
social e pela
negação das possibilidades concretas do futuro: “a mais profunda experiência vivida é
a de um mundo que não tem rigorosamente nenhum sentido, exclui toda a esperança,
e que é o nosso mundo, o mundo do homem burguês de hoje” (BENJAMIN
apud
LUKÁCS, 1969, p. 72). E Lukács conclui em negativa:
Do ponto de vista formal, um André Gide não tem qualquer pretensão
revolucionária; no entanto, pela sua própria estrutura, a concepção do mundo
que se exprime na sua obra implica, nele, no rompimento das formas
literárias. Os seus
Moedeiros falsos
apresentam-se como um romance. Mas,
no essencial, a construção do livro liga-se à arte de vanguarda pelo seu duplo
conteúdo, visto que o herói do livro, que é, ao mesmo tempo, o seu autor,
introduz o seu próprio diário no romance. Enquanto escritor, foi necessário
que Gide revelasse, pelo conteúdo de sua obra, que num solo como esse não
pode nascer nenhum romance, nenhum escrito com forma estética.
Assistimos aqui à realização, na prática literária, desta autodestruição da
estética, de que Benjamin teve o grande mérito de nos fornecer a teoria.
(LUKÁCS, 1969, p. 74-75)
Lukács e o equívoco do realismo (a reconciliação extorquida)
Logo na abertura de sua crítica ao ensaio lukácsiano, Adorno reconhece como
mérito estrito do trabalho de Lukács suas obras de juventude –
A alma e as formas
(1911),
Teoria do romance
(1920)
e
História e consciência de classe
(1923) –, por sua
“inovadora aplicação, no materialismo dialético, da categoria da reificação como
princípio da problemática filosófica” (ADORNO, 2009, p. 171), configurando um
objetivismo histórico não ontológico.
Quando o objetivismo de Lukács do início dos anos vinte começou a
sucumbir, não sem conflitos iniciais, à doutrina comunista oficial e Lukács
renegou, ao estilo do bloco oriental, aqueles escritos; contra si mesmo, fez
suas as críticas mais subalternas da hierarquia do partido, em detrimento dos
argumentos hegelianos, e durante esse decênio esforçou-se, em seus ensaios