DOI 10.36638/1981-061X.2020.28.1.667  
A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
The Marxian ontological critique, 180th anniversary  
Leonardo Gomes de Deus*  
Guilherme de Oliveira e Silva**  
Resumo: O artigo reexamina a leitura que Marx  
efetuou, em 1843, do pensamento de Hegel.  
Depois, são discutidas leituras contemporâneas  
do texto, além das próprias notas que o autor  
tomou durante o período. Defende-se a tese de  
que o texto de Kreuznach é instaurador na  
trajetória do autor.  
Abstract: The article addresses Marx's critical  
reading of Hegel's thought in 1843. We discuss  
contemporary approaches of the text, in  
addition to the notes that the author took  
during the period. We try to demonstrate how  
the Critique of Kreuznach is essential in the  
making of the author's own thought.  
Palavras-chave: Karl Marx; Hegel; ontologia;  
história do pensamento econômico; teoria  
econômica.  
Keywords: Karl Marx; Hegel; ontology; history of  
economic thought; economic theory.  
Introdução  
Publicado pela primeira vez em 1995, o Marx: estatuto ontológico e resolução  
metodológica marcou uma verdadeira revolução na leitura e recepção da obra  
marxiana entre nós. Seria necessária mais de década para que ficasse claro que a  
pesquisa feita por Chasin, precocemente interrompida, era, na verdade, uma tendência  
mundial. Somente quando o mundo civilizado começou a dizer coisas similares, o  
reconhecimento nacional aconteceu, sintoma vistoso do vira-latismo mental que  
domina nossa vida acadêmica. Na primeira década deste século, leitores brasileiros  
descobriram aspectos até então ignorados ou menosprezados da obra marxiana,  
processo impulsionado pelas importantes traduções publicadas, especialmente pela  
Editora Boitempo, fortemente ligadas ao legado de J. Chasin.  
Entre 1995 e 2005, a leitura da obra marxiana atravessava uma grave crise no  
*
Mestre em filosofia e doutor em economia pela UFMG. Professor do Cedeplar/Face/UFMG. E-mail:  
**Mestre em filosofia na Faje, doutorando em filosofia na Fafich/UFMG. E-mail:  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Leonardo Gomes de Deus; Guilherme de Oliveira e Silva  
Brasil. Por um lado, o movimento dos trabalhadores se encontrava esmagado entre a  
caminhada do PT em direção à social-democracia e o triunfo do mercado livre no  
mundo. Por outro lado, a preponderância acadêmica da chamada analítica paulista”  
estava em seu auge. Em 2000, saudado pela Folha de S. Paulo como o primeiro (e,  
portanto, único) filósofo brasileiro, Giannotti publicou o seu já esquecido Certa herança  
marxista, cuja conclusão é melancólica, tal qual seu desenvolvimento disléxico:  
Mas, se a contradição não segue mais os cânones da lógica  
especulativa, por certo deixa de dotar-se daquele poder de superação,  
como se a história fosse o desdobramento do Espírito Absoluto. Ao  
cair nesse deslize, Marx impregna todo seu projeto político daquele  
misticismo lógico que denunciara na teoria hegeliana do estado.  
(GIANNOTTI, 2000, p. 308)  
Perdido no cipoal da “gramática das relações sociais de trabalho” de Wittgenstein, o  
autor promoveu, sub-repticiamente, uma identificação entre os problemas e  
procedimentos enfrentados por Marx e Hegel, como se o fetichismo fosse apenas uma  
substituição do Conceito especulativo. Depois de dedicar uma linha ao problema no  
livro de 1966, em 2000, ele foi apressadamente tratado, certamente, uma resposta  
ao livro de Chasin. Mais grave ainda, no campo da economia política, o autor se  
prendeu aos debates teóricos dos tempos de Sraffa, ignorante das contribuições  
formuladas a partir da década de 1990, em suma, um livro anacrônico que tentava  
apenas reiterar a autoridade decadente da “analítica paulista”. Ele se perguntava:  
Qual é, porém, o alcance dessa questão básica relativa ao estatuto  
ontológico dos fenômenos socioeconômicos contemporâneos? Se  
continuam a ser pensados como segunda natureza, como leis  
objetivas a serem captadas por modelos elaborados por ciências  
positivas, permanece latente a pergunta pelo sentido dessa  
naturalização. (...) O reforço do fetiche do capital e a impossibilidade  
de transformar valor-trabalho em preços não estão na raiz das torções  
radicais por que passam os conceitos da teoria econômica a partir do  
final do século XIX? (GIANNOTTI, 2000, pp. 309-310)  
Concluiu, espantosamente, que o triunfo da “economia vulgar” se teria convertido  
numa força produtiva considerável, graças à atuação de instituições econômicas, as  
tais “instituições pensantes” que levariam o Brasil, pelas mãos do PSDB e do Cebrap,  
ao desenvolvimento global (GIANNOTTI, 2000,p. 312). Com toda justiça, essa leitura  
não prosperou e desapareceu juntamente com seu autor, o filósofo brasileiro. Que  
descansem em paz. Sua importância e seus limites merecem um estudo à parte. Para  
uma leitura rigorosa desse autor, recomendamos o trabalho da profa. Vera Cotrim, de  
2015, finalmente, um acerto de contas preliminar com essas questões, todas elas,  
naturalmente, ainda a carecer de um descarte definitivo, que promoveremos  
Verinotio  
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A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
oportunamente.  
Este artigo, por sua vez, reexamina as relações de Marx com o pensamento  
hegeliano, notadamente a Crítica da filosofia do direito de Hegel, escrita na lua de mel  
mais produtiva da história do pensamento humano. Desde 1995, muito se produziu a  
respeito desse texto, sob orientação e inspiração de Chasin e, aqui, não cabe reiterar  
o que já se disse, embora seja necessário enfatizar a novidade dessa perspectiva.  
Busca-se, principalmente, inventariar as publicações que se seguiram, além de, no  
arremate do argumento, propor o que ainda se pode pesquisar com imensa  
originalidade a respeito do ano miraculoso de 1843.  
Além desta introdução o texto se divide em três seções, além da conclusão. A  
primeira revisita a própria crítica de Marx a Hegel, a segunda discute algumas leituras  
importantes e a terceira apresenta alguns elementos para futuras aproximações em  
relação ao processo de redação da Crítica de 43.  
Dedicamos esse texto à memória do Rei Pelé.  
Do mundo pervertido de Hegel ao estatuto ontológico  
Desde sua publicação em 1927, na MEGA de Riazanov, a Crítica da filosofia do  
direito de Hegel sempre foi lida, em geral, como um prenúncio das rupturas futuras,  
ou seja, dos futuros desenvolvimentos metodológicos do materialismo, especialmente,  
a partir da leitura althusseriana, quando o texto de 1843 se tornou, por décadas, obra  
de imaturidade juvenil, sem qualquer relevância própria, mera aplicação de A essência  
do cristianismo de Feuerbach à crítica de Hegel, muito embora, já em 1843, Marx  
criticasse Feuerbach por se voltar muito à natureza e pouco à política e ao estado,  
como atesta a carta a Ruge de 13 de março daquele ano (MEGA2 III.1, p. 45). Muita  
da confusão se deveu aos próprios testemunhos de Marx, constantes do prefácio de  
1859 e do posfácio de 1872, com todos os abusos que a vulgata estalinista produziu  
a partir deles. No caso do texto de 1872, os problemas exegéticos são evidentes. Marx  
disse, então:  
Meu método dialético em seus fundamentos, não é apenas diferente  
do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. (...) A mistificação  
que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que  
ele tenha sido o primeiro a expor de modo amplo e consciente, suas  
formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para  
baio. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro  
do invólucro místico. Em sua forma mistificada, a dialética esteve em  
moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. (MARX,  
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Leonardo Gomes de Deus; Guilherme de Oliveira e Silva  
2013, p. 91)  
Só leitores apressados, mesmo que sejam gigantes, como Lênin ou Pe. Vaz,  
tomariam esse trecho sob a perspectiva de que Karl Marx teria realizado,  
simplesmente, um sirshásana metodológico em torno da lógica hegeliana, que sua  
obra seria a inversão do maravilhoso método de Hegel. Na verdade, quando se fala,  
aqui, da racionalidade invertida, quer-se tratar de outra coisa, o que foi desconsiderado  
pelos intérpretes. A crítica de 1843 marca uma instauração, ainda que inicial, de um  
pensamento original. Mesmo a ideia de uma negação/conservação, a tão decantada  
“suprassunção”, torna-se limitadora aqui, já que os próprios elementos que seriam  
conservados são totalmente reconfigurados. Vejamos como isso se dá textualmente.  
