Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Editorial: Por que não somos lukácsianos
[...] raramente os intelectuais e filósofos estão
dispostos a extrair consequências filosóficas da
enorme riqueza de dados e de fatos obtidos pela
ciência.
G. Lukács,
A destruição da razão
O valor e a forma de minhas ideias não são
decididos por mim, não é minha responsabilidade
cuidar disso.
G. Lukács,
Essenciais são os livros não escritos
O leitor habituado a nossas publicações certamente observou que a
Verinotio
ganhou notoriedade pelo empenho da equipe editorial em veicular textos e entrevistas
de autoria de György Lukács, em grande parte inéditos ou em novas e acuradas
traduções. Deve também ter constatado a presença de artigos de intérpretes
prestigiados e competentes da obra lukácsiana. Com isso, o objetivo da revista é claro:
divulgar contribuições teóricas que permitam acessar o legado do filósofo húngaro de
modo rigoroso e competente
1
.
Dada a importância de sua obra no cenário contemporâneo, dominado por
tendências (de vários matizes) que subestimam, anulam ou mesmo negam
peremptoriamente a capacidade humana de saber e agir, a figura de Lukács desponta,
a despeito de suas possíveis falhas e incorreções, como a melhor formulação teórico-
filosófica que o marxismo pôde produzir. De fato, Lukács foi e continua sendo voz
isolada no deserto das ideias.
Esse posicionamento não é recente, ao contrário. Já tivemos oportunidade de
ressaltar, tanto nos editoriais quanto em artigos e não é o caso de retomar a
argumentação aqui , que é forçoso reconhecer a existência de diversas lacunas na
produção teórica dita marxista, todas elas relacionadas ao tratamento de temas e
questões fundamentais. Estas vão desde a correta identificação dos traços da
acumulação capitalista de nossos tempos até o devido acerto de contas com o projeto
de sua superação, radicalmente interrompido, passando, é claro, pelos dilemas
humanos que continuam a marcar a infame vida vivida. Fossem outras as
circunstâncias, provavelmente não nos encontraríamos tão desarmados teórica e
praticamente como estamos nos dias de hoje.
1
Integrantes da atual equipe editorial, assim como do próprio conselho editorial, pesquisadores,
exigentes que o na lida com textos clássicos, têm contribuído sistematicamente com traduções e
artigos sobre a obra de Lukács, o que expressa de modo concreto nosso empenho em atingir tal
objetivo.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.657
Editorial
VIII | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
Por todas essas razões, assinaladas aqui
en passant
, é que a equipe editorial
decidiu lançar mais uma edição da
Verinotio
em homenagem aos 50 anos de
falecimento de Lukács, voltada agora aos seus trabalhos na área de estética, como
forma de reconhecimento da importância das formulações do filósofo húngaro,
sobretudo de suas obras de maturidade.
É importante, contudo, destacar para os mais desavisados que, muito embora
os escritos de e sobre Lukács sejam presença constante em nossas publicações, isso
não significa, de modo algum, que possamos ser chamados de
lukácsianos
. De fato,
rejeitamos tal filiação, graças a um sem-número de razões, das quais apenas as mais
fundamentais serão aqui indicadas. Trata-se de esclarecimento necessário, tendo em
vista o tratamento que sua obra tardia, designadamente
Para uma ontologia do ser
social
, tem recebido em nossas plagas.
Desconsiderando tratar-se de esforço de ampla envergadura, ao desconhecer a
complexidade do tema não apenas no interior da história da filosofia, mas, sobretudo
no campo do marxismo, certos intérpretes e comentadores o percebem ou não
querem perceber, por ignorância ou imediatismo político que a pesquisa sobre o
assunto se apresenta como um desafio, muitas vezes de aparência inacessível, que a
facilitação e a vulgarização não desfazem. E isso porque se apressam em retirar da
obra postumamente publicada esquemas conceituais simples para uso e abuso dos
sociólogos, educadores e assistentes sociais, ou, ainda, palavras de ordem que
“estimulem” a militância. Nesse mister, conseguem complicar ainda mais a
incontornável tarefa de enfrentar a argumentação cerrada e, o raras vezes,
problemática que o autor, no entanto, procurou fundamentar com cuidado e rigor.
Consequentemente, não como compactuar com esse tipo de “leitura” da obra de
Lukács, tornada, infelizmente, moeda corrente.
Parece que boa parte dos “lukácsianos brasileiros”, adeptos do tratamento fácil
dos densos escritos do filósofo húngaro, ignoram seja por lapsos de formação, seja
por pura displicência teórica aquilo que ele próprio admitiu em várias oportunidades
no final da vida, ou seja, que trazer à baila a questão ontológica, a mais complexa e
espinhosa da história da filosofia, tende a provocar dificuldades e incompreensões de
toda sorte. Já para não falar da proliferação de críticas infundadas que lhe foram
dirigidas, realizadas ao arrepio de seus escritos, e em grande medida surgidas em
decorrência da trivialização de seu legado. Ou seja, a banalização das ideias de Lukács
acaba por gerar e disseminar uma imagem débil, carente, sobretudo, de estofo
filosófico, presa fácil para seus adversários, principalmente do mundo acadêmico,
ansiosos por levá-lo à desmoralização. Assim é que, à imagem de escritor stalinista,
soma-se agora outro tipo de imputação, a de um idoso delirante.
Por todas essas razões, ainda que não nos consideremos integrantes de algum
tipo de seita lukácsiana ou do “gueto ideológico” formado por seus fiéis seguidores,
é que julgamos fundamental prolongar nossa homenagem com mais uma edição,
dedicada especialmente às questões estéticas.
Sobre a importância fundamental das obras de Lukács voltadas ao tratamento
de problemas filosóficos de caráter geral, tanto no campo da estética quanto aqueles
que marcaram os debates contemporâneos, sobretudo a respeito do intrincado e
Por que não somos lukácsianos
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complexo tema da ontologia, Vaisman pronunciou-se do seguinte modo:
os cerca de 30 anos que separam o início do percurso do autor e suas
obras de plena maturidade, como a
Estética
e
Para uma ontologia do
ser social
, incluídos seus
Prolegômenos
, além de serem marcados
por escritos que contribuíram decisivamente para um cenário carente
de formulações analíticas sobre a arte inspiradas em Marx, permitem
constatar a existência de um projeto de cariz eminentemente filosófico
[...]. Exemplos monumentais desse empreendimento, além, é óbvio, de
seus trabalhos de análise literária, são os livros
O jovem Hegel
(cujo
término da redação se deu em 1938, mas a publicação apenas dez
anos depois) e
A destruição da razão
(1954) (sem esquecer de
Goethe
e seu tempo
, publicado em 1938), obras que colocaram em xeque, de
modo original e competente, teses dominantes no panorama filosófico
da época, diga-se de passagem, tanto aquelas esposadas pelos
representantes do marxismo oficial quanto de acadêmicos e
especialistas renomados que se debruçaram sobre os autores tratados
(VAISMAN, 2021, p. 298).
