Verinotio  
NOVAFASE  
30  
número 2  
2025.2  
Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos Confluentes | CNPq |  
Curso de Serviço Social | Universidade Federal Fluminense — UFF Rio das  
Ostras  
REVISTA VERINOTIO  
NOVA FASE  
VERINOTIO  
30.2  
Julho/dezembro  
2025  
VERINOTIO REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS  
ISSN 1981-061X v. 30 n. 2 jul./dez, 2025  
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SUMÁRIO  
Editorial: Da negação da ciência à simulação de pensamento científico  
por meio da criação de pseudo-objetividades....................................... IX  
Ester Vaismam; Ronaldo Vielmi Fortes  
Nikolai Mikhailovsky diante do tribunal do sr. K. Marx: Marx e a  
recepção d’O capital na Rússia ............................................................. 01  
Gabriella M. Segantini Souza  
A crise em níveis: o todo artístico dos três volumes de O capital de Karl  
Marx .................................................................................................... 34  
Ana Clara Passos Presciliano  
“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade  
da política ............................................................................................ 62  
Ana Carolina Marra de Andrade  
Forças sociais de produção como forças do capital: as forças produtivas  
do trabalho sob a produção capitalista na obra de Karl Marx .............. 85  
Lucas de Oliveira Maciel  
Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de  
Marx: primeiras observações ............................................................. 116  
Paulo Henrique Furtado de Araujo  
Economia política da pena e crítica da questão penal: da crise do  
passado aos aportes para o futuro ...................................................... 147  
Marina Araújo Reis Lavarini  
Determinações da punição no capitalismo de via colonial:  
Bonapartismo e autocracia burguesa institucionalizada na  
industrialização brasileira .......……............................................177  
Nayara Rodrigues Medrado  
Notas sobre estado e políticas públicas a partir da crítica da economia  
política marxiana ................................................................................ 211  
Rossi Henrique Chaves  
Lênin como advogado: um problema inicial no estudo do direito na obra  
leniniana .........………....................................................................... 234  
Pedro Rocha Badô  
Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto: a assim  
chamada questão de método .....……............................................….. 256  
Marcos Antônio Nascimento de Castilho  
Los orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács ………..….. 280  
Diego Fernando Correa Castañeda  
Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em  
Lukács ............................................................................................... 301  
Francisco Malê Vettorazzo Cannalonga  
“Habilidoso”, de Machado de Assis: um retrato do artista na moldura do  
diletantismo à brasileira ....………………………………………..……..……….. 330  
Ana Laura dos Reis Corrêa  
A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital  
portador de juros: especulação e formas jurídicas ........................…. 342  
Rafael Silva dos Santos; Mateus Lima Furtado  
Ecologia e modernidade: contribuições de Rousseau para o  
desenvolvimento do debate contemporâneo …………………..........…….. 385  
Daniel do Val Cosentino; Henrique Segall Nascimento Campos  
Debates  
“Novos rostos de Marx”: da crítica da economia política aos horizontes da  
luta pela emancipação humana .......................................................... 402  
Ana Carolina Marra de Andrade  
Dialética do sionismo ......................................................................... 432  
Maurício Tragtenberg  
Entrevista  
Constituinte e revolução .................................................................... 444  
Entrevista com Florestan Fernandes  
Tradução  
Resenha a François-Pierre-Guillaume GUIZOT: Por que a revolução na  
Inglaterra foi bem-sucedida? Conferência sobre a história da Revolução  
Inglesa ............................................................................................... 468  
Karl Marx/Friedrich Engels  
"En route pour la pêche"  
John Singer Sargent  
(1878)  
EDITORIAL  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.787  
Editorial  
_____  
Da negação da ciência à simulação de pensamento científico  
por meio da criação de pseudo-objetividades  
Ester Vaisman  
Ronaldo Vielmi Fortes  
Quando alguém ajeita os pressupostos de maneira que já  
contenham as conclusões a serem tiradas, não é preciso ter  
mais habilidade do que tem qualquer charlatão para puxar de  
dentro do saco o resultado preparado de antemão e fincar o pé  
na lógica inabalável que o gerou.  
Engels, Sobre a Questão da Moradia, p. 50  
Em um tempo em que posições favoráveis ou contra ao pensamento científico  
ocupam o cenário dos debates políticos e ideológicos, nada mais oportuno do que  
tecer alguns comentários sobre os desdobramentos que assistimos em nossos dias em  
torno do tema particularmente em terra brasilis. De um lado, testemunhamos o  
completo desprezo ou ainda, a cabal negação da ciência, e, de outro, embora  
afirmando sua necessidade, não são raros os casos de negligência com os padrões  
mínimos de rigor científico. Tornou-se lugar comum, no intuito de conferir às ideias  
políticas o semblante de rigor, ilustrar todo o discurso com argumentos que simulam  
demonstrações científicas, muito embora não passem de um jogo manipulatório de  
seleção de dados ardilosamente recolhidos, que nada mais fazem do que subordinar  
aspectos da realidade às ideias prévias a serem defendidas. Nesse caso, a simulação  
científica cumpre apenas a função de persuasão. Cumprida a função de convencimento,  
é rapidamente descartada, e substituída por outra do mesmo calibre, sobretudo se a  
“narrativa” optar por outro tipo de assunto ou estratagema a defender ou atacar. É a  
forma pela qual se atualiza o tão conhecido dito de Fichte: “se a teoria entra em conflito  
com os fatos, tanto pior para a fatos”.  
A literatura contemporânea dedicada à análise das transformações recentes do  
capitalismo tem revelado uma insistente tendência à formulação de neologismos e à  
criação de categorias supostamente capazes de capturar “novos” padrões de  
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nova fase  
Ester Vaismam; Ronaldo Vielmi Fortes  
acumulação. Ademais tem insistido na construção de expressões de cunho impactante  
como forma de descrever hipotéticos novos modos de produção que teriam surgido  
em nossa época. Essa compulsão classificatória, frequentemente sustentada por  
afirmações de suposta ruptura histórica, parece responder menos à necessidade de  
esclarecer e analisar processos concretos, e mais a uma busca por conferir a aparência  
de legitimidade científica a interpretações superficiais e apressadas, frequentemente  
de cunho ideológico- político1.  
Não são raros os testemunhos que profetizam a barbárie, que entoam profecias  
do “capitalismo do fim do mundo”, do colapso iminente do capitalismo, do advento  
da extremização da política neoliberal que, frente a carência de ideias de como  
designar a suposta nova formação que se põe na ordem do dia, agrega prefixos  
superlativos como forma de denunciar o novo caráter da ameaça que se apresenta:  
hiperneoliberalismo, ultraneoliberalismo etc. Por vezes predomina mais a eloquência  
das palavras do que propriamente a recta exposição das ideias e argumentos, em  
suma, a necessidade de compreensão rigorosa da realidade. Pense-se na última  
tendência que se espalhou nas searas da sociologia em que se insiste em assombrar  
as mentes inadvertidas dos incautos com expressões tais como: o trabalho morto  
predomina sobre o trabalho vivo. O “morto” que sobrepuja ao “vivo”, de onde toda  
uma variedade de sentidos e significações induzem a ideias do fim dos empregos, da  
precarização sempre crescente do trabalho, do capitalismo desumanizador etc etc. A  
dramatização contemporânea desses fenômenos por meio de um mero joguete de  
expressões oculta que o trabalho objetivado — o chamado “trabalho morto” — não é  
nada além de trabalho pretérito, incorporado nos objetos e dispositivos técnicos. A  
retórica de que o “trabalho morto domina o trabalho vivo” é válida como descrição  
estrutural do capitalismo, mas não como característica inédita, excepcional ou exclusiva  
da era digital. Trata-se, por conseguinte, de um jogo impreciso de conceitos cujo  
intuito é motivar os corações das massas, - senão as massas, pelo menos alcançar  
ativistas disfarçados na academia e estudantes ingênuos - por meio do qual, pela força  
das palavras, busca-se persuadir comportamentos, sentimentos e ações. Importa mais  
o impacto das expressões do que a precisão conceitual. Escamoteiam-se a precisa  
definição e a função de análise da categoria: trabalho “morto”, que nada mais é do  
que trabalho pretérito, ou seja, trabalho que produziu a matéria-prima ou a máquina  
utilizadas no ramo de produção, onde o trabalho vivo produz o valor.  
1
Muito embora, a cena atual apresenta sinais mais gravosos, o fenômeno não é novo. Já nos anos  
1970, José Arthur Giannotti denunciava o uso instrumental e acrítico da categoria de modo de  
produção. Ver GIANNOTTI, José Arthur. “Notas sobre a categoria ‘modo-de-produção’ para uso e abuso  
dos sociólogos”. Estudos Cebrap, 17, São Paulo, 1976.  
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Editorial  
Tais procedimentos nada mais são do que a prática politicista de conferir  
padrões conceituais às supostas formas de inovação dos processos de acumulação.  
Prática nada recente, por se tratar de ardil utilizado por vários intelectuais que, sob o  
efeito do rompante que se afigura no horizonte de um dado momento da história, se  
põem a capturar por meio de palavras fenômenos transitórios alçados à condição de  
novas expressões cabais da figura do capital. Por que não recordar Bresser Pereira  
que, fascinado, com a tecnocracia, chegou a afirmar décadas atrás o advento de um  
novo modo de produção baseado na tecnocracia?2 Recentemente a mesma tendência  
aparece nas formulações sobre a economia chinesa de Elias Jabour que assevera que  
a acumulação chinesa é um novo modo de produção3. É estranha a mania de dar nome  
às coisas. Tudo se passa, como se, nomeando a coisa se pudesse dominá-la. Tal  
motivação, lembra os primitivos xamãs que entoavam cânticos, conferiam sons e  
palavras às coisas não compreendidas, supondo, dessa maneira, dominar as forças que  
os assombravam. Tratava-se naquele contexto de operacionalizar a própria existência.  
Hoje, o fetichismo das palavras serve para a inflação de egos, para manter a falácia  
das notoriedades simplórias, que nada fazem além de se sentarem sobre o lufar de  
uma fama do passado, ou do sucesso imediatista bem próprio dos fenômenos das  
redes sociais, para manterem-se vivas na cabeça dos mentecaptos.  
Reduzir a realidade à conceitos fixos e rígidos, nada mais é do que elevar as  
manifestações imediatas, fenomênicas, à condição de rupturas históricas fundamentais  
que inaugurariam figuras inovadoras da sociabilidade do capital. Como bem adverte  
Lukács a esse respeito:  
O único perigo desse procedimento é a dissociação e autonomização  
abstratamente conceituais dos momentos que facilmente pode levar  
ao surgimento.de pseudo-objetividades que só desviam da efetiva  
compreensão da essência. Só é possível combater com êxito a  
degeneração da autêntica reprodução ideal do ser, das conexões  
ontológicas reais, numa pseudo-objetividade desse tipo, que, por ser  
um fenômeno da moda, muitas vezes exerce grande influência, se a  
análise tenta apreender, tanto na gênese como no efeito duradouro,  
o seu centro dinâmico de fato.4  
De fato, são frequentes as tendências ideológicas supostamente proletárias,  
com aspiração científica, se se deixarem levar pelos interesses políticos imediatos,  
abstendo-se de compreender e explicar os fenômenos e tendências da dinâmica da  
sociabilidade. Essa inflação nominal, ao invés de aclarar o real, produz uma névoa  
conceitual que oculta continuidades históricas fundamentais.  
2 Cf. Bresser Pereira, L.C. A Sociedade Estatal e Tecnoburocracia, Editora Brasiliense, 1981.  
4 LUKÁCS, Para uma ontologia do ser social, vol. II, 2013, p.558-9)  
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Ester Vaismam; Ronaldo Vielmi Fortes  
Não se trata de modo algum de estabelecer uma rígida cisão entre ciência e  
ideologia, pelo contrário, o conhecimento científico não significa de modo algum uma  
isenção subjetiva ou mesmo o completo rechaço dos interesses. No entanto, a ciência  
não pode ser submetida aos chamados interesses de classe, pelo contrário os  
interesses de classe devem se valer do rigor da ciência como forma de compreensão  
efetiva da dinâmica da realidade. O enfrentamento e a busca pela resolução de  
conflitos sociais não podem prescindir do conhecimento de rigor da realidade,  
entretanto, suposição de que os instrumentos para a transformação possam advir de  
maneira automática pela simples fidelização ao conteúdo literal de uma teoria que se  
põe na perspectiva do proletariado, constitui por si só uma ideologia no sentido  
pejorativo. Se, seguindo o pensamento de Marx, a ideologia são formações ideais por  
meio das quais os homens se conscientizam desses conflitos e o travam até o fim”5,  
se até então, os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, [mas]  
o que importa é transformá-lo6, é preciso acrescentar com o próprio pensador alemão:  
para transformá-lo é preciso compreendê-lo. Sua obra mais importante, O capital, é a  
exemplo mais candente dessa posição diante da realidade.  
No campo intelectual contemporâneo e mesmo nos considerados blogs e  
influencers de esquerda, tal prática assume função distinta diante da necessidade  
imperiosa de compreensão efetiva das condições históricas tendenciais da realidade  
da sociabilidade do capital: torna-se mecanismo de fetichização conceitual, mais ligado  
à disputa por prestígio do que à elucidação teórica, cumprindo mais os objetivos de  
convencimento e adesão a um determinado campo político. Em suma, são ideias e  
expressões que desempenham o papel de disparadores de emoções, de evocações  
catárticas, como forma de induzir a comportamentos e submeter outros à adesão de  
conduções políticas em voga.  
No sentido oposto a tais tendências é preciso advertir com Lukács que  
O momento decisivo não é a prioridade psicológica adotada pelos  
agentes ou pelos líderes, mas que complexo tem objetivamente a  
primazia objetiva na configuração do "o que fazer?", para dirimir o  
conflito; a psicologia dos agentes de modo algum precisa sempre  
corresponder a essa situação objetiva.7  
Tais procedimentos nada mais são do que a reprodução da estranha prática de  
considerar que a simples adesão a um ponto de vista de classe permitiria o acesso  
incondicional à compreensão da realidade. Como se bastasse assumir o “ponto de  
5 MARX, K.; Para a crítica da economia política; São Paulo: Boitempo, 2024; p. 25.  
6 MARX; ENGELS; A ideologia alemã; São Paulo: Boitempo, 2007; p; 535.  
7 LUKÁCS, Para uma ontologia..., op. cit.; p. 573)  
Verinotio  
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nova fase  
     
Editorial  
vista do proletariado” para ter acesso efetivo ao desvelamento da realidade.  
Ironicamente, é Lukács quem inaugura essas tendências no seio do pensamento  
marxista, na primeira metade do século XX, com sua influente obra História e  
Consciência de Classe.  
Certamente, o conhecimento resultante do ponto de vista do  
proletariado é aquele objetiva e cientificamente superior. Deve-se ao  
seu método a solução daqueles problemas em torno dos quais os  
maiores pensadores da época burguesa se debateram inutilmente, ou  
seja, o adequado conhecimento histórico do capitalismo, que para o  
pensamento burguês devia permanecer inalcançável. Contudo, essa  
gradação objetiva do valor cognitivo do método novamente se mostra,  
por um lado, como problema histórico-social, como consequência  
necessária dos tipos de sociedade representados por ambas as  
classes e suas sucessões históricas, de modo que o “falso”, o  
“unilateral” da compreensão burguesa da história aparece como fator  
necessário na construção metódica do conhecimento social.8  
A sofisticação dos argumentos apresentados por Lukács na ocasião, fundados  
com base em elementos do pensamento hegeliano, decerto fascinou a muitos,  
influenciou pensadores e abriu as portas para a fundação de escolas de pensamento.  
Convenhamos: comparados ao que se assiste hoje, pelo grau elevado das elaborações  
filosóficas do pensador magiar à época, tornam as expressões de nossos tempos meras  
elocubrações conceituais canhestras e de baixa capacidade intelectual.  
A crítica às formulações que recorrem a “filosofemas” — categorias abstratas  
desconectadas de análises histórico-concretas encontra um ponto de apoio  
significativo na obra tardia de György Lukács. De fato, parte substancial do esforço  
ontológico desenvolvido nos Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social busca  
justamente superar construções conceituais que permanecem desligadas da realidade  
objetiva, respondendo a problemas fictícios ou a necessidades internas de um sistema  
filosófico ou de um ideário político e não às determinações concretas do ser social.  
Lukács caracteriza tais elaborações como construções especulativas que, em vez de  
esclarecerem a realidade, a obscurecem. Para Lukács cabe restabelecer a prioridade  
ontológica do real sobre o pensamento.  
Desse modo, a crítica lukacsiana não se dirige apenas ao idealismo clássico,  
mas também a interpretações pretensamente marxistas que, ao enfatizarem e  
sucumbirem à premência incondicional do papel da consciência de classe, acabam por  
reconstruir o proletariado como sujeito transcendente, independentemente das  
determinações materiais de sua existência. Nos seus Prolegômenos para a Ontologia  
do ser social, ele declara com clareza que não é possível fundar a práxis revolucionária  
8 LUKÁCS; História e Consciência de classe, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2003, pp.332-3.  
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nova fase  
 
Ester Vaismam; Ronaldo Vielmi Fortes  
em meras determinações lógico-dialéticas da consciência. O erro residiria em converter  
a classe trabalhadora em um sujeito metafísico, um portador quase automático da  
racionalidade histórica algo que o Lukács maduro repudia.  
Não por acaso, o mesmo autor rechaça com veemência tais imputações  
filosóficas à realidade, em Para uma ontologia do ser social, destacando a postura de  
Marx frente aos pensadores e filosofias de seu tempo.  
O posicionamento sumamente consciente [de Marx], simultaneamente  
de aprofundamento e crítica em relação a todos os predecessores (a  
Hegel, à economia clássica, aos grandes utópicos) mostra isso com  
toda a clareza. O marxismo, portanto, jamais escondeu a sua gênese  
e função ideológicas: é possível encontrar em seus clássicos  
frequentes formulações no sentido de que ele justamente seria a  
ideologia do proletariado. Por outro lado e simultaneamente, em  
todas as suas exposições teóricas, históricas e sociocríticas, ele  
sempre levanta a pretensão da cientificidade; a sua polêmica contra  
concepções falsas (por exemplo, as de Proudhon, Lassalle etc) sempre  
se mantém, pela própria essência da coisa, num plano puramente  
científico, consistindo na comprovação racional e programática de  
incoerências na teoria, de imprecisões na exposição de fatos históricos  
etc. O fato de tais abordagens com muita frequência serem reforçadas  
pela crítica à gênese social dessas concepções falsas, como às vezes  
é o caso do caráter infundado, da ingenuidade, da malafides etc.  
muitas vezes espontâneas do comportamento ideológico em questão,  
nada muda no caráter científico dessas controvérsias.9  
Por essa razão, a contribuição mais sólida das obras tardias de Lukács talvez  
seja justamente o estabelecimento de um critério: nenhuma teoria do ser social pode  
substituir a investigação concreta, e nenhuma categoria pode anteceder a realidade  
sem cair no risco do dogmatismo. A crítica à cientificidade e a crítica às pseudo-  
objetividades fundadas em raciocínios pragmáticos, em Lukács não é rejeição da  
ciência, mas crítica ao fetiche da ciência enquanto sistema fechado de garantias. Seu  
projeto, ao mesmo tempo rigoroso e antidogmático, procura articular filosofia e ciência  
sem permitir que uma substitua a outra evitando, assim, as armadilhas dos  
filosofemas especulativos que, ao prometerem explicações definitivas, acabam por  
afastar-se da historicidade viva do ser social.  
Como sempre, a edição atual da Verinotio Nova fase traz vários artigos que  
contemplam direta ou indiretamente o legado de Karl Marx, assim como o de György  
Lukács. Ademais, sempre que possível, o conselho editorial da revista se esforça em  
publicar contribuições que se voltem ao caso brasileiro e ao cenário atual, nas suas  
várias dimensões.  
9 LUKÁCS, Para uma ontologia..., op. cit.; p. 569-70.  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2, pp. IX-XVI jul.-dez., 2025  
nova fase  
 
Editorial  
Gabriela M. Segantini de Souza é autora do artigo que abre a edição atual. O  
título do artigo é Nikolai Mikhailovsky diante do tribunal do sr. K. Marx: Marx e a  
recepção d’O capital na Rússia que se debruça, como indica o título, sobre a primeira  
edição de O Capital em língua estrangeira, justamente na Rússia. Ao tomar  
conhecimento do fato, por meio de Danielson, Marx escreve uma carta para a revista  
em que fora publicado um artigo de Mikhailovsky a respeito. É justamente essa carta  
que a autora elabora sua análise.  
Já Ana Clara Passos Presciliano investiga como Marx identifica a crise econômica  
nos três livros de O capital, em que busca reconstruir a unidade entre produção,  
circulação e reprodução do capital e defende a hipótese que a crise é imanente ao  
sistema de produção capitalista.  
Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política é o título  
do artigo cuja autora é Ana Carolina Marra de Andrade e que se volta ao uso dado  
por Marx à famosa frase aristotélica “o homem é um animal político em três momentos  
distintos de sua elaboração teórica: nos textos de 1857-8, nomeadamente a  
“Introdução” de 1857 e as Formas que precederam a acumulação capitalista, que  
fazem parte dos Grundrisse; no Livro I de O capital: crítica da economia política (1867);  
e nos excertos sobre A sociedade antiga de Lewis Morgan, escritos em 1881,  
publicados posteriormente como parte dos chamados Cadernos etnológicos de Marx.  
A contribuição de Lucas de Oliveira Maciel leva o título de Forças sociais de  
produção como forças do capital: as forças produtivas do trabalho sob a produção  
capitalista na obra de Karl Marx, em que se procura identificar como Marx entende o  
problema das forças produtivas e esclarecer o processo segundo o qual forças sociais  
de produção se submetem à autovalorização do valor.  
Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de Marx:  
primeiras observações é o título do artigo de autoria de Paulo Henrique Furtado de  
Araujo que se debruça sobre a teoria do valor de Marx, constituída a partir de  
1857/58, deve ser tomada como chave para uma leitura crítica dos Manuscritos  
econômico-filosóficos de 1844.  
Economia política da pena e crítica da questão penal: da crise do passado aos  
aportes para o futuro é o título do artigo de autoria de Marina Araújo Reis Lavarini.  
Nele, a autora se propõe a revisitar criticamente a tradição da economia política da  
pena, identificando seus principais fundamentos, limites e possibilidades de  
reelaboração a partir do pensamento de Karl Marx.  
Versando sobre um problema similar ao artigo precedente, Nayara Rodrigues  
Medrado escreve sobre Determinações da punição no capitalismo de via colonial:  
Verinotio  
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nova fase  
Ester Vaismam; Ronaldo Vielmi Fortes  
bonapartismo e autocracia burguesa institucionalizada na industrialização brasileira,  
em que é focalizado o período de afirmação, no país, do verdadeiro capitalismo - o  
industrial - a partir dos anos 1930, e até o processo de mundialização do capital,  
coincidente com a autorreforma negociada da ditadura nos anos 1980. O objetivo é  
mostrar como, longe de uma afirmação democrática, o Brasil tem oscilado, ao longo  
da república, entre períodos de bonapartismo e de autocracia burguesa  
institucionalizada, e como, em meio a esse movimento pendular próprio de uma  
particular via de formação capitalista, o sistema penal tende a ocupar um lugar  
privilegiado, e a receber contornos específicos.  
Rossi Henrique Chaves é autor do artigo intitulado Notas sobre estado e  
políticas públicas a partir da crítica da economia política marxiana. Nele o autor  
pretende demonstrar que a crítica da economia política desenvolvida por Marx em O  
capital fornece os elementos necessários para uma análise radical do estado e da  
administração pública.  
Já Pedro Rocha Badô é o autor do artigo que leva o título de Lênin como  
advogado: um problema inicial no estudo do direito na obra leniniana. Discute em que  
medida o fato de Lênin ter exercido a função de advogado em sua mocidade pode  
levar à conclusão que nesse momento a luta social se confundia com a luta advocatícia.  
Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto: a assim chamada  
questão de método é o título do artigo cujo autor é Marcos Antônio de Nascimento de  
Castilho. No presente texto, o autor abordou algumas diferenças de tratamento sobre  
a “questão de método” entre Pachukanis, em Teoria geral do direito e marxismo, e  
Marx, na “Introdução” de 1857. Destacamos que o caminho do abstrato ao concreto,  
presente em Marx, é interpretado de forma distinta por Pachukanis.  
Diego Fernando Correa Castañeda contribui com o artigo intitulado Los  
orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács, em que são analisadas as  
diversas correntes de pensamento que teriam contribuído para e evolução de Lukács  
até a obra Para uma ontologia do ser social.  
Ainda sobre Lukács, publicamos o artigo Decadência ideológica e a gênese do  
irracionalismo filosófico em Lukács, cujo autor é Francisco Malê Vettorazzo  
Cannalonga. No presente texto, partindo da noção de decadência ideológica, o autor  
procura elucidar o conceito de irracionalismo empregado por Lukács.  
A contribuição de Ana Laura dos Reis Corrêa intitulada “Habilidoso”, de  
Machado de Assis: um retrato do artista na moldura do diletantismo à brasileira, se  
debruça sobre o conto de Machado de Assis que leva justamente o título de  
“Habilidoso”. Nele, Machado refere o problema do diletantismo na arte e a autora  
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nova fase  
Editorial  
revela que a atitude diletante [é] como uma condição histórica a ser enfrentada pelo  
artista e pelo intelectual na modernidade, e investiga de que forma a posição diletante,  
objeto da atenção de Goethe no século XVIII e estreitamente ligada à mudança da  
produção da arte no mundo do capital, se apresenta acrescida de um segundo grau  
problemático na obra machadiana: o diletantismo à brasileira.  
Assunto de grande atualidade é tratado no artigo A exploração aeroespacial  
como fronteira de valorização do capital portador de juros: especulação e formas  
jurídicas de autoria de Rafael Silva dos Santos e Mateus Lima Furtado. Com um número  
expressivo de dados e fontes diversas, os autores analisam o fenômeno do New Space  
a crescente privatização e financeirização do setor aeroespacial como a forma mais  
acabada da fusão entre capital fictício e capital portador de juros, mediada pelo estado  
e pela forma jurídica.  
Concluindo a seção de artigos figura o texto Ecologia e modernidade:  
contribuições de Rousseau para o desenvolvimento do debate contemporâneo,  
assinado por Daniel do Val Cosentino e Henrique Segall Nascimento Campos, em que  
procuram demonstrar que, a despeito das possíveis críticas que os ecologistas podem  
endereçar ao pensamento de Rousseau, é inegável que o pensador francês possui  
contribuições importantes para o atual debate ecológico.  
Abrindo a seção Debates apresentamos a contribuição de Ana Carolina Marra  
de Andrade com o título de “Novos rostos de Marx”: da crítica da economia política  
aos horizontes da luta pela emancipação humana, em que a autora busca discutir o  
livro Karl Marx: biografia intelectual e política (1857-1883), publicado em 2023, de  
Marcello Musto, com o objetivo de lançar luz sobre o Marx real e histórico, ressaltando  
a importância de compreender sua obra em sua totalidade e a partir de sua gênese,  
estrutura e função.  
Ainda na seção Debates, publicamos novamente 23 anos depois o artigo de  
Maurício Tragtenberg intitulado Dialética do Sionismo, cujo teor continua mais atual  
do que nunca. Publicado pela primeira na Revista Escrita /Ensaio em 1982,  
Tragtenberg se debruça fundamentalmente nas obras de Theodor Herzl O estado judeu  
e as declarações de Chaim Weizman que se tornou primeiro presidente de Israel ,  
no Congresso Sionista de 1931. Por essa via, e por um profundo conhecedor da  
história europeia, dos judeus europeus e do antissemitismo, Mauricio pode concluir  
que “o sionismo [está] colocado no quadro das políticas imperialistas europeias. Ao  
final, o artigo parece antever os acontecimentos que hoje assistimos atônitos e que  
tiveram seu ensaio geral em Sabra e Chatila.  
Na seção Entrevista, publicamos novamente a entrevista feita com Florestan  
Verinotio  
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Ester Vaismam; Ronaldo Vielmi Fortes  
Fernandes realizada pela equipe Ensaio, coordenada por J. Chasin, e publicada em  
1989 pela Revista Ensaio. O título que entrevista recebeu foi Constituinte e revolução.  
Nela, Florestan discute e avalia a sua experiência como deputado socialista na  
Constituinte. E à dada altura da entrevista faz a seguinte afirmação: “o intelectual que  
existia dentro de mim está intacto e o político profissionalfeneceu antes de nascer.  
Atualíssima diante dos impasses atuais colocados no interior do Congresso nacional,  
a leitura da entrevista é no mínimo esclarecedora.  
Por fim, na seção Tradução, publicamos a resenha elabora por Marx e Engels  
intitulada François-Pierre-Guillaume GUIZOT Por que a revolução na Inglaterra foi bem-  
sucedida? Conferência sobre a história da Revolução Inglesa, publicada em 1850 e  
com tradução de Ronaldo Vielmi Fortes.  
O leitor irá constatar que a edição atual da Verinotio nova fase publica um  
material que, com certeza, irá contribuir para os debates cruciais da atualidade, sejam  
eles teóricos, sejam práticos. Dotados de rigor e profundidade os artigos da presente  
edição de algum modo contribuirá para o enriquecimento daqueles dispostos a  
superar os desafios de nosso tempo.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.769  
Nikolai Mikhailovsky diante do tribunal do sr. K.  
Marx: Marx e a recepção d’O capital na Rússia  
Nikolai Mikhailovsky before the tribunal of Mr. K.  
Marx: Marx and the reception of Capital in Russia  
Gabriella M. Segantini Souza*  
Resumo: No final de 1877, Nikolai Danielson –  
tradutor da edição russa do Livro I d’O capital –  
enviou a Marx alguns artigos e revistas que  
acreditava que interessariam o autor alemão.  
Dentre esses papeis, estava o artigo Karl Marx  
diante do tribunal do sr. Zhukovsky, de Nikolai  
Mikhailovsky, no qual tratava d’O capital e da  
pertinência da obra para os russos, em um  
contexto de dissolução das antigas relações de  
produção e de avanço do desenvolvimento  
capitalista. Depois de ler o artigo, entre 1878 e  
1879, Marx escreveu uma carta para a revista  
onde fora publicado o artigo de Mikhailovsky,  
Otechestvennye zapiski, respondendo seu  
interlocutor russo. No presente artigo, propomo-  
nos a analisar essa missiva, investigando nela a  
visão de Marx acerca da recepção d’O capital na  
Rússia.  
Abstract: At the close of 1877, Nikolai  
Danielson the translator of the Russian edition  
of Volume I of Capital dispatched to Marx a  
selection of articles and periodicals that he  
deemed likely to spark the German thinker’s  
interest. Among these materials was Nikolai  
Mikhailovsky’s article Karl Marx before the  
Tribunal of Mr. Zhukovsky, which examined  
Capital and its relevance for the Russian  
context, then undergoing the disintegration of  
traditional relations of production and the  
advance of capitalist development. Having read  
the article between 1878 and 1879, Marx wrote  
a letter to the journal in which Mikhailovsky’s  
text had been published, Otechestvennye  
zapiski, wherein he addressed his Russian  
interlocutor. In the present study, we seek to  
undertake an analysis of this correspondence,  
exploring within it Marx’s appraisal of the  
reception of Capital in Russia.  
Palavras-chave: Karl Marx; O capital; Rússia;  
populismo russo; revolução social; [assim  
chamada] acumulação originária.  
Keywords: Karl Marx; Capital; Russia; Russian  
populism; social revolution; [so-called] previous  
accumulation.  
quid rides? mutato nomine de te  
Fabula narratur  
Horácio, Satirarum liber primus  
Dada a situação interna da Rússia na época, não foi sem certa surpresa que  
Marx recebeu a notícia de que, dado o interesse do público russo em sua crítica à  
economia política, seria justamente ali que a primeira tradução do Livro I d’O capital  
em língua estrangeira seria publicada1. E sobre a “surpreendente notícia” (MARX in  
* Mestre e bacharel em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Co-editora da Verinotio  
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. E-mail: gabriella.segantini.souza@gmail.com. Orcid:  
0000-0002-7870-8725.  
1 O editor de São Petesburgo N. P. Poliakov tinha inicialmente encarregado Mikhail Bakunin para realizar  
a tradução do v. I d’O capital. Apesar de Poliakov ter dao certa quantia a Bakunin como adiantamento  
pela tradução, o anarquista russo acabou não seguindo em frente com a tradução, de modo que o  
trabalho foi repassado para German Lopatin em 1870. Lopatin traduziu os capítulos 2 a 5 do livro  
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MARX; ENGELS, 2020, p. 273) de que o editor de São Petesburgo (N. P. Poliakov)  
planejava publicar a tradução já na primavera, Marx escreveu a Ludwig Kugelman em  
outubro de 1868, parecia-lhe “uma ironia do destino que os russos, as quais venho  
combatendo sem interrupção há 25 anos, e não só em alemão, mas também em francês  
e inglês, sejam os meus ‘protetores’ de sempre” (MARX in MARX; ENGELS, 2020, p.  
273).  
Cerca de dez anos depois, Marx novamente discutiria a recepção de sua obra  
na Rússia mais especificamente, da forma como certa parte de seus leitores russos  
interpretavam seu tratamento acerca da via de entificação do capitalismo inglês e da  
assim chamada acumulação originária/primitiva. Fazemos referência aqui à carta que  
Marx escreveu entre 1878 e 1879 ao comitê editorial da revista russa Notas  
Patrióticas2, em resposta ao artigo escrito por Nikolai Mikhailovsky, Karl Marx diante  
do tribunal do sr. Ju. Zhukovsky3, publicado na revista no final de 1877. No tempo  
decorrido desde as primeiras notícias de que O capital seria traduzido para o russo,  
Marx havia se aprofundado de forma considerável na literatura russa sobre a questão  
agrária no país e as particularidades do desenvolvimento da produção capitalista na  
Rússia, graças aos materiais enviados por amigos e correspondentes russos, como  
Maksim Kovalevsky e Nikolai Danielson.  
Até aproximadamente a década de 1870 o interesse de Marx em relação à  
Rússia estava em grande parte restrito à crítica ao papel desempenhado pelos russos  
mais especificamente, da diplomacia tsarista como principal força  
contrarrevolucionária da Europa, ao lado da Áustria e da Prússia. Entretanto, à medida  
que a produção capitalista começava a avançar pelo Império Russo, impulsionada pela  
derrota da Guerra da Crimeia em 1856 e pelo fim da servidão russa em 1861, e que  
começava a se formar ali um movimento revolucionário socialista seriamente  
comprometido com a derrubada do tsarismo, Marx toma interesse pelos debates  
nascidos entre os russos sobre a questão agrária no Império e a destruição do modo  
de produção arcaico ainda predominante na Rússia (as comunas agrícolas) pelo avanço  
das relações de produção capitalistas.  
Em meio a isso, desde sua publicação na Rússia, onde havia ganhado certa  
popularidade, O capital havia se tornado objeto de debates acalorados. Alguns russos  
(correspondentes às Seções II a IV na segunda edição), mas não pôde continuar a tradução, visto que  
estava envolvido na organização de um plano de fuga para Nikolai Tchernichevsky, preso desde 1862.  
Por fim, Nikolai Danielson encarregou-se do projeto, terminando a tradução no final de 1871 (cf.  
DANIELSON et al., 1981)  
2 Отечественные записки ou Otechestvennye Zapiski.  
3
O artigo de Mikhailovsky só está disponível no original russo (Карл Маркс перед судом г. Ю.  
Жуковскаго).  
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Nikolai Mikhailovsky diante do tribunal do sr. K. Marx  
viam a obra como um anúncio da inevitabilidade do desenvolvimento do capitalismo  
na Rússia, sobretudo no contexto pós-abolição da servidão na Rússia, quando a massa  
dos servos ‘emancipados’ logo se transformou numa massa de miseráveis (cf.  
ROBINSON, 1961). Outros questionavam até mesmo a pertinência da obra para os  
russos, argumentando que um livro de um autor alemão tratando do capitalismo  
ocidental nada de pertinente teria a aportar para o leitor russo para além de servir de  
advertência contra os males do capitalismo, uma vez que a situação da Rússia muito  
se diferenciava da de seus vizinhos europeus (cf. OITTINEN, 2023). O artigo de  
Mikhailovsky sobre Marx e as considerações do enciclopedista liberal Yuri Zhukovsky  
sobre O capital posicionava-se diretamente nesse debate. Nesse sentido, a resposta  
de Marx às considerações de seu interlocutor russo na carta à revista Notas Patrióticas  
nos coloca diretamente diante das reflexões marxianas sobre a recepção d’O capital  
na Rússia, razão pela qual nos propomos aqui a analisar essa missiva.  
i. Mikhailovsky e as inquietações dos russos  
Em Karl Marx diante do tribunal do sr. Ju. Zhukovsky4, Mikhailovsky buscava  
questionar em que grau seria aplicável a teoria de Marx, sobretudo de O capital, à  
realidade russa. Embora Mikhailovsky considerasse que era inquestionável que fosse  
de interesse para os russos a “teoria histórico-filosófica”5 (MIKHAILOVSKY apud  
OITTINEN, 2023, p. 47) de Marx tal como supostamente estaria exposta no capítulo  
sobre a assim chamada acumulação originária/primitiva , o narodnik defendia em seu  
texto que essa dita ‘teoria da história’ marxiana não seria acertada se levássemos em  
conta a Rússia. Tanaka explica que, em que pese Mikhailovsky não negar o mérito de  
Marx em sua crítica ao modo de produção capitalista, ao ver do russo, o lugar de Marx  
era a Europa Ocidental, eis que na Rússia ele teria apenas moinhos de vento contra  
quem lutar (MIKHAILOVSKY apud TANAKA, 1969, p. 4). Mikhailovsky estava  
convencido de que Marx partia do pressuposto segundo o qual o caminho de  
desenvolvimento experimentado pela Inglaterra seria inevitavelmente seguido por  
todos os povos, indagando se esse processo seria tão “necessário” quanto como  
supostamente retratado por Marx (MIKHAILOVSKY apud OITTINEN, 2023, p. 49).  
4 Em razão de nosso conhecimento insuficiente da língua russa, somos forçados a utilizar as observações  
de terceiros sobre o texto de Mikhailovsky, como Haruki Wada (WADA, 2017, pp. 97-8), Masaharu  
Tanaka (TANAKA, 1969) e Vesa Oittinen (OITTINEN, 2023, pp. 46-53).  
5 By this Marx meant a historical overview of the first steps of a capitalist mode of production, but he  
gave us something much more a whole philosophico-historical theory. It is, generally taken, very  
interesting, and especially interesting for us Russians.(MIKHAILOVSKY apud OITTINEN, 2023, p. 47).  
[Com isto Marx quis dar uma visão histórica dos primeiros passos de um modo capitalista de produção,  
mas deu-nos algo muito mais toda uma teoria histórico-filosófica. De modo geral, isso é muito  
interessante, e especialmente para nós, russos, em tradução nossa.]  
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Mikhailovsky fazia referência ainda a uma nota de rodapé da primeira edição alemã  
dO capital, na qual Marx criticava Aleksandr Herzen por ter encontrado o comunismo  
russo não na própria Rússia, mas no livro de Haxthausen, um conselheiro do governo  
prussiano” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 54). Para Mikhailovsky, essa censura  
dirigida por Marx a Herzen ilustraria a atitude geral de Marx  
diante dos esforços dos russos em encontrar para seu país um  
caminho de desenvolvimento diferente daquele que a Europa  
Ocidental havia seguido e está ainda seguindo esforços sobre os  
quais não há qualquer necessidade de tornar-se um eslavófilo ou  
acreditar misticamente na qualidade especialmente alta do espírito da  
nação russa; tudo o que é necessário é retirar as lições da história da  
Europa (MIKHAILOVSKY apud WADA, 2017, pp. 97-8).  
Em seu artigo, o narodnik questionava ainda se o tipo de processo histórico  
que Marx descreveu é verdadeiramente inevitável ou não” (MIKHAILOVSKY apud  
WADA, 2017, p. 98). Esse artigo, que deve ser situado dentro das discussões que  
ocorriam dentro do movimento revolucionário russo ao final da década de 1870,  
buscava desafiar a visão de que a obshchina iria necessariamente perecer diante do  
peso de supostas leis da história e que aquilo que havia se passado com as terras  
comunais na Europa Ocidental fatalmente se repetiria na Rússia. Os que defendiam  
essa visão muitas vezes faziam recurso às ideias de Marx, sobretudo de O capital,  
afirmando que havia sido Marx quem havia dito que o caminho histórico percorrido  
pela Inglaterra era o único possível e que também seria fatalmente trilhado pela Rússia  
e assim seria em função de leis naturais. De te fabula narratur!” havia exclamado Marx  
no prefácio da primeira edição alemã de O capital: o país industrialmente mais  
desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu  
próprio futuro” (MARX, 2017, p. 78). Para esses russos, isso significava uma coisa  
apenas: a comuna agrária russa estava destinada a perecer e ser suplantada pela forma  
da propriedade privada capitalista e isso era um fato inexorável, um fato das leis da  
história, as quais Marx teria supostamente exposto em O capital.  
Como muitos populistas, Mikhailovsky decerto era um defensor da perspectiva  
de que a comuna agrária russa poderia ser a base para o desenvolvimento de uma  
nova forma de produção na Rússia, uma que combinasse o bem-estar da classe  
agrícola” com o progresso da agricultura” (TCHERNYSHEVSKY, 2017, p. 266) e os  
ganhos do fazendeiro com o aproveitamento da terra, métodos produtivos com  
execução consciente do trabalho” (TCHERNYSHEVSKY, 2017, p. 267), de maneira que  
a proteção da propriedade comunal na Rússia seria crucial. Em razão disso, em seu  
artigo para a Otechestvennye Zapiski, Mikhailovsky se voltava contra as ideias daquele  
que, para ele e para uma considerável parcela dos leitores russos, teria decretado a  
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Nikolai Mikhailovsky diante do tribunal do sr. K. Marx  
sina da comuna agrária na Rússia, isto é, Marx.  
Os populistas russos observavam apreensivos o avanço do capitalismo cada  
vez mais acelerado no país desde 1861 e viam que, com isso, a ruína e a miséria dos  
camponeses crescia na mesma medida6. Para os narodniks, que eram umbilicalmente  
ligados à causa dos camponeses russos, o marxismo implicaria na Rússia aceitar o  
desenvolvimento do capitalismo, a expropriação das terras comunais e tudo aquilo  
que tornava a vida do muzhik cada vez mais intolerável. Eles consideravam que aceitar  
o marxismo significaria aceitar que o papel dos revolucionários socialistas russos seria  
de não apenas contemplar friamente, mas contribuir ativamente e com plena  
consciência à transformação da massa do campesinato em proletariado.  
Para esses revolucionários russos, adotar a teoria de Marx, ou ao menos a  
leitura que alguns russos faziam delas, seria abandonar todos os seus sentimentos e  
desejos mais caros, isto é, de uma revolução socialista na Rússia partindo da comuna  
agrária russa. Essa era a luta dos populistas, evitar que o capitalismo fincasse suas  
raízes de forma definitiva no país e que, em razão disso, a obshchina fosse dissolvida  
e os campesinato fosse privado de suas terras comunais. Ademais, se para o marxismo  
o capitalismo seria na Rússia não apenas inevitável, mas uma necessidade, aceitar essa  
perspectiva seria abandonar também o horizonte de uma revolução em um futuro  
próximo. Assim, a teoria “marxista” trazia enorme angústia para os populistas, pois  
para eles significaria que a luta em nome da qual arriscavam perder sua liberdade e  
até a vida seria uma causa perdida. Em razão disso, na década de 1870 vários  
membros do movimento populista russo se dedicavam a publicar artigos nas revistas  
do movimento voltados a demonstrar a inaplicabilidade da teoria marxiana (ou ao  
menos a leitura que se fazia dela naquela época) à situação russa (cf. TVARDOVSKAIA,  
1978).  
ii. A resposta de Marx  
Através do artigo de Mikhailovsky, Marx pôde, por sua vez, dar-se conta da  
leitura tão reducionista que alguns de seus leitores russos faziam de O capital, o que  
o provocou a elaborar uma resposta ao artigo. Tanto a carta original escrita por Marx,  
6
No caso, aqueles que consideravam que era possível o capitalismo se desenvolver na Rússia. Como  
mostra Tvardovskaia (1974, pp. 77-80), depois da Reforma de 1861, uma das principais discussões do  
que podemos chamar de “movimento populista” na Rússia se revolvia em torno da possibilidade ou da  
impossibilidade de que o país se tornasse capitalista. Por exemplo, V. P. Voronstov via que, por mais  
que se observasse na Rússia certos “fenômenos esporádicos” de capitalismo, era impossível que o  
capitalismo se desenvolvesse de forma definitiva ou completa. Essa discussão se estenderia por  
décadas, sendo que Lenin dela também se ocupou, em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia,  
dirigindo-se contra as hipóteses de V. Voronstov e de N. Danielson sobre essa questão no primeiro  
capítulo da obra (cf. LÊNIN, 1982).  
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quanto as cópias feitas por Engels depois da morte de seu autor não continham data,  
de maneira que só podemos estimar quando foram escritas. É difícil dizer exatamente  
quando Marx escreveu sua carta ao Conselho Editorial da Otechestvennye Zapiski,  
respondendo ao artigo de Mikhailovsky, mas parece incorreta a estimativa contida na  
apresentação do livro Lutas de classes na Rússia, isto é, no final de 1877. Isso porque,  
como podemos ver na carta escrita por Marx a Danielson em novembro de 1878, Marx  
ainda não havia lido o artigo de Mikhailovsky e só sabia em linhas gerais seu conteúdo  
porque, durante uma de suas visitas à casa da família Marx em Londres, Maksim  
Kovalevsky havia aludido à polêmica de Mikhailovsky e Zhukovsky com O capital.  
Nessa carta, Marx diz:  
recebi as publicações de Petesburgo e agradeço vivamente. Não vi nada  
da polêmica de Tchitcherin e outros contra mim, com exceção do que  
me enviaste em 1877 (um artigo de Sieber e outro, creio, de  
Mikhailovsky, ambos nos Anais Patrióticos, em resposta a esse  
estranho autointitulado enciclopedista Zhukovsky). O professor  
Kovalevsky, que está aqui, disse-me que teve polêmicas bastante vivas  
a propósito dO capital (MARX, 2020, p. 329).  
Assim, isso parece situar a escrita da carta ao comitê editorial da  
Otechestvennye Zapiski não no final de 1877, mas entre o final de 1878 e o começo  
de 1879. Outro aspecto dessa carta que permanece um relativo mistério é a razão por  
trás do fato de que Marx nunca realmente enviou sua resposta ao artigo de  
Mikhailovsky para a revista. Dizemos relativo mistério” porque a explicação que Engels  
forneceu para isso em uma carta escrita em março de 1884 para Vera Zasulich parece  
bastante razoável e não vemos motivos suficientes para não a acolher. Segundo  
Engels, Marx não enviou seu texto porque temia que, em razão da forte política de  
censura vigente na Rússia, a própria existência da revista estaria ameaçada quando a  
Otechestvennye Zapiski publicasse sua resposta (ENGELS in MECW v. 47, 2010, pp.  
112-3). Passadas essas questões pontuais, prossigamos a análise.  
Marx começa sua missiva afirmando que, caso Mikhailovsky tivesse encontrado  
alguma passagem do Capítulo XXIV que pudesse sustentar suas conclusões, ele o teria  
feito. Note-se, pois, como Marx logo no início já afirma que não há nada em seu  
tratamento da assim chamada acumulação originária que permitisse assumir que, em  
O capital, ele estaria afirmando a inevitabilidade histórica do processo ali analisado.  
Caso existisse qualquer coisa ali que permitisse concluir que o objetivo de Marx para  
o capítulo sobre a assim chamada acumulação originária era trazer uma teoria  
histórico-filosófica do progresso universal”, por menor que fosse, Mikhailovsky a teria  
citado para fundamentar suas conclusões sobre Marx e a “aplicabilidade” d’O capital  
para a Rússia.  
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Nesse sentido, já no princípio fica evidente que, antes que tudo, com aquela  
carta, Marx tinha o fito de dissipar as más leituras de seu O capital, leituras que viam  
na obra uma tentativa da parte do autor de criar uma teoria histórico filosófica do  
desenvolvimento universal”, de desenhar um modelo que seria inevitavelmente  
seguido por todos os povos a partir da via de entificação do capitalismo na Inglaterra.  
Isso fica bastante claro quando, logo nas primeiras princípio, Marx aponta que não há  
nada em seu texto que possa efetivamente sustentar a interpretação que Mikhailovsky  
trazia. Isso poderá ser percebido mais claramente à medida que adentramos mais  
profundamente nesses trabalhos, mas já é possível notar que, ao invés de recuar diante  
das leituras que o acusavam de ter proposto em O capital a ideia de um único caminho  
possível para o desenvolvimento humano, Marx logo no começo faz questão de  
apontar como não há nada em sua obra que efetivamente conduza a essa conclusão.  
Caso houvesse, ele afirma, Mikhailovsky certamente teria encontrado e citado em seu  
trabalho. Em outras palavras, Marx não retifica sua obra, ele corrige os tropeços  
interpretativos de seus leitores.  
Ao invés de encontrar qualquer coisa no tratamento marxiano do processo de  
expropriação dos produtores que pudesse sustentar seus argumentos, Mikhailovsky  
se restringiu a usar de uma nota de rodapé em que Marx criticava Herzen. Mas fosse  
sua opinião daquele autor justa ou não, Marx clarifica que, a partir dela, não era  
adequado extrapolar sua visão sobre os esforços dos homens russos para encontrar  
um caminho de desenvolvimento para a sua pátria, diferente daquele que foi e é  
trilhado pela Europa ocidental’” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 54). Suas críticas  
a Herzen derivavam-se não do fato de que o autor russo procurava um caminho para  
a Rússia distinto daquele percorrido pela Europa Ocidental, mas pelo fato de que, para  
Marx, nas mão de Herzen a comuna russa só serve de argumento para provar que a  
velha Europa poderia ter sido regenerada pela vitória do pan-eslavismo” (MARX in  
MARX; ENGELS, 2013, p. 54). Nesse interim, a obshchina só serviria a Herzen como  
uma prova da superioridade da Rússia e de seu movimento revolucionário em relação  
à Europa Ocidental e o seu movimento trabalhador. Não se tratava, portanto, de uma  
censura ao fato de Herzen ver na comuna agrária russa um potencial de escapar da  
consolidação do capitalismo na Rússia, mas pelos desdobramentos que Marx via na  
maneira como a comuna aparecia na obra do editor do Kolokol, para quem, na visão  
de Marx, seria uma instituição tipicamente russa e representaria a superioridade do  
espírito do eslávico em relação à Europa Ocidental7.  
7 Aqui Marx está fazendo referência à tese dos eslavófilos acerca da superioridade dos povos eslávicos  
sobre os demais europeus. Contrapondo-se aos chamados ocidentalistas ou modernizadores, que  
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Ademais, como Marx ressalta, se por um lado em O capital ele expressava  
grande criticismo em relação a um grande teórico russo como Herzen, de outro ele ali  
também expressava sua enorme admiração por outro: Nikolai Tchernyshevsky, que  
também via a comuna agrária como um possível meio para a Rússia escapar das ‘forcas  
caudinos’ do capitalismo. Note-se inclusive que em nenhum momento Marx dá indícios  
de ter mudado seu juízo em relação a Herzen, em que pese ter retirado a nota referente  
a ele das edições seguintes de O capital. Marx diz ainda que:  
Em artigos notáveis, ele tratou da questão de se a Rússia deve começar,  
como querem os economistas liberais, por destruir a comuna rural  
para passar ao regime capitalista ou se, pelo contrário, ela poderia,  
sem experimentar a tortura infligida por esse regime, apropriar-se de  
todos os seus frutos mediante o desenvolvimento de seus próprios  
pressupostos históricos. E ele se pronuncia a favor da última solução.  
E meu prezado crítico teria razões no mínimo tão fortes tanto para  
inferir da minha consideração por esse grande erudito e crítico russo”  
que compartilho a sua visão sobre essa questão quanto para concluir  
de minha polêmica contra o beletrista” e pan-eslavista russo que  
rejeito a sua visão (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 54).  
Marx deixa então evidente que, em que pese sua rejeição da visão de Herzen  
sobre a obshchina, ele partilhava da visão de Tchernyshevsky acerca da possibilidade  
de que a comuna agrária poderia sobreviver na Rússia e se apropriar dos frutos do  
capitalismo sem perceber, assim escapando da consolidação do capitalismo e da  
tortura infligida por esse regime”. Nesse sentido, ao contrário do que lhe atribuía o  
editor da revista Notas Patrióticas, a sua posição de certo modo mais se aproximava  
da do próprio Mikhailovsky do que a daqueles supostos marxistas russos, visto que  
rejeitava uma suposta inevitabilidade do desenvolvimento do capitalismo na Rússia.  
Com isso, Marx esclarecia aqui algo de essencial quanto à sua crítica da  
economia política: só enxergavam esquematismos ou uma leitura unilinear da história  
humana em O capital quem não tivesse realmente lido o próprio texto. Não só não se  
encontraria nada ali que sustentasse a ideia de que Marx se propunha com a obra  
prescrever receitas (comtianas?) para o cardápio da taberna do futuro” (MARX, 2017,  
p. 88), mas também seria possível identificar ali seu apreço por um teórico como  
Nikolai Tchernyshevsky, autor que negava expressamente que a Rússia deveria  
necessariamente trilhar o mesmo caminho de seus vizinhos no Ocidente8.  
defendiam uma aproximação da Rússia com os europeus como essencial para o progresso russo, para  
os eslavófilos, a Rússia deveria liderar uma união dos povos eslavos, a qual seria encabeçada pela  
Rússia, e essa união teria o papel de regenerar o putrefato e caduco mundo europeu ocidental. Essa  
era uma corrente bastante forte na Rússia até aproximadamente 1848, quando a oposição entre  
eslavófilos e ocidentalistas se amenizou (cf. YARMOLINSKY, 1956; VENTURI, 1960). Todavia, não cabe  
que aqui analisar se essas críticas a Herzen feitas por Marx, para quem o autor russo era um eslavófilo,  
eram corretas, embora seja necessário que alguém o faça.  
8 A admiração que Marx mantinha por Nikolai Tchernyshevsky não é nenhum segredo. Por exemplo, no  
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Nikolai Mikhailovsky diante do tribunal do sr. K. Marx  
Ainda assim, por mais que isso já estivesse plenamente evidente para quem  
estivesse prestando atenção, Marx não gostava de deixar nada para ser adivinhado’”  
(MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 54), de modo que não mais deixaria para o leitor  
a tarefa de adivinhar no que implicava seu apreço por Tchernyshevsky. Colocaria com  
todas as letras sua posição sobre a questão russa: se a Rússia prosseguir no rumo  
tomado depois de 1861, ela perderá a melhor chance que a história já ofereceu a um  
povo, para, em vez disso, suportar todas as vicissitudes fatais do regime capitalista”  
(MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 54), endossando de forma inequívoca a posição  
de Tchernyshevsky. Marx acrescenta ainda que, caso a Rússia fosse de facto evitar as  
vicissitudes fatais do regime capitalista”, ela deveria salvar a comuna agrária do  
processo de dissolução que ela vinha sofrendo desde a reforma de 1861, quando foi  
posto fim na servidão.  
Trataremos da dissolução da comuna agrária de forma mais aprofundada mais  
à frente, na análise da correspondência de Vera Zasulich com Marx, mas aqui é  
necessário evidenciar um ponto importante acerca da expressão vicissitudes fatais do  
regime capitalista”. Isso porque, ao nosso ver, ela faz eco de um trecho do prefácio da  
primeira edição alemã de O capital que, aos nossos olhos, é profundamente mal  
compreendido, embora frequentemente citado quando se trata desses últimos textos  
de Marx, mormente os sobre a Rússia. Referimo-nos ao seguinte trecho:  
O físico observa processos naturais, em que eles aparecem mais  
nitidamente e menos obscurecidos por influências perturbadoras ou,  
quando possível, realiza experimentos em condições que asseguram  
o transcurso puro do processo. O que pretendo nesta obra investigar  
é o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de  
produção e de circulação. Sua localização clássica é, até o momento, a  
Inglaterra. Essa é a razão pela qual ela serve de ilustração principal à  
minha exposição teórica, mas, se o leitor alemão encolher  
fariseicamente os ombros ante a situação dos trabalhadores  
industriais ou agrícolas ingleses, ou se for tomado por uma  
tranquilidade otimista, convencido de que na Alemanha as coisas  
estão longe de ser tão ruins, então terei de gritar-lhe: De te fabula  
posfácio da segunda edição do Livro I d’O capital, Marx escreveu que a falência da economia “burguesa”,  
cujo “melhor representante é Stuart Mill” (MARX, 2017, p. 86) já havia sido esclarecida magistralmente  
pelo “grande erudito e crítico russo N. Tchernyshevsky […] em sua obra Lineamentos da economia  
política segundo Mill” (MARX, 2017, p. 86). Por demais, conforme se lê na correspondência de Marx  
com Nikolai Danielson, Marx pretendia divulgar a obra de Tchernyshevsky na Europa Ocidental, tendo  
pedido a Danielson que lhe enviasse materiais sobre o autor russo. Por exemplo, numa carta escrita por  
Marx a Danielson no dia 12 de dezembro de 1872, o autor renano diz que desearía publicar algo  
sobre la vida y la personalidad de Chern[ishevski] para despertar en Occidente la simpatía por él. Pero  
para eso necesito datos” (MARX in MARX; ENGELS; DANIELSON, 1981, p. 43). Em sua resposta,  
Danielson se compromete a enviar as informações solicitadas por Marx, mas informa em algumas cartas  
seguintes que a tarefa seria mais difícil do que o antecipado, pois os amigos de Tchernyshevsky que  
ainda viviam na Rússia temiam ser associados com ele (cf. DANIELSON in DANIELSON et al., 1981, pp.  
49-50). Em uma outra carta, Marx diz que Tchernyshevsky apareceria no segundo volume de O capital  
na condição de economista e que conhecia boa parte de seus escritos (MARX in DANIELSON et al.,  
1981, p. 47).  
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narratur [A fábula refere-se a ti]. Na verdade, não se trata do grau maior  
ou menor de desenvolvimento dos antagonismos sociais decorrentes  
das leis naturais da produção capitalista. Trata-se dessas próprias leis,  
dessas tendências que atuam e se impõem com férrea necessidade. O  
país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar  
ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro. (MARX, 2017,  
p. 78) [grifo nosso]  
Note-se como a expressão vicissitudes fatais do regime capitalista” [destaque  
nosso] contida na carta ao comitê editorial da Otechestvennye zapiski ecoa a expressão  
tendências que atuam e se impõem com férrea necessidade” [destaque nosso].  
Adiantamos ainda que uma expressão parecida também está presente nos rascunhos  
da carta de Marx à Vera Zasulich: as fourches caudines9 do capitalismo (MARX in  
MARX; ENGELS, 2013, p. 77). Aqui transcrevemos a passagem inteira porque é de  
suma importância seu contexto inteiro para interpretá-la da forma mais fiel possível ao  
seu sentido efetivo.  
No livro Marx tardio e a via russa, tanto T. Shanin, quanto H. Wada consideram  
que a advertência de Marx segundo a qual o país industrialmente mais desenvolvido  
não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro”  
indicaria uma concepção unilinear da história em O capital e até mesmo um talhe  
evolucionista na obra. Shanin afirma que  
a epistemologia materialista de O capital, a aceitação dialética de  
contradições estruturais e das possíveis regressões temporais dentro  
do capitalismo e a objeção à teleologia não eliminam o cerne do  
evolucionismo. “O país mais desenvolvido industrialmente” estava  
ainda destinado a “apenas mostrar aos menos desenvolvido a imagem  
de seu próprio futuro”. De fato, era uma questão de “leis naturais se  
desenvolvendo com férrea necessidade” (SHANIN, 2017, p. 27).  
Para o autor, esse talhe evolucionista e unilinear seria depois abandonado por  
Marx nos anos 1870-80, o que ficaria evidente nos textos de 1878 e 1881 sobre a  
Rússia. Nesses últimos textos, Shanin defende que Marx teria abandonado o  
evolucionismo ainda presente n’O capital e passaria a adotar uma posição segundo a  
qual para dizê-lo sem rodeios, para Marx, a Inglaterra que ele sabia ser mais  
desenvolvida industrialmente não oferecia, e nem poderia, de fato, oferecer para a  
menos desenvolvida Rússia a imagem de seu próprio futuro’” (SHANIN, 2017, p. 48).  
Haruki Wada também traz uma leitura semelhante, embora o faça com mais mediações  
9
Essa expressão francesa faz referência à famosa Batalhadas Forcas Caudinas (batalha entre aspas  
porque não ocorreu realmente um confronto entre os exércitos). Utiliza-se a expressão em francês  
passer sous les fourches caudinespara dizer passar por uma situação desagradável, dura,  
humilhante. A expressão faz referência a um evento ocorrido na Segunda Guerra Samnita (321 aC),  
quando o exército romano foi humilhado pelo exército Samnita de Caius Pontius nas Furculae Caudinae,  
um desfiladeiro na região da Campânia. Sobre isso, cf. Lívio (1910). Para uma versão traduzida, cf. Lívio  
(1926).  
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do que Shanin. O marxólogo japonês considera que naquele momento [em 1867],  
parece, ele supunha que a Rússia, assim como a Alemanha, seguiria o exemplo da  
Inglaterra” (WADA, 2017, p. 81) [destaque nosso]. Autrement dit, segundo Wada, de  
te fabula narratur significaria que Marx via no curso do desenvolvimento capitalista um  
modelo geral para o desenvolvimento de todos os povos, tanto para a Alemanha,  
quanto para a Rússia, independentemente de suas particularidades e apesar de  
quaisquer esforços conscientes dos homens.  
Entretanto, consideramos que, apesar dos argumentos de Shanin e de Wada,  
em 1878, Marx não estaria rejeitando aquilo que ele afirmou no prefácio de 1867 à  
edição alemã de O capital. Ao contrário, ele reafirma em 1878 o que ele escreveu em  
1867 quando ele menciona as vicissitudes férreas do capitalismo”, apenas trazendo  
algo que seria específico da Rússia em 1878, uma oportunidade que não existia, por  
exemplo, para a Alemanha de 1867, qual seja: a de evitar que o presente inglês se  
tornasse o futuro russo, de evitar a consolidação do capitalismo e todas as agruras  
que acompanham esse regime. Quando Marx exclama o país que é mais desenvolvido  
industrialmente apenas mostra ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio  
futuro!”, parece-nos que algo muito elementar, mas que muitos intérpretes ignoram, é  
que essa frase expressamente diz que o presente de países onde o capitalismo estava  
mais desenvolvido, como a Inglaterra, mostrava aos menos industrialmente  
desenvolvidos, como a Alemanha em 1867, o seu futuro. Ou seja, esse "vislumbre do  
futuro” se limitava aos países que já trilhavam o caminho do desenvolvimento  
capitalista, como a Alemanha. O autor ali nada diz sobre países como a Rússia, que,  
embora estivesse às portas do capitalismo em 1878, ainda não era um país  
propriamente capitalista.  
E por que Marx considerava possível dizer que o presente inglês de 1867 era  
como um espelho para o futuro das nações industrializadas, mas menos desenvolvidas  
que a Inglaterra? Pois as leis e tendências gerais que regem a produção capitalista na  
Inglaterra eram as mesmas que regiam a produção capitalista na Alemanha, de modo  
que as contradições que o movimento da produção capitalista havia engendrado na  
Inglaterra e que ali apareciam de maneira tão patente também logo se mostrariam na  
Alemanha. Tudo isso está dito de forma bastante clara no texto.  
Era por isso que, diante do leitor alemão que olhasse a situação da classe  
trabalhadora inglesa e encolhesse fariseicamente os ombros e comentasse como a  
situação da classe trabalhadora alemã não estava tão ruim na Alemanha, Marx podia  
tomar como suas as palavras de Horácio, e exclamar: Mutato nomine de te fabula  
narratur! Pouco importava se na Alemanha, quando comparada com a Inglaterra, os  
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antagonismos de classes engendrados pelo funcionamento do modo de produção  
capitalista ainda estivessem relativamente latentes ou ainda não tão evidentes quanto  
na velha Blighty: as mesmas leis que regem o capitalismo inglês também regiam o  
alemão, pois elas são as leis gerais da produção capitalista. Desse modo, à medida  
que a produção capitalista alemã avançasse, os antagonismos que eram tão evidentes  
na Inglaterra, mas ainda não tão aparentes na Alemanha em 1867, logo se  
desnudariam diante dos olhos do povo germânico. É forçoso notar aqui que Marx nem  
sequer generaliza essa passagem para países não industriais, como alguns intérpretes  
parecem sugerir, mas apenas aos países que já haviam embarcado no caminho do  
desenvolvimento industrial e, portanto, já estavam sujeitos às tendências que regem e  
atuam na produção capitalista com “férrea necessidade”.  
Essa dura advertência que Marx fazia ao público alemão é extremamente  
relevante, na medida que ela nos lembra que, embora a Inglaterra seja uma presença  
constante em O capital, a obra não se dedicava ao estudo do capitalismo inglês, isto  
é não se tratava de uma obra dedicada às especificidades de como o capital aparecia  
na Inglaterra. John Bull servia para Marx na pesquisa e exposição porque ali as leis e  
as tendências que regiam a produção capitalista em geral apareciam de maneira mais  
clara do que nos demais países capitalistas, graças ao avançado desenvolvimento do  
capitalismo inglês. Como nosso autor afirma,  
o que pretendo nessa obra investigar é o modo de produção capitalista  
e suas correspondentes relações de produção e circulação. Sua  
localização clássica é, até o momento, a Inglaterra. Essa é razão pela  
qual ela serve de ilustração principal à minha exposição teórica (MARX,  
2017, p. 78).  
Portanto, Marx antecipava a objeção do leitor alemão que, vendo como o autor  
se valia da Inglaterra para fins de exposição, negasse a relevância da obra para a  
Alemanha, pois esta não era tão desenvolvida industrialmente quanto aquela. Embora  
em comparação com a inglesa, a produção capitalista alemã fosse ainda extremamente  
atrasada, à medida que o regime capitalista se desenvolvesse na Alemanha, sua  
produção também se submeteria àquelas mesmas leis e tendências gerais que regiam  
a produção capitalista na Inglaterra e que Marx buscou expor em O capital. Isso em  
momento algum Marx rejeita. Ele inclusive reforça isso na carta de 1878, dizendo  
expressamente que, caso a Rússia ingressasse no caminho do capitalismo, ela também  
se submeteria às suas leis naturais. Nesse sentido, consideramos equivocada a  
afirmação de Shanin de que nesse texto para Marx, a Inglaterra que ele sabia ser mais  
desenvolvida industrialmente não oferecia, e nem poderia, de fato, oferecer para a  
menos desenvolvida Rússia a imagem de seu próprio futuro’” (SHANIN, 2017, p. 48).  
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Além de não captar adequadamente o real sentido do trecho do Prefácio da primeira  
edição alemã d’O capital, parece-nos que o autor se equivoca ao sugerir que em 1878  
o Velho Nick teria abandonado a visão exposta em 1867.  
O que o autor buscou expor nO capital não era a anatomia geral da sociedade  
capitalista inglesa, mas a anatomia da sociedade capitalista em geral. Para isso, como  
o cientista que busca analisar um fenômeno no estado menos obscurecido o possível  
de “influências perturbadoras, ou, quando possível, realiza experimentos em condições  
que asseguram o transcurso puro do processo” (MARX, 2017, p. 78), Marx buscava  
analisar o modo de produção capitalista na sua forma ‘pura’, menos obscurecida por  
formações antediluvianas, isto é, ele buscava aquilo que lhe era específico e  
característico, sem correr o risco de se deixar confundir por fenômenos estranhos a  
esse regime de produção em particular. Para tanto, era primordial poder observá-lo  
em seu funcionamento próprio, onde operasse o menos afetado o possível por relações  
provenientes de modos de produção anteriores ao capitalismo. Por exemplo, analisar  
a especificidade do modo de produção capitalista partindo do estudo da realidade  
russa na segunda metade do século XIX, em que relações capitalistas existiam em um  
modo de produção ainda predominantemente agrário e comunal, seria como a décima  
terceira tarefa digna de Hércules, uma que muito provavelmente se mostraria  
infrutífera, eis que ali as relações propriamente capitalistas estariam diluídas em meio  
às relações comunais e agrárias.  
Ocorria então apenas que era na velha Inglaterra onde seu objeto aparecia mais  
nitidamente e menos obscurecidos por influências perturbadoras” (MARX, 2017, p.  
78), pois dentre os países industriais, a “rosa inglesa” era a menos afligida por  
misérias herdadas, decorrentes da permanência vegetativa de modos de produção  
arcaicos e antiquados, com o seu séquito de relações sociais e políticas anacrônicas”  
(MARX, 2017, p. 79). E isso justamente porque, somente na Inglaterra, rompeu-se com  
as relações feudais de forma radical no processo da assim chamada acumulação  
originária. Foi a forma violenta com que se deu a reestruturação das relações de  
distribuição na Inglaterra que permitiu com que as legalidades econômicas da  
produção capitalista aparecem ali de maneira tão nítida. Como esclarece Lukács, “a  
Inglaterra, país clássico do capitalismo, só atinge essa classissidade depois da  
acumulação originária e em função dela” (LUKÁCS, 2012, p. 378). Isso posto, se  
fôssemos utilizar os termos de Marx em sua Crítica ao Programa de Gotha, dentre os  
“países civilizados”, era na Inglaterra que a sociedade capitalista existia mais “livre dos  
elementos medievais” (MARX, 2012, p. 35). No outro polo, de países civilizados menos  
livres “dos elementos medievais”, teríamos, por exemplo, a Alemanha, rica em misérias  
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herdadas”. Na Alemanha, o Ancien Régime ainda não havia cantado a canção do cisne.  
Ali, o belo e trágico ballet do cisne francês havia se degenerado em uma cômica dança  
da galinha.  
Mas retornemos à Rússia. Marx fala em 1878 claramente que, caso os  
revolucionários russos não aproveitassem a oportunidade oferecida pela comuna  
agrária russa, apropriando-se sem experimentar a tortura infligida por esse regime,  
[…] de todos os seus frutos mediante o desenvolvimento de seus próprios  
pressupostos históricos” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 54), e continuasse no  
caminho trilhado desde 1861, o regime capitalista e suas vicissitudes fatais” ali se  
imporiam tal como nos demais países europeus capitalistas. Considerando que  
Otechestvennye Zapiski era um jornal legal na Rússia tsarista, Marx não poderia dizer  
muito claramente qual era essa oportunidade da comuna agrária e como se  
interromperia o rumo tomado depois de 1861”, mas acreditamos que esses pontos  
ficarão mais claros na correspondência com Vera Zasulich. Todavia, o que fica claro  
aqui é que, após anos de estudos sobre a situação russa, Marx chegou à conclusão de  
que a Rússia percorria um caminho que, caso não fosse interrompido o mais rápido  
possível, conduziria ao seio do desenvolvimento capitalista. Ou seja, o único modo de  
evitar essas vicissitudes era evitando que a Rússia se tornasse capitalista, eis que essas  
fourches caudines” são inerentes ao modo de produção.  
Continuemos a análise do texto. Marx afirma então que  
o capítulo sobre a acumulação primitiva [originária] visa exclusivamente  
traçar a rota pela qual, na Europa ocidental, a ordem econômica  
capitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal. Portanto,  
ele expõe o movimento histórico que, divorciando os produtores de  
seus meios de produção, converteu os primeiros em assalariados  
(proletários, no sentido moderno da palavra) e os detentores dos  
últimos em capitalistas (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 55).  
Ou seja, o autor esclarece que o Capítulo XXIV visa expor a gênese histórica do  
capitalismo a partir da ordem feudal. Diferentemente da Rússia, onde a terra era  
comunal, na Europa Ocidental a propriedade da terra era privada e parcelar, com o  
produtor ligado à terra como seu proprietário. Com o processo da assim chamada  
acumulação originária, esses produtores foram expropriados de suas terras e foram  
transformados em trabalhadores assalariados, sem nada para vender senão sua força  
de trabalho. De outro lado, esse processo fez com que os meios e condições de  
produção se concentrassem nas mãos de uns poucos, os quais se tornaram os  
capitalistas.  
Marx prossegue então citando um trecho do Capítulo XXIV.  
Nessa história, o que faz época é toda revolução que serve de alavanca  
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para o avanço da classe capitalista em formação, sobretudo aquelas  
que, despojando grandes massas de seus meios de produção e de  
subsistência tradicionais, lançam-nas de modo imprevisto no mercado  
de trabalho. Mas a base de toda essa evolução é a expropriação dos  
agricultores. Ela só se realizou de um modo radical na Inglaterra [...].  
Mas todos os outros países da Europa ocidental percorrem o mesmo  
processo etc.” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 55).  
Esse "esboço histórico” que ele constrói em O capital visa a esclarecer como na  
história europeia o capitalismo nasceu das entranhas do feudalismo, mostrando como  
a expropriação dos produtores é a base da produção capitalista. Como mostra nosso  
autor, o modo de produção capitalista pressupõe a separação entre produtores e  
meio de produção e a criação de uma massa de pessoas que não têm nada mais o que  
vender senão sua força de trabalho, de maneira que o momento de transição do  
feudalismo para capitalismo foi marcado justamente por esse processo. Dentro da  
crítica da economia política, esse capítulo serve ainda para evidenciar a historicidade  
das relações capitalistas, contrapondo-se aos autores da economia política que viam  
as relações capitalistas por todo lado na história humana, ao invés de percebê-las  
como apenas um momento determinado e bastante recente do desenvolvimento  
humano.  
Nesse sentido, o Capítulo XXIV é uma exposição da gênese histórica do  
capitalismo, demonstrando como esse modo de produção nasce não de uma  
acumulação originária, como supunha Adam Smith, mas da expropriação da massa do  
povo. Em verdade, o principal propósito desse capítulo dentro de O capital era  
justamente esse, de se contrapor à explicação da economia política clássica acerca da  
gênese do capital, além de servir ao supramencionado propósito de expor como esse  
modo de produção não constitui senão um momento recente na história humana. O  
autor no Capítulo XXIV da obra visa desafiar a ideia de que numa época muito remota,  
havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo perniciosa e por outro  
vadios que gastavam tudo” (MARX, 2017, p. 785). Ele se contrapõe às teorias que  
situavam a origem das classes burguesa e proletária na esfera de circulação, colocando  
os burgueses como aqueles que, por sua parcimônia e prudência, apropriaram-se da  
riqueza universal poupando-a, ao passo que a classe proletária tem sua origem  
naqueles que, por prodigalidade, usufruíram da riqueza real ao invés de poupá-la,  
razão pela qual tem que trabalhar para sobreviver. Assim, o capítulo da “assim  
chamada acumulação originária” mostra como o capitalismo não é engendrado por  
uma acumulação originária, mas sim da expropriação, da separação do produtor direto  
dos meios e condições de produção. Não se tratava, contudo, de verificar se aquela  
via de entificação do capitalismo era geral ou de construir um modelo a partir dela, e  
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sim de apontar os equívocos da forma como a economia política clássica tratava da  
acumulação capitalista, isso a partir de um esboço histórico de como o modo de  
produção capitalista efetivamente nasceu do ventre da sociedade feudal europeia, com  
destaque para a Inglaterra.  
É importante esclarecer aqui que o autor retirou a passagem acima da edição  
francesa de 1872-7510, a qual, diferentemente da edição alemã original, restringe o  
processo da assim chamada acumulação originária aos países da porção Ocidental da  
Europa. Ele assim também o faz nos rascunhos e na carta a Vera Zasulich, servindo-se  
de passagens da edição francesa iniciada em 1872. Contudo, não parece haver outra  
razão por detrás disso senão o fato de esses textos terem sido escritos em francês, de  
modo que o autor fez uso da tradução francesa11. Nesse sentido, consideramos que a  
preferência pela edição francesa não se deveu à “taxativa restrição à Europa Ocidental  
que ali se expressa como escopo das considerações acerca da gênese do capitalismo  
a partir ‘das entranhas da ordem feudal’” (FARIA, 2017, p. 132), mas sim a uma  
explicação muito mais simples.  
Sobre as diferenças entre como esse trecho aparecia na primeira edição alemã  
e como aparecia na tradução francesa de 1872 dedicaremos algumas palavras a  
mais12. Na primeira edição alemã de O capital, que foi a base da primeira tradução do  
texto para o russo iniciada em 1868 e completada por Danielson em 1872, o trecho  
citado por Marx na carta de 1878 consta assim:  
Historisch epochemachend in der Geschichte des Scheidungsprozesses sind  
die Momente, worin grosse Menschenmassen plötzlich und gewaltsam von  
ihren Subsistenzund Produktionsmitteln geschieden und als vogelfreie  
Proletarier auf den Arbeitsmarkt geschleudert werden. Die Expropriation der  
Arbeiter von Grund und Boden bildet die Grundlage des ganzen Prozesses.  
Wir haben sie also zuerst zu betrachten. Ihre Geschichte nimmt in  
verschenken Ländern verschiedne Färbung au und durchläuft die  
verschiedenen Phasen in verschiedner Reihenfolge. Nur in England, das wir  
daher als Beispiel nehmen, besitzt sie klassische Form. (MARX, 1867, p.  
701)13  
10 A história da primeira tradução francesa do Livro I d’O capital é extremamente interessante, uma vez  
que Marx, insatisfeito com o trabalho do tradutor francês, Joséph Roy, encarregou-se diretamente da  
tradução (MARX in DANIELSON et al., 1981, pp. 26-7). Assim, Marx aproveitou-se do fato de que teria  
que fazer várias correções no trabalho de J. Roy e fez diversas modificações e retificações no seu texto,  
em especial na Seção V da obra (MARX in DANIELSON et. al., 1981, pp. 92-3). Sobre a tradução  
francesa, cf. Musto (2023, pp. 122-4).  
11 Embora Marx fosse plenamente capaz de ler em russo e talvez escrever na língua também, o francês  
lhe era muito mais natural, sendo que escrevia grande parte de suas correspondências em francês,  
incluindo suas cartas para Nikolai Danielson.  
12 A primeira edição do Volume I de O capital era dividida em seis capítulos/seções e a parte dedicada  
à assim chamada acumulação originária compunha o segundo item do sexto capítulo, o processo de  
acumulação do capital. Esse trecho foi depois expandido e se tornou o Capítulo XXIV nas edições  
seguintes, inclusive na tradução francesa de 1872/73.  
13  
Na história do processo de divórcio, fazem época os momentos em que grandes massas de pessoas  
são repentina e violentamente separadas de sua subsistência e meios de produção e jogadas no mercado  
de trabalho como proletários livres. A expropriação da terra dos agricultores constitui a base de todo o  
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Já na edição francesa, esse trecho consta na seguinte forma  
Dans l'histoire de l'accumulation primitive, toute révolution fait époque qui  
sert de levier à l'avancement de la classe capitaliste en voie de formation,  
celles surtout qui, dépouillant de grandes masses de leurs moyens de  
production et d'existence traditionnels, les lancent à l'improviste sur le  
marché du travail. Mais la base de toute cette évolution, c'est l'expropriation  
des cultivateurs. Elle ne s'est encore accomplie d'une manière radicale qu'en  
Angleterre : ce pays jouera donc nécessairement le premier rôle dans notre  
esquisse. Mais tous les autres pays de l'Europe occidentale parcourent le  
même mouvement, bien que selon le milieu il change de couleur locale, ou  
se resserre dans un cercle plus étroit, ou présente un caractère moins  
fortement prononcé, ou suive un ordre de succession différent. (MARX, 1989,  
p. 634)14  
Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que embora Marx tenha iniciado a  
revisão da tradução francesa em 1872, ele só terminou a revisão em 1875, isto é,  
depois que a segunda edição alemã já havia sido publicada. Nesse sentido, o ideal  
seria compararmos esses dois trechos também com a edição alemã de 1873. Mas  
considerando que a primeira edição da tradução russa usou de referência a edição de  
1867, no momento essa falta não compromete muito nossa análise.  
Comparando os dois textos, para além de algumas alterações estilísticas e o  
acréscimo da frase sobre as revoluções que serviram de alavanca para o avanço da  
classe capitalista em vias de formação, o conteúdo não se difere tanto quanto Faria  
sugere. Na primeira edição alemã, de 1867, Marx colocava que o processo da  
expropriação dos produtores, que é a base da assim chamada acumulação originária,  
ocorria em vários países, sendo que em cada um deles assumia coloridos diferentes e  
fases em ordens diferentes entre si. A Inglaterra assumia um papel principal na  
exposição desse processo porque ali essa expropriação se dera de forma clássica.  
Note-se assim que nessa versão do texto, Marx já deixava plenamente evidente que o  
processo de divórcio dos meios de produção e dos produtores se dava de formas  
distintas nos diferentes países e que de modo algum a forma como isso se deu na  
Inglaterra era a única possível.  
Já na edição francesa, Marx afirma que todos os países da Europa Ocidental  
percorriam o mesmo caminho de expropriação dos produtores, mas que esse processo  
processo, por isso temos que olhar para eles primeiro. Sua história leva cores diferentes em diferentes  
países e passa por diferentes fases em ordem diferente. Somente na Inglaterra, que tomamos como  
exemplo, tem uma forma clássica (tradução livre).  
14 Na história da acumulação originária, faz época toda revolução que serve de alavanca ao avanço da  
classe capitalista em vias de formação, sobretudo aquelas que, despojando as grandes massas de seus  
meios de produção e de existência tradicionais, lançam-nas inesperadamente no mercado de trabalho.  
Mas a base de toda essa evolução é a expropriação dos camponeses. Ela apenas se consumou de  
maneira radical na Inglaterra: assim, esse país necessariamente desempenhará papel principal em nosso  
esboço. Mas todos os outros países da Europa Ocidental executam o mesmo movimento, ainda que,  
dependendo do meio, ele mude de cor local, ou se feche em um círculo mais estreito, ou tenha um caráter  
menos pronunciado, ou siga uma ordem de sucessão diferente. (tradução livre)  
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assume diferentes coloridos locais, sendo que apenas na Inglaterra essa expropriação  
havia se dado de forma radical. Perceba-se então que na edição francesa de 1872-75,  
Marx observa que em todos os países da Europa Ocidental já se iniciara a expropriação  
dos produtores, mas apenas na Inglaterra esse processo se consumara de modo  
radical. Nesse sentido, as principais alterações que identificamos de uma edição para  
a outra nesses dois trechos são que: i) na edição alemã de 1867, Marx não menciona  
especificamente os países da Europa Ocidental, ao passo que na edição francesa de  
1872-75, ele afirma que todos eles já percorriam o caminho da expropriação dos  
produtores; ii) na edição alemã de 67, ele se refere à forma inglesa como ‘clássica’, ao  
passo que na edição francesa de 1875 ele diz que na fora apenas na Inglaterra onde  
esse processo se deu de forma radical.  
Quanto ao primeiro ponto, o acréscimo da especificação dos ‘países da Europa  
Ocidental’ de modo algum serve para corrigir uma suposta generalização presente no  
sentido original do trecho, uma vez que a versão de 1867 em nenhum momento  
generalizava o esboço da assim chamada acumulação originária do Capítulo XXIV como  
um processo homogêneo e universal para todos os países. Ao nosso ver, na tradução  
francesa de 1872-75, Marx buscava indicar que em todos os países europeus  
ocidentais essa expropriação dos produtores já estava em pleno curso. Mas como em  
nenhum deles esse divórcio havia se dado de modo tão radical quanto na Inglaterra,  
a assim chamada acumulação originária tal como se deu entre os ingleses que  
assumiria o papel de destaque na exposição do Capítulo XXIV. Por conseguinte, não  
se trata efetivamente de uma espécie de correção do trecho original de 1867 no  
sentido de restringir a validade do esquema da assim chamada acumulação originária  
para a Europa Ocidental, assim excluindo, por exemplo, os países da Ásia e a Rússia,  
como de certo modo sugere Faria. De todo modo, a partir de uma leitura cuidadosa  
fica claro que, na versão de 1867, Marx não está utilizando a história de como a  
separação entre produtores e meios de produção se passou na Inglaterra para  
conceber um modelo geral de como esse processo se daria por toda parte. Com efeito,  
em nenhuma das duas versões há uma generalização que desconsidere as  
particularidades locais ou que afirme que todos os países inevitavelmente seguiriam o  
mesmo caminho trilhado pela Inglaterra. Em ambos, nosso autor ressalta que cada país  
que passava pela formação do capitalismo vivia o processo de separação entre  
produtores e meios e condições de produção de uma forma particularmente sua,  
assumindo diferentes “coloridos locais” e fases em ordens diferentes. Assim, as sutis  
modificações sofridas nesse trecho entre 1867 e 1872-75 de forma alguma são  
suficientes para sustentar que a versão francesa do texto seria um sintoma do  
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abandono de supostos esquemas unilineares da parte de Marx. A especificação com  
relação aos países da Europa Ocidental deve-se principalmente ao fato de ter sido  
nessa porção do continente europeu em que, assim como na Inglaterra, a produção  
capitalista foi antecedida pela feudal, de modo que a transição deste modo de  
produção para aquele se daria de modo mais ou menos semelhante ao exposto no  
Capítulo XXIV. Onde a propriedade da terra não possuía forma similar à encontrada na  
Inglaterra e em países da Europa Ocidental como a França, a coisa não poderia se dar  
como vemos em O capital, pois ali o autor mostra como se deu a gênese do capitalismo  
a partir das entranhas da ordem feudal.  
Quanto à mudança da caracterização do processo de expropriação do produtor  
inglês de “clássica” para “radical”, parece-nos que também se trata mais de um ajuste  
na exposição que não altera substancialmente o sentido de uma versão para a outra.  
No máximo, partindo de algumas considerações tecidas por Lukács no primeiro volume  
de Para uma ontologia do ser social, poderíamos supor talvez que Marx teria  
reconsiderado a possibilidade de atribuir “classicidade” a um momento transicional  
como o da assim chamada acumulação originária, uma vez que se trataria de uma zona  
gris por excelência. Como vimos anteriormente, Marx afirma no prefácio de 1867 d’O  
capital que a formação capitalista inglesa era clássica na medida que era menos  
turvadas por resquícios de outras formações sociais, fazendo com que as legalidades  
próprias do capitalismo aparecessem ali de forma mais clara. E como aponta Lukács,  
essa ‘classicidade’ seria resultado da violência com a qual se deu a reestruturação das  
relações econômicas na Inglaterra no momento da assim chamada acumulação  
originária, rompendo de forma radical com as antigas estruturas de produção. Assim,  
nas palavras do filósofo húngaro afirma, “a Inglaterra, país clássico do capitalismo, só  
atinge essa classicidade depois da acumulação originária em em consequência dela”  
(LUKÁCS, 2012, p. 378) [destaque nosso]. Nesse sentido, não faria sentido dizer  
‘clássica’ na separação dos produtores e dos meios de produção tal como ocorreu na  
Inglaterra, e sim radical, sendo justamente em virtude dessa radicalidade como se deu  
a assim chamada acumulação originária em Albion, essa gênese violenta, que se  
poderia falar depois no desenvolvimento do capitalismo inglês como clássico, eis que  
teria se rompido de forma violenta, radical com as antigas relações de produção.  
Contudo, e é importante frisá-lo, isso resta apenas como uma hipótese extrapolada a  
partir de elaborações de Lukács, e não do próprio Marx.  
Partindo dessas modificações, Haruki Wada considera que é possível inferir uma  
nova concepção que Marx formulou com base em seus estudos até o momento”  
(WADA, 2017, p. 87). Wada considera que seria uma uma implicação óbvia dessa  
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correção” (WADA, 2017, p. 88) na edição francesa que a forma inglesa de  
expropriação dos camponeses é aplicável apenas à Europa Ocidental, ou, para dizê-lo  
de outra forma, que a Europa Oriental e a Rússia podiam seguir linhas de evolução  
completamente diferentes” (WADA, 2017, p. 88). Contudo, ao nosso ver, aqui Wada  
se equivoca por duas razões. Em primeiro lugar, não havia nada na primeira versão  
que conduzisse à afirmação de que a Rússia ou a Europa Oriental deveriam seguir um  
caminho igual ao inglês. Por demais, Marx em momento algum propõe uma forma  
inglesa” aplicável a qualquer outro lugar que não a Inglaterra, ele apenas diz que os  
países da Europa Ocidental seguem o mesmo movimento observado na Inglaterra  
entre os séculos XV e XVII, isto é, a expropriação das terras camponesas, mas que isso  
ocorre em cada lugar de uma forma particular. Por essa mesma razão também  
discordamos com a afirmação de Faria segundo a qual, tanto no texto de 1878, quanto  
nos esboços de sua resposta a Vera Zasulich, de 1881, Marx faria uso de um trecho  
retirado da edição francesa ao invés do texto do original alemão “de modo matreiro,  
a versão francesa de seu texto, já imunizada contra as possíveis leituras evolucionistas,  
para esquivar-se justamente de uma acusação de evolucionismo histórico-filosófico”  
(FARIA, 2017, pp. 136-7). Tal afirmação nos parece equivocada não só pela razão à  
qual aludimos acima, isto é, que Marx usa da edição francesa porque escreveu o texto  
em francês, mas também porque uma leitura evolucionista do texto em sua redação  
original de 1867 já era descabida, como pretendemos acima ter apontado.  
Tampouco poderíamos chegar a uma conclusão semelhante a partir da sugestão  
feita por Marx a Nikolai Danielson que na elaboração da segunda edição russa do Livro  
I de O capital o tradutor também levasse em consideração a edição francesa da obra.  
Embora Marx ressalte que a edição francesa possuía muitos acréscimos e modificações  
importantes em relação à versão alemã, a tradução deveria levar em conta também a  
segunda edição alemã, inclusive porque Marx considerava que fora forçado a “aplainar”  
alguns de seus argumentos no momento de traduzir o texto para o francês (MARX in  
MARX; ENGELS, 2020, p. 329). Não se sustenta a ideia de que seria só a partir de  
seus estudos ao longo da década de 1870, sobretudo de seu contato com os autores  
russos, que Marx aceitaria uma multiplicidade de caminhos também dentro de um  
mundo onde o capitalismo existia e se tornava uma força dominante” (SHANIN, 2017,  
p. 67). Isso porque a ideia de um único caminho possível em momento algum é  
defendida por Marx em O capital esse tipo de esforço está ao mesmo além e aquém  
da função da obra. “Além” porque ali o autor parte em uma empreitada bastante  
específica de apreender e reproduzir o ser propriamente assim da sociedade  
capitalista, isto é, sua existência efetiva, sem se dedicar a uma teoria da história  
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humana em geral. “Aquém” porque não consegue chegar à radicalidade da crítica  
marxiana e de seu rapport com a realidade.  
Mais maintenant revenons à nos moutons15. Depois de trazer um pequeno  
apanhado sobre a assim chamada acumulação originária, Marx se dedica a criticar a  
forma como seu esquema histórico era aplicado à Rússia. Primeiro, Marx traz a  
conclusão que seria, a seu ver, a mais óbvia para a Rússia e a única possível a partir  
da leitura de O capital:  
Se a Rússia tende a tornar-se uma nação capitalista a exemplo das  
nações da Europa ocidental e durante os últimos anos ela se  
esforçou muito nesse sentido , não será bem-sucedida sem ter  
transformado, de antemão, uma boa parte de seus camponeses em  
proletários; e, depois disso, uma vez levada ao âmago do regime  
capitalista, terá de suportar suas leis impiedosas como os demais  
povos profanos. Isso é tudo! (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56)  
Trata-se daquilo que já afirmamos anteriormente, isto é, que uma vez  
consolidado o capitalismo na Rússia, os russos teriam que suportar as mesmas leis  
que regiam a produção capitalista dos povos profanos” como os ingleses. Note-se  
como aqui ele reitera que o país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do  
que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro”. Mas para que  
ela pudesse efetivamente se tornar capitalista, a grande massa dos camponeses russos  
deveria ser transformada em proletariado, isto é, deveriam ser separados dos meios  
de produção. Mas sobre como isso se daria, não há como chegar à conclusão alguma  
apenas lendo o Capítulo XXIV. Apenas o estudo da concretude da realidade russa nos  
permitiria chegar a conclusões específicas sobre esse processo. Não cabia, partindo  
apenas da leitura do Capítulo XXIV, chegar a conclusões mais exatas sobre a Rússia,  
pois naquela obra, o autor apenas nos oferece um esboço geral sobre a gênese do  
capitalismo partindo do caso inglês. Ele aqui não fala como se daria a transformação  
dos camponeses russos em proletariado porque não é possível afirmar nada de certo  
sobre isso apenas partindo apenas da leitura do Capítulo XXIV. Se começo da carta  
Marx traz sua posição sobre a comuna agrária foi apenas porque por vários anos ele  
vinha estudando a questão, não se tratando de qualquer dedução lógica ou aplicação  
de uma teoria.  
“Mas isso é pouco para o meu crítico” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56),  
Marx continua. Ao invés de limitar-se à conclusão que se poderia chegar, transformou-  
se seu esquema histórico da gênese do capitalismo na Europa ocidental em uma teoria  
histórico-filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos,  
15 Mas agora retornemos ao nosso assunto.  
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independentemente das circunstâncias históricas nas quais eles se encontrem” (MARX  
in MARX; ENGELS, 2013, p. 56). Isso porque Marx dedicava-se a, como ele mesmo  
expõe na Crítica da filosofia do direito de Hegel, apreender a lógica específica do  
objeto específico” (MARX, 2010, p. 108), isto é, desvendar os nexos imanentes aos  
objetos reais’” (CHASIN, 2009, p. 72). A partir da Crítica de Kreuznach (43/44),  
quando se opera a virada ontológica apontada por J. Chasin, Marx se guia pela  
investigação da lógica imanente e seus próprios nexos, não em consequência formal  
e linear de […] uma simples e mera reorganização da subjetividade do autor” (CHASIN,  
2009, p. 58). Em outras palavras, o pensamento marxiano a partir de 1843/44 passa  
sempre a se subsumir criticamente aos complexos efetivos, às coisas reais e ideais na  
mundanidade” (CHASIN, 2009, p. 58), no intuito de reproduzir na teoria o movimento  
do real.  
Em virtude desse talhe ontológico que caracteriza a obra de Marx desde a  
década de 1840, seria impensável ver no seu esboço histórico uma tentativa de um  
tipo de postulado apriorístico sobre o curso geral fatalmente imposto a todos os  
povos”, desconsiderando todas as determinações concretas de cada povo em  
particular. Apenas mergulhando-se nas determinações concretas e particulares da  
realidade de cada povo é que se poderia dizer qualquer coisa sobre o caminho a ser  
percorrido para acabar chegando à formação econômica que assegura, com o maior  
impulso possível das forças produtivas do trabalho social, o desenvolvimento mais  
integral possível de cada produtor individual” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56).  
Diante dessa expectativa, sentia-se tão honrado quanto ofendido” (MARX in MARX;  
ENGELS, 2013, p. 56). Honrado, talvez porque seu crítico assim lhe atribuiria a  
capacidade quase divina de conseguir prever o futuro de todos os povos por meio de  
um simples” esboço. Ofendido pela grave incompreensão de sua obra.  
Como já mencionado acima, essa carta nunca foi enviada por Marx ao comitê  
editorial da revista. Engels considerava a explicação para isso bastante simples e  
tendemos a concordar com ele, como já indicamos anteriormente. Entretanto, Haruki  
Wada sugere que haveria uma razão mais profunda por trás do não envio da carta por  
Marx, uma que estaria relacionada ao próprio curso do pensamento de Marx no fim da  
década de 1870. Segundo o comentarista japonês,  
a reprovação que Marx aponta para Mikhailovsky está, evidentemente,  
bem afastada do alvo e é irrelevante, porque a interpretação deste último  
não pode ser vista como um erro total. Foi Marx, na realidade, quem  
passou por uma mudança significativa depois que escreveu a primeira  
edição alemã de O capital (WADA, 2017, p. 101).  
Como já é possível se perceber pelos trechos trazidos aqui, Wada considera  
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que antes da década de 1870, Marx de fato sustentava a posição que lhe foi atribuída  
por Mikhailovsky no artigo Karl Marx ante o tribunal do sr. Zhukovsky, inclusive no  
Volume I de O capital, e que entre 1869 e 1878 o autor renano iria se distanciar do  
suposto esquematismo manifesto até então. Especificamente sobre a Rússia, Wada  
considera que as críticas feitas por Marx a Herzen em 1867, sobretudo à forma como  
o populista russo via a obshchina como uma manifestação da particularidade russa,  
deviam-se ao fato de que Marx naquele momento “supunha que a Rússia, assim como  
a Alemanha, seguiria o exemplo da Inglaterra” (WADA, 2017, p. 81). Portanto, para  
Wada a posição que Mikhailovsky atribui ao autor de O capital de fato seria a posição  
de Marx em um dado momento, de modo que em 1878 Marx só discordaria da leitura  
de Mikhailovsky porque entre 1867 e 1878 o próprio Marx teria mudado de forma  
expressiva seu pensamento. Wada considera que o próprio Marx teria então se dado  
conta disso, de modo que a verdadeira razão pela qual Marx não enviou o texto seria  
porque teria visto algo de errado em sua crítica a Mikhailovsky” (WADA, 2017, p.  
102).  
Contudo, consideramos essa interpretação incorreta. Nem em 1867, nem em  
1878 a interpretação que Mikhailovsky trazia para O capital correspondia com a  
posição de Marx, como tentamos demonstrar, e tampouco a reprovação de Marx  
quanto àquela leitura que se fazia da obra não era derivada de uma mudança  
significativa” pela qual o autor teria passado desde 1867. Como vimos, no texto de  
1878 o autor não expressa nenhuma visão que indique um afastamento das ideias  
expostas em 1867. Pelo contrário, há evidente continuação. Entretanto, não há nada  
que sustente essa sua hipótese, muito menos algo que sugira que a razão dada por  
Engels não seria a verdadeira. Parece-nos muito mais razoável seguir a razão dada por  
Engels, companheiro e colaborador de longa data de Marx, do que ceder a  
especulações de biógrafos cem anos depois da morte do autor.  
É preciso lembrar ainda que quando fora publicado na Rússia, O capital apenas  
escapara ao pente dos censores do tsar porque consideraram que, embora Marx fosse  
um conhecido comunista, a obra não poderia ser qualificada de acessível a todos”  
(MARX in MARX; ENGELS, 2020, p. 306), como o autor certa vez escreveu a Friedrich  
Sorge. Entretanto, o que diriam esses censores se a Otechestvennye Zapiski publicasse  
um texto do famoso “Dr. Vermelho” não apenas tratando da Rússia e da propriedade  
comunal de forma tão clara, mas também ecoando as ideias de Nikolai Tchernyshevsky,  
teórico que estava desde 1862 exilado na Sibéria por seus escritos de economia  
política?  
Ademais, como veremos mais à frente, as críticas de Marx às leituras que alguns  
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russos faziam de O capital, sobretudo do Capítulo XXIV, não passaram por alguma  
mudança substancial entre 1878 e 1881, quando o autor responde a carta de Vera  
Zasulich. Se Marx via algo de errado em suas críticas a Mikhailovsky, sua argumentação  
sobre a questão da comuna em 1881 haveria de ter modificações expressivas em  
relação ao posicionamento expresso em 1878, o que de fato não acontece. Tampouco  
poderíamos ver nas alterações na redação do Volume I de O capital da edição alemã  
de 1867 para a tradução francesa iniciada em 1872, como sugere Faria (2017). Sobre  
essa teoria, esse autor diz que  
outro argumento para o engavetamento dos esboços por Marx seria  
o reconhecimento da pertinência das críticas de Mikhailovsky, ou  
mesmo da inconsistência de sua própria resposta (WADA, 1983, p.  
60), críticas as quais já tinham sido feitas pelo filósofo a si mesmo,  
como dito acima, conforme se pode notar pelas revisões na edição  
francesa de O capital (ANDERSON, 2010, p. 171), edição que é tomada  
por base para a resposta não só aos ataques de seu crítico, mas  
também como para a resposta a Zasulich, alguns anos depois (FARIA,  
2017, p. 129).  
Ou seja, Faria parece acolher a razão dada por Wada e chega mesmo a sugerir  
que as modificações feitas por Marx no texto da tradução francesa evidenciariam uma  
concordância por parte do autor alemão em relação ao tipo de crítica feita por  
Mikhailovsky. E sobre essas revisões, o autor diz o seguinte:  
Identificando no texto de Mikhailovsky um ataque às suas ideias, o  
que suprime qualquer fundamento possível para a leitura de Riazanov,  
Marx se apressa em preparar um revide, redigindo uma breve, mas  
pesada, epístola, em que cintilam pontos de surpreendente  
concordância com as posições de seu próprio oponente, ao qual o  
filósofo busca sintomaticamente responder valendo-se de uma edição  
do texto criticado, seu livro O capital, em que já foram sanados os  
problemas apontados pelo crítico, sua edição francesa, vinda à luz entre  
os anos de 1872 e 1875, marcada por importantes revisões no que  
diz respeito ao fulcro da crítica do perspicaz do pensador e publicista  
russo. (FARIA, 2017, p. 129)  
Aqui, o autor muito provavelmente se refere à retirada da crítica a Herzen, o  
acréscimo do elogio a Tchernyshevsky e a alteração na primeira parte do que viria a  
se tornar o Capítulo XXIV. Entretanto, como vimos anteriormente, se olharmos bem as  
alterações na redação da introdução do Capítulo XXIV e as compararmos à redação  
original, a modificação não é tão expressiva como o autor sugere. Ademais, as críticas  
de Mikhailovsky não tinham muito fôlego nem se feitas em relação ao texto original,  
de maneira que as mudanças na redação não permitem a sugestão de que Marx teria  
tido um momento no qual havia feito ao texto de 1867 as mesmas críticas do narodniki  
e que teria sido por isso que fez as revisões mencionadas. E como já ressaltamos  
acima, o fato de Marx ter feito uso da tradução francesa é facilmente explicado por  
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uma razão muito mais simples: a carta fora também escrita em francês, de maneira que  
o uso da tradução francesa seria muito mais uma questão de comodidade do que por  
outra razão. O autor continua:  
É importante observar, com o amparo do Preâmbulo apresentado  
acima, que as revisões de Marx em sua edição francesa não ferem de  
qualquer modo os fundamentos mais profundos em que se ampara o  
livro em questão, sedimentados ao longo de quatro décadas,  
conferindo-lhe apenas uma melhora discursiva em determinados e  
delicadíssimos pontos. O que ocorre é uma formulação mais precisa  
de determinadas ideias, para que não deem margem a interpretações  
deterministas, de cunho naturalista ou mistificador, já vistas pelo autor  
como possíveis, desvirtuando, desse modo, seus lineamentos mais  
basilares, decorrentes justamente da crítica destas correntes  
filosóficas. (FARIA, 2017, pp. 128-9)  
Aqui é mais razoável a explicação do autor, embora seja necessário cuidado  
quando atribuímos uma razão específica para essas modificações, sobretudo porque  
o autor nunca esclareceu exatamente as razões dessas revisões, além de que a  
“margem” para essas “interpretações deterministas, de cunho naturalista ou  
mistificador, já vistas pelo autor como possíveis” seja questionável. Se lermos as cartas  
escritas por Marx sobre a edição francesa, o autor de fato aponta para modificações  
consideráveis na tradução da obra do alemão para o francês, bem como explica que  
fez várias delas para facilitar a exposição da obra para o público da França, deixando  
o texto com “um estilo familiar para o público francês” (MARX in MARX; ENGELS, 2020,  
p. 304).  
Em uma carta de 1875 a Pyotr Lavrov, Marx de fato menciona alterações  
substanciais nos capítulos sobre a acumulação (MARX in MARX; ENGELS, 2020, p.  
313), mas essas alterações muito provavelmente se referem não tanto à pequena  
reelaboração do parágrafo que trouxemos acima, mas provavelmente aos extensos  
acréscimos que o autor fez ao texto que compunha a Seção VI da primeira edição. Por  
demais, depois de 1867 o autor acrescentou também diversas páginas ao texto  
original do capítulo sobre a assim chamada acumulação originária, de modo que muito  
bem poderia estar se referindo a isso. Não podemos nos esquecer ainda que já em  
novembro de 1867, antes do contato de Marx com a literatura narodniki, em uma carta  
a Victor Schily, o autor apontava a necessidade de se fazerem alterações no texto  
alemão para a tradução francesa (MARX in MARX; ENGELS, 2020, p. 231). Mas  
deixemos de lado essas especulações.  
Marx termina sua argumentação na carta de 1878 com um exemplo.  
Em diferentes pontos de O capital fiz alusão ao destino que tiveram os  
plebeus da antiga Roma. Eles eram originalmente camponeses livres  
que cultivavam, cada qual pela própria conta, suas referidas parcelas.  
No decurso da história romana, acabaram expropriados. O mesmo  
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movimento que os separa de seus meios de produção e de  
subsistência implica não somente a formação da grande propriedade  
fundiária, mas também a formação dos grandes capitais monetários.  
Assim sendo, numa bela manhã (eis aí), de um lado homens livres,  
desprovidos de tudo menos de sua força de trabalho, e do outro, para  
explorar o trabalho daqueles, os detentores de todas as riquezas  
adquiridas. O que aconteceu? Os proletários romanos não se  
converteram em trabalhadores assalariados, mas numa mob [turba]”  
desocupada, ainda mais abjetos do que os assim chamados poor  
whites [brancos pobres]dos estados sulistas dos estados Unidos, e  
ao lado deles se desenvolve um modo de produção que não é  
capitalista, mas escravagista. (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56)  
O autor compara o destino dos plebeus romanos no decorrer da história de  
Roma ao destino dos camponeses ingleses na assim chamada acumulação originária.  
Assim como os camponeses ingleses, os plebeus eram originalmente camponeses  
livres e que cultivavam por conta própria suas referidas parcelas de terra. Isto é, em  
ambos os casos, os produtores diretos se relacionavam às condições naturais do  
trabalho como proprietários” (MARX, 2011, p. 392), embora a forma de propriedade  
seja diferente no caso romano e no inglês, bem como de seus pressupostos. E assim  
como se passou com o pequeno proprietário de terras inglês ao longo da história da  
assim chamada acumulação originária, o plebeu romano foi em um dado momento  
expropriado. Em razão desse mesmo processo que separou o plebeu romano de seus  
meios de produção e subsistência, ocorreu não somente a formação da grande  
propriedade fundiária, mas também a formação dos grandes capitais monetários”  
(MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56), ou seja, um movimento semelhante ao que  
vemos na história da assim chamada acumulação originária.  
Mas o que ocorreu com esses camponeses livres romanos que foram separados  
da posse da terra? Aconteceu que ao invés de se converterem em assalariados (como  
se passou na história da assim chamada acumulação originária), esses plebeus  
romanos se tronaram uma mob [turba]” desocupada, ainda mais abjetos do que os  
assim chamados poor whites [brancos pobres] dos estados sulistas dos estados  
Unidos” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56). Tampouco se desenvolveu em Roma  
um modo de produção capitalista, fundado na venda e na compra da força de trabalho,  
mas uma produção baseada na escravidão (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56).  
O que isso nos mostra?  
Portanto, acontecimentos de uma analogia que salta aos olhos, mas  
que se passam em ambientes históricos diferentes, levando a  
resultados totalmente díspares. Quando se estuda cada uma dessas  
evoluções à parte, comparando-as em seguida, pode-se encontrar  
facilmente a chave desse fenômeno. Contudo, jamais se chegará a isso  
tendo como chave-mestra uma teoria histórico-filosófica geral, cuja  
virtude suprema consiste em ser supra-histórica. (MARX in MARX;  
ENGELS, 2013, pp. 56-7)  
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Como nos explica Marx, embora se trate de acontecimentos de uma analogia  
que salta aos olhos” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56), o fato de terem se  
passado em ambientes históricos tão distintos como na Roma Antiga e na Inglaterra  
dos séculos XV ao XVII produziu resultados bastante díspares. Todavia, adiciona Marx,  
isso não significa que depois de termos analisado cada uma dessas evoluções à parte  
e depois as comparado não seja possível encontrar facilmente a chave desse  
fenômeno” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p. 56). Mas à essa chave nunca poderemos  
chegar por meio de uma chave-mestra uma teoria histórico-filosófica geral, cuja  
virtude suprema consiste em ser supra-histórica” (MARX in MARX; ENGELS, 2013, p.  
57).  
O que isso dizia sobre a Rússia? Ora, mesmo que possamos ver uma analogia  
entre a história das comunas agrárias na Europa, onde elas haviam desaparecido quase  
que completamente no fim do século XIX, e a comuna agrária russa, não significava  
que, na Rússia, chegaríamos ao mesmo resultado que na Europa. Do mesmo modo,  
ainda que fosse possível ver paralelos entre a história da separação dos camponeses  
da Europa Ocidental e seus meios e condições de subsistência e o que ocorria na  
Rússia desde 1861 com o esmagamento da comuna agrária russa, não era possível  
dizer que na Rússia necessariamente veríamos a mesma evolução que vimos, por  
exemplo, na Inglaterra entre os séculos XV e XVII. E por quê? O ambiente histórico  
russo em 1880 era absolutamente distinto do inglês no começo da época conhecida  
como Era Moderna, cada qual com suas condições materiais próprias.  
Ainda que pudéssemos encontrar a chave geral do fenômeno, isto é, da  
separação entre produtor direto e as condições naturais do trabalho e os meios de  
produção, não poderíamos fazê-lo sem antes analisar cada fenômeno separadamente  
e suas particularidades, isto é, considerar as diferenças específicas. Uma teoria  
histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra-histórica” que  
sirva de chave-mestra, isto é, que abstrai das especificidades de cada fenômeno  
histórico particular, nunca nos permitiria chegar à real chave geral do fenômeno”. A  
própria experiência da história já nos mostrava que não poderíamos fazê-lo, como  
vimos no caso dos plebeus romanos. Nesse sentido, o autor nos adverte contra fazer  
uso do esquema histórico da assim chamada acumulação originária contido no  
Capítulo XXIV de O capital como se fosse uma teoria supra-histórica” (algo que não  
era), aplicando-a como uma chave-mestra para entender a situação da obshchina  
apesar das particularidades do contexto romano na decadência da república ou do  
final do século XIX na Rússia. Descurar-se dessas diferenças específicas implica na  
desconsideração da própria historicidade da produção.  
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Marx não está trazendo aqui algo de necessariamente novo, eis que já falava  
algo semelhante em 1857-58 nos Grundrisse, quando na introdução ele trata da  
produção geral” e de abstrações razoáveis. Em sua crítica ao uso da “produção em  
geral” pelos economistas da época, afirma Marx que sempre quando se fala em  
produção se está sempre falando em um modo de produção determinado, em um dado  
estágio de desenvolvimento social – da produção de indivíduos sociais” (MARX, 2011,  
p. 41). Em função do fato de que a produção é sempre historicamente situada, poderia  
parecer que para poder falar em produção em geral, deveríamos seja seguir o  
processo histórico de desenvolvimento em suas distintas fases, seja declarar por  
antecipação que consideramos uma determinada época histórica” (MARX, 2011, p.  
41). Em outras palavras, poderia parecer que não é possível falar na produção de  
forma geral, na "produção geral”, sem que estejamos cometendo o equívoco de se  
assumir um dado modo de produção como ponto de partida da história, tomando por  
determinações da ‘produção em geral’ as determinações de um dado momento  
específico da produção material na história humana. Seria, portanto, cometer o  
disparate apologético de Bastiat e Carey, que nada mais faziam senão se esforçar por  
demonstrar a eternidade e harmonia da produção capitalista, de modo que na mão  
desses economistas todo instrumento de produção e trabalho objetivado se torna  
capital (MARX, 2011, p. 41).  
Entretanto, isso não significa que Marx descarta a “produção em geral” como  
irrazoável ou mero instrumento de sicofantas. Pelo contrário, a “produção em geral”  
como a síntese das características em comum a todas as épocas da produção, e não  
como eternização de um modo de produção específico, torna-se uma abstração  
razoável e uma de enorme importância. Ela o “é na medida em que efetivamente  
destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição” (MARX, 2011,  
p. 41). Ou seja, a abstração só é razoável nesse caso pelo fato de existirem  
efetivamente elementos comuns às diferentes formas históricas da produção social, de  
maneira que a produção comum destaca e fixa esses elementos. Ela permite, portanto,  
que, ao identificar esses elementos como comum, ao estudar os modos de produção  
particulares, podemos nos dedicar à análise apenas do que lhes é particular, pois  
somos poupados da repetição. Contudo, mesmo esse “universal” ou comum isolado  
por comparação” (MARX, 2011, p. 41) não é exatamente “uniforme”, pois ele mesmo  
“é multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações” (MARX, 2011, p.  
41). Isso na medida que existem determinações que são comuns a todas as épocas,  
algumas a apenas algumas e outras comuns apenas à época moderna e à antiga, como  
explica Marx. Dessa maneira, como esclarece Chasin, a razoabilidade de uma abstração  
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como a produção geral “se manifesta, pois, quando retém e destaca aspectos reais,  
comuns às formas temporais de entificação dos complexos fenomênicos considerados”  
(CHASIN, 2009, p. 124) [destaque do original], constituindo-se em “algo geral extraído  
das formações concretas, posto à luz pela força de abstração, mas não produzido por  
um volteio autônomo da mesma, pois seu mérito é operar subsumida à comparação  
dos objetos que investiga” (CHASIN, 2009, p. 124) [destaque nosso].  
Marx afirma então que  
Nenhuma produção seria concebível sem elas; todavia, se as línguas  
mais desenvolvidas têm leis e determinações em comum com as  
menos desenvolvidas, a diferença desse universal e comum é  
precisamente o que constitui seu desenvolvimento. As determinações  
que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas  
de maneira que, além da unidade decorrente do fato de que o  
sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos , não  
seja esquecida a diferença essencial. Em tal esquecimento repousa,  
por exemplo, toda a sabedoria dos economistas modernos que  
demonstram a eternidade e a harmonia das relações sociais  
existentes. (MARX, 2011, p. 41)  
Para que fique mais claro o que isso quer dizer, vejamos o exemplo dado por  
Marx:  
Por exemplo: nenhuma produção é possível sem um instrumento de  
produção, mesmo sendo este instrumento apenas a mão. Nenhuma  
produção é possível sem trabalho passado, acumulado, mesmo sendo  
este trabalho apenas a destreza acumulada e concentrada na mão do  
selvagem pelo exercício repetido. O capital, entre outras coisas, é  
também instrumento de produção, também trabalho passado,  
objetivado [objektivierte]. Logo, o capital é uma relação natural,  
universal e eterna; quer dizer, quando deixo de fora justamente o  
específico, o que faz do instrumento de produção”, do trabalho  
acumulado, capital. Por essa razão, toda a história das relações de  
produção aparece em Carey, por exemplo, como uma maliciosa  
falsificação provocada pelos governos. (MARX, 2011, p. 41)  
A necessidade de instrumentos de produção e o trabalho acumulado são as  
determinações que valem para a produção em geral, dado que são aspectos universais  
e comuns a épocas diferentes da produção humana. Caso não nos atentemos a aquilo  
que torna o capital uma forma específica de instrumento de produção e de trabalho  
objetivado, o que o separa do universal e comum, chega-se à falsa conclusão de que  
capital é uma determinação geral da produção. Capital torna-se, portanto, uma  
relação natural, universal e eterna” ao invés de um desenvolvimento específico e  
determinado do aspecto que é comum a todos os modos de produção social. Nesse  
sentido, conseguir distinguir aquilo que é comum, isto é, a identidade daquilo que  
constitui a particularidade, a diferença específica é essencial para que não se incorra  
no mesmo equívoco dos economistas clássicos que viam a produção capitalista em  
toda época que analisavam. Afinal, como Marx já dizia em seus comentários críticos à  
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Filosofia do direito de Hegel, “uma explicação que não dá a differentia specifica não é  
uma explicação” (MARX, 2010, p. 34). Podemos até mesmo comparar dois momentos  
distintos da produção humana e encontrar determinações que lhes são comuns, isto  
é, identificar uma certa unidade entre eles, mas não podemos nunca fazê-lo sem nos  
atentarmos a aquilo que é específico de cada um. Destarte, como salienta J. Chasin,  
a consideração das diferenças específicas é, pois, uma exigência  
fundamental, decorrente do critério ontológico de abordagem, tendo  
presente que a distinção ou a identidade de certa formação de  
qualquer tipo é dada, precisamente, por aquilo que a diferencia dos  
elementos gerais e comuns copertencentes às demais que integram o  
mesmo conjunto. […] Por decorrência, ignorar a diferença essencial  
é perder de vista os objetos reais e com isso o horizonte do  
pensamento de rigor, tal como os economistas que naturalizam e  
perenizam a sociedade capitalista, pondo de lado exatamente o que  
nela é específico (CHASIN, 2009, p. 125).  
Retornando ao nosso objeto, vê-se, portanto, como bem antes da década de  
1870-80, Marx já demonstrava evidente atenção não apenas à historicidade das  
relações humanas, mas principalmente à necessidade de se atentar às diferenças  
específicas quando se analisa comparativamente dois fenômenos distintos buscando  
aspectos comuns a eles. Trata-se de um aspecto que reiterado em 1878 quando o  
autor evidencia a importância da correta apreensão as especificidades da Rússia para  
que se pudesse dizer algo sobre a comuna agrária russa, ainda que pudéssemos ver  
paralelos com a história da Europa Ocidental. Além disso, em 1878 podemos ver ecos  
das considerações marxianas de 1857-58 acerca da das abstrações razoáveis quando  
Marx critica a transformação do esquema histórico da assim chamada acumulação  
originária em uma “teoria histórico-filosófica” supra-histórica, o que seria uma  
abstração das mais desarrazoadas, na medida que completamente ignora as diferenças  
essenciais. De modo similar, também vemos ecos dos Grundrisse quando Marx trata  
da possibilidade de se encontrar a chave geral de fenômenos análogos como o caso  
dos plebeus romanos e os camponeses da Europa Ocidental nos séculos XV-XVII, o  
que de forma alguma se poderia fazer sem se atentar às particularidades de cada caso.  
Nesse sentido, já podemos ver que as afirmações como as de Shanin e de Wada,  
de que teria ocorrido uma grande inflexão no pensamento de Marx depois de O capital  
são, no mínimo, superlativizantes. Shanin sugere que teria sido apenas no último  
período da obra marxiana, isto é, o período depois da publicação do volume I, que o  
autor teria dado um novo passo para uma conceituação mais complexa e realista da  
heterogeneidade global das formas sociais, suas dinâmicas e interdependências  
associativas” (SHANIN, 2017, p. 30). Mas caso olhemos apenas os poucos trechos de  
O capital trazidos aqui, já é possível ver que afirmações desse tipo partem muito mais  
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de leituras inadequadas da obra de Marx do que efetivamente de um suposto talhe  
unilinear do texto. Isso não significa que não haja qualquer desenvolvimento posterior  
na teoria marxiana depois da publicação do Livro I. Muito pelo contrário, nos 16 anos  
depois da publicação dessa obra Marx nunca deixou de se dedicar à pesquisa, mesmo  
quando acometido por problemas de saúde e tragédias familiares. Entretanto, não  
vemos razão alguma para contrapor esses trabalhos da década de 1870-80 ao  
primeiro tomo da crítica da economia política como parecem fazer Shanin e Wada,  
sobretudo quando se sabe que o Livro I é o primeiro capítulo da empreitada à qual  
Marx se dedicaria até sua morte em 1883 e o único dos três volumes que foi  
completamente escrito e editado pelo próprio autor.  
Considerações finais  
Como tentamos evidenciar, em sua resposta ao artigo de Mikhailovsky, Marx  
voltava-se diretamente contra os intérpretes russos de O capital que viam na obra e,  
em especial, no capítulo sobre a assim chamada acumulação originária, uma espécie  
de teorização universal da história humana a partir da qual seria possível desvendar a  
sucessão necessária e universal das formações sociais. O capital não era uma obra a  
ser “aplicada” sobre a realidade russa e as considerações sobre a gênese histórica do  
capital não deveriam ser tomadas como uma espécie de “cardápio da taverna do  
futuro”. Nesse sentido, poderíamos argumentar que, longe de uma espécie de  
retratação ou uma reformulação daquilo que ele havia colocado em O capital, Marx  
realiza uma crítica à forma como sua obra foi recebida por parte do público russo, que  
havia visto em seu livro uma teoria da história que não existia ali ou uma tentativa de  
“prescrever receitas (comtianas?) para o cardápio da taberna do futuro” (MARX, 2017,  
p. 88). Qualquer leitura mecanicista da obra ou que visse ali um projeto de filosofia da  
história era, portanto, uma má-leitura.  
Entretanto, ao tratar das particularidades do caso russo ou destacar que cada  
sociabilidade seja regida por uma legalidade que lhe seja imanente, Marx não estava  
negando a validade das leis gerais que regem a produção capitalista quando ele. O  
que ele recusava admitir era absolutizar e a-historicizar aquelas leis imanentes da  
produção capitalista das quais tratava em O capital (como era o costume dos  
economistas burgueses afeitos às chamadas robinsonadas), ou ver no desenvolvimento  
humano algum tipo de lei transcendental, trans-histórica que supostamente regeria  
esse movimento de forma linear. Afinal, Marx assegurava que, uma vez a Rússia se  
tornasse definitivamente capitalista, aquelas mesmas leis e tendências que regiam a  
produção capitalista no Ocidente agiriam sobre ela, c’est-à-dire, a Rússia teria que  
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passar pelas furculae caudinae do capitalismo assim como seus primos ocidentais. No  
entanto, se na Rússia o capitalismo iria se consolidar ou não, isso nada tinha a ver com  
destino.  
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Como citar:  
SOUZA, Gabriella M. Segantini. Nikolai Mikhailovsky diante do tribunal do sr. K. Marx:  
Marx e a recepção d’O capital na Rússia. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp.  
1-33, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 1-33 jul.-dez., 2025 | 33  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.765  
A crise em níveis: o todo artístico dos três  
volumes de O capital de Karl Marx  
Crisis in levels: the artistic whole of the three volumes  
of Capital by Karl Marx  
Ana Clara Passos Presciliano*  
Resumo: O presente artigo investiga como a  
crise econômica é concebida nos Livros I, II e III  
de O capital, de Karl Marx, buscando reconstruir  
Abstract: This article investigates how economic  
crisis is conceived in Marx’s Capital, Volumes I,  
II, and III, aiming to reconstruct the unity  
a
unidade entre produção, circulação  
e
between  
production,  
circulation,  
and  
reprodução do capital. Parte-se da hipótese de  
que a crise é imanente ao modo de produção  
capitalista e se desenvolve à medida que o  
reproduction of capital. It starts from the  
hypothesis that crisis is immanent to the  
capitalist mode of production and develops as  
the concept of capital becomes more complex,  
manifesting itself in four interconnected levels:  
the split between buying and selling (Volume I),  
the limit of surplus-value production (Volume I),  
the disequilibrium among productive sectors in  
the movement of capital (Volume II), and the  
“violent eruption” of autonomized forms with  
the interruption of the valorization cycle  
(Volume III). These dimensions are argued to  
reveal different moments of the same  
foundational contradiction, running through the  
logic of capital from its simplest appearance to  
its global manifestation.  
conceito  
de  
capital  
se  
complexifica,  
manifestando-se em quatro níveis interligados: a  
cisão entre compra e venda (Livro I), o limite da  
produção de mais-valor (Livro I), o desequilíbrio  
entre setores produtivos no movimento do  
capital (Livro II) e a “erupção violenta” das figuras  
autonomizadas com a interrupção do ciclo de  
valorização (Livro III). Sustenta-se que essas  
dimensões revelam diferentes momentos de uma  
mesma contradição fundante, que percorre a  
lógica do capital desde sua aparência mais  
simples até sua manifestação global.  
Palavras-chave: Crise econômica; capital;  
circulação; Karl Marx; mais-valor.  
Keywords: Economic crisis; capital; Karl Marx;  
circulation; surplus value.  
Introdução  
O estudo das crises constitui um dos núcleos fundamentais da crítica da  
economia política de Karl Marx. Nos três volumes de O capital, a crise não aparece  
como um acidente externo ao modo de produção capitalista, mas como expressão de  
suas próprias contradições internas. No entanto, a forma como a crise é tematizada  
varia substancialmente entre os Livros I, II e III, o que levanta uma questão central:  
como essas formulações distintas se articulam no interior da totalidade teórica da  
obra? Para responder a essa pergunta, tomamos como base interpretativa central os  
próprios textos de Marx, e contamos também com o auxílio da leitura desenvolvida  
por intérpretes de sua obra.  
*
Mestre  
e
doutoranda pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:  
anaclarapresciliano@gmail.com.  
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nova fase  
 
A crise em níveis: o todo artístico dos três volumes de O capital de Karl Marx  
No Livro I, a crise aparece associada às contradições entre a produção e a  
valorização do valor, articuladas à extração de mais-valor e à dinâmica da acumulação;  
no Livro II, ela passa a advir do desequilíbrio sistêmico na circulação do capital  
enquanto capital, ligado à dificuldade de realização do mais-valor; já no Livro III, o foco  
se desloca para figuras derivadas do capital como o capital portador de juros e o  
capital fictício em que a contradição assume um nível mais complexo, marcado pela  
autonomização das figuras e pelo distanciamento em relação ao valor produzido no  
processo de trabalho.  
A análise aqui empreendida parte do pressuposto de que essa aparente  
descontinuidade entre os três momentos da obra de Marx revela, na verdade, a  
coerência interna da sua lógica dialética1. O que se observa é uma passagem da  
contradição imanente à produção de mais-valor para a contradição entre as figuras  
desenvolvidas do capital e os limites materiais da produção de valor.  
No esforço de sistematizar logicamente a categoria de crise em O capital, Jorge  
Grespan propõe uma leitura que distingue quatro níveis conceituais nos quais a crise  
se manifesta, cada um correspondente a um momento específico da exposição  
marxiana. Trata-se, como ele próprio assinala, de uma periodização conceitual e não  
empírica, voltada à reconstrução da lógica interna da crítica da economia política2. Essa  
periodização reforça a tese central do presente artigo: a crise é imanente ao capital e  
se desenvolve dialeticamente à medida que essa forma se complexifica.  
O primeiro nível da crise aparece na própria circulação simples de mercadorias,  
onde Marx já identifica a cisão potencial entre compra e venda3. A possibilidade de  
1
Marx via O capital como um “todo artístico” no qual cada obra cumpria uma função muito bem  
delineada, em que o Livro I investiga o processo de produção capitalista em si mesmo, apresentado  
como processo direto de produção, ainda abstraídos os efeitos causados por circunstâncias alheias; o  
Livro II complementa a biografia do capital ao apresentar o seu processo de circulação no mundo real,  
e ao final, na seção III, ao modo com que o processo de produção capitalista é a unidade dos processos  
de produção e circulação; por fim, no Livro III, completa a arquitetura da obra ao desenvolver reflexões  
gerais sobre a mencionada “unidade”, expondo as formas concretas advindas do processo de  
movimento do capital considerado como um todo (MARX, 2017, p. 53).  
2 Grespan ainda vai além ao afirmar que o estudo das crises é fundamental para compreender a própria  
noção de capitalismo dentro da obra marxiana, bem como a sua crítica: “Neste sentido, um estudo  
completo da concepção marxiana do capitalismo deve sempre levar em conta a dimensão em que a  
negatividade do capital aparece enquanto crise e também a forma com que esta última se combina para  
compor movimentos em direções determinadas e em períodos de tempo circunscritos. Além disso, em  
segundo lugar, apreendida como expressão da negatividade imanente ao capital, a crise está na base  
da crítica ao capitalismo, conforme um significado especificamente marxiano de crítica: não se trata de  
uma reflexão exterior que aponta os limites deste sistema, e sim dos limites alcançados por ele mesmo  
com o desenvolvimento de suas potencialidades e com a exposição de suas contradições fundamentais  
nos processos que ele realiza.” (GRESPAN, 2012, p. 23)  
3
Marx se opôs à Lei de Say, que propunha um equilíbrio necessário entre oferta e demanda. A Lei de  
Say pressupõe uma economia de trocas diretas de produtos, mas Marx argumenta que, em uma  
economia monetária, o dinheiro pode ser retido fora da circulação, interrompendo o ciclo de reprodução  
do capital. Quando o dinheiro é acumulado sem ser reinvestido, surge a possibilidade de crise, já que  
o fluxo econômico é interrompido (MARX, 2017, pp. 208-9; GANDER, 2019, p. 10). Como Heinrich  
(2014, p. 179) observa, os economistas clássicos e neoclássicos, ao usar a Lei de Say, pressupõem uma  
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uma interrupção no circuito mercantil isto é, de que uma mercadoria seja vendida  
sem que o valor correspondente seja imediatamente realizado em nova compra –  
introduz a possibilidade formal da crise. Ainda que não haja capital propriamente dito  
neste estágio da exposição, mesmo que esteja pressuposto4, a não-identidade entre  
os momentos da troca inaugura o espaço lógico da ruptura.  
O segundo nível é o da produção imediata de mais-valor, momento central do  
Livro I. Aqui, a crise se expressa na contradição entre o capital e o trabalho,  
especialmente na tendência à substituição do trabalho vivo por trabalho objetivado.  
Essa contradição conduz à possibilidade de uma produção de mais-valor que, no  
entanto, pode não encontrar condições de realização. A produção do mais-valor  
contém, assim, seu próprio limite.  
No terceiro nível, a crise surge na circulação do capital enquanto capital, tal  
como desenvolvido no Livro II. O processo de metamorfoses do capital de capital-  
dinheiro a capital produtivo e, por fim, capital-mercadoria envolve um encadeamento  
complexo de etapas cujo descompasso pode interromper a reprodução. A separação  
entre os diversos ciclos dos capitais individuais expõe o sistema a rupturas internas.  
Aqui, a crise não é mais só potencial ou localizada, mas pode se difundir no sistema  
como um todo.  
Por fim, no quarto nível, Marx analisa a crise no contexto do processo global  
de reprodução do capital social, tratado no Livro III. É nesse ponto que a crise assume  
sua forma mais desenvolvida: como resultado da autonomização das figuras do capital  
e da desproporcionalidade entre os diversos ramos da produção e entre capital e  
consumo social. Trata-se do momento em que a contradição total do capital se  
manifesta abertamente, revelando a negatividade que o estrutura.  
Essa periodização, ao mesmo tempo lógica e conceitual, demonstra como a  
economia sem dinheiro, ignorando as dinâmicas que podem levar à crise.  
4
A título de esclarecimento, conforme mencionado anteriormente, busca-se realizar aqui uma  
periodização conceitual e não empírica dos momentos de crise aqui tratados. Sendo assim, não há que  
se falar em uma espécie de cronologia histórica entre os níveis de crise, o que levaria à interpretação  
equivocada de que se estaria tratando de uma espécie de circulação simples antes do próprio  
surgimento do capital e do modo de produção capitalista, mas sim, que no momento da exposição em  
que é abordada a circulação simples, o capital ainda está apenas pressuposto na exposição, sendo  
desenvolvido em momento posterior da obra. Outra interpretação não seria possível, já que como o  
próprio Marx elucida, ele não aborda as categorias econômicas conforme o seu desenvolvimento  
histórico, mas sim, da sua articulação dentro da sociedade burguesa moderna: “Seria impraticável e  
falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se umas às outras na sequência em que  
foram determinantes historicamente. A sua ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm  
entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem  
natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as  
relações econômicas assumem historicamente na sucessão de diferentes formas de sociedade. Muito  
menos de sua ordem na ideia([como em] Proudhon) (uma representação obscura do movimento  
histórico). Trata-se, ao contrário, de sua estruturação no interior da moderna sociedade burguesa.”  
(MARX, 2011, p. 51).  
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A crise em níveis: o todo artístico dos três volumes de O capital de Karl Marx  
crise percorre toda a exposição de O capital, desde suas categorias mais simples até  
sua forma mais complexa. Longe de ser um fenômeno marginal, ela é a expressão da  
própria totalidade contraditória do capital: “A crise é elemento básico da dinâmica  
global capitalista.” (GRESPAN, 2012, p. 24) Dessa forma, crise e capital estão  
profundamente interligados: à medida que o capital assume níveis mais concretos e  
complexos de definição, o conteúdo do conceito de crise também se torna mais  
abrangente, refletindo essas mesmas passagens de nível no processo de exposição.  
A metodologia adotada combina análise imanente e reconstrução teórica. O  
objetivo não é apenas identificar diferenças entre os livros, mas compreender como  
elas se articulam no interior de uma totalidade lógica. A conclusão busca sugerir que  
a unidade entre os tratamentos da crise permite aprofundar a crítica do capitalismo  
como forma social historicamente determinada e radicalmente contraditória.  
A crise no Livro I: a contradição entre produção e valorização  
No Livro I de O capital, Marx estabelece os fundamentos da lógica do capital,  
com foco na sua reprodução ampliada e na produção do mais-valor. A crise, nesse  
contexto, não é ainda tematizada em seus desdobramentos empíricos ou institucionais,  
mas aparece como um resultado necessário das contradições internas do processo de  
valorização.  
Nesse sentido, a concorrência entre capitais individuais faz com que o  
crescimento da produção não corresponda à expansão da demanda necessária à  
realização do capital. A sua reprodução ampliada exige a constante transformação do  
mais-valor em capital, chamada acumulação de capital (MARX, 2013, p. 429), mas essa  
acumulação depende de condições que ele não pode garantir sistematicamente: o  
consumo dos trabalhadores é limitado, e a expansão dos mercados não acompanha a  
capacidade produtiva5.  
Por isso, mesmo antes da tematização do capital fictício ou da financeirização,  
o Livro I já apresenta a crise como o momento em que a contradição entre forças  
produtivas e relações de produção se manifesta de forma aguda. Essa contradição se  
expressa na superprodução de mercadorias que não conseguem ser realizadas no  
5
A tradição do subconsumo remonta a Rosa Luxemburgo, que em A acumulação do capital (1970)  
defende que o capitalismo depende da existência de mercados não capitalistas para realizar o mais-  
valor e expandir-se, através do imperialismo, já que o consumo dos trabalhadores seria insuficiente para  
absorver toda a produção. Essa leitura é retomada e desenvolvida por autores vinculados à revista  
Monthly Review, como Paul Sweezy (Teoria do desenvolvimento capitalista, 1986), que combina o  
subconsumo com a questão da lei tendencial da taxa de lucro, e por Robert W. McChesney e John  
Bellamy Foster, que em The endless crisis (2012) atualizam a análise sob a forma de subinvestimento  
crônico e demanda insuficiente, interpretando as crises contemporâneas como expressão da saturação  
dos mercados e do esgotamento da capacidade de absorção do sistema.  
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mercado, ou seja, vendidas com lucro, e na expulsão de trabalhadores, que intensifica  
o desequilíbrio entre produção e consumo.  
Como veremos, a leitura da crise como forma do limite interno da valorização  
permite compreender a função destrutiva-criadora das crises, que reaparecerá com  
maior complexidade no Livro III. No Livro I, a crise já aparece como imanente ao capital:  
não como catástrofe vinda de fora, mas como expressão de sua estrutura contraditória.  
Mais especificamente, serão analisadas nesta seção as modalidades de crise na  
circulação simples e no processo de produção de mais-valor, como se passa a expor.  
A crise na circulação simples: a cisão entre compra e venda  
O primeiro nível conceitual da crise aparece já na forma mercantil mais simples,  
anterior mesmo à exposição do capital propriamente dito dentro d’O capital, ainda  
que ele esteja pressuposto. Na circulação simples o circuito M-D-M (mercadoria-  
dinheiro-mercadoria) Marx demonstra que há uma separação lógica entre os atos de  
venda (M-D) e de compra (D-M), o que cria a possibilidade de interrupção do processo  
de troca. Essa cisão, longe de ser um mero acidente técnico, revela uma contradição  
interna enraizada na própria constituição da mercadoria enquanto unidade de valor de  
uso e valor, o que será explicado em detalhe adiante.  
De início, temos que a mercadoria visa satisfazer necessidades humanas por  
meio de suas propriedades – sejam essas necessidades “do estômago ou da  
imaginação” – e, nesse sentido, cada mercadoria possui um caráter qualitativo singular,  
seu valor de uso (MARX, 2013, p. 113). Mas, ao mesmo tempo, para ser  
intercambiável, deve conter algo em comum com outras: o valor, que expressa o  
trabalho humano abstrato nela objetivado.  
Assim sendo, ao entrar na esfera da troca, a mercadoria já não é mais  
reconhecida por sua utilidade, mas por sua capacidade de ser trocada por outras  
mercadorias. Essa relação é mediada pelo valor de troca, que exprime uma proporção  
quantitativa na qual valores de uso distintos podem ser intercambiados. Isso só é  
possível justamente porque as mercadorias são produtos do trabalho humano, mas  
não qualquer trabalho trata-se do trabalho humano abstrato, ou seja, o trabalho  
reduzido a uma mesma medida homogênea, mensurável em tempo socialmente  
necessário para a produção (MARX, 2013, pp. 116-7).  
Essa qualidade do trabalho abstrato de justamente abstrair a especificidade  
concreta do trabalho individual em favor de uma mediação social indireta é o que  
permite que as mercadorias se tornem comparáveis na troca. É justamente a oposição  
entre valor de uso e valor que dá forma à expressão de equivalência entre mercadorias,  
pois a troca só pode ocorrer quando duas mercadorias se confrontam enquanto  
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portadoras de valor, apagando suas utilidades particulares. Nessa operação, o trabalho  
abstrato aparece como o fundamento real do valor e, ao mesmo tempo, como a  
condição de possibilidade da crise: ao unificar socialmente os trabalhos privados pela  
via da equivalência, ele institui uma forma de mediação que carrega desde o início uma  
contradição entre a particularidade dos produtores e a generalidade da forma social  
do valor. Essa contradição estrutural, própria da forma de sociabilidade fundada na  
mercadoria, antecipa logicamente o potencial de ruptura da troca, conferindo ao  
trabalho abstrato não apenas a função de constituir o valor, mas também de  
fundamentar a possibilidade da crise (GRESPAN, 2012, p. 56).  
Portanto, a distinção entre valor de uso e valor de troca já introduz uma tensão  
estrutural entre a materialidade e a forma social do produto do trabalho. Também a  
forma social do trabalho sua submissão à lógica do valor se sobrepõe à sua função  
material, criando um descompasso entre o que é produzido e o que pode efetivamente  
circular e realizar-se como valor. Tal contradição se manifesta com intensidade  
particular nas crises: há abundância de mercadorias, mas impossibilidade de vendê-  
las; há capacidade produtiva, mas não de consumo. Em outras palavras, o que é útil  
deixa de ter valor, revelando que o conteúdo material do trabalho só importa enquanto  
veículo da forma-valor. Nesse momento, a cisão entre forma e conteúdo, entre valor  
de uso e valor de troca, deixa de ser apenas lógica e torna-se socialmente explosiva.  
Pois bem, cada mercadoria, em si, é unidade de valor de uso e valor, mas, ao  
entrar em relação com outra na troca, essa duplicidade se desdobra de maneira  
assimétrica. Uma delas aparece como a mercadoria cujo valor precisa ser expressado  
ou seja, assume a forma-valor relativa , enquanto a outra figura como aquela na  
qual o valor da primeira é expresso, ocupando a forma de equivalente. Essa relação  
torna visível a cisão interna da mercadoria, pois aquilo que antes estava contido nela  
a oposição entre valor de uso e valor agora se manifesta no espaço social como  
uma oposição entre duas mercadorias distintas.  
O valor de uso, nesses termos, não exerce a mesma função em ambas as  
posições. Na mercadoria equivalente, seu valor de uso serve não apenas como suporte  
do seu próprio valor, mas também como suporte da expressão de valor da outra  
mercadoria. Essa duplicidade faz com que o valor de uso da mercadoria equivalente  
se converta na forma fenomênica do valor, ou seja, em aparência sensível de algo que  
lhe é oposto por definição. Como Marx afirma, “o valor de uso se torna forma de  
aparecimento de seu contrário, do valor” (MARX, 2013, p. 111). É por isso que a troca  
social de mercadorias revela, através de uma oposição externa, a contradição interna  
que define a forma-mercadoria.  