Muito já se escreveu sobre essas páginas e, portanto, cabe apenas reiterar alguns  
pontos1.  
Infelizmente, as primeiras páginas do manuscrito se perderam, mas sabemos  
sobre o que versaram, em tese, graças ao índice que Marx redigiu, no verão de 1843,  
depois da redação do texto (MEGA2 I.2, p. 138). Havia três pontos que interessavam  
ao autor, quando abandonou a redação: 1) A duplicação do desenvolvimento  
sistemático; 2) O misticismo lógico; 3) a Ideia como sujeito(os sujeitos reais se  
tornam meros nomes). No começo do manuscrito, Marx parece ter uma agenda, ainda  
por ser devidamente pesquisada em detalhes, como se mostrará mais adiante: a crítica  
do mundo pervertido de Hegel, em que a divisão entre, de um lado sociedade civil e  
família e, de outro, o estado, aparece como uma divisão conceitual da própria Ideia do  
estado. Nas palavras de Marx: “O importante é que Hegel, por toda parte, faz da Ideia  
o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da ‘disposição política’, faz o  
predicado.” (MARX, 2005, p. 32) O corolário dessa crítica aparece, no final do  
manuscrito, quando Marx avalia a fracassada tentativa hegeliana de superar a  
separação entre estado e sociedade civil por meio do poder legislativo, segundo Marx,  
“exemplo significativo de como Hegel, quase deliberadamente abandona a coisa no  
interior de sua própria particularidade e lhe imputa, em sua forma limitada, um sentido  
oposto a essa limitação.” (MARX, 2005, p. 137). Nas glosas ao parágrafo 270, Marx  
afirma:  
O trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize  
nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas  
1 Para uma nova e arejada leitura imanente do texto, cf. Palu (2019).  
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A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento  
filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não  
serve à demonstração do estado, mas o estado serve à demonstração  
da lógica. (MARX, 2005, p. 39, grifo nosso)  
Por toda parte, a tematização hegeliana perverte a realidade do ser, sua diferença  
específica, e o converte em mero nome da Ideia abstrata, embora todos os volteios  
dessa Ideia não sejam mais do que a “empiria ordinária”. Esse é o “misticismo lógico,  
panteísta” de Hegel: “O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal,  
mas como resultado místico. O real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro  
conteúdo a não ser esse fenômeno.” (MARX, 2005, p. 31) Na seção dedicada ao poder  
monárquico hegeliano, a natureza da crítica marxiana se revela claramente, Hegel parte  
de um predicado, de um objeto autonomizado e o separa de seu sujeito real,  
convertido assim em resultado da universalidade abstrata, da substância mística,  
enquanto o procedimento correto seria “partir do sujeito real e considerar sua  
objetivação”. Hegel não parte do “ente real, do ὑποκείμενον, mas da ideia mística:  
“Hegel não considera o universal como a essência efetiva do realmente finito, isto é,  
do existente, do determinado, ou, ainda, não considera o ente real como o verdadeiro  
sujeito do infinito.” (MARX, 2005, p. 44). O fato de essa passagem ter sido sempre  
lida como uma questão puramente metodológica, como uma inversão dialética, como  
o prenúncio de um materialismo dialético, em nada invalida seu caráter e sua  
importância. Não há apenas uma inversão em relação à dialética hegeliana, mas seu  
descarte e a instauração de uma crítica de novo talhe. Nas palavras de Chasin:  
Essa reflexibilidade fundante do mundo sobre a ideação promove a  
crítica de natureza ontológica, organiza a subjetividade teórica e assim  
faculta operar respaldado em critérios objetivos de verdade, uma vez  
que, sob tal influxo da objetividade, o ser é chamado a parametrar o  
conhecer, ou, dito a partir do sujeito: sob a consistente modalidade  
do rigor ontológico, a consciência ativa procura exercer os atos  
cognitivos na deliberada subsunção, criticamente modulada, aos  
complexos efetivos, às coisas reais e ideais da mundanidade. É o  
trânsito da especulação à reflexão, a transmigração do âmbito  
rarefeito e adstringente, porque genérico, de uma razão tautológica,  
pois autossustentada e nisso se esgota a impostação imperial da  
mesma, para a potência múltipla de uma racionalidade flexionante,  
que pulsa e ondula, se expande ou se diferencia no esforço de  
reproduzir seus alvos, empenho que ao mesmo tempo entifica e  
reentifica a ela própria, no contato dinâmico com as coisasdo  
mundo. Racionalidade, não mais como simples rotação sobre si  
mesma de uma faculdade abstrata em sua autonomia e rígida em sua  
conaturalidade absoluta, porém, como produto efetivo da relação,  
reciprocamente determinante, entre a força abstrativa da consciência  
e o multiverso sobre o qual incide a atividade, sensível e ideal, dos  
sujeitos concretos. (CHASIN, 2009, p. 58)  
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O primeiro passo instaurador da crítica ontológica marxiana, portanto, é o  
descarte da especulação, não meramente como a colocação de um universo teórico de  
ponta à cabeça, ou a seleção de alguns de seus elementos. A crítica da especulação e  
das ideias em geral, por isso, só se pode completar quando seja feita precisamente a  
crítica do próprio ser, ou seja, uma crítica de natureza ontológica. Essa a razão pela  
qual a crítica da especulação emerge, na Crítica de 43, da análise que Marx efetua, a  
partir de Hegel, do próprio funcionamento do estado e da sociedade civil modernos.  
Nesse caso, o resultado é bastante conhecido e repercutirá nos textos posteriores a  
1843, como o próprio Marx atestou no prefácio de 1859.  
Como se disse acima, um dos elementos da crítica à especulação hegeliana é  
precisamente a conversão do existente, da empiria, na racionalidade universal, ou por  
outra, na manifestação da Ideia transcendente. O corolário dessa constatação é exame  
crítico do monarquismo hegeliano, que considera o monarca a encarnação da Ideia de  
estado. Aqui e, nas seções seguintes, que examinam o poder governamental e o poder  
legislativo hegelianos, Marx não só destrói o edifício da Filosofia do direito, mas tenta  
desenvolver sua própria tematização política. Nas entrelinhas dessa agenda prática,  
emergem as dúvidas e questões que só serão respondidas nos textos imediatamente  
posteriores, que não caberá examinar aqui.  
Importa apontar que o pensamento hegeliano, a despeito de todos os seus  
problemas indicados acima, é considerado por Marx como a expressão filosófica de  
questões políticas postas pela própria modernidade, a saber, a cisão entre estado e  
sociedade civil, entre o cidadão abstrato e titular de direitos e o membro concreto da  
sociedade civil efetiva. Para além da inversão hegeliana entre os polos determinativos  
de estado universal e sociedade concreta, Marx considera também a questão de sua  
cisão irreconciliável, a alienação política, que Hegel, com seu absurdo sistema de  
mediações, não logrou conciliar. Uma questão a respeito que foi raramente tratada é  
a posição marxiana diante desse quadro, na economia de seu texto. Se no início ele  
fala da verdadeira democracia e, ao final, faz uma defesa do sufrágio universal como  
remédios para os dilemas da representação no estado moderno, entre um e outro  
ponto do argumento parece se instaurar uma dúvida em seu desenvolvimento, possível  
razão para o abandono da redação e, sobretudo e muito principalmente, para a  
mudança de posição, imediatamente presente em Sobre a questão judaica e Crítica  
da filosofia do direito de Hegel Introdução, sem mencionar o início subsequente da  
crítica da economia política, já em Paris, ou seja, da busca da anatomia da sociedade  
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A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
civil.  