Infelizmente, em vários redutos acadêmicos e culturais é ainda o livro
História
e consciência de classe
(para não mencionar
A alma e as formas
e
Teoria do romance
)
que é reputado como o legado mais importante do autor. Seja por conta da influência
que veio a exercer em alguns representantes da assim chamada teoria crítica, seja pela
presença no livro de certas noções caras ao weberianismo, seja, ainda, por certa dose
de ingenuidade teórico-política que essa obra de transição transpira
2
, o fato é que
esse conjunto de ensaios malgrado todas as restrições que o próprio autor dirigiu a
ele é ainda cultuado como o
opus magnum
do filósofo húngaro.
Cumpre ressaltar, no sentido de reforçar o argumento, que o culto ao conjunto
de ensaios elaborados entre os anos de 1921 e 1923 deriva de modo significativo do
papel importante nas antiteorias de Adorno de uma formulação
lukacsiana em
História e consciência de classe
, qual seja: de que o
problema da fetichização da mercadoria era o protótipo de todas as
formas de objetividade e de todas as correspondentes formas de
subjetividade na sociedade capitalista, incluindo os próprios
esquemas do pensamento burguês (VAISMAN, 2021, p. 281).
Ademais, não como negar que, na atualidade, como decorrência da total
ausência de perspectiva de futuro, em larga medida determinada tanto pelo
prolongamento histórico do capital quanto pelo fracasso das transições ao socialismo
intentadas, tudo conspira a favor da propagação de tendências irracionalistas,
autointituladas pós-modernas denominação esta que, infelizmente, seus
antagonistas vieram a adotar, ratificando, assim, um velamento de sua real natureza.
Denominar tais correntes teóricas como pós-modernas é um beneplácito, ato que
corrobora as intenções de seus titulares, cujo propósito é simplesmente confundir e
dissimular seus alvos de ataque.
É vital, assim, que as denominemos por aquilo que elas de fato representam no
plano teórico-ideológico: o
irracionalismo
. O horror à técnica e à ciência são partes
2
Ver a respeito o número 16 da
Verinotio
, dedicado aos 90 anos da publicação de
História e consciência
de classe
. Disponível em: <https://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/issue/view/13>.
Editorial
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indissociáveis desse ambicioso projeto. A supremacia concedida à arte ou às diferentes
vertentes das assim chamadas “ciências do espírito”, colocando-se, aparentemente,
como movimentos de reação ao positivismo e ao predomínio epistemológico do
método das ciências naturais, ganhou adeptos
partout
. Inclusive (e principalmente)
entre os críticos da sociabilidade burguesa, nos quais a denúncia fundamental se
dirige, com especial ênfase, aos espaços recônditos da subjetividade fetichizada,
emanada dos processos reificantes, característica considerada basilar para a
compreensão dos processos manipulatórios e que teriam a capacidade nefasta de
encarcerar as diferentes individualidades.
A bem da verdade, caracterizada aqui de modo ultra geral, a tendência acima
delineada pois não é o caso de debruçar-nos sobre o assunto de modo mais concreto
e detalhado neste Editorial emerge de maneira mais ou menos relevante neste ou
naquele autor, que representantes que compartilham de modo diverso tais
características.
É também mérito de Lukács ter sido um crítico contumaz dessas tendências,
esforço consumado no livro
A destruição da razão
, trabalho sistematicamente
rejeitado, ao qual são imputadas diversas acusações, muitas delas tão toscas quanto
querem fazer o livro parecer. Na apresentação à edição brasileira tivemos
oportunidade de desenvolver argumentação a esse respeito (cf. FORTES; VAISMAN,
2020, p. XI-XIX), e não é o caso de nos delongar aqui acerca da controvertida recepção
do livro.
Tendo em vista, entretanto, o cenário atual, em que grassam formas de pensar,
propostas e projetos de cunho político-ideológico fortemente amparadas em
postulados de caráter explicitamente irracionalista, não poderíamos deixar de lembrar
que a derrocada militar do nazifascismo, culminando o término da II Guerra Mundial,
não significou necessariamente a eliminação das tendências irracionalistas que
vingaram no plano do pensamento e prepararam o caminho para o advento da
ideologia propriamente nazista. O livro de Lukács tem, nesse sentido, de fato, a
intenção não de mostrar como se verificou tal trajetória, mas, também, de
demonstrar a perpetuação do irracionalismo nas tendências filosóficas da segunda
metade do século XX. Efetivamente, grande parte do pensamento que se hegemonizou
a partir desse momento deita suas raízes nas correntes do irracionalismo do período
imperialista do século XIX e da primeira metade do século XX. Desse modo, seguindo
a periodização levada a efeito no livro, poder-se-ia dizer que se vive desde então o
terceiro período da trajetória do irracionalismo, analisado, em parte, por Lukács no
epílogo do livro, intitulado “Sobre o irracionalismo no pós-guerra”.
Sempre convém insistir, ademais, que o tom áspero e arrogante com que o livro
foi e tem sido com frequência recebido se deve, em grande medida, ao fato de trazer
críticas duras ao que se pode denominar,
grosso modo
, de pensamento de direita. No
entanto, o problema é mais complexo do que aparenta, porque o irracionalismo não é
mais um apanágio da “direita”, mas atinge também, de modo certeiro, a base teórico-
filosófica daquelas tendências referidas acima, que se colocam como críticas da
sociabilidade vigente do ponto de vista de uma suposta “esquerda” não-marxista. Em
termos diretos, atinge os pressupostos do autoproclamado anticapitalismo
Por que não somos lukácsianos
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hegemônico da esquerda hodierna, no interior do qual filósofos como Heidegger e
Nietzsche pontificam como figuras proeminentes e fontes de inspiração. O que, sem
dúvida, explica a intensificação da rejeição já existente ao livro.
