VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
A pintura na
Estética
: revisão analítica e
aproximação com a categoria realismo crítico
Painting in
Aesthetics
: analytical review and approach to the critical
realism category
Ronaldo Rosas Reis*
Resumo: O propósito deste ensaio é realizar uma
revisão analítica de parte da seção 6 do volume
II da
Estética
de György Lukács. Trata-se do
problema da mimese na pintura, em especial o
tratamento dado pelo autor húngaro aos
pressupostos para a condição de universalidade
da obra de arte. Complementarmente o título do
ensaio indica um esforço aproximativo no sentido
de apreender a categoria realismo crítico na
pintura. O eixo norteador do estudo parte da
problematização do impulso teleológico do
artista na realização da pintura diante do desafio
de dar forma humana à realidade que o cerca.
Por conseguinte, adota como pressupostos a
ideia lukácsiana que relaciona a imanência
ontológica da atividade criadora na arte à
capacidade de esta fundar a autoconsciência
histórica do ser humano; e ainda a ideia marxiana
de que à educação estética formal cabe
reproduzir criticamente o conhecimento teórico
acumulado sobre a arte. Além das obras
específicas do pensador húngaro e do reperrio
de Marx e Engels, nos valeremos de
contribuições pontuais de Lionello Venturi e
Fredric Jameson, dentre outros.
Palavras-chave: Realismo crítico; pintura;
estética; educação estética.
Abstract: The purpose of this essay is to carry
out an analytical review of part of the section 6
of volume II of the
Aesthetics
of György Lukács.
It deals with the problem of mimesis in painting,
in particular the treatment given by the
Hungarian author to the presuppositions for the
condition of universality of the work of art.
Complementarily, the title of the essay indicates
an approximate effort to apprehend the
category of critical realism in painting. The
guiding axis of the study starts from the
problematization of the artist's teleological
impulse in the realization of the painting, facing
the challenge of giving human form to the
reality that surrounds him. Therefore, it adopts
as presuppositions: the Lukacsian idea that
relates the ontological immanence of the
creative activity in art to its capacity to find the
historical self-awareness of the human being;
and still the Marxian idea that formal aesthetic
education is responsible for critically
reproducing accumulated theoretical
knowledge about art. In addition to the specific
works of the Hungarian thinker and the
repertoire of Marx and Engels, we will make use
of specific contributions from Lionello Venturi,
Fredric Jameson among others.
Keywords: Critical realism; painting; aesthetic;
aesthetic education.
* Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com Pós-doutorado
em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pintor e desenhista
Instagram: @ronaldorosa63.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.648
Ronaldo Rosas Reis
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Introdução
Para os leitores do Ocidente a ideia György
Lukács tem, frequentemente, parecido mais
interessante do que o real György Lukács.
Fredric Jameson
O que distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é que ele figura na mente sua construção
antes de transformá-la em realidade.
Karl Marx
No ano em que lembramos a passagem dos 50 anos da morte de György Lukács,
pensei no interesse que poderia despertar junto a um público leitor mais amplo do
que somente os estudiosos da estética uma abordagem do tema do realismo crítico
nas Belas Artes
1
, considerando, no caso, a especificidade da pintura. Se é verdade que
a lembrança da data não oferece muitos motivos para comemorações no contexto atual
de indigência em que se encontram as condições de produção e exposição artística
em nosso país, fato que tem mantido os setores combativos da sociedade em
permanente estado de atenção, busco salientar, nesse sentido, que o tema foi
motivado principalmente pela urgente necessidade de debater questões estéticas e
artísticas que talvez possam contribuir para a resistência do que kantianamente
subsumimos como “humanismo crítico” (LIMA, 2008). Quero dizer com isso que, na
ausência de um termo mais adequado para designar uma perspectiva humanista não
necessariamente marxista, este, ao menos, pareceu-me mais próximo de um termo
progressista.