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A distinção entre forma-valor relativa e forma-equivalente constitui, portanto,  
o par conceitual fundamental para a dedução da forma-dinheiro. No primeiro momento  
dessa dedução (forma simples de valor), qualquer mercadoria pode ocupar qualquer  
um dos polos da relação. Já na forma desenvolvida (forma II), essa relação se  
complexifica: uma mercadoria em posição relativa pode ser expressa em múltiplas  
outras, que funcionam como seus equivalentes. É nesse estágio que o sistema de  
trocas generalizadas se configura: a equivalência já não é limitada a pares isolados,  
mas abrange toda a rede mercantil (MARX, 2013, p. 119).  
No terceiro momento, há uma inversão dos polos: em vez de cada mercadoria  
ter muitas equivalentes, todas as mercadorias passam a expressar seu valor em uma  
única mercadoria, que passa a exercer a função de equivalente universal esta é a  
forma III. Essa inversão, contudo, não é apenas uma reorganização formal. À medida  
que se desenvolve a forma-valor em geral, desenvolve-se também a oposição entre os  
seus dois polos. A forma III estabelece, então, um salto qualitativo: o mundo das  
mercadorias como um todo assume a forma-valor relativa, enquanto apenas uma  
mercadoria específica como o ouro é excluída dessa posição e elevada à função  
de expressar o valor de todas as demais (MARX, 2013, p. 120).  
Assim, manifesta-se o aspecto de exclusão mútua entre o equivalente universal  
e as demais mercadorias. Todas renunciam à função de equivalente e designam uma  
única mercadoria para ocupá-la; por sua vez, essa mercadoria agora socialmente  
reconhecida como equivalente universal é excluída da forma-valor relativa. É essa  
relação de dupla exclusão que institui, de um lado, o valor social imediato do  
equivalente universal (sua permutabilidade direta com todas as outras mercadorias), e,  
de outro, a autonomização da forma-valor como forma social cristalizada,  
prenunciando o fetichismo e, mais adiante, as modalidades de crise.  
Com isso surge uma mercadoria especial que passa a funcionar como  
equivalente universal: o dinheiro. Historicamente encarnado no ouro, mas também em  
outras formas, ele cristaliza o valor das demais mercadorias em uma forma geral,  
socialmente válida, de equivalência, colocando-se como o valor autonomizado das  
mercadorias (MARX, 2013, p. 121).  
É nesse ponto que se insere a forma “visível” do fetichismo da mercadoria6, na  
6 Em sua análise da forma mercadoria Marx revela que, sob o modo de produção capitalista, as relações  
sociais entre os indivíduos assumem a forma de relações entre coisas. Esse fenômeno, que ele denomina  
fetichismo da mercadoria, consiste na naturalização das formas sociais próprias do capitalismo: o valor  
aparece como uma propriedade imanente aos objetos, e não como expressão de uma relação social  
mediada pelo trabalho. Assim, as mercadorias parecem possuir valor por si mesmas, como se o trabalho  
humano nelas incorporado não fosse o fundamento real dessa valorização. Como observa Marx, “é  
apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma  
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forma do fetichismo do dinheiro: ao condensar em si a função de equivalente universal,  
o dinheiro deixa de ser apenas uma mercadoria entre outras e passa a representar  
diretamente o valor em sua forma mais abstrata e socialmente validada. Esse processo  
intensifica o apagamento da mediação social do trabalho: já não é a troca entre  
mercadorias que revela o valor, mas o próprio dinheiro que parece criar valor por si  
mesmo. O fetichismo do dinheiro, portanto, não é uma mera ilusão subjetiva, mas a  
objetivação social de uma aparência necessária: ele expressa uma forma de dominação  
impessoal em que a mediação social efetiva (o trabalho abstrato) permanece encoberta  
por uma forma autonomizada e aparente (o dinheiro). O valor aparece como se  
emanasse do dinheiro, e não do trabalho, consolidando assim a forma invertida da  
realidade social própria do capitalismo (GRESPAN, 2012, p. 66).  
Quando o dinheiro passa a ser percebido como portador de um poder próprio  
de alocar valores como se essa capacidade fosse uma propriedade inerente a ele ,  
consolida-se o fetichismo da forma monetária. Esse processo se intensifica nas crises,  
quando a ideia de uma distribuição racional e funcional mediada pelo dinheiro é  
abalada. Nessas circunstâncias, o dinheiro mantém seu caráter fetichizado,  
apresentando-se como algo externo e incontrolável, enquanto a crise, por sua vez,  
assume a aparência de um evento transcendental, misterioso e inevitável, cuja solução  
escapa às ações individuais dos agentes econômicos. Assim, tanto o dinheiro quanto  
a própria crise compartilham um mesmo traço enigmático, típico das formas sociais  
fetichizadas. Ao desvendar essas formas, Marx busca justamente elucidar o mistério  
da crise, revelando-o como expressão objetiva das contradições internas do capital  
(GRESPAN, 2012, p. 67).  
É possível afirmar, então, que ao se colocar como equivalente universal o  
dinheiro já se torna um germe de crise. Ocorre que ele não funciona apenas como  
meio de circulação de mercadorias, mas também como meio de pagamento. Sendo  
assim, se A pode usar um crédito que possui com B, a fim de pagar o que deve a C, e  
este a D, o que pode culminar em uma infinidade de obrigações com o mesmo  
montante de dinheiro, uma interrupção em um desses pagamentos pode gerar um  
grande efeito em cadeia, donde também podem surgir crises ainda mais graves  
(GRESPAN, 2012, p. 70)7.  
Ao redor dele se consolida a forma social da permutabilidade geral, e com isso  
fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 2013, p. 122). O fetichismo, portanto, não é um  
erro de percepção individual, mas uma forma objetiva de aparência social, produzida pela própria  
estrutura do capital, que oculta a exploração do trabalho e torna opaca a origem social das categorias  
econômicas.  
7 Isso tomará concretude no último nível da crise, ao se tratar da autonomização dos títulos jurídicos e  
a acumulação de reivindicações.  
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a crise assume um novo nível de complexidade: ela pode agora se expressar como  
ruptura na função do dinheiro como meio de circulação e medida de valor. Temos  
então, no nível da circulação dois momentos de crise: a primeira forma determina a  
crise a partir da mera impossibilidade eventual de vender as mercadorias, com a  
interrupção da circulação; a segunda forma é mais complexa porque supõe a primeira,  
pois a “não realização de toda uma sequência de pagamentos” é originada por não se  
poder vender a “mercadoria determinada neste prazo determinado”, simultaneamente  
potencializando a gravidade da primeira forma:  
O fundamento das crises na esfera da circulação simples de  
mercadorias, assim, está na dificuldade de vendê-las, o que aponta  
para o caráter distintivo do dinheiro como expressão universal do  
valor que sempre pode ser retido ou deslocado para outro lugar,  
interrompendo as transações correntes e, com isso, o fluxo de  
pagamentos. Daí que Marx diga, analisando a crise de 1857-1858:  
[...] em tais momentos em que todas as mercadorias são invendáveis,  
há [...] de fato mais compradores do que vendedores de uma  
mercadoria, o dinheiro, e mais vendedores do que compradores de  
todo outro dinheiro, as mercadorias. Em uma crise, todos querem  
obter dinheiro para ter acesso aos valores de uso que lhes satisfaçam  
necessidades, e todos querem se desfazer das mercadorias que  
produziram, pois não as produziram para o seu próprio consumo e  
sim para vender e obter dinheiro. Se, no percurso normal da  
circulação, o dinheiro aparece como uma mercadoria e as mercadorias  
como formas do dinheiro, ou seja, imediatamente conversíveis nele,  
na crise a distinção das duas formas-valor opostas se evidencia e  
abisma.” (GRESPAN, 2012, p. 72)  
Consequentemente, essa abertura à interrupção temporal introduz um princípio  
formal de crise. O valor, enquanto promessa de equivalência futura, passa a depender  
de condições externas para se efetivar. Surge aqui uma tensão entre forma e conteúdo:  
o dinheiro aparece como meio universal da troca, mas sua eficácia depende de um  
contínuo fluxo social de confiança e circulação. Se este fluxo é rompido por retração  
da demanda, escassez de moeda, ou expectativa de crise o sistema entra em colapso.  
A crise neste ponto da exposição é o momento em que a separação entre os  
momentos da circulação simples vender e comprar deixa de ser apenas uma  
possibilidade formal e se manifesta como ruptura efetiva, isto é, como autonomização  
concreta desses polos. Essa autonomização, porém, não é sustentável: ela revela  
justamente a impossibilidade de sua manutenção, pois os momentos separados só  
existem como partes de uma unidade contraditória. Assim, a crise torna-se a forma  
pela qual essa unidade essencialmente mediada e interdependente se restabelece  
de maneira destrutiva. Tanto a circulação ininterrupta quanto a irrupção da crise  
afirmam, por vias distintas, a necessidade da determinação recíproca entre os dois  
momentos do circuito mercantil. A separação, levada ao extremo, denuncia sua própria  
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A crise em níveis: o todo artístico dos três volumes de O capital de Karl Marx  
falácia estrutural: a crise é o momento em que a unidade se impõe, não como síntese  
harmônica, mas como colapso da mediação que sustenta a forma social da troca  
(GRESPAN, 2012, p. 80).  
Consequentemente, a crise, nesse nível, é uma possibilidade8 um sintoma da  
não-identidade entre valor e realização. A mercadoria contém valor apenas na medida  
em que pode ser vendida, mas sua realização depende de um processo social que está  
fora de seu controle imediato. Ademais, nesse ponto da exposição ainda não há o  
desenvolvimento da possibilidade até a efetividade, considerando que para tal seria  
necessário elucidar um conjunto de relações que no estágio da circulação simples de  
mercadorias sequer foram abordadas (GRESPAN, 2012, p. 81).  
Ainda, a crítica da economia política de Marx revela que já a circulação simples  
de mercadorias, ainda no início do Livro I d’O capital, contém em si uma possibilidade  
latente de ruptura. Essa possibilidade ganhará concretude nos próximos níveis da  
exposição, mas sua estrutura lógica está desde o início presente na forma-mercadoria.  
A cisão entre compra e venda inaugura a negatividade que atravessará todo o  
desenvolvimento da economia capitalista e a crise é sua expressão recorrente.  
A crise na produção de mais-valor: o limite interno da valorização  
O segundo nível da crise situa-se no cerne do Livro I de O capital, no momento  
em que Marx analisa a produção imediata do mais-valor. Aqui, a crise não é mais  
apenas uma virtualidade da troca de mercadorias, mas uma estrutura interna ao  
processo de valorização. Depois de tratar na exposição do processo de obtenção do  
dinheiro através da venda da mercadoria (M-D-M’), neste ponto se analisa o processo  
de transformação do dinheiro em capital, que se define como valor que se valoriza,  
como processo em que o valor antecedente (capital-dinheiro) se transforma em mais-  
valor por meio da exploração do trabalho vivo. No entanto, essa dinâmica contém uma  
contradição fundamental, que será melhor tratada adiante.  
8
A relação entre crise e necessidade no pensamento de Marx não deve ser confundida com uma  
oposição simples entre o acaso e a determinação. Como aponta Grespan, embora Marx rejeite a ideia  
de que as crises sejam meras contingências externas ao capitalismo buscando fundamentá-las como  
resultantes de suas próprias contradições internas , ele não as trata como absolutamente inevitáveis.  
O conceito de necessidade empregado por Marx se aproxima da noção hegeliana de necessidade  
relativa: uma forma de necessidade que depende de um encadeamento de condições contingentes para  
se efetivar. Ou seja, as crises são necessárias no interior da totalidade contraditória do capital, mas não  
no sentido de uma necessidade absoluta, que excluiria toda possibilidade de resultado diverso. Essa  
ambivalência reside no fato de que o capital comporta, simultaneamente, disposições opostas e  
igualmente necessárias, cuja tensão estrutura a dinâmica do sistema. Nesse contexto, a realização efetiva  
de uma crise depende da relação entre essas determinações contraditórias e das condições concretas  
de sua reprodução. Como observa o autor, esse entendimento permite a Marx evitar tanto o fatalismo  
econômico quanto a redução das crises a fenômenos meramente acidentais ou externos ao sistema  
(GRESPAN, 2012, pp. 39-40).  
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De antemão, temos que a especificidade da crise na produção capitalista está  
enraizada na lógica da autovalorização do valor, que constitui a essência do capital.  
Diferentemente dos meios de produção que apenas transferem seu valor às  
mercadorias , a força de trabalho é a única mercadoria capaz de gerar mais valor do  
que ela mesma representa. Isso significa que, ao adquirir força de trabalho e meios de  
produção, o capitalista realiza um adiantamento de valor que, ao passar pela esfera  
da produção, se transforma em capital acrescido de mais-valor (MARX, 2013, p. 227).  
Esse excedente, expresso na fórmula DMD, é a condição lógica e histórica da  
acumulação capitalista. O capital, portanto, só se sustenta enquanto processo de  
valorização: é a própria dinâmica de expansão de valor pela mediação do trabalho  
humano. Marx é enfático ao afirmar que “o motivo que impulsiona e a finalidade que  
determina o processo de produção capitalista é a maior autovalorização possível do  
capital” (MARX, 2013, p. 553). Trata-se de uma definição tanto lógica quanto social:  
o capital é, ao mesmo tempo, uma relação social fundada na compra e venda da força  
de trabalho e um movimento incessante de valorização.  
Nessa relação, a força de trabalho é convertida em capital variável, justamente  
porque sua aplicação modifica a grandeza de valor do capital total. Já os meios de  
produção compõem o capital constante, pois seu valor se conserva apenas se  
transfere para o produto final. Essa distinção é fundamental para compreender como  
o capital busca, incessantemente, extrair o máximo de mais-trabalho possível, seja por  
meio do prolongamento da jornada laboral (gerando mais-valor absoluto) ou pela  
elevação da produtividade com base em inovações tecnológicas e organizacionais, e  
pelo barateamento dos meios de subsistência dos trabalhadores, entre outras  
maneiras descritas por Marx no Capítulo 10 em diante do Livro I (gerando mais-valor  
relativo) (MARX, 2013, pp. 390-4; 578).  
Ambas respondem a uma única exigência: a produção de mais-valor como  
fundamento da acumulação capitalista. Isso revela a lógica autodestrutiva do capital.  
Para ampliar o mais-valor, o capital tende a reduzir a base sobre a qual ele se apoia –  
o trabalho vivo. A crise, nesse nível, emerge da contradição entre a necessidade de  
ampliar indefinidamente a produção de mais-valor e os limites materiais e sociais do  
processo de trabalho.  
Essa contradição não é externa ao capital, mas sua forma de ser: o capital  
depende da exploração do trabalho, mas tende a reduzir o tempo de trabalho  
necessário por meio de melhorias nas forças produtivas. Quanto mais o capital se  
autonomiza, mais estreita se torna sua relação com o trabalho, que é, paradoxalmente,  
a única fonte real de valor. Esse movimento contraditório prepara o terreno para a  
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A crise em níveis: o todo artístico dos três volumes de O capital de Karl Marx  
irrupção da crise, pois o mais-valor produzido não encontra sempre condições de  
realização, seja pela limitação da demanda, seja pelo encurtamento da base  
trabalhadora ou pela superprodução de mercadorias.  
Por sua vez, a reconversão do mais-valor em capital isto é, sua acumulação –  
inaugura o ciclo da reprodução ampliada9, que exige a compra de mais força de  
trabalho, matérias-primas e meios de produção. Esse processo não é meramente  
técnico, mas reproduz continuamente a separação entre trabalhadores e meios de  
produção, constituindo o trabalhador como força de trabalho abstrata, vendida no  
mercado como mercadoria. Como afirma Marx, o trabalhador “produz constantemente  
o capital como poder estranho que o domina” (MARX, 2013, p. 646), e sua reprodução  
como assalariado é condição necessária da reprodução do capital.  
Ocorre que a dinâmica do capital não se limita à produção de mercadorias: ela  
visa, essencialmente, à produção de mais-valor como fim em si mesma. Nesse sentido,  
o valor de uso da mercadoria, inclusive da força de trabalho, importa ao capital apenas  
na medida em que permite sua valorização. A mercadoria só interessa enquanto  
portadora de valor ou seja, enquanto suporte da reprodução ampliada do capital.  
Isso introduz a cisão estrutural mencionada anteriormente entre o valor de uso e o  
valor de troca no interior do próprio processo produtivo.  
Essa cisão atinge seu limite quando o capital, pressionado pela concorrência,  
busca incessantemente aumentar a composição orgânica substituindo trabalho vivo  
por máquinas e técnicas mais avançadas a fim reduzir o tempo de trabalho necessário  
à produção das mercadorias, generalizando a produtividade e intensificando a extração  
de mais-valor relativo. O resultado é uma contradição que Marx formulou de modo  
lapidar: “O capital é a contradição em processo: tende a reduzir o tempo de trabalho  
a um mínimo, ao mesmo tempo em que põe o trabalho como única fonte de valor.”  
(MARX, 2011, p. 222) Ou seja, quanto mais o capital se torna produtivo, mais destrói  
a base que o sustenta10.  
Grespan retoma essa formulação a partir da ideia de negatividade: a crise revela  
9
Em Marx, a reprodução ampliada do capital ocorre quando o mais-valor produzido não é consumido  
pelo capitalista, mas reinvestido no processo produtivo, seja na forma de mais meios de produção, seja  
na contratação de mais força de trabalho. Diferente da reprodução simples, na qual o capital apenas se  
recompõe no mesmo volume, a reprodução ampliada pressupõe a acumulação de capital, ou seja, a  
expansão do processo produtivo e do próprio capital. Esse movimento caracteriza a dinâmica do  
capitalismo como modo de produção orientado à valorização contínua e crescente do valor (MARX,  
2013, p. 452).  
10 Temos aqui a questão do fetichismo do capital, no qual o capital total aparenta ser a fonte do lucro,  
e não o trabalho vivo. Isso, apesar da aparência de mera ilusão, se baseia efetivamente no movimento  
real do capital de nivelamento da taxa de lucro nos diversos ramos através da concorrência (GRESPAN,  
2012, p. 181). Em outras palavras, esse fetichismo cria uma inversão: o capital parece produtivo por si  
só, mascarando o papel essencial do trabalho e a exploração envolvida no processo de acumulação.  
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o ponto em que a valorização do capital entra em choque com as próprias condições  
materiais e sociais da produção. O capital não pode abrir mão do trabalho vivo, mas  
tende a reduzi-lo a um mínimo para aumentar sua taxa de lucro. Com isso, acentua a  
contradição entre produção e valorização, abrindo espaço para a crise como forma de  
“reajuste violento” da reprodução capitalista (GRESPAN, 2012, p. 23).  
Portanto, neste segundo nível, a crise revela-se como limite interno à  
valorização, não por razões técnicas ou de má alocação, mas pela própria estrutura do  
capital enquanto relação social. A negatividade aqui é objetiva e necessária: a  
produção que não pode se realizar como capital mostra que o capital encontra em si  
mesmo os elementos de sua desestabilização. Aqui se encontra o cerne da diferença  
entre a crise na circulação simples, exposta no tópico anterior, com a crise na esfera  
da produção imediata de mercadorias: não é mais a satisfação das necessidades dos  
produtores individuais de mercadorias que está em perigo devido à dificuldade em  
realizar as trocas, e sim a própria valorização do capital. E como este se define  
justamente pela autovalorização, trata-se da negação do capital pelas tendências  
desenvolvidas por ele mesmo (GRESPAN, 2012, p. 131).  
Por isso, como sujeito que tem em si próprio seu fim e forças para adequar suas  
formas de existência à realização dele, o capital é o “conteúdo fundado”, o interior a  
partir do qual se exteriorizam as determinações contraditórias, inclusive a crise. Ou  
seja, não é possível “explicar” a ocorrência de crises no quadro categorial da circulação  
simples, que fornece apenas a forma geral delas, mas não a “causa” que as faz  
irromper; elas aí permanecem enquanto “possibilidade formal”. Quando o conteúdo  
não se define mais do exterior e sim do interior da esfera do valor, porém, ele é  
“conteúdo fundado” na subjetividade do capital e fundante, por sua vez, da  
manifestação das tendências opostas que dele resultam. Por isso, como afirma  
Grespan, a crise não é uma anomalia passageira ou um erro de gestão, mas  
a expressão histórica e concreta da negatividade constitutiva do capital. A produção  
de mais-valor, ao mesmo tempo em que funda o capital, também o desestabiliza. A  
crise, nesse nível, é a manifestação periódica da incompatibilidade entre a reprodução  
social do trabalho e a reprodução ampliada do valor (GRESPAN, 2012, p. 23).  
Assim, a produção imediata de mais-valor revela não apenas a origem da  
acumulação capitalista, mas também o gérmen interno da sua instabilidade crônica. A  
crise surge quando a valorização já não encontra espaço para se realizar, quando o  
capital não consegue mais expandir seu circuito sem enfrentar os limites sociais e  
naturais que ele próprio criou. A forma social da produção capitalista, portanto, carrega  
desde sua origem a negatividade que a ameaça periodicamente com colapso.  
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A crise na circulação do capital como capital: o desequilíbrio  
sistêmico na produção  
O terceiro nível da crise se desloca para a totalidade do processo cíclico do  
capital, conforme analisado no Livro II de O capital. Aqui, o capital não é apenas  
produção, mas um circuito que envolve múltiplos momentos: a compra de meios de  
produção e força de trabalho (D–M), a produção de mercadorias (P), a venda (M’) e a  
realização do valor (D’). Esse ciclo – DMP–M’–D’ – pressupõe a contínua  
transformação do valor e sua realização final como capital acrescido.  
Contudo, esse processo não ocorre de forma harmônica. A cisão entre os  
momentos do ciclo gera descompassos estruturais. A circulação do capital como  
totalidade exige a sincronização entre produção e circulação, mas essa sincronização  
é constantemente rompida pela imprevisibilidade da produção capitalista, que pode  
dificultar a realização do mais-valor. O capital total só pode se reproduzir se houver  
articulação entre os diferentes capitais individuais, mas essa articulação não é  
garantida por nenhuma racionalidade superior: ela depende de decisões isoladas,  
expectativas de lucro e dinâmicas de mercado imprevisíveis.  
A crise, neste nível, manifesta-se como desequilíbrio sistêmico. A defasagem  
entre produção e realização, entre investimento e retorno, entre oferta e demanda,  
produz interrupções no ciclo. Um capital que não realiza seu valor não pode ser  
reinvestido, o que compromete outros ramos interligados e desorganiza toda a  
circulação. É premente a quebra de continuidade do processo de valorização global,  
levando à paralisação parcial ou geral de ramos produtivos.  
Embora Marx afirme categoricamente que “o mais-valor não pode ter origem  
na circulação” (MARX, 2013, p. 240), isso não significa que essa esfera seja secundária  
ou meramente formal no conjunto da crítica da economia política. Ao contrário, a  
circulação é condição indispensável da valorização. O capital só se realiza enquanto  
tal se completar seu circuito por meio do mercado: é ali que ele se reconhece, se  
transforma e se reproduz. Não se trata de contrapor produção e circulação como  
esferas excludentes, mas de compreendê-las enquanto momentos de uma unidade  
contraditória (MARX, 2014, p. 28).  
Para que o capital exista, como já repisado, é necessário que o possuidor de  
dinheiro encontre no mercado uma mercadoria peculiar aquela cujo valor de uso é  
fonte de valor: a força de trabalho (MARX, 2013, p. 242). A possibilidade de comprar  
essa mercadoria depende, por sua vez, de duas condições históricas: que o trabalhador  
seja livre e proprietário de sua própria força de trabalho, e que não disponha de outros  
meios de vida senão sua capacidade de vender essa força. A reprodução do capital  
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depende, portanto, de determinadas condições sociais e jurídicas, que se manifestam  
na forma da troca “livre” e “igualitária”, mas que ocultam relações econômicas de  
fundo.  
Essa entrada no mercado é o ponto de partida da circulação do capital como  
capital, e Marx dedica o Livro II de O capital a esse momento. O capital, agora  
compreendido como unidade de produção e circulação, aparece não apenas como uma  
relação social, mas como movimento cíclico e processo de metamorfoses. O dinheiro  
é convertido em mercadorias (meios de produção + força de trabalho), essas são  
transformadas em mercadorias valorizadas (M), e por fim reconvertidas em dinheiro  
(D). O processo DMPMDnão é linear nem garantido: ele está sujeito a  
interrupções, descompassos e contradições internas.  
Como destaca Marx no início do Livro III, o capital só pode ser investigado em  
sua totalidade com base na unidade entre produção e circulação (MARX, 2017, p. 28).  
O objetivo já não é apenas descrever categorias isoladas, mas identificar e expor as  
formas concretas que emergem do processo total do capital. Essa totalidade não é  
uma simples soma de partes, mas uma estrutura em movimento, cujos diferentes  
momentos se interpenetram, se condicionam e se contradizem.  
Do ponto de vista metodológico, essa abordagem é fundamental. A crítica da  
economia política de Marx não se contenta em tratar a produção como causa e a  
circulação como efeito. Ao contrário, ela busca compreender como a valorização só se  
efetiva pela mediação da circulação, e como a própria circulação é atravessada por  
determinações sociais provenientes da produção. Como diz Marx, o capital não é uma  
coisa imóvel, mas um movimento que percorre diversas formas (MARX, 2014, p. 33).  
Esse movimento envolve diferentes níveis de análise: desde o capital individual,  
que gira entre compra, produção e venda, até o capital social total, no qual se  
entrelaçam múltiplos capitais individuais e formas de reprodução ampliada. O Livro II  
já antecipa essas dimensões, ao estudar tanto o tempo de rotação do capital quanto  
as condições de equilíbrio entre os departamentos da reprodução. Mas é no Livro III  
que Marx busca compreender como as formas desenvolvidas do capital derivam do  
processo total, incluindo suas tensões, suas autonomizações e suas figuras  
fetichizadas, como será observado no tópico seguinte.  
A análise do capital como processo cíclico exige que compreendamos  
suas formas funcionais: capital monetário, capital produtivo e capital-mercadoria. Elas  
não são compartimentos autônomos nem esferas separadas por natureza,  
mas momentos interdependentes de um único movimento total o capital industrial.  
Cada uma expressa formas transitórias que o capital assume no percurso do valor em  
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sua valorização: o capital monetário é o ponto de partida; o capital produtivo, o  
momento da criação do mais-valor; e o capital-mercadoria, o veículo para a realização  
desse mais-valor no mercado.  
Segundo Marx, o capital assume essas formas de modo sequencial, retornando  
sempre à sua forma inicial: o dinheiro. Contudo, ele não retorna como o mesmo  
dinheiro mas como valor valorizado (D). Essa circulação não é simples como no  
circuito MDM da troca mercantil mas um movimento orientado pela  
autovalorização (MARX, 2014, p. 132). O dinheiro, ao comprar força de trabalho e  
meios de produção (DM), torna-se capital produtivo (P), e ao gerar uma mercadoria  
portadora de mais-valor (M), retorna à forma dinheiro aumentada (D). Todo o circuito  
se constitui como movimento de expansão do valor, sob a condição de que suas fases  
se realizem sem interrupção, ou seja, a cada etapa, ele cumpre uma função distinta, e  
só pode progredir para a próxima após realizar plenamente essa função.  
Contudo, essa dinâmica é estruturalmente marcada pela possibilidade de  
interrupções e bloqueios. Como destaca Marx, o ciclo do capital só se completa se as  
fases se sucedem sem descontinuidade; do contrário, o capital “enrijece-se como  
tesouro”, os meios de produção permanecem inativos, e a força de trabalho fica sem  
função (MARX, 2014, p. 132). Em outras palavras, se o capital estaciona em qualquer  
das fases do circuito como dinheiro que não se converte em meios de produção,  
como força de trabalho ociosa, como mercadoria que não encontra comprador , o  
processo de valorização se estanca. A crise se manifesta, então, como rigidez temporal  
e espacial do capital: o valor se acumula numa forma específica, impedindo a circulação  
e a reprodução global.  
Essa análise permite também compreender o capital como totalidade social em  
movimento. Ele não existe de forma homogênea, mas sim “simultaneamente e em  
justaposição espacial em suas diferentes fases” (MARX, 2014, p. 132). A circulação do  
capital não é apenas um percurso, mas uma estrutura dinâmica que interliga produção,  
mercado, classe trabalhadora e tempo histórico. A forma valor se autonomiza nesse  
processo, mas sua própria mobilidade revela a possibilidade de colapso.  
Outro ponto a se esclarecer é que no movimento real do capital não há uma  
sucessão linear entre as formas D, M, P, Me D. Em vez disso, o capital se  
apresenta simultaneamente em suas diversas formas. Enquanto um capital individual  
está na fase da produção, outro está vendendo sua mercadoria e outro ainda  
reinvestindo o capital-dinheiro. Como observa Marx, trata-se de uma totalidade  
articulada de processos interdependentes, cujos momentos se realizam ao mesmo  
tempo, embora com funções distintas (MARX, 2014, p. 132).  
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Ainda, a própria rotação do capital impõe limites temporais à valorização. Marx  
destaca que o tempo de circulação é tempo perdido para o capital (MARX, 2013, p.  
337), pois ele não está produzindo valor nesse intervalo. O capital busca, então,  
acelerar continuamente sua rotação, o que implica pressão sobre os trabalhadores,  
sobre a tecnologia, sobre a natureza. Mas essa aceleração é contraditória: quanto mais  
se acelera a rotação, mais vulnerável se torna o circuito a interrupções, gargalos  
logísticos e crises de liquidez.  
Nesse sentido, a unidade entre produção e circulação, embora necessária à  
reprodução do capital, é marcada por um profundo descompasso. A anarquia da  
produção capitalista impede que os diversos capitais individuais se articulem  
harmonicamente. Cada capitalista atua isoladamente, guiado pela concorrência e pela  
busca de lucro máximo, sem qualquer planejamento coordenado da economia como  
um todo. Com isso, o processo de valorização, embora dependa da realização no  
mercado, não assegura por si só as condições para essa realização.  
Esse é o fundamento da crise como desproporcionalidade sistêmica: quando há  
excesso de oferta em um setor e escassez em outro, quando o capital circulante não  
retorna no tempo necessário, quando o capital fixo11 imobiliza valor por períodos  
longos demais o circuito DMPMDse interrompe, e a reprodução do capital  
como totalidade entra em colapso parcial ou geral. A negatividade aqui se expressa  
como falha na mediação entre as figuras do capital, como ruptura na continuidade do  
processo de valorização.  
A crise, nesse nível, revela-se como expressão de uma forma social que não  
consegue sustentar a reprodução contínua do trabalho e do valor, justamente porque  
os separa, culminando na desorganização das múltiplas esferas da circulação, que  
deveriam operar articuladamente para garantir a valorização. A forma-valor se  
manifesta, aqui, como instância que exige coerência sistêmica, mas cuja própria lógica  
impede o equilíbrio. O capital, ao se multiplicar em circuitos autônomos e concorrentes,  
se torna incapaz de se autorregular sem rupturas periódicas, ou, nas palavras de Marx,  
estas [as crises] são sempre apenas violentas soluções momentâneas das  
contradições existentes, erupções violentas que restabelecem por um momento o  
11  
Em Marx, o capital fixo é a parte do capital constante investida em meios de produção duráveis,  
como máquinas, ferramentas e instalações. Ele transfere seu valor gradualmente para o produto final  
ao longo de vários ciclos de produção. Já o capital circulante compreende os elementos do capital que  
são consumidos integralmente em cada ciclo produtivo, como matérias-primas, força de trabalho (capital  
variável) e energia. Enquanto o capital fixo permanece no processo por um tempo prolongado e se  
deprecia lentamente, o capital circulante completa seu ciclo de rotação mais rapidamente, sendo  
convertido em mercadoria e depois em dinheiro, retornando à forma inicial para reinício do processo  
de valorização (cf. MARX, 2014).  
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equilíbrio perturbado” (MARX, 2017, p. 248).  
A simultaneidade espacial das formas do capital exige, portanto, uma leitura  
crítica da reprodução como totalidade contraditória. A crise é o momento em que a  
unidade funcional do capital se desfaz e suas partes aparecem como fragmentos  
disfuncionais. O ciclo, que parecia automático, revela sua dependência da coesão entre  
produção e circulação uma coesão que é permanentemente ameaçada pela própria  
dinâmica expansiva do capital (GRESPAN, 2012, p. 239).  
Dessa forma, a circulação do capital como capital não é apenas um percurso  
funcional, mas uma condição sempre instável de possibilidade da valorização. A crise,  
ao interromper esse movimento, deixa de ser meramente econômica e assume um  
caráter social ampliado, como será melhor descrito no tópico seguinte: o desemprego,  
a falência de empresas, a quebra de bancos e o empobrecimento de populações não  
são efeitos colaterais, mas expressões concretas da lógica contraditória do capital em  
sua forma circulatória.  
A crise no Livro III como crise na reprodução do capital social: o  
colapso da forma autonomizada  
No Livro III de O capital, Marx retoma o trato da crise em um nível mais concreto,  
centrado nas formas mediadas e derivadas do capital. Aqui, a crise deixa de ser a  
explosão da contradição entre capital e trabalho, entre produção e valorização, ou uma  
ruptura do seu ciclo, como descrito nos tópicos anteriores, para se configurar como  
resultado da autonomização das formas do valor, que passam a operar de maneira  
relativamente independente da produção de valor real. Essa autonomização atinge seu  
ponto máximo na figura do capital fictício, isto é, o capital “como um autômato que se  
valoriza por si mesmo” (MARX, 2017, p. 524), na forma de títulos que prometem  
participar do mais-valor futuro, mas adquirem uma existência puramente formal,  
baseados em expectativas futuras, projeções de rendimento e lógicas financeiras  
dissociadas do processo de geração real de mais-valor.  
A crise passa a ser então a expressão da dissociação entre forma e substância.  
Enquanto no Livro I o capital entra em crise pelo fato de o crescimento da produção  
não corresponder à expansão da demanda necessária à sua realização, no Livro III essa  
não realização ocorre em um sistema de mediações que encobrem o fundamento real  
do valor: o trabalho abstrato. O capital monetário, o capital portador de juros e o  
capital fictício operam como “metamorfoses” do capital produtivo, mas adquirem uma  
aparência de autonomia que mascara suas determinações materiais. A valorização  
fictícia, baseada em expectativas futuras, pode crescer indefinidamente, até colapsar  
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com violência.  
A forma capital portador de juros é particularmente reveladora dessa lógica.  
Marx destaca o seu alto nível de fetichização, na medida em que ele aparece como  
uma coisa capaz de gerar valor por si mesma, independente do trabalho. Nas palavras  
de Marx, “no capital portador de juros, porém, tanto a devolução como a cessão do  
capital são mero resultado de uma transação jurídica entre o proprietário do capital e  
uma segunda pessoa. O que vemos é apenas cessão e devolução. Tudo o que se  
encontra entre esses dois polos se esfuma” (MARX, 2017, p. 396). Ele seria, pois, uma  
espécie de figura fantástica do capital, o que não retira a sua efetividade, já que as  
repercussões na sociabilidade capitalista são várias (MARX, 2011, p. 68). Desse modo,  
apaga-se a determinação de fundo da oposição capital-trabalho, e não resta vestígios  
de todo o processo de exploração do trabalho e extração de mais-valor (cf. SARTORI,  
2019a; 2019b). Essa aparência dá suporte à expansão do crédito, das finanças e das  
bolhas especulativas. No entanto, essa lógica se torna instável à medida que a  
diferença entre valor real e expectativa de valorização se aprofunda.  
Ligado à essa forma, temos o que Marx chama de capital fictício: capital que  
aparenta advir do próprio capital (D-D’), sem passar pelo processo de valorização (D-  
M-D’), e o que sobra aparentemente é apenas o título jurídico que dá direito aos juros  
gerados. Nesse processo, temos que “o capital portador de juros (‘ilusório’) torna-se  
fictício quando o direito a tal remuneração ou aos rendimentos dos juros ou dívida  
contratada é representado por um título negociável, com a possibilidade de ser  
vendido a terceiros. Ou seja, quando um capital que é dívida começa a ser  
comercializado e que, na realidade, não existe (esta é a base de sua ficção, que depois  
as finanças tornarão muito mais complexas)” (DIERCKXSENS et al., 2018, p. 39). A  
valorização ou desvalorização desses títulos está mais relacionada às dinâmicas  
especulativas e financeiras do mercado do que à produção de mercadorias ou serviços  
na economia real.  
O capital fictício apresenta uma natureza ambígua: ele é real do ponto de vista  
dos atos mercantis individuais, que se realizam diariamente no mercado, mas é fictício  
quando considerado sob a ótica da totalidade da economia. Essa contradição expressa  
sua dialética ele é e não é fictício; é e não é real. Por essa razão, pode-se afirmar  
que ele é simultaneamente fictício e real: fictício por não possuir substância material  
própria, mas real por carregar uma determinação efetiva do capital, qual seja, o direito  
de participar do mais-valor (CARCANHOLO, 2013, p. 147).  
Carcanholo (2012, p. 148), ainda, exemplifica que, na prática, essa duplicação  
significa que tanto a empresa quanto os acionistas podem dispor de seu patrimônio  
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real como garantia para operações de crédito, como se a riqueza tivesse sido  
multiplicada. Quando o valor total das ações corresponde ao valor efetivo do  
patrimônio, tem-se um primeiro tipo de capital fictício (tipo 1), em que há riqueza  
substantiva subjacente, ainda que duplicada. Já quando o valor das ações supera o  
patrimônio efetivo da empresa, estamos diante de um segundo tipo de capital fictício  
(tipo 2), em que a valorização nominal não possui qualquer correspondência com  
riqueza real. A distinção é fundamental: enquanto o tipo 1 se ancora em capital  
produtivo e, em alguma medida, relaciona-se com a produção de mais-valor, o tipo 2  
carece totalmente de substância e não contribui em nada para a criação de excedente  
econômico.  
Isso intensifica o fetichismo do capital explicado anteriormente, fazendo parecer  
que o dinheiro gera mais dinheiro, obscurecendo o papel do trabalho humano na  
criação de valor: o capital produtivo, investido diretamente na produção, está ligado  
ao trabalho humano, mas ainda assim é percebido como uma força autônoma, e o  
capital comercial e o capital financeiro especialmente o capital fictício, como ações e  
títulos intensificam essa ilusão. Por exemplo, o dinheiro investido em uma ação  
parece gerar lucro sem conexão com a produção real ou o trabalho envolvido, criando  
a ideia de que o capital "trabalha" ou "dá frutos" por conta própria: a sua forma  
fantástica faz com que os rendimentos regulares dele advindos sejam vistos como  
juros, seja ele proveniente de um capital ou não, como se fosse propriedade do  
dinheiro criar valor e gerar juros, assim como a de uma pereira é dar peras (MARX,  
2017, p. 382).  
Marx explora, nesse sentido, como os títulos jurídicos, tais quais as referidas  
ações e outros instrumentos financeiros, desempenham um papel na dinâmica da  
acumulação de capital, representando reivindicações sobre ele, mas não constituem  
diretamente o capital produtivo (MARX, 2017, p. 450). Eles não deixam de ser, no  
entanto, fundamentais para o funcionamento do modo de produção capitalista, pois  
permitem a mobilização e redistribuição de riqueza, ao mesmo tempo que introduzem  
uma camada de abstração e fetichismo no entendimento do capital, como mencionado  
anteriormente. Assim, ao mesmo tempo em que os títulos jurídicos se colocam como  
uma ferramenta essencial na acumulação de capital, permitindo, por um lado a  
expansão do sistema capitalista, por outro, sua potencial desconexão da produção real  
contribui para crises econômicas e para a perpetuação da ilusão de que o capital é  
uma entidade autônoma. Dessa forma, os títulos jurídicos são tanto um meio de  
acumulação quanto um reflexo das contradições fundamentais do capitalismo.  
Em síntese, a crise no Livro III aparece como o ajuste brutal entre forma e  
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substância, como quando os títulos e ativos financeiros se desvalorizam por não  
corresponderem à produção real de valor. Aqui vemos o desdobramento concreto  
daquilo que foi mencionado na Seção 2.1 (páginas 9 e 10) quando analisávamos o  
fato de que uma série de obrigações podem advir de um mesmo montante de dinheiro  
(A pode usar um crédito que possui com B, a fim de pagar o que deve a C, e este a  
D): uma interrupção nos pagamentos pode culminar em uma crise sem precedentes,  
como na crise do subprime em 2008, na qual títulos altamente alavancados serviam  
como garantia de outros títulos e o estouro da bolha revelou a sua ausência de lastro,  
causando efeitos devastadores na economia mundial12. Rompeu-se então o fluxo social  
de confiança e a circulação de dinheiro também mencionados na Seção 2.1, e quando  
esse fluxo é rompido o sistema entra em colapso. Tal momento assume o caráter de  
uma desvalorização em massa”, que atinge capitais fictícios, força de trabalho e meios  
de produção. Diferente do Livro I, onde o capital entrava em crise por não conseguir  
realizar sua própria lógica, aqui ele entra em crise por ter se afastado excessivamente  
dela.  
Outro elemento importante é que o Livro III mostra como as crises não são  
apenas destrutivas, mas também funcionais à reprodução do capital. A destruição de  
capitais durante a crise prepara as condições para um novo ciclo de valorização. Assim,  
a crise se torna o meio necessário de restauração das condições de acumulação, ainda  
que isso implique desemprego em massa, falências, concentração de riqueza e  
retrocessos sociais profundos.  
A forma como Marx descreve o capital fictício antecipa, de maneira  
surpreendente, dinâmicas do capitalismo contemporâneo: a financeirização da  
economia, a especulação sistêmica, a dissociação entre indicadores financeiros e  
condições materiais de produção e reprodução da vida. O Livro III, nesse sentido,  
complementa e radicaliza o trato das crises formulado no Livro I. Ele mostra que a  
crise não é apenas um momento de parada do ciclo, mas uma manifestação da  
totalidade contraditória do capital em sua forma desenvolvida.  
12  
Os empréstimos subprime eram aqueles feitos com famílias sem uma fonte regular de renda e sem  
um histórico favorável de pagamentos e eram diferenciados dos empréstimos prime. Os primeiros  
receberam notas de avaliação de risco alto e os demais de risco pequeno ou zero, com a classificação  
mais alta. Os dois tipos de contratos eram empacotadosem derivativos CDO. Esses derivativos  
chamados Collateralized Debt Obligations (CDO) ou Obrigação de Dívida com Garantia, mais inteligível  
se explicarmos como um título de dívida garantido por algum ativo, surgiram na década de 1980 e  
eram títulos garantidos por empréstimos hipotecários, cartões de crédito e até a dívida de pagamentos  
às universidades. Como esses derivativos incluíam dívidas subprime, eles eram associados a contratos  
de swap, os Credit Default Swap (CDS), por meio do qual os compradores de CDO buscavam um seguro  
pagando parte de sua receita. Naquela época, entraram no American International Group (AIG), a maior  
seguradora do mundo na época, Fannie Mae e Freddie Mac, que garantiam os empréstimos hipotecários;  
todos entraram em colapso em 2008.” (DIERCKXSENS et al., 2018, p. 47)  
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A crise em níveis: o todo artístico dos três volumes de O capital de Karl Marx  
É notório no Livro III, então, que crise assume a forma de colapsos financeiros  
generalizados: bolhas especulativas estouram, ativos perdem valor abruptamente, o  
crédito se retrai e o sistema bancário entra em colapso. Mas o que está em jogo não  
é apenas uma má gestão ou um erro de cálculo é a limitação estrutural da forma  
autonomizada do capital, que não pode se reproduzir indefinidamente à margem da  
produção de mais-valor.  
Esse nível da crise implica a destruição massiva de capital fictício, a retração de  
investimentos, o desemprego estrutural e, muitas vezes, respostas políticas drásticas  
para restaurar a rentabilidade do capital13. A negatividade atinge aqui seu ápice: não  
há mais como mascarar a contradição entre forma e substância. O capital, ao tentar  
suprimir seus limites por meio da abstração financeira, os reencontra com ainda mais  
força. Trata-se do fechamento lógico da crise, em que o capital é levado a negar a si  
mesmo ao ultrapassar os limites da valorização real.  
As crises se espalham pelo mercado mundial de forma tão ampla quanto o  
próprio capital, acompanhando sua trajetória de expansão global. Conforme analisa  
Grespan (2012, p. 28), “a crise do mercado mundial é o correspondente negativo do  
capital neste ponto último de sua expansão e o conceito de crise respectivamente é o  
mais complexo e abrangente”. Em outras palavras, à medida que o capital se propaga  
pelo planeta em seu movimento de autovalorização, a crise se configura como sua  
contrapartida necessária um reflexo estrutural que ganha expressão mais intensa e  
abrangente justamente no patamar mais avançado da produção global. Este é,  
portanto, o recorte central que orienta a nossa análise.  
Ao ser compreendida como a expressão negativa e necessária da lógica  
expansiva do capital, a crise não é algo externo a ele, mas sim um desdobramento  
inerente à sua própria dinâmica contraditória. Ela evidencia, de forma privilegiada, a  
contradição fundamental entre capital e trabalho, assumindo assim um papel central  
tanto para a compreensão do funcionamento do modo de produção capitalista quanto  
para sua crítica. Sua análise permite, então, revelar os limites internos do capital, suas  
tendências autodestrutivas e as aparências que ele gera na superfície social –  
aparências que, por sua vez, ocultam o conteúdo real das categorias econômicas  
envolvidas.  
A extração de mais-valor depende da utilização do trabalho vivo, e é  
precisamente essa dependência que o capital tenta reduzir por meio do aumento da  
13 Bons exemplos disso são os pesados socorros financeiros promovidos pelos governos, como ocorreu  
nos Estados Unidos ao estourar da crise de 2008, que na verdade beneficiaram principalmente os  
bancos e a classe capitalista, enquanto a população, especialmente os proprietários despejados, não  
recebeu o mesmo tipo de auxílio (HARVEY, 2011, p. 30).  
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composição orgânica: substituindo trabalho vivo por máquinas e técnicas mais  
avançadas. Assim, o que aparece como progresso técnico é, sob a lógica do capital,  
uma tentativa de intensificar a produção de mais-valor, mas que tende a diminuir a  
fonte real da valorização, já que o trabalho vivo é o único criador de mais-valor. Trata-  
se de uma contradição entre as forças produtivas desenvolvidas pelo capital e os  
limites postos pela própria forma-valor.  
Esse movimento contraditório conduz ao que Marx chamou de lei tendencial da  
queda da taxa de lucro. Ainda que o capital aumente a massa de mais-valor em termos  
absolutos, a proporção entre mais-valor e o capital total investido tende a declinar14.  
Marx explica:  
O fenômeno, derivado da natureza do modo capitalista de produção,  
de que com uma produtividade crescente do trabalho diminui o preço  
da mercadoria individual ou de uma quantidade dada de mercadorias,  
aumenta o número das mercadorias, diminui a massa de lucro por  
mercadoria individual e a taxa de lucro sobre a soma das mercadorias,  
ao mesmo tempo em que aumenta a massa de lucro sobre a soma  
total das mercadorias esse fenômeno evidencia apenas a diminuição  
da massa de lucro sobre a mercadoria individual, a queda do preço  
desta última e o aumento da massa de lucro sobre o número total  
aumentado das mercadorias produzidas pelo capital total da  
sociedade ou pelo capitalista individual. O que se depreende disso é  
que o capitalista adiciona menores lucros, por livre determinação,  
sobre a mercadoria individual, porém se ressarce por meio do maior  
número de mercadorias que produz. (MARX, 2017, p. 268)  
Essa tendência não é acidental, mas decorre da própria lógica da valorização:  
há um descompasso entre a necessidade de ampliar o mais-valor e os limites materiais  
da produção. A concorrência entre capitais impulsiona todos os setores a reduzirem  
custos e elevarem a produtividade, promovendo inovações tecnológicas que, por sua  
vez, barateiam as mercadorias e reduzem a taxa de lucro. No entanto, esse processo  
afeta de forma desigual os diversos capitais, pois nem todos conseguem acompanhar  
o mesmo ritmo de inovação, e aqueles que ficam para trás acabam excluídos do  
mercado.  
Além disso, as inovações que inicialmente garantem lucros extraordinários  
tendem a se generalizar, comprimindo os preços e exigindo produção em maior escala.  
A valorização passa, então, a depender da venda de um volume cada vez maior de  
mercadorias. Isso acirra a contradição entre a capacidade produtiva ampliada e as  
limitações da realização no mercado, sobretudo quando o consumo é restringido pela  
14  
Há uma diferença aqui entre taxa de lucro e massa de lucro: a primeira se trata da equação referida  
acima, em que o mais-valor é dividido pela soma entre capital total e capital variável, enquanto a  
segunda consiste na diferença entre o preço de venda e o preço de custo (somatório do que foi gasto  
no processo de produção) da mercadoria.  
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compressão dos salários ou pela superexploração do trabalho.  
Importa sublinhar que essa é uma lei de tendência e não uma fatalidade  
absoluta. O próprio Marx adverte que se trata de uma “lei cuja aplicação absoluta é  
contida, refreada e enfraquecida por circunstâncias contrarrestantes” (MARX, 2017, p.  
234). Entre essas circunstâncias, destacam-se: o aumento do mais-valor absoluto por  
meio do prolongamento da jornada de trabalho; o crescimento do mais-valor relativo  
com o barateamento das mercadorias de subsistência; a compressão dos salários  
abaixo do valor da força de trabalho; o barateamento dos elementos do capital  
constante; a ampliação do comércio exterior; a utilização da superpopulação relativa  
como reserva de força de trabalho, entre outras a serem analisadas em determinadas  
circunstâncias e no decorrer de longos períodos (MARX, 2017, p. 276). Ou seja, como  
mencionado anteriormente, o estatuto da “necessidade” da ocorrência da queda da  
taxa de lucro em Marx é o de uma necessidade relativa e não absoluta, pois sempre  
admite a possibilidade do seu oposto e depende de condições externas para se  
concretizar, sendo assim, ela é capaz de se sobrepor às contingências, mas sem anulá-  
las completamente (GRESPAN, 2012, pp. 39-40).  
De acordo com Carcanholo (2013, p. 137), a especulação também vem sendo  
utilizada como estratégia para tentar frear essa lei. Diante da tendência de queda da  
taxa de lucro, que marcou especialmente a década de 1970, o capital buscou novas  
formas de assegurar sua valorização, e se lançou de maneira frenética à especulação,  
convertendo-a não em um desvio ou patologia do sistema, mas em uma tentativa de  
remediar sua enfermidade estrutural. O grande capital chegou mesmo a acreditar ter  
encontrado uma forma de geração de riqueza que prescindisse tanto da exploração  
direta do trabalho humano quanto da apropriação da natureza, elevando a tecnologia,  
a informação e o conhecimento à condição de forças autônomas, quase mágicas,  
capazes de assegurar a rentabilidade exigida. Na prática, o objetivo era que ela  
superasse o investimento produtivo como principal meio de apropriação de lucros. A  
crença na possibilidade de valorização sem base material em que a circulação de  
títulos e ativos parecia substituir a produção de valor consolidou-se como forma de  
enfrentamento à queda da taxa de lucro. No entanto, quando o circuito especulativo  
se vê abalado, como nas crises, evidencia-se o caráter ilusório dessa estratégia: a  
riqueza aparente desmorona, revelando novamente que o capital não pode prescindir  
do trabalho vivo como fundamento último da valorização.  
Isso se relaciona ao fato de que um dos elementos centrais da dinâmica  
contraditória do capital é a relação inversa entre a taxa de lucro e a taxa de mais-  
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valor15. Ambas funcionam como formas de mensuração da valorização do capital, mas  
produzem resultados divergentes. Como aponta Grespan (2012), essa tensão gera  
uma situação de “desmedida”: enquanto a taxa de mais-valor indica um aumento na  
valorização do capital, a taxa de lucro, conforme a lei tendencial da sua queda, aponta  
uma trajetória descendente. Assim, o próprio capital se vê diante da impossibilidade  
de estabelecer um critério único para medir sua valorização, o que implica uma perda  
de referência interna nos processos de reprodução e acumulação.  
Por sua vez, essa desmedida é expressão direta da contradição constitutiva do  
capital, cuja lógica o leva a tentar submeter integralmente o trabalho vivo a seu  
domínio, impedindo que o trabalho se configure como totalidade autônoma. Grespan  
descreve essa contradição da seguinte maneira:  
A desmedida expressa, assim, a contradição imanente ao capital em  
sua pretensão a rebaixar o trabalho vivo a momento do todo por ele  
formado e a impedir que o trabalho forme também uma totalidade por  
seu lado [...]: conforme um dos lados desta relação, o capital mede  
sua valorização pela taxa de lucro, como se ele fosse, enquanto capital  
total, o criador de valor, conforme o outro lado, porém, sua pretensão  
se choca com a realidade de que apenas o trabalho vivo cria valor, e  
a medida da valorização pela taxa de mais-valia entra em oposição  
com a taxa de lucro. (GRESPAN, 2012, p. 188)  
Esse impasse se expressa de forma particularmente aguda no fenômeno da  
sobreacumulação periódica de capital, tal como desenvolvido por Marx no Livro III.  
Trata-se de um momento em que o avanço da acumulação alcança um ponto em que  
os capitais disponíveis não encontram condições para serem valorizados. Não se trata,  
portanto, apenas de uma produção excessiva de mercadorias isoladas, mas de um  
excesso de capital que não pode ser investido lucrativamente16.  
Como afirma Marx:  
A superprodução de capital não significa outra coisa senão a  
superprodução de meios de produção [...] que podem ser empregados  
para a exploração do trabalho [...] uma vez que a queda desse grau  
15  
A taxa de mais-valor (ou taxa de exploração) é a razão entre o mais-valor produzido (m) e o capital  
variável (v) adiantado pelo capitalista, isto é, o valor da força de trabalho. Ela expressa o grau de  
exploração do trabalho, indicando quanto trabalho não pago é extraído em relação ao trabalho pago:  
m= m / v. Já a taxa de lucro é a razão entre o mais-valor (m) e o capital total adiantado (c + v), que  
inclui tanto o capital variável quanto o capital constante (c, ou seja, máquinas, matérias-primas etc.): r  
= m / (c + v). A taxa de lucro, portanto, é sempre influenciada pela composição orgânica do capital e  
tende a diminuir à medida que cresce a proporção de capital constante em relação ao capital variável,  
ainda que a taxa de mais-valor aumente (MARX, 2017, p. 69).  
16  
A relevância da sobreacumulação periódica de capital nas crises e a questão da  
possibilidade/necessidade delas não é pacífico na literatura marxista. Rosa Luxemburgo, por exemplo,  
teceu a sua teoria do colapso econômico do capitalismo para responder àqueles que defendiam a  
possibilidade de eternização desse modo de produção. Rosdolsky (ROSDOLSKY, 2001, pp. 92-100;  
538-54) trata dessa discussão, defendendo que esse tipo de leitura se baseia em uma má interpretação  
da arquitetura d’O capital, tendo em vista que se utiliza de categorias do Livro II que só estariam  
suficientemente concretas no Livro III.  
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de exploração abaixo de certo ponto provoca [...] crises e destruição  
de capital. (MARX, 2017, p. 254)  
Diante dessa situação, a única forma de restabelecer a valorização é pela  
destruição de capital excedente seja por meio de falências, perda de valor de ativos,  
desemprego em massa ou fechamento de empresas. A crise, assim, atua como um  
momento violento de restauração das condições de acumulação. Nas palavras de Marx  
já mencionadas anteriormente: “erupções violentas que restabelecem por um momento  
o equilíbrio perturbado” (MARX, 2017, p. 248).  
A alternância entre expansão e crise revela-se, portanto, não como uma  
oscilação meramente conjuntural, mas como expressão estrutural das contradições  
internas do modo de produção capitalista. É essa alternância que possibilita tanto a  
recuperação das quedas na taxa de lucro quanto o surgimento de novos ciclos de  
valorização a partir da reestruturação produtiva provocada pelas crises.  
Esses episódios de crise costumam se manifestar como quedas generalizadas  
nos preços, colapsos no sistema de crédito, interrupção de pagamentos, cortes  
salariais e elevação do desemprego. Paradoxalmente, esses próprios elementos abrem  
espaço para uma reorganização das condições produtivas: os capitais sobreviventes  
tendem a reduzir custos, incorporar novas tecnologias e rebaixar a composição  
orgânica do capital. A concorrência, por sua vez, seleciona quais capitais resistirão à  
crise e quais inovações serão colocadas na fase seguinte de expansão (MARX, 2017,  
p. 251).  
Dessa forma, a crise aparece como mecanismo contraditório de autorregulação  
do capital. As fases de crescimento e retração não se alternam mecanicamente, mas  
contêm internamente as condições da sua reversão mútua. Como afirma Marx, “a  
produção capitalista tende constantemente a superar esses limites [...] porém consegue  
isso apenas em virtude de meios que voltam a elevar diante dela esses mesmos limites,  
em escala ainda mais formidável” (MARX, 2017, p. 248).  
O verdadeiro limite à expansão da produção capitalista não está fora dela, mas  
no próprio capital. Ao perseguir como fim exclusivo sua autovalorização, o capital entra  
em conflito com o desenvolvimento irrestrito das forças produtivas sociais. Assim,  
embora historicamente eficaz na elevação da produtividade e na criação de um  
mercado mundial, o modo de produção capitalista produz também seus próprios  
limites estruturais (MARX, 2017, p. 248). Nesse sentido, a crise expressa, de forma  
aguda, a contradição imanente ao capital, que é, ao mesmo tempo, o sujeito do  
processo de produção e sua barreira interna intransponível.  
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Considerações finais  
Este artigo buscou investigar de que maneira a teoria da crise é delineada de  
forma distinta nos Livros I, II e III de O capital e o que essa diferença revela sobre a  
estrutura contraditória do modo de produção capitalista. Ao longo da análise, foi  
possível mostrar que, embora os três volumes trabalhem com níveis diferentes de  
abstração, todos tratam a crise não como evento exterior ao capital, mas como  
expressão necessária de sua lógica interna.  
No Livro I, a crise emerge da própria estrutura da valorização do valor: da  
contradição entre trabalho vivo e trabalho objetivado, da tendência à substituição do  
trabalho por maquinaria, da dificuldade de realizar o mais-valor produzido no mercado.  
Já no Livro II, a crise se manifesta na coordenação temporal e funcional entre os  
diferentes circuitos do capital (produção, circulação e consumo), revelando o risco de  
interrupções e descompassos entre compra e venda, produção e realização, que  
podem comprometer a reprodução do capital como um todo. No Livro III, por sua vez,  
a crise assume a forma da dissociação entre valor real e suas formas autonomizadas,  
como o capital portador de juros e o capital fictício. Aqui, o colapso se manifesta como  
explosão da ilusão de valorização sem base material, levando à desvalorização  
generalizada de ativos e à destruição de capital.  
A leitura proposta por Jorge Grespan em O negativo do capital foi decisiva para  
compreender como essas modalidades distintas de crise não se excluem, mas se  
complementam logicamente. Tal autor interpreta a crise como momento em que a  
negatividade do capital se realiza plenamente tanto no plano da relação imediata  
com o trabalho quanto no das formas econômicas desenvolvidas. A unidade entre os  
livros está precisamente nessa negatividade: o capital só se reproduz ao negar o que  
o funda, e a crise é a revelação cíclica dessa contradição. Nesse sentido, adotou-se  
uma periodização conceitual do desenvolvimento da categoria de crise em quatro  
níveis: (1) na cisão entre compra e venda na circulação simples; (2) na produção  
imediata de mais-valor; (3) na circulação do capital como capital; e (4) no processo  
global de reprodução do capital social.  
Em suma, a análise comparada dos Livros I, II e III permite aprofundar a crítica  
da economia política ao mostrar que a crise não é um desvio, mas a própria forma de  
ser do capital como totalidade contraditória. Longe de representar uma falha acidental  
do sistema, a crise exprime o limite estrutural de um modo de produção baseado na  
valorização incessante do valor e, portanto, na negação permanente da vida como  
fim em si mesma.  
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Como citar:  
PRESCILIANO, Ana Clara Passos. A crise em níveis: o todo artístico dos três volumes  
de O capital de Karl Marx. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 34-61, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 34-61 jul.-dez., 2025 | 61  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.778  
“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a  
historicidade da política  
“Zoon politikon” for Marx: social being and the  
historicity of politics  
Ana Carolina Marra de Andrade*  
Resumo: No presente artigo são feitas  
considerações sobre o uso dado por Marx à  
famosa frase aristotélica “o homem é um animal  
político [ζον πολιτικόν]” em três momentos  
distintos de sua elaboração teórica: nos textos de  
1857-8, nomeadamente a “Introdução” de 1857  
e as Formas que precederam a acumulação  
capitalista, que fazem parte dos Grundrisse; no  
Livro I de O capital: crítica da economia política  
(1867); e nos excertos sobre A sociedade antiga  
de Lewis Morgan, escritos em 1881, publicados  
posteriormente como parte dos chamados  
Cadernos etnológicos de Marx. Assim, analisa-se  
de que modo Marx interpreta a expressão  
aristotélica, e até que ponto é possível considerar  
que ele discorda da afirmação de que “o homem  
é um animal político [ζον πολιτικόν]”. Entende-  
se que Marx insere a afirmação em seu contexto  
histórico, enquanto uma “característica da  
Antiguidade clássica”, mas que remete também  
Abstract: This article discusses Marx's use of the  
famous Aristotelian phrase “man is a political  
animal [ζον πολιτικόν]” at three different  
moments in his theoretical development: in the  
texts of 1857-8, namely the Introduction of  
1857 and the Forms that preceded capitalist  
accumulation, which are part of the Grundrisse;  
in book I of Capital: critique of political economy  
(1867); and in the excerpts on Lewis Morgan's  
Ancient Society, written in 1881, later published  
as part of Marx's so-called Ethnological  
notebooks. Thus, we analyze how Marx  
interprets the Aristotelian expression, and to  
what extent it is possible to consider that he  
disagrees with the statement that “man is a  
political animal [ζον πολιτικόν]”. It is  
understood that Marx places the statement in  
its historical context, as a “characteristic of  
Classical Antiquity”, but that it also refers to an  
important universal feature: the sociability of the  
human being, that is “if not a political animal, in  
any case a social animal”. With these inferences,  
Marx opposes theorists who take the isolated  
individual as their historical starting point,  
naturalizing civil-bourgeois society. In this  
sense, this analysis is not only relevant as a  
mere Marxian interpretation of Aristotle, but  
also for the unveiling of two fundamental  
concepts for Marx, which are intrinsically  
connected: the ontologically social character of  
the human being and the historicity of politics,  
which ultimately provides the basis for  
overcoming the State itself as a human creation.  
para um caráter universal importante:  
a
sociabilidade do ser humano, que é, a saber, “se  
não um animal político, em todo caso um animal  
social”. Com essas inferências, Marx se opõe aos  
teóricos que tomam o indivíduo isolado  
enquanto  
ponto  
de  
partida  
histórico,  
naturalizando a sociedade civil-burguesa. Nesse  
sentido, esta análise não é relevante apenas  
enquanto mera interpretação marxiana de  
Aristóteles, mas também para a apresentação de  
duas concepções fundamentais para Marx,  
intrinsecamente  
conectadas:  
o
caráter  
ontologicamente social do ser humano e a  
historicidade da política, o que, em última  
análise, fornece as bases para a superação do  
próprio estado enquanto criação humana.  
Keywords: Political animal; social being; Karl  
Marx; history.  
Palavras-chave: Animal político; ser social; Karl  
Marx; história.  
* Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).  
E-mail: anamarra7@gmail.com. Orcid: 0000-0002-8477-8578.  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
[...] e assim elas [as pessoas] estão jogando seus problemas na sociedade, e  
quem é a sociedade? Isso não existe! Existem homens e mulheres individuais  
e existem famílias, e nenhum governo pode fazer nada a não ser por  
intermédio das pessoas, e as pessoas olham para si mesmas primeiro. [...] Se  
as crianças têm um problema, a culpa é da sociedade. Não existe essa coisa  
de sociedade. Há uma malha viva de homens, mulheres e pessoas, e a beleza  
dessa malha e a qualidade de nossas vidas dependerão do quanto cada um  
de nós está preparado para assumir a responsabilidade por si mesmo e  
[quanto] cada um de nós estará preparado para dar a volta por cima e ajudar  
com seus próprios esforços aqueles que são desafortunados.  
Margaret Thatcher, 19871  
Introdução: a recepção marxiana d’A política e posição do problema  
A célebre frase aristotélica “o homem é um animal político [ζον πολιτικόν]”  
figura entre as afirmações mais retomadas na história da filosofia. No presente artigo,  
examina-se como Karl Marx interpreta tal asserção, evidenciando-a como um  
diagnóstico da Antiguidade clássica. Argumenta-se, assim, que Marx, em diferentes  
momentos, resgata a frase não como um mero intérprete do filósofo grego, mas no  
intuito de destacar algo importante para seu próprio arcabouço teórico: como o ser  
humano, enquanto ser social, possui uma natureza histórica.  
Para isso, abordaremos como essa concepção aparece em três momentos  
diferentes da obra do autor: (1) em dois dos textos que vieram a integrar os  
Manuscritos econômicos de 1857-1858 ou Esboços da crítica da economia política ou  
Grundrisse, especificamente a Introdução de 1857 e as Formas que precederam a  
acumulação capitalista; (2) dez anos depois, no primeiro livro de O capital: crítica da  
economia política (1867); e, por fim, em (3) seus extratos sobre Lewis Henry Morgan,  
um conjunto de anotações redigidas em 1881 sobre a obra A sociedade Antiga  
[Ancient society] (1877), publicadas pela primeira vez em 1972, nos assim chamados  
Cadernos etnológicos, compilados por Lawrence Krader. Em seguida, iremos trazer um  
breve debate com outros textos de Marx, passando pela noção de ser social  
apresentada nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, e a concepção de estado  
desenvolvida pelo autor em seus excertos sobre Lições sobre a história antiga das  
instituições [Lectures on the early history of institutions] (1875), de Henry Sumner  
Maine, também parte dos assim chamados Cadernos etnológicos.  
Com isso, pretende-se traçar um panorama de como Marx enxerga a afirmação  
1
Em tradução livre de: “[...] and so they [the people] are casting their problems on society and who is  
society? There is no such thing! There are individual men and women and there are families and no  
government can do anything except through people and people look to themselves first. [...] If children  
have a problem, it is society that is at fault. There is no such thing as society. There is living tapestry of  
men and women and people and the beauty of that tapestry and the quality of our lives will depend  
upon how much each of us is prepared to take responsibility for ourselves and each of us prepared to  
turn round and help by our own efforts those who are unfortunate.”  
Verinotio  
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aristotélica, que, adianta-se, é compreendida em relação a seu contexto histórico.  
Nesse sentido, entende-se que tal asserção exprime uma consideração relevante para  
a obra marxiana que remete ao modo como o próprio Marx entende o ser humano,  
porém diferenciando-se de Aristóteles ao reconhecer o caráter especificamente  
histórico de sua consideração isto é, a historicidade da pólis. Não obstante, o  
diagnóstico aristotélico também pode ser interpretado como uma constatação acerca  
da sociabilidade do ser humano, algo que é ignorado por boa parte da teoria burguesa,  
que parte do ponto de vista do indivíduo isolado. Assim, é importante retomar este  
tema na obra de Marx como uma chave para sua própria compreensão acerca do ser  
humano. Em suma, pretende-se demonstrar como, para Marx, o ser humano é  
ontologicamente social, em outras palavras, é um ser social.  
Nosso objetivo não é interpretar a teoria de Aristóteles, e sim entender Marx.  
Não obstante, para isso, será necessário apresentar, ainda que superficialmente, o  
contexto em que a frase em questão é apresentada em A política. Ela aparece no cap.  
2, “Origem da cidade: casal, família aldeia; leia-se:  
Estas considerações evidenciam que uma cidade é uma daquelas  
coisas que existem por natureza e que o homem é, por natureza, um  
ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver  
cidade, será um ser decaído ou sobre-humano, tal como o homem  
condenado por Homero como "sem família, nem lei, nem lar"; porque  
aquele que é assim por natureza, está, além do mais, sedento de ir  
para a guerra, e é comparável à peça isolada de um jogo. (1253a, 1-  
7).  
ζον πολιτικόν, transliterado2, Zoon politikon, que se costuma traduzir por  
animal social, ou animal político ou animal da pólis; “ζον” animal, ser animado, e  
πολτικόν” é, político ou referente à “πλις”. Zoon é uma palavra que pode significar  
animado ou animal, isto é, ser vivo no sentido de que possui anima, sopro vital.  
Utilizamos a tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes, em  
português de Portugal, na qual ζον πολιτικόν foi traduzido como ser vivo político.  
Não vamos nos delongar em questões de tradução, até mesmo porque, para os fins  
do presente trabalho, é mais relevante a interpretação marxiana que o sentido  
aristotélico original.  
Logo, pode-se entender que, para Aristóteles, o ser humano é o ser da pólis, a  
cidade-estado grega. Sobre o que entende pela cidade, ainda no segundo capítulo de  
A política, tem-se que:  
A cidade, enfim, é uma comunidade completa, formada a partir de  
várias aldeias e que, por assim dizer, atinge o máximo de  
2
Para as regras de transliteração, cf. Prado (2006).  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
autossuficiência. Formada a princípio para preservar a vida, a cidade  
subsiste para assegurar a vida boa. É por isso que toda a cidade existe  
por natureza, se as comunidades primeiras assim o foram. A cidade é  
o fim destas, e a natureza de uma coisa é o seu fim, já que, sempre  
que o processo de génese de uma coisa se encontre completo, é a  
isso que chamamos a sua natureza, seja de um homem, de um cavalo,  
ou de uma casa. Além disso, a causa final, o fim de uma coisa, é o seu  
melhor bem, e a autossuficiência é, simultaneamente, um fim e o  
melhor dos bens. (1252a, 28 - 1253a, 1).  
Assim, a cidade não apenas cumpre o papel inicial de preservação da vida  
humana, mas também o de “assegurar a boa vida”. O ser humano em si não é  
autossuficiente, mas a cidade o é, sendo, assim, um animal social, isto é, que vive em  
sociedade. O bem é a finalidade humana, e a vida na cidade é uma condição teleológica  
para alcançar o bem, sendo, portanto, a essência da natureza do homem. Não há um  
homem que não tem cidade por natureza (e não por acaso), sendo então “um ser  
decaído ou sobre-humano”, e Aristóteles expõe os motivos para tal da seguinte  
maneira:  
A razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou um animal  
gregário, é um ser vivo político em sentido plena, é óbvia. A natureza,  
conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre  
todos os seres vivos, possui a palavra. Assim, enquanto a voz indica  
prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também atributo de outros  
animais (cuja natureza também atinge sensações de dor e de prazer e  
é capaz de as indicar), o discurso, por outro lado, serve para tomar  
claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto. E  
que, perante os outros seres vivos, o homem tem as suas  
peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o justo e o injusto; é a  
comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade  
(1253a, 8-17).  
Logo, o homem não é um mero animal gregário. Como um animal dotado da  
palavra, do discurso (logos), é essencialmente um ser vivo político, de modo que “só  
ele sente o bem e o mal, o justo e o injusto”, sentimentos que conjuntamente produzem  
a família e a cidade, que vão além do gregarismo, isto é, de uma mera aglomeração  
de pessoas. Desta compreensão, estão excluídos mulheres, estrangeiros, escravos e  
homens não-adultos. Como explica Henrique Cláudio de Lima Vaz, o “homem” para  
Aristóteles é o “homem livre” ou “cidadão” da pólis:  
O homem livre, o eleútheros na tradição grega, é aquele que tem  
direito à palavra na assembleia dos cidadãos. Mas a pólis abriga em  
seu seio o mudo trabalho do escravo, igualado à condição do animal  
entre os bens do oikos, da sociedade doméstica. Na esfera do político  
a relação do reconhecimento se efetiva historicamente na liberdade  
de palavra do cidadão. (1981, p. 24)  
O homem livre, o cidadão, é aquele que tem direito à palavra, participando das  
discussões na Ágora, e por isso a importância do discurso. Não cabe ao escopo do  
presente artigo entrar em mais minúcias sobre as citações aristotélicas. A partir desta  
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apresentação superficial, já é possível adentrar no debate proposto por Marx, que irá  
se debruçar na especificidade histórica desta asserção, desenvolvendo uma  
compreensão própria sobre a natureza humana. Ao resgatar o traçado aristotélico,  
Marx se opõe à naturalização do indivíduo moderno como um pressuposto a-histórico,  
muito comum à economia política, compreende o ser humano enquanto um ser social.  
Vejamos primeiramente como isso se coloca nos manuscritos econômicos de 1857-8.  
Os textos de 57-8: um animal social  
1. “Introdução” de 1857: um animal que se isola em sociedade  
No manuscrito intitulado “Introdução”, feito em 1857, tido, em geral, como  
parte integrante dos manuscritos econômico-filosóficos posteriormente denominados  
Grundrisse, Marx escreve que “O ser humano é, no sentido mais literal, um ζον  
πολιτικόν3, não apenas um animal social, mas um animal que somente pode isolar-se  
em sociedade” (MARX, 2011, p. 40). Voltemo-nos para o contexto dessa afirmação.  
Marx está tratando da produção material, e afirma que seu primeiro pressuposto é a  
sociedade humana: “Indivíduos produzindo em sociedade por isso, o ponto de  
partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos socialmente determinada” (MARX,  
2011, p. 39). O autor de O capital não poderia ser mais claro: toda produção material  
pressupõe indivíduos em sociedade. O que pode parecer óbvio é o oposto do que se  
servem os economistas políticos clássicos:  
O caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam  
Smith e Ricardo, pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das  
robinsonadas do século XVIII, ilusões que de forma alguma expressam,  
como imaginam os historiadores da cultura, simplesmente uma reação  
ao excesso de refinamento e um retorno a uma vida natural mal-  
entendida. (MARX, 2011, p. 39)  
Smith e Ricardo, portanto, recorrem a “robinsonadas” para explicar a história, a  
saber, uma transposição das relações da sociedade civil-burguesa até um tempo  
fantástico remoto que serviria para uma analogia da gênese própria sociedade-civil  
burguesa. Os economistas políticos do século XVIII antecipam a sociedade capitalista,  
consequentemente, naturalizando-a. Assim, “não se trata de uma mera crítica ao  
romance oitocentista de Daniel Defoe, mas é uma anedota sobre a transposição do  
mundo capitalista até o mundo abstrato da economia política, feita com frequência  
pelos economistas políticos” (ANDRADE, 2023, p. 7).  
Como coloca Musto, na “Introduçãode 1857 esta concepção teórica, que  
3 Transliterado, “Zoon politikon”.  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
reforça o ponto de vista burguês, é a que Marx está tentando rebater: “O alvo polêmico  
de Marx eram as ‘robinsonadas do século XVIII, o mito de Robinson Crusoé como  
paradigma do Homo oeconomicus, ou a extensão dos fenômenos típicos da era  
burguesa a todas as outras sociedades que já existiram, inclusive as primitivas.” (2023,  
p. 37) Marx aponta que essa transposição é falsa, e que “antes dessa época, o  
indivíduo isolado, típico da era capitalista, simplesmente não existia” (MARX, 2011, p.  
39)4.  
Nesse sentido, também estamos de acordo com Alves quando afirma que:  
Este peso de pressuposto é dado exatamente em virtude de ser a  
existência social dos indivíduos um fato inegável, primário, o qual  
garante e estabelece a produção e as ações daqueles. Toda produção  
e manifestação individuais são determinadas, em Marx, pelo ser em  
comum dos indivíduos. A propositura acerca da existência primária de  
indivíduos isolados, livres por natureza, essencialmente indiferentes,  
se encontra também negada, em razão desta mesma determinação.  
(1999, p. 17)  
O pressuposto da “produção dos indivíduos socialmente determinada” é,  
portanto, um pressuposto do caráter social do ser humano. O próprio indivíduo, na  
concepção moderna, possui uma gênese histórica, ou seja, é ele próprio socialmente  
produzido, de modo que não pode existir um indivíduo isolado e livre por natureza.  
Essa noção fica mais clara na análise do curso da história, nas palavras de Marx:  
“Quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o  
indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um todo maior.”  
(MARX, 2011, p. 40) O ponto de vista dos economistas políticos é o do indivíduo  
isolado, o indivíduo da sociedade civil-burguesa: “Somente no século XVIII, com a  
‘sociedade burguesa’5, as diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo  
como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior. Mas a época  
que produz esse ponto de vista, o ponto de vista do indivíduo isolado, é justamente a  
época das relações sociais (universais desde esse ponto de vista) mais desenvolvidas  
até o presente.” (MARX, 2011, p. 40)  
4
Marx também utiliza a expressão “robinsonadas”, ou outras referências a Robinson Crusoé sentido  
semelhante, em Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da miséria do Sr. Proudhon, no Livro I de O  
capital. Não iremos aprofundar, aqui, no tema das “robinsonadas”, mas para fins de elucidação  
menciona-se a explicação de Alves: “As robinsonadas são determinadas como sendo, na melhor das  
hipóteses, "uma antecipação da 'sociedade civil', que se preparava desde o século XVI e que, no século  
XVIII deu passos gigantescos à sua maturidade. Nessa sociedade onde reina a livre concorrência, o  
indivíduo aparece destacado dos liames naturais, etc., que faziam dele em épocas anteriores dependente  
de um aglomerado humano determinado e delimitado." Tais proposituras expressariam de uma maneira  
idealizada e abstrata o fato de os indivíduos, nesta nova forma societária, poderem atuar frente aos  
seus múltiplos nexos recíprocos, de maneira livre e independente.” (1999, p. 18)  
5 Trouxemos a citação conforme traduzido na edição em questão (cf. MARX, 2011), mas entende-se que  
o termo em alemão “bürgerliche Gesellschaft” é melhor traduzido por sociedade civil-burguesa, termo  
utilizado por nós, em substituição da “sociedade burguesa”, ao longo do presente texto.  
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Nesse contexto, Marx parece reafirmar a constatação de Aristóteles: “O ser  
humano é, no sentido mais literal, um ζον πολιτικόν”, porém o sentido ressaltado  
aqui é o seu caráter social em geral, não o caráter específico da sociedade política  
grega. Em outras palavras, Marx está enfatizando o sentido de que o ser humano  
precisa viver em sociedade e até mesmo o isolamento individual só é possível  
pressupondo um grupo social não especificamente em uma sociedade propriamente  
política. Como coloca Musto, “Marx nunca negou que o homem fosse um ζον  
πολιτικόν (zoon politikon), um animal social, mas enfatizou que ele era um animal que  
só pode se isolar na sociedade’” (2023, p. 39).  
Assim, o próprio indivíduo isolado é socialmente produzido e historicamente  
situado, e então: “A produção do singular isolado fora da sociedade – um caso  
excepcional que decerto pode muito bem ocorrer a um civilizado, já potencialmente  
dotado das capacidades da sociedade, por acaso perdido na selva é tão absurda  
quanto o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos vivendo juntos e falando uns  
com os outros.” (MARX, 2011, p. 40) O ser humano é um animal político em seu  
sentido social, e é neste sentido de sua afirmação que Aristóteles estaria correto. Não  
obstante, como veremos, isso não significa que Marx concorda com o todo da  
afirmação em especial, com seu caráter político.  
A interpretação marxiana do traçado aristotélico deve ser tratada, aqui, como  
uma crítica à noção do indivíduo ontologicamente isolado, que é necessariamente  
imaginária, dado que a própria produção deste indivíduo é social e histórica. A  
sociabilidade humana é um pressuposto de toda a produção. Marx afirma, portanto, o  
caráter do ser humano enquanto um ser social, e, como ficará explícito a seguir, de  
forma alguma isso significa que Marx concorde com o sentido político do Zoon  
politikon.  
2. Formen: um animal gregário, de forma alguma em sentido político  
Em Formas que precederam a produção capitalista [Formen, die der  
kapitalistischen Produktion vorhergehen], conhecido apenas como Formen, texto que  
também faz parte dos Grundrisse, ao tratar de formas que precederam o modo de  
produção capitalista, Marx afirma o seguinte: “O ser humano só se individualiza pelo  
processo histórico. Ele aparece originalmente como um ser genérico, ser tribal, animal  
gregário ainda que de forma alguma como um ζον πολιτικόν em sentido político.”  
(MARX, 2011, p. 407) Esta afirmação é um complemento ao comentário anterior,  
deixando ainda mais claro que o ser humano é um Zoon politikon no sentido social  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
implicado no termo, não em seu sentido político.  
Ao voltar-se para a história, Marx segue sua crítica às noções que partem do  
ponto de partida do indivíduo isolado. Em suma, é como afirma György Lukács:  
Marx polemiza contra a imaginária, restrita ao plano da consciência,  
não ontológica constituição do indivíduo isolado, tendo em vista  
sempre as grandes questões da teoria da sociedade. Trata-se, em  
última análise, de que não são os indivíduos que ‘constroem’ a  
sociedade, mas de que eles, ao contrário, surgem da sociedade, do  
desenvolvimento da sociedade, e que, portanto repetindo o que já  
enfatizamos várias vezes , o complexo real tem sempre prioridade  
ontológica sobre seus componentes. (2018, pp. 398-9)  
Assim, o ser humano é social, e este é um pressuposto da produção em geral  
e, com isso, da própria história. Não obstante, ele não é político nesse mesmo sentido.  
Do mesmo modo que os indivíduos não constroem a sociedade, mas surgem da  
sociedade, a política não é uma característica inerente dos seres humanos, mas um  
construto social. Ao voltar-nos para a história, percebe-se que o ser humano aparece  
originalmente como um ser que possui um elo imediato com seu todo social “um ser  
genérico, ser tribal, animal gregário”.  
A forma inicial de organização comunitária humana é um gregarismo, um  
sistema de coletividade tribal. Como Marx explica: “A coletividade tribal que surge  
naturalmente, ou, se preferirmos, o gregarismo, é o primeiro pressuposto a  
comunidade de sangue, linguagem, costumes etc. da apropriação das condições  
objetivas da sua vida e da atividade que a reproduz e objetiva (atividade como pastor,  
caçador, agricultor etc.).” (MARX, 2011, p. 389) Nesse sentido, o pertencimento a uma  
sociedade natural e espontânea (aqui, sinônimo de tribo) é uma “condição natural de  
produção para o indivíduo vivo” (MARX, 2011, p. 403), e “equivale neste contexto a  
ser mero membro de um conjunto, pertencer inteiramente a ele, beirando à indistinção,  
tal o significado de ser de rebanho” (MARX, 2011, p. 48).  
Para Marx, portanto, o ser humano nos primórdios de sua história pode de fato  
aparecer enquanto um animal gregário, no sentido de “um ser genérico, ser tribal”, de  
modo que a individualidade se coloca imersa dentro do todo social, mediada pela  
coletividade, isto é, o ser humano que não é um indivíduo propriamente dito no sentido  
moderno. Para Aristóteles, o ser humano não é um animal gregário, como seria a  
abelha, por exemplo, por causa da palavra “a razão pela qual o homem, mais do que  
uma abelha ou um animal gregário, é um ser vivo político em sentido plena, é óbvia.  
A natureza, conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre  
todos os seres vivos, possui a palavra” (1253a). No entanto, o gregarismo tratado por  
Marx aqui não está colocado como oposto à linguagem, ao discurso (logos), sendo  
afirmado no sentido de reforçar a inexistência do indivíduo autônomo. O gregarismo  
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mesmo comporta a existência da linguagem, dos costumes, da comunidade organizada  
em torno do parentesco. Nas palavras de Marx: “A coletividade tribal que surge  
naturalmente, ou, se preferirmos, o gregarismo, é o primeiro pressuposto a  
comunidade de sangue, linguagem, costumes etc. da apropriação das condições  
objetivas da sua vida e da atividade que a reproduz e objetiva (atividade como pastor,  
caçador, agricultor etc.).” (MARX, 2011, p. 389)  
Assim, o que está em questão na afirmação do gregarismo é que a própria  
individualidade é historicamente situada, enquanto a sociedade é uma condição de  
existência do ser humano, enquanto condição da própria história. As mudanças da  
própria natureza humana só são compreensíveis na medida em que os seres humanos  
transformam a si próprios em comunidade, fazendo a história. O ser humano aparece  
inicialmente como um ser genérico, isto é, cuja própria existência individual se coloca  
imersa nos laços sociais ser é pertencer imediatamente à comunidade, ou seja: a  
coletividade é um pressuposto da existência do ser humano, para a reprodução e  
produção de sua própria vida. E na Antiguidade, indivíduo e sociedade aparecem de  
modo de fato indissociáveis, como coloca J. Chasin:  
Zoon politikon, o homem é aristotelicamente, isto sim, naturalmente  
social, ou seja, tem por condição natural a sociabilidade, fora da qual  
a realização de sua individualidade fica comprometida, ou se torna  
mesmo impossível. [...] Diante disto, é impossível a contraposição  
entre indivíduo e sociabilidade, o que de fato é uma figura  
teoricamente desconhecida na Grécia Antiga. (2023, p. 140)  
O ser humano é um ser social, e Aristóteles percebe-o a partir da  
impossibilidade da individualidade fora da sociedade. Porém, como uma condição da  
própria história, não significa que o ser humano é imutável, pelo contrário, a própria  
existência do ser gregário é historicamente situada. Do mesmo modo, o ser humano  
só aparece enquanto indivíduo a partir de um determinado momento histórico, porque  
ele só pode se isolar já em sociedade. Como coloca Alves: “Os indivíduos não entram  
em relação por via de uma deliberação autônoma, nem é para eles uma acidentalidade,  
mas é assim a condictio sine qua non da realização dos fins individuais. A relação dos  
indivíduos entre si é a possibilidade da existência destes, enquanto individualidades  
propriamente ditas.” (1999, p. 23) Nesse sentido, o gregarismo inicial tampouco deve  
ser compreendido como uma mera aglomeração de indivíduos, mas uma coletividade  
complexa na qual não há a compreensão do indivíduo isolado.  
Se ser humano é pertencer à sociedade, para Aristóteles é ser o cidadão grego,  
conceito do qual, é válido ressaltar, estão excluídos mulheres, estrangeiros, escravos  
e homens não-adultos. O ser humano é, portanto, um ser social, que em um  
determinado momento histórico aparece “como um ζον πολιτικόν em sentido  
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político, como apareceu para Aristóteles. Na Antiguidade, ele não é mais o ser  
gregário, mas suas relações sociais são mediadas pela pólis. Como vamos mencionar  
posteriormente, para Marx este “político” se refere à politicidade Antiga, ao cidadão  
da pólis, cidade-estado grega, não tem o mesmo sentido da política moderna. Por  
hora, é suficiente compreender que a própria politicidade em geral é um atributo  
histórico. Marx, portanto, nega o caráter naturalmente político do ser humano, mas  
reafirma sua existência enquanto um ser social, o que é a condição de sua própria  
historicidade. A política não é um fator eterno, sempre existente, e nem tampouco a  
própria finalidade da vida humana em sociedade, como coloca Aristóteles, mas o  
resultado de um processo histórico. Em O capital: crítica da economia política, Marx  
irá retomar essa concepção, novamente enfatizando o caráter propriamente grego da  
asserção aristotélica.  
O capital: se não um animal político, em todo caso um animal social  
No “Capítulo 11. Cooperação, da Seção IV. A produção de mais-valor relativo,  
do Livro I d' O capital, Marx, ao tratar do grande aumento de rendimento da produção  
capitalista com a implementação da fusão das forças individuais, acelerando o  
rendimento dos trabalhadores, traça o seguinte paralelo com a afirmação aristotélica:  
Sem considerar a nova potência que surge da fusão de muitas forças  
numa força conjunta, o simples contato social provoca, na maior parte  
dos trabalhos produtivos, emulação e excitação particular dos  
espíritos vitais [animal spirits] que elevam o rendimento dos  
trabalhadores individuais, fazendo com que uma dúzia de indivíduos  
forneça, numa jornada de trabalho simultânea de 144 horas, um  
produto total muito maior qe o de doze trabalhadores isolados, cada  
um deles trabalhando 12 horas, ou que o de um trabalhador que  
trabalhe 12 dias consecutivos. A razão disso está em que o homem é,  
por natureza, se não um animal político, como diz Aristóteles, em todo  
caso um animal social. [...] A definição de Aristóteles é, na verdade, a  
de que o homem é cidadão por natureza. Ela é tão característica da  
Antiguidade clássica quanto a definição de Franklin, segundo a qual  
o homem é por natureza um fazedor de instrumentos, é característica  
da sociedade ianque. (MARX, 2017, pp. 401-2)  
No trecho acima, Marx está tratando da cooperação, uma “forma de trabalho  
em que muitos indivíduos trabalham de modo planejado, uns ao lado dos outros e em  
conjunto, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes  
porém conexos” (MARX, 2017, p. 400). É evidente que o rendimento da produção  
coletiva é materialmente muito superior ao da produção de indivíduos isolados, de  
modo que o trabalho de cada um representando diferentes fases do processo de  
trabalho total, como partes contínuas de uma ação conjunta, a produção se eleva  
quantitativamente. Porém, a diferença quantitativa gera outra diferença, de caráter  
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qualitativo, na produção, de modo que “não se trata somente do aumento da força  
produtiva individual por meio da cooperação, mas da criação de uma força produtiva  
que tem de ser, por si mesma, uma força de massas” (MARX, 2017, p. 401). Assim,  
trabalhadores empregados por um mesmo capital individual é um marco da gênese da  
própria produção capitalista (cf. MARX, 2017, p. 397)  
Conforme Marx, a potência da agregação de trabalhadores na elevação do  
rendimento fabril está relacionada com uma característica inerente do ser humano –  
sua sociabilidade, a condição sine qua non da própria produção. Nesse sentido, “ao  
cooperar com outros de modo planejado, o trabalhador supera suas limitações  
individuais e desenvolve sua capacidade genérica [Gattungsvermögen]” (MARX, 2017,  
p. 405). A produção humana enquanto essencialmente coletiva é potencializada, a  
saber, tem seus níveis de produtividade elevados, com a cooperação6.  
O que nos interessa nesse contexto é que Marx reitera sua concepção já  
apresentada nos manuscritos econômicos de 1857-8: o homem é um Zoon politikon  
em seu sentido social, não em seu sentido político. Porém, o autor acrescenta, ainda,  
que a caracterização inerentemente política do homem é um diagnóstico de sua época,  
isto é, também tem valor histórico. Na Antiguidade grega, o homem de fato aparece  
como o cidadão da pólis, o ser vivo político, e Aristóteles acerta na medida em que  
faz um diagnóstico da própria sociedade grega. Do mesmo modo, é possível afirmar  
sobre os Estados Unidos no século XVIII que “o homem é por natureza um fazedor de  
instrumentos” – esta é uma “característica da sociedade ianque”, um diagnóstico  
atribuído a Benjamin Franklin que serve para seu próprio tempo.  
A definição de Franklin, como a de Aristóteles, também esconde algo sobre a  
natureza humana: o trabalho em geral como uma categoria que diferencia o ser  
humano dos animais7. O paralelo suscitado por Marx no “Capítulo 11”, destacado por  
nós, pressupõe uma discussão já trazida no “Capítulo 5. O processo de trabalho e o  
processo de valorização. Para Marx:  
O uso e a criação de meios de trabalho, embora já existam em germe  
6
No capítulo seguinte, Marx avança afirmando que “a cooperação fundada na divisão do trabalho  
assume sua forma clássica na manufatura. Como forma característica do processo de produção  
capitalista, ela predomina ao longo do período propriamente manufatureiro, que, em linhas gerais,  
estende-se da metade do século XVI até o último terço do século XVIII” (MARX, 2017, p. 411).  
7 É válido mencionar que, como explica Maurício Vieira Martins: “Marx foi acusado por seus críticos de  
haver incorrido numa espécie de glorificação do trabalho erro de interpretação de Hannah Arendt que  
tristemente fez escola na literatura posterior , de haver ingenuamente suposto que, pelo desabrochar  
do ato laboral, seria possível chegar a algo semelhante a uma redenção da humanidade. Porém, quando  
se examina com atenção os textos de Marx, ele se apresenta como um crítico arguto do Arbeit, do  
trabalho realizado sob a pressão da necessidade. O que é valorizado pelo autor é a atividade [Tätigkeit]  
consciente, que permite a expansão da vontade e não renuncia à interação com segmentos mais  
diferenciados da realidade. É neste âmbito que se entendem as restrições do autor diante da visão  
parcial de Hegel e dos economistas.” (2024, p. 42)  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
em certas espécies de animais, é uma característica específica do  
processo de trabalho humano, razão pela qual Franklin define o  
homem como “a toolmaking animal”, um animal que faz ferramentas.  
A mesma importância que as relíquias de ossos tem para o  
conhecimento de organização das espécies de animais distintas têm  
também as relíquias dos meios de trabalho para a compreensão de  
formações socioeconômicas extintas. O que diferencia as épocas  
econômicas não é “o que” é produzido, mas “como”, “com que meios  
de trabalho”. (MARX, 2017, p. 257)  
O trabalho a que Marx se refere, aqui, trata-se do metabolismo entre ser  
humano e natureza, o pôr teleológico do ser humano que transforma tanto a natureza  
externa quanto a interna a si. Em suas palavras:  
O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza,  
processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula  
e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a  
matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim  
de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria  
vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua  
corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a  
natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele  
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. [...] Pressupomos o  
trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem.  
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma  
abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia.  
Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor  
abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes  
de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se  
a um resultado que já estava presente na representação do  
trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já  
existia idealmente. (MARX, 2017, pp. 255-6)  
Essa definição de trabalho, essencialmente humana, subjaz à concepção  
historicamente ianque da afirmação de Franklin, que é, ao mesmo tempo, um reflexo  
da aparência do ser humano em suas determinações históricas específicas. Para Marx:  
“Como criador de valores de uso, como trabalho útil, o trabalho é, assim, uma condição  
de existência do homem, independente de todas as formas sociais, eterna necessidade  
natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida  
humana.” (MARX, 2017, p. 120). O trabalho como metabolismo entre ser humano e  
natureza é o que faz o ser humano ser capaz de transformar a si próprio, é um  
pressuposto da história, assim como sua socialidade, fundamento de qualquer  
produção.  
Para Marx, as categorias, portanto, possuem um desenvolvimento histórico.  
Uma categoria que é verdadeira em determinado contexto histórico e geográfico pode  
não ser para outro. Portanto, o diagnóstico de Franklin não é falso, mas é uma  
constatação de como o ser humano aparece nos Estados Unidos no século XIX.  
Aparência, aqui, não deve ser entendida como uma mera ilusão ou uma dissimulação,  
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mas enquanto parte superficial da realidade, em outras palavras, o modo como algo  
se coloca imediatamente. No contexto de Franklin, o homem aparece imediatamente  
como um fazedor de instrumentos; o que é ignorado por sua constatação é a diferença  
da conformação específica da sociedade capitalista ianque diante da definição de  
trabalho humano em geral.  
Assim, a definição de Franklin é característica da sociedade ianque, como a  
Aristóteles não está completamente enganado ao apresentar também o caráter político  
do ser humano na expressão “Zoon politikon”, mas diz algo relativo à sociedade grega.  
De modo semelhante, o caráter social contido na mesma afirmação aristotélica é algo  
que de fato toca o ser humano em geral, e a categoria de trabalho em geral que subjaz  
à definição atribuída a Franklin também. O caráter imanentemente social do ser  
humano é justamente o que permite que a própria natureza humana não seja uma  
essência fixa, mas historicamente mutável o caráter essencialmente social do ser  
humano não é contrário à mutabilidade de sua natureza, mas condição dela. A  
socialidade é o pressuposto da própria história: ela não é o resultado da ação de  
indivíduos isolados, mas o campo no qual os sujeitos se formam e agem, de modo que  
Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre  
e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as  
circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram  
transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as  
gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos  
vivos. (MARX, 2011a, p. 25)  
Isso, contudo, não implica negar a importância dos indivíduos na história ao  
contrário, figuras históricas singulares só podem ser plenamente compreendidas em  
sua relevância a partir das determinações sociais de seu tempo. Se “as circunstâncias  
fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias” (ENGELS; MARX,  
2007, pp. 42-3), é precisamente no interior do prisma social que o indivíduo encontra  
as condições de sua própria ação, as condições da própria história. Na concepção  
marxiana da história é necessário a compreensão da relação entre indivíduo e todo  
social. As más compreensões da história são aquelas que isolam um de seus  
elementos: o indivíduo ou o todo social, colocando-se como um predomínio absoluto  
diante do outro, como coloca Lukács:  
Para compreender a especificidade do ser social é preciso  
compreender e ter presente essa duplicidade: a simultânea  
dependência e independência de seus produtos e processos  
específicos em relação aos atos individuais que, no plano imediato,  
fazem com que eles surjam e prossigam. As muitas más interpretações  
do ser social nascem, em sua maioria, porque um dos dois  
componentes que só são reais em sua interação recíproca é inflado  
à condição de único existente ou como o que possui predomínio  
absoluto. (LUKÁCS, 2018, p. 345)  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
O ser social deve ser entendido a partir do todo social e dos atos individuais,  
isto é, à luz da “simultânea dependência e independência de seus produtos e  
processos específicos em relação aos atos individuais”. O ser humano em sociedade  
produz a si próprio através do trabalho, isto é, do metabolismo com a natureza, e  
assim faz sua própria história (mas não de pura e espontânea vontade).  
Em suma, retoma-se que, ao tentar entender o contexto ao qual Aristóteles se  
refere, chega-se à historicidade da política: ela não é uma essência do ser humano,  
mas algo que emerge historicamente, uma construção social. Desta constatação não  
decorre que a política é algo imutável, muito pelo contrário, enquanto uma formação  
histórica ela também não é idêntica em qualquer contexto. Logo, é importante  
considerar a diferença do sentido político do Zoon politikon na Grécia Antiga com o  
que política significa na Modernidade, e é isto que Marx sugere em um texto posterior,  
tratado no tópico a seguir.  
Os “assim chamados” Cadernos etnológicos: o cidadão urbano de  
Aristóteles  
Em 1972, o etnólogo estadunidense Lawrence Krader publicou textos de Marx  
até então inéditos, um compilado de anotações denominadas por ele Cadernos  
etnológicos. Trata-se de um compilado de anotações feitas por Marx em seus cadernos  
de estudos, das quais Krader selecionou as notas sobre Ancient society de Lewis Henry  
Morgan; sobre The aryan village in India & Ceylon, de John Budd Phear; sobre The  
origin of civilisation and the primitive condition of Man de John Lubbock (Lord Avebury);  
e sobre Lectures on the early history of institutions, de Henry Sumner Maine. As  
anotações foram retiradas dos Cadernos B 1468 e B 1609 de Marx. Estes textos,  
escritos em 1881, ao final da vida de Marx, são meras anotações feitas para  
esclarecimento pessoal, não chegando a constituir propriamente um manuscrito. Não  
obstante, é possível extrair delas contribuições relevantes de Marx acerca de diferentes  
temas envolvendo relações de parentesco, sociedades sem estado, história Antiga,  
dentre outros. A integralidade dos cadernos redigidos entre 1879 e 1881 foi  
publicada em versão digital pela Marx-Engels Gesamtausgabe (Mega) em 2023(cf.  
MEGA, 2025).  
Nos excertos sobre Morgan, Marx afirma:  
8
Que continha as notas de (1) Lewis H. Morgan, Ancient society; (2) J. W. B. Money, Java, or how to  
manage a colony; (3) Sir. J. Phear, The aryan village in India & Ceylon; (4) Dr. Rud. Sohm, Fränkisches  
Recht & Römisches Recht; (5) Sir H. S. Maine, Lectures on the early history of institutions; e (6) E.  
Hospitaller, Les principales aplications de l’electricité.  
9 Que continha as notas de (1) John Lubbock, The origin of civilisation and the primitive condition of man;  
(2) Michael George Mulhall: Egyptian finance; e (3) Sheldon Amos, Spoiling the Egyptians: revised version.  
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A sociedade grega é observada pela primeira vez por volta da 1ª  
Olimpíada (776 a.C.); desde então, até a legislação de Clístenes (509  
a.C.), ocorre a transição da organização gentílica para a organização  
política (civil). Ele deveria ter dito que político aqui tem o significado  
de Aristóteles = relativo à cidade [städtisch] e animal político =  
cidadão urbano [Stadtbürger].(MARX, 2025, p. 68 tradução livre  
grifos nossos)10  
Aqui, Marx está comentando a asserção de Morgan acerca do surgimento do  
estado grego. Para o antropólogo, foi durante a era de Clístenes que a política se  
consolidou, anteriormente convivendo com elementos típicos de uma sociedade sem  
estado, isto é, em um momento de transição11. A parte destacada por nós em negrito  
trata-se de uma contribuição direta de Marx, enquanto a frase anterior é uma citação  
indireta de Morgan. Para os fins do presente artigo, não iremos adentrar na obra do  
antropólogo estadunidense, sendo mais relevante o comentário direto de Marx12.  
Para Marx a política antiga não pode ser tratada do mesmo modo que a  
Moderna. Na Grécia de Clístenes, a política é sinônimo do relativo à cidade, pólis, e  
este seria o mesmo significado que adquire na obra aristotélica. Marx não aprofunda  
mais que isso em seus comentários, não deixando explícitas as demais consequência  
de sua asserção, porém, à luz de seus comentários anteriores sobre o “Zoon politikon”,  
podemos constatar que, para ele, há dois significados do termo: um que remete ao  
caráter inerentemente social do ser humano, o qual possui uma universalidade, e outro  
que diz respeito à forma como o ser humano aparece na perspectiva historicamente  
específica, isto é, ser político. Aqui, Marx vai além, constatando também que o  
diagnóstico do humano (neste caso, homem livre) como um animal político não pode  
ser tratado no mesmo sentido de político no século XIX. Em outro texto,  
desenvolvemos o seguinte argumento:  
Desta pequena afirmação, pode-se inferir que a transição para a  
política, aqui, significa, para Marx, uma forma específica de  
organização política ligada à pólis, que implica uma estrutura urbana  
particular (pressupondo a forma grega de separação entre cidade e  
campo) e a existência dos cidadãos gregos. Assim, Marx traz, aqui, a  
determinação generalizante de Morgan que não raro aproxima  
elementos da sociedade moderna para explicar outras formas de  
10 Griechische society comes first under notice about 1sst 1st Olympiade (776 B.C.); von da bis legislation  
of Cleisthenes (509 B.C.) vorgehend Uebergang von gentile in political (civil) Organization. Er hätte  
sagen sollen dass political hier Sinn des Aristoteles hat = städtisch u. politisches animal = Stadtbürger.⦘  
(MARX, 2025, p. 67)  
11 Não há espaço para aprofundar na temática, mas vale mencionar que, para Morgan, há uma transição  
entre as sociedades ditas gentílicas, organizadas em torno do parentesco entre seus membros e cuja  
unidade é a gens (ou génos, no caso grego), e nas quais não existe o estado, para a sociedade política  
(cf. MORGAN, 1983, pp. 6-7). Essa transição seria gradual e, nas sociedades em que se consumou,  
como a grega, passaria por um grande período transicional em que elementos tipicamente políticos  
poderiam conviver com elementos tipicamente gentílicos até que se consolide o estado propriamente  
dito.  
12 Para aprofundar nas críticas de Marx a Morgan, cf. Álvares (2019); Andrade (2025).  
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organização distintas para o específico, local, reafirmando a  
diferença entre o estado moderno e a pólis grega. (ANDRADE, 2025,  
p. 154)  
Nesse sentido, há uma referência marxiana à separação entre cidade e campo  
que operava na Grécia Antiga o termo pólis refere-se à cidade-estado grega. Marx é  
contra todo tipo de transposições anacrônicas de seu próprio tempo na análise de  
sociedades distintas, o que justifica sua crítica a Morgan por não diferenciar o  
significado do político na modernidade do da antiguidade. O que se consolidou na era  
de Clístenes não foi o estado nos termos modernos, mas a pólis, o estado grego13. Do  
mesmo modo, o animal político aristotélico é o cidadão urbano, o significado político  
de “politikon” diz respeito à pólis, à cidade, em outras palavras, o atributo do político  
no sentido Antigo está diretamente associado ao urbano.  
Entende-se que a diferença específica apontada por Marx acerca do animal  
político aristotélico em seus excertos sobre Morgan é algo que está em consonância  
com o que desenvolveu sobre o tema em outros momentos de sua vida. A  
compreensão sugerida pelo autor de O capital em suas anotações de 1881 é  
complementar às que aparecem em seus textos desde 1857. Para Marx, o ser humano  
é um ser social, de modo algum inerentemente político, apesar de aparecer como  
político em momentos históricos determinados, os quais também devem ser  
apreendidos a partir de suas diferenças específicas.  
Outros excertos sobre a concepção de “ser social” e a formação  
histórica do estado  
O argumento marxiano sobre o caráter social do ser humano também pode ser  
sumarizado em uma outra asserção do autor de Manuscritos econômico-filosóficos, de  
1844, embora não haja neles um debate direto com Aristóteles:  
Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a “sociedade” como  
uma abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua  
manifestação de vida mesmo que ela também não apareça na forma  
imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada  
simultaneamente com outros é, por isso, uma externação e  
confirmação da vida social. (MARX, 2010, p. 107).  
A sociedade não é uma abstração oposta ao indivíduo, mas o indivíduo é uma  
manifestação da vida social, tanto é que ele só se isola em sociedade. O ser humano,  
enquanto ser social, é capaz de elaborar-se a si mesmo, conformando-se como um ser  
genérico, e cria a se próprio através do trabalho:  
[...] por isso, na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se  
13 Acerca da politicidade antiga, cf. Chasin (2023).  
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confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta  
produção é a sua vida genérica operativa. Através dela a natureza  
aparece como a sua obra e a sua efetividade [Wirklichkeit]. O objeto  
do trabalho é portanto a objetivação da vida genérica do homem:  
quando o homem se duplica não apenas na consciência,  
intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se,  
por isso, a si mesmo num mundo criado por ele (MARX, 2010, p. 85).  
O ser social transforma a si mesmo na transformação da natureza, de modo a  
conferir este caráter mutável em sua própria natureza interna. O seu caráter genérico  
deve-se à sua capacidade de elaborar o mundo objetivo através do trabalho, da  
transformação da natureza de modo a objetivar-se nela, em um metabolismo entre o  
ser humano e a natureza.  
O ser humano é, portanto, um ser social; sua vida, a vida social, ainda que não  
apareça imediatamente enquanto uma vida comunitária. Lukács resgata essa  
concepção, explicando-a da seguinte maneira:  
O que se costuma chamar de indivíduo isolado apoia-se sobre um  
estado particular da consciência, no interior da socialidade  
fundamentalmente objetiva, mas também subjetiva, do homem. A  
posição ontológica segundo a qual o ser humano, na medida em que  
é ser humano, é um ser [Wesen] social; segundo a qual, em todo ato  
de sua vida, como quer que este se espelhe em sua consciência, o ser  
humano sempre e sem exceções realiza de modo contraditório a si  
mesmo e simultaneamente ao respectivo estágio de desenvolvimento  
do gênero humano. (2018, p. 397)  
Assim, o indivíduo isolado, eis o ponto de partida da economia política. O ser  
humano é ontologicamente social, é isso seria aquilo de essencial que está por trás da  
afirmação aristotélica. Por isso Marx retoma-a, em seus Grundrisse, polemizando contra  
os economistas políticos que partem do indivíduo isolado: enquanto Aristóteles, ainda  
que naturalizando o cidadão da pólis, consegue apreender o caráter social do ser  
humano, os economistas políticos enxergam a sociedade como uma mera aglomeração  
de indivíduos, ignorando a inevitável relação entre indivíduo e sociedade, e portanto  
aquém da própria concepção aristotélica.  
Ainda assim, a concepção aristotélica não compreende o ser humano como um  
ser genérico, o que se manifesta enquanto ser humano é, para ele, o cidadão da pólis,  
a saber, os membros da comunidade na qual ele vive. Nesse sentido, estamos  
igualmente de acordo com a explicação dada por Lukács:  
Assim como a consciência específica humana só pode nascer em  
ligação com a atividade social dos homens (trabalho e linguagem) e  
como consequência dela, também o pertencimento consciente ao  
gênero se desenvolve a partir da convivência e da cooperação  
concreta entre eles. Disso resulta, porém, que a princípio não se  
manifesta como gênero a própria humanidade, mas apenas a  
comunidade humana concreta na qual vivem, trabalham e entram em  
contato os homens em questão. Por esses motivos, o surgimento da  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
consciência genérica humana apresenta ordens de grandeza e graus  
muito variados: desde as tribos, com vínculos ainda quase naturais,  
até as grandes nações (2018, p. 400)  
Não era possível, na Grécia Antiga, a consciência plena do ser genérico, e por  
isso mesmo Aristóteles faz um diagnóstico da própria sociedade grega: o ser humano  
é o ser de sua comunidade, o animal político, cidadão urbano, o homem livre e adulto.  
Ele parte de um complexo social no qual o vínculo comunitário não é um todo unitário,  
mas é mediado por classes sociais. Em outras palavras, ele parte das relações concretas  
entre os cidadãos.  
Por outro lado, os economistas políticos partem do indivíduo isolado,  
ignorando que a ideia de um indivíduo oposto à sociedade também é um resultado  
do próprio desenvolvimento histórico:  
O fato de que em sociedades relativamente bem desenvolvidas, em  
particular durante períodos de crise, possa surgir em indivíduos  
singulares a ideia de que todas as relações do indivíduo com a  
sociedade são puramente externas, secundárias, simplesmente  
ajustadas, até mesmo produzidas artificialmente, anuláveis e  
revogáveis a bel-prazer, é um fato da história da cultura. (2018, p.  
397)  
Em determinadas sociedades (não há espaço, aqui, para explicar ou debater o  
vínculo entre desenvolvimento e crise sustentado por Lukács), emerge a  
autonomização dos indivíduos singulares. Isso é um fato histórico, culturalmente  
explicável, que já pressupõe uma relação comunitária cujos vínculos sociais não são  
imediatos, isto é, o indivíduo isolado em sociedade, ou que a própria sociedade, como  
postula Margareth Thatcher14, nem sequer existe, sendo apenas um aglomerado de  
indivíduos. A afirmação de Thatcher, contudo, não contém uma asserção universal é  
uma afirmação totalmente vulgarizada sobre o modo como a sociedade atual se  
manifesta. Este não deve ser um ponto de partida para a análise da realidade, pois  
inverte a relação: o indivíduo só se isola em sociedade, é com o desenvolvimento das  
forças produtivas que surge o sujeito moderno, e não a sociedade que é formada a  
partir do encontro de vários indivíduos, a própria (re)produção da vida humana é  
coletiva, social.  
Ao tomar o ser humano como um ser social, Marx não está criando uma natureza  
fixa e imutável ao ser humano, pelo contrário. O “pressuposto” da natureza social do  
ser humano é o “pressuposto” da própria história – é em sociedade que se faz história.  
Em outras palavras, é enquanto ser social que o próprio ser humano se transforma  
14 Uma das mais famosas inferências de Margareth Thatcher é que a sociedade não existe, cf. Thatcher  
(1987).  
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enquanto ser genérico é por ser social que o ser humano é capaz de fazer história.  
Negando o caráter social do ser humano, nega-se também a história, como fazem os  
economistas políticos que recorrem a “robinsonadas” para explicar a natureza humana.  
Eles partem das determinações de seu tempo como um universal abstrato válido para  
qualquer contexto, e portanto completamente destituído de história. Seu caráter  
ontologicamente social incorpora a capacidade do ser humano de produção e  
reprodução de sua própria natureza, que se transforma ao longo da história com a  
emergência do indivíduo isolado, por exemplo, que se isola também em sociedade.  
Como mencionado a partir do “Capítulo 5” do Livro I d’O capital, há um grande  
papel do trabalho, enquanto pôr teleológico do ser humano na natureza, como  
definidor do próprio ser humano, algo presente também em seus Manuscritos de  
1844. O ser social é capaz de fazer história na medida em que é capaz de transformar  
as naturezas externa e interna a si próprio através do trabalho, que o conforma  
enquanto ser genérico. A produção pressupõe a socialidade, logo este não é um feito  
individual.  
Em suma, tem-se que Marx não nega a existência dos indivíduos, apenas pontua  
como a noção do sujeito moderno é, ela própria, historicamente constituída. De modo  
semelhante, ao compreender o caráter histórico da política, ela se coloca não como  
um pressuposto imutável, mas como capaz de ser transformado, e até mesmo  
destruído pelas mesmas forças sociais que a engendraram. Ela surge com a ação do  
ser social e é capaz de submergir por ela o que, obviamente, não é a mera do  
indivíduo isolado, nem de um todo social abstrato e oposto à subjetividade. O estado  
não é um pressuposto insuperável, ou um télos inevitável, mas o resultado da ação  
humana, isto é, das condições econômicas, materiais, de (re)produção da vida humana  
em sociedade. Assim, a compreensão marxiana sobre o Zoon politikon, que afirma sua  
posição sobre o ser social e, consequentemente, a historicidade da política, é a base  
para a compreensão de Marx acerca da superação do próprio estado, da política  
enquanto tal (e não apenas de seus modos específicos).  
Vejamos por exemplo, nos extratos sobre Maine dos assim chamados Cadernos  
etnológicos, a crítica de Marx à Teoria da Soberania adotada pelo jurista inglês15, na  
qual explica sobre a origem do estado:  
[Maine ignora algo que é muito mais profundo: que a aparente  
existência suprema e independente do próprio estado é apenas  
aparente e que, em todas as suas formas, ele é uma excrescência da  
sociedade; assim como seu aparecimento só ocorre em um  
determinado estágio do desenvolvimento social, ele desaparece  
15 Para aprofundar no tema, cf. Andrade (2024).  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
novamente assim que a sociedade atinge um estágio ainda não  
alcançado. Somente quando a individualidade é arrancada dos  
vínculos originalmente não despóticos (como Maine entende), mas dos  
vínculos satisfatórios e aconchegantes do grupo, da comunidade  
primitiva e, portanto, da elaboração unilateral da individualidade.  
Mas a verdadeira natureza desses últimos só se torna aparente  
quando analisamos o conteúdo – os interesses desses “últimos”.  
Descobrimos então que esses interesses são, mais uma vez, interesses  
comuns a certos grupos sociais e que os caracterizam, interesses de  
classe etc., ou seja, essa individualidade em si é individualidade de  
classe etc. e, em última instância, tem todas as condições econômicas  
como base. O estado se constrói sobre essas bases e as pressupõe.]  
(MARX, 2025, p. 191 tradução livre)16  
Não cabe ao escopo do presente artigo aprofundar acerca das bases materiais  
da formação do estado. Porém, o que se pretende resgatar aqui é que uma  
consequência da compreensão do ser humano como ontologicamente social é que se  
a política é histórica, então é necessário entender quais bases materiais a conformam,  
a saber, por que ela existe e o que a sustenta. De modo bastante superficial, tem-se  
que, para Marx, a política surge da dissolução dos vínculos sociais imediatos  
comunitários a partir do desenvolvimento da propriedade privada, das classes sociais  
e da elaboração unilateral da individualidade, ela não só pode, mas deve ser superada  
em uma sociedade sem classes, no comunismo, para a emancipação humana real17.  
Em suma, ao compreender o caráter ontologicamente social do ser humano,  
Marx é capaz de compreender que a natureza humana não é fixa, mas produzida o  
ato de produzi-la é ele próprio conformado através do trabalho enquanto atividade  
vital humana, metabolismo entre ser humano e natureza. Através disso, o autor é capaz  
de olhar para a história sem pressupostos, desnaturalizando determinações de sua  
época, dentre elas a própria existência do estado. Ao voltar-se para as sociedades  
concretas, descobre-se que o estado se constrói sobre bases econômicas específicas,  
16  
Maine ignores das viel Tiefere: dass die scheinbare supreme selbständige Existenz des Staats selbst  
nur scheinbar u. dass er in allen seinen Formen eine excrescence of society is; wie seine Erscheinung  
selbst erst auf einer gewissen Stufe der gesellschaftlichen Entwicklung vorkömmt, so verschwindet sie  
wieder, sobald die Gesellschaft eine bisher noch nicht erreichte Stufe erreicht hat. Erst Losreissung der  
Individualität von den ursprünglich nicht despotischen Fesseln (wie blockhead Maine es versteht),  
sondern befriedigenden u. gemüthlichen Banden der Gruppe, der primitiven Gemeinwesen, u. damit  
die einseitige Herausarbeitung der Individualität. Was aber die wahre Natur der letzteren zeigt sich erst  
wenn wir den Inhalt die Interessen dieser »letzteren« analysiren. Wir finden dann, dass diese Interessen  
selbst wieder gewissen gesellschaftlichen Gruppen gemeinsame u. sie carakterisindere charakterisirende  
Interessen, Klasseninteressen etc sind, also diese Individualität selbst Klassen- etc Individualität ist u.  
diese in letzter Instanz haben alle ökonomische Bedingungen zur Basis. Auf diesen als Basen baut sich  
der Staat auf u. setzt sie voraus.(MARX, 2025, p. 191)  
17 Em Sobre a questão judaica (1843), Marx trata da diferença da emancipação política da emancipação  
real. Trazemos um trecho para ilustrar esta distinção: “[...] a emancipação humana só estará plenamente  
realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente  
genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas  
relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ [forças  
próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma  
da força política” (MARX, 2010a, p. 54).  
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Ana Carolina Marra de Andrade  
pressupondo-as, passando por diferenciações importantes ao longo das décadas, e a  
política grega, baseada na cidade-estado, é diferente da política moderna.  
Considerações finais: ser humano e sociedade na história  
Ante o exposto, tem-se que, para Marx, a asserção aristotélica de que “o homem  
é um animal político [ζον πολιτικόν]pode ser analisada de duas maneiras distintas:  
no sentido político, como um diagnóstico de seu tempo, e no sentido social, como  
uma inferência universal acerca do ser humano. Em ambas, ela possui um sentido  
verdadeiro a falsidade está em atribuir o sentido político enquanto o sentido  
universal. Aristóteles compreende a humanidade a partir do modo como a sociedade  
grega aparece para ele, isto é, como a pólis, que é composta por seus cidadãos, logo  
o ser humano é o cidadão urbano, estando excluídos as mulheres, os escravos, os  
estrangeiros e os homens não-adultos. Em última instância, gira em torno de uma  
tautologia: o cidadão urbano grego é o ser da pólis.  
O sentido político da afirmação aristotélica é, portanto, uma constatação  
verdadeira do sobre a dimensão da aparência, isto é, do modo como a sociedade se  
manifesta para ele. Porém, como “toda a ciência seria supérflua se a forma de  
manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente” (MARX, 2017a, p.  
970), ela tida isoladamente ignora o que há de essencial sobre o ser humano em geral,  
para além dos cidadãos gregos: seu caráter social, o que também é uma dimensão  
interpretativa possível do “Zoon politikon”. Sob esse prisma, concordamos com as  
palavras de J. Chasin:  
É mais do que sabido que os gregos, mais e melhor do que quaisquer  
outros, formularam com tino universal o sentido da mundanidade  
antiga. Porém, não será um prejuízo essencial para o inerente poder  
das ideias atribuir a elas capacidade autônoma ou incondicionada de  
influir e determinar, e com isso unilateralizando e embotando as  
explicações? (2023. p. 23)  
Atribuir à frase aristotélica seu tino universal é inseri-la em seu contexto  
histórico, isto é, não tomá-la como uma explicação autônoma e unilateral da existência  
humana, mas tratando-a como uma elaboração complexa do sentido da mundanidade  
antiga. A sociedade grega do tempo de Aristóteles era uma sociedade política em um  
sentido muito diferente do atual, organizando-se em torno das cidades-estado,  
diferenciando-se, por exemplo, de um gregarismo inicial nos termos marxianos.  
O ser humano é um ser social, um animal que só pode se isolar em sociedade,  
e que aparece inicialmente enquanto um animal gregário, de forma alguma em sentido  
político. Nas palavras de Marx, é “se não um animal político, em todo caso um animal  
social”. Porém, ele aparece como um ser político em determinadas sociedades, como  
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“Zoon politikon” para Marx: o ser social e a historicidade da política  
para Aristóteles, que concebe o ser humano, em certo sentido, enquanto o cidadão  
urbano. Do mesmo modo, o ser humano irá aparecer como um fazedor de instrumentos  
dentro do contexto de Benjamin Franklin, isto é, os Estados Unidos do século XVIII.  
Político no sentido Antigo (isto é, da Antiguidade clássica) diz respeito à pólis ,  
Aristóteles tem em mente o cidadão grego e Marx entende a política a partir de uma  
dimensão profundamente histórica, mutável. O estado tem uma gênese (não é sempre  
existente) e não é sempre idêntico, devendo ser analisado também a partir de suas  
diferenças específicas (históricas, geográficas, dentre outras).  
A possibilidade de superação do estado é dada a partir do momento em que  
se compreende suas bases materiais e sua característica de um produto social, isto é,  
do próprio ser humano. A relação entre indivíduo, estado e sociedade é, para Marx,  
um tanto quanto complexa e depende de uma série de mediações que devem ser  
levadas em conta ao tentar entender a realidade. Contudo, é essencial não partir do  
ponto de vista específico de um momento histórico isolado para se referir a todos os  
demais. Assim, vemos como a análise da asserção aristotélica “o homem é um animal  
político [ζον πολιτικόν]remete a aspectos muito relevantes do pensamento de Marx,  
resumidamente: de um lado, a caracterização do ser humano em geral enquanto um  
ser social; e de outro, a historicidade da política, ambos intrinsecamente conectados e  
fundamentais ao arcabouço teórico do autor.  
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Como citar:  
ANDRADE, Ana Carolina Marra de. “Zoon politikon” para Marx: o ser social e a  
historicidade da política. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 62-84, 2025.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.770  
Forças sociais de produção como forças do  
capital: as forças produtivas do trabalho sob a  
produção capitalista na obra de Karl Marx  
Social forces of production as forces of capital: the  
productive forces of labor under capitalist production  
in the work of Karl Marx  
Lucas de Oliveira Maciel*  
Resumo: Em sua obra econômica desenvolvida,  
Abstract: In his developed economic work, Marx  
deals with the relationship between workers  
and the means of production, considering its  
configuration under capitalist conditions. In this  
sense, among other aspects, he reflects on the  
subordination of real producers to the objective  
conditions of labor, which appear not as their  
own forces, but as those of capital itself. The  
purpose of this article is to show Marx's  
understanding of the issue and to clarify the  
process by which social forces submit to the  
self-valorization of value. We will see that, on  
the one hand, the impetus of capital to produce  
surplus value leads it to the constant revolution  
of the means of production, and thus brings  
with it the development of material wealth; on  
the other hand, this same trait keeps the worker  
trapped in relations of subordination, in which  
the means of his activity confront him as means  
of his enslavement.  
Marx trata da relação entre trabalhadores e  
meios de produção tendo em vista  
a
conformação desta sob condições capitalistas.  
Nesse sentido, entre outros aspectos, reflete  
sobre a subordinação dos produtores reais às  
próprias condições objetivas de trabalho, as  
quais aparecem, não como forças suas, mas do  
próprio capital. O intuito do presente artigo é  
mostrar a compreensão marxiana da questão, e  
esclarecer o processo segundo o qual forças  
sociais de produção se submetem  
à
autovalorização do valor. Veremos que se, por  
um lado, o ímpeto do capital de produção de  
mais-valor o leva à revolução constante dos  
meios de produção, e, desse modo, traz consigo  
o desenvolvimento da riqueza material, por  
outro, esse mesmo traço mantém o trabalhador  
preso a relações de subordinação, nas quais os  
meios de sua atividade se lhe defrontam como  
meios de sua escravização.  
Keywords: Social forces; technique; capital;  
surplus value; Karl Marx.  
Palavras-chave: Forças sociais; técnica; capital;  
mais-valor; Karl Marx.  
Introdução  
Não raro, ao se falar da obra de Karl Marx, refere-se à categoria dos meios de  
produção [Produktionsmittel]. Em O capital, no Capítulo 5 do Livro I (2017a, pp. 255-  
74), ela reúne em si as noções de meios de trabalho [Arbeitsmittel] e objeto de trabalho  
[Arbeitsgegenstand]. Este se refere às coisas que, fruto de trabalho prévio ou  
imediatamente encontradas na natureza, o ser humano modifica para criar algo útil  
para si. Essa modificação, por sua vez, se dá com algum meio de trabalho, que “é uma  
*
Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em direito e em filosofia pela  
mesma instituição. E-mail: lucas.maciel@gmail.com.  
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Lucas de Oliveira Maciel  
coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador interpõe entre si e o objeto do  
trabalho e que lhe serve de guia de sua atividade sobre esse objeto” (MARX, 2017a,  
p. 256).  
Tais considerações se encontram em contexto em que o autor descreve as  
condições do processo de trabalho em geral, abstraída qualquer forma social específica  
em que este se dá. Porém, o intuito é, em seguida, adentrar o que é próprio da forma  
capitalista da produção, em que se produz para criar mais-valor, e, com isso, acumular  
capital.  
No capítulo anterior, Marx mostra que a troca mercantil, por si só, não gera  
mais-valor, pois “o processo de circulação de mercadoria exige a troca de  
equivalentes” (MARX, 2017a, p. 235). Esta é mera mudança de forma em que o valor  
se conserva, de modo que não permite acumulação de capital.  
O cenário muda ao se adentrar o “terreno oculto da produção” (MARX, 2017a,  
p. 250). Nele se torna possível explicar a origem do mais-valor, e, assim, da  
acumulação de capital. Por tal motivo, Marx explica, em primeiro momento, aspectos  
gerais do processo de trabalho, para, em seguida, tratar da especificidade da produção  
capitalista, em que meios de produção, ainda que operem a partir de suas  
determinações gerais, inafastáveis, subordinam-se a essa forma específica de produção  
e apropriação da riqueza que é a capitalista.  
O intuito do presente artigo é explorar uma das dimensões dessa subordinação:  
sob condições capitalistas, os meios de produção, ou as condições objetivas de  
trabalho aparecem diante do trabalhador como forças próprias do capital,  
independentes dos produtores reais e subordinadas a uma finalidade que não lhe diz  
respeito, que é a autovalorização, não a satisfação de necessidades humanas. O capital,  
por óbvio, não pode deixar de satisfazer necessidades, mas isso se torna mero  
substrato da acumulação, mal necessário sem o qual o valor não se valoriza.  
O que se pretende é, pois, explorar a relação subordinada em que as condições  
objetivas de trabalho, em especial os meios de trabalho, se defrontam com o  
trabalhador como potências do capital, não suas, e fazê-lo no interior da obra  
econômica desenvolvida do autor. Nosso foco será os Livros I e III de O capital, os  
Grundrisse, o Capítulo VI (inédito), e os Manuscritos de 1861-1863. Nosso propósito é,  
pois, por meio de análise imanente da obra marxiana1, investigar tal caráter do capital  
constante e do capital fixo, da maquinaria, diante dos produtores. Dito de outro modo,  
1 Por “análise imanente ou estrutural” (CHASIN, 2009, p. 25), entende-se o tratamento do texto em  
análise como algo objetivo, com determinações próprias, independentes do leitor, e que se visam  
explicitar.  
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trata-se de averiguar de que modo o trabalhador, sob condições capitalistas, se coloca  
diante das condições objetivas de seu próprio trabalho2, ou como estas vieram a se  
tornar algo independente daquele, o qual a elas se subordina em vez de subordiná-  
las.  
Essa relação, ver-se-á, coloca-se de modo tenso, pois nela se opõem produtor e  
condições de produção. De um lado, desenvolvem-se as forças produtivas do trabalho;  
de outro, avilta-se o trabalhador, que se torna mero mecanismo da máquina, uma vez  
que a trabalha subordinado ao imperativo de criar mais-valor, e, desse modo, o faz,  
muitas vezes, sob jornadas de trabalho exaustivas, intensas, sob condições de trabalho  
precárias. Seus meios de trabalho não são meios de satisfação de necessidades, mas  
instrumentos de autovalorização do capital.  
Diante disso, verificar-se-á a posição de Marx quanto à supressão de tal estado  
de coisas. As próprias relações capitalistas colocam os pressupostos de sua própria  
supressão, de modo que se verão quais são as possibilidades colocadas pelo próprio  
movimento do capital. Ressaltar-se-á, ainda, que tal supressão não se dá por si mesma,  
mas requer que se remeta para além das categorias que regem o modo de produção  
capitalista.  
Ao se falar na subordinação do produtor a seus meios de trabalhos, e que estes  
aparecem como força do capital, é possível pensar na categoria do estranhamento  
[Entfremdung], cuja mais conhecida e explícita descrição se encontra nos assim  
chamados Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, nos quais se encontram  
afirmações como as de que, sob condições modernas, “o objeto [Gegenstand] que o  
trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho [fremdes Wesen],  
como um poder independente do produtor” (MARX, 2004, p. 80). O capítulo “Trabalho  
estranhado e propriedade privadaé, talvez, o mais conhecido escrito do autor a esse  
respeito.  
Não obstante, a referida obra se encontra em período da trajetória do pensador  
que muitos denominam a do “jovem Marx”, à qual contrapõe, como ruptura brusca  
com as posições de tal momento, o “Marx maduro”, ou o “Marx marxiano3. Isso, de  
2 Não trataremos, pois, dos textos de Marx acerca da cooperação simples, da divisão do trabalho e da  
manufatura, ainda que guardem relação com o tema. Nossa ênfase serão as reflexões sobre o “modo de  
produção especificamente capitalista desenvolvido [entwickelten spezifisch-kapitalistischen  
Produktionsweise]” (MARX, 2022, p. 88), no qual, como afirma o autor, há a “subsunção real” (MARX,  
2017a, p. 578) do trabalho sob o capital, o que ocorre com o desenvolvimento da maquinaria e da  
grande indústria.  
3
Para exemplos de posições nesse sentido, ainda que diversas entre si, cf. Althusser (2015); Draper  
(2011).  
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todo modo, não impede que autores de posição divergente reconheçam não mera  
ruptura, mas continuidades e descontinuidades ao longo da obra marxiana. O autor  
dessas linhas adere a tal posição, e o presente trabalho, na linha de J. Chasin (2009,  
p. 57), toma por premissa que a Crítica da filosofia do direito de Hegel, redigida em  
1843, representa “o início do traçado de uma nova posição ontológica que os textos  
subsequentes [...] confirmam, reiteram e desenvolvem num largo e complexo processo  
de elaboração”.  
É necessário, reconhecer, de qualquer modo, que em 1844 o pensamento  
econômico de Marx era ainda bastante incipiente. Categorias imprescindíveis para a  
compreensão da sociedade capitalista, como valor, ainda não eram bem  
compreendidas pelo pensador4. Sua reflexão sobre o estranhamento parte, em tal  
ponto, da relação do trabalhador com seu produto, com sua atividade, com os demais  
indivíduos e com o gênero humano, a partir do que se pretende explicar a propriedade  
privada (MARX, 2004, p. 87).  
Em sua obra econômica madura, por outro lado, desenvolve-se com maior  
afinco o mecanismo de funcionamento das “sociedades onde reina o modo de  
produção capitalista” (MARX, 2017a, p. 113). A mola propulsora de tal forma de  
sociedade, a produção de mais-valor, à qual se subordina a riqueza real, os valores de  
uso, permite compreender como é possível que as condições objetivas de trabalho  
apareçam diante dos produtores como forças independentes deles e às quais eles se  
subordinam. Nesse sentido, ver-se-ão, ao longo do artigo, expressões como potência  
estranha [fremde Macht] e figura estranhada [entfremdete Gestalt], que aparecem como  
meios de caracterizar o processo aqui descrito. Desse modo, o presente trabalho  
explicita tais expressões à medida que apareçam na exposição marxiana, ainda que  
não como meio de traçar linha de continuidade direta entre os escritos de Marx de  
1844 e os de 1857 em diante. Seja como for, fato é que Marx, ao descrever o capital  
4
Com efeito, em 1844, Marx, em crítica a Mill e a Ricardo, afirma: “Se é uma lei constante que, por  
exemplo, os custos de produção determinam em última instância o preço (valor) ou sobretudo quando,  
periodicamente, acidentalmente, a oferta e a demanda se equilibram , também é uma lei não menos  
constante que esta compensação não se dá; ou seja: entre valor e custos de produção não há uma  
relação necessária. De fato, a oferta e a demanda só se equilibram momentaneamente, depois de  
flutuações precedentes e em consequência da disparidade entre custos de produção e valor de troca;  
estas flutuações e esta disparidade serão sucedidas, novamente, por um equilíbrio momentâneo. Este  
movimento real, do qual a lei é apenas um momento abstrato, contingente e unilateral, é tomado pelos  
economistas como acidental e não essencial. Por quê? Porque se os economistas quisessem enunciar  
este movimento abstratamente, deveriam, dentre as fórmulas penetrantes e exatas às quais reduzem a  
economia política, escolher a fórmula fundamental: na economia política, a lei é determinada pelo seu  
contrário isto é, a ausência de leis. A verdadeira lei da economia política é o acaso e nós, cientistas,  
fixamos arbitrariamente alguns momentos do movimento do acaso sob a forma de leis.” (MARX, 2015,  
pp. 199-200) Nesse momento, o autor rejeita a possibilidade de fixar uma lei que permita a  
compreensão da determinação do valor das mercadorias. A oferta e a demanda mostrariam que a  
realidade da troca mercantil é o acaso.  
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Forças sociais de produção como forças do capital  
como força autônoma que subordina a si os produtores reais, o descreve como  
potência estranha.  
Reflexões sobre as condições objetivas de trabalho não são estranhas à  
Filosofia do século XX, seja dentro ou fora do marxismo. Já em História e consciência  
de classe, de György Lukács, se encontra a afirmação, de influência weberiana, de que  
o processo produtivo da mercadoria se baseia no “princípio da racionalização baseada  
no cálculo” (LUKÁCS, 2018, p. 202). A racionalização do processo de trabalho é  
indissociável de um processo de produção voltado para a produção mercantil, em que  
o ser humano é incorporado a um sistema mecânico independente dele e ao qual deve  
se submeter (LUKÁCS, 2018, p. 204). O desenvolvimento histórico da imposição de  
uma racionalização crescente do trabalho vem junto de sua mecanização, e vai “d[o]  
artesanato, passando pela cooperação e pela manufatura, até a indústria mecânica”  
(LUKÁCS, 2018, p. 201). São indissociáveis, nesse sentido, racionalização e produção  
mercantil, e o desenvolvimento de ambas caminha junto ao desenvolvimento da  
divisão do trabalho e de seus meios técnicos.5  
Em sua leitura de Herbert Marcuse, Jürgen Habermas (1968, p. 48) afirma que  
que, dado o “aumento das forças produtivas institucionalizado pelo progresso técnico-  
cientifico”:  
O pensamento de que as relações de produção pudessem medir-se  
pelo potencial das forças produtivas desenvolvidas fica cerceado pelo  
facto de que as relações de produção existentes se apresentam como  
a forma de organização tecnicamente necessária de uma sociedade  
racionalizada.  
Desse modo, à institucionalização da técnica e da ciência como instrumentos  
de racionalização da produção corresponderiam as relações de produção próprias do  
capitalismo. O desenvolvimento da indústria tornaria a técnica e a ciência as principais  
forças produtivas, de modo que a produção de mais-valor se tornaria independente  
da força de trabalho (HABERMAS, 1968, pp. 72-3). Nos termos do autor de Teoria da  
ação comunicativa, a relação entre racionalidade e dominação é afirmada de modo a  
pretensamente refutar a teoria econômica de Marx.  
Esses dois autores, trazidos a título de exemplo, nos mostram a variedade de  
reflexões acerca dos temas mencionados. Não se pretende, porém, discutir a correção  
ou incorreção das críticas a Marx ou das reivindicações de seu nome. Evidencia-se, de  
todo modo, não só a relevância do tema discutido no presente trabalho, como a  
importância de retomar a posição do pensador alemão nesse âmbito, uma vez que sua  
5 Como aponta Musto (2022, p. 215), Lukács revisaria suas posições (cf. LUKÁCS, 2018, p. 27).  
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figura, bastante conhecida por seu tratamento do processo de trabalho e de sua  
extensa teoria econômica, no interior da qual discorre sobre as condições objetivas da  
produção, paira sobre as reflexões posteriores sobre o assunto. Justifica-se, pois, a  
retomada dos textos do autor de O capital.  
Para além das obras de filosofia, o tópico também se justifica uma vez que nos  
encontramos diante de um mundo cada vez mais automatizado, com revoluções  
tecnológicas constantes, no qual, porém, o progresso técnico não se reverte  
necessariamente em maior bem estar e tempo livre para aqueles que trabalham. Por  
exemplo, a gigante Amazon iniciou, em 2022, a entregar seus produtos por meio de  
drones (SYOZI, 2022). Um ano antes, seu fundador, Jeff Bezos, viajou para o espaço  
em empreendimento financiado por outra empresa sua, a Blue Origin. O intuito seria  
tornar a viagem espacial mais acessível, e buscar recursos naturais e energia fora da  
Terra, com o fim de beneficiar o planeta (WATTLES, 2021). Por outro lado, em 2022  
e 2023, a Amazon foi alvo de investigações levadas a cabo pelo US Department of  
Labor, em que a empresa foi acusada de violar medidas de garantia de saúde e  
segurança de seus empregados (WASHINGTON, 2022; 2023). As infrações incluem  
exigência de horas longas para cumprimento de tarefas, imposição de levantamento  
de cargas de peso elevado, alta frequência de levantamento de pacotes, ausência de  
registro de doenças e lesões dos empregados. Verificou-se a presença de  
trabalhadores com distúrbios osteomusculares. Membros do comitê organizador da  
Amazon Labour Union relataram jornadas extensas, de dez horas diárias com hora  
extra obrigatória, 60 horas semanais, convívio com colegas infectados com a Covid-  
19, e linhas de montagem forçada e progressivamente rápidas (GRUENBERG, 2022).  
De um lado, pois, progresso, automação e riqueza material, de outro, exploração da  
força de trabalho por meio de jornadas exaustivas, e desconsideração com a saúde e  
segurança do trabalhador.  
De modo semelhante, as crescentes notícias sobre o desenvolvimento rápido  
da Inteligência Artificial geram, de um lado, empolgação, de outro receio. Segundo o  
grupo Goldman Sachs (TOH, 2023), o uso da IA na indústria “pode aumentar a  
produtividade do trabalho”. Contudo, estima-se, também, que até um quarto do  
trabalho nos Estados Unidos e na Europa pode ser feito inteiramente por Inteligência  
Artificial. O FMI, por sua vez, estima que 40% dos empregos mundiais serão afetados  
por IA, com possível aumento das desigualdades sociais (TOH, 2024). Surge, ainda,  
novo mercado de trabalho precarizado, voltado para o fornecimento de dados para a  
IA. Conforme matérias da BBC Brasil (SMINK, 2023; BRITO; VILICIC, 2024), milhares  
de trabalhadores, no Brasil e no mundo, recebem salários miseráveis, inferiores a U$  
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Forças sociais de produção como forças do capital  
2 por hora, e em torno de R$ 500 por mês no Brasil, para a prestação de serviços  
voltados ao “treinamento” de ferramentas de Inteligência Artificial. O que poderia se  
tornar tempo livre se torna risco de desemprego e aumento de precarização.  
Diante de tal cenário, justifica-se o retorno ao autor que tratou extensivamente  
da relação entre o ser humano e seus próprios instrumentos. Como se verá, o  
desenvolvimento das forças produtivas sob o imperativo do capital se dá de modo  
tenso: de um lado, progresso, redução do tempo de trabalho necessário, aumento de  
produtividade, de outro, estranhamento, dominação, aumento das jornadas de  
trabalho, intensificação do trabalho. O autor alemão merece, pois, que nos voltemos  
às suas ideias.  
O texto se divide em três partes: primeiro, veremos em que consiste a diferença  
específica do capital no que toca ao processo de trabalho. Cabe ver, porém, sua  
especificidade sob condições capitalistas. Segundo, veremos como, tendo em vista a  
diferença específica do processo de produção sob a égide do capital, o trabalhador se  
defronta com as condições objetivas do próprio trabalho. Tal defrontamento, veremos,  
ocorre de modo que, por um lado, a capacidade produtiva humana se desenvolve, e,  
por outro, o trabalhador se rebaixa, e suas forças sociais de produção se lhe defrontam  
como forças do capital. Por fim, veremos em que sentido, diante dessa relação  
contraditória, colocam-se possibilidades para o livre desenvolvimento individual, o  
qual requer, contudo, a supressão do capital.  