É uma tarefa ainda por se realizar, decerto, a pesquisa e a consequente
explicitação acerca do modo como autores, de fato reacionários, acabaram por se
tornar pilares dos assim chamados movimentos críticos da sociabilidade atual, em suas
variadas nuances e plataformas específicas de luta”. Enquanto tal empreendimento
não for viabilizado, a obra de Lukács é incontornável para todos que buscam o
entendimento e a crítica das ideias prevalentes na contemporaneidade, tanto no campo
acadêmico-cultural quanto nas movimentações políticas. Reveste-se, ainda, de
importância no esclarecimento do papel que tais tendências desempenham na
justificação do
status quo
, apesar da aparência em contrário.
Feitas essas considerações gerais, o reconhecimento do valor da obra de
Lukács, sobretudo a da maturidade, não implica velar certos problemas que
permanecem em aberto, um dos quais diz respeito às influências de Hegel na
constituição e desenvolvimento do seu modo de pensar. Ainda que não seja possível
contemplar de forma adequada, no âmbito deste Editorial, as dificuldades que tal
influência gerou, não se pode deixar de reconhecer sua presença em certos momentos
e em determinadas formulações, o que acabou por impor limites inclusive para a devida
apreensão do legado marxiano, objetivo sempre almejado pelo filósofo.
É justo também afirmar que, em dadas oportunidades relevantes, sua obra
tendeu a se realizar a partir de um tipo específico de distanciamento crítico em relação
à filosofia hegeliana, fato claramente perceptível em uma simples comparação entre os
ensaios que compõem o livro
História e consciência de classe
e sua última obra,
Para
uma ontologia do ser social,
inclusive seus
Prolegômenos
. Contudo, mesmo em seu
pensamento tardio ainda é possível constatar a presença de uma aura hegeliana.
Cumpre, assim, assinalar que os possíveis vínculos com a herança hegeliana,
apesar de fecunda em diversos momentos, não deixa de se constituir um fenômeno
teórico controverso, e mesmo contraditório. Contudo, para não sermos injustos com
esforços realizados pelo autor nesse terreno, vale destacar que Lukács nunca se furtou
a rever e criticar suas próprias posições. Como exemplo desse tipo de postura, pode-
se aventar o reconhecimento, ainda que tardio, dos problemas trazidos pela
interpretação de Lênin, tão difundida e aceita, contida nos assim chamados
Cadernos
filosóficos
, segundo a qual não se poderia compreender
O capital
sem conhecer a
Ciência da lógica
de Hegel. Todavia, o fato é que a diretiva leniniana acompanhou o
autor húngaro ao longo de sua trajetória teórica, sendo repetida aqui e ali em várias
oportunidades. É apenas nos
Prolegômenos para uma ontologia do ser social
que essa
posição é relativizada e os equívocos de se tomar a dialética marxiana como a inversão
da dialética de Hegel são devidamente denunciados (cf. LUKÁCS, 2010, p. 267-8).
Destacar a grandeza do pensamento lukácsiano, suas análises contributivas
para a compreensão do desdobramento das disputas das ideias do século XX, não
significa, portanto, a adesão desmedida e acrítica a todos os seus apontamentos. É
preciso desenvolver, diante de todo e qualquer pensador, a mesma postura de rigor
que o próprio filósofo húngaro postulou diante dos autores que passaram por sua
Editorial
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pena, inclusive ele próprio.
Desse modo, não se podem deixar também de apontar certas discrepâncias de
sua reflexão em relação à própria obra de Marx, ainda que Lukács tenha sido e continue
a ser uma porta de entrada imprescindível para a devida compreensão do filósofo
alemão, tendo em vista os rios de tinta que engrossam os descaminhos, releituras e
interpretações da obra deste; ou, para usar uma expressão mais coloquial muito cara
ao filósofo J. Chasin , Lukács funciona como uma “lupa” para a compreensão da obra
marxiana.
Aos leitores atentos à obra de Lukács, entretanto, decerto não passou
desapercebido que, dentre as possibilidades que o autor oferece à compreensão mais
precisa da obra de Marx, encontramos certas atribuições de suas próprias formulações,
um tanto extrínsecas ao que o filósofo alemão efetivamente elaborou. A título de
exemplificação, poderíamos comentar a respeito das consequências que a adesão cega
a certas formulações do pensador ngaro pode acarretar. O caso mais escandaloso
diz respeito à distinção entre as categorias “alienação” [
Entäusserung
] e
“estranhamento” [
Entfremdung
], realizada, como é sabido, nas páginas de sua obra
postumamente publicada. As leituras rápidas e vulgarizantes insistem em desviar a
atenção para a tradução dos termos, como se o problema fosse meramente semântico.
Procedendo desse modo, deixa-se a questão principal fora do foco das atenções, ou
seja, o fato de que Lukács desenvolve uma formulação distinta daquela de Marx a
respeito destas categorias.
Não é também o caso aqui de tratar de maneira detalhada dessas diferenças
(cf. FORTES, 2013): cabe apenas sublinhar que a alienação, para Lukács, é um traço
próprio da atividade humana, ou seja, trata-se da ação da subjetividade que se põe no
mundo por meio de objetivações tanto de ordem material como social. Em Marx, ambos
os termos possuem o sentido da perda, algo que uma leitura rigorosa dos
Manuscritos
econômicos-filosóficos
deixaria de todo evidente (cf. COSTA, 2013). Necessário ainda
destacar que a tese de Lukács acima referida acabou por influenciar as traduções do
texto marxiano de 1844 no Brasil, criando querelas que vão desde a transformação
da categoria em duas
Entäusserung
é traduzida por “alienação” ou “exteriorização”
(cf. MARX, 2004; p. 15-6, comentários do tradutor) ou ainda, em outra tradução
bastante conhecida, a indistinção e a absurda adulteração do texto de Marx entre
Entäusserung
e
Äusserung
, ou mesmo entre
Lebensäusserung
e
Lebensentäusserung
(cf. MARX, 2015
3
).