Assim, no primeiro momento, quando trata do poder monárquico, Marx afirma  
que “Hegel tem razão, quando diz: o estado político é a constituição; quer dizer, o  
estado material não é político” (MARX, 2005, p. 51). Ele se vale da perspectiva de  
Feuerbach (o padrinhodos escritos do período, na feliz expressão de Reichelt) para  
afirmar que a constituição política foi reduzida, na modernidade, à “esfera religiosa, à  
religião da vida do povo, o céu de sua universalidade em contraposição à existência  
terrena de sua realidade” (MARX, 2005, p. 51, grifos de Marx). Ele conclui, parágrafos  
adiante: “A abstração do estado como tal pertence somente aos tempos modernos  
porque a abstração da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A  
abstração do estado político é um produto moderno.” (MARX, 2005, p. 52, grifos de  
Marx) Por outro lado, na modernidade, ao menos no século XIX, o estado aparece  
como forma universal e, ao mesmo tempo, concreta, é um “universal real, ou seja, não  
é uma determinidade em contraste com os outros conteúdos” (MARX, 2005, p. 51).  
Além disso, a democracia é segundo Marx, princípio material e formal  
simultaneamente, nela, o estado se torna um conteúdo particular, material, ao lado dos  
demais conteúdos da vida do povo. Ou seja:  
Na democracia, o estado, como particular é apenas particular, como  
universal é o universal real, ou seja, não é uma determinidade em  
contraste com os outros conteúdos. Os franceses modernos  
concluíram, daí, que na verdadeira democracia o estado político  
desaparece. O que está coreto, considerando-se que o estado político,  
como constituição, deixa de valer pelo todo. (MARX, 2005, p. 51, grifo  
de Marx)  
O desaparecimento do estado, aqui, está longe, conforme se verá, da ideia de  
que ele seria absorvido pela sociedade civil. Bem ao contrário, a verdadeira democracia  
é precisamente, no início da Crítica de 43, a radicalização do pensamento  
revolucionário francês mais avançado. Em contraste com o mundo antigo e medieval,  
em que a política e a constituição dão a forma da vida social, aqui o estado aparece  
como um conteúdo ao lado dos demais da vida social e material do povo. Seu  
desaparecimento significa meramente sua desidratação, diminuição face à pujança da  
vida social moderna, ela mesma abstrata. Uma desastrosa interpretação dessa  
passagem será analisada na próxima seção.  
Se Marx se contenta com essa defesa de uma democracia verdadeira, no final do  
manuscrito, ele volta ao tema quando analisa o poder legislativo, a representação e o  
sistema de mediações hegeliano, desta feita, com um elemento novo. Ao analisar a  
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participação da sociedade civil no estado abstrato, duas sutis mudanças de perspectiva  
se insinuam. Em primeiro lugar, o ponto culminante do sistema representativo de Hegel  
é a nobreza hereditária, baseada no instituto do morgadio. Para Marx, a obra  
hegeliana, ainda como expressão filosófica da modernidade, aparece como defesa  
rasteira da propriedade privada, não por causa dos volteios da dialética hegeliana,  
mas em razão do próprio estado moderno, em que “a independência política é um  
acidente da propriedade privada, não a substância do estado político” (MARX, 2005,  
p. 122). O estado político aparece como o “espelho da verdade” dos momentos da  
vida social, nas palavras de Marx, como seu “ser genérico”. Em segundo lugar,  
enquanto no início do manuscrito a verdadeira democracia seria o desaparecimento  
do estado porque ele se tornara uma parte da vida material da sociedade civil, agora  
a “vida genérica” dessa sociedade civil se converte em seu contrário, o estado se  
converte no universal concreto porque existe a “propriedade privada independente”,  
isto é, a sociedade civil é o reino da alienação, razão pela qual esse momento  
preponderante deve ser investigado em sua anatomia, como nosso autor tratará de  
fazer nos meses (e décadas) seguintes.  
Apesar disso, Marx ainda empreende uma última e vazia defesa da cidadania nas  
linhas finais de seu manuscrito, antes de abandoná-lo. A defesa do sufrágio universal  
emerge não como a dissolução do estado apenas, mas também da sociedade civil,  
conforme diz Marx:  
É somente na eleição ilimitada, tanto ativa quanto passiva, que a  
sociedade civil se eleva realmente à abstração de si mesma, à  
existência política como sua verdadeira existência universal, essencial.  
Mas o acabamento dessa abstração e imediatamente a superação da  
abstração. Quando a sociedade civil pôs sua existência política  
realmente como sua verdadeira existência, pôs concomitantemente  
com inessencial sua existência social, m sua diferença com sua  
existência política; e com uma das partes separadas cai a outra, o seu  
contrário. A reforma eleitoral é, portanto, no interior do estado político  
abstrato, a exigência de sua dissolução, mas igualmente da dissolução  
da sociedade civil. (MARX, 2005, p. 135, grifos de Marx)  
Se a verdadeira democracia era o desaparecimento do estado como constituição  
política da sociedade, aqui, o sufrágio universal é a superação da própria abstração da  
sociedade civil em oposição à política. Marx pretende, com isso, a unidade formal e  
material da vida social. Não se perguntou ainda, no momento em que escreveria  
somente mais dez páginas manuscritas, a natureza dessa sociedade civil, até o  
momento descrita de maneira bastante edulcorada. Seja como for, a partir desse  
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A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
momento, não mais importa a forma política, o arranjo institucional, mas a crua  
realidade da vida baseada na propriedade privada, sua legalidade imanente e não sua  
lógica transcendente, mesmo que a própria categoria da “propriedade privada” sofra  
reconfigurações cruciais nas décadas seguintes, notadamente com a imediata ruptura  
com a crítica idealista e utópica de Proudhon. Isso só foi possível, como ponto de  
partida, em razão da correta dúvida desenvolvida em Kreuznach, o exercício da crítica  
que toma o ser como parâmetro da investigação frente às ideias preponderantes de  
uma época. Não por acaso, essa crítica, no momento de sua instauração, termina com  
o brado indignado: “O Jerum!” (MARX, 2005, p. 141). Ironicamente, no curso do  
manuscrito, Marx menciona a profissão de sapateiro como contraponto social e efetivo  
à vida abstrata do cidadão universal que participa do estado. Se, em 1868, esse  
mesmo brado seria imortalizado no canto barulhento de Hans Sachs, em Marx a  
expressão tem um sentido diametralmente oposto. Enquanto em Wagner o espírito  
alemão descia à Terra e superaria a miséria alemã pela via do capitalismo belicoso (e  
inspirado por Schopenhauer), para Marx, bem ao contrário, a única possibilidade de  
superação desse atraso e de sua máxima expressão ideal, a filosofia hegeliana, seria a  
completa dissolução da própria indigência da sociedade de mercado, que ele trataria  
de investigar em Paris. Naturalmente, ele acreditava que essa investigação seria  
rapidamente concluída, ilusão que os quarenta anos seguintes tratariam de desfazer,  
Paris, Manchester, Bruxelas etc. até o parque de Highgate, depois de duas revoluções  
exterminadas.  