O capital diante do processo de trabalho em geral  
Independentemente da forma de sociedade, há determinações comuns a todo  
processo de trabalho, o qual, segundo Marx (2017a, p. 257) é sempre “atividade  
orientada a um fim”. Ao tomar por ponto de partida o objeto de trabalho (aquilo sobre  
que se trabalha), o meio de trabalho (aquilo com que se trabalha), e determinada  
atividade, a qual, como adiantado, determina-se a partir de certa finalidade, o ser  
humano trabalha, e, assim, produz algo necessário para sua reprodução, qualquer que  
seja a formação social em que isso se dê (MARX, 2017a, p. 258).  
Por meio do processo de trabalho, pois, o ser humano modifica a natureza, e  
transforma parte dela em algo útil para si. A atividade viva transforma dado objeto e  
o fixa em nova forma, cuja utilidade se determina pelo uso que o trabalhador pretende  
dele fazer. O produto do trabalho, é, aqui, valor de uso, ou seja, algo cujas  
propriedades servem a quem as utiliza de acordo com os fins particulares de tal sujeito.  
Um valor de uso é produzido por trabalho útil, ou concreto, trabalho específico que  
produz valor de uso específico. Enquanto processo que produz objetos úteis, o  
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trabalho concreto é mediação necessária entre ser humano e natureza (MARX, 2017a,  
p. 120).  
O modo de produção capitalista, nesse sentido, não pode existir sem a  
produção de valores de uso. Porém, o que dá sua diferença6 em relação a outras formas  
sociais é não a produção de objeto úteis, mas categorias próprias de seu  
funcionamento, mais especificamente, o modo de produção capitalista é voltado não  
só para a produção de valor de uso, mas também de valor. Ainda, não se volta somente  
para a produção de valor, mas também para a de mais-valor: “A produção capitalista  
não é apenas produção de mercadoria, mas essencialmente produção de mais-valor.  
O trabalhador produz não para si, mas para o capital.” (MARX, 2017a, p. 578)  
Sob condições capitalistas, pois, não basta tratar da produção de valores de  
uso: a própria forma de sociedade é voltada não simplesmente para a satisfação das  
necessidades humanas, mas para a produção de mercadorias, nas quais se incorpora  
determinado valor, e a partir do que se gera mais-valor. Como o autor afirma no  
primeiro capítulo de O capital, o valor de cada mercadoria se mede pelo “tempo de  
trabalho necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário” (MARX, 2017a, p.  
117) para sua produção, a partir do que produtos em que se incorporam a mesma  
quantidade de trabalho podem se trocar uns pelos outros.  
O trabalho, desse modo, não se toma somente em seu sentido útil, o qual é  
comum ao processo de trabalho em geral, mas também em um segundo sentido,  
abstrato, independente do objeto que produz. O trabalho a partir do qual se mede o  
valor é “dispêndio de força humana de trabalho” (MARX, 2017a, p. 121), portanto, no  
momento da permuta entre dois objetos, o que dá a medida das quantidades trocadas  
é o trabalho incorporado ao produto, de modo que “não se leva em conta a diferença  
entre suas formas úteis” (MARX, 2017a, p. 122).  
Com isso, para além da produção de valor de uso, o modo de produção  
capitalista produz, ao mesmo tempo, valor, ambos os quais se fazem presente no  
produto típico dessa formação social, a mercadoria, a qual tem por traço a presença  
não só do valor de uso, mas do valor, ou seja, no que toca a esse último, de  
determinada quantidade de trabalho abstrato que é utilizada de medida no momento  
de sua troca com outras mercadorias.  
A diferença específica do modo de produção capitalista, contudo, dá-se não  
simplesmente pela produção mercantil, mas porque esta é meio de valorização do  
6
Marx aprofunda suas reflexões sobre a relação entre a abstração da produção em geral e a  
consideração da diferença específica de dado modo de produção na Introduçãodos Grundrisse (2011).  
A esse respeito, cf. Heleno (2024), em especial o Capítulo II.  
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Forças sociais de produção como forças do capital  
capital. A troca mercantil é troca entre valores equivalentes, de modo que, por si só,  
não produz mais-valor. A possibilidade deste depende de certa condição histórica: por  
um lado, do surgimento do trabalhador assalariado, enquanto trabalhador separado  
das condições objetivas de seu trabalho, ou seja, dos meios de trabalho e dos objetos  
de trabalho, ou meios de produção, os quais, como vimos, são pressupostos  
indispensáveis do processo de trabalho em geral. Por outro lado, é necessário que  
exista uma classe que seja proprietária de tais meios, e que se defronte, enquanto tal,  
com o trabalhador assalariado.  
Essas classes se veem uma diante da outra no mercado, portanto, enquanto  
proprietários de mercadorias, e com o intuito de trocá-las. Colocam-se, pois, em  
relação de compra e venda. Uma vez, porém, que o trabalhador se vê apartado dos  
meios de produção, só o que possui é sua própria capacidade de trabalho, que se  
torna, então, mercadoria. A relação de troca aqui é, pois, de venda da força de trabalho  
por parte do trabalhador para o capitalista, o qual a emprega para produção, já que  
detém as condições objetivas do processo de trabalho. Esta é a premissa histórica do  
surgimento do capital: “O capital só surge quando o possuidor de meios de produção  
e de meios de subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor  
de sua força de trabalho [...].” (MARX, 2017a, p. 245) Marx deixa claro que não se  
trata de algo próprio do processo de trabalho em geral, independentemente da forma  
social, mas algo específico do modo de produção capitalista, que surge historicamente:  
a natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de  
um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho,  
de outro. Essa não  
é
uma relação histórico-natural  
[naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os  
períodos históricos, mas é claramente o resultado de um  
desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções  
econômicas, da destruição de toda uma série de formas anteriores de  
produção social (MARX, 2017a, p. 244).  
Como vimos, toda produção depende de atividade viva, meios de trabalho e  
objetos de trabalho. Porém, com o capital, esse processo se dá com a relação entre  
trabalhadores que não detêm os meios de produção e os proprietários desses meios.  
Os segundos incorporam os primeiros às condições objetivas de trabalho, e, do que  
antes era separação entre produtor e meios de produção, surge a união: “No processo  
de produção, a separação do trabalhador de seus momentos de existência objetivos –  
instrumento e material é superada [aufgehoben]” (MARX, 2011, p. 290). Essa união  
é inevitável, “porque, caso contrário, não se poderia trabalhar de modo algum” (MARX,  
2011, p. 290).  
O trabalhador produz com os meios de produção alheios, a partir do que surge  
determinado produto. Há processo de trabalho, mas enquanto relação entre  
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trabalhador e capitalista:  
Se, por um lado, o processo de trabalho real é consumo produtivo dos  
valores de uso que entram nele por meio do trabalho, portanto por  
meio da atividade do trabalhador mesmo, por outro lado, ele é na  
mesma  
medida  
consumo  
da  
capacidade  
de  
trabalho  
[Arbeitsvermögens] do trabalhador na medida em que o faz trabalhar.  
(MARX, 2010, p. 107)  
O processo se dá, pois, do seguinte modo: o capitalista compra do trabalhador  
sua força de trabalho, ou seja, sua capacidade de exercer a atividade viva que cria  
valores de uso. O trabalhador coloca essa capacidade à disposição do capitalista, o  
qual consome o produto que comprou ao colocar o trabalhador, durante determinado  
tempo, junto dos meios de produção para produzir determinado objeto. Este, uma vez  
que veio ao mundo a partir de matéria e meios de propriedade do possuidor dos  
meios de produção, a este pertence. O resultado do processo é, como em qualquer  
forma de sociedade, determinado valor de uso. Contudo, para além disso, é  
determinada mercadoria, pertencente ao capitalista, e que, enquanto objeto voltado  
para a venda, possui determinado valor. Este advém, justamente, da quantidade de  
trabalho cristalizada no produto, a qual decorre do emprego do trabalhador  
assalariado no processo de produção. É o trabalhador, portanto, que, por meio de sua  
atividade viva, cria o valor da mercadoria do detentor dos meios de produção.  
O trabalhador, como o vendedor da relação, recebe salário cujo valor  
corresponde ao da mercadoria que vendeu, sua força de trabalho, sendo que “o valor  
da força de trabalho [Arbeitskraft] é o valor dos meios de subsistência necessários à  
manutenção de seu possuidor” (MARX, 2017a, p. 245). A mercadoria vendida pelo  
trabalhador é sua própria capacidade de exercer a atividade viva produtora de valores  
de uso, e sua manutenção se confunde com a manutenção do próprio indivíduo que  
dela dispõe: “A força de trabalho existe apenas como disposição do indivíduo vivo. A  
sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo,  
a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção.”  
(MARX, 2017a, p. 245) A reprodução de tal mercadoria, pois, depende da aquisição,  
por parte do trabalhador, dos meios necessários para que se mantenha vivo e capaz  
de trabalhar. Tais meios, porém, são eles próprios mercadorias, e, por isso, possuem  
também determinado valor. A soma dos valores dos produtos que o trabalhador  
consome dão, pois, o valor que o capitalista paga pela força de trabalho7.  
7 O valor da força de trabalho não se dá por meio de um elemento natural, como uma espécie de mínimo  
absoluto sem o qual o indivíduo não se reproduz enquanto corpo vivo. Antes, o que entra em jogo é  
elemento histórico, uma vez que são os costumes e o modo de vida de cada sociedade que determinam  
o que é necessário para a manutenção do indivíduo. Há, nesse sentido, determinada média social,  
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Forças sociais de produção como forças do capital  
Torna-se, possível, com isso, explicar a origem do mais-valor: o trabalhador,  
durante sua jornada de trabalho, produz certa quantidade de valor, o qual se incorpora  
às mercadorias produzidas. Contudo, o valor recebido pelo trabalhador, na forma do  
salário, equivalente ao valor de sua força de trabalho, não equivale ao valor produzido  
durante a jornada. Como visto, o valor de sua mercadoria se confunde com os dos  
meios de subsistência necessários para a reprodução da força de trabalho. Caso o  
valor desta seja menor que o incorporado às mercadorias durante a jornada de  
trabalho, o capitalista recebe, em sua troca com o trabalhador, um valor que excede o  
que pagou pelo produto que comprou, ou seja, um mais-valor. Há, pois, criação de  
valor por parte do trabalhador, mas este não o recebe de volta, em sua integridade,  
em seu salário, com o que se constitui, desse modo, o mais-valor nas mãos do  
capitalista.  
A relação entre o valor da força de trabalho e o mais-valor traz à tona outra  
comparação entre o processo de produção capitalista e o processo de trabalho em  
geral. Dada uma jornada de trabalho específica, ela pode ser decomposta entre o  
tempo de trabalho durante o qual o valor produzido retorna ao trabalhador na forma  
de salário e o tempo de trabalho durante o qual se produz mais-valor. Nesse sentido,  
há, por um lado, um “tempo de trabalho necessário”, e, de outro, um “tempo de  
trabalho excedente” (MARX, 2017a, p. 293). Ambos são comuns a distintas formações  
sociais, e cada um assume determinados traços a depender da sociedade em questão.  
Desse modo, no que toca ao tempo necessário, ele “é necessário ao  
trabalhador, porquanto é independente da forma social de seu trabalho, e é necessário  
ao capital e seu mundo, porquanto a existência contínua do trabalhador forma sua  
base” (MARX, 2017a, p. 293). Portanto, independentemente da forma de sociedade,  
determinado tempo de trabalho deve ser despendido para a reprodução do  
trabalhador. Por outro lado, sob a produção capitalista, tal tempo corresponde ao valor  
que permite a reprodução da mercadoria força de trabalho, pressuposto da produção  
de mais-valor.  
Já no que toca ao tempo de trabalho excedente, Marx (2017a, p. 293) afirma:  
“O que diferencia as várias formações econômicas da sociedade, por exemplo, a  
sociedade da escravatura daquela do trabalho assalariado, é apenas a forma pela qual  
esse mais-trabalho é extraído do produtor imediato, do trabalhador.” Também o tempo  
de trabalho excedente, cujo trabalho é mais-trabalho, é comum a distintas formas de  
sociedade. Varia, porém, o modo pelo qual se extrai do produtor a riqueza criada  
modificável no tempo e no espaço, que dá o valor da capacidade de trabalho (MARX, 2017a, p. 246).  
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durante tal tempo. Sob condições capitalistas, isso se dá na forma do mais-valor, valor  
criado durante o tempo de trabalho que excede o tempo de reprodução da força de  
trabalho, e que se incorpora à mercadoria cuja propriedade é do capitalista.  
O processo de produção do capital, pois, não se confunde com o processo de  
trabalho em geral. Este é abstração de elemento comum a toda forma de sociedade,  
uma vez que, enquanto existir ser humano, será necessário que este se mantenha em  
contato com a natureza e produza objetos úteis para a própria existência. O processo  
de trabalho do capital, porém, possui, além desses traços gerais, traços próprios que  
dão sua diferença específica. Trata-se, nesse caso, não simplesmente de produção de  
valor de uso, mas de valor e de mais-valor. Este se converte na finalidade do próprio  
processo produtivo, e dá, pois, a tônica da produção capitalista.  
A possibilidade da autovalorização do valor se dá a partir de pressuposto  
histórico já referido: a separação entre produtor e meios de produção, com o que se  
tem, de um lado, o indivíduo que nada tem para vender a não ser sua força de trabalho,  
e, de outro, o capitalista, proprietário dos meios de produção, que incorpora o primeiro  
a estes, com o que se tem processo de trabalho produtor de mais-valor. É dentro de  
tal cenário, pois, que se dá a produção sob condições capitalistas, e é, portanto, a  
partir de tais pressupostos que se pode entender o lugar das condições objetivas do  
trabalho em tal sociedade.  
As condições objetivas de trabalho como capital  
O processo de trabalho em geral depende de meios de produção, ou seja, de  
meios de trabalho e de objetos de trabalho. A produção capitalista, pois, tem também  
tais elementos como substratos necessários de sua realização. Porém, como visto, eles  
se encontram na posse de uma figura específica, a do capitalista, distinto do produtor,  
o qual é vendedor da força de trabalho, e que cria valor para o primeiro ao ingressar  
no processo produtivo. Os meios de produção, desse modo, também apresentam  
determinações específicas do modo de produção capitalista, e que não se confundem  
com os elementos comuns a toda forma social. Uma vez que a produção capitalista é  
produção de mais-valor, é também a essa função que se subordinam os meios de  
produção nessas condições. Vejamos como se conformam os meios de produção em  
condições capitalistas, e, com isso, os limites impostos pelo capital à relação entre o  
ser humano e as condições objetivas de seu processo de trabalho, entre os indivíduos  
e os meios e objetos de sua atividade viva.  
Enquanto figuras do capital, os meios de produção compõem o que Marx  
denomina capital constante, selo dentro do qual se abarcam todos os elementos do  
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capital que não criam valor, ou seja, que se distinguem da força de trabalho, a qual  
configura o capital variável. O capital constante se forma, pois, a partir dos meios de  
trabalho e dos objetos de trabalho:  
a parte do capital que se converte em meios de produção, isto é, em  
matérias-primas, matérias auxiliares e meios de trabalho, não altera  
sua grandeza de valor no processo de produção. Por essa razão,  
denomino-a parte constante do capital, ou, mais sucintamente: capital  
constante (MARX, 2017a, p. 286).  
Essa parte do capital não cria valor, mas o transfere. Como os próprios meios  
de produção são produto de trabalho passado, eles também possuem valor, o qual,  
na medida de seu uso no processo de trabalho, é transferido para a mercadoria criada:  
“os valores dos meios de produção consumidos reaparecem como componentes do  
valor dos produtos” (MARX, 2017a, p. 277).  
Os meios de produção são condição do processo de trabalho sob qualquer  
forma de sociedade. Dentro da produção capitalista, no entanto, são elementos do  
capital constante, parte do capital que, incorporada ao processo de trabalho, possui  
valor que é transferido ao produto criado, com o que ela própria perde seu valor de  
uso. Os meios de trabalho, parte do capital constante, constituem o capital fixo (MARX,  
2014, p. 241), caso realizem tal transferência gradativamente. Veremos adiante que a  
técnica, sob o capital, aparece de modo mais desenvolvido na forma da maquinaria  
que compõe a grande indústria.  
Os meios de produção, em qualquer forma social, constituem forças produtivas  
do trabalho, ou seja, estão entre os fatores responsáveis pela determinação do tempo  
gasto para a produção de valores de uso. Marx afirma o seguinte a respeito:  
Essa força produtiva do trabalho é determinada por múltiplas  
circunstâncias, dentre outras pelo grau médio de destreza dos  
trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e de sua  
aplicabilidade tecnológica, a organização social do processo de  
produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições  
naturais. (MARX, 2017a, p. 118)  
Os meios de produção estão entre diversos fatores que configuram as forças  
produtivas do trabalho. Esta noção não se confunde, pois, com o desenvolvimento  
técnico, ainda que o inclua8. Marx, de todo modo, ressalta o caráter fundamental da  
8
Com isso, evidencia-se o equívoco de um autor como Michael Löwy, que fala em termos de “forças  
produtivas capitalistas – ou seja, do aparelho técnico/produtivo capitalista/industrial moderno” (LÖWY,  
2014, pp. 37-8). Mais adequada é a leitura de uma autora como Ester Vaisman, a qual, ao se referir à  
categoria das forças produtivas, diz: “Tal conceito inclui todas as potências humanas de objetivação e  
produção da mundaneidade humana e dos próprios indivíduos. Pertencem a esse complexo categorial  
também as potências intelectuais, o modo da atividade e da colaboração, bem como o desenvolvimento  
científico.” (VAISMAN, 2010, pp. 80-1) De todo modo, não aprofundaremos a questão. Interessa-nos,  
justamente, o fator técnico, o qual, porém, não exaure a categoria das forças produtivas.  
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técnica nesse ponto: “A tecnologia desvela a atitude ativa do homem em relação à  
natureza, o processo imediato de produção de sua vida e, com isso, também de suas  
condições sociais de vida e das concepções espirituais que delas decorrem.” (MARX,  
2017a, p. 446)  
A força produtiva do trabalho remete ao trabalho útil e é produtora de valores  
de uso, com o que é comum a toda forma de sociedade. Quanto mais desenvolvida  
for, menos tempo se gasta na produção, e vice-versa. Uma vez que em toda forma  
social se produz, sempre se requerem meios e objetos de trabalho, e o volume e  
eficácia destes é fator de influência do grau de produtividade do trabalho. Assim coloca  
o autor:  
Naturalmente, a força produtiva é sempre a força produtiva de  
trabalho útil, concreto, e determina, na verdade, apenas o grau de  
eficácia de uma atividade produtiva adequada a um fim, num dado  
período de tempo. O trabalho útil se torna, desse modo, uma fonte  
mais rica ou mais pobre de produtos em proporção direta com o  
aumento ou a queda de sua força produtiva. (MARX, 2017a, p. 123)  
O que os meios de produção garantem, portanto, é determinado grau de  
eficácia do trabalho útil, e, assim, determinada quantidade de valores de uso. Sob o  
capital, a produtividade do trabalho concreto se subordina à produção de mais-valor.  
Os meios de produção são parte do capital, e sua produtividade determina a  
quantidade de valor transferida ao produto final. Ainda que digam respeito às forças  
produtivas, os meios de produção são parte do capital, voltado primariamente não  
para a produção de valores de uso, mas para a autovalorização do valor.  
A subordinação do valor de uso ao valor tem consequências no que toca à  
relação do trabalhador com os meios de produção. No que diz respeito ao processo  
de trabalho em geral, o autor afirma o seguinte:  
Observando-se o processo de produção do ponto de vista do  
processo de trabalho, o trabalhador se relaciona com os meios de  
produção não como capital, mas como mero meio e material de sua  
atividade produtiva orientada para um fim. Num curtume, por  
exemplo, ele trata as peles como seu mero objeto de trabalho. Não é  
para o capitalista que ele curte a pele. (MARX, 2017a, p. 382)  
A relação do produtor com os meios e objetos de trabalho consiste  
simplesmente, de seu ponto de vista, em sua relação como instrumentos de sua  
atividade na produção de valores de uso. Guiado por determinado fim, o trabalhador  
intervém na natureza e a modifica de modo a produzir algo de utilidade para si, sem  
necessidade de responder a uma figura distinta dele que o emprega. De modo diverso,  
“do ponto de vista do processo de valorização” (MARX, 2017a, p. 382):  
Os meios de produção convertem-se imediatamente em meios para a  
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Forças sociais de produção como forças do capital  
sucção de trabalho alheio. Não é mais o trabalhador que emprega os  
meios de produção, mas os meios de produção que empregam o  
trabalhador. Em vez de serem consumidos por ele como elementos  
materiais de sua atividade produtiva, são eles que o consomem como  
fermento de seu próprio processo vital, e o processo vital do capital  
não é mais do que seu movimento como valor que valoriza a si mesmo.  
(MARX, 2017a, p. 382)  
A relação se inverte. Os meios de produção não são meios do trabalhador, mas  
meios do capital, o qual, como visto, incorpora a si o próprio trabalhador: “não é o  
trabalhador que utiliza os meios de produção, mas os meios de produção que utilizam  
o trabalhador” (MARX, 2022, p. 59). Uma vez que o norte do processo produtivo é o  
mais-valor, trata-se de submeter a tal objetivo o trabalho, o qual, com a criação  
mercantil, engendra novo valor, que se cristaliza na mercadoria produzida, e, com isso,  
compõe o capital. Este submete o trabalho vivo ao trabalho morto, consome a  
atividade vital do trabalho como meio de sua própria conservação e valorização: “Não  
é o trabalho vivo que se realiza no trabalho objetivado como seu órgão objetivo, mas  
é o trabalho objetivado que é mantido e aumentado pela absorção de trabalho vivo.”  
(MARX, 2022, p. 59) O valor incorporado ao capital se torna o sentido da produção,  
e o trabalho realizado pelo trabalhador é mero instrumento desse processo, é meio de  
incorporar trabalho vivo ao morto. Aquele se submete a este, em vez de tomá-lo como  
seu resultado e como instrumento de satisfação de necessidades dos próprios  
produtores.  
Desse modo, os meios de produção se defrontam com o trabalhador não como  
meios de realização de sua atividade vital, mas como capital, como instrumentos de  
valorização do valor. As forças produtivas do trabalho se tornam, desse modo, forças  
produtivas do capital, independentes do trabalhador e a ele opostas. Nesse sentido,  
afirma Marx:  
O valor, o trabalho objetivado, obtém essa relação com o trabalho  
vivo somente na medida em que a capacidade de trabalho como tal  
se opõe a ele, isto é, na medida em que as condições objetivas do  
trabalho [...] se opõem a ele em autonomia separada, sob o controle  
de uma vontade estranha [fremden Willens]. (MARX, 2010, p. 110)  
O capital é, pois, relação em que se produz valor cristalizado, morto, acumulado,  
que subordina a si trabalho vivo em vistas de sua autovalorização. Nesse cenário, os  
meios de produção, as condições objetivas do processo de trabalho, comuns a toda  
forma social, aparecem diante do trabalhador como forças do capital, como uma  
vontade estranha à sua, autônoma e que faz frente ao trabalhador. Diz Marx (2022, p.  
59) que o que é, do lado do capital, “autovalorização”, é “empobrecimento do  
trabalhador, que, ao criar valor, o cria como valor que lhe é estranho [fremden]”.  
Como trabalho morto que subordina o vivo, tal relação aparece mesmo como  
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resumo da dominação de classe na sociedade capitalista9: “o domínio dos capitalistas  
sobre os trabalhadores é apenas o domínio das condições de trabalho que se tornaram  
autônomas ante o trabalhador” (MARX, 2022, p. 60). Nesse ponto, Marx fala não só  
das condições objetivas de trabalho, ou seja, dos meios de produção, mas também  
das condições de manutenção da força de trabalho, ou seja, dos meios de subsistência  
do trabalhador, que são mercadorias. Ambas são forças independentes do produtor e  
que o subordinam a si próprias.  
Portanto, a diferença específica do processo de produção do capital, em relação  
ao processo de trabalho em geral, ou seja, a autovalorização do valor como finalidade  
imediata da produção, torna os meios de produção, enquanto componentes do capital,  
do valor acumulado, forças estranhas, as quais aparecem diante dos indivíduos como  
um mecanismo autônomo diante deles, e que os submete à necessidade de  
constantemente se autovalorizar. Os meios de produção, por si sós, nada trazem de  
libertador. Sob condições capitalistas, eles, pelo contrário, agrilhoam os indivíduos ao  
imperativo da produção de mais-valor. A emancipação em relação a tal cenário passa  
pelo desmantelamento da relação capital, pois, dentro dos limites desta, a riqueza e o  
trabalho seguem como vontade independente, como vontade do capital, diante dos  
produtores.  
Capital e desenvolvimento das forças produtivas  
Uma vez que os meios de produção se subordinam à produção de mais-valor,  
suas potências aparecem não como as forças produtivas do trabalho, mas do próprio  
capital. Contudo, ainda que o capital constante seja incapaz de criar valor, há outro  
modo através do qual ele contribui para a extração de mais-valor: o desenvolvimento  
das forças produtivas. Tal caminho nos mostrará os progressos, bem como os limites  
trazidos pelo desenvolvimento da técnica, ou seja, dos meios de trabalho, dentro dos  
limites da produção capitalista.  
Como já visto, os meios de produção estão entre os fatores que desenvolvem  
9 O presente trabalho não poderá aprofundar o tópico da dominação classista sob o capitalismo, o que  
excederia seu objeto. Cabe notar que o Capítulo VI (inédito) possui, nesse ponto, reflexão que ecoa a  
obra A sagrada família, da década de 1840. No primeiro, lê-se: [...] o trabalhador está desde o início  
em posição superior à do capitalista, pois este está enraizado nesse processo de estranhamento  
[Entfremdungsproceß] e encontra nele sua satisfação absoluta, enquanto o trabalhador, como sua vítima,  
está em uma relação de rebeldia desde o início e sente isso como um processo de servidão.” (MARX,  
2022, p. 61) Na primeira obra escrita em coautoria com Engels, por sua vez: “A classe possuinte e a  
classe do proletariado representam a mesma autoalienação [Selbstentfremdung] humana. Mas a primeira  
das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e  
nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa  
alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana.” (MARX; ENGELS,  
2011, p. 48)  
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a produtividade do trabalho (ainda que não sejam os únicos), seja na forma do  
desenvolvimento tecnológico, seja na da eficácia dos meios de produção. Tais  
elementos servem, segundo Marx, como fatores de desenvolvimento da produtividade  
do trabalho e, enquanto tais, como forças que permitem aumentar o mais-valor.  
Vejamos como isso se dá.  
O valor de uma mercadoria se determina pelo tempo de trabalho requerido para  
sua produção. O desenvolvimento das forças produtivas, porém, faz com que se reduza  
o tempo de trabalho despendido para a produção de cada valor de uso. Desse modo,  
torna-se possível produzir mais mercadorias em tempo igual ou menor a antes de dado  
desenvolvimento da produtividade do trabalho. Por conseguinte, reduz-se o valor de  
cada mercadoria (MARX, 2017a, p. 118). A consequência disso para a produção de  
mais-valor é a seguinte: caso se tornem mais baratos os produtos que o trabalhador  
consome para a própria manutenção, este requer menos do capitalista em troca de  
sua força de trabalho. Com isso, diminui-se o valor da capacidade de trabalho.  
Já se explicitou que a jornada de trabalho se divide em tempo de trabalho  
necessário e tempo de trabalho excedente. O primeiro remete ao tempo durante o  
qual o valor produzido meramente repõe o valor da força de trabalho, e, assim, retorna  
ao trabalhador na forma do salário. Contudo, se o valor da capacidade de trabalho é  
reduzido, também o é o tempo de trabalho necessário. Evidentemente, isso não implica  
redução da jornada de trabalho, mas extensão do tempo de trabalho excedente,  
durante o qual se produz mais-valor, à parcela de tempo anteriormente ocupada pelo  
tempo de trabalho necessário. Com isso, produz-se mais-valor, produção essa  
denominada por Marx (2017a, p. 390) mais-valor relativo.  
Em contraposição ao aumento da extração de mais-valor pelo prolongamento  
da jornada de trabalho, o mais-valor absoluto, o mais-valor relativo nasce da extensão  
do tempo de trabalho excedente não por modificação do tempo total da jornada, mas  
por redução do tempo de trabalho necessário, intervalo que se preenche por tempo  
de trabalho não pago.  
A extração de mais-valor relativo se dá, pois, por meio de desenvolvimento das  
forças produtivas, que permitem a redução do valor das mercadorias que determinam  
o valor da força de trabalho (adiante, ver-se-á também o papel da intensificação do  
trabalho nesse ponto). O mais-valor, como visto, é a finalidade da produção capitalista,  
a qual subordina a produção de valores de uso ao imperativo da acumulação de capital.  
Se as forças produtivas se tornam fator capaz de aumentar a extração de mais-valor,  
há incentivo, por parte da classe capitalista, ao desenvolvimento dessas forças.  
No âmbito da empresa individual, o aumento da produtividade tem por  
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resultado que “o trabalho excepcionalmente produtivo atua como trabalho potenciado  
ou cria, no mesmo tempo, valores maiores do que o trabalho social médio de mesmo  
tipo” (MARX, 2017a, p. 393). Tal consequência permite o aumento, ainda que  
provisório, da extração de mais-valor pelo capitalista individual. É temporário porque,  
dada a concorrência entre os capitais, os demais, na busca pela maximização de seus  
ganhos, levam também a cabo aperfeiçoamentos nas forças produtivas, até que o  
tempo de trabalho necessário para a produção mercantil no setor se nivele novamente.  
Em suma, o capital individual tem por incentivo o desenvolvimento de sua capacidade  
produtiva porque pode disso extrair mais-valor além da média, no que a livre  
concorrência facilita com que tal progresso se difunda. O mais-valor relativo é, pois, o  
motor que faz com que o capital desenvolva a produtividade do trabalho:  
O desenvolvimento da força produtiva do trabalho no interior da  
produção capitalista visa encurtar a parte da jornada de trabalho que  
o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo precisamente para  
prolongar a parte da jornada de trabalho durante a qual ele pode  
trabalhar gratuitamente para o capitalista. (MARX, 2017a, pp. 395-6)  
O capital é, portanto, relação caracterizada pelo constante revolucionamento  
das forças produtivas, e isso em decorrência da caracterização geral de seu processo  
produtivo como processo criador de mais-valor10. É este que coloca como exigência o  
desenvolvimento das forças produtivas, uma vez que estas possibilitam o  
barateamento da força de trabalho e o aumento da parte da jornada de trabalho em  
que o trabalhador produz somente para o capitalista, sem ressarcimento.  
Não por acaso, ao tratar da maquinaria e da grande indústria, Marx afirma: “A  
indústria moderna jamais considera nem trata como definitiva a forma existente de um  
processo de produção. Sua base técnica é, por isso, revolucionária, ao passo que a de  
todos os modos de produção anteriores era essencialmente conservadora.” (MARX,  
2017a, p. 557) Esse revolucionamento constante da produção não seria possível sem  
a extração de mais-valor, na figura do mais-valor relativo, como mola propulsora. No  
entanto, a leitura da passagem marxiana citada mostra que há especificidades da  
indústria moderna e de seu maquinário de que a mera remissão ao mais-valor relativo  
não dá conta. Vejamos quais, bem como os progressos e limites presentes.  
A maquinaria se caracteriza, primariamente, por realizar, em maior quantidade  
e com mais eficiência, o que antes era feito pela ferramenta, o que se dá porque a  
máquina depende de uma força motriz que coloca todo o mecanismo em movimento.  
10  
Nesse sentido, lembra-nos Rosdolsky: “O que distingue radicalmente a produção capitalista em  
relação a todos os modos de produção anteriores é seu caráter universal, seu impulso em relação a  
uma permanente revolução das forças produtivas materiais.” (ROSDOLSKY, 2001, p. 352)  
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Essa força sequer precisa ser humana (MARX, 2017a, p. 450), e aos trabalhadores  
resta a divisão do trabalho em torno da máquina, a qual subordina o trabalhador  
parcial a seu funcionamento:  
A figura autonomizada e estranhada [entfremdete] que o modo de  
produção capitalista em geral confere às condições de trabalho e ao  
produto do trabalho, em contraposição ao trabalhador, desenvolve-se  
com a maquinaria até converter-se numa antítese completa. (MARX,  
2017a, p. 504)  
A relação entre trabalhador e condições objetivas de trabalho aparece, em sua  
forma estranhada, de maneira mais desenvolvida com a maquinaria. O grau maior de  
autonomia desta diante da intervenção humana, aliada, evidentemente, à subordinação  
à extração de mais-valor, faz com que o trabalhador não se veja diante da própria  
capacidade produtiva, mas do poder produtivo do capital. Nesse sentido, um traço  
próprio da maquinaria, o qual, em princípio, independe da forma social em que ela é  
utilizada, conjuga-se com característica própria da produção capitalista para  
engendrar, em seu grau máximo, a subordinação do trabalhador às suas próprias  
condições de trabalho. De um lado, a necessidade de menor atuação humana e, de  
outro, a necessidade de extração de mais-valor. Com isso, gera-se uma divisão do  
trabalho em que o produtor produz de maneira subordinada ao capital.  
Como visto, o desenvolvimento das forças produtivas, sob o capital, dá-se de  
maneira subordinada a seu imperativo, o de extração de mais-valor. Nesse sentido,  
independentemente dos avanços na produtividade industrial, isso se dá de modo  
subordinado à autovalorização do valor, o que quer dizer que, quer se queira, quer  
não, as condições objetivas de trabalho aparecem não como forças produtivas dos  
indivíduos, mas do capital, e, desse modo, a técnica aparece como força do capital.  
Marx vê com bons olhos o desenvolvimento das forças produtivas humanas, e,  
nesse sentido, a maquinaria e a grande indústria exercem papel progressista, ainda  
que dentro de limites capitalistas. O autor afirma: “o capital aqui – de forma  
inteiramente involuntária reduz o trabalho humano, o dispêndio de energia, a um  
mínimo. Isso beneficiará o trabalho emancipado e é a condição de sua emancipação  
[Emanzipation]” (MARX, 2011, p. 585). A redução do tempo de trabalho necessário é  
condição para a emancipação do trabalho. O capital, na ânsia de extrair mais-valor,  
promove o desenvolvimento das forças produtivas e, com isso, reduz o tempo de  
trabalho necessário para estender o tempo de trabalho excedente. Dessa maneira,  
cumpre involuntariamente tarefa emancipatória, ainda que não a conclua.  
O pensador diz o seguinte sobre a redução do tempo de trabalho necessário  
em relação com a emancipação da sociedade:  
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[Dá-se] o livre desenvolvimento das individualidades e, em  
consequência, a redução do tempo de trabalho necessário não para  
pôr trabalho excedente, mas para a redução do trabalho necessário  
da sociedade como um todo a um mínimo, que corresponde então à  
formação artística, científica etc. dos indivíduos por meio do tempo  
liberado e dos meios criados para todos eles11. (MARX, 2011, p. 588)  
A redução do tempo de trabalho necessário, a qual só é possível com o  
desenvolvimento das forças produtivas, é condição para aumento do tempo livre, e,  
com isso, pressuposto do desenvolvimento individual para além do exigido pelo  
processo produtivo. Quanto mais libertos das exigências do trabalho, mais pode cada  
sujeito se dedicar ao próprio cultivo12. Ainda, em uma sociedade em que os meios de  
produção não se subordinam à extração de mais-valor, e, assim, não aparecem como  
potências estranhas diante dos trabalhadores, esses meios podem novamente se  
tornar instrumentos dos próprios produtores, subordinados, a partir de então, não ao  
capital, mas à autorrealização dos indivíduos em suas relações recíprocas13.  
11  
Na Crítica do Programa de Gotha, Marx, em famosa passagem, relaciona o desenvolvimento da  
sociedade comunista ao desenvolvimento individual, não mais preso à oposição entre trabalho  
intelectual e manual, e em que se desenvolve o trabalho cooperativo e a riqueza social, não mais oposta  
aos indivíduos: “Em uma fase mais elevada da sociedade comunista, depois que a subordinação  
escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, consequentemente, a oposição entre trabalho  
intelectual e manual tiverem desaparecido; depois que o trabalho tiver deixado de ser apenas um meio  
de vida, mas se tornado a primeira necessidade vital; depois que, com o desenvolvimento integral dos  
indivíduos, também tiverem aumentado suas forças produtivas, e todas as fontes de riqueza cooperativa  
fluírem mais plenamente só então o horizonte estreito do direito burguês poderá ser totalmente  
ultrapassado e a sociedade [poderá] escrever em sua bandeira: De cada um segundo suas capacidades,  
a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, s/d, tradução nossa, com auxílio da ferramenta DeepL)  
(Original: “In einer höheren Phase der kommunistischen Gesellschaft, nachdem die knechtende  
Unterordnung der Individuen unter die Teilung der Arbeit, damit auch der Gegensatz geistiger und  
körperlicher Arbeit verschwunden ist; nachdem die Arbeit nicht nur Mittel zum Leben, sondern selbst  
das erste Lebensbedürfnis geworden; nachdem mit der allseitigen Entwicklung der Individuen auch ihre  
Produktivkräfte gewachsen und alle Springquellen des genossenschaftlichen Reichtums voller fließen –  
erst dann kann der enge bürgerliche Rechtshorizont ganz überschritten werden und die Gesellschaft auf  
ihre Fahne schreiben: Jeder nach seinen Fähigkeiten, jedem nach seinen Bedürfnissen!”). Já no Manifesto  
do partido comunista (2017), Marx e Engels associavam o advento do comunismo ao fim da oposição  
entre desenvolvimento social e individual, no qual o primeiro somente ocorre com base no segundo:  
“No lugar da velha sociedade burguesa [bürgerlichen Gesellschaft] e seus antagonismos de classes surge  
uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento  
de todos.” (MARX; ENGELS, 2017, p. 85)  
12 Acerca da relação entre desenvolvimento das forças produtivas e tempo livre, afirma Rosdolsky: “No  
aspecto quantitativo do trabalho se manifestará em uma redução fundamental do tempo de trabalho e  
na consequente criação e ampliação do tempo livre. Pois, embora tampouco a sociedade socialista  
possa renunciar ao ‘mais-trabalho’, ela estará em condições de reduzir ao mínimo a quantidade de  
trabalho que caberá a cada um dos seus membros, graças ao pleno desenvolvimento das forças  
produtivas.” (ROSDOLSKY, 2001, p. 358) Na mesma linha, lê-se em Mandel: “o desenvolvimento do  
supertrabalho implica também, ao menos no modo de produção capitalista, um enorme  
desenvolvimento das forças produtivas – e eis a sua ‘missão civilizadora’ indispensável É somente nessa  
base que uma sociedade coletiva poderá reduzir ao mínimo a jornada de trabalho simplesmente, sem  
dever ao mesmo tempo recalcar ou mutilar o desenvolvimento universal das possibilidades de cada  
indivíduo” (MANDEL, 1968, p. 110). O tema remete a ponto que não se poderá aprofundar no presente  
trabalho: a assim chamada “centralidade do trabalho”. Nesse sentido, cf. Postone (2014). Para uma  
crítica a Postone, cf. Sartori (2018).  
13 Lukács trata do tema, e, sobre o desenvolvimento comunista da sociedade, afirma: “o comunismo [...]  
é o início real da explicitação das energias autenticamente humanas que o desenvolvimento ocorrido  
até hoje suscitou, reproduziu, elevou contraditoriamente a níveis superiores, enquanto importantes  
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Não só a criação de tempo livre permite o cultivo da individualidade. O impulso  
por aumento de produtividade, ligado, no capital, à produção de mais-valor relativo, é  
responsável também pela criação de novas necessidades, as quais se tornariam  
possíveis de desenvolver:  
como aspiração incansável pela forma universal da riqueza, o capital  
impele o trabalho para além dos limites de sua necessidade natural e  
cria assim os elementos materiais para o desenvolvimento da rica  
individualidade, que é tão universal em sua produção quanto em seu  
consumo, e cujo trabalho, em virtude disso, também não aparece mais  
como trabalho, mas como desenvolvimento pleno da própria  
atividade, na qual desapareceu a necessidade natural em sua forma  
imediata (MARX, 2011, p. 256).  
A revolução constante dos meios de produção, e o consequente aumento da  
produtividade e da massa da produção humana, traz consigo o desenvolvimento de  
necessidades humanas para bem além das necessidades naturais, estas entendidas  
enquanto as meramente requeridas para a reprodução do ser humano enquanto ser  
vivo. Por evidente, estas seguem como pressupostos da atividade humana, uma vez  
que os indivíduos precisam, em relação à natureza, como afirma o Marx de 1844, “ficar  
num processo contínuo para não morrer” (MARX, 2004, p. 84). De todo modo, a partir  
das necessidades naturais surgem novas necessidades, as quais são produto do  
desenvolvimento da produção humana e de sua intervenção sobre a natureza. O que  
ocorre, sob o capital, é que, com o progresso constante das forças produtivas, geram-  
se, continuamente e em maior escala, o desenvolvimento também das necessidades.  
Não é por acaso que, ao tratar da mercadoria no primeiro capítulo de O capital, o  
pensador afirma que as necessidades ligadas ao valor de uso “provêm do estômago  
ou da imaginação [Phantasie]” (MARX, 2017a, p. 113). Para além da necessidade  
natural, o impulso por extração de mais-valor relativo e o desenvolvimento das forças  
produtivas traz consigo a ampliação da produção humana, e, com ela, das  
necessidades que se expandem para além da mera garantia de subsistência. Com isso,  
abre caminho para o desenvolvimento da individualidade humana, cultivada a partir  
da criação e satisfação contínua dessas novas necessidades14.  
Contudo, o autor afirma, no Capítulo VI (inédito), em referência ao domínio do  
trabalho morto sobre o vivo, próprio das relações capitalistas, o seguinte:  
conquistas da humanização” (LUKÁCS, 2009, p. 240). Um dos pressupostos, ainda que não o único, de  
tal desenvolvimento, é, como intentamos mostrar: “uma tendência constante de diminuir o tempo de  
trabalho socialmente necessário à reprodução dos homens” (LUKÁCS, 2009, p. 238).  
14 Nesse sentido, diz Rosdolsky: “Assim, graças ao desenvolvimento do capitalismo, prepara-se inclusive  
a solução do problema da personalidade humana e de sua liberdade, colocado pela história. Desse  
ponto de vista, nunca se poderá enfatizar suficientemente a conquista histórica do capitalismo, que  
tantas vezes Marx destaca claramente.” (ROSDOLSKY, 2001, p. 353)  
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essa inversão aparece como o ponto de transição necessário15 para  
promover coercitivamente, à custa da maioria, a criação da riqueza  
como tal, isto é, o desenvolvimento implacável das forças produtivas  
do trabalho social, as únicas que podem constituir a base material de  
uma sociedade humana livre (MARX, 2022, pp. 60-1).  
Pouco depois, arremata: “É o processo de estranhamento [Entremdungsproceß]  
de seu próprio trabalho” (MARX, 2022, p. 61). O desenvolvimento das forças  
produtivas é afirmado, por um lado, como progresso, base de uma sociedade  
emancipada, por outro, sob condições capitalistas, como um processo estranhado, em  
que sua dimensão progressista se desenvolve à custa dos indivíduos, que se submetem  
às condições de seu próprio trabalho.  
Sob condições capitalistas, desse modo, o desenvolvimento das forças  
produtivas não traz o desenvolvimento do indivíduo. No que diz respeito à redução  
do tempo de trabalho necessário não é acompanhada do aumento do tempo livre, uma  
vez que é necessário que exista tempo de trabalho excedente para a extração de mais-  
valor. Não só isso, como a maquinaria exige o prolongamento da jornada de trabalho.  
Uma vez que exige o emprego de menos trabalhadores, mas com aumento de  
produtividade, a maquinaria faz com que a massa de mais-valor extraída pelo capital  
diminua, pois, como vimos, só o trabalho humano cria valor. O modo de compensar a  
perda de trabalho vivo, na forma de trabalhadores dispensados, é aumentar a jornada  
de trabalho dos que restaram;  
Na aplicação da maquinaria à produção de mais-valor reside, portanto,  
uma contradição imanente, já que dos dois fatores que compõem o  
mais-valor fornecido por um capital de dada grandeza, um deles, a  
taxa de mais-valor, aumenta somente na medida em que reduz o outro  
fator, o número de trabalhadores. (MARX, 2017a, p. 480)  
Com a redução da quantidade de trabalhadores requeridos para a produção,  
dado número deles é dispensado. Contudo, se a máquina substitui trabalho, não há,  
como antes havia, produção de valor, mas somente transferência. Reduz-se, pois, a  
quantidade de mais-valor produzido. Deve-se, pois, para compensar essa perda,  
aumentar a jornada de trabalho dos trabalhadores remanescentes, para que produzam  
o mais-valor antes produzido por outros trabalhadores. Desse modo, a massa de mais-  
valor é resguardada, e o mais-valor relativo se torna meio de extração de mais-valor  
absoluto.  
Porém, a partir de determinado ponto do desenvolvimento histórico do capital,  
limites legais, conquistados pelos trabalhadores, são impostos à duração da jornada  
15  
O adjetivo “necessário” [notwendig] pode passar a impressão de uma visão etapista do processo  
histórico, comumente associada a Marx, em especial em virtude de certa leitura stalinista de sua obra.  
Porém, não adentraremos tal tópico, denso por si só. Acerca da questão, cf. Heleno (2019).  
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de trabalho, a qual não pode ser prolongada indefinidamente. Surge, então, novo meio  
de aumentar a extração de mais-valor: a intensificação do trabalho, descrita nos  
seguintes termos:  
Diferente, porém, é o que ocorre quando a redução forçada da jornada  
de trabalho, juntamente com o enorme impulso que ela imprime no  
desenvolvimento da força produtiva e à redução de gastos com as  
condições de produção, impõe, no mesmo período de tempo, um  
dispêndio aumentado de trabalho, uma tensão maior da força de  
trabalho, um preenchimento mais denso dos poros do tempo de  
trabalho, isto é, impõe ao trabalhador uma condensação do trabalho  
num grau que só pode ser atingido com uma jornada de trabalho mais  
curta. Essa compressão de uma massa maior de trabalho num dado  
período de tempo mostra-se, agora, como ela é: uma quantidade  
maior de trabalho. (MARX, 2017a, p. 482)  
A extração intensiva de mais-valor, em contraposição à extensiva, dá-se com a  
maior condensação do trabalho dentro dos limites da jornada de trabalho  
regulamentada. Esse preenchimento dos “poros” do período de trabalho é aumento  
da quantidade de trabalho, e, assim, aumento da extração de mais-valor, ainda  
considerado, pois, dentro dos limites do mais-valor relativo.  
Quanto ao desenvolvimento das necessidades, deve-se reiterar que a relação  
do trabalhador com suas condições de produção é uma relação estranhada,  
consequência, justamente, do que dá a diferença específica de tal modo de produção:  
a valorização do valor como sua mola propulsora. O trabalhador se encontra diante de  
suas condições objetivas de trabalho como algo independente dele e que o subordina.  
Desse modo, seu processo de trabalho não lhe aparece como a satisfação de suas  
necessidades, mas como mero momento do movimento do valor, que lhe defronta  
como algo autônomo, e que é, diferentemente das necessidades individuais, a  
verdadeira finalidade do processo produtivo. Desse modo, ainda que crie as condições  
para o cultivo da individualidade, os próprios traços distintivos do capital, a ele  
inerentes, impedem esse desenvolvimento.  
O tema ganha novos contornos no Livro III de O capital. Como anunciado no  
início da obra, o texto discorre sobre “as formas concretas que brotam do processo de  
movimento do capital considerado como um todo”, de modo a se aproximar “passo a  
passo da forma em que se apresentam na superfície da sociedade” (MARX, 2017b, p.  
53). O maior grau de concretude da exposição traz novas determinações que se devem  
considerar no que toca à relação entre os indivíduos e suas condições objetivas de  
trabalho.  
Até então, a acumulação do capital é tomada em termos de mais-valor. A partir  
do Livro III, adentra-se terreno mais próximo “do senso comum dos próprios agentes  
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da produção”16 (MARX, 2017b, p. 53). Ao capitalista que coloca seu capital em  
funcionamento importa não o mais-valor, mas o lucro, ou melhor, a ele aparece o lucro  
e se apaga sua gênese, o mais-valor.  
Ao ingressar no processo produtivo, o capitalista adianta determinada  
quantidade de dinheiro, que se converte em, de um lado, meios de produção, e, de  
outro, força de trabalho. Esse é, para ele, o preço de custo de seu empreendimento,  
do qual, como visto, retira, por meio da atuação do trabalho vivo, mais-valor.  
Porém, o que importa ao capitalista é somente a diferença entre o valor  
excedente adquirido e o valor adiantado. O mais-valor “parece derivar de iguais  
proporções de seus distintos elementos de valor, que consistem em meios de  
produção e trabalho” (MARX, 2017b, p. 60). Desse modo, do ponto de vista do  
capitalista, enquanto agente da produção, apaga-se o fato de que o novo valor criado  
surge somente da fruição do capital variável. Seu lucro parece brotar de seu capital  
como um todo, independentemente da distinção entre capital constante e variável:  
“Agora está claro para o capitalista que esse crescimento de valor tem origem nos  
empreendimentos produtivos realizados com o capital, ou seja, que ele deriva do  
próprio capital, pois depois do processo de produção ele existe e antes não existia.”  
(MARX, 2017b, p. 60)  
Forma-se, desse modo, uma taxa de lucro, dada pela relação entre a quantidade  
de mais-valor produzido e o capital total investido. Ao capitalista importa essa razão  
porque seu negócio envolve o adiantamento de certa quantidade de dinheiro e a  
retirada de mais dinheiro ao fim. É necessário que ele saiba, portanto, quanto ganha  
e quanta gasta, ou melhor, quanto investimento se requer para gerar dado lucro.  
Interessa-lhe, pois, a relação entre valor excedente adquirido e capital total adiantado,  
independentemente da composição deste.  
Não importam aqui os meandros da reflexão marxiana sobre a taxa de lucro17.  
A apresentação bastante esquemática das referidas categorias do Livro III de O capital  
acima feita foi somente na medida do necessário para tratar do tema do presente  
trabalho, a subordinação do trabalhador às suas condições objetivas de trabalho, que  
se lhe defrontam não como forças suas, mas forças do próprio capital.  
Como visto, o desenvolvimento da grande indústria traz consigo a dispensa de  
16 Sobre o aparecimento do capital na superfície da sociedade e as formas de consciência dos agentes  
da produção que daí brotam, cf. Grespan (2019). O tópico não poderá ser aprofundado no presente  
trabalho, o qual requer, porém, remissão ao Livro III d’O capital, e por isso precisa se referir a tal assunto.  
17  
No Livro III de O capital (2017b), a taxa de lucro se forma como taxa geral de lucro, em que os  
distintos capitais individuais, por meio da concorrência, se distribuem nos diferentes ramos produtivos.  
Formam-se preços de produção das mercadorias, que não se confundem com seus valores, e que  
representam a distribuição do mais-valor nelas contido.  
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trabalho vivo, que exige, para que não se reduza o mais-valor, o prolongamento da  
jornada de trabalho ou sua intensificação. No entanto, dada a necessidade do  
capitalista de se voltar à taxa de lucro, outro fator entra em questão: a economia no  
emprego do capital constante (MARX, 2017b, p. 105).  
Se, ao se tratar do lucro, se leva em consideração todo o capital adiantado, e  
se a taxa de lucro é a razão entre a massa de mais valor e o capital total, torna-se  
evidente que um meio de aumentar tal taxa é reduzir os gastos com o capital constante.  
Assim diz Marx (2017b, p. 108): “Tendo sido dado o mais-valor, a taxa de lucro só  
pode ser aumentada mediante a redução do valor do capital constante requerido para  
a produção de mercadorias.”  
A questão apresenta, porém, dupla dimensão. Por um lado, a economia no  
emprego dos meios de produção é algo tornado possível pelo fato de que a produção  
capitalista é produção em larga escala, em que as condições de produção “funcionam  
como condições do trabalho social, socialmente combinado, ou seja, como condições  
sociais do trabalho” (MARX, 2017b, p. 107). Os meios de produção são consumidos  
coletivamente, por trabalhadores aglutinados, não fragmentados, “pelo trabalhador  
coletivo [Gesamtarbeiter]” (MARX, 2017b, p. 107). Há, pois, componentes do capital  
constante que, em virtude de tais condições de produção, não se desgastam com a  
mesma frequência que outros. Marx (2017b, p. 107) dá os seguintes exemplos:  
Numa grande fábrica, com um ou dois motores centrais, os custos  
desses motores não aumentam na mesma proporção de seus cavalos  
-vapor e, por conseguinte, de sua esfera possível de atuação; os  
custos da maquinaria de transferência não aumentam na mesma  
proporção da massa das máquinas de trabalho às quais elas  
transmitem o movimento; o tronco da própria máquina de trabalho  
não se encarece na mesma proporção do número crescente das  
ferramentas com as quais ela funciona como com seus órgãos etc. A  
concentração dos meios de produção economiza construções  
subsequentes de todo tipo, não apenas para os ateliês propriamente  
ditos, mas também para os locais de armazenamento etc. O mesmo  
ocorre com os gastos relacionados a queima de combustíveis,  
iluminação etc. As outras condições de produção permanecem as  
mesmas, independentemente de serem utilizadas por poucos ou por  
muitos.  
Tal tipo de economia é, portanto, possibilitada pelo caráter social, não isolado,  
da produção, em que a riqueza é criada pelos trabalhadores reunidos. A produção  
social possibilita o menor desgaste dos meios de produção consumidos.  
Por outro lado, como adiantado, essa economia é, ao mesmo tempo, exigida  
para o aumento da taxa de lucro. O próprio caráter social da produção, nesse sentido,  
gera ganhos ao capitalista, pois:  
o desenvolvimento da força produtiva do trabalho em um ramo de  
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produção por exemplo, na produção de ferro, carvão, máquinas, na  
construção etc., desenvolvimento que, em parte, pode estar vinculado  
aos progressos no terreno da produção espiritual, especialmente da  
ciência da natureza e sua aplicação aparece como condição do  
decréscimo do valor e, com isso, dos custos dos meios de produção  
em outros ramos industriais, como a indústria têxtil ou a agricultura  
(MARX, 2017b, p. 109).  
O trabalho social desenvolve forças produtivas. Com isso, reduz o valor de  
mercadorias que, em outros ramos da indústria, serão consumidas como capital  
constante. Com essa redução, aumenta a taxa de lucro de tais ramos. Nesse ponto, o  
que ocorre é que “o capitalista utiliza aqui [...] as vantagens do sistema inteiro da  
divisão social do trabalho” (MARX, 2017b, p. 110).  
No entanto, o capitalista pode se esforçar, ainda, para economizar seu próprio  
capital constante. Para tanto, pode-se valer de meios variados, como a concentração  
de seus trabalhadores em um mesmo edifício, a exigência de maior disciplina e menos  
desperdício por parte dos trabalhadores, a garantia de piores condições de trabalho  
para os empregados, entre outros.  
Nesse ponto, “a economia do capital constante aparece como condição  
inteiramente estranha [gänzlich fremde] ao trabalhador, que não lhe diz respeito em  
absoluto e com a qual o trabalhador não guarda nenhuma relação” (MARX, 2017b, p.  
112, modificações nossas). Ao trabalhador não diz respeito sua aglutinação com  
outros em um mesmo prédio ou que lhe exijam maior disciplina ao trabalhar. Tais  
demandas vêm por parte do capitalista, que delas necessita para aumentar a taxa de  
lucro. Por si sós, elas não guardam relação com o desenvolvimento do trabalho social,  
e nada possuem, pois, de emancipadoras, pois que presas às exigências do modo de  
produção capitalista. Com efeito, diz Marx sobre a disciplina do trabalho (2017b, p.  
111), que ela “se torna supérflua em condições sociais nas quais os trabalhadores  
operam por conta própria, assim como já agora ela se torna quase supérflua, com a  
prática do salário por peça”. Mesmo no interior do capitalismo é possível que se criem  
condições em que certos modos de economia do capital constante se tornem  
obsoletos.  
O pensador dá especial atenção à degradação das condições de trabalho como  
meio de economia de capital constante:  
De acordo com sua natureza contraditória, antitética, o modo de  
produção capitalista vai além, ao incluir o desperdício de vida e de  
saúde do trabalhador, a opressão de suas próprias condições de  
existência entre os meios para economizar no emprego do capital  
constante e, com isso, elevar a taxa de lucro. (MARX, 2017b, p. 114)  
Trata-se, pois, de contradição da produção capitalista. Se, por um lado, ela exige  
a economia de capital constante, por outro, para atingir tal objetivo, “é absolutamente  
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Forças sociais de produção como forças do capital  
esbanjadora com o material humano” (MARX, 2017b, p. 114). Na ânsia de preservar  
o capital constante, não se hesita em piorar as condições de trabalho, e, com isso,  
colocar a vida e a saúde dos trabalhadores em risco. O autor prossegue com os casos  
das minas de carvão inglesas, da economia na geração de força motriz etc., mas não  
nos deteremos sobre exemplos, os quais, para além do texto marxiano, poderiam ser  
infinitamente multiplicados.  
É claro, de todo modo, que a busca do capitalista por maiores lucros com  
menores gastos “aparece [erscheint] como uma força inerente ao capital(MARX,  
2017b, p. 112), uma necessidade imposta por este, independente dos produtores  
reais, a ele submetidos. Tal anseio, diz Marx (2017b, p. 113), não deve surpreender,  
pois é próprio do capital essa subordinação, que “oculta seus nexos internos ao  
submeter o trabalhador à completa irrelevância, à exterioridade [Aeusserlichkeit] e ao  
estranhamento [Entfremdung] diante das condições de realização de seu próprio  
trabalho”. O capital, ainda que requeira trabalho para se acumular e dependa, pois,  
inteiramente, do trabalhador, relega este a segundo plano, nesse caso, no que diz  
respeito a adequadas condições de trabalho. Coloca-se o acento na necessidade de  
gastar o mínimo possível com o capital constante, mesmo que ao custo de quem com  
ele de fato opera, imperativo ditado pela taxa de lucro, e que faz com que o capital se  
configure como força independente do trabalhador.  
Marx (2017b, p. 113, modificações nossas) resume o tópico da economia do  
capital constante nos seguintes termos:  
Finalmente, o trabalhador, como já vimos, relaciona -se com o caráter  
social de seu trabalho a combinação de seu trabalho com o trabalho  
de outrem para um mesmo fim como com uma potência que lhe é  
estranha [fremden Macht]; as condições de efetivação dessa  
combinação são, para ele, propriedade estranha [fremdes Eigentum],  
cujo desperdício lhe seria indiferente, não fosse ele forçado a  
economizá-la.  
A relação do trabalhador com suas condições objetivas de trabalho se dá de  
modo estranhado, nesse ponto, porque sua economia não diz respeito a ele, mas à  
necessidade do capitalista de aumentar a taxa de lucro. Assim, os meios de produção  
se defrontam com o trabalhador como potência estranha, cujo uso não é determinado  
por aqueles que com eles trabalham, mas pelo capitalista.  
À guisa de conclusão: o capital, enquanto relação voltada à extração de mais-  
valor, de um lado, mas que, inevitavelmente, apresenta elementos comuns ao processo  
produtivo em geral, é dotado de faces contraditórias. Por um lado, desenvolve as  
forças produtivas, dota os meios de trabalho, na forma da maquinaria, de maior grau  
de eficiência, aumenta sua produtividade, e, assim, produz mais valores de uso,  
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aumenta, pois, a produção de riqueza, engendra novas necessidades, e reduz o tempo  
durante o qual os indivíduos precisam se dedicar à atividade produtiva. Determinações  
comuns ao processo de trabalho em geral, como a produção de valores de uso, a  
mediação dada pelos meios de trabalho entre ser humano e natureza, e o tempo de  
trabalho requerido para a produção, aparecem sob o processo de produção capitalista,  
o qual desenvolve a produtividade do trabalho. Por outro lado, o capital é processo  
de produção de mais-valor. Por isso, não reduz a jornada de trabalho, a qual, pelo  
contrário, é aumentada e intensificada. O trabalho industrial é trabalho social, mas,  
submetido aos imperativos da taxa de lucro, implica economia do capital constante em  
detrimento dos produtores. Cada progresso da indústria se conforma não como força  
a serviço da humanidade, mas a serviço da necessidade do capital de se valorizar, com  
o que as condições objetivas do trabalho se defrontam com o ser humano como forças  
do capital. Marx resume o caráter contraditório do capital da seguinte maneira:  
considerada em si mesma, a maquinaria encurta o tempo de trabalho,  
ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta a jornada de  
trabalho; [...] por si mesma, ela facilita o trabalho, ao passo que,  
utilizada de modo capitalista, ela aumenta sua intensidade; [...] por si  
mesma, ela é uma vitória do homem sobre as forças da natureza, ao  
passo que, utilizada de modo capitalista, ela subjuga o homem por  
intermédio das forças da natureza; [...] por si mesma, ela aumenta a  
riqueza do produtor, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela  
o empobrece [...] (MARX, 2017a, p. 513).  
O advento da maquinaria e da grande indústria representa, em si, progresso.  
Desenvolvem-se as capacidades humanas e se reduz o tempo de trabalho necessário.  
Contudo, isso não representa, do lado do indivíduo, o desenvolvimento de sua  
personalidade. Pelo contrário: como o impulso da produção, sob condições  
capitalistas, é o acúmulo de valor, o trabalhador segue submetido a tal imperativo, de  
modo que é aviltado em sua existência particular, marcada seja pelo aumento da  
jornada de trabalho, seja pela intensificação desta, seja por más condições de trabalho,  
sempre dentro de situação de subordinação às condições objetivas de seu próprio  
trabalho.  
Sob a égide do capital, pois, o desenvolvimento da produtividade se dá de  
modo contraditório, e o que é, por um lado, progresso, é, por outro, adstringido pelo  
imperativo da acumulação. A indústria só pode se tornar força a serviço do  
desenvolvimento humano uma vez suprimido o capital, e ela, por si só, é incapaz de  
fazê-lo. Daí a necessidade, segundo Marx, da supressão do modo de produção  
capitalista.  
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Forças sociais de produção como forças do capital  
Considerações finais  
A posição de Marx acerca do desenvolvimento das forças produtivas, o qual,  
dentro de nossa análise, teve por foco o aumento da eficácia dos meios de produção,  
mostra o caminho tortuoso e contraditório por meio do qual a sociedade capitalista se  
transforma.  
O desenvolvimento da produtividade do trabalho traz consigo, por um lado,  
progresso, uma vez que reduz o tempo de trabalho no qual os indivíduos se dedicam  
somente à própria manutenção enquanto trabalhadores. Desse modo, poderia liberar  
tempo para o livre cultivo da personalidade, algo, ademais, possibilitado pelo aumento  
progressivo de necessidades não restritas à mera subsistência. Por outro, tal  
desenvolvimento se dá sob a égide do capital, o qual tem por norte a extração de  
mais-valor, o que faz com que as condições objetivas da atividade produtiva se  
defrontem com os produtores como algo independente deles. Desse modo, a atividade  
viva se torna não força a serviço do desenvolvimento humano, mas forças próprias do  
capital, subordinadas ao imperativo da acumulação.  
Com isso, ainda que as constantes revoluções dos meios de produção permitam  
a criação de novas necessidades, e, assim, criem a possibilidade de desenvolvimento  
da personalidade, se se permanece dentro dos limites do processo de produção  
capitalista, tal desenvolvimento é impedido, pois a relação com a atividade produtiva,  
meio de satisfação das necessidades, ocorre de modo subordinado não aos indivíduos  
que produzem, mas à valorização do valor. Em virtude de tal imperativo, à redução do  
tempo de trabalho necessário não corresponde a criação de tempo livre, dentro do  
qual o indivíduo poderia se cultivar enquanto tal, mas ao aumento da jornada de  
trabalho e à intensificação da produção, com o que segue viva a subordinação do  
trabalhador a forças que se mostram como próprias do capital. O capital constante se  
economiza somente como meio de aumentar a taxa de lucro, fim estranho aos  
trabalhadores. As forças produtivas do trabalho se conformam não como forças dos  
próprios trabalhadores, mas do capital. Tal cenário só se poderia resolver com a  
remissão para além do modo produção capitalista. Só com a supressão deste seria  
possível que as forças produtivas servissem ao desenvolvimento humano, não ao  
capital.  
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Como citar:  
MACIEL, Lucas de Oliveira. Forças sociais de produção como forças do capital: as forças  
produtivas do trabalho sob a produção capitalista na obra de Karl Marx. Verinotio,  
Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 85-115, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 85-115 jul.-dez., 2025 | 115  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.773  
Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e  
a teoria do valor de Marx: primeiras  
observações  
The Economic-philosophical manuscripts of 1844 and  
Marx's theory of value: first observations  
Paulo Henrique Furtado de Araujo*  
Resumo: O artigo toma a teoria do valor de  
Marx, constituída a partir de 1857/58, como  
chave para uma leitura crítica dos Manuscritos  
econômico-filosóficos de 1844. Oferecendo  
Abstract: This paper takes Marx's theory of  
value, established from 1857/58 onwards, as  
the key to a critical reading of the Economic-  
philosophical manuscripts of 1844. Offering  
some observations and suggestions for  
reinterpreting the 1844 text, it highlights  
certain categories that will remain at the center  
of Marx's analyses, for example: labor,  
algumas observações  
e
sugestões de  
reinterpretação do texto de 1844, destaca  
determinadas categorias que permanecerão no  
centro das análises de Marx, por exemplo:  
trabalho,  
objetivação,  
exteriorização,  
objectification,  
exteriorization,  
alienation,  
estranhamento, exploração, substância, essência,  
emancipação e sujeito. Por fim, sugere que a  
partir instauração da crítica ontológica marxiana  
da economia política, a apreensão, por Marx,  
desse conjunto categorial sofre uma inflexão  
decisiva no interior de sua ontologia materialista  
do ser social.  
exploitation, substance, essence, emancipation  
and subject. Finally, it suggests that from the  
establishment of Marx's ontological critique of  
political economy, Marx's understanding of this  
set of categories undergoes a decisive inflection  
within his materialist ontology of social being.  
Keywords:  
Marx;  
Economic-philosophical  
Palavras-chave: Marx; Manuscritos econômico-  
filosóficos de 1844; teoria marxiana do valor;  
estranhamento; propriedade privada.  
manuscripts of 1844; Marxian theory of value;  
alienation; private property.  
Introdução  
Em nossa figuração de mundo, assumimos, com Chasin (2009), que a  
instauração do pensamento do Marx marxiano, ou maduro, ocorre a partir da  
constituição de três críticas ontológicas materialistas. Na Crítica à filosofia do direito  
de Hegel, escrito em 18431, Marx estabelece sua crítica ontológica-materialista ao  
sistema de Hegel ao afirmar, criticamente, que para esse filósofo o relevante não é “a  
lógica da coisa, mas a coisa da lógica” (MARX, 2005, p. 39), estabelecendo sua crítica  
ontológico-materialista ao Direito e à Filosofia. Marx oferta uma crítica ontológico-  
materialista à politicidade a partir do seguinte conjunto de textos: Glosas críticas  
*
Professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), do PPGE-UFF,  
Coordenador do Gepoc-UFF e membro do Niep-Marx-UFF. E-mail: phfaraujo@id.uff.br.  
1
Também conhecidos como Manuscritos de Kreuznach (cf. CHASIN, 2009, pp. 57-59; ENDERLE in  
MARX, 2005, p. 17; NETTO, 2015, pp. 28-9).  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
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nova fase  
   
Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de Marx  
marginais a ‘O rei da Prússia e a reforma social’. De um prussiano de julho de 1844  
(cf. MARX, 2010a), Sobre a questão judaica de agosto/dezembro de 1843 (cf. MARX,  
2010b) e a Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução de dezembro de 1843  
e janeiro de 1844 (cf. MARX, 2005). As críticas aí delineadas terão desenvolvimento  
permanente ao longo da produção intelectual de Marx (no caso da crítica à politicidade,  
os materiais preparatórios e o texto final de Guerra civil na França de 1871 (cf. MARX,  
2011b) são os melhores exemplos). Decorre que podemos sustentar, enfaticamente,  
que os primeiros estudos de Marx sobre Economia Política2 que tiveram início ao  
final do ano de 1843, em Paris3, continuaram por todo ano de 1844 e resultaram  
tanto nas notas de leitura que serão conhecidas como Cadernos de Paris (cf. MARX,  
2015), quanto nas notas preliminares (destinadas para uma futura publicação, cf.  
MARX, 2004, p. 19) e que constituirão o chamado Manuscritos econômico-filosóficos  
de 1844 instauram o início de sua crítica ontológico-materialista da economia  
política, cujo momento decisivo se inicia a partir de 1857, com a escrita dos Grundrisse  
e tem sua formulação plena com escrita e publicação do Livro 1 de O capital em 1867.  
Advogamos que a adequada elucidação do pensamento de Marx exige a  
aplicação, ao seu pensamento, do mesmo princípio orientador, por ele utilizado, no  
estudo do ser social. Lembremos da passagem da Introduçãodos Grundrisse em que  
Marx (2011a, pp. 58-9) adverte que as formas categoriais (“formas de ser,  
determinações de existência”) mais desenvolvidas da sociedade burguesa portam uma  
verdade para todas as formas categoriais presentes em sociedades anteriores à  
sociedade do capital. Em outras palavras, as categorias plenamente efetivadas, que  
realizam todo o seu dynamei (potencial), no todo concreto complexo mais  
desenvolvido, são uma chave explicativa para o funcionamento e para o lugar das  
categorias, que inicialmente, se apresentam enquanto formas embrionárias, ou  
protoformas, nas totalidades concretas complexas menos desenvolvidas4. De maneira  
análoga, trazendo essa compreensão para a gênese do pensamento do próprio Marx,  
argumentamos que o conjunto categorial apresentado por Marx a partir de 1857, deve  
ser tomado como uma chave de compreensão dos escritos e categorias que antecedem  
a instauração definitiva do Marx marxiano. Esse é o balizamento que utilizamos para a  
interpretação dos Manuscritos de 1844.  
2 Cf. Engels (Prefácioà primeira edição do Livro 2 de O capital in MARX, 2014, p. 85).  
3 Marx e Jenny se casaram em Kreuznach junho de 1843 e chegaram a Paris entre outubro e novembro  
de 1843.  
4
Formações socioeconômicas desenvolvidas são aqui entendidas em termos da quantidade de laços  
sociais, do grau da divisão social do trabalho e do afastamento da barreira natural em relação à  
reprodução puramente social do ser social.  
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ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 116-146 jul.-dez., 2025 | 117  
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Paulo Henrique Furtado de Araujo  
1. Crítica da economia política de Marx: valor, trabalho abstrato, laço  
social, capital e dominação social  
Nos chamados Cadernos de Paris Notas de Leitura de 1844 (MARX, 2015),  
conforme dito acima, encontramos os registros dos primeiros estudos de Marx a  
respeito da Economia Política. Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (MARX,  
2004), cuja redação se inicia imediatamente após as notas dos Cadernos de Paris,  
sistematizam essas primeiras leituras e, destaca Neto (2015, p. 10), são “uma  
protoforma de um projeto editorial”. Entre esses primeiros estudos e a consumação  
da crítica ontológica da economia política a partir de 1857-58, Marx aprofunda sua  
reflexão e compreensão sobre o conjunto categorial constitutivo da sociedade do  
capital. Em particular, consolida o entendimento de que capital é uma relação social  
que funciona como uma tautologia, um constrangimento lógico que é, em si e por si,  
uma contradição em processo. Portanto, capital não é exatamente coisa física e,  
tampouco se explica a partir das formas jurídicas de propriedade aspectos que  
comparecem, eventualmente, ao longo das páginas dos Manuscritos de 1844.  
Na primeira seção do Livro 1 de O capital, Marx (2017) explicita que analisa as  
sociedades em que domina o modo de produção capitalista. Constatando que a  
riqueza dessas sociedades “aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a  
mercadoria individual como sua forma elementar” (MARX, 2017, p. 113), indica que  
há uma forma de riqueza que não se apresenta de modo imediato a riqueza abstrata.  
A apreensão da riqueza abstrata é realizada através do método das abstrações  
razoáveis ou reais5. Partindo do ser social existente na formação socioeconômica do  
capital, o autor abstrai aspectos que se apresentam imediatamente à sensibilidade de  
cada singularidade humana e captura uma abstração real que é parte constitutiva e  
estruturante dessa formação social. O que torna evidente o seu distanciamento de  
qualquer tipo de individualismo metodológico, como os que podem ser verificados nos  
Manuscritos de 1844 neles, partindo do comportamento do produtor, que em sua  
prática de trabalho exterioriza e objetiva seu conhecimento, habilidade etc., Marx  
parece que, por meio de um raciocínio indutivo, procura explicar a constituição de toda  
a formação social. A mercadoria individual, aí referida, não é uma espécie de “tipo-  
ideal” ou algo assim. Ela é uma forma categorial constitutiva da realidade da sociedade  
moderna e que Marx apreende em um primeiro movimento abstrativo. Nesse caso,  
Marx não reconstitui o mundo social do capital a partir da prática de trabalho de uma  
singularidade humana. Ao contrário, ele toma as práticas do trabalho determinado por  
5 Ver a respeito Chasin (2009).  
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mercadoria como pressuposto e analisa as objetivações desses trabalhos a forma  
mercadoria. O que é subjacente ao argumento de Marx é que se trata de práticas  
sociais estruturantes da sociedade do capital e estruturadas por essa sociedade.  
Voltaremos a essa questão adiante.  
Sendo a mercadoria a “forma elementar da riqueza” (MARX, 2017, p. 113),  
Marx se dedica à análise dessa forma. Mercadorias são coisas externas aos indivíduos  
humanos e que satisfazem suas necessidades materiais e espirituais (do intelecto) não  
tendo importância se a necessidade é atendida por um bem de consumo ou meio de  
produção. Afirmados esses pontos, Marx realiza uma nova abstração e revela que a  
mercadoria é constituída por um par antitético, valor de uso e valor. Valor de uso é  
dado pelo espectro de possibilidades de uso do próprio corpo físico da coisa  
mercadoria. O valor de uso pode ser examinado a partir de suas qualidades e de suas  
quantidades. A coisa mercadoria é produzida não para o consumo do seu produtor,  
mas para o mercado. Considerando que todo o estudo em questão é da sociedade do  
capital, deduzimos que a produção de mercadorias tem por pressuposto a existência  
de uma sociedade capitalista plenamente constituída, com estado moderno, divisão  
social e técnica do trabalho, propriedade privada dos meios de produção, uma massa  
humana obrigada a vender a mercadoria força de trabalho etc. A troca de mercadorias  
diferentes na esfera da circulação é a igualação de coisas desiguais, o que exige a  
revelação da categoria que permite tal igualação. O ato da troca de mercadorias  
distintas é o próprio valor de troca. A categoria valor é o que permite a igualação dos  
desiguais. Valor tem por substância o trabalho humano abstrato: na esfera da  
circulação, as mercadorias, para que sejam trocadas, abstraem as particularidades do  
trabalho humano produtor dos valores de uso mercantis específicos. Demonstrando,  
no seu próprio movimento de trocas, a existência real da abstração valor e a substância  
trabalho abstrato enquanto permanência na mudança. Em meio as trocas mercantis, o  
trabalho abstrato, em sua qualidade, não se altera. Ainda assim, o valor (trabalho  
abstrato) pode se alterar em suas quantidades.  
A análise das trocas torna patente que valor é forma de mediação social, ou  
ainda, que é através do valor (trabalho abstrato) que se constitui o laço social objetal  
específico da sociedade do capital6. Eis um aspecto crucial dessa sociedade: a ligação  
das singularidades humanas com a comunidade humana se dá de modo indireto,  
mediado pelas objetivações do trabalho determinado por mercadoria mercadoria e  
dinheiro (tipo especial de mercadoria e forma autonomizada do valor de troca); motivo  
6 Ver a respeito Araujo (2024b, 2024c) e Duayer e Araujo (2020).  
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pelo qual Marx (2011a, p. 105) diz que “seu poder social, assim como seu nexo com  
a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso”. Nessa sociedade as mercadorias  
relacionam-se diretamente entre si e os produtores humanos indiretamente através de  
suas mercadorias. Eis o arrimo do conceito de fetiche da mercadoria: a prática humana  
vital determinada por mercadoria objetiva a própria mediação social que passa a existir  
de modo reificado e estranhado em relação ao produtor; o sujeito se torna objeto e o  
objeto, sujeito7. Enfatizo que estamos diante do produto de práticas humanas  
estruturantes de um tipo de reificação autoestranhadora, ou seja, produtora do  
estranhamento da totalidade da formação social do capital. A dominação objetal é a  
expressão do tipo específico de dominação dessas sociedades, a dominação abstrata,  
do valor (trabalho abstrato) sobre o conjunto do gênero humano; naturalmente o  
impacto dessa dominação é diferente sobre as diferentes classes e segmentos de  
classe que constituem a sociedade, de todo modo, ninguém escapa a essa dominação.  
A posse da riqueza especificamente capitalista (valor), através da forma que  
melhor lhe representa (dinheiro), fornece ao seu possuidor poder social. Dinheiro, na  
sociedade do capital, funciona como nivelador social, transformando o feio em bonito,  
a pessoa desprovida de qualidades em ser humano honrado e probo etc. Ou seja, a  
propriedade privada, o ter, a posse da objetivação da riqueza abstrata, permite que a  
singularidade humana, mesmo desprovida de qualidades nomeadamente humanas, se  
aproprie das representações dos sentidos e qualidades especificamente humanos  
(caráter, honra etc.). Ao mesmo tempo, aos produtores das mercadorias é interditado  
o caminho da constituição de individualidades autenticamente humanas o  
trabalhador que valoriza valor para as personificações do capital, o proletário, é  
desefetivado de sua condição humana ao executar o trabalho especificamente humano.  
Marx, no Livro 1 de O capital, oferece um quadro interpretativo em que as  
práticas humanas estruturadas pela lógica do valor fazer de valor uma quantidade  
sempre maior de valor ou fazer de dinheiro uma quantidade maior de dinheiro , ao  
mesmo tempo, estruturam a sociedade em que essa lógica opera. Dizendo o mesmo  
de outro modo, o valor (trabalho abstrato) é produto de práticas sociais que moldam  
a objetividade social e a subjetividade dos produtores; em suma, valor é forma  
categorial automediadora. A subjetividade das singularidades humanas é plasmada  
pela lógica do valor, essa lógica fornece o balizamento no interior do qual as  
subjetividades são constituídas. Lembrando que capital (valor em expansão) é  
contradição em processo, temos que sua lógica estrutura uma totalidade social  
7 Ver a respeito Araujo (2022a).  
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necessariamente contraditória desde seus níveis micro até seus níveis macro.  
Decorrendo que, ainda que as subjetividades sejam parametrizadas pela lógica do  
valor, elas também são contraditórias, o que torna possível o exercício da crítica  
negativa desse mundo e a constituição de práticas humanas que neguem a lógica do  
capital.  
A partir do par antitético constitutivo da forma-mercadoria, Marx reconstrói  
dialeticamente a totalidade da sociedade do capital e esclarece as dinâmicas e  
tendências imanentes a essa formação. Evidenciando que a contradição entre forças  
produtivas e relações de produção opera nessa sociedade, contudo, ela é produto da  
contradição real entre valor de uso e valor8.  
Um mundo social constituído de forma contraditória em todos os seus níveis  
necessita de um mecanismo capaz de manter unificado o todo que tende a se separar  
esse mecanismo é o estado moderno9. O estado moderno é a contraparte necessária  
do capital, um só existe porque o outro existe, estão em relação de determinação  
reflexiva na qual, naturalmente, o capital tem prioridade ontológica. Em seu nível mais  
crucial, o valor é a categoria que explica a constituição do estado moderno; se  
quisermos resgatar a analogia de Marx, tantas vezes citada, valor opera como a  
infraestrutura da sociedade do capital e categoria determinativa da superestrutura  
jurídico, política etc.  
Do mesmo modo, as classes sociais no capitalismo só podem ser  
adequadamente apreendidas considerando a centralidade do valor em suas  
determinações10. A partir do Livro I de O capital é possível demonstrar como os seres  
humanos operam como máscaras de caráter de valor na sociedade do capital e como  
as classes sociais são constituídas de modo relacional a geratriz crucial das classes  
não é exatamente a propriedade privada dos meios de produção, ainda que essa forma  
jurídica seja central para a reprodução da totalidade da sociedade capitalista. O valor  
em expansão determina as duas classes sociais fundamentais que inicialmente Marx  
trata em O capital: burguesia e proletariado. O que significa sustentar que não há um  
polo positivo (proletariado) que deva ser conservado na sociedade emancipada e  
que seja portador dos valores ético-morais do gênero humano e um negativo  
(burguesia) que deva ser eliminado. Marx, ao reconhecer a centralidade do trabalho  
determinado por mercadoria na estruturação e dinâmica da sociedade do capital,  
sugere que a emancipação humana da dominação abstrata-temporal do valor exige a  
8 Ver a respeito Araujo (2022a).  
9 Ver a respeito Araujo (2016; 2018; 2020b; 2023b).  
10 Ver a respeito Araujo (2016; 2018; 2020a; 2020b).  
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eliminação simultânea de burgueses e proletários e não a afirmação de um dos polos  
em detrimento de outro.  
Proletário, como dito antes, é o trabalhador produtivo, o que valoriza valor para  
a personificação do capital11. Como suporte das relações econômicas engendradas  
pela lógica do capital, o burguês funciona como a personificação da lógica do capital  
permitindo que ela opere no mundo social. Já o proletário assume a máscara de ser  
humano egoísta, em busca da obtenção de seus interesses particulares e mesquinhos.  
Como vendedor da mercadoria força de trabalho, seu objetivo é vender a menor  
quantidade de mercadoria pelo maior preço possível. Esse comportamento objetivo  
manifesto na vida cotidiana é plasmado pelo valor e, por evidente, não constitui o  
proletário em sujeito da emancipação humana. Não obstante, a luta de classes  
econômica ou do cotidiano porta a possibilidade de mudanças qualitativas na  
compreensão subjetiva do funcionamento do mundo social e traz em si a  
potencialidade de ser uma entrada importante para práticas sociais emancipadoras do  
valor. Para Marx o trabalho proletário é mutilador da omnilateralidade do trabalhador,  
transformador do trabalho em suplício e sofrimento, em atrofia do próprio corpo físico  
e capacidades intelectuais do trabalhador (cf. MARX 2017, pp. 720-1). Do que se  
conclui, sem espaço para dúvidas, que Marx nos oferece uma crítica do trabalho no  
capitalismo e não uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho (cf.  
POSTONE, 2014).  
Curiosamente, no Capítulo 4 do Livro I de O capital, Marx identifica um sujeito  
totalizante, um sujeito automático, que põe finalidades, não possui consciência e é  
uma pura tautologia que age sobre si próprio, um sujeito-objeto idêntico12: o capital.  
O movimento lógico do capital tem seu fundamento na contradição real entre valor de  
uso, valor e tempo. Inicialmente é preciso apresentar, ainda que de modo muito breve,  
algumas considerações sobre o tempo e a sua mensuração na sociedade do capital.  
Como dito, valor se diferencia em sua quantidade, mas como se mensura a quantidade  
do valor? Pelo tempo de trabalho socialmente necessário gasto para produzir a  
mercadoria. Como valor é uma relação social, o tempo gasto é tempo social e não  
individual. O que significa dizer que o tempo abstrato social, preenchido por  
quantidades sempre maiores de valores de uso, passa a operar como norma temporal  
social que constrange todos os produtores humanos independentemente de suas  
vontades.  
Os produtores de mercadoria não controlam o valor social e são obrigados a  
11 Cf. Marx (2017, p. 690, nota 70).  
12 Ver a respeito Araujo (2021; 2024b).  
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buscar aumentos permanentes de produtividade, o modo mais eficiente e disseminado  
de realizarem esses aumentos é através da mecanização do processo produtivo. A  
mecanização ocorre substituindo o trabalho imediato, ou seja, desempregando  
trabalhadores, reduzindo o trabalho vivo em favor do trabalho passado suportado  
pelas novas máquinas. Quando os novos sistemas de máquinas se difundem pelo ramo  
produtivo, há redução do valor social da produção das mercadorias desse ramo. O que  
provoca o desaparecimento da vantagem inicial dos primeiros capitalistas, que  
introduziram o sistema de máquinas mais produtivo, e, com isso, desaparece o mais-  
valor extra que eles extraíam até esse momento. O processo concorrencial continua  
funcionando e a luta pelo aumento da produtividade com redução do valor por unidade  
de mercadoria prossegue. Importante reter que mantendo-se inalteradas as jornadas  
de trabalho, antes e depois da introdução das novas máquinas, o quantum total de  
valor não se altera ocasionando o aumento da quantidade de valores de uso  
produzida com redução de valor por unidade. O que significa que a jornada de trabalho  
mensurada por, digamos, oito horas de trabalho diárias, comportava X quantidades da  
mercadoria Y e depois do aumento de produtividade comporta 2X. Há um  
preenchimento dos poros do tempo abstrato por quantidades maiores de valores de  
uso que devém a nova norma social temporal a ser seguida por todos os produtores  
que desejarem receber a totalidade do tempo de trabalho gasto individualmente na  
produção de suas mercadorias. Estamos diante de um mecanismo que transforma  
permanentemente a produção capitalista, destruindo as bases já estabelecidas e a  
norma temporal dominante para, em seguida, reconstituir as condições para a  
continuidade do processo de acumulação de capital13. Eis um esboço, muito preliminar  
por não tratar das formas de extração do mais-valor, da acumulação de capital etc.  
da engrenagem constitutiva do dinamismo da economia capitalista explicado a partir  
do par antitético constitutivo da forma-mercadoria.  
É evidente que esse mecanismo nega o trabalho imediato, desemprega  
trabalhadores e provoca a redução da massa de mais-valor produzida devido a  
redução da quantidade total de força de trabalho contratada. Uma forma de  
contrarrestar a redução da massa de mais-valor é através do aumento da taxa de mais-  
valor ou do grau de exploração da força de trabalho. O que pode ser obtido por meio  
de aumentos na intensidade do trabalho e na extensão da jornada de trabalho dos  
trabalhadores que continuam empregados não esquecendo que o valor da  
mercadoria força de trabalho também pode ser reduzido através da redução dos  
13 Essa é uma aproximação do treadmill effect tratado por Postone (2014, pp. 332-3).  
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componentes que compõem seu valor. Bastando, para isso, que, na busca de mais-  
valor extra, os capitalistas dos setores que produzem as mercadorias que compõem o  
valor da força de trabalho aumentem suas produtividades, reduzindo o valor de cada  
unidade produzida, o que produzirá mais-valor relativo que, por sua vez, será  
apropriado pelo conjunto dos capitalistas.  
Marx, no Capítulo 23 do Livro I de O apital, enfatiza que a acumulação de capital  
ocorre com aumento da composição do capital e redução relativa do capital variável  
em relação ao capital constante com o processo de acumulação o capital constante  
aumenta mais rapidamente do que o capital variável. Esse continua aumentando,  
contudo, a taxas decrescentes. O que explica a formação, no seio do proletariado, de  
uma quantidade de trabalhadores excedentes, a formação da população  
supranumerária ou do exército industrial de reserva. A posição de Marx sobre esse  
ponto deve ser apreendida de acordo com o padrão tecnológico dominante no período  
histórico em questão. Considerando a tecnologia existente no século XIX até a década  
de 1970, a redução relativa da força de trabalho poderia ser compensada pelo  
aumento total do número de novas plantas produtivas construídas com a continuidade  
da acumulação de capital.  
Nos Grundrisse, Marx (2011a, pp. 578-96) esboça uma tendência mais geral  
que aponta para a possibilidade de redução absoluta da força de trabalho contratada.  
Elucidando que a máquina e o sistema automático de maquinarias14 provocam a  
subsunção real do trabalho ao capital (no caso ao capital constante fixo); Marx (2011a,  
pp. 582-3) destaca que o estabelecimento pleno do capital só devém com o sistema  
automático de máquinas, com a maquinaria desenvolvida. A maquinaria, ensina o  
autor, é a objetivação da força produtiva do trabalho humano, ela porta o “intelecto  
geral” do gênero humano e sua forma, adaptada à lógica do capital, estranha o  
produtor fazendo com que a redução de tempo necessário de trabalho não seja  
revertida em tempo livre para a efetivação do processo de individuação, de formação  
de autênticas personalidades humanas. A máquina desenvolvida, enquanto objetivação  
do capital (nesse caso, objetivação de trabalho passado que funciona como capital), é  
a transformação das forças do trabalho humano, e do conhecimento da espécie  
humana, em forças do capital. O conhecimento científico já não se encontra na  
consciência do trabalhador imediato, está objetivado na máquina e, através dela,  
constrange o trabalhador “como poder estranho, poder da própria máquina” (MARX,  
2011a, p. 581). O avanço do conhecimento científico, a aplicação desse conhecimento  
14  
No Capítulo 13 do Livro I de O capital serão qualificadas de maquinaria desenvolvida e sistema de  
máquinas.  
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na forma de tecnologias voltadas à produção e valorização de valor, assume a forma  
de objetos mecânicos etc. portadores de trabalho passado, trabalho morto, que  
propiciam aumentos fantásticos na produtividade, portanto, aumentos na produção de  
valores de uso. Simultaneamente, propiciam a redução do trabalho imediato necessário  
para essa produção e reduzem o trabalho imediato restante à função de supervisão e  
de alimentação do sistema de máquinas.  
O trabalho indireto, manifesto na objetivação do conhecimento científico e  
tecnológico, torna-se a forma mais importante de trabalho para a lógica do capital. As  
personificações do capital são constrangidas a buscar o permanente revolucionamento  
de suas produções de mercadorias, principalmente por meio da adoção de novas  
tecnologias, na tentativa de se apropriar de um maior quantum de mais-valor. Do que  
se conclui, com Marx (2011a, pp. 587-8) que a troca de trabalho vivo por trabalho  
objetivado é o movimento final do desenvolvimento da produção estruturada pela  
lógica do valor. Resta ocioso lembrar que se a substância do valor é o trabalho  
abstrato, e se capital é valor em expansão, a massa do tempo de trabalho imediato  
gasto para a produção de mercadorias permanece sendo o elemento crucial para a  
produção da riqueza abstrata distintiva da sociedade do capital. Já vimos que o  
desenvolvimento da grande indústria proporciona um aumento fantástico na produção  
da riqueza material (valores de uso), sua obtenção depende cada vez menos da  
quantidade numérica e da quantidade de tempo de trabalho imediato mobilizado.  
Dependendo, em escala crescente, do poder dos meios de trabalho utilizados; poder  
conferido pelos avanços da ciência e suas aplicações ao processo produtivo o  
desenvolvimento do conhecimento da espécie humana torna-se a escora central da  
produção de mercadorias e da riqueza material e abstrata. Frente a essas descobertas,  
Marx (2011a, p. 588) arremata dizendo que a exploração do trabalho, prática central  
para a produção da riqueza da sociedade do capital, se transforma em arrimo miserável  
frente a produção de riqueza material propiciada pela grande indústria.  
O que explica sua afirmação de que assim que o trabalho imediato cessa de  
existir enquanto origem principal da riqueza, o tempo de trabalho socialmente  
necessário para a produção de mercadorias já não é a medida da riqueza social e, com  
esse novo quadro, o valor deixa de ser o determinante para a produção de valores de  
uso. Além disso, se o trabalho excedente da massa do povo, que vive da venda da  
mercadoria força de trabalho, deixa de ser a condição para o desenvolvimento da  
riqueza geral da sociedade, a liberação de poucas singularidades humanas da  
obrigatoriedade do trabalho imediato “deixa de ser condição do desenvolvimento das  
forças gerais do cérebro humano” (MARX, 2011a, p. 588). Eis as condições,  
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endogenamente constituídas pela lógica do valor, para a ruína da produção de valores  
de uso plasmada pela lógica do valor. O capital, ensina Marx (2011a, pp. 588-9) é  
contradição em processo pois objetiva reduzir o tempo de trabalho imediato ao  
mínimo possível e, ao mesmo tempo, mantém o tempo de trabalho como medida da  
riqueza e o trabalho abstrato como a substância da riqueza abstrata. Em seu  
movimento tautológico, o capital tende a tornar a criação de riqueza material  
relativamente independente do tempo de trabalho gasto para sua produção. Ainda  
assim, ele afirma a necessidade de mensurar as novas forças produtivas, e seus efeitos  
práticos, pelo tempo de trabalho socialmente necessário e aprisioná-las nos  
parâmetros mesquinhos necessários para manter o valor já produzido enquanto valor.  
Na sociedade emancipada do valor (comunista), em que essas contradições deverão  
ser plenamente superadas, será possível o desenvolvimento de cada personalidade  
humana em todo seu potencial. O que significa dizer que, ao contrário do que faz a  
lógica do capital enquanto contradição em processo, a redução do tempo de trabalho  
necessário não terá por télos a produção de maior quantum de trabalho excedente a  
ser apropriado privadamente. A redução do tempo de trabalho necessário a um  
quantum mínimo reverterá para todo ser social, proporcionando a base objetiva para  
a efetivação da omnilateralidade constitutiva do ser humano.  
Para encerrar essas rápidas observações, cabe indicar que a redução do  
trabalho imediato e a perda de sua centralidade na produção de riqueza material e  
abstrata, a transformação do trabalho imediato em atividade de supervisão e  
alimentação das máquinas e equipamentos, armam um contexto em que o produto do  
trabalho humano, a mercadoria, não é um simples produto do trabalho imediato  
isolado, pelo contrário, é agora o resultado da combinação da própria atividade social  
– “o trabalho do indivíduo singular em sua existência imediata é posto como trabalho  
individual abolido, i.e., como trabalho social. Assim é eliminada a outra base desse  
modo de produção [da sociedade do capital PH] (MARX, 2011a, p. 592). A eliminação  
dessa base acarreta um problema particularmente difícil para a sociedade do capital:  
sabemos que o laço social, através do qual a singularidade humana tem seu  
pertencimento à sua comunidade, assume a forma objetal do dinheiro. Esse é a forma  
autonomizada do valor de troca que, por sua vez, é forma de manifestação do valor.  
A eliminação do trabalho imediato aponta para o desaparecimento da substância do  
próprio laço social, o que significa a instauração de um padrão societário em processo  
de colapso. Os sujeitos dessa formação socioeconômica devêm sujeitos monetários  
sem dinheiro (KURZ, 1993, p. 95). Ou dizendo de outro modo, passam a existir com  
dificuldades cada vez maiores de vender a única mercadoria que possuem, sua força  
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de trabalho, o que os levam a trabalhar em empregos precários, com remunerações  
miseráveis e com extensão da jornada de trabalho e intensidade do trabalho que  
remetem aos primórdios da Revolução Industrial Inglesa.  
O fato de que, no século XXI, a “manufatura do mundo” tenha se deslocado  
para o sudeste asiático e que ali haja um aumento da quantidade de trabalhadores  
assalariados, não demonstra um erro na análise de Marx. Na verdade, pode-se inferir  
algo análogo ao descrito pelo Mouro na Seção 8 do Capítulo 13 do Livro 1 de O  
capital: enquanto o sistema de máquinas não tem um custo menor do que o custo de  
contratação de trabalho imediato, as personificações do capital prosseguem  
contratando trabalho imediato. Todavia, quando a produção de máquinas  
desenvolvidas ocorre com custos menores do que os da contratação de força de  
trabalho, a troca de trabalho vivo por trabalho morto se torna inevitável. Por fim, o  
evanescer do laço social objetivado no dinheiro, que indica o colapso social da  
sociedade do capital, também pode ofertar o fundamento para a elucidação do fim do  
padrão civilizacional que um dia essa sociedade aspirou, e, com esse fim, o advento  
da barbárie manifesta15 o que pode ser exemplificado com a ascensão, em vários  
países, de tendências políticas nazifascistas, de formas religiosas as mais retrógradas,  
de milícias armadas controlando parcelas territoriais significativas de vários países, do  
narcotráfico, do tráfico de pessoas, do tráfico de armas, das guerras tribais, das crises  
emigratórias, das guerras civis de novo tipo etc. e por fim, mas não menos importante,  
pela aceleração da crise ambiental.  
2. Marx em 1844 e a crítica ontológica da filosofia e da economia  
política  
Marx ao estabelecer suas duas primeiras críticas ontológico-materialistas16 tinha  
Hegel por alvo prioritário. Num primeiro momento Marx recorre a Feuerbach para  
assestar a lógica hegeliana. Se em Hegel, como dito no início, o importante era a coisa  
da lógica em detrimento da lógica da própria coisa o que estabelecia a prioridade  
do saber sobre o ser ou da consciência sobre a existência , para Marx a prioridade é  
a coisa em sua efetividade e o desvelar da lógica da própria coisa no seu vir-a-ser. Na  
seção Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral17, Marx registra que um  
grande feito de Feuerbach foi a constituição do “verdadeiro materialismo e da ciência  
real” a partir do reconhecimento de que a razão primordial da teoria é a “relação social,  
15 Ver a respeito, Araujo (2024c).  
16 Conforme vimos, a terceira crítica ontológica é a crítica da economia política que só se efetiva em sua  
plenitude no final da década de 1850.  
17 O título das seções é da edição soviética, a esse respeito ver Musto (2019).  
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a ‘do ser humano com o ser humano’” (MARX, 2004, p. 118). Na sequência, tomado  
por evidente inspiração feuerbachiana18, esclarece que um ser natural que toma parte  
da essência da natureza tem que ter sua natureza fora de si. Deste modo, só é objetivo  
um ser que tenha um objeto fora de si e que seja, ele mesmo, objeto para um terceiro  
ser. Somente neste caso, prossegue Marx, teremos um ser objetivo e conclui, de modo  
fulgurante, que “um ser não-objetivo é um não-ser” (MARX, 2004, p. 127). Prossegue  
Marx dizendo que estabelecer um ser que não é objeto para outro ser, e nem tem um  
objeto com o qual se relacione, é instituir um único ser que só pode existir de modo  
isolado e solitário. Explicitando que um tal ser só poderia existir como ser único e,  
enquanto ser único, ele “é um ser não efetivo, não sensível, apenas pensado, isto é  
apenas imaginado, um ser da abstração” (MARX, 2004, p. 128).  
Mas o que é o ser sensível? Marx, na sequência, elucida que ser sensível é ser  
efetivo, e ser efetivo é ser objeto sensível ou ser objeto do sentido. Do que decorre  
que o ser sensível tem que ter objetos sensíveis fora de si, objetos que possam ser  
apreendidos por sua própria sensibilidade. Arremata Marx: “Ser sensível é ser  
padecente” (MARX, 2004, p. 128). Neste caso, prossegue o autor, o ser humano é um  
ser efetivo, objetivo, sensível, que sofre e que tem carências do que não está em si  
mesmo, portanto, carece do que está fora de si. Nesta condição, o ser humano é um  
ser apaixonado e, segundo Marx (MARX, 2004, p. 128), a paixão se põe enquanto  
força humana essencial que se dirige ao objeto da carência do ser humano. Revelando,  
mais uma vez, a influência de Feuerbach, Marx assinala que o ser humano ainda que  
seja ser natural, biologicamente determinado como todos os seres orgânicos, não é  
apenas ser natural, mas ser social. Ser social é o ser natural humano que existe para  
si e, por isso, é ser genérico e, enquanto ser genérico, o ser humano é obrigado a agir  
e efetivar-se em seu ser e saber especificamente humanos. Resultando que os objetos  
humanos, a objetividade humana e a sensibilidade humana são construções sociais.  
Em outras palavras, os objetos naturais em sua imediatidade existente não são objetos  
humanos pois eles não estão diretamente acessíveis de modo adequado ao ser  
humano. Apenas através da autoprodução do ser humano (cf. MARX, 2004, p. 123) é  
possível que tenha início a humanização dos sentidos humanos e a produção de  
objetos naturais-humanos. A autoprodução do ser humano tem no trabalho  
(abstrato/universal) sua categoria crucial e, além disso, ela é a práxis que permite a  
suprassunção do ser orgânico em ser social conforme sustenta Lukács (2010; 2012;  
18  
Marx em 1844 demonstra grande admiração e aceitação da figuração de mundo ofertada por  
Feuerbach. Rapidamente Marx realiza uma inflexão nessa aceitação conforme podemos constatar nos  
aforismos conhecidos como Teses Ad Feuerbach de 1845 (MARX; ENGELS, 2007, pp. 537-9).  
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Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de Marx  
2013) em sua Ontologia do ser social19 instaurando o momento da gênese da história  
do ser social.  
Marx arrima sua compreensão sobre ser sensível/existente se contrapondo à  
compreensão de Hegel. Para Hegel, expõe Marx, a reivindicação feita pela objetividade,  
pelo mundo objetivo, ao ser humano – de que a “consciência sensível não é nenhuma  
consciência abstratamente sensível, mas uma consciência humanamente sensível”  
(MARX, 2004, p. 122) é apreendida de tal maneira que essas objetividades se  
apresentam como seres espirituais. Com isso, prossegue Marx, a sensibilidade humana,  
a religião, o poder do estado etc. se põem como “seres espirituais”. Assim ocorre  
porque, sustenta o Mouro, para Hegel a essência do ser humano é o espírito e “a  
verdadeira forma do espírito é o espírito pensante, o espírito lógico, especulativo”  
(MARX, 2004, p. 122). Neste sentido, a natureza criada pela história do gênero  
humano, a “humanidade da natureza”, se manifesta no fato dos produtos dos seres  
humanos “serem produtos do espírito abstrato e nessa medida, [...], momentos  
espirituais, seres de pensamento” (idem). Marx argumenta que a proeminência  
alcançada por Hegel em sua Fenomenologia, em particular a negatividade dialética  
como geratriz, deve-se, por um lado, a que o autor apreende a autoprodução do ser  
humano como processualidade na qual a objetivação é desobjetivação e a  
exteriorização do produtor é seguida pela suprassunção da própria exteriorização. Por  
outro lado, Marx, nos Manuscritos de 1844, é tributário da formulação de Hegel de  
que o produtor humano (trabalhador) objetiva e exterioriza em sua prática de produção  
e, por este movimento, exterioriza sua essência através do trabalho. Em Hegel, essa  
essência exteriorizada é a objetivação do Geist e autoprodução do ser humano; para  
Marx20, nos Manuscritos de 1844, o que é exteriorizado e objetivado é a própria  
essência humanade tal modo que o trabalho universal/geral21 é a prática que produz  
o ser humano e o humaniza (cf. MARX, 2004, pp. 111; 121; 123; 124; 135). Do que  
decorre que o trabalho determinado por mercadoria, específico da sociedade do  
capital, também objetiva a essência humana só que de modo estranhado, conforme  
indica Marx (cf. 2004, pp. 80; 86; 88; 99; 100; 101; 111). Marx enfatiza que para  
Hegel, na Fenomenologia, a prática humana efetivadora da condição genérica do  
humano revela todas as forças genéricas do humano e isto só é possível na medida  
19  
Por Ontologia do ser social compreendemos a soma dos livros Para uma ontologia do ser social e  
Prolegômenos para uma ontologia do ser social.  
20  
Essa primeira interpretação de Marx modifica-se quando estabelece sua própria teoria do valor, a  
partir dos manuscritos de 1857/58 (Grundrisse). Em O capital ele explicita que o produtor exterioriza  
trabalho abstrato, substância do valor, e não exatamente uma essência humana transistórica. Voltaremos  
a esse ponto adiante.  
21 Sobre trabalho universal/geral e trabalho determinado por mercadoria, ver Araujo (2023b).  
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em que tal prática ocorre como ação conjunta dos seres humanos, ou seja, o desvelar  
das forças genéricas da humanidade só pode devenir como produto histórico. Como  
os produtores, prossegue Marx (2004, p. 123) a respeito de Hegel, reagem às forças  
genéricas como estando diante de objetos, patenteia-se que tal relação só pode  
assumir a forma do estranhamento [Entfremdung]. Em outras palavras, Marx assinala  
que, para Hegel, a prática do trabalho que exterioriza e objetiva a essência humana é,  
necessariamente, produtora de estranhamento.  
Para Marx, nos Manuscritos de 1844, o trabalho universal/geral, ao exteriorizar  
a essência humana, permite a constituição do processo de humanização do ser  
humano. Através da prática humana vital os cinco sentidos humanos se humanizam (cf.  
MARX, 2004, pp. 110; 111; 112; 113), inicia-se o processo de torná-los plenos e  
unos com a essência humana e, além disso, os sentidos espirituais-humanos (paixão,  
amor, vontade, desejo etc.) se efetivam acionando formas de autocontrole de cada  
singularidade humana e de todo gênero humano. Este encadeamento é o que  
possibilita a efetivação do que há de específico no gênero humano, que é o  
autocontrole dos desejos, paixões, medos etc. Do que se conclui, com Marx, que o  
trabalho que objetiva e exterioriza a essência humana e que, por sua vez, se manifesta  
na processualidade humanizadora da singularidade humana não necessariamente  
produz estranhamento [Entfremdung]. Marx, em 1844, entendia que o par propriedade  
privada-trabalho estranhado (cf. MARX, 2004, pp. 88-93; 99-114) era o que produzia  
o estranhamento do gênero humano; tendo o trabalho estranhado prioridade  
ontológica frente à propriedade privada. Marx, como amplamente conhecido, só  
estabelece sua teoria do valor e, portanto, sua crítica ao trabalho determinado por  
mercadoria, específico da sociedade do capital, a partir da escrita dos Grundrisse em  
1857/58. O que nos permite assinalar que o tratamento ofertado à categoria trabalho  
em 1844, visto a posteriori, traz consigo as marcas da carência dessa teoria do valor.  
Essa é uma explicação plausível para o fato de que o autor advogue, nesse período e  
em companhia de Hegel, que o trabalho exterioriza a essência humana enquanto um  
tipo de substância em deslocamento temporal, identifique a presença do  
estranhamento na sociedade do capital e o explique pela chave da objetivação  
estranhadora que, por sua vez, é o arrimo da propriedade privada e é reforçada pela  
divisão social e técnica do trabalho. Adiante, voltaremos a essa questão, antes vejamos  
alguns aspectos da articulação entre trabalho e estranhamento que Marx expõe nos  
Manuscritos de 1844.  
Na seção intitulada “trabalho estranhado e propriedade privada”, Marx aborda  
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Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de Marx  
o trabalhador enquanto mercadoria (cf. MARX, 2004, pp. 79ss)22 e indica que é a  
sociedade do capital, sociedade estranhada (cf. MARX, 2004, p. 80), o seu objeto de  
estudo neste momento. Destaca que nesta sociedade quanto mais produz riqueza,  
mais miserável é o trabalhador. Quanto mais o mundo das coisas se valoriza pela  
exteriorização e objetivação do trabalho, mais desvalorizado é o mundo dos seres  
humanos que trabalham. Deste modo, Marx assenta que o trabalho nesta sociedade  
produz mercadorias e produz o trabalhador como mercadoria. Nesse quadro,  
prossegue o jovem filósofo alemão, o produto do trabalho é o trabalho objetivado,  
feito coisa ou objetivação do trabalho. Essa objetivação é, ao mesmo tempo,  
desefetivação do trabalhador, pois uma vez o trabalho trabalhado, e a prévia ideia  
fixada objetalmente, essa coisa (mercadoria) se apresenta ao trabalhador como algo  
estranho e com vontade própria que captura o produtor produzindo uma relação de  
servidão (do produtor) para com a coisa objetivada. Aqui está a raiz do estranhamento  
enquanto exteriorização (cf. HALLAK, 2018, pp. 65-6).  
O lineamento realizado por Marx em 1844 guarda aspectos fundamentais que  
serão retomados em O capital. Reconhecendo que o ser humano é ser carente e que  
o atendimento de suas carências exige a transformação da natureza exterior sensível  
ao produtor (e a transformação do próprio produtor neste processo), Marx sustenta  
que o trabalhador se defronta com o mundo exterior sensível natural como objeto e  
meio pelo qual e a partir do qual produz. Acrescenta que se este mundo exterior  
sensível também oferece o meio para subsistência física do trabalhador, na sociedade  
moderna quanto mais o trabalhador se apropria do mundo sensível exterior através  
do seu trabalho, objetivando e exteriorizando, mais ele é privado dos meios  
necessários à vida. Por um lado, o que foi objetivado já não pertence ao trabalhador  
(pois a coisa é propriedade de um outro, não trabalhador) e, por outro lado, engendra-  
se uma interdição para que o mundo exterior sensível prossiga sendo meio de vida  
imediato, garantidor da subsistência do trabalhador. Ainda que aqui não seja dito,  
Marx em O capital esclarecerá que o que o trabalhador produz no capitalismo são  
mercadorias, estas são de propriedade jurídica das personificações do capital e os  
trabalhadores, uma vez estruturada a sociedade do capital, já não têm acesso aos  
meios de produção (máquinas, equipamentos e matérias-primas) parafraseando  
Marx, podemos dizer de modo irônico, que estão libertos de tal fardo. O resultado,  
para o trabalhador que recebe um objeto do trabalho (ou seja, trabalho) como  
pagamento por seu trabalho, como meio de subsistência, é que o trabalhador devém  
22 Destacamos que a descoberta da categoria força de trabalho só ocorrerá no final da década de 1850  
e aparecerá registrada nos Grundrisse.  
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objeto do seu objeto ou, dizendo o mesmo de outro modo, o sujeito vira objeto e o  
objeto sujeito. Garantindo, prossegue Marx, que nessa sujeição do ser humano ao  
produto do seu trabalho, somente como trabalhador o indivíduo pode se manter como  
sujeito físico e somente como sujeito físico ele pode ser trabalhador. Por não perder  
de vista a exploração inerente à sociedade moderna, Marx enfatiza que quanto mais  
riquezas o trabalhador produz, quanto mais bem acabado é o produto produzido,  
quanto mais belezas produz, mais pobre, deformado e cretino é o trabalhador. A chave,  
para o autor, que explica estas oposições está na necessária articulação imediata entre  
o trabalhador e seu trabalho e a produção.  
A este respeito, constata (cf. MARX, 2004, p. 82) que a relação essencial do  
trabalho é a relação entre o trabalhador com a produção; e a relação imediata do  
trabalho com seu produto é a relação do trabalhador com os objetos de sua produção  
(cf. MARX, 2004, p. 82). Anota que a relação do rico com o produto do trabalho e com  
a produção é decorrência dessa relação imediata. Até esse ponto o tratamento que o  
autor dá ao estranhamento do trabalhador é o de sua relação com as objetivações de  
sua prática de trabalho. Por evidente, o autor acrescenta que o estranhamento também  
se manifesta no ato da produção, na atividade produtiva. Como ainda não instaurou  
sua teoria do valor, não lhe ocorre que se trata de produção de mercadorias e toda  
explicação para o estranhamento constituído no ato da produção radica na ideia de  
que a atividade humana vital exterioriza-se em um produto. Dizendo o mesmo em  
outras palavras, o objeto é o resultado da atividade exteriorizada que por não  
pertencer ao trabalhador lhe é estranha. Por este caminho, a chave explicativa  
mobilizada não reside no modo de produzir, em si, mas na relação jurídica ou na forma  
da propriedade jurídica do que foi objetivado.  
Ainda que não tenha clareza dessa limitação, o autor alinhava aspectos da  
atividade de trabalho na sociedade moderna que ajudam a explicar o porquê da  
produção do estranhamento. Em primeiro lugar, destaca que o trabalho (da sociedade  
do capital ou moderna) é externo ao trabalhador, não pertence ao seu ser enquanto  
ser humano e, por este motivo, na prática desse trabalho o produtor nega a si mesmo  
em sua específica humanidade a prática do trabalho (determinado por mercadorias)  
é a mortificação do corpo e a ruína do espírito do produtor (cf. MARX, 2004, pp. 82-  
3). Tal trabalho não é voluntário, é imposto pelas estruturas da sociedade moderna  
(divisão social do trabalho, propriedade privada, em última instância pelas relações  
sociais mediadas pelo valor, conforme Marx irá revelar em O capital). Trata-se de uma  
prática humana vital que não busca o atendimento de uma dada carência do produtor,  
mas a satisfação de necessidades que se manifestam fora da esfera desta prática vital.  
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Marx reforça que a objetivação externalizada pela prática do trabalho manifesta-se ao  
trabalhador como não sendo o produto de seu próprio trabalho, portanto, como não  
lhe pertencendo ao revés, manifesta-se pertencendo a um outro ser humano que não  
o exteriorizou e objetivou e, por decorrência, é a perda de si mesmo por parte do  
produtor, afinal, parte de sua essência humana foi exteriorizada e objetivada e já não  
lhe pertence. A conclusão de Marx, neste ponto, é célebre: o ser humano trabalhador,  
produtor de mercadorias na sociedade do capital, só se sente ser livre e ativo ao  
exercer funções que compartilha com os animais (comer, beber, procriar etc.) e que  
estão cindidas das demais funções humanas - e nas funções especificamente humanas  
sente-se como animal (cf. MARX, 2004, p. 83).  
Como visto, Marx primeiro analisa a prática humana vital e a produção do  
estranhamento sob a ótica da relação entre o produtor e a objetivação e exteriorização  
de sua atividade sob a forma de algo objetual e estranho ao produtor. Em seguida,  
analisa o estranhamento sob a ótica da atividade prática vital em si mesma (conforme  
compreende o autor nesse período) e que no ato em si da práxis desefetiva a  
humanidade do produtor por mobilizar sua vida contra ele mesmo e levá-lo à produção  
de objetos independentes de si e que já não pertencem a ele. Por fim, Marx passa a  
tratar de uma terceira determinação decorrente das duas anteriores. O autor constata  
que o ser humano é, necessariamente ser genérico, tanto prática quanto teoricamente  
ao se relacionar com a natureza inorgânica e orgânica, quanto ao se relacionar consigo  
enquanto ser universal e livre (cf. MARX, 2004, pp. 83-4). O ser humano, assim como  
os seres orgânicos, tem a natureza inorgânica como fundamento de sua vida genérica.  
Quanto mais o ser humano é universal, tanto maior é o seu domínio sobre a natureza  
inorgânica a partir da qual ele pode viver e se reproduzir. Este aumento permanente  
do domínio sobre a natureza inorgânica é algo específico do gênero humano.  
Considerando a reprodução física da singularidade humana (e do gênero, pois o  
singular ao se reproduzir, reproduz o seu universal e vice-versa), é evidente sua total  
dependência dos produtos da natureza inorgânica e orgânica (alimento, habitação,  
vestuário etc.). No aspecto prático, prossegue o autor, a universalidade do ser humano  
se manifesta ao tornar toda a natureza seu corpo inorgânico, tomando-a como meio  
de vida, como objeto, instrumento e matéria da atividade humana vital (trabalho  
universal/geral). Em arremate, Marx sustenta que a vida do ser humano (física e mental)  
é necessariamente interligada ao ser natural, sabido que o ser humano é parte da  
natureza.  
Decorre, segundo Marx, que o trabalho estranhado ao estranhar a natureza em  
relação ao ser humano, ao estranhar o ser humano de si mesmo no próprio ato do  
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trabalho enquanto atividade humana vital, engendra o estranhamento da singularidade  
humana em relação ao gênero humano23. Neste contexto a vida genérica devém meio  
da vida individual, as vidas genérica e individual são estranhadas e a vida individual,  
sob a obrigatoriedade da produção de mercadorias, torna-se fim da vida genérica aqui  
abstrata e estranhada.  
A forma pela qual Marx ampara esta posição, do nosso ponto de vista, o leva a  
tomar a atividade humana vital (trabalho universal/geral) como atividade  
exteriorizadora da essência humana e, portanto, da substância que especifica o gênero  
humano (ser social). Marx (cf. 2004, p. 84) advoga que a vida produtiva é a vida  
genérica ou a vida que cria vida. Para ele, a característica de uma dada espécie  
orgânica é dada pela atividade vital que esta espécie realiza. No caso do ser humano  
a característica que lhe é inerente e específica é a da atividade produtiva consciente e  
livre e esta atividade produtiva é meio de vida. Enquanto os animais estão identificados  
sem mediação com sua atividade vital e dela não se diferenciam, a atividade vital para  
o ser humano vem a ser objeto sobre o qual age sua vontade e consciência, pois aqui  
se trata de “atividade vital consciente” (MARX, 2004, p. 84) e o ser humano, ao  
contrário do que ocorre com os animais, não corresponde imediatamente a esta  
determinidade24. O ser humano, nesta angulação, é ser genérico porque é ser  
consciente e nisto difere dos animais; nesse caso a própria vida do ser humano é seu  
objeto o que, por sua vez, esclarece que a atividade humana é atividade livre.  
Marx acrescenta que o trabalho estranhado instaura uma inversão e transforma  
a atividade humana vital, que seria “sua essência” (MARX, 2004, p. 85), a própria  
essência do ser humano, num mero meio para a existência da singularidade humana.  
O ser humano, de modo consciente, é capaz de elaborar, de modo prático, a natureza  
inorgânica e, para Marx, essa é a evidência de que o ser humano é ser genérico  
consciente, “um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência”  
(MARX, 2004, p. 85) ou que em reflexão consigo se põe como ser genérico. Em  
decorrência, pode-se aferir que o ser humano produz de modo universal,  
omnilateralmente, produz mesmo sem o acicate da carência material e só produz de  
modo especificamente humano quando livre da carência física. A ratificação do ser  
humano como ser genérico se dá pelo engendramento do mundo objetivo e este  
23 Lukács (2012), provavelmente inspirado por este posicionamento de Marx, irá sustentar em Para uma  
ontologia do ser social que o estranhamento (universal/geral) pode ser entendido como a cisão dos dois  
polos constitutivos do ser social (a singularidade humana e o gênero humano), o que ocasiona a  
interdição da processualidade em que a singularidade humana se particulariza, e constitui uma  
personalidade efetivamente humana, e o desenvolvimento das capacidades do gênero humano.  
24 Determinidade aqui é utilizada no sentido daquilo que o ser é em si.  
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engendrar é a vida humana genérica eficaz, que produz efeitos. Por meio da atividade  
produtiva especificamente humana a natureza se manifesta como produto e efetividade  
do produtor humano; patenteando que a vida genérica do ser humano é objetivada no  
produto do trabalho e que há uma duplicação do ser humano em termos operativo  
(efetivamente) e de consciência (intelectualmente) que permite ao ser humano examinar  
“a si mesmo num mundo criado por ele” (MARX, 2004, p. 85). O trabalho estranhado,  
adverte Marx (cf. 2004, p. 85), ao fazer da vida genérica um meio para a existência  
física do ser humano, remove a objetivação da produção do ser humano que produz  
e, com isso, extirpa do ser humano a própria vida genérica, a efetividade objetiva  
genérica. Dizendo de outro modo, o trabalho estranhado impede que o produtor se  
aproprie da substância constitutiva do gênero humano e que se objetiva na forma dos  
produtos do trabalho humano.  
Evidencia-se do exposto acima que Marx apreende dois outros aspectos do  
trabalho estranhado. Primeiro, o trabalho estranhado produz, ao mesmo tempo, tanto  
o estranhamento do ser humano em relação à natureza exterior, quanto em relação à  
capacidade subjetiva/intelectual própria ao gênero humano (capacidade que se  
complexifica com a humanização do humano), ou seja, estranha o humano de sua  
essência humana. Segundo, o ser humano estranhado do que objetivou a partir de sua  
prática humana vital, está estranhado desta prática vital, estranhado do seu ser  
genérico, do pertencimento ao gênero humano, em suma temos aqui o estranhamento  
do ser humano pelo ser humano. Neste segundo ponto, Marx25 parece se referir  
diretamente a uma sociedade que tem por característica distintiva a mediação social  
direta entre as objetivações humanas (mercadorias) e indireta entre os produtores  
(seres humanos) a sociedade do capital26. Ele sustenta que na ocasião em que o ser  
humano está diante de si mesmo, ele faceia um outro ser humano e que os produtos  
da sua prática de trabalho, que também são produto da relação do ser humano consigo  
mesmo, corresponde à relação do ser humano com outro ser humano, equivalendo ao  
trabalho e ao produto do trabalho de outro ser humano. O que significa dizer que o  
estranhamento do ser humano do seu gênero, do ser social, é o estranhamento de um  
ser humano com outro ser humano distinto dele e que os dois estão estranhados da  
essência do gênero humano, da substância que especifica o gênero; neste caso, cada  
um considera o outro a partir da relação na qual ele próprio é um trabalhador humano.  
25  
“O que é produto da relação do homem com o seu trabalho, produto de seu trabalho e consigo  
mesmo, vale como relação do homem com outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de  
outro homem.” (MARX, 2004, pp. 85-6)  
26 Como sabido, somente nos Grundrisse e em O capital essa questão será plenamente entendida pelo  
autor.  
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Como fecho para nossas breves anotações a respeito dos Manuscritos de 1844,  
destacamos uma articulação que ocupa lugar central na figuração ofertada por Marx –  
a articulação entre trabalho estranhado e propriedade privada. A questão inicial, para  
Marx, era determinar quem era o ser estranho, o poder estranho, que subsumia o  
trabalho e a objetivação do trabalho. O trabalho estranhado está na dependência desse  
ser e o resultado do trabalho está voltado para o desfrute desse ser. Se nas primeiras  
eras da humanidade, adverte Marx (2004, p. 86), os serviços executados (por exemplo,  
construção de templos) e os produtos pertenciam aos deuses, era evidente que por si  
os deuses não eram senhores do trabalho. Acrescenta que seria contraditório que,  
diante do aumento do domínio do gênero humano sobre as legalidades naturais,  
diante do avanço do conhecimento da espécie humana sobre o funcionamento do  
universo, tivessem os seres humanos de renunciar, tanto a prática humana vital  
efetivadora da humanidade do ser humano quanto renunciar a usufruir das  
objetivações do seu trabalho, em favor e por amor a esses seres divinos. Arremata  
dizendo que o ser estranho só pode ser o próprio ser humano. O resultado do trabalho  
ao não pertencer ao produtor significa que pertence a outro ser humano que não o  
produtor e este produtor se defronta com um poder estranho que se apresenta a ele  
na forma da própria objetivação do trabalho. O produtor se relaciona com a  
objetivação de sua prática de trabalho como algo estranho, hostil, que tem grande  
força e que é autônomo em relação a ele, produtor. Acrescentando que, conforme  
vimos acima, para Marx a relação do ser humano consigo é efetiva através da sua  
relação com outro ser humano, evidencia-se que no trabalho estranhado, produtor de  
objetivações estranhadas, o trabalhador humano se relaciona com outro ser humano  
estranho que lhe é estranho, hostil, possui grande poder e lhe é autônomo que é  
o proprietário da objetivação do trabalho. Dizendo o mesmo de outro modo, o  
trabalhador que realiza uma prática humana vital de modo não livre, se relaciona com  
esta atividade estando sob o domínio, o mando e a violência de outro ser humano. Em  
suma, executa um trabalho em que é explorado, expropriado e desefetivado de sua  
condição especificamente humana.  
Autoestranhamento do ser humano (de si e da natureza) se manifesta na relação  
que o humano concede a si e à natureza para com outros seres humanos, por isso, no  
mundo verdadeiro, em que se executam as práticas humanas vitais, o  
autoestranhamento só pode se manifestar mediante uma relação prática e real-efetiva  
com outros seres humanos ou seja, o agir do estranhamento é prático. Por meio do  
trabalho estranhado, sustenta Marx (cf. 2004, p. 87), os produtores constituem o liame  
com o produto do trabalho e o agir na produção enquanto seres humanos estranhados  
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e hostis. O que significa dizer que instituem a conexão em que os outros seres  
humanos estão relacionados às objetivações de sua prática de trabalho e, ao mesmo  
tempo, tecem sua conexão com esses outros seres humanos. Marx (2004, p. 87)  
prossegue e acrescenta que o trabalho estranhado forja, enquanto ato de produção, a  
desefetivação do produtor e garante a perda da objetivação de seu trabalho que se  
torna propriedade do ser humano que não o produziu; o que ilustra que o trabalho  
estranhado estranha do produtor a atividade produtiva, além do produto desta  
atividade, e, ao mesmo tempo, garante a apropriação da atividade de trabalho pelo  
não trabalhador (o estranho) Marx elucida que é da relação do produtor com o  
trabalho estranhado que se estabelece a relação entre o trabalhador e o capitalista (ou  
proprietário do trabalho). Constata-se que, para Marx, a propriedade privada é  
decorrência do trabalho estranhado, do ser humano estranhado e de sua vida  
estranhada27. O autor acrescenta é a análise da propriedade privada no paroxismo do  
seu desenvolvimento28 o que permitiu decifrar o mistério da propriedade privada.  
Ainda que ela seja resultado do trabalho exteriorizado/estranhado, a propriedade  
privada é o meio pelo qual o trabalho se estranha, ou ainda, a propriedade privada é  
a realização do trabalho exteriorizado/estranhado. Marx arremata este ponto dizendo  
que propriedade privada e salário são idênticos pois são resultados imperativos do  
trabalho estranhado e o desaparecimento de um dos lados exige o desaparecer do  
outro (cf. MARX, 2004, p. 88).  
Nos Manuscritos de 1844, Marx se ocupa de elucidar o processo de formação  
da subjetividade humana. Afastando-se da mistificação teológica de Hegel, advoga que  
o ser humano é ser sensível, padecente e é na prática humana vital, trabalho  
27  
Das Privateigentum ergibt sich also durch Analyse aus dem Begriff der entäußerten Arbeit, d. i.  
des entäußerten  
des entfremdeten Menschen.  
Menschen, der  
entfremdeten  
em:  
Arbeit,  
des  
entfremdeten  
Lebens,  
Disponível  
engels/1844/oek-phil/1-4_frem.htm>. Acesso em: 7 mar. 2025. [A propriedade privada resulta, portanto,  
da análise do conceito de trabalho exteriorizado/alienado, ou seja, do indivíduo humano exteriorizado,  
do trabalho estranhado, da vida estranhada, do indivíduo humano estranhado tradução nossa.]  
Enfatizo que Marx utiliza Menschen ou Mensch e não Mann ou Männer. Ou seja, ele, como costuma  
fazer, trata de pessoa, do indivíduo humano ou ser humano. Ao fazer o contraponto com a mulher, ele  
utilizará Mann (homem), ver, por exemplo, a seção “Propriedade privada e comunismo” (MARX, 2004,  
pp. 104-5). Além disso, no trecho acima reproduzido Marx está tratando de trabalho que é exteriorizado  
[entäußerten Arbeit] e de trabalho estranhado [entfremdeten Arbeit]. Ainda que o sentido das categorias  
exteriorização/alienação e estranhamento se altere ao longo dos Manuscritos de 1844 é possível  
identificar, em geral, o significado das palavras pelo contexto em que o autor as utiliza (HALLAK, 2018).  
Nesse caso, em que está tratando da propriedade privada e sua relação com o estranhamento, é  
plausível assumir que o autor utiliza exteriorização e estranhamento como sinônimos e, desse modo,  
podemos sugerir que termina arrimando a ideia de que toda exteriorização feita pelo produtor humano  
é estranhamento. Todavia, sabemos que em outras passagens ele critica Hegel por ter semelhante  
entendimento. Essa dificuldade só poderá ser superada com a instauração de sua própria teoria do  
valor.  
28 Essa formulação é muito próxima a ideia que Marx apresenta nos Grundrisse de que a “anatomia do  
ser humano é uma chave para a anatomia do macaco” (MARX, 2011a, p. 58).  
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universal/geral, que a singularidade humana relacionando-se com outras  
singularidades e com o ser natural, produz os valores de uso necessários à sua  
reprodução individual e comunal. Nesse processo, a singularidade descobre as  
particularidades dos objetos e se apropria das legalidades do ser natural e as  
reorganiza para a obtenção de seus fins. Ao mesmo tempo, descobre suas  
particularidades naturais e inicia uma luta pelo autodomínio, autocontrole, por  
constituir-se em sua condição especificamente humana. A humanização das outras  
singularidades humanas é indispensável para que a humanização de cada um ocorra.  
O ser humano como ser genérico tem que se confirmar em seu ser e em seu saber  
(MARX, 2004, p. 128). Decorrendo que os objetos com os quais se defronta não são  
objetos humanos, o modo como esses objetos se apresentam imediatamente aos  
indivíduos humanos não é imediatamente disponível ao ser humano. Os sentidos  
humanos, através dos quais a singularidade captura o objeto, a realidade sensível, não  
são imediatamente, objetivamente, sensibilidade humana, objetividade humana. O ser  
natural não se oferta imediatamente de modo adequado, seja objetivamente ou  
subjetivamente, ao ser humano.  
Marx (2004, p. 128), seguindo Hegel, sustenta que o trabalho universal/geral  
é a mediação que permite o início da história do ser humano, do ser social. Essa  
atividade, nos Manuscritos de 1844, caracterizada pela transformação da natureza e  
do produtor humano, sem o devido destaque ao pôr teleológico que será dado, por  
exemplo, no Capítulo 5 do Livro 1 de O capital, inicia o processo de humanização dos  
sentidos humanos, de produção de uma natureza humana e de um humano natural,  
inicia a jornada humana pela exteriorização do que há de humano no ser humano: o  
controle dos afetos, instintos, paixões etc., inicia a constituição de um ser genérico,  
não mais mudo, de um ser social. Ocioso lembrar que essa processualidade envolve a  
objetivação cada vez maior e mais variada de valores de uso que, por sua vez, tem por  
fundamento a economia de tempo de trabalho ou o aumento da força produtiva do  
trabalho.  
Lukács, em sua Ontologia29, esclarece que no trabalho primevo já se encontra  
registrada a tendência à economia do tempo de trabalho. O produtor humano, ao  
efetivar sua prévia ideação, corrige os erros e mantém, aperfeiçoa e difunde, os acertos  
junto à comunidade em que está inserido30. O resultado é o aumento da eficiência da  
prática do trabalho especificamente humano. Em suma, o próprio trabalho  
universal/geral traz em si a economia do tempo de trabalho, a possibilidade do ganho  
29 Ver nota 29.  
30 Ver a respeito Araujo (2022a; 2023a; 2023b; 2024a).  
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Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de Marx  
de tempo livre da obrigatoriedade de lutar pela manutenção e reprodução da vida.  
Tempo livre que irá permitir o início da constituição de uma personalidade  
(subjetividade) verdadeiramente humana. Além disso, propiciará o devir de todo um  
conjunto de complexos sociais (religião, política, filosofia, arte etc.), constitutivos do  
complexo geral que é o próprio ser social. Tal conjunto de complexos é a manifestação  
em formações socioeconômicas portadoras de maior divisão do trabalho e maiores  
quantidades de laços sociais da perda de centralidade do trabalho, em favor do  
ganho de centralidade de outros complexos sociais, no funcionamento e reprodução  
da sociedade humana.  
Aumento da produtividade resulta em produção de maiores quantidades de  
valores de uso e na produção sistemática de excedente de produção desses valores  
de uso frente ao consumo dos produtores. Eis a base material para o surgimento da  
cisão social entre possuidores e não possuidores e entre proprietários e não  
proprietários. O que era propriedade comunal devém propriedade privada,  
simultaneamente, a exploração da capacidade de trabalho de outro ser humano  
adquire importância crucial para a reprodução social e para o desenvolvimento dos  
novos complexos sociais acima mencionados. Os laços sociais, garantidores do  
pertencimento da singularidade humana à sua comunidade se alteram paulatinamente,  
conforme a formação socioeconômica, o período e a região geográfica31. Em linhas  
gerais essa é processualidade constitutiva de formações sociais estranhadas. O  
produtor que, como já visto, exterioriza suas habilidades e capacidades na prática do  
trabalho sob a forma de objetos (valores de uso), já não se apropria da totalidade das  
objetivações. Elas pertencem a outro ser humano que lhe é estranho. Para Marx, nesse  
caso, o que é exteriorizado é estranhado, o que pode ser confirmado pela retomada  
da análise de Marx sobre os quatro níveis simultâneos do estranhamento os quais  
tratamos acima. Do que podemos inferir que, para Marx dos Manuscritos de 1844,  
através da articulação entre trabalho estranhado, propriedade privada e divisão do  
trabalho, devêm formações socioeconômicas cindidas em classes sociais e  
estranhadas.  
Considerações finais  
Nesse ponto aflora uma questão decisiva para a nossa leitura crítica: todo e  
qualquer trabalho humano, ou seja, trabalho universal/geral, exterioriza uma essência  
que, por sua vez, assume uma forma objetual? Tal essência é a essência constitutiva  
31 Ver a respeito Araujo; Araujo (2024).  
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do gênero humano, do ser social? Uma tentativa de elucidação de tais questões exige  
que se trate, ainda que de modo breve, dos conceitos de essência e substância do ser  
social.  
Foge ao escopo do presente artigo tratar do modo como o conceito essência  
foi entendido pela filosofia ocidental desde a Grécia Antiga. Apenas registramos que,  
se em Platão essência designa a Ideia e em Aristóteles a substância, e se ao longo da  
história da filosofia, a diferenciação entre ser e essência se estabelece; a partir de uma  
leitura crítica imanente, podemos sugerir que Marx, desde seus textos iniciais, parece  
tomar o conceito de essência como aquilo que define o ser enquanto ser, ou seja,  
enquanto aquilo marca sua natureza específica. No que diz respeito ao ser humano,  
ao ser social, essa essência não se apresenta de modo imanente à singularidade  
humana. Em 1845, na 6ª das Teses ad Feuerbach, Marx registra que “a essência  
humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é  
o conjunto das relações sociais” (MARX; ENGELS, 2007, p. 538). Considerando os  
desenvolvimentos dos Manuscritos de 1844, podemos sustentar que se a essência do  
ser social é extrínseca à singularidade humana, ela é, simultaneamente, produto das  
objetivações dessa singularidade. Como as objetivações do trabalho e de outras  
atividades humanas ocorrem no interior de determinadas formações socioeconômicas  
e como tais objetivações acionam o processo de constituição de uma subjetividade  
verdadeiramente humana; temos que a essência do ser social só pode vir-a-ser a partir  
da necessária articulação real entre atividades humanas que, por evidente, ultrapassa  
a práxis do trabalho subjetividade e o padrão de sociabilidade (tipos de laços sociais).  
Estamos diante de uma essência humana que se apresenta de modo  
diversificado nas diversas formações socioeconômicas através das quais o ser social  
se manifesta ao longo do tempo. Uma essência que se modifica e, ainda assim,  
permanece como aquilo que especifica o gênero humano. Dizendo de outro modo,  
uma essência que porta uma característica fundamental do conceito de substância –  
permanência na mudança. O que nos coloca diante de uma novidade: identificamos,  
com Marx e Lukács, uma substância que se manifesta ao longo da história do ser social,  
que se modifica em cada formação em que se apresenta e que indica uma tendência à  
sua plena efetivação. Substância que opera como essência é a expressão do processo  
tendencial de humanização do ser humano, de constituição de personalidades  
verdadeiramente humanas capazes de autocontrole, do controle racional de seus  
instintos, impulsos, paixões, medos etc. A referida tendência ao se manifestar em  
formações socioeconômicas estranhadas é contrarrestada há uma evidente cisão  
entre o desenvolvimento das capacidades do gênero humano em detrimento do  
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Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de Marx  
desenvolvimento de personalidades verdadeiramente humanas. O que impede, na  
prática, que a humanização do ser humano, ocorra para a massa das pessoas. O  
desenvolvimento das capacidades do gênero humano aciona o aumento da  
produtividade e o progressivo afastamento das barreiras naturais; a propriedade  
privada dos meios de produção, acompanhada pela divisão social e técnica do  
trabalho, impede que os frutos desse desenvolvimento sejam usufruídos pela maioria  
das singularidades humanas, desaguando na consolidação do processo de  
estranhamento.  
Todas as formações sociais até a atual sociedade do capital são formações  
estranhadas, dominadas por formas diversas de reificação autoestranhadoras eis a  
pré-história humana para Marx. Somente a sociedade do futuro, comunista, ao  
conseguir superar a articulação social a partir do trabalho abstrato, dará início à  
verdadeira história do gênero humano. Uma história em que haverá convergência entre  
o desenvolvimento da personalidade humana e do conhecimento da espécie. Ou seja,  
o conhecimento estará voltado para a produção de uma pletora de objetivações e de  
laços sociais que não são estranhos às singularidades e, ao mesmo tempo, permitem  
a produção de subjetividades plenamente humanas.  
Atividades humanas, e não somente o trabalho universal/geral, constituem essa  
essência humana que é permanência na mudança e que se manifesta nas objetivações  
e subjetivações variadas que vão se constituindo, se alterando e sucedendo ao longo  
da existência do gênero. Sugerindo que essa substância não é suportada por  
objetivações que possam ser apropriadas privadamente como suportes da riqueza  
abstrata ou formas de riqueza material; como ocorre no caso da substância do valor –  
trabalho abstrato suportada por valores de uso sob a forma de mercadoria e dinheiro  
e que é apropriada pelos proprietários dos meios de produção. A essência/substância  
do ser social está para além das objetivações, ainda que as objetivações sejam  
momentos necessários para sua existência; assim como as subjetividades e os laços  
sociais específicos.  
Lukács (2013, p. 122), indica a existência de mais de um tipo de substância  
no âmbito do ser social. Partindo dessa observação, podemos assentar que Marx, nos  
Manuscritos de 1844, ao tratar de substância do ser social, procura identificar a  
permanência na mudança que se modifica em qualidade e quantidade em cada  
formação socioeconômica que a porta. Ele analisa uma substância dinâmica em sua  
processualidade histórica e que se explica pelo desabrochar do que há de específico  
no ser humano. Ou seja, a substância é o próprio processo de humanização do  
indivíduo humano, de formação de personalidades autenticamente humanas. Essa  
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processualidade é acionada pelas práticas e atividades humanas que incluem o  
trabalho universal/geral. O trabalho universal/geral inicia o processo de humanização,  
opera como protoforma do agir humano, todavia, a substância em questão não é  
exteriorizada pelo trabalho. Ele cria as condições para essa exteriorização na medida  
em que se torna mais eficiente, em que há maior domínio sobre as legalidades naturais  
e sociais e, desse modo, permite o ganho de tempo livre da obrigatoriedade de  
trabalho que poderá ser mobilizado no processo de individuação das singularidades  
humanas tornando possível o desenvolvimento de outros âmbitos da vida social  
(arte, filosofia, política etc.) que permitirão a efetivação da omnilateralidade do  
humano.  
Em sua crítica ontológica da economia política, Marx revela que há uma outra  
substância que estrutura somente o mundo do capital; plasmando a objetividade e  
subjetividade desse mundo. Essa substância é permanência na mudança, todavia, ela  
não se modifica na qualidade, ela é e sempre será trabalho abstrato, e só se modifica  
nas quantidades de tempo de trabalho. Essa substância do valor (trabalho abstrato) é  
exteriorizada e objetivada pelo produtor de mercadorias na sociedade do capital, só  
existe suportada pelo valor de uso, na forma de mercadoria ou de dinheiro (tipo  
especial de mercadoria). O valor é forma de riqueza abstrata, forma de mediação social  
indireta, forma de dominação abstrata e forma automediadora. O que significa dizer  
que o valor, que só pode existir socialmente se expandindo, opera de modo totalizante.  
Ao moldar as práticas sociais necessárias à sua produção e reprodução, molda as  
subjetividades dos produtores e, ao mesmo tempo, estrutura, a partir dessas práticas,  
formas pseudo-objetivas comumente associadas à superestrutura social: o estado  
moderno, o sistema jurídico etc. A sociedade moderna, portanto, é produto do trabalho  
abstrato que é necessariamente estranhado. Sua produção exige a produção de  
mercadoria e produzir mercadorias é produzir fetiche ou reificação produtora de  
estranhamento social.  