Outra menção se faz necessária, agora em relação ao problema da politicidade,
em que se podem encontrar diferenças significativas entre Marx e Lukács. Tal como
analisou essa dimensão da prática social, o pensador húngaro a circunscreveu como
atributo do ser social, conferindo à política o caráter de traço essencial dessa forma
3
Na p. 348, que
Lebensäusserung
é traduzida, sem nenhuma advertência ao termo original, por
“exteriorização da vida”,
Äusserung
por “exteriorização” (na ed. alemã Mega I, 2, p. 267) de maneira
indiferenciada com
Entäusserung
, traduzida pelo mesmo termo, ou seja “exteriorização”; logo na
sequência, na p. 349, o termo torna a aparecer e a categoria
Lebensäusserung
é agora traduzida por
“expressão da vida”, que a tradução anterior não pode se sustentar diante de
Lebensentäusserung
contraposta na mesma frase vertida de maneira indiscriminada como “exteriorização da vida”. O leitor
sem acesso ao original fica sem saber que se trata, nesses casos, de categorias de significados distintos.
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XIII
do ser, ainda que sempre historicamente determinada. Contudo, é bom esclarecer,
Lukács não se rendeu às teses da filosofia política de seu tempo, tendo em vista que
nele a política perde seu caráter voluntarista, ou seja, ele não a considerava, de modo
algum, o exercício da vontade livre de toda necessidade de ordem material ou
econômica. Ao contrário, a prática política, assim como todo pôr teleológico, implica
o reconhecimento e a apreensão da malha causal da objetividade social e a eficácia da
atividade que, de fato, põe em movimento aspectos da realidade social. Não se trata,
nesse sentido, do mero jogo de disputas entre vontades, mas da ão que incide sobre
o campo das possibilidades concretas e põe em curso tendências essenciais,
igualmente concretas, da realidade social. Embora tenha dado passos decisivos na
determinação do fator subjetivo na política em sua unidade dialética com os fatores
objetivos (cf. FORTES, 2015; FORTES; VAISMAN, 2014), tomada nesses termos, fica
evidente que a crítica da politicidade presente na obra marxiana passa desapercebida
ao filósofo húngaro.
Referir o problema da ontonegatividade da política ainda que neste espaço
não se possa desenvolver o problema de maneira aprofundada permite destacar um
elemento importante de seus limites na apreensão do pensamento marxiano. Tal como
bem salientou J. Chasin, para Marx a política
é ontonegativa, precisamente, porque exclui o atributo da política da
essência do ser social, só o admitindo como extrínseco e contingente
ao mesmo, isto e, na condição de historicamente circunstancial; numa
expressão mais enfática, enquanto predicado típico do ser social,
apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-
história (CHASIN, 2009, p. 64).
É mister também referir a luta feroz de Lukács contra os dogmatismos que
vicejaram entre os marxistas, ou seja, ao contrário do que é propalado, ele não se
rendeu aos ditames do partido e, levando em conta as restrições da época, contrapôs-
se à dogmática stalinista em vários momentos. Contudo, como homem de seu tempo,
engajado na luta pela consolidação do que acreditava que era o comunismo, Lukács
não se furtou a fazer depoimentos protocolares em defesa do “socialismo realmente
existente” de seu tempo contra o capitalismo. No plano político, uma vez que se
colocava conscientemente na condição de ideólogo, Lukács sempre buscou
contemporizar suas críticas, nunca deixando escapar de maneira direta e clara suas
objeções mais enérgicas ao sistema vigente nos países que intentaram transições
socialistas. A esse propósito, o depoimento de István Eörsi, contido na introdução à
obra autobiográfica de Lukács, é bem revelador:
uma única vez, precisamente no outono de 1968, não muito depois da
marcha das tropas do Pacto de Varsóvia sobre Praga, ouvi de sua boca a
seguinte declaração: “Parece que todo o experimento iniciado em 1917
fracassou e tudo tem de ser começado outra vez em outro lugar.” (
Apud
LUKÁCS,1999, p. 13)
Não se podem, porém, negligenciar frases afirmadas e reafirmadas de maneira
veemente por Lukács, que ainda hoje provocam espanto: “mesmo o pior socialismo é
melhor que o melhor capitalismo” (LUKÁCS, 2020, p. 42). Mesmo que Lukács quisesse,
com estes termos, apontar para o fato de que a dimensão cultural nos países ditos
Editorial
XIV | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
socialistas não havia ainda se mercantilizado, tal assertiva é danosa por subestimar
aspectos trágicos do stalinismo, como os Processos de Moscou, os expurgos de Stalin,
os
gulags
, a burocratização do estado soviético, a deturpação do pensamento
marxiano e outros. Nessa direção, István Mészáros (em entrevista publicada nesta
edição da
Verinotio
), ao comentar a afirmação de Lukács, acertadamente a refutou nos
seguintes termos: “é terrível dizer que ‘o pior socialismo é melhor que o melhor
capitalismo’, porque o pior socialismo não é o socialismo. É incompatível com o
conceito de socialismo” (pp. 444-445).
O autor nos deixou, de fato, um testamento filosófico que aponta caminhos que
precisam ser desdobrados e desenvolvidos. Dentre eles estão a tarefa de compreender
a forma da acumulação capitalista de nossos dias
4
e a necessidade de resgatar da
maneira devida a autenticidade do pensamento de Marx, além da persistência em
perspectivar transformações necessárias à emancipação humana. Vale, portanto,
insistir nesse sentido: Lukács é um pensador incontornável para todos aqueles que
pretendem fazer a crítica da sociabilidade atual e apontar caminhos para a sua
superação. Precisamente por isso, deve ser tratado com toda a seriedade a que faz jus
todo grande pensador; o que significa enfrentar de maneira rigorosa os limites de seu
pensamento e extrair as devidas consequências dos elementos-chave de seu legado.
O que se pretende com os termos deste Editorial é advertir para o risco de que
o resgate da herança de Lukács na
terra
brasilis
tenha o mesmo destino funesto que
conheceu na Hungria, logo depois de seu falecimento. No prefácio do
Pensamento
vivido
István Ëorsi, com extrema acuidade, apela para seus compatriotas para que não
sejam
responsáveis pela depreciação do nome de Lukács junto à opinião pública.
Hoje não há quase nenhuma atitude político-cultural ou editorial-cultural do
país que não seja enfeitada com citações de Lukács. O bloco dos “alunos”,
que cresce imensamente, se move sobre Lukács como moscas sobre a carne
(
apud
LUKÁCS, 1999, p. 23).
Mais do que nunca,
é preciso resgatar Lukács dos lukácsianismos dogmáticos,
vulgarizantes e simplificadores
, assim como foi necessário redescobrir o pensamento
de Marx frente às deturpações e descaminhos de seus seguidores tarefa à qual
Lukács febrilmente se dedicou. Por via de consequência, debruçar-se sobre os escritos
de Lukács, traduzir e difundir seus textos é tarefa à qual não nos furtamos, sempre
com o rigor analítico necessário, como forma de apreender de maneira precisa a
grandeza e os limites de seu pensamento.