Três leituras importantes: a antiga, a nova, a errada  
Muitos autores importantes acessaram com alguma correção e certo rigor esse  
material, os escritos de Cornu, Mario Rossi, Galvano della Volpe, Celso Frederico, por  
exemplo, merecem ser sempre exaltados. Uma revisão dessa literatura não é cabível  
neste artigo. No entanto, em linha com o que se apresentou acima, é justo e necessário  
apontar duas leituras importantes, uma antiga, outra nova, com muitos acertos e, em  
contrapartida, a leitura mais errada que se fez da Crítica de 43. No primeiro caso,  
temos Lukács e Reichelt, separados por mais de meio século, unidos por um idioma,  
no segundo, o obtuso Abensour, ao menos em seu obtuso livro dedicado ao  
manuscrito marxiano em tela. A partir daqui, naquilo que se refere a Lukács e  
Abensour, sem maiores acréscimos ou reparos, fazemos remissão ao nosso livro de  
2014. Naturalmente, a avaliação de Reichelt seguirá por um caminho novo.  
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Publicado como livro em 1965, dez anos depois da edição na forma de artigo,  
O jovem Marx lukácsiano abriu uma nova clareira na recepção do texto em tela, assim  
como na avaliação do conjunto de textos até os Manuscritos de 1844. Para o pensador  
húngaro, na Crítica de 43, Marx não se contentou em se apropriar de certos temas e  
aspectos das obras de Hegel e Feuerbach, mas os desenvolveu numa perspectiva  
superior, ou seja, o texto marxiano possui um caráter instaurador. Diz Lukács:  
Os escritos da primavera e do verão de 1843 não representam mais  
apenas um desenvolvimento radical, mas uma crítica de princípio, que  
aponta para uma inversão da filosofia hegeliana do direito e, como  
Marx o diz claramente em algumas passagens, da filosofia hegeliana  
em geral. Desse modo, o objetivo inicial é certamente retomado em  
amplas observações sobre as teses de Hegel, mas a nova formulação  
vai bem além disso. (LUKÁCS, 2009, p. 142)  
Essa a maior virtude do texto lukácsiano, ao contrário de autores como Althusser,  
foi perceber a novidade e a ruptura com Hegel e com o idealismo já em 1843. Mesmo  
a influência feuerbachiana no período mereceria ser pensada com prudência, já que o  
materialismo de Feuerbach se apresentava limitado e ingênuo aos olhos de Marx,  
conforme expressou na carta a Ruge citada acima, também mencionada por Lukács. A  
instauração materialista da Crítica de 43 representa, por isso, a ruptura com todo o  
idealismo, criticado por Marx como sustentáculo ideológico do reacionarismo  
prussiano. Certamente, nesse quesito, o texto lukácsiano de 1955 ecoava seu A  
destruição da razão, publicado no ano anterior.  
Apesar dessa grande virtude, a obra lukácsiana ainda está circunscrita, em razão  
do momento em que foi escrita, a uma perspectiva puramente metodológica: o texto  
de Marx seria a instauração de um novo materialismo, não só como reação ao idealismo  
reacionário, mas também em relação ao materialismo feuerbachiano. Além disso,  
Lukács avalia o texto de 1843 como a conter os elementos iniciais do método dialético  
de Marx. O que lhe permite fazer tal asserção é a análise da longa discussão que Marx  
empreende sobre o sistema de mediações de Hegel, efetuada pelos estamentos da  
câmara baixa do poder legislativo. De fato, Marx demonstra o absurdo desse sistema,  
ao contrário do que supõe Lukács, no entanto, não está a buscar um caminho para a  
resolução de contradições reais por meio de um método dialético, contraposto ao  
método hegeliano, o que poderia indicar o embrião da futura luta de classes. Como  
mostramos em nosso livro, Marx seguiu aqui a tematização feuerbachiana, o oposto  
da dialética, conforme se lê no texto marxiano: “Extremos reais não podem ser  
mediados um pelo outro, precisamente porque são extremos reais. Mas eles também  
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não precisam de qualquer mediação, pois eles são seres opostos. Não têm nada em  
comum entre si não demandam um ao outro, não se completam.” (Marx, 2005, p. 105)  
A questão profunda, uma vez mais, é a subsunção da realidade, de uma contradição  
real entre dois seres opostos, à pura lógica especulativa, inexiste, portanto, uma  
questão metodológica para a resolução dialética de oposições reais. Como se  
mencionou acima, a obra hegeliana é a expressão acabada da cisão entre estado e  
sociedade civil e, poucas páginas depois, Marx abandonaria o manuscrito justamente  
porque a solução do problema não se encontrava nos quadrantes da política,  
tampouco de uma metodologia dialética. Embora aponte o caráter instaurador,  
portanto, Lukács acaba por detectar os elementos iniciais de um materialismo dialético  
que teria contribuído “no aperfeiçoamento global da dialética materialista até O capital,  
até os Cadernos ilosóficos de Lênin etc.” (LUKÁCS, 2009, p. 149). Comete, em suma  
um erro exegético muito comum quando nos aproximamos dos textos de juventude,  
ou seja, lermos esse material à luz do que o pensamento marxiano se tornaria na obra  
de maturidade, desidratando sua originalidade e importância em si mesmo.  
53 anos depois, coube a Helmut Reichelt reavaliar as relações entre Marx e Hegel  
sob nova perspectiva, a reiterar muitas das questões aqui tratadas. Como se sabe, esse  
autor chegou ao Brasil de maneira tardia e ainda incompleta; seu livro de 1968, Sobre  
a estrutura lógica do conceito de capital em Karl Marx, só foi publicado em 2013,  
quando já fazia cinco anos que seu Nova leitura de Marx causara importantes  
discussões no mundo alemão. Com efeito, sobretudo entre os intérpretes originários  
da Alemanha Federal, a influência de Althusser, até aquele momento e ainda hoje,  
converteu-se em preponderante, isto é, a recepção dos textos de juventude, em geral,  
encontra-se em grande medida sob a influência avassaladora do autor francês. Reichelt  
é um dos poucos autores a destoar nesse coro dos contentes.  
O objetivo de seu livro de 2008 é promover uma nova discussão metodológica  
a partir dos problemas exegéticos que emergiram, já na década de 1960, com a  
publicação de diversos textos distintos do cânone até então em vigor, isto é, as  
dificuldades que surgiram com a difusão dos Grundrisse e das diversas edições de O  
capital. Segundo Reichelt, uma nova rodada de discussões se impôs, “em que o  
problema de constituição das categorias econômicas e seu significado para a teoria  
social como um todo se converteram em tema central” (REICHELT, 2013, p. 11). A  
própria leitura empreendida, dentre outros, por Backhaus e o próprio Reichelt, sofreu  
consideráveis mudanças ao longo das décadas seguintes. Todo o problema, mal  
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resumindo, consistiu na formação de um sistema conceitual e teórico desprovido de  
objetividade, mas que possuísse, ainda assim, validade. Como a teoria social pode ser  
capaz de se constituir em sistema para compreender uma realidade peculiar como o  
conceito de capital, ele mesmo um valor que se valoriza de maneira abstrata, dado o  
duplo caráter do trabalho que explora:  
Isso também muda a "nova leitura de Marx"; se originalmente se  
buscava uma reconstrução do método, então a construção da  
objetividade tornou-se o tema central e o método ainda precisava ser  
trabalhado; pois, com a especificação de um conceito de validade, as  
categorias tiveram de ser desenvolvidas como formas válidas e não  
podiam mais ser apreendidas em termos reais. (REICHELT, 2013, p.  