Como a exploração do ser humano é a pedra de toque de todo esse arranjo  
societário, é possível, ao marxismo tradicional, sustentar que toda a riqueza social é  
produzida pelos trabalhadores assalariados, mas não é usufruída por eles. A classe  
exploradora, parasitária, se apropria do que não produziu devido ao direito de  
propriedade privada dos meios de produção. O que os leva a uma conclusão imediata:  
a emancipação humana é a emancipação da propriedade privada dos meios de  
produção. O seu desaparecimento aciona o fim da exploração e da classe parasitária  
(burguesia). Essa figuração de mundo tem no proletariado o sujeito histórico, pois  
projeta o que há de específico na sociedade do capital em formações sociais pretéritas  
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Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e a teoria do valor de Marx  
proletários exteriorizariam a substância do ser social em toda e qualquer formação  
socioeconômica. Além disso, defende que na sociedade do futuro o proletariado irá se  
realizar em sua completude pois, finalmente, o trabalho, que é o princípio regulatório  
da sociedade, será conscientemente planejado. O que permitirá ao proletariado  
usufruir da totalidade dos produtos objetivados por seu trabalho, reapropriando-se da  
essência (riqueza) social-humana que lhes era negada o que tipifica essa crítica  
tradicional como distributivista. Nessa abordagem, o estranhamento do trabalho é  
explicado como uma inversão entre sujeito e objeto e se associa a um tipo de falsa  
consciência que está entrelaçada às formas jurídicas e ideológicas dominantes.  
Subjacente a essa posição está a ideia de que a subjetividade tem uma estrutura  
preexistente e que não é socialmente constituída. O que permite concluir que, para  
essa figuração, no capitalismo o que é específico do âmbito subjetivo se manifesta  
como próprio do âmbito objetivo. O cerne das dificuldades desse campo reside na  
indistinção entre os tipos de substância em análise, o que provoca um colapso  
conceitual e conduz a análise a posições não plausíveis com relação a dinâmica do ser  
social.  
Em boa medida, Marx de 1844 parece ofertar arrimo para esse tipo de  
elaboração teórica. O que demonstra a importância da crítica dos Manuscritos de 1844  
a partir da crítica ontológica da economia política, feita por Marx a partir de 1857-58.  
Pensamos que há três pontos cruciais, descobertos por Marx a partir de 1857/58, a  
serem considerados nessa crítica: (1) o eixo organizativo da sociedade do capital é o  
trabalho abstrato que, ao mesmo tempo, só existe socialmente como capital. (2) O  
sujeito, não transistórico, da sociedade moderna é o capital e as práticas estruturadas  
e estruturantes a ele associadas. (3) A emancipação humana é emancipação do  
constrangimento lógico do valor, algo que se coloca para além da eliminação da  
propriedade privada, das classes sociais e do estado moderno ainda que tenha  
nessas eliminações sua condição necessária, elas não são suficientes para a efetivação  
da emancipação.  
Partindo da elucidação de que trabalho estranhado produz a propriedade  
privada, Marx (2004) assenta que a emancipação da propriedade privada se apresenta  
como emancipação política dos trabalhadores e essa emancipação política inclui a  
emancipação universal, a emancipação de todo gênero humano. Esta inclusão se  
explica, segundo Marx (cf. 2004, pp. 88-9), em razão do fato de que a relação entre  
o trabalhador e a produção é conexa a opressão humana e, além disso, todas as  
conexões de servidão são decorrências dessa relação. O desenvolvimento do gênero  
humano, como sabemos, é marcado pelo surgimento e por várias formas de  
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manifestação da propriedade privada. Marx, em 1844, oferece uma explicação para a  
propriedade privada que não é exterior ao ser humano, mas que é produto do trabalho  
estranhado, sendo assim uma explicação inerente ao ser humano pois trata-se da  
própria práxis humana vital fundante do gênero humano. De todo modo, esse  
movimento esclarece a igualação entre exteriorização do trabalho e estranhamento.  
Pois na presença da propriedade privada, tudo o que o produtor exterioriza é uma  
objetivação estranha a ele. Nesse sentido, Marx sugere a existência de uma relação de  
reflexão entre trabalho estranhado e propriedade privada na qual o par se condiciona  
reciprocamente e o trabalho estranhado possui a prioridade ontológica frente à  
propriedade privada. Eis o motivo de Marx dedicar amplo espaço para a discussão a  
respeito da propriedade privada nos Manuscritos de 1844: a emancipação da  
propriedade privada acarreta a emancipação do trabalho estranhado.  
Como ainda não havia instaurado sua própria teoria do valor, Marx, sem ter a  
intenção, se vê limitado a uma crítica jurídica da forma de propriedade ou da  
distribuição do que foi produzido sob a forma de mercadorias. Em suma, em 1844 a  
emancipação é da propriedade privada, pois a compreensão de Marx é de que estamos  
diante de tipos de dominação pessoal. Se em 1844, Marx apreende a dominação social  
como pessoal, a partir de 1857 passa a sugerir que, em seu nível mais crucial, a  
dominação é abstrata, é a dominação do valor sobre o gênero humano. O não  
desenvolvimento de sua teoria do valor é que o leva a enfatizar a crítica ao ter, à  
propriedade privada, como chave explicativa do estranhamento e de suas formas de  
manifestação. Do que resulta que permanece tributário de uma crítica do capitalismo  
do ponto de vista do trabalho determinado por mercadoria, não sendo ainda capaz de  
apresentar uma crítica do trabalho determinado por mercadorias ou do trabalho no  
capitalismo. Por fim, é preciso destacar que os Manuscritos de 1844 portam, in nuce,  
questões que irão atravessar toda produção intelectual de Marx e que serão  
amadurecidas e desdobradas, pelo autor, em materiais posteriores por exemplo, o  
trabalho universal/geral enquanto categoria fundante do ser social, a tríade  
exteriorização, objetivação e estranhamento, trabalho estranhado, emancipação  
humana etc.  
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio  
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São Paulo: Expressão Popular, 2015.  
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São Paulo: Boitempo, 2014.  
Como citar:  
ARAUJO, Paulo Henrique Furtado de. Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e  
a teoria do valor de Marx: primeiras observações. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30,  
n. 2, pp. 116-146, 2025.  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X, v. 30 n. 2, pp. 116-146 jul.-dez., 2025  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.767  
Economia política da pena e crítica da questão  
penal: da crise do passado aos aportes para o  
futuro  
Political economy of punishment and critique of the  
penal question: from the crisis of the past to  
contributions for the future  
Marina Araújo Reis Lavarini*  
Resumo: Este trabalho se propõe a revisitar  
criticamente a tradição da economia política da  
pena, identificando seus principais fundamentos,  
limites e possibilidades de reelaboração a partir  
do pensamento de Karl Marx. Derivando da  
constatação de que a criminologia crítica e a  
Abstract: This work aims to critically revisit the  
tradition of the political economy of  
punishment, identifying its main foundations,  
limits, and possibilities for re-elaboration based  
on Karl Marx’s thought. Coming from the  
observation that critical criminology and  
political economy of punishment tend,  
historically, to distance themselves from the  
historical-materialist reading that originated  
them, the study seeks to revisit the ontological  
and methodological assumptions of Marxism for  
understanding the penal question. It analyzes  
the development of the two best-known works  
of the political economy of punishment,  
Punishment and social structure, by Rusche and  
Kirchheimer, and The prison and the factory, by  
Melossi and Pavarini, pointing out the errors  
arising from the confusion between political  
economy and the critique of political economy,  
economia  
política  
da  
pena  
tendem,  
historicamente, a afastar-se da leitura histórico-  
materialista que as originou, o estudo busca  
retomar os pressupostos ontológicos  
e
metodológicos do marxismo para a compreensão  
da questão penal. Analisa-se o desenvolvimento  
das duas obras mais conhecidas da economia  
política da pena, Punição e estrutura social, de  
Rusche e Kirchheimer, e Cárcere e fábrica, de  
Melossi e Pavarini, apontando os equívocos  
decorrentes da confusão entre economia política  
e crítica da economia política e da tendência ao  
parcelamento científico.  
and  
the  
tendency  
towards  
scientific  
Palavras-chave: Economia política da pena;  
criminologia crítica; questão penal.  
fragmentation.  
Keywords: Political economy of punishment;  
critical criminology; penal question.  
Introdução  
A criminologia crítica1, marco da análise crítica e histórico-materialista sobe a  
* Mestre (2024) e bacharela (2020) em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-  
graduada em Direito Penal e Criminologia.  
1
É longa a discussão em torno da definição e classificação da(s) criminologia(s) crítica(s), diante da  
diversidade de terminologias surgidas ao redor do mundo e com o passar do tempo: nova criminologia,  
criminologia marxista, criminologia radical, criminologia dialética, criminologia feminista etc. (cf. ANITUA,  
2018; CARVALHO, 2013; LARRAURÍ, 1992). Para nós, acertada é a posição de Vera Regina Pereira de  
Andrade, que aborda a criminologia crítica enquanto a síntese ou a forma mais genérica e avançada  
que unifica as principais posições críticas à questão penal e à criminologia tradicional: “enfim, sob a  
denominação de ‘criminologia crítica’ designa-se um estágio avançado da evolução da criminologia  
‘radical’ norte-americana e da ‘nova Criminologia’ europeia, englobando um conjunto de obras que,  
desenvolvendo um pouco depois as indicações metodológicas dos teóricos do paradigma da reação  
social e do conflito e os resultados a que haviam chegado os criminólogos radicais e novos, atingem,  
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questão penal2, surgiu na segunda metade do século XX e, antes mesmo da virada do  
século, já era tida por vários autores como um campo em crise3 (cf. LARRAURÍ, 1992;  
SWAANINGEN, 2000). Não obstante, ainda hoje, muitos seguem reivindicando sua  
continuidade e capacidade de autorreinvenção (cf. CARVALHO, 2014; DAL SANTO,  
2022; GIAMBERARDINO, 2015; MARTINS et al, 2022; SOZZO, 2018).  
Quer se entenda pelo inescapável esgotamento ou pela possibilidade de  
reelaboração da criminologia crítica enquanto um campo dotado de certa coesão, é  
notório que as teorias críticas no âmbito da questão penal tendem a “afastar-se da  
leitura materialista que marcou seus passos iniciais”, ganhando centralidade “ora uma  
tendência focada na cultura e nas micronarrativas, ora um reformismo conformado”  
(MEDRADO, 2018a, p. 232).  
Dentre os que nos ocupamos em desenvolver e aprofundar o estudo e a crítica  
da questão penal desde uma perspectiva marxista reivindicando, ou não, a  
criminologia crítica propriamente dita , a atenção frequentemente se volta à assim  
chamada economia política da pena, grande alicerce da criminologia crítica e tema  
essencial na conformação das teorias críticas de extração marxista. É ela, neste  
momento, nosso principal objeto.  
Conquanto a economia política da pena seja vista como a base da criminologia  
crítica, não há entre elas uma relação de sucessão temporal ou lógica; o surgimento e  
o desenvolvimento de ambas estão interligados e, por vezes, se confundem. Não  
obstante, a primeira assume um caráter mais específico ao se propor a traçar “uma  
interpretação da história da penalidade na qual o objeto fundamental consiste em  
relacionar as categorias de derivação marxista à reconstrução dos processos de  
desenvolvimento das principais instituições penais” (MELOSSI, 2006b, p. 10). Nesse  
sentido, o essencial já não é a crítica à dogmática penal ou à política criminal embora  
esses temas residam em suas adjacências , mas a observação do desenrolar histórico.  
por dentro desta trajetória, a superação deles. E, nesta revisão crítica, aderem a uma interpretação  
materialista e alguns marxista, certamente não ortodoxa dos processos de criminalização nos países  
de capitalismo avançado” (2016, p. 261).  
2
A “questão criminal” ou “penal” é um termo recorrente na criminologia crítica (cf. MELOSSI, 2005)  
para designar o tratamento dos assuntos relacionados ao crime, à pena, ao criminoso etc. Neste  
trabalho, optou-se por fazer uso do conceito na perspectiva mais ampla que contempla a conexão entre  
esses temas, observadas suas especificidades, e o todo social; entendendo a questão penal não a partir  
da perspectiva meramente jurídica, mas como uma expressão das contradições da sociedade dividida  
em classes.  
3
Essa crise é histórica e filosoficamente associada: (i) à falência do “estado de bem-estar social”  
(BARATTA, 2004; LARRAURI, 1992; MELOSSI, 1984; ZAFFARONI, 2013); (ii) à certa ingenuidade ou  
idealismo dos autores, sobretudo em relação à pretensão (não unânime) de abolição dos sistemas penais  
(LNCIARDI apud MELOSSI, 1984); e (iii) à fragmentação do debate em teorias especializadas, que elegem  
enfoques a partir das questões ambiental, racial e de gênero (CARVALHO, 2014), por exemplo.  
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Assim, ao apontar a correspondência direta entre controle social e sistema  
produtivo, a economia política da pena trata daquele como relação concreta, em uma  
importante e inequívoca ruptura com a doutrina penal e criminológica tradicionais,  
cujas análises sobre crime e punição já criticadas desde o século anterior por Karl  
Marx e Friedrich Engels (2011, p. 43) se limitavam à descrição abstrata e  
autorreferenciada de conceitos jurídicos.  
Malgrado contemple referenciais teóricos diversos, a tradição “tem como  
elemento fundamental a adoção de uma concepção materialista de história, com forte  
influência, ao menos em seu nascedouro, do método marxiano” (MEDRADO, 2021, p.  
22). Explica Nayara Medrado:  
A expressão “economia política da pena” (EPP) é utilizada para  
designar um certo campo de análises criminológicas, que surge em  
oposição a um hegemônico enfoque ideológico ou idealista manifesto  
nas tradicionais teorias da pena. O mais comum é que o termo seja  
usado para designar um conjunto de abordagens mais ou menos  
inspiradas na crítica à economia política (e ao direito, e ao estado) de  
Marx, ainda que, naturalmente, o grau e o modo da apropriação feita  
seja variável, repercutindo em abordagens múltiplas e heterogêneas  
entre si, como é característico do próprio campo marxista de forma  
mais ampla. (2021, p. 23)  
Nesse contexto, as teses elaboradas pelos considerados grandes intérpretes da  
tradição Melossi e Pavarini (2006), Rusche e Kirchheimer (2004), Garland (1985),  
Ignatieff (1978), etc. se ocuparam do surgimento e desenvolvimento do sistema  
carcerário no hemisfério norte. Foram, ademais, fortemente influenciadas pela  
elaboração marxiana acerca da assim chamada acumulação primitiva, presente no  
vigésimo quarto capítulo de O capital, exaustivamente lido no âmbito da economia  
política da pena. No famoso texto, Marx traça a constituição histórica da relação capital  
na via clássica de entificação do modo de produção capitalista a partir do caso da  
Inglaterra.  
Não são novos, tampouco raros, os apontamentos sobre a problemática de  
importar, acrítica e anacronicamente, as conclusões dos estudos realizados sobre as  
particularidades de territórios europeus específicos para a compreensão da questão  
penal no sul global (ANDRADE, 2016, 2021; OLMO, 1979; SOZZO, 2018). Dal Santo  
aponta, inclusive, que a reafirmação dessa incompatibilidade conduziu a uma certa  
rejeição, por parte dos críticos latino-americanos, à economia política da pena:  
Se antes muitos criminólogos críticos latino-americanos reproduziam a  
EPP sem qualquer adaptação substancial e relevante à realidade local,  
hoje uma nova tendência é seu rechaço de antemão seja por ser  
considerada historicamente superada ou eventualmente por ter sua  
capacidade analítica e seu poder explicativo limitados à realidade dos  
países centrais. (2022, p. 2)  
Mas é interessante notar que as ressalvas sobre a necessidade de empreender  
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investigações a partir das peculiaridades regionais se apresentam desde O capital e, a  
Marx, partem também dos autores da economia política da pena. Aliás, os esforços de  
grande parte deles decorrem da observação do estudo marxiano sobre o caso inglês,  
mas reforçam, não raro, os aspectos locais que determinam a gênese e o  
desenvolvimento do sistema penal no país específico examinado. Melossi (2006a), por  
exemplo, debruçou-se sobre a formação social da Itália e da Alemanha, nas quais o  
modo de produção capitalista apresentou uma via de entificação diversa daquela  
verificada na Inglaterra e na França, também por ele abordadas.  
Cabe ponderar ainda que a conexão entre a criminologia crítica brasileira e a  
europeia muito se justifica pela preocupação de ambas em refutar as semelhantes4  
premissas positivistas da criminologia tradicional. Ora, na Europa, apesar do diálogo  
estabelecido com as fontes estadunidenses, a vanguarda do pensamento  
criminológico-crítico se voltou fundamentalmente contra a criminologia positivista  
(ANITUA, 2008). Já nos Estados Unidos, a criminologia dominante partiu bastante da  
sociologia criminal, de modo que as primeiras insurgências críticas, como a Escola de  
Chicago, contestaram as premissas criminológicas funcionalistas (ANITUA, 2008). Esse  
cenário, além de permitir certo grau de generalização em torno da “criminologia crítica  
europeia”, também demonstra uma conexão com a tradição brasileira, que se  
preocupou em refutar as matrizes positivistas (à brasileira) da criminologia tradicional.  
Ciente desses dilemas, a crítica latino-americana contemporânea ao direito  
penal, ao passo que acompanha as teorias desenvolvidas do lado de 5, tem  
resgatado a importância da economia política da pena, absorvendo seus avanços para  
a compreensão da nossa realidade e para a elaboração de uma crítica marxista da  
questão penal. Às conhecidas contribuições de Rosa del Olmo, Vera Regina Pereira de  
Andrade, Juarez Cirino dos Santos, Lola Aniyar de Castro, dentre outros, soma-se  
esforços mais recentes, dentre os quais destaca-se publicações de Martins et al.  
(2022), Medrado (2024, 2025), Serra (2009, 2017), Dal Santo (2022), Leal (2017,  
2020) etc.  
Entendendo a economia política da pena como esse nicho de bases  
4 Diversamente do que se observou nos Estados Unidos, o discurso criminológico tradicional veiculado  
na América Latina esteve historicamente alinhado à criminologia europeia, com predominância para a  
lógica positivista clínica e individualista. Assim, com diversas tentativas históricas e atuais de reciclagem  
das velhas teorias, a criminologia oficial desenvolvida no Brasil foi aquela “do tipo clínico positivista,  
associado às peculiaridades do racismo ‘quase oficial’” (GIAMBERARDINO, 2015, p. 22), com destaque  
para uma violência excessiva das polícias e do sistema de justiça criminal. A contraposição desse  
paradigma positivista é tão importante na história da criminologia crítica brasileira que diversos autores  
a apontam como o alicerce fundamental da tradição, cuja heterogeneidade é sempre destacada.  
5 Cita-se, aqui, a teoria marxista da dependência e a teoria decolonial, abordagens com grande influência  
sobre o pensamento criminológico-crítico latino-americano.  
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A Economia política da pena e crítica da questão penal  
materialistas e marxistas no complexo emaranhado da criminologia crítica, propomo-  
nos a contribuir com o avanço dos estudos críticos à questão penal. Para tanto,  
derivando de reflexões suscitadas durante pesquisa de mestrado (LAVARINI, 2024),  
entendemos ser pertinente pautar alguns dos pressupostos centrais para a intelecção,  
hoje, da questão penal a partir da tradição marxista: a crítica à economia política, ao  
parcelamento científico e ao economicismo.  
A partir desses pilares, sob nossa modesta concepção, é possível revisitar a  
economia política da pena em todos os seus avanços, sem perder de vista os debates  
atuais e as questões mais específicas pertinentes ao capitalismo avançado, sobretudo  
na realidade latino-americana e brasileira; bem como a crítica marxiana e marxista ao  
direito, ao capitalismo e ao estado.  
1. Um retorno aos cânones da economia política da penalidade  
Malgrado sejam dignas de nota obras precursoras como Criminality and  
economic conditions, de Willem Bonger (1916), Punição e estrutura social é  
considerado, à quase unanimidade, o marco inaugural da economia política da pena  
(MELOSSI, 2006B; DE GIORGI, 2019). O livro foi concebido pelo jurista judaico-alemão  
Georg Rusche durante seu exílio desencadeado pela perseguição nazista na década de  
1930, mas, com a morte repentina do autor, aos seus manuscritos foram adicionados  
uma introdução e cinco capítulos por Otto Kirchheimer, concretizando-se, em 1939, a  
primeira publicação da Escola de Frankfurt na Universidade de Columbia, Nova York.  
Comumente recordada pela afirmação de que “todo sistema de produção tende  
a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção”  
(RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 20)6, Punição e estrutura social investiga o  
desenvolvimento dos sistemas punitivos europeus da Baixa Idade Média até o período  
em que redigida a obra. Busca demonstrar, nesse contexto, a conexão entre os  
métodos sancionatórios oficiais e as relações sociais produtivas, sobretudo o modo  
pelo qual as modificações do sistema prisional são influenciadas pelo ciclo do capital  
e como o encarceramento afeta a regulação de salários, à luz do princípio da menor  
elegibilidade7.  
Tido como “o mais conhecido e influente exemplo de uma interpretação  
marxista da punição” (GARLAND, 1990, p. 108, tradução livre), Punição e estrutura  
social é enfática ao afirmar que “a pena como tal não existe; existem somente sistemas  
6
A frase, frequentemente invocada como tese central do livro, aparece apensa em sua introdução, de  
autoria de Kirchheimer.  
7
Princípio penal segundo o qual, em apertada síntese, as condições de vida na prisão devem ser  
inferiores às da vida em liberdade, a fim de reduzir a atratividade da prática de crimes.  
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Marina Araújo Reis Lavarini  
de punição concretos e práticas penais específicas” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p.  
19). O cárcere, nesse contexto, nos é apresentado como um mecanismo punitivo  
próprio ao modo capitalista de produção, de forma que a gênese e o desenvolvimento  
de ambos estão interligados e se influenciam mutuamente.  
O livro de Rusche e Kirchheimer inicialmente passou despercebido, mas ganhou  
repercussão após sua reedição em 1968 época em que já havia se expandido o  
questionamento sobre a forma e a função tradicional da prisão (MELOSSI, 1989, p.  
312) e as menções elogiosas de Michel Foucault em Vigiar e punir (1975) (DE  
GIORGI, 2006, p. 38), célebre obra da qual é considerado a principal influência teórica  
(NEDER, 2004, pp. 13-4; BATISTA, 2011, p. 86).  
Na Itália, mais precisamente na Escola de Bolonha de Direito Penal e  
Criminologia8, os criminólogos Dario Melossi e Massimo Pavarini traduziram Punição  
e estrutura social, que os instigou profundamente. Sob essa influência, lançaram em  
1980 Cárcere e fábrica, que também se tornaria um clássico da economia política da  
pena.  
Dividida em dois ensaios, um por cada autor, Cárcere e fábrica revolve o século  
XVI até os meados do século XIX. Nesse intervalo, Melossi apresenta o nexo entre  
punição e relações produtivas capitalistas na Inglaterra, Holanda, França, Itália e  
Alemanha, enquanto Pavarini descreve a consolidação das prisões estadunidenses. De  
acordo com os autores, o objetivo do livro era “estabelecer uma conexão entre o  
surgimento do modo de produção capitalista e a origem da instituição carcerária  
moderna” (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 20). Mais recentemente, Melossi (2018, p. 3,  
trad. livre9) acrescentou que, junto ao coautor, à época, se ocupou em tratar dos pontos  
que, “aos seus olhos um tanto ingênuos, pareciam ser os centros mais importantes de  
uma nova ‘criminologia crítica’”.  
Com efeito, desde o fim do século passado, quem quer que se debruce sobre a  
questão penal desde uma perspectiva marxista tem recorrido à economia política da  
pena, com destaque para Punição e estrutura social e Cárcere e fábrica. Isso porque,  
8
A Escola de Bolonha de Direito Penal e Criminologia, ou simplesmente “Grupo de Bolonha”, diz  
respeito ao grupo de pesquisadores formado na Universidade de Bolonha, na Itália, voltado à  
investigação de um “modelo integrado sobre a questão criminal entre Direito Penal e Criminologia”  
(ANDRADE, 2003, p. 46). Como nomes importantes do grupo, além de Melossi e Pavarini, cita-se  
Alessandro Baratta, Franco Bricola e Mario Simondi. A Escola de Bolonha foi responsável pela publicação  
da revista La Questione Criminale: Rivista di ricerca e dibatito su devianza e controle sociale, inaugurada  
em 1975, dirigida por Baratta até sua morte. Posteriormente, passou a se chamar Rivista dei Dellitti e  
delle Pene e, atualmente, leva o nome de Studi la Questione Criminale Nuova serie dei delitti e delle  
pene.  
9
“During this trip we touched upon what, to our rather naive eyes, seemed to be the most important  
centres of a new ‘critical criminology’ – those were the heydays of the National Deviancy Conference  
(NDC) from Edinburgh to Sheffield to Cambridge to London and got in touch with some of its best  
known proponents, such as Richard Kinsley, Ian Taylor and Jock Young.(MELOSSI, 2018, p. 3)  
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A Economia política da pena e crítica da questão penal  
a partir da leitura de Marx, essas obras procuraram traçar a correlação concreta entre  
penalidade e sistemas econômicos, incluir elementos empíricos para a análise dos  
sistemas penais concretos e desvendar especificidades da conformação do direito  
penal.  
Situando Punição e estrutura social a partir de sua afinidade com a obra de  
Marx, De Giorgi (2006, p. 42) declara que “no centro da análise de Rusche e  
Kirchheimer encontramos as transformações descritas no primeiro livro do Capital”.  
Diverso é o balanço de Gizlene Neder, tradutora da edição brasileira da obra, para  
quem esta aborda “as mudanças conhecidas sobre a organização capitalista do  
trabalho (num sentido mais amplo e menos estritamente científico do que aquele  
adotado na crítica marxiana da economia política)” (2004, p. 15), “sem os  
dogmatismos (também canônicos) do pensamento marxista policiado pelas  
organizações partidárias” (2004, p. 15).  
David Garland, em Punishment and modern society: a study in social theory,  
aponta que, embora Punição e estrutura social  
não seja, de forma alguma, o exemplo mais sofisticado de análise  
marxista e às vezes seja levianamente descartada pelos críticos  
como mero reducionismo bruto , ela, no entanto, representa o relato  
de punição mais bem sustentado e abrangente que emergiu a partir  
da tradição marxista, e aquele que menos deve a outras tradições de  
interpretação (GARLAND, 1990, p. 89, trad. livre10).  
Conforme aponta Garland, o livro, em grande medida, tem seu aparato teórico  
“submerso sobre a superfície de seu relato histórico”, evitando “termos ou vocabulário  
marxista explícito” em seus pronunciamentos teóricos “muito resumidos” (1990, pp.  
89-90, trad. livre11).  
Ao se ter em conta a relação entre exposição histórica e digressões teóricas, há  
um contraste relevante entre o ensaio de Rusche e Kirchheimer e Cárcere e fábrica.  
Este, sob grande influência daquele, adentra a genealogia e o desenvolvimento do  
controle social e do direito penal enquanto sua forma específica, mas com um nível de  
abstração significantemente maior, em que as conclusões teóricas atravessam todo o  
relato histórico. Além do diálogo com a própria Punição e estrutura social, Melossi e  
Pavarini se referem diversas vezes a Marx e a marxistas diversos, dentre os quais se  
10 “While this body of work is by no means the most sophisticated example of Marxist analysis – and is  
sometimes lightly dismissed by critics as nothing more than crude reductionism it nevertheless  
represents the most sustained and comprehensive account of punishment to have emerged from within  
the Marxist tradition, and the one which owes least to other traditions of interpretation.”  
11 “To a large extent, the book's theoretical apparatus is submerged beneath the surface of its historical  
account, and, where it does make theoretical pronouncements, these are all too briefly stated, usually  
in a language which discreetly avoids explicit Marxist terms or vocabulary.”  
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destacam Evgeni Pachukanis (2017)12, Edward Palmer Thompson e os frankfurtianos,  
notadamente Hebert Marcuse; além de juristas como Cesare Beccaria e Jeremy  
Bentham; e autores de outras tradições críticas, como Goffman e Foucault, este último  
com grande destaque.  
A partir do raciocínio de Rusche, Melossi e Pavarini (2006) entendem a prisão-  
pena como um fenômeno que só pode se concretizar no momento histórico preciso  
em que o trabalho assalariado se coloca de forma universal. Além de afirmar que seu  
trabalho “se interessa pela classe operária e utiliza a análise marxista” (p. 19), a dupla  
italiana declara a pretensão de construir “uma teoria materialista (no sentido marxista)  
do fenômeno social chamado cárcere, ou melhor, de estender os critérios e as  
suposições de base da teoria marxista da sociedade à compreensão deste fenômeno”  
(p. 20).  
O primeiro ensaio de Cárcere e fábrica, na mesma linha de Punição e estrutura  
social, faz diversas citações ao capítulo A assim chamada acumulação primitiva,  
defendendo que o capitalismo clássico, inicialmente engendrado a partir da  
expropriação violenta de camponeses, utilizou-se da prisão como instituição auxiliar à  
fábrica para controlar e disciplinar os sujeitos anteriormente expulsos do campo  
(MELOSSI; PAVARINI, 2006, pp. 33-9). Nessa perspectiva, o cárcere como método  
punitivo só faz sentido em um capitalismo industrializado e é para a manutenção deste  
que aquele opera, tanto como ferramenta concreta que incide sobre a realidade  
material ao atuar, por exemplo, na regulação de salários (MELOSSI; PAVARINI, 2006,  
p. 212) –, quanto como “mecanismo de subjetivação” (MEDRADO, 2017, p. 9).  
Para os italianos, a atuação sobre os aspectos materiais da sociedade e a  
interferência sobre a subjetividade dos internos e dos externos (respectivamente,  
detentos e pessoas em liberdade) são vieses da mesma função geral de “controle  
social”, conceito associado à função disciplinar do cárcere. Mais do que isso: a prisão,  
assim como as outras instituições segregadoras, tidas como “complementares à  
fábrica”, é protagonista do processo de consolidação da classe proletária,  
12  
Sartori e Medrado (2021, pp. 231-2), comentando a influência da tradição pachukaniana sobre a  
crítica marxista do direito e a criminologia crítica brasileira, notam: “[...] vários meandros do tratamento  
marxiano do direito muitas vezes são negligenciados por esses importantes autores; geralmente, ao se  
trazer a equação pachukaniana entre direito, forma mercantil e sujeito de direito (NAVES, 2000; CIRINO  
DOS SANTOS, 2006), isso ocorre naqueles que pretendem seguir de perto o autor de O capital, o que  
pode tomar Pachukanis por Marx e, mesmo que o autor da Teoria geral do direito e o marxismo seja  
essencial a uma perspectiva crítica sobre o direito, a obra marxiana, acreditamos, é mais rica que a  
teorização pachukaniana (SARTORI, 2015a). Deste modo, mesmo o melhor da tradição da crítica  
marxista ao direito (SARTORI, 2015b) como aquilo presente nos textos de Márcio Naves (2014) ou,  
quanto à criminologia brasileira, na obra de Juarez Cirino dos Santos (2018) apoia-se nesse ponto,  
ao nosso ver, deixando de lado como algo marginal outras nuanças importantes da análise marxiana da  
esfera jurídica, que se explicitam, acreditamos, ao se ter em conta a questão penal”.  
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A Economia política da pena e crítica da questão penal  
constituindo-a enquanto tal ao conformar a disciplina que lhe é intrínseca.  
Se, de um lado, a centralidade da função disciplinar do cárcere, em Melossi e  
Pavarini, visa a reparar uma lacuna que acreditam existir em Punição e estrutura social  
(MELOSSI, 2006b; VAZ, 2021), de outro, é precisamente o que escancara a  
insuficiência de Marx para a compreensão da questão penal, segundo o raciocínio  
traçado pelos autores (LAVARINI, 2024). Para tratar com mais profundidade da  
temática, os italianos resgatam diversas ideias desenvolvidas por Michel Foucault, as  
quais operam de forma suplementar à influência do pensamento marxiano; e  
mencionam Vigiar e punir, junto à obra de Rusche e Kirchheimer, como “os pontos  
mais altos da investigação teórica sobre a instituição carcerária” (MELOSSI; PAVARINI,  
2006, p. 20).  
Os dois livros, para Melossi, se complementam em seus erros e acertos: Punição  
e estrutura social contribuiu para “uma releitura da história da pena numa perspectiva  
marxista” (2006b, p. 10), mas não conferiu suficiente destaque à questão da disciplina;  
e Vigiar e punir se perdeu “na indeterminação de uma estrutura de signos e relações,  
brilhantemente ligados entre si, mas cuja razão de existência nos escapa” (2006a, p.  
77), ao passo que “oferecia a possibilidade não só de dar a sua contribuição àquela  
interpretação, mas também de ir além dela, ingressando num espaço que escapava  
dos esquemas mais rígidos da leitura marxista” (2006b, p. 10).  
De fato, Punição e estrutura social chegou a traçar a relação entre  
encarceramento, oferta e demanda de mão de obra e disciplina, mas o fez como  
endosso da tese geral de que “o objetivo de cada pena é a defesa daqueles valores  
que o grupo social dominante de um estado vê como bons para a ‘sociedade’”  
(RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 8). Na obra alemã, a disciplina não recebe o mesmo  
destaque conferido por Cárcere e fábrica.  
Melossi e Pavarini, por sua vez, não se limitam a atribuir à prisão a função  
correcional; buscam entender os instrumentos específicos que conformam a disciplina  
do detento e sua correlação com o disciplinamento do trabalhador assalariado na  
objetificação do capitalismo, especialmente o operariado de fábrica. No  
desenvolvimento da tese, o pensamento de Michel Foucault é invocado para suprir os  
aspectos inalcançados ou omissos na obra de Rusche e de Marx; percurso no qual são  
conjugadas categorias marxianas (deixando intocadas outras muitas, frise-se) com  
concepções derivadas do materialismo vulgar, como a economia política do corpo  
(LAVARINI, 2024).  
Dessa maneira, a relação de complementariedade expressamente apontada por  
Melossi entre Punição e estrutura social e Vigiar e punir é replicada, em Cárcere e  
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fábrica, entre Marx e Foucault. Seguindo o raciocínio do italiano, é possível inferir que,  
para compreender a fundo as peculiaridades da questão penal, bastaria conjugar as  
bases desenvolvidas pelos dois autores, levando em consideração que os aspectos  
omissos na obra foucaultiana já haviam sido expostos na marxiana, e vice-versa.  
Pode-se dizer, mutatis mutandis, que algo semelhante ocorreu no  
desenvolvimento da economia política da pena e da criminologia crítica como um todo.  
Consolidou-se a ideia de que o que há de essencial na obra de Marx a respeito da  
questão penal já fora objeto de estudo suficiente. Daí, portanto, restaria enriquecer o  
debate à luz de outras tradições, compreendendo os modos específicos de ação do  
poder, da disciplina e da cultura, partindo para análises mais imediatas, concretas e  
parcelarizadas. Caminhou-se, assim, para o processo denominado por Maximo Sozzo  
de “giro culturalista” da criminológica crítica (2018); ou, segundo Medrado (2018a, p.  
232), “ora uma tendência focada na cultura e nas micronarrativas, ora um reformismo  
conformado”.  
Mas se, com todas as suas láureas, os próprios precursores da economia política  
da pena tiveram seu potencial teórico e crítico mitigado, à luz da complexidade do  
pensamento de Marx, ao deixar categorias fundamentais de lado, muito mais aquém  
estará o pensamento criminológico crítico produzido a partir daí, que tende a trabalhar  
com níveis cada vez menos elevados de abstração e, ainda, remendando uma série de  
premissas incompatíveis entre si.  
2. Criminologia e marxismo: “uma relação problemática”  
2.1. Novos dilemas, velhas questões  
Os trabalhos da economia política da pena inauguraram as tentativas de  
repaginar e/ou contribuir com as obras de Marx no âmbito do estudo da questão  
penal. Esse esforço inicial, todavia, se deu em um momento desafiador para a tradição  
marxista: o pós-guerra, marcado por aporias diversas e pela “crise do movimento  
comunista” (CLAUDÍN, 2012), bem como por críticas severas ao socialismo real,  
notadamente à Internacional Comunista e ao stalinismo.  
Nesse cenário, uma disputa acerca da interpretação da obra marxiana ganhou  
espaço no meio marxista, com grandes repercussões sobre a criminologia crítica: as  
perspectivas conflitantes do húngaro György Lukács e do francês Louis Althusser. Este  
defende a existência de uma ruptura epistemológica no desenvolvimento do  
pensamento de Marx, cindindo sua obra em dois momentos: a juventude idealista e a  
maturidade histórico-materialista. Aquele, por sua vez, proclama a necessidade de  
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valorizar os trabalhos do jovem Marx, que já carregava em si os pressupostos  
essenciais para à frente, superando algumas posições, desenvolver seus trabalhos mais  
maduros.  
Em meio a essa divisão, cuja pertinência para o tema logo ficará mais clara, os  
autores da criminologia marxista tinham dois desafios. O primeiro, já exposto, era ir  
além dos escritos marxianos sobre a questão penal (cf. BRODEUR, 1984; LYRA FILHO,  
1972; TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1980; SANTOS, 1979). O segundo, muito  
encampado pelos criminólogos remanescentes da Escola de Frankfurt, consistia na  
tentativa de superar o que se conhecia como “marxismo ortodoxo”, associado a um  
pensamento de matriz determinista e mecanicista (cf. ANITUA, 2008, P. 621; DE  
GIORGI, 2006, P. 11; TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1980).  
Acerca do primeiro desafio, Lola Aniyar de Castro (1982, p. 85), por exemplo,  
sustentou que “uma criminologia marxista ainda estava por se fazer, especialmente  
porque tem pouco donde aferrar-se às obras tradicionais de Marx”. Indo além,  
Alessandro Baratta proclamou a necessidade de que a criminologia crítica integrasse  
dados e análises colhidos no âmbito de outros referenciais teóricos, diante da “relação  
problemática que subsiste entre criminologia e marxismo” (2011, p. 159).  
A necessidade de ir além de Marx implicou um processo de incorporação de  
perspectivas como a psicanálise, a filosofia pós-estruturalista, a sociologia de dados  
etc. Entender a influência de cada uma delas sobre a economia política da pena e a  
criminologia crítica é, infelizmente, um objetivo que nos escapa neste ensaio; mas serve  
como um sintoma do que foi por muitos interpretado como um esgotamento do  
marxismo no que diz respeito à questão penal.  
Todavia, conquanto seja óbvio que Marx não desenvolveu um estatuto sobre  
crime e penalidade, Medrado (2018b) demonstrou que são muitas as contribuições, e  
múltiplas as obras do autor, para compreender todos os aspectos do pensamento  
marxiano sobre o tema. Mais: se a questão penal nunca aparece de forma setorizada  
em Marx, é justamente porque não é esse seu modo de exame da realidade como  
será mais bem desenvolvido em outra seção; não porque ele pouco tivesse a tratar  
dela.  
No já citado vigésimo quarto capítulo de O capital, é narrada a constituição  
histórica da relação capital na via clássica de entificação do modo de produção  
capitalista. Como já exaustivamente exposto no meio da crítica criminológica marxista,  
naquele cenário, as casas de trabalho inglesas e a prisão foram descritas como  
mecanismos que contribuíram para a gestão da pobreza e para a construção da  
disciplina necessária ao novo sistema de trabalho assalariado. Inclusive, o enfoque  
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dado pela economia política da pena para a disciplina da classe trabalhadora como  
momento determinante da análise do cárcere, conforme pincelado no segundo tópico  
deste trabalho, repercutiu de maneira a endossar a suposta insuficiência ou  
inadequação do marxismo para a intelecção dos fenômenos do crime e da punição.  
Todavia, antes da publicação de O capital, a questão penal não era ignorada  
pelo autor. Crime, penalidade e até mesmo o que se entende por “ciências penais”  
foram objetos da crítica e das reflexões de Marx desde Glosas marginais ao artigo “O  
rei da Prússia, passando por textos da Nova Gazeta Renana e, junto a Engels, por A  
sagrada família. Essas obras, muito importantes para compreender o estatuto do  
pensamento marxiano em toda a sua complexidade, foram, via de regra, negligenciadas  
pela economia política da pena e pela criminologia crítica.  
A leitura de que haveria uma ruptura epistemológica entre o jovem e o velho  
Marx, decerto, explica uma parte da rejeição e/ou do desconhecimento da tratativa da  
questão penal nas obras da juventude do autor. Nesse sentido, os britânicos Ian Taylor,  
Paul Walton e Jock Young, em Criminologia crítica (1980), que dá continuidade ao  
clássico The new criminology (1973), problematizam os pensamentos desenvolvidos  
por Louis Althusser e os althusserianos, por relegarem ao “status de especulação  
metafísica” "o trabalho de Marx sobre o homem (na linha-de-frente de seus trabalhos  
primitivos e sustentado em seu trabalho posterior sobre economia política)”, o que  
poderia implicar danos sérios à “teoria do desvio e da punição” desde uma perspectiva  
marxista (1980, pp. XX-XXI)13.  
Por outro lado, como já delineado na seção anterior, mesmo os criminólogos  
mais atentos à totalidade dos escritos marxianos, como Dario Melossi, tendem a deixar  
13  
"[...] um retorno a Marx, em criminologia, deve, inevitavelmente, levantar a espinhosa questão de  
como se engaja na 'leitura' de Marx. Em um clima intelectual e político onde o 'Marxismo' tem sido, tão  
frequentemente, equivalente ao stalinismo, teóricos europeus do desvio têm sido, talvez, mais curiosos  
sobre as questões envolvidas na interpretação Marxista do que seus parceiros americanos (cujos  
problemas têm sido de superar uma rejeição monolítica do Marxismo, em qualquer forma). Uma das  
tendências dominantes do marxismo europeu contemporâneo (e talvez a tendência dominante entre  
os Marxistas preocupados com o 'trabalho cultural’ – sobre direito, educação ou os meios de  
comunicação) é o Marxismo estruturalista de Louis Althusser (cf. ALTHUSSER, 1970; 1971). Esta leitura  
de Marx nega a autenticidade, especificamente a cientificidade de qualquer outra leitura que não a sua  
própria. Preocupado, sobretudo, com o objetivo da revolução social (e arguindo que este objetivo é  
alcançável, cientificamente, através de uma correta prática teórica, os althusserianos encontrariam  
pouco tempo para questão de diversidade socialista que nós temos levantado nestas páginas. O  
trabalho de Marx sobre o homem (na linha-de-frente de seus trabalhos primitivos e sustentado em seu  
trabalho posterior sobre economia política) é relegado ao status de especulação metafísica. Os textos  
de Hirst são incluídos porque eles constituem um ataque desenvolvido sobre o que os althusserianos  
veriam como o idealismo (isto é, as preocupações ontológicas) dos teóricos radicais do desvio, e  
porque, potencialmente, eles formam o modelo para uma 'criminologia' sofisticada que poderia se  
erigida em nome da defesa social do estado das sociedades socialistas. Mesmo os novos  
criminólogos radicais, com sua volta a uma análise materialista da lei, reconheceram que uma tal  
criminologia de defesa social poderia ser usada, ilegitimamente, para justificar uma variedade de  
iniciativas repressivas (e.g., hospitalização psiquiátrica de dissidentes) realizada em nome do estado,  
’socialista’.” (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1980, pp. XX-XXI)  
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escapar vários dos aspectos trabalhados por Marx no que diz respeito à crítica da  
economia política (LAVARINI, 2024). Isso, além de se relacionar ao enfoque na  
disciplina e à já citada influência de Foucault (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1980), está,  
em alguma medida, interligado à segunda questão acima pontuada, isto é, a tentativa  
de superar o determinismo e o mecanicismo relacionados ao materialismo vulgar,  
frequentemente confundido com a tese da determinação da esfera econômica em Marx.  
A respeito, Gabriel Anitua (2008, p. 621), em seu conhecido trabalho de  
investigação da história dos pensamentos criminológicos, pontuou que, no contexto  
exposto, uma das preocupações dos criminólogos críticos, principalmente os  
remanescentes da Escola de Frankfurt, era superar “uma interpretação dessa cultura  
marxista com parâmetros deterministas ou mecanicistas”, atribuídos ao “marxismo  
ortodoxo”. Esta expressão, diga-se, é comumente vista em textos da época e, embora  
seu significado tenha sido objeto de grande disputa (cf. LUKÁCS, 2003), foi, entre os  
críticos da questão penal, majoritariamente associada com uma “representação  
estática, monolítica e vertical dos aparelhos de poder” (DE GIORGI, 2006, p. 11)14.  
Em um cenário em que muito desse determinismo chegou a ser atribuído ao  
próprio Marx (LAURRARÍ, 1992), uma parte da tradição da economia política da pena  
e da criminologia marxista incorreu, em alguma medida, no materialismo vulgar e no  
mecanicismo (DAL SANTO, 2022). A própria Punição e estrutura social é  
frequentemente criticada por traçar uma relação demasiadamente direta entre  
regulação de salários e aprisionamento (VAZ, 2021; GARLAND, 1990) e pela sujeição  
ao mero exame sociológico de dados empíricos. É preciso ressaltar, não obstante, que  
Kirchheimer reconhece, ao introduzir o livro, que  
a dependência do crime e do controle do crime em relação a  
condições econômicas e históricas não oferece, contudo, uma  
explicação completa. Essas forças não determinam, sozinhas, o objeto  
de nossa investigação e por si só são limitadas e incompletas em  
várias formas (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 3).  
André Vaz aprofunda a análise de Punição e estrutura social que, na obra, o  
exame da realidade “opera num nível reduzido de abstração” (2021, p. 791), que deixa  
de ser remetido ao e interpretado no contexto da argumentação central de Marx. Isto  
é, ao tentar apreender o movimento dos trabalhadores ativos e do exército industrial  
de reserva, Rusche “não se vale de um conceito de acumulação e de outras categorias  
marxianas abstratas relevantes, tal como o valor, ou, menos ainda, a mediação social  
por ele operada” (VAZ, 2021, pp. 791-2), limitando-se a descrever o princípio da  
14  
A própria citação "aparelhos de poder” fornece pistas da influência, sobre De Giorgi, de Louis  
Althusser e sua tese sobre a ideologia e os aparelhos ideológicos de estado.  
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menor elegibilidade e a noção vaga de mercado de trabalho, de maneira tal que se  
aproxima de “uma doutrina do fundo de salários de corte ricardiano” (p. 792).  
Assumida essa premissa, a ênfase recai na forma como a punição  
incide sobre a massa desocupada, que varia ao sabor desse  
mecanismo e, assim, fica em segundo plano uma série de outras  
determinações que, segundo Marx, entram decisivamente em jogo na  
lei geral da acumulação (em especial a tendência geral ao aumento da  
composição orgânica dos capitais, que por sua vez consiste,  
novamente, em desdobramento da contradição, presente na forma-  
mercadoria, entre valor e valor de uso). (VAZ, 2021, p. 792)  
Assim, não parece absurdo que, ao tentar escapar do de fato, perigoso –  
economicismo e lidar com a complexidade do tema a partir de uma teoria crítica  
lastreada em uma dicção marxista, a economia política da pena tenha acabado por  
admitir um materialismo vulgar como plano de fundo para tratar de temas mais  
específicos da questão penal, deixando de lado muito do que é importante na obra de  
Marx.  
Ao expor o desenvolvimento da criminologia marxista e tentar encontrar uma  
causa para sua abertura epistemológica (a qual reputa necessária), o sociólogo Jean-  
Paul Brodeur afirmou:  
Sabemos que o projeto de constituir uma criminologia radical  
esbarrou primeiro na intransigência de alguns defensores da  
ortodoxia marxista, como Mugford, Hirst e vários outros. Eles  
argumentaram que uma interpretação marxista do desvio seria  
necessária para a dissolução da criminologia como disciplina  
autônoma, o que se faria dentro de uma economia política estruturada  
pelas posições de O capital de Marx. A criminologia marxista,  
entretanto, evoluiu ao contrário do que então se afirmava. Agora,  
longe de pretender abolir a criminologia tradicional, a economia  
política do desvio se afirma com ela compatível e não hesitaria em  
constituir o seu complemento heurístico. (BRODEUR, 1984, pp. 47-8,  
trad. livre15)  
Esse pequeno trecho resume e exemplifica muito bem o trajeto que expusemos  
até aqui a respeito da economia política da pena e da criminologia crítica. Vejamos:  
movidos pela pretensão de afastar-se da “intransigência” associada à “ortodoxia  
marxista” – esta erroneamente ligada a uma suposta compreensão circunscrita à  
“economia política estruturada pelas posições de O capital de Marx” –, os autores  
passam a desenvolver um pensamento compatível com a criminologia tradicional,  
15 ”On sait que le projet de constituer une criminologie radicale s’est d’abord heurté à l’intransigeance  
de certains défenseurs de l’orthodoxie marxiste, comme Mugford, Hirst et plusieurs autres. Ceux-ci  
soutenaient qu'une élucidation marxiste de la déviance passait de façon nécessaire par la dissolution de  
la criminologie, comme discipline autonome, au sein d'une économie politique structurée par les  
positions du Capital de Marx. La criminologie marxiste a toutefois évolué à l'inverse de ce qui était alors  
réclamé. Bien loin, maintenant, de prétendre abolir la criminologie traditionnelle, l'économie politique  
de la déviance s'affirme compatible avec elle et ne répugnerait pas à en constituer le complément  
heuristique.”  
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abandonando o projeto de “dissolução da criminologia como disciplina autônoma”.  
Tratando do mesmo tema, Dal Santo descreve:  
Na medida em que Rusche e Kirchheimer faleceram bem antes de que  
os sistemas penais começassem a indicar o que viria a diante, os  
autores não fizeram uma análise de tais sistemas na era do  
encarceramento em massa. De todo modo, vários outros criminólogos  
têm feito tal análise a partir das lentes trazidas por estes acadêmicos  
alemães ao campo criminológico. No entanto, antes disso, a EPP se  
manteve praticamente limitada a estudos quantitativos por volta da  
década de 1980, observando, na década seguinte, um giro  
culturalista(SOZZO, 2018) tomar conta dos debates sobre sociologia  
da punição, ao menos nos países centrais do capitalismo. A partir daí,  
autores como de Giorgi, Cavadino e Dignan, e Lacey promoveram o  
retorno da EPP à centralidade dos debates sobre punição,  
incorporando novos elementos e abordagens ligeiramente diversas. A  
seguir, ainda que de modo breve e generalizado, três novas  
características da EPP são exploradas: a incorporação de novos  
elementos a seu quadro analítico; a reconsideração sobre indicadores  
de punitividade, da economia e das condições de vida extramuros; e  
uma nova abordagem concentrada em estudos comparativos. (2022,  
p. 1.689)  
A primeira nova característica da economia política da pena descrita por Dal  
Santo, “a incorporação de novos elementos a seu quadro analítico”, é frequentemente  
suscitada como um motivo decisivo para o afastamento das bases marxistas por parte  
da tradição; ou, ao menos, para a adoção de um ponto de vista “neomarxista” (DE  
GIORGI, 2019). Salo de Carvalho (2014) pontuou que, no esforço de atualizar o debate,  
“temas que tradicionalmente escaparam às análises marxistas foram gradualmente  
incorporados como problemas centrais, inclusive no debate criminológico-crítico”,  
notadamente no que diz respeito às “questões ambiental, racial e de gênero”.  
Ora, ressalvadas a incontroversa urgência e a absoluta necessidade de debater  
os aspectos mais específicos dessas questões, que, imbrincadas e indissociáveis,  
influenciam e são influenciadas pelas demais esferas da formação social e, no nosso  
caso, o especial interesse em apreender todas essas determinações no  
desenvolvimento do sistema penal brasileiro , a crítica ora traçada incide sobre a  
solução encontrada para fazê-lo: tornar o debate cada vez mais específico e  
parcelarizado, perdendo de vista a totalidade e deixando incompleta a análise do  
argumento particular.  
Em síntese, entre as tematizações marxianas e a necessidade de progredir na  
crítica à criminologia tradicional e ao direito penal do século XX, os pensadores da  
referida economia política da pena se remetem a autores diversos que, em alguma  
medida, conseguiram avançar nas questões próprias dos novecentos. Longe de ser um  
problema, essa expansão é parte do desenvolvimento científico. A entrave apenas se  
apresenta quando a densidade do pensamento marxiano para a interpretação da  
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questão penal é ignorada ou preterida por autores que visam atualizá-la, em prol de  
uma roupagem mais moderna que carece de conteúdo crítico.  
Nas palavras de György Lukács: “o marxismo, longe de estar esgotado, mal  
começou. Em todo caso, e paradoxos à parte, o marxismo deve ser desenvolvido à  
medida que nós estudamos coisas que Marx não foi capaz de estudar” (FERRAROTTI,  
2017, p. 244)16. Na mesma linha, André Vaz (2021, p. 800) afirma ser necessário “não  
o abandono do marxismo, mas o retorno a Marx e àquilo que constitui o cerne de sua  
arrasadora crítica”, a fim de “entender o lugar do cárcere e de outras formas de punição  
na quadra atual do capitalismo, caracterizada pela crise da sociabilidade estruturada  
porque mediada – pelo valor”.  
2.2 Superando o economicismo  
Decerto, sob a perspectiva marxista, construir uma crítica radical nada mais é  
que “tomar a coisa pela raiz” (MARX, 2010a, p. 151). Conforme mostra Marx, a raiz  
do crime e da pena, como aparecem na sociedade civil-burguesa, não pode ser  
dissecada sem a crítica da economia política, haja vista que a esfera da produção  
aparece como “momento predominante” (MARX, 2011a, p. 45) do ser social; isto é,  
há uma “prioridade ontológica” da esfera econômica em relação à jurídica (LUKÁCS,  
2007, p. 57). Mas e assim rejeitamos toda forma de mecanicismo ou determinismo  
prioridade não se confunde com limitação.  
Tanto as prisões elemento constitutivo da complexa dominação de classes  
que nos é apresentado, sob as “formas jurídicas”, como resposta legítima, porque  
oficial, para a criminalidade quanto o direito penal têm sua gênese e seu  
desenvolvimento situados no capitalismo, de forma que se relacionam, em maior ou  
menor grau, à contradição fundamental desta forma de sociedade, capital versus  
trabalho, e aos demais complexos do ser social, que têm, “simultaneamente,  
dependência e crescente autonomia relativa em relação ao todo” (SARTORI, 2010, p.  
51).  
Esse maior ou menor grau decorre do fato de que o exame da relação entre  
direito e economia, ou da determinação social da esfera jurídica, não pode se dar de  
forma mecânica ou unilateral, tendo em vista que “o cerne estruturador do pensamento  
econômico de Marx se funda na concepção da determinação recíproca das categorias  
que compõem o complexo do ser social” (VAISMAN, 2007, p. 256).  
Assim, malgrado presentes em manifestações do marxismo vulgar,  
16  
Para incursão mais detalhada no projeto de renascimento do marxismo diretamente ligado à  
superação do stalinismo em Lukács, ver A destruição da razão.  
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economicismo e determinismo são profundamente incompatíveis com o pensamento  
desenvolvido por Marx, conforme explica Ester Vaisman (2007, p. 256), em leitura  
imanente dos textos marxianos e lukácsianos:  
Este enfrentamento teórico e prático forma a base do argumento  
que adverte para a necessidade de retorno a Marx, sem as peias  
erguidas pelo marxismo em geral. Trata-se de varrer das páginas da  
obra marxiana, uma discussão totalmente estranha à sua letra:  
afirmações que acusam a existência em Marx de um determinismo  
unívoco, proveniente da esfera da economia, que absolutiza a  
potência do fator econômico legando ao segundo plano a eficácia dos  
outros complexos da vida social. Ao contrário de um determinismo  
unívoco da esfera econômica sobre as outras instâncias da  
sociabilidade, como acusa grande parte de seus adversários, o cerne  
estruturador do pensamento econômico de Marx se funda na  
concepção da determinação recíproca das categorias que compõem o  
complexo do ser social.  
Não é cabível, partindo de Marx, a tarefa de conformar a priori, no plano ideal,  
a relação entre esfera econômica e instituições penais. É justamente o contrário: as  
abstrações devem partir do exame atento da realidade concreta, que está em constante  
movimento. O vigésimo quarto capítulo de O capital, Volume I, está longe de  
abstratamente descrever a relação do desvio e da pena com o modo de produção,  
mesmo porque o alemão se ocupou em erguer o edifício teórico da teoria da sociedade  
burguesa a partir do estudo aprofundado das relações produtivas dessa mesma  
sociedade em seu nascedouro. Na medida em que o fez, constatou a primazia da  
produção social sobre as demais esferas que compõem o todo social.  
Nesse sentido, na mesma linha das outras menções marxianas à questão penal,  
há na obra magna a demonstração concreta de elementos centrais em processos  
históricos específicos no caso mencionado, a via clássica de entificação do  
capitalismo. Portanto, não há descrição em abstrato da relação entre a economia e as  
demais esferas do ser social; as questões universais são traçadas sem perder de vista  
as particularidades, as formas próprias. E muitas delas, evidentemente, ainda não  
foram suficientemente destrinchadas.  
É dizer, a leitura imanente de Marx dá lugar à compreensão de que as esferas  
do ser social se determinam reciprocamente, o que não poderia deixar de se aplicar à  
questão penal. E se, de um lado, não há nenhum ineditismo nessa afirmação, que vem  
sendo feita por diversos autores (MEDRADO, 2018b; DAL SANTO, 2022; REINER,  
2017 etc.), de outro, precisa ser constantemente reiterada, a fim de que a necessária  
retomada da crítica da questão penal à leitura materialista não se dê pela saída fácil  
do economicismo.  
Para uma crítica radical do direito penal, partindo de Marx, é necessário  
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investigar gênese e função social do cárcere, o que não pode ser feito senão  
considerando os demais complexos que compõem o ser social, notadamente as  
relações de produção, sem deixar de lado a composição entre universalidade,  
singularidade e particularidade. A isso, é importante reforçar ainda a relevância de  
incorporar à análise temas específicos do capitalismo avançado, os processos  
particulares de desenvolvimento regional e as categorias desenvolvidas pela crítica da  
economia política contemporânea.  
3. Da economia política da pena à crítica da economia política e da  
penalidade  
3.1 Economia política ou crítica da economia política, eis a questão  
Não é novidade que Karl Marx tenha realizado uma crítica da economia política;  
este, afinal, é o subtítulo de O capital. Para Chasin (2009; 2013a), a crítica da  
economia política é uma das três críticas fundamentais a partir das quais se estrutura  
o pensamento marxiano, ao lado das críticas da filosofia especulativa e da politicidade.  
Esse óbvio pressuposto, todavia, suscita uma contradição patente em nosso  
objeto de estudo: seria possível conciliar a crítica da economia política com a economia  
política da penalidade?  
Não se desconhece que elaborar uma economia política de determinado assunto  
tornou-se lugar-comum associado à atividade de traçar uma relação entre um tema e  
as bases materiais da sociedade e, em grande medida, à tradição marxista. Fala-se, a  
partir disso, em economia política da urbanização17, economia política da saúde18,  
economia política da comunicação19 e mais outras incontáveis modalidades.  
Ora, Marx não apenas conferiu grande valor ao estudo da economia política,  
17  
Correlaciona campo e cidade para tratar de questões polêmicas relativas à urbanização das  
sociedades industriais. Faz uma competente análise historiográfica do tema e toca em pontos  
nevrálgicos do processo de urbanização: a transformação da estrutura de classes e dos seus modos de  
produção. Um livro atual que questiona os modelos que escolhemos ou que nos foram impostos.”  
(Sinopse, cf. SINGER, 1998).  
18 Este livro procura decifrar os sentidos da crise da saúde pública brasileira, por meio de seu frágil e  
poroso financiamento, ancorados na crise do capitalismo contemporâneo, em que se torna explícita a  
relação orgânica entre o estado e o capital, imbricando crises econômicas, políticas, ecológicas e sociais.  
Compreende-se ser essencial refletir sobre a essência da barbárie do capitalismo contemporâneo e a  
persistência de seus problemas na saúde a partir da economia política crítica marxista. Por meio de sete  
capítulos, o livro promove uma reflexão crítica radical sobre os persistentes problemas na saúde pública,  
entendendo que é praticamente impossível compreendê-los simplificadamente. Por isso, para cumprir  
tarefa de tal envergadura reflexiva, o livro está ancorado num pensamento que requer uma qualidade  
infratora que rompa as fronteiras das análises rápidas e dos enfrentamentos mais setoriais. Esse é o  
desafio que se impõe no presente livro que se pauta sobre a economia política marxista da saúde”  
(Sinopse, cf. MENDES; CARNUT, 2022).  
19 “Uma primeira linha de pensamento, no seio da EPC, mantém uma ligação direta com a economia de  
Marx: o conceito de mercadoria continua sendo explicativo, assim como os conceitos decorrentes de  
exploração e de mais-valia.” (HERSOVICI, 2020)  
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como também reputou “central a apreensão das questões e da realidade [por ela]  
tratadas, mesmo que de modo unilateral” (SARTORI, 2018a, p. 186). Para o alemão, a  
economia política teve êxito ao efetivamente ler diversos objetos que compõem o todo  
social, ao contrário de outras autodeclaradas ciências20.  
Mas, como cuidou de demonstrar o autor a partir de um exame aprofundado  
de David Ricardo – o “último grande representante” (MARX, 2011a, p. 85) da  
economia política , de Adam Smith e de outros economistas com maior relevância à  
época, pesa em desfavor dela o fato de pressupor o capitalismo como dado, limitando-  
se a descrever as coisas conforme colocadas sob tal modo de produção.  
Frisa Marx (2010b, p. 149): “a sociedade – assim como aparece para o  
economista político é a sociedade civil-burguesa”. Ignora-se a historicidade e a  
relação entre individual, particular e universal, e tudo é reduzido “ao homem, isto é,  
ao indivíduo, do qual retira toda determinidade” (MARX, 2010b, p. 149). Portanto, a  
economia política não dá conta de explicar a realidade em suas múltiplas  
determinações e como fruto de um contínuo desenrolar histórico. Dessa maneira,  
embora constatem alguns fenômenos concretamente colocados na sociedade, os  
economistas políticos, incapazes de se remeter para além do capitalismo, quando se  
deparam com aspectos da realidade que explicitariam a historicidade deste modo de  
produção, recorrem às robinsonadas (MARX, 2008; 2013), representando, no plano  
teórico-ilusório, as condições existentes na sociedade capitalista (AUGUSTO, 2016).  
Com isso, suas análises e operações pressupõem e tomam, assim como se  
apresentam, os termos “da vida comercial e industrial [...] sem se dar conta que, com  
isso, confina-se a si mesma no círculo estreito das ideias expressas por aqueles termos”  
(MARX, 2013, p. 102). Por isso, partindo-se da concepção burguesa de mundo, não  
há como se remeter à possibilidade de existirem outras formas de sociedade. E:  
Por ser burguesa, isto é, por entender a ordem capitalista como a  
forma última e absoluta da produção social, em vez de um estágio  
historicamente transitório de desenvolvimento, a economia política só  
pode continuar a ser uma ciência enquanto a luta de classes  
permanecer latente ou manifestar-se apenas isoladamente. (MARX,  
2013, p. 85)  
Diante desses fundamentos, a economia política, cuja posição vai no mesmo  
sentido dos interesses das classes dominantes, não pode ser tomada como ponto de  
20 “Farei, por conseguinte e sucessivamente, em diversas brochuras independentes, a crítica do direito,  
da moral, da política etc., e por último, num trabalho específico, a conexão do todo, a relação entre as  
distintas partes, demarcando a crítica da elaboração especulativa deste mesmo material. Assim, será  
encontrado o fundamento, no presente escrito, da conexão entre a economia política e o estado, o  
direito, a moral, a vida civil [bürgerliches Leben] etc., na medida em que a economia política mesma, ex  
professo, trata destes objetos.” (MARX, 2010b, p. 19).  
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partida para a descrição de fenômenos específicos, ainda que se deem sob o  
capitalismo, se o que se deseja é preservar a coesão com o pensamento de Marx. A  
análise que parte da economia política carrega consigo a mistificação das relações  
sociais, alcançando, no máximo, “episódios de cientificidade” (SARTORI, 2018a, pp.  
189-90), relacionados, como exposto no último trecho de Marx citado, à latência da  
luta de classes.  
Nesse sentido, ao adotar-se acriticamente a noção de economia política da pena  
que, ao pé da letra, propõe um estudo da penalidade a partir da economia política  
, além de se tender a uma forma parcelarizada de ciência (problema sobre o qual logo  
nos deteremos), tem-se por certa uma contradição em termos com as críticas marxianas  
à economia política e à questão penal.  
Além disso, Marx debateu com economistas importantes, que, conquanto  
captassem de modo acrítico alguns aspectos da sociedade, descreviam elementos  
decisivos que a configuravam, refletindo relações humanas mediadas por coisas  
(SARTORI, 2011; 2018). Já a economia que se desenvolveu posteriormente, inclusive  
no século XX, quando surgida a economia política da pena, já consistia em uma versão  
vulgarizada, própria à burguesia ideologicamente decadente21.  
Diante dessas ponderações, não há como desconsiderar todas as imprecisões  
que a nomenclatura economia política da pena carrega consigo. Ainda assim, para nós,  
de tudo o que pode ser extraído desses apontamentos, a discussão terminológica não  
é, ao fim e ao cabo, a de maior implicação. Para além dela, é preciso ter em mente o  
essencial, que diz respeito aos avanços e aos impasses da tradição que ostenta esse  
nome, rumo à formulação de uma crítica radical à questão penal. É dizer, as  
inconsistências relacionadas à nomenclatura são superadas quando estão  
pressupostas a crítica da economia política e a crítica ontológica ao direito22 embora,  
é preciso reconhecer, o costumeiro uso acrítico do termo indique que o problema não  
se resume ao vocabulário.  
21 Lukács “mostra como, com a passagem da burguesia à posição defensiva diante do proletariado, há  
uma mudança qualitativa na ideologia burguesa: para o autor, antes de 1848, houve a economia  
clássica, a democracia e a busca de uma compreensão da história; depois, disso, mas principalmente  
depois da repressão brutal da Comuna de Paris, aparecem, não autores honestos como Smith e Ricardo,  
mas a economia vulgar, não a democracia, mas o liberalismo e, por fim, não a busca de uma  
compreensão das origens históricas da sociedade capitalista, mas a procura pela justificativa das  
relações sociais existentes. Isso é chamado por Lukács de 'decadência ideológica da burguesia' –  
enquanto a burguesia tivesse tido um papel progressista, teria consigo um ímpeto honesto no sentido  
de se perceber dos nexos reais presentes na sociedade existente, mesmo que, como disse Marx acerca  
de Ricardo, isso possa ter beirado o 'cinismo'. No entanto, segundo Lukács, quando a burguesia já se  
confronta com o proletariado no seio da sociedade civil-burguesa já consolidada, para a burguesia,  
perceber-se dos nexos presentes na sociedade capitalista é ver-se como uma força já destituída de um  
ímpeto efetivamente revolucionário e progressista” (SARTORI, 2012, p. 606).  
22 Para exemplo desse uso: Medrado (2021).  
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A rigor, não nos incumbe elaborar uma economia política da pena, mas uma  
crítica radical à questão penal. Esta, por sua vez, leva à necessidade da crítica ao direito  
e ao capitalismo e, portanto, à defesa da superação desse modo de produção. Isso  
precisa estar subentendido sempre que tratarmos do assunto, para que, ao debater a  
economia política da pena, não percamos de vista o que é determinante na perspectiva  
marxista rigorosamente concebida acerca da questão penal.  
3.2 Questão penal e parcelamento  
O debate até aqui então realizado suscita um outro pressuposto muito  
importante, que foi brevemente pincelado até então: o de que a reivindicação da  
economia política da pena, ou mesmo da criminologia crítica de viés marxista, deve  
ser radicalmente incompatível com a pretensão de construir um saber autônomo ou  
de se limitar à análise de dados colhidos no âmbito de ciências parcelares.  
Marx, n’A ideologia alemã, critica a “influência da divisão do trabalho sobre a  
ciência” e aponta que “não há história da política, do direito, da ciência etc., da arte,  
da religião etc.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 77). O autor proclama: “conhecemos uma  
única ciência, a ciência da história” (MARX; ENGELS, 2007, p. 86), a qual é preciso  
examinar com cuidado, até porque “quase toda a ideologia se reduz ou a uma  
concepção distorcida dessa história ou a uma abstração total dela” (MARX; ENGELS,  
2007, p. 86).  
Essa posição em relação às ciências parcelares se relaciona à concepção  
marxiana da realidade social enquanto totalidade, conforme explica Lukács:  
Somente neste contexto, que integra os diferentes fatos da vida social  
(enquanto elementos do desenvolvimento histórico) numa totalidade,  
é que o conhecimento dos fatos se torna possível enquanto  
conhecimento da realidade. Esse conhecimento parte daquelas  
determinações simples, puras, imediatas e naturais (no mundo  
capitalista) que acabamos de caracterizar, para alcançar o  
conhecimento da totalidade concreta enquanto reprodução intelectual  
da realidade. Essa totalidade concreta não é de todo algum dada  
imediatamente ao pensamento. “O concreto é concreto”, diz Marx,  
“porque é a síntese de várias determinações, portanto, a unidade do  
múltiplo.. (2003, pp. 76-7)  
O processo de parcelarização do conhecimento, bem descrito pelo húngaro, se  
relaciona à decadência ideológica da burguesia, com o desaparecimento de “todas as  
tentativas anteriormente realizadas pelos mais notáveis ideólogos burgueses no  
sentido de compreender as verdadeiras forças motrizes da sociedade, sem o temor  
das contradições que pudessem ser esclarecidas” (LUKÁCS, 2010, p. 53). Assim, a  
ciência e as artes, comprometidas com a preservação de um modo específico de  
conformação social, se refugiam “numa pseudo-história construída ao bel-prazer,  
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interpretada superficialmente, deformada em sentido subjetivista e místico” (LUKÁCS,  
2010, p. 53).  
Examinando o excerto de A ideologia alemã citado acima em conjunto com A  
sagrada família23 e com o pensamento de Lukács, Medrado conclui, tratando da  
criminologia:  
O conhecimento produzido pelos criminalistas é claramente  
fragmentado e parcelar: no lugar de apreender a parte em sua relação  
com o todo, fecha-se na parcialidade, tornando-a artificialmente  
autônoma e pretendendo, com ela, explicar e operacionalizar a  
realidade. (2018b, p. 112)  
Em consequência, ao tratar da questão penal sob tal parcelamento, acaba-se  
por reduzir a análise “ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma abstração  
total dela” (MARX; ENGELS, 2007, p. 86). Não pode ser outra a linha de chegada do  
percurso traçado pelo criminólogo que ainda que se reivindique crítico , se refugia  
na expectativa da construção de uma teoria ensimesmada.  
Tampouco é suficiente postular a interdisciplinaridade entre matérias  
autonomamente compreendidas, com seus próprios métodos e campos de incidência  
na realidade fracionada. Não basta, nesse sentido, articular dados produzidos a partir  
do isolamento artificial de indicadores sociais e econômicos, como tem feito uma parte  
relevante dos estudos críticos em criminologia.  
Nesse ponto, a sociologia, principalmente a vertente voltada à análise de dados,  
é constantemente invocada pelos criminólogos críticos como um instrumento  
fundamental para o desenvolvimento da economia política da pena. E, para além da  
óbvia rejeição, decorrente do raciocínio aqui traçado, ao desenvolvimento de uma  
“sociologia dos sistemas penais” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004), há de se ter em  
conta que, no âmbito da crítica ao fracionamento da ciência, a sociologia é alvo de  
particular repreensão. Sobre o tema, Lukács explica que a sociologia teve, desde seu  
surgimento enquanto disciplina autônoma, a pretensão de ser uma “ciência da  
sociedade” colocada de modo universal e, ao mesmo tempo, desvinculada da  
economia. Tal segmentação mostrou-se consideravelmente útil à sociedade burguesa  
porque implica deixar de lidar e, portanto, de buscar resolver – as “questões  
decisivas da realidade social” (2020, pp. 507-8).  
Por outro lado, para não incorrer na intransigência que tanto contestamos,  
23  
No livro, Marx e Engels satirizam o personagem literário Rodolfo, que discute métodos punitivos  
aplicáveis a um caso criminal concreto. Os autores desaprovam justamente a tentativa de Rodolfo de  
“reformar criticamente” o criminoso, “estatuir nele um exemplo para o mundo jurídico”, tendo por fio  
condutor da discussão o modo e o tipo de punição adequada, não a pena em si sem sequer suspeitar  
“que seja possível elevar-se além dos criminalistas; sua ambição pretende apenas que ele seja ‘o maior  
dos criminalistas’, primus inter pares” (MARX; ENGELS, 2011, p. 200).  
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também não se está a defender a rejeição automática e absoluta da produção e análise  
de dados relacionados aos sistemas penais e índices sociais, como parece ter crido  
Alessandro Baratta ao criticar o purismo enquanto lançava o que entendia serem as  
bases fundamentais criminologia crítica24.  
Ora, estudos historiográficos e estatísticos foram fartamente utilizados e  
interpretados pelo próprio Marx em sua crítica da economia política e, inclusive, na  
crítica da questão penal (cf. 2013; 2015a; 2015b etc.). Para citar exemplos mais  
próximo, é certo que, para a interpretação da questão penal brasileira, é de extrema  
relevância investigar a historiografia pertinente; o que perpassa, no exame de épocas  
mais recentes, por conhecer e destrinchar dados oficiais como aqueles periodicamente  
disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional e pelo Ministério da Justiça  
e Segurança Pública, bem como ainda informações não oficiais, dentre as quais cita-se  
o censo elaborado em 2011 pelo Anis Instituto de Bioética nos hospitais de custódia  
e tratamento psiquiátrico brasileiros25.  
Essas referências são importantes para auxiliar a interpretação do  
desenvolvimento histórico e do estado atual da questão penal na realidade brasileira,  
fornecendo importantes elementos para aferir o perfil da população prisional, o tipo  
de trabalho desenvolvido intramuros, e ainda diversas manifestações do movimento  
do capital e da luta de classes, revelando-se ferramentas de grande utilidade quando  
trabalhadas junto à historiografia (inclusive para a construção desta) e a dados  
colhidos em outros contextos aspectos econômicos, psicológicos, culturais etc. e à  
crítica da economia política.  
A importância do exame da totalidade fica evidente quando constatamos, por  
exemplo, que uma associação demasiadamente direta entre pena e sistema de  
produção e um grande apego à análise de dados parecem ter sido motivos  
24 “Quando falamos de ‘criminologia crítica’ e, dentro deste movimento tudo menos que homogêneo do  
pensamento criminológico contemporâneo, colocamos o trabalho que se está fazendo para a construção  
de uma teoria materialista, ou seja, econômico-política, do desvio, dos comportamentos socialmente  
negativos e da criminalização, um trabalho que leva em conta instrumentos conceituais e hipóteses  
elaboradas no âmbito do marxismo, não só estamos conscientes da relação problemática que subsiste  
entre criminologia e marxismo, mas consideramos, também, que uma semelhante construção teórica  
não pode, certamente, ser derivada somente de uma interpretação dos textos marxianos, por outro lado  
muito fragmentários sobre o argumento específico, mas requer um vasto trabalho de observação  
empírica, na qual já se podem dizer adquiridos dados assaz importantes, muitos dos quais foram  
colhidos e elaborados em contextos teóricos diversos do marxismo. Por outro lado, os estudos marxistas  
sobre o argumento se inserem em um terreno de pesquisas e de doutrinas desenvolvidas nos últimos  
decênios, no âmbito da sociologia liberal contemporânea, que prepararam o terreno para a criminologia  
crítica.” (BARATTA, 2011, p. 159)  
25  
A citação ao documento se dá por seu pioneirismo e importância para a compreensão da situação  
contemporânea de um aspecto muito menosprezado no estudo da questão penal brasileira: as medidas  
de segurança e a internação penal de pessoas com sofrimento mental. Não foi realizado novo estudo  
semelhante desde então (cf. DINIZ, 2013).  
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determinantes para o erro no prognóstico de Rusche e Kirchheimer (2004) sobre os  
sistemas penais. Como é sabido, a previsão de que a pena privativa de liberdade seria  
gradativamente substituída por medidas restritivas de direitos, contida em Punição e  
estrutura social, foi drasticamente contrariada pelo hiperencarceramento que se  
sucedeu desde o final do século passado.  
Nesse sentido, atingem complexidade notória aqueles trabalhos que, ao tratar  
da questão penal, articulam dados historiográficos com a questão social, sem se limitar  
à análise parcelar, como exemplificam Medrado (2024) e Fernandes e Ferraz (2022).  
Esses estudos nos mostram que uma investigação rigorosa da questão penal resgata  
os fundamentos essenciais da crítica da economia política, visando à compreensão da  
funcionalidade social dos sistemas penais específicos.  
Diante do exposto, é evidente que compreender a profundidade do pensamento  
de Marx, com o exame de fenômenos em suas múltiplas determinações, não é o mesmo  
que rejeitar em absoluto o uso de contribuições parciais, desde que isso não implique  
a resignação aos campos científicos próprios.  
A respeito, é bem conhecido, no meio da criminologia crítica, o debate  
encampado entre Taylor, Walton e Young (1980) e Hirst (1980) acerca da construção  
de uma “teoria marxista do desvio”. Trazemos à baila as contribuições, um pouco  
menos conhecidas, de Melossi a essa conversa26. O italiano concorda com Hirst (1980)  
ao criticar a “teoria marxista do desvio” proposta pelos britânicos ao considerar  
indevida qualquer tentativa de desenvolver uma teoria marxista “completa e acabada”  
acerca de um tema particular ou, no caso, de criar “uma nova ‘criminologia marxista’”  
(MELOSSI, 2005, p. 138), com viés sociológico. Complementa:  
[...] é evidente para qualquer um que a nossa tarefa não é formular  
uma nova teoria social eclética resultante da mistura de marxismo e  
sociologia, mas é, antes, a de estender a hegemonia da única teoria  
social científica, o marxismo, ao conjunto dos objetos das chamadas  
"ciências sociais", em um esforço para eliminar, desse modo, as várias  
e separadas concepções de "ciências" diversas, como a sociologia, o  
direito, a psicologia, a economia e assim por diante. (MELOSSI, 2005,  
p. 138)  
Daí exsurge a necessidade de uma “aplicação contínua e criativa do marxismo”  
(2005, p. 139), conectando os conceitos particulares às elaborações já realizadas na  
crítica da economia política. Assim, desde uma perspectiva marxista, cabe ao intérprete  
26  
Embora deva ser reconhecido que Melossi, posteriormente, incorreu em uma inflexão sobre o tema:  
[...] se em 1976 Melossi recusa veementemente qualquer tentativa de tratar da questão penal a partir  
de um viés parcelarizado, com o passar dos anos, ele vai de encontro com o próprio posicionamento  
anterior ao proclamar a importância da criação de algo como uma 'nova criminologia' e, mais ainda, ao  
situar a economia política da pena e, consequentemente, sua própria obra como mero fragmento da  
sociologia penal.” (LAVARINI, 2024)  
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preocupado com a questão penal estudar as especificidades dessa esfera de forma  
conexa à reprodução da sociedade capitalista.  
Conclusão  
A economia política da pena aqui representada, sobretudo, pelos cânones  
Cárcere e fábrica e Punição e estrutura social teve grande êxito em expor a gênese  
e a função social das prisões a partir de períodos determinados e particularidades  
locais. Ela aponta para a necessidade de construir um projeto de responsabilização e  
gestão de conflitos que, para além do direito, apenas se realizará de forma plena em  
outro modelo de sociedade.  
É fato que a tradição é sobremaneira importante para a compreensão de  
algumas das grandes questões do nosso tempo. Revisitá-la não é uma tarefa fácil:  
tanto por sua grandeza, quanto por sua heterogeneidade. O próprio reconhecimento  
da relevância da economia política da pena conduz à necessidade de investigá-la com  
esmero, trazendo à baila não apenas seus êxitos, mas igualmente suas imprecisões e  
contradições, a fim de contribuir para que sejam superadas.  
Nesse sentido, ocupamo-nos em expor e refletir sobre alguns dos quiproquós  
atuantes no distanciamento da economia política da pena em relação ao pensamento  
de Marx: a confusão entre a economia política e a crítica da economia política; a  
rejeição à suposta herança economicista do pensamento de Marx e do “marxismo  
ortodoxo”; o afastamento da percepção da realidade enquanto totalidade, que soa  
mera intransigência; e a necessidade de progredir em temas que não foram  
tradicionalmente objeto de abordagem por Marx e pelos marxistas mais conhecidos.  
Além disso, malgrado nossas limitações não nos tenham permitido apresentar  
com maior detalhamento o estado da arte, a análise do movimento geral da economia  
política da pena, associada ao nosso prévio exame do pensamento de Melossi  
(LAVARINI, 2024), sugere que mesmo os autores mais compromissados com o resgate  
do pensamento marxiano, ao tentar ir além de Marx, partiram de inexatidões quanto  
ao que já estava colocado na obra do autor alemão.  
Assim, a pretensão de desenvolver uma história do cárcere só faz sentido  
quando aliada aos diversos aspectos determinantes da realidade social, verificando-se  
elementos particulares e universais, bem como a relação estabelecida entre eles. Sob  
esse raciocínio, até mesmo a compreensão da criminologia crítica ou da economia  
política da pena enquanto matérias autônomas há de ser questionada, já que grande  
parte de seus méritos reside no rompimento com as “ciências penais” atomizadas,  
incapazes de remeterem-se para além de si mesmas, e no retorno à “ciência da  
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história”.  
Por outro lado, é uma grande obviedade que Marx não tenha exaurido toda a  
pesquisa séria que pode ser formulada em torno da questão penal, sobretudo ao  
pensar o desenvolvimento dos sistemas penais na fase avançada do capitalismo –  
especialmente, no nosso caso, na realidade brasileira. Hão que ser minuciosamente  
explorados, nesse sentido, temas como a sequela colonial e escravocrata que justapôs  
o racismo à base da formação social brasileira; as repercussões das questões de  
gênero e sexualidade sobre os sistemas criminais, e vice-versa; a violência e letalidade  
policial como marcadores cotidianos das populações das favelas; as condições  
degradantes da vida no cárcere e após; a relação entre trabalho carcerário, trabalho  
produtivo e leis trabalhistas; a criminalização da luta pela terra e a permissividade com  
a violência contra movimentos indígenas, populares e quilombolas nesse mesmo  
âmbito; a herança do “holocausto brasileiro” e o severo descompasso entre a política  
de saúde mental e a política criminal de asilamento de pessoas com sofrimento mental;  
as contradições entre a proteção de minorias e o “punitivismo de esquerda”; dentre  
outras incontáveis pontos urgentes e imprescindíveis que se apresentam quando  
confrontamos a questão penal brasileira.  
Não obstante, imbuídos da necessidade de ir adiante, resta claro que não basta  
incorporar à análise elementos típicos do século XXI ao “léxico marxista”, em coro ao  
marxismo vulgar. Para uma crítica radical da questão penal, é necessário investigar  
gênese e função social do cárcere, o que não pode ser feito senão considerando os  
demais complexos que compõem o ser social, notadamente as relações de produção,  
sem deixar de lado a composição entre universalidade, singularidade e particularidade.  
De fato, é preciso ir além de Marx, rejeitando o purismo e o dogmatismo  
teóricos. Ocorre que, para tanto, é de grande valia examinar, com cuidado, o que já  
está presente na obra desse grande pensador, em toda a complexidade de sua  
ontologia histórico-materialista, que muito tem a colaborar para a formulação da crítica  
à questão penal a partir de suas especificidades e, ao mesmo tempo, enquanto parte  
do emaranhado da realidade social.  
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AUGUSTO, André Guimarães. Marx e as ‘robinsonadas da economia política. Nova  
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BARATTA, Alessandro. ¿Tiene futuro la criminología crítica?In: Criminología y  
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Como citar:  
LAVARINI, Marina Araújo Reis. Economia política da pena e crítica da questão penal:  
da crise do passado aos aportes para o futuro. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n.  
2, pp. 147-176, 2025.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.779  
Determinações da punição no capitalismo de via  
colonial: bonapartismo e autocracia burguesa  
institucionalizada na industrialização brasileira  
Determinations of punishment in capitalism of the  
colonial path: Bonapartism and institutionalized  
bourgeois autocracy in Brazilian industrialization  
Nayara Rodrigues Medrado*  
Resumo: Buscamos, neste trabalho, desde as  
lentes da teoria da via colonial, de J. Chasin, e  
partindo de abstrações razoáveis, apontar as  
determinações gerais do sistema penal na  
reprodução da via própria de desenvolvimento  
capitalista do Brasil. Em continuidade a artigo  
anterior, enfocamos neste escrito o período de  
afirmação, no país, do verdadeiro capitalismo - o  
industrial - a partir dos anos 1930, e até o  
processo de mundialização do capital,  
coincidente com a autorreforma negociada da  
ditadura nos anos 1980. O objetivo é mostrar  
como, longe de uma afirmação democrática, o  
Brasil tem oscilado, ao longo da república, entre  
períodos de bonapartismo e de autocracia  
burguesa institucionalizada, e como, em meio a  
esse movimento pendular próprio de uma  
particular via de formação capitalista, o sistema  
penal tende a ocupar um lugar privilegiado, e a  
receber contornos específicos. Para essa  
caracterização, o estudo vale-se de dados  
produzidos pela historiografia nas últimas  
décadas, ao mesmo tempo que dialoga com o  
campo da criminologia crítica e, mais  
especificamente, com a economia política da  
pena.  
Abstract: In this work, we seek, from the  
perspective of J. Chasin's colonial path theory  
and based on reasonable abstractions, to point  
out the general determinations of the penal  
system in the reproduction of Brazil's own path  
of capitalist development. Continuing from the  
previous article, this paper focuses on the  
period of affirmation of true capitalism –  
industrial capitalism in the country from the  
1930s until the process of capital globalization,  
coinciding with the negotiated self-reform of the  
dictatorship in the 1980s. The objective is to  
show how, far from a democratic affirmation,  
Brazil has oscillated throughout the Republic  
between periods of Bonapartism and  
institutionalized bourgeois autocracy, and how,  
amid this pendulum movement characteristic of  
a particular path of capitalist formation, the  
penal system tends to occupy a privileged place  
and take on specific contours. For this  
characterization, the study draws on data  
produced by historiography in recent decades,  
while also engaging in dialogue with the field of  
critical criminology and, more specifically, with  
the political economy of punishment.  
Keywords: Penal system; colonial path;  
Palavras-chave: Sistema penal; via colonial;  
Bonapartism;  
autocracy.  
institutionalized  
bourgeois  
bonapartismo;  
autocracia  
burguesa  
institucionalizada.  
Introdução  
Este trabalho é fruto de reflexões mais profundamente desenvolvidas em  
pesquisa de doutorado intitulada Sistema penal e formação social brasileira: a  
*
Doutora em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Universidade  
Federal de Juiz de Fora (UFJF) campus Governador Valadares. E-mail: nayaramedrado@gmail.com.  
Orcid: 0000-0003-1408-3276.  
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nova fase  
 
Nayara Rodrigues Medrado  
particularidade histórica de um capitalismo de via colonial. Em sequência a um primeiro  
artigo que enfocou o período escravista e o imediato pós-abolição da escravidão, com  
a formação da classe trabalhadora assalariada brasileira, buscamos, agora, analisar as  
determinações das formas punitivas no processo histórico de afirmação do “verdadeiro  
capitalismo” no Brasil, isto é, a partir de seu processo de industrialização propriamente  
dito na década de 1930, estendendo a análise para até meados da década de 1980,  
década que marca o processo de mundialização do capital e, internamente, a crise do  
bonapartismo de 1964 com o retorno a uma autocracia burguesa institucionalizada.  
O objetivo segue sendo sustentar que o sistema penal no Brasil aí incluídas  
as prisões de vários tipos e a atuação das forças repressivas oficiais atuou, em  
diversos momentos da história nacional, no sentido de assegurar e de reproduzir os  
caracteres próprios de uma via colonial de desenvolvimento capitalista, na definição  
de J. Chasin e em diálogo com outros intérpretes da formação social brasileira. Os  
papeis de violência extraeconômica e de contrarrevolução preventiva permanente, que  
abordamos no trabalho anterior, seguem, agora mediados por um movimento pendular  
entre bonapartismo e autocracia burguesa institucionalizada e com alterações que  
respondem às novas necessidades materiais colocadas no período, sobretudo de um  
processo de industrialização conduzido por uma burguesia incapaz de realizar seus  
desígnios históricos.  
Buscando traçar esses delineamentos, passaremos inicialmente por uma rápida  
contextualização do processo de industrialização posto em marcha na década de  
1930, para traçar seus elementos gerais e as mudanças impressas na formatação do  
sistema penal brasileiro. Em seguida, enfocaremos a primeira volta do pêndulo, com o  
bonapartismo do Estado Novo e sua superação em 1945, com a afirmação de uma  
autocracia burguesa institucionalizada. Posteriormente, abordaremos a segunda volta  
do pêndulo, representada pela ditadura de 1964 e sua superação, para um novo  
período de autocracia burguesa institucionalizada em meados dos anos 1980.  
A específica industrialização brasileira: retardo, incompletude,  
subordinação e superexploração  
Contextualizamos, no último escrito, aqueles que seriam os caracteres centrais  
da formação social brasileira: a via colonial de objetivação capitalista seria marcada,  
segundo Chasin, por uma industrialização hipertardia, retardatária, incompleta e  
incompletável, que se dá de forma subordinada ao capital internacional e com recurso  
à superexploração da força de trabalho.  
Na ausência propriamente de uma revolução burguesa nos moldes clássicos, ou  
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de uma revolução “de tipo europeu”, como disse Marx, o que têm relevo são acordos  
pelo alto, conservadores de padrões arcaicos e que excluem a maior parte da  
população brasileira do proveito econômico e do exercício da cidadania, em uma  
modernização de caráter excludente. A industrialização, com amplo protagonismo do  
estado, é, além de hipertardia, lenta, marcada por ciclos com breves surtos seguidos  
de obstacularizações, refreios e arrefecimentos. Quando efetivamente se põe em  
marcha, o quadro já é o da “acumulação monopolista avançada, no tempo em que  
guerras imperialistas já foram travadas, e numa configuração mundial em que a  
perspectiva do trabalho já se materializou na ocupação do poder de estado(CHASIN,  
2000, p. 14).  
A burguesia que se desenvolve em meio a esse particular modo de objetivação,  
fortemente atrelada ao latifúndio, é também anômala, com uma tendência  
individualista, mesquinha, sem identidade de classe e incapaz de desempenhar seus  
papeis históricos, tanto no âmbito econômico quanto no político. Sob o primeiro  
aspecto, é incapaz de promover um desenvolvimento econômico autônomo, que  
rompa com a subordinação ao capital estrangeiro; quanto ao segundo, é avessa a  
processos revolucionários ou ao mínimo questionamento econômico, mesmo no nível  
reformista, aos quais tende a reagir com violência brutal, já que desprovida de razões  
democráticas ou humanitárias. A burguesia brasileira tem suas características  
subjetivas determinadas pela base objetiva de sua existência: “uma burguesia que só  
existe na e pela subordinação a outras burguesias externas, subordinação  
consubstanciada na sua produz: o que, como e para quem produz (COTRIM, 1999, p.  
285).  
O Brasil, como apontou Caio Prado Jr., nasce como colônia de exploração, uma  
empresa colonial voltada a satisfazer interesses estrangeiros colocados no contexto  
da acumulação originária de capitais na Europa, atuando, mediado pelo exclusivo  
comercial, na oferta de gêneros primários e como mercado consumidor de produtos  
manufaturados europeus. O estatuto colonial é forjado pela centralidade da atividade  
agroexportadora realizada desde o latifúndio e com adoção de trabalho escravo,  
primeiro indígena e depois negro. A escravidão, por quase quatro séculos e mesmo  
após a independência, deu o tom do conjunto das relações sociais no Brasil, último  
país das Américas a aboli-la.  
A abolição formal da escravidão se dá de forma hipertardia, após décadas de  
resistência da anômala burguesia agrária brasileira e ostensiva pressão do já  
amadurecido capitalismo industrial inglês, ávido pela generalização da relação-capital  
e pela expansão de mercados consumidores. Ao mesmo tempo que representou  
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significativa liberação de capitais que permitiu breve surto de desenvolvimento de  
forças produtivas e um razoável incremento do mercado interno com a generalização  
do trabalho assalariado, a abolição não foi acompanhada de medidas voltadas à  
melhoria da qualidade de vida da população trabalhadora, em especial da população  
negra. Pelo contrário, a lei de terras de 1850 perpetuou a lógica do latifúndio e  
inviabilizou o acesso de ex-escravizados e seus descendentes à pequena propriedade.  
Com a adoção da política de imigração subvencionada de trabalhadores europeus, a  
população recém-liberta da escravidão é relegada a postos mais precarizados de  
trabalho ou ao desemprego, compondo, dentro do exercício industrial de reserva, uma  
reserva da reserva ou reserva de segunda ordem dos discriminados (GORENDER,  
2016, p. 223). A economia brasileira segue lastreada na exportação de produtos  
primários, sobretudo o café, e na subordinação ao capital imperialista, um quadro que  
torna possível e necessário o rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores  
a níveis ínfimos (COTRIM, 2024, p. 2)  
Nesse contexto de formação da classe assalariada brasileira, o aparato penal  
segue voltado para a administração política da pobreza, para a conformação de uma  
ética do trabalho e para a garantia de um esquema de modernização excludente.  
Diante da igualdade jurídica afirmada pela Constituição de 1891, ideologias racistas  
como o positivismo criminológico são mobilizadas para justificar um sistema penal que  
concretamente segue vocacionado à repressão da população negra. Contravenções  
penais como capoeiragem, vadiagem, mendicância e embriaguez seguem dando o tom  
da atuação cotidiana de uma polícia fortificada em meio à crise do poderio senhorial,  
e a elas se acresce uma preocupação crescente com a repressão propriamente política  
a opositores e às tentativas de organização da classe trabalhadora.  
Mas é nos anos 1930 que a indústria brasileira ganha um impulso mais  
significativo e duradouro. Em um contexto de crise da atividade agroexportadora, mais  
especificamente cafeicultora, com a I Guerra Mundial e a crise de 1929, o Brasil é  
forçado a buscar formas de diversificação da economia. A ascensão ao poder de  
Getúlio Vargas, após derrota eleitoral marcada por acusações de fraude e subsequente  
levante armado orquestrado pela Aliança Liberal, significou a vitória da fração urbano-  
industrial da burguesia nacional gestada nas primeiras décadas do século XX. Seu  
significado histórico foi o de abrir as comportas para uma reconversão pelo alto da  
rígida estrutura econômico-política do país(CHASIN, 2000, p. 127), marcando, no  
contexto da crise do café, o fim da hegemonia agrário-exportadora no Brasil, embora,  
em termos de participação do setor na renda interna, essa hegemonia tenha perdurado  
até 1956 (CHASIN, 2000, p. 57).  
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Determinações da punição no capitalismo de via colonial  
Agora de forma mais explícita, o estado é chamado a desempenhar a tarefa  
econômica que a atrofiada e anômala burguesia agrária brasileira não foi capaz de  
cumprir: industrializar o país. Inicia-se uma política de controle estatal da economia,  
com investimentos vultuosos em infraestrutura, criação de empresas estatais no setor  
de base e de órgãos voltados à regulação de setores estratégicos, além de políticas  
de controle do valor da força de trabalho. Com isso, “se, até então, a história do Brasil  
era marcada por surtos industrializadores de curta duração, a partir dos 30s, verifica-  
se o movimento industrializador que não mais será interrompido, como surtos e  
iniciativas anteriores o foram nessa história de vários começos(CHASIN, 2000, p. 58).  
Em síntese, como aponta Lívia Cotrim no estudo de discursos oficiais de Vargas:  
No plano econômico, Vargas defende o desenvolvimento industrial  
fundado no setor de bens de capital, especialmente aqueles que, na  
ocasião, constituíam a ponta do processo de produção: siderurgia e  
petróleo; ao lado da ampliação da infraestrutura de transportes e  
comunicações, tal setor estabeleceria a base para a indústria de  
máquinas, que abasteceria a indústria de bens de consumo e a  
produção agrícola. O campo, por sua vez, deveria modernizar e  
diversificar sua produção, para atender tanto à exportação, sem expor-  
se excessivamente à flutuação dos mercados internacionais, quanto  
ao mercado interno, que deveria se ampliar com e para o avanço da  
industrialização. Não defende qualquer alteração da estrutura da  
propriedade agrária, assim como considera que a exportação continua  
sendo uma prioridade. (COTRIM, 1999, p. 284)  
Quanto à relação com o capital internacional, havia, no projeto varguista, um  
relevante elemento de progresso eminentemente autônomo. Com um sistema de  
financiamento nacional, “a indústria nascente deveria utilizar capital nacional e ficar  
sob controle interno, o que não significa a rejeição à entrada de capital estrangeiro,  
sob forma de empréstimo ou investimento”; no entanto, “este capital deveria  
subordinar-se à lógica econômica decidida e implementada internamente, ao invés de  
pretender impor aqui uma lógica voltada exclusivamente a seus próprios interesses”  
(COTRIM, 1999, p. 284).  
O projeto encontra seu limite, entretanto, na conservação da estrutura da  
propriedade brasileira, em que não ousou tocar (COTRIM, 1999, p. 285). É que, ainda  
que essa emergente burguesia industrial direcionasse sua produção prioritariamente  
para o mercado interno, havia, pela inferioridade tecnológica, uma dependência forte  
da importação de maquinário e de insumos, e, para isso, de condições cambiais  
favoráveis, o que a submetia novamente aos imperativos do setor agrário, “tanto pela  
necessidade de divisas que este produzia, quanto porque as condições cambiais  
tendiam a favorecer em princípio aquele setor” (COTRIM, 1999, p. 286).  
De forma mais ampla, o limite do projeto expressa o limite da própria burguesia  
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industrial brasileira, que nasce e se desenvolve no interior da subordinação aos  
interesses do capital externo, pela mediação de sua subordinação à agroexportação,  
origem de parte dos capitais que forjaram a indústria, de modo que “tanto sua atuação  
política quanto as propostas e argumentos de seus ideólogos, conquanto conflitem  
com o agrarismo, não chegam a uma contraposição radical, que implique a supressão  
da herança colonial” (COTRIM, 1999, p. 287).  
E, porque a afirmação democrática e a superação da superexploração da força  
de trabalho pressupõem a ruptura com a subordinação, esse projeto de afirmação do  
verdadeiro capitalismo brasileiro tem por caráter necessário uma modernização  
excludente, em que o progresso social está radicalmente dissociado da evolução  
nacional (ASSUNÇÃO, 2004, p. 13). Ou, como aponta Chasin, em meio à sua crítica à  
teoria da marginalidade:  
Sem dúvida, a história brasileira desde a década de 30 é a história da  
incapacidade da versão atrófica do capital verdadeiro para integrar,  
de seu prisma, a maior parte da população à sociedade nacional.  
Enquanto tal uma história fantástica de desperdícios, sobretudo de  
energias ou recursos humanos. Nesse contexto, a marginalização é a  
própria marca registrada dos feitos do capital atrófico. (CHASIN,  
2000, p. 163)  
Vejamos os caracteres próprios dessa modernização excludente e a  
centralidade que nela assume o sistema penal de um estado autocrático.  
A primeira volta do pêndulo: ao Estado Novo e de volta  
Sob Vargas, à medida que passa a subvencionar o desenvolvimento das forças  
produtivas, o estado brasileiro adota uma política que une acomodação da classe  
trabalhadora, por meio da afirmação de direitos sociais, e repressão penal à  
dissidência, com o enrijecimento do aparelho autocrático de punição (MAZZEO, 1995,  
pp. 33-4).  
Sobre o primeiro aspecto, há um incremento de direitos trabalhistas e  
previdenciários, com o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930, a  
Constituição de 1934 e a posterior criação da Justiça do Trabalho e da Consolidação  
das Leis do Trabalho (CLT), bem como das Caixas de Previdência e dos Institutos de  
Aposentadoria e Pensões de diversas categorias, incluindo assistência médica e  
programas habitacionais, ainda que com exclusões relevantes, como do trabalhador  
rural. Essas medidas foram conquistas importantes para a classe trabalhadora, com  
potencial relevante de melhoria de sua condição de vida.  
Sobre o segundo elemento, Vargas implantou um projeto ambicioso de  
enquadramento corporativista do movimento operário, com a afirmação de uma  
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espécie de sindicalismo oficial, atrelado e controlado pelo estado, que solapou a  
autonomia de organização dos trabalhadores. Já em março de 1931, a conhecida Lei  
de Sindicalização (Decreto n. 19.770) estabelecia o princípio do sindicato único por  
categoria profissional e condicionava o acesso aos benefícios da legislação social à  
adesão a sindicatos oficialmente reconhecidos pelo Ministério do Trabalho, que  
passam a ser concebidos como órgão consultivo e de colaboração com o poder público  
(FAUSTO, 2006, p. 49), com limites à participação de estrangeiros (tidos como  
potencialmente anarquistas ou comunistas) e proibição de “toda e qualquer  
propaganda de ideologias sectárias” (BRASIL, 1931). Na intenção de garantir um  
controle estatal das organizações sindicais, o governo Vargas “impôs um modelo  
autoritário-corporativo que deu origem a um sistema subserviente e corrupto, do qual  
os pelegos foram a expressão mais típica (FAUSTO, 2006, p. 52). O sistema penal foi  
a ferramenta autocrática garantidora desse projeto corporativista: além da persistência,  
como expusemos no trabalho anterior, da persecução de contravenções penais como  
vadiagem, mendicância e capoeiragem e do incremento da atuação do estado na  
regulação penal da atividade econômica, com uma série de decretos voltados ao tema,  
o endurecimento da repressão penal à dissidência política e à organização da classe  
trabalhadora agudiza uma tendência verificável pelo menos desde a década de 1920.  
Os anos 30, como de modo mais amplo as três primeiras décadas do século  
XX, foram marcados por um acirramento da luta de classes. Proliferam-se as greves,  
os protestos e as paralisações no trabalho. A Aliança Nacional Libertadora, com um  
programa anti-imperialista, democrático e reformista com destaque a defesa da  
reforma agrária atinge 16.000 núcleos e o recém-criado Partido Comunista do Brasil  
(PCB) aumenta gradativamente sua influência. Vargas também encontrava a oposição  
política da reacionária Ação Integralista Brasileira, que chegou a contar com a adesão  
de centenas de milhares de integrantes. Na conformação do que Nilo Batista (2003,  
p. 467) chamou de “subsistema penal da repressão política”, o estado varguista  
incrementa os instrumentos repressivos voltados a opositores políticos e à  
organização dos trabalhadores.  
As polícias passaram por reformas relevantes nos anos 30, especialmente no  
sentido de desmantelar a autonomia militar das oligarquias estaduais própria da  
República Velha e de garantir a subordinação das forças de segurança ao poder  
central. Nessa direção, já em 1931, o Código dos Interventores restringiu os gastos  
da União com as polícias e o arsenal de armamentos e de equipamentos que as PMs  
poderiam ter em sua posse. Em seguida, a Constituição de 1934 albergou a fórmula  
inaugurada em decreto de 1915 e consagrou a polícia militar como força auxiliar do  
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Exército (BRASIL, 1934, art. 167). Já a Lei n. 192, de 17 de janeiro de 1936, fortaleceu  
o controle do Estado-Maior do Exército (EME) sobre as corporações estaduais, que  
passaram a estar submetidas à sua regulamentação, treinamento e cultura  
organizacional. Também a Polícia Civil foi transformada, com a criação do  
Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP) no Rio de Janeiro, órgão com  
status ampliado que, na prática, respondia diretamente à Presidência da República e  
foi ferramenta central do bonapartismo à brasileira.  
Em 4 de abril de 1935, dias após a fundação oficial da Aliança Nacional  
Libertadora, é editada a Lei n. 38, Lei de Segurança Nacional que ficou mais conhecida  
como “Lei Monstro” (BRASIL, 1935). Ali eram previstos como crimes inafiançáveis atos  
como “incitar diretamente o ódio entre as classes sociais”; “instigar as classes sociais  
à luta pela violência”; “induzir empregadores ou empregados à cessação ou suspensão  
do trabalho”; “promover, organizar ou dirigir sociedade de qualquer espécie, cuja  
atividade se exerça no sentido de subverter ou modificar a ordem política ou social  
por meios não consentidos em leis”. Também era proibida a existência de partidos,  
centros, agremiações ou juntas consideradas subversivas, assim como a impressão, a  
circulação e a radiodifusão de materiais com o mesmo caráter. Funcionários públicos,  
professores, policiais militares e oficiais das Forças Armadas poderiam ser suspensos,  
afastados ou exonerados caso incorressem na lei, sem prejuízo de ação penal  
respectiva, que poderia levar a prisões situadas a até mil quilômetros de distância do  
fato. Os atos seriam julgados pela Justiça Federal, endossando a centralidade do poder  
central. Também estariam “sujeitos a julgamento singular”, o que, na prática, significou  
condenações sem garantia ampla defesa. Em 11 de julho de 1935, é declarada a  
ilegalidade da ANL com base na nova lei.  
No mesmo ano, e como repercussão do Levante Comunista liderada por Luís  
Carlos Prestes, a Lei n. 136 expandiu o rol e endureceu ainda mais o tratamento a  
crimes contra a ordem política e social, restringindo garantias, facilitando medidas  
sumárias de afastamento, suspensão e exoneração de funcionários públicos e de  
dispensa de trabalhadores da iniciativa privada envolvidos em atividade proibidas.  
Ainda em 1935, foi criada a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo,  
encarregada de investigar pessoas engajadas em atos contra as instituições políticas  
e sociais. Já a Lei n. 244, de 11 de setembro de 1936, mais uma resposta ao Levante  
de 1935, criou o Tribunal de Segurança Nacional (TSN), instituído originalmente como  
órgão da Justiça Militar com competência para atuar apenas durante estado de guerra  
no julgamento de crimes, previstos nas normativas de 1935, contra a segurança  
externa da República, contra as instituições militares ou com finalidades subversivas  
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das instituições políticas e sociais (BRASIL, 1936).  
O bonapartismo getulista, já com seu arsenal preparado ao longo dos anos  
anteriores, é formalizado em 1937, com a decretação de estado de guerra e,  
posteriormente, estado de sítio, dando início ao Estado Novo. O pretexto utilizado foi  
a divulgação do autointitulado “Plano Cohen”, plano de insurreição comunista forjado  
por militares ligados ao governo, com destaque para o militar integralista Olímpio  
Mourão Filho, e que aguçou o pânico moral em torno de uma suposta ameaça  
comunista. O Congresso é fechado, as formas de representação são dissolvidas e é  
editada uma nova Constituição, de matriz abertamente autoritária, elaborada por  
Francisco Campos. As competências do Tribunal de Segurança Nacional são ampliadas,  
a pena de morte é reintroduzida e os estrangeiros são impedidos de exercer atividades  
políticas. Sindicatos são invadidos e fechados, partidos políticos são colocados na  
ilegalidade, com prisão e isolamento de lideranças políticas, as prisões e colônias  
correcionais, já precárias desde o nascimento, convertem-se em espaços de terror.  
Tem-se, com isso, o primeiro movimento pendular que vai, como aponta Chasin,  
da autocracia burguesa institucionalizada ao bonapartismo. Em um contexto de  
acirramento da relação capital-trabalho, a burguesia cede ao estado seu poder político  
como forma de garantir seu poder econômico, e seu domínio passa a ser exercido de  
forma indireta, pelas armas do estado. Com a ditadura bonapartista, forma da  
dominação burguesa em tempos de guerra, qualquer questionamento mínimo à  
equação econômica desse Brasil em desenvolvimento é reprimido de forma brutal, o  
que otimiza a superexploração da força de trabalho e a continuidade de uma via que  
não consegue romper com a subordinação.  
Não é que tenha se iniciado aqui o governo autocrático da burguesia. Essa  
forma de exercício do poder político já estava em vigor, sob sua forma  
institucionalizada, desde os primórdios da república, com sua feição oligárquica  
manifesta na política dos governadores, no voto de cabresto, nas fraudes eleitorais e  
na dura repressão ao movimento operário, tratado como caso de polícia, e perdura  
ainda nos primeiros anos de governo Vargas. Com o golpe de 1937, o que se tem é  
uma transição dessa forma de autocracia burguesa institucionalizada, na qual a  
dominação burguesa esconde-se sob o véu do discurso liberal-democrático, para um  
exercício abertamente ditatorial, diante do risco identificado por aquela classe, não  
de uma revolução contra o capital, que não estava no horizonte, mas de ruptura com  
uma plataforma econômica marcada pela contraposição entre desenvolvimento  
nacional e progresso social(COTRIM, 2024, pp. 6-7).  
Marx estudou o bonapartismo como forma específica da dominação burguesa  
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em um momento de retrocesso da dominação em curso na França, com Napoleão III,  
e da contrarrevolução preventiva da burguesia alemã, com Otto Von Bismarck  
(ASSUNÇÃO, 2014, p. 39). Em ambas as situações, diante de um vácuo do poder  
político, em que a burguesia já havia perdido a capacidade de governar e a classe  
operária ainda não a havia adquirido, a classe proprietária cede o exercício direto do  
poder político a um Executivo fortemente armado e que, enquanto se arroga como  
representante do conjunto dos segmentos sociais, garante e aprofunda a dominação  
burguesa no plano econômico. Com isso, a burguesia pode “sob a proteção de um  
governo forte e irrestrito, dedicar-se aos seus negócios privados” ao “desobrigar-se  
do seu próprio domínio político para livrar-se, desse modo, das dificuldades e dos  
perigos nele implicados” (MARX, 2011, p. 124). Na definição precisa de Vânia  
Assunção:  
Bonapartismo é um tipo de dominação burguesa em que o poder  
político não é exercido diretamente pela burguesia, mas é delegado a  
uma instituição, personalizada ou não, que o absolutiza, sustentando-  
se, em geral, numa força militar. Nesta forma de dominação  
autocrático-burguesa, o domínio é exercido de modo indireto pelo  
conjunto da burguesia, pelas armas, manietando os poderes  
legislativo e judiciário e as organizações representativas dos  
interesses dos trabalhadores e da oposição. [...] Dessa maneira, a  
burguesia pode se desligar do domínio político direto e manter o que  
lhe é fundamental: a dominação econômica fundante. [...] Assim, o  
bonapartismo é a forma plena, absoluta, da separação e oposição  
entre estado e sociedade civil burguesa. Ou seja, leva às últimas  
consequências a tendência de autonomia do estado inerente a esta  
instituição, de que o exército faz parte. O recurso à força armada  
contra a sociedade (especialmente e com muito mais frequência contra  
as classes dominadas), sempre latente, é radicalizado em momentos  
de aguda crise social. O domínio do sabre se estende a todos e  
supostamente é neutro e arbitral - enquanto, na verdade, responde a  
interesses sociais específicos. (ASSUNÇÃO, 2014, p. 40)  
Com o golpe do Estado Novo, nome pego de empréstimo da ditadura  
salazarista portuguesa (DEMIER, 2012, p. 427), há o fechamento do Congresso, das  
assembleias estaduais, das câmaras municipais e a dissolução dos partidos políticos,  
e Vargas passa a governar por decretos-lei. A Constituição de 1937, elaborada por  
Francisco Campos, prorrogou por seis anos o mandato de Getúlio, admitindo ainda a  
reeleição, além de fixar a preeminência da União sobre os estados e determinar a  
nacionalização progressiva das minas, jazidas, quedas d’água e demais fontes de  
energia, bem como das indústrias essenciais para a defesa econômica ou militar do  
Brasil. O Código de Imprensa de 1937 dá fundamento legal à ampla censura da  
imprensa, instrumentalizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),  
criado em 1939, por meio da qual Vargas estabelece um culto à própria personalidade  
e investe em uma propaganda nacionalista. O bonapartista nomeia interventores para  
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os estados e as forças públicas estaduais são absorvidas pelos comandos regionais  
do Exército.  
O texto constitucional teve forte inspiração na Constituição polonesa de  
Pilsudsky e na Carta del Lavoro de Mussolini. De um lado, incorporou os direitos  
sociais já previstos em lei e a eles adicionou outros, consolidados na CLT de 1941 –  
ainda que sua efetivação fosse parcial, sobretudo em um cenário de um bonapartismo  
que viabilizava a agudização da exploração do trabalho, e alguns tenham sido  
suspensos quando da entrada do Brasil na segunda guerra. Por outro, absorveu  
também as normas antissindicais dos anos anteriores e as aprofundou, proibindo  
expressamente greves e lockouts. A posterior Lei Orgânica da Sindicalização  
Profissional, de 1939, enrijeceu a norma de 1931 e absolutizou o controle estatal  
sobre os sindicatos: o Ministério do Trabalho poderia fechá-lo, dirigir seus processos  
seletivos, demitir diretores e fiscalizar contas, enquanto a exigência de um “atestado  
de ideologia” inviabilizava a atividade sindical de pessoas não-alinhadas à política  
varguista (DEMIER, 2012, pp. 427-8).  
Naturalmente, nessa forma abertamente armada de dominação burguesa, o  
aparato repressivo do estado assume papel central. No binômio acomodação-  
repressão, o segundo elemento seria amplamente preponderante. O grau de rigor do  
aparelho punitivo em construção foi anunciado explicitamente por Vargas: “o Governo  
continua vigilante na repressão do extremismo e vai segregar, em presídios e colônias  
agrícolas, todos os elementos perturbadores, reconhecidos pelas suas atividades  
sediciosas ou condenados por crimes políticos(VARGAS apud COTRIM, 1999, p. 185).  
Enrijecendo ainda mais a Lei Monstro, em 1938, o Decreto-Lei n. 431 definiu  
crimes contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do estado e  
contra a ordem social. A normativa previa pena de morte por fuzilamento a um rol de  
nove crimes, além de pena de prisão de até 30 anos, possivelmente em colônias  
penais, sem fiança, suspensão da pena ou livramento condicional, para outros 30  
delitos.  
A polícia política era formada por um conjunto de órgãos especializados, com  
destaque para a Delegacia Especial de Segurança Política e Social (Desps), que, sob  
comando do nazista Filinto Müller, era responsável pela coordenação nacional da  
repressão e pela vigilância política centralizada, mantendo base de dados sobre  
inimigos do estado; os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) estaduais,  
existentes desde a década de 1920 mas incrementados como o principal braço  
operacionalizador da repressão local à dissidência nos anos 1940; e a Polícia Especial  
do Distrito Federal, atuante como reforço repressivo a levantes e agitações e como  
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instrumento de propaganda do regime. A autonomia do aparato repressivo era  
garantida por uma estrutura financeira paralela, baseada em verbas secretas e  
especiaiscontroladas diretamente pela presidência. Esses fundos, criados em 1932,  
permitiam que a polícia operasse fora dos limites do orçamento oficial e do escrutínio  
público, financiando uma vasta gama de atividades ilegais e sigilosas (CANCELLI,  
1994, p. 59).  
Mas o regime contava com olhos e ouvidos difusos, em uma vasta e capilarizada  
rede de agentes secretos, espiões e delatores, e valendo-se de técnicas como escutas  
telefônicas, violação de correspondência e a infiltração de agentes em grupos de  
oposição. Manifestações públicas de oposição eram sistematicamente proibidas e, em  
muitos casos, a polícia infiltrava agentes provocadores para criar tumultos que  
justificassem prisões em massa, como ocorreu em protestos socialistas em 1934  
(CANCELLI, 1994, p. 110). A vigilância se estendia à vida privada, com buscas  
domiciliares sistemáticas, especialmente em áreas de colonização estrangeira, e a  
liberdade de locomoção foi restringida, com a exigência de salvo-condutos para  
viagens, mesmo dentro do país (CANCELLI, 1994, p. 138).  
As estratégias de repressão do bonapartismo varguista extrapolavam as  
fronteiras nacionais. É conhecida a cooperação com a Alemanha nazista: foi no  
contexto do acordo secretoentre a polícia brasileira e a Gestapo, com o forte  
empenho de Filinto Müller e do delegado Miranda Correa, que chegou a ser enviado  
a missão em Berlim em 1937, que se deu a entrega das militantes judias Olga Benário  
Prestes e Elisa Ewert ao serviço secreto alemão, selando seus destinos em campos de  
concentração (CANCELLI, 1994, p. 88). Ao mesmo tempo, em 1931, técnicos da polícia  
de Nova Iorque foram contratados para organizar o serviço de repressão ao  
comunismo no Rio de Janeiro (CANCELLI, 1994, p. 83), o FBI colaborou ativamente na  
investigação sobre o agente da Internacional Comunista, Harry Berger, após sua prisão  
no Brasil e foram informações do serviço secreto britânico que levaram às prisões de  
Luís Carlos Prestes e do próprio Berger (CANCELLI, 1994, p. 89). No âmbito regional,  
o Brasil reforçou convênios com Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai para a troca de  
informações sobre anarquistas e semelhantes, chegando a enviar policiais para  
organizarem a políciado Paraguai (CANCELLI, 1994, p. 130).  
O Tribunal de Segurança Nacional permaneceu em vigor como tribunal de  
exceção voltado ao julgamento dos crimes políticos até 1945: os conceitos, regras e  
princípios gerais foram utilizados tanto como legitimadores quanto como supérfluas  
prescrições à disposição dos membros do tribunal, que, a seu indiscriminado juízo,  
conformou o discurso jurídico às demandas de ordem do regime” (NUNES, 2017, p.  
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140). Como aponta Adriana Bisi, entre 1936 e 1943, o Tribunal recebeu denúncias  
contra 15.812 pessoas por crimes contra a segurança nacional, tendo julgado, durante  
sua vigência, 4.473 processos e condenado 4.099 pessoas, em 21 estados da  
Federação e em 3 territórios (BISI, 2016, p. 70). As sentenças do tribunal eram  
inapeláveis na prática, pois os recursos não tinham efeito suspensivo (CANCELLI,  
1994, p. 104). Os julgamentos consistiam frequentemente em farsas jurídicas,  
baseados em acusações frágeis e provas inexistentes.  
Também durante o Estado Novo, foram editados o Código Penal de 1940, o  
Código Processual Penal de 1941 e a Lei de Contravenções Penais de 1941. Todos  
permanecem ainda atualmente em vigor, apesar de reformados.  
Se o Código Penal, elaborado sob forte influência de Nelson Hungria a partir  
do projeto de Alcântara Machado, parece conjugar elementos clássicos e positivistas  
(BATISTA et al., 2003, p. 464; SERRA, 2009, p. 206), o Código de Processo Penal de  
1941 foi diretamente inspirado no modelo do Codice Rocco de 1930, da Itália fascista  
de Mussolini, e edificado sob a tutela de Francisco Campos, que assina sua exposição  
de motivos. De conteúdo autoritário e inquisitório, embasou-se na retórica do “justo  
equilíbrio” entre eficácia repressiva e garantias para, na prática, sustentar a  
instrumentalidade do processo para a defesa social, a presunção de culpabilidade  
(caberia ao réu a prova de fatos impeditivos ou extintivos), o livre convencimento e a  
busca da verdade real como reitores da dinâmica processual, a radicalização da prisão  
cautelar (chegando a prever na redação original a prisão preventiva obrigatória), um  
contraditório deformado e um sistema de nulidades baseado em uma economia do  
prejuízo (GLOECKNER, 2018).  
A Lei de Contravenções Penais de 1941 (BRASIL, 1941) não só manteve a  
vadiagem, a mendicância, a embriaguez e os jogos de azar como “contravenções  
relativas à polícia de costumes”, mas endureceu em alguma medida seu tratamento.  
No caso da vadiagem, houve aumento do tempo máximo de prisão de um para três  
meses, além da presunção de periculosidade para fins de aplicação de medida de  
segurança e da previsão de internação em colônia agrícola ou em instituto de trabalho,  
de reeducação ou de ensino profissional pelo tempo mínimo de um ano, sem exigência  
de quebra de termo de bem viver, como fazia o Código Penal de 1890. Para a  
embriaguez, a pena máxima também foi dobrada e previa-se a presunção de  
periculosidade e a internação em casa de custódia e tratamento no caso da embriaguez  
habitual. Quanto à mendicância, não só a pena máxima, mas também a mínima, foram  
dobradas, embora se previsse uma fórmula mais genérica para as formas mais graves:  
aumento de um sexto a um terço se praticada de modo vexatório, ameaçador ou  
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fraudulento, mediante simulação de moléstia ou deformidade ou em companhia de  
alienado ou de menor de dezoito anos. Também era reconhecida a presunção de  
periculosidade e a internação em colônia pelo tempo mínimo de um ano, e sem  
previsão de tempo máximo. Já a pena para jogos de azar mais que triplica, e a ela se  
acrescem as contravenções de jogo do bicho e de loteria, com previsão de internação  
em colônias na reincidência nas duas primeiras. Para todas as contravenções, o  
trabalho seria obrigatório para condenações superiores a 15 dias.  
A diferença relevante, em termos de arrefecimento, fica com a omissão da  
capoeiragem, que deixa de ser estar prevista como infração penal e é reconhecida  
como modalidade esportiva nacional em 1937, dois anos após a oficialização das  
escolas de samba, ambas as iniciativas compondo o discurso de valorização da  
mestiçagem pela ideologia da unidade das três raças – “o mestiço vira nacional”  
(FAUSTO, 2006, p. 131). Vale também ressaltar que Nilo Batista e outros, buscando  
sustentar sua tese de que o tratamento penal às contravenções penais era muito mais  
rígido na República Velha que na Era Vargas, argumenta que os tribunais tinham um  
papel relevante na mitigação prática das previsões legais, “seja limitando a 1 ano o  
prazo da medida de segurança, seja libertando o condenado que, cumprida a exígua  
pena de prisão simples por 15 dias a 3 meses, não fosse removido para inexistentes  
colônias” (BATISTA et al., 2003, p. 463).  
De todo modo, após o Decreto nº 19.445, de 1º de dezembro de 1930,  
indultar as pessoas processados ou condenadas por vadiagem ou capoeiragem, a Lei  
de Contravenções Penais endurece, com exceção da capoeira, o tratamento penal das  
infrações contra os costumes. Os reflexos nos dados de encarceramento já vimos no  
último escrito: entre 1934 e 1939, há um aumento de 60% nas detenções por  
vadiagem, com redução drástica no período subsequente, entre 1939 e 1943  
(concomitante ao aumento das detenções por “desobediência” e das “prisões para  
averiguação), seguido de uma triplicação entre 1943 e 1951 (TEIXEIRA; SALLA;  
MARINHO, 2016, pp. 394-6). Elizabeth Cancelli também chama atenção para o fato  
de que a vadiagem e o alcoolismo não deixam de ser motivo relevante de prisões  
correcionais os números de 1942 para o interior de São Paulo são de 11.473 prisões  
por alcoolismo, 1.086 prisões por vadiagem, 277 por jogo e 98 por mendicância  
(CANCELLI, 1994, p. 182). Mas, como se avolumam as prisões para averiguações (34%  
do total de detenções) e as prisões por desordem (21%), a representação cai de forma  
relevante, com exceção da embriaguez: a vadiagem responde por apenas 3% das  
prisões, o jogo por 1% e a mendicância por menos de 1%. Disso se conclui um  
aumento da relevância, durante a Era Vargas e sobretudo no Estado Novo, da  
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Determinações da punição no capitalismo de via colonial  
utilização do sistema penal como instrumento de repressão política a comunistas,  
anarquistas, lideranças sindicais, trabalhadores, opositores e estrangeiros,  
especialmente judeus, ao mesmo tempo que a persecução das contravenções ligadas  
à administração política da pobreza e à coação ao trabalho, embora caiam em  
representação, não deixam de ter um papel bastante significativo.  
Endossa essa percepção a criação em São Paulo, em 1934, da Delegacia de  
Repressão à Vadiagem e da Guarda Noturna da Capital, enquanto a Delegacia de  
Vigilância e Capturas teve sua competência expandida em 1935 para atuar na prisão  
de mendigos e menores, mesmo ano em que foram criados, também, o Departamento  
de Comunicações e o Serviço de Rádio Patrulha, também com tarefas de vigilância e  
de repressão (ZANIRATO, 2000, pp. 252-3). Enquanto isso, os relatórios anuais da  
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo dos anos 1930 e 1940 descreviam com  
apreensão o fluxo de migrantes e desempregados para a capital paulista,  
principalmente mineiros, baianos e pernambucanos, retratados como “alienígenas  
nacionais”, uma massa de ignorantes, com deficiência na educação do lar, portadores  
de vícios como a bebida e doenças como a sífilis (ZANIRATO, 2000, p. 250).  
As detenções aumentaram, e aquelas de natureza correcional permaneceram  
amplamente majoritárias. Só em São Paulo capital, os números variaram entre 45 mil  
e 48 mil detenções por ano entre 1939 e 1942, número sete vezes maior que o total  
de pessoas condenadas em todo o país em 1934 (CANCELLI, 1994, p. 182). Embora  
de difícil precisão, devido à queima dos arquivos da chefatura de polícia em 1942,  
fala-se no número de dez mil presos políticos entre 1935 e 1945. A tortura era prática  
comum: arrancar unhas com alicate, enfiar alfinetes sob as unhas, espancar o preso  
e/ou suas esposas ou filhas, introduzir duchas de mostarda em vaginas de mulheres,  
queimar testículos com maçarico, extrair dentes com alicates, introduzir arame  
aquecido na uretra e nos ouvidos, queimar as pontas dos seios com charutos ou  
cigarros, uso de cadeira americana e máscara de couro eram alguns dos muitos  
métodos brutais utilizados pela polícia política de Vargas (CANCELLI, 1994, pp. 193-  
4).  
O estado das prisões era caótico. A Casa de Detenção do Rio de Janeiro,  
transformada em Presídio no período, embora projetada para 450 pessoas, chegou  
ao número de 1.480 internos após a repressão ao levante comunista de 1935. Em  
celas pequenas com capacidade para receber entre nove e vinte e sete homens,  
contando com um sanitário, nenhuma cama e possibilidade de banho uma vez por  
semana, amontavam-se entre cinquenta e sessenta presos, que precisavam fazer  
revezamento de sono (CANCELLI, 1994, pp. 183-5). Descrições de precariedade  
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similares apareciam em relação a cadeias públicas do Recife, de Natal e da colônia  
correcional de Fernando de Noronha, mostrando o agravamento generalizado das  
condições de encarceramento no período. Mesmo na Casa de Correção do Distrito  
Federal idealizada nos 1800’s como vitrine da modernização das penas na América  
Latina e que se tornou penitenciária em 1941 nem sequer havia água encanada nas  
galerias e as estruturas físicas estavam prestes a ruir (CANCELLI, 1994, pp. 189-90).  
Nas colônias correcionais, os castigos físicos somavam-se à superlotação, à fome e à  
proliferação de doenças: uma edição do jornal O Globo de 1934 descrevia um  
açoitamento público de cinco presidiários na Colônia Correcional de Dois Rios, no Rio  
de Janeiro, não à toa conhecida como “ilha maldita”, cuja barbárie servia de vitrine  
ameaçadora para o conjunto das pessoas potencialmente sujeitas ao sistema penal  
(CANCELLI, 1994, p. 187). No Estado Novo, a unidade, situada em Ilha Grande,  
multiplicou seu número de internos: de 150, em 1934, para cerca de 1.200 em 1937  
(CANCELLI, 1994, p. 188).  
A II Guerra Mundial havia criado uma janela de oportunidades positiva para a  
economia brasileira, com o crescimento vertiginoso da demanda internacional de  
gêneros alimentares e matérias-primas, que aumentam o valor das exportações, e um  
concomitante declínio das importações advindas dos países em guerra, o que força o  
país, a exemplo da I Guerra Mundial, a um impulso industrializador, no afã de  
responder às suas necessidades internas. Essas circunstâncias excepcionais e  
transitórias levam a uma balança comercial positiva e a um significativo, embora  
artificial, crescimento econômico, que se dá, entretanto, “à custa da massa  
trabalhadora do país, que suportou todo o ônus daqueles sacrifícios (por efeito, em  
particular, das restrições alimentares e do encarecimento considerável da vida, e são  
somente as classes possuidoras que dele participarão efetivamente”, enquanto o que  
se tem, com o aumento do custo de vista e a estagnação do nível de salários, é um  
“forte acréscimo da exploração da força de trabalho e um sobrelucro apreciável que  
provoca intensa acumulação capitalista” (PRADO JR., 1994, p. 304).  
Nesse contexto, o reforço do sistema penal do estado autocrático brasileiro,  
especialmente com o endosso de um aparato de repressão política que vinha se  
desenhando desde as primeiras décadas do século XX, aniquilou as formas  
espontâneas de organização da classe trabalhadora, ao mesmo tempo que consolidou  
a hegemonia política de uma determinada fração da burguesia nacional. Sobretudo,  
viabilizou, em detrimento de uma plataforma reformista colocada pela ANL, pelo PCB  
e pelo sindicalismo, a continuidade e o recrudescimento de um projeto de evolução  
nacional sem progresso social. Como violência extraeconômica, agudizou a  
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Determinações da punição no capitalismo de via colonial  
superexploração da força de trabalho, forçando a resignação do proletariado e  
otimizando a administração política da pobreza, a partir de um processo de  
especialização do aparato correcional, cada vez mais influenciado por um ideário  
cientificista a serviço da higiene social.  
Tanto como uma forma de controle sobre a classe trabalhadora, quanto como  
uma maneira de colocar os interesses industrialistas acima dos das demais frações do  
capital, “o modelo corporativista, aperfeiçoado e consolidado pela ditadura  
bonapartista, mostrar-se-ia como uma arquitetura institucional extremamente útil para  
a burguesia industrial” (DEMIER, 2012, p. 432). Prova contundente disso é a felicitação  
de aniversário em carta publicada em 1942 n’O Estado de S. Paulo pela Associação  
Comercial de São Paulo, bancos, a Fiesp e várias grandes indústrias, que enfatizaram  
o apoio a Vargas, nomeando-o como “apóstolo da Ordem” e implementador de uma  
democracia há muito almejada no Brasil (DEMIER, 2012, p. 433).  
Em uma tentativa de balanço, Vargas sepultou as oligarquias rurais, superou  
regionalismos, impulsionou a indústria nacional e garantiu importantes direitos sociais  
aos trabalhadores e significativas políticas assistenciais à população de baixa renda.  
Mas não rompeu com a subordinação ao capital internacional e não apenas deixou de  
efetivar a reforma agrária reivindicada pela ANL, como sequer incluiu os trabalhadores  
rurais em seu projeto corporativista. E respondeu à pretensão anti-imperialista e  
democrática de seus críticos com repressão brutal. Vargas, enfim, intentou uma forma  
específica de conciliação do novo com o velho. Buscou afirmar um desenvolvimento  
nacional autônomo sem destruição da velha produção agroexportadora subordinada  
que esse desenvolvimento exigia e sem que o sujeito histórico desse processo (uma  
burguesia mais radical em seu modo de existência e em suas pretensões) estivesse  
presente (COTRIM, 1999, p. 292).  
Em 1945, com a deposição de Getúlio Vargas por um golpe militar, o pêndulo  
retorna à autocracia burguesa institucionalizada. A mesma burguesia que esteve na  
base de sustentação do governo Vargas, agora já consolidada política e  
economicamente, viu-se capaz de assumir diretamente o controle do estado (MAZZEO,  
1995, p. 36). Segundo Chasin (2000, p. 15), o golpe foi empreendido “com certeza  
não por aqueles que desejavam mudar as coisas” e o próprio Vargas havia tentado  
viabilizar uma autorreforma do bonapartismo do Estado Novo, sem sucesso, “talvez  
porque tenha intentado algo para além da simples autorreforma”.  
A entrada do Brasil na guerra em 1944 agudiza as forças de oposição, com  
manifestações operárias e estudantis e uma crescente aversão ao fascismo na opinião  
pública. Um novo Plano Cohen já não seria possível: os comunistas haviam participado  
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da luta que derrotou o nazifascismo em 1945 e o autoritarismo varguista já não  
poderia se sustentar em espantalhos fáceis (MAZZEO, 1995, pp. 36-7). Já em 1945,  
Vargas, sob pressão militar, convoca eleições presidenciais e a Assembleia Nacional  
Constituinte, com o retorno dos partidos à legalidade. A Constituição de 1946, com  
previsão de um regime presidencialista com tripartição de poderes e um sistema de  
freios e contrapesos, eleições diretas livres, ampliação dos direitos políticos e sociais,  
autonomia dos estados, liberdade sindical e garantia abstrata do direito de greve  
sedimentou o fim do período ditatorial. A transição se dá, entretanto, sem acerto de  
contas com o bonapartismo varguista e conservando parte significativa do controle  
sindical e do aparelho repressivo construído no contexto antecedente. Passamos de  
uma “truculência de classe manifesta” para uma “oposição de classe velada ou  
semivelada” (CHASIN, 2000, p. 128).  
Como aponta Chasin, à saída do Estado Novo, o Brasil era um país a meio de  
um trânsito hipertardio para o capitalismo verdadeiro (industrial), com um perfil  
regionalizado e com uma subordinação ao capital estrangeiro que “continha ainda  
ambiguidades, lacunas ou latências próprias de um processo inconcluso, que ainda  
permitiam, talvez, a suposição ou a projeção de possibilidades de um capitalismo  
autônomo(CHASIN, 2000, p. 128). Dão dimensão dessa projeção a proliferação das  
greves Marcelo Badaró fala em 480 só na cidade do Rio de Janeiro entre 1945 e  
1964 (MATTOS, 2004, p. 258) e a significativa popularização do PCB, que chegou  
a obter 10% dos votos nas eleições de 1945 e elegeu uma importante bancada na  
Constituinte, além de senadores, deputados e vereadores em todo o Brasil (OLIVEIRA,  
2018, p. 53).  
Em algum sentido, como defende Chasin em contraste com o pós-64, o pós-45  
foi acima de tudo um período de programas econômicos”, de que seriam  
exemplificativos a implantação do monopólio estatal do petróleo e a propositura, ainda  
que muito debilmente elaborada, das chamadas reformas de base (CHASIN, 2000, p.  
9). De fato, como aponta Caio Prado Júnior, o período situado entre 1946 e 1964 é  
de continuidade e de aprofundamento da crise do sistema colonial, que abre margens  
para a transformação final desse sistema (PRADO JR., 1994, p. 301).  
Mas esse novo ainda se afirmava e já era ruína. O antigo modelo agroexportador  
dá sinais de esgotamento, mas a industrialização que emerge em seu lugar não  
apresenta uma ruptura com a subordinação, mas sim sua reprodução, agora sob a era  
dos trustes. Apesar do protagonismo estatal no desenvolvimento econômico e embora  
o volume da produção brasileira tenha mais que triplicado entre 1947 e 1961, com  
significativo impulso industrial e melhoria da composição orgânica do capital, com  
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maior participação de bens de produção (maquinaria, motores, material elétrico e  
outros bens duráveis como automóveis), esse processo se deu, ao menos em grande  
parte, com a perpetuação dos vícios que marcam a indústria brasileira desde a sua  
gênese.  
Em primeiro lugar, permaneceu o caráter reativo da industrialização brasileira,  
que continuou privilegiando o bom aproveitamento de janelas contingenciais de  
oportunidade geradas por momentâneas demandas externas (como na II Guerra  
Mundial) em detrimento de um desenvolvimento orgânico, solidificado e estável. Em  
segundo lugar, seu caráter suntuário privilegiou a produção de bens de consumo  
duráveis (como automóveis e eletrodomésticos, quando não bens de luxo) focalizados  
em um pequeno segmento urbano com alto poder aquisitivo, em detrimento das  
necessidades básicas da grande massa da população brasileira. Em terceiro lugar, a  
substituição de importações e a aposta na inversão de capitais estrangeiros, por meio  
de trustes instalados no país como estratégia de viabilizar insumos e tecnologias  
necessários ao desenvolvimento industrial, elevou o endividamento externo e  
aprofundou e complexificou a subordinação agora não apenas comercial, mas  
também tecnológica e gerencial, favorecendo o controle direto sobre o aparelho  
produtivo e os setores estratégicos da economia subordinada. Em quarto lugar, há a  
conservação de uma estrutura agrária altamente concentrada, dominada por práticas  
agrícolas predatórias e itinerantes que impedem a integração do trabalhador rural no  
mercado consumidor interno. O resultado é uma indústria de bens de consumo durável  
substitutiva de importações, sem infraestrutura relevante e dependente do externo no  
fornecimento de insumos e de tecnologia; um “modesto fim de linha de estruturas  
industriais exteriores ao país [...], que não vai além de uma dispersa constelação de  
filiais ou dependências periféricas, em maior ou menor grau, de grandes empresas  
internacionais(PRADO Jr., 1994, p. 354).  
À breve esperança no desenvolvimento da indústria nacional sucede, assim, a  
manutenção dos caracteres da subordinação de via colonial e a reprodução de um  
modelo em que evolução nacional se dá em prejuízo do progresso social, sob a forma  
de uma modernização excludente, que não aproveita a maior parte da população.  
Apesar da afirmação sem precedentes de liberdades institucionais, o país ainda esteve  
longe de uma democracia burguesa nos limitados moldes franceses ou  
estadunidenses.  
Para assegurar a reprodução desses caracteres, o liberalismo à brasileira é  
chamado novamente a conviver em plena harmonia com fortes mecanismos de  
repressão política e com o achatamento salarial, dentro da lógica autocrática que, na  
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via colonial, não aceita nem sequer impulsos reformistas. O aparelho policial é mantido  
e aperfeiçoado, novas restrições ao direito de greve são formuladas, partidos são  
postos na ilegalidade, representantes eleitos são cassados, organizações sindicais são  
suspensas. O que se teve, na verdade, foi a “combinação de um aparato constitucional  
de feitio e ingredientes liberais (Constituição de 46) com um amplo complexo legal  
destinado a ‘organizar’, controlar e reprimir o movimento operário em especial e o  
sindicalismo em geral(CHASIN, 2000, p. 129).  
Nesse sentido foi criado, em 1944, o Departamento Federal de Segurança  
Pública, com atribuições nacionais e locais, e que incluía, em sua estrutura, a Divisão  
de Polícia Política e Social (DPS), órgão que conectaria os vários Delegacias de Ordem  
Política e Social (Dops) dos estados e teria, por meio de seu Setor de Fiscalização  
Trabalhista, o papel de vigilância e de repressão aos grevistas. Entre 1954 e 1955,  
quando da tentativa de golpe para impedir a posse de Juscelino Kubitschek, a DPS  
contava com um contingente entre 600 e 700 funcionários que, somados aos  
informantes, chegava a 3.000 pessoas trabalhando apenas para a Seção de  
Investigações, dirigida por Macedo Borer, uma figura histórica que personifica os elos  
de ligação entre esquadrões da morte, polícia política na Era Vargas e subsistema  
repressivo da ditadura militar.  
O Partido Comunista, que crescia em expressão, foi novamente posto na  
ilegalidade já em 1947, com a cassação dos mandatos eletivos. Antes disso, ainda em  
1946, o governo Dutra já havia determinado a demissão de todos os funcionários  
públicos conhecidos como membros do Partido. O direito de greve recém-garantido  
na Constituição de 1946 encontrou obstáculos inviabilizadores de seu exercício no  
mesmo ano. O Decreto-Lei n. 9.070, de 13 de março, editado sob o governo Dutra,  
desautorizava a realização de greve no âmbito de uma extensa lista de “atividades  
profissionais fundamentais” e, mesmo para as atividades “acessórias”, condicionava a  
cessação coletiva do trabalho à notificação prévia e ao esgotamento dos meios de  
conciliação e decisão da Justiça do Trabalho, sob pena de configuração de falta grave  
(BRASIL, 1946). Já a exigência de um “atestado de ideologia” para concorrer à direção  
de sindicatos permaneceu vigente até pelo menos o segundo governo Vargas,  
vedando aqueles tachados como comunistas ou grevistas/agitadores, assim como  
continuaram frequentes a elaboração de dossiês voltados à vigilância e as intervenções  
em organizações políticas e sindicais, por vezes sangrentas e envolvendo as forças  
armadas (somente o Sindicato dos Metalúrgicos eliminou, em novembro de 1947,  
cerca de 900 associados classificados como comunistas).  
A tortura como método também persistiu, ainda que não como prática  
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corriqueira como no Estado Novo. O relatório da Comissão Nacional da Verdade  
(BRASIL, 2014) cita alguns exemplos que, não por trivialidade, deram-se em contexto  
de lutas que colocavam em xeque a reprodução de nosso sistema colonial: 1) a  
repressão na base aérea de Parnamirim, em Natal, onde, entre 1952 e 1953, oficiais  
da Aeronáutica torturaram militares e civis engajados na campanha “O Petróleo é  
nosso!”; 2) torturas entre 1952 e 1953 na Ilha das Cobras e em quartéis do Rio de  
Janeiro, também de integrantes da mesma campanha; 3) atuação da Invernada de  
Olaria, delegacia criada no Rio de Janeiro, em 1962, com ligações com o Esquadrão  
da Morte, especialmente o caso de tortura de Clodomir Morais, advogado das Ligas  
Camponesas, e de sua Célia Lima, que o acompanhava.  