***
A presente edição traz colaborações valiosas para a devida apreciação de
4
O que chamo de renascimento do marxismo teria, portanto, como uma de suas primeiras tarefas
examinar exatamente quais são as peculiaridades econômicas do capitalismo de hoje e então fazer com
que a atitude em relação ao capitalismo dependa dessa análise e não das análises de 80 anos atrás.”
(LUKÁCS, 2020, p. 175)
Por que não somos lukácsianos
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variadas dimensões que a obra e a própria figura de Lukács nos legaram. Dentre elas,
podemos destacar traduções inéditas para o português: a primeira delas,
cuidadosamente realizada por Carolina Peters e Murilo Leite responsáveis também
pela apresentação , traz a correspondência entre G. Lukács e G. Anders, trocada entre
julho de 1964 e abril de 1971. Como bem ressaltam os tradutores, trata-se de um
período agitado, que compreendeu as repercussões do bombardeio a Hiroshima e
Nagasaki, a Guerra do Vietnã, os movimentos políticos de Maio de 68 e as lutas do
movimento negro por direitos civis nos Estados Unidos”. Tornando-se amigos por
correspondência pois, a despeito de algumas tentativas, nunca se encontraram
pessoalmente no período , a intensa troca de cartas reflete o posicionamento de cada
um deles frente a tais acontecimentos e, malgrado algumas discordâncias, é perceptível
o esforço tuo em identificar pontos de assentimento a respeito de preocupações,
tanto práticas quanto teóricas, além da extrema gentileza com que se tratavam.
Marcadas pela sinceridade, sobretudo no que concerne à campanha de difamação
sofrida por Anders naquele momento, fica evidente a postura solidária de Lukács ao
seu correspondente. Por fim, sublinhe-se o empenho do ngaro, assim como a rápida
adesão de Anders, na campanha pela libertação de Angela Davis.
Outra tradução que enriquece a presente edição da
Verinotio
é a entrevista
concedida por István Mészáros ao editor Giorgio Riolo. Carlos Eduardo O. Berriel,
professor de história literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o
responsável pela tradução, com revisão técnica de Ronaldo V. Fortes. Instigado pelo
entrevistador, Mészáros fornece ao leitor informações relevantes a respeito do vínculo
que uniu Lukács aos poetas húngaros e, sobretudo, sobre suas preocupações no
campo da ética. Tudo isso para caracterizar a posição do mestre sobre a
responsabilidade dos intelectuais, preocupação que emergiu com frequência ao longo
de sua trajetória. O entrevistado também ressalta a formação e domínio que o filósofo
húngaro detinha acerca de questões estéticas, em particular no campo da literatura.
Tendo convivido com Lukács, Mészáros oferece outras informações acerca de
episódios de sua atividade político-partidária, de suas relações com figuras
significativas da época, além, é claro, de sua vida pessoal (algumas com certo ar de
indiscrição, diga-se de passagem), contributos excelentes para uma eventual biografia
do autor homenageado neste número, porque não contaminados por
parti pris
muito
comum entre seus comentadores mundo afora. Do mesmo modo, a entrevista revela
uma atitude destituída de qualquer tipo de louvação cega. Muito ao contrário, não
obstante a admiração nutrida em relação ao autor de
Para uma ontologia do ser social
,
Mészáros não omite suas reservas críticas acerca de determinadas afirmações e
posicionamentos que Lukács veio a assumir em momentos cruciais da história do
século XX, muito embora procure caracterizá-las levando em consideração o contexto
e as condições em que Lukács viveu e atuou.
A publicação recente no Brasil do livro
Goethe e seu tempo
não passou
despercebida pelos editores da
Verinotio
. O interesse e os estudos de Lukács sobre a
Editorial
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obra de Goethe foram contemplados por artigos, por uma resenha
5
e pela terceira
tradução para o português publicada na presente edição, esta sob a responsabilidade
de Ronaldo Vielmi Fortes, referente a artigos sobre Goethe escritos em Berlim nos
anos 1931-32. Não por acaso, levam o título de O Goethe fascistizado [
Der
faschisierte Goethe
]. Como esclarece o tradutor, responsável também pela
apresentação, a publicação de tais artigos
coincide com o jubileu de Goethe, momento em que na Alemanha se
prestavam várias homenagens ao grande escritor, e diversos jornais
dedicaram cadernos e matérias destacando a importância de sua obra. Os
eventos comemorativos realizados põem em evidência as interpretações
tendenciosas da obra goethiana, que, em linhas gerais, o aproximam da
apologia de um suposto espírito autêntico germânico, servindo de base
inclusive para tomá-lo como um dos precursores do nacional-socialismo (p.
343).
Tendo em vista o predomínio de interpretações de caráter no mínimo duvidoso
acerca do literato alemão, que infelizmente ainda transitam em certos escaninhos
acadêmicos, Lukács se pôs a escrever artigos, claramente concebidos como textos de
combate, que tinham por objetivo desmistificar tais intentos. Assim, ainda que no
decurso dos anos subsequentes tenha modificado algumas avaliações, em função do
aprofundamento de seus estudos sobre os escritos de Goethe, o que se percebe é a
permanência de certos critérios para o devido deslindamento do pensamento do autor
alemão, quais sejam, a indicação dos limites e méritos que sua obra como um todo,
em seus próprios pés, revela.