13)  
Contrariando o Lukács do “marxismo ortodoxo”, Reichelt considera ser  
impossível abandonar as teses marxianas sem rejeitar o próprio marxismo, bem ao  
contrário, a construção de uma teoria crítica sistemática necessitaria da construção do  
próprio sistema válido, que contemplasse a unidade social e a objetividade. Não caberá  
aqui, naturalmente, a completa exposição do argumento de Reichelt, na expectativa de  
que não se passem outros 50 anos para a tradução de sua obra. Importa, no entanto,  
para nossos propósitos, ponderar como esse autor considera a crítica a Hegel o  
momento fundante da perspectiva marxiana sobre aquilo que Reichelt denomina de  
“mundo invertido” do capital, cujo desvelamento assumiria, a partir de 1843,  
centralidade na reflexão marxiana. A despeito de todos os problemas e discussões que  
suscita, o livro de 2008 merece ser trazido à colação aqui porque promove uma leitura  
bastante rigorosa do texto de 1843 e o situa, dentro do itinerário marxiano, em seu  
estatuto próprio, tal qual Chasin fizera 13 anos antes.  
Vários pontos importantes discutidos neste artigo aparecem no texto de Reichelt.  
Em primeiro lugar, as inversões entre subjetividade e objetividade, entre sujeito e  
predicado, entre ser e Ideia, promovidas por Hegel, seu misticismo lógico. Esse “mundo  
invertido” hegeliano expressa, no entanto, uma realidade invertida, qual seja, a cisão  
entre o cidadão e o indivíduo efetivo da sociedade. Por influência de Feuerbach, o  
“padrinho” da Crítica de 43, mas indo além de seus limites, “Marx apenas constata  
que, com a difusão e o desenvolvimento da propriedade privada, surge também esta  
forma de estado político, distinta da sociedade burguesa” (REICHELT, 2013, p. 392).  
A própria existência do indivíduo, portanto, é invertida, a levar uma vida no céu  
abstrato da política e outra na materialidade terrena da vida social. Em segundo lugar,  
ao contrário de Feuerbach, já aqui Marx o ultrapassa porque não “absolutiza o  
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individualismo burguês, mas antes busca pensar essa forma da individuação como  
relacionada ao desenvolvimento prático da propriedade privada” (REICHELT, 2013, p.  
398). Reichelt considera o problema formulado por completo já em Kreuznach, o que  
nos parece temerário, quando afirma, por exemplo, depois de expor o texto por  
completo, que tanto a sociedade civil quanto o estado político são formas estranhadas  
da vida do povo. Mostramos como o estranhamento social aparece apenas de forma  
indicativa ao final do texto. De todo modo, Reichelt teve o mérito de reiterar o  
problema exato colocado pelo texto de Kreuznach. Além disso, esse autor  
compreendeu corretamente o desenvolvimento imediatamente posterior constante dos  
textos Sobre a questão judaica e Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel,  
pouco importanto aqui a consideração da ideologia como falsa consciência (REICHELT,  
2013, p. 404).  
Ter apontado o significado desse itinerário para a formação da crítica marxiana,  
esse é um grande mérito de Reichelt, pouco considerado entre nós. Perceber, diante  
da enorme dominância da visão althusseriana, que a crítica marxiana se instaura no  
confronto com Hegel, tem sido desconsiderado sistematicamente, mesmo diante das  
sobejas evidências fornecidas pelos esforços de leitura imanente. Para Reichelt, “o  
conceito marxiano de crítica e seu duplo sentido estão aqui prefigurados” (REICHELT,  
2013, p. 417). E arremata, sobre esse sentido duplo:  
Crítica não consiste apenas em crítica das formas de consciência e  
teorias científicas, mas crítica é sobretudo crítica da própria realidade  
desde que a inversão real se possa decifrar como a unidade invertida  
de uma unidade social, que se efetiva na medida em que as pessoas  
se libertam da forma invertida. (REICHELT, 2013, p. 417)  
Seria exigir demais considerar essa avaliação como de talhe ontológico, que a crítica  
a Hegel marca a instauração da crítica ontológica de Marx. O contexto de Reichelt, com  
todos os seus acertos, não nos permitiria ir tão longe. O espantoso, no entanto, é  
como uma obra dessa passa despercebida entre nós, enquanto outras recebem  
tamanha atenção. É o caso de Miguel Abensour, que, tão logo publicou seu já  
esquecido A democracia contra o estado, em 1997, uma tradução foi imediatamente  
providenciada entre nós. Não creditemos esse fato às dificuldades relativamente  
maiores de tradução de um livro alemão em relação a um texto diminuto em francês,  
assunto para uma futura história da vida acadêmica nacional em tempos de crise. Como  
se disse acima, para a avaliação de Abensour, reproduzimos, literalmente, nosso livro  
de 2014, pp. 109 a 114.  
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Abensour pretende retomar a obra marxiana e a Crítica de 43 em especial, com  
o propósito de enunciar “à custa de novos esforços, a questão e o imperativo da  
emancipação” (ABENSOUR, 1998, p. 15). A emancipação à qual ele se refere é a  
emancipação política, que teria sido pensada por Marx na Crítica e que teria ficado  
latente em sua obra durante o período do “materialismo histórico”, quando o político  
teria sido pensado como “fenômeno derivável e, de alguma forma, secundário” (ibid.,  
p. 29), para ressurgir em alguns momentos, como em A guerra civil na França. Após a  
redação das Glosas de 43, segundo Abensour, teria havido uma “tendência à ocultação  
do político, sob a forma de uma naturalização, de uma inserção do político em uma  
teoria dialética da totalidade social” (ABENSOUR, 1998, p. 31), o que marcaria uma  
certa ambiguidade na obra marxiana, oscilando entre a denegação do político e o  
pensamento democrático. Para fazer essa divisão no pensamento marxiano, Abensour,  
necessariamente, atribui um caráter definitivo à Crítica de 43, omitindo que essa obra  
representa um momento transitório no pensamento marxiano. Nas obras escritas  
imediatamente após, Marx tratou de realizar um acerto de contas com a posição que  
adotara em Kreuznach, algo que não é referido por Abensour. De qualquer forma, sua  
incompreensão em relação ao pensamento marxiano em geral não será exposta, dado  
o objeto deste trabalho. Ela já foi devidamente explicitada por Rubens Enderle em seu  
trabalho Ontologia e política. Caberá determinar, aqui, apenas a forma como a Crítica  
de 43 é apresentada por Abensour.  
Para ele, essa obra está inscrita naquilo que denomina “momento maquiaveliano”,  
que “consiste em afirmar a natureza política do homem e atribuir, como finalidade da  
política, não mais a defesa dos direitos, mas a execução dessa ‘politicidade’ primeira,  
na forma de uma participação ativa, enquanto cidadão, na coisa pública” (ABENSOUR,  
1998, p. 24). Para demonstrar essa tese, Abensour formula sua hipótese de leitura,  
que consiste em negar validade ao depoimento marxiano constante do Prefácio de  
1859. Ele diz:  
Se o intérprete, ao invés de procurar confirmar o resultado, como faz  
Marx, aceita refazer o caminho de Marx em direção ao resultado, sem  
visar a nenhum fechamento, isto é, tomando o caminho que não leva  
necessariamente ao resultado, proclamado em 1859, não se tornaria  
ele, então, sensível a uma outra dimensão do texto de 1843,  
esquecida ou rejeitada pelo Marx de 1859? O intérprete, pela  
prioridade que atribuísse, na crítica de 1843, ao processo do  
pensamento, não perceberia uma dimensão propriamente filosófica,  
sob a forma de um contínuo questionamento do político. Posição do  
intérprete que implica evidentemente uma leitura particular de Marx,  
longe das ortodoxias existentes ou de qualquer projeto de controle,  
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leitura que aceita deixar-se conduzir pelas perguntas de Marx, sem  
por isso fechá-las com uma resposta, leitura que joga  
preferencialmente com as contradições, com as tensões que  
atravessam o texto e com as implicações laterais, para entregar-se a  
um trabalho de abertura. (ABENSOUR, 1998, p. 29)  
Ainda que Marx tenha determinado, nas Glosas de 43, que as esferas da família  
e da sociedade civil são “o propriamente ativo”, Abensour afirma que “não basta que  
um caminho esteja aberto para ser necessariamente utilizado” (ABENSOUR, 1998, p.  