A partir dos escritos estéticos de Lukács é forçoso reconhecer que a abordagem
do realismo crítico nas artes plásticas não é tarefa tranquila sob qualquer um dos dois
pontos de vista necessários, o teórico e o prático. E isso não quer dizer que o seria
caso estivéssemos abordando a literatura e a poesia ou mesmo o teatro , expressões
artísticas as quais o filósofo húngaro dedicou o seu mister crítico por mais de meio
século ao longo de sua vida adulta. Primeiramente porque os escritos lukácsianos
voltados para as Belas Artes, salvo os que se apresentam de forma mais sistematizada
nos volumes 2 e 4 da
Estética
(1972; 1967), respectivamente, estão esparsos em
diversas publicações, a maioria deles na forma de um comentário esclarecendo ou
exemplificando uma determinada tese na exposição principal. É verdade que, conforme
indica José Paulo Netto,
1
Refiro-me basicamente às categorias tradicionais das Belas Artes ou artes plásticas, ou ainda artes
visuais, sendo elas o desenho, a pintura, a gravura, a escultura, a cerâmica, a colagem.
A pintura na
Estética
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As bases da
Estética
configuram nitidamente uma concepção ontológica do
marxismo, ainda que não seja explicitada como tal. Por isso, não há nenhuma
relação excludente (ou mesmo colidente) ou ainda, externa entre a
Estética
e
a elaboração dos últimos anos de Lukács, salvo no plano terminológico.
Antes, o que de fato se verifica é uma articulação íntima e medular entre a
Estética
e a
Ontologia:
nesta, os pressupostos daquela são expostos e
tratados enquanto fundantes de toda a reflexão marxiana (não por acidente,
Lukács enfatiza os “princípios ontológicos fundamentais” de Marx) (NETTO,
2012).
Tome-se como um bom exemplo disso o que encontramos na amplitude do
capítulo sobre o Estranhamento, em
Para uma ontologia do ser social II
(2013, pp.
576-838). Nele o filósofo recupera a sua tese genérica da contribuição da arte para a
autoconsciência do indivíduo desenvolvida na seção IV
Base y perspectiva de la
liberación
do último capítulo do citado volume 4 da
Estética
(1967),
La lucha
revolucionária del arte
(pp. 368-576), aplicando-a ao processo ontológico de
desfetichização. Para tanto, partindo do pressuposto lukácsiano segundo o qual a
relação entre os sentidos imanentes do artista e o brotar espontâneo da criação do
artista “[...tornando-o], como criador, uma personalidade não mais particular” (LUKÁCS,
2013, p. 616), é que o presente ensaio irá deitar algumas de suas raízes. Com efeito,
recorrendo a Cézanne, Lukács reporta que o pintor considera
[...] a sua própria pessoa particular como um bom aparelho de registro da
realidade, mas quando ela interfere na reprodução da realidade ele rejeita
radicalmente essa atividade da “miserável”, visto que ela turva e perturba o
essencial que ele exige da obra de arte, a saber, conferir constância à
natureza nas mudanças fenomênicas de seu ser-em-si (LUKÁCS, 2013, p.
616).
Ademais, do que está explícito na relação acima apontada pelo filósofo, o
segundo aspecto a ser considerado no presente ensaio, refere-se à problemática
teórica da educação dos sentidos, explorada quase sempre de forma insuficiente nos
textos da área de Educação. Ainda na
Ontologia
, Lukács procura deixar claro uma
situação recorrente no senso comum quando defrontada com a obra de arte: a
presença das teorias deformadoras que vislumbram [na arte] um comportamento
puramente contemplativo [...] ou que absolutizam a tomada de partido que sempre
estará contido nela” (LUKÁCS, 2013, p. 616). Das “teorias deformadoras” é bastante
conhecido o paradoxo produzido pelo senso comum quando apreende a atividade
artística como um trabalho não necessário, ou mesmo supérfluo, ao mesmo tempo em
que atribui ao indivíduo que a realiza uma inspiração de natureza divina, um dom, “[...]
velando a sua materialidade concreta e alimentando a dissociação entre o trabalho de
arte e o trabalho em geral”. Portanto, atribuições genéricas como “dom”, “genialidade”
etc. acabam por encobertar “os processos concretos de produção artística desde a sua
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aprendizagem até o momento em que o produto artístico é consumido como
mercadoria pelo público” (REIS; REQUIÃO, 2015, p. 128).