De modo mais amplo, a estrutura policial foi drasticamente ampliada. Na cidade  
de São Paulo, por exemplo, que cresceu sua participação na renda nacional e passou  
concentrar a maior parte dos operários do país, enquanto a população cresceu 74%  
entre 1947 e 1964, os efetivos da Força Pública e da Guarda Civil, responsáveis pelo  
policiamento ostensivo, aumentaram 170% e 275%, respectivamente (BATTIBUGLI,  
2010).  
A expansão da estrutura policial é acompanhada de uma política de expansão  
física das prisões. Em 1950, São Paulo possuía 596 instituições prisionais (incluindo  
cadeias, xadrezes, casa de correção, casa de detenção e penitenciária), crescendo para  
686 em 1955 e chegando, no fim da década, a possuir a capacidade para aprisionar  
cerca de cinco mil pessoas em apenas duas de suas unidades, ostentando o maior  
parque carcerário da América Latina. Com isso, houve uma multiplicação da população  
reclusa em penitenciárias tratando aqui apenas de presos com condenação criminal  
da ordem de seis vezes no espaço de apenas uma década de cerca de 1.000  
presos em 1949 para mais de 6.000 em 1960, com posterior redução para 4.000 em  
1963 (FERREIRA, 2021, p. 39). O número de presos definitivos também cresceu no  
Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, embora apenas posteriormente, em ritmo bem  
mais lento e com oscilações1. Acelera também a mudança no perfil dos presos  
definitivos, caindo a participação do número de crimes contra a pessoa (60% na  
Penitenciária de São Paulo em 1930), que cede lugar cada vez mais aos crimes  
patrimoniais.  
Mas as prisões correcionais permaneceram sendo amplamente majoritárias.  
Persiste a repressão penal a infrações como desordem, alcoolismo, mendicidade,  
escândalo e, em menor grau, vadiagem, além da prisão para averiguação. Embora a  
1
Esses números, claro, são ínfimos comparados aos do encarceramento atual, tanto em termos  
absolutos quanto em relativos, mas refletem uma mudança histórica relevante.  
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taxa de prisões correcionais tenha caído pela metade durante a década de 1950, o  
número continuou alto e inclusive bastante superior às taxas de prisão-pena ou,  
mesmo, do número de flagrantes ou de mandados de prisão: em 1959 os mandados  
de prisão preventiva e por condenação na cidade de São Paulo representaram menos  
de 10% da média de detenções correcionais da década (TEIXEIRA, 2015, p. 65). A  
discrepância era tão grande que o Departamento de Estatística do estado passou a  
divulgar os dados em duas seções separadas a das prisões correcionais e a dos  
inquéritos instaurados.  
As prisões por vadiagem sobem de 105 em 1943 para 365 em 1951 e para  
848 em 1960 na cidade de São Paulo, um crescimento relevante, mas com números  
absolutos pouco representativos no total das detenções correcionais, especialmente  
quando comparados com a desordem e o alcoolismo. A mendicidade sai de 344 em  
1943 para 1.708 em 1951, seguida de novo decréscimo para 148 em 1960. A  
desordem tem uma redução significativa de 6.966 em 1951 para 2.853 em 1960,  
embora tenha se mantido em número elevado.  
Mas o que mais chama atenção é o crescimento vertiginoso das taxas de prisão  
“para averiguação”, que triplicaram entre 1951 e 1960, chegando a 8.286 casos em  
1962, o que corresponde a 20% do total de prisões correcionais e quatro vezes o  
total de mandados de prisão cumpridos na capital em 1959 (TEIXEIRA, 2015, p. 74).  
O uso desse tipo de prisão para práticas de extorsão e corrupção contra a população  
pobre tornou-se mais corriqueiro no início dos 60’s, especialmente na região da Boca  
do Lixo em São Paulo, chegando as chamadas “caixinhas mensais” a serem  
reconhecidas pelo Secretário de Segurança Pública do estado em 1963. A prática é  
ilustrativa da crise vivida pela Polícia Civil, em suas tensões com a Força Pública e a  
Guarda Civil, que gerará uma reestruturação das polícias, com a criação da Polícia  
Militar no final da década e com o fenômeno do esquadrão da morte. Conhecida por  
seu uso para repressão propriamente política, sobretudo nos períodos bonapartistas,  
a prisão para averiguação, no contexto dos anos 50 e 60, era também usada na  
“gestão diferencial de ilegalismos” próprios das camadas mais excluídas da população:  
trabalhadores de baixíssima renda, prostitutas, vadios, mendigos etc. Não apenas ela:  
os esquadrões da morte e outros mecanismos de execução sumária dos excluídos  
ganharam a cena justamente nesse período. A “Operação Mata-Mendigos”  
empreendida pelo Serviço de Repressão à Mendicância do Estado da Guanabara no  
início dos anos 60 é um dos exemplos mais contundentes nesse sentido (ANTONIO,  
2020, p. 164).  
As colônias correcionais, marcadas pelo isolamento geográfico e por especiais  
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Determinações da punição no capitalismo de via colonial  
condições de precariedade que incluíam frequentes castigos físicos, veem reforçadas  
seu papel de punição a contraventores persistentes, agora, sob o Código Penal de  
1940 e a Lei de Contravenções Penais de 1941 e por influência do positivismo  
criminológico, tomados como presumidamente perigosos e sujeitos, por consequência,  
a medidas de segurança detentivas. O Presídio Político da Ilha de Anchieta é  
transformado, em reforma de 1942, em Instituto Correcional, voltado à aplicação das  
medidas de segurança, da prisão simples por outras contravenções penais e de penas  
de reclusão e de detenção, com o objetivo de desafogar as prisões da capital. A  
proporção de pessoas não brancas (45%) era semelhante à das prisões correcionais,  
e muito superior àquela verificada na Casa de Detenção (25%), voltada para presos  
condenados (FERREIRA, 2016, p. 103). O orçamento do instituto se multiplicaria por  
oito entre 1945 e 1953, algo semelhante ao que acontece com o orçamento da polícia  
e das prisões do estado. O instituto chegaria a abrigar 10% da população prisional  
de São Paulo em 1952, ano em que foi palco de uma rebelião que marcou a história  
das prisões no Brasil (FERREIRA, 2016, pp. 92; 109). As variadas formas de  
insurgência da população prisional, aliás, tornam-se mais comuns a partir dos fins dos  
anos 1940, com rebeliões, fugas em massa e motins repercutindo nos espaços  
prisionais de diversos estados brasileiros (FERREIRA, 2021, p. 44)  
Em tentativa de síntese, a autocracia burguesa institucionalizada de 46-64 é  
marcada por um impulso industrializador que reproduz e acentua os caracteres da via  
colonial, dentre eles a modernização excludente e a superexploração da força de  
trabalho, que passa a se concentrar, por meio de intensos fluxos migratórios, em  
centros urbanos como São Paulo, que triplica sua população. A industrialização, a  
urbanização e o crescimento demográfico são usados como fundamento para uma  
ampla expansão da malha repressiva do estado, incluindo polícia e prisões, em um  
discurso que parecia unir ingredientes da escola clássica e da escola positiva, com  
pitadas relevantes de higienismo social (FERREIRA, 2021).  
O aparato repressivo do estado autocrático brasileiro segue engajado na  
administração política da pobreza e em dinamitar possíveis formas de insubordinação  
dos trabalhadores organizados. As contravenções e as respectivas prisões correcionais  
caem em número, mas seguem relevantes, ainda com impressionante discrepância com  
os números da prisão-pena, e com destaque para as prisões por averiguação, dotadas  
de maior arbitrariedade e indefinição. Ao mesmo tempo, os crimes patrimoniais  
tornam-se cada vez mais representativos nas estatísticas prisionais e, apesar do  
corrente discurso ressocializador descompassado de uma tendência europeia de  
desencarceramento, as prisões seguem superlotadas, com condições degradantes de  
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existência e as ilhas do inferno seguem em pleno vigor. A transformação da questão  
social em questão policial continua sendo, nessa autoafirmada fase democrática, a  
marca de uma via colonial que apenas acata uma modernização com caráter  
excludente, que impeça a conjugação da evolução nacional com o progresso social:  
Resultam, pois, dois polos para a genuína dominação capitalista no  
Brasil: a truculência de classe manifesta e a imposição de classe velada  
ou semivelada, que se efetivam através de um mero gradiente,  
excluída a possibilidade de a hegemonia burguesa, no caso, resultar  
de e no quadro integracionista e participativo de todas as categorias  
sociais, que caracteriza, com todos seus limites conhecidos, a  
dominação de tipo democrático-liberal. [...] Ou seja, do mesmo modo  
que, aqui, a autocracia burguesa institucionalizada é a forma de  
dominação burguesa em tempos de paz, o bonapartismo é sua  
forma em tempos de guerra. E na proporção em que, na guerra de  
classes, a paz e a guerra sucedem-se continuamente, no caso  
brasileiro, no caso da objetivação do capitalismo pela via colonial, as  
formas burguesas de dominação política oscilam e se alternam entre  
diversos graus de bonapartismo e de autocracia burguesa  
institucionalizada, como toda a nossa história republicana evidencia.  
(CHASIN, 2000, pp. 127-8)  
Ainda assim, com os quilômetros de distância que separam, em termos  
econômicos, políticos e sociais, a realidade histórica brasileira das exigências de uma  
também limitada democracia burguesa, essa autocracia dos tempos de paz sofreu  
muitos abalos no período assinalado. Essa década e meia viu “o suicídio de um  
presidente, a renúncia de um outro e a derrubada pela força de um terceiro; e tudo  
isso já sem contar com um pequeno enxame de golpes e contragolpes, e com o fato  
de que exclusivamente um único presidente da república conseguiu exercer, até o fim,  
o mandato que recebera em eleições diretas” (CHASIN, 2000, p. 103). Após uma série  
de tentativas de golpe, uma delas pôs fim à paz e instaurou a guerra, ensejando uma  
nova volta do pêndulo.  
A segunda volta: golpe de 1964 e autorreforma negociada  
A segunda volta do pêndulo seria dada em 1964, com a instauração de um  
novo bonapartismo. O início dos anos 60 é marcado por uma agudização da luta de  
classes, com greves gerais mobilizando centenas de milhares de pessoas e o  
fortalecimento de partidos de esquerda, do movimento operário e sindical, das Ligas  
Camponesas, do movimento estudantil e de outros movimentos sociais e populares,  
animados também pelos ventos da Revolução Cubana de 1959. João Goulart, que  
assumira a presidência diante da renúncia de Jânio Quadros, propunha as chamadas  
“reformas que base” (administrativa, bancária, tributária, cambial, eleitoral, urbana e  
educacional), que, embora não-revolucionárias, constituíam uma plataforma  
nacionalista e popular, com potencial de mitigar o caráter excludente próprio da  
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trajetória de via colonial, de modo a “democratizar as relações socioeconômicas e  
políticas, ampliando o acesso à riqueza material e espiritual pela modificação do modo  
de sua produção e da posição nele ocupada pelas distintas classes sociais(COTRIM,  
2016, p. 15).  
Diante das ameaças postas nessa conjuntura sobretudo ao latifúndio e ao  
capital imperialista , a burguesia brasileira, com apoio de setores da sociedade civil  
e do governo estadunidense, cede o exercício do controle político direto às Forças  
Armadas, que efetivam um empreendimento de dinamitar organizações políticas,  
movimentos sociais e as variadas formas de insubordinação da classe trabalhadora,  
impondo subserviência e, com isso, uma diminuição politicamente forjada do valor da  
força de trabalho (RAGO FILHO, 1998, p. 362). Nas palavras de Chasin: politicamente,  
a ditadura militar bonapartista “desorganizara e aterrorizara o movimento de massas,  
especialmente o movimento operário, e desbaratara as oposições, especialmente do  
ponto de vista ideológico, mas também emasculara sua programática e influíra  
poderosamente em sua orgânica” (CHASIN, 2000, p. 127). Com isso, como aponta  
Antônio Rago Filho (2004, p. 141), o golpe aniquila a esperança de uma nova ordem  
societária que, sob a forma de uma República democrática, colocaria as massas na vida  
pública, incorporadas ao mercado interno por meio de um conjunto de reformas  
estruturais, a começar pela agrária”, bem como obstaculiza “o processo de  
nacionalização dos setores estratégicos de nossa economia e o controle da remessa  
de lucros, que ameaçavam as empresas estrangeiras.  
Na sua dimensão econômica, a ditadura opera o assim chamado “milagre”, um  
período de crescimento econômico novamente propiciado por circunstâncias externas  
excepcionais e contingentes e baseado no aumento da subordinação brasileira com a  
abertura massiva ao capital estrangeiro e, internamente, no arrocho salarial. Já no início  
da ditadura, o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg) estabeleceu uma rígida  
política de controle do aumento dos salários, o que resultou em 50% de perda do  
valor real do salário-mínimo entre 1964 e 1985. Por outro lado, o crescimento de  
produtividade - em 1974, o PIB cresceu 14% - se deu com o aumento do  
endividamento externo da ordem de trinta vezes, gerado pela apropriação dual das  
multinacionais e pelos pesados juros de empréstimos tomados no exterior  
(BARRUCHO, 2024). O resultado foi uma piora vertiginosa na concentração de renda  
e a degradação das condições de vida do trabalhador brasileiro.  
O reforço da superexploração da força de trabalho apenas foi possível, claro,  
com o endurecimento da repressão. O bonapartismo de 1964 incorporou, aperfeiçoou  
e profissionalizou o aparato repressivo do Estado Novo, conformando um subsistema  
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(ou um sistema penal paralelo) de repressão política.  
Dois meses após o golpe, uma nova lei antissindical (Lei n. 4.330/64) foi  
editada, tornando a greve basicamente impraticável, ao opor exigências como quóruns  
exorbitantes, intervenção estatal na assembleia e longos prazos de notificação, além  
de proibir “greve política e de solidariedade”, censurando e fragmentando as  
organizações grevistas. Junto a isso, o Ato Institucional n. 1 deslocou o julgamento de  
civis por crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares para o Superior  
Tribunal Militar, e o Ato Institucional n. 2 atribuiu à Justiça Federal o processamento e  
julgamento de crimes contra a organização do trabalho e o exercício do direito de  
greve, retirando os dissídios classistas da órbita da Justiça do Trabalho, e assim  
contribuindo para a criminalização de grevistas. O posterior Ato Institucional n. 5, por  
fim, suspendeu a garantia de habeas corpus para diversos crimes em que se  
enquadrariam as lideranças políticas e sindicais e excluiu da apreciação judicial ações  
praticadas de acordo com o Ato, além de prever a possibilidade de suspensão, pelo  
Presidente da República, de direitos políticos de qualquer cidadão e, dentro deles, o  
de ser votados em eleições sindicais.  
Ao esvaziamento do sentido político do sindicato foi imposto um “novo  
trabalhismo” que, à semelhança da política varguista, buscava cooptar as organizações  
de trabalhadores, assimilando-as à estrutura burocrática do estado, seja com a  
nomeação de interventores, seja com a eleição de pelegos. Em 1966, a Lei n. 5.107  
extinguiu o direito à estabilidade adquirido após 10 anos de serviço (estabilidade  
decenal), criando o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) como medida  
indenizatória. A medida gerou um processo de demissão em massa de trabalhadores  
mais experientes e gerou uma rotatividade que prejudicou fortemente a organização  
sindical.  
Paralelamente a isso, outras normativas colocavam mecanismos mais amplos de  
repressão ao conjunto de opositores e de movimentos de massa. O Decreto-Lei n.  
314, de 13 de maio de 1967, instituiu oficialmente a Doutrina da Segurança Nacional,  
centrada na repressão à guerra psicológica adversae à guerra revolucionária ou  
subversiva”, prevendo crimes específicos com competência do foro militar, ainda que  
praticados por civis, e inafiançáveis, devendo a pena privativa de liberdade ser  
cumprida em estabelecimento militar ou civil, mas “sem rigor penitenciário”, e sendo  
cabível prisão preventiva decretada de ofício. A lei manteve e ampliou as hipóteses de  
criminalização da lei anterior (Lei n. 1.802/53), fazendo muitas referências a conceitos  
ambíguos como atividades, organizações ou propagandas “subversivas”. À greve que  
acarretasse paralisação de serviços públicos ou atividades essenciais era prevista pena  
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de reclusão de dois a seis anos. O Decreto-Lei n. 510 de 1969 aumentou as penas  
previstas para os crimes criados pelo decreto anterior e aumentou seu âmbito de  
incidência, passando a fazer referência a expressões como “sabotagem” e “terrorismo”.  
Já o Decreto-Lei n. 898, de 29 de setembro de 1969, é conhecido pela readmissão  
da prisão perpétua e da pena de morte e pelo aumento das penas dos crimes previstos  
nos decretos anteriores, inclusive do crime de greve. Por fim, o Decreto-Lei n. 417, de  
10 de junho de 1969 dispunha sobre a expulsão de estrangeiro que praticassem uma  
vasta gama de crimes ou cujo procedimento o tornasse nocivo ou perigoso à  
conveniência ou aos interesses nacionais, ou, ainda, que se entregasse à vadiagem ou  
à mendicância, prevendo investigação sumária ou, mesmo, a expulsão pelo Presidente  
da República antes da conclusão de qualquer ação, inquérito ou investigação.  
O sistema Dops/DOI-Codi constituiu o núcleo central do aparelho repressivo do  
regime. O Dops, como já apontado, tem origem nos anos 1920, quando se tornaram  
mais comuns as prisões políticas, sobretudo ligadas ao trabalho e ao anarquismo,  
enquanto o DOI-Codi foi criado entre 1969 e 1970, de forma descentralizada em  
diferentes zonas militares. A eles se acresciam uma complexa teia de instituições, como  
os centros de informação das Forças Armadas, além de outros organismos ligados à  
Polícia Civil, à Polícia Militar e, em menor grau, à Polícia Federal e de vários centros  
clandestinos de tortura sob coordenação militar. Já o Serviço Nacional de Informações,  
criado pela Lei n. 4.341/64, era a peça-chave de um complexo esquema de  
espionagem a serviço da repressão política, a que seu próprio idealizador, o general  
Golbery do Couto e Silva, um dos principais ideólogos do bonapartismo de 64, chegou  
a se referir como sendo um monstro (MEMORIAL DA DEMOCRACIA, 2025). O Serviço  
também contava com a colaboração de informantes civis e ostentava tentáculos em  
empresas públicas e privadas.  
O saldo compõe um dos capítulos mais sombrios da história nacional. A  
Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014) registrou 191 mortes e 243  
desaparecimentos forçados de opositores políticos, enquanto a Secretaria de Direitos  
Humanos da Presidência da República estima em 20.000 o número de torturados,  
incluindo crianças e adolescentes, além de inúmeros casos de violência sexual. Já nos  
primeiros dias de ditadura, foram empreendidas mais de 5.000 prisões arbitrárias, que  
foram uma marca durante todo o período: prisões em massa, com meios ilegais,  
desproporcionais ou desnecessários e sem informação sobre os fundamentos da  
prisão, nem registro formal da detenção e mantendo os presos incomunicáveis por  
longos períodos, além da submissão a violências das mais diversas. Sete em cada 10  
confederações de trabalhadores tiveram suas diretorias depostas. Lideranças de  
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movimentos sociais foram neutralizadas pelo exílio ou pela clandestinidade  
(GONZALEZ, 1982). E se agudizou o genocídio dos povos indígenas, que também  
foram submetidos à exploração do trabalho, inclusive em prisões similares a campos  
de concentração, como o Reformatório Krenak. Some-se a isso, apenas entre 1964 e  
1970, 536 intervenções em organizações operárias.  
Houve a participação de ao menos 80 empresas no esquema repressivo e 40%  
dos mortos e desaparecidos da ditadura o foram pela condição de trabalhadores  
(BORGES, 2024). 14 dessas empresas estão atualmente mais de seis décadas após  
a instauração do regime sendo investigadas pelo Ministério Público do Trabalho e  
pelo Ministério Público Federal por colaboração com a ditadura (AGÊNCIA PÚBLICA,  
2025). A usina de Itaipu deixou mais 100 operários mortos e 43 mil acidentes de  
trabalho durante sua construção nos anos 1960. A Petrobrás teria atuado junto ao  
Exército na instauração de 1,5 mil processos de investigação, que geraram  
processamento de 712 operários; também teria criado um centro de tortura em um  
alojamento de funcionários na Bahia e monitorado a orientação sexual de  
trabalhadores. A Companhia Siderúrgica Nacional é processada por 11 tipos diferentes  
de violações de direitos humanos; o racismo na vedação de acesso de pessoas negras  
aos clubes sociais da empresa levou à criação do Clube Palmares em 1965. A Embraer  
nasceu em 1969, articulando o poder público militar e o poder empresarial que bancou  
o golpe; é acusada de sequestrar e internar funcionários à força em clínica psiquiátrica  
particular. A Volkswagen teria chegado a manter por 12 anos uma fazenda de  
exploração de trabalho escravo financiada pela ditadura. A Fiat, que recebeu uma série  
de incentivos estatais no período, tinha seu próprio sistema clandestino de  
espionagem, que teria chegado a contar com 145 agentes e sala exclusiva para  
interrogatório de funcionários, tendo sido instrumento-chave na prisão e morte de  
militantes importantes da ALN. A Belgo-Mineira é acusada de abuso sexual, tortura e  
demissões arbitrárias, inclusive com relatos de participação do médico da empresa na  
tortura de mulheres no DOI-Codi de Minas Gerais.  
Mas, para além da repressão a trabalhadores e a opositores políticos, a ditadura  
também deixa seu legado de criminalização da pobreza de forma mais ampla. Como  
aponta Alessandra Teixeira (2012, pp. 78-81), as prisões correcionais seguem  
amplamente majoritárias: correspondem a 87% das prisões em 1967 e a 96% em  
1977, permanecendo o alcoolismo e a prisão por averiguação, seguidos de desordem,  
como os principais motivos de detenção. A vadiagem segue em decréscimo, mas ainda  
aparece nos dados: 1.413 dentre as 38.078 detenções policiais e correcionais na  
Grande São Paulo em 1968.  
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Já para as prisões fundadas em inquéritos, os crimes patrimoniais,  
especialmente o furto, mas também o roubo a partir dos anos 70, superam  
progressivamente os crimes contra a pessoa em representação nas estatísticas  
criminais, e a figura do “menor”, “trombadinha”, “menino de rua” passa a ser central  
no imaginário social da violência e do medo. Ele será o grande alvo de execuções  
sumárias pelas forças policiais, justiceiros e matadores locais e dos linchamentos dos  
anos 70 e 80: na avaliação de Alessandra Teixeira (2012), gradativamente, o  
ilegalismo se converte em delinquência e o controle do ilegalismo se converte em  
controle da delinquência.  
O bonapartismo de 64 forjou novos instrumentos de repressão, como a polícia  
orientada pela política de guerra às drogas e pela defesa do patrimônio e as milícias;  
e reforçou as ferramentas já existentes. Os grupos de extermínio, por exemplo,  
surgidos no final da década de 1950 em pleno período dito “democrático”, seguem  
operando, se expandem e ganham notoriedade, praticando execuções sumárias de  
pessoas taxadas como criminosas, trombadinhas, vadias, moradoras de rua, travestis  
ou marginais. Evidenciando a relação umbilical entre repressão política e administração  
política da pobreza, alguns dos principais personagens do Bonapartismo de 1964,  
como o próprio delegado Sérgio Fleury do Dops, eram egressos de esquadrões da  
morte, ao mesmo tempo que as técnicas de violência utilizadas por esses esquadrões  
foram refinadas para serem aplicadas na repressão política.  
Há, de modo mais contundente, o legado direto da instituição-chave da  
dominação autocrática burguesa contemporânea: em 1969 a Guarda Civil e a Força  
Pública são extintas e seu contingente é aproveitado na criação da Polícia Militar, com  
atribuição exclusiva do policiamento ostensivo, algo inédito para a organização das  
polícias, e vinculada a hierarquias e cadeias de comando rígidas que, diferentemente  
das polícias militarizadas anteriores, exercia atividade nas ruas (GUERRA, 2016, p.  
120). É o ponto de chegada de uma progressiva militarização das forças de segurança  
pública brasileiras ao longo da história, e que teve no regime instaurado em 1964 um  
relevante elemento impulsionador que lhe imprimiu caracteres fundamentais,  
especialmente o caráter violento e autoritário gestado em meio a um contexto  
bonapartista militarizado e a íntima correlação com a repressão à dissidência política  
e aos movimentos de massa. Alessandra Teixeira (2012, p. 150) usa o exemplo das  
Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) como emblemático da politização e do elevado  
grau de violência extralegal que caracteriza a PM desde o seu nascedouro: concebida  
pelo regime militar como uma unidade de choque fortemente armada para  
enfrentamento da resistência armada à ditadura, teve sua atuação transposta à  
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repressão da criminalidade comum com a revogação do AI-5. O bonapartismo de 64,  
portanto, aproveitou, revitalizou e profissionalizou os instrumentos repressivos  
gestados no bonapartismo de 37, ao mesmo tempo que criou novos equipamentos de  
repressão.  
Em um sentido geral, enquanto o bonapartismo do Estado Novo envolvia uma  
intencionalidade de desenvolvimento econômico autônomo, a ditadura de 1964 visou  
à reafirmação da subordinação brasileira. Como aponta Chasin, “no plano econômico,  
64 é muito mais amplo que 37, ao passo que, do ponto de vista político, 45/46 é  
muito mais generoso que o quadro atual” (2000, p. 126). E, enquanto o bonapartismo  
alemão impulsionou a industrialização e o ingresso do país, como elo débil e atrasado,  
na corrida imperialista, os bonapartismos brasileiros, sobretudo o de 1964, reforçaram  
os caracteres próprios da via colonial brasileira, como a subordinação, a  
superexploração da força de trabalho e seu caráter autocrático e excludente.  
O que se seguiu a isso, com o esgotamento do milagre e a revigoração da luta  
política, foi a última volta do pêndulo, com uma transição estreita, realizada pelo alto  
e novamente sem acerto de contas, para um novo período de autocracia burguesa  
institucionalizada, momento que coincide com o processo de mundialização do capital  
e que vivenciamos até os dias de hoje. A mundialização do capital cristalizou o lugar  
subordinado do Brasil na acumulação mundial e fez ruir qualquer esperança de um  
desenvolvimentismo autônomo. Na síntese de J. Chasin em 1982:  
Hoje, emergindo da forma bonapartista do sistema montado em 64,  
o país, titular, negativamente privilegiado, de uma imensa e  
inamortizável dívida externa, atestado e radiografia da natureza da  
acumulação praticada no período, é um território econômico  
estruturado na figura de um capitalismo monopolista subordinado,  
sotoposto às engrenagens de um mundo definido pelos monopólios  
imperialistas. País que conservou e inflou desníveis e contrastes  
regionais, mas que se apresenta organicamente centralizado, com um  
mercado capitalista integralmente formado. A internacionalização da  
economia completou e aprofundou sua subsunção econômica,  
conferindo-lhe os limites de sua acumulação industrial, que se  
concretizou na distorção e na incompletude, determinando a total e  
definitiva impossibilidade de qualquer fantasia quanto  
à
autonomização do sistema capitalista nacional. (CHASIN, 2000, p.  
129)  
O sistema penal paralelo foi formalmente desmontado, mas sobreviveu em  
estruturas herdadas pelo sistema penal comum, que segue impedindo qualquer  
questionamento da equação econômica e política da via colonial brasileira. A ideologia  
da segurança nacional foi atualizada na ideologia da segurança pública e o aparato  
repressivo do estado segue central na ainda incompleta modernização excludente do  
país e na reprodução diuturna da miséria brasileira, “de modo que, se o dispositivo  
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montado na transição do Estado Novo já era perverso, e o era, a sua perversidade na  
transição atual só fez crescer (CHASIN, 2000, p. 130).  
Apesar dos muitos avanços da Constituição de 1988 na previsão de princípios  
penais e de garantias processuais, segue a previsão da subordinação e da coordenação  
da Polícia Militar ao Exército, bem como a positivação das operações de garantia da  
lei e da ordem. E a violência do estado autocrático segue em vigor. O Brasil hoje tem  
a terceira maior população carcerária do mundo e uma polícia que mata três vezes  
mais que a estadunidense. A Comissão Pastoral da Terra (2025) fala em 59 massacres  
no campo com 302 vítimas fatais desde 1985. Já de defensores dos direitos humanos  
que sofrem violências decorrentes de suas atuações, o número é de 486 casos, com  
55 assassinatos, entre 2023 e 2024 (TERRA DE DIREITOS; JUSTIÇA GLOBAL, 2025).  
Só em 2024, foram 211 indígenas assassinados.  
Ainda na década de 1980, Chasin (2000, p. 130) observou que ao contrário  
de Vargas, o sistema à época recém-saído da ditadura buscava apenas e tão-somente  
a autorreforma, já ali se encontrando muito adiantado da sua execução. À época  
pontuou: “e nada permite suspeitar, no momento, de que não completará inteiramente  
seu objetivo. O que podemos dizer, olhando para as tentativas de golpe (inclusive as  
recentíssimas) empreendidas desde então, e para a crescente presença dos miliares na  
política cotidiana, é que ele de fato o completou.  
Conclusão  
Buscamos apontar, nos limites de espaço deste artigo, as bases objetivas do  
movimento pendular entre bonapartismo e autocracia burguesa institucionalizada no  
contexto republicano brasileiro, e para a relevância que nesse contexto assume o  
aparelho repressivo do estado. Longe de uma afirmação democrática, sustentamos a  
continuidade do caráter autocrático do estado brasileiro como expressão necessária  
dessa via específica de objetivação capitalista a via colonial , e, particularmente, a  
sobrevivência e a revitalização, com períodos de reforço e de inovação, dos  
equipamentos de violência institucional do estado: prisões, polícia, esquadrões, salas  
de tortura.  
Demonstramos como o sistema penal desempenha um importante papel de  
viabilizar a superexploração da força de trabalho, de forma reforçada nos períodos  
bonapartistas como base objetiva dos “milagres”, mas também presente nos períodos  
de autocracia institucionalizada. Isso se dá a partir do ataque violento às formas de  
organização política dos trabalhadores e das insurgências variadas dos movimentos  
de massa, da repressão à recusa ao trabalho (vadiagem e mendicância), quando não  
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diretamente pelo aprisionamento cumulado com trabalho compulsório.  
Destacamos também o papel de administração política do pauperismo e o  
caráter de contrarrevolução preventiva permanente, que garantem, pela força, o  
esquema de uma modernização excludente incapaz de conciliar desenvolvimento  
econômico e progresso social típico de uma burguesia que renuncia a seus papeis  
históricos. Nesse sentido, identificamos mais continuidades que rupturas tanto no  
lugar privilegiado conferido às prisões correcionais (e, nelas, a convivência entre  
prisões por mendicância e prisões por averiguação, em oscilações) quanto na  
progressiva militarização das forças policiais públicas, que sobrevive à última volta do  
pêndulo. Também representa continuidade o estado absolutamente precário do  
cárcere brasileiro desde sua gênese, e que convive com eventuais formas criativas de  
aprofundar sua desumanização, seja pelas colônias correcionais (as famosas “ilhas  
malditas”), seja pelas técnicas de morte, tortura e desaparecimento forçado dos  
períodos bonapartistas. Vale o destaque, também, para como a repressão aos  
ilegalismos “comuns” e a repressão propriamente política se retroalimentam nessa  
história de vários começos, com elos impressionantes mesmo para uma trajetória de  
via colonial entre prisões por averiguação, esquadrões da morte, Dops/DOI-Codi e  
Polícia Militar do pós-constituinte de 1988.  
Ao mesmo tempo, sem perder de vista a diferença específica, apontamos as  
marcas particulares de cada um dos períodos históricos abordados, sobretudo  
analisando as aproximações e os afastamentos entre os sentidos do bonapartismo de  
1937 e o contexto do bonapartismo de 1964. Mas todas elas confluindo, ao fim, para  
a reprodução e a perpetuação da miséria brasileira ainda subsistente.  
Referências bibliográficas  
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às margens de alguns livros. Simbiótica, Vitória, v. 7, n. 2, jan.-jun. 2020.  
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Como citar:  
MEDRADO, Nayara Rodrigues. Determinações da punição no capitalismo de via  
colonial: bonapartismo e autocracia burguesa institucionalizada na industrialização  
brasileira. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 177-210, 2025.  
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ISSN 1981 - 061X, v. 30 n. 2, pp. 177-210 jul.-dez., 2025  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.782  
Notas sobre estado e políticas públicas a partir  
da crítica da economia política marxiana  
Notes on the state and public policy from the critique  
of Marxian political economy  
Rossi Henrique Chaves*  
Resumo: Este artigo desenvolve uma análise  
imanente da obra magna de Karl Marx, O capital,  
com o objetivo de demonstrar que sua crítica da  
economia política fornece os fundamentos  
indispensáveis para uma análise radical do  
Abstract: This article develops an immanent  
analysis of Karl Marx's magnum opus, Capital,  
with the aim of demonstrating that his critique  
of political economy provides the indispensable  
foundations for a radical analysis of the state  
and public administration. We argue that the  
apparent neutrality and merely technical  
function of the state apparatus are ideological  
abstractions that obscure its subordination to  
the logic of accumulation. To unveil this  
dynamic, the analysis mobilizes categories from  
Marxian political economy criticism, as well as  
the Marxian concept of the impotence  
[Ohnmacht] of administrationunderstood as  
its structural inability to resolve the social ills  
that the capitalist mode of production itself  
engenders. To this end, we perform an exegesis  
of the three volumes of Capital, articulating its  
main concepts with the problem of state  
management. Book I is analyzed to reveal the  
estado  
e
da  
administração  
pública.  
Argumentamos que a aparente neutralidade e a  
função meramente técnica do aparato estatal são  
abstrações ideológicas que obscurecem sua  
subordinação à lógica da acumulação. Para  
desvelar essa dinâmica, a análise mobiliza  
categorias da crítica da economia política  
marxiana, assim como o conceito marxiano de  
impotência [Ohnmacht] da administração –  
compreendido como sua incapacidade estrutural  
para resolver as mazelas sociais que o próprio  
modo de produção capitalista engendra. Para  
tanto, realizamos uma exegese dos três volumes  
de O capital, articulando seus principais  
conceitos com a problemática da gestão estatal.  
O Livro I é analisado para revelar a gênese dos  
problemas sociais (a pauperização relativa) como  
produto imanente da acumulação, estabelecendo  
os limites intransponíveis da ação administrativa.  
O Livro II é explorado para elucidar a natureza do  
trabalho estatal e do fundo público enquanto  
custos de gestão sistêmica, análogos aos custos  
de circulação por sua função na realização do  
mais-valor e por seu caráter improdutivo. Por fim,  
o Livro III é mobilizado para situar o estado e sua  
administração como arena central da luta de  
classes pela distribuição do mais-valor,  
genesis  
of  
social  
problems  
(relative  
pauperization) as an immanent product of  
accumulation, establishing the insurmountable  
limits of administrative action. Book II is  
explored to elucidate the nature of state labor  
and public funds as systemic management  
costs, analogous to circulation costs due to their  
role in the realization of surplus value and their  
unproductive character. Finally, Book III is  
mobilized to situate the state and its  
administration as the central arena of the class  
struggle for the distribution of surplus value,  
especially under the pressure of the tendency of  
the rate of profit to fall and the dynamics of  
credit capital. We conclude that Capital, by  
unveiling the laws of motion of capital, offers  
the essential theoretical tools to demystify the  
state, understanding its functional duality its  
power to serve capital and its impotence to  
promote human emancipation and reaffirming  
the relevance of its analysis to the contemporary  
debate on (counter) reform of the state,  
especialmente sob  
a
pressão da queda  
tendencial da taxa de lucro e da dinâmica do  
capital de crédito. Concluímos que O capital, ao  
desvelar as leis de movimento do capital, oferece  
as ferramentas teóricas essenciais para  
desmistificar o estado, compreendendo sua  
dualidade funcional sua potência para servir ao  
capital e sua impotência para promover a  
emancipação humana e reafirmando a  
pertinência de sua análise para o debate  
* Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor substituto do  
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) campus Belo Horizonte. E-mail:  
rossichaves@hotmail.com. Orcid: 0000-0003-2229-9472.  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
Verinotio  
nova fase  
 
Rossi Henrique Chaves  
contemporâneo sobre (contra)reforma do estado,  
austeridade econômica e políticas públicas.  
economic austerity, and public policies.  
Keywords: Karl Marx; burgeois state; public  
administration; public fund; Capital.  
Palavras-chave: Karl Marx; estado burguês;  
administração pública; fundo público; O capital.  
Introdução  
O debate contemporâneo sobre o estado é marcado por um impasse  
persistente. De um lado, o aparato estatal é cada vez mais convocado a intervir como  
mediador e solucionador de crises sociais de complexidade crescente: exército  
industrial de reserva, precarização do trabalho, colapso dos sistemas de saúde e  
educação, emergências ambientais e sanitárias e aprofundamento da desigualdade  
econômica. De outro, a cada ciclo de intervenção, revela-se sua incapacidade de atacar  
as causas profundas desses fenômenos, resultando em um movimento perpétuo de  
(contra)reformas administrativas, modernizações gerenciais e redesenho de políticas  
públicas que, geralmente, preservam as estruturas geradoras dos mesmos problemas  
que pretendem sanar. Essa dinâmica alimenta a percepção de um estado “ineficiente”  
ou “capturado”, cuja solução residiria em uma gestão tecnicamente mais apurada ou  
moralmente mais íntegra.  
Contudo, uma perspectiva teórica alicerçada na crítica da economia política, nos  
termos formulados por Karl Marx, sugere que este impasse é um sintoma de uma  
questão estrutural. A análise imanente das leis do movimento do capital revela que o  
estado burguês opera sob uma dualidade contraditória: por um lado, ele é  
extremamente potente e indispensável para criar e gerir as condições gerais da  
acumulação; por outro, é estruturalmente impotente para resolver as mazelas que  
afligem a classe trabalhadora, pois estas são o resultado necessário do próprio sistema  
que ele visa perpetuar. A recuperação das categorias da crítica marxiana da economia  
política e do conceito marxiano de impotência [Ohnmacht] da administração, formulado  
em sua juventude nas Glosas críticas1 é, assim, parte do ferramental analítico  
mobilizado que pretende demonstrar como O capital fornece as bases fundamentais  
para uma crítica radical do estado e da Administração pública.  
Nesse contexto, o presente artigo se propõe a uma tarefa fundamental:  
demonstrar que os alicerces teóricos para a crítica radical do estado não se encontram  
apenas nos chamados “escritos políticosde Marx, mas estão profundamente  
enraizados em sua obra principal, O capital. Argumentamos que a crítica da economia  
1
“Sim, frente às consequências decorrentes da natureza associal dessa vida burguesa, dessa  
propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa espoliação recíproca dos diversos círculos  
burgueses, frente a essas consequências a lei natural da administração é a impotência [Ohnmacht].”  
(MARX, 2010, p. 39, grifos do autor).  
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Notas sobre estado e políticas públicas a partir da crítica da economia política marxiana  
política, ao desvelar as leis de movimento do capital, fornece o fundamento para se  
compreender a forma e a função do estado burguês e, consequentemente, os limites  
e as reais finalidades de sua administração. A análise que se segue não busca  
“encontrar” uma teoria do estado acabada em O capital, mas revelar como sua análise  
do processo de produção, circulação e distribuição do valor é a condição sine qua non  
para se desmistificar o poder político e sua gestão. Para tanto, este trabalho está  
estruturado em três seções principais, cada uma dedicada um dos volumes da obra. A  
primeira seção abordará o Livro I para expor a gênese das contradições sociais e os  
limites da ação estatal. A segunda recorrerá ao Livro II para analisar o estado como  
um custo de gestão sistêmico e o fundo público2 como uma dedução do mais-valor  
social. A terceira e última seção utilizará o Livro III para situar a administração estatal  
na arena da luta de classes pela distribuição do valor e sob a pressão das crises  
imanentes ao capital. Ao final, esperamos ter demonstrado que, longe de ser um tema  
ausente, a crítica do estado é uma consequência lógica e necessária da crítica do  
capital.  
1. A base material do estado: acumulação, pauperização e os limites  
da gestão pública (Livro I)  
A crítica radical ao estado burguês e à sua gestão requer, antes de tudo, uma  
investigação de sua base material. É no primeiro volume de O capital que Marx disseca  
a “morada secreta da produção”, o lugar onde se origina o mais-valor e, com ele, as  
contradições fundamentais da sociedade burguesa. A análise do processo de produção  
revela que as mazelas sociais, como a pobreza e a superpopulação relativa, não são  
anomalias a serem corrigidas pela gestão pública, mas sim resultados imanentes e  
necessários da lógica da acumulação capitalista.  
É a partir dessa constatação que se pode apreender a dualidade contraditória  
da ação estatal, já esboçada por Marx em seus escritos de juventude. O estado burguês  
demonstra, por um lado, uma imensa potência para criar, garantir e gerir as condições  
gerais que permitem a expansão da acumulação. Por outro, revela uma impotência  
[Ohnmacht] estrutural para suprimir os antagonismos sociais que este mesmo modo  
2
Utilizamos o conceito de fundo público, desenvolvido e sistematizado no Brasil por Francisco de  
Oliveira (1998), ainda que guardemos ressalvas sobre a discussão promovida pelo autor do seu papel  
de “antivalor”. Oliveira (1998) considera que o fundo público se tornou componente central da  
acumulação capitalista contemporânea, ao olhar para a realidade brasileira o autor destaca que,  
particularmente no capitalismo dependente, o fundo público se articula com a superexploração da força  
de trabalho, revelando as contradições, limites e possibilidades do financiamento de políticas sociais no  
capitalismo periférico (OLIVEIRA, 1998). Consideramos para os fins de análise aqui propostos que o  
fundo público se constitui como uma mediação decisiva no capitalismo por possuir função central no  
processo de valorização do valor.  
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de produção engendra de forma necessária. Ao contrário de uma entidade neutra ou  
de um árbitro imparcial, o estado se revela como um produto e um perpetuador das  
relações sociais que geram, simultaneamente riqueza e pauperização.  
Portanto, a análise que se segue sobre o Livro I é a condição indispensável para  
desmistificar o poder político e sua gestão. Ao examinar o processo de valorização, a  
lei geral da acumulação e a violência da acumulação primitiva, estabelecemos os limites  
objetivos que condicionam a gestão estatal, situando sua função não em um plano de  
falhas de gestão ou de falta de vontade política, mas nas próprias leis de movimento  
do capital.  
1.1. Processo de valorização e a origem do antagonismo social  
Marx (2013) inicia sua análise distinguindo o processo de trabalho em geral –  
a atividade humana de transformação da natureza para criar valores de uso do  
processo de valorização capitalista. Neste último, o objetivo não é a produção de bens  
para a satisfação de necessidades, mas a produção de valor que se valoriza, a  
produção de mais-valor. O capitalista compra duas mercadorias distintas: os meios de  
produção (capital constante, c) e a força de trabalho (capital variável, v). A  
especificidade da força de trabalho é ser a única mercadoria cujo valor de uso sua  
“utilidade” – é a capacidade de criar um valor maior do que seu próprio valor de troca  
(o salário). O salário paga apenas o tempo de trabalho necessário para a reprodução  
do trabalhador, mas a jornada de trabalho se estende para além desse ponto, gerando  
um tempo de trabalho excedente e não pago, que se materializa como mais-valor (m).  
Essa extração de mais-valor é a essência da exploração capitalista e a fonte de  
todo o lucro. É aqui que nasce o antagonismo de classes fundamental, não como um  
desvio moral ou uma falha de gestão, mas como a própria condição de existência do  
sistema capitalista de produção. A gestão estatal, ao operar dentro de uma sociedade  
cuja finalidade é a autovalorização do valor, já se encontra, de partida, condicionada  
a gerir os resultados desse antagonismo, mas sem poder tocar em sua causa.  
1.2. A lei geral da acumulação capitalista e a produção da pauperização  
A consequência mais direta desse processo é a “Lei Geral da Acumulação  
Capitalista”, desenvolvida no Capítulo 23. Marx (2013) demonstra que o progresso  
técnico e o aumento da composição orgânica do capital (a crescente proporção de c  
em relação a v) fazem com que a capacidade de produção (c) cresça mais rapidamente  
que a necessidade de força de trabalho (v) do capital. Isso significa que, para uma dada  
quantidade de capital, a proporção investida em máquinas, matérias-primas e  
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Notas sobre estado e políticas públicas a partir da crítica da economia política marxiana  
tecnologia aumenta, enquanto a proporção investida em salários (o que coloca mais  
trabalhadores em movimento) diminui. O resultado é a produção contínua de uma  
“superpopulação relativa”, um contingente de trabalhadores que se torna excedente  
às necessidades médias de valorização do capital. Esse “exército industrial de reserva”  
é, contraditoriamente, uma condição vital para o sistema capitalista de produção. Marx  
esclarece que essa superpopulação relativa não decorre de leis naturais, mas sim de  
uma “lei populacional peculiar ao modo de produção capitalista” (MARX, 2025, p.  
444). Marx é categórico: “A acumulação capitalista produz constantemente, e na  
proporção de sua energia e de seu volume, uma população trabalhadora adicional  
relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização  
do capital e, portanto, supérflua.” (MARX, 2013, p. 857)  
Essa população excedente, em seus diversos estratos (líquida/flutuante latente,  
estagnada e o lumpemproletariado), constitui a base do pauperismo moderno,  
condição que Marx compreende como “a acumulação de miséria correspondente à  
acumulação de capital”. E ainda, ao constituírem o exército industrial de reserva, todos  
esses estratos da classe trabalhadora exercem uma pressão para baixo sobre os  
salários, função que é fundamental para o capital, pois mantém a remuneração do  
trabalho dentro dos limites que convêm à valorização, quebrando as pretensões dos  
trabalhadores empregados mesmo nos momentos de maior prosperidade. Não se trata  
de uma pobreza por escassez, mas de uma pobreza produzida pela própria abundância  
de capital. É a manifestação mais visível da miséria social que Marx sintetiza na célebre  
passagem:  
Por último, a lei que mantém a superpopulação relativa ou o exército  
industrial de reserva em constante equilíbrio com o volume e o vigor  
da acumulação prende o trabalhador ao capital mais firmemente do  
que as correntes de Hefesto prendiam Prometeu ao rochedo. Ela  
ocasiona uma acumulação de miséria correspondente à acumulação  
de capital. Portanto, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho,  
a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no  
polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto  
como capital. (MARX, 2013, p. 877)  
A gestão pública, em sua função potente de fomentar o “progresso” e a  
“competitividade” (p. ex., através de subsídios à inovação, investimento em tecnologia  
etc.), atua diretamente para acelerar o aumento da composição orgânica do capital. Ao  
fazer isso, o estado contribui para criar as condições que dão origem ao exército  
industrial de reserva, o problema de fundo que suas políticas sociais serão chamadas  
a administrar de forma impotente. As políticas públicas sociais de combate à pobreza,  
os programas de transferência de renda ou de qualificação profissional, por mais que  
possam atenuar conjunturalmente o sofrimento e a miséria, não podem eliminar a  
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superpopulação relativa sem ferir de morte a disciplina salarial e as condições de  
valorização do capital.  
Medrado (2021) destaca, por exemplo, o papel histórico das workhouses para  
gerenciamento do contingente da classe trabalhadora e para alcance das necessidades  
do capital. A autora aponta que, entre outras coisas, as workhouses “assumiam um  
importante papel de administração do exército industrial de reserva”, esse  
gerenciamento atuaria “tanto no sentido de garantia da oferta de mão-de-obra  
conforme as exigências do mercado em uma dada quadra histórica quanto no sentido  
de assegurar a regulação dos salários nos trilhos convenientes do capital” (MEDRADO,  
2021, p. 36). Ainda, nas palavras de Marx:  
Que meio mais sensato do que as workhouses para manter à  
disposição um exército industrial de reserva para os períodos  
favoráveis e, ao mesmo tempo, durante os períodos desfavoráveis  
para o comércio, transformá-lo, pela punição nestes piedosos  
estabelecimentos, em máquina sem vontade, sem resistência, sem  
exigência, sem necessidades. (MARX, 2020, p. 363)  
A administração pública, portanto, gerencia a pobreza, não a supera. Sua função  
é garantir que a miséria não extravase em revolta social, mantendo-a em “limites  
absolutamente condizentes com a avidez de exploração e a mania de dominação do  
capital” (MARX, 2013, p. 868). Qualquer política que visasse eliminar a exploração,  
por definição, significaria a abolição do próprio modo de produção capitalista, e em  
última instância da autofagia do estado, algo que está para além do horizonte e da  
função do estado burguês.  
1.3. O papel do estado na fundação da sociedade burguesa: a violência da  
acumulação primitiva  
Marx dedica a parte final do Livro I à análise da “assim chamada acumulação  
primitiva” (Capítulo 24). Ele desmistifica a narrativa burguesa de uma acumulação  
originada da poupança e da diligência, revelando seu verdadeiro caráter: um processo  
histórico de expropriação violenta dos trabalhadores de seus meios de subsistência, e  
o ator central desse processo foi o poder do estado. O aparato estatal e seu  
ordenamento jurídico não surgem como mediadores neutros de uma sociedade já  
constituída, mas como os instrumentos coercitivos que tornaram possível a própria  
constituição dessa sociedade. Portanto, nesse processo o estado é um agente ativo e  
fundamental na criação das condições materiais para o desenvolvimento do modo de  
produção capitalista.  
A economia política burguesa, na visão de Marx (2013), tenta explicar a origem  
da riqueza capitalista por meio de um “pecado original” idílico, no qual “havia, por um  
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Notas sobre estado e políticas públicas a partir da crítica da economia política marxiana  
lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa e, por outro, uma súcia  
de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais” (MARX, 2013, p. 859). No  
entanto, Marx desvela a brutal realidade por trás dessa anedota:  
Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela  
conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a  
violência. Já na economia política, tão branda, imperou sempre o idílio.  
Direito e trabalhoforam, desde tempos imemoriais, os únicos meios  
de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, este ano. Na  
realidade, os métodos de acumulação primitiva, podem ser qualquer  
coisa, menos idílicos. (MARX, 2013, p. 860)  
Marx (2013) detalha como o estado inglês, a partir do século XV, sancionou a  
expulsão dos camponeses de suas terras (os enclosures [cercamentos]), promoveu a  
rapina dos bens da Igreja e impôs uma “disciplina sanguinária” contra a massa de  
expropriados que passaram a constituir o proletariado assalariado. O autor ainda  
destaca a “sórdida ação do estado que, por meios policiais, elava o grau de exploração  
do trabalho e, com ele, a acumulação do capital” (MARX, 2013, p. 989). Isso demonstra  
que a criação da classe trabalhadora “livre” foi um processo violento e coercitivo,  
ativamente orquestrado pelo poder estatal e que foi ampliado no sistema colonial3. A  
lei e a administração foram mobilizadas para forçar essa população à disciplina do  
trabalho assalariado. Ainda sobre estas leis, Marx escreve: “Assim, a população rural,  
depois de ter sua terra violentamente expropriada, sendo dela expulsa e entregue à  
vagabundagem, viu-se obrigada a se submeter, por meio de leis grotescas e terroristas,  
e por força de açoites, ferros em brasa e torturas, a uma disciplina necessária ao  
sistema de trabalho assalariado.” (MARX, 2013, p. 983) Sartori (2021) também chama  
atenção para esta questão abordada por Marx no que diz respeito a relação entre  
estado, migração e superpopulação relativa.  
A dívida pública (que discutiremos mais profundamente adiante no texto), é  
tratada por Marx como uma das “alavancas mais poderosas da acumulação primitiva”.  
Pois ela permite que a riqueza de toda a sociedade seja transferida e concentrada nas  
mãos de um grupo de privilegiados. Embora suas origens remontem a Gênova e  
Veneza na Idade Média, ela se expandiu por toda a Europa durante o período  
manufatureiro e se consolidou na Holanda e na Inglaterra, Marx (2013) ironiza dizendo  
que “um povo torna-se tanto mais rico quanto mais se endivida”. O que revela que a  
3 “Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal.  
Todos eles, porém, lançaram mão do poder do estado, da violência concentrada e organizada da  
sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal  
em capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade  
velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica.” (MARX, 2013,  
p. 998)  
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gestão fiscal e financeira do estado foi historicamente constituída para enriquecer uma  
fração da burguesia à custa do restante da sociedade, um padrão que se repete até  
os dias atuais.  
A dívida pública, isto é, a alienação [Veraussaung] do estado seja  
ele despótico, constitucional ou republicano imprime sua marca  
sobre a era capitalista. A única parte da assim chamada riqueza  
nacional que realmente integra a posse coletiva dos povos modernos  
é sua dívida pública. [...] A dívida pública torna-se uma das alavancas  
mais poderosas da acumulação primitiva. (MARX, 2013, pp. 1.002-3)  
Cabe também pontuar que o sistema colonial serviu como palco para espoliação  
em escala mundial, proporcionando à burguesia europeia acesso a metais preciosos,  
matéria-prima e trabalho escravizado. A pilhagem das colônias, a exploração  
escravagista na América, o tráfico de escravizados africanos, o extermínio de  
populações nativas e a exploração comercial, foram conduzidos e garantidos pelo  
estado, impulsionando o capital comercial e industrial. Empresas como a Companhia  
das Índias Orientais, embora privadas, contavam com apoio militar do estado e a  
chancela pela atuação monopolista até meados de 1833.  
A descoberta de terras auríferas e argentíferas na América, o  
extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa das  
minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a  
transformação da América numa reserva para a caça comercial de  
peles-negras caracterizam a aurora da produção capitalista. (MARX,  
2013, p. 998)  
O estado burguês, portanto, não é um poder que surge para “moderar” o  
conflito de classes; ele é o poder que, historicamente, contribuiu para a acomodação  
das classes da sociedade burguesa moderna. O seu conjunto de aparatos e práticas  
organizativas atuam, desde a origem, a favor dos interesses das classes proprietárias.  
Esta análise histórica serve como um contraponto fundamental a qualquer visão que  
conceba o estado como uma esfera autônoma ou potencialmente a serviço do  
“interesse público” (abstrato) em geral.  
2. O estado como custo de gestão: circulação, fundo público e  
trabalho improdutivo (Livro II)  
O Livro II de O capital, frequentemente considerado o mais árido, é, contudo,  
essencial para se avançar na compreensão da função econômica do estado. Ao  
deslocar a análise para o movimento cíclico e ininterrupto do capital (D−M...P...M’−D’),  
Marx fornece as categorias para se entender o aparato estatal como um gigantesco,  
porém necessário, custo de gestão do sistema capitalista em seu conjunto, e o fundo  
público como sua expressão monetária que cobre esses custos. Entretanto, este  
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circuito não é isento de percalços, pelo contrário, o capital precisa superar duas fases  
na esfera da circulação (D-M e M’-D’) que, embora indispensáveis para a valorização,  
não são em si mesmas momentos de valorização.  
2.1 Os custos de circulação e o trabalho improdutivo  
O capital, para se valorizar, precisa não apenas ser produzido, mas também  
circular. Ele deve passar da forma-dinheiro (D) para a forma-mercadoria (meios de  
produção e força de trabalho, M), atravessar o processo produtivo (P) para se  
transformar no capital-mercadoria (M’), uma mercadoria prenhe de mais-valor e,  
finalmente, ser vendida realizando assim o mais-valor nela contido, para retornar à  
forma-dinheiro acrescida de mais-valor (D’). Marx no Livro II revela que o tempo gasto  
na esfera da compra e da venda constitui o “tempo de circulação”. Este, somado ao  
tempo de produção, compõe o tempo de rotação do capital: o período total que o  
capital leva para percorrer seu ciclo completo e retornar à sua forma original, acrescido  
de mais-valor. O tempo de circulação se apresenta, portanto, como uma barreira  
negativa ao processo de acumulação: quanto mais longo ele for, mais lento será o  
tempo de rotação, limitando o número de vezes que um mesmo capital pode ser  
valorizado em um determinado período e, consequentemente, reduzindo a taxa anual  
de mais-valor. Todo momento em que o capital se encontra na forma dinheiro ou de  
mercadoria à venda é um momento em que ele não está no processo produtivo  
gerando mais-valor. A velocidade e a fluidez da circulação são, portanto, condições  
centrais para a lucratividade.  
[...] se as diferentes partes do capital percorrem o ciclo uma depois  
das outras, de modo que o ciclo do valor de capital inteiro se realiza  
sucessivamente no ciclo de suas partes alíquotas na esfera da  
circulação, menor terá de ser sua parte que atua constantemente na  
esfera da produção. Assim, a expansão e a contração do tempo de  
curso, agem como limite negativo à contração e à expansão do tempo  
de produção, ou da extensão na qual um capital de dada grandeza  
pode funcionar como capital produtivo. (MARX, 2014, p. 228)  
É precisamente para superar ou mitigar as barreiras inerentes à circulação que  
um aparato para a gestão das condições gerais da produção se torna necessário. A  
garantia da propriedade privada (através do poder de polícia), a padronização de  
pesos e medidas, a estabilidade da moeda, a execução de contratos e a manutenção  
da ordem burguesa são pré-condições para que os atos individuais de compra e venda  
possam ocorrer com um mínimo de previsibilidade e segurança.  
A análise de Marx sobre os “custos de circulação” (Capítulo 6) fornece a chave  
para compreender a natureza econômica de grande parte da atividade estatal. Em sua  
exposição, Marx (2014) estabelece uma distinção fundamental: ele separa os custos  
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que surgem da produção material e que continua na esfera da circulação cujo  
exemplo principal é a indústria dos transportes, que adiciona valor à mercadoria dos  
custos puros de circulação. Estes últimos referem-se às atividades que decorrem  
unicamente da metamorfose do valor (vendas, compras, contabilidade) e que, por si  
mesmas, não criam nem adicionam mais-valor, sendo, portanto, um trabalho  
improdutivo no sentido capitalista4.  
Esta distinção nos permite qualificar as funções da gestão estatal. Muitas de  
suas atividades são, economicamente, análogas, aos custos puros de circulação. O  
trabalho realizado no sistema jurídico (que garante contratos), em agências  
reguladoras (que normatizam mercados), aparatos policiais (que garantem a  
propriedade privada), a burocracia estatal e em órgãos fiscais e tributários (que gerem  
a apropriação do mais-valor) é indispensável para a realização do valor e a reprodução  
ordenada do sistema de produção capitalista. Outras funções estatais, como as dos  
sistemas de saúde e educação, atuam em um ponto distinto, mas igualmente crucial:  
na esfera da produção e reprodução da mercadoria força de trabalho. Embora seus  
papéis funcionais sejam diferentes umas garantido a circulação de mercadorias,  
outras, a reprodução do trabalhador -, ambas as atividades representam, para o capital  
social total, faux frais: custos gerais e necessários para a acumulação, financiados por  
uma dedução do valor total produzido pela sociedade. Nas palavras do autor alemão,  
Mas todo trabalho que adiciona valor pode adicionar também mais-  
valor e, sobre uma base capitalista, adicionará sempre mais-valor, pois  
o valor que ele cria depende de sua própria grandeza, e o mais-valor  
que ele cria depende de quanto o capitalista paga pelo trabalho.  
Assim, os custos que encarecem a mercadoria sem nada adicionar ao  
seu valor de uso e que, do ponto de vista da sociedade, pertencem,  
portanto, aos faux frais da produção, podem constituir uma fonte de  
enriquecimento para o capitalista individual. Por outro lado, na  
medida em que o valor que agregam ao preço da mercadoria não é  
mais do que a distribuição equitativa desses custos de circulação,  
estes não perdem seu caráter improdutivo. (MARX, 2014, p. 241)  
A categoria dos faux frais revela-se, portanto, central para a análise do estado  
burguês. Para o capital social total, os custos de manutenção do aparato estatal seja  
para gerir a circulação, seja para administrar a reprodução da força de trabalho são  
despesas necessárias, um custo geral para garantir as condições gerais de acumulação.  
Para cada capitalista individual, contudo, esses mesmos custos, uma despesa a ser  
incessantemente minimizada. A administração pública se encontra, assim, no centro  
desta contradição: sua função é gerir os custos que são indispensáveis para a classe  
4
“O mesmo ocorre com os gastos de todos os chamados trabalhadores improdutivos: funcionários  
estatais, médicos, advogados etc. e todos os que, sob a forma de ‘grande público’, prestam ‘serviços’  
aos economistas políticos, explicando o que estes deixaram de explicar.” (MARX, 2014, p. 628)  
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capitalista como um todo, mas que são vistos como um fardo por cada um de seus  
membros em particular.  
2.2 A administração pública como custo geral e o fundo público  
A analogia com os faux frais nos permite avançar na compreensão da função  
estatal. Contudo, como Marx já apontava em suas Glosas críticas, seria um equívoco  
reduzir a administração público a uma identidade direta com sua função de “gestora  
dos custos gerais do capital”. O aparato estatal não é meramente um conselho de  
administração da burguesia; ele é a expressão política da contradição entre a vida  
pública e a vida privada. Para que o “público” possa gerir e reproduzir as bases da  
riqueza privada, ele precisa operar sob o véu do interesse geral, mascarando sua  
natureza de classe.  
É precisamente nessa tensão que reside sua especificidade: se cada empresa  
privada arca com seus próprios custos de circulação, o estado assume os custos que  
são comuns a toda a classe capitalista, garantindo as condições de fundo para a  
acumulação. Mas ele o faz por meio de uma mediação política que o constitui,  
simultaneamente, como o gestor indispensável para o capital e como uma arena de  
conflitos que reflete, de forma mistificada, os antagonismos da sociedade burguesa.  
Essa mediação política, através do qual o estado assume os custos comuns à  
classe capitalista, requer uma base material e centralizada. Esta base é o fundo público.  
Sua substância não é criada pelo estado, mas apropriada da riqueza socialmente  
produzida por meio do sistema tributário, incidindo sobre o mais-valor e também  
sobre parte do salário dos trabalhadores. O fundo público, é a expressão monetária e  
centralizada dos faux frais socializados. Trata-se da massa de valor que a sociedade é  
coagida a reservar para custear as condições gerais de sua própria exploração.  
A disputa política em torno do orçamento estatal a luta por mais verbas para  
a saúde e educação, de um lado, ou por desonerações fiscais e subsídios para a  
indústria, de outro é, em sua essência, a luta de classes pela apropriação e destinação  
dessa massa de valor centralizada. O discurso sobre a “carga tributária” e a “eficiência  
do gasto público” é a manifestação ideológica dessa disputa. Como apontaram Ferraz  
e Chaves (2021), para o capital, todo gasto social (p. ex., saúde, previdência e  
educação) que não contribua diretamente (ou contribua pouco em relação do que é  
pretendido) para a valorização é visto como um “custo” excessivo, uma dedução  
indesejada de seus lucros potenciais. Para a classe trabalhadora, é a única forma de  
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reaver, como “salário indireto5, uma ínfima parte da riqueza que ela mesma produziu.  
A administração pública, nesse fogo cruzado, gerencia a alocação dessa dedução, mas  
sua impotência reside em sua incapacidade de alterar a natureza dessa relação: a de  
que o fundo público que ela administra é, em sua essência, derivado de trabalho não  
pago.  
O argumento de que a atividade estatal é análoga aos custos de circulação  
improdutivos requer, contudo, nuances que a própria análise de Marx (2014) fornece.  
Nem todos os custos que ocorrem na esfera da circulação são “puros”. Como  
mencionado anteriormente, o transporte, por exemplo, é uma atividade que ocorre  
entre a produção e o consumo final, mas que Marx (2014) trata como uma continuação  
do processo produtivo. A indústria dos transportes, para o autor, adiciona valor à  
mercadoria ao movê-la no espaço, portanto, produtiva de valor e mais-valor:  
Mas o que a indústria do transporte vende é o próprio deslocamento  
de lugar [...] homens e mercadorias viajam num meio de transporte, e  
sua viagem, seu movimento espacial, é justamente o processo de  
produção efetuado. [...] Também em relação a seu consumo, esse  
efeito útil se comporta do mesmo modo que as outras mercadorias.  
Se consumido individualmente, seu valor desaparece com o consumo;  
se consumido produtivamente, de modo que ele mesmo constitua um  
estágio da produção da mercadoria transportada, seu valor é  
transferido à própria mercadoria como valor adicional. (MARX, 2014,  
p. 145)  
O que se segue desta reflexão é que quando o estado, através de sua gestão,  
investe, por exemplo, em infraestrutura de transporte (estradas, portos, ferrovias e  
aeroportos), ele não está apenas incorrendo em um custo geral, mas criando condições  
materiais que barateiam os elementos do capital e aceleram o processo de valorização.  
Esta ação revela a potência da ação estatal em fomentar a acumulação, não por  
produzir mais-valor diretamente em seus próprios projetos, mas por socializar os  
custos de infraestrutura que reduzem o tempo de circulação e o valor dos meios de  
produção para os capitais privados.  
Demonstra, ainda, que a fronteira entre as funções “improdutivas” (p. ex.,  
burocracia e regulação) e aquelas funcionalmente “produtivas” (investimento em  
infraestrutura) do estado é um campo sinuoso. As primeiras sãos puros custos de  
gestão; as segundas, embora não gerem mais-valor em si mesmas, são condições  
materiais diretas para que o mais-valor seja produzido e realizado de forma mais  
eficiente no setor privado. Em ambos os casos, a finalidade última que se impõe é a  
de servir às necessidades do processo de valorização do capital.  
5 Utiliza-se aqui o conceito de “salário indireto”, consagrado no debate marxista, para se referir à parcela  
do valor da força de trabalho que é socializada e provida pelo estado na forma de serviços públicos.  
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2.3 Salário indireto e disputa pelo fundo público  
Em relação ao “salário indireto”, a mercadoria força de trabalho tem seu valor  
determinado pelos meios de subsistências necessários para sua reprodução (moradia,  
alimentação etc.), assim como pelos custos de formação/qualificação técnica, de  
manutenção de sua saúde e de garantia de sua existência quando não pode mais ser  
explorada (previdência). As políticas sociais financiadas pelo fundo público, constituem  
o que pode ser chamado de “salário indireto”, pois socializam uma parte dos custos  
de reprodução da classe trabalhadora como um todo.  
Cabe destacar que essas políticas não são “dádivas” do estado burguês, mas o  
resultado histórico da luta de classes. Como Marx demonstrou na luta pela jornada de  
trabalho no Livro I6, qualquer limite imposto à exploração é uma concessão  
conquistada pela classe trabalhadora. Da mesma forma, a existência de um sistema  
público de saúde ou de educação representa a apropriação, pela classe trabalhadora,  
de uma parcela do valor que ela mesma produziu, forçando o estado a devolvê-la na  
forma de serviços que garantem suas condições de vida.  
Contudo, essas políticas, embora conquistada pelos trabalhadores, são também  
funcionais para a reprodução ampliada do próprio capital. Um sistema de saúde que  
mantém a força de trabalho fisicamente apta e um sistema de educação que a qualifica  
técnica e ideologicamente são fundamentais para a valorização do capital. Elas ajudam  
a baratear o custo individual que cada capitalista teria para garantir a qualidade da  
força de trabalho que necessita. O estado, ao assumir estes custos, atua precisamente  
como aquilo que Engels (2016) definiu como o “capitalista global ideal”7: a instância  
6
Marx (2025) ilustra que inicialmente (séculos XIV-XVII) a intervenção estatal atuou para prolongar a  
jornada de trabalho. Autores da época, como um anônimo que escrevia para o Essay on trade and  
commerce, defendiam o encarecimento dos meios de subsistência e a coerção para forçar os  
trabalhadores a laborar seis dias da semana, chegando a propor uma “casa do terror” (um tipo de  
workhouses) com jornadas de trabalho de 14 horas diária como forma de combater a “preguiça” dos  
pobres. Com o advento da grande indústria no final do século XVIII, o capital derrubou todas as barreiras  
à jornada de trabalho, incluindo as que se baseavam em idade e sexo, levando a exploração desenfreada,  
“o capital celebrava suas orgias” (MARX, 2025, p. 224). Nesse contexto as Factory acts (leis fabris)  
inglesas foram a “primeira reação consciente e planejada da sociedade à configuração espontaneamente  
desenvolvida de seu processo de produção” (MARX, 2025, p. 347). Embora visando inicialmente  
mulheres e crianças, o trabalho na fábrica fez com que a limitação legal da jornada para esses grupos  
se estendesse, na prática, também aos trabalhadores masculinos adultos. Marx destaca a minuciosa  
regulamentação dos horários, pausas e limites de trabalho, que se desenvolveram gradualmente a partir  
das circunstâncias e foram arrancadas do capital sendo que “sua formulação, reconhecimento oficial e  
sua proclamação pelo estado foram o resultado de prolongadas lutas de classes.” (MARX, 2025, p.  
228).  
7
O conceito é desenvolvido por Friedrich Engels em seu Anti-Duhring. Engels (2016, pp. 392-3)  
argumenta: “E o estado moderno, por sua vez, é apenas a organização que a sociedade burguesa monta  
para sustentar as condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra ataques tanto  
dos trabalhadores como de capitalistas individuais. O estado moderno, qualquer que seja sua forma, é,  
portanto, uma máquina essencialmente capitalista, é o estado dos capitalistas, é o capitalista global  
ideal. Quanto maior é o número de forças produtivas que ele assume como sua propriedade, mais ele  
se torna um capitalista global real, maior é o número de cidadãos do estado que ele espolia. Os  
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que zela pelos interesses comuns e de longo prazo da acumulação, inclusive em alguns  
momentos contra os próprios interesses imediatos dos capitalistas individuais.  
É sob essa mesma lógica que o estado lida com as consequências da “lei geral  
da acumulação”. Como a produção de uma superpopulação relativa é imanente ao  
sistema, a política social é chamada a intervir. Assim, não é demais reforçar que ela  
gerencia a pobreza, mas não a supera; administra a reprodução da mercadoria força  
de trabalho, mas não pode abolir sua condição de mercadoria.  
A disputa pelo fundo público (a massa de valor, composta de mais-valor e parte  
dos salários, centralizadas pelo estado via impostos) é a arena onde essa contradição  
se revela. A classe trabalhadora luta para ampliar o salário indireto, enquanto a classe  
capitalista pressiona para reduzir essa dedução do mais-valor, especialmente em  
tempos de crise ou de queda na taxa de lucro.  
Segundo o que afirmamos previamente, muitos serviços públicos operam como  
faux frais socializados, ou seja, custos gerais necessários para a reprodução do  
sistema, financiados por uma dedução do valor social total. Nesse prisma é possível  
se ver os processos de privatização de serviços públicos ou de eliminação de direitos  
conquistados como processo pelo qual o capital transforma o que era um “custo” para  
o capital social total em uma fonte privada de lucro. Um hospital público, por exemplo,  
é um custo de reprodução da força de trabalho financiado pelo fundo público. Um  
hospital privatizado é uma empresa capitalista cujo objetivo não é a saúde em si, mas  
a produção e apropriação de mais-valor através da venda de serviços de saúde como  
mercadorias e da exploração do trabalho de médicos, enfermeiros e demais  
trabalhadores.  
Este movimento é impulsionado pela pressão de queda de taxa de lucro (que  
aprofundaremos no tópico seguinte). Em face da saturação dos campos de  
investimentos privados, o capital busca constantemente novas áreas para se valorizar.  
Os serviços públicos, com sua demanda cativa e seu potencial de mercantilização, são  
um campo privilegiado para exploração. A promoção do discurso ideológico, pelos  
representantes ideológicos dos interesses da burguesia, da “ineficiência estatal”, por  
exemplo, serve como justificativa para legitimar a transferência desses setores para a  
gestão privada, cuja eficiência é medida por um único critério: a capacidade de extrair  
lucros.  
Por fim, o processo de transferência de serviços públicos para a gestão privada  
trabalhadores permanecem trabalhadores assalariados, proletários. A relação com o capital não é  
revogada; ao contrário, é levada ao extremo. Só que, chegando ao extremo, ela sofre uma reversão. A  
propriedade estatal das forças produtivas não é a solução do conflito, mas abriga em si o meio formal,  
o manejo da solução.”  
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Notas sobre estado e políticas públicas a partir da crítica da economia política marxiana  
constitui uma dupla via de expropriação. Primeiramente, ocorre a expropriação do  
patrimônio público. Ativos estatais hospitais, escolas, empresas de saneamento e  
energia que foram construídos ao longo de décadas com recursos do fundo público  
(ou seja, como valor produzido pela classe trabalhadora) são transferidos para o capital  
privado a preços, via de regra, subavaliados. O que era propriedade social coletiva  
torna-se propriedade privada com fins lucrativos.  
Em segundo lugar, ocorre a expropriação do salário indireto. O serviço público  
que antes era acessado coletivamente como um direito, financiado por impostos,  
transforma-se em uma mercadoria que deve ser comprada no mercado. O trabalhador,  
é assim, expropriado duas vezes: primeiro, do patrimônio que ajudou a construir;  
segundo, enquanto consumidor, forçado a pagar novamente, com seu salário, por um  
serviço que antes constituía seu salário indireto. A administração pública atua como  
um agente de classe que conduz esse processo, através de alterações legais,  
regulatórias e contratuais, desmantela o serviço público, legitimando sua transferência  
para o capital privado.  
3. O estado na arena da distribuição: crise, crédito e a luta pelo  
mais-valor (Livro III)  
Se os dois primeiros volumes de O capital fornecem os fundamentos para se  
compreender a origem do mais-valor e o caráter do aparato estatal como um custo de  
gestão sistêmico, o Livro III completa a análise ao tratar do processo capitalista em  
seu conjunto, focando na distribuição do mais-valor entre as diferentes frações da  
classe dominante no processo de autonomização das fases de acumulação do capital.  
É aqui que o estado e sua administração aparecem de forma explícita como um ator  
político e econômico, um gestor das contradições e arena decisiva para a luta de  
classes.  
3.1 Partilha do mais-valor: o estado e o imposto  
O mais-valor, essa massa de valor gerada pelo trabalho não pago da classe  
trabalhadora (analisada no Livro I), não permanece nas mãos do capitalista industrial  
em sua totalidade. Ele é a substância comum que se reparte entre as diferentes frações  
da classe proprietária, assumindo as formas autônomas e aparentemente  
desconectadas de lucro industrial, lucro comercial, juro e renda da terra. Essa partilha  
não é harmoniosa, mas um campo de conflito entre frações da classe burguesa como  
industriais, comerciantes, banqueiros e proprietários de terra. O estado, através de seu  
poder de tributação, insere-se como um quarto ator nesta disputa, reivindicando para  
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si uma parcela primária do valor total produzido pela sociedade para constituir o fundo  
público.  
O imposto, na visão de Marx, não é uma categoria autônoma, mas uma das  
formas de existência necessárias do mais-valor. Longe de desenvolver uma “teoria  
fiscal”, Marx demonstra que o imposto é a parcela do trabalho excedente total  
apropriada pelo poder estatal. Sua análise, portanto, vai além de situar a tributação na  
esfera da distribuição; ela a revela como uma subforma do mais-valor, cuja existência  
é indispensável para a manutenção das condições gerais da produção. Em condições  
normais, essa dedução afeta todas as classes, mas sua substância material deriva  
fundamentalmente do valor gerado pela classe trabalhadora e não pago.  
A administração pública, através de sua política fiscal, age como gestora dessas  
deduções, o que inclui gerir não apenas dos conflitos entre capital e trabalho, mas  
também das disputas intraclasse burguesa. As decisões sobre a estrutura tributária (se  
os impostos devem incidir mais sobre o lucro, a renda da terra, o consumo ou os  
salários) são decisões eminentemente políticas que refletem a correlação de forças de  
um dado momento e sua influência sobre as ações do estado. Marx, no último capítulo  
do Livro III, critica a “fórmula trinitária” (capital – lucro; Terra renda da terra; Trabalho  
salário), que a economia vulgar apresenta como a fonte natural da riqueza. Ele a  
revela como a forma mais acabada de mistificação da sociedade burguesa, pois ela  
apaga a origem comum de todo o rendimento das classes dominantes o mais-valor.  
E ainda apresenta a exploração como uma relação harmoniosa e técnica entre três  
fatores de produção independentes (lucro, renda da terra e salário). O debate  
consolidado no senso comum sobre como a administração pública deve operar em sua  
estrutura tributária, por exemplo, reforça essa mistificação, ao tratar das formas de  
distribuição da riqueza socialmente produzida sem questionar a relação de exploração  
que lhes dá origem.  
3.2 A queda tendencial da taxa de lucro e a pressão sobre a administração estatal  
No Livro III, Marx expõe a “lei da queda tendencial da taxa de lucro”. Ele  
demonstra que as mesmas forças que impulsionam a acumulação a competição entre  
os capitais e a busca incessante por uma taxa de mais-valor mais elevada forçam o  
capitalista a revolucionar constantemente os meios de produção. Esse processo resulta  
em um aumento progressivo da composição orgânica do capital (a razão entre o capital  
constante e o variável c/v), o que significa que, embora a massa de mais-valor possa  
crescer, sua proporção em relação ao capital total adiantado tende a diminuir. Como  
o mais-valor é produzido apenas pelo capital variável (trabalho vivo), a taxa de lucro,  
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que mede o mais-valor em relação ao capital total, tem uma tendência imanente de  
cair, ainda que a massa de lucro possa aumentar  
Essa lei opera como uma pressão sobre a classe capitalista, forçando-a a uma  
busca desesperada por “causas contrarrestantes” para reverter esta queda, através,  
por exemplo, de meios de baratear a produção e aumentar a exploração. Muitas das  
principais “causas contrarrestantes” que Marx lista no Capítulo 14 dependem  
diretamente da ação potente da gestão estatal e atuam para retardar, frear ou em  
alguns casos anular os efeitos dessa tendência.  
A lei da queda progressiva da taxa de lucro está diretamente ligada ao aumento  
na taxa do mais-valor, ou seja, no grau de exploração do trabalho. O estado pode  
sancionar e promover, através de seus instrumentos políticos e administrativos, o  
prolongamento da jornada de trabalho ou, mais sutilmente, o aumento da intensidade  
do trabalho. Marx nota que pela dinâmica social contraditória, até o próprio aumento  
do mais-valor relativo encontra limites:  
[...] por um lado, converter em mais-valor a maior quantidade possível  
de dada massa de trabalho, por outro, empregar em proporção ao  
capital adiantado, a menor quantidade de trabalho em geral, de modo  
que os mesmos motivos que permitem aumentar o grau de exploração  
do trabalho impeçam que com o mesmo capital se explore tanto  
trabalho quanto antes. São essas as tendências antagônicas que,  
enquanto atuam para uma elevação da taxa de mais-valor, promovem  
simultaneamente a diminuição da massa do mais-valor gerado por um  
capital dado e, assim, a queda da taxa de lucro. (MARX, 2017, p. 233)  
Assim como também aponta que “tudo o que estimula a produção de mais-  
valor mediante o aperfeiçoamento dos métodos, [...] porém mantendo inalterada a  
grandeza do capital empregado, surte o mesmo efeito” (MARX, 2017, p. 233). Na  
sequência do argumento, Marx (2017) ainda menciona a compreensão do salário-  
mínimo abaixo de seu valor, o que significa que os trabalhadores são pagos com um  
valor inferior ao custo de reprodução de sua força de trabalho, aumentando a parcela  
do mais-valor (trabalho não pago) apropriada pelo capitalista. O papel do estado nesse  
processo, manifesta-se de maneira concreta através de políticas governamentais que  
contribuam para a compressão salarial, como é o caso de políticas de arrocho salarial  
no setor público e privado. Um exemplo, é a referência feita por Marx às leis dos  
cereais, promulgada no contexto inglês em 1815, que permitiu que os salários dos  
trabalhadores agrícolas fossem reduzidos a níveis muito baixas, por vezes “até mesmo  
abaixo do mínimo físico” (MARX, 2017, p. 590).  
O barateamento dos elementos do capital constante é outra importante causa  
contrarrestante da queda da taxa de lucro. Se o valor desses elementos diminui (p. ex.,  
maquinaria, matéria-prima etc.), o capital constante em relação ao capital variável se  
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reduz, o que, por sua vez, eleva a taxa de lucro, mesmo que a taxa de mais-valor  
permaneça a mesma: “a economia de capital constante, por um lado, aumenta a taxa  
de lucro e, por outro, libera capital constante; ela é, com isso, importante para o  
capitalista” (MARX, 2017, p. 77). O papel do estado nesse processo é fundamental e  
direto. Ele influencia esse barateamento ao financiar, por exemplo, com recursos do  
fundo público, a pesquisa e desenvolvimento (P&D) que geram as inovações  
tecnológicas. Isso ocorre tanto no âmbito das universidades públicas, que produzem  
ciência cujos resultados são posteriormente apropriados pelo capital privado, quanto  
por meio de subsídios e incentivos fiscais a setores industriais específicos. Juntamente  
com as políticas comerciais que facilitam a importação de insumos mais baratos, estas  
ações estatais socializam os custos e os riscos da inovação, permitindo que os capitais  
individuais incorporem tecnologia mais eficiente a um custo menor, o que atua  
diretamente contra a tendência de queda da taxa de lucro.  
Juntamente com o fomento à inovação tecnológica, a política estatal para o  
comércio exterior se revela como uma das mais importantes causas contrarrestantes.  
Ao proporcionar um barateamento tanto dos meios de produção quanto dos bens de  
consumo que determinam o valor da força de trabalho, pois pode elevar a taxa de  
lucro ao reduzir o valor dos componentes do capital constante e variável. Marx aponta  
que:  
Os capitais investidos no comércio exterior podem produzir uma taxa  
de lucro mais elevada porque nesse caso, em primeiro lugar, compete-  
se com mercadorias produzidas por outros países, com menos  
facilidades de produção, de modo que o país mais avançado vende  
mercadorias acima de seu valor, embora mais baratas que os países  
concorrentes. Na medida em que o trabalho do país mais adiantado  
se valoriza como trabalho de maior peso específico, aumenta a taxa  
de lucro ao vender-se como qualitativamente superior o trabalho que  
não foi pago como tal. O mesmo pode ocorrer no caso de um país ao  
qual se enviam mercadorias e do qual se levam mercadorias; a saber,  
que tal país forneça trabalhado objetivado in natura numa quantidade  
maior do que a que recebe e que, apesar disso, obtenha a mercadoria  
por um preço menor do que se ele mesmo a produzisse. (MARX, 2017,  
p. 237)  
A realização desse potencial, entretanto, pressupõe um conjunto de ações  
estatais: políticas alfandegárias, tratados comerciais, diplomacia e, por fim, o poderio  
militar para “abrir” mercados e garantir rotas comerciais e fontes de matéria-prima (a  
própria essência do que foi a administração imperial e colonial). A liberalização do  
comércio exterior (ou seja, uma política estatal de redução de tarifas) atua no sentido  
de baratear os elementos do capital constante importados, o que não apenas eleva a  
taxa de lucro, mas também permite a ampliação da escala de produção e acelera a  
acumulação de capital. A administração pública se revela aqui como mediação que  
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transforma a necessidade econômica do capital em política econômica de estado.  
Outra medida contrarrestante central é o “aumento do capital acionário”. Marx  
(2017) argumenta que o surgimento e avanço das sociedades por ações representam  
uma forma avançada de organização do capital, que permite a concentração de vastos  
montantes de capital de diferentes indivíduos, superandos os limites do capital  
individual. Ele aponta que essa forma de organização, embora ainda se mova no  
terreno capitalista, já representa uma “suprassunção [Aufhebung] do capital como  
propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista”  
(MARX, 2017, p. 423). Essa superação, no entanto, depende inteiramente do aparato  
jurídico-administrativo do estado, que cria e garante a forma legal da “pessoa jurídica”,  
limita a responsabilidade dos acionistas e regula os mercados de capitais. Engels, em  
uma nota a edição do Volume 3, menciona que, para facilitar o investimento de “capital  
monetário flutuante”, foram estabelecidas “novas formas legais de sociedades de  
responsabilidade limitada, reduzindo-se também mais ou menos as obrigações dos  
acionistas, que até então eram de responsabilidade ilimitada.” (ENGELS in MARX,  
2017, p. 845). Essa ação legislativa foi fundamental, pois ao limitar a responsabilidade  
dos investidores, o estado torna a aplicação de capital em grandes empreendimentos  
menos arriscada para o capitalista individual. Isso estimula a captação de pequenos e  
médios capitais, que se agregam para formar o gigantesco capital das sociedades por  
ações, impulsionando a acumulação e o emprego de capital de uma maneira que antes  
era inviável.  
Marx ainda sugere que a expansão das sociedades por ações também envolveu  
“ao mesmo tempo, a transformação dessas empresas, que antes eram governamentais,  
em empresas sociais” (MARX, 2017, p. 423). Nesta passagem Marx ao se referir à  
transformação de “empresas governamentais” em “empresas sociais”, Marx está  
analisando o surgimento do capital acionário, que ele considera uma forma de “capital  
social” em oposição ao capital puramente privado do empresário individual. Trata-se  
de um processo em que funções antes exercidas pelo estado passam a ser organizadas  
sob a forma de sociedades por ações, um movimento que, em termos,  
contemporâneos, se assemelha a uma política de privatização. Ao fazê-lo, o estado  
não só transfere ativos ao setor privado, mas também expande o universo do capital  
acionário, contribuindo para a dinâmica de acumulação e para o movimento global da  
taxa de lucro.  
Em síntese, a pressão econômica descrita pela lei da queda da taxa de lucro se  
traduz diretamente em uma agenda política, econômica e administrativa. As “reformas  
estruturais” e as políticas de austeridade econômica, apresentadas cotidianamente na  
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agenda política como necessidades técnicas para a “saúde da economia”, são, na  
verdade, a resposta do capital, mediada pelo estado, à sua crise crônica de  
lucratividade.  
3.3 A dívida pública, o sistema de crédito e o estado como gestor da crise  
A análise do capital portador de juros, do sistema de crédito e da dívida pública  
no Livro III é bem atual para a análise aqui pretendida. Marx desenvolve a categoria  
de “capital fictício” (títulos que representam não um capital real, mas uma reivindicação  
sobre o mais-valor futuro) e situa a dívida pública como sua forma mais pura. Os títulos  
da dívida pública não têm valor intrínseco, são uma promessa de pagamento futuro  
pelo estado, garantida por sua capacidade de arrecadar impostos. Na mão dos  
credores, os títulos da dívida são “facilmente transferíveis, que continuam a funcionar  
em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante” (MARX,  
2025, p. 521). Para Marx, a dívida pública cria uma “classe de rentistas ociosos”,  
enriquece “financistas que atuam como intermediários entre o governo e a nação”,  
proporciona que uma “boa parcela de cada empréstimo do estado rende o serviço de  
um capital caído do céu.” (MARX, 2025, p. 521). Em suma, para o autor alemão a  
dívida pública “faz prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos  
negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em uma palavra: o jogo da Bolsa e a  
moderna bancocracia” (MARX, 2025, p. 521).  
A dívida pública torna-se um mecanismo central para o enriquecimento da  
burguesia financeira, que empresta ao estado e recebe juros pagos com dinheiro  
extraído de toda a sociedade. Marx (2017) aprofunda sua análise mostrando como os  
títulos da dívida pública se tornam um componente central do capital bancário e a  
base para a expansão do crédito. A administração da dívida pública torna-se uma das  
funções mais importantes do estado burguês moderno, uma atividade que demonstra  
sua potência para garantir os rendimentos da classe rentista.  
A dívida pública exige um complemento necessário no estado burguês  
moderno, o sistema tributário e fiscal. Com seu Banco Central e sua capacidade de  
emitir dívida pública, converte-se no gestor e o garantidor em última instância de todo  
o sistema financeiro. A administração pública, aqui, é extremamente potente, ela pode  
regular a taxa de juros, controlar a oferta de moeda e, em momentos de crise, atuar  
como o deus ex machina que procura salvar o sistema de si mesmo. Os resgates  
bancários (os bailouts), financiados com o fundo público, são a expressão máxima  
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dessa potência a serviço do capital financeiro8.  
O estado é potente o suficiente para criar leis que moldam todo o sistema  
financeiro, mas sua administração é impotente para controlar as forças econômicas  
que ele mesmo contribuiu para desencadear. O estado socializa as perdas privadas,  
utilizando a riqueza produzida pela sociedade para resgatar os responsáveis pela crise,  
enquanto impõe à classe trabalhadora a “austeridade” como remédio. A administração  
da dívida pública reforça o mecanismo de transferência de riqueza da base da  
sociedade para o topo.  
Em suma, o Livro III revela que a administração pública, longe de ser um mero  
corpo técnico, é um instrumento estratégico na gestão da distribuição do mais-valor e  
na mediação das crises do capital. Sua impotência para evitar as crises é a contraface  
de sua potência para garantir que seus custos sejam pagos pela classe trabalhadora,  
e não pela classe capitalista.  
Considerações finais  
Nossa caminhada pelos três volumes de O capital, guiada pela questão da forma  
e da função do estado burguês, revela os fundamentos de uma crítica coerente e  
profunda, ainda que não sistematizada em uma obra única pelo autor alemão9. A  
8 Em relação ao conceito de “capital financeiro” cabe destacar a crítica realizada por Sabadini (2015) à  
utilização indiscriminada do termo no debate marxista contemporâneo. O autor faz uma crítica à maneira  
como certas abordagens marxistas atribuem ao capital financeiro um poder monolítico e externo às  
relações sociais de produção. Sabadini (2015) destaca que embora o termo “capital financeiro” não  
exista no texto original de Marx (tendo sido introduzido pela tradução francesa de O capital), é possível  
se fazer um uso político do conceito partindo de uma leitura do movimento concreto do capital. A partir  
de uma releitura a obra de Hilferding (O capital financeiro, de 1910), Sabadini (2015) destaca para cada  
vez mais complexa e crescente interligação entre produção e finanças na atualidade, onde os  
movimentos especulativos exercem forte influência na dinâmica de acumulação. Em síntese, Sabadini  
(2015) argumenta que a ideia de associação ou subordinação não é suficiente para explicar a dinâmica  
atribuída ao capital financeiro no capitalismo contemporâneo. A dinâmica fictícia e especulativa exige o  
entendimento da desmaterialização do dinheiro sob a forma de capital fictício, sustentando-se pela  
autonomização das formas funcionais do capital (SABADINI, 2015).  
9 De Deus (2015) ao sistematizar os planos de redação de O capital de Karl Marx, revela que estava no  
plano inicial do autor alemão dedicar um volume ao tratamento específico do estado. Em carta  
endereçada à Lassalle, datada de 22 de fevereiro de 1858, Marx anunciou um plano ambicioso para a  
“crítica das categorias econômicas”. O plano inicialmente incluía a divisão em seis livros, sendo o quarto  
“O estado”. De Deus (2015) aponta ainda que Marx descreve um plano inicial onde, após tratar do  
capital, da propriedade da terra e do trabalho assalariado, viria o “estado”. No detalhamento o livro  
sobre o estado deveria abordar: “Estado e sociedade civil; Os impostos, ou a existência da classe  
improdutiva; A dívida pública; A população; O estado em direção ao exterior: colônias, comércio exterior,  
câmbio, dinheiro como moeda internacional; Mercado mundial; Domínio da sociedade civil sobre o  
estado; As crises; Dissolução do modo de produção e forma social baseados no valor de troca. Trabalho  
individual realmente posto como social e vice-versa.” (DE DEUS, 2015, p. 932). Posteriormente de Deus  
(2015) ressalta que Marx reviu este plano inicial, condicionado por diversos motivos de ordem pessoal  
e política, o que incluiu não publicar mais um volume em separado para tratamento do estado, o que  
indica uma possibilidade de tratamento da questão do estado em conjunto com outras discussões a  
serem compreendidas dentro da lógica do capital. Estes planos, ainda que não concretizados em vida,  
revelam a intenção de Marx de tratar o estado como uma entidade profundamente ligada às relações  
econômicas, à distribuição do produto social (impostos, dívida pública) e as crises. A menção explícita  
aos “impostos, ou a existência da classe improdutiva” já indica que, para Marx, os impostos são um  
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análise de Marx, demonstra que a esfera política não é autônoma, mas um momento  
necessário e determinado pela reprodução das relações sociais de produção. Ao partir  
da célula fundamental da sociedade burguesa a mercadoria e reconstruir as leis de  
movimento do capital em sua totalidade, estabelecemos as bases para uma análise  
radical do estado e de sua gestão. Desta forma concordamos com Wellen (2025),  
segundo o qual a pesquisa econômica desenvolvida por Marx ao longo de suas obras  
(com destaque para O capital), “não pode ser tratada de forma isolada, e precisa ser  
utilizada também como parâmetro para a análise do estado” (WELLEN, 2025, p. 18).  
A investigação nos permitiu concluir que o estado opera sob uma dualidade  
contraditória fundamental. Vimos como o Livro I estabelece sua base material,  
demonstrando que o estado não pode superar a pobreza porque ela é um produto  
funcional da própria acumulação. Em seguida, a partir do Livro II procuramos  
demonstrar que o aparato estatal opera como um custo geral de gestão do sistema,  
administrando um fundo público que é, em essência, uma dedução do mais-valor  
extraído da classe trabalhadora. Por fim, a partir do Livro III buscamos situar o estado  
na arena da luta de classes, submetido às crises imanentes ao capital e atuando como  
o gestor dos interesses da classe dominante, seja na distribuição do mais-valor, na  
socialização das perdas ou na criação de novos flancos para intensificação da  
exploração da força de trabalho.  
A partir deste argumento, a impotência [Ohnmacht] da gestão estatal não é uma  
premissa, mas uma conclusão lógica de sua função estrutural: sua impotência para  
promover a emancipação humana é a contraface de sua potência para servir à  
acumulação de capital.  
Estas constatações são de suma importância para o debate atual, porque nos  
permitem, entre outras coisas, desmistificar o discurso hegemônico que atribui as  
crises sociais a falhas de gestão, à corrupção ou à “ineficiência” do setor público.  
Permite-nos ainda ver as políticas de austeridade econômica e as (contra)reformas na  
gestão estatal não como erros técnicos, mas como expressões da luta de classes em  
um momento de acirramento das contradições do capital.  
A crítica de Marx nos revela que a superação das mazelas sociais não virá de  
uma gestão pública mais “eficiente” ou “moderna”, mas apenas da superação das  
relações de produção que tornam essa administração, simultaneamente, tão potente  
para o capital quanto impotente para a humanidade. A tarefa, portanto, não é a de  
reformar o estado burguês, mas a de lutar por uma transformação política que, ao  
mecanismo pelo qual parcelas do produto social são apropriadas para sustentar camadas sociais que  
não geram diretamente valor.  
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abolir a dominação de classe, torne possível o fim da própria política como esfera  
separada e, com ela, do estado burguês.  
Dado a magnitude d’O capital, ressaltamos que não consideramos esgotadas  
as possibilidades de discussão da temática na obra marxiana. O movimento  
argumentativo aqui realizado teve como pretensão sintetizar e destacar, como ponto  
de partida, alguns dos elementos da crítica da economia política que consideramos  
fundamentais para uma reflexão radical a respeito do estado e de sua gestão.  
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Como citar:  
CHAVES, Rossi Henrique. Notas sobre estado e políticas públicas a partir da crítica da  
economia política marxiana. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 211-233,  
2025.  
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ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 211-233 jul.-dez., 2025 | 233  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.774  
Lênin como advogado: um problema inicial no  
estudo do direito na obra leniniana  
Lenin as a lawyer: an initial problem in the study of  
law in Leninian work  
Pedro Rocha Badô*  
Resumo: No presente artigo, buscou-se avaliar a  
hipótese geral, e suas derivações teóricas, de que  
Lênin, em sua juventude, exerceu a advocacia  
como forma de luta social. Através da leitura do  
próprio texto leniniano, que implicou também em  
uma breve pesquisa biográfica, concluiu-se por  
uma fragilidade desta hipótese, notando-se que  
não só a breve atividade advocatícia de Lênin  
não teve papel significativo em seu esquema  
tático, como há a preponderância da luta política  
sobre a esfera direito, principalmente através da  
organização de um partido.  
Abstract: This article seeks to evaluate the  
general hypothesis, and its theoretical  
derivations, that Lenin, in his youth, acted as a  
lawyer as a form of social struggle. Through a  
reading of Lenin’s own text, which also involved  
a brief biographical survey, it was concluded  
that this hypothesis is fragile, noting that not  
only did Lenin’s brief activity as a lawyer not  
play a significant role in his tactical scheme, but  
there was also a preponderance of political  
struggle over the sphere of law, mainly through  
the organization of a party.  
Palavras-chave: Lênin; advogado; direito;  
política.  
Keywords: Lenin; lawyer; law; politics.  
Introdução  
A atenção que o tema do direito na obra de Lênin ganhou nos últimos anos no  
Brasil proporcionou uma série de estudos a esse respeito com enfoque em diferentes  
obras e diferentes momentos da vida do revolucionário russo. Exemplo disso é que  
enquanto no artigo Lênin e o direito de Pedro Ferreira (2017) podemos encontrar  
apontamentos sobre a questão dos tribunais nos textos leninianos de 1899 e 1901,  
e na obra Filosofia do direito de Alysson Mascaro (2014), no subtópico intitulado “O  
direito em Lênin”, uma análise a respeito do direito restrita à obras O estado e a  
revolução de 1917, em A questão do direito em Lênin, Jair Pinheiro (2015) aborda a  
temática jurídica a partir do período pós-revolucionário na Rússia.  
Parece-nos, entretanto, que uma das vertentes que mais tem ganhado fôlego  
em meio essa profusão de estudos é aquela que defende com variada ênfase e  
diferentes matizes a ideia de que Lênin, principalmente durante sua juventude, fez  
da advocacia uma forma de atuação na luta de classes da Rússia. E é precisamente à  
*
Doutorando em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:  
pedrobado.doc@gmail.com. Orcid: 0000-0001-7214-4378.  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
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Lênin como advogado: um problema inicial no estudo do direito na obra leniniana  
análise desta ideia que dedicamos o presente artigo.  
Nosso objetivo, portanto, é estabelecer um diálogo com os textos que têm  
sustentado tal argumento a começar pelo o pioneiro ensaio Lênin e os problemas do  
direito de Pachukanis contrastando com uma atenta leitura dos textos do próprio  
Lênin, principalmente daquele que é considerado sua obra política inaugural, os  
opúsculos de 1894 Quem são os “amigos do povo” e como lutam contra os sociais-  
democratas?  
A fragilidade da ideia de um “Lênin advogado”  
A argumentação de Pachukanis (2018, p. 1904) de que “tanto o fetichismo da  
forma jurídica”, quanto “seu completo oposto” – isto é, “a incapacidade de  
compreender o verdadeiro significado que uma ou outra forma jurídica pode ter em  
um dado estágio” –, “são igualmente estranhos a Vladimir Ilich” é a base para sua  
concepção de que Lênin, diante do direito, recusaria tanto “o fetiche legalista do  
sistema”, quanto “um fetichismo de negação da legalidade” e que, portanto, existiria  
ao longo de toda a obra e de toda a atuação prática do líder bolchevique a ideia de  
um “uso de ‘possibilidades legais’” (PACHUKANIS, 2018, p. 1.905).  
Entre as diversas passagens citadas por Pachukanis para corroborar esta  
posição, aqui vamos nos concentrar nos primeiros anos da militância de Lênin e, por  
isso, nos interessa particularmente o trecho em que Pachukanis narra um suposto  
acontecimento da vida do jovem revolucionário que teria ocorrido por volta da década  
1890. Trata-se de “um episódio da vida de Lênin, contado por Elizarov logo após a  
morte de Vladimir Ilich”.  
A situação foi que Vladimir Ilich, que ao tempo estava ainda vivendo  
em Samara, quis dar uma aula a um aproveitador arrogante, um  
fornecedor de transportes, que deteve arbitrariamente passageiros os  
quais usavam os serviços de barqueiros para atravessar o rio ao invés  
de sua balsa. Ele apresentou uma queixa, a despeito de todos os  
esforços do chefe do antigo conselho distrital (a favor do  
aproveitador, naturalmente) de esgotar o infatigável reclamante,  
protelando ao máximo o interrogatório do caso; finalmente, um  
veredito de culpado foi obtido. (PACHUKANIS, 2018, p. 1.906)  
É bem verdade que as conclusões de Pachukanis a respeito da relação entre  
Lênin e o direito, no decorrer de todo seu texto, possuem certos meandros que devem  
ser olhados com o devido cuidado. No entanto, como já dito, devemos nos concentrar  
em sua afirmação de que a defesa dos barqueiros de Samara demonstra que “Lênin  
ostentava em um caso menor a mesma obstinação, vontade de ferro e firmeza pelas  
quais ele era conhecido nos assuntos principais” (PACHUKANIS, 2018, p. 1.906). Isso  
porque é esta afirmação que parece dar ensejo a uma certa interpretação, por parte  
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Pedro Rocha Badô  
de importantes estudiosos brasileiros do tema, de que, baseado em uma “vontade de  
ferro e firmeza” mesmo em um “caso menor”, haveria uma atuação relevante de Lênin  
ligada à prática da advocacia.  
Talvez tenha sido Júlio da Silveira Moreira quem primeiro deu maior atenção a  
essa suposta passagem da vida de Lênin mencionada por Pachukanis. Em seu Lênin y  
los derechos del pueblo de 2015, já na primeira seção do texto, intitulada “Lênin  
abogado del pueblo [Lênin, advogado do povo]”, o autor afirma que “Lênin foi jurista,  
e acima de tudo, um jurista comprometido com o povo”, o qual “a partir de 1892,  
atuava como advogado” (MOREIRA, 2015, p. 138, tradução nossa), citando  
diretamente o mesmo argumento pachukaniano de que “Lênin dedicou-se a problemas  
menores com a mesma tenacidade, vontade de ferro e firmeza pela qual era conhecido  
por problemas maiores” (MOREIRA, 2015, p. 139, tradução nossa).  
Se apoiando no caso dos barqueiros, Moreira traz uma narrativa ainda mais  
detalhada do suposto acontecimento de Samara, agora baseando-se em um conto  
russo traduzido para o castelhano como ¡Rema adelante!1 , e afirma que após a  
vitória judicial de Lênin no caso, a “vitória elevou a moral e a crença dos barqueiros  
em seu poder e seus direitos (MOREIRA, 2015, pp. 138-9, tradução nossa).  
Aqui também é importante notar o objetivo que subjaz ao argumento de  
Moreira. No decorrer do texto, fica claro que o autor busca aproximar a ideia de um  
“Lênin advogado do povo” da conhecida figura dos “advogados populares”, que  
ficaram conhecidos entre nós brasileiros principalmente durante as duas últimas  
décadas do século passado. Moreira (2015, p. 140) afirma que “ao longo da história  
do século XX, muitas organizações de advogados surgiram em vários países que  
procuraram agir a favor da justiça”, impulsionadas pelas “situações de crescente  
repressão e terror de estado, tais como ditaduras militares” e cita, em especial, a  
“Associação Internacional dos Advogados do Povo, fundada em 2000”. Para o jurista  
brasileiro, entre os princípios de tal associação, “há muito em comum com o caminho  
deixado por Lenin, que ensinou, nos métodos de luta, a tirar partido das  
‘possibilidades legais’” – e aqui ele se remete diretamente ao argumento de  
Pachukanis de que é necessário fazer “com que a ‘legalidade que o nosso inimigo nos  
impõe seja reimposta a ele pela lógica dos fatos’” (MOREIRA, 2015, p. 141).  
Assim, no caso particular de Júlio Moreira, devemos notar que há uma tentativa  
de fundamentar a ação da “advocacia popular” na América Latina do último meio  
1
RADÍSCHEV, L. ¡Rema adelante!In: Mitiáev, Anatoli (Org.). Hogueras. Moscú/La Habana: Editorial  
Progreso/Instituto Cubano del Libro, 1972, pp. 34-41.  
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Lênin como advogado: um problema inicial no estudo do direito na obra leniniana  
século no texto leniniano. Porém, em nossa opinião, trata-se de uma operação teórica  
no mínimo questionável na medida em que ignora as diferentes determinações  
históricas que separam a Rússia do século XIX as quais ainda dedicaremos breves  
considerações ao longo do presente texto e dos países latino-americanos do último  
século, e principalmente as diferenças entre a natureza específica do tsarismo russo e  
dos governos autocráticos da América Latina.  
Em sentido próximo à argumentação de Moreira mesmo que não apoiados no  
caso dos barqueiros de Samara, além de partirem de uma argumentação mais robusta  
–, Ricardo Pazello e Pedro Ferreira (2017, p. 146) falam de uma “advocacia, chamemos  
assim, ‘popular’, que Lênin também exerceu, em favor das classes populares (cf.  
PACHUKANIS, 1980, p. 140)”. Ainda que em outro texto Pazello (2014, p. 231) tenha  
feito a importante observação de que apesar do fato de Lênin ter atuado como  
advogado, “isto não significa que tenha se dedicado primordialmente a esta atividade,  
e nem mesmo que realizou um aprofundamento teórico a respeito” – o que o diferencia  
substancialmente da posição de Júlio Moreira (2015, p. 138, tradução nossa) de que  
“Lênin foi jurista, e acima de tudo, um jurista comprometido com o povo”, o qual “a  
partir de 1892, atuava como advogado” –, nos parece que a advocacia como forma  
de luta no ideário leniniano prevalece na posição de Pazello e Ferreira.  
Por óbvio, tanto a posição de Pachukanis sobre o caso dos barqueiros, como a  
crença de Moreira, Pazello e Ferreira a respeito de uma atuação como advogado  
“popular” têm a seu favor o conhecido fato de que Lênin formou-se em direito. Na  
cronologia de sua vida disponível nas Obras completas (cf. LÊNIN, 1981, p. 643)  
consta que o jovem Vladimir Ilitch ingressou na Faculdade de Direito da Universidade  
de Kazan em agosto de 1887 período em que também passa a frequentar o círculo  
político estudantil e apresentou, em outubro, requerimento de matrícula para o  
primeiro semestre do ano letivo 1887-1888 nas disciplinas de História do Direito  
Russo, História do Direito Romano, Enciclopédia do Direito, além de Teologia e Língua  
Inglesa. Ainda em dezembro de 1887, Lênin foi detido em protestos estudantis e  
obrigado a pedir desligamento da Universidade, tendo sido encaminhado  
imediatamente para a aldeia de Kokúshkino e mantido sob a vigilância policial. Em  
setembro de 1888, tanto sua solicitação ao ministro de Instrução Pública para retornar  
à Universidade de Kazan, feita em maio daquele ano, quanto sua solicitação ao ministro  
do Interior para emigrar do país com objetivo de terminar seus estudos superiores  
foram negadas.  
Durante os anos de 1888 e 1889, Lênin permaneceu endereçando petições a  
diversos órgãos oficiais para poder regressar à universidade e todas foram novamente  
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recusadas. Finalmente, sua mãe, Maria Aleksandrovna Ulianova, após enviar também  
diversos requerimentos no decorrer do ano 1890, conseguiu que seu filho fosse aceito  
na Faculdade de Direito da Universidade de São Petersburgo em junho de 1890. A  
partir dessa permissão, a necessidade de prestar os chamados “exames de estado”  
para ingressar na nova universidade, levou Vladimir Ilitch, entre junho de 1890 e abril  
de 1891, a estudar os três tomos da obra Origens do direito estatal russo do renomado  
liberal professor da Universidade de São Petersburgo Aleksandr Dmitrievitch  
Gradovski, ao qual, segundo o editor russo das Obras completas, Lênin fez diversos  
grifos, destaques e anotações nas margens da obra (cf. LÊNIN, 1981, p. 645). A  
cronologia disponível nas Obras completas ainda dá conta também de que em março  
de 1891, Lênin, ao apresentar um pedido de autorização para prestar os exames finais  
como “estudante externo” ao presidente da Comissão Jurídica Examinadora da  
Universidade de São Petersburgo, anexou uma redação sobre direito penal (cf. LÊNIN,  
1981, p. 646), bem como, na primeira quinzena de setembro do mesmo ano, às  
vésperas de prestar os testes de conclusão do curso, realizou um “exame por escrito  
sobre um tema de direito” (cf. LÊNIN, 1981, p. 647). No entanto, todo esse material  
teórico que poderia nos fornecer algumas pistas sobre a posição do então jovem  
estudante Lênin a respeito de temáticas jurídicas não se encontram publicadas.  
Tamás Krausz (2017, p. 49) a partir de fontes documentais primárias afirma  
que, após a conclusão do curso universitário, “Lênin trabalhou como advogado por  
um breve período”. Em 1892 “foi-lhe concedida permissão para trabalhar  
independentemente, sob contínua vigilância policial, no tribunal de Samara” e sua  
“atividade jurídica estendeu-se de janeiro de 1892 a agosto de 1893”, tendo cuidado  
de alguns casos, “24 no total”. De fato, podemos encontrar também na cronologia  
organizada pelo editor russo das Obras completas (cf. LÊNIN, 1981, pp. 647-9)  
menções à algumas causas judiciais em que Lênin atuou como advogado, inclusive,  
constando os nomes de alguns camponeses que eram parte nestas ações.  
No entanto, até o presente momento, nem nós, nem Pachukanis, Moreira,  
Pazello e Ferreira tiveram acesso ao conteúdo de tais ações judiciais, de modo que  
não se sabe exatamente quais as circunstâncias envolvidas nestes casos. Soma-se a  
isso o fato de que nunca foi encontrado qualquer escrito de Lênin a respeito de sua  
atividade como advogado, não sendo possível saber com exatidão qual o nível de  
importância ele atribuía à advocacia sob sua ótica revolucionária.  
Além disso, o citado caso dos barqueiros de Samara nunca mencionado pelo  
próprio Lênin , o qual suscitou todo esse debate, provém de relatos insuficientes e  
sem fontes confiáveis, pois enquanto Pachukanis narra tal evento a partir do relato  
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oral de Elizárov então cunhado de Lênin , Júlio Moreira se baseia no já mencionado  
conto infantil do escritor russo Leonid Radishchev2. A nós, parece muito frágil basear-  
se neste suposto acontecimento da vida do então jovem Vladimir Ulianov para afirmar  
que ele tenha atuado precipuamente como um advogado de causas “populares”.  
Também é preciso observar que o próprio Pachukanis nunca chegou a colocar  
a questão exatamente como abordam Moreira, Pazello e Ferreira. Para ele, como já  
dissemos, o fundamental era que Lênin recusaria tanto “o fetiche legalista do sistema”,  
quanto “um fetichismo de negação da legalidade” (PACHUKANIS, 2018, p. 1.904), de  
modo que, se sua atuação principal não se dava através das causas jurídicas pois  
recusa o “fetiche legalista do sistema” –, ele também não se furtaria de atuar como  
advogado quando assim julgasse necessário, afastando-se, dessa forma, do  
“fetichismo de negação da legalidade”. Essa posição de Pachukanis, em princípio, não  
soa absurda para qualquer um que reconheça que, na dinâmica da luta concreta, o  
direito pode aparecer como um mediador efetivo dos conflitos sociais. Mas vejamos  
com mais atenção a posição pachukaniana:  
Neste episódio [dos barqueiros de Samara], não somente é importante  
para nós que Lênin ostentava em um caso menor as mesmas  
obstinação, vontade de ferro e firmeza pelas quais ele era conhecido  
nos assuntos principais. Era importante que ele conhecesse, quando  
ele queria e quando ele achava necessário, como mobilizar mesmo  
este método de luta ele recorreu ao tribunal czarista para dar uma  
lição ao pequeno tirano naquele assunto particular e para proteger os  
interesses dos pobres barqueiros. [...] Lênin era um mestre nesse tipo  
de luta, se ele não pudesse obter o resultado que procurava, por assim  
dizer, tomando uma posição partidária à frente da luta que estava  
conduzindo contra a arbitrariedade autocrática e a exploração  
capitalista. Por que provavelmente 99% de nossos bons  
revolucionários teriam cruzado seus braços para este caso particular  
e dito: “Não vale a pena se envolver”? E, é lógico, ao fazê-lo teriam  
refletido não o seu compromisso para com os princípios de  
revolucionários, mas simplesmente uma falta de conhecimento sobre  
o que tinha de ser feito e de que era necessário agir como advogado;  
e mais, uma falta de disposição já que eles eram fastidiosos. O que  
poderia ser mais favorável a um revolucionário do que ir a uma corte  
e, além disso, comparecer diante do chefe do governo local. Porém  
Lênin não foi um sonhador preguiçoso; ele sabia como fazer o  
trabalho sujo quando necessário. (PACHUKANIS, 2017, pp. 1.906-7).  
Em primeiro lugar, é curioso observar a conveniência de se considerar que  
nesse curto período da vida Lênin entre 1892 e 1893 , a prática advocatícia tenha  
sido um “método de luta” e não uma simples e convencional atuação profissional.  
Salientamos isso porque em momento algum, nem Pachukanis, nem nossos autores  
2 O conto Греби вперед consta originalmente em RADISHCHEV, L. N. На всю жизнь. Leningrado: Editora  
de Literatura Infantil, 1970, pp. 30-41.  
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conterrâneos, cogitam a possibilidade de que Lênin atuava na advocacia como um  
profissional liberal comum, recebendo honorários com os quais pagava suas despesas  
cotidianas.  
Por outro lado, é evidente que o fato de o jovem Vladimir Ilitch ter atendido  
tantos camponeses como a cronologia das Obras completas parece sugerir em sua  
breve carreira jurídica suscita em nós a impressão de que sua tomada de posição  
diante dos conflitos da sociedade de classes, em alguma medida, interferia em sua  
atuação nos tribunais, tal como na escolha dos casos em que iria assumir a defesa do  
réu. Isso, de certa maneira, parece se confirmar quando Krausz (2017, p. 49) relata  
que, em uma “certa ocasião”, Lênin “não esteve disposto a defender um rico mercador  
nem mesmo em troca de honorários mais altos, embora um bom número de  
camponeses acusados de roubo aparecesse entre os réus atendidos”. No entanto, ao  
mesmo tempo, há situações em que Lênin defendeu também “mercadores e até mesmo  
um marido que torturava a mulher, ainda que, em tal caso, não tenha pleiteado redução  
de sentença” (KRAUSZ, 2017, p. 49). Para nós, são tais relatos que dificultam a  
hipótese que pretende elevar esta atuação como advogado ao patamar de um “método  
de luta” leniniano.  
A esse respeito é preciso mencionar que, em uma primeira mirada, Pachukanis  
e Krausz parecem convergir quando dizem que a atuação jurídica de Lênin era guiada  
por certos princípios. Da mesma forma que para o jurista soviético tal atuação refletia  
um “compromisso para com os princípios de revolucionários”, demonstrando  
“conhecimento sobre o que tinha de ser feito e de que era necessário agir como  
advogado” (PACHUKANIS, 2017, p. 1.907), para o biógrafo húngaro, Lênin baseava  
“as defesas em razões de princípio”, isto é, “sob a perspectiva dos economicamente  
oprimidos” (KRAUSZ, 2017, p. 50).  
Entretanto, se a conclusão de Pachukanis caminha para o sentido de que o  
sucesso desse “método de luta na prática” se devia não “a questão da conveniência,  
mas a questão do princípio: deve um revolucionário procurar o suporte do tribunal da  
Coroa?” (PACHUKANIS, 2018, p. 1907), para Krausz, Lênin “não se tornaria um bom  
advogado, na medida em que seus princípios norteadores eram sociais, guiados por  
leis éticas, e moldavam todas as suas decisões sob a perspectiva dos economicamente  
oprimidos” (KRAUSZ, 2017, p. 49). Assim, enquanto para Pachukanis é a firmeza de  
princípios revolucionários que guia uma ação positiva de Lênin na advocacia, para  
Krausz, são estes mesmos princípios que impedem Lênin de ser um bom advogado,  
faltando-lhe, ao que nos parece, um certo pragmatismo circunstancial e variável que  
guia a atividade advocatícia. Nesse sentido, não só a evidente estreiteza das  
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Lênin como advogado: um problema inicial no estudo do direito na obra leniniana  
possibilidades que a advocacia oferece para a luta social, como a própria curta carreira  
de Lênin como advogado abandonada por ele definitivamente em 1893 parecem  
dar mais razão ao seu biógrafo húngaro.  
Mas há ainda outra questão que Pachukanis e os autores brasileiros deixa  
de tratar. Se por alguns instantes fizermos o experimento teórico de assumir que Lênin  
de fato tenha recorrido à advocacia como “método de luta”, o que impediria de se  
cogitar a hipótese de que tal forma de atuar não era a expressão de uma certa  
imaturidade de suas concepções a respeito da intervenção prática nas lutas sociais? E  
aqui há um elemento importante da história russa que deve ser considerado.  
Como o próprio Pachukanis afirma, naqueles anos próximos da virada de século  
XIX para o século XX, havia na Rússia um “tipo de ‘ativista social’, do qual era um  
representante notável, por exemplo, V. G. Korolenko” – conhecido escritor e ativista  
de extração naródnik –, para os quais “uma luta contra a arbitrariedade semi-servil  
asiática do estado proprietário de terras, ‘em nome da legalidade’ e estritamente por  
meios legais, era uma espécie de bandeira” (PACHUKANIS, 2017, p. 1.906). E era em  
meio a essa atmosfera social que o jovem Lênin começava a se formar enquanto  
revolucionário.  
Sobre isso, é preciso mencionar que, segundo Krausz (2017, p. 47), a  
“perspectiva político-intelectual-moral de Lênin” foi “moldada por numerosos  
movimentos e tradições”, que “além de Tchernychiévski e Marx”, inclui também “os  
narodovólets russos” – a corrente chamada terrorista que descendia dos primeiros  
naródniki e entre os quais estava Aleksandr Ilitch Ulianov, irmão de Lênin – “e o legado  
intelectual dos chamados democratas revolucionários”.  
Se é verdade que no fim dos anos 1880 Lênin já conhecia razoavelmente bem  
a obra de Marx (KRAUSZ, 2017, p. 46), apenas em 1893 é que ele esboçará suas  
primeiras divergências com os naródniki sobre a questão do desenvolvimento do modo  
de produção capitalista na Rússia em Sobre a chamada questão dos mercados. E  
assim, baseando-se exclusivamente nestes textos, Krausz (2017, p. 109) parece ter  
muita razão ao afirmar, na seção intitulada “Rompimento com o narodismo”, que “Lênin  
ocupava-se principalmente das concepções econômicas do narodismo” no período  
anterior a 1894, isto é, anterior à publicação de Quem são os “amigos do povo” e  
como lutam contra os sociais-democratas?, de modo que, até 1894, o que temos são  
polêmicas acerca de temas econômicos com os naródniks, não havendo uma posição  
clara de Lênin a respeito das formas de luta dessa corrente, inclusive de suas  
esperanças em relação a uma atuação jurídica, por assim dizer, em meio ao  
campesinato.  
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Apesar de já ter contato com alguns outros marxistas russos, Lênin, quando  
residia em Samara, ainda não pertencia a um círculo de sociais-democratas  
propriamente dito, já que chegaria em São Petersburgo apenas no outono 1893 (cf.  
KRUPSKAYA, 2021, p. 56) e fundaria a Liga de Luta pela Emancipação da Classe  
Trabalhadora apenas em 1895, tendo se integrado posteriormente ao Partido  
Operário Social-Democrata da Rússia, o qual foi fundado sob os moldes do marxismo  
da social-democracia alemã somente em 1898.  
Como pode-se ver, se em 1893 é certo que Lênin possuía uma crítica marxista  
consistente às teorias econômicas do narodismo liberal, não é possível afirmar com  
plena certeza o mesmo no que diz respeito ao plano das ações práticas mais imediatas,  
principalmente no âmbito político e jurídico. Portanto, quando Pachukanis e os autores  
brasileiros atribuem certa importância à atuação de Lênin como advogado durante os  
anos de 1892 e 1893, ignorando o fato de que possuímos pouquíssimos material  
bibliográfico sobre esse período, deixa de se considerar a possibilidade de que o  
jovem Ulianov pagasse ainda algum tributo às formas de atuação da tradição naródniki  
e dos democratas radicais de sua época.  
É preciso mencionar que Richard Pipes (1968, p. 26, tradução nossa), estudioso  
da história russa de posição conservadora, defende a tese de que a “evolução  
intelectual” de Lênin “passou por quatro fases”, sendo que “durante a primeira fase,  
que se estendeu de 1887 a 1892, Lênin simpatizou com a ala jacobina da  
[organização terrorista] Vontade do Povo”. Segundo o autor,  
praticamente todos os biógrafos de Lênin mencionam seus primeiros  
contatos com a Vontade do Povo (Narodnaia volia) [...]. Mesmo as  
poucas evidências documentais disponíveis para os estudiosos  
estrangeiros [não soviéticos] não deixam dúvidas de que Lênin passou  
os primeiros cinco ou seis anos de sua carreira revolucionária em meio  
aos elementos jacobinos mais extremistas da Vontade do Povo (PIPES,  
1968, p. 28, tradução nossa).  
A partir disso é que Richard Pipes defende que as “evidências disponíveis  
sugerem fortemente que, de 1892, ou no máximo 1893, até meados de 1895, Lênin  
foi” um “tipo de marxista de transição” que, “no fundo”, “ainda era um adepto da  
Vontade do Povo” (1968, p. 37, tradução nossa).  
Podemos mencionar também que, apesar de possuir uma valoração  
radicalmente diferente da que Pipes faz de Lênin, o historiador trotskista Tony Cliff  
afirma que antes  
que a fábrica de mitos stalinista começasse a operar, surgiram  
inúmeras provas de que, em sua juventude, Lênin foi influenciado pelo  
narodismo. Um testemunho dessa influência é V. V. Adoratski, o futuro  
diretor do Instituto Marx-Engels-Lênin. De acordo com ele, em 1905,  
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Lênin lhe disse que foi muito influenciado pelas ideias dos naródniks.  
Ele admitiu que, em 1888, havia apreciado muito esse movimento  
terrorista e que levou muito tempo para se livrar de suas ideias.  
“Durante seus últimos anos em Samara, entre 1892 e 1893, Lênin já  
era marxista, embora ainda houvesse nele alguns traços ligados ao  
Naródnaia Volia (ou seja, uma atitude especial em relação ao  
terrorismo).” (CLIFF, 2011, p. 27, tradução nossa).  
Nesse sentido, Cliff (2011, p. 27, tradução nossa) traz o relato de que Isaac  
Lalaiants social-democrata e bolchevique da estrita confiança de Lênin por toda vida  
–, “conhecia bem Lênin em Samara e detectou nele, em março de 1893, ‘certas  
simpatias pelo terror do Naródnaia Volia’”, tendo sido “essa inclinação” de Lênin “uma  
causa de conflito entre os dois”. Além disso, o autor afirma que “no outono de 1893”,  
quando “Lênin quis entrar em um círculo social-democrata petersburguês, o  
examinaram de perto quanto à questão do terrorismo, e foi decidido que estava muito  
favorável a ele”. Assim, continua Cliff,  
Vladímir teve que se dedicar a um estudo longo e exaustivo, não  
apenas porque o narodismo tinha raízes profundas, mas também  
porque [...] as linhas de demarcação entre o narodismo e o marxismo  
não estavam claramente definidas para a juventude radical da época.  
Outro motivo foi o fato de que as ideias do marxismo russo ainda não  
haviam permeado nenhum movimento ativo de trabalhadores” [...].  
Lênin precisou de anos de estudo para decidir sua posição a respeito  
do narodismo e do marxismo”. (CLIFF, 2011, p. 27-28, tradução  
nossa)  
Assim, se Lênin começou a “estudar O capital de Marx em algum momento de  
1889”, o historiador trotskista parece estar bem certo de que “isto, em si mesmo, não  
significa que ele renunciara ao narodismo”, já que os “naródniks também estudavam  
Marx” (CLIFF, 2011, pp. 28-29, tradução nossa). Por fim, Tony Cliff (2011, p. 29,  
tradução nossa), dessa vez baseado em documentos mais confiáveis, afirma que em  
“1919, respondendo a um questionário, Lênin deixou claro que havia se tornado um  
social-democrata [...] em 1893. Em 1920, respondendo a outro questionário, à  
pergunta sobre quando ele havia começado a participar do movimento revolucionário,  
ele escreveu: ‘1892-93’”.  
Evidentemente, tais afirmações reforçam nosso exercício de especulação a  
respeito de uma certa imaturidade, entre 1892 e 1893, daquilo que viria a ser o  
marxismo de Lênin posteriormente, no entanto, as fontes que apoiam as afirmações  
categóricas de Pipes são muito frágeis, isso quando ele nos fornece de fato alguma  
fonte. O autor navega por uma leitura psicologizante e moralizante tão caricata e típica  
dos biógrafos de Lênin visceralmente anticomunistas do século XX, que é difícil dar-  
lhe algum crédito. Quanto a Cliff, por mais que apresente um maior número de fontes  
bibliográficas, ele utiliza principalmente relatos de terceiros para embasar suas  
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conclusões, o que dificulta a robustez de suas afirmações.  
A bem da verdade, reproduzimos aqui tais passagens apenas para evidenciar  
como tal período da vida de Lênin é, além de pouco conhecido, de difícil investigação,  
sendo, por isso, passível de todo tipo de interpretação. O mais importante, no entanto,  
é registrar uma conclusão de Tony Cliff com a qual nossas pesquisas têm convergido:  
Os criadores do culto [stalinista a Lênin] foram ainda mais longe,  
atribuindo ao próprio Lênin qualidades sobre-humanas. Segundo eles,  
Lênin veio ao mundo totalmente preparado, era marxista e  
revolucionário desde quase sua infância; e de sua cabeça calva brota  
e se desenvolve bem formado e pronto o partido que está destinado  
a liderar e moldar a classe trabalhadora na revolução! A realidade,  
entretanto, foi muito diferente. Foram necessários meses, ou mesmo  
anos, de estudo e reflexão para que o jovem Lênin se tornasse um  
marxista. Primeiro, ele teve de romper com as ideias conservadoras  
de seu pai e, depois, com a perspectiva naródnik de seu irmão mais  
velho. (CLIFF, 2011, p. 24, tradução nossa)  
Parece-nos que, de certo modo, é dessa maneira descrita por Cliff que o jovem  
Lênin figura na concepção pachukaniana. Longe de afirmar que Pachukanis tenha sido  
um simples adepto do “culto” a Lênin, no entanto, parecem desproporcionais  
afirmações tão categóricas, como a de que “Lênin era um mestre nesse tipo de luta  
[como advogado]” (PACHUKANIS, 2017, p. 1906), diante do simples relato sobre o  
caso dos barqueiros de Samara. Nos parece uma posição muito mais laudatória que  
atribui ao jovem e inexperiente Lênin dos anos 1892 e 1893 “qualidades sobre-  
humanas” (CLIFF, 2011, p. 24, tradução nossa)3.  
Porém, é preciso registrar que se nossa hipótese a respeito de uma possível  
imaturidade do esquema tático leniniano até 1893 não passa de simples especulação  
a partir de alguns dados fragmentados da vida e da obra de Lênin difíceis de serem  
3
Além disso, é preciso ao menos ter em mente a observação que Peter Maggs faz em sua introdução  
ao texto de Pachukanis em sua edição britânica: “O ensaio a seguir foi a primeira tentativa de Pachukanis  
de buscar apoio antecipado para as sérias implicações da Teoria geral do direito e marxismo, nos  
volumosos, porém fragmentados, escritos de Lênin sobre o direito. Ele foi escrito no contexto de duas  
questões não resolvidas no período hesitante após a morte de Lênin em 1924. Que forma deve ser  
dada ao conteúdo das regras e diretrizes do partido? Qual deveria ser a atitude do Partido e do  
proletariado soviético em relação à demanda pelo direito das nações à autodeterminação? E, é claro,  
dentro da estrutura dos debates entre Bukhárin, Trótski e Stálin sobre a centralização e a doutrina do  
socialismo em um único país, essas questões não eram totalmente alheias. Pachukanis argumenta que  
um partido revolucionário deve seguir um curso que evite os perigos tanto da rejeição completa da luta  
legal quanto do fetichismo ligado às regras legais. A legalidade não é um ‘saco vazio’ que pode ser  
preenchido com um novo conteúdo de classe imediatamente após a revolução e, sob a Nova Política  
Econômica, a forma legal deve ser usada como uma arma em um programa de reeducação cultural. A  
resposta de Pachukanis a essas perguntas apareceu em uma coleção especial intitulada Revolução da  
Lei, editada por Stutchka e que incluía teóricos ilustres como Bukhárin, Adoratski e Razumovski. Essa  
coleção foi concebida como a primeira expressão sistemática dos juristas marxistas.” (MAGGS in  
PASHUKANIS, 1980, p. 132) Evidentemente, seria preciso um estudo mais completo do texto de  
Pachukanis para pudéssemos avaliar o rigor da argumentação de Maggs. Entretanto, se o ensaio  
pachukaniano sobre Lênin de fato é parte de um arcabouço argumentativo para uma disputa política, é  
possível compreender porque, ao menos no que se refere à questão da advocacia, as conclusões de  
Pachukanis parecem um tanto açodadas.  
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comprovados, também o é a suposição de que Lênin tenha sido um “advogado  
popular” ou que, durante o período 1892-1893, tenha tido qualquer atuação  
relevante nas lutas sociais através da advocacia.  
Portanto, diante de tais lacunas sobre o papel da advocacia na luta política de  
Lênin entre 1892 e 1893, é muito mais seguro e frutífero recorrer ao que o  
revolucionário russo de fato escreveu a esse respeito. Nesse sentido, como já  
dissemos, se não há textos nem mesmo na forma de correspondência privada que  
abordem este tema durante seus anos como advogado, ao menos no ano 1894, na  
obra Quem são os “amigos do povo” e como lutam contra os sociais-democratas?, ele  
se posicionará frontalmente contra as formas organizativas e de atuação prática dos  
naródniki liberais, incluindo aí a questão dos advogados.  
A oposição de Lênin às “pequenas ações”  
No debate contra a corrente narodista dos anos 1890, centrado no problema  
da expropriação das terras camponesas e na crescente divisão social do campesinato  
entre burguesia rural e proletariado agrícola, Lênin (2022, pp. 167-8) afirma que tais  
naródniki tardios “enterram suas cabeças como avestruzes para [...] não ver que estão  
testemunhando o processo de conversão da terra, da qual o campesinato está sendo  
arrancado, em capital, o processo de criação de um mercado interno”, e que, por isso,  
entoavam “frases humanitárias e benevolentes”, sendo estas “o alfa e o ômega de toda  
a sua ‘ciência’, de toda a sua ‘atividade’ política”. Assim, estes “amigos do povo”  
elevam esse remendo dócil e liberal da ordem atual a uma plena  
filosofia. “Uma pequena e vívida ação – argumenta com profundidade  
o sr. Krivenko – é muito melhor do que uma grande inatividade”. Que  
novo e inteligente. E então, continua ele, “uma pequena ação não é  
de forma alguma sinônimo de um pequeno objetivo”. Como exemplo  
da “expansão dessa atividade”, quando uma pequena ação se torna  
“adequada e significativa”, cita a ação de uma senhora pela a  
instalação de escolas; em seguida, a atividade de advogados entre o  
campesinato, expulsando os canalhas; a proposta de advogados se  
deslocarem até as províncias com sessões itinerantes nos tribunais  
distritais para a defesa dos réus; finalmente, já conhecido por nós, a  
instalação de armazéns de kustari: a expansão da atividade (na  
dimensão de um grande objetivo) deve consistir aqui na instalação de  
armazéns “pelas forças unidas dos zemstvos nos centros mais  
agitados” (LÊNIN, 2022, p. 168).  
Ao descrever de modo bastante irônico a forma de agir dos naródniki liberais  
através das chamadas “pequenas ações”, Lênin nos fornece exemplos de tais  
atividades, como é o caso da “instalação de escolas” por “senhoras” ricas, da  
implementação de armazéns coletivos para os chamados kustari termo que  
designava tanto as pequenas fábricas artesanais, como os pequenos capitalistas  
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proprietários dessas fábricas , bem como aquelas ações que aqui nos interessam mais  
particularmente, com é a atuação de advogados na defesa de camponeses enganados  
e processados por usurários e senhores de terra. E é precisamente a essa forma de  
atividade que Pachukanis (2017, p. 1906) se refere quando fala de um “tipo de  
‘ativista social’” – na Rússia do final do século XIX – para quem a “luta contra a  
arbitrariedade semi-servil asiática do estado proprietário de terras, ‘em nome da  
legalidade’ e estritamente por meios legais, era uma espécie de bandeira” e que  
“ninguém escarneceu mais causticamente essas pessoas que Lênin”.  
No mesmo sentido, o relato de Krupskaia sobre a ocasião em que conheceu  
pessoalmente Lênin em 1894 também nos traz algumas pistas da posição leniniana a  
respeito das “pequenas ações”:  
Lembro-me particularmente de um momento: surgiu a questão  
referente a quais caminhos deveríamos seguir. Por algum motivo, não  
havia consenso. Alguém (creio que Shevlyagin) disse que o trabalho  
do Comitê de Alfabetização era de grande importância. Vladimir Ilyich  
riu, e sua risada soou malévola e seca (nunca mais o ouvi rir daquele  
jeito).  
“Bem, se alguém quiser salvar o país trabalhando no Comitê de  
Alfabetização”, disse ele, “deixe-o ir em frente”. É preciso que nossa  
geração testemunhou, em sua juventude, a luta entre o Narodnaya  
Volya e o tsarismo. Tínhamos visto como os liberais, em princípio  
“simpáticos” a tudo, ficaram com medo de qualquer farfalhar e  
enfiaram o rabo entre as pernas após a repressão do Partido  
Narodnaya Volya. Partiram, então, a pregar a realização das  
“pequenas coisas”.  
O comentário sarcástico de Lenin era perfeitamente compreensível.  
Ele tinha vindo para discutir estratégias conjuntas de luta e teve de  
ouvir, ao invés disso, um apelo para distribuição de panfletos do  
Comitê de Alfabetização. (KRUPSKAYA, 2021, p. 58)  
Assim, é importante notar o significado de tais medidas para Lênin quando ele  
as classifica como um “remendo dócil e liberal da ordem atual”, isto é, medidas que  
recusam uma certa radicalidade, que partem de uma concepção liberal e que não  
pretendem mais que “remendar” a ordem social então vigente. O panorama dado por  
Krupskaia ajuda a explicar como as “pequenas coisas”, tal como o “Comitê de  
Alfabetização”, representavam uma posição amedrontada diante do tsarismo, uma  
posição covarde que se chocava com a radicalidade ainda que de cunho terrorista –  
dos narodovólets.  
Todas essas são, é claro, ações muito elevadas, humanas e liberais –  
“liberais” porque limparão o sistema burguês de produção de todas  
as suas restrições medievais e, assim, facilitarão a luta do trabalhador  
contra esse próprio sistema, que, é claro, não só não será afetado por  
essas medidas, mas, ao contrário, será fortalecido e tudo isso nós  
lemos há muito tempo em todas as publicações liberais russas. Não  
valeria a pena opor-nos a isso se não fossemos forçados pelos  
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cavalheiros da “RB” [Rússkoie Bogátstvo], que começaram a  
apresentar esses “princípios dóceis do liberalismo” CONTRA os  
sociais-democratas e, ao mesmo tempo, como lição a eles,  
censurando-os por renunciarem aos “ideais de seus pais”. E então não  
podemos deixar de dizer que é, no mínimo, divertido se opor aos  
sociais-democratas com a sugestão e a indicação de tal atividade  
liberal (ou seja, a serviço da burguesia) moderada e bem comportada.  
Quanto aos pais e seus ideais, deve-se observar que, por mais  
errôneas e utópicas que fossem as antigas teorias dos naródniki  
russos, de qualquer forma, eles tinham uma atitude ABSOLUTAMENTE  
negativa em relação a esses “princípios dóceis do liberalismo”. (LÊNIN,  
2022, pp. 168-9)  
É bem verdade que Lênin avalia que as “pequenas ações” dos “amigos do povo”  
– tratadas novamente de maneira cáustica como “ações muito elevadas, humanas e  
liberais” – não mereceriam em princípio sua oposição já que têm um certo sentido  
positivo quando buscam livrar “o sistema burguês de produção”, que florescia na  
Rússia de então, das “restrições medievais” que permaneciam. No entanto, é notável  
que, para ele, tais ações não têm em si a potencialidade de apontar para além do  
próprio “sistema burguês de produção”, o qual “não só não será afetado por essas  
medidas, mas, ao contrário, será fortalecido”.  
Mas o debate aqui se dá na medida em que os “amigos do povo” opõem tais  
medidas à forma de atuação dos sociais-democratas, isto é, aos marxistas de então.  
Para Lênin, que a essa altura se posicionava indubitavelmente como um social-  
democrata, essas “pequenas” ações eram liberais não apenas porque se opunham aos  
restolhos medievais, mas também porque trata-se de uma atividade dócil, “moderada  
e bem comportada” que, diretamente “a serviço da burguesia” russa, não é um tipo  
de ação radical ou revolucionária. De tal maneira, comparando os “amigos do povo”,  
os naródniki liberais dos anos 1890, com os chamados “pais”, isto é, os naródniki  
revolucionários dos anos 1860 e 1870, Lênin demonstra como que “por mais errôneas  
e utópicas que fossem as antigas teorias dos [primeiros] naródniki russos”, “eles tinham  
uma atitude ABSOLUTAMENTE negativa em relação a esses ‘princípios dóceis do  
liberalismo’” que agora reivindicavam os naródniki liberais.  
Mas isso foi há muito tempo, há tanto tempo que os “amigos do povo”  
tiveram tempo de esquecer completamente tudo isso e, com suas  
táticas, mostraram claramente que, na ausência de uma crítica  
materialista das instituições políticas, na ausência de uma  
compreensão do caráter de classe do estado moderno, é apenas um  
passo do radicalismo político para o oportunismo político. (LÊNIN,  
2022, p. 169)  
A explicação mais profunda de Lênin é que as “táticas” dos “amigos do povo”  
padecem de “uma crítica materialista das instituições políticas”, “de uma compreensão  
do caráter de classe do estado moderno”, o que faz com que o “radicalismo político”  
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utópico dos velhos naródniki transforma-se facilmente em “oportunismo político” nas  
mãos dos naródniki dos anos 1890. Vemos assim que se estas “pequenas ações” não  
são propriamente posições reacionárias que necessariamente mereçam um combate  
ativo por parte dos marxistas, elas são demasiadamente “dóceis” pois recusam um  
radicalismo e redundam, inevitavelmente, em uma forma de ação oportunista, isto é,  
um tipo de ação que se baseava.  
Ao defender o tipo de ação dos primeiros sociais-democratas russos tal como  
Plekhânov contra as acusações de Mikhailovski, Lênin afirma:  
Era natural que os sociais-democratas dirigissem toda a sua atenção  
e depositassem todas as esperanças nesta classe [trabalhadora], que  
reduzissem o seu programa ao desenvolvimento da sua consciência  
de classe e orientassem todas as suas atividades em direção ao auxílio  
à elevação desta classe a fim de travar uma luta política direta contra  
o regime atual, e no sentido de atrair todo o proletariado russo para  
essa luta. (LÊNIN, 2022, p. 88)  
Como fica claro, se nos basearmos nos textos que de fato foram escritos e  
publicados por Lênin em 1894, a forma fundamental de luta reivindicada por ele  
passava muito longe das “pequenas ações” dos naródniks liberais, sendo ela a “luta  
política direta contra o regime atual” levada a cabo pela classe trabalhadora. Mais  
especificamente, sua posição coloca a “tarefa direta de ORGANIZAR UM PARTIDO  
SOCIALISTA DOS TRABALHADORES” (LÊNIN, 2022, p. 217) e que a “atividade política  
dos sociais-democratas consiste na promoção do desenvolvimento e a organização do  
movimento de trabalhadores na Rússia”, sendo necessário alcançar “uma luta  
organizada de TODA a CLASSE trabalhadora russa direcionada contra o regime  
burguês” (LÊNIN, 2022, p. 222). A política, portanto, principalmente através da ação  
de um partido a ser organizado, era o terreno privilegiado em detrimento das  
“pequenas ações”.  