62). Assim, a autointerpretação de 1859 teria ido além do que foi o próprio texto de  
1843. No Prefácio”, Marx teria formulado uma “crítica essencialmente epistemológica”  
da política, contrária ao próprio teor das Glosas. Para Abensour, pode-se ler o texto  
de 1843, igualmente, “no seu movimento e na sua contemporaneidade”. Ele esclarece  
sua leitura:  
Não se trata de relacionar o universo político e suas formas com  
instâncias da totalidade social, que permitiram explicar,  
sociologicamente, o político. Dizer que o ponto de gravidade do  
estado reside fora dele mesmo indica, aliás, que é preciso relacionar  
o estado com esse movimento que o excede, que o coloca fora de seu  
eixo; relacioná-lo a essa sobre-significação que o atravessa e cujo  
sujeito real não é outro senão a vida ativa do dêmos. Em outras  
palavras, o povo real detém o segredo da sobre-significação que  
obseda o estado moderno. Em outras palavras, o foco de sentido do  
estado moderno, o que sob a forma de um horizonte implícito dá  
sentido ao estado político (e ao mesmo tempo o relativiza), é a vida  
plural, maciça, polimorfa do dêmos. (ABENSOUR, 1998, p. 66)  
Pode-se ver, nessa passagem, que Abensour nega validade não apenas ao  
depoimento de 1859, mas ao próprio texto de 1843. Ele estabelece distinções  
conceituais arbitrárias, sem qualquer rigor ou embasamento no texto. O demos, para  
ele, é algo diferente da sociedade civil, da existência material dos indivíduos. Com isso,  
perde-se a afirmação categórica da sociedade civil como o sujeito da politicidade,  
como se Marx estivesse buscando um estatuto específico para a política fora da  
sociedade civil, como se pretendesse salvar a política da “totalidade social”. Abensour  
afirma:  
É por isso que fixar a atenção na família, na sociedade civil burguesa,  
erigindo-as em patamares determinantes, implicaria deter  
arbitrariamente a análise de Marx, resultaria em interromper o  
movimento de regressão radical, que o leva à procura de um sujeito  
autenticamente originário, à procura do que ele próprio chama de raiz.  
(...) Seguindo esse caminho em direção ao originário, podemos, na  
verdade, ressaltar que, se Marx desvia primeiramente a atenção do  
estado, para orientá-lo em direção à sociedade civil e à família, longe  
de deter-se nesse estágio, ele continua sua análise, até poder  
relacionar sociedade civil, família que, nessa perspectiva, aparecem  
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como derivadas com um sujeito, foco de atividade originário, o  
dêmos ou mais, exatamente, o dêmos total. (ABENSOUR, 1998, p. 65).  
Partindo desse pressuposto, Abensour pode então explicar a formulação da  
verdadeira democracia e o desaparecimento do estado político, inscrevendo-os no  
momento maquiaveliano: a autonomização e a delimitação do momento político em  
relação às demais esferas. A verdadeira democracia seria a afirmação da  
transcendência da politicidade em relação à vida social, à vida do dêmos total, o que  
é afirmado nesta passagem:  
Existe, com efeito, para Marx, como que uma sublimidade do momento  
político. A elevação é própria da esfera política: em relação às outras  
esferas, ela representa um além. Ao político é, pois, legítimo  
reconhecer os caracteres da transcendência: uma situação para além  
das outras esferas, uma diferença de nível e uma solução de  
continuidade em relação às outras esferas, valorizada por Marx,  
quando acentua o caráter luminoso, o caráter extático do momento  
político. A vida política é a vida aérea, a região etérea da sociedade  
civil burguesa.No político e pelo político, o homem entra no  
elemento da razão universal e faz a experiência, enquanto povo, da  
unidade do homem com o homem. O estado político, a esfera  
constitucional, desdobra-se como o elemento onde se efetua a  
epifania do povo, ali onde o povo se objetiva enquanto ser genérico,  
enquanto ser universal, ser livre e não limitado, ali onde o povo  
aparece, para ele mesmo, como ser absoluto, um ser divino.  
(ABENSOUR, 1998, p. 97).  
Essa passagem exemplifica muito bem o procedimento de Abensour, que cita fora  
de contexto diversas frases de Marx. Nesse caso, a frase sobre a abstração da vida  
política, formulada como uma crítica, aparece aqui como um atributo positivo conferido  
por Marx à política moderna.  
Além disso, conquanto represente a afirmação da política, a tematização marxiana  
da verdadeira democracia só pode ser compreendida como redução não apenas do  
estado, como pretende Abensour, mas da própria politicidade, como apropriação, pela  
sociedade civil, dessa esfera que, na modernidade, encontra-se alienada. Cabe citar,  
uma vez mais, a formulação marxiana acerca da forma de representação que  
vislumbrava, para além do sistema representativo, para além da “vida aérea” da  
política: “A sociedade civil é sociedade política real.” Nesse caso, “toda atividade social  
determinada representa, como atividade genérica, apenas o gênero, quer dizer,  
representa uma determinação de meu próprio ser, assim como cada homem é o  
representante do outro.” Cada homem “não é representante por meio de algo diferente  
do que ele representa, mas por meio daquilo que ele é e faz(MARX, 2005, p. 133).  
É a partir dessa formulação que se pode compreender a verdadeira democracia, que  
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constitui a autodeterminação da sociedade civil a partir de sua existência material.  
Diante disso, a “leitura” de Abensour soa verdadeiramente absurda, quando ele afirma:  
“Somente o ‘desligamento’, no nível da sociedade civil burguesa, permite a experiência  
de uma ligação genérica, pela entrada na esfera política.” (ABENSOUR, 1998, p. 80).  
A determinação marxiana da política como a vida genérica alienada da sociedade civil  
é interpretada por Abensour como algo positivo: “Chegamos, assim, ao paradoxo de  
que o homem faz a experiência do ser genérico, na medida em que se desvie do seu  
estar-aí social e que se afirme em seu ser de cidadão, ou antes, em seu dever-ser de  
cidadão.” (ABENSOUR, 1998, p. 81) Dá-se, com isso, a total inversão do texto  
marxiano. Na interpretação de Abensour, a prospecção marxiana da autodeterminação  
da sociedade civil se transforma justamente na indeterminação da sociedade. É o que  
Abensour afirma nesta passagem, quando é discutido o possível desaparecimento do  
conflito no interior da verdadeira democracia:  
O princípio de junção ao qual Marx visa, pensado em certos  
momentos, parece, a partir do sistema nervoso ou de um sistema de  
circulação, deve ser situado ao lado do agir. Mesmo se esse princípio  
não parece sair do âmbito do sistema, ele não participa menos do  
mistério da vida do povo, de sua indeterminação energia teórica e  
energia prática, ao mesmo tempo não participa menos da infinidade,  
da abertura, da plasticidade, da fluidez do querer. (ABENSOUR, 1998,  
p. 103).  
E, mais adiante, ele consigna:  
Pensar a verdade da democracia como o advento do dêmos total ou  
enquanto totalidade valendo como solução ao enigma de todas as  
constituições, não seria esquecer a tese aristotélica, segundo a qual  
as coisas políticas se caracterizam por uma tal indeterminação, que a  
própria ideia de solução é enfraquecida e a ideia de um face a face  
com a politéia realizada, ou ainda a ideia moderna de um Eschaton  
são consideradas inconcebíveis. (ABENSOUR, 1998, p. 105).  
Para Abensour, a politicidade se pauta pela “indeterminação”, pela “fluidez do  
querer” e, com isso, pode-se afirmar, ele se distancia por completo de Marx, situado,  
por sua vez, fora desse gradiente.  