Ainda sobre os vínculos entre Lukács e Anders, mormente o interesse manifesto
do primeiro pela reflexão do segundo sobre Kafka, a
Verinotio
traz o artigo de Miguel
Vedda intitulado Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders
como intérpretes de Kafka. Nele, o professor titular de literatura alemã da
Universidade de Buenos Aires (UBA) enfrenta com erudição e por meio de análise
cuidadosa o que talvez possa ser considerado um dos capítulos mais controversos da
obra lukácsiana. O autor denuncia, logo de saída, o tratamento superficial e enganoso
com que professores tratam as relações de Lukács com alguns de seus
contemporâneos. Com grande acerto, avalia que as análises superficiais desenvolvidas
sobre a leitura lukácsiana de Kafka, reiteradamente, colocam o filósofo húngaro na
condição de “vilão” da história. E, contrariamente ao que se tem dito e escrito (e
repetido à exaustão, inclusive nos corredores das instituições universitárias e mesmo
entre seus intérpretes mais afamados), Vedda afirma que las críticas a Kafka, que
fueron mitigándose y alterándose con el paso del tiempo, convivieron con el
reconocimiento de que el autor checo es uno de los escritores más excepcionales de
la Modernidad tardía” (p. 270). Cumpre assinalar a utilização de um amplo amparo
bibliográfico por parte do autor, em que parte ponderável das referências se encontra
no original alemão, o que por si confere ao artigo não apenas erudição, mas
sobretudo solidez e rigor da pesquisa, aspectos muito rarefeitos nos estudos sobre o
tema. Como resultado, o leitor poderá descobrir o modo efetivo com que Anders e
5
Os comentários sobre os artigos e a resenha serão expostos mais adiante.
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XVII
Lukács trataram, cada um a seu modo, todavia com determinadas confluências, a obra
kafkiana.
O artigo de autoria de Ester Vaisman, intitulado Ainda sobre Lukács e o
romantismo: algumas considerações sobre os passos do itinerário de uma vida,
oferece, inicialmente, uma retomada do percurso realizado por Lukács no campo da
análise literária. Nesse caso, são problematizados aqueles comentários que tendem a
menoscabar os diversos momentos em que o autor em tela faceou o romantismo.
Nesse contexto, a autora faz a seguinte denúncia:
A “criação” ou reconstituição de um Lukács romântico (operação esta, sim,
de natureza romântica, na acepção verdadeira e negativa do termo, tanto no
sentido de salto para trás como de desrazão teórica) integra o que foi
chamado de mitificação do jovem Lukács e tem por orientação básica fazer a
defesa de suas fases pré e protomarxista, voltando-as contra o período
culminante de sua evolução, o platô de chegada de onde desenvolveu sua
obra propriamente marxista. (p. 24)
É evidente que a consolidação de uma linha interpretativa como a acima
denunciada repercute no exame da relação de Lukács com vários autores de língua
alemã, notadamente Goethe e o próprio
Sturm und Drang
no seu conjunto. Desse
modo, o devido resgate dos traços efetivos do movimento romântico e da natureza
contraditória do evolver goethiano realizado por Lukács é o escopo central do artigo.
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX é o título do
artigo de autoria de Leandro Candido de Souza, em que há um empenho plenamente
realizado de remontar cuidadosamente, a partir dos próprios textos, o debate entre
Lukács e Adorno. A pertinência do tema é flagrante, considerando a preponderância
(mais uma vez, sobretudo, nos meios acadêmicos) das teses de Adorno lidas e
repercutidas à exaustão em tom solene acerca da presumível submissão de Lukács
aos ditames da estética oficial soviética. Com o fito de analisar com mais segurança o
confronto Adorno/Lukács a respeito do aparecimento das vanguardas, o autor se vale
de análises realizadas por N. Tertulian e M. Vedda a esse respeito. Porém, ao final,
apoiando-se de maneira especial em Peter Bürger, Candido conclui que tanto Lukács
quanto Adorno, cada um por motivos diferentes, mostraram-se incapazes de
reconhecer as reais “implicações que os empreendimentos de vanguarda tiveram na
arte do século XX” (p. 265).
No artigo intitulado A relação entre objetividade e subjetividade no ato
estético, Monica Hallak Martins da Costa, detendo-se na
Estética
, publicada em 1963,
busca recuperar a argumentação de Lukács no que concerne às relações entre a
mimese artística e a vida cotidiana, reconhecendo o modo específico como a arte se
distancia da cotidianidade, ao mesmo tempo em que mantém com ela vínculos
indissolúveis. No interior desse processo, a autora identifica também as diferenças que
emergem entre o distanciamento artístico e o científico, especialmente no que se refere
aos liames entre subjetividade e objetividade. E é exatamente que o problema da
alienação [
Entäusserung
] emerge: ainda de acordo com a autora, Lukács teria se valido
da categoria no mesmo sentido que encontramos em Hegel. Entretanto, após
estabelecer as diferenças e similitudes entre o pôr teleológico que se verifica no
trabalho e aquele que caracteriza o pôr estético, Costa afirma que a presença tanto da
Editorial
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alienação quanto da retroação da alienação no sujeito é indispensável para o artista
como para o fruidor da obra. São ainda dimensões que se entrelaçam e o podem
existir em separado, o que, de acordo com a avaliação da autora, diferenciaria o trato
da categoria em exame em Lukács e em Hegel.
Voltado também à
Estética
de maturidade, o artigo A pintura na
Estética:
revisão analítica e aproximação com a categoria realismo crítico, de autoria de
Ronaldo Rosas Reis, discute a teorização levada a cabo por Lukács a respeito da
mimese na pintura. Ciente das dificuldades inerentes ao tratamento da questão, o autor
retoma com cuidado e rigor, além do próprio texto lukácsiano, indicações textuais de
Marx, direta ou indiretamente vinculadas ao tema. No decorrer da análise, explora
meticulosamente, por exemplo, a bidimensionalidade, a tridimensionalidade, o
conteúdo e a coordenação, além de ater-se às relações entre naturalismo e realismo
na pintura. No primeiro passo, a partir daquelas manifestações que o próprio Lukács
considera o momento genético da pintura, salienta a sua dimensão não-pública, o que
complexifica a identificação do caráter universal dessa manifestação artística. É
importante destacar que a contribuição de Reis se reveste de caráter instrutivo, tendo
em vista a farta utilização de imagens de pinturas inclusive as rupestres com a
finalidade de tornar mais acessível aos leitores o sentido que o filósofo húngaro
identifica na evolução da atividade pictórica, no interior do qual o caráter universal da
pintura é considerado resultado da
convergência entre a tridimensionalidade e a bidimensionalidade. Para ser
capaz de revelar a intensidade do conjunto representado e de cada uma de
suas partes, e novos aspectos a todo momento, cada elemento da obra tem
de cumprir inúmeras tarefas na conformação do detalhe e na coordenação
compositiva (pp. 126-127).
O autor resgata e analisa os comentários de Lukács sobre historiadores da arte,
sobretudo da pintura, além de outras referências contrárias ou próximas aos
argumentos desenvolvidos na
Estética
, procedimento este que enriquece a exposição
pretendida.