A publicação no Brasil de
As ideias estéticas de Marx
, de Adolfo Sánchez
Vázquez, precedeu em um ano o lançamento da primeira edição de
Realismo crítico
hoje
(1969). Cabe recordar que antes mesmo dessas duas publicações, em 1966,
A
necessidade da arte
, de Ernst Fischer, poeta e ensaísta austríaco, por alguns anos
próximo a Lukács, seria publicado no país e, em 1967 Leandro Konder publicaria
Os
marxistas e a arte
. Cinco anos depois, os dois volumosos tomos de
História social da
literatura e da arte
(1972), do historiador da arte húngaro Arnold Hauser, companheiro
de Lukács e de outros estudiosos da arte no Círculo Dominical de Budapeste,
chegariam ao público brasileiro, e em 1978, a
Introdução a uma estética marxista
, era
publicada no país fechando um ciclo inaugural de publicações traduzidas e colocadas
ao alcance de uma geração de universitários carentes de obras de referência marxistas
no campo da arte e da estética em língua portuguesa. A propósito disso, ainda hoje
me parece surpreendente que todas essas publicações tenham sido traduzidas,
editoradas, comercializadas e adotadas em muitos cursos superiores do país no
mesmo período em que a ditadura civil-militar (1964-1985) editava o Ato Institucional
5/1968 e o Decreto-lei 477/1969, os quais impunham, dentre outras
barbaridades, a censura prévia, a proibição de manifestações públicas contra o regime
e a perseguição de professores e alunos então considerados subversivos.
O significado da menção que faço a esse contexto histórico-social pretérito sobre
as publicações marxistas no campo da estética deve-se, primeiramente, à percepção
de um certo efeito tardio do pensamento marxiano em geral e, particularmente o de
Lukács, no Brasil, em especial nos terrenos da cultura e da educação. É importante
registrar que por “efeito tardio” entenda-se um modo de pensar as teses marxistas
que se contrapõem ao marxismo filistino que por anos vigorou na esquerda brasileira
antes das publicações mencionadas no parágrafo anterior. Certo ou errado quanto a
esse ponto, o fato é que, entre nós, o avanço do repertório marxiano na estética e na
história social da arte se fez e faz aos solavancos, entre arbitrariedades e liberalidades
da elite dominante. Após o fértil ciclo de lançamentos desse repertório registrado nos
anos 1960 e 1970, nas três décadas seguintes (1980-2000), sob os auspícios da
abertura política lenta e gradual do país, setores da
intelligentsia
burguesa, até então
relativamente próxima da resistência aos desmandos do regime, se entrega
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vigorosamente ao que há tempos chamei de
impulso anti-intelectualista
(REIS, 2012)
2
.
Ao voltar o seu interesse para a crítica agenciada ideologicamente pelo mercado de
arte europeu e estadunidense, a
intelligentsia
nacional zelosamente se propõe a
provocar uma reversão radical no rumo do debate cultural e educacional do país,
mitigando a tensão causada por algumas tendências marxistas que ganhavam força no
ambiente cultural e educacional, em meio ao avanço do movimento pela abertura
política do país. Mais do que isso, de corte conformista e celebratório de uma
apoteótica “inatualidade aberta”, conforme pregava o crítico de arte italiano Achille
Bonito Oliva (
apud
PONTUAL, 1984, p. 38), o anti-intelectualismo difundido por
jornalistas e formadores de opinião com assento nos cadernos culturais e nas editoras
nacionais, em verdade travavam uma luta política, no sentido tático, a fim de operar
uma metamorfose teleológica na ideia de criação artística, associando o seu sentido
libertador à exigência de dar cabo da razão moderna. Isto é, de acordo com a crítica
anti-intelectualista, para abrir espaço para o imaginário criador e libertário pós-
modernista, tornava-se necessário destruir todo e qualquer tipo de racionalidade
aprisionadora (REIS, 2012)
3
. Conforme notava Fredric Jameson à época (1992), o
surgimento dessa visão populista ou demagógica segundo a qual a cultura do alto
modernismo teria gerado um valor social estigmatizado por sua associação com a elite
universitária, estava atrelada à radical guinada à direita no Ocidente que se seguiu à
ascensão de Margaret Thatcher, na Inglaterra, continuada por Ronald Reagan nos EUA,
até a condução de Helmut Kohl ao poder na Alemanha. Com base no pressuposto de
que o “governo não era a solução, mas o problema” (Ronald Reagan
apud
HOBSBAWM,
1995, p. 401), o trio conhecido como “falcões do neoliberalismo”, executaria um
repertório de medidas ultraliberais, tornando-as desde então o fio político condutor
da economia mundial, e se impondo como a expressão da
liberdade empreendedora
.