Portanto, é na classe trabalhadora que os sociais-democratas  
concentram todas as suas atenções e todas as suas atividades4.  
4 É notável como, a essa altura do desenvolvimento das concepções teóricas leninianas, os trabalhadores  
rurais e os camponeses parecem ainda desempenhar um papel menor na luta política. “Se à percepção  
da ideia da luta de classes entre o proletariado e a burguesia conseguem aderir, por enquanto, apenas  
os trabalhadores urbanos fabris-industriais, e não os ‘ingênuos e simplórios’ batráki [trabalhadores  
rurais/camponeses assalariados], ou seja, precisamente as pessoas que perderam essas qualidades  
encantadoras tão intimamente ligadas aos ‘fundamentos seculares’ e ao ‘espírito comunitário’, – isso  
apenas comprova a correção da teoria dos sociais-democratas sobre o trabalho progressivo e  
revolucionário do capitalismo russo.” (LÊNIN, 2022, p. 137). Se em relação aos trabalhadores  
assalariados rurais o jovem Ilitch acentua que “por enquanto” eles não haviam aderido à “ideia da luta  
de classes entre o proletariado e a burguesia”, em relação aos camponeses, em 1899, Lênin (1982, p.  
204) ainda acreditava que “embora a propriedade fundiária adquira formas distintas na Rússia e na  
França, aplica-se perfeitamente aos camponeses russos o que Marx disse do pequeno camponês francês:  
‘Os camponeses parcelários constituem uma enorme massa, cujos membros vivem todos na mesma  
situação, mas que não se unem uns aos outros por relações variadas. Seu modo de produção, ao invés  
de conduzi-los a relações recíprocas, isola-os. Esse isolamento é ainda agravado pelo mau estado dos  
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Quando seus representantes avançados tiverem dominado as ideias  
do socialismo científico, a ideia do papel histórico do trabalhador  
russo, quando essas ideias estiverem disseminadas, e quando  
organizações estáveis estiverem formadas entre os trabalhadores para  
transformar a guerra econômica dispersa atual dos trabalhadores em  
luta de classes consciente aí o TRABALHADOR russo, indo à frente  
de todos os elementos democráticos, vai derrubar o absolutismo e  
liderar o PROLETARIADO RUSSO (lado a lado com o proletariado de  
TODOS OS PAÍSES) pelo caminho direto da luta política aberta para A  
VITORIOSA REVOLUÇÃO COMUNISTA. (LÊNIN, 2022, pp. 224-5)  
Fica evidente, portanto, como que, a partir de 1894, Lênin já tinha traçado com  
clareza que sua forma de atuação se daria através da “atividade política” de promover  
o “desenvolvimento e a organização do movimento de trabalhadores”, transformando  
a “guerra econômica dispersa” em “luta de classes consciente” para “derrubar o  
absolutismo” e avançando para a revolução comunista “pelo caminho direto da luta  
política aberta”.  
E mesmo em relação às questões que diziam respeito ao campesinato, as  
propostas de Lênin parecem estar bem distantes das chamadas “pequenas ações” dos  
“amigos do povo”:  
[...] falar sobre a ausência de direitos dos camponeses como causa de  
sua expropriação e exploração só pode, é claro, ser feito pelos  
senhores Iujákov e V.V., mas a opressão da administração sobre o  
campesinato não apenas é indiscutível, como também não se trata de  
uma simples opressão, e sim de uma direta humilhação dos  
camponeses, tratados como uma “plebe desprezível”, que deve estar  
subordinada aos nobres proprietários de terras, para quem o desfrute  
dos direitos civis comuns é concedido apenas como uma graça  
especial (a migração, por exemplo), e que qualquer pompadour5 pode  
controlar como se fossem pessoas trancafiadas em uma casa de  
trabalho forçado. E os sociais-democratas apoiam incondicionalmente  
a reivindicação de plena restauração dos direitos civis dos  
camponeses, abolição total de todos os privilégios da nobreza,  
eliminação da tutela burocrática sobre o campesinato e concessão de  
meios de comunicação francês e pela miséria dos camponeses. A exploração do seu campo de produção,  
a parcela [Produktiοnsfeld] não permite nenhuma divisão do trabalho, nenhuma utilização de métodos  
científicos e, por consequência, nenhum desenvolvimento diferenciado, nenhuma variedade de talentos,  
nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase autossuficiente, produz  
diretamente a maior parte do que consome e procura seus meios de subsistência antes no intercâmbio  
com a natureza do que no intercâmbio com a sociedade. A parcela, o camponês, a sua família; ao lado,  
outra parcela, outro camponês, outra família. Certo número amontoado dessas unidades constitui uma  
aldeia e um amontoado de aldeias, um departamento. Assim, a grande massa da nação francesa se  
constitui por uma simples adição de grandezas homônimas mais ou menos como batatas em um saco  
constituem um saco de batatas.’ (Der achtzehnte Brumaire des Louis Bοnaparte. Hamburgo, 1885 p.  
9899). Certamente, essa transposição da concepção marxiana sobre os camponeses franceses para  
os camponeses russos confrontaria não apenas a posição de Marx sobre o campesinato russo da  
obshchina (cf. MARX; ENGELS, 2013), como a própria posição mais tardia de Lênin, principalmente após  
1905, a respeito desta classe.  
5
A palavra “помпадур [pompadur]” em russo é um termo pejorativo que deriva do nome de Madame  
de Pompadour, tida como amante do rei Luís XV da França, que, na Rússia, passou a ser usada para  
descrever uma pessoa arrogante, pretensiosa e de elevada posição social, que exerce seu poder de  
maneira desdenhosa ou tirânica, muitas vezes abusando de sua autoridade para manipular e controlar.  
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autonomia a eles (LÊNIN, 2022, p. 211).  
Como se vê, ao ironizar os “senhores Iujákov e VV”, intelectuais naródniks  
liberais, Lênin discorda que de seja a “ausência de direitos” a causa da “expropriação  
e exploração” dos camponeses russos. Na verdade, o que está implícito na posição do  
jovem revolucionário é que a ruína econômica do campesinato naquelas décadas –  
além das reminiscências de um regime de servidão na prática não plenamente abolido  
– era a verdadeira base dessa “expropriação e exploração”. Lênin demarca aqui com  
clareza sua diferença com a teoria naródniki ao apontar a origem da “expropriação e  
exploração” dos camponeses nas relações econômicas e não na “ausência de direitos”.  
No entanto, Lênin também não deixa de demarcar que é “indiscutível” a  
“opressão da administração sobre o campesinato”, e mais que uma “simples opressão”,  
tratava-se de “uma direta humilhação dos camponeses, tratados como uma ‘plebe  
desprezível’”. Porém, sua proposta não é a atividade de advogados entre o  
campesinato” ou a “proposta de advogados se deslocarem até as províncias com  
sessões itinerantes nos tribunais distritais para a defesa dos réus” (LÊNIN, 2022, p.  
168), mas sim de que “os sociais-democratas”, através de seu partido socialista de  
trabalhadores, apoiem “incondicionalmente a reivindicação de plena restauração dos  
direitos civis dos camponeses, abolição total de todos os privilégios da nobreza,  
eliminação da tutela burocrática sobre o campesinato e concessão de autonomia a  
eles” (LÊNIN, 2022, p. 211). Trata-se, portanto, de uma luta política direta contra o  
estado tsarista. E aqui cumpre papel aquela necessária “crítica materialista das  
instituições políticas” (LÊNIN, 2022, p. 169) ausente no pensamento liberal-naródnik.  
A esse respeito, Lênin, em uma nota de rodapé, chama atenção para uma  
“instituição impressionantemente reacionária, que chamou relativamente pouca  
atenção de nossos revolucionários”, que “é a burocracia nacional, que de facto (de  
fato, na prática) governa o estado russo”.  
Alimentada principalmente pelos ráznotchintsev6, essa burocracia é,  
tanto por sua origem, quanto por sua função e natureza de suas  
atividades, profundamente burguesa, mas o absolutismo e os enormes  
privilégios políticos dos nobres proprietários de terras lhe conferiram  
qualidades particularmente nocivas. É como uma biruta que orienta  
sua tarefa principal para combinar os interesses dos proprietários de  
terras e da burguesia. É um judasinho [иудушка; judushka] que usa  
suas simpatias e conexões com o sistema de servidão para enganar  
6
A palavra “разночинцев” se refere aqui a membros da chamada intelligentsia provenientes de várias  
classes sociais. No contexto histórico russo dos séculos XVIII e XIX, designava uma camada social  
composta por pessoas de diferentes origens não nobres, incluindo filhos de comerciantes, camponeses,  
clérigos e pequenos funcionários, que se destacavam por sua educação e envolvimento em atividades  
intelectuais e políticas. Durante o século XIX, os ráznotchintsev eram uma força significativa na sociedade  
russa e não só compunham a burocracia estatal como também, muitas vezes, participaram de  
movimentos por reformas políticas e sociais, tendo sido influentes no movimento naródnik.  
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trabalhadores e camponeses, promovendo, sob o disfarce de  
“proteção do economicamente fraco” e “tutela” sobre eles contra o  
kulak e o usurário, medidas que reduzem os trabalhadores à condição  
de “plebe desprezível”, entregando suas cabeças ao proprietário  
senhorial de terras [крепостнику-помещику] e tornando-os ainda mais  
indefesos contra a burguesia. É o hipócrita mais perigoso, instruído  
pela experiência dos mestres da reação da Europa ocidental e que  
esconde habilmente seus desejos araktcheievistas7 sob as folhas de  
figo das frases dos amantes do povo. (LÊNIN, 2022, pp. 212-3)  
É notável a observação de Lênin de que a burocracia russa que de fato  
governava o estado russo não era um simples restolho nobiliárquico, mas sim uma  
complexa “instituição” “profundamente burguesa” que, ao mesmo tempo, era marcada  
pelo “absolutismo” e pelos “enormes privilégios políticos dos nobres proprietários de  
terras”. Essa burocracia, que recrutava seus quadros principalmente entre as classes  
sociais intermediárias liberais, unia a moderna “experiência dos mestres da reação da  
Europa ocidental” – isto é, as diversas formas sociais correspondentes à fase de  
dominação social das mais avançadas burguesias europeias ao arcaísmo do  
absolutismo tipicamente russo. Temos aqui um papel complexo e contraditório desta  
burocracia que promove “sob o disfarce de ‘proteção do economicamente fraco’ e  
‘tutela’ sobre” trabalhadores e camponeses “contra o kulak e o usurário, medidas que  
reduzem os trabalhadores à condição de ‘plebe desprezível’” e entregam “suas  
cabeças ao proprietário senhorial de terras”.  
Em outra nota de rodapé, o jovem revolucionário russo reafirma isso ao postular  
que  
os “amigos do povo” são os piores reacionários quando dizem que a  
tarefa natural do estado é proteger os economicamente fracos (assim  
deveria ser, segundo a sua moral banal e envelhecida), enquanto toda  
a história russa e a política interna testemunham que a tarefa do nosso  
estado é proteger apenas os proprietários senhoriais de terra e os  
grandes burgueses e reprimir de forma brutal qualquer tentativa dos  
economicamente fracos” de se defenderem. E essa, é claro, é a sua  
tarefa natural, porque o absolutismo e a burocracia estão  
completamente impregnados do espírito senhorial-burguês8, e  
porque, no domínio econômico, a burguesia reina e governa de forma  
7 Referência ao general Aleksei Andreievitch Araktcheiev, que ascendeu durante o reinado de Pavel I e  
de Aleksandr I, ficando conhecido por sua violência e brutalidade.  
8
É preciso destacar aqui que a expressão russa “крепостнически-буржуазным [krepostnitcheski-  
burjuaznim]” é normalmente traduzida como “feudal-burguês”. No entanto, esta expressão é  
originalmente constituída pela palavra “крепостнически”, que tem sua raiz em “крепость [krepost]” –  
algo como “fortaleza” – e refere-se ao sistema de servidão russo, o chamado “крепостное право  
[krepostnoie pravo]”, que, se tomado em sua literalidade, poderia ser traduzido como “direito de  
servidão” ou “lei de servidão”. Além de existir na língua russa uma palavra específica para “feudal” –  
феодальный [feodalnii]” –, nos parece que “крепостнически” tem um vínculo estreito com a  
especificidade da servidão russa, a qual, muitas vezes, foi comparada com um tipo de escravidão (cf.  
STANZIANI, 2018). Assim, na medida em que “крепостнически” designa literalmente algo “relativo ao  
sistema de servidão”, mas que a tradução “espírito servil-burguês” não expressaria o sentido original  
em nossa língua, optamos pela tradução “espírito senhorial-burguês”.  
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incontestável, mantendo o trabalhador “mais calmo que a água, menor  
que a relva” (LÊNIN, 2022, p. 171).  
Diferentemente dos naródniki “amigos do povo”, a “crítica materialista das  
instituições políticas” permite que Lênin veja que “a tarefa natural do estado” russo  
não “é proteger os economicamente fracos”, mas sim de “proteger apenas os  
proprietários senhoriais de terra e os grandes burgueses”. O que levava o narodismo  
liberal a defender a atuação através das “pequenas ações” – como “a atividade de  
advogados entre o campesinato”, “a proposta de advogados se deslocarem até as  
províncias com sessões itinerantes nos tribunais distritais para a defesa dos réus” e “a  
instalação de armazéns de kustari” (LÊNIN, 2022, p. 168) – era a crença de que seria  
possível convencer o estado russo, por meio destas “pequenas ações”, de  
desempenhar aquela que seria sua “tarefa natural”, isto é, a proteção dos  
“economicamente fracos”. Entretanto, isso contrasta com o fato de que o “absolutismo  
e a burocracia” do estado russo estavam “completamente impregnados do espírito  
senhorial-burguês” e, portanto, tinha como “tarefa natural” “reprimir de forma brutal  
qualquer tentativa dos ‘economicamente fracos’ de se defenderem”.  
Mesmo que a “ausência de direitos dos camponeses”, através da “opressão da  
administração sobre o campesinato”, da subordinação “aos nobres proprietários de  
terras, para quem o desfrute dos direitos civis comuns é concedido apenas como uma  
graça especial” (LÊNIN, 2022, p. 211), remeta principalmente às formas feudais, Lênin  
não defende uma atuação por uma via jurídica, por assim dizer. Um bom exemplo disso  
é que, ao tratar do monopólio de certos ramos da produção na Rússia que contava  
com a chancela do estado tsarista –, Lênin afirma que “esses resquícios da ordem  
medieval apenas acrescentam às desgraças capitalistas ainda desgraças piores as  
medievais”, de modo que, sem “dúvida, é necessário eliminá-los e quanto mais rápido  
e mais radical for, melhor [...]” (LÊNIN, 2022, p. 161). Segundo o revolucionário  
marxista, se as “pequenas ações” – “esse remendo dócil e liberal da ordem atual” –  
não mereceriam uma oposição por parte dos sociais-democratas em princípio (LÊNIN,  
2022, p. 168), sua decisão é pelo método “mais rápido” e “mais radical” que de fato  
elimine os “resquícios da ordem medieval”, mesmo “para que, ao limpar a sociedade  
burguesa das correntes semi-servis que herdou, se libertem as mãos da classe  
trabalhadora, facilitando sua luta contra a burguesia” (LÊNIN, 2022, p. 161).  
Assim, diante dessa ausência de direitos civis dos camponeses que,  
certamente, seria o palco ideal para aqueles que propõem uma espécie de “advocacia  
popular” –, para Lênin, a resolução da questão se dá no âmbito político do problema,  
na medida em que a luta política toca no “espírito senhorial-burguês”, pois não só  
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Lênin como advogado: um problema inicial no estudo do direito na obra leniniana  
limpará a “sociedade burguesa” russa das “correntes semi-servis que herdou”, como  
também preparará a classe trabalhadora para a burguesia que, no “domínio  
econômico”, “reina e governa de forma incontestável” (LÊNIN, 2022, p. 171).  
Nos parece, portanto, que a concepção de luta revolucionária leniniana, que  
estabelecia como “tarefa direta” a organização de um partido socialista de  
trabalhadores (LÊNIN, 2022, p. 217), tem apoio precipuamente na esfera da política,  
não constituindo as demandas jurídicas uma forma de luta tática. Mesmo quando se  
trata da “reivindicação de plena restauração dos direitos civis dos camponeses”, de  
“abolição total de todos os privilégios da nobreza” e de “eliminação da tutela  
burocrática sobre o campesinato e concessão de autonomia a eles” (LÊNIN, 2022, p.  
211), Lênin fala de um apoio dos sociais-democratas a tais demandas camponesas  
que tem como pressuposto uma luta política contra o estado “senhorial-burguês”  
tsarista em detrimento das “pequenas ações” dos naródniki liberais, como “a atividade  
de advogados entre o campesinato” e “a proposta de advogados se deslocarem até  
as províncias com sessões itinerantes nos tribunais distritais para a defesa dos réus”  
(LÊNIN, 2022, p. 168).  
Conclusão  
Tendo tudo isto posto, é necessário observar a respeito da posição de  
Pachukanis que se, por um lado, ele nunca cogitou a ideia de uma “advocacia popular”  
propriamente dita, por outro lado, a concepção defendida por ele da advocacia como  
“método de luta” de Lênin demonstrou certa fragilidade diante de alguns fatos. Em  
primeiro lugar, temos a vulnerabilidade da narrativa do caso dos barqueiros de Samara,  
a qual parece muito mais uma anedota do que propriamente um evento da vida de  
Lênin passível de alguma apreciação teórica. Na verdade, a fragilidade dessa narrativa  
é mais um dos diversos pontos da biografia do jovem Lênin sobre o qual temos poucas  
certezas. Como vimos, a falta de uma bibliografia consistente a respeito das  
concepções de formas de luta defendidas por Lênin antes de 1894 dão ensejo a  
diversos tipos de elaborações a respeito de um vínculo do jovem revolucionário às  
táticas do antigo narodismo russo, hipóteses estas tão carentes de comprovação cabal  
quanto aquela hipótese pachukaniana de que a advocacia configurou como “método  
de luta” leniniano. Além do mais, a desconsideração da possibilidade de que Lênin  
tenha exercido a advocacia de modo precipuamente profissional no período 1892-  
1893 como Krausz parece sugerir torna essa posição ainda menos sustentável.  
No que diz respeito a Júlio Moreira, Ricardo Pazello e Pedro Ferreira, a  
fragilidade de origem do caso dos barqueiros não só é transmitido de Pachukanis a  
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Pedro Rocha Badô  
eles, como também a afirmação da existência de uma “advocacia popular”  
propriamente dita se choca com a robusta argumentação de Lênin contra as “pequenas  
ações” dos “amigos do povo”, como a atuação e a assistência de advogados aos  
camponeses, a partir de 1894. Como vimos, já em Quem são os “amigos do povo” e  
como lutam contra os sociais-democratas?, há uma clareza no texto leniniano ao  
estabelecer que sua forma de luta baseava-se na organização de um partido social-  
democrata, privilegiando pelo menos até aquele momento a atuação entre os  
trabalhadores fabris urbanos e levando a cabo uma luta política contra o estado  
tsarista – de “espírito senhorial-burguês” – e, ao mesmo tempo, contra a burguesia  
russa, que, no “domínio econômico”, reinava incontestavelmente na Rússia.  
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Lênin como advogado: um problema inicial no estudo do direito na obra leniniana  
GRINGER, K.; REIS, D. A. Instituições nefandas: o fim da escravidão e da servidão  
no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui  
Barbosa, 2018.  
Como citar:  
BADÔ, Pedro Rocha. Lênin como advogado: um problema inicial no estudo do direito  
na obra leniniana. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 234-255, 2025.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.777  
Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao  
concreto: a assim chamada questão de método  
Pashukanis, Marx, and the path from the abstract to  
the concrete: the so-called question of method  
Marcos Antônio Nascimento de Castilho*  
Resumo: Pretendemos com esse artigo abordar  
algumas diferenças de tratamento sobre a  
“questão de método” entre Pachukanis, em  
Teoria geral do direito e marxismo, e Marx, na  
“Introdução” de 1857. Destacamos que o  
caminho do abstrato ao concreto, presente em  
Marx, é interpretado de forma distinta por  
Pachukanis. De início, com o objetivo de  
apreender o sentido que o pensador soviético dá  
à palavra “método”, passamos pelo seu debate  
com autores da teoria geral do direito, em  
especial os neokantistas e adeptos das teorias  
sociológicas e psicológicas do direito. Feito esse  
trabalho, passamos a explicitar as diferenças de  
tratamento do tema entre Pachukanis e Marx,  
evidenciando a ausência de uma questão de  
Abstract: In this article, we seek to address  
certain differences in the treatment of the  
“question of method” between Pashukanis, in  
General theory of law and Marxism, and Marx, in  
the 1857 “Introduction”. We emphasize that the  
path from the abstract to the concrete, found in  
Marx, is interpreted differently by Pashukanis.  
To begin, with the aim of apprehending the  
meaning the Soviet thinker assigns to the term  
“method,” we examine his debate with authors  
in general legal theory, especially Neo-Kantians  
and  
proponents  
of  
sociological  
and  
psychological theories of law. After this  
groundwork, we proceed to elucidate the  
differences in how Pashukanis and Marx  
approach the topic, highlighting the absence of  
a “question of method” in Marxian thought.  
Subsequently, we explain how, in Marx, the  
discussion of the movement from the abstract  
to the concrete is much more closely associated  
with the distinction between the mode of  
exposition and the mode of investigation, as  
well as with the manner in which thought  
apprehends the concrete, rather than  
constituting a question of method as  
Pashukanis frames it to a certain extent. Finally,  
we conclude our reflections by addressing the  
problematic of the order of categories: for  
Pashukanis, the apprehension of the concrete  
by thought corresponds to the historical order  
in which the categories emerge in reality itself,  
whereas for Marx, this order must reflect the  
internal relation among abstractions in  
civilbourgeois society. This implies the  
historical character of these abstractions, but  
not the historicism as understood by  
Pashukanis.  
método  
no  
pensamento  
marxiano.  
Posteriormente, explicamos como a discussão do  
caminho do abstrato ao concreto está, em Marx,  
muito mais associada à distinção entre modo de  
exposição e modo de investigação, assim como  
no modo de apreensão do concreto pelo  
pensamento, do que em uma questão de  
método, como Pachukanis faz até certo ponto.  
Ao fim, encerramos as reflexões com a  
problemática da ordem das categorias: Para  
Pachukanis, a apreensão do concreto pelo  
pensamento corresponde à ordem histórica de  
surgimento das categorias na realidade mesma,  
enquanto, para Marx, essa ordem deve refletir a  
relação interna entre as abstrações na sociedade  
civil-burguesa, e isso implica no caráter histórico  
dessas abstrações, mas não em um historicismo  
como entende Pachukanis.  
Palavras-chave: Marx; Pachukanis; “Introdução”  
de 1857; Teoria geral do direito e marxismo;  
questão de método.  
Keywords:  
Marx;  
Pashukanis;  
1857  
Introduction; General theory of law and  
Marxism; question of Method..  
*
Mestrando em filosofia pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). E-mail:  
marcoscst321@gmail.com. Orcid: 0000-0003-0514-636X.  
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nova fase  
 
Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
Introdução  
[...] A diferença entre as ciências se baseia, em larga medida, nos diferentes  
métodos de aproximação da realidade”, assim começa Pachukanis o primeiro capítulo  
de sua obra mais conhecida, Teoria geral do direito e marxismo, que aqui optamos por  
resumir à sigla TGDM. É, para além de qualquer dúvida, o trabalho mais notório até  
então em se tratando de crítica marxista do direito, e mais especificamente da teoria  
geral do direito (cf. NAVES, 2000). Portanto, é importante dizer que Pachukanis é um  
pensador com muitos méritos, e parte deles está justamente na empreitada que ele  
próprio se encarregou: elaborar uma crítica marxista à teoria geral do direito  
preponderante de seu tempo, que em um plano mais amplo se realiza em uma crítica  
do direito enquanto tal, aglutinando concomitantemente uma leitura perspicaz dos  
dois capítulos iniciais do primeiro livro de O capital mas não só, diga-se de passagem  
, e uma rejeição ao que estava posto como filosofia do direito (cf. SARTORI, 2015b).  
Contudo, mesmo com todos seus esforços (reconhecidos entre adeptos e críticos de  
sua teoria1), é de máxima importância fazer avançar tal crítica, mesmo que isso  
signifique um retorno a Marx. Na verdade, o próprio autor de TGDM traça uma  
equivalência metodológica em relação ao filósofo alemão, algo que, como veremos, é  
passível de uma análise mais minuciosa. Por óbvio, isso não redunda em dizer que o  
pensador soviético não é relevante, muito pelo contrário, significa entendê-lo como  
um teórico incontornável no avanço da crítica marxista ao direito, e inclusive lê-lo nos  
próprios termos expostos em Teoria geral do direito e marxismo, enquanto alguém  
que produziu tal livro objetivando não “um lugar de honra na orientação marxista da  
teoria geral do direito”, mas “em larga medida, para o autoesclarecimento”  
(PACHUKANIS, 2017b, p. 60).  
Acerca da equivalência metodológica da qual tratamos, Pachukanis mesmo, ao  
debater a abordagem de Marx sobre as abstrações na “ciência econômica”,  
especificamente sobre a problemática, colocada na Introduçãode 1857, acerca do  
concreto “população” que analisaremos detidamente mais a frente, infere que a  
reconstituição da totalidade concreta passa pelo estabelecimento de definições mais  
simples, e que “tais observações são inteiramente aplicáveis à teoria geral do direito”  
(PACHUKANIS, 2017b, p. 82). O mesmo ocorre em outra passagem, quando o  
pensador soviético, em alusão à mesma introdução citada, afirma: “o que Marx diz aqui  
das categorias econômicas é totalmente aplicável às categorias jurídicas”  
1
Entre adeptos, o professor Márcio Bilharinho Naves afirma que “Teoria geral do direito e marxismo  
teve o efeito de uma pequena revolução teórica na jurisprudência” (NAVES, 2000, p. 16). Entre críticos,  
o professor Vitor Sartori reconhece o autor russo como “alguém de enorme importância para o campo  
da crítica marxista ao direito” (SARTORI, 2015b, p. 37).  
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(PACHUKANIS, 2017b, p. 85). Portanto, não nos parece banal que Pachukanis, no  
capítulo destinado a tratar sobre o método, remeta a Marx, e mais, remeta à  
Introduçãode 1857. De fato, ele reconhece uma “identidade metodológica”, se  
assim podemos dizer, entre seu trabalho e O capital, mesmo que em seu caso se trate  
de uma iniciativa primeira, na apresentação daquilo que seria o mais abstrato para o  
direito, já que por limitações expositivas2 sua obra não constitua juridicamente o  
método que ele próprio se diz valer.  
Essa equivalência a que nos referimos não veio somente de Pachukanis. Na  
verdade, a recepção que o autor teve no Brasil também passou pelo reconhecimento  
acrítico da identidade entre o método pachukaniano e o “método marxiano”3. Essa  
recepção foi feita pelo professor Márcio Bilharinho Naves, que afirma que  
A teoria geral do direito e o marxismo teve o efeito de uma pequena  
revolução teórica na jurisprudência. Pachukanis, rigorosamente,  
retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao direito  
encontradas em O Capital e não seria exagero dizer que ele é o  
primeiro que verdadeiramente as lê mas, principalmente, ele retorna  
à inspiração original de Marx, ao recuperar o método marxiano.  
(NAVES, 2000, p. 16, grifo nosso)  
Portanto, a questão da relação metodológica entre Pachukanis e Marx adquire  
relevância na medida em que não apenas o autor soviético compreende estar próximo  
do filósofo alemão a esse respeito, mas também o intelectual brasileiro que  
recepcionou seu pensamento no Brasil compartilha de tal posição. A discussão acerca  
da necessidade do retorno a Marx ganha agora uma concretude. Primeiro porque  
compreendemos que o pensamento do autor de O capital teve um destino trágico,  
que começou com os pensadores da II Internacional e conheceu sua decadência  
absoluta com a vulgata stalinista (cf. VAISMAN, 1996, p. 34). Em outros ambientes  
para além do russo, Marx esteve ora nas mãos da especulação epistemologista, ora  
nas mãos dos politicistas (cf. VAISMAN, 1996). Posições essas que entendemos serem  
formas de descaracterização do pensamento marxiano, e mais, descaracterização da  
revolução filosófica engendrada pelo velho mouro, constituída a partir da centralidade  
2
Teoria geral do direito e marxismo é um ensaio e adere a uma forma expositiva mais livre, por assim  
dizer, ao passo que O capital, por ser produto de uma investigação mais densa e sistemática, apresenta  
uma estrutura definida, basta notar que de 1857 a 1867 Marx se debruçou a buscar a forma expositiva  
mais adequada de sua pesquisa (cf. ROSDOLSKY, 2001). Claro, podemos traçar certas correlações na  
exposição de TGDM com as exposições dos autores da teoria geral do direito de sua época, mas mesmo  
isso ainda não é suficiente para cravarmos uma posição a respeito. Para isso, é necessária uma pesquisa  
específica sobre o tema, que evidencie para além da exposição do texto as implicações que a adoção  
de tal exposição tem no conteúdo da obra, mesmo considerando se tratar de uma exposição difusa.  
Obviamente não faremos isso nesse texto por se distanciar daquilo que é nosso objeto.  
3 Colocamos a expressão entre parênteses porque acreditamos que não cabe falar em método na obra  
de Marx, ao menos não no sentido que a palavra adquiriu após a morte do filósofo alemão, isso será  
abordado com a devida complexidade adiante, mas justificamos o uso da expressão já que o autor que  
estamos lidando nesse exato momento, a saber, Márcio Bilharinho Naves, escreve nesses termos.  
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da “problemática da autoconstrução do homem, ou sumariamente, o devir homem do  
homem” (CHASIN, 1989, p. 30). Disso decorre a necessidade do projeto de  
renascimento do marxismo, não como “uma interrogação puramente acadêmica ou  
erudita” (ALVES; VAISMAN, 2009, p. 9), mas para compreender a realidade histórica  
do tempo presente e poder superá-la.  
Segundo, parece-nos importante um retorno a Marx especialmente em se  
tratando de Pachukanis, já que o autor soviético tem em O capital uma base importante  
para o desenvolvimento de sua teoria, portanto, nada mais adequado do que averiguar  
na própria fonte aquilo que se está sendo colocado a título de crítica marxista ao  
direito, sendo imprescindível para tal tarefa, enquanto primeiro passo, a averiguação  
da compreensão pachukaniana acerca da obra magna marxiana. Em nosso caso,  
tratamos daquilo que o autor soviético compreende enquanto método em Marx. Para  
tanto, primeiramente exporemos a posição filosófica de Pachukanis acerca do método  
na teoria geral do direito, diferenciando da posição marxiana sobre o modo do  
pensamento de se apropriar do concreto; logo em seguida, debateremos como  
Pachukanis entende a acepção de método na Introduçãode 1857, enfatizando o  
modo de exposição de O capital como exemplo, e se tal compreensão está alinhada  
de fato ao que está posto em Marx.  
Pachukanis contra o método da teoria geral do direito: em busca do  
método na crítica à economia política  
Pachukanis, ao discutir as tarefas de uma teoria geral do direito (TGD), afirma  
que ela pode ser definida como o desenvolvimento mais geral dos conceitos jurídicos  
fundamentais, dentre os quais, norma jurídica, sujeito de direito, relação jurídica, etc.  
(cf. PACHUKANIS, 2017b, p. 67). Trata-se, portanto, de uma teoria que opera em um  
nível maior de abstração, buscando identificar os elementos mais gerais e comuns a  
todas as manifestações do direito, independentemente de seu conteúdo específico. A  
TGD, nesse sentido, fornece conceitos que atravessam os diversos ramos do direito –  
do direito civil ao direito internacional , mantendo um caráter lógico e sistemático  
que não depende das determinações concretas assumidas por esses conceitos em  
contextos jurídicos particulares.  
O autor soviético compreende que tais conceitos são resultados justamente de  
uma elaboração lógica das normas que estão postas no direito positivo e “representam  
um produto superior e mais recente de uma criação consciente, quando comparados  
com as relações jurídicas que se formam espontaneamente e as normas que as  
expressam” (PACHUKANIS, 2017b, p. 67). Contudo, para Pachukanis, os filósofos  
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neokantistas encaram esses conceitos fora da experiência da qual emergem e, em  
última instância, possibilitam essa própria experiência, enquanto condição de  
possibilidade. Para os neokantistas, a “ideia de direito4 não precede a experiência  
temporalmente, mas tão somente em termos lógico-epistemológicos, algo que  
Pachukanis entende como um retorno à escolástica medieval (PACHUKANIS, 2017b, p.  
68).  
A conclusão a que chega o pensador russo é que “o pensamento jurídico  
desenvolvido, qualquer que seja a matéria à qual se volta, não pode se realizar sem  
dado número de definições mais abstratas e gerais” (PACHUKANIS, 2017b, p. 68), o  
que significa que a questão ora posta - qual seja, a compreensão das formas jurídicas5,  
entendendo essas formas enquanto definições mais abstratas e essenciais à realização  
concreta do direito é, para Pachukanis, fundamental. Parte dessa necessidade é vista  
pelo pensador em relação ao começo do desenvolvimento da economia política  
enquanto disciplina específica, que tratava de questões práticas mais imediatas, a  
exemplo da circulação do dinheiro. Segundo o autor soviético, originariamente, a  
economia política se colocou na tarefa de “demonstrar ‘os meios de enriquecimento  
dos governos e dos povos’”, e já nesse momento encontrava-se “conceitos cujas  
formas generalizantes e aprofundadas se tornaram parte das disciplinas teóricas da  
economia política” (PACHUKANIS, 2017b, p. 69). Isso o leva a questionar se seria  
possível, em termos de teoria geral do direito, uma análise das definições mais  
fundamentais do direito da mesma forma que em economia política temos a análise  
de categorias mais abstratas, como forma da mercadoria e forma do valor. Portanto,  
se é possível “encarar uma doutrina geral do direito como uma disciplina teórica  
autônoma”6 (cf. PACHUKANIS, 2017b, p. 69).  
4 Pachukanis fala em “ideia de direito”, entre aspas, porque a concepção que ele pretende desenvolver  
em TGDM acerca do direito está para além do idealismo típico dos neokantistas aos quais está se  
opondo nesse momento. Também para além de certas teorias que reduzem o direito à subjetividade,  
tendo o pensador soviético por central a historicidade desses conceitos para a sua compreensão, algo  
que um autor como Karl Korsch não foi capaz de compreender, ao reduzir a teorização do marxista  
russo a um “abstracionismo típico da escolástica formal” (PINHEIRO DA SILVA; SOARES, 2020, pp. 154-  
5; cf. KORSCH, 1977).  
5
Em TGDM, Pachukanis dá enfoque à forma jurídica do “sujeito de direito” como aquela mais  
fundamental, especialmente porque compreende que “toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos”  
e “o sujeito é o átomo da teoria jurídica” (PACHUKANIS, 2017b, p. 117). Claro, falamos em “formas  
jurídicas”, no plural, porque há o reconhecimento por parte do autor de outras formas jurídicas, como  
por exemplo a forma jurídica do contrato. Contudo, o pensador soviético começa a sua análise do sujeito  
de direito justamente por entender nele “o elemento mais simples e indivisível” da teoria jurídica  
(PACHUKANIS, 2017b, p. 117), e enxerga na realidade uma relação bastante estreita entre essa forma  
jurídica do sujeito e a economia política, chegando a dizer que “o homem se transforma em sujeito de  
direito por força daquela mesma necessidade em virtude da qual o produto natural se transforma em  
mercadoria dotada da enigmática qualidade do valor” (PACHUKANIS, 2017b, p. 83).  
6
Autônoma não no sentido de descolada da vida material, mas no sentido de uma disciplina com  
estatuto próprio, com suas próprias definições gerais.  
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Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
Essa questão, segundo Pachukanis, a filosofia burguesa do direito, encampada  
pelos neokantistas, “resolve” por meio da contraposição entre o “princípio do ser” e  
do “dever-ser”, sendo a distinção entre o “causal” e o “teleológico” bases  
metodológicas para a jurisprudência. Contudo, essa é uma metodologia que está posta  
apenas nos limites da lógica, já que o “princípio do dever-ser” surge somente em  
decorrência de outro dever-ser, não podendo ser concluído a partir da necessidade de  
fato. Em decorrência disso, para Pachukanis, certos pensadores, como Kelsen,  
compreendem a jurisprudência, ou seja, o que hoje chamamos tão somente de teoria  
do direito, como ciência normativa por excelência. A esse respeito, o autor de TGDM  
se pronuncia  
[...] as tentativas de aprofundar essa metodologia por exemplo, em  
Kelsen levam à convicção de que justamente a jurisprudência é a  
ciência normativa por excelência, pois ela, mais que quaisquer outras  
disciplinas atribuíveis a essa classe, pode se manter dentro dos limites  
do sentido lógico-formal da categoria do dever-ser. Na realidade,  
tanto em moral quanto em estética, a normatividade está impregnada  
de elementos psicológicos e pode ser considerada um desejo  
qualificado, ou seja, um fato como ser: o ponto de vista da conexão  
causal impõe-se de modo contínuo, quebrando a pureza da  
compreensão normativa. No direito, ao contrário, cuja expressão mais  
alta é, para Kelsen, a lei do estado, o princípio do dever-ser aparece  
de forma indubitavelmente heterônoma, definitivamente rompido com  
o factual, com aquilo que existe. Basta transpor a própria função  
legislativa para o domínio metajurídico e é isso que Kelsen faz –  
para que a jurisprudência se reduza à pura esfera da normatividade,  
consistindo sua tarefa exclusivamente em ordenar logicamente os  
diferentes conteúdos normativos (PACHUKANIS, 2017b, p. 70).  
Ao se desfazer da necessidade de lidar com a realidade factual à qual o direito  
está associado, e recusando lidar até com questões metajurídicas, que dizem respeito  
à origem legislativa das normas, a metodologia do neokantismo não oferece, sob a  
perspectiva pachukaniana, uma teoria científica a respeito das formas jurídicas7. A  
“pureza” na qual se sustenta o “princípio do dever-ser”, apartado do ser que lhe é  
correspondente, gera uma teoria despreocupada até mesmo com a finalidade da  
norma, sua repercussão na realidade factual.  
De outro ponto, Pachukanis entende que as chamadas “teorias sociológicas” e  
“psicológicas”, encampadas principalmente por Piotr Stutchka e Mikhail Reisner8,  
respectivamente, são mais interessantes e delas pode exigir algo mais, pois tentam  
explicar o direito de um ponto de vista de sua origem e desenvolvimento. Contudo,  
7
Para uma análise crítica da questão partindo de influências tanto marxianas quanto lukacsianas cf.  
Sartori (2016).  
8
No caso específico do Reisner, Pachukanis o compreende como aquele que recepciona, no campo  
marxista, a “teoria psicológica do direito” de Petrajitski (cf. NAVES, 2000).  
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seu método é inócuo frente à questão colocada aquela da possibilidade da análise  
das definições mais fundamentais do direito , já que a forma do direito9 é ignorada.  
A investigação dessas teorias parte de conceitos que estão fora do direito, e quando  
tratam de definições puramente jurídicas é para denunciar o seu aspecto “fictício”,  
portanto, a partir de seu caráter ideológico10, por assim dizer. O autor de TGDM  
enfatiza que tais teorias despertam simpatia à primeira vista se comparadas às teorias  
idealistas tratadas anteriormente, pois percebem o direito enquanto “resultado de  
lutas de interesses, como uma manifestação da coerção estatal ou até como um  
processo cuja representação se dá na psique humana real” (PACHUKANIS, 2017b, p.  
71). Assim, pode parecer tentador aos marxistas aderir a tal método. Mas Pachukanis  
ressalta a insuficiência dessas teorizações frente à questão que está colocada, já que  
o conceito de direito aparece apenas em face de seu conteúdo, e não de sua forma.  
Portanto, para o autor soviético, o resultado obtido “é uma história das formas  
econômicas com um colorido jurídico mais ou menos acentuado ou uma história das  
instituições, mas de modo nenhum uma teoria geral do direito” (PACHUKANIS, 2017b,  
p. 71).  
A tarefa que Pachukanis toma para si fica mais clara em certo momento, quando,  
ao apontar certos problemas que estão colocados e mal resolvidos em marxistas que  
a seu tempo lidam com a teoria do direito11, o autor soviético salienta a necessidade  
de tratar o conceito de direito em seu movimento real, a partir de seus nexos internos.  
Também não se trata de qualquer direito, mas de sua forma mais acabada,  
demonstrando a importância desta frente à época na qual se torna plena, extraindo  
9 Existe uma celeuma entorno dos termos “forma jurídica” e “forma do direito”. Ferreira e Soares (2024)  
trazem ainda um terceiro termo. Para os autores existem três expressões no original em russo que se  
referem a coisas distintas, sendo elas: forma prava (форма права), pravovaya forma (правовая форма)  
e yuriditcheskaya forma (юридическая форма). Das duas traduções feitas de TGDM para o português  
em 2017, vemos que a edição da Sundermann, nesse ponto, tende a homogeneizar tudo como forma  
jurídica, enquanto a edição da Boitempo traduz forma prava como “forma do direito”, mas também  
identifica os outros dois termos tão somente como “forma jurídica”. Não adentraremos nos pormenores  
dos significados de cada um dos termos, haja vista que isso já foi feito, ao menos no que toca o Capítulo  
5 de TGDM – “Mercadoria e sujeito(cf. FERREIRA; SOARES, 2024). Também cabe mencionar que a  
questão não assume centralidade no presente trabalho, já que estamos lidando com questões que dizem  
respeito a como Pachukanis encara o método nas ciências sociais, sem adentrar tanto no que é o  
“núcleo” de sua teoria, se assim podemos dizer.  
10 Para Pachukanis a ideologia assume significados diversos. Aqui, assume a forma de falsa consciência,  
mas no decorrer de sua obra outros sentidos aparecem. A esse respeito Flávio Roberto Batista tem  
contribuições importantes, mesmo que discordemos da perspectiva althusseriana da qual o autor parte,  
e mesmo discordando também de sua conclusão ao aproximar Pachukanis e Althusser. Vitor Sartori  
também trata da questão, mesmo que incidentalmente, e sob uma perspectiva crítica, portanto, contrária  
a de Batista, e sob o mesmo esforço que estamos aqui, de uma comparação do texto pachukaniano ao  
próprio Marx (cf. BATISTA, 2015; SARTORI, 2015b).  
11  
O pensador soviético se refere a Renner, que, a seu juízo, tem por central o conceito de imperativo  
quando define o direito, caindo nas problemáticas que estão postas no pensamento neokantista (cf.  
PACHUKANIS, 2017b, p. 73).  
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daí a sua especificidade histórica, e não sua generalidade trans-histórica, válida em  
qualquer tempo, em qualquer estágio do desenvolvimento humano (PACHUKANIS,  
2017b, p. 74). Interessante que, nesse ponto, Pachukanis remete à economia política,  
comparando as tentativas de mistificação da referida disciplina com as feitas em termos  
de teoria do direito, aproximando uma da outra. Esse é o grande esforço do autor: a  
partir de Marx aproximar categorias do direito (forma jurídica) e da economia política  
(forma-mercadoria) (cf. SARTORI, 2015b).  
Até então, Pachukanis criticou determinados métodos ao apresentar suas  
impossibilidades de responder às tarefas que estão colocadas na teoria geral do  
direito, e no ato de criticar revela, ao mesmo tempo, a concepção que tem para si de  
método, algo que está colocado anteriormente à experiência e que serve de modelo  
para se aproximar da realidade. Retomamos a frase do início: “a diferença entre as  
ciências se baseia, em larga medida, nos diferentes métodos de aproximação da  
realidade” (PACHUKANIS, 2017b, p. 81). Com isso, por mais que o autor,  
cuidadosamente, não fale em “método marxista” ou “método marxiano”, a ideia que  
desenvolve redunda em uma incapacidade metodológica de certas teorias da ordem  
do seu dia em satisfazer as demandas teóricas colocadas pela TGD. Para isso, faz-se  
necessário, em suas próprias palavras, “tomar como modelo a crítica à economia  
política burguesa, como fez Marx”12 para elaborar a crítica à jurisprudência burguesa13.  
Portanto, o autor soviético compreende o empreendimento marxiano como um modelo  
mais adequado para se aproximar da realidade e que deve ser replicado, ao menos  
nesse caso, à crítica ao direito.  
Pachukanis contra Marx: a assim chamada questão de método  
A princípio, pode parecer razoável o entendimento que Pachukanis tem por  
método em Marx. É certo que na recepção do pensador no Brasil não apenas essa  
razoabilidade foi lida acriticamente (cf. SARTORI, 2024), como também foi destacado  
como Pachukanis se mostra fiel a esse método (cf. NAVES, 2000). Ocorre que nos  
parece que para o próprio Marx e, portanto, ao pensamento marxiano como um todo,  
essa ideia de método não é a mais acertada. Para o filósofo alemão, “a consciência  
12 No prefácio à edição alemã do TGDM, Pachukanis afirma que seu livro é uma tentativa no sentido de  
dar conta da “tarefa de elaboração de um método revolucionário dialético e materialista na ciência do  
direito, contraposto ao método metafísico lógico-formal, ou, no melhor dos casos, histórico-  
evolucionista da jurisprudência burguesa” (PACHUKANIS, 2017a, p. 67).  
13 Sobre as dificuldades de realizar tal procedimento, a saber, o de tomar a crítica da economia política  
como modelo para a crítica à filosofia do direito, vale mencionar que, como nos aponta Sartori (2015b;  
2025), para Marx, o direito e a economia política possuem estatutos diferentes, de tal forma que não é  
possível fazer na teoria geral do direito o que o filósofo alemão faz na crítica da economia política.  
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[Bewusstein] não pode ser jamais outra coisa que o ser consciente [bewussteSein], e o  
ser dos homens é seu processo de vida real”, de tal sorte que “não é a consciência  
[Bewusstein] que determina a vida [Leben], mas a vida que determina a consciência”  
(MARX, 2007, p. 94). Isso significa que a teoria marxiana tem por central a realidade  
mesma, o seu ser-propriamente-assim, que não está presente em um modelo que parte  
de certo sujeito que conhece e faz incidir esse seu conhecimento sempre prévio –  
ao objeto de interesse. Aliás, admitir que um determinado modelo de pensamento  
possa ser adequado para a apreensão dessa realidade consistiria justamente no  
contrário disso, pois privilegiaria a consciência em detrimento da vida propriamente  
dita e de seu processo real (cf. CHASIN, 2009).  
Para Pachukanis, até certo ponto em oposição a Marx, a questão não é tanto a  
de obter a apreensão reta do real, mas de se utilizar de certo método que possa fazê-  
lo se aproximar da realidade. O autor soviético chega a dizer que esse é o ponto que  
diferencia as ciências, mas mais do que isso, chega a dizer que um mesmo fato, e para  
tanto cita o arrendamento de terras, “pode ser objeto de investigação tanto político-  
econômica quanto jurídica” (PACHUKANIS, 2017b, p. 81), e o que vai diferenciar uma  
coisa da outra é o método adotado. Pachukanis conclui que “[...] a diferença entre as  
ciências se baseia, em larga medida, nos diferentes métodos de aproximação da  
realidade” (PACHUKANIS, 2017b, p. 81). Ou seja, as questões sobre o método e até  
sobre o parcelamento das ciências são dadas para o pensador soviético, que não está  
interessado nesse momento em questionar de forma mais profunda esses próprios  
métodos e o porquê do fato de as ciências terem sido cindidas.  
A posição de Marx sobre a questão é bastante distinta, já que a primazia não é  
na forma de se conhecer, pois a consciência é identificada no ser consciente, e “o ser  
dos homens é seu processo de vida real”. Na apreensão desse processo de vida real  
não é adequado, diante do fato, enxergá-lo sobre um ou outro viés. Antes, é preciso  
compreender a efetividade do direito em sua conformação objetiva, e o papel que  
exerce dentro da própria sociedade civil-burguesa (cf. SARTORI, 2015b). Não se trata  
de investigar a realidade através do direito, ou através de um ponto de vista “político-  
econômico”. O direito, a política e a economia são momentos da reprodução social (cf.  
LUKÁCS, 2013)14, e o seu entendimento passa por compreender a conformação dessas  
14  
Claro que se compararmos a importância do direito, da política e da economia pensando na  
reprodução social e pensando justamente nos momentos dessa reprodução, a esfera econômica tem  
primazia, por constituir a “anatomia da sociedade burguesa” (MARX, 2008, p. 47), sendo o momento  
preponderante da reprodução social (cf. CHASIN, 2009). Mesmo entre o direito e a política há uma  
prevalência, na obra de Marx, à política, não apenas por ser um tema mais recorrente, mas também por  
ter um papel mais relevante do que o direito para a conformação da objetividade. Uma crítica possível  
ao Pachukanis é justamente a de, talvez, ter elevado o direito em termos de importância ao nível da  
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Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
esferas dentro do próprio movimento do real. Ao supor acriticamente a questão de  
método e o parcelamento das ciências, o autor de TGDM corre o risco de tratar o  
Direito apenas como objeto de método. Mesmo que possamos concordar que isso não  
se realiza no restante da obra o que necessitaria de exame específico -, neste capítulo  
em específico, Pachukanis apresenta os problemas que apontamos até aqui.  
Ato contínuo, Pachukanis afirma, enquanto parte importante de seu método, a  
necessidade de abstrair a realidade como meio de seu entendimento, tendo em vista  
que em ciências sociais não seria possível decompor essa mesma realidade em seus  
elementos mais simples, necessitando, para tanto, das abstrações. Aliás, diz que “a  
maior ou menor perfeição das abstrações determina a maturidade de dada ciência  
social” (PACHUKANIS, 2017b, p. 81). Nesse sentido, o pensador soviético tem por  
influência central Marx e, mais especificamente, a Introduçãode 1857. A exposição  
metodológica do autor de TGDM passa por citar tal obra, nesse momento em  
específico, pela explicação de Marx acerca das necessidades expositivas em se tratando  
do concreto população, vejamos:  
Poderia parecer, diz ele [Marx], perfeitamente natural começar a  
pesquisa pelo conjunto concreto da população, que vive e produz em  
condições geográficas determinadas; mas a população é uma  
abstração vazia fora das classes que a compõem, as quais, por sua  
vez, nada são se excluídas das condições que a fazem existir, como o  
salário, o lucro, a renda; e a análise dessas últimas pressupõe  
categorias mais simples, como preço, lucro e, finalmente, mercadoria.  
Partindo dessas definições mais simples, o economista político  
reconstitui a mesma totalidade concreta, mas já não como um todo  
caótico e difuso, e sim como uma unidade rica de determinações e  
relações de dependências internas. Marx acrescenta que o  
desenvolvimento histórico da ciência vai justamente no caminho  
oposto: os economistas do século XVII começaram pelo todo vivente  
pela nação, pelo estado, pela população para depois chegarem à  
renda, ao lucro, ao salário, ao preço e ao valor. Contudo, aquilo que é  
historicamente inevitável não é de modo nenhum metodologicamente  
correto (PACHUKANIS, 2017b, pp. 81-2, grifo nosso).  
A posição pachukaniana parece ignorar algo fundamental, a saber, a distinção  
que Marx faz entre modo de exposição [Darstellungsweise] e moo de investigação (ou  
modo de pesquisa) [Forschungsweise]15 (cf. PAÇO CUNHA, 2014). Aquilo que em O  
economia, tomando a realidade a partir do direito em alguma medida. Esse não é nosso objeto de  
pesquisa, mas para uma análise preliminar cf. Sartori (2015a).  
15  
Causava certa confusão uma edição anterior de O capital, em que os termos Darstellungsweise e  
Forschungsweise foram traduzidos, respectivamente, como “método de exposição” e “método de  
pesquisa” (MARX, 1988, p. 26). Com isso, não pretendemos negar o uso da palavra “método” [Methode]  
por Marx. O termo aparece não apenas no segundo posfácio do primeiro livro d’O capital, como também  
aparece em outras obras, a citar, os Grundrisse e os Manuscritos de 59. Investigar as diferenças entre  
os usos que Marx faz do termo nessas diferentes obras não é tema de nossa pesquisa. Para ela, basta  
trazer que, no próprio O capital, quando Marx diz “meu método dialético, em seus fundamentos, não é  
apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto” [Meine dialektische Methode ist  
der Grundlage nach von der Hegelschen nicht nur verschieden, sondern ihr direktes Gegenteil] (MARX,  
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capital se mostra como o ato de “ir do abstrato ao concreto” não é nada mais do que  
seu modo de exposição, e não de pesquisa. Para Marx, “a investigação tem de se  
apropriar da matéria [Stoff] em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de  
desenvolvimento e rastrear o seu nexo interno” (MARX, 2017, p. 90). A exposição é  
um momento posterior que só pode ser feito justamente após a consumação da  
pesquisa. O filósofo alemão ainda adverte que “se isso é realizado com sucesso, e se  
a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de  
se encontrar diante de uma construção a priori” (MARX, 2017, p. 90). Tal passagem  
aponta para o que dissemos no início, a saber, que não existe uma questão de método  
no pensamento marxiano, já que a fundamentação do conhecimento é onto-prática e,  
por conseguinte, “cada entificação concreta teria seu método; cada destino, que  
somente existe como destino a ser alcançado, o verdadeiro, não dominado no início,  
tem sua própria rota” (ALVES; VAISMAN, 2009, p. 17). Sendo assim, a novidade  
apresentada por Marx não se dá através de um sujeito cognoscente, anterior à  
experiência, pelo contrário, a subjetividade está vinculada à objetividade em  
“determinação recíproca”. A esse respeito, J. Chasin expõe:  
Se por método se entende uma arrumação operativa, a priori, da  
subjetividade, consubstanciada por um conjunto normativo de  
procedimentos, ditos científicos, com os quais o investigador deve  
levar a cabo seu trabalho, então, não há método em Marx. Em  
adjacência, se todo método pressupõe um fundamento gnosiológico,  
ou seja, uma teoria autônoma das faculdades humanas cognitivas,  
preliminarmente estabelecida, que sustente ao menos parcialmente a  
possibilidade do conhecimento, ou, então, se envolve e tem por  
compreendido um modus operandi universal da racionalidade, não há,  
igualmente, um problema do conhecimento na reflexão marxiana.  
(CHASIN, 2009, p. 89)  
A partir disso já podemos apresentar algumas conclusões. Primeiro, “o método  
de ascender do abstrato ao concreto” (MARX, 2011, p. 54) não é um procedimento a  
priori, que se mostra como uma forma universal de compreensão da realidade.  
Tampouco se trata de um método de aproximação a essa realidade que possa  
distinguir as ditas “ciências sociais” das ciências naturais16. Ir do abstrato ao concreto,  
2017, p. 90), refere-se à já citada posição [Standpunkt] marxiana frente à realidade, que a toma por ela  
mesma, sem a necessidade de apriorismos ou de uma teoria autônoma das faculdades humanas.  
16 Na verdade, para um autor como Lukács, Marx propõe uma nova forma tanto de ontologia como de  
cientificidade, que sequer é marcada pelo seu parcelamento, como se tornou a tônica com o avanço e  
estabilização do capitalismo. A crítica marxiana à economia política, por exemplo, “está impregnada de  
um espírito científico que jamais renuncia a essa tomada de consciência e de visão crítica em sentido  
ontológico, acionando-as, muito antes, na verificação de todo fato, de toda conexão, como metro crítico  
permanentemente operante. Falando de modo bem geral, trata-se aqui, portanto, de uma cientificidade  
que não perde jamais o vínculo com a atitude ontologicamente espontânea da vida cotidiana; ao  
contrário, o que faz é depurá-la de forma crítica e desenvolvê-la, elaborando conscientemente as  
determinações ontológicas que estão necessariamente na base de qualquer ciência.” (LUKÁCS, 2018,  
p. 293).  
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Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
como modo correto de exposição, corresponde ao fato de o concreto ser concreto por  
ser “a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade” (MARX,  
2011, p. 54). Assim, esse “concreto aparece no pensamento como processo da síntese,  
como resultado, não como ponto de partida” (MARX, 2011, p. 54). Portanto, a exatidão  
do modo de exposição está ancorada também no fato de que “as determinações  
abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento” (MARX, 2011, p.  
54). Isso justifica a fixação de abstrações que não ultrapassem o limite da necessidade  
de compreender o concreto. Nesse sentido, as abstrações estão subordinadas ao  
concreto, que as constitui, mas não possuem autonomia, resultando em abstrações  
razoáveis17 (cf. CHASIN, 2009; MARX, 2011).  
Segundo, tanto o modo de exposição quanto o modo de investigação não são  
coisas apartadas do objeto pesquisado. Ambos são desprovidos de uma vida própria  
independente daquilo que se pretende investigar e expor. O que quer dizer que o que  
está sendo delimitado enquanto “método da economia política”, e esse é o nome do  
Item 3 da Introduçãode 1857 3) O método da economia política (MARX, 2011,  
pp. 54-61), não são observações “inteiramente aplicáveis à teoria geral do direito”  
(PACHUKANIS, 2017b, p. 82), como o autor soviético, com ressalvas, acaba fazendo  
parecer. Tomar o modo de exposição por método no sentido universal que  
preconizamos anteriormente e, além disso, destacá-lo do objeto ao qual Marx estava  
lidando a economia política18 – para que sirva de “modelo” para as demais esferas  
do ser social, não corresponde à integralidade do pensamento marxiano, muito pelo  
contrário.  
Em síntese, por mais cuidadoso que Pachukanis possa ser em sua pesquisa, não  
está eximido de cair em certos problemas comuns na leitura de Marx19 e, mais  
propriamente, do que seria o método de Marx. O pensador soviético mobiliza uma  
série de discussões feitas pelo filósofo alemão na Introduçãode 1857, mas mesmo  
esse esforço tem seus problemas. Até aqui identificamos dois mais evidentes, a saber,  
destacar até certo ponto esse dito método frente ao seu objeto, o que, em última  
17  
Para um aprofundamento na temática das “abstrações razoáveis” no interior da obra marxiana cf.  
Rago Filho (2004); Assunção (2014).  
18 Cabe ressaltar ainda, a título de esclarecimento, que Marx não está propondo uma nova economia  
política, mas uma crítica da economia política. Portanto, quando o filósofo alemão fala em “método da  
economia política”, ele não se refere ao seu próprio método, mas dos autores da economia política.  
19  
Falamos de problemas comuns na leitura de Marx pensando em certos autores da II Internacional,  
como Plekhânov e Kautsky, que apresentavam problemas em suas visões sobre método e marxismo de  
forma geral, muito impregnada pelo positivismo vigente. A discussão é longa e passa por muitos  
autores. Existiram outros que tinham sim uma perspectiva mais sofisticada sobre a questão, como  
Lukács em História e consciência de classe, e Korsch em Marxismo e filosofia. Porém, ambos foram  
suplantados pelo curso histórico e os rumos que a União Soviética tomou. A esse respeito conferir Netto  
(2008).  
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instância, significa autonomizar a forma de conhecer em relação ao objeto conhecido;  
e universalizar o método (leia-se modo de exposição) de ir do abstrato ao concreto, a  
ponto de torná-lo uma marca distintiva das ciências sociais frente às demais ciências.  
Pachukanis toma esse modo de exposição explicitado por Marx como um ponto de  
partida da pesquisa, o que já demonstramos não estar adequado à posição marxiana.  
Ao fazê-lo, ou seja, ao tomar o modo de exposição por método no sentido  
gnosiológico da palavra, o autor de TGDM comete outro equívoco: Pachukanis acaba  
por corresponder a forma de apreensão do concreto pelo pensamento ao  
desenvolvimento real, histórico, desse concreto, como se ordem de aparição das  
categorias coincidisse com o seu aparecimento na própria história. Como  
demonstraremos adiante, esse terceiro equívoco está vinculado aos demais e,  
novamente, não correspondem ao pensamento de Marx.  
Marx contra Pachukanis: o caminho do abstrato ao concreto  
Pachukanis, em sua tarefa de distinguir as ciências naturaisdas sociais20,  
afirma que os conceitos da primeira têm sua aparição cronológica clara, mas que essa  
cronologia apenas tem sentido para a história das ciências e da cultura. Ao contrário,  
para o significado mesmo desses conceitos, a história não tem esse grau de  
importância, já que, como exemplo, “a lei da transformação de energia já atuava antes  
do aparecimento do homem e continuará atuando depois do desaparecimento de toda  
vida na Terra” (PACHUKANIS, 2017b, p. 82). Portanto, as leis naturais às quais o  
pensador faz menção não sofrem interferência temporal, estão fora do tempo. Dessa  
maneira, é possível determinar “quando a lei da transformação de energia foi  
descoberta”, mas não “de qual época datam aquelas relações que ela expressa”  
(PACHUKANIS, 2017b, p. 82). Já em relação às ciências sociais a questão colocada  
pelo autor é diferente. Vejamos:  
Se nos voltarmos agora para as ciências sociais, como é o caso da  
economia política, e tomarmos um de seus conceitos fundamentais,  
por exemplo, o de valor, de repente nos saltará aos olhos que,  
historicamente, não só é um conceito enquanto elemento de nosso  
pensamento, mas, em pendant à história do conceito, é parte  
constituinte da história das doutrinas econômicas, e teremos a história  
real do valor, ou seja, o desenvolvimento das relações humanas que,  
progressivamente, fizeram desse conceito uma realidade histórica. [...]  
Conhecemos, dessa maneira, o substrato histórico real daquelas  
abstrações cognitivas que utilizamos e, com isso, verifica-se que os  
20  
Como dito, mesmo essa noção de “ciências sociais”, típica do parcelamento das ciências de modo  
geral, não é algo presente nos escritos de Marx. A economia política, caso tomemos a forma de  
cientificidade do pensamento marxiano, após Smith e Ricardo, não é uma ciência. Ao contrário, o que é  
científico é sua crítica, pois toma a realidade por ela mesma e a crítica nasce da própria imanência da  
investigação (cf. LUKÁCS, 2018).  
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Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
limites dentro dos quais a aplicação dessa abstração ganha sentido  
coincidem com o marco histórico real de desenvolvimento e são por  
ele determinados (PACHUKANIS, 2017b, pp. 82-3, grifo nosso).  
O pensador soviético cita outros exemplos em que isso ocorre: o trabalho,  
enquanto mediação entre o homem e a natureza, presente em todos os estágios do  
desenvolvimento humano se desprovido de suas determinações concretas, mas que  
aparece como abstração na sucessão das escolas econômicas. Portanto, para  
Pachukanis, o desenvolvimento do conceito corresponde ao desenvolvimento das  
relações que ele expressa em sua efetividade histórica21. Outro exemplo citado é o do  
estado, que aos poucos adquire sua plenitude, e conforme adquire essa precisão  
também se abstrai da sociedade e se torna autossuficiente no movimento real da  
história. O autor de TGDM defende que um processo correspondente ocorreria no  
pensamento. Em síntese, que o desenvolvimento dos conceitos corresponde ao  
processo histórico dialético real” (PACHUKANIS, 2017b, p. 82). Sobre o direito  
propriamente dito, o mesmo paralelismo entre desenvolvimento do conceito e da  
forma social na efetividade aparece.  
Do mesmo modo, o direito, considerado em suas determinações  
gerais, como forma, não existe somente na cabeça e nas teorias dos  
juristas especialistas. Ele tem, paralelamente, uma história real, que  
se desenvolve não como um sistema de ideias, mas como um sistema  
específico de relações, no qual as pessoas entram não porque o  
escolheram conscientemente, mas porque foram compelidas pelas  
condições de produção. (PACHUKANIS, 2017b, p. 83, grifo nosso)  
Contudo, Pachukanis faz uma ressalva, a saber, que o desenvolvimento das  
formas sociais e o desenvolvimento dos seus estudos não coincidem. Trata-se de  
processos que estão em ordens cronológicas distintas. Como exemplo cita novamente  
o valor. Segundo o autor russo, tanto as formas de troca quanto suas correspondentes  
formas de valor estão presentes desde a alta Antiguidade, mas a economia política  
enquanto disciplina, ou melhor, como “ciência social” que estuda tais processos,  
somente aparece em momento posterior da modernidade.  
Por mais sofisticada que seja a tese pachukaniana, afinal, o autor não trata as  
formas sociais como mero epifenômenos como alguns teóricos do direito22  
contemporâneos ao marxista soviético o fazem, há questões a serem desenvolvidas  
que explicitam diferenças importantes em relação à posição de Marx. Primeiro, na  
própria Introduçãode 1857, o filósofo alemão, contrapondo-se a Hegel, afirma que  
21  
Nisso o pensador soviético se aproxima mais da leitura de Engels sobre o “método lógico” e o  
“método histórico”, exposto em seus Comentários sobre a Contribuição à crítica da economia política,  
de Karl Marx (2008), do que das teorizações de Marx a respeito (cf. BARREIRA, 2020).  
22  
Por exemplo, Mikhail Reisner, que, influenciado por Petrajínsky, elabora uma teoria psicológica do  
direito (cf. NAVES, 2000).  
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Marcos Antônio Nascimento de Castilho  
o autor da Fenomenologia do Espírito incorre na “ilusão de conceber o real como  
resultado do pensamento que sintetiza-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo”  
(MARX, 2011, p. 54). Ou seja, para Marx, Hegel toma a realidade como produto do  
pensamento, e isso se apresenta na medida em que, na própria exposição de obras  
como a Ciência da lógica, as categorias “brotam” umas das outras, sem qualquer  
conexão com a materialidade. Com isso, parece, pelo próprio modo expositivo dessas  
obras, que a forma como o conceito se desenvolve na mente coincide com a “gênese  
do próprio concreto” (MARX, 2011, p. 55). O intento de Marx é o contrário, já que “o  
método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de  
apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental” (MARX, 2011,  
pp. 54-5), mas de modo algum essa apreensão do real coincide automaticamente com  
seu desenvolvimento mesmo na história, como defende Hegel e mesmo Pachukanis  
até certo ponto.  
Como exemplo, Marx cita o valor de troca, que é uma categoria econômica mais  
simples que supõe categorias concretas, como novamente população, e “população  
produzindo em relações determinadas” (MARX, 2011, p. 55). Também supõe certo  
tipo de família ou comunidade, bem como de estado, entre outros concretos. Essa  
categoria mais simples o valor de troca , enquanto efetividade, não tem uma vida  
própria que possa ser determinável fora “de um todo vivente, concreto, já dado”.  
Contudo, enquanto somente categoria, ou seja, como mera abstração, “o valor de troca  
leva uma vida antediluviana”. Isso quer dizer que como “modo do pensamento de  
apropriar-se do concreto”, como modo de reproduzir esse concreto como concreto  
mental, de fato o valor de troca aparece de antemão. Contudo, na efetividade essa  
abstração não está posta no processo de gênese do próprio concreto. As abstrações,  
os conceitos, não pensam por si sós, não estão apartados do sujeito real e, por tal  
razão, não podem ter uma vida própria, não geram a si mesmos. Como dito  
anteriormente, a consciência, para Marx, é identificada no ser consciente, e “o ser dos  
homens é seu processo de vida real”. Tal elaboração que antes citamos em A ideologia  
alemã, aparece também na “Introduçãode 1857, vejamos:  
Por essa razão, para a consciência para a qual o pensamento  
conceitualizante é o ser humano efetivo, e somente o mundo  
conceituado enquanto tal é o mundo efetivo e a consciência  
filosófica é assim determinada , o movimento das categorias aparece,  
por conseguinte, como ato de produção efetivo que, infelizmente,  
recebe apenas um estímulo do exterior , cujo resultado é o mundo  
efetivo; e isso que, no entanto, é uma tautologia é correto na  
medida em que a totalidade concreta como totalidade de pensamento,  
como um concreto de pensamento, é de fato um produto do pensar,  
do conceituar; mas de forma alguma é um produto do conceito que  
pensa fora e acima da intuição e da representação, e gera a si próprio,  
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Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
sendo antes produto da elaboração da intuição e da representação em  
conceitos (MARX, 2011, p. 55, grifo nosso).  
A totalidade à qual Marx se refere a totalidade de pensamento – “é um  
produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é  
possível, um modo que é diferente de sua apropriação artística, religiosa e prático-  
mental” (MARX, 2011, p. 55). O sujeito real citado anteriormente existe  
autonomamente fora da consciência, ao menos enquanto essa consciência se comporta  
apenas teoricamente. A conclusão de Marx é que “no método teórico o sujeito, a  
sociedade, tem de estar continuamente presente como pressuposto da representação”  
(MARX, 2011, p. 55).  
Entretanto, ainda resta a questão de se essas categorias mais simples podem  
ter uma existência própria, independente e anterior às categorias mais concretas. Por  
um lado, Marx indica que Hegel começa corretamente sua Filosofia do direito, ao iniciar  
a exposição pela relação jurídica mais simples do sujeito, a saber, a posse. Contudo,  
mesmo essa posse não pode existir antes da família ou das relações que lhe são  
correspondentes (relações de dominação e de servidão), que são, por sua vez, muito  
mais concretas do que a mera posse. Ao passo que “seria correto dizer que existem  
famílias, tribos, que somente possuem, mas não têm propriedade” (MARX, 2011, p.  
55). Na sociedade mais avançada sociedade civil-burguesa , a propriedade aparece  
como uma relação mais simples, mas a concretude em que a posse é relação –  
aparece como pressuposto, portanto, ainda assim não é possível pensar nessa  
propriedade como uma forma independente do concreto. Marx ainda destaca que no  
caso de sociedades primitivas a posse não se conforma enquanto relação jurídica,  
sendo assim, buscar as origens da posse como a concebemos na sociedade  
contemporânea na família é um erro. Na verdade, essa posse pressupõe sempre a  
categoria jurídica mais concreta. Portanto, a categoria simples pode constar em duas  
circunstâncias de modo distinto, a saber, como expressão de relações de um concreto  
ainda não desenvolvido, em que as conexões e relações multilaterais ainda não estão  
postas; ou ainda, no próprio concreto mais desenvolvido, que tem por pressuposto  
essa mesma categoria mais simples em uma relação de subordinação. O exemplo dado  
por Marx é o dinheiro que, enquanto categoria simples, existiu em sociedades  
anteriores, em que o concreto capital ainda não estava dado, assim como todas as  
formas e figuras econômicas que lhe correspondem. O dinheiro, em sociedades menos  
desenvolvidas, em que o concreto ainda não possui as conexões e relações  
multilaterais que o constituem na sociedade civil-burguesa, está presente expressando  
“relações dominantes de um todo ainda não desenvolvido” (MARX, 2011, p. 56).  
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Também está presente nessa sociedade avançada, em que o concreto está plenamente  
desenvolvido, mas agora está colocado em relações subordinadas a esse concreto.  
Portanto, pode ser que o modo do pensamento de apropriação do concreto coincida  
com o processo histórico efetivo, mas isso não está dado de antemão, como uma  
necessidade.  
Ainda assim, Marx faz ressalvas a essa conclusão, já que “há formas de  
sociedade muito desenvolvidas, embora historicamente imaturas, nas quais se  
verificam as mais elevadas formas da economia, por exemplo, cooperação, divisão do  
trabalho desenvolvida etc. sem que exista qualquer tipo de dinheiro” (MARX, 2011, p.  
56). Ou seja, por mais que a categoria mais simples no caso, o dinheiro possa  
existir antes da categoria mais concreta, também pode ocorrer de uma determinada  
sociedade menos desenvolvida ter a categoria mais concreta plenamente desenvolvida  
sem a presença da categoria mais simples. Os casos citados pelo filósofo alemão  
ilustram bem o segundo caso. Marx afirma que em comunidades eslavas o dinheiro e  
a troca não apareciam ou apareciam muito pouco no interior dessas sociedades.  
Ocupavam um papel no intercâmbio dessas sociedades com outras, externas a ela, de  
tal forma que não era possível tratar do dinheiro, no interior dessas comunidades,  
como um elemento constitutivo original. Como bem nos aponta o autor, mesmo na  
Antiguidade ele cita os gregos e romanos o dinheiro só vai ter seu pleno  
desenvolvimento, desenvolvimento este pressuposto na sociedade civil-burguesa, no  
momento da dissolução dessas sociedades.  
De um ponto ao outro, para que não se ande em círculos, que quer dizer então  
todo esse imbróglio entre a oposição do modo do pensamento de se apropriar do  
concreto e do desenvolvimento desse concreto mesmo na história? Quer dizer, em  
síntese, que é impraticável, mas mais do que isso, é falso permitir que as categorias  
econômicas sucedam umas às outras da forma como cronologicamente estão  
colocadas na história. Reproduzir o desenvolvimento histórico por meio do  
pensamento é tão complexo que chega a ser impraticável, e as tentativas de fazê-lo  
levam à falsidade. O que importa a Marx não é a ordem histórica de aparecimento das  
categorias econômicas, mas antes a “relação que têm entre si na moderna sociedade  
civil-burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem natural  
ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico” (MARX, 2011, p. 60).  
Em O capital a dialética encontra-se presente desde o modo de exposição, mas  
não se realiza enquanto um método externo ao objeto estudado a economia política.  
Antes, é preciso tomar esse objeto em seu movimento interno, em sua imanência, sem  
a contaminação de externalidades que, ao fim, podem falsear a própria pesquisa. Isso  
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se mostra na própria exposição da obra, já que, diferentemente da Ciência da lógica,  
as categorias que aparecem em O capital não são deduzidas logicamente a ponto de  
formar um sistema fechado. Em Marx, ao contrário, “as categorias expressam formas  
de ser, determinações de existência” (MARX, 2011, p. 59). Isso não quer dizer, como  
já tratamos, que essas categorias são apresentadas na ordem como foram concebidas  
historicamente, pois isso seria, nas palavras do próprio autor, “impraticável e falso”.  
Ocorre que somos colocados em um impasse, pois se as categorias de O capital não  
são apresentadas na ordem como aparecem na própria história, e ao mesmo tempo  
também não são deduzidas puramente por meio de uma lógica23, como se dá a  
conexão entre essas categorias?  
A sucessão das categorias no interior de O capital, ou seja, o caminho do  
abstrato ao concreto, tem por central captar a relação que essas categorias guardam  
no interior da própria sociedade civil-burguesa, não interessando, pois, a ordem de  
seu desenvolvimento histórico. É importante que se tenha em mente que “da primeira  
à última linha, o objeto de Marx em O capital é sempre o modo de produção capitalista  
considerado em sucessivos níveis de abstração e concreção” (MACHADO, 2018, p.  
245). Nessa incursão, parece-nos relevante compreender qual o papel da história para  
o modo de exposição de O capital. Quer dizer, já que as categorias econômicas  
presentes na obra magna do filósofo alemão não estão encadeadas de forma  
historicista, ainda resta compreender em que medida a própria história ganha  
relevância no principal trabalho de um autor que a todo momento rechaça um modo  
de pensar a-histórico. Ou seja, rechaça as teorias que elegem certos princípios de  
antemão e julgam a realidade a partir desses princípios.  
A especificidade da crítica da economia política marxiana frente às tradições da  
economia política de seu tempo aparece na medida em que, embora reconhecendo o  
23  
É importante mencionar que esse tema é amplamente debatido desde muito tempo. Há nessa  
celeuma, por exemplo, autores que defendem uma “leitura histórica” do desenvolvimento categorial,  
como por exemplo Engels, ao citar, no prefácio ao Livro III de O capital, que Marx “toma como ponto  
de partida a produção simples de mercadorias como seu pressuposto histórico para, então, avançar  
desde essa base até o capital” (ENGELS, 2017, p. 42, grifo nosso). Existe toda uma discussão acerca  
da referida “produção simples de mercadorias” que não entraremos aqui, mas sobre isso conferir  
Barreira, 2020. Há também autores que defendem a presença prioritária da lógica hegeliana em O  
capital, como por exemplo Christoppher Arthur, ao afirmar que “Engels tinha razão ao identificar em  
Marx um desenvolvimento dialético das categorias, e citar Hegel como uma importante fonte para o  
método dialético. Mas ele deveria ter olhado para a lógica de Hegel, em vez de sua filosofia da história”  
(ARTHUR, 1997, p. 12). Há ainda autores como Backhaus que colocam Marx em uma aporia entre a  
leitura histórica e lógica (cf. BARREIRA, 2020). Nossa posição, conforme exporemos a seguir, mesmo  
que incidentalmente, é distinta de todas as outras aqui colocadas, já que entendemos, tal como  
Rosdolsky, que o papel da história em O capital não é o daquele da leitura historicista da obra, mas  
como um elemento central da diferenciação entre o modo de produção capitalista e os modos anteriores  
e, assim, apreender a especificidade da sociedade civil-burguesa. Essa posição, em última análise, se  
distancia do dualismo lógico/histórico e traz à tona pontos fundamentais da Introduçãode 1857  
como veremos a seguir.  
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caráter histórico da moderna sociedade civil-burguesa, essas tradições ainda buscavam  
leis a-históricas que pudessem explicar o desenvolvimento dessa sociedade. A tarefa  
à qual Marx se incube se distingue, já que o interesse não é no uso de leis externas  
ao desenvolvimento histórico que possa decifrá-lo, torná-lo claro. Na verdade, o  
filósofo alemão pretende compreender nesse próprio desenvolvimento histórico, ou  
seja, na imanência do processo, a especificidade dessa sociedade frente às demais.  
Essa especificidade só pode se mostrar quando se deixa de compreender o ser social  
como pronto e acabado, e passa-se a rastrear a sua processualidade (cf. LUKÁCS,  
2018). Desse ponto, as formas sociais pretéritas se mostram essenciais para  
compreender adequadamente a especificidade da sociedade civil-burguesa. É a partir  
delas que se pode alcançar a determinabilidade da sociedade presente frente às  
demais e, portanto, captar aquilo que torna o capitalismo o que é. A história do  
capitalismo não corresponde à história da humanidade. É justamente ao partir da forma  
desenvolvida da sociedade civil-burguesa na qual categorias como valor, mercadoria,  
mais-valor, trabalho assalariado, etc., aparecem como formas universais que se torna  
possível compreender, por contraste, que tais categorias não estiveram sempre  
presentes. A observação dos modos de produção anteriores permite, portanto,  
evidenciar o caráter historicamente determinado dessas formas sociais. Mas essa  
evidência só se torna inteligível a partir do momento em que o capitalismo revela  
plenamente sua estrutura. Como disse Marx, “a anatomia do ser humano é uma chave  
para a anatomia do macaco” (2011, p. 58), e não o contrário.  
As abstrações, em Marx, não são meros exercícios intelectuais: elas cumprem  
uma função decisiva na análise e têm um caráter histórico, pois é através delas que se  
torna possível captar a especificidade do modo de produção capitalista. É através  
dessas abstrações que as articulações que constituem o capitalismo em seu  
desenvolvimento histórico são reveladas. Portanto, ao iniciar a primeira frase do  
primeiro livro de O capital com “a riqueza das sociedades” (MARX, 2017, p. 113), o  
filósofo alemão não está de modo nenhum tomando a universalidade histórica da  
riqueza das sociedades, portanto, em algo que aparece também nas sociedades  
precedentes, como lei eterna, imutável. A continuação da frase com “onde reina o  
modo de produção capitalista” (MARX, 2017, p. 113) implica justamente a  
especificidade da sociedade civil-burguesa. As abstrações por si, separadas do  
contexto que a fazem, são indeterminadas, carentes de desenvolvimento, mas sua  
articulação interna na efetividade preserva o seu caráter histórico24.  
24 A exemplo do trabalho abstrato, sobre o qual Marx diz: “Esse exemplo do trabalho mostra com clareza  
como as próprias categorias mais abstratas, apesar de sua validade para todas as épocas justamente  
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Dessa maneira, a sucessão das abstrações em O capital se dá sempre de forma  
que a abstração precedente é condição da seguinte25, criando assim uma ordem de  
exposição necessária. Novamente, essa necessidade não provém de uma  
correspondência dessa ordem com a ordem de surgimento dessas abstrações na  
história, mas sim “pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa, e  
que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem natural ou da ordem que  
corresponde ao desenvolvimento histórico” (MARX, 2011, p. 60). Esse fato afasta a  
possibilidade de uma leitura historicista do assim chamado método em Marx, como  
Pachukanis entende, mas afirma o caráter rigorosamente histórico do caminho do  
abstrato ao concreto.  
Considerações finais  
Como já ressaltado, é certo afirmar que Pachukanis é um autor que, por mais  
que não tenha “a estatura de autores [marxistas] do século XX como Lênin, Lukács e  
Rosa Luxemburgo” (SARTORI, 2024, p. IX), produziu uma obra fundamental para  
qualquer um que se proponha a estudar a crítica marxista ao Direito, a ponto de se  
tornar incontornável para esse campo. Deixamos isso claro para que fique preciso que  
o intento desse artigo não é jamais o de apequenar Pachukanis, muito pelo contrário.  
Compreendemos que a crítica de seu trabalho mais impactante se mostra necessária  
para o avanço da própria crítica marxista ao direito.  
Sendo assim, parece-nos evidente, a essa altura de nossa exposição, que há  
sérios problemas naquilo que Pachukanis entende por método. O autor, ao debater  
com as posições dos neokantistas e das teorias sociológicas e psicológicas do direito,  
expõe aquilo que entende por serem as fragilidades metodológicas dessas  
concepções, ao passo que também apresenta o que seria o método correto. Em sua  
percepção, o mais adequado seria tomar a crítica à economia de Marx como um modelo  
para se aproximar da realidade.  
Para Pachukanis, aquilo que se mostra como “modelo” da crítica à economia  
política e que, portanto, deveria ser aplicado à investigação da forma jurídica, é o  
“método que vai do abstrato ao concreto”. Esse assim chamado método é encontrado  
por causa de sua abstração , na determinabilidade dessa própria abstração, são igualmente produto  
de relações históricas e têm sua plena validade só para essas relações e no interior delas.” (MARX,  
2011, p. 58)  
25 [...] a análise do capital e da mais-valia pressupõe o anterior exame do valor, já que o primeiro é um  
valor que se valoriza, e o segundo explicita o segredo desta valorização. O valor, por sua vez, somente  
pode ser compreendido se antes se capturou o trabalho abstrato, enquanto uma abstração  
historicamente particular que lhe dá conteúdo. No mesmo sentido, a mercadoria enquanto um valor de  
troca, ou mesmo valor, é incognoscível sem seus suportes materiais: os valores de uso.” (MACHADO,  
2018, p. 265)  
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na Introduçãode 1857, de Marx. Essa leitura aponta para uma confusão que o autor  
faz entre modo de exposição e modo de investigação ou pesquisa. Pois, em relação  
ao pensamento marxiano, a investigação é um momento pretérito, que toma a matéria  
por ela mesma e rastreia seus nexos internos. Enquanto a exposição é um momento  
posterior, em que, após a pesquisa realizada, passa-se a expô-la de forma adequada.  
Caso todo esse processo seja bem feito, Marx adverte que parecerá que havia uma  
construção a priori, o que de fato não é o ponto de partida.  
Pachukanis, ao contrário, toma esse percurso aprioristicamente até certo ponto,  
mesmo que com meandros próprios. O autor não capta pontos importantes da  
Introduçãode 1857, e chega a inferir que o desenvolvimento histórico das  
categorias corresponde ao modo de apreensão do concreto pelo pensamento, algo  
que o filósofo alemão rechaça explicitamente nesse mesmo texto. Lembremos, para  
Marx, reproduzir as categorias na forma como se sucederam na história além de  
impraticável é falso.  
Na verdade, a realização do caminho do abstrato ao concreto está posto mesmo  
em O capital. Da análise desse percurso fica manifesto que a conexão entre as  
categorias expostas não é o de sua coincidência com a história. Sim, a história tem um  
papel fundamental, pois é a partir da incursão nos modos de produção anteriores que  
se chega à especificidade da sociedade civil-burguesa. Contudo, a ordem de  
aparecimento das categorias na obra está vinculada à “relação que têm entre si na  
moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua  
ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico” (MARX,  
2011, p. 60).  
Essa posição frente à questão de método que há em Pachukanis não está em  
Marx. O pensador soviético, ao falar em aplicar o “modelo” da crítica à economia  
política de Marx ao campo do direito, separa o método de seu objeto em certo sentido.  
Com isso, em alguma medida o autor autonomiza a forma de se conhecer em relação  
ao objeto que é conhecido, bem como universaliza o caminho do abstrato ao concreto,  
de tal sorte que o método se torna a marca distintiva das ciências sociais em relação  
às demais.  
Tal posição difere da de Marx, para quem o caminho do abstrato ao concreto é  
tão somente o modo do pensamento de se apropriar do concreto. Portanto, se  
tomarmos método como uma construção a priori, que parte de um sujeito cognoscente  
e se faz incidir sobre o objeto investigado, não há uma questão de método no  
pensamento marxiano. Na verdade, o objetivo de Marx é em captar o ser-  
propriamente-assim vigente na realidade material, para a qual a adoção de qualquer  
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Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
modelo prévio conflui em seu falseamento.  
Portanto, demonstra-se que a tese de que Pachukanis retorna à “inspiração  
original de Marx” é insustentável, e que a apreensão do assim chamado “método  
marxiano” não é nada mais do que uma interpretação equivocada do autor soviético  
em relação ao que o filósofo alemão expõe na Introduçãode 1857, mesmo que  
nesse equívoco existam sim certos meandros a serem considerados. Claro, não é  
objeto desse pequeno texto analisar as repercussões que essa interpretação tem para  
o TGDM como um todo, tarefa essa que exigiria muito mais fôlego. Mas pelo que foi  
evidenciado, fica claro que existem diferenças notáveis entre Marx e Pachukanis que  
explicitam a necessidade de não tomar um autor pelo outro, mas antes lê-los  
cuidadosamente como pensadores singulares, com brilho próprio.  
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Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 256-279 jul.-dez., 2025  
nova fase  
Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato ao concreto  
Como citar:  
CASTILHO, Marcos Antônio Nascimento de. Pachukanis, Marx e o caminho do abstrato  
ao concreto: a assim chamada questão de método. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30,  
n. 2, pp. 256-279, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 256-279 jul.-dez., 2025 | 279  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.766  
Los orígenes del pensamiento ontológico en  
Georg Lukács  
The origins of ontological thought in Georg Lukács  
Diego Fernando Correa Castañeda*  
Resumo: En este artículo se hará un  
acercamiento a los diferentes períodos creativos  
de Georg Lukács en busca del sistema categorial,  
contenido a través del cual construyó su  
pensamiento ontológico. La ubicación de las  
categorías en las obras más representativas nos  
permitirá ver el desarrollo intelectual y, además,  
descubrir las diversas corrientes de pensamiento  
que iban a la par de sus creaciones, hasta llegar  
a su opus postumum: la Ontología del ser social  
en la que los diferentes campos ontológicos  
quedan consignados.  
Abstract: In this article we will approach the  
different creative periods of Georg Lukács in  
search of the contained categorial system  
through which he constructed his ontological  
thought. The location of the categories in the  
most representative works will allow us to see  
the intellectual development and, in addition, to  
discover the different currents of thought that  
went hand in hand with his creations, until we  
reach his opus postumum: the Ontology of  
social being in which the different ontological  
fields are consigned.  
Palavras-chave:  
pensamiento ontológico; categorías; ontología;  
campos ontológicos  
Sistema  
categorial;  
Keywords: Categorical system; ontological  
thought; categories; ontology; ontological  
fields.  
Introducción  
«Lukács… estaba cada vez más convencido de que tenía que asumir el papel  
de constructor de puentes para una nueva generación hacia un futuro marxismo  
renovado y progresista que regresara a Marx.» (cf. BENSELER, 1986b, p. 742)  
«… el motivo principal para escribir su ontología: La importancia  
del verdadero marxismo como única salida.» (cf. EÖRSI, 1976, p. 11)  
«Más allá del contenido objetivo de los Prolegómenos, hay que admirar el asombroso logro  
humano: la poderosa proeza con la que Lukács trató de contener la enfermedad que se estaba  
filtrando, utilizando los sacos de arena [homokzsákjait] de sus conceptos y convicciones».  
(DANNEMANN, 1986a, p. 12)  
«Si la historización resultara adecuada a su objeto, el campo teórico de  
Lukács quedaría definitivamente identificado como un lugar de fracaso. Quienes  
historizan a Lukács ya han dejado de tomarlo en serio.» (cf. BENSELER, 1986b, p. 733)  
Los primeros escritos de Georg Lukács son un compendio de ética y estética,  
todos filtrados a través de la forma ensayística. Las referencias sobre la ética son fáciles  
de encontrar debido a lo prolífico de sus aportaciones en el campo del comportamiento  
y la conducta humana. Sin embargo, el contraste con la ontología es muy notorio, no  
*
Máster en Filosofía Teórica y Práctica (Filosofia). Universidad Nacional de Educación a Distancia  
Facultad de Filosofía: Madrid, ES; diegocorreacast@gmail.com.  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
Verinotio  
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Los orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács  
encontramos referencias explícitas sobre ella. Al menos no hasta Historia y conciencia  
de clase, en donde más que una alusión directa a la ontología, lo que se puso en juego  
fue el intento, basado en un contraste entre las posturas de Hegel y de Marx, y  
utilizando la categoría de totalidad, de captar una nueva posición sócio-ontológica que  
le permitiera sobrepasar las posiciones del positivo académico y del marxismo  
heterodoxo imperantes en la época (cf. BENSELER, 1986b, p. 733). A estos nuevos  
objetivos se podría acceder haciendo un acercamiento a través del complicado sistema  
categorial que compone esta crucial obra; además de esto debemos atenernos a  
percibirlas de manera muy sutil, estableciendo el indisoluble contacto que hay oculto  
entre ellas, la ontología, y las diversas disciplinas. De este modo podría decirse que  
las afecciones sentimentales, los estados de ánimo, los vínculos que estrechan los lazos  
con las personas más cercanas en el caso de Lukács, las referencias directas son  
Irma Seidler y Leo Popperson el acicate detrás del cual se esconden las aportaciones  
ontológicas. Entendidas así, las primeras obras del autor que nos ocupa son ricas en  
referencias a la constitución de sentido que les dan a sus vidas los sujetos implicados  
en los complejos entramados dialécticos puestos en juego en la forma ensayística  
intrincada en que han sido establecidos, incluyendo las vivencias del propio autor,  
junto con sus dos queridos amigos. Inclinándose la balanza hacia el lado de Irma, «la  
redentora» (LUKÁCS, 1985, p. 75), a quien no solo está dedicada la obra más  
representativa del periodo, El alma y las formas, sino la singularidad que ocupa todos  
los espacios, llegando incluso a confundirse con la plétora de autores a los que la  
colección de bellos ensayos se ocupa de refigurar (LUKÁCS, 1985, pp. 84; 88; 94;  
98)1.  
En este sentido, la desaparición de sus dos grandes amigos por trágicos  
acontecimientos ocurridos en el año de 1911 produjo en Lukács una profunda crisis  
que lo llevó a pasar del idioma húngaro, en el que escribiera hasta entonces, al alemán  
(LUKÁCS, 1985, pp. 67; 106), con las inevitables consecuencias que esto pudo haber  
acarreado, no solo en su modo de expresión, sino también de pensamiento.  
«La historia de una obra póstuma» es el título del prefacio que escribió István  
Eörsi a la primera edición de Sobre la ontología der ser social en húngaro en el año de  
1976 (cf. EÖRSI, 1976, pp. 13-4)2. El camino y los motivos que llevaron a Georg Lukács  
1
Aquí quedaron consignadas las veces que Lukács vio a Irma como la protagonista verdadera de los  
ensayos que componen El alma y las formas. «El ensayo sobre Philippe está madurando de una manera  
extraña. Parece que será el genuino ensayo sobre Irma» (84); «… también el ensayo sobre Ernst será un  
ensayo sobre Irma» (88); «El ensayo sobre Philippe será en verdad el gran ensayo sobre Irma» (94);  
«creo que resulta apenas perceptible ni siquiera para Leoque el carácter radical del ensayo sobre  
Ernst… [Metafísica de la tragedia] es el de un ensayo sobre Irma» (98).  
2 «Por último, unas palabras sobre el título. En el curso de su obra, György Lukács lo cambió de Ontologie  
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a escribir con setenta años, la que él mismo denominó «la verdadera obra de mi vida»  
esto lo dijo cuando contaba con ochenta y un años(cf. EÖRSI, 1976, p. 9) deben  
ser recorridos de nuevo para que el lector de lengua española ubique de manera clara  
los momentos históricos previos y actuales que lo condujeron a la gestación de una  
de las obras filosóficas más importantes del siglo XX.  
¿Por qué el principal movimiento de vanguardia, el expresionismo,3 surgido en  
Alemania a principios del siglo XX enmarcado entre los años 1910 y 1923no  
está presente en la obra contemporánea de Lukács?4 ¿Se debe esto quizás, como  
dicen Abendroth, Holz y Kofler, a que los aspectos sociales aún no estaban puestos  
en claro en Alemania? (HOLZ et al., 1971, p. 7). Para un autor que goza del prestigio  
de ser un fiel representante de su tiempo argumento con el que casi todos sus  
comentaristas están de acuerdo, esto representa una incógnita, y máxime cuando ha  
sido calificado de anticapitalista romántico, llegando a ser esta categoría difícil, por no  
decir imposible, de encontrar en sus primeras obras. A no ser que consideremos la  
forma categórica del estilo libre de objeto (LUKÁCS, 1985, p. 99) a la que hizo  
alusión refiriéndose al estilo que debe adoptar un ensayo que verse sobre el  
romanticismo, que plantea ya en el año de 1910, como modelo para rastrear su  
incipiente anticapitalismo romántico.  
De la misma manera que se pueden ver o no las implicaciones del  
expresionismo alemán en las primeras obras de Lukács aquí no se pueden excluir  
los tres grandes acontecimientos que fueron la base de varios de sus primeros textos:  
la I Guerra Mundial (1914-1918) (cf. EÖRSI, 2011, p. 18) que produjo el escenario  
para escribir la Teoría de la novela; la Revolución rusa (1917) (cf. EÖRSI, 2011, p. 18)  
y el fracaso de la Revolución socialista en Alemania (1918-1919) en la que basó su  
esperanza de una nueva ética proveniente del Este y nutrió de aspectos místico-  
morales los escritos previos a Historia y conciencia de clase, podemos ver igualmente  
des Gesellschaftlichen Seins a Zur Ontologie des Gesellschaftlichen Seins para indicar que su obra no  
pretende ser una exposición cerrada y sistemática de la ontología de la existencia social. En una  
traducción especular, este sería el título de La ontología del ser social (A társadalmi lét ontológiájához);  
pero esta solución es chocante. Creemos que Sobre la ontología del ser social (A társadalmi lét  
ontológiájáról) también expresa el cambio de significado que el autor enfatizó al cambiar el título».  
3
Los dos principales grupos que se formaron alrededor del expresionismo fueron: Die Brücke (El  
puente): fundado en Dresde en 1905 por E. L. Kirchner, E. Heckel y K. Schmidt-Rottluff. Luego se  
sumaron Emil Nolde, Max Pechstein y Otto Müller. Der Blaue Reiter (El jinete azul): formado en Munich  
hacia 1911 por los alemanes Franz Marc, August Macke y Heinrich Campendonk; el suizo Paul Klee y  
el ruso Wassily Kandinsky.  
4
¿Acaso no fue consciente él de las obras cinematográficas de Robert Wiene y la fundamental El  
gabinete del Dr. Caligari (1919); Murnau y su Nosferatu (1922); Fritz Lang y sus increíbles: Dr. Mabuse  
(1922); y Metrópolis (1927); o de Karl Boese y El Golem (1920). Del teatro de Kayser o de Toller, y de  
la pintura de Käthe Kollwitz o Franz Marc?  
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Los orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács  
cuáles de los acontecimientos (y las obras dedicadas a la ontología con las que la suya  
dialoga, se enfrenta y trata de dar respuesta), más relevantes que tuvieron lugar en la  
década de los años sesenta están implícitos en la creación de la Ontología. El opus  
postumum tuvo origen en el deseo de Lukács por encontrar nuevas vías de expansión  
para la ontología marxista y, por tanto, su refundación. Los acontecimientos  
contemporáneos a su gestación están presentes en la medida en que reflejan las  
realidades categoriales que precisamente se pretende refundar. De ahí que categorías  
como la manipulación o el consumo de prestigio, que juegan un papel central a la hora  
de ver la nueva realidad económica, pueden ser vistas a los ojos del crecimiento  
económico y los notables avances científico-tecnológicos que permitieron un  
mejoramiento de las condiciones de vida, en gran medida manipulada según Lukács,  
de importantes sectores de la población mundial.  
La construcción de la Ontología discurrió por un camino muy diferente al de la  
otra gran obra del período: El asalto a la razón. Muy acertadamente, Traverso indica  
la exclusión de obras precedentes a la elaboración esta (2021a, p. XVIII). Lukács había  
dejado por fuera quizás por desconocimientoel gran abanico de obras previas  
que habían tratado de alguna manera de dar respuesta al surgimiento del  
irracionalismo en Alemania. Desde Max Horkheimer y Theodor W. Adorno con la  
Dialéctica de la Ilustración (1944), pasando por Siegfried Kracauer y su De Caligari a  
Hitler. Una historia psicológica del cine alemán (1947), hasta llegar a Thomas Mann,  
quien dio forma literaria a la idea del destino demoníaco de Alemania en su novela  
Doktor Faustus (1947). La diferente senda que adoptó la Ontología de Lukács está  
plasmada en las múltiples huellas que se pueden encontrar a lo largo de su obra, de  
las construcciones ontológicas con las que dialoga y a las que además combate. La  
oposición a la concepción del ser del autor de Ser y tiempo contrasta con la sintonía  
que encontró Lukács en la Ontología de Nicolás Hartmann5, y la poca atención que  
prestó al planteamiento ontológico de Sartre en Crítica de la razón dialéctica6. Así  
estos, Heidegger, Hartmann, Sartre y el propio Lukács, hayan tenido los mismos  
5
«… los escritos ontológicos de Hartmann actuaron como catalizadores del pensamiento de Lukács;  
muy probablemente le inculcaron la idea de buscar en la ontología y sus categorías la base de su propio  
pensamiento». Véase N. Tertulian. G. Lukács, Prolegomeni all'ontologia dell'essere sociale. Milan: Edizioni  
Angelo Guerini e Associati, 1990, p. XVIII.  
6 Nicolás Tertulian habla de lo decepcionante que resulta la escasa referencia del filósofo francés en la  
Ontología. El tratamiento superficial que recibe Sartre (en referencia a la disputa entre la dialéctica de  
la naturaleza y la dialéctica social) impide que se pueda hablar de una confrontación seria entre las dos  
posturas. Además de esto, Lukács habla de que debido a lo caótica que encontró la obra de Sartre  
abandonó su lectura. Tomado de Revue de Métaphysique et de Morale. Oct.-dic., 1978 (año 83), n. 4,  
pp. 498-517. Traducción del francés por: José Félix Hoyo Arana. Tertulian, N. Ontología del ser social.  
Gyorgy Lukács y la reconstrucción de la ontología en la filosofía contemporánea. Universidad Autónoma  
Chapingo, 1987, p. 32.  
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adversarios, el neokantismo, el positivismo y la fenomenología husserliana, los caminos  
que tomaron para superarlos fueron diferentes (TERTULIAN, 1978, pp. 21-2).  
El vínculo teórico entre Lukács y Hartmann lo encontramos ya desde la Estética.  
Es por eso por lo que las formas categoriales que los enlaza tienen un fundamento  
distinto del ontológico, así la estética lukácsiana contenga en su interioridad una  
concepción bien definida de lo que es el ser. Un primer acercamiento implica a  
categorías relacionadas con la crítica teológica (LUKÁCS, 1966a, pp. 129-30); o con  
aportes que orientan a Lukács hacia la elaboración de categorías tan complejas como  
la distinción entre el hombre entero y el hombre enteramente (LUKÁCS, 1966b, p. 363);  
aunque también se opone a la visión fenomenológica hartmanniana en la discusión  
contemplativo-espacial arquitectónica (LUKÁCS, 1966b, pp. 364-5). No se trata de  
mostrar todo el influjo, sino de ver que ya existía entre ellos una conexión que se  
expandió cuando se pasó a la Ontología.  
Hartmann, que entre 1935 y 1950 diseñó su sistema ontológico, hasta ahora  
no superado «… en nuestro presente falta una auténtica crítica ontológica. Como ya  
se ha expuesto anteriormente, Nicolai Hartmann es el único que ha abordado esta  
cuestión con conocimiento e inteligencia, al menos en la ontología del ser natural  
también con éxito» (LUKÁCS, 1986b, p. 390), le brinda a Lukács las herramientas  
ontológicas con las cuales construir un puente con la heterogeneidad de las  
introducidas por Marx. En su Ontología Lukács se propone poner en concordancia las  
categorías modales introducidas por Hartmann de posibilidad, casualidad y necesidad,  
con las marxistas de Genericidad en-sí, Genericidad para-sí y procesualidad. En Nicolai  
Hartmann las categorías adquieren el rango de principios del ser [Seinsprinzipien], lo  
que evidentemente se aproxima teniendo en cuenta que Hartmann es posterior a la  
concepción marxistaa la forma que adquieren en Marx, y que es la desarrollada por  
Lukács en la Ontología, como formas del ser, determinaciones de la existencia  
[Daseinformen, Existenzbestimmungen].  
Una de las características principales resaltadas por Lukács son los intentos  
fallidos del neopositivismo y existencialismo de dar cuenta del ser social centrado en  
las figuras de Husserl, Sartre, Heidegger. Estos introducen una ontología  
existencialista, a través de la cual logran una «homogeneización mecánica de las  
categorías del ser, de las leyes del ser, etc., en la naturaleza y la sociedad» (LUKÁCS,  
1984, p. 143). produciéndose un retorno epistemológico al dualismo idealista  
burgués. Heidegger construye su sistema ininteligible e irracional para Bunge  
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Los orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács  
(BUNGE, 2011, p. 27) 7 siguiendo las huellas de los precursores del existencialismo  
y da continuidad a la tradición, sirviéndose de categorías tales como la «nada  
dadificadora» [nichtenden Nichts] (LUKÁCS, 1963, p. 294), que Lukács no duda en  
afirmar que son de una oscuridad impenetrable (LUKÁCS, 1967a, p. 305). Las  
categorías principales que «…creen poder encontrar en la investigación  
fenomenológica-ontológica del Dasein… no son más que modos de apariencia  
inmediata de la vida moderna, capitalísticamente alienada y manipulada» (LUKÁCS,  
1984, p. 382). Nos presentan esencialmente a un individuo imbuido de aspectos  
arcaicos como los denomina Blumenberg (2003, p. 41) , aburrido, miedoso (1984,  
p. 389), arrojado [Geworfenheit] o aislado [isoliert] (LUKÁCS, 1984, p. 8). De las  
utilizadas como herramienta para dar el salto de lo fenomenológico a lo ontológico,  
las más destacadas son la reducción, la puesta entre paréntesis o la purificación  
[Reinigen] fenomenológica (LUKÁCS, 1984, pp. 376-7). La base del irracionalismo  
consiste en la pretensión de establecer una antropología filosófica con prioridad  
ontológica del ser sobre la conciencia; separando ámbitos que por su propia naturaleza  
son indisolubles, el antropológico y el social. Esto lleva al método existencialista al  
callejón sin salida de convertir a la filosofía en una antropología idealísticamente  
irracionalista, ya que ineludiblemente sin una ontología dialéctica de la naturaleza  
dejada de lado por irrelevanteno puede fundarse ninguna ontología dialéctica del  
ser humano y de la sociedad (LUKÁCS, 1984, p. 396).  
Después de un largo recorrido que lo llevó desde exiliarse en Viena, residir en  
Berlín, de donde se marchó en 1933 por la llegada de los Nazis al poder, exiliarse de  
nuevo en Moscú hasta el final de II Guerra Mundial, para regresar nuevamente a  
Budapest en 1944 e inmiscuirse de nuevo en actividades políticas, que lo llevaron otra  
vez a la deportación y a poner en peligro su vida, después de este largo peregrinan  
por fin encuentra el momento para dedicarse por completo a sus estudios de ética y  
muy especialmente de estética. Podría fijarse la fecha en la que «comenzó a trabajar  
en su Estética» (cf. EÖRSI, 1976, p. 9) el día 10 de abril de 1957 (RADDATZ, 1975,  
p. 19). Lukács se había fijado un plazo de diez años para escribir una Estética que  
tendría que constar de tres partes, pero «en 1962, solo había completado la primera  
parte del plan» (cf. EÖRSI, 1976, p. 9). Nicolás Tertulian, por su parte, informa que en  
mayo de 1960, en una carta que Lukács dirigió a Ernst Fischer, le anuncia que la  
Estética ya está terminada. En cualquier caso, a principios de la década de los sesenta  
7 «La metafísica es un discurso sobre el Ser, la Nada y el Dasein la existencia humana(HEIDEGGER,  
1953). Objeción: es imposible, porque semejante discurso resulta ininteligible y, además, es  
manifiestamente irracional. Si el lector abriga dudas, lea a Heidegger o Sartre».  
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Lukács sufrió el gran impacto de dar por concluido un proyecto que en un principio se  
había fijado más extenso, de dar comienzo a una Ética que lo embargaba desde sus  
inicios como crítico teatral, y de ver cómo se le imponía la necesidad de escribir una  
obra previa que pusiera en claro los presupuestos éticos que ya se habían puesto en  
marcha en su máquina de pensamiento, como la llama Tertulian (1987, p. 19). Una vez  
terminada esta primera parte se propuso dar continuidad para terminar la obra, pero  
en el plan se interpuso la ética, disciplina a la que le otorgaba en sus primeras obras  
un papel relevante. Llamándola «pureza espiritual» (LUKÁCS, 1985, p. 122) en su  
diario, o como en el caso de El alma y las formas (1911), en donde las acciones  
humanas que se manifiestan en contraposiciones infinitas encuentran en el terreno de  
las valoraciones éticas su completa armonización (LUKÁCS, 2013, p. 131), o en el de  
La teoría de la novela (1914-1915) en donde recibía la denominación de «principio  
unificador» (LUKÁCS, 1999, p. 107). Aunque esta interposición realmente significaba  
«continuar con los objetivos de las conferencias que impartía en la Escuela Libre de  
Humanidades: la creación de una ética radical de la época del mundo moderno»  
(DANNEMANN, 1986a, p. 209).8 Con lo que este cambio de enfoque no fue una simple  
transición momentánea, caso contrario del «paso del término éticaal de ontología”  
… [que según Benseler] se produce de forma espontánea, vehemente y decisiva» (cf.  
1986b, p. 733), si no más bien regresar a los intereses que ya le preocupaban en los  
años previos a Historia y conciencia de clase. Es este el momento en el que descubre  
que es una ética con contenido materialista, es decir, una filosofía de los valores  
apoyada en una normativa humana materialista o siguiendo a Tertulian, elucidar los  
componentes y la estructura de la vida social(1987, p. 19), la que tendría que  
«preceder a la segunda y tercera partes de la estética» (cf. BENSELER, 1986b, p. 731).  
De la misma manera que a «Die Eigenart des Ästhetischen», que nosotros conocemos  
como la Estética de 1963,9 la habían precedido unos Prolegómenos a una estética  
marxista. Sobre la categoría de la particularidad, este nuevo impulso creativo lo empujó  
a la elaboración de un «fundamento ontológico» previo, que lo llevó de nuevo a escribir  
una «introducción ontológica» (cf. EÖRSI, 1976, p. 10) (Prolegómenos a la ontología  
del ser social. Cuestiones de principio de una ontología que hoy es posible) que debería  
servir como fundamento para una mejor comprensión de su pensamiento ético.  
8 Para corroborar esta información también está el libro de José Ignacio López Soria, De lo trágico a lo  
utópico (1978a, p. 235). «Las conversaciones sostenidas en la escuela libre de las ciencias del  
espíritutienen por objeto la agrupación de las artes según las épocas, el problema de la trivialidad,  
la importancia de la ética».  
9 La publicación de la Estética en alemán por la editorial Luchterhand es de 1963 en dos volúmenes, y  
en español es de cuatro volúmenes por la editorial Grijalbo es de 1966.  
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Los orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács  
Los orígenes de los Prolegómenos para la ontología  
«Estos Prolegómenos, que evitan el rígido dualismo de las partes histórica y metodológica, no  
son en realidad un prefacio a la “Ontología”, de hecho no son un prefacio en absoluto: son la suma  
total de una obra que ya no está escrita.» (cf. EÖRSI, 1976, p. 12)  
«Sin embargo, no hay muchos ejemplos en la historia de introducciones independientes tan  
detalladas… Es posible que más adelante estos Prolegómenos representen la parte más importante  
de la “Ontología” como autodeclaración.» (cf. BENSELER, 1986b, p. 742)  
Frank Benseler dice que «en su correspondencia con el editor, Lukács menciona  
por primera vez la Ontologíael 19 de septiembre de 1964» (1986b, p. 731), y  
aunque afirma que es la primera vez que Lukács hace referencia a la Ontología, las  
huellas de las inquietudes ontológicas de Lukács no le llegaron de golpe en la vejez.  
En las «Notas para el compañero Lukács sobre la Ontología» (Aufzeichnungen für  
Genossen Lukäcs zur Ontologie) los miembros de la primera Escuela de Budapest,  
Ferenc Fehér, Ágnes Heller, György Márkus y Mihály Vajda, ya afirmaban que «Creemos  
que podemos hablar… [sobre la intención de escribir una Ontología] correctamente de  
la realización de los planes juveniles en la vejez» (cf. 1986a, p. 209).  
Aunque no se trata de hacer un recorrido histórico exhaustivo por todos los  
pasos que llevaron a Lukács a la elaboración de la Ontología del ser social, sí es  
necesario por lo menos enmarcar los momentos más destacados en la concepción del  
pensamiento cumbre de su madurez. Los mayores detalles los proporcionan sus  
discípulos más cercanos, los que la tradición ha llamado la Escuela de Budapest.  
Máxime cuando el propio Lukács debatía los aspectos centrales con ellos. Debemos  
tener en cuenta que los Prolegómenos surgieron precisamente del intenso debate fruto  
de esas arduas discusiones. La técnica empleada por Lukács era que «tan pronto  
comoterminaba un capítulo… [entregaba] el texto a uno de sus alumnos». Durante  
el año de «1968, … [les] presentó el manuscrito completo con el expreso deseo de  
tener con ellos discusiones detalladas y críticas al respecto» (cf. BENSELER, 1986b, p.  
745). Dichas discusiones se desarrollaron en cinco encuentros que … «Tuvieron lugar  
en el invierno de 1968-1969» (TERTULIAN, 2006, pp. 29-53). Y de las que  
desafortunadamente el resultado obtenido, como lo manifiesta Tertulian, después de  
haber sido publicado «tuvo el efecto de crear un prejuicio bastante desfavorable hacia  
el opus postumum lukácsiano, sobre todo en una época en la que el lector no tenía la  
posibilidad de formarse su propia opinión al respecto» (1990, p. XI).  
Los resultados del exhaustivo examen de las diversas partes que componen la  
Ontología fueron presentados a «M. Vajda, quien editó los documentos y llevó el punto  
de vista común a una fórmula unificada» (DANNEMANN, 1986a, p. 211). Los puntos  
fueron presentados en un único informe que contenía las correcciones que se deberían  
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llevar a cabo en cinco puntos centrales de la Ontología. El primero de ellos son las  
Notas sobre la parte I de la Ontología. Sobre la cual afirman que «contiene dos  
concepciones de la antología que se contradicen en muchos aspectos» (cf.  
DANNEMANN, 1986a, p. 232). Le siguió el informe sobre el “Capítulo del trabajo, del  
que afirman que su «mayor defecto es… que precisamente tal problema queda sin  
resolver, o incluso no se plantea en absoluto» (cf. DANNEMANN, 1986a, p. 237). En el  
tercer apartado se aborda el “Capítulo sobre la reproducción, aquí los alumnos  
presentan sus discrepancias en torno a los temas de la libertad y las alternativas.  
Extrayendo citas de la Ontología, para después compararlas y hacer evidentes las  
contradicciones, muestran en la primera de ellas que si la «libertad significa  
exclusivamente que la situación del individuo está determinada cada vez más por  
casualidades, con la presión en primer plano de las leyes económicas generales… [en  
la segunda cita encuentran que] es solo la apariencia de la libertad», con lo que ellos  
encuentran una contradicción con la que se muestran en desacuerdo, ya que esto  
implicaría que «no se podría atribuir ninguna relevancia ontológica al problema de la  
libertad». En favor de su argumentación, ellos dicen que «el creciente papel de la  
casualidad en las decisiones individuales crearía, en efecto, solo apariencia de  
libertad». De estas disquisiciones sacan la conclusión que el «problema de la libertad  
social no puede tratarse en la correlación de las categorías necesidad-casualidad”»  
(cf. DANNEMANN, 1986a, p. 241). El cuarto informe se centra el “Capítulo sobre la  
ideología”, esta vez ellos sugieren que se deben «omitir los dos primeros puntos del  
capítulo», ya que estos dos epígrafes «apenas añaden nada nuevo a lo que se ha  
esbozado en capítulos anteriores», además están repitiendo «casi todo del capítulo  
sobre el trabajo», y no solo lo hacen de manera menos clara, sino que no «llevan a  
cabo el análisis de los momentos ideales» (cf. DANNEMANN, 1986a, p. 246). El informe  
termina con el “Capítulo sobre la alienación”, en términos generales las referencias son  
negativas, no aceptan la concepción básica del capítulo porque la alienación recibe un  
tratamiento solo desde la óptica del individuo, desde la personalidad, y no desde la  
filosofía de la historia (cf. DANNEMANN, 1986a, p. 250). En contraposición con lo  
planteado en la Ontología se encuentran las posiciones adoptadas por Lukács en el  
último capítulo de El joven Hegel y también en el Estudio de Marx (1986a, p. 253). En  
el capítulo de la Ontología dedicado a la Ideología, este es un fenómeno de la sociedad  
en su conjunto, solo en la medida en que en determinadas sociedades gran parte de  
los individuos llevan una vida alienada en la mayoría de las relaciones. Los aportes  
que aparecen en la «Ideología alemanarelacionados con la alienación, que  
contradicen tal interpretación relacionada con el individuo, ni siquiera se mencionan  
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en este capítulo» (cf. DANNEMANN, 1986a, p. 250).  
Sobre el resultado y los efectos que produjo en Lukács el informe llevado a  
cabo por el grupo de amigos y alumnos y la posterior modificación que debería llevar  
a cabo en la Ontología nos informa István Eörsi. Este afirma que Lukács en ningún  
momento llego a poner en duda la concepción fundamental de la Ontología, y mucho  
menos su método de pensamiento. El efecto producido tomó una dirección inesperada  
para los que realizaron los diversos aportes10. Lukács pensó que la exposición sobre  
los temas tratados carecía de capacidad de persuasión, esto lo condujo de manera  
precipitada, era una carreta contra la enfermedad, a la elaboración de un texto  
resumido que ayudara a una mejor comprensión de las supuestas contradicciones que  
existían dentro de su gran obra. De ahí surgieron los Prolegómenos a la Ontología del  
ser social (cf. EÖRSI, 1976, p. 11).  
Referencias directas de Lukács sobre ontología (con una breve  
alusión a la ubicación temporal de las categorías)  
«No es que la historia tenga lugar dentro del sistema de categorías, sino que la  
historia es el cambio del sistema de categorías.» (LUKÁCS, 1986b, p. 740)  
La Ontología está sustentada en un sistema categorial específico de la  
ontología, en constante interacción con los sistemas categoriales utilizados por las  
diversas disciplinas que se ocupan de dotar de sentido la vida del sujeto, desde la  
lógica, la teoría del conocimiento y la metodología científica. «La ontología se define  
como un proyecto de una teoría comprensiva de las categorías que debería servir de  
guía para captar las diversas formas en la que el ser está constituido… los tres grandes  
modos del ser (naturaleza inorgánica y orgánica, sociedad).» (LUKÁCS, 1984, p. 8) Sin  
pretender desde luego agotar el tema, sino más bien brindar un ámbito de actuación  
que nos lleve de ver los complejos del campo categorial (que van desde obras muy  
tempranas, principios del siglo XX, hasta el tercer cuarto de siglo, en donde el modelo  
categorial sigue vigente, pero con cambios sustanciales en su desarrollo), podemos  
hacer una breve reseña de las categorías que el autor ha puesto en juego en sus obras.  
De este modo podemos encontrar alusiones directas sobre un sistema de las  
categorías en gestación en obras como Sociología del drama moderno (1909, cf.  
LUKÁCS, 1984, p. 8). Acerca de la pobreza de espíritu (1910, cf. LUKÁCS, 2015); el  
Diario redactado entre 1910-1 texto central para entender esta primera etapa, El  
10 Nicolás Tertulian rechaza explícitamente la dura crítica de los inmediatosalumnos de Lukács (cf.  
TERTULIAN, 1992, p. XII).  
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alma y las formas (1911), en donde él las nombra directamente como categorías  
valorativas (LUKÁCS, 2013, p. 46), hasta La teoría de la novela (1914-5), donde estas  
son llamadas categorías historias inmaduras, y para remarcar su importancia y  
radicalidad indica que los conceptos técnicos (las categorías) abarcan incluso al Dios  
mismo (LUKÁCS, 1999, p. 108), o la Estética de Heidelberg (1916-1918), en donde  
estas tienen el cometido de contribuir con el distanciamiento que Lukács emprende de  
la fenomenología metafísica, con su intento de otorgar un nuevo método de valor a  
las representaciones estéticas de significado, y a buscar un acercamiento a una  
fenomenología estética que dote al sujeto valorador de una capacidad desprejuiciada  
y neutral (LUKÁCS, 2022, p. XVII).  
Desde este primer período ensayístico-romántico se puede dar el salto a los  
ocho ensayos político-filosóficos (KELEMEN, 2014, p. 3) que componen Historia y  
conciencia de clase. Aquí la meta cambia, ahora se trata de establecer la relación  
existente entre el pensamiento de Marx y el de Hegel. Las categorías se convierten en  
dialécticas, la comunidad de estados de ánimo es sustituida por categorías  
constitutivas del ser que tendrán que ser utilizadas, no solo como un instrumento del  
conocimiento «epistemológico», sino de transformación de la realidad del sujeto  
histórico «ontológico»; se abre paso un nuevo sistema categorial que tendrá su  
culminación perfecta en la Ontología. Ahora el predominio pasará a las categorías de  
la alienación [Entfremdung], la cosificación [Verdinglichung] y la enajenación  
[Entäußerung], que tendrán que ser abolidas, superadas y transformadas a través de  
un sistema catártico (LUKÁCS, 1966b, pp. 336; 491) similar al de la tragedia griega,  
o sustituido siguiendo el modelo de la teoría ética spinoziana de los afectos (LUKÁCS,  
1966a, pp. 127; 184; 187 ff.), modelo que tendrá un papel decisivo tanto en la  
Estética como en la Ontología (LUKÁCS, 1986b, pp. 527; 650). Aunque es cierto que  
la catarsis desaparece en la Ontología, en donde la teoría de los afectos ocupará un  
lugar central, será en la gran obra previa, la Estética, en donde estas dos formas  
categoriales se pondrán en escena para mediar entre la vida cotidiana, la ciencia y la  
ética, junto con la producción y reproducción artística (LUKÁCS, 1966a, p. 13).  
Este breve resumen nos lleva de estas dos originarias y fértiles etapas al que  
podríamos considerar el tercer gran período ensayístico-antifascista (KLEIN, 1990) y  
critico-literario que desarrolló en su estancia en Rusia llamado quizás de una forma  
un poco exagerada por Enzo Traverso: periodo estalinista(2021a, p. IX), para pasar  
así a la cuarta etapa repleta de contenido estético, en donde el sistema se perfecciona,  
y de este modo poder ubicarnos en el quinto y último periodo ya plenamente bajo al  
abrigo de la ontología, en el que el sistema adquiere su madurez definitiva. Aunque la  
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Los orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács  
ética no aparece en este breve resumen, ella está verdaderamente presente en todos  
ellos. Podríamos afirmar que es el telón de fondo detrás del cual se desarrollan todos  
los demás. Recordemos que la obra que nos ocupa, la Ontología y los Prolegómenos,  
que escribió para despejar las dudas que surgieron entre sus discípulos, tenía como  
intención inicial la construcción de una ética.  
De este modo, nos encontramos con que las aportaciones sobre aspectos  
ontológicos durante el primer período creativo de Lukács son escasas. Para encontrar  
referencias directas, lo cual no ocurre ni con la ética, de la que está imbuida toda la  
primera etapa, ni con la estética (de la que los signos son inequívocos), debemos  
servirnos de las constantes referencias a las vivencias y a los estados de ánimo. Es  
importante considerar que estas categorías se encuentran entre las más utilizadas, no  
obstante, no en el sentido ontológico que adquirirán en su obra posterior11. Es por  
eso por lo que cuando nos encontramos una expresión como «técnica visual» (LUKÁCS,  
1985, p. 76) para referirse a la capacidad que él tenía, no solo de ver a los demás,  
sino de valorarlos, nos asaltan las dudas sobre si esta es ya una inmadura categoría  
ontológica. O cuando, refiriéndose al lugar que ocupa Irma en su vida, acude a la  
contraposición categorial teológica al considerar que debe o bien valorarla como  
sagrada, o alejarla de él, condenándola (LUKÁCS, 1985, p. 90). Lo mismo nos ocurre  
con formas anímicas, pero con un trasfondo categorial, como lo puede ser el recuerdo  
(LUKÁCS, 1985, p. 78), o la evocación (LUKÁCS, 1966b, p. 27), ambas formas alusivas  
al mismo sistema, separadas por una gran distancia (el Diario de 1910 y la Estética de  
1963), utilizadas de forma totalmente distinta, pero cumpliendo una función categorial  
clara.  
Si para detectar en el primer período las huellas sobre ontología había que  
ejercer una semi labor arqueológica, pasa todo lo contrario en la que hemos  
denominado cuarta etapa, esto es, la de la estética. Desde luego que la exclusión  
forzada de la actividad política, o más que la exclusión, la expulsión de la vida pública,  
fue el detonante que puso en marcha el movimiento que derivó en la construcción de  
la Estética. Obra en la que define con precisión el lugar que ocupa el ser humano «…  
el hombre, ya en su hacerse tal y aún más en su existencia como hombre, es un ser  
social» (1966b, p. 207). De ahora en adelante solo tendrá que desarrollar y profundizar  
11 Las ocasiones en las que el Lukács joven (1910) se refiere a un sistema categorial propio son escasas,  
pero cuando lo hace deja entrever que es plenamente consciente de que no solo las conoce, sino  
también de que las utiliza. Un caso claro lo podemos ver cuando hace referencia a una antítesis  
categorial que lo está afectando directamente: felicidad/infelicidad u optimismo/pesimismo. Esto además  
es una prueba de la tesis que hemos venido sosteniendo a través de este artículo, y es el empleo de un  
sistema categorial, con influencia directa en aspectos ontológicos, pero plenamente imbuido de  
contenidos anímicos (LUKÁCS, 1985, p. 110).  
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esta premisa. Lukács advirtió la presencia tanto de rasgos estéticos como ontológicos  
en la obra de Marx. Pero aun siendo esto así, también supo detectar la ambivalencia  
que se encontraba debajo del ropaje dialéctico «… Hay y no hay una estética marxista»  
(1966a, p. 16). En caso de estar presente, pero diluida en toda la obra, entonces la  
labor tendría que ser de «conquista» a través de una trabajo de investigación  
autónomo. En el caso contrario, su entusiasmo lo empujó a pensar que ante «la duda  
de su existencia … [entonces dicha estética tendría que ser] creada» (LUKÁCS, 1966a,  
pp. 16-7). Con la ontología pasa lo mismo, en Marx hay una ontología subyacente,  
solo hay que despertarla12. Ese largo recorrido, que hemos superficialmente  
bosquejado aquí, tuvo sus comienzos en Hegel, se afianzó después de haber realizado  
estudios de economía y dialéctica, para desembocar en la obra que ahora nos ocupa  
(LUKÁCS, 1985, p. 43).  
Tratamiento temporal del desarrollo lukácsiano hasta llegar a la  
ontología (Se incluirán los aportes más significativos de este  
desarrollo)  
El momento en el que Lukács inicia su obra fundamental está claramente  
demarcado. Comenzó tras la suspensión de la Estética programada en tres partes. Así  
es de que el período entre los años 1960 y 1962 podría fijarse como la fecha exacta  
en la que comienza la elaboración de la Ontología. Las referencias son múltiples y  
variadas. Se pueden encontrar por todas partes. La proliferación de estudios que hay  
sobre Lukács abundan en información biográfica sobre el origen de la obra que nos  
ocupa. En este artículo ya se han hecho, y se harán, aportes conducentes al  
esclarecimiento de la génesis de esta importante obra.  
La división temporal, el giro que marca un cambio brusco en el desarrollo del  
pensamiento, la creación de una obra que rompe los paradigmas tradicionales, todos  
son parámetros válidos que ayudan a organizar los contenidos objeto de estudio. La  
vida de Lukács, al igual que al de muchos otros, sufrió esta clase de clasificaciones. Lo  
más común es realizar un contraste entre dos partes; pero antes de mostrar la división  
que llevan a cabo los expertos nos atrevemos con una catalogación propia. El estudio  
detallado nos ha llevado a hacer la división en cinco períodos: todo comienza con un  
período ensayístico-romántico (con fuerte actividad cultural: gran cantidad de textos  
relacionados con el drama y el teatro, fundación del Teatro Thalía); continúa con dos  
etapas entrelazadas, la de los ensayos político-filosóficos (socio-ontológicos); y el  
12  
«Un intento de devolver realmente el pensamiento del mundo al ser solo puede hacerse hoy en día  
en el camino de despertar la ontología del marxismo.» (LUKÁCS, 1984, p. 34)  
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ensayístico-antifascista o critico-literario llamado por M. Buhr «teórico literario y  
crítico de la filosofía imperialista»(cf. BUHR, 1986a, p. 13.; LUKÁCS, 1990, p. X.)  
(estas dos con un acento muy marcado por la actividad política y la clandestinidad); en  
la cuarta posición optamos por el imponente y determinante período estético (como  
una prolongación de las investigaciones llevadas a cabo durante su estancia en Rusia);  
y clausuramos con el período ontológico (en el que como es lógico confluyen todos los  
demás).  
Por otra parte, lo normal es encontrarse con denominaciones tales como el  
joven y el viejo Lukács (FERENC et al., 1996, p. 79); para este último período Venancio  
Andreu se sirve de la expresión Lukács maduro (ANDREU, 2020, pp. 9; 11 ff.); el primer  
período y el segundo; el premarxista y el postmarxista; el teórico y el práctico. Estas  
subdivisiones dependen de las preferencias de quien las haga, y desde luego, de la  
riqueza de matices y vivencias que tenga el retratado, que en el caso de Lukács son  
múltiples. Se suele decir que hay un Lukács previo y posterior al marxismo. López Soria  
agrupa en el concepto de lo trágico las vicisitudes de este primer período; Löwy se  
inclina por la denominación de anticapitalismo romántico (LÖWY, 1978d, p. 100); de  
las cuatro subdivisiones que ha establecido recientemente Traverso podemos  
acomodar las dos primeras en esta sección: «Primero hubo un momento juvenil,  
premarxista, romántico, mesiánico e idealista, moldeado por obras aclamadas como El  
alma y las formas (1912) y Teoría de la novela (1916)» (TRAVERSO, 2021a, p. IX).  
Después le llegaría la hora el momento «“extremista, … [que llega] cuando Lukács se  
hizo comunista y participó en la Revolución húngara de Béla Kun, en la que produjo lo  
que suele considerarse su obra marxista más creativa: Historia y conciencia de clase»  
(TRAVERSO, 2021a, p. IX). Rüdiger Dannemann pone el énfasis en la visión mitológico-  
religioso presentada por Lukács en los apuntes del libro sobre Dostoyevski (1986a, p.  
10).  
López Soria se ocupa del primer período de Lukács que él denomina trágico. El  
período posterior será llamado por él: el periodo utópico. Desafortunadamente, los  
finos análisis no llegan hasta el periodo de madurez, allí nos habla de un Lukács  
descubridor de perspectivas, que tenían que ser superadas una vez se alcanzaba el  
horizonte, que no había sido puesto como meta, sino como simple punto de vista  
lejano en el camino que se proponía emprender siempre en su incesante búsqueda  
intelectual (SORIA, 1978a, p. 234). Por eso es por lo que López Soria nos habla de la  
ubicación permanente de Lukács en ese horizonte siempre cambiante; horizonte que  
ha de servir para saltar de lo trágico a lo utópico. Y no es que ese salto se deba a un  
cambio de paradigma teórico-filosófico, sino más bien, que implica aspectos  
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vivenciales reales y concretos, tales como sus deseos permanentes de suicidio («mis  
actuales estado de ánimo suicidas son extraños»13 llega a escribir en su diario), que  
una vez superados, superado el horizonte trágico, darán cabida al desplazamiento de  
la angustia ante la falta de sentido de la vida individual al horizonte utópico, aunque  
revestido de utopismo burgués, en donde el nuevo sentido encontrado para la vida en  
el horizonte ubicado en el oriente de Europa, la Revolución Rusa, harán que el destino  
de su vida cambie para siempre.  
Nicolás Tertulian, que se distingue por hacer finos y breves análisis aunque  
Traverso lo acusa de ser uno de los críticos más indulgentes en cuanto a la valoración  
del Asalto a la razón(2021a, p. XXIX), dice sobre este primer período que Lukács  
estuvo influenciado por las lecturas de Meister Eckhard, Kierkegaard y Dostoyevski .  
Como es bien sabido, los principios de estos sistemas de pensamiento están  
diseminados por toda la obra anterior a la incursión de Lukács en el marxismo. Dicho  
brevemente, la relación entre Kierkegaard y Regina Olsen fue el detonante para la que  
se estableció entre Lukács e Irma Seidler; la lectura de Dostoyevski fue la luz que se  
encendió desde el Este y en la que Lukács encontró por fin la refiguración del nuevo  
Homero. Pero Tertulian abre vías insospechadas para nosotros, alejadas de la parte  
vivencial que a veces es la que un lector desprevenido puede hacer, y nos dice que  
estas lecturas contribuyeron a la elaboración de una interpretación del marxismo,  
centrada en la crítica de la reificación y vocación no conformista (TERTULIAN, 1987, p.  
11) que se distinguirá de la institucionalizada por la ortodoxia marxista, y que será en  
definitiva la que marcará gran parte, no solo de la recepción de la obra en el mundo  
del Este, sino incluso el propio proceso vital del autor.  
Sobre la segunda etapa del desarrollo del pensamiento de Georg Lukács, casi  
todos coinciden en llamarla la etapa de madurez. En la reciente publicación en inglés  
del Asalto a la razón, de cuya introducción se encargó Enzo Traverso, podemos  
encontrar que dentro de la cuádruple partición que él hizo del proceso productivo de  
Lukács, ubica en la etapa de madurez su estancia en Moscú, que él la califica de tercer  
momento, en que según él Lukács fue «estalinista». Nos informa además que  
posteriormente había publicado las «Tesis sobre Blum» (1928) y que había tomado  
parte de la revolución húngara del 1956, en la que el viejo filósofo estuvo, una vez  
más, profundamente involucrado (TRAVERSO, 2021a, p. IX). Continúa Traverso su  
esquema diciendo que el último paso, que ocurrió desde 1956 hasta su muerte  
ocurrida en 1971, fue el período del abandono del estalinismo (TRAVERSO, 2021a, p.  
13 En el mismo Diario llega incluso a decir: «creo que me pegaré un tiro en la cabeza» (LUKÁCS, 1985,  
p. 90).  
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X) y la creación de la Escuela de Budapest. Siendo correcta toda la información que da  
el biógrafo italiano, se echa en falta mencionar que durante lo que él llama estalinismo  
fue la época más productiva de Lukács (en pie de página anterior está todo el catálogo  
de las obras que Lukács escribió en Moscú).  
István Eörsi, que tuvo el privilegio de compartir con Lukács los últimos días de  
su vida, en donde además realizó grabaciones en audio para poder terminar el  
contenido de la última obra de Lukács, Pensamiento vivido [Gelebtes Denken], nos  
proporciona datos más exactos sobre este período, que está imbuido de las ya  
conocidas autocríticas y de los proyectos para un renacimiento del marxismo. En  
cuanto a las autocríticas, está suficientemente claro que las llevó a cabo para  
permanecer siempre dentro del partido, posición que adoptó hasta 1956. Lukács era  
plenamente consciente de que la lealtad a este era la única manera de poder mantener  
un vínculo con las actividades sociales y de esta forma, a través de sus posiciones  
filosóficas, intentar ejercer alguna influencia en el desarrollo social. De ahí que la  
fidelidad al partido estuviera siempre para él por encima de los intereses personales  
(LUKÁCS, 2011, pp. 13; 19-20, ff.) Del otro lado, este período vio nacer las grandes  
obras sistemáticas de Lukács, la Estética y la Ontología, que estaban destinadas al  
trabajo de reforma del marxismo que Lukács se había impuesto, y que además no  
fueron pensadas, dice el propio Lukács, en vida de Stalin (2011, pp. 13).  
Este intento de acercamiento temporal que hemos hecho tanto al periodo  
juvenil como al de madurez, termina con los aportes dados por Nicolás Tertulian sobre  
este último. La gran madurez intelectual de Lukács produjo cuatro obras de gran  
calado, destinadas en parte a distanciarse de la práctica política y filosófica del  
estalinismo (TERTULIAN, 1987, p. 11). En orden cronológico de producción, las obras  
son: El joven Hegel (1938); El asalto a la razón (1954); la Estética (1963) y por último  
la obra de la que nos estamos ocupando La ontología del ser social (1971).  
Como último referente de este epígrafe, valga hacer algunas alusiones en  
cuanto al título de la Ontología del que Frank Benseler informa en el epílogo. Según  
este, Lukács conocía un manuscrito de Ernst Bloch que había sido enviado al editor de  
la Ontología. Dicho texto llevaba por título Cuestiones filosóficas básicas I  
[Philosophische Grundfragen I]. «Sobre la ontología del aún-no-ser» [Zur Ontologie des  
Noch-Nicht-Seins]» (cf. LUKÁCS, 1984, p. 733). Aunque de una forma un poco  
maliciosa, actitud en torno a Lukács que no solo ha mantenido en otras partes del  
epílogo, sino que comparte con el mismo Bloch, insinúa que Lukács se apoderó del  
título (cf. LUKÁCS, 1984, p. 733).  
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Recepción de los Prolegómenos y de la Ontología  
«Lukács… había aprendido, entre otras cosas por consideraciones políticas,  
que había que tener en cuenta el lugar, el momento y la forma e publicación  
en relación con el efecto deseado.» (cf. BENSELER, 1986b, p. 742)  
La recepción de la obra póstuma de Lukács, como lo calificó István Eörsi, ha  
tenido diferentes formas dependiendo de la cultura, la época, el tipo de receptores y  
hasta del país de esta. Se pueden encontrar desde contradicciones, rechazo total o  
parcial, aceptación con matices o admiración. Haremos unas breves alusiones, solo en  
eras de la claridad, a las opiniones que han dado los mayores expertos, entre quienes  
se encuentra sin ningún género de dudas Nicolás Tertulian. Este filósofo rumano  
nacionalizado francés, que se ha erigido en la figura más destacada en los estudios  
lukácsianos, llegando a convertirse sus estudios sobre Lukács en clásicos ineludibles  
estudios más completos, dice Dannemann(1986a, p. 15) a la hora de abordar la  
obra del filósofo húngaro. Algunos de los detalles más llamativos sobre la recepción  
de la Ontología radican en lo extraña que se volvió su recepción, incluso dentro del  
círculo de amigos y personas más cercanas. Dannemann comenta que hasta el mismo  
Habermas consideraba superflua la lectura del opus postumum, La ontología del ser  
social, «y uno se da cuenta, por sus escasas referencias a la obra, de que ha procedido  
en consecuencia» (1986a, p. 15).  
Otra forma de ver lo extraña que se volvió la recepción de la última de obra  
Lukács es el tipo de juicios que se hacen sobre algunas afirmaciones de este. Un par  
de ejemplos sencillos los podemos ver en Frank Benseler. Cuando Lukács dice haber  
visto que en el mundo filosófico occidental hay una confusión evidente en el manejo  
de ciertas categorías, Frank Benseler por su parte, piensa, de manera un poco dudosa,  
que «… se ve claramente cómo Lukács se entiende a sí mismo desde el punto de vista  
filosófico e histórico universal en la sucesión de Lenin y qué reivindicaciones hace»  
(1984, p. 732). Y ante los diferentes caminos que tomaron las producciones de Bloch,  
que tomó el ensayo como forma de expresión, y el ya distante Lukács, que con su  
forma sistemática había llegado alturas inalcanzables, Benseler arremete de nuevo  
insistiendo en que «Lukács se ve a sí mismo como incomparable en la materia,  
sintiendo una carga histórica» (1984, p. 733). Hay que insistir en que este tipo de  
valoraciones hicieron más bien poco por difundir el gran último intento, para decirlo  
con Tertulian, de reestructurar el marxismo desde un sólido sistema ontológico.  
Los trabajos que publicó Nicolás Tertulian, un filósofo de tradición europea, que  
supo poner distancia objetiva con la obra, lo que a su vez le permitió hacer un  
acercamiento objetivo, serio y responsable, ejerciendo de esta manera una gran  
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Los orígenes del pensamiento ontológico en Georg Lukács  
influencia en la recepción positiva que la obra tuvo en el mundo latino. En el que se  
inscribe la tradición de la madura recepción de la Ontología que han hecho de ella  
tanto en Italia, Guido Oldrini, Alberto Scarponi entre otros, como en América Latina,  
muy especialmente en Brasil. Sin por ello mermar los grandes logros obtenidos en  
Argentina de la mano de Miguel Vedda y su estrecho colaborador Antonino Infranca,  
estando ambos entre los mayores conocedores y divulgadores del pensamiento, no  
solo lukácsiano, sino marxista en general; a la par de los significativos aportes que ha  
realizado, y aún realiza, José Ignacio López Soria, experto conocedor de la primera  
obra de Lukács también está en la preparación de una obra sobre la etapa de  
madurez; gran pensador peruano con quien no solo todos estamos en deuda, sino  
también el filósofo al que le debemos agradecer la introducción del pensamiento del  
filósofo húngaro en América Latina.  
Sobre la recepción negativa que tuvo la obra cumbre de Lukács, Tertulian de  
nuevo pone de manifiesto que el momento de su publicación en Alemania, 1984 y  
1986, coincidió con la publicidad que se estaba dando el Europa sobre el hundimiento  
del marxismo (TERTULIAN, 1990, p. XII), esto provocó que el máximo intento de una  
reconstrucción de este no fuera bien recibido. Lo mismo había ocurrido en 1980 con  
la primera traducción al inglés del Asalto a la razón que había salido a la luz, justo en  
momento en el que la fuerza de empuje de la obra madura de Lukács seguía sumergida  
en las aguas oscuras de la «crisis del marxismo» (TRAVERSO, 2021a, p. XII). Además  
de esto, el informe de los alumnos de Lukács, la Escuela de Budapest, contribuyó de  
manera notable a la recepción negativa de la obra. En esta misma dirección van los  
aportes de Rüdiger Dannemann cuando nos informa que «La tarea de la escuela no  
era en última instancia otra que criticar esta construcciónde una ontología marxista  
hasta que quedó claro, al menos para nosotros, que no puede existir en absoluto una  
ontología marxista» (1986a, p. 18).  