O artigo de autoria de Candido, Para uma arqueologia do sentimento estético:
o papel da arte paleolítica na
Estética
de György Lukács, debruça-se sobre um assunto
de invulgar importância na reflexão estética de maturidade do autor húngaro, mas que
raramente tem merecido atenção dos comentadores da obra.
Ao tratar do tema, além de romper com a abordagem evolucionista da história
da arte, Lukács teria retificado, por exemplo, grande parte de seu argumento
demasiadamente lógico e abstrato contido em
Introdução a uma estética marxista
(1957) sobre a categoria da particularidade, tomada sem mais da tradição clássica
alemã. Contudo, diferentemente do que ocorre em 1957, na Estética propriamente
dita Lukács termina por reconhecer o concreto, a vida cotidiana, como ponto de partida
a partir do qual se autonomizam as categorias específicas do pôr estético. Nesse
contexto, a lógica da particularidade” deixa de ser o centro categorial da obra de
1963, como bem demonstra ao autor.Com amplo conhecimento dos debates da
geração de Lukács, e do mesmo modo de autores que trataram do tema, o autor
fornece um quadro geral, em que o filósofo caminha em direção de um tratamento de
caráter ontológico-materialista, abandona em grande medida os passos anteriores e
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XIX
passa a dedicar sua atenção aos achados arqueológicos e pesquisas antropológicas
específicas, diante da necessidade de buscar a gênese da obra de arte. Daí a atenção
dedicada à arte pré-histórica, ou seja, às pinturas rupestres. Como resultado, tem-se
uma notável recuperação do tratamento lukácsiano dispensado ao tema e o
testemunho da coerência do filósofo em buscar a gênese dos processos de
autonomização categorial da arte.
A sombra do progresso: Lukács, Balzac e as contradições do realismo é o
título do artigo de autoria de Paula Alves. Apoiada em farta bibliografia, a autora
realiza, em um primeiro momento, questionamento fundamentado acerca de uma
suposta contraposição entre a atividade de escritor, de um lado, e a atividade política,
de outro, que teria marcado os escritos lukácsianos na cada de 1920. Na sequência,
procura demarcar a importância dos textos e artigos redigidos no exílio moscovita,
sobretudo no que diz respeito aos estudos sobre Balzac, sem deixar de mencionar a
intensa polêmica travada no interior daqueles setores vinculados à atividade literária
na União Soviética nem esquecer da disseminação da sociologia vulgar, que afeta
diretamente o debate sobre as relações entre arte e sociedade. No que diz respeito à
linha de desenvolvimento da análise lukácsiana da obra de Balzac, a autora demonstra
claramente o afastamento do filósofo húngaro dos marcos de interpretação
disseminados à época, que tendiam a associar a posição pessoal de determinado autor
em relação à sociedade de seu tempo com sua obra literária. Lukács, ao contrário, no
caso específico de Balzac, fugiu desse figurino, buscando no interior da obra, a partir
da composição dos próprios personagens e de suas inter-relações, o modo como
emerge o processo social da vida. Agregando a pesquisa sobre Stendhal realizada por
Lukács, a autora afirma o que se segue:
no processo de reflexão literária, é possível que o reacionarismo se constitua
outrossim como um ponto de vista privilegiado, o que permite que as obras
de escritores conservadores ofereçam uma crítica mais contundente do
capitalismo em ascensão do que aquelas de escritores cuja visão de mundo
é relativamente mais progressista (p. 197).
Deve-se ressaltar, em relação a esse mister, que, mais uma vez, entram em cena
os vários polemistas, que agora em torno do emprego da expressão “triunfo do
realismo” empregada por Lukács na republicação, em 1939, em idioma russo, do texto
A polêmica entre Balzac e Stendhal (que já havia sido publicada em 1938 na
Literaturnyi kritik
,) é publicado novamente em uma coletânea intitulada
K istorii
realizma
[Para uma história do realismo]. O debate que se seguiu e intensa a
participação de vários literatos russos são cuidadosamente referidos pela autora. O
resultado desse embate não poderia ter sido outro: em uma resolução oficial do Comitê
Central do Partido, é anunciada a dissolução da
Literaturnyi kritik
, com a justificativa
insólita de que o periódico teria perdido contato com a literatura propriamente
soviética. Prosseguindo na análise da produção teórica de Lukács realizada no exílio
moscovita, a autora se debruça nos assim chamados “Escritos de Moscou”, em especial,
sobre a noção de progresso neles contida. Por fim, realiza uma excelente análise sobre
a contradição do desenvolvimento social na obra de Balzac, na qual é trazida à tona a
avaliação precisa que Lukács concebe sobre o literato francês que, embora sempre
referida por comentadores, poucas vezes é de fato caracterizada em toda sua
Editorial
XX | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
complexidade como no artigo em tela.
Vitor Bartoletti Sartori, professor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), volta-se à apresentação de um tema de rico interesse,
sobretudo para aqueles pesquisadores empenhados na formulação da crítica do
direito, em especial, a partir da perspectiva lukácsiana. Contudo, o artigo de sua
autoria, intitulado Lukács diante da estetização do direito, contribui para uma
aproximação mais ampla ao tema, ao focalizar criticamente a sobreposição gerada
entre estética e direito, principalmente entre autores conhecidos como pós-
positivistas. O autor destaca a influência da filosofia da linguagem em tais propósitos,
especialmente no que concerne ao problema da interpretação e, por via de
consequência, dirige sua crítica a Dworkin, autor do livro
Levando os direitos a sério
,
que aproxima o direito e a estética, na medida em que concebe o
direito como uma espécie de romance em cadeia, escrito por distintos
autores, mas sempre com um senso de totalidade e de unidade. Assim, tal
qual em uma obra literária, não se teria uma simples enumeração de fatos,
mas algo assemelhado à estrutura do romance (p. 63).
Como bem ressalta o autor, um conhecido intérprete húngaro de Lukács,
nomeadamente Csaba Varga, tem realizado tentativas no sentido de aproximar a
formulação de Dworkin à obra lukácsiana, intento que é criticamente rechaçado por
Sartori, ao evidenciar com todo o rigor que, ao contrário do que supõe Varga, quando
se trata da obra do filósofo húngaro, notadamente de
Para uma ontologia do ser social
,
é absurda toda e qualquer tentativa de aproximação do direito e a estética.