na superestrutura global, o crescimento por toda a parte da Teologia da
Prosperidade somado a um anti-intelectualismo derrisório, todavia eficaz no combate
avant la lettre
do que pejorativamente hoje chamam de
Marxismo Cultural
,
2
Cabe o registro das exceções às publicações simultâneas, em 1992, por editoras diferentes, de
Arte
moderna
, e
História da arte como história da cidade
, ambas do historiador da arte e político italiano
comunista, Giulio Carlo Argan.
3
Os principais ideólogos europeus da reação conservadora no campo das artes visuais foram os críticos
Achille Bonito Oliva (Itália), Rudi Fuchs (Holanda) e Jacques-Louis Binet (França), e, no Brasil, Sheila
Leirner, Roberto Pontual e Frederico Morais. Ver: (REIS, 1994).
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conformariam a lógica cultural anarquista-reacionária e predadora que conhecemos
nos tempos atuais. Ao final do ensaio voltaremos a abordar esse assunto.
O esforço dos diversos grupos de estudo e pesquisa com acesso a bibliotecas
detentoras de antigas publicações em português e em língua estrangeira, de algum
modo manteve vivo o pensamento de Lukács, especialmente nos cursos de filosofia,
sociologia e educação. A despeito desses grupos terem produzido algumas dezenas
de dissertações e teses ao longo dos anos 1990 e 2000, o alcance limitado desses
meios de difusão limitaram a sua reprodução e a amplitude do debate, sendo que nos
cursos universitários de formação artística, nas licenciaturas em arte e nas respectivas
pós-graduações, a produção intelectual associada ao pensamento estético marxiano-
lukácsiano se manteve praticamente estagnada. Apesar de tudo, certamente as
editoras nacionais devem ao esforço desses setores da academia o recente e tímido
ressurgimento do interesse pela ontologia e pela estética marxiana, fato esse que nos
coloca diante do desafio de José Paulo Netto, para quem a viabilidade do marxismo
será possível somente se ele estiver “aberto ao debate e plural, mas com fronteiras
claras e suscetíveis de polêmica e dissenso”, e é nesse sentido que devemos apreender
a atualidade da obra de Lukács como um pensamento prospectivo (NETTO, 2012).
Procurando concluir essa introdução que se faz extensa, daremos início ao
desenvolvimento metodológico do texto abordando a universalidade da pintura
enquanto fenômeno social, portadora de uma linguagem que comunica e expressa a
particularidade do ser. Para tanto, nessa parte, realizaremos uma revisão analítica dos
textos de Lukács sobre o reflexo estético, especialmente a mimese, de modo a
problematizar adiante as categorias
naturalismo
e
realismo
na pintura. Além das ideias
de Lukács, Marx e Engels, centrais nessa revisão, nos valeremos, subordinadamente,
de autores como Arnold Hauser (1972) e Lionello Venturi (1968). Seguiremos adiante
abordando a especificidade da categoria realismo crítico na perspectiva ontológica
lukácsiana. Aqui o nosso esforço metodológico será no sentido de transportar as
referências literárias do autor para o terreno das Belas Artes, buscando responder
teoricamente à pergunta sobre a natureza dos elementos que devem ser considerados
na concepção de mundo e na intenção do artista quando da definição prévia do tema
e da realização da obra. Em suma, a pergunta busca apreender na pintura o
télos
originário do artista mediante o qual a sua expressão final “poria em relevo uma
realidade que se situa muito além dos dados brutos, imediatamente fornecidos pelo
processo associativo [...]” (LUKÁCS, 1969, p. 34).