Conclusión  
Después de haber sido testigos de todos los avatares que ha atravesado el  
Opus postumum lukácsiano, la indiferencia, la aceptación con matices, la utilización en  
beneficio propio a costa de desfigurar la obra (Escuela de Budapest) y la aceptación  
crítica, podemos decir como consideración final a este artículo que en nuestra  
contemporaneidad se están realizando esfuerzos encaminados a proseguir con las  
premisas expuestas en la Ontología del ser social de Lukács. Sabiéndolo o no, los  
intentos se dirigen de manera clara en esa dirección. La reconstrucción del marxismo  
a través de un desvelamiento científico de las condiciones económicas vigentes  
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(LUKÁCS, 1986b, pp. 499-500) lo podemos encontrar, por ejemplo, en El capitalismo  
ha muerto de Mckenzie Wark, quien no solo identifica una nueva clase social  
poseedora, diferente a las que poseen los medios de producción y el suelo, la clase  
poseedora de la información (2021c, p. 15), sino que acompaña su análisis de un  
nuevo sistema categorial que surge a la par que el nuevo sistema económico: la era  
post-televisión (2021c, p. 11), los algoritmos de vigilancia (2021c, p. 13), la economía  
política de la información (2021c, p. 13), la clase vectorialista (2021c, p. 75). Aunque  
no es una línea de investigación que esté presente en la Ontología de Lukács, el  
desvelamiento de las nuevas condiciones económicas tiene que venir acompañado por  
necesidad por un nuevo sistema ontológico. Las nuevas tecnologías han ayudado a  
enriquecer las nuevas concepciones del ser que se derivan, como es lógico, del  
surgimiento de nuevos seres. En Ontología Cyborg, Teresa Aguilar nos habla de la era  
de la poshumanidad (2008, p. 15). Aquí la ontología indica que su nueva nomenclatura  
es designar al hombre como tecnocuerpo (2008, p. 19), en la que el cuerpo es textual  
(2008, p. 14). La disciplina que debe ser utilizada para comprender el nuevo campo  
categorial tendría que ser la biosemiótica (2008, p. 29), que nos sirva para poder leer  
el nuevo texto en el que se escribe lo humano, ya que nosotros somos un código escrito,  
un lenguaje (2008, p. 14).  
Con estas nuevas herramientas el legado lukácsiano se abre a nuevos  
horizontes para definir al ser social contemporáneo. Dicha labor goza en la actualidad  
de buena salud. Los más recientes avances se están llevando a cabo desde Argentina  
de la mano de Miguel Vedda con un gran trabajo de divulgación, acompañado de  
Antonino Infranca que desde Italia contribuye con el gran conocimiento que tiene de  
toda la obra de Lukács. En España, Venancio Andreu Baldó está realizando importantes  
aportes en torno a la Ontología a través completas publicaciones de contenidos que  
giran plenamente en la órbita ontológica. Los diferentes grupos de investigación que  
hay en Brasil, entre los que destaca el Colectivo Veredas; junto con editoriales que  
apuestan por difundir el pensamiento lukácsiano, como la editorial Boitempo;  
acompañado a su vez de grandes estudiosos, como es el caso de Sérgio Lessa, José  
Paulo Netto, entre todos están llevando a una aplicación práctica directa los postulados  
defendidos por Lukács. Esto es lo que podríamos llamar una recepción ontológica  
verdadera. Lugares en donde la ontología alcanza el objetivo que la misma obra se  
impone.14  
14  
«Si la historización resultara adecuada a su objeto, el campo teórico de Lukács quedaría  
definitivamente identificado como un lugar de fracaso. Quienes historizan a Lukács ya han dejado de  
tomarlo en serio». (DANNEMANN, 1986a, p. 12)  
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No solo compartimos el juicio que hizo Enzo Traverso en su reciente  
introducción a la publicación del Asalto a la razón en inglés, para quien la cuarta obra  
importante del periodo de madurez de Lukács debería ser «… incluida… entre los  
mayores logros intelectuales del siglo pasado» (cf. TRAVERSO, 2021a, LIX) sino que  
consideramos que al ser la Ontología la obra cumbre de Lukács, y en ese sentido  
superar las denuncias de irracionalismo plasmadas en aquel, y llevarlas a un nivel  
superior, la Ontología toma la posición de ser una obra de necesaria lectura. Es por  
eso por lo que compartimos las últimas palabras dedicadas a la Ontología del ser social  
por Nicolás Tertulian a la introducción que acompaña las ediciones en italiano desde  
su primera aparición.  
«La Ontología del ser social, en su conjunto, sigue siendo una obra insuficientemente  
explorada y analizada en la multiplicidad de sus ramificaciones: un inmenso bloque errático  
en un paisaje filosófico dominado por movimientos de ideas más conformistas y poco  
sensibles a las grandes cuestiones ontológicas». (cf. TERTULIAN, 1990, p. XXVII)  
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Como citar:  
CASTAÑEDA, Diego Fernando Correa. Los orígenes del pensamiento ontológico en  
Georg Lukács. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 280-300, 2025.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.780  
Decadência ideológica e a gênese do  
irracionalismo filosófico em Lukács  
Ideological decay and the genesis of philosophical  
irrationalism in Lukács  
Francisco Malê Vettorazzo Cannalonga*  
Resumo: Neste trabalho procuramos elucidar o  
conceito de irracionalismo empregado por  
Lukács. Partimos da teoria da decadência  
ideológica de Lukács para indicar dois elementos  
centrais da decadência ideológica: (1) a limitação  
do saber ao empírico e (2) a recusa dos  
problemas ontológicos. Concluímos que a  
impossibilidade de solucionar o problema da  
gênese dos fenômenos é traço característico da  
decadência ideológica. Com base nisso  
analisamos a maneira como o irracionalismo  
procura dar uma solução para esse problema  
mediante a postulação de um saber intuitivo e  
não-racional do sentido da realidade fetichizada  
do capitalismo, através do qual procura realizar  
uma apologia indireta deste.  
Abstract: In this paper, we seek to elucidate the  
concept of irrationalism employed by Lukács.  
We start from Lukács' theory of ideological  
decadence to indicate two central elements of  
ideological decadence: (1) the limitation of  
knowledge to the empirical and (2) the rejection  
of ontological problems. We conclude that the  
impossibility of solving the problem of the  
genesis of phenomena is a characteristic feature  
of ideological decadence. Based on this, we  
analyze the way in which irrationalism seeks to  
offer a solution to this problem on the  
postulation of an intuitive and non-rational  
knowledge of the meaning of the fetishized  
reality of capitalism, through which it seeks to  
make an indirect apology for it.  
Palavras-chave:  
Irracionalismo;  
dialética;  
Keywords: Irrationalism; dialectics; ontology;  
ideology; ideological decadence.  
ontologia; ideologia; decadência ideológica.  
Introdução: decadência ideológica e o problema da gênese  
Em tempos recentes, a mais controvertida parte da obra lukácsiana de  
maturidade, sua crítica ao universo intelectual da ideologia burguesa e, sobretudo, sua  
tentativa de situar a ascensão do nacional-socialismo no contexto do desenvolvimento  
de certas tendências irracionalistas da filosofia burguesa que culmina na seminal  
obra A destruição da razão vem se tornando objeto de interesse por parte de setores  
da intelectualidade de esquerda. Depreende-se esse fato a partir de recentes reedições  
da obra chave de Lukács1 e de ensaios recentes que procuram salientar sua  
atualidade2. Não acreditamos que esse fenômeno pode ser reduzido a um mero  
* Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  
1 Tome-se a título de exemplo as novas edições de A destruição da razão em inglês (pela editora Verso  
em 2021) e francês (pela editora Delga em 2017), assim como a reedição em 2022 do volume 9 da  
edição das obras reunidas [Werke] que contém A destruição da razão de Lukács pela editora alemã  
Aisthesis.  
2
Podemos mencionar trabalhos recentes como o ensaio “The new irrationalism” do editor da Monthly  
Review John Bellamy Foster (Foster, 2023), a resenha na Jacobin de Matt McManus sobre a reedição de  
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modismo acadêmico, mas antes resulta da própria força das coisas: da tentativa de  
compreender a reorganização e ascensão de forças de extrema direita ao redor do  
globo, em diferentes nações, cada qual dotadas feições e características próprias. O  
confronto com o fenômeno do pensamento irracionalista e reacionário deixou de ser  
matéria de desacato entre doutos para assumir papel central importância no debate  
político e social.  
Contudo, é curioso observar que não há qualquer definição sintética do conceito  
de irracionalismo a ser encontrada em toda a obra do filósofo húngaro. E isto,  
acreditamos, por desígnio. Como bom dialético, Lukács não parte de conceitos, mas  
do próprio movimento das coisas. O filósofo húngaro persegue ao longo do  
desenvolvimento histórico, dos sistemas e autores mais representativos, a maneira  
como arcabouço teórico do irracionalismo é engendrado e como, a partir deste  
substrato, os principais conceitos e motivos são desdobrados e modificados em  
estreita conexão com as transformações históricas que conformam seu firmamento  
ontológico. Desta maneira é possível tanto articular e apresentar conceitualmente uma  
unidade substancial no desenvolvimento do irracionalismo filosófico quanto apreender  
a raiz de suas transformações e modificações conceituais, ainda que um conceito  
sintético não se encontre aduzido de antemão. O “método” de procedimento da  
investigação de Lukács, assim, ecoa a formulação de Hegel na Fenomenologia do  
Espírito: “O método não é outra coisa que a estrutura do todo, apresentada em sua  
pura essencialidade.” (HEGEL, 2014 p. 50)  
Nosso objetivo neste trabalho, portanto, é investigar a gênese da estrutura  
categorial que baliza o irracionalismo filosófico, tal como esta aparece na obra de  
Lukács e, com isso, tentar oferecer uma conceituação mais precisa do que é o  
irracionalismo filosófico, em termos teórico-conceituais3. Isso só pode ser feito a partir  
A destruição da razão (Mcmanus, 2023), o artigo de Matthrew Sharpe e Matthew King de 2023  
(SHARPE; KING, 2023), assim como o vigoroso e ricamente documentado ensaio de Matteo Gargani  
(GARGANI, 2020). É também interessante notar o evento dedicado a A destruição da razão de Lukács,  
realizado em 2022 pela Universidade de Deakins e organizado por Matthew Sharpe e Daniel Tutt. Cabe  
também mencionar que o Brasil deve ser considerado exceção no que diz respeito ao estudo e discussão  
da obra de Lukács em virtude do esforço pioneiro de pensadores e militantes marxistas nas décadas de  
60-70 como Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Netto, Leandro Konder, José Chasin, Celso Frederico,  
entre outros, que colocaram e mantiveram em evidência a obra do pensador húngaro desde então,  
sobre a história dessa tradição cf. Massuia (2013).  
3
Por essa razão, o presente escrito procura realizar uma abstração razoável em relação às  
determinações histórico-materiais imediatas dos diversos expoentes do irracionalismo filosófico,  
procurando apreender o movimento das determinações conceituais que operam no cosmos intelectual  
do pensamento burguês, movimento que não obstante se radica nas determinações histórico-materiais  
da burguesia enquanto classe. Nossa tentativa, portanto, procura elucidar um arcabouço intelectual que  
emerge das transformações materiais e ideológicas da burguesia no período da decadência ideológica  
e se mantém através das mudanças históricas e determinações nacionais, na medida que deriva de uma  
determinação geral da realidade material da burguesia enquanto classe. Nesse sentido, nosso trabalho  
deve tomar como modelo menos o procedimento histórico-sequencial de A destruição da razão e mais  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
da compreensão dos elementos centrais da ideologia burguesa tal como este se  
definem a partir do processo de decadência ideológica paulatinamente empreendido  
pela burguesia no período que se inicia a partir de 1830 e culmina nos grandes  
eventos revolucionários e violentas repressões ocorridos entre 1848 e 18714. Neste  
processo histórico, o proletariado organizado se colocou pela primeira vez como  
derradeiro agente do progresso social, explicitando as contradições imanentes entre  
capital e trabalho e ameaçando fatalmente o domínio da burguesia ao indicar a  
possibilidade de instauração revolucionária de uma sociabilidade distinta,  
materialmente superior, ao modo de produção capitalista vigente. Frente a esses  
eventos e ao estabelecimento de um novo paradigma da luta de classes a burguesia  
deve assumir uma perspectiva decididamente reacionária. Do ponto de vista da  
burguesia, o acirramento da luta de classes e a demanda da instauração de uma  
sociedade para além do capital, jamais poderiam serem vistas como possibilidades  
inscritas no âmago das contradições do próprio modo de produção capitalista;  
tampouco poderiam ser essas contradições compreendidas como elementos  
constitutivos da própria sociabilidade que confere à burguesia seu poder. Por força de  
uma necessidade social que se impõe em todos os âmbitos da vida espiritual, o modo  
de produção capitalista e as relações sociais que dele se desdobram já não poderiam  
ser concebidas como uma forma de produção social historicamente determinada, um  
importante, porém transitório momento no contraditório desenvolvimento do gênero  
e da história humana, mas como o derradeiro estágio desta: a única forma de  
sociabilidade possível e desejável. Portanto, a fim de assegurar a continuidade do  
sistema social que fundamenta sua posição dominante, surge para a burguesia a  
necessidade ideológica de afirmar a perenidade do modo de produção capitalista e  
suas relações sociais. Surge, portanto, a necessidade de uma constante apologia do  
modo de produção capitalista mediante a recusa de sua determinação histórica  
constitutiva. Em termos abstratos, a maneira como a burguesia efetiva essa apologia  
está na tentativa constante de eliminar, através de todos os subterfúgios retóricos e  
teóricos possíveis, o questionamento e indagação científica acerca da gênese dos  
o método sistemático-conceitual empregado por Lukács em obras como Introdução a uma estética  
marxista (LUKÁCS, 2018), no qual a investigação se circunscreve à análise teórico-conceitual da  
categoria dialética de particularidade [Besonderheit].  
4
A teoria da decadência ideológica elaborada por Lukács constitui um dos eixos centrais de sua  
elaboração teórica de maturidade. Formulada de maneira programática no artigo “Karl Marx und das  
probleme des Ideologischen Verfalls” de 1938, publicado primeiramente na revista Internationale  
Literatur, aparecendo em livro pela primeira vez em 1948, na coletânea de ensaios Karl Marx und  
Friedrich Engels als Literaturhistoriker, sendo republicado diversas vezes em diferentes volumes,  
notavelmente no volume 4 da edição de suas obras coligidas (Werke 4. Probleme des Realismus I. Essays  
über Realismus) pela editora berlinense Luchterhand.  
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fenômenos. A investigação acerca da gênese ontológica das relações sociais  
capitalistas, das conexões internas que constituem sua condição de possibilidade,  
implica a compreensão de seu caráter inexoravelmente histórico e, consequentemente,  
implica também a possibilidade de sua superação. Afinal, como indica Marx: “uma vez  
que se exponham claramente estas relações internas [dos fenômenos do modo de  
produção capitalista, FC], toda a crença teórica na necessidade permanente do estado  
de coisas atual se exaure” (MARX; ENGELS, 2020, p. 269). Lukács, por sua vez,  
descreve da seguinte maneira a forma teórica específica que se origina a partir da  
necessidade da apologia:  
Qual é, de fato, o núcleo de toda apologética? É a tendência a  
permanecer na superfície dos fenômenos, ignorando os problemas  
mais profundos, essenciais e decisivos. Ricardo ainda se referia aberta  
e “cinicamente” à exploração dos operários pelos capitalistas. Os  
economistas vulgares se refugiam nos mais superficiais  
pseudoproblemas da esfera da circulação, de modo a banir do mundo  
da ciência econômica o processo de produção, na medida em que este  
é processo de produção do mais-valor. De modo análogo, a estrutura  
de classes da sociedade desaparece da sociologia; a luta de classes,  
da ciência histórica; e o método dialético, da filosofia. (LUKÁCS, 2010,  
p. 201)  
Assim, a imperiosa necessidade apologética de eliminação teórica do problema  
da gênese deve resultar em uma reorganização teórico-conceitual que resulta em um  
processo de regressão ao empírico e evasão do ontológico5. Tal reorganização teórica  
implica, pro um lado, que todo o conhecimento possível portanto, todo o saber  
racional se reduz aos estritos limites da experiência empírica, e toda dimensão  
propriamente ontológica (dos mecanismos, processos e tendências) o que excede a  
tais limites é tomado como metafísico e cientificamente irrelevante. Nesta perspectiva  
o conhecimento da realidade se reduz a um saber mensurável e quantitativo dos  
fenômenos empíricos, circunscrevendo-se essencialmente ao escopo do entendimento  
[verstand] tal como o caracterizava Kant em sua Crítica da razão pura. Por outro lado,  
a ciência passa então a ser concebida não mais como uma explicação dos fenômenos,  
isto é, como a tentativa de apreender os mecanismos efetivos que os produzem e  
engendram, mas ora como a simples descrição funcional (através de funções  
matemáticas) das relações que os fenômenos estabelecem entre si6, enquanto  
regularidades empíricas (que fornecem o fundamento das “leis empíricas” ou  
“experimentais”)7. Esse movimento intelectual resulta no processo de  
5 Discutimos de maneira mais detalhada essas questões em nosso trabalho Cannalonga; Barbosa (2025).  
6
“Os conceitos de ordem da física matemática não têm qualquer outra função salvo serem uma  
sondagem completa das relações do ser empírico” (CASSIRER, 1923, p. 165).  
7
“A teoria física não é uma explicação. É um sistema de proposições matemáticas, deduzidas de um  
pequeno número de princípios, que procuram representar da maneira mais simples, completa e exata  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
desontologização8 das ciências e do represamento do conteúdo ontológico das  
descobertas científicas pela barragem do ceticismo empirista. Deste modo, a ciência  
deixa de ser um instrumento de explicação da realidade em si mesma, premissa  
incontornável para a formulação de uma visão de mundo materialista amparada em  
seus resultados, mas apenas uma forma de descrição dos fenômenos a ser manipulada  
livremente a fim de realizar objetivos meramente pragmáticos do desenvolvimento das  
forças produtivas e da manutenção do modo de produção capitalista. Cumpre-se,  
assim, a exigência “belarmiana”, tal como Lukács caracteriza em sua Ontologia do ser  
social9.  
Visto que todo o conhecimento possível é reduzido ao âmbito empírico, o  
pensamento burguês predica que todo o conhecimento racional acerca da realidade é  
esgotado pelo conhecimento descritivo e quantitativo dos fenômenos fornecido pelas  
ciências empíricas da natureza. Assim sendo, resta à filosofia a posição de um saber  
meramente derivativo, uma reflexão de segunda ordem acerca dos elementos formais  
e metodológicos das ciências empíricas, mas jamais um confronto com seus resultados  
e conteúdos objetivos10. Deste modo, é excluído do escopo do conhecimento racional,  
toda a indagação acerca dos mecanismos, determinações, legalidades etc. que regem  
e engendram os fenômenos empiricamente verificáveis. Por sua vez, como arrimo  
conceitual para essas concepções emerge simultaneamente uma concepção acerca da  
dinâmica da realidade objetiva, que em outro trabalho caracterizamos como uma  
“ontologia empírica”11. Quer dizer, uma ontologia que implica o caráter puramente  
atômico e singular de todos os fenômenos, a natureza puramente contingente do  
encadeamento temporal destes e a exclusão de qualquer relação de necessidade e  
universalidade que pode ser estabelecida entre eles, ora reduzidas a meras  
regularidades de natureza puramente empírica e contingente.  
Essas determinações acerca dos limites impostos ao conhecimento da realidade  
e de sua consequente implicação em termos ontológicos constituem o fundamento  
um conjunto possível de leis experimentais.” (DUHEM, 1906, p. 26)  
8
“Desontologização [...] significa, em primeiro lugar, que a física se restringe estritamente ao que é  
dado como fenômeno, que é matéria de descrição. Desontologização significa, em segundo lugar, que  
todos os conceitos de essência e substância, e mesmo o conceito de força, são eliminados da ciência e  
que os únicos conceitos utilizados são aqueles que possibilitam exprimir conexões funcionais no dado  
[...] De acordo com essa concepção, a física consiste em nada além da mais precisa descrição possível  
dos fenômenos observáveis, em cujas assim chamadas leis da natureza tem unicamente a função de  
tornar possível a economia descritiva.” (SCHNADELBACH, 1984, p. 87).  
9 [...] a atitude diante da objetividade real, diante da questão de se as verdades das ciências naturais  
reproduzem efetivamente a realidade objetiva ou apenas possibilitam a sua manipulação prática,  
domina a filosofia burguesa desde os dias de Belarmino até hoje, determinando sua posição em  
todos os problemas ontológicos.” (LUKÁCS, 2012, p. 39)  
10 Discutimos esse ponto com mais detalhes em Cannalonga; Barbosa (2025, p. 158).  
11 Sobre o emprego desse conceito cf. Cannalonga (2022, p. 66).  
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teórico geral do pensamento burguês no período da decadência ideológica,  
engendrado pela necessidade de eliminar qualquer indagação acerca da gênese  
objetiva dos fenômenos e de estabelecer teoricamente a perenidade das relações  
sociais implicadas pelo modo produção capitalistas, que asseguram o domínio social  
da burguesia. Deste modo, configuram também o pressuposto necessário para indagar  
acerca da possibilidade da gênese do irracionalismo filosófico, que emerge a partir das  
contradições inerentes de tal visão de mundo.  
I. O fundamento místico do mundo empírico  
Contudo, mesmo frente a essa nova reconfiguração do conhecimento da  
realidade e da estrutura que resulta das necessidades da apologética, o problema  
fundamental, o problema da gênese, subsiste de maneira latente, ainda quando a  
possibilidade de seu questionamento é rejeitada de antemão. São paradigmáticas,  
neste aspecto, as palavras de Wittgenstein, que expressam a profunda angústia e  
incômodo com as limitações autoimpostas pelas determinações socioideológicas da  
decadência ideológica: “Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas  
possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas da vida não terão sido sequer  
tocados.” (WITTGENSTEIN, 2017, §6.521)  
Mencionamos acima que a regressão ao empírico e a consequente evasão de  
todo questionamento ontológico pressuposto pela apologética instituem a  
impossibilidade de uma investigação ontológico-genética dos fenômenos. Na medida  
em que as mediações objetivas e os nexos internos que constituem sua condição de  
possibilidade são eliminadas, resta tão somente a estrutura de mundo que a ontologia  
empírica implica. A gênese material de qualquer fenômeno só pode ser apreendida a  
partir da descoberta das mediações objetivas que o circunscreve, das tendências  
imanentes que um complexo ôntico encerra. Como mencionamos anteriormente, para  
Marx, a própria determinação do conhecimento da historicidade repousa nesta  
possibilidade de identificar e apreender conceitualmente tais nexos internos e  
mediações. Neste aspecto, é notável como mesmo um movimento intelectual  
considerado “revolucionário” em termos teórico-filosóficos no seio do pensamento  
burguês como foi o historicismo alemão jamais é capaz de se confrontar com a questão  
da gênese efetiva dos fenômenos sociais, mas antes interessa-se tão somente pela  
indicação e descrição de sua “singularidade” histórica, em oposição a uma suposta  
tendência homogeneizadora da razão iluminista e de seu conceito de progresso. Ora  
a apreensão de tal “singularidade” postulada realiza-se através do mero recolhimento  
empírico e subsequente interpretação hermenêutica do conjunto de representações  
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ideológicas, vivências subjetivas etc., sem jamais ser capaz de explicar propriamente a  
maneira como essa forma histórica particular pode surgir em primeiro lugar, que dizer,  
a partir de quais condições materiais, quais tendências objetivas do desenvolvimento  
histórico etc. Exemplo desse procedimento é a metodologia da “escola histórica do  
direito” – que por sua vez foi duramente criticada pelo jovem Marx representada  
sobretudo por Savigny,12 para quem a determinação histórica dos institutos jurídicos  
nada mais é do que a constatação empírica de sua pré-existência, mas jamais a  
indagação acerca da sua gênese material, como bem indica José Barata-Moura:  
Para Savigny, a historicidade do direito é fundamentalmente interior  
ao próprio domínio das representações sociojurídicas; e quando há  
lugar a apelar para usos e costumes do «povo» - isso tem sempre de  
entender-se como referência à representação dominante que em  
determinados períodos do passado se apresentou como hegemónica  
(efetiva ou putativamente) na consciência dos agentes jurídicos. Nunca  
é de uma verdadeira história material dos institutos e das instituições  
que se trata, mas tão-só de um historiar das fontes do direito.  
(BARATA-MOURA, 1994, p. 94)  
A investigação acerca da gênese sempre deve partir da identificação das  
determinações universais, de vigência ontológica, que circunscrevem os entes ou  
fenômenos particulares, através do conjunto de mediações objetivas em que se  
radicam e encontram sua condição de possibilidade. Contudo, o pensamento da  
decadência ideológica passa ao largo dessas determinações, destituindo-as de seu  
estofo ontológico para transmutá-las em meras construções subjetivas ou proposições  
formais, obstando dessa maneira a genuína compreensão de um desdobramento  
categorial ou particularização de categorias universais em fenômenos singulares, como  
sublinha Lukács:  
[...] o universal não aparece na realidade existente em si de maneira  
imediata ou isolada, independentemente dos objetos e das relações  
singulares, sendo, portanto, necessário obtê-lo mediante a análise de  
tais objetos, relações etc. Isso, porém, de modo algum suprime o seu  
ser-em-si ontológico, mas apenas lhe confere características  
específicas. Não obstante, é dessas circunstâncias que surge a ilusão  
de que o universal nada mais é que um produto da consciência  
cognoscente, e não uma categoria objetiva da realidade existente em  
si. (LUKÁCS, 2012, p. 60)  
Essa problemática a latência do problema da gênese que se impõe ao  
12 Embora auge da influência de Savigny e da “escola histórica do direito” na Alemanha tenha se dado  
período anterior à 1848, o legado do pensamento reacionário anterior à decadência ideológica segue  
exercendo importante influência em diversos pensadores centrais do período posterior, na medida em  
que já antecipavam em suas linhas fundamentais certas premissas onto-metodológicas: é o caso tanto  
do velho Schelling quanto dos representantes da “escola histórica”, que exerceram ampla influência  
sobre o “historicismo” de Dilthey e seus sucessores.  
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pensamento burguês se torna mais clara se fizemos recurso a um dos pensadores  
mais importantes e influentes da filosofia burguesa no período da decadência  
ideológica, cuja obra desempenha um papel central nas formulações do próprio Lukács  
acerca dos rumos da filosofia contemporânea (como veremos). Em seu Tractatus logico-  
philosophicus obra que explicita de maneira cristalina as determinações centrais da  
ontologia empírica do pensamento burguês Wittgenstein indica que as propriedades  
que determinam os objetos e as relações que estes podem entreter entre si são  
essencialmente propriedades externas (quer dizer, empíricas). Contudo, Wittgenstein  
também aponta que há, de fato, propriedades internas, essenciais aos objetos. Estas  
propriedades são aquelas que sem as quais é impossível sequer pensar a possibilidade  
de existência de um objeto, e que também conformam a condição de possibilidade das  
relações entre objetos, sem as quais qualquer configuração de objetos não seria  
possível. Estas propriedades, entretanto, apenas se mostram nas proposições, mas não  
podem ser apreendidas pelas proposições13. Apresenta-se aqui uma distinção  
fundamental estabelecida por Wittgenstein, entre aquilo que se pode dizer, isto é, ser  
expresso através de proposições e aquilo que apenas se mostra nas proposições  
(consequentemente, na própria realidade das quais as proposições são a figuração  
lógica). Também a “forma lógica” da realidade, que constitui a estrutura necessária  
para os estados de coisas e configurações entre objetos, também é uma determinação  
que apenas pode ser mostrada nas proposições (cf. WITTGENSTEIN, 2017, §4.12). Ora,  
tanto as propriedades internas dos objetos quanto a forma lógica da realidade  
representam a condição de possibilidade dos estados de coisas ou fenômenos do  
mundo externo, constituem, portanto, a condição de possibilidade da gênese desses  
fenômenos. Sua apreensão racional ou figuração lógica, isto é, na forma de  
proposições é, contudo, algo impossível. Sobre elas nada pode ser dito, sobre elas  
“deve-se calar” (WITTGENSTEIN, 2017, §6.54).  
Portanto, para Wittgenstein todo o conjunto das determinações que não podem  
ser objeto de uma apreensão racional, ou seja, aquilo que se mostra, que pode ser  
somente pressentido, mas jamais compreendido, reside em uma dimensão que existe  
à parte do “mundo” dos fatos, essa dimensão é caracterizada por Wittgenstein como  
“o místico”14. O místico, que por sua vez encerra o sentido do mundo (sentido que  
também denota uma determinação axiológica, enquanto determinação de valor ético  
ou estético), é completamente transcendente a este, situando-se em uma dimensão  
13 “A presença de tais propriedades e relações internas não pode, todavia, ser asserida por proposições;  
mostra-se, sim, nas proposições que representam aqueles estados de coisas e tratam daqueles objetos.”  
(WITTGENSTEIN, 2017, §4.122)  
14 “Há por certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico.” (WITTGENSTEIN, 2017, §6.522)  
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ontologicamente distinta, que não pode de modo algum ser atingida por vias racionais  
ou cognoscitivas em geral (isto é, em Wittgenstein, pelas proposições, pela figuração  
lógica da linguagem)15. A efetividade objetiva do mundo externo, dos eventos que nele  
transcorrem também são completamente inconsequentes em relação a essa dimensão  
mística, que permanece incólume e intocada por qualquer desdobramento que se dê  
no plano dos fatos.16 Há, portanto, um verdadeiro hiato ontológico entre o plano dos  
fatos, o mundo empírico e a substância mística, que representa tanto a condição de  
possibilidade ontológica quanto gnosiológica daquele.  
Essa imagem, porém, também surge como a expressão teórico-conceitual da  
insolubilidade do problema da gênese para o pensamento burguês. Assim, pode-se  
depreender que a ontologia apresentada por Wittgenstein é composta por dois polos  
fundamentais: por um lado, um mundo empírico, regido pela contingência, atomicidade  
etc. e, por outro, um universo místico, de impossível acesso pelas vias racionais  
tradicionais e transcendente em relação ao mundo empírico. Neste segundo se encerra  
não somente as determinações essenciais a partir das quais o mundo empírico pode  
ser efetivamente estruturado e constituído, mas também todo o “sentido” do mundo,  
a partir do qual as autênticas questões vitais do ser humano que escapam ao estreito  
campo das ciências empíricas (tal como ora são interpretadas pelo pensamento  
burguês no período da decadência ideológica) encontram derradeira solução. Essa  
é, acreditamos, efetivamente, a estrutura do pensamento filosófico geral que emerge  
sob os auspícios da decadência ideológica da burguesia. E justamente por revelar de  
maneira tão clara e sintética a estrutura básica da filosofia burguesa contemporânea  
Wittgenstein assume a posição de figura paradigmática nas formulações de Lukács  
(2012 pp. 74-9), que em sua Ontologia lhe dedica um excurso situado precisamente  
entre seções sobre o neopositivismo e o existencialismo, justamente com a finalidade  
de denotar a posição mediadora da filosofia de Wittgenstein, enquanto a expressão  
mais bem acabada da unidade fundamental do pensamento burguês no período da  
decadência ideológica. A estrutura categorial do pensamento burguês, portanto, pode  
ser representada da seguinte maneira:  
15  
“O sentido do mundo deve estar fora dele. No mundo, tudo é como é e tudo acontecesse como  
acontece; não há nele nenhum valor e se houvesse, não teria nenhum valor. Se há um valor que tenha  
valor, deve estar fora de todo o acontecer e de todo o ser assim. Pois todo acontecer e ser assim é  
casual. O que o faz não casual não pode estar no mundo; do contrário, seria algo, por sua vez, casual.”  
(WITTGENSTEIN, 2017, §6.41)  
16 Como seja o mundo, é completamente indiferente para o Altíssimo. Deus não se revela no mundo.”  
(WITTGENSTEIN, 2017, §6.432)  
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Essa estrutura categorial, ao menos em seus lineamentos ontológicos básicos,  
já aparece em Kant, especificamente em sua postulação do problema da “coisa-em-si”.  
Também em Kant, o problema da gênese dos fenômenos figura como algo  
completamente insolúvel no plano do saber teórico. Essas são consequências  
necessárias para toda a filosofia que assuma uma ontologia empírica como pedra de  
toque de sua sistematização conceitual. Contudo, a diferença fundamental é que Kant  
se recusa a atribuir qualquer propriedade à coisa-em-si, postulando-a simplesmente  
como uma inescrutável dimensão a partir da qual os fenômenos se o originariam, mas  
jamais como um além portador do “sentido” dos fenômenos, como faz Wittgenstein.  
Ao contrário, Kant procura articular uma solução racional para a problemática da  
gênese (que nele ainda figura como o problema da finalidade e da teleologia) a partir  
de sua teoria do juízo reflexivo na sua Crítica da faculdade de julgar. Neste aspecto,  
em sua recusa a atribuir qualquer conteúdo à coisa-em-si, Kant efetivamente oscila  
entre o materialismo e o idealismo, como assinala Lênin (cf. LÊNIN, 1982, pp. 149-  
50), sem jamais abrir margem para sua interpretação nos termos do “místico” de  
Wittgenstein. Não tardaria muito, porém, para que à coisa-em-si kantiana fossem  
outorgados conteúdos que transformassem sua natureza ontologicamente neutra em  
uma figura portadora de sentido, é o caso da doutrina schopenhauriana da “Vontade”  
(cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 169).  
Emerge desta determinação uma estrutura ontológico-categorial composto por  
um mundo empírico e um universo místico, intocável pelo conhecimento racional, no  
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qual residiria o verdadeiro sentido da realidade. Tal par categorial circunscreve o  
desdobramento da filosofia burguesa no período da decadência ideológica. Mas, mais  
do que isso, também indica a possibilidade de dois rumos fundamentais para o  
pensamento filosófico da burguesia, que por sua vez refletem determinações as  
políticas e sociais particulares da decadência ideológica. Há, por um lado, a  
possibilidade de, em observância às asseveração de Wittgenstein, silenciar sobre esse  
universo místico e contentar-se com o mundo empírico dado essa é a perspectiva do  
que se pode caracterizar de maneira geral e provisória como positivismo (o que inclui  
todas as suas mais diversas derivações como o empiriocriticismo, positivismo lógico,  
pragmatismo e as mais recentes correntes da assim chamada “filosofia analítica”); a  
outra possibilidade figura na tentativa de procurar fornecer conteúdo a esse cosmos  
místico e extrair a partir daí, da problemática emergente do sentido da realidade, os  
preceitos norteadores de uma nova filosofia essa é a linha seguida pelo  
irracionalismo filosófico. No lugar do “místico” incognoscível de Wittgenstein, assomam  
figuras conceituais características do irracionalismo filosófico como a “revelação” do  
velho Schelling, a “vontade” [Wille] de Schopenhauer, o “Deus pessoal” de Kierkegaard,  
o “inconsciente” em Eduard von Hartmann, a “vontade de poder” em Nietzsche, o  
princípio da “vida” [Leben] em Dilthey, Simmel e outros representantes da  
lebensphilosophie17, o “ser” em Heidegger etc. Do mesmo modo que no positivismo,  
também no irracionalismo esse cosmos místico representa sempre um limite  
insuperável para o saber racional quer dizer, a razão reduzida ao nível do  
entendimento kantiano, enquanto um conhecimento essencialmente descritivo dos  
fenômenos empíricos para além do qual não é possível avançar pelos métodos  
tradicionais de um saber discursivo. Portanto, a fim de cumprir o programa de fornecer  
um conteúdo a esse cosmos místico, o irracionalismo deve pressupor que um  
conhecimento dessa esfera seja de algum modo possível, contudo predica-se ao  
mesmo tempo que esse conhecimento só pode se realizar por outras vias  
cognoscitivas, isto é, por formas de conhecimento não-racionais, ou por um saber de  
caráter intuitivo:  
Essas são precisamente as questões [...] que resultam dos limites e  
17  
Tomemos, a título de exemplo, uma passagem de Dilthey, cujas afinidades com a formulação de  
Wittgenstein são evidentes: “A expressão vida [Leben] expressa aquilo que é mais familiar e íntimo, mas  
ao mesmo tempo obscuro e mesmo inescrutável. O que a vida é, é um enigma insolúvel. Todo sentido,  
investigação e pensamento emergem desse inescrutável. Todo conhecimento tem sua raiz nesse algo  
nunca plenamente conhecido. Pode-se salientar seus traços de suas características singulares. Pode-se,  
por assim dizer, perseguir seu tom, seu ritmo, nessa animada melodia. Mas não se pode desmontar a  
vida em seus fatores. Ela é inanalisável [unanalysierbar]. O que ela é, não pode ser expressado em  
nenhuma fórmula ou explicação [...] A vida permanece insondável para o pensamento, como o dado em  
que ele próprio ocorre, atrás do qual, portanto, ele não pode voltar.(DILTHEY, 1982, pp. 346-7).  
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das contradições do pensamento puramente intelectivo. Esbarrar em  
tais limites pode significar para o pensamento humano se este  
percebe nisso um problema a ser solucionado e, como Hegel notou  
acertadamente, indício e sinal da racionalidade”, isso quer dizer, a  
mais alta forma de conhecimento um ponto de partida do  
desenvolvimento do pensamento para a dialética. O irracionalismo,  
pelo contrário […] só chegou até esse ponto, absolutizou o problema,  
petrificou os limites do conhecimento intelectivo e transformou-os em  
limites absolutos do conhecimento, mistificando até mesmo o  
problema, convertendo-o artificialmente em problema insolúvel,  
atribuindo-lhe uma resposta suprarracional”. A equiparação entre  
entendimento e conhecimento, entre os limites do entendimento e os  
limites do conhecimento em geral, a adoção da suprarracionalidade”  
(da intuição etc.) ali onde é possível e necessário avançar para um  
conhecimento racional essas são as características mais gerais do  
irracionalismo filosófico. (LUKÁCS, 2020, p. 86)  
Há que se dizer, contudo, que os limites que separam essas duas tendências  
centrais do pensamento burguês contemporâneo são profundamente tênues e a  
passagem de um polo ao outro é constante, não somente no desenvolvimento  
filosófico propriamente dito, mas também nas transformações conceituais e  
metodológicas observadas no seio da reflexão científica18. O elo que liga essas  
tendências, contudo, é precisamente a ontologia empírica que ambos tomam por base  
e que implica na insolubilidade do problema da gênese dos fenômenos (sobretudo no  
plano dos fenômenos sociais e históricos) e na emergência de uma zona obscura  
incontornável na estrutura de seu pensamento:  
A exclusão consequente de toda gênese histórico-social no caso de  
fenômenos eminentemente sociais, o que necessariamente eleva o  
plano atemporal suas características condicionadas pelo tempo, é  
apenas uma consequência metodológica do modo fundamental de ver  
as coisas, da exclusão por princípio de todo e qualquer ente-em-si do  
âmbito das duas filosofias. (LUKÁCS, 2012, p. 90)  
Ambas as opções fundamentais que, seguindo os parâmetros ora  
estabelecidos, caracterizamos de maneira geral como “positivismo” e “irracionalismo”  
assim como a flexível linha de demarcação entre elas, refletem por sua vez as  
determinações sociais da decadência ideológica. Mais especificamente, as duas formas  
primordiais de apologética que emergem do mesmo fundamento social. Por um lado,  
no positivismo, observa-se a apologia direta do modo de produção: a aceitação do  
18  
Nesse aspecto, acreditamos ser de enorme importância o trabalho de Paul Forman (cf. FORMAN,  
1971). Muito embora suas teses operem sob o eixo de uma “capitulação” do pensamento científico  
balizado pelo positivismo em relação as tendências irracionalistas da lebensphilosophie (a questão,  
acreditamos, é mais complexa as transformações conceituais que se operam nos parece desenvolver-  
se de maneira mais imanente ao próprio universo conceitual do que uma simples capitulação externa),  
a maneira arrojada que desenvolve seu argumento e a ampla documentação, nos parece ser uma  
contribuição indispensável para compreender os elementos conceituais que circunscrevem a totalidade  
do pensamento burguês e a maneira como os elementos positivistas podem ser extrapolados em sentido  
abertamente irracionalista.  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
mundo empírico, “positivo” e a observação passiva de suas legalidades e  
determinações fundamentais como leis da natureza inquestionáveis. Por outro, no  
irracionalismo observamos a apologia indireta que procurando oferecer uma crítica do  
mundo empírico dado, através de um recurso aos conteúdos adquiridos através de um  
mergulho do universo místico, que finda por tão somente reafirmar, em uma forma  
modificada, certos elementos fundamentais da sociabilidade burguesa, como veremos  
com mais detalhes na segunda parte deste ensaio.  
Do mesmo modo, as oposições e polêmicas que podem ser observadas com  
tanta frequência entre as duas tendências ao longo da história recente, não nos devem  
dissuadir de identificar sua raiz comum, isto é, na posição de classe e vinculação com  
suas necessidades materiais e ideológicas, que fornecerão os impulsos primordiais de  
suas formulações. Assim, tomando como exemplo os oponentes filosóficos Heidegger  
e Carnap, Lukács indica que ambos constituem “os extremos de correntes que  
socialmente provêm da mesma origem, razão pela qual têm muito em comum em seus  
fundamentos teóricos e se completam em tal polaridade” (LUKÁCS, 2012, p. 76).  
Aprofundando nesta questão acerca da conexão umbilical entre vertentes positivistas  
e irracionalistas na filosofia focando na oposição entre Heidegger e Carnap Lukács  
indica que o irracionalismo emerge como uma tentativa de preenchimento do vazio  
que resulta da insolubilidade do problema da gênese, como assinalamos  
anteriormente. Salientando que tal unidade advém de seu comum enraizamento social  
na perspectiva intelectual da burguesia decadente, Lukács aponta que enquanto  
Carnap mantém-se satisfeito com a recomendação de Wittgenstein de se calar perante  
aquilo que escapa à concepção empírica de mundo, Heidegger, por sua vez, procura  
dar voz ao silêncio:  
A ontologia de Heidegger aparece, assim, em duplo sentido, como  
complementação orgânica do neopositivismo [...] Heidegger faz a  
tentativa de preencher com conteúdo, articular filosófica,  
ontologicamente, o "silêncio" de Wittgenstein, em que se expressa a  
rejeição neopositivista de nossos problemas vitais (ou sua  
incapacidade de solucioná-los). Por isso, a filosofia de Heidegger não  
constitui uma antítese exata ao neopositivismo, sendo apenas a  
complementação deste: ambos pisam o mesmo chão, examinam os  
problemas da sua época da mesma maneira, não vislumbrando neles  
autênticas questões histórico-sociais, mas fundamentos imutáveis de  
um pensamento científico, ou então fenomenológico; com a diferença  
de que, onde Carnap se detém satisfeito consigo mesmo, Heidegger  
manifesta um desconforto wittgensteiniano. (LUKÁCS, 2012, p. 84)  
Com essas observações não se deseja de modo algum desprezar as diferenças  
radicais que existem entre tais filósofos nos termos de seu leque conceitual específico  
e no desdobramento de problemas e motivos fundamentais, mas antes procura-se  
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salientar a raiz comum destas tendências e como as diferenças observáveis se  
desenvolvem radicadas em um ponto de partida comum, em termos de seu derradeiro  
fundamento ontológico. Neste ponto, é notável uma passagem de Heidegger em sua  
“Carta sobre o humanismo” na qual o filósofo alemão polemiza veladamente com as  
teses do Tractatus de Wittgenstein que sumariamos acima, centrando seu fogo crítico  
justamente acerca da questão da cognoscibilidade ou “dizibilidade” do “místico”, que  
em Heidegger aparece como o “ser” [Seyn].  
A linguagem abandona-se, ao contrário, a nosso puro querer e à nossa  
atividade, como um instrumento de dominação sobre o ente. Este  
próprio ente aparece como o efetivamente real no sistema de atuação  
de causa e efeito. Encontramos o ente como o efetivamente real tanto  
quando calculamos  
e
agimos, como quando procedemos  
cientificamente e filosofamos com explicações e fundamentações. A  
elas também pertence o garantir que algo seja inexplicável. Com tais  
afirmações pensamos estar diante do mistério. Como se já estivesse  
estabelecido que a verdade do ser se pudesse fundamentar, de  
qualquer modo, sobre causas e razões explicativas, ou, o que dá no  
mesmo sobre a impossibilidade de sua apreensão. (HEIDEGGER, 1973,  
p. 350; ênfase adicionada)  
Embora partindo de um juízo distinto, em sua crítica, Heidegger pressupõe  
tanto a mesma concepção da realidade (fundada sob a égide de um mundo empírico)  
quanto a mesma concepção acerca do que constitui um conhecimento “racional”, isto  
é, o puro “cálculo”, voltado meramente para a manipulação ou “dominação” dos  
fenômenos, mobilizado exclusivamente para compreender o “como” [Wer] das coisas  
com finalidade puramente pragmática e não seu escopo ontológico na pergunta  
pelo “quê” [Was], que sempre remete a problemática da gênese. Heidegger e  
Wittgenstein, assim, desdobram suas filosofias a partir do mesmo arcabouço teórico.  
Isto é, a partir da divisão entre o mundo o dos fatos, suscetível de ser apreendido na  
forma lógica da proposição e o indizível ou “místico”. Em Heidegger, contudo, essa  
estrutura se impõe na sua formulação clássica da divisão entre o plano dos “entes”  
[Seiende], regido pela manipulação, impessoalidade etc. e o “ser”, fonte da  
“autenticidade” e do sentido. O ponto de cisão entre suas perspectivas filosóficas  
configura-se na possibilidade de apreensão do ser, ou do sentido, que Heidegger julga  
possível mediante o emprego de vias não racionais (o “pensar” ou, posteriormente, a  
“meditação” [Besinnung]), enquanto Wittgenstein decreta sua indizibilidade. Esta, não  
obstante, é uma cisão que se desdobra a partir de uma raiz comum, como salienta  
Lukács:  
Tal confluência no âmbito dessa contraditoriedade (ou essa  
contraditoriedade no âmbito de uma visão de mundo muito  
semelhante) não é obra do acaso, o que se torna tanto mais plausível  
quanto maior a clareza que obtivermos sobre os caminhos percorridos  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
pelo conhecimento para chegar a tais resultados. [...] Wittgenstein e  
Heidegger rejeitam em uníssono, quase com as mesmas palavras, toda  
consideração do quê dos objetos, atrás do qual sempre estão ocultos  
motivos ontológicos, e se atêm ao conhecimento do como, afirmado  
como o único possível. É óbvio que, em todo uso meramente prático  
dos objetos, ou seja, em toda manipulação, o como necessariamente  
força passagem para o primeiro plano. (LUKÁCS, 2012, p. 90)  
E arremata contrastando essa perspectiva com uma filosofia que toma a problemática  
ontológica da gênese como pedra angular da investigação:  
[...] é evidente que todo modo de consideração realmente genético,  
crítico e histórico-social facilmente descobre que o como imediato é  
resultado, modo de externar complexos de forças reais e muito  
diferenciados, sendo que sua respectiva função atual, o como  
imediato, com frequência pode até converter-se em seu oposto.  
(LUKÁCS, 2012, p. 90)  
II. A gênese do irracionalismo filosófico  
Como vimos, a partir da contraposição e complementaridade de Heidegger e  
Wittgenstein, compreende-se que o irracionalismo filosófico emerge como tentativa de  
apresentar uma resposta à insolubilidade do problema da gênese na filosofia burguesa  
contemporânea, ao mesmo tempo que assume tacitamente os pressupostos onto-  
metodológicos constitutivos que interditam esse mesmo questionamento. Assim  
sendo, o problema da gênese objetiva dos fenômenos é transubstanciado no problema  
acerca de seu sentido. Essa tentativa de apreensão do sentido, obviamente, não pode  
de nenhuma maneira constituir uma abordagem de caráter científico e objetivo, visto  
que a estrutura ontológica do pensamento burguês põe em dois planos distintos  
(embora relacionados de maneira transcendente) o mundo empírico dos fenômenos –  
o único passível de ser objeto do conhecimento “racional” (isto é, um conhecimento  
meramente descritivo e quantificável) e a esfera transcendente e a-racional do sentido.  
Do mesmo modo, por se localizar numa dimensão além do mundo dos fenômenos  
empíricos essa esfera de realidade portadora de sentido apresenta um caráter não-  
objetivo, não-material. Dessa maneira, como indicado, a elucidação do sentido  
autêntico da realidade só pode ser realizada por vias de conhecimento não-racionais,  
intuitivas e, em última instância, subjetivas. Na medida em que a realidade externa  
apenas pode oferecer um conhecimento formal e manipulável acerca das regularidades  
observáveis no encadeamento temporal dos fenômenos, o sentido do mundo não pode  
ser encontrado no mundo objetivo, dos objetos externos, mas só pode ser procurado  
na dimensão transcendente da interioridade do sujeito.  
Como indicamos anteriormente, em sua investigação crítica do irracionalismo  
filosófico, sobretudo em A destruição da razão, Lukács não apresenta de maneira  
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Francisco Malê Vettorazzo Cannalonga  
apriorística um conceito de irracionalismo, a partir do qual seria possível subsumir  
diversos autores e tendências intelectuais. Mas antes, procura acompanhar o  
desdobramento histórico do irracionalismo filosófico a partir da análise pormenorizada  
de seus mais importantes representantes, sublinhando a maneira como os motivos e  
categorias característicos se manifestam em suas filosofias, sempre de maneira  
particular, em estreita conexão com as necessidades históricas que surgem para a  
burguesia em cada período, sempre de acordo com o caráter e intensidade da luta de  
classes, entre outros fatores. Lukács procura, desse modo, capturar o elemento  
substancial que unifica o pensamento irracionalista em suas diferentes manifestações,  
que perdura meio à mudança. Somente ao final da análise seria possível elaborar uma  
formulação sintética do conceito de irracionalismo filosófico. Acreditamos que agora,  
com base na investigação de Lukács e dos elementos elencados até o momento ser  
possível fornecer tal definição conceitual: o irracionalismo filosófico se caracteriza  
como uma perspectiva filosófica que postula um conhecimento não-racional da  
essência não-objetiva (ou sentido) do mundo. Essa definição só pode emergir a partir  
da apreensão e exposição das determinações basilares do pensamento burguês, em  
sua íntima articulação com a realidade histórica da decadência ideológica e seus  
desdobramentos, quer dizer, como resultado derradeiro da investigação.  
Armados dessa definição, procuremos agora apresentar a origem de algumas  
determinações basilares do irracionalismo a partir do fundamento geral fornecido pela  
teoria da decadência ideológica de Lukács. Indicamos anteriormente que a filosofia  
burguesa se estrutura a partir de duas esferas ontológicas distintas: uma esfera  
representando o mundo dos fenômenos empíricos e uma esfera no qual se encerra o  
sentido deste. Para o irracionalismo filosófico, contudo, essas esferas não apenas são  
distintas, mas efetivamente contrapostas: em oposição à esfera transcendente,  
portadora de sentido, a esfera dos fenômenos é caracterizada como carente de  
sentido, sendo antes apenas objeto de um saber forma, descritivo e manipulatório.  
Essa oposição entre as esferas ou dimensões da realidade assim como a forma de  
conhecimento apropriado para acessá-las constituirá, sob diferentes caracterizações,  
a pedra de toque do arcabouço conceitual da quase totalidade dos principais  
representantes do irracionalismo filosófico. Podemos encontrar uma ampla quantidade  
de exemplos das variações que se decolam desse mesmo arcabouço teórico  
apresentada nas investigações de Lukács: a ideia de uma filosofia negativa (racionalista  
e logicista) e uma filosofia positiva (capaz de penetrar na “verdadeira” realidade  
transcendente do ser) no velho Schelling; a oposição entre o mundo como  
representação [Vorstellung], dominado pela causalidade e o mundo como vontade  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
[Wille] em Schopenhauer; a decadência [décadance] e a transvaloração dos valores pela  
vontade de poder [Wille zur Macht] ou a oposição entre a perspectiva apolínea  
(racionalista) e dionisíaca (instintiva, volitiva) em Nietzsche; em Dilthey, a oposição  
entre a experiência externa fragmentária e o caráter contínuo e dinâmico da experiência  
interna da “vivência” [Erlebnis], assim como a distinção entre as ciência da natureza  
[Naturwissenschaft] e seu princípio metodológico de explicação [Erklärung] e as  
ciências do espírito [Geisteswissenschaften] e o método hermenêutico de compreensão  
[Verstehen]; a oposição entre a rigidez [Starrheit] do mundo coisificado dos fenômenos  
e o mundo dinâmico e fluído da “vida” [Leben] nos diversos representantes da filosofia  
da vida (como Simmel, Rathenau etc.); a oposição entre a civilização [Zivilitation]  
racionalizada e mecânica e a cultura [Kultur] em Spengler; entre a “sociedade”  
atomizada [Gessellschaft] e a “comunidade” [Gemeinschaft] orgânica em diversos  
representantes da sociologia alemã (cf. LUKÁCS, 2020, pp. 513ss); entre o tempo  
“espacializado” da experiência externa e a durée da intuição em Bergson; entre a  
“segurança” [Sekuritat] alienada da vida cotidiana burguesa e a revelação do sentido  
através do perigo [Gefahr] e da morte em Ernst Jünger; entre o mundo “impessoal” e  
inautêntico dos entes [Seiende] e o ser [Sein] em Heidegger; entre espírito racionalista  
e estéril [Geist] e “alma” [Seele] em Ludwig Klages, entre muitos outros.  
Na esteira de seu fundamento apologético e da necessidade de interdição do  
conhecimento histórico objetivo, essa oposição entre a esfera do sentido  
transcendente e o mundo empírico carente de sentido foi empregada com a finalidade  
de negar a possibilidade do conhecimento histórico e da historicidade pelos primevos  
representantes do irracionalismo filosófico, como Schopenhauer e Kierkegaard. Ao  
transcorrer estéril dos eventos do mundo externo, privados de sentido, era oposto  
uma essência imutável, portadora de sentido, frente a qual qualquer mudança ou  
transformação no mundo dos fatos era trivial e irrelevante. Contudo, com o acirramento  
da luta de classes e a necessidade de um combate mais enérgico ao pensamento  
socialista, emerge a necessidade de afirmar uma dimensão propriamente histórica para  
o pensamento irracionalista, de modo a fornecer elementos para o enfrentamento  
ideológico direto com o pensamento objetivamente historicista do proletariado. Neste  
sentido, a oposição entre as duas agora esferas assume a significação de uma ideia de  
decadência. A esfera do sentido é identificada com algo primordial e originário,  
enquanto a carência de sentido presente no mundo empírico aparece como o resultado  
dessa decadência e da perda deste sentido originário. Assim, para fundamentar o  
combate ideológico contra a concepção dialética do desenvolvimento histórico, o  
irracionalismo contrapõe uma versão mitologizada da história como decadência de um  
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sentido originário perdido ou corrompido; segundo Lukács, Nietzsche e sua teoria da  
décadance dos instintos e das hierarquias naturais figura como o precursor definitivo  
dessa tendência:  
A essa concepção dialética da história, o irracionalismo precisava  
contrapor outra, mas que fosse igualmente uma explicação histórica  
da realidade, de modo a permanecer atual e ter efetividade em sentido  
reacionário. O conteúdo reacionário, a defesa apologética da  
sociedade capitalista como ápice insuperável e ponto final do  
desenvolvimento da humanidade precisava, entretanto, conduzir,  
simultaneamente, a uma superação da história, do desenvolvimento e  
do progresso. A mais essencial contribuição intelectual do  
irracionalista Nietzsche consiste em marchar desviando-se da  
realidade objetiva no passo das necessidades da época, conferindo  
à história natural e social uma interpretação mítica, de modo que nela  
o desenvolvimento apareça não só com novos conteúdos e objetivos  
reacionários, como também o próprio desenvolvimento seja, na  
representação mítica, dissolvido e superado por si mesmo. (LUKÁCS,  
2020, p. 330)  
Essa formulação, contudo, assume contornos ainda mais definidos com o  
aprofundamento histórico das lutas de classes, estando também na base do  
pensamento de Spengler (oposição entre cultura e civilização) e nas teses sobre a  
decadência da comunidade orgânica originária [Gemeinschaft] e crítica da sociedade  
[Gesellschaft] liberal e atomizada19, da perda das propriedades “ctônicas” da cultura  
em Baeumler, também se encontrando na base da formulação heideggeriana acerca  
da história do ser [Seinsgeschichte] enquanto “esquecimento do ser”  
[Seinsvergessenheit], assim como nas versões mais crassas da decadência enquanto  
diluição das propriedades originárias da raça ariana pela miscigenação nos ideólogos  
do nacional socialismo e outras formulações racistas.  
Importa aqui observar a maneira como essas oposições derivam da armação  
categorial da filosofia burguesa, assim como também se vinculam à oposição entre as  
esferas da subjetividade (esfera “mística”) e da objetividade (mundo empírico), sendo  
que a primeira é concebida como portadora de sentido enquanto a segunda carente  
deste. Essa ausência de sentido do mundo objetivo é, por sua vez, frequentemente  
mobilizada na forma de uma crítica à realidade social fetichizada que emerge do modo  
de produção capitalista. Desse modo procura-se identificar a concepção mecânica e  
estática da dinâmica do mundo empírico característica ao pensamento burguês na  
decadência ideológica com o caráter alienante, impessoal, mecânico, coisificado, das  
relações sociais capitalistas. A peculiaridade do irracionalismo filosófico, então, se dá  
no fato de que este se apresenta como uma crítica da realidade social existente,  
19 Sobre esse ponto cf. Losurdo (1991) e Fritsche (1999, pp. 68ss).  
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mediante a identificação entre o mundo empírico, quer dizer, a objetividade em geral,  
com a vida social fetichizada do capitalismo, ao mesmo tempo em que se configura  
filosoficamente como uma apologia do próprio capitalismo. Como salientamos  
anteriormente, a apologia ao modo de produção capitalista pode se realizar por uma  
via direta a eliminação conceitual de todas as contradições da vida social sob o  
capitalismo ou pela via de apologia indireta. Segundo Lukács, o irracionalismo  
filosófico se inscreve precisamente na forma de apologia indireta. Nele as  
determinações contraditórias da vida social sob o capitalismo são recolhidas  
empiricamente e salientadas teoricamente, ao mesmo tempo em que sua base material  
concreta é teoricamente eliminada ou ocultada. Isso pode se efetivar de duas maneiras,  
determinadas pelas necessidades sociais e ideológicas da burguesia em cada caso: (1)  
ou essas contradições aparecem sublimadas enquanto formas ontológicas  
constitutivas do ser, ou seja, insuperáveis por definição o exemplo mais evidente se  
materializa no pessimismo filosófico de Schopenhauer; (2) ou as contradições da vida  
social do capitalismo são transubstanciadas em determinações de caráter puramente  
ideológico, enquanto tipos distintos de “atitudes”, “posturas”, “ideias”, isto é, formas  
ideológicas cuja validade supostamente transcenderiam a própria historicidade  
material do capitalismo. Enquanto na primeira variação, a crítica ao mundo objetivo  
vem acompanhada de uma resignação e desprezo por toda a tentativa de  
transformação da vida social, a segunda se apresenta não somente como uma crítica  
da realidade atual, mas também como um programa para sua superação mediante a  
recuperação do sentido originário. Essa crítica apologética ao capitalismo vincula-se,  
então, precisamente às formulações mitológicas acerca da decadência e perda do  
sentido originário mencionadas anteriormente. O mundo empírico, isto é, a vida social  
sob o capitalismo liberal, reduzida a elementos puramente ideológicos (racionalismo,  
atomismo, segurança, impessoalidade etc.), encontra-se contrastada com o sentido  
originário que reside na esfera transcendente da subjetividade. A superação das  
contradições do capitalismo converte-se simplesmente na superação destes elementos  
ideológicos o que também possibilita a identificação entre capitalismo (liberal) com  
a democracia e até mesmo com o socialismo, tomados como distintas etapas de um  
mesmo processo de decadência ao mesmo tempo em que se mantém intacta a base  
material do modo de produção capitalista e do domínio social da burguesia:  
Primeiramente, todos os eventos históricos são reduzidos a  
determinados estados psicológicos misticamente exagerados e a uma  
polaridade rígida. [...] contudo, podemos agora perceber a contradição  
fundamental da filosofia da vida em um nível mais elevado e concreto  
dentro dessa concepção mítica. Pois, por um lado, o primitivo, o  
original, o que está próximo da origem metafísica do ser humano, o  
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vivo, o instintivo recebe uma ênfase em relação ao racional, ao que  
está congelado, ao mecânico-racional, sendo que este último sempre  
deve ser entendido, em forma mitológica, como o capitalismo. Por  
outro lado, essa forma romântica-reacionária da filosofia da história  
não pode ser consistentemente aplicada em nenhum lugar. Deve  
haver, em todos os lugares, a ordem, o claro, o apolíneo triunfando  
sobre as forças do caos, sobre os poderes subterrâneos escuros e  
opacos, sendo que esse caos, então, de repente claro, de novo em  
forma mitológica é equivalente ao capitalismo mais a revolução  
proletária (pense-se na identificação do liberalismo com o marxismo).  
(LUKÁCS, 1989, p. 102)  
Neste sentido, a crítica materialista do modo de produção capitalista pode ser  
caracterizada como “inferior” ou “ingênua”, por não tocar na verdadeira “essência” das  
contradições da vida social, por se ater meramente à realidade externa e não ser capaz  
de adentrar a subjetividade e capturar o sentido originário a única fonte de  
“verdadeira” mudança. A este respeito, Lukács aduz uma notável citação de Hugo  
Fischer, que critica o marxismo por não ser capaz de entender o capitalismo como uma  
manifestação da figura mítica da “decadência”:  
A categoria de capital é uma especificação da categoria de  
decadência, categoria determinante da filosofia da cultura e da  
metafísica. O capital é a forma da decadência da vida econômica. O  
erro fundamental do marxismo mais do que do próprio Marx –  
consiste em considerar a decadência como forma do capitalismo e não  
o capitalismo como uma forma da decadência. (FISCHER apud  
LUKÁCS, 1989, p. 157)  
De maneira similar argumenta Marx Scheler, afirmando que o marxismo procura apenas  
combater a economia capitalista, mas não “sua verdadeira raiz”, quer dizer, o espírito  
do capitalismo:  
Em nenhuma de suas variações o socialismo marxista do quarto  
estado representa uma verdadeira oposição ao capitalismo, ao capital  
e sua raiz, a saber, o espírito capitalista. Ao invés disso, ele meramente  
representa os interesses materiais de sua própria classe no seio da  
sociedade capitalista, o interesse dos trabalhadores manuais e estes  
apenas na medida e quem os trabalhadores estão envolvidos no  
mesmo espírito capitalista que os empresários e os burgueses  
(SCHELER, 1984, p. 634)  
O que é notável nessa crítica apologética do capitalismo, contudo, é a profunda  
ausência de conteúdo determinado que ela encerra. As determinações centrais da  
crítica jamais superam as formas mais abstratas de caracterização conceitual:  
oposições abstratas entre vivo e morto, dinâmico e estático, alma e espírito, intuição  
e razão, perigo e segurança, autêntico e inautêntico etc. Não obstante, é justamente a  
ausência de conteúdo determinado desse tipo de formulação que fornece a  
possibilidade de uma infinita de maleabilidade conceitual acerca do sentido a ser  
apreendido pela via do mergulho na subjetividade. Essa maleabilidade é funcional e  
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necessária, na medida em que o sentido a ser apreendido invariavelmente identifica-  
se com as necessidades ideológicas da burguesia em cada período histórico  
determinado. Contudo, para além de sua funcionalidade para o combate ideológico,  
essa ausência de conteúdo resulta necessariamente do caráter apologético do  
irracionalismo. Isso se torna evidente quando se procura contrastar a crítica  
irracionalista do capitalismo às críticas reacionárias feitas ao capitalismo nascente e à  
burguesia revolucionária pelos arautos defensores da aristocracia e das instituições  
feudais. Estes últimos ainda podiam confrontar um sistema social ao outro, elencando  
conteúdos concretos e opor ao capitalismo em expansão determinações objetivas da  
organização social e instituições feudais pense-se, por exemplo, em Novalis e na  
maneira como ele ainda é capaz de propor a recuperação das instituições feudais como  
a coroa e a igreja contra a desagregação advinda do avanço do capitalismo (cf. DROZ,  
1949, pp. 159ss) ou na defesa da servidão e do caráter “comunal” da propriedade  
agrária feudal em Justus Moser (cf. EPSTEIN, 1966, pp. 297ss) e mesmo nas profundas  
críticas à economia política capitalista feitas por Jean de Sismondi. O irracionalismo,  
por sua vez, é capaz tão somente de sublimar ideologicamente, de maneira idealista,  
certos elementos (materiais, concretos) da vida capitalista, ao qual ele opõe a outros,  
igualmente sublimados:  
Não se trata mais da luta entre dois sistemas sociais, como foi em sua  
época a crítica romântica do capitalismo, mas a contraposição entre  
duas atitudes, entre dois pontos de vista acerca da realidade. Assim,  
em Dilthey, a psicologia “compreensiva” é apenas um outro ponto de  
vista metodológico contraposto à “psicologia” analítica (isto é,  
mecânica). Também em Bergson a durée réelle é algo que pode ser  
obtida através de uma atitude subjetiva, através da intuição, portanto  
algo distinto do tempo do entendimento (mecânico, mensurável);  
também em Rickert a “unicidade” [Einmaligkeit] do desdobramento  
histórico, a singularidade (“o in-dividual”) dos objetos históricos, é  
igualmente um produto da atividade “ponente” [setzenden] de objetos  
do sujeito, assim como as “leis” da natureza, que aqui formam seu  
contrário. (LUKÁCS, 1989, pp. 120-1)  
Portanto, para o irracionalismo filosófico somente através do mergulho na  
interioridade, de sua transformação e alteração, é possível atingir o sentido, para além  
do mundo externo fetichizado, carente de sentido, do capitalismo. A ausência de  
conteúdo do irracionalismo filosófico é, portanto, uma consequência necessária da  
natureza de sua apologia indireta do capitalismo. Neste ponto, porém, emerge uma  
outra distinção importante: entre aqueles indivíduos que possuem a disposição para  
adentrar na subjetividade e apreender o verdadeiro sentido da realidade, que podem  
ouvir seu “chamado” [Anruf] e aqueles que se mantém meramente aferrados ao mundo  
das aparências fenomênicas e não são capazes de ver para além do “véu de maia” do  
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mundo empírico. Aqui emerge um motivo central, que Lukács caracterizará como  
“aristocratismo epistemológico”. Isto é, a concepção de que o conhecimento  
“verdadeiro” se encontra reservados para um conjunto restrito de indivíduos, dotados  
de propriedades inatas e naturezas distintas e indisponível para as massas em geral  
(cf. LUKÁCS, 2020, p. 136). Referindo-se a Lebensphilosophie (cuja armação categorial  
é compartilhada com outras variantes do irracionalismo filosófico, como vimos), Lukács  
sintetizar os principais elementos deste conceito:  
Qualquer filosofia que repouse sobre a vivência terá de ser  
essencialmente intuitiva, e a intuição é uma faculdade que apenas os  
eleitos, os membros de uma nova aristocracia, supostamente  
possuem. Mais tarde, quando os antagonismos sociais se fizerem  
ainda mais agudos, dir-se-á sem pudor que as categorias do  
entendimento e da razão pertencem à plebe democrática, ao passo  
que os homens realmente escolhidos e superiores interagem com o  
mundo apenas com base na intuição. A teoria do conhecimento da  
filosofia da vida é por princípio aristocrática. (LUKÁCS, 2020, p. 362)  
Em oposição ao pensamento “racional” que se refere exclusivamente ao mundo  
externo (acessível a qualquer um) e que pode apenas fornecer um saber de natureza  
formal e quantificável, o irracionalismo então apresenta um conhecimento de outra  
natureza, não-racional e não-objetivo, que não é desenvolvido com base na análise e  
investigação da própria realidade, mas se obtém intuitivamente, por aqueles poucos  
que possuem a disposição necessária para tal. No curso do desenvolvimento histórico  
do irracionalismo a distinção entre indivíduos pressuposta pelo aristocratismo  
epistemológico assumirá contornos políticos e sociais particulares, a depender das  
necessidades ideológicas da burguesia em cada caso: em Schelling, identifica-se com  
a aristocracia tradicional católica-prussiana; em Schopenhauer trata-se da burguesia  
alemã desiludida após o fracasso da revolução democrática de 1848 e do  
compromisso com a aristocracia fundiária [Junkers], que reconhece a futilidade de  
qualquer tentativa de transformar a sociedade (LUKÁCS, 2020, pp. 86-7); em  
Nietzsche, identifica-se à nova aristocracia dionisíaca, de natureza superior, para quem  
“é permitido tudo aquilo que não se encontra livre para os seres de rebanho”  
(NIETZSCHE, 2015, p. 273); na época do imperialismo, esse grupo de indivíduos,  
dotados da capacidade de discernir o autêntico sentido da realidade, passa a assumir  
características de natureza völkisch e raciais, como em Heidegger ou nos  
representantes mais tradicionais do fascismo e do nacional-socialismo como Baeumler,  
Krieck e Rosenberg.  
Da concepção acerca da capacidade destes indivíduos de natureza “superior”  
em capturar o sentido do mundo, torna possível depreender uma outra determinação  
constitutiva do irracionalismo filosófico: a prioridade do elemento prático em relação  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
ao teórico. Essa determinação decola do fato de que, em última instância, o  
irracionalismo filosófico não se propõe a elaborar qualquer tipo conhecimento acerca  
da realidade objetiva, tampouco em fornecer um método para que tal conhecimento  
seja possível20, mas tão somente indagar acerca do sentido desta que não constitui  
um saber de natureza objetiva, encontrando-se em uma dimensão distinta daquela da  
realidade externa e inapreensível pelas vias tradicionais de conhecimento. Esse  
“sentido” refere-se, portanto, sempre à vida, à existência, isto é, em última instância, à  
conduta prática dos indivíduos. Esse fato não surpreenderá ninguém quando temos  
em mente as filosofias de Schopenhauer, Kierkegaard ou Nietzsche, autores que  
ostensivamente direcionam suas filosofias para problemas de natureza prática. Não  
obstante, essa determinação, também é válida para autores que em geral aparentam  
uma vocação de viés primordialmente teórico como, por exemplo, o velho Schelling e  
Heidegger. Schelling, ao formular o direcionamento de sua “filosofia positiva”, indica  
que seu propósito último é a apreensão da dimensão transcendente e suprassensível  
da realidade (o “positivo”) que constitui a possibilidade da experiência sensível através  
de um puro ato de liberdade de Deus, fundando a experiência na própria ação livre21.  
Heidegger, por sua vez, no famoso §74 de Ser e tempo, no qual introduz o conceito  
de historicidade [Geschichlichkeit]22,apresenta como única saída para a impessoalidade  
[Das Man] do mundo alienado dos entes, a resolução [Entschlossenheit] do Dasein que  
reconhece sua historicidade, que o arranca do mundo de possibilidades arbitrárias e  
colocam em conexão com seu destino [Schicksal] e com o envio coletivo [Geschick],  
definido por Heidegger como o gestar-se [Geschehen] da comunidade [Gemeinschaft]  
e do povo [Volkes]” (HEIDEGGER, 2012, p. 1.041) longe de rejeitar a dimensão  
prática da filosofia, Heidegger apresenta “uma brilhante síntese dos motivos comuns  
a todos os autores da direita revolucionária” (FRITSCHE, 1999, p. 217)23.  
20 Isso é válido mesmo para o caso de autores como Dilthey, cuja grande maioria dos escritos gira em  
torno de problemas metodológicos acerca da fundamentação das ciências do espírito  
[Geisteswissenschaften]. Mesmo em Dilthey, tal fundamentação tem por finalidade última a compreensão  
da dimensão “interior” da vida humana, da “vida” [leben] e fundamentação de uma “cosmovisão”  
[Weltanschauung] capaz de guiar os homens em um contexto de crise da sociedade burguesa, como  
bem aponta Michael Ermath: “Ele [Dilthey, FC] estava convencido que as ciências do espírito  
[Geisteswissenchaften] ofereciam uma fecunda solução para o estéril dilema que impedia o crescimento  
da compreensão humana e ameaçava enfraquecer a cultura europeia [...] O caráter especial das ciências  
do espírito era a fonte do seu significado único e potencial prático para a humanidade, mas esse caráter  
especial apresentava problemas particulares de definição teórica e justificação.” (ERMATH, 1978, pp.  
18-9)  
21  
“A filosofia positiva é sobretudo uma doutrina da criação e da história do Cristo ou a criação se  
conecta com a autoposição de Deus, ela é sua revelação e, como se sabe, para Schelling, a revelação  
de um ser, é a sua maneira de existir completamente por si, tendo assumido a si mesmo, manifestando  
completamente sua essência” (VETO, 1974, p. 239).  
22 Segundo Karl Löwith, o próprio Heidegger lhe confidenciou que o significado desse conceito estaria  
na base de seu engajamento político com o nacional-socialismo, cf. Löwith (2007, p. 58).  
23  
Ou, como precisa Nicolas Gonzales Varela: “A Daseinanalytik pretende precisamente descobrir as  
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Francisco Malê Vettorazzo Cannalonga  
De fato, a prioridade do elemento prático em relação ao teórico  
progressivamente assume a forma de um escancarado antagonismo em relação à  
teoria, a racionalidade e a cientificidade em geral. Discutindo o combate que o  
irracionalismo fascista trava contra toda concepção científica de filosofia, Lukács  
comenta uma passagem de um filosofo nacional-socialista pouco relevante, Franz  
Boehm, que não obstante explicita a maneira como a dimensão transcendente do  
sentido refere-se sobretudo à dimensão prática da vida:  
Essa hostilidade irreconciliável à natureza científica da filosofia talvez  
possa ser vista ainda mais claramente do que nas passagens  
polêmicas em que Boehm analisa a essência do que ele entende por  
visão de mundo alemã. Sua categoria central aqui é o insondável  
[Unerforschliche]: “Para o pensamento alemão, o insondável não é é  
uma definição de limite, mas uma definição totalmente positiva [...] Ela  
permeia toda a nossa realidade e reina no menor e no maior [...] O  
insondável como um impacto indissolúvel de nossa realidade é  
essencialmente inacessível, mas de modo algum desconhecido. Nós o  
conhecemos, mesmo que não possa ser dito, ele age em nossas vidas,  
determina nossas decisões, dispõe-se de nós.” (LUKÁCS, 1956, p. 31;  
ênfase adicionada)  
O antagonismo em relação ao elemento teórico da filosofia e do pensamento  
em geral tende a culminar, finalmente, na proposição da necessidade de dissolução da  
própria filosofia em nome de um fundamento eminentemente prático-político. É o caso,  
para tomar um outro exemplo aduzido por Lukács, de Ernst Krieck, que anunciava a  
morte da filosofia e sua substituição por uma “antropologia política” völkisch e racista:  
Hitler e Rosenberg já haviam combatido toda a cientificidade com a  
finalidade de colocar o mito [Mythos] em seu lugar. Krieck deseja  
encontrar uma fundamentação filosófica para essa questão central da  
visão de mundo nacional-socialista. Ele o faz de maneira bastante  
radical: no lugar das ciências filosóficas fundamentais de então, a  
lógica e a teoria do conhecimento, ele apresenta uma biologia, uma  
antropologia: “a emergente antropologia racial-völkisch-política [...]  
toma agora o lugar da entrementes morta ‘filosofia”. (LUKÁCS, 1956,  
p. 32)  
Contudo, talvez ainda mais radical e infame seja a posição de Heidegger, que  
afirmava que era necessário dar um fim à filosofia, para que ela pudesse dar lugar a  
uma metapolítica: “O fim da ‘filosofia’- Nós devemos levá-la a um fim e com isso  
preparar algo completamente distinto metapolítica [Metapolitik]” (HEIDEGGER, 2014,  
p. 115). Essa metapolítica, por fim, não poderia ser outra coisa senão a sublimação  
conceitual da práxis política do nacional-socialismo, que aparece como o derradeiro  
fontes ontológicas primordiais tanto do teórico quanto do prático, portanto, descobrir as possibilidades  
genuínas de uma filosofia prática, de uma grande política, pela primeira vez validadas na história do  
ser.” (VARELA, 2017, p. 36)  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
princípio da filosofia, capaz de libertar uma verdade originária há muito ocultada pela  
“metafísica ocidental”:  
Em que medida o nacional-socialismo jamais pode ser o princípio de  
uma filosofia, mas apenas ser deve ser posto sob a filosofia como  
princípio.  
Em que medida, contudo, o nacional-socialismo pode certamente  
assumir posições determinadas e assim contribuir para uma nova  
posição fundamental com relação ao Ser.  
Mas isso apenas sob o pressuposto de que o nacional-socialismo  
conheça-se em seus limites i.e. compreenda que é verdadeiro apenas  
se apenas se estiver em condições de preparar e libertar uma  
verdade originária. (HEIDEGGER, 2014, p. 190)  
Com isso, podemos compreender que, em sua essência, o irracionalismo  
filosófico se configura como a filosofia da práxis da burguesia reacionária nos  
momentos em que a crise do capitalismo e o acirramento da luta de classes exigem  
medidas e soluções de caráter agressivamente reacionário e não mais uma mera  
apologia direta do atual estado de coisas. Essa práxis, contudo, não se efetiva  
enquanto uma intervenção prática nos complexos materiais que conformam o tecido  
da realidade social (como é a práxis em sentido propriamente marxista) mas antes  
apenas como uma ação subjetiva e interior. Isto é ainda como algo exclusivamente  
encerrado nos limites da subjetividade, enquanto simples tomada de consciência ou  
afirmação de uma “disposição afetiva fundamental” [Grundstimmung] tal como formula  
Heidegger em seu infame discurso do reitorado (cf. HEIDEGGER, 2007, p. 162). E,  
frequentemente, tal ação subjetiva redunda em não mais do que predicação da  
submissão do indivíduo às potências irracionais (à “vontade”, ao “destino”, à “vida”  
etc.), em outras palavras, submissão ao domínio irrestrito e absoluto da burguesia.  
Enquanto a perspectiva marxista por sua vez afirma a unidade dialética de teoria e  
práxis (quer dizer, o conhecimento da realidade como instrumento de sua derradeira  
transformação), o pensamento irracionalista dispensa a teoria em nome de uma forma  
de conhecimento não-racional, intuitivo, que conduz necessariamente a uma práxis  
exclusivamente subjetiva, interna, que por sua vez necessariamente conflui para a  
implementação dos fins reacionários da burguesia.  
Conclusão  
Como vimos ao longo deste ensaio, o irracionalismo é, a forma ideológica com  
que a burguesia assume em sua tentativa de elaboração uma solução reacionária à  
contestação de seu domínio social, que assume preponderância nos momentos  
históricos em que a mera apologia direta se torna insuficiente para sua autojustificação  
momentos tais como o que vivemos atualmente. Apelando para uma esfera  
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Francisco Malê Vettorazzo Cannalonga  
transcendente de sentido acessada exclusivamente por vias não-racionais cujo  
conteúdo específico depende tão somente das necessidades ideológicas da burguesia  
em cada momento histórico (o que implica sua infinita maleabilidade) a emergência de  
um pensamento irracionalista torna-se um expediente imprescindível no combate  
árduo da burguesia para assegurar a manutenção de seu domínio social e da forma  
específica de sociabilidade que a sustenta.  
Assim, compreende-se a enorme atualidade e fecundidade contidas nas análises  
de Lukács, especialmente para o momento histórico que vivemos. Deste modo, reduzir  
o combate travado por Lukács ao pensamento irracionalista como uma polêmica vazia,  
com um viés exclusivamente político-partidário (como fizeram muitos  
contemporâneos)24, configura um profundo erro de análise, que ignora os diversos  
elementos fecundos apresentados nos escritos críticos de Lukács. Contudo, é  
necessário também indicar que essa fecundidade e atualidade das formulações de  
Lukács não surgem ex nihilo e que é impossível excluir um certo elemento pessoal e  
não somente social e político. Em sua juventude, Lukács não apenas cresceu sob o  
influxo intelectual das tendências dominantes da Lebensphilosophie alemã (tendo sido  
aluno não somente de Dilthey e Simmel, mas também de Max Weber) como foi, ele  
próprio, um importante e influente representante dessa mesma tradição.25 Lukács  
observou em primeira mão a maneira como as tendências cruciais da  
Lebensphilosophie evoluíram em um sentido reacionário e como estas conduziam a  
uma apologia (indireta) do capitalismo e culminaram nas formas mais degeneradas do  
fascismo europeu. Essa experiência íntima é relatada por Lukács no prefácio de seu  
primeiro escrito de fôlego sobre o tema do irracionalismo e da decadência ideológica,  
o manuscrito Wie ist die faschistische Philosophie in Deutschland entstanden? (Como  
surgiu a filosofia fascista na Alemanha?), redigido em 1933:  
Esse livro foi escrito após a tomada de poder de Hitler e após a minha  
emigração forçada em poucas semanas. Contudo, posso igualmente  
dizer, sem grande exageração: esse livro está em gestão há mais de  
25 anos. Como aluno de Simmel e Dilthey, como amigo de Max Weber  
e Emil Lask, como leitor entusiasta de Stefan George e Rilke eu  
testemunhei todo o desenvolvimento aqui representado […] Para o  
leitor que se intimida com as consequências desse livro, com o  
reconhecimento da unidade do desenvolvimento do pensamento  
burguês do período imperialista até o fascismo, devo enfatizar aqui  
que a afirmação dessa conexão não é uma construção apressada para  
considerações polêmicas, mas uma síntese e generalização de um  
24  
Para uma preciosa síntese dos calorosos debates em torno da obra de Lukács, sobretudo em torno  
da temática da crítica à filosofia burguesa cf. os capítulos relevantes em Tertulian (2023) e Netto (2023).  
25 Lucien Goldmann chega mesmo a argumentar que a coletânea As almas e as formas (1911) de Lukács  
constitui a primeira instância da tendência filosófica que posteriormente viria a ser conhecida como  
“existencialismo”, cf. Goldmann (1968, pp. 160-1).  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
período testemunhado. Alguns de meus amigos de juventude,  
honestos e convencidos anticapitalistas românticos, vi serem tragados  
pelo turbilhão do fascismo. As grandes esperanças da filosofia e da  
poesia desaparecer entre os dois campos, porque eles apenas  
puderam renunciar ao parasitismo do período em suas conclusões,  
mas não nos pressupostos de seu pensamento, porque eles romperam  
apenas exteriormente com a burguesia imperialista, mas não até as  
raízes de seu ser e de seu pensamento. (LUKÁCS, 1989, p. 39)  
É notável que ao descrever as circunstâncias pessoais de sua tomada de posição  
Lukács procura sempre salientar que as razões da derrocada ideológica de honestos  
pensadores com quem conviveu radica-se na própria essência da ideologia burguesa,  
na forma que essa assume no momento histórico de sua decadência ideológica. Desse  
modo, as investigações de Lukács lançam luz sobre o fato de que fenômenos  
intelectuais como o irracionalismo (que fornece a base de sustentação conceitual e  
ideológica para movimentos políticos reacionários como o fascismo) não assomam à  
vida cotidiana como uma infeliz contingência, mas que, antes, derivam do próprio  
arcabouço conceitual e do cosmos ideológico do pensamento burguês. Se este não  
puder ser superado, tampouco aquele o será. O irracionalismo é, portanto, uma  
consequência necessária da ideologia burguesa e da necessidade da apologia do  
modo de produção capitalista. Combater o irracionalismo de maneira consequente  
significa romper não somente com suas formas de manifestação, mas combater as  
“raízes de seu ser e de seu pensamento”, isto é, a própria ideologia burguesa que lhe  
fornece arrimo, em todas as suas manifestações, mesmos aquelas que se encontram  
revestidas de um lustro de “respeitabilidade”.  
É neste aspecto que o pensamento de Lukács ainda se mantém fecundo e  
importante, em sua capacidade de revelar os elementos constitutivos do pensamento  
burguês no período da decadência ideológica e investigar a maneira como, a partir  
deles, o irracionalismo pode emergir. Dessa maneira, as investigações de Lukács são  
relevantes para o nosso próprio tempo e fornecem instrumentos teóricos  
indispensáveis para combater o irracionalismo que avança e se expande por todos os  
poros da vida social.  
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Decadência ideológica e a gênese do irracionalismo filosófico em Lukács  
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Como citar:  
CANNALONGA, Francisco Malê Vettorazzo. Decadência ideológica e a gênese do  
irracionalismo filosófico em Lukács. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 301-  
329, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 301-329 jul.-dez., 2025 | 329  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.771  
“Habilidoso”, de Machado de Assis: um retrato  
do artista na moldura do diletantismo à  
brasileira  
“Habilidoso”, by Machado de Assis: a portrait of the  
artist within the framework of Brazilian-style  
dilettantism.  
Ana Laura dos Reis Corrêa*  
Resumo: A justaposição imediata, e com traços  
satíricos, da figuração do artista em polos  
opostos como Gênio e como alguém  
“Habilidoso”, título do conto de Machado de  
Assis que será analisado neste texto, remete o  
leitor à questão do diletantismo na arte, que  
ganha força no século XIX e se reflete  
artisticamente, na narrativa machadiana, pela  
composição de personagens e narradores  
artistas: músicos, como o Pestana, de “Um  
homem célebre”, Inácio Ramos, de “O machete”,  
Mestre Romão Pires, de “Cantiga de esponsais”;  
escritores autobiográficos, como Brás Cubas,  
Bento Santiago e Conselheiro Aires; e um curioso  
pintor de quadros sem sucesso, João Maria,  
nosso protagonista “Habilidoso”. Entendendo a  
atitude diletante como uma condição histórica a  
ser enfrentada pelo artista e pelo intelectual na  
modernidade, investigamos de que forma a  
posição diletante, objeto da atenção de Goethe  
no século XVIII e estreitamente ligada à mudança  
da produção da arte no mundo do capital, se  
apresenta acrescida de um segundo grau  
Abstract: The immediate juxtaposition with  
satirical overtones of the artist's depiction in  
opposite poles as a Genius and as someone  
"Habilidoso (Skilled)”, the title of the short story  
by Machado de Assis that will be analyzed in  
this study leads the reader to the question of  
dilettantism in art, which sharpened in the 19th  
century and is reflected artistically in Machado's  
works through the composition of artist  
characters and narrators: musicians, such as  
Pestana, from "A Famous Man”, Inácio Ramos,  
from "The Machete”, Romão, from "Wedding  
Song"; autobiographical writers, such as Brás  
Cubas, Bento Santiago, and Conselheiro Aires;  
and a curious, unsuccessful painter, João Maria,  
our “Skilled” protagonist. By understanding  
dilettantism as a historical condition to be faced  
by artists and intellectuals in modernity, we  
investigate how the dilettante position, the  
object of Goethe's attention in the 18th century  
and closely linked to the change in art  
production in a capitalistic world, presents itself  
compounded by a second problematic aspect in  
Machado's work: the Brazilian-style dilettantism.  
problemático  
na  
obra  
machadiana:  
o
diletantismo à brasileira.  
Keywords: "Habilidoso"; Machado de Assis;  
dilettantism; satire; aesthetic composition and  
social form.  
Palavras-chave: "Habilidoso"; Machado de Assis;  
diletantismo; sátira; composição estética e forma  
social.  
Habilidoso, conto publicado em 1885, na Gazeta de Notícias, está entre as  
narrativas de Machado de Assis que têm como protagonistas personagens e  
narradores que exercem, tentam ou pensam exercer atividades artísticas. Entres esses  
homens célebres1 que povoam toda a obra de Machado de Assis estão poetas, como  
*
Professora Associada de literatura da Universidade de Brasília UnB. Membro do Programa de Pós-  
Graduação em Literatura da Universidade de Brasília POSLIT - UnB. Líder do grupo de pesquisa  
Literatura e Modernidade Periférica. ORCID: 0000-0001-5452-991X  
1
Além de uma referência ao conto “Um homem célebre”, de 1883, essa expressão abre a galeria de  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
Verinotio  
nova fase  
   
“Habilidoso”, de Machado de Assis  
Luís Tinoco; músicos Pestana, Inácio Ramos, Romão , e escritores autobiográficos:  
Brás Cubas, Bento Santiago e Conselheiro Aires. Mas hoje falaremos do obscuro João  
Maria. Ele vive num beco, possui há apenas 15 dias uma loja de trastes velhos, que  
tem como virtual freguesia os habitantes de duas dúzias de casas pequenas, num lugar  
de poucos passantes e, por isso, talvez, João Maria só tenha vendido até o momento  
um aparador e uma gaiola de arame, embora seja a sua a única casa de trastes velhos  
do beco.  
Neste mundo insulado, no dizer do narrador, vive o nosso homem, cercado de  
coisas diminutas e insuladas como ele. Esse mundo ilhado é também a forma de  
composição do conto: “paremos neste beco” são as primeiras palavras do conto e  
convidam o leitor a ver uma cena pictórica, onde cada elemento é marcado por um  
rebaixamento, emoldurando uma atmosfera que hesita entre o cotidiano e alguma  
fantasia, entre a mancha cinza da miséria e as cores, mesmo que apagadas, da  
imaginação, entre o anúncio da carência e uma visão não trágica, mas satírica, dela.  
Todo o conto é narrado do ponto de vista de um retrato, que parte do geral, que é  
pouco, o beco, e pouco a pouco vai se achegando ao centro: o habilidoso João Maria.  
Tudo dentro de uma moldura, que ao limitar é que também se abre.  
Na pintura do beco, o narrador não penetra nas casas, são os pouquíssimos  
personagens anônimos que se mostram nas molduras das janelas:  
vê-se chegar à rótula a cabeça de uma mocinha, que acabou agora  
mesmo o penteado, e vem mostrá-lo cá fora; mas cá fora estamos  
apenas o leitor e eu, mais um menino, a cavalo no peitoril de outra  
janela, batendo com os calcanhares na parede, à guisa de esporas.  
(MACHADO, 2015, p.225)  
Há quadros dentro do quadro do conto, mas não há quem os veja – “apenas o  
leitor e eu”, como diz o narrador. A mocinha não tem a quem entreter com seu  
penteado e o cavalo que entretém o menino, assim como as esporas que ele usa, são  
na verdade uma redução fantasiosa da paisagem a uma brincadeira infantil. No  
primeiro olhar para tal quadro não sabemos qual a sua relação com a narração para  
além de seu caráter descritivo, mas, ao final, o retrato se fecha e é possível que se  
abra o seu sentido. Há “ainda outros quatro [meninos], adiante, à porta da loja de  
trastes, olhando para dentro” (MACHADO, 2015, p.225) e somente nas últimas linhas  
alguns dos muitos personagens e narradores machadianos que dão forma estética ao processo  
histórico-social em que é forjada a figura do diletante: Luís Tinoco, o poeta desprovido de talento de  
“Aurora sem dia” (1873), os músicos Pestana, célebre compositor de polcas do conto citado; Inácio  
Ramos, o violinista de “O machete” (1878); o regente Mestre Romão Pires, de “Cantiga de esponsais”  
(1884); e os narradores-personagens de autobiografias ficcionais, iniciativas artísticas da narração de  
vidas pequenas de “grandes” homens, como o narrador não-confiável de Memórias Póstumas de Brás  
Cubas (1881), o diminuto Bentinho de D. Casmurro (1899) e Conselheiro Aires, o solitário viúvo e  
diplomata aposentado de Memorial de Aires, publicado em 1908, ano da morte de Machado de Assis.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 330-341 jul.-dez., 2025 | 331  
nova fase  
Ana Laura dos Reis Corrêa  
do conto será possível ver o que eles olham.  
Ao entrar na pequena loja com o leitor, o narrador nos apresenta João Maria, e  
sua primeira pincelada nos comunica que, além de dono da loja que não tem muito a  
vender, o protagonista é também um pintor e na verdade ele quer ser mais pintor que  
comerciante: “Agora mesmo está diante de uma pequena tela, tão metido consigo e  
com o trabalho, que podemos examiná-lo a gosto, antes que dê por nós” (MACHADO,  
2015, p.225). Ter vendido quase nada, ter se mudado às pressas para o beco por não  
ter podido pagar o antigo aluguel, usar trajes puídos, nada disso importa para João  
Maria, que se ampara na ideia de que os primeiros dias são difíceis, é preciso ter  
paciência e esperar pela notoriedade que o fato de ser a sua a única loja de trastes do  
beco trará, e “João Maria espera, pintando” (MACHADO, 2015, p.225). No gerúndio,  
sua atividade não tem dia marcado nem hora para acabar, e também aguarda uma  
notoriedade que insiste em não chegar.  
Nos trajes de João Maria estão as marcas do trabalho, não o seu, que é pintar,  
mas aqueles labores cotidianos indispensáveis para a vida imediata:  
As calças são de brim pardo, lavadas há pouco, e muito remendadas  
nos joelhos; remendos antigos, que não resistem à lavadeira, que os  
desfia na água, nem à costureira, que os recompõe. Uma e outra são  
a própria mulher de João Maria, que reúne aos dois misteres o de  
cozinheira da casa. (MACHADO, 2015, p.225)  
O pequeno filho, de seis para sete anos, tem também um dever: é ele quem faz  
as compras, substituindo o criado que não há. João Maria, porém, segue pintando e o  
narrador então faz uma pergunta: Pintando o quê, e para quê?(MACHADO, 2015,  
p.225).  
Esse questionamento do narrador, ao fim do plano mais geral do início conto,  
faz a narrativa avançar em seu movimento; no caso, em marcha a ré, para o passado  
de João Maria, que no presente do conto tem 36 anos. Sua sina de pintar se iniciou  
cedo, quando criança tinha o que o narrador chama de “um sestro”, algo que  
contaminou o menino como uma doença e que o levou a espontaneamente copiar  
“tudo o que lhe caía nas mãos, vinhetas de jornais, cartas de jogar, padrões de chitas,  
o papel das paredes” (MACHADO, 2015, p.225). Ao analisar a ordem temporal que  
rege a sequência de objetos que João Maria, espontaneamente, pensa transfigurar em  
arte, quando na verdade expressa uma crescente obsessão em copiar o que lhe  
aparece pela frente indistintamente, sem nenhuma hierarquia ou seleção, Hélio de  
Seixas Guimarães (2005) ressalta que  
Se a sequência pode sugerir maior complexidade e uma elevação  
gradativa dos objetos de referência e imitação da descartabilidade  
dos jornais, passando pelo utilitarismo do baralho, dos tecidos e dos  
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papéis de parede, chegando aos motivos propriamente pinturescos,  
que culminarão na representação da Virgem , o método da pintura  
permanece sempre o mesmo, assim como a finalidade do pintar: o  
reconhecimento, o aplauso público, a glória. (p.155)  
A única mudança é o fato de que o sestro virou ambição quando “aconteceu-  
lhe” (MACHADO, 2015, p.225), o que parece ser por acaso, ir à exposição anual da  
Academia das Belas-Artes. Nessa ocasião, João Maria, além de engenhar logo a pintura  
da cena de um assassinato, onde um conde matava a outro conde; alastrou as paredes,  
em casa, de narizes, de olhos, de orelhas. Quando via numa lojinha um quadro que  
representava um prato de legumes, atirava-se aos legumes; quando visitava uma  
marinha, tentava as marinhas.  
A fonte de suas ambições artísticas como pintor era, além da prática de copiar,  
a obstinação, filha de um desejo que não correspondia às faculdades. Obstinação que,  
nascida do sestro e da brincadeira, jamais pode transpor os umbrais da  
espontaneidade e ficou sempre adolescente e pueril, presa de emoções e ilusões  
juvenis que remetem à fantasia inicial do menino que cavalgava o peitoril da janela  
como se montasse um corcel: João Maria “dava rebate às ambições da adolescência, e  
todas vinham de tropel, pegavam dele, para arrebatá-lo a uma glória, cuja visão o  
deslumbrava. Daí novo esforço, que o louvor a outros vinha incitar mais, como ao brio  
natural do cavalo se junta o estímulo das esporas” (MACHADO, 2015, p.226).  
A resposta à crucial pergunta do narrador – “Pintando o quê, e para quê?” –  
entra em tela quando o narrador apresenta as concepções e as formas adotadas por  
João Maria para alcançar sua ambição: pintar. Vejamos o perfil de nosso pintor: 1)  
aborrecia a técnica, era avesso à aprendizagem, aos rudimentos das cousas; 2) não  
aprendeu nada, nem possuía o talento que adivinha e impele a aprender e a inventar;  
3) tinha, ao menos, alguma cousa parecida com a faísca sagrada? Cousa nenhuma, diz  
o narrador; 4) tudo em arte se devia ao gênio do artista, e João Maria supunha tê-lo.  
A expressão “gênio” do artista é do narrador, pois João Maria não conhecia  
esse vocábulo, que para ele era, no significado, sinônimo de habilidoso. Palavra que  
ouvira em criança da boca de parentes e amigos como designação de sua  
personalidade e que passou a repetir para si mesmo: “— João Maria é muito  
habilidoso” (MACHADO, 2015, p.226).  
Até o momento, do retrato pintado pelo narrador e da pergunta que ele  
elabora, emergem, possivelmente, duas questões: 1) que tipo de pintor é João Maria  
na dimensão histórica que se dissolve nas tintas do conto? 2) qual o efeito estético  
realista do caráter diminutivo, de tom satírico, que sobrepõe às formas grandiosas os  
contornos estreitos e limítrofes?  
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Pintando o quê, e para quê?  
Partindo do fundamento de que a atitude diletante é uma condição histórica a  
ser enfrentada pelo artista e pelo intelectual na modernidade, é possível compreender  
o quanto a posição diletante, objeto da atenção de Goethe2 no século XVIII, está  
estreitamente ligada à mudança da produção da arte no mundo do capital. No século  
XIX, a condição do artista na modernidade está incontornavelmente enlaçada à forma  
histórica da alienação, que, artisticamente, funcionaria como uma metonímia falida,  
fetichizada e, não, artística:  
Como o diletante só recebe sua produção autônoma a partir dos  
efeitos que as obras de arte produzem sobre ele, confunde tais efeitos  
com as causas e motivos objetivos, e crê que o estado receptivo ao  
qual se vê transportado também possa se tornar produtivo e prático,  
tal como se, através do perfume de uma flor, fosse possível produzir a  
flor mesma. (GOETHE, apud VEDDA, 2015, p. 66, minha tradução e  
grifo)  
Para além da ameaça de redução da arte e da atividade artística à mercadoria,  
portanto, está o mecanismo de cristalização das dimensões efetivamente criativas e a  
situação de insulamento do artista. Nesse cenário está a raiz e o adubo da forma  
histórica do diletante. Aqui não há espaço para aprofundar historicamente o  
surgimento dessa condição3, nos limitaremos apenas a apontar alguns elementos da  
figuração artística entrelaçada a esse processo social a partir desse conto tão  
habilidoso nesse sentido.  
A condição diletante se liga a uma atitude não apenas diante da arte, mas  
também da vida. Nesse conto ela é tratada satiricamente e, portanto, apresenta a  
vantagem de escapar de prejuízos morais e de um foco individual: João Maria  
simplesmente é habilidoso, recebe esse nome e se aferra a ele como forma única e  
hipnotizante de pintar e viver. Não pode enxergar nada além disso ou vê tudo a partir  
dessa lente única e, não cristalina, mas cristalizada, rígida, imutável, portanto, não  
criativa, mas reprodutora de um infinito ruim, sem saída, sem brecha, uma cópia infeliz  
que repete outra cópia infeliz. João Maria encarna uma condição histórica que se  
avantaja na produção artística, mas que também é partilhada por todos, como  
2
Em 1799, Goethe iniciou, juntamente com Schiller, um ensaio sobre o diletantismo Über den  
Dilettantismus , manuscrito que não foi integralmente concluído, mas que restou como testemunha da  
importância do tema para Goethe e seu tempo, uma vez que representou uma tentativa de reunir vários  
elementos referentes a este problema da modernidade, ainda inconcluso como o próprio manuscrito,  
que se fez presente em muitas das obras do autor alemão, tanto nas artísticas quanto naquelas não  
ficcionais.  
3 Para tanto, vale recomendar alguns dos resultados de pesquisa de Gabriel D. Pascansky, especialmente  
sua Tesis de Maestría, intitulada “El concepto de ‘diletantismo’ en la literatura alemana (1750-1800)”,  
defendida na FFyL, UBA, em 2023, sob a orientação do Prof. Dr. Miguel Vedda.  
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dimensão do espírito do tempo.  
O diletante se perde em seu insulamento e, desligado da vida, não pode nutrir  
sua atividade artística das formas vitais dinâmicas e mutáveis. Sua impossibilidade de  
distanciar-se de suas ambições e projetos resulta numa obsessão infrutífera e produz  
a ilusão de que da próxima vez, no próximo quadro, realizará um feito grandioso, e  
assim a possibilidade de terminar e dar forma a algo efetivo jamais se concretiza,  
empurrando-o para outro projeto inacabado.  
O mundo insulado do artista diletante o aprisiona numa identificação fantasiosa  
com a própria arte, e, ao confundir a arte com a vida, o diletante nem faz arte nem  
vive. Sua celebrada espontaneidade, revelada na incapacidade de profissionalizar-se,  
o que para ele é rebaixar a arte, não é mais que uma atitude mistificadora que tende  
a anular a dimensão desfetichizadora da arte. O artista diletante não pode amadurecer.  
Como um Puer, ele não lamentaria morrer jovem, como Werther, esse famoso diletante  
da literatura, que também fracassa na sua atividade artística em função de sua  
“obsessão por cristalizar esteticamente a vida, e por uma inata seriedade que o impede  
de estabelecer, diante das ameaças de colisão trágica, um distanciamento irônico”  
(VEDDA, 2015, p. 64, minha tradução). É o que veremos adiante com nosso diletante  
brasileiro, que, diante de uma possível tragédia, estará completamente cristalizado,  
alheio à sua realidade e atado a seu fazer artístico improdutivo.  
A recusa da técnica, dos aspectos laborativos, temporais, seculares e  
limitadores leva a exigir a produção de uma grande tragédia, como o assassinato do  
conde, ou um grande êxtase, como o retrato da Virgem, que obsediou João Maria até  
o fim, como veremos logo mais. O diletante não pode crescer, viver e morrer como os  
outros homens. Incapaz de encarar os fatos da vida, com suas tragédias, grandezas e  
mesmices, o personagem diletante quer ser ele mesmo o protagonista de sua fantasia  
artística, mesmo quando está fora dela, vivendo sua vida, seu destino ficcional.  
As paixões humanas acabam reduzidas à necessidade de reconhecimento e  
notoriedade, o que se torna imperioso é ser notado. Trata-se do mesmo amor da glória  
e da velha sede de nomeada do narrador Brás Cubas? Avulta a necessidade de atuar,  
de espetáculo e se obstaculiza a possibilidade de viver autenticamente os fatos da  
vida. Sua ínsula regida pela espontaneidade é, na verdade, um palco e sua arte sempre  
um projeto malfadado. Quando bastaria ser habilidoso, o diletante entende que é  
preciso ser um gênio. Incapaz de caber em si mesmo, como adulto, o diletante  
extravasa sobre a própria realidade e crê na sua ilha, para sempre um mundo infanto-  
juvenil: a mocinha que mostra o penteado à janela sem que exista plateia, o menino  
que dá esporadas na parede sem sequer sair do lugar. O diletante está sempre à janela,  
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enquadrado numa cena. Não sabe o que pinta nem para quê.  
Diletantismo à brasileira?  
A viravolta satírica empreendida por Machado de Assis na composição de seus  
personagens diletantes justapõe, num contraste imediato, aparência e essência:  
espontaneidade e palco para um espetáculo; genialidade e redução a falsa habilidade;  
arte e penteado juvenil; janela e quadro sem espectador; a fantasia infantil e ambição  
estética. O caráter histórico dessa redução da própria atitude diletante pelo contraste  
entre o mundo e o beco talvez apresente a forma estético-social do diletantismo  
acrescida de um segundo grau problemático na obra machadiana: o diletantismo à  
brasileira.  
Diante dessa possibilidade, voltemos ao nosso artista diletante João Maria.  
Quando o conto volta ao presente, o artista está à porta (uma variação da janela) da  
loja de trastes velhos no beco, aqueles quatro meninos que no início do conto estão  
sentados a olhar para dentro da loja de trastes velhos o veem pintando, diante da  
eterna Virgem, a mesma que já tentou finalizar inúmeras vezes sem dar fim a seu  
projeto pictórico sagrado.  
Enquanto retoca os anjinhos e o manto, o pintor não pode ver sua mulher que  
leva o filho doente a uma consulta conseguida de favor. A vida comum não importa,  
João Maria pinta absorto, dá pinceladas, observa os efeitos na figura da santa celeste,  
não vê a mulher, terrenal, magra e cansada no seu único vestido de sair feito de sarja  
preta, já amarelado nas mangas e roído na barra. Tampouco escuta as recomendações  
de que fica uma panela no fogo e que é preciso em um determinado momento apagar  
o fogo, João Maria segue pintando.  
O conto vai se encerrando com uma tragédia anunciada: João Maria não  
desligará a panela? O fogo consumirá o pouco que existe, aquela loja de trastes velhos  
virará cinzas e talvez também o artista morrerá de forma trágica como morreu o pintor  
de Balzac, em “A obra-prima ignorada” (2020)4, coroado de reconhecimento, mas  
insatisfeito com sua última pintura, sua Catarina Lescaut, impossível de ser terminada?  
Não. Nesse conto brasileiro, nem mesmo a tragédia coroa nosso diletante, o  
4
Nessa obra de Balzac, o velho Mestre Frenhofer, um pintor reconhecido e celebrado em vida por  
pintores mais jovens, pinta secretamente aquela que seria sua obra-prima, o retrato de Catarina Lescaut,  
que nunca pode ser terminado, pois seu autor nunca está satisfeito com o resultado e põe-se a refazer  
a tela obsessivamente e se nega a mostrá-lo aos demais personagens: dois pintores e a namorada de  
um deles, que é dada como moeda de troca ao Mestra para que a obra-prima ignorada seja revelada.  
Quando finalmente podem ver a pintura, os pintores, decepcionados, não conseguem discernir nela  
nada de realmente humano, à exceção de um dos pés da figura, pintado com perfeição indescritível.  
Após essa exposição falida, o conto termina com um grande incêndio na casa-museu de Mestre  
Frenhofer, que consumiu a obra-prima e o seu autor.  
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conto termina com um espetáculo diminuto, à altura do pequeno beco:  
João Maria fica pintando; os meninos olham embasbacados. Olhemos  
bem para ele. O sol enche agora o beco; o ar é puro e a luz magnífica.  
De quando em quando dizem alguma cousa ao ouvido um do outro,  
um reparo, uma pergunta, qual dos anjinhos é o Menino Jesus, ou o  
que quer dizer a lua debaixo dos pés de Nossa Senhora, ou então um  
simples aplauso ingênuo; mas tudo isso apenas cochichado, para não  
turvar a inspiração do artista. Também falam dele, mas falam menos,  
porque o autor de cousas tão bonitas e novas infunde-lhes uma  
admiração mesclada de adoração, não sei se diga de medo em  
suma, um grande sentimento de inferioridade. Ele, o eterno João  
Maria, não volta o rosto para os pequenos, finge que os não vê, mas  
sente-os ali, percebe e saboreia a admiração. Uma ou outra palavra  
que lhe chega aos ouvidos faz-lhe bem, muito bem. Não larga a  
palheta. Quando não passeia o pincel na tela, para, recua a cabeça, dá  
um jeito à esquerda, outro à direita, fixa a vista com mistério, diante  
dos meninos embasbacados; depois, unta a ponta do pincel na tinta,  
retifica uma feição ou aviva o colorido. Não lhe lembra a panela ao  
fogo, nem o filho que lá vai doente com a mãe. Todo ele está ali. Não  
tendo mais que avivar nem que retificar, aviva e retifica outra vez,  
amontoa as tintas, decompõe e recompõe, encurva mais este ombro,  
estica os raios àquela estrela. Interrompe-se para recuar, fita o quadro,  
cabeça à direita, cabeça à esquerda, multiplica as visagens, prolonga-  
as, e a plateia vai ficando a mais e mais pasmada. Que este é o último  
e derradeiro horizonte das suas ambições: um beco e quatro meninos.  
(MACHADO, 2015, p.228).  
A composição da cena final do conto é, como no começo da narrativa, pictórica  
– “O sol enche agora o beco; o ar é puro e a luz magnífica” –; o narrador, ainda  
acompanhado pelo leitor, convida a olhar detidamente para a figura central da  
composição João Maria que segue pintando. Quando olhamos bem para ele, a  
pedido do narrador, o que vemos? Uma ação que, em lugar de ser a concretização da  
“inspiração do artista”, se resume a um pequeno espetáculo, uma fantasia farsesca em  
que o diletante João Maria, frente à plateia infantil, a única que poderia se sentir inferior  
e embasbacada diante dele e de sua obra, se sente finalmente “eterno” e finge: “não  
volta o rosto para os pequenos, finge que os não vê, mas sente-os ali, percebe e  
saboreia a admiração” (MACHADO, 2015, p.228). A cena final, que é sua apoteose  
artística reafirma sua atitude diletante, seu fracasso como artista, sua incapacidade de  
concretizar seu projeto, ele apenas o prolonga, eternamente: “Não tendo mais que  
avivar nem que retificar, aviva e retifica outra vez, amontoa as tintas, decompõe e  
recompõe” (MACHADO, 2015, p.228). Encaixa-se perfeitamente na descrição  
goethiana do diletante:  
Os diletantes têm o hábito de, depois de terem feito tudo quanto lhes  
é possível, se desculpar dizendo que o trabalho ainda não está pronto.  
E é verdade que o trabalho não pode nunca ficar pronto, pela simples  
razão de que nunca foi verdadeiramente começado. Um mestre dá o  
seu trabalho por pronto com meia dúzia de traços; com acabamentos  
ou sem eles, a perfeição da obra já existe. O diletante, por mais dotado  
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que seja, anda a tatear na incerteza e, à medida que vai fazendo  
crescer os acabamentos, cada vez se torna mais visível a insegurança  
da sua disposição inicial. Por fim torna-se patente o que falhou e que  
não pode já ser corrigido, de forma que a obra não tem possibilidade  
de ficar verdadeiramente pronta (GOETHE, 2000, p. 206).  
A dimensão periférica da cena final se adensa nas últimas palavras do conto:  
um beco e quatro meninos, lugar e plateia diminuta para ambições tão altas, é essa, e  
não a possibilidade do incêndio ou a miséria da família e do beco, a tragédia do artista  
periférico no retrato pintado por Machado de Assis. Estaríamos, então, diante de uma  
satirização da tragédia?  
A ameaça de incêndio que paira no ar, a suposta piedade do narrador em  
relação ao personagem, bem como a interpretação de que João Maria se resignou a  
um reconhecimento precário de sua habilidade artística são justificativas para que  
algumas das leituras críticas desse conto o vejam como trágico. A competente leitura  
de Hélio de Seixas Guimarães (2005), por exemplo, chega à conclusão de que, em  
“Habilidoso”, predomina a nota melancólica:  
Desta vez, a nota cômica e satírica parece amortecida, e a resignação  
do artista, de par com a compaixão do narrador pelo personagem,  
imprimem uma música peculiar ao conto, sintetizada no período  
final: “Que este é o último e derradeiro horizonte das suas  
ambições: um beco e quatro meninos” ... No avesso do idealismo  
artístico  
de Machado  
de Assis, no  
jogo  
abstrato  
da  
incompatibilidade entre os ideais e a realidade que pode produzir  
comédia e também drama , “ Habilidoso” desenha um quadro  
fechado, um diagnóstico, a síntese da situação concreta do artista  
no Brasil oitocentista: um pobre-diabo num beco”. (p.161-163)  
Entretanto, julgamos que a deformação satírica que o autor imprime no quadro  
provoca no leitor um olhar reverso, não trágico, mas satirizante: o grande é baixo, o  
sublime está ao res do chão, a grande tragédia é a redução das expectativas ao seu  
tamanho autêntico, periférico, brasileiro? Para além das dificuldades de fecundar as  
artes plásticas e a música erudita em nossos bosques quem têm mais flores e mais  
amores (lembremo-nos de Pestana e suas polcas, do machete que enlouqueceu Inácio  
Ramos), apostamos na ideia de que o conto figura a tragédia como forma inteligível  
justamente ao satirizá-la e, assim, alcança um efeito artístico de alto realismo, na  
medida em que a sátira põe em movimento a possibilidade de que, talvez dessa forma  
oblíqua, os homens possam se libertar alegremente de seu passado (MARX, 2013,  
p.155, grifo do autor).  
Considerando a lógica reversa da sátira, em que a farsa se sobrepõe à tragédia,  
dando o tamanho real dos fatos ao deixar à mostra uma forma de repetição não  
repetidora – “Caussidière como Danton, Louis Blanc como Robespierre, a Montanha  
de 1848-1851 como a Montanha de 1793-1795, o sobrinho [Luís Bonaparte] como  
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“Habilidoso”, de Machado de Assis  
o tio [Napoleão Bonaparte](MARX, 2011, p.25) Machado talvez exerça o modo de  
compor satírico dentro de um horizonte estético na contramão da literatura de seu  
tempo. Optando pela direção oposta ao Naturalismo que então vigorava e  
respondendo aos dilemas da formação romântica de um modo ainda inédito, nosso  
autor se vale do modo de composição satírico, como o fez um importante leitor do  
Tristram Shandy, de Lawrence Sterne:  
Sou humorista, mas a lei me obriga a escrever de modo sério. Sou  
atrevido, mais a lei ordena que meu estilo seja discreto. Ademais, se  
a seriedade não se ajusta àquela definição de Tristram Shandy –  
segundo a qual ela é um comportamento farisaico do corpo, destinado  
a encobrir as deficiências da alma e passa a significar a seriedade  
material, suspende-se então a prescrição inteira. Pois trato seriamente  
o risível quando o trato risivelmente, e a mais séria imodéstia do  
5
espírito é ser modesto diante da imodéstia. (MARX, 2018, p. 11)  
É notável, por fim, que na cena final, o pintor diletante João Maria torna-se, ele  
mesmo, o objeto, e não o sujeito, dentro do quadro narrativo do narrador. Em Leer a  
Goethe, Vedda (2015) chama a atenção para um momento de Werther, em que o  
narrador personagem observa um espetáculo cotidiano, algumas crianças brincando  
no campo, e decide desenhá-lo. Segundo Vedda, Werther pensa que  
a arte pictórica se reduz a ver um espetáculo e transportá-lo tal qual  
ele é para a tela ou a folha de papel, se isto for possível, o resultado  
será perfeito, sem que seja necessário acrescentar nada ao modelo  
original (2015, p.65)  
Em “Habilidoso”, a situação é invertida, são as crianças que olham para o pintor,  
que mesmo pintando, não pinta; sua ação farsesca parece estar acima de sua pintura  
para a plateia ingênua diante da qual João Maria, agora, apenas finge pintar, estirando  
seu gesto diletante para um horizonte sem fim, ainda que dentro do limitado beco. Tal  
configuração dá ao conto uma feição diletante de segundo grau, elevada a outra  
potência. Além de não poder terminar sua obra, cristalizando-a em acabamentos  
infinitos que apontariam para sua imperícia, imaturidade e insegurança artísticas, o  
pintor do beco é configurado como objeto artístico bem plasmado pelo autor, que,  
portanto, se diferencia do diletante e se revela como um artista autêntico. Assim,  
“Habilidoso” é a afirmação de um diletantismo à brasileira, concentrando na forma da  
narrativa os obstáculos a uma consecução artística em uma nação dependente, mas é,  
ao mesmo tempo, também a concretização efetiva de uma arte madura, efetivamente  
hábil, capaz de pensar a si mesma pela sua forma adequada: a sátira, que faz do  
fracasso do personagem o sucesso estético do autor e, com ele, o da literatura  
5
A citação de Marx é retirada da interessante nota do tradutor de Escorpião e Félix, Tercio  
Redondo, em MARX, 2018, p. 11-13.  
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brasileira, finalmente formada. De forma semelhante, os narradores autobiográficos de  
Machado são diletantes satirizados, narradores falhos, não profissionais, fracassados  
em seus propósitos de escrever seus romances: um deles termina em negativas banais,  
outro não pode atar as pontas da vida, mas ambos vão de sujeitos da narrativa a  
objetos da sátira machadiana.  
Se pensarmos na formação da literatura brasileira, na dura e penosa formação  
de nós mesmos6, é possível esboçar mentalmente como dos nossos momentos  
decisivos, do Arcadismo e, especialmente, do Romantismo, brotaram formas estéticas  
que deram, sob a batuta da sátira, a medida adequada de nosso tamanho real,  
invertendo a mistificação em realismo artístico de grande lastro. Como forma ajustada  
ao nosso tamanho real, a sátira de Machado abre caminho para a forma descristalizada  
e móvel que logra acompanhar viravoltas reais e enxergar no vigente o ainda inédito.  
A partir desse conto tão habilidoso, é possível pensar que, nas situações  
ficcionais criadas por Machado de Assis, são figuradas formas de um diletantismo à  
brasileira, que, se por um lado, revela nosso tamanho diminuto sob formas que se  
puseram nas pontas dos pés para buscarem uma altura inexistente, por outro,  
expressam nesse conto, em sua composição mais orgânica, uma atitude artística  
desdiletantizante que, como formulou poeticamente Drummond, não pousa em  
nenhum cemitério, mas está “onde a dúvida apalpa o mármore da verdade, a descobrir  
a fenda necessária; onde o diabo joga dama com o destino” (ANDRADE, 1983, p.350).  
Desse escritor “profissional”, isto é, não diletante como muitas de suas criaturas,  
também nasceram composições que deram voz e forma a um personagem que talvez  
seja o antípoda do diletante: o malandro.  
Referências bibliográficas  
ANDRADE, Carlos Drummond de. A um bruxo, com amor. Carlos Drummond de  
Andrade: poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983, p. 348-350.  
BALZAC, Honoré de. A obra-prima ignorada. Tradução: Teixeira Coelho. São Paulo,  
Iluminuras, 2000.  
GOETHE, J.W. Máximas e reflexões. Tradução e notas de José M. Justo. Lisboa:  
Relógio D’Água Editores, 2000.  
GUIMARÃES, Hélio de S. (2005). Pobres-diabos num beco. Teresa: Revista De  
Literatura Brasileira, 6-7, 142-163.  
]MACHADO DE ASSIS, J. M. Habilidoso. Obra completa. Volume 3. São Paulo: Nova  
Aguilar, 2015, p. 225-228.  
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução. Tradução de Rubens  
Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo 2013.  
6 Referência a Paulo Emílio Salles Gomes, em Cinema, trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo, Paz  
e Terra, 1980, p.77.  
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“Habilidoso”, de Machado de Assis  
MARX, Karl. Escritos ficcionais: Escorpião e Felix; Oulanem. Tradução Cláudio  
Cardinali, Flávio Aguiar e Tercio Redondo. São Paulo: Boitempo, 2018.  
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São  
Paulo: Boitempo, 2011.  
PASCANSKY, Gabriel D. El concepto de ‘diletantismo’ en la literatura alemana  
(1750-1800). Tesis de Maestría. Facultad de Filosofia y Letras, Universidad de  
Buenos Aires, 2023.  
VEDDA, Miguel. El Goethe temprano y la literatura sentimental. Los Sufrimientos del  
joven Werther como anatomia de la conciencia infeliz. Leer a Goethe. Ciudad  
Autónoma de Buenos Aires: Quadrata, 2015, p. 41-80.  
Como citar:  
CORRÊA, Ana Laura dos Reis. “Habilidoso”, de Machado de Assis: um retrato do artista  
na moldura do diletantismo à brasileira. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp.  
330-341, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 330-341 jul.-dez., 2025 | 341  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.781  
A exploração aeroespacial como fronteira de  
valorização do capital portador de juros:  
especulação e formas jurídicas  
Aerospace exploration as a frontier of valorization of  
interest-bearing capital: contracts, speculation, and  
juridical forms  
Rafael Silva dos Santos*  
Mateus Lima Furtado**  
Resumo: A corrida espacial do século XXI não  
representa apenas um renascimento da disputa  
tecnológica entre potências, mas a expressão de  
um novo estágio da acumulação capitalista, em  
Abstract: The twenty-first-century space race is  
not merely revival of technological  
a
competition among global powers, but an  
expression of a new stage of capitalist  
accumulation in which valorization relies on  
financialization and the controlled destruction  
of value. This article examines the New Space  
phenomenon the ongoing privatization and  
financialization of the aerospace sector as the  
most advanced form of the fusion between  
fictitious capital and interest-bearing capital,  
mediated by the State and by legal forms.  
Grounded in Karl Marx’s critique of political  
economy, the study situates the aerospace  
industry within the Third Department of  
expanded reproduction, showing that its  
structural function lies in absorbing surplus  
capital through legal and financial mechanisms  
that convert future expectations into tradable  
assets. The analysis demonstrates that law, by  
granting stability and legitimacy to these  
processes, becomes a constitutive element of  
que  
a
valorização se sustenta pela  
financeirização e pela destruição controlada de  
valores. O presente artigo analisa o fenômeno do  
New Space a crescente privatização e  
financeirização do setor aeroespacial como a  
forma mais acabada da fusão entre capital fictício  
e capital portador de juros, mediada pelo estado  
e pela forma jurídica. Partindo da crítica da  
economia política de Karl Marx, o estudo insere  
o setor aeroespacial no Departamento III da  
reprodução ampliada do capital, demonstrando  
que sua função estrutural é absorver excedentes  
por meio de mecanismos jurídicos e financeiros  
que convertem expectativas futuras em ativos  
negociáveis. A pesquisa evidencia que o direito,  
ao conferir segurança e legitimidade a tais  
processos, torna-se elemento constitutivo da  
acumulação contemporânea, transformando o  
fundo público em rentabilidade privada. Conclui-  
se que a exploração espacial não é uma ruptura  
com a lógica do capital, mas sua continuação sob  
formas cada vez mais sofisticadas, nas quais o  
cosmos se torna fronteira jurídica e financeira da  
valorização fictícia.  
contemporary  
accumulation,  
transforming  
public funds into private profitability. It  
concludes that outer space exploration does not  
break with the logic of capital; rather, it extends  
it through increasingly sophisticated legal and  
financial forms, turning the cosmos into a  
juridical and financial frontier of fictitious  
valorization.  
Palavras-chave: Crítica da economia política;  
capital fictício; direito e financeirização; setor  
aeroespacial; departamento III.  
Keywords: Critique of political economy;  
fictitious capital; law and financialization;  
aerospace sector; third department.  
* Bacharel e mestre em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em direito pela  
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).  
** Bacharelando em direito pela Universidade Federal de Jataí.  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
Verinotio  
nova fase  
   
A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
Introdução  
A chamada “corrida espacial” do século XXI não representa um simples  
renascimento da competição tecnológica entre potências ou um episódio de ambição  
científica isolada. Ela expressa, antes, uma das formas mais avançadas do atual estágio  
da acumulação capitalista, em que a valorização do capital se realiza cada vez menos  
por meio da produção direta de mercadorias e cada vez mais pela especulação, pela  
financeirização e pela destruição controlada de valores. Nesse sentido, a expansão do  
chamado New Space caracterizado pela entrada massiva de empresas privadas no  
setor aeroespacial e pela crescente dependência do financiamento público constitui  
uma nova e sofisticada fronteira de valorização do capital. Essa fronteira opera sob  
uma lógica que une tecnologia, crédito e direito, transformando o espaço sideral em  
um território de antecipação de lucros e de titularização de expectativas futuras.  
Mais do que a soma de iniciativas empresariais ou o resultado da capacidade  
técnica de determinados agentes econômicos, o New Space expressa uma necessidade  
histórica do capital. Diante de seus limites internos de valorização, o capital busca  
continuamente novos espaços de absorção de mais-valor e de compensação de sua  
tendência à queda da taxa de lucro. Nesse movimento, a exploração espacial surge  
como um campo ideal para a reprodução ampliada, pois combina a aparência de  
inovação com a realidade de destruição. A “colonização espacial” revela-se, assim,  
como uma resposta sistêmica às contradições da acumulação contemporânea: trata-se  
de uma expansão que não produz valores de uso socialmente relevantes, mas que se  
legitima por meio de uma engenharia jurídico-financeira capaz de transformar  
promessas de futuro em riqueza presente.  
O objetivo deste artigo é demonstrar que o New Space constitui a forma mais  
acabada da fusão entre capital fictício e destruição controlada de valores, configurando  
um modelo de acumulação sustentado pela mediação jurídica e pela intervenção  
estatal. O setor aeroespacial contemporâneo é analisado aqui como parte integrante  
do chamado departamento III da reprodução ampliada do capital esfera responsável  
pela produção de mercadorias que não retornam à reprodução social, mas que, ao  
contrário, funcionam como mecanismos de redistribuição e absorção do mais-valor. Ao  
contrário dos departamentos I e II voltados à produção de meios de produção e bens  
de consumo , o departamento III (MANDEL, 1982) atua como um espaço de  
compensação, onde o capital encontra formas indiretas de valorização baseadas na  
destruição produtiva e na antecipação financeira.  
O problema central que orienta esta investigação reside, portanto, em  
compreender como o setor aeroespacial se tornou um eixo estratégico de  
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Rafael Silva dos Santos; Mateus Lima Furtado  
redistribuição do mais-valor e de sustentação do capital fictício no capitalismo  
contemporâneo. Busca-se demonstrar que a expansão do New Space é viabilizada por  
um conjunto de formas jurídicas e mecanismos financeiros que convertem a incerteza  
tecnológica em propriedade, o risco em ativo e o gasto público em lucro privado. O  
direito, nessa dinâmica, não aparece como simples instrumento regulatório, mas como  
mediação necessária da financeirização, condição essencial para a estabilização das  
promessas de valorização em meio à crescente improdutividade material do sistema.  
A investigação ancora-se nos fundamentos da crítica da economia política  
formulada por Karl Marx, articulando as categorias de capital portador de juros, capital  
fictício e as lições sobre a reprodução ampliada à análise empírica das práticas  
contemporâneas de investimento e regulação do setor aeroespacial. Parte-se da  
hipótese de que o estado desempenha papel decisivo na transformação de fluxos  
financeiros em capital aparente, por meio da celebração de contratos, do financiamento  
de programas espaciais e da criação de marcos normativos que legitimam a  
apropriação privada de recursos públicos sob o pretexto da inovação científica e  
tecnológica.  
A estrutura do artigo foi organizada de modo a acompanhar o movimento  
interno do objeto investigado. Na primeira seção, são retomadas as bases teóricas da  
crítica marxista da economia política e a formulação do conceito de departamento III  
desenvolvida por Mandel (1982), situando-o no contexto da financeirização  
contemporânea, tal como se observa em Chesnais (1995). A segunda seção analisa o  
surgimento do New Space. Na terceira, examina-se a arquitetura jurídico-normativa  
internacional que regula a exploração espacial e a maneira como ela possibilita a  
conversão de expectativas em ativos financeiros. A quarta seção dedica-se à análise  
dos contratos empresariais e dos instrumentos financeiros que estruturam o New  
Space, evidenciando o papel do estado como garantidor jurídico e financeiro da  
especulação privada. A quinta seção investiga como os contratos privados e  
governamentais são formas jurídicas do capital portador de juros que se desdobram  
em capital fictício. A sexta irá expor como o direito atua no processo de redistribuição  
de mais valor entre os capitalistas, e como o setor aeroespacial se insere nessa  
dinâmica. A sétima demonstrará que a forma jurídica oferece garantia para  
redistribuição, operada em meio ao acúmulo de capital fictício. Por fim, na oitava e  
última seção, será exposto como o estado é agente indispensável de todo o processo  
exposto ao longo do texto.  
Em suma, este estudo propõe compreender o atual estágio da exploração do  
espacial não como uma promessa de futuro tecnológico, mas como uma expressão  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
histórica da crise da valorização do capital e de sua tentativa de prolongar-se por meio  
da ficção jurídica do valor. A análise que segue buscará demonstrar que, ao converter  
o cosmos em mercado e o direito em instrumento de legitimação da especulação, o  
capitalismo contemporâneo não ultrapassa seus limites apenas os projeta para fora  
da Terra.  
2. DESENVOLVIMENTO  
2.1. Crise da valorização, capital fictício e departamento III  
A crise estrutural do capital, tal como delineada por autores como István  
Mészáros (2011) e François Chesnais (1995), está vinculada à dificuldade crescente  
de manter níveis satisfatórios de valorização do capital produtivo em setores  
industriais tradicionais Frente à queda tendencial da taxa de lucro e ao avanço das  
forças produtivas, o capital é forçado a buscar novas fronteiras de valorização uma  
expansão que ocorre de forma extensiva e intensiva, ou seja, intensificando-se o  
avanço sobre a taxa de mais valor e buscando se estender para novas formas e lugares.  
Tanto Mészaros quanto Chesnais concordaram que a atualidade da acumulação  
capitalista é dotada de uma dinâmica a qual há uma hipertrofia do Complexo Industrial-  
militar e da esfera financeira, que passa a operar sob uma lógica de capital fictício:  
valores que circulam como capital, mas que não correspondem, no imediato, à  
produção real de mercadorias1 ou serviços com valor de uso social. Trata-se, portanto,  
de uma resposta à uma crise endêmica e estrutural do Capital.  
Ambos, Chesnais e Mészáros leem a financeirização como resultado da  
tendência à sobreacumulação de capitais, vinculada à lei da queda tendencial da taxa  
de lucro. Esse é o ponto que interessa à presente pesquisa, pois é a partir da  
necessidade de uma resposta à taxa de lucros que o setor financeiro e aquilo que  
Mandel denominou de departamento III vão se juntar de modo simbiótico para  
responder à tal crise de lucratividade.  
A ascensão do capital financeiro foi seguida pelo ressurgimento de  
forças agressivas e brutais de procurar aumentar a produtividade do  
capital em nível microeconômico, a começar pela produtividade do  
trabalho. Tal aumento baseia-se no recurso combinado às  
modalidades clássicas de apropriação de mais-valia, tanto absoluta  
como relativa, utilizadas sem nenhuma preocupação com as  
1 A mercadoria é um objeto que, a partir de suas propriedades materiais, tem a propriedade de satisfazer  
as necessidades do homem. Essa característica é conhecida como valor de uso. Por outro lado, a  
mercadoria também tem a propriedade de poder ser trocada por mercadorias distintas de si própria ou,  
em outras palavras, de comprar outras mercadorias. A essa característica chamou-se valor de troca  
(CARCANHOLO, 1998, p. 18).  
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consequências sobre o nível de emprego, ou seja, o aumento brutal  
do desemprego, ou com os mecanismos viciosos da conjuntura ditada  
pelas altas taxas de juros. (CHESNAIS, 1996, pp. 16-17)  
Note-se então que Chesnais já indicava em sua obra Mundialização do capital,  
de 1996, já observava que o capital buscava forma de expandir o mais valor, e também  
se utilizava de mecanismos financeiros para potencializar essa margem de mais valor  
ou mesmo ou lucros de capitalistas isolados, o que propicia o acúmulo de capital  
fictício.  
A categoria de capital fictício, retomada por Marx no Livro III de O capital (2017,  
pp. 631-2) e amplamente desenvolvida por autores contemporâneos tais como os  
próprios Mészaros e Chesnais, refere-se a títulos, ações, contratos e créditos que  
operam como se fossem capital produtivo, mas que não representam valor  
efetivamente produzido. Como destacam Rossi e Palludeto (2018), trata-se de um  
capital que busca valorização futura, sustentado por promessas, projeções e  
expectativas institucionalizadas com base em uma infraestrutura jurídica e financeira  
que lhe confere aparente materialidade.  
Contudo, esse capital fictício não se reproduz no vazio. Ele exige espaços  
sociais e setores econômicos específicos que possam absorvê-lo e ancorá-lo, evitando  
que sua expansão se transforme imediatamente em colapso. É nesse contexto que se  
insere o chamado departamento III, conceito que remonta à tipologia de Mandel (1982)  
e foi aprofundado por estudos como o de Santos:  
As razões para que o governo continue investindo o que arrecada no  
Departamento III é justamente o fato de este departamento não  
produzir bens de consumo. No capitalismo, quando as forças  
produtivas conseguem criar bastante excedente econômico, significa  
que uma crise de superprodução está se anunciando. O que não  
permitiu que a economia dos anos dourados entrasse em colapso  
foram os gastos com armas elevados. (SANTOS, 2021, p. 56)  
Diferente dos departamentos I (meios de produção) e II (bens de consumo), o  
departamento III compreende gastos militares ou de luxo que, embora socialmente  
relevantes ou politicamente estratégicos, não reinserem valor na reprodução ampliada  
do capital. Seu papel, contudo, é decisivo na fase atual do capitalismo: ele funciona  
como dreno institucional do capital excedente, como já identificado por Kidron (1970)  
na noção de “vazamento” que esses setores possuem, algo que também foi debatido  
por autores como Cliff (1999) e Harman (1999), além do já citado Mandel (1982), em  
um confronto de ideais acerca da funcionalidade econômica do departamento III já  
exposto por Santos (2021). Na atualidade da acumulação capitalista, essa função do  
departamento III se amalgamou ao acúmulo de capital fictício, em especial no setor  
aeroespacial, um braço do complexo industrial-militar na gestão capitalista  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
estadunidense.  
Em outras palavras, diante da crise de valorização no núcleo produtivo  
tradicional, o capital é forçado a projetar-se sobre áreas como o setor militar, a ciência  
aplicada de uso estratégico e a economia espacial setores que operam sob lógica de  
investimento massivo e retorno incerto, mas que garantem absorção de recursos e  
adiamento da crise.  
Assim se manifestam as contratendências à queda da taxa de lucro e à crise  
estrutural de uma economia que não encontra fôlego para a expansão e busca na  
dinâmica da financeirização forma de adiantar o acesso ao capital em escala cada vez  
mais profunda. No campo produtivo, a alternativa que se revela é aplicação de recursos  
humanos e materiais na produção de bens que não retornam à esfera de reprodução  
social, o que explicitaria, para Mészaros (2011), uma lei tendencial de taxa de  
utilização decrescente.  
O mesmo vale para a lei tendencial da taxa de utilização decrescente  
que, como vimos acima, se arma, no início, como a reabilitação do  
“LUXO” e da “PRODIGALIDADE” – junto com a expansão do círculo de  
consumo, que passa assim a abarcar também um número cada vez  
maior de “Pobres que trabalham”; a estes é proporcionada uma gama  
crescente de mercadorias à medida que o desenvolvimento das forças  
produtivas o torna tanto possível como necessário sem, porém,  
deixar de lado a “FRUGALIDADE”, a “ECONOMIA” e a “POUPANÇA”  
como momentos subalternos do capitalismo em sua ascensão. A  
mesma tendência, sob as condições do capitalismo plenamente  
desenvolvido, assume a forma de extrema PERDULARIDADE e  
DESTRUIÇÃO, mas é de novo contrabalançada em vários graus –  
pelo imperativo de poupar, bem como pela inevitável necessidade de  
reconstituir o capital depois da periódica destruição de sua magnitude  
“superproduzida”, no interesse da sobrevivência do sistema do  
capital. (MÉSZAROS, 2011, p. 645)  
O adensamento do departamento III é um dos fenômenos mais marcantes deste  
movimento de perdularidade e destruição contrabalanceado pelo imperativo de  
poupar ou de reconstruir o capital, como destacou Mészaros.  
O setor aeroespacial, articulado ao complexo industrial-militar (CIM), setores  
que produzem mercadorias que, em sua maioria, compõem o departamento III, passou  
a operar, a partir da década de 1980, com o programa de Guerra nas Estrelas da  
Administração Reagan2, como uma dessas novas fronteiras. Entretanto, no século XXI,  
o setor aeroespacial passa por uma inflexão: sua centralidade, aparentemente, passa  
2
O “programa de Guerra nas Estrelas”, nome popular da Strategic Defense Initiative (SDI), foi lançado  
pelo presidente norte-americano Ronald Reagan em 1983, com o objetivo de desenvolver um sistema  
defensivo composto por satélites e armas a laser para interceptar mísseis nucleares soviéticos durante  
a guerra fria. Apesar de ambicioso, o programa nunca foi plenamente implementado, mas impulsionou  
o avanço tecnológico no setor aeroespacial e militar dos Estados Unidos (SANTOS, 2025, p. 153).  
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Rafael Silva dos Santos; Mateus Lima Furtado  
a se deslocar da produção bélica estatal para a exploração privada de ativos  
extraterrenos e sistemas orbitais. Essa transição se dá sob a forma de investimentos  
altamente especulativos, voltados à expectativa de rendimentos futuros baseados em  
ativos incertos, como mineração em asteroides, turismo espacial e infraestrutura de  
telecomunicações orbitais, e uma nova era da exploração espacial denominada new  
space por Matos (2022, pp. 495-6), tema que será mais bem desenvolvido adiante.  
Esse é o movimento que junta dois setores fundamentais para o atual estágio  
da acumulação capitalista, fenômeno que já vem sendo observado há algum tempo  
por outros autores, mas que agora encontra no desenvolvimento privado do setor  
aeroespacial new space as condições ideais para o seu crescimento.  
[...] a taxa de lucro elevada, que é imanente a essas relações, atrai para  
o departamento III, sob a forma de capital-ações, capital-dinheiro  
potencial dos departamentos I e II, apressando o processo  
acumulativo. O PIB bélico aumenta a taxas fantásticas revelando a  
eficiência do sistema capitalista nos setores da produção destruidora.  
[...] Toda essa atividade econômica não corresponde a qualquer  
acréscimo de meios de produção e de meio de consumo. (DANTAS,  
2007, p. 50)  
Esse movimento não é apenas uma mutação tecnológica ou empresarial, é uma  
necessidade estrutural do atual estágio da acumulação capitalista. O setor espacial  
contemporâneo é reconfigurado como lugar privilegiado de absorção de capital fictício,  
sustentado por uma arquitetura jurídica que transforma ativos ainda inexistentes em  
promessas de rendimento. Tal como argumenta Marx no Volume III de O capital (2017),  
o capital portador de juros adquire autonomia em relação à produção, passando a  
valorizar-se na forma de promessa de rendimento futuro. Isso cria um ciclo de  
valorização sem lastro imediato em mercadorias reais, sustentado por uma base  
jurídica e institucional que garante o reconhecimento e circulação desses títulos como  
equivalentes monetários, e, assim, a “relação do capital oculta seus nexos internos ao  
submeter o trabalhador à completa irrelevância, à exterioridade e ao estranhamento  
diante das condições de realização de seu próprio trabalho” (MARX, 2017, p. 138).  
A configuração do setor aeroespacial como parte do departamento III da  
economia aquele responsável pelos meios de consumo improdutivo ou de luxo –  
reforça sua função como dreno de mais-valor. O setor não apenas consome recursos  
públicos por meio de contratos com agências como a Nasa e o Departamento de  
Defesa dos Estados Unidos, mas também canaliza volumes crescentes de capital  
privado via fundos de investimento, Special Purpose Acquisition Companies (Spac) e  
emissão de debêntures ligadas à expectativa de exploração futura.  
O setor espacial tem experimentado um crescimento exponencial em  
investimentos privados nas últimas décadas. De acordo com uma análise da McKinsey,  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
o investimento privado no setor espacial demonstrou um crescimento massivo,  
saltando de US$ 300 milhões em 2012 para mais de US$ 10 bilhões em 2021 (BLAND  
et al., 2022). Essa tendência de crescimento se manteve nos anos seguintes, com  
dados da BryceTech indicando que o investimento total em startups do setor espacial  
entre 2020 e 2023 somou aproximadamente US$ 39,1 bilhões (BRYCETECH , 2025).  
A SpaceX exemplifica essa dinâmica de investimentos robustos no setor. No  
início de janeiro de 2023, a empresa levantou US$ 750 milhões em uma nova rodada  
de financiamento que a avaliou em US$ 137 bilhões, liderada pela empresa de capital  
de risco Andreessen Horowitz (a16z), que também participou da aquisição do Twitter  
por Elon Musk (REUTERS, 2023). Esse novo aporte se seguiu a um ano em que a  
SpaceX já havia captado mais de US$ 2 bilhões. Grande parte do capital de risco tem  
sido direcionada a empresas em estágio inicial para financiar pesquisa e  
desenvolvimento de produtos de capital intensivo, com os investimentos sendo  
canalizados para o desenvolvimento e escala de projetos como a rede de internet via  
satélite Starlink, que ultrapassou 1 milhão de assinantes, e o programa Starship  
(BLAND et al., 2022; REUTERS, 2023).  