Com o propósito de contribuir para a discussão em torno do problema das
continuidades e descontinuidades presentes ao longo da obra de Lukács no seu
conjunto, Francisco García Chicote escreve o artigo Ensayo y método en György
Lukács. O ponto de partida da reflexão do autor são determinadas colocações
formuladas por Wolfgang Müller-Funk em sua conferência O filósofo do século, em
que são consagradas interpretações sobre a presença no pensamento lukácsiano, de
dois princípios opostos: de um lado, uma perspicácia sociológica e, de outro, uma
herança idealista não superada. Depois de compulsar textos de autores diversos tais
como E. Bloch, S. Kracauer, T. Adorno e outros mais em busca de avaliações sobre o
referido dualismo, Chicote não deixa de referir uma linha analítica que enfatiza a
preferência pela fase madura. Entretanto, ao arrepio das interpretações consagradas,
entende ser necessário identificar uma espécie de denominador comum que estaria
presente ao longo do extenso itinerário lukácsiano: “uma atitude não-dogmática”
vinculada ao estilo ensaístico do filósofo em tela. Tal tese defendida pelo autor decorre
de investigação junto aos trabalhos do “jovem” Lukács, por exemplo,
A alma e as
formas
, em que a forma ensaio” teria sido concebida como alternativa à noção de
“sistema”, por seu caráter aberto. A defesa do caráter ensaístico em contraposição ao
sistema reapareceria em
Teoria do romance
e, do mesmo modo, no conjunto de
ensaios intitulado
História e consciência de classe
. Nesse passo, Chicote ressalta, para
além dos traços duramente criticados pelo próprio autor no afamado Prefácio de 1967
à obra em questão, que os
impulsos teóricos en la obra de Lukács surgen de una combinatoria peculiar
de teorías, conceptos y corrientes intelectuales generales, es decir, de una
Por que não somos lukácsianos
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constelación cuya lógica no proviene de ningún sistema preestablecido, sino
de la peculiaridad del objeto a cuyo se servicio se pone (p. 47).
O caráter ensaístico se torna, assim, o elemento crucial para a devida
compreensão da construção conceitual lukácsiana, traço este que teria perdurado nos
textos de maturidade, como o ensaio sobre
Minna von Barnhelm
de Lessing (1963) e
também no escrito sobre
Um dia na vida de Ivan Denísovich
, de Alexander Soljenítsin
(1964). Chicote sublinha que neles não se apresenta um caminho preestabelecido para
a resolução das tensões e conflitos vividos pelos personagens, muito ao contrário. As
figuras que se solidificam em princípios rígidos, prefixados, estariam condenadas à
ruína, ainda de acordo com o autor.
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
de
Thomas Mann é o título do artigo de autoria de Guadalupe Marando e Martín Salinas,
em que é oferecida uma rica análise acerca da figura do artista moderno presente no
livro
Doutor Fausto
de Mann. Tendo esse objetivo em mente, os autores, além de
percorrer as obras de juventude do escritor alemão, além daquelas escritas após a
publicação do livro em exame, identificam que nele o artista moderno é o único digno
de representação trágica, impossível de superar a figura de Adrian Leverkühn.
Acrescente-se também o fato de o modo como a figura do artista foi debatida por
outros autores contemporâneos ter recebido por parte de Marando e Salinas uma
pormenorizada contextualização. Ademais, é assinalado o reconhecimento por Lukács
de que o
Doutor Fausto
representa uma sistematização literária dos temas de
juventude de Mann, que, por seu turno, “guarda una relación particular con la propia
sistematización que Lukács lleva a cabo en su tratado
La peculiaridad de lo estético
(1963)” (p. 227).
Encerrando com chave de ouro a presente edição da
Verinotio
, publicamos duas
excelentes resenhas: a primeira, intitulada Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe,
de autoria de Carolina Peters; a segunda, escrita por Myreli Xavier, leva o título de
Goethe: para além das aparências. Frutos de leitura primorosa de dois livros, a
primeira sobre
Goethe e seu tempo
, de György Lukács, editado pela Boitempo, e a
segunda sobre o livro de Miguel Vedda,
Leer a Goethe
, publicado em Buenos Aires.
Em ambos os casos, cumpre ressaltar, não se trata apenas de comentários rápidos
sobre as obras resenhadas coisa que, infelizmente, tornou-se lugar-comum mas,
ao contrário, de resultado de esforço analítico sério no sentido de identificar o eixo
fundamental da argumentação das referidas publicações.
No caso da resenha sobre
Goethe e seu tempo
, a resenhista, ao avaliar a
contribuição da obra, assinala que o
volume de ensaios lukácsianos pode ser considerado exemplar, uma vez que,
aqui, a relação entre a arte e seu presente histórico, almejada desde o próprio
título do livro, é estabelecida a partir da análise imanente dos textos literários
(e filosóficos, no caso dos escritos estéticos de Friedrich Schiller e das
teorizações contidas na correspondência deste com Goethe), tomados em
sua singularidade (p. 455).
Análises dessa natureza e outras mais presentes na referida resenha são de
extrema utilidade não apenas na divulgação da obra, mas, sobretudo, para apresentá-
la devidamente ao público leitor.
Editorial
XXII | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
O mesmo pode ser dito a respeito da resenha sobre o livro de Vedda, visto que
nela a autora reconhece devidamente o empenho do professor argentino em se
subtrair da facilitação trivial que muito frequentemente ocorre com livros dessa
natureza. Ademais, desde logo, Myreli Xavier, reconhecendo o esforço e a competência
do pesquisador em literatura alemã, ressalta que o livro “inicia-se, portanto, com esse
laborioso esforço de desarticular leituras homogeneizadoras, que contribuíram para
converter Goethe em um mito, uma lenda”. Ressalta também que,
valendo-se do material produzido por críticos e biógrafos relevantes, da
correspondência pessoal do escritor alemão, bem como de sua vasta
produção literária, Vedda se dedica a demonstrar que quando se efetua uma
leitura honesta e objetiva do conjunto, sem privilegiar apenas o que
impressiona e o que se harmoniza com interesses e pontos de vista próprios
ou preestabelecidos, resulta clara a incorreção das referidas interpretações
(p. 461).
Boa leitura!
Ester Vaisman
Ronaldo Vielmi Fortes
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VAISMAN, Ester. O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade
em pleno século XXI?
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 1, p. 277-307, jan./jun.
2021.
Como citar:
VAISMAN, Ester; FORTES, Ronaldo V. Editorial: Por que não somos lukácsianos.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. VII-XXIII, mar. 2022.