Somente com um tratamento arbitrário do texto, baseado em uma hipótese de  
leitura que não lhe faz a devida justiça, Abensour pode, então, concluir que o momento  
maquiaveliano seria abandonado, a partir de 1844, decretando a vitória da vertente  
“epistemológica”. Com isso, ele diz, “a crítica da política, em vez de manter-se na via  
da inteligência do político, orientou-se para o substrato econômico, por intermédio da  
sociedade civil” (ABENSOUR, 1998, p. 113). Enfim, Abensour não escapa da  
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advertência que fez no início de sua obra:  
Podemos certamente temer, quando observamos a forma restauradora  
que assume atualmente a volta da filosofia política na França, que esse  
retorno a Marx, à margem do marxismo, termina em uma neutralização  
de seu pensamento, em sua integração no corpus acadêmico,  
doravante desligado do laço constitutivo da revolta e do messianismo.  
(ABENSOUR, 1998, p. 114)  
Essa neutralização decorre do fato de Abensour e tantos outros pretenderem  
compreender a obra de Marx como se ela fosse uma “obra de pensamento”, ou seja,  
“uma obra orientada por uma intenção de conhecimento e para a qual a linguagem é  
essencial” (ABENSOUR, 1998, p. 21).  
O imortal Machado de Assis pediria perdão a sua leitora depois dessa peroração.  
Ela se faz necessária, entretanto, porque a leitura de Abensour, em todas as dimensões  
é o sintoma da doença científica de nosso tempo, especialmente no que se refere à  
obra marxiana. Em geral, os intérpretes consideram a obra marxiana e qualquer  
pensamento como passível de múltiplas interpretações, ao gosto do leitor, diante de  
seus dilemas subjetivos e contingentes, enfim a perda completa de objetividade da  
reflexão humana. Contra esse disparate, fruto ele mesmo do mundo pervertido do  
capital, o esforço de leitura imanente e resgate da obra marxiana representam não  
apenas um ato de lucidez, mas de resistência.  
A “agenda Kreuznach”: o quanto ainda falta pesquisar sobre 1843  
Quando foi retomado o projeto MEGA, ainda na década de 1950, uma das  
emendas mais importantes em relação ao projeto original de Riazanov foi certamente  
a proposta de uma quarta seção, além das três originais (textos, materiais de O capital  
e correspondência), destinada às anotações, excertos, notas marginais e comentários  
de leituras (cf. DLUBECK, 1992, p. 55). No caso dos materiais destinados a O capital,  
o acerto dessa decisão está sobejamente comprovado, já que as notas de conjuntura  
econômica, os cadernos sobre crises têm fornecido relevantes informações sobre a  
própria obra econômica de Marx. Em relação aos textos filosóficos e escritos  
jornalísticos e políticos, infelizmente, a pesquisa tem andado lentamente, a despeito  
de tudo que já foi publicado.  
Publicados em 1981, os Cadernos de Kreuznach não podem ser considerados  
sob a mesma perspectiva de outros cadernos de notas, em outros momentos da vida  
de Marx. O editor alemão oferece um argumento muito singelo: em Kreuznach, nosso  
autor tomou notas daquilo que encontrou na própria cidade, já que não há evidências  
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de que esses livros fizeram parte de sua biblioteca, nem antes, nem depois de sua  
produtiva lua de mel (MARX, 1981, p. 607). De todo modo, alguns elementos são  
dignos de nota. Com 328 páginas manuscritas, os cinco cadernos de Kreuznach  
cobrem, em sua maioria, livros de história de países e regiões, França, Inglaterra,  
Veneza, Alemanha e Estados Unidos. Dentre os autores estudados, por breves notas,  
destacam-se Maquiavel, Montesquieu, Rousseau, além de Chateaubriand, John Russel,  
Henry Peter Brougham, Pierre Daru. Seria exagero considerar que essas notas eram  
mero exercício frívolo diante de uma biblioteca limitada. Sem exaurir o tema aqui,  
algumas notas são deveras valiosas e guardam a mais absoluta relação com o outro  
trabalho desenvolvido em Kreuznach. Enunciaremos apenas alguns exemplos, como  
motivação para futuros esforços ainda por empreender.  
Todo o primeiro caderno é dedicado à história francesa, bem como as primeiras  
páginas do segundo. Nesse caderno, além de uma curta nota sobre os privilégios da  
República de Veneza, Marx preenche 15 páginas de citações sobre Rousseau,  
publicadas pela primeira vez em russo, em 1969. Antes disso, chamam a atenção suas  
notas do livro de K. F. E. Ludwig, História dos últimos 50 anos, publicado entre 1832  
e 1837. Interessa a Marx, sobretudo, a situação da França nos anos iniciais da  
Revolução, quando da Assembleia Nacional. Ele acrescenta na abertura dos excertos  
ao livro:  
Representação da propriedade na Assemblée Constituante, noite de  
São Bartolomeu da propriedade, contradição da Assembléia Nacional  
consigo mesma em relação à propriedade privada, o máximo, os  
jacobinos contra a soberania do povo, os monarquistas por ela, o  
governo revolucionário, a França perante a revolução. (MARX, 1981,  
p. 84)  
A noite em questão seria a de 4 de agosto de 1789, quando foram abolidos os  
privilégios feudais, de corporações, clero, além de várias prestações pessoais. Nas  
palavras de Ludwig, anotadas por Marx (na verdade, uma citação de outro autor,  
Mignet):  
Aquela noite mudou a forma do reino; igualava todos os franceses;  
todos podiam chegar até os cargos mais altos, adquirir propriedades  
e fazer negócios; por fim, aquela noite foi uma revolução tão  
importante quanto o levante de 14 de julho, do qual foi consequência.  
Tornou o povo senhor da sociedade, como a anterior o havia feito  
senhores do governo, e preparou a nova constituição derrubando a  
antiga de baixo para cima. (MARX, 1981, p. 85)  
Por outro lado, no entanto, para satisfazer credores do estado, foi aprovado o confisco  
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de bens da Igreja. Marx observa: “Aqui uma grande contradição, em que a propriedade  
privada, como inviolável por um lado, é sacrificada por outro lado.” (MARX, 1981, p.  
85) Dispiciendo notar, uma vez mais como Marx pensa a política em toda a sua  
radicalidade. Essa citação poderia figurar no final da Crítica de 43.  
Como fez até o final da vida, quando concluía um caderno de notas ou mesmo  
um esboço, Marx anota, também no final do segundo caderno de Kreuznach, um índice  
temático. Dentre os temas que elenca, um dois mais importantes é “a propriedade e  
suas consequências”, o mais extenso. Em verdade, do que se depreende do índice,  
dois temas são caros a Marx então, a questão da representação democrática e, por  
outro lado, a relação sempre problemática entre a propriedade, os interesses privados  
e essa mesma representaçao (cf. o índice, MARX, 1981, p. 116).  
Nessa tônica, as anotações sobre Rousseau também poderiam ser utilizadas na  
redação da própria crítica a Hegel. Marx anota: “Essas cláusulas [do contrato social] se  
reduzem todas a uma só, a saber, a alienação de cada associado, com todos os seus  
direitos, a toda a comunidade.” (MARX, 1981, p. 91) E adiante: “Face aos associados,  
eles tomam coletivamente o nome de povo e se denominam em particular cidadãos,  
como participantes da autoridade soberana, e sujeitos como submissos às leis do  
estado.” (MARX, 1981, p. 92) Depois de glosar a questão sobre ocupação do solo,  
Marx afirma que, sobre igualdade, Rousseau faz uma “nota curiosa”, e cita: “Sob os  
maus governos, essa igualdade é apenas aparente e ilusória: ela só serve para manter  
o pobre na miséria e o rico em sua usurpação. De fato, as leis são sempre úteis àqueles  
que possuem e nocivas àqueles que nada possuem” (MARX, 1981, p. 93). Em seguida,  
Marx toma notas pormenorizadas sobre a questão da vontade geral, especialmente a  
questão da representação. As notas se encerram com a questão da corrupção da  
democracia. Entre suas próprias palavras e as de Rousseau, o autor observa:  
Como o principal obstáculo à democracia, Rousseau cita o fato de que  
o povo transforma as “vues génerales” em “objets particuliers”,  
corrompe-se na qualidade de legisladores pela influência dos intérêts  
privés dans les affaires publiques. (MARX, 1981, p. 100)  
E, finalmente, nas últimas linhas, Marx seleciona a passagem clássica de que, “a lei, em  
sendo apenas a declaração da vontade geral, é claro que, no poder legislativo, o povo  
não pode ser representado; mas ele pode e deve sê-lo no poder executivo, que não é  
senão a força aplicada à lei” (MARX, 1981, 101). Não é preciso muito esforço para  
percebermos como, até aqui, Marx flerta por completo com o radicalismo  
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nova fase  
A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
revolucionário francês, a democracia direta, com ecos na crítica a Hegel.  