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Estética
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Da pintura: princípios e problematização
Pôr teleológico e generidade
Em
A ideologia alemã
, uma das obras seminais para a moderna ontologia, Marx
e Engels apresentam uma chave para compreendermos o papel da linguagem na
evolução do ser social. Para eles, o fato de a linguagem ser “a consciência real, prática
[...] da humanidade”, existindo para os outros seres humanos como também, primeiro,
para mim mesmo , demonstra que ela nasce da necessidade de o ser da espécie se
relacionar com outros seres da mesma espécie, de realizarem trocas, de se
comunicarem entre si e de expressarem seus sentimentos diante de tudo o que se
apresenta estranho ou aparentemente intangível (MARX; ENGELS, 2002, p. 24). E
completam dizendo que ainda que no seu estágio evolutivo inicial a linguagem seja
“uma simples consciência gregária” acionada pelos sentidos, portanto, longe de
adquirir condições de se desenvolver plenamente como consciência, ela reúne na sua
forma singular as características de um “instinto consciente” (MARX; ENGELS, 2002
pp. 25-26). Saliente-se aqui que o fenômeno ontologicamente casual da existência nos
hominídeos de um cérebro pensante está associado ao seu metabolismo mediatizado
pelo trabalho na natureza. Com efeito, os primeiros grupos de hominídeos não sabiam
produzir ferramentas, tal como machados, lanças, serras, armas de caça etc. Eram
grupos nômades, em grande parte coletores, que dependiam de encontrar um animal
morto ou ferido. Gordon Childe (1966) destaca que duraria cerca de 250 mil anos o
processo de observação, seleção e classificação que levaria alguns grupos, como o do
Homem de Pequim, a produzir instrumentos ocasionais recolhendo pedaços de pedras
e outros materiais, como galhos de árvore, fosse para utilizá-los aumentando a
potência da força das suas mãos e braços com a finalidade de quebrar alguma coisa
(nozes, o crânio de um inimigo ou de um animal), ou como extensão deles, a fim de
colher frutos localizados nos lugares mais altos de uma árvore. Numa fase posterior
eles desenvolveriam armadilhas mimetizando os silvos dos pássaros ou utilizando as
peles de animais mortos a fim de atrair a possível caça, portanto, ainda não haviam
desenvolvido uma ferramenta específica para cada finalidade. Entretanto, esse longo
período serviria para que, submetidos ao esforço coletivo para fazer frente às suas
necessidades elementares, os indivíduos desenvolvessem, inicialmente, a práxis social
que os distinguiria das demais espécies. Com o aumento das necessidades e da
população, a divisão do trabalho material imporia a exigência de planejamento
intelectual dando origem a uma nova divisão do trabalho, condição que levaria à
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transformação da consciência gregária em “consciência que representa
realmente
algo
sem representar algo real” (MARX; ENGELS, 2002, p. 26, grifos da publicação). É nesse
ponto que a consciência na forma de linguagem é apreendida como consciência
universal que o ser da espécie comunica e expressa o que os seus sentidos
experimentam das coisas e dos fatos comuns a todos os demais seres humanos. Ora,
se “o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a
consciência de mim como um ser social” (MARX, 2004, p. 107), temos, por
conseguinte, que a emancipação da consciência é o salto da sua condição particular
para a condição de generidade. Tal característica positiva da linguagem é o que define
o pôr teleológico do ser humano, uma decorrência ontológica exclusiva do trabalho
intelectual. Nesse sentido, parece evidente que a processualidade da objetivação de
um conceito, ou seja, o caminho percorrido entre o trabalho intelectual (o pôr
teleológico) de criar e atribuir previamente uma ideia ou nome a um determinado
objeto, não está isento de contradições, dentre elas a alienação.
Na arte, a universalidade concreta ou generidade do fenômeno estético ocorre
de forma diferenciada na totalidade dos variados gêneros expressivos conhecidos.
