Gabriella M. Segantini Souza
algo que só era possível graças ao desenvolvimento das forças produtivas nos países
da Europa ocidental a partir do modo de produção capitalista, para que então se
desenvolvesse a comuna agrária. A revolução na Rússia deveria, portanto, primeiro
voltar-se contra o despotismo dos czares, uma vez que se tratava do principal inimigo
da comuna russa32. Marx coloca nos seguintes termos:
Falando em termos teóricos, a comuna rural russa pode, portanto,
conservar-se, desenvolvendo suabase, apropriedade comum daterra,
e eliminando o princípio da propriedade privada, igualmente
implicado nela; ela pode tornar-se um ponto de partida direto do
sistemaeconômico parao qual tende a sociedade moderna, ela pode
trocar de pele sem precisar se suicidar; ela pode se apropriar dos
frutos com que a produção capitalistaenriqueceu ahumanidade sem
passar pelo regime capitalista, regime que, considerado
exclusivamente do ponto de vista de sua duração possível, conta
muito pouco na vida da sociedade. (MARX, 2013, p. 78)
Marx fala aqui de como a Rússia não precisava atravessar os estágios do
desenvolvimento dos modos de produção pelos quais os países da Europa ocidental
passaram antes de realizar uma revolução que visasse a implantação do socialismo,
justamente porque o lhe eram acessíveis naquele momento os frutos com que a
produção capitalista havia enriquecido a humanidade, quais sejam: um
desenvolvimento de forças produtivas sem precedentes na história humana33. Ou seja,
devia-se às suas circunstâncias históricas extremamente específicas, que permitiram
que a comuna agrária houvesse sobrevivido por toda a Rússia e que fosse
contemporânea à produção capitalista. Assim, o único argumento histórico em favor
de sua dissolução perde seu fundamento, na medida que, diferentemente de outras
32 Como ressalta Hobsbawm, desde a Guerra da Crimeia, o czar tentava impulsionar a “modernização”
da Rússia. Para isso, a comuna agrária deveria ser substituída pela agricultura parcelar – em outras
palavras: a propriedade comunal do campo deveria ser substituída pela privada. (HOBSBAWM, A Era
dos Impérios, 1988)
33
Ao atribuir um papel ao modo de produção capitalista na luta pela emancipação humana, Marx
sustenta não que a emancipação humana existe dentro do capitalismo, mas sim que provoca o
amadurecimento dos “elementos criadores de uma nova sociedade” (MARX, 2017, p. 571) ao
amadurecer “as condições materiais e a combinação social do processo de produção” (MARX, 2017, p.
571). Um dos elementos centrais dessa questão está no papel que o capital tem em criar “tempo
disponível” na medida reduz o tempo de trabalho necessário (MARX, 2011, p. 506), o que, para Marx
é imprescindível para a emancipação do trabalho (MARX, 2011, p. 585). Dessa forma, conforme
assinalado por Marcello Musto em O Velho Marx, Marx via “alguns elementos potencialmente
progressistas” (MUSTO, 2018, p. 65) no capital, sendo importante, todavia, ressaltarmos a dimensão
potencial desses elementos, eis que ainda não efetivados no modo de produção capitalista. Ou seja, de
fato, Marx vê no capitalismo a gênese dos elementos para uma sociabilidade superior, mas esses
elementos aparecem de forma potencial e que tal “síntese superior” (MARX, 2013, p.) só é atingida “por
meio da luta consciente da classe trabalhadora” (MUSTO, 2018, p. 37), rejeitando o autor qualquer
ideia de uma evolução mecânica. Todavia, esse “levantamento” de forma alguma obstrui a compreensão
em Marx do preço cobrado em carne humana por tal amadurecimento das forças produtivas no
capitalismo.
Verinotio
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ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023
nova fase