Nas notas imediatamente subsequentes, entretanto, o dilema que se instaurara  
na Crítica de 43, aparece novamente, devidamente enfatizado no índice. Ao glosar o  
livro de Jacques-Charles Bailleul, Examen critique de l’ouvrage posthume de Mme. La  
Baronne de Stäel, ayant pour tritre: “considérations sur les principaux événements de  
la Révolution Française”, em duas páginas, nosso autor aborda a questão da relação  
entre estado e propriedade privada. Marx resume o problema com título próprio: “da  
propriedade como condição da capacidade de representação”. Essa página de seus  
excertos guarda estrita relação com sua reflexão sobre o “desaparecimento do estado”,  
descrito anteriormente. Se no feudalismo a propriedade “era tudo”, se sua organização  
“constituía a ordem social”, todos os direitos estavam ligados a ela (MARX, 1981, p.  
103). A Revolução Francesa teria conferido ao homem tudo que, antes, a ordem  
conferia à propriedade, que deixa de ser uma condição, um elemento, para se converter  
apenas numa circunstância. Marx conclui a citação dessa maneira:  
Assim, não se teria direito porque se possui, mas por aquilo que se  
possui; e, de acordo com o que se possui, a pessoa é julgada ter  
inteligência, educação e moralidade necessárias para usufruir de  
certos direitos, para preencher certas unções políticas: dessa maneira,  
a propriedade é um título, a prova para aqueles que não possuem  
outra. (MARX, 1981, p. 103)  
Se esse dilema se apresenta dessa maneira no segundo caderno de Kreuznach,  
como arremate do argumento, cabe apenas indicar que, no quarto caderno, a pesquisa  
parece muito mais direcionada. Ou por outra, parece assumir outra direção, já que  
muitas das anotações serão aproveitadas na redação do texto Sobre a questão judaica,  
sob muitos aspectos resolutivo em relação a tantas questões que emergiram da estadia  
na estância termal. Trouxemos essas breves notas sobre notas apenas para mostrar  
que as pesquisas sobre o período crucial de 1843 merece e sempre merecerá esforços  
concentrados de pesquisa, em diversas direções. De todo modo, apontar sempre a  
importância desse momento, em si mesmo e sem considerações prospectivas ou sem  
procurar por elementos de uma filosofia marxiana futura, isso já constitui um ponto de  
partida mais que importante.  
Considerações finais  
O saudoso Mario Duayer, em uma de suas intervenções públicas, formulou uma  
questão aos “economistas” então presentes (as aspas são dele, com o devido  
desprezo): se e quando o capitalismo desaparecer, desaparece também O capital? Ou  
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Leonardo Gomes de Deus; Guilherme de Oliveira e Silva  
seja, o pensamento de Marx seria apenas uma teoria econômica dentre tantas outras?  
Ele mesmo respondia que o pensamento de Marx não era teoria, não era um método  
acabado, enfim, era muito mais do que isso, uma visão de mundo e uma aproximação  
espiritual mais que importante da vida humana sobre a terra. Com efeito, Marx nunca  
escreveu um tratado acabado, um sistema, uma teoria econômica tampouco. Mesmo  
O capital só apresenta uma perspectiva sobre o desenvolvimento de um país avançado  
na sociabilidade capitalista.  
Isso se reflete em alguns dos autores que examinamos aqui. Ressaltamos a leitura  
acertada, em muitos pontos, de Reichelt, mas ele mesmo afirma, no texto ora  
apresentado, que, caso Marx tivesse produzido uma reflexão completa sobre o sistema  
hegeliano, possivelmente, teria corrigido sua leitura (REICHELT, 2008, p. 387). Não  
poderíamos discordar mais: o objetivo de Marx não era o sistema, a grande filosofia,  
a lógica, nem, depois, a teoria completa do capitalismo ou de qualquer outra formação  
social. Quando Marx promove a crítica à filosofia de Hegel, ele discute os elementos  
fundamentais e essenciais, em suma, estatui a legalidade de um país então periférico  
que o tinha expulsado em todos os níveis e, por outro lado, que engoliria a Europa  
nos anos seguintes, com Bismarck, Nietzsche e Wagner, enfim, o triunfo de  
Schopenhauer e da destruição da razão, não mencionemos Freud ou Johann Strauss  
aqui.  
Não por acaso, numa nota de seus cadernos de Paris, já em 1844, Marx concede  
que à filosofia hegeliana, em seu todo, algumas de suas verdades, ela é incontestável,  
perfeita, pois:  
1) Consciência de si em vez do homem. Sujeito. Objeto.  
2) As diferenças das coisas são importantes porque a substância é  
concebida como autodiferenciação, ou, porque a autodiferenciação, a  
diferenciação é concebida como atividade do entendimento, como  
essencial. Assim, no interior da especulação, Hegel forneceu distinções  
que realmente tocaram no assunto. (MARX, 1998, p. 11)  
Essas passagens, assim como a leitura de Marx, constante dos Manuscritos de 1844,  
sobre a Fenomenologia de Hegel, mostram a nós, só agora, como as preocupações de  
nosso autor se encontravam numa dimensão que ainda merece ser estudada, como  
tem sido neste século. Nunca foi uma mera crítica ao maior filósofo de seu tempo, o  
especulativo Hegel, nunca se trataria, meses depois, de uma crítica e de um descarte  
da política, como não seria nunca o caso de uma crítica da economia nas décadas  
seguintes. Não, sempre se tratou da emancipação humana, nas palavras de Marx, no  
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nova fase  
A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
fim de sua vida, em uma entrevista, sempre citada, poucas vezes compreendida.  
No entanto, já em 1843, e talvez antes, Marx tinha plena certeza sobre a natureza  
do pensamento hegeliano e sobre suas consequências, o mundo pervertido que se  
constituiu em sistema, mas que, para se legitimar, ideologicamente, tinha de defender  
o governo miserável da família real prussiana sobre o mundo miserável alemão. Por  
isso não havia conciliação, por isso, a única saída, nessa perspectiva miserável, seria a  
abolição da miséria, quem não tem nada a perder, pode ter algo ou tudo a ganhar.  
Quando Chasin proclamou e aceitou, em 1978, os desafios da leitura imanente  
entre nós, não acreditamos que desejaria estabelecer um novo padrão, ou, como dizem  
os palmeirenses, uma nova dimensão acadêmica. Os esforços da leitura imanente eram,  
certamente, muito piores do que aqueles da zona de conforto de agora, com o tanto  
que sabemos. No entanto, embora o pensamento de Marx esteja sempre estabelecido  
em sua cientificidade e nas certezas rasteiras daqueles que agora tudo sabem, os  
desafios estão postos e continuam a aumentar, mal rompe a manhã.  
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Verinotio  
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Como citar:  
DEUS, Leonardo Gomes de; SILVA, Guilherme de Oliveira e. A crítica ontológica de  
Marx, 180 anos. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 199-222, Edição Especial,  
2022/2023.  
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