Todavia, ressalta Lukács, alguns desses gêneros, como o canto, a dança, a música, a
encenação, a escultura e a arquitetura, alcançaram muito mais rapidamente o “terreno
de um nível socialconsciente de si mesmo como vida pública” do que a pintura, fato
que muito contribuiu, desde sempre, para serem estudados como gêneros artísticos
historicamente reconhecidos (LUKÁCS, 1972, p. 164). De modo breve, a dimensão
pública a que se refere o filósofo está conectada à empatia, ou seja, à possibilidade
de cada pessoa reconhecer emocionalmente na particularidade de uma obra o seu
próprio mundo, conferindo a ela a qualidade de um conceito comum a todas as demais
pessoas presentes na sua vida social cotidiana. A universalidade de uma obra de arte
não se restringe, evidentemente, a mera aparência da representação e do
representado, posto que, conforme lembra Marx nos
Manuscritos de Paris,
[...] a apropriação
sensível
da essência e da vida humana, do ser humano
objetivo, da
obra
humana para e pelo homem, não pode ser apreendida
apenas no sentido da
fruição imediata
, unilateral, o somente no sentido da
posse
, no sentido do
ter
. O homem se apropria da sua essência omnilateral
de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total (MARX, 2004,
p. 108, grifos do tradutor).
Por extensão, Marx está aqui sublinhando com toda clareza que no processo de
apropriação e fruição da realidade pelo ser humano, os órgãos que caracterizam o ser
sócia, como “pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar etc.” (MARX, 2004,
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Estética
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p.108), igualmente participam no desenvolvimento da práxis artística, nela imprimindo
o sentido comunitário. Nesse ponto, aplicando o que dissemos um pouco antes, vemos
que é, primeiramente, o resultado do trabalho intelectual do artista, cujo pôr
teleológico a prospectou na sua mente sob a forma de um conceito que,
secundariamente, ao ser apropriado e mediado pela coletividade, assume a condição
de generidade. Adiante retomarei essa problemática de modo a relacioná-la com a
processualidade da criação artística.
Mimese: bidimensionalidade e tridimensionalidade
Analisando o “espaço mimético de criação do mundo” na pintura, Lukács chama
a atenção para a maior dificuldade de se examinar a apreensão da sua universalidade
em relação a outras manifestações artísticas. Como visto logo acima, a ausência de
uma dimensão pública da pintura é o principal fator que confere a esse gênero artístico
um caráter específico no estudo da problemática estética da mimese. Dado que a
pintura tem uma origem “enraizada profundamente na vida privada do cotidiano”
(LUKÁCS, 1972, p. 164), fato que pode ser comprovado nas pinturas rupestres do
paleolítico situadas em locais ermos no interior das cavernas em determinadas regiões
da Europa continental ou de difícil alcance nos continentes americano, africano e
asiático, e nas pinturas históricas etrusca e cretense anteriores à Antiguidade clássica
na Grécia. Para demonstrar essa dificuldade, Lukács exemplifica traçando brevemente
uma linha evolutiva de um processo no qual as incorporações de representações de
uma grande diversidade de descrições de elementos naturais (bosques, hortas,
pomares etc.), evocativas de modos de vida particulares cotidianos, impõem barreiras
para o reconhecimento da sua universalidade. A partir desses e de outros fatos
psíquicos análogos da vida cotidiana, nasce a demanda pela pintura:
[...] a exigência de refiguração mimética de um espaço concreto em cada caso,
também preenchido por objetos concretos de tal forma que pareçam ter um
local adequado de sua existência e de tal forma que tudo isso tenha para o
espectador a forma aparente de ser a refiguração visível e dominável do
mundo do homem (LUKÁCS, 1972, p.165).
Bidimensionalidade
Em sua origem pré-histórica a pintura era chapada na parede da caverna. Para
fins da representação o autor não tirava partido do suporte (se curvo, reto, inclinado,
convexo, côncavo etc.) para fins miméticos, fato perceptível dada a ausência de
bidimensionalidade ou, grosso modo, de
enquadramento
. Segundo Fischer (1983, pp.
33-34), isso pode ser explicado na medida em que “o homem pré-histórico via o