Cabe destacar que nem todos os itens produzidos pelo setor aeroespacial  
integram o departamento III. Apesar de a maioria dos produtos espaciais não  
retornarem para a reprodução da força de trabalho, existem bens que ali são gestados,  
e poderão ser consumidos pela classe trabalhadora. A título de exemplo, a National  
Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) estima que mais de US$ 30 bilhões  
anuais serão aplicados para o serviço de previsões meteorológicas alimentadas por  
satélites (NOAA, 2023). Complementarmente, estudos de "value of information" da  
Nasa demonstram ganhos de milhões de dólares em respostas a enchentes com  
imagens em tempo quase real, enquanto a OECD (2023, p. 3), revelando que a redução  
dos custos de lançamento e o boom de satélites ampliaram a capacidade de  
comunicação e observação com impacto significativo em desafios públicos como  
desastres, mudanças climáticas e agricultura. Outro exemplo é a potencial expansão  
da banda larga, sugerindo que constelações de satélites de comunicação como os da  
Starlink, podem gerar benefícios macroeconômicos substanciais em regiões ainda mal  
atendidas. A Reuters reportou aproximadamente 4,6 milhões de usuários da Starlink  
em 2024, com projeções de crescimento adicional em 2025 (JOHNSON, 2025). Esses  
são elementos que, indubitavelmente, contribuem para a reprodução da força de  
trabalho, o que não quer dizer que o objetivo do desenvolvimento técnico no setor  
seja a melhoria de condições de vida para a humanidade. Quando se fala em  
reprodução social, trata-se apenas de uma categoria da crítica da economia política  
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Rafael Silva dos Santos; Mateus Lima Furtado  
que tem impactos objetivos para a acumulação capitalista como aqueles sumariamente  
apresentados no curto espaço do presente texto, mas que foram mais profundamente  
elaborados em Santos (2021).  
Grande parte desses investimentos no setor começam a render lucros para os  
burgueses que ali investem antes mesmo de se efetivarem entrega de bens e serviços,  
ainda no plano da mera expectativa. Inclusive, parte desses aportes não se destinam  
à produção imediata, mas à sustentação de um ciclo especulativo com promessa de  
monopolização futura de ativos extraterrenos. Esses investimentos são lastreados em  
documentos jurídicos que preveem titularização de ativos que ainda não se realizaram  
na esfera produtiva, como "direitos preferenciais de exploração" ou "acesso prioritário  
a órbitas e frequências". Em outras palavras, há uma arquitetura jurídica que sustenta  
um processo de antecipação de valor, análogo à lógica da bolha das hipotecas  
subprime, mas agora voltada ao cosmos.  
Assim, financeirização e departamento III encontram-se amalgamados enquanto  
contratendências do capital no setor aeroespacial, operando como válvula de escape  
para a crise de valorização do capital, mobilizando recursos sociais em larga escala  
sob a forma de capital fictício, em um movimento cujo a mediação do direito é  
imprescindível. A diferença fundamental é que, nesse caso, o objeto de especulação  
não é mais a casa, o crédito estudantil ou a dívida pública, mas o espaço sideral. Cabe  
estudar então como isso se desenvolveu historicamente, o que será exposto nos  
próximos sub itens.  
2.2. O surgimento do new space  
O chamado new space emerge como designação para um conjunto de  
transformações na exploração aeroespacial, em contraste com o chamado old space.  
Enquanto este último correspondeu ao período marcado pelo protagonismo estatal  
direto, especialmente no contexto da guerra fria e da corrida espacial entre Estados  
Unidos e União Soviética, o new space caracteriza-se pela crescente presença de atores  
privados, em especial corporações de tecnologia e fundos de investimento, que  
passam a disputar centralidade no setor.  
De modo descritivo, o old space baseava-se em projetos estatais de grande  
porte, tendo a Nasa e a Darpa como principais agências governamentais de fomento  
ao setor nos Estados Unidos em paralelo ao programa espacial soviético que também  
se pautava pela forte participação estatal, ambos os programas assentados em uma  
lógica geopolítica e militar. Já o new space apresenta-se como um rearranjo dessa  
lógica, onde o estado não abandona o protagonismo, mas o exerce de forma mediada  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
pela indução de mercados, incentivos regulatórios e financiamento indireto.  
Como observa Matos (2022), a crise financeira de 2008 funcionou como marco  
fundamental para a inflexão no setor. Diante da estagnação da acumulação capitalista,  
o setor aeroespacial foi reposicionado como fronteira de valorização e espaço de  
absorção de capitais excedentes.  
O new space não é apenas uma “privatização do espaço”, mas uma forma  
reorganizada da intervenção estatal, condicionada pela materialidade da acumulação  
e conformada pelo fenômeno jurídico para que empresas como SpaceX, Blue Origin,  
Rocket Lab, Virgin Galactic e outras, ingressem no setor. O financiamento de risco  
(venture capital), a compra governamental de serviços de lançamento e a abertura de  
licitações públicas atuaram como mecanismos centrais, sempre com a mediação  
necessária do direito. O discurso de inovação tecnológica e de redução de custos  
(particularmente com a miniaturização de satélites e a recuperação de foguetes) oculta  
que tais avanços só se tornaram possíveis após décadas de investimentos estatais  
massivos em pesquisa e desenvolvimento. Assim, a aparente “desestatização” do setor  
é, na verdade, a continuação de sua dependência em relação ao estado, agora  
reconfigurada sob a hegemonia do capital financeiro.  
Como indica Matos (2022, p. 395), entre 2009 e 2010, o número de startups  
espaciais mais do que dobrou, e o investimento em capital de risco no setor aumentou  
55%. Esse crescimento foi empolgado pelas políticas adotadas como resposta à crise  
da bolha do mercado imobiliário de 2008, tais como a redução das taxas de juros a  
quase zero e a injeção massiva de liquidez, redirecionaram investimentos para  
mercados de maior risco, como o de venture capital (MATOS, 2022, p. 394). Isso  
resultou em um aumento significativo de financiamento para startups espaciais,  
criando as bases financeiras para o desenvolvimento do new space. A crise financeira  
de 2008 desencadeou uma série de mudanças no mercado financeiro, redirecionando  
investimentos para setores de risco como o espacial. Startups espaciais viram um  
aumento significativo de investimento por meio do mercado financeiro, mas ainda  
dependem fortemente de subsídios e contratos governamentais como será exposto ao  
longo do texto. “O investimento de risco em startups mostrou-se mais atraente em um  
cenário de taxas de juros próximas a zero, considerando a existência de investidores  
com perfil especulativo.” (MATOS, 2022, p. 495).  
Portanto, são considerados dois elementos importantes do poder  
monetário para a ascensão do new space: a atuação do estado no  
período pós-crise de 2008, com a elevada injeção de liquidez no  
mercado financeiro, levando à redução das taxas de juros e à mudança  
no direcionamento dos investimentos de risco do setor bancário para  
o de venture capital. (MATOS, 2022, p. 496)  
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A entrada de capitais privados nesse campo só pôde ocorrer porque os  
investimentos de longo prazo, altamente dispendiosos e arriscados, foram previamente  
absorvidos pelo complexo industrial-militar norte-americano. O estado, diante da crise  
de lucratividade e da necessidade de novas fronteiras de valorização, abriu o setor  
espacial para que se tornasse um campo de especulação e valorização do capital  
portador de juros, articulado a formas contratuais que titularizam expectativas futuras.  
Assim, a “inovação” do new space deve ser compreendida como continuidade  
reconfigurada, e não ruptura, uma vez que responde às determinações objetivas da  
acumulação capitalista em crise.  
A financeirização do setor transforma cada lançamento, cada satélite e cada  
contrato em ativo negociável, alimentando um ciclo de valorização especulativa. O  
capital fictício, que se amplia sob a promessa de retornos futuros, mas depende  
estruturalmente da mediação estatal. É nesse ponto que a análise de Mészáros (2011)  
se torna de extrema importância: a busca por novas fronteiras de acumulação não  
supera a crise estrutural do capital, apenas a desloca e aprofunda. O espaço exterior  
aparece, então, como mais uma tentativa de prolongar um padrão de acumulação  
marcado pela sobreacumulação e destruição de valores, algo que já ocorreu com o  
Complexo Industrial-militar durante os chamados anos dourados do capital (SANTOS,  
2021), e agora encontra potencializada na junção do setor aeroespacial e a  
financeirização. A partir dos anos dourados, no pós segunda guerra mundial, o  
complexo industrial-militar mostrou ser “o instrumento disposto e capaz de romper o  
nó górdio de como combinar a máxima expansão possível com a taxa de utilização  
mínima” (MÉSZÁROS, 2011, p. 677). Agora, o setor aeroespacial, como um braço do  
Complexo Industrial-militar, amalgamado ao setor financeiro, vem cumprindo essa  
função.  
Portanto, o new space deve ser entendido não como revolução espontânea do  
setor privado, mas como resultado de uma confluência entre estado e capital  
financeiro, em que os discursos de inovação tecnológica e empreendedorismo  
mascaram a lógica de reprodução ampliada do capital fictício como uma necessidade  
histórica do atual estágio da acumulação capitalista. Este novo arranjo demanda  
instrumentos jurídicos que sustentam tal dinâmica propriedade, contratos de  
investimento e regulação internacional , tema do próximo subitem.  
2.3. Arquitetura jurídica internacional e sua função legitimadora  
A expansão do setor aeroespacial se dá sob um arcabouço jurídico internacional  
formado principalmente pelo Outer Space Treaty (OST, 1967), o Moon Agreement  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
(1979), e uma série de outros tratados e formados entre os anos 1960, 1970 e 1980  
em sua maioria e princípios orientadores da ONU que, embora formulados sob a  
retórica da paz e da cooperação, oferecem uma moldura aberta à apropriação privada  
indireta e à exploração econômica do espaço sideral, mas com um texto não muito  
claro nesse sentido, o que vem gerando debates em torno do tema.  
O OST, ao afirmar que “o espaço sideral, incluindo a lua e outros corpos  
celestes, não está sujeito à apropriação nacional por reivindicação de soberania, por  
meio de uso ou ocupação, ou por qualquer outro meio” (Art. II)3, parece limitar a  
soberania estatal, mas deixa espaço para formas contratuais de apropriação indireta  
por corporações privadas, sobretudo em regimes jurídicos favoráveis como o dos  
Estados Unidos. Como indicam Lyall e Larsen (2022), o tratado não aborda a  
titularidade sobre os recursos extraídos nem impede contratos entre empresas e  
estados. Essa ambiguidade é explorada por grandes players como a SpaceX, Blue  
Origin, Virgin Galactic e Planetary Resources para projetar investimentos e garantir  
juridicamente seus contratos de exploração.  
Mais incisivo e claro é o Moon Agreement, que propunha um regime  
internacional de gestão comum dos recursos lunares. Contudo, esse tratado não foi  
ratificado por nenhum dos países com capacidade real de exploração espacial (Estados  
Unidos, Rússia, China), o que reforça sua marginalidade prática. Ao contrário do que  
se dispõe nesse tratado, os Estados Unidos adotaram o mecanismo jurídico nacional  
como o US Commercial Space Launch Competitiveness Act (2015), que garante a todo  
cidadão norte-americano4 que tomar posse sobre um corpo celeste o direito sobre os  
recursos extraídos mesmo sem declarar soberania e jurisdição daquele território,  
expondo uma nova conformação jurídico-política, mas que não deixa perder no  
horizonte a necessidade da propriedade privada, e impondo-a pela força, em  
movimento semelhante àquele já visto na Terra durante a assim chamada acumulação  
primitiva com as terras da América Latina.  
Essa arquitetura jurídica atual do setor aeroespacial cumpre duas funções  
essenciais à financeirização:  
1. Legitimação do investimento especulativo: ao fornecer previsibilidade e  
respaldo legal às operações, permite a emissão de contratos com base em expectativas  
futuras de exploração, transformando-as em ativos negociáveis. No plano público, os  
Estados Unidos estruturaram instrumentos contratuais que ancoram fluxos de caixa em  
3
set 2025.  
4 Essa dicção “todo cidadão” revela um certo cinismo do legislador que conhece as limitações práticas  
da exploração do espaço sideral.  
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marcos técnicos (milestones5), reduzindo risco tecnológico e de execução, o que atrai  
o capital privado. Dentre esses “marcos técnicos”, que são instrumentos contratuais  
para remunerar cada etapa atingida do projeto, tem-se: (I) Space Act Agreements6  
(COTS/CCDev7): acordos com pagamentos por marcos técnicos (milestone-based).  
Aqui, a própria Space Act Agreements do COTS traz o anexo de milestones e valores  
vinculados a entregas verificáveis (NASA, 2006). (II) Commercial Lunar Payload Services  
(CLPS): IDIQ8 de preço fixo para entregas comerciais à Lua, com teto agregado de US$  
2,6 bi até nov/2028, viabilizando múltiplas janelas de receita contratual para private  
players (NASA, 2025). (III) Launch Service Agreements (OTA) & NSSL: acordos e  
compras plurianuais de serviços de lançamento (Phase 2: 48 missões 20222027,  
distribuídas entre SpaceX e ULA), estabilizando demanda futura e bancabilidade  
(Congressional Research Service, 2024). Ou seja, são formas contratuais que garantem  
um risco praticamente nulo ao contratado pelo estado.  
No âmbito privado e financeiro, contratos industriais e de financiamento  
incorporam sistematicamente “pagamentos por marcos técnicos” (milestone payments)  
e contas escrow9 como mecanismos de mitigação de risco até eventos críticos como  
entrega ou lançamento. Esta prática encontra-se documentada em purchase  
agreements (acordos de aquisição) de satélites que incluem cláusulas específicas de  
milestone payments (pagamentos por marcos técnicos alcançados), bem como em  
arquivos depositados junto à SEC10 demonstrando a utilização de escrow para  
5
O termo milestones, em tradução livre “marcos técnicos”, refere-se a etapas ou eventos específicos,  
mensuráveis e verificáveis, predefinidos no cronograma de um projeto. Em arranjos contratuais, o  
atingimento de cada marco funciona como um gatilho para a liberação de uma parcela do pagamento.  
Essa metodologia, conhecida como milestone payment, é um poderoso instrumento de mitigação de  
risco para os financiadores, pois condiciona a alocação de capital à entrega de resultados concretos e  
comprovados, tornando o investimento mais seguro e atrativo ao garantir que o financiamento  
acompanhe o progresso real da execução.  
6
Acesso em: 28 set. 2025  
7 Programas estatais do governo dos Estados Unidos para o desenvolvimento comercial da exploração  
Espacial. O Commercial Orbital Transportation Services (Cots). Foi um programa da Nasa para estimular  
o desenvolvimento de naves espaciais provadas e veículos de lançamento para entregas à Estação  
Espacial Internacional. O Commercial Crew Development (CCDev) foi um investimento da Nasa financiado  
por US$ 50 milhões dos fundos da American Recovery and Reinvestment Act (ARRA), para estimular os  
esforços dentro do setor privado que ajudam no desenvolvimento e demonstração de capacidades de  
transporte espacial seguras, confiáveis e econômicas.  
8
Termo em inglês que abrevia indefinite delivery/indefinite quantity (entrega indefini/quantidade  
indefinida). Forma contratual que prevê uma quantidade indefinida de suprimentos ou serviços durante  
um período fixo de tempo.  
9
Conta escrow (ou conta de garantia) é uma conta bancária mantida por um terceiro neutro (o agente  
escrow), onde fundos ou ativos são depositados para garantir o cumprimento de um contrato. O valor  
só é liberado para o vendedor/beneficiário após a confirmação de que todas as condições acordadas  
foram cumpridas, protegendo assim as partes envolvidas em transações de alto valor ou risco, como  
fusões e aquisições, operações imobiliárias e comércio internacional.  
10 Securities and Exchange Commission (SEC) é a agência reguladora do mercado financeiro dos Estados  
Unidos, responsável por supervisionar e garantir a transparência das informações financeiras divulgadas  
pelas empresas, similar à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no Brasil. Sua atuação é fundamental  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
assegurar parcelas relacionadas à fabricação e lançamento de sistemas espaciais,  
conforme evidenciado no caso da Globalstar e outras empresas do setor (DIGITAL  
GLOBE; BALL AEROSPACE, 2006).  
Desse modo, a conversão de expectativas futuras em ativos negociáveis no  
mercado de capitais materializou-se através de veículos equity-linked11, notadamente  
Special Purpose Acquisition Companies (Spac), que conduziram empresas espaciais ao  
mercado público antes da plena maturação operacional, ilustrado pelos casos da Virgin  
Galactic e Rocket Lab, caracterizando uma dinâmica de financeirização antecipada de  
ativos espaciais que permite a captação de recursos com base em potencial  
tecnológico e expectativas de mercado (ROCEKT LAB, 2021; VIRGIN GALACTIC, 2019).  
Ou seja, há cláusulas que operam de modo que o lançamento de satélites ou testes  
orbitais futuros funcionem como garantia real de remuneração futura.  
Diante disso, é possível concluir que a existência dos contratos governamentais  
de alto valor funcionam como uma garantia implícita que facilita a especulação no setor  
porque criam um fluxo de receita previsível e estável que serve como "colchão de  
segurança" para os investidores que se “lançam” nesses projetos, a partir dos marcos  
atingidos (milestones). Com essa base financeira assegurada, assumem-se riscos  
maiores em investimentos especulativos dentro do setor aeroespacial.  
2. Flexibilização da titularidade: atualmente não há regras rígidas de Direito  
Internacional sobre eventuais limites à propriedade de recursos celestes, e, assim, os  
contratos privados assumem papel central na definição dos direitos econômicos. A  
forma jurídica do contrato opera, nesse contexto, como substituto funcional da  
soberania e da jurisdição que só pode ser operado por países que tenham essa  
capacidade econômica, política e militar12, como é o caso dos Estados Unidos,  
convertendo interesses privados em expectativas juridicamente tuteladas, e, assim,  
antes mesmo da tomada da posse do território de corpos celestes o direito já estaria  
garantido acesso ao capital para uma parcela da burguesia. Nesse sentido, nota-se  
como que a forma jurídica é capaz de permitir acúmulo de capitais advindos da  
propriedade da terra de modo desvinculado à figura econômica da renda da terra, uma  
vez que nem se pode falar ainda, com precisão, qual é o nível de produtividade daquela  
terra.  
na fiscalização de contratos e documentos relacionados a setores econômicos estratégicos, como o  
espacial.  
11  
Equity-linked é um instrumento financeiro cujo retorno é vinculado ao desempenho de um ou mais  
ativos de renda variável, podendo ser ações ou índices. Comumente, possui uma estrutura que oferece  
proteção total ou parcial do capital investido, aliando características de renda fixa e variável.  
12  
Fenômeno que será analisado com mais cuidado quando for analisada a atuação do direito  
internacional nesse setor no sub item 2.6.  
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O que se observa é a consolidação de uma moldura jurídica minimalista,  
suficientemente ampla para evitar entraves à expansão do capital e adequadamente  
estruturada para sustentar juridicamente os fluxos especulativos.  
O direito internacional, nesse sentido, funciona como campo de debates  
jurídicos que para a mobilização privada em territórios juridicamente esvaziados, um  
tipo de "zona cinzenta" institucional, que se estivesse tratando de território terrestre,  
encontrariam barreiras políticas e jurídicas. Para o objeto do presente estudo, o direito  
internacional se revela como uma moldura jurídica funcional à hegemonia do capital  
fictício, que combina baixa regulação e alta rentabilidade potencial.  
No próximo subitem, veremos como o direito internacional se torna essa zona  
cinzenta para acomodar contratos privados, revelando o fenômeno jurídico como um  
lócus efetivo da mediação entre expectativa de lucro e valorização do capital portador  
de juros.  
2.4. A arquitetura jurídica internacional como forma de legitimação dos contratos  
privados no setor espacial  
A expansão das atividades espaciais pelo setor privado exige, para além da  
retórica ideológica do empreendedorismo, uma moldura jurídica que conforte os  
investimentos especulativos em uma base de legalidade transnacional. Ainda que os  
tratados internacionais, como Outer Space Treaty (OST, 1967) não reconheça tão  
claramente a apropriação nacional de corpos celestes, tampouco proíbe ao menos  
com efetividade , e o Moon Agreement (1979), que é um pouco mais claro nesse  
sentido, não foi ratificado por nenhuma potência do setor aeroespacial, nenhum desses  
mecanismos têm impedido a apropriação indireta via agentes privados, amparada por  
contratos celebrados sob jurisdições domésticas.  
Essa ambiguidade é precisamente o que permite a operação jurídica do capital  
portador de juros no setor espacial. Logo, aquilo que é considerado pelos  
jurisconsultos como uma falha técnica dos mecanismos jurídicos é, na verdade, o  
direito se conformando aos imperativos da realidade.  
Para compreender como o direito internacional, as lições de Pachukanis (1925)  
são de grande valor. O autor soviético revela que, no plano interno, o estado é o  
terceiro garantidor das relações jurídicas, assegurando a impessoalidade necessária às  
trocas mercantis e à reprodução do capital. No direito internacional, essa figura  
centralizadora inexiste (MIÉVILLE, 2016). Contudo, isso não significa que o direito  
internacional funcione sem coercitividade ou que sua lógica de operação escape à  
forma jurídica. Na ausência de um aparato estatal global, o uso da força, explícita ou  
implícita, é exercido por atores hegemônicos como os Estados Unidos, e esse se torna  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
o principal mecanismo para garantir a observância das normas e a reprodução das  
relações de exploração. É por isso que Pachukanis expõe que “o verdadeiro conteúdo  
histórico do direito internacional, então, é a luta entre os estados capitalistas. O direito  
internacional deve sua existência ao domínio que a burguesia exerce sobre o  
proletariado e sobre os países colonizados” (PACHUKANIS, 1925 – tradução anônima).  
Essa lição do autor soviético fica clara ao se analisar o caso específico da conformação  
relativamente ampla do direito internacional no que tange os assuntos relacionados à  
apropriação privada de corpos celestes, permitindo a legitimidade da atuação dos  
estados que têm a capacidade econômica, política e militar para se apropriar desses  
terrenos. A burguesia dos estados com esse poderio irá se apropriar de forma privada  
dos meios de produção disponíveis em corpos celestes, excluindo o proletariado e os  
demais países dessa exploração.  
A dicção confusa e obscura das normas de direito internacional acerca da  
propriedade privada de corpos celestes oferece um campo fértil para o ímpeto  
manipulatório do direito (LUKÁCS, 2013), conduzindo a longos debates sobre a  
melhor forma de exploração do espaço sideral, mas sempre partindo do pressuposto  
da propriedade privada, como único modo possível.  
Nelson (2011), por exemplo, um advogado que atua em causas relacionadas à  
direito internacional e transfronteiriços, tece sua crítica aos atuais tratados que versam  
sobre a exploração espacial indicando a falha dos tratados em vigor. O advogado  
sustenta que o Acordo da Lua (o último da série inicial de tratados de direito espacial,  
dos quais o Tratado do Espaço Exterior de 1967 é o ponto alto) desencoraja o  
investimento privado e, nas palavras de Nelson,  
[…] a principal crítica ao Acordo da Lua não é que ele não proponha  
regulamentação, mas que ele propõe o tipo errado de  
regulamentação:  
o
tipo que desencoraja uma estrutura  
suficientemente estável e previsível que, por sua vez, desencoraja o  
investimento privado (NELSON, 2011, pp. 403-4 tradução livre).  
Nelson (2011) conduz sua crítica então para a necessidade de uma regulação  
do espaço sideral em âmbito internacional para que possa gerar segurança jurídica  
aos investidores privados. O advogado se alinha, nesse sentido, à Zhao (2004),  
professor da Universidade de Hong Kong da área de direito internacional e com foco  
de estudo em direito espacial. Anos antes, ele já defendia uma abordagem de livre  
mercado para reforçar a segurança jurídica de um sistema capaz de fornecer direitos  
de propriedade para desenvolver a indústria espacial privada que, naquele momento,  
em 2004, estava em um estágio bem embrionário no que tange à participação da  
iniciativa privada no setor. Zhao dirá que:  
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Uma abordagem de livre mercado reforçada pela segurança jurídica  
inerente a um sistema que fornece direitos de propriedade definidos  
faria muito para energizar o desenvolvimento estagnado da indústria  
espacial. (ZHAO, 2004, p. 290 tradução livre)  
A inexistência de um regime sancionador internacional robusto, somada à  
cláusula da “responsabilidade estatal pelos atos de seus nacionais” presente no art. VI  
do Tratado do Espaço Exterior13, abre espaço para que estados com maior capacidade  
de intervenção política na conformação normativa como os Estados Unidos—  
legislem de forma a garantir segurança jurídica às suas corporações. A arquitetura  
jurídica internacional, assim, não é um entrave, mas um suporte indireto para as  
operações do capital fictício.  
Uma outra preocupação recorrente dos autores é com relação ao chamado uso  
pacífico do espaço. Zhao (2004) alerta a necessidade de que o uso pacífico seja um  
princípio básico do direito espacial internacional.  
Idealmente, as atividades espaciais devem ser realizadas no interesse  
da manutenção da paz e da segurança internacionais. O uso pacífico  
do espaço exterior, sendo o princípio básico do direito espacial  
internacional, deve ser mantido. (ZHAO, 2004, p. 292 tradução  
livre)  
Essa preocupação com uso pacífico vem sempre acompanhada do alerta para a  
necessidade de regular juridicamente as atividades comerciais no espaço no âmbito  
internacional para evitar conflitos bélicos. Basta observar que os Tratados  
Internacionais que versam sobre a questão, seja o Outer Space Treaty (OST, 1967) ou  
o Moon Agreement (1979), são sempre criticados justamente por não oferecerem  
nenhuma segurança jurídica aos investidores e apontam para a possibilidade dessa  
insegurança gerar conflitos. Quinn (2008) afirma que juntar essa “fraqueza com a  
ausência de um tribunal internacional para julgar conflitos significa que, na primeira  
vez em que o Tratado do Espaço Sideral for testado, ficará claro que ele não tem força”  
(QUINN, 2008, p. 495).  
A ideia de evitar conflitos então se relaciona à necessidade de viabilizar as  
atividades comerciais, e não de um uso comum e pacífico por toda a humanidade.  
13 “ARTICLE VI - States Parties to the Treaty shall bear international responsibility for national activities  
in outer space, including the Moon and other celestial bodies, whether such activities are carried on by  
governmental agencies or by non-governmental entities, and for assuring that national activities are  
carried out in conformity with the provisions set forth in the present Treaty. The activities of non-  
governmental entities in outer space, including the Moon and other celestial bodies, shall require  
authorization and continuing supervision by the appropriate State Party to the Treaty. When activities  
are carried on in outer space, including the Moon and other celestial bodies, by an international  
organization, responsibility for compliance with this Treaty shall be borne both by the international  
organization and by the States Parties to the Treaty participating in such organization.” (UNITED  
NATIONS, 1966)  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
Todo o debate jurídico atual acerca do direito espacial é motivado pelas necessidades  
da acumulação capitalista.  
2.4.1. Do direito internacional à legislação doméstica: a intermediação estatal  
O US Commercial Space Launch Competitiveness Act (2015) é exemplar para  
revelar como a ausência de um fator coercitivo eficiente no cenário internacional, junto  
a normas que trazem um texto bem aberto à interpretações, tem dado espaço para a  
regulação do espaço em âmbito doméstico nos Estados Unidos. Essa norma garante  
às empresas americanas o direito de explorar recursos espaciais (como minérios de  
asteroides) sem que isso implique reivindicação de soberania nacional um artifício  
jurídico que contorna os tratados internacionais ao mesmo tempo em que os  
instrumentaliza. A SpaceX, a Planetary Resources, Virgin Galactic, Blue Origin e outras  
companhias utilizam tais previsões para incluir em seus contratos cláusulas de  
expectativa legítima de exploração futura, as quais são convertidas em títulos  
financeiros e ativos contábeis.  
O US Commercial Space Launch Competitiveness Act (2015) reconhece aos  
cidadãos dos Estados Unidos o direito sobre recursos espaciais que venham a extrair  
(“possuir, deter, transportar, usar e vender”) e, ao mesmo tempo, registra que não há  
qualquer reivindicação de soberania ou jurisdição exclusiva sobre corpos celestes  
pelos Estados Unidos (UNITED STATES, 2015). Em paralelo, regimes nacionais como o  
Luxemburgo/201714 afirmam expressamente que “os recursos espaciais são passíveis  
de apropriação”15, condicionando a atividade a autorização ministerial arquitetura  
pensada para dar segurança jurídica a investidores e operadores (GRAND DUCHY OF  
LUXEMBOURG, 2017).  
Na prática, empresas voltadas à extração de recursos, como a Planetary  
Resources (e a então Deep Space Industries), invocaram esse mecanismo normativo  
doméstico em acordos e captações, inclusive com apoio estatal de Luxemburgo (MoU  
e aporte de capital/ P&D), estruturando planos de negócio ancorados em expectativas  
de exploração futura (GOUVERNEMENT..., 2016).  
Nesse cenário, o ambiente regulatório tanto nos Estados Unidos, como em  
outros países parceiros, a partir da US Commercial Space Launch Competitiveness Act  
14“Marco de Luxemburgo”: em 2017, Luxemburgo aprovou a Lei de 20 de julho de 2017 sobre a  
exploração e o uso de recursos espaciais, que (i) reconhece a possibilidade de apropriação dos recursos  
após a extração (“space resources are capable of being owned”), e (ii) cria um regime de autorização e  
supervisão ministerial para missões privadas, em conformidade com o direito internacional. A lei integra  
a estratégia SpaceResources.lu e sustenta iniciativas como o ESRIC, voltadas a P&D e à atração de  
investimentos no tema.  
15 Article 1. Space resources are capable of being owned.(GRAND DUCHY OF LUXEMBOURG, 2017)  
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of 2015, estabelece um pilar para a mineração espacial ao garantir que cidadãos norte-  
americanos (ou seja, a burguesia norte-americana) sejam donos dos recursos que  
extraírem, sem que isso represente uma reivindicação de soberania sobre o corpo  
celeste.  
Nos termos da Lei de Exploração e Utilização de Recursos Espaciais  
de 2015 (PL 114-90, Título IV; 51 USC. §51303), qualquer cidadão  
americano envolvido na extração comercial de recursos espaciais tem  
direito aos recursos obtidos, de acordo com a legislação aplicável. A  
mesma lei também determina que o governo federal facilite e promova  
a recuperação comercial de recursos espaciais. (LINDBERGH, 2024)16  
As eventuais insuficiências no âmbito internacional são preenchidas pelo direito  
doméstico de modo a acomodar as necessidades da acumulação capitalista ao discurso  
jurídico, em um ambiente mais favorável aos interesses de cada burguesia nacional,  
ou seja, o âmbito interno de seu próprio país. Diferente do que aponta Lindbergh  
(2024) ao dizer que incerteza sobre o direito de propriedade pode "deter o  
investimento financeiro"17 no setor aeroespacial, é justamente essa suposta incerteza  
que apresentou a condição adequada para discurso jurídico se acomodar à realidade  
no processo histórico.  
Veja-se, por exemplo, que a Lei de Competitividade de Lançamento Comercial  
Espacial (US Commercial Space Launch Competitiveness Act, USA, 2015) garante aos  
cidadãos e empresas norte-americanas o direito de explorar, possuir, utilizar,  
transportar e vender recursos espaciais (como água e minerais) extraídos de asteroides  
ou outros corpos celestes. No entanto, a mesma legislação, fala muito pouco sobre a  
questão ambiental no espaço sideral, e a única referência sobre o tema está exposta  
na seção 109, alínea “c”, item 5, que mencionará a preocupação acerca do tráfego  
espacial, a fim de evitar congestionamento do ambiente orbital, ou seja, o meio  
ambiente é assunto somente até o ponto em que pode inviabilizar os dificultar a  
acumulação de capitais. A referida lei garante a possibilidade de exploração dos  
recursos naturais dos corpos celestes, mas não estabelece limitação, relegando essa  
tarefa às normas internacionais. A Legislação de Competitividade de Lançamento  
Comercial Espacial até estabelece regras para a responsabilidade civil e indenização  
relacionadas às atividades de voo espacial, incluindo proteções legais para os  
participantes de voos espaciais e operadores licenciados, na seção 106, que versa  
16  
Under the Space Resource Exploration and Utilization Act of 2015 (P.L. 114-90, Title IV; 51 U.S.C.  
§51303), any U.S. citizen engaged in commercial space resource extraction is entitled to the resource  
obtained, in accordance with applicable law. The same law also directs the federal government to  
facilitate and promote commercial recovery of space resources.”  
17Some note that a perceived lack of entitlement certainty may deter financial investment in space  
resource extraction.(LINDBERGH, 2024)  
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sobre a jurisdição federal. Mais uma vez, a preocupação se refere a uma  
responsabilidade civil, para resguardar eventuais prejuízos contratuais, passando ao  
largo a preservação do meio ambiente.  
Na mesma direção, o Outer Space Act do Reino Unido e outros mecanismos de  
autorização nacionais foram adotados também por países europeus, permitindo que  
contratos internacionais sejam registrados e supervisionados por entes nacionais,  
criando um duplo nível de legalidade que associa o direito internacional a autorizações  
administrativas internas.  
Nesse contexto, grandes players de transporte, como a SpaceX, se beneficiam  
indiretamente, pois a criação de um novo mercado de mineração gera uma demanda  
futura por serviços de logística e lançamento, ainda que seus contratos atuais não  
tratem da atividade em si. Essas previsões legais também facilitam a inclusão, em  
instrumentos de investimento privado, de cláusulas de “expectativa legítima” – como  
o atingimento de milestones que atuam como gatilhos financeiros que podem ser  
precificadas em captações e refletidas como ativos contratuais. A literatura jurídica,  
por sua vez, destaca justamente esse acoplamento entre o reconhecimento de direitos  
sobre recursos e a criação de estruturas financeiras para a mobilização de capital, um  
tema que permanece em debate na esfera internacional (MASSON-ZWAAN;  
PALKOVITZ, 2017).  
2.4.2. Contratos como dispositivos de titularização de expectativas  
O que os contratos governamentais evidenciam é que as previsões contratuais  
são elaboradas com base em normativas internacionais mínimas, mas são validadas  
por legislações domésticas, oferecendo aos investidores garantias formalmente  
estáveis para emissão de debêntures18, bonds19, tokens digitais20 e outros  
instrumentos de capital fictício.  
O contrato firmado entre a Blue Origin e a Nasa21, por exemplo, serve para dar  
substrato às expectativas futuras. Ele se insere em um contexto jurídico-institucional  
18Debêntures: Títulos de dívida de médio a longo prazo emitidos por sociedades anônimas (empresas  
não financeiras) para captação de recursos. Ao adquirir uma debênture, o investidor torna-se credor da  
companhia, recebendo uma remuneração (juros) pelo empréstimo até a data de vencimento do título.  
19Bonds: Termo genérico e internacional para títulos de dívida, sejam eles emitidos por empresas  
(corporate bonds) ou por governos (government bonds). A debênture é a nomenclatura jurídica utilizada  
no Brasil para designar um corporate bond.  
20Tokens Digitais: Ativos digitais registrados em uma rede blockchain que representam um direito ou  
o valor de um ativo real ou financeiro. No contexto de dívida, um security token pode representar  
digitalmente uma fração de uma debênture ou bond, permitindo sua negociação fracionada e com maior  
liquidez em um ambiente digital.  
21  
em: 4 out. 2025.  
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mais amplo, caracterizado pela ausência de normas internacionais vinculantes sobre a  
exploração comercial de recursos espaciais. Para suprir essa lacuna, os Estados Unidos  
vêm promovendo os chamados Artemis Accords22 um conjunto de diretrizes  
elaboradas pelo governo norte-americano, a partir de 2020, com o objetivo de  
estabelecer princípios para o uso civil e comercial do espaço sideral e são os Artemis  
Accords que dão a moldura institucional para contratos tais como o já mencionado e  
recentemente firmado entre Blue Origin e Nasa. Esses acordos, entretanto, não  
possuem natureza de tratado internacional, tampouco são dotados de força vinculante  
no sistema jurídico internacional: consistem em instrumentos de soft law, isto é, normas  
de caráter não compulsório que funcionam como orientações políticas e jurídicas para  
a atuação de empresas e estados signatários.  
Ainda que não criem obrigações jurídicas formais, os Artemis Accords exercem  
uma função normativa estratégica: oferecem um arcabouço simbólico de  
previsibilidade regulatória, o qual legitima a atuação de empresas privadas na  
exploração lunar e possibilita a titularização de direitos de exploração e posse futura  
de recursos ainda não apropriados. Tal “moldura normativa”, mesmo sem  
coercitividade formal, é mobilizada nos contratos como referência legítima e  
justificadora das expectativas de retorno dos investimentos, demonstrando, no plano  
formal, um compromisso com o cumprimento das diretrizes e princípios ali  
estabelecidos. Em outras palavras, os contratos fazem uso dessas normas flexíveis  
como base para conferir legitimidade aos contratos, viabilizando juridicamente a  
projeção de fluxos de caixa futuros condição indispensável à financeirização dos  
ativos espaciais, especialmente em setores como o de mineração lunar, transporte  
orbital e instalação de habitats artificiais.  
A operação é clara: a arquitetura jurídica internacional define os limites formais  
do que pode ou não ser feito no espaço; os contratos privados, por sua vez, operam  
nesses interstícios, amparando-se nas legislações nacionais para converter  
expectativas técnicas (viáveis ou não) e geopolíticas em ativos jurídicos negociáveis. A  
desmaterialização da posse convertida em mero título de propriedade sobre ativos  
espaciais é, assim, juridicamente mediada, em um movimento que acompanha a  
correlação de forças políticas, determinadas de modo reflexivo por aspectos concretos  
22Os Artemis Accords são um conjunto de princípios, diretrizes e boas práticas para orientar a  
cooperação internacional na exploração espacial civil (com foco nas missões do Programa Artemis),  
reforçando obrigações do Tratado do Espaço Exterior (1967). Entre os princípios estão: fins pacíficos,  
transparência, interoperabilidade, assistência em emergências, registro de objetos espaciais, divulgação  
aberta de dados científicos, preservação de patrimônio espacial, uso de recursos em conformidade com  
o Tratado, coordenação para evitar interferências [safety zones] e mitigação de detritos orbitais (NASA,  
2020).  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
encontrados na crítica da economia política, onde está a anatomia das relações sociais.  
2.5. Contratos privados e governamentais como formas jurídicas do capital  
portador de juros e seu desdobramento em capital fictício  
O setor aeroespacial, ao configurar-se como nova fronteira de valorização do  
capital, não poderia expandir-se sem a intermediação de formas jurídicas que garantam  
a transformação de expectativas futuras em ativos comercializáveis no presente. É  
nesse ponto que os contratos privados desempenham uma função estruturante,  
constituindo-se como formas jurídicas por excelência do capital portador de juros no  
espaço sideral, tanto no mercado financeiro, bem como contratos administrativos com  
o governo podem funcionar como antecipações.  
Diferente da realização clássica do capital, que ocorre pela produção de  
mercadorias e sua venda no mercado, a lógica financeira que rege os contratos  
espaciais pressupõe a antecipação de um valor futuro incerto, sustentado por ativos  
jurídicos formalmente válidos, tendo em vista a gama de promessas a serem realizadas,  
e considerando que algumas delas são sabidamente inviáveis no atual estágio de  
desenvolvimento tecnológico. Esses contratos23 não se limitam a regular obrigações  
recíprocas entre partes privadas ou uma parte privada e o governo, mas são  
estruturados de modo a garantir fluxos de valorização contínuos e transnacionais,  
respaldados por sistemas jurídicos nacionais e internacionais.  
A prática de utilizar os contratos governamentais para aquisição e  
desenvolvimento tecnológico a partir de produtos militares enquanto uma forma de  
oferecer segurança e certeza para o capitalista não é novidade, e já havia sido  
identificada por Chesnais:  
[…] as particularíssimas condições da pesquisa e da produção  
militares geram nas empresas beneficiárias dos contratos de  
armamento o que Jean-Claude Derian (La grande panne de la  
téchnologie américaine, editora Albin Michel, 1988) chamou de cultura  
técnica de mentalidade “protegida”. Os lucros são altos e garantidos,  
graças a um faturamento em cost-plus (os custos havidos, mais uma  
margem automática); os contratos contêm cláusulas que permitem  
repetidas revisões quando aumentam os custos inicialmente  
anunciados; nenhum risco comercial está associado à inovação, pois  
eles são assumidos pelo autor da encomenda, que arca com as  
despesas em caso de fracasso tecnológico, mas que, pelo contrário,  
23  
“As metamorfoses da mercadoria, no processo de circulação (Livro II), parecem efetivamente apagar  
o processo produtivo; aqui, na superfície das figuras econômicas do processo global de produção (Livro  
III), porém, no capital portador de juros, ele já está apagado, não aparecendo, seja como um momento  
da metamorfose das mercadorias, seja como parte da reprodução do capital. O capital portador de juros  
está no polo oposto do capitalista funcionante (que investe produtivamente o capital ou com ele  
comercializa); o movimento essencial da economia se dá neste polo funcionante. As formas jurídicas,  
porém, juntamente com as garantias jurídicas, operam em meio à transferência de dinheiro ao capital  
portador de juros.” (SARTORI, 2023, p. 147)  
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faz importantes encomendas de material em caso de êxito. A “cultura  
protegida” gera, assim, modos de administração cada vez mais  
conservadores e distantes das condições de concorrência nos  
mercados civis. Mais ainda, graças à mobilidade dos dirigentes de  
empresa e dos executivos, esses modos de administração são  
contagiosos e se disseminam pelo conjunto do tecido industrial.  
(CHESNAIS, 1995, p. 138)  
O setor aeroespacial, um braço do Complexo Industrial-militar e que se  
desenvolveu a partir dele, foi capaz de amalgamar a garantia dos contratos  
governamentais à lógica especulativa do mercado financeiro de modo sistemático. As  
cláusulas contratuais examinadas em instrumentos de SpaceX, Boeing, OneWeb e  
Astrobotic evidenciam como expectativas técnicas futuras são juridicamente  
estruturadas e convertidas em ativos negociáveis. Para ilustrar, tem-se que nos  
contratos CCtCap24 com a Nasa (SpaceX e Boeing), os pagamentos são milestone-based  
e condicionados a entregas técnico-programáticas descritas no Attachment J-03,  
Appendix A Milestone Acceptance Criteria and Payment Schedule25. Os percentuais e  
critérios de liberação são modulados pela cláusula H.19 (Post-Certification Mission  
Payments, Milestones and ATP Criteria), transformando eventos de engenharia em  
gatilhos financeiros e reduz risco de execução ao investidor. Diante disso, a título de  
exemplo, veja-se como foi estruturado o contrato entre a Nasa e a Boeing (2014), que  
estabelece um cronograma de pagamentos baseado em milestones, com limites  
percentuais26:  
Até 20% após a Revisão de Certificação de Design da ISS;  
Até 30% após a Revisão de Linha Base do Veículo;  
Até 50% após a Revisão de Integração da Missão;  
Até 60% após a Revisão de Certificação;  
24  
Contratos de Capacidade de Transporte de Tripulação Comercial (CCtCap) são projetados para  
concluir a certificação da Nasa para sistemas de transporte espacial humano capazes de transportar  
pessoas para a órbita. Uma vez concluída a certificação, a Nasa planeja usar esses sistemas para  
transportar astronautas para a Estação Espacial Internacional e devolvê-los com segurança à Terra.  
25  
appendix-a.pdf>. Acesso em: 28 set 2025.  
26  
(e) PCM task order payment constraints: The total PCM task order payments made prior to and  
including: NNK14MA75C - Commercial Crew Transportation Capability (CCtCap) Contract Page 52 of  
114 (1) The completion of the SubCLIN 001A, ISS Design Certification Review (ISS DCR), (associated  
with the required crewed flight test to ISS; see Attachment J-03, Appendix A) shall not exceed 20% of  
the total price of the mission. (2) The completion of the Vehicle Baseline Review (VBR) shall not exceed  
30% of the total price of the mission. (3) The completion of the Mission Integration Review (MIR) shall  
not exceed 50% of the total price of the mission. (4) The completion of the SubCLIN 001B, Certification  
Review (CR), (see Attachment J-03, Appendix A) shall not exceed 60% of the total price of the mission.  
(5) The completion of the Nasa Flight Readiness Review (FRR) shall not exceed 75% of the total price  
of the mission. (6) The final milestone payment must equal at least 10% of the price of the mission  
(NASA; Boeing, 2014, pp. 52-3).  
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Até 75% após a Revisão de Prontidão de Voo da Nasa;  
Pelo menos 10% no pagamento final.  
Ademais, cabe pontuar que o acordo entre Nasa e SpaceX segue os mesmos  
parâmetros de milestone-payment (NASA; SPACEX, 2014).  
Já nos contratos-padrão da Astrobotic27 para o serviço MoonBox28, os Terms  
and Conditions preveem que atrasos, reprogramações e até cancelamentos podem  
ocorrer “a critério” da empresa; os pagamentos são não reembolsáveis, podendo ser  
retidos, e há isenção/renúncia de responsabilidade por falhas, inclusive decorrentes de  
atraso ou não lançamento do payload. Esses dispositivos funcionam, na prática, como  
penalidades econômicas indiretas (retenção, perda de oportunidade e custo de capital  
imputado ao cliente), vinculadas ao desempenho/cronograma projetado, e viabilizam  
ajustes financeiros e remarcações contratuais. Ou seja, convertendo riscos operacionais  
em oportunidades de ajuste financeiro e renegociação de fluxos de capital  
(ASTROBOTIC, [s.d.]).  
Outro elemento recorrente é a previsão de cláusulas de arbitragem  
internacional, que deslocam eventuais litígios para fóruns mais favoráveis à proteção  
de investimentos, normalmente sediados em países centrais. Essa estratégia  
normativo-contratual reduz a insegurança jurídica percebida por investidores privados,  
pois, mediante eventuais alterações na conjuntura política interna a arbitragem  
internacional representaria a possibilidade de um agente impessoal, transformando a  
incerteza própria do setor em uma variável calculável, e, portanto, financiável.  
Os contratos com previsão de entrega em até 5 anos são utilizados para  
captação imediata de recursos, com base na titularização de direitos creditórios futuros  
no mercado financeiro. Ou seja, a expectativa de fornecimento de um serviço ou  
tecnologia, ainda em fase de desenvolvimento, converte-se em lastro para a emissão  
de debêntures, ações ou outros títulos, cuja negociação se insere no circuito do capital  
fictício.  
Essa titularização ocorre com acordos mútuos também baseados em  
expectativas e reembolsos futuros. O contrato firmado entre a OneWeb e a Eutelsat29,  
27  
Empresa privada norte-americana de robótica espacial que desenvolve módulos de pouso e rovers  
lunares. Atua como um serviço de logística, transportando cargas para a Lua para clientes como a Nasa  
(através do programa CLPS), empresas e instituições de pesquisa, com o objetivo de tornar o espaço  
mais acessível (ASTROBOTIC TECHNOLOGY, 2025).  
28  
O serviço MoonBox, da Astrobotic, empresa do setor aeroespacial, permite que indivíduos e  
empresas enviem pequenos objetos e lembranças para a superfície da Lua em uma "cápsula do tempo"  
transportada em suas missões de aterrissagem.  
29 Disponível em:  
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por exemplo, previa a entrega de capacidade de banda larga para regiões remotas  
como contrapartida futura à fusão de operações, permitindo a valorização antecipada  
da empresa resultante e seu ingresso em bolsas de valores.  
O arranjo contratual, portanto, não visa primariamente à execução técnica de  
um projeto espacial, mas à sua viabilidade como ativo financeiro. A forma jurídica do  
contrato, nesse contexto, é o suporte que permite ao capital portador de juros garantir  
sua autovalorização sem passar, necessariamente, pela produção material imediata, e,  
nos termos aqui apresentados, esses ativos acabam sendo garantidos, em última  
instância, pelo estado, por meio dos contratos governamentais. Esse padrão aparece  
em programas como COTS30 e Commercial Crew31, além do NLS II32, que contratam o  
desenvolvimento e a demonstração, e não só a operação madura, criando ativos  
contratuais e gatilhos financeiros antes da plena existência das tecnologias  
contratadas. Essas são inferências da realidade que se faz partindo os pressupostos  
teóricos da tradição marxista, desenvolvidos por Grespan (2019), e também por Sartori  
(2023), quando enfrentou os limites das elaborações de Pachukanis.  
A riqueza, assim, é distribuída, não mais somente de acordo com o  
trabalho dos agentes da produção, mas de acordo com o princípio da  
propriedade privada (GRESPAN, 2011; 2019). As formas jurídicas,  
como a propriedade privada reconhecida juridicamente, aqui, são  
bastante importantes no encaminhamento destas relações sociais.  
Ganham uma proeminência bastante grande. E, com isto na  
superfície da sociedade capitalista as transações jurídicas parecem  
ser essenciais. E até certo ponto, são: sem elas, muitas vezes, o  
encaminhamento de relações econômicas seria muito dificultado. Mas,  
também aqui, o essencial está na produção do mais-valor e na  
correlação, em primeiro lugar, das formas econômicas da mercadoria,  
do dinheiro e do capital e, secundariamente, na relação e na tensão  
entre figuras econômicas como lucro, juros e renda. As formas e as  
garantias jurídicas, em grande parte, conseguem operar tomando  
como pressuposto a relação-capital e a sua conformação específica.  
Elas, em meio aos conflitos entre as diversas classes e parcelas de  
classes (ligadas ao capital bancário, comercial, industrial, por  
exemplo), operam na distribuição da riqueza em meio às figuras  
concretas da economia capitalista, como juros, lucro e renda, trazendo  
diferentes combinações no que toca a distribuição do mais-valor entre  
estas diferentes figuras. (SARTORI, 2019 c, b) As transações, as  
expectativas e garantias jurídicas são formas pelas quais tomando o  
essencial da produção capitalista parcelas do mais-valor são  
out. 2025.  
30  
COTS (2006): a própria Space Act Agreement da Nasa com a SpaceX diz que o objetivo era  
“desenvolver e demonstrar” veículos e operações, com pagamentos por marcos, ou seja, contrato  
firmado antes do sistema existir. (NASA, 2006)  
31  
Commercial Crew / CCtCap (2014): os contratos foram “desenhados para completar o projeto,  
desenvolvimento, testes e certificação”, incluindo voo tripulado de teste, na qual a contratação vem  
antes da tecnologia certificada (NASA, 2014)  
32 NLS II (2020): a Nasa incluiu o New Glenn como serviço elegível no contrato-quadro antes do primeiro  
voo do foguete. (NASA, 2020)  
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distribuídas. E, assim, o papel das formas jurídicas, aqui, está muito  
mais na esfera da distribuição do que na esfera da circulação, como  
em Pachukanis. Elas encaminham a distribuição de parcelas do mais-  
valor, de modo que, mesmo não sendo, seu movimento parece  
arbitrário. (SARTORI, 2023, p. 148)  
Note-se então que o papel dos contratos se articula com a financeirização de  
fundos públicos. Muitos acordos envolvem agências estatais (como a Nasa ou a Darpa,  
no caso dos Estados Unidos) atuando como clientes-âncora, oferecendo demanda  
garantida para projetos privados. Essa estrutura contratual permite que empresas  
obtenham empréstimos a juros mais baixos e captem recursos via fundos de  
investimento, transformando o compromisso contratual com o estado em ferramenta  
de valorização privada no mercado financeiro, potencializando o acúmulo de capital  
fictício por meio dos adiantamentos de capital fundados em contratos administrativos  
com o governo.  
Em resumo, os contratos privados funcionam como veículos formais para a  
circulação do capital portador de juros no setor espacial, e que alavancam o valor de  
mercado das empresas, impulsionando o capital fictício. Eles não apenas organizam  
juridicamente as relações entre entes privados e também dos entes privados com o  
estado, mas sobretudo, garantem a projeção especulativa do valor futuro, alicerçada  
por formas jurídicas que podem se descolar completamente do processo produtivo, e  
servem de fundamento e base para a valorização de mercado da empresa contribuindo  
também para o acúmulo de capital fictício. Como consequência, o capital fictício que  
circula nesse setor é juridicamente ancorado, mesmo quando dissociado de qualquer  
base produtiva concreta.  
Seguindo essa lógica, o próximo capítulo abordará o papel do dinheiro no  
processo de equalização.  
2.6. O processo de equalização e o papel do direito  
No Volume III de O capital, Marx (2017) examina o processo de equalização o  
qual na concorrência entre capitais de diferentes ramos da economia, o mais-valor se  
iguala em diferentes taxas. Isso ocorre através da formação de preços de produção e  
da equalização das taxas de lucro, que tendem a se uniformizar entre as diversas  
indústrias e setores da economia. Trata-se de um mecanismo sistêmico pelo qual o  
capital flui de setores com menor rentabilidade para setores mais lucrativos, até que  
as taxas se igualem, compensadas pelas proporções de capital constante e variável  
aplicadas. No entanto, essa redistribuição ocorre mediada por formas jurídico-políticas  
muito específicas, sobretudo no capitalismo contemporâneo.  
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Por “equalização” (grifo nosso: poderia também ser traduzido por  
“nivelação” ou “compensação”, no sentido de um balanço, de uma  
operação pela qual as diferenças são compensadas conforme a nota  
de rodapé 29 do mesmo autor), Marx compreende os fenômenos  
relativos à distribuição de valores pela concorrência entre os capitais  
individuais. De certo modo, ele aparece já nas formas mais  
elementares pelas quais se apresenta o sistema capitalista, ou seja, na  
circulação simples de mercadorias, quando a migração dos produtores  
entre os ramos nos quais se divide o trabalho criador de diversos  
valores de uso fixa os tempos socialmente necessários e, assim, os  
valores; ela é nomeada no momento da criação de um sistema de  
preços pelo dinheiro, mediante processo generalizado de mensuração  
de valores e se desenvolve com a passagem para o capital, nos  
circuitos de comércio entre os diversos setores da produção. É o Livro  
III de O capital, no entanto, que integra em definitivo a equalização  
em um novo princípio distributivo e invertendo a operação do  
princípio anterior, de modo a colocá-lo em questão, junto com a  
eficácia e até com a própria existência do valor. (GRESPAN, 2019, p.  
39)  
O setor aeroespacial, enquanto componente do departamento III, apropria-se  
do mais-valor produzido pela classe trabalhadora, mas não gera bens que retornem à  
esfera da reprodução social. Essa característica confere ao departamento III uma função  
peculiar na dinâmica capitalista: ele atua como instância de redistribuição do mais-  
valor entre os diferentes departamentos da economia. Historicamente, esse papel foi  
decisivo para a transferência de valor entre os departamentos I e II responsáveis,  
respectivamente, pela produção de bens de produção e de bens de consumo ,  
equilibrando as desproporções inerentes ao processo de reprodução ampliada do  
capital. Contudo, com o avanço da financeirização, a função equalizadora desse  
departamento passa a ser progressivamente absorvida pelas dinâmicas do capital  
portador de juros, que passam a cumprir o papel de redistribuição e compensação de  
desequilíbrios entre setores.  
Essa redistribuição é fundamental porque, em termos tendenciais, o  
departamento I produtor de meios de produção enfrenta dificuldades de realização  
de suas mercadorias antes do departamento II, dada a estrutura de demanda  
interdepartamental, que prioriza o atendimento das necessidades produtivas antes das  
necessidades de consumo. O departamento III, ao atuar como mediador dessa relação,  
contribui para retardar as crises de superprodução, absorvendo parte do mais-valor  
excedente e realocando-o por meio de contratos estatais e investimentos estratégicos.  
No contexto contemporâneo, com o chamado new space, observa-se uma fusão entre  
o departamento III e as dinâmicas da financeirização: ambos se amalgamam no  
exercício da equalização, transformando o setor aeroespacial em um canal privilegiado  
de conversão de capital excedente em capital fictício, o que acelera e intensifica o  
processo de autonomização do valor frente à produção material.  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
As mercadorias oriundas do complexo industrial-militar e do setor aeroespacial  
não possuem um valor de uso social geral, mas sim um valor de uso específico à  
burguesia: a imposição bélica de seus interesses na concorrência interestatal. O preço  
dessas mercadorias, portanto, não reflete a medida de trabalho socialmente necessário  
à sua produção, mas a correlação política e jurídica que esses setores estabelecem  
com o estado, especialmente por meio da elaboração das leis orçamentárias e da  
celebração de contratos públicos vantajosos. Nessa relação, o valor de uso dos bens  
de destruição, a política e o direito se fundem como mediações constitutivas da  
acumulação. O direito, em particular, opera como forma elementar de representação  
do valor cristalizando, em normas e contratos, a validade social dos preços e a  
legitimidade da apropriação privada do fundo público , convertendo o estado em um  
agente ativo da reprodução ampliada do capital fictício.  
Como assinala Grespan (2019), o preço não é o valor: o primeiro não expressa  
diretamente a quantidade de trabalho socialmente necessário, mas apenas uma forma  
fenomênica de sua representação. O preço, ao mesmo tempo em que deriva do valor,  
o encobre, porque se apresenta como sua medida imediata, quando na realidade é  
também condicionado pelo valor de uso e pelas mediações políticas e jurídicas que o  
sustentam. No caso do complexo industrial-militar e do setor aeroespacial, a  
intervenção estatal por meio de contratos e gastos públicos intensifica esse  
descolamento, fazendo com que o preço adquira uma autonomia relativa em relação  
ao valor.  
A produção de valor, enquanto transformação da natureza pelo trabalho  
humano, é invisibilizada nesse processo. O que aparece à consciência do capitalista é  
o preço a expressão monetária do valor , e é a partir dele que se estrutura a  
reprodução do capital. As formas mentais que emergem daí convertem o preço e o  
dinheiro nos referentes imediatos da riqueza, ofuscando a base material e o trabalho  
vivo que os originam. Assim, o dinheiro, que inicialmente funcionava como equivalente  
universal de troca, autonomiza-se como representante do valor, tornando-se o próprio  
meio de sua realização aparente. Ele não apenas expressa o resultado do valor gerado  
na produção, mas também o encobre ao se autonomizar, transformando-se na  
representação do capital.  
Nesse movimento, o preço enquanto expressão monetária do valor participa  
do processo de equalização entre capitais, tornando-se o instrumento de redistribuição  
do mais-valor socialmente produzido. É nesse ponto que a burguesia vinculada ao  
complexo industrial-militar e ao setor aeroespacial impõe-se mediante seu poder  
político, assegurando a celebração de contratos públicos que mantêm a circulação do  
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capital e garantem a conversão do valor socialmente produzido em lucro privado.  
Trata-se, assim, de uma equalização mediada juridicamente, em que o direito cumpre  
papel central na legitimação da forma fetichizada do valor e na perpetuação da  
acumulação ampliada sob a hegemonia do capital fictício.  
O que ocorre é apenas que o capitalista se esquece ou, antes, não  
o vê, já que a concorrência não mostra de que todos esses motivos  
compensatórios, que os capitalistas exigem uns dos outros no cálculo  
recíproco dos preços das mercadorias de diferentes ramos de  
produção, referem-se meramente ao fato de que todos eles, pro rata  
a seu capital, detêm iguais direitos ao butim coletivo, ao mais-valor  
total. Parece lhes, antes, uma vez que o lucro por eles embolsado é  
diferente do mais-valor que sugam, que seus motivos compensatórios  
não nivelam a participação no mais-valor total, mas criam o próprio  
Lucro, de maneira que este derivaria simplesmente do acréscimo ao  
preço de custo das mercadorias, acréscimo que seria motivado de uma  
forma ou de outra. (MARX, 2017, pp. 296-7)  
Marx observa que os preços operam como uma forma de divisão pro rata do  
mais-valor socialmente produzido, pela qual determinados setores como o complexo  
industrial-militar e o setor aeroespacial asseguram parcelas mais elevadas por meio  
de contratos públicos. Nessa dinâmica, o direito, tendo a propriedade privada como  
seu princípio estruturante, atua como mediador essencial da redistribuição, conforme  
enfatiza Sartori (2023). Os preços, ainda que se apresentem como equivalentes do  
valor, descolam-se dele e assumem uma função ativa de equalização do mais-valor  
entre os capitalistas dos diversos ramos da produção à circulação , sendo  
simultaneamente afetados por fatores ligados ao valor de uso, à concorrência  
intercapitalista e à formação de monopólios.  
No contexto do CIM e do setor aeroespacial, essa tendência assume contornos  
particularmente evidentes. As agências governamentais, como a NASA, asseguram  
vultosos recursos públicos a empresas privadas como SpaceX, Blue Origin, Virgin  
Galactic e Planetary Resources, por meio de contratos que somam bilhões de dólares.  
Esses contratos, porém, não resultam de uma concorrência entre capitais autônomos  
em um suposto mercado “livre”, mas da mediação estatal e da seletividade política  
que direciona o fundo público para determinados agentes privados. O direito, nesse  
processo, não se limita a formalizar juridicamente os contratos: ele institucionaliza a  
apropriação privada do mais-valor social por meio da legalidade e da forma contratual,  
conferindo aparência de neutralidade e legitimidade àquilo que é, em sua essência, um  
movimento de redistribuição seletiva e hierarquizada do valor.  
Essa forma de redistribuição pode ser compreendida como uma equalização  
politicamente dirigida, na qual o estado e o capital financeiro se articulam  
dialeticamente. O estado, ao garantir contratos de longo prazo e previsibilidade de  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
receitas, assegura a continuidade da acumulação e a reprodução das condições de  
valorização do capital; o capital financeiro, por sua vez, acelera o processo de captação  
de recursos, transforma expectativas futuras em títulos negociáveis e realimenta a  
valorização fictícia. Trata-se, portanto, de uma unidade contraditória: enquanto o  
estado desempenha papel ativo na equalização interdepartamental do mais-valor, as  
finanças transformam essa operação em um mecanismo de reprodução ampliada do  
capital portador de juros.  
Nesse quadro, a concorrência e a monopolização aparecem não como forças  
antagônicas, mas como dimensões complementares do processo. A concorrência é  
formalmente preservada pela forma jurídica dos contratos por exemplo, editais e  
licitações , mas o conteúdo concreto dessas relações é marcado pela concentração  
de capital e pelo poder político de poucos grupos empresariais capazes de atender às  
exigências tecnológicas e financeiras impostas pelos programas espaciais. Assim, o  
que se apresenta como livre disputa entre capitais é, na realidade, uma forma  
fetichizada de repartição do mais-valor socialmente produzido, mediada pela política  
orçamentária e pelo direito, que garantem a perpetuação de um circuito de acumulação  
restrito e autocentrado.  
Dessa maneira, a função redistributiva do direito manifesta-se de forma  
concreta na equalização entre capitais por meio dos contratos públicos do setor  
aeroespacial. A legalidade das contratações, a proteção da propriedade privada e a  
própria estrutura jurídica da concorrência configuram um mecanismo de equalização  
juridicamente mediada, no qual o preço expressão monetária do valor torna-se  
instrumento de redistribuição de mais-valor sob a aparência de neutralidade técnica e  
legitimidade institucional. Esse movimento, sustentado pela mediação estatal e  
financeira, exemplifica o modo pelo qual a forma jurídica do valor se autonomiza,  
ocultando as relações de exploração que a fundamentam e convertendo a política e o  
direito em operadores centrais da acumulação capitalista no campo aeroespacial.  
A análise do processo de equalização e do papel do direito permite  
compreender que a redistribuição do mais-valor no interior do capitalismo  
contemporâneo não se dá apenas como um mecanismo técnico de equilíbrio entre  
setores produtivos, mas como uma operação jurídica e política profundamente  
estruturada. O estado e o capital financeiro, articulados por meio da forma jurídica,  
transformam o direito em instrumento de legitimação da apropriação seletiva do mais-  
valor, assegurando a reprodução das condições de acumulação sob a aparência de  
neutralidade normativa. Essa dinâmica abre caminho para o próximo capítulo, no qual  
se examinará como o capital fictício ao converter expectativas futuras de valorização  
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em títulos negociáveis depende da forma jurídica como elemento de garantia e  
estabilização dessa redistribuição. Será demonstrado que, no capitalismo  
financeirizado, o direito não apenas regula as relações entre capitais, mas constitui o  
próprio terreno de sustentação da ficção de valor, operando como mediação  
indispensável para a continuidade da acumulação ampliada e para a manutenção da  
hegemonia do capital portador de juros.  
2.7. Capital fictício e a forma jurídica como garantia da redistribuição  
A dinâmica anteriormente exposta evidencia que o processo de redistribuição  
do mais-valor sob a forma de equalização politicamente dirigida tem no estado e no  
direito mediadores fundamentais. Essa relação alcança seu ponto mais elaborado  
quando se observa que os contratos governamentais não apenas asseguram a  
continuidade material da acumulação, mas também funcionam como garantias jurídicas  
para a valorização financeira dos capitais privados. O caso do setor aeroespacial é  
paradigmático nesse sentido: os contratos firmados entre agências estatais e empresas  
privadas cumprem papel decisivo na estruturação do capital fictício, pois conferem  
respaldo jurídico a fluxos de valorização que não derivam diretamente da produção de  
mercadorias, mas de expectativas institucionalizadas de lucro futuro.  
No caso da SpaceX, por exemplo, o contrato firmado em 2008 com a Nasa, no  
valor de aproximadamente 1,6 bilhão de dólares, foi determinante para evitar a  
insolvência da empresa e assegurar sua inserção definitiva no mercado aeroespacial.  
Em 2014, com o Commercial Crew Program, novos aportes públicos estimados em  
cerca de 2,6 bilhões de dólares consolidaram sua posição como principal parceira  
estatal nos programas de transporte espacial tripulado (NASA, [s.d.]). Mais  
recentemente, a nova Força Espacial dos Estados Unidos celebrou contratos que  
totalizam cerca de 22 bilhões de dólares, dos quais 13,5 bilhões foram distribuídos  
entre SpaceX, United Launch Alliance (ULA) e Blue Origin, para missões previstas entre  
2027 e 2032 (WALL, 2025). Esses contratos não apenas garantem receita estável,  
mas, sobretudo, conferem credibilidade financeira e lastro jurídico às expectativas de  
valorização, convertendo a relação contratual em um título de confiança pública que  
sustenta a capitalização privada.  
Não se trata, portanto, de simples negociações comerciais, mas de operações  
jurídico-políticas de redistribuição do mais-valor, nas quais o capital portador de juros  
atua como mediador entre o estado, o sistema financeiro e as empresas privadas. A  
emissão de títulos de dívida pública, os programas de financiamento e as políticas de  
crédito criam liquidez que é canalizada diretamente ao setor aeroespacial seja por  
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meio de contratos de prestação de serviços, seja por incentivos fiscais e fundos de  
investimento público. Esse circuito financeiro revela que a acumulação do setor não  
depende da produção direta de mais valor, mas da formalização jurídica de direitos  
futuros de valorização. É por meio dessa forma jurídica expressão concentrada da  
propriedade privada que se garante a transformação de promessas em ativos  
negociáveis.  
A partir das lições de Marx no Livro III de O capital (2017), compreende-se que  
o capital portador de juros constitui uma forma derivada do capital industrial: ele se  
autonomiza quando o capitalista empresta dinheiro sob a promessa de retorno futuro,  
apropriando-se de parte da mais-valia produzida na esfera produtiva. O capital fictício,  
contudo, dá um passo além dessa autonomização: ele não representa capital  
efetivamente emprestado para aplicação produtiva, mas a titularização de expectativas  
de rendimento, que passam a circular autonomamente nos mercados financeiros.  
Assim, as ações, títulos e contratos adquirem cotação e são negociados como se  
representassem valor real, quando, na verdade, correspondem a direitos jurídicos  
sobre rendimentos futuros ainda não produzidos.  
É precisamente nesse ponto que a forma jurídica desempenha papel  
estruturante. As cláusulas contratuais analisadas nos casos do setor aeroespacial que  
estabelecem milestones técnicos, prazos, direitos de recompra, exclusividade sobre  
patentes futuras e participação em receitas ainda não realizadas materializam o  
caráter fictício da valorização. O capital investido não possui garantia de retorno  
produtivo, mas encontra amparo jurídico suficiente para ser titularizado, negociado e  
redistribuído, como se fosse um ativo material. Marx (2017), trouxe lições elementares  
para a compreensão desse fenômeno.  
Na medida em que a acumulação desses títulos expressa a acumulação  
de ferrovias, minas, navios a vapor etc., ela representa a ampliação do  
processo real de reprodução, do mesmo modo que, por exemplo, a  
ampliação de uma lista de impostos sobre a propriedade imobiliária  
representa a expansão dessa propriedade. Porém, como duplicatas  
que, em si mesmas, podem ser negociadas como mercadorias e, por  
isso, circulam como valores-capitais, elas são ilusórias, e seu montante  
de valor pode diminuir ou aumentar com absoluta independência do  
movimento de valor do capital real, sobre o qual são títulos. Seu  
montante de valor, isto é, sua cotação na Bolsa, tende a subir com a  
queda da taxa de juros, na medida em que esta, independentemente  
dos movimentos peculiares do capital monetário, é simples  
consequência da queda tendencial da taxa de lucro, de modo que essa  
riqueza imaginária, de acordo com a expressão de valor de cada uma  
das alíquotas de determinado valor nominal originário, só por essa  
razão se expande no curso do desenvolvimento da produção  
capitalista. (MARX, 2017, p. 567)  
Como observam Rossi e Paludeto (2020, p. 2), o capital fictício corresponde ao  
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“excesso ou diferença de valor entre a ação e o capital materializado em meios de  
produção e força de trabalho”, ou seja, à representação de um valor que não existe  
senão como expectativa juridicamente reconhecida.  
Esse mecanismo permite o adiantamento de fluxos futuros de valor para o  
presente, criando múltiplas camadas de valorização dissociadas da produção efetiva,  
mas juridicamente asseguradas e financeiramente operacionalizáveis. O direito, nesse  
contexto, não apenas confere legalidade à especulação, mas também atua como  
mecanismo de validação contábil e institucional: contratos e títulos tornam-se base  
para balanços empresariais, avaliações de risco e auditorias, sendo reconhecidos pelo  
próprio estado como ativos legítimos. Desse modo, a forma jurídica converte-se na  
infraestrutura simbólica e normativa que sustenta a circulação do capital fictício,  
transformando promessas de rentabilidade em riqueza reconhecida.  
Tal dinâmica demonstra que o capital fictício é um desdobramento necessário  
do processo de equalização politicamente dirigida anteriormente analisado. O estado,  
ao garantir contratos de longo prazo, prazos de execução e estabilidade orçamentária,  
atua como organizador jurídico da confiança, assegurando que o fluxo financeiro  
mantenha continuidade mesmo diante da ausência de produção imediata de valor.  
Assim, a acumulação no setor aeroespacial expressa uma dupla dependência: de um  
lado, a dependência estrutural do estado como fiador jurídico e financeiro; de outro, a  
dependência da forma jurídica como mediadora da redistribuição de mais-valor entre  
as frações do capital.  
É precisamente essa autonomia crescente da forma jurídica que revela o grau  
de descolamento entre valor e produção no capitalismo contemporâneo. Como destaca  
Grespan (2019, pp. 81-2):  
Vimos que todos esses processos indicam o gradual descolamento da  
propriedade privada, como princípio distributivo do mais-valor, em  
relação ao trabalho criador do mais-valor. É que, quando posta na  
base do capital industrial predominantemente no mundo moderno, a  
propriedade privada se generaliza e se impõe socialmente como modo  
de exclusão que expropria os meios de trabalho do trabalhador. Por  
isso, mesmo presente em modos de produção antigos, em que houver  
comércio, a propriedade privada só passa a ser determinante ao  
fundar a exclusão que institui o capital industrial e o trabalho  
assalariado como opostos. Se antes ela era só o pressuposto da  
circulação de mercadorias, agora a propriedade privada tem a ver com  
o despojamento dos trabalhadores, fundando daí, o sistema de  
exploração da força de trabalho e de criação do excedente econômico.  
A reflexão de Grespan permite compreender que o fundamento jurídico da  
propriedade privada, ao se autonomizar da produção, torna-se o próprio princípio de  
redistribuição do mais valor no capitalismo financeirizado. No setor aeroespacial, essa  
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lógica manifesta-se de forma exemplar: o direito assegura juridicamente a apropriação  
de parcelas do mais valor socialmente produzido por empresas que não  
necessariamente participam do processo produtivo, mas que se legitimam como  
detentoras de contratos, patentes e títulos derivados. A forma jurídica, nesse sentido,  
não é mero reflexo da economia, mas instrumento ativo de redistribuição seletiva, ao  
garantir que as expectativas de valorização possam ser reconhecidas, transferidas e  
capitalizadas.  
Desse modo, o capital fictício depende inteiramente da confiança jurídica sem  
contrato, não há especulação possível. A juridicidade torna-se a condição de existência  
do valor fictício, assegurando que fluxos futuros possam ser convertidos em capital  
presente. Essa é a essência da redistribuição mediada pelo direito: ao legitimar a  
antecipação de valor futuro, o ordenamento jurídico perpetua a ficção da valorização  
autônoma e, com isso, consolida a hegemonia do capital portador de juros sobre a  
totalidade da reprodução social.  
A análise do capital fictício e da forma jurídica como garantias da redistribuição  
evidencia que o estado não é uma instância exterior ou meramente reguladora das  
relações de produção, mas parte constitutiva da própria engrenagem de valorização  
do capital. Através dos contratos, da política fiscal, das emissões de dívida e da  
normatividade jurídica que as sustenta, o estado atua como garantidor da confiança e  
fiador da circulação do valor fictício, convertendo expectativas em ativos, promessas  
em capital e despesas públicas em rentabilidade privada. Essa estrutura revela que a  
acumulação no capitalismo contemporâneo depende de uma complexa arquitetura  
jurídico-política em que a forma estatal é chamada a assegurar a continuidade da  
valorização mesmo diante do esgotamento da produção material de valor. No caso do  
setor aeroespacial, o estado não apenas contrata e financia: ele redistribui o mais-valor  
socialmente produzido entre as frações do capital monopolista, legitimando  
juridicamente a apropriação privada do fundo público sob o pretexto da inovação  
tecnológica e da segurança nacional. Assim, o próximo capítulo analisará o estado  
como engrenagem de redistribuição, destacando como sua atuação jurídica, fiscal e  
institucional se converte em mediação necessária para a reprodução ampliada do  
capital, consolidando o vínculo estrutural entre direito, finanças e poder político.  
2.8. O estado como engrenagem de redistribuição  
A dinâmica anteriormente analisada permite compreender que a existência e a  
expansão do setor aeroespacial contemporâneo dependem estruturalmente da ação  
estatal. A forma jurídica e os contratos públicos, elementos centrais do processo de  
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valorização fictícia, só adquirem eficácia e estabilidade porque o estado atua como  
mediador e garantidor da redistribuição do mais-valor. É ele quem cria as condições  
institucionais que tornam possível a autonomização do capital em relação à produção  
material, oferecendo o suporte jurídico e financeiro indispensável para a circulação de  
títulos, ações, patentes e contratos baseados em expectativas futuras.  
O papel do estado é, portanto, insubstituível. Sem sua intervenção direta por  
meio de contratos públicos, incentivos fiscais, compras antecipadas, garantias  
financeiras e, sobretudo, da produção de formas jurídicas que assegurem  
previsibilidade e segurança aos investidores , o setor aeroespacial, tal como se  
consolidou nas últimas décadas, não existiria. O estado funciona como fiador da  
confiança e gestor do risco: ao mesmo tempo em que transfere recursos públicos para  
a esfera privada, assegura a legitimidade desse movimento através de instrumentos  
jurídicos que revestem a redistribuição do mais-valor de uma aparência de  
neutralidade técnica e racionalidade administrativa, que, até certo ponto, é, de fato,  
impessoal. Assim, o aparato estatal não apenas regula o capital, mas participa  
ativamente da produção e reprodução de suas formas, como um terceiro agente  
impessoal, porém atuando nos interesses da acumulação capitalista, que são  
expressões pessoais dos interesses da burguesia.  
O caso norte-americano evidencia de modo exemplar essa dinâmica. Programas  
públicos como o Commercial Lunar Payload Services (CLPS) e o Near Space Network  
da Nasa garantem não apenas contratos de valor elevado, mas uma estrutura de  
previsibilidade que ancora o fluxo financeiro de empresas privadas. Entre 2019 e  
2024, o CLPS previu um teto de 2,6 bilhões de dólares em contratos até 2028,  
enquanto a Near Space Network atingiu valor potencial de 4,82 bilhões (NASA, 2024;  
NASA, 2025). Mesmo empresas que acumulam prejuízos expressivos, como a Intuitive  
Machines que registrou perdas de 37,9 milhões de dólares em 2021, 5,5 milhões  
em 2022 e 56,2 milhões em 2023 e a Redwire Corporation, com resultados  
negativos de 61,5 milhões (2021), 130,6 milhões (2022) e 27,3 milhões (2023)  
(INTUITIVE MACHINES, 2023; 2024; REDWIRE CORPORATION, 2022; 2024), mantêm  
elevados níveis de capitalização e confiança do mercado em razão da solidez  
contratual com o estado. A Redwire, por exemplo, encerrou 2023 com carteira  
contratada de 372,8 milhões de dólares; já a Intuitive Machines, somente com o CLPS,  
recebeu ordens de serviço de 77 milhões (2019) e 77,5 milhões (2021) (NASA, 2019;  
2021).  
Esses dados demonstram que o estado norte-americano não é um mero  
comprador de serviços espaciais, mas o núcleo organizador da redistribuição de valor  
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entre as frações do capital. Ao converter contratos públicos em garantias financeiras,  
o estado transforma o fundo público em ativo rentável, ancorando fluxos de capital  
fictício que sustentam avaliações de mercado e ciclos de investimento. A forma jurídica  
dos contratos e das parcerias público-privadas é o mecanismo que permite essa  
conversão, pois confere segurança jurídica às promessas de valorização,  
transformando expectativas futuras em direitos presentes, reconhecíveis e negociáveis.  
Esse processo revela que o setor aeroespacial, longe de ser uma exceção ou  
uma extravagância tecnológica, constitui uma das expressões mais refinadas do  
capitalismo financeirizado. Nele, a produção direta de bens é substituída pela  
administração jurídica do valor, e o crescimento decorre não do aumento da  
produtividade, mas da capacidade institucional de garantir fluxos de valorização. O  
capital, já incapaz de expandir-se mediante a simples ampliação da produção material,  
busca reter valor, antecipar ganhos e destruir excedentes, tudo sob formas contratuais  
e normativas que lhe confiram aparência de racionalidade e legitimidade social.  
Como já se viu até aqui ao longo do texto, o que circula não é valor efetivamente  
produzido, mas a expectativa juridicamente assegurada de sua futura realização. No  
caso do setor aeroespacial, essa expectativa é convertida em ativo negociável por meio  
da autoridade do estado, que produz as formas jurídicas e orçamentárias capazes de  
sustentar a credibilidade desses fluxos. Trata-se, portanto, de um capital garantido  
juridicamente, ainda que desvinculado da produção e frequentemente improdutivo do  
ponto de vista social.  
Como assinalam François Chesnais (1995)33 e István Mészáros (2011)34, o  
estado moderno não desaparece com a financeirização; ao contrário, ele assume papel  
cada vez mais ativo na reprodução ampliada do capital, convertendo sua estrutura  
normativa e fiscal em instrumento de transferência permanente de valor. No caso  
estadunidense, o complexo industrial-militar e o setor aeroespacial são exemplos  
privilegiados dessa engrenagem: áreas em que o estado atua simultaneamente como  
contratante, financiador, garantidor jurídico e propagador de confiança no mercado,  
assegurando a circulação do capital portador de juros e o prolongamento da  
33 “[…] despesas de pesquisa e desenvolvimento-militar, que incluem, evidentemente, a indústria nuclear  
de objetivos militares e uma parte considerabilíssima das pesquisas espaciais, constituem de longe o  
item mais importante da P&D financiada pelo estado nos grandes países da OCDE.” (CHESNAIS, 1995,  
p. 137)  
34  
“O ‘capitalismo avançado’ também inventa um tipo de produção – centrado em torno do complexo  
industrial/militar em relação ao qual o tradicional desafio do consumo (utilidade) só se aplica, se tanto,  
marginalmente. Ao mesmo tempo em que consomem destrutivamente, na sua produção, imensos  
recursos materiais e humanos, os produtos resultantes desse processo podem juntar-se às montanhas  
de mercadorias ‘consumidas’ já no momento em que atravessam os portões das fábricas.” (MÉSZAROS,  
2011, p. 640)  
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acumulação.  
Assim, o estado cumpre uma função dupla e dialética: de um lado, atua como  
instrumento político-jurídico de estabilização do capital, oferecendo previsibilidade e  
proteção contra as oscilações da concorrência; de outro, serve como mediador da  
redistribuição do mais-valor, ao canalizar o excedente socialmente produzido para  
setores improdutivos, que operam com base em contratos e ativos fictícios. A forma  
jurídica é o elo que une essas duas dimensões, pois transforma a apropriação seletiva  
de recursos públicos em uma operação formalmente legítima e socialmente aceitável.  
Portanto, o estado aparece não como um ator externo à economia, mas como  
uma forma necessária da reprodução do capital, cuja função é garantir a circulação e  
a valorização do mais-valor sob novas condições históricas. Ao sustentar juridicamente  
o capital fictício, o estado não apenas preserva a coesão do sistema, mas também  
institucionaliza a assimetria de poder entre as frações do capital. Sua atuação é a  
engrenagem que mantém em funcionamento o circuito da redistribuição, assegurando  
que o valor socialmente produzido seja continuamente reconduzido ao circuito do  
lucro privado.  
Em síntese, o estado é o mediador que transforma a fragilidade da acumulação  
contemporânea em estabilidade aparente. Ele institui juridicamente a ficção da  
valorização contínua, converte dívida em ativo, expectativa em propriedade e gasto  
público em lucro. Nesse movimento, o direito cumpre a função de tornar o irracional –  
a acumulação sem produção em algo racionalmente administrável, dando à crise  
estrutural do capital uma aparência de normalidade. O estado, enquanto engrenagem  
de redistribuição, é, portanto, o ponto de convergência entre o capital fictício e a forma  
jurídica: o dispositivo que garante, simultaneamente, a permanência da valorização e  
a ilusão de sua legitimidade.  
Considerações finais  
A análise desenvolvida ao longo deste artigo demonstrou que a exploração  
aeroespacial, situada, em grande medida, no interior do departamento III da economia  
capitalista, constitui uma das expressões mais avançadas da atual fase de valorização  
do capital. Diferentemente dos departamentos I e II voltados à reprodução do capital  
por meio da produção de bens de produção e de consumo , o departamento III opera  
sob uma lógica distinta: sua função estrutural é redistribuir e absorver o mais valor  
produzido socialmente, sustentando a acumulação por aparatos jurídico-financeiros  
com a mediação do estatal. No caso do setor aeroespacial, essa função assume uma  
forma particularmente complexa, caracterizada pela destruição controlada de valores  
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A exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital portador de juros  
e pela conversão do não-retorno à esfera social em elemento funcional à continuidade  
da acumulação capitalista.  
A investigação expôs que o processo de equalização do mais-valor, conforme  
delineado por Marx no Livro III de O capital, não se realiza por meio dos mecanismos  
espontâneos de mercado. Ele é politicamente dirigido e juridicamente garantido, por  
meio de mecanismos que se distanciam cada vez mais da produção real de valor,  
expressando a incapacidade do capital de expandir-se unicamente pela via da  
produção material. Nesse novo cenário, a equalização ocorre com a necessária  
intervenção da financeirização e da criação de mercados artificiais de valorização,  
sustentados pelo estado e pelo direito. O setor aeroespacial em articulação direta  
com o complexo industrial-militar exemplifica essa transição, convertendo  
expectativas futuras em ativos presentes e institucionalizando a valorização fictícia sob  
a aparência de inovação tecnológica e racionalidade científica, amalgamando a  
destruição de valores do departamento III à tendência de acúmulo de capital fictício.  
O capital fictício, longe de representar uma anomalia do sistema, é parte  
constitutiva de sua reprodução contemporânea. Por meio de contratos públicos, títulos  
de dívida e instrumentos financeiros derivados de promessas de retorno, o capital  
antecipa lucros e transforma expectativas em valor negociável. O estado desempenha  
papel central nesse processo: garante previsibilidade, socializa riscos e assegura  
juridicamente a continuidade da valorização em setores que, isoladamente, seriam  
insolventes. A ação estatal converte o fundo público em ativo rentável, transferindo  
continuamente o mais-valor produzido por toda a sociedade para um núcleo restrito  
de corporações tecnológicas e financeiras. Assim, o estado não apenas regula, mas  
produz e reproduz as formas de valorização, conferindo-lhes legitimidade e  
estabilidade institucional.  
A forma jurídica aparece, nesse contexto, como o elemento que dá coesão e  
aparência de racionalidade à dinâmica de destruição e especulação. É o direito que  
possibilita a conversão da incerteza em propriedade, da expectativa em título e da  
promessa em ativo financeiro. Ao instituir contratos, garantias e marcos normativos –  
como os Artemis Accords e os grandes programas da Nasa , a forma jurídica cria a  
ilusão de estabilidade e previsibilidade em um campo marcado pela incerteza e pela  
improdutividade sob o aspecto reprodutivo da acumulação. Assim, o direito não  
apenas reflete a realidade econômica, mas a constitui: ele traduz a irracionalidade da  
valorização sem produção em norma jurídica e, desse modo, legitima a redistribuição  
assimétrica do valor sob a aparência de legalidade e neutralidade técnica.  
A chamada “colonização espacial” deve, portanto, ser compreendida como uma  
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nova fase  
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ideologia funcional à reprodução do capital. Sob o discurso do progresso científico e  
da exploração interestelar, o capital reconstrói suas próprias fronteiras de valorização  
em torno de promessas cósmicas, convertendo o espaço exterior em um novo campo  
de acumulação financeira. A atual corrida espacial não é, infelizmente, expressão de  
emancipação tecnológica, mas de uma crise de valorização prolongada, na qual o  
capital depende cada vez mais da especulação, da antecipação e da destruição  
controlada. O setor aeroespacial, ao lado do complexo industrial-militar, transforma o  
orçamento público e a técnica científica em mecanismos de sustentação de uma  
acumulação que já não se baseia na produção de valor, mas na sua representação  
jurídica e contábil.  
Desse modo, o estado se consolida como engrenagem da redistribuição. Sua  
atuação simultaneamente legislativa, fiscal e contratual é o elo entre o capital  
fictício e a forma jurídica, permitindo que a valorização aparente se mantenha mesmo  
diante da estagnação material da economia. O estado garante a confiança dos  
investidores, assegura a liquidez dos ativos e preserva a coesão sistêmica mediante a  
transformação do fundo público em lucro privado. A legalidade, nesse processo,  
encobre a violência estrutural da acumulação, revestindo de racionalidade o que, em  
essência, é uma política de esgotamento do comum.  
Em síntese, a exploração aeroespacial como fronteira de valorização do capital  
portador de juros representa a forma histórica pela qual o capitalismo contemporâneo  
prolonga sua existência. Inscrita no departamento III, ela expressa a tentativa do  
sistema de reproduzir-se por meio do capital fictício, mediado pelo direito, assegurado  
pelo estado. Trata-se, contudo, de um fenômeno ainda em curso, cujos  
desdobramentos permanecem abertos no tempo histórico. O desafio teórico consiste  
em compreender que essa nova fronteira não é promessa de futuro, mas  
prolongamento de uma crise estrutural que o capital tenta ocultar sob a ficção jurídica  
da valorização. Longe de simbolizar uma utopia científica, a exploração espacial  
representa a mais sofisticada forma jurídica de destruição planejada, expressão da  
permanência de um sistema que, incapaz de superar suas próprias contradições,  
transforma o próprio limite o cosmos em mercadoria.  
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Como citar:  
SANTOS, Rafael Silva dos; FURTADO, Mateus Lima. A exploração aeroespacial como  
fronteira de valorização do capital portador de juros: especulação e formas jurídicas.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 342-384, 2025.  
Verinotio  
384 |  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 342-384 jul.-dez., 2025  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.772  
Ecologia e modernidade: contribuições de  
Rousseau para o desenvolvimento do debate  
contemporâneo  
Ecology and modernity: Rousseau's contributions to  
development of the contemporary debate  
Daniel do Val Cosentino*  
Henrique Segall Nascimento Campos**  
Resumo: As diversas filosofias que animam o  
ideário relativo aos problemas ambientais são  
tão diversas, que o julgamento sobre esse amor  
devotado à natureza, pode ser, claramente,  
questionado. Entendemos, por sua vez, que  
Rousseau, um dos representantes, por assim  
dizer, dessa modernidade que poderia ser  
criticada pelos “verdes” mais radicais, por ser  
antropocêntrico, ao nosso ver, tem contribuições  
importantes a oferecer para o debate teórico que  
se coloca a respeito da temática ecológica. Ao  
acompanharmos a crítica das ciências, das artes,  
das instituições humanas, a partir do conceito de  
natureza, e também do homem de natureza,  
podemos extrair do pensamento de Rousseau  
elementos importantes para reforçar o debate  
em ciências humanas sobre o pensamento  
ecológico advogado nos dias atuais. Portanto, do  
exame das artes percebemos os problemas da  
relação humana com a natureza e, por  
conseguinte, o sentido da reforma que precisa  
ser levada à diante, contrariando a condição de  
decrepitude humana em sociedade que fazem o  
homem tirano de si mesmo e da natureza como  
um todo.  
Abstract: The various philosophies that animate  
the ideology related to environmental problems  
are so diverse that the judgment on this love of  
nature can clearly be questioned. In turn, we  
believe  
that  
Rousseau,  
one  
of  
the  
representatives, so to speak, of this modernity  
that could be criticized by the more radical  
“greens” for being anthropocentric, in our view,  
has important contributions to make to the  
theoretical debate on ecological issues. By  
following the critique of the sciences, the arts  
and human institutions, based on the concept of  
nature, and also of the man of nature, we can  
extract from Rousseau's thought important  
elements to reinforce the debate in the human  
sciences on ecological thinking that is currently  
being advocated. Therefore, by examining the  
arts, we can see the problems of the human  
relationship with nature and, consequently, the  
sense of reform that needs to be carried out, in  
order to counteract the condition of human  
decrepitude in society, which makes man a  
tyrant of himself and of nature as a whole.  
Keywords: Ecology; nature; Society; arts;  
sciences.  
Palavras-chave: Ecologia; natureza; sociedade;  
artes; ciências.  
Introdução  
De acordo com Luc Ferry, em A nova ordem ecológica, onde são percebidos  
debates teóricos que tenham por objeto a ecologia, as questões são comumente  
* Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Economia Aplicada da Universidade Federal de  
Ouro Preto (Ufop). E-mail para contato: danielc@ufop.edu.br.  
** Pós-Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Economia Aplicada Universidade Federal de Ouro  
Preto (Ufop). Na condição de bolsista, agradeço à Ufop e à Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (Proppi-  
Ufop) pela bolsa institucional concedida, no período de 12 meses, para o estágio pós-doutoral, o que  
permitiu o desenvolvimento de meus trabalhos e de minha formação. E-mail para contato:  
henriquesegall@gmail.com.  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
Verinotio  
nova fase  
   
Daniel do Val Cosentino; Henrique Segall Nascimento Campos  
formuladas a partir de três correntes bem distintas, para não dizer, opostas, em seus  
princípios, no que se refere ao elemento fundamental do problema, qual seja, a relação  
entre homem e natureza. Em linhas gerais, ao nosso ver, sejam quais forem as  
correntes de pensamento que orientem os debates, sempre há implícita uma ideia de  
limite, seja a ideia de um limite real, o fim dos recursos naturais, o fim da diversidade  
da fauna, o fim da vida, seja a ideia de limite das formas de vida humana e suas  
atividades que, invariavelmente, atuam no sentido de fazer da natureza objeto para  
seus interesses. Num outro sentido, parte dos estudos associam aos tempos atuais a  
noção de colapso (MARQUES, 2016), de catástrofe (STENGERS, 2015) e, ainda, de  
escatologia (DANOWSKI; CASTRO, 2017). A ideia de interdição, de proibição, de  
normatização, em grande medida, procura atacar a atividade humana, o atributo  
humano histórico e socialmente determinado: viver segundo a produção e reprodução  
de seu modo de vida. Os debates das ciências humanas sobre ecologia, portanto, em  
sua maioria, trabalham com concepções de pensamento que trazem a ética filosófica  
(OLIVEIRA, 2008) e as questões morais como disciplina obrigatória. Nesse sentido,  
com o intuito de ampliar a influência da tutela normativa, precisam reabilitar a natureza  
e, por conseguinte, instituir novos sujeitos de direito, a começar pelos animais. Ou  
seja, a ideia de uma norma para restringir a atividade humana sobre a natureza sempre  
é tema comum. Portanto, precisam localizar os sistemas de ideias que teriam explicado,  
ou justificado, um tipo de ação que levasse em questão o problema que enfrentamos  
nos tempos atuais, contra a qual uma concepção de espaço e de tempo a ser projetado  
no futuro, como dimensão do que há de ser feito no presente, precisa ser lançada,  
para impedir que o curso das ações humanas que não são controladas, passem a ser.  
No entanto, as diversas filosofias que animam, de forma secreta ou não, o ideário  
relativo aos problemas ambientais são tão diversas, que o julgamento sobre esse amor  
devotado à natureza, pode ser, claramente, questionado.  
Nesse sentido, a corrente de pensamento, a mais comum, a menos dogmática,  
defende a ideia de acordo com a qual, pela natureza, devemos proteger o homem e  
proteger o homem de si mesmo, se ele deixar de brincar de “aprendiz de feiticeiro”  
(FERRY, 1994, p. 22). Ao lado disso, o meio ambiente não teria valor em si e, caso  
permaneça o comportamento predatório em relação ao meio que o cerca, o ser  
humano corre o risco de colocar sua própria existência sob ameaça. Trata-se, por seu  
turno, de uma concepção fortemente marcada por um humanismo e por um  
antropocentrismo, de acordo com a qual a natureza é compreendida, na relação com  
o humano, indireta e subsidiariamente, razão pela qual não se vê nela entidade dotada  
de valor absoluto. Em razão dessa simplificação axiológica, por outro lado, não se  
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nova fase  
Ecologia e modernidade: contribuições de Rousseau  
garante o gozo de quaisquer direitos.  
Uma segunda concepção, diferentemente, avança no sentido de propor uma  
consideração moral a alguns seres não humanos, valendo-se de um critério utilitarista,  
de acordo com o qual não basta apenas buscar a satisfação dos interesses humanos,  
mas, ainda, diminuir as possibilidades de sofrimento no mundo e, por outro lado, se  
possível, aumentar as chances de bem-estar. Nesse caso, há toda uma compreensão  
em torno da ideia de que seres sencientes, capazes da percepção do prazer e da dor,  
devem ser considerados sujeitos de direito, razão pela qual há, amplamente  
difundidos, slogans que advogam pela libertação e pelo fim do sofrimento animal.  
Gradativamente, já percebemos, nesta corrente de pensamento, um ataque ao  
antropocentrismo e à centralidade do humano, no momento em que os animais são  
incluídos na tutela jurisdicional, em pé de igualdade com o sujeito de direito  
tradicional.  
Há, ainda, uma terceira concepção ecológica, talvez a mais influentes nos dias  
atuais, a mais radical, leva à diante uma profunda crítica à modernidade, entendendo-  
se por isso o ideário cartesiano que distingue res cogitans e res extensa, ou seja,  
pensamento e corpo, alma e corpo, portanto, natureza como coisa e animais como  
máquinas e, de outro lado, o pensamento de Bacon e, sobretudo, a relação entre  
conhecimento e poder. Essa concepção teórica, mais radical, amplia, diversifica, para  
toda a natureza, a biosfera, as árvores, as plantas, a tutela moral e jurisdicional. Por  
mais estranho que possa parecer, essa corrente de pensamento é aquela que mais  
sistemática e coerentemente produz um pensamento teórico e criticamente elaborado  
contra o humanismo e contra o antropocentrismo, desde a sua concepção moderna de  
ciência e de arte. Essa concepção, por seu turno, tende a se tornar corrente dominante.  
Um dos expoentes, senão o maior expoente dessa concepção de pensamento, é o  
filósofo alemão Hans Jonas, autor da obra Princípio responsabilidade, publicada em  
1970. Ao lado desse, no cenário francês, embora tenha feito boa parte de sua carreira  
acadêmica nos Estados Unidos, temos o filósofo Michel Serres. Trata-se, a partir de  
então, de considerar não mais o homem como centro do mundo, mas o cosmo, a vida,  
que deve, então, ser protegida da ameaça humana, sobretudo, protegida da técnica e  
da ciência.  
Entendemos, por sua vez, que Rousseau, um dos representantes, por assim  
dizer, dessa modernidade que poderia ser criticada pelos “verdes” mais radicais, por  
ser antropocêntrico, ao nosso ver, tem contribuições importantes a oferecer para o  
debate teórico que se coloca a respeito da temática ecológica. Acreditamos que seja  
possível defender uma perspectiva teórica do debate em ecologia, a partir das  
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nova fase  
Daniel do Val Cosentino; Henrique Segall Nascimento Campos  
contribuições do pensamento de Rousseau, por mais que ele seja entendido como um  
pensador da antinatureza (terminologia usada por Ferry), da liberdade, do  
aperfeiçoamento, que teria estabelecido rupturas radicais entre o mundo animal,  
natural e humano, em nome da cultura, da sociedade, das instituições. Ao proceder,  
por sua vez, a uma crítica às ciências, ao emprego das artes, das instituições humanas,  
a partir do conceito de natureza, e também do homem de natureza, podemos extrair  
do ideário do genebrino aspectos do pensamento ecológico que poderiam ser  
advogados nos dias atuais, sobretudo se levarmos em conta sua concepção de  
natureza como normatividade, que pode ser o indicativo de uma reforma nas ações e  
nos procedimentos dos homens em suas instituições (grifo nosso), compatível com a  
noção de limite que se estabelece no debate ecológico. Em resumo, dessa crítica à  
cultura humana, leia-se ciências e artes, qual seria a natureza que precisa ser  
respeitada? Quais seriam os operadores dessa natureza que precisariam ser  
traduzidos no saber-fazer artístico? Qual o tipo de arte que precisa ser praticada para  
que a humanidade supere suas limitações, justamente porque esqueceu-se de ouvir a  
voz da natureza? Há que se observar, ainda, um outro aspecto: não esperar da  
proposta de leitura do pensamento de Rousseau um anti-humanismo. Aliás, é no  
terreno da possibilidade do aperfeiçoamento, de uma não oposição entre natureza e  
artifício, que pode ser depreendido um respeito e uma preocupação com a natureza  
que possa contribuir para amplitude dos debates ecológicos atuais, para além do anti-  
humanismo veiculado pelas alas mais extremistas dos movimentos ecológicos atuais.  
Em suma, para justificar essa proposta de leitura, exploraremos os seguintes aspectos  
em seu pensamento: a crítica às ciências e artes como aspecto da reforma da conduta  
e das instituições humanas; a concepção de natureza que se extrai dessa crítica; a  
relação de proximidade e inseparabilidade entre natureza e artifício. Dessa forma,  
acreditamos que o pensamento de Rousseau estaria mais próximo, para o debate  
ecológico, de uma reforma da cultura, da atividade humana, a partir de uma ideia de  
natureza de caráter normativo, do que de uma habilitação radical da natureza, como  
sujeito de direito, que invalide qualquer atividade humana.  
1. Rousseau e suas intuições fundamentais  
Desde o início de suas pesquisas, a partir do relato amplamente divulgado em  
seus escritos, em torno da iluminação fundamental de Vincennes, quando, no caminho  
ao presídio em que faria visita a Diderot, Rousseau, na posse do panfleto que divulgava  
a pergunta do concurso da Academia de Ciências de Dijon, preocupou-se com  
problemas sociais. Naquele contexto foi capaz de refletir e traduzir a generalidade de  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X, v. 30 n. 2, pp. 385-401 jul.-dez., 2025  
nova fase  
Ecologia e modernidade: contribuições de Rousseau  
suas preocupações filosóficas em duas intuições básicas: uma primeira afirmava ser o  
homem contemporâneo às vezes mal e infeliz, por conta da forma da sociabilidade e  
das instituições políticas em que vive; e uma segunda que garante, embora constatado  
o quadro presente de infelicidade e maldade generalizadas, ser a natureza humana  
essencialmente boa e livre. Nesse sentido, a natureza, esse conceito amplamente usado  
em Rousseau e de difícil definição, serviria, sobretudo a partir do Discurso sobre a  
origem e desigualdade entre os homens, de medida para a compreensão do grau de  
decrepitude que o homem se encontrava e, em razão disso, servir de guia para a  
propositura teórica das reformas institucionais que ele pretendia levar à diante.  
A ideia de natureza (voltaremos a esse tema mais adiante) por ele empregada  
funcionaria para explicar muitos aspectos da vida, termo a ser articulado e empregado  
para acionar diversos aspectos de seu pensamento crítico ao social, político e humano  
de seu tempo: poderia ser usada como um ideal regulador; como uma hipótese  
metodológica a medir o grau de decrepitude do homem e avaliar os problemas do  
tempo presente; poderia ser usada para avaliar a moralidade humana; pela noção de  
respeito, poderia ser pensada a natureza como educadora, para bem avaliar o correto  
e ordenado processo de formação do homem, cujos ensinamentos Emílio deveria  
aprender e cujo percurso o preceptor deveria preservar ; num outro sentido, Rousseau  
seria um daqueles autores que dedicaram-se a criticar o desejo de tentar “domesticar”  
a natureza. Pelo artifício, pretendeu fazer com que da natureza houvesse a manutenção  
de sua autenticidade, da simplicidade, da rusticidade.  
Vejamos, então, como podemos recuperar aspectos de sua compreensão do  
problema, num trecho bastante elucidativo em O Emílio, em que ele trata de uma  
relação abusiva do homem com as artes e que merecia, segundo cremos, ser  
reformada. O genebrino se pronunciou assim:  
Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo  
degenera entre as mãos dos homens. Ele força uma terra a alimentar  
as produções de outra, uma árvore a carregar os frutos de outra.  
Mistura e confunde os climas, os elementos, as estações. Mutila seu  
cão, seu cavalo, seu escravo. Perturba tudo, desfigura tudo, ama a  
deformidade e os monstros. Não quer nada da maneira como a  
natureza o fez, nem mesmo o homem; é preciso que seja domado por  
ele, como um cavalo adestrado; é preciso apará-lo à sua maneira,  
como uma árvore de seu jardim. Sem isso, tudo iria ainda pior, e nossa  
espécie não quer ser moldada pela metade. No estado em que agora  
as coisas estão, um homem abandonado a si mesmo desde o  
nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos. Os  
preconceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as  
instituições sociais em que estamos submersos abafariam nele a  
natureza, e nada poriam em seu lugar. Seria como um arbusto, que o  
acaso faz nascer no meio de um caminho, e que os passantes logo  
fazem morrer, atingindo-o em todas as partes e dobrando-o em todas  
as direções.  
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Daniel do Val Cosentino; Henrique Segall Nascimento Campos  
É a ti que me dirijo, terna e previdente mãe, que soubeste agastar-te  
da estrada principal e proteger o arbusto nascente do choque das  
opiniões humanas! Cultiva, rega a jovem planta antes que ela morra;  
um dia, seus frutos serão suas delícias. Forma desde cedo um cercado  
ao redor da alma de teu filho; outra pessoa pode marcar o seu traçado,  
mas apenas tu podes colocar a cerca. (ROUSSEAU, 1995, v. 4, p. 245)  
A partir do trecho acima, recolhemos alguns entendimentos: em primeiro lugar,  
há, claramente, em tom de denúncia, no tempo presente, em que as instituições  
humanas são colocadas em questão (artes, ciências, cultura, educação, política), numa  
relação com a natureza marcadamente conflitante. As artes nada mais fazem do que  
deformá-la, pervertê-la, corrompê-la, seja a natureza física em torno da qual o homem  
se desenvolve, seja a natureza humana. Se determinado tipo de arte produz esses  
efeitos e, em razão disso, são dignas de condenação, interessa saber qual a arte e qual  
a melhor forma de relacionar-se com o mundo que não produza, afinal, as perversões  
que Rousseau, insistentemente, ao longo de sua obra, nos leva a perceber. Isso sugere  
uma determinada natureza, por outro lado, que não pode, nem deve, para o bem da  
humanidade inclusive, ser alterada e transformada da forma pela qual vem sendo  
transformada. Ou seja, se as artes e ciências são, como se sabe, próprias da capacidade  
humana natural, do aperfeiçoamento [perfectibilité1], isso nos leva a crer que os ganhos  
dessa alteração que a atividade humana impõe a si mesmo e ao mundo precisam ser  
propriamente e adequadamente praticados. Dito isso, há que se perceber o tom da  
discussão: a crítica às ciências e às artes não levam ao seu abandono e sua rejeição  
absoluta, mas, por outro lado, uma reforma de suas formas de execução. Ao lado disso,  
entende-se que há algo da natureza que precisa ser mantido para o bom proveito da  
vida humana, se a perspectiva humanista (antropocêntrica?) da discussão pode ser  
mantida: para que a natureza, ou melhor, certa concepção de natureza precisa ser  
defendida, que seja mantido um respeito aos seus ordenamentos internos, contra essa  
forma deturpada de relação, capaz de produzir monstruosidades.  
Num outro aspecto, as artes, quando são questionadas, o são para validar a  
preservação de uma concepção de natureza que opere no sentido de uma norma, seja  
para controlar os efeitos deletérios da liberdade humana, seja para lembrar o homem  
1
Na pena de comentaristas, esse princípio que a natureza estabelece para o homem sugere, como  
“antinatureza”, a possibilidade de acordo com a qual a cultura seria levada à cabo, em termos subjetivos,  
se as circunstâncias externas obrigassem o homem a se manter vivo, para além das estabilidades  
comuns percebidas no idílio do estado de natureza. Derathé comenta que “por esta perfectibilidade  
Rousseau entende o poder de desenvolver certas faculdades que o homem no estado de natureza possui  
apenas potencialmente e entre estas faculdades virtuais ele coloca não só a sua imaginação que se  
segue da primeira, mas sobretudo a razão cujo desenvolvimento é muito mais tardio. A ideia fundamental  
de Rousseau é que, por uma sabedoria da natureza, as faculdades do homem se desenvolvem somente  
no momento em que elas se tornam necessárias para sua conservação” (DERATHÉ, 2011, p. 9, tradução  
nossa).  
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daquilo que seria próprio de sua condição e que foi, na sociabilidade, esquecido. Mais  
uma vez, a impressão que se tem, como sempre sustentou em seu Discurso sobre a  
origem da desigualdade, que a natureza em geral e o estado de natureza humano em  
particular - no qual boa parte da vida ainda era conduzida segundo os operadores da  
física, força e movimento, que exerciam influência decisiva na vida dos seres em geral  
eram hipoteticamente trazidos à baila para servir de medida dos problemas que o  
curso da história humana foi capaz de produzir. Diante disso, a própria ideia de  
condição natural, ou original, se reforça não como lugar, condição, ou situação para a  
qual o homem deveria retornar; lembremos, o estado de natureza, para Rousseau, não  
teria existido, embora fosse possível supô-lo, como hipótese metodologicamente  
condicionada2. Ressaltar a ideia de natureza, lamentar que algo da natureza foi  
desprezado ao ponto de não reconhecermos mais, no caso da humanidade, o que é  
próprio do homem3, em razão das daquilo que a cultura artificialmente produziu é  
advogar, pelo artifício, pela atual condição de homem racional e livre, uma forma de  
contemplar essa natureza e fazer algo de bom, no regime dos artifícios, que contenha  
os aspectos normativos e próprios dessa natureza idealmente concebida.  
Um outro aspecto que merece destaque no trecho acima é a importância dada  
à metáfora, à analogia estabelecida entre a educação, agricultura e jardinagem, num  
texto em que se discute uma filosofia da arte da educação, que se pretenda desnaturar  
o homem num contexto propriamente “antinatural” da sociabilidade Essa associação,  
ou analogia, feita com a educação, agricultura, ou também medicina (em outras  
passagens no Emílio isso é tematizado), não é gratuita. A concepção de arte como  
2 É de suma importância aqui, para ressaltar o sentido que tem o termo natureza e estado de natureza,  
para, justamente, como em várias oportunidades foi tratado, que sejam evitados os mal-entendidos da  
recepção de sua obra - como se ele estivesse a advogar o retorno ao natural, simplesmente, como se  
não fôssemos de certa forma naturais. Há, ainda, a discussão entorno da relação artifício e natureza em  
Rousseau, que não se estabelece, ao nosso ver, como oposição. Se a possibilidade histórica da existência  
dessa condição humana não se percebe objetivamente como um fato, a princípio, só poderia ser  
confirmada, por abstração e por aproximação, isso realizado pelos dados observacionais, muitos dos  
quais recolhidos dos relatos dos viajantes europeus à América. Vejamos seu texto: “Não é, pois, fácil  
empreendimento distinguir o que há de originário e de artificial na atual natureza do homem e conhecer  
profundamente um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente não  
existirá jamais e, do qual, deve-se contudo ter noções corretas para bem julgar de nosso estado  
presente.” (ROUSSEAU, 1985, p. 42)  
3
Vale a pena recordar a imagem recuperada da República de Platão por Rousseau, no “Prefácio” do  
“Segundo discurso”, em que ele indica sugere claramente a dimensão do controle que a natureza perdeu  
em face da amplitude dos progressos humanos, a ponto de não mais ser possível enxergar a correção  
de suas formas. “E como chegará o homem ao extremo de ver-se tal como o formou a natureza, através  
de todas as transformações produzidas em sua constituição original pelo passar do tempo e das coisas,  
e distinguir o que é sua própria essência do que as circunstâncias e os progressos acrescentaram, ou  
alteraram, em seu estado primitivo. À semelhança da estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as  
tempestades haviam desfigurado de tal maneira que mais se parecia a um animal feroz que a um Deus,  
a alma humana alterada no seio da sociedade por mil causas que se renovam sem cessar, pela aquisição  
de uma multiplicidade de conhecimentos e de erros, pelas mudanças sofridas na constituição dos corpos  
e pelo contínuo choque de paixões, adquiriu, por assim dizer, outra aparência, a ponto de estar quase  
irreconhecível.” (ROUSSEAU, 1985, p. 40).  
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imitação por exemplo, se quisermos defini-la, então, apenas sob esse prisma, guarda  
uma longa tradição, desde o Renascimento pelo menos. Os homens tomam a cultura  
da natureza e, de certo modo, as artes são exercitadas tomando-se como modelo a  
natureza (OLIVEIRA, 2002, p. 125). A mãe, portanto, na prescrição estabelecida por  
Rousseau, deveria se comportar como um agricultor, como um jardineiro, a preservar  
e proteger, no seu curso normal, o desenvolvimento da criança, como se de uma planta  
estivesse a tratar. Desse modo, aspectos dos procedimentos requeridos pelas artes e  
dos operadores mais internos da concepção de natureza podem ser, então, extraídos:  
a educação, no caso em questão, assim como a agricultura, precisa ter uma dimensão  
negativa, que não promova perturbações e alterações, ou abusos, internos ao que se  
entende ter no curso normal e ordenado do desenvolvimento de uma criança. O  
imperativo, então, que poderia traduzir essa prescrição operativa na arte e interditar  
certa atividade humana, a preservar o curso harmônico da natureza, deveria preocupar-  
se com as prematurações, antecipações, inversões. A natureza, até o momento, se  
pode servir de modelo para a conduta humana, para seus saberes, precisa ser  
obedecida, para ser respeitada. Se há algo da natureza que pode ser traduzido pela  
arte, esse conhecimento precisa, antes, saber de seus princípios fundamentais e, em  
larga medida, preservá-los, antes de ser capaz de alterá-los.  
2. A crítica às ciências e às artes: o tema do “Primeiro discurso”  
Em outros termos, se podemos sugerir uma interpretação da problemática  
ecológica e aproximar, atualizar digamos, o pensamento de Rousseau desse cenário,  
a discussão em torno da crítica às artes e ciências e a ideia de natureza nos permite  
transitar no campo da razão prática, ressaltada no Discurso das ciências e das artes  
justamente para tratar do  
problema moral do valor do saber técnico e artístico ao mesmo  
tempo que é colocado. A primeira parte do Discurso trata, não das  
causas da corrupção das almas, dado como um fato moral quase  
universal que tem a mesma periodicidade e realidade dos  
fenômenos da natureza mas de um tipo de história ou de genealogia  
catastrófica dos costumes, em que as ciências e as artes (quer dizer a  
técnica) foram implicados (DENEYS-TUNNEY, 2010, p. 41, tradução  
nossa).  
O teor dessa crítica nos permite, por sua vez, ao questionar o valor moral do  
saber humano, além da noção de progresso como marcha qualitativamente  
determinada da história humana, com a elaboração de sua concepção de natureza,  
realizar um conjunto de formas de conduta a serem levadas a cabo pela humanidade,  
em suas instituições as mais diversas, de modo que a corrupção de sua vida seja  
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dirimida. Rejeitar a corrupção humana e reformar suas instituições, pela moral seria,  
já, ao nosso ver, indicar o caminho a ser percorrido pela perspectiva moderna de seu  
pensamento, do que pode ser feito para reverter a corrupção de seu modo de vida,  
em nome de uma autenticidade, de uma espontaneidade, abandonos do modo de vida  
prescrito pela natureza. Como realizar, na dinâmica do artifício, as condições de  
liberdade que a natureza nos indicou, que seria importante manter e que nós  
recusamos a obedecer? Em resumo, as artes e ciências não são condenadas, no  
Primeiro discurso”, em si mesmas, mas são questionadas pelo uso social que são  
feitas delas, mais ou menos no mesmo sentido do teor da crítica de algumas alas  
específicas dos ecologistas dos dias atuais.  
Ao nosso ver, o artifício seria bem-vindo desde que pudessem ser respeitadas  
as regras da natureza que, vez por outra, somos incapazes de ouvir e de perceber. No  
nosso entendimento, quando as ciências e artes prejudicam o homem, levam-no à  
“corrupção pelo enfraquecimento e ao desequilíbrio relacional entre o que a alma  
pode, quer e imagina e o corpo sugere e realiza” (CAMPOS, 2015, p. 66). Isso se  
mostra, justamente, como veremos mais adiante, porque um dos operadores da  
concepção de natureza defendida por Rousseau atuam, no seu ordenamento comum  
e original, no regime da força, razão pela qual, a arte médica, se mal concebida,  
enfraquece e torna dependente o ser que deveria ser autossuficiente e livre. Nesse  
sentido, Rousseau, nas palavras de certos intérpretes, restabelece o questionamento  
das ciências e artes num contexto de reflexão social, de caráter histórico, econômico,  
político, ético e, ainda, estético, sobre o que é o homem, a possibilidade da felicidade,  
sobre a liberdade. Em outros termos, “a modernidade de Rousseau opera uma crítica  
da ideologia do progresso e da técnica no interior mesmo das Luzes. [...] Contra toda  
expectativa, nós veremos que Rousseau não se opõe sistematicamente à técnica e à  
natureza” (DENEYS-TUNNEYS, 2010, p. 23, tradução nossa).  
2.1. Bacon: arte e natureza  
Dito isso, cabe aqui um parêntese necessário, mesmo porque a razão pela qual  
a pergunta da Academia de Dijon e esse texto de Rousseau aparecem aqui expostos,  
devem-se ao tratamento dado às questões tipicamente setecentistas, ou seja, se o  
progresso das artes e das ciências contribuem para o aprimoramento dos costumes.  
Além disso, seria possível trazer o questionamento dessa visão de mundo para os dias  
atuais, quando, em larga medida, os principais críticos da modernidade, leia-se Hans  
Jonas, identificam na capacidade de manipulação e transformação da natureza a  
herança maldita da filosofia da ciência de Bacon. A atividade humana precisa ser  
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regulada, porque a esse saber também é um fazer, libertou demais o homem, a ponto  
de alterar a natureza e fazer com que o campo da tecnologia adquirisse movimento  
próprio, independente, em larga medida, da capacidade própria das sociedades de  
sobre ela intervir. Quer dizer, o tratamento dessas questões nos dias atuais, em que  
certo horror ao humano se põe como aspecto fundamental da crítica perpetrada por  
determinados grupos mais radicais de ecologistas4, trazem à baila, por outro lado, o  
problema da ciência e técnica como aspecto, atributo da atividade humana que poderia  
ser, em si mesmo, colocado em questão, ainda que o tratamento do contexto social e  
econômico em que essas atividades são levadas à diante, não seja incorporado na  
discussão.  
Portanto, esse debate que consolida a ideia de acordo com a qual a ciência e  
arte tem a tarefa da progressiva solução de nossas necessidades, sobretudo no tempo  
em que Rousseau escreve o Discurso sobre as ciências e as artes, não era nova. Foi  
com o Bacon que se sistematizaram concepções que pudessem salientar: a importância  
e a utilidade social da ciência; a institucionalização e a cooperação da investigação de  
modo a contribuir para o avanço do conhecimento; bem como, as promessas de  
melhoria da vida humana. Ao lado disso, a complexa aproximação, porque não  
identificação, entre conhecer e fazer5, levaram adiante uma reforma do conhecimento,  
contrariando a tradição aristotélica de ciência contemplativa e ampliando, ademais, a  
reflexão sobre associação íntima entre ciência e conhecimentos técnicos. De outro  
modo, foi no contexto em que Bacon viveu, que a separação entre arte e natureza  
perde sentido teórico e prático, justamente porque isso impedia o avanço do  
conhecimento. Pode-se dizer, então, que a arte humana e as diversas formas por meio  
das quais arte e natureza se interpenetram, que se traduzem em formas de intervenção  
e transformação, a ponto de serem classificadas como parte da história natural,  
4
Afinal, a transformação da natureza levada a cabo pela técnica e ciências autonomizadas no projeto  
da modernidade produziria, na ótica da chamada deep ecology e o ideário filosófico que a anima, efeitos  
negativos, que uma ética da vida deveria ser capaz de regular. A alteração técnica da natureza pelo  
homem, sem freios, de matriz baconiana, teria sido capaz de produzir não apenas monstruosidades,  
mas um mundo incompatível com a própria vida humana, que nos levaria ao questionamento do  
processo de autoextermínio da humanidade em escala planetária, ante os problemas ambientais dos  
tempos atuais (FERRY, 1994; JONAS, 2006).  
5 Vejamos com atenção, para melhor compreensão da amplitude do projeto de Bacon em trecho extraído  
do Novo órganon: “E a arte que aplicamos (que escolhemos chamar de Interpretação da Natureza) é a  
arte da lógica, embora com uma grande diferença, de fato uma diferença gigantesca. É verdade que a  
lógica comum também reivindica a concepção de preparo dos assistentes e suporte do intelecto, e nisto  
elas são iguais. Mas ela difere completamente da lógica comum de três formas específicas: a saber, em  
seu objetivo, em sua ordem de demonstração e nos pontos iniciais da investigação. Pois o objetivo que  
propomos para a nossa ciência é a descoberta das artes, não de argumentos, de princípios e não de  
inferências, a partir de princípios, de sinais e indicações de obras e não de raciocínios não prováveis.  
Resultados diferentes decorrem de nosso projeto diferenciado. Os outros derrotam e vencem seu  
adversário por meio de debates; nós conquistamos a natureza a partir do trabalho.” (BACON, 2014, p.  
29)  
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Ecologia e modernidade: contribuições de Rousseau  
mostram a dimensão cooperativa do artifício com os processos de desenvolvimentos  
normais da natureza. Ao lado disso, existe a noção segundo a qual a artes se prestam  
ao preenchimento das deficiências naturais, o que teria contribuído para o  
desenvolvimento da noção segundo a qual a arte humana é, ao mesmo tempo,  
dependente e auxiliar da natureza. Compreende-se, por isso, a necessidade de bem  
conhecer a natureza e, em certo aspecto, “torcer a cauda do leão”, alterando-a em  
seus aspectos mais íntimos, mas respeitando seus princípios fundamentais. Obedecer  
para dominar a natureza, esse seria o mandamento. Desse modo, “quaisquer efeitos  
produzidos pela natureza em seu próprio trabalho, ou pelo homem em conjunção com  
a natureza pela arte, são todos naturais, obras das criaturas de Deus” (OLIVEIRA, 2002,  
p. 132).  
Muito embora para Bacon a inclusão dos homens na ideia de natureza seja  
questionada, curiosamente, sua concepção permite receber tudo aquilo que pode ser  
transformado pelo engenho humano. Para reforçar a justificativa da inclusão das artes  
na História Natural, o autor inglês entende, e isso vai ao nosso ver, ser amplamente  
assimilado posteriormente, que o artificial não é essencialmente distinto do natural, de  
modo que as mesmas leis que regem o campo das artes podem ser percebidas na  
natureza. De acordo com ele, no tocante a esse cenário de interpenetração existente  
entre arte e natureza, a natureza se dividiria em três formas distintas: “A história da  
natureza é de três tipos: da natureza em seu curso normal, da natureza em seus erros  
ou variações e da natureza alterada ou trabalhada; isto é, história das criaturas, história  
das maravilhas e história das artes.” (BACON, 2007, p. 113) Esse curso comum da  
natureza, a primeira das formas elencadas por ele, tem na regularidade sua expressão  
comum, seja a regularidade observada nas estações climáticas, a geração e reprodução  
de animais e plantas, os movimentos celestes. A segunda forma, assume a forma do  
erro quando há violência sobre ela imposta, quando abandona seu curso normal,  
levando, em alguns casos, à compreensão dos processos que contribuiriam para a  
produção de monstruosidades, deformações, perversões. A terceira concepção, por  
sua vez, assume essa forma porque é modelada, alterada, por vezes constrangida, pela  
atividade humana.  
E quanto a sua composição, estamos construindo uma história não  
apenas da natureza livre e desimpedida (quando a natureza segue seu  
curso próprio e faz seu próprio trabalho), tal como a história dos  
corpos celestes e do céu, da terra e do mar, dos minerais, plantas e  
animais, mas muito mais da natureza confinada e domada e, assim, é  
pressionada e moldada. E dessa maneira, oferecemos uma descrição  
completa de todos os experimentos das artes mecânicas, todos os  
experimentos da parte aplicada das artes liberais e todos os  
experimentos de várias artes práticas que ainda não formaram uma  
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arte específica (contanto que tenhamos a oportunidade de investigar  
e que sejam relevantes para o nosso propósito). Além disso, (para ser  
claro) depositamos muito mais recursos nessa parte que na outra, e  
não demos atenção aos desgostos dos homens ou ao que eles acham  
atraente, já que a natureza revela-se mais pelo assédio da arte que  
por sua própria liberdade. (BACON, 2014, p. 33)  
Nesse sentido, além de reforçar a aproximação da natureza manipulada pela  
arte como aspecto do história natural que merece atenção, cabe reparar que as  
diferentes formas de manifestação dessa natureza não se configuram como modos  
restritos, mas distinções feitas em função de interesses práticos específicos,  
interpenetrando e influenciando mutuamente, umas às outras, dentro da natureza em  
geral. Mesmo que se possa querer operar uma separação radical entre natureza e  
natureza transformada, como aspecto da importante distinção do que pode ser  
espontaneamente encontrado no mundo da physis, a ideia mesma de natureza  
modelada, ao nosso ver, não anula, não apaga, não invalida o fato de acordo com o  
qual, alterada, a natureza como realidade material nunca é superada, mesmo quando  
incidem as diversas operações artísticas que pressupõem o télos próprio da atividade  
produtiva humana. Essa percepção de Bacon, ao nosso ver, central para a compreensão  
da coincidência, em determinado aspecto, entre natureza e arte, mostra que a natureza,  
ainda que tenha limites explícitos para sua manipulação e controle, ou que rejeite em  
termos ontológicos insuperáveis as manipulações desmedidas, torna-se aberta a novas  
formas de operação, liberando seus poderes ocultos, que antes se achavam envoltos  
na ordem do mistério, do proibido. Dito isso, a “junção entre natureza e arte num  
único tronco reflete a convicção de que toda matéria empresta-se a uma reprodução  
indeterminada dos efeitos, até uma recriação de novos efeitos engendrada pelo poder  
humano” (OLIVEIRA, 2002, p. 138).  
2.2. Rousseau e a ideia de natureza: ordem e normatividade  
Feito o parêntese, evidencia-se pela própria proposta do concurso da Academia  
de Dijon do qual participou Rousseau em 1750, que a associação entre saber e poder,  
as ciências e artes como elemento contribuinte ao progresso e melhoria da vida  
humana, sistematizada por Bacon, anos antes, encontrava-se, naquele tempo,  
amplamente consolidada.  
Essas ideias de Bacon que hoje são tratadas como objeto de escárnio mostram,  
ao bem da verdade, a dificuldade, até hoje discutida, de se estabelecer uma crítica ao  
modo de pensar a relação humana, em termos ecológicos, que não considere a  
discussão arte e natureza como um problema autenticamente humano, tomando o  
homem como ser natural. A discussão, muitas vezes, temos a impressão, giraria da  
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Ecologia e modernidade: contribuições de Rousseau  
seguinte forma: a discussão sobre as artes e ciências são discussões que envolvem a  
humanidade do homem, ao passo que a natureza, alienada do homem, é um problema  
biológico. A oposição entre natureza e arte que hoje se radicaliza e que serve de  
acusação aos modernos, acreditamos, não funcionava, à época, como hoje  
enxergamos. A própria concepção de identidade estabelecida entre natureza e arte  
nos sugere a complexidade da questão.  
Quando trazemos Rousseau para o debate, mostrando a coincidência de certos  
tratamentos dados, à época, ao campo das artes e natureza a partir de Bacon, pode-  
se dizer que, quando o genebrino trata da discussão, em termos normativos, da relação  
arte e natureza, a medicina e a educação por exemplo, a separação e a distinção entre  
o que é propriamente natureza e arte fica comprometida. Pode-se dizer, que, em  
Rousseau, segundo nosso entendimento, as artes trabalham dentro dos operadores  
da natureza que se pretende manter ou preservar, para o melhor desenvolvimento da  
vida humana. De outro modo, seríamos capazes de dizer que a arte é, antes, guiada  
por uma norma de operação interna ao campo da natureza, por exemplo, a força, do  
que ela própria criadora de uma operação que altere e inove a natureza absolutamente.  
Seria essa concepção antropocêntrica demais para invalidar sua importância para os  
fundamentos do debate em ecologia e ciências humanas?  
Nesse sentido, por exemplo, quando Rousseau critica a medicina, e não foram  
poucas as vezes em que ele se queixou do modo tradicional do exercício da arte  
médica, seja porque sua experiência pessoal com tratamentos médicos sempre  
resultou em dores e frustrações, seja porque ele pretendeu extrair daí consequências  
para a compreensão de sua reforma social, o fez para dizer que a medicina cria  
fantasias e ilusões, por se voltar, erroneamente, contra a natureza. A ideia, portanto,  
segundo a qual a medicina tradicional enfraquece o homem, que contribui mais para  
a morte do que para a vida, é radical porque mostra a desatenção aos operadores da  
natureza, quer dizer, ao não olhar para os seres naturais, para os animais, para o fluxo  
comum e normal da natureza. A prática comum das artes e ciências, aos olhos de  
Rousseau, não se debruça sobre o trabalho da natureza e, por isso, altera, corrompe,  
tanto a natureza, quanto o homem, em termos físicos e morais.  
Com tão poucas fontes de males, o homem no estado de natureza não  
tem qualquer necessidade de remédios, menos ainda de médicos; a  
espécie humana não está, neste assunto, em piores condições do que  
todas as outras e é fácil de saber dos caçadores em seus passeios eles  
encontram muitos animais enfermos. Vários são encontrados tendo  
recebido ferimentos consideráveis muito bem cicatrizados, que  
tiveram ossos, até mesmo membros dilacerados, recuperados sem  
outro cirurgião além do tempo, sem outro regime além de sua vida  
ordinária, e que não foram menos perfeitamente curados por não  
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nova fase  
Daniel do Val Cosentino; Henrique Segall Nascimento Campos  
terem sido atormentados com incisões, envenenados com drogas,  
nem enfraquecidos com dietas. Enfim, ainda que possa ser útil entre  
nós a medicina bem administrada, é sempre certo que o selvagem  
doente, entregue a si mesmo, não tem nada a esperar a não ser a  
natureza; por outro lado, ele não tem nada a temer de seu mal, que  
faz sua situação ser preferível à nossa. (ROUSSEAU, 1995, v. 3, p.  
139)  
Existe, a partir de então, uma relação direta entre moralidade e força,  
autossuficiência física e integridade moral, muito em função do que a ideia de natureza  
oferece. Quando a medicina tradicional, por sua vez, promete algo muito além do que  
é capaz de realizar, ou altera a natureza humana, por exemplo, mais do que preserva,  
a capacidade mesma do corpo de se autopreservar, ou autossustentar, se compromete.  
Num outro aspecto, a arte médica perverte o corpo a ponto de ele ser incapaz  
de agir, senão de acordo com os instrumentos por ela empregados, que operam, ao  
nosso ver, muito próximo do campo das concepções erráticas, das monstruosidades,  
do segundo tipo de história da natureza estabelecida por Bacon. Quando homem se  
torna dependente de medicamentos, de tratamentos, se enfraquece e passa a imaginar  
e a temer o que antes, apenas, fazia parte dos limites comuns da vida ordinária, com  
a ideia de finitude e a chegada da morte. A medicina, porque atua sobretudo por  
intermédio da força, como operador fundamental da natureza, ao errar, cria ilusões,  
compromete-se negativamente com a corrupção da natureza que deveria manter o  
homem livre, moralmente, e autossuficiente, fisicamente. Pelo seu emprego  
equivocado, ao menor sinal do indicativo da finitude, o homem se acovarda, perde  
altivez, sob a justificativa de poder enganar a leis naturais e, com efeito, produzir a  
ilusão da cura para os males naturais mais intratáveis (CAMPOS, 2015, p. 68). Segundo  
nosso entendimento, o exemplo da crítica à arte médica tradicionalmente concebida,  
mostra como o equívoco se encontra na incapacidade de os homens olharem para  
determinada concepção de natureza, que precisaria seguir mais um fluxo comum, ou  
seja, seguir mais a “natureza livre e desimpedida”, que segue seu “curso próprio e faz  
seu próprio trabalho”. Isso sugere que tanto o exemplo da medicina, quanto o exemplo  
da educação, tomadas como tipos de artes distintas, no contexto de crítica à  
sociabilidade, ou seja, distinta do estado de natureza tomada como hipótese  
reguladora, atuam no sentido da alteração, da diferenciação, da desnaturação (para  
ser mais preciso com os termos de Rousseau). Para ele, no entanto, na natureza é  
como se a morte não existisse, “pois não sonhamos com a morte, a medicina dá  
realidade à morte, a faz sentir antes; essa realidade artificialmente exibida é  
apresentada não como um fato natural, estabelecido, mas como um fato somente  
possível porque a arte médica é associada a todos os males que pretende curar”  
Verinotio  
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Ecologia e modernidade: contribuições de Rousseau  
(VARGAS, 1995, p. 31, tradução nossa)  
Há quem entenda, portanto, que a natureza, em Rousseau, opere de duas  
formas “por crescimento das forças e por equilíbrio do conjunto”. Essas duas  
operações podem ser compreendidas, ainda, nos termos de “progresso da natureza  
quando se trata de crescimento quantitativo e de ordem da natureza pelo equilíbrio  
dos elementos” (VARGAS, 1995, p. 17, tradução nossa). Num outro aspecto, há quem  
entenda que a “ideia de natureza se explicita no conceito de ordem”, e que esse  
conceito “se explicita em relação a uma ideia de totalidade, que pode ser pensada  
relativamente ou absolutamente, com referência ao mundo humano, ao mundo físico”  
(KUNTZ, 2012, p. 64).  
Ou seja, para inocentar o homem e tratar dos problemas caros à corrupção  
humano-societária, em Rousseau a “bondade consiste na coordenação espontânea em  
relação ao todo, o mal não pode consistir na introdução de uma desordem” (KUNTZ,  
2012, p. 65), já que o processo de desnaturação, em termos negativos, seria resultante  
do abuso de suas faculdades de aperfeiçoamento, em termos sociais, que lançam o  
homem no curso da história e permitiram que os homens estivessem sempre,  
equivocadamente, inclinados aos interesses que os dividem.  
Em outros termos, a natureza pode ser pensada, no homem em específico, com  
uma finalidade, não que ela contenha uma dimensão teleológica, mas porque ela  
“predispõe o futuro no presente” [perfectibilité]. Sua concepção de natureza, ampliando  
o espectro de interpretação da questão, para o campo das ciências experimentais que  
foram familiares para Rousseau em determinada medida, não seria aquela que conteria  
“propriedade intrínseca, que ele detém em virtude de sua substância”. Seria, antes,  
“definida em relação ao trabalho do artista, do químico”, percebida como “laboratório  
onde são realizadas operações”. Desse modo, como sublinhamos mais acima, “a  
fronteira entre natureza e arte poderia ser transgredida na definição mesma do  
conceito de base da química” (BENSAUD-VINCENT, 2003, p. 163, tradução nossa).  
Por sua vez, “quando o indivíduo imita a natureza, quando ele sai da  
causalidade eficiente para se elevar às finalidades, sua imitação se converte em  
inversão. Ao querer fazer como a natureza, ao invés de deixá-la fazer, destrói-se”  
(VARGAS, 1995, p. 65, tradução nossa). Quer dizer, quando o indivíduo tenta operar  
de outra forma que não aquela esperada pela natureza, abusa de suas faculdades e  
faz o mal, seja como tirano de si mesmo, seja como tirano da natureza como um todo.  
Considerações finais  
Ao tratar da diferença entre animais e homens, lançando mão da noção de  
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Daniel do Val Cosentino; Henrique Segall Nascimento Campos  
perfectibilité, Rousseau mostra que:  
Em todo animal vejo apenas uma máquina engenhosa, que a natureza  
dotou de sentidos para recompor-se a si mesma e para defender-se,  
até certo ponto, de tudo que tende a destruí-la ou danificá-la. Percebo  
precisamente as mesmas coisas na máquina humana com a diferença  
de que unicamente a natureza faz tudo nas operações do animal, ao  
passo que o homem contribui nas suas, como agente livre”. Mais  
adiante ele acrescenta: “[...] haveria uma outra qualidade muito  
específica que os distingue, e sobre a qual não pode haver  
contestação: é a faculdade de aperfeiçoar faculdade com o auxílio  
das circunstâncias desenvolve sucessivamente todas as outras e  
reside entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo ao passo que  
o animal é, depois de meses, o mesmo que se tornará por toda a vida  
[...]. É ela que, com o tempo, o tira dessa condição originária, na qual  
viveria dias tranquilos e inocentes; é ela que, com o passar dos  
séculos, faz desabrochar seu saber e seus erros, seus vícios e suas  
virtudes, quem, afinal, o faz tirano de si mesmo e da natureza.  
(ROUSSEAU, 1985, pp. 60-1)  
Em suma, o que pretende o autor em questão é recuperar certa concepção de  
natureza que tenha, das artes, o respeito pela ordem e pela espontaneidade que só a  
natureza em seu curso comum pode oferecer. Esse projeto, ao nosso ver, seria um  
forte indicativo que Rousseau contribui para os debates atuais em ecologia porque ele  
oferece, em sua filosofia como um todo, um programa de crítica social que trata da  
natureza, seja ela idealizada, pensada abstratamente, como subjetividade ou coisa que  
o valha, como aspecto fundamental dos problemas humanos. Ou seja, deve-se  
respeitar, no contexto do artifício, como ação própria de sua capacidade de  
aperfeiçoamento, certos processos pelos quais o corpo, os seres, o homem,  
mantenham-se determinado pelas regras da natureza. A partir dessa recuperação de  
um procedimento com o natural, Rousseau elabora um roteiro, uma norma, uma  
proposta de reforma, segundo a qual as instituições, leia-se, artes, ciências, cultura,  
educação, possam modificar o homem sem alterá-lo fundamentalmente, como se a  
natureza, a despeito a cultura, sempre pudesse “estar por aí”. Por sua vez, a política  
teria papel relevante, justamente para dar conta da organização social, o contrato, que  
poderia realizar os potenciais perdidos pelo homem, quando perdido na alienação de  
si e da natureza.  
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CAMPOS, Henrique Segall Nascimento. Rousseau não vai ao médico: uma leitura da  
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Ecologia e modernidade: contribuições de Rousseau  
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VARGAS, Yves. Introduction à L’Émile  
Como citar:  
CONSENTINO, Daniel do Val; CAMPOS, Henrique Segall Nascimento. Ecologia e  
modernidade: contribuições de Rousseau para o desenvolvimento do debate  
contemporâneo. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 385-401, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2, pp. 385-401 jul.-dez., 2025 | 401  
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DEBATES  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.783  
D e b a t e s  
_____  
“Novos rostos de Marx”1: da crítica da economia  
política aos horizontes da luta pela emancipação  
humana  
Sobre a obra Karl Marx: biografia intelectual e política (1857-1883)  
Ana Carolina Marra de Andrade*  
Resumo: No presente artigo, propõe-se um  
debate em torno da obra Karl Marx: biografia  
intelectual e política (1857-1883) (2023), de  
Marcello Musto, com o objetivo de lançar luz  
sobre o Marx real e histórico, ressaltando a  
importância de compreender sua obra em sua  
totalidade e a partir de sua gênese, estrutura e  
função. Considerando o renascimento das  
discussões acerca do estatuto do pensamento  
marxiano, impulsionado pela disponibilização  
digital dos cadernos inéditos do “último Marx”  
na Marx-Engels Gesamtausgabe (Mega), busca-  
se, com base em Musto, apresentar “novos  
rostos de Marx”, evidenciando a relação entre o  
desenvolvimento da crítica à economia política,  
sua inserção nos movimentos sociais e seus  
últimos escritos. Por fim, estabelece-se um  
diálogo com algumas das tendências  
interpretativas atuais que discutem as possíveis  
diferentes fases existentes no interior do  
pensamento maduro do autor.  
Abstract: In the present article, we propose a  
debate around Marcello Musto’s Karl Marx:  
biografia intelectual e política (1857-1883)  
(2023), with the aim of shedding light on the  
real and historical Marx, emphasizing the  
importance of understanding his work in its  
entirety and from its genesis, structure, and  
function. Considering the resurgence of  
discussions about the status of Marxian  
thought, driven by the digital availability of the  
unpublished notebooks of the “late Marx” in the  
Marx-Engels Gesamtausgabe (Mega), we seek,  
based on Musto, to present “new faces of Marx,”  
highlighting the connection between the  
development of the critique of political  
economy, his involvement in social movements,  
and his late writings. Finally, a dialogue is  
established with some of the current  
interpretive tendencies that discuss the possible  
different phases existing within the author’s  
mature thought.  
Palavras-chave: Karl Marx; crítica da economia  
política; comunismo.  
Keywords: Karl Marx; critique of political  
economy; communism.  
1 Expressão utilizada em referência ao curso ministrado por Marcello Musto, autor de Karl Marx: biografia  
intelectual e política (1857-1883), na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) entre os dias 13/11  
e 4/12/2024.  
* Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).  
E-mail: anamarra7@gmail.com. Orcid: 0000-0002-8477-8578. Mais informações sobre o autor podem  
ser conferidas em: <https://marcellomusto.org/>. Acesso em: 2 set. de 2025.  
ISSN 1981 - 061X, v. 30, n. 2 jul.-dez., 2025  
Verinotio  
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“Novos rostos de Marx”  
Introdução  
O presente texto traz um debate sobre a vida e obra de Karl Marx a partir da  
biografia Karl Marx: biografia intelectual e política (1857-1883) [Karl Marx: biografia  
intellettuale e política 1857-1883], publicada originalmente em 2018, e cuja versão  
traduzida foi publicada no Brasil pela Expressão Popular em 2023. Professor de  
Sociologia na York University (Toronto, Canadá), o italiano Marcello Musto é uma das  
principais especialistas mundiais acerca da vida e obra de Karl Marx na atualidade.  
Também escreveu O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos, 1881-1883  
[L’ultimo Marx: biografia intellettuale (18811883)] (MUSTO, 2018), e teve seu  
trabalho como autor e organizador traduzido para vinte e cinco idiomas2.  
A biografia não é apenas mais uma compilação de fatos ocorridos na vida do  
autor d’O capital. Na obra, o autor busca apresentar uma nova faceta do consagrado  
fundador da crítica da economia política, ao mesmo tempo desvinculando-o de suas  
interpretações vulgares, e também apresentando-o enquanto um pensador real,  
humano, que teve que enfrentar durante sua vida uma série de dificuldades materiais,  
desde a doença até a miséria. Musto reconstrói a história de Marx em conexão com o  
desenvolvimento de seu pensamento teórico, e, nesse sentido, traz à tona uma ampla  
gama de materiais marxianos, desde de cadernos, manuscritos e livros publicados, até  
cartas do autor tratando de suas questões pessoais e relatos de pessoas próximas.  
Ademais, diante do grande número de biografias já existentes do Marx que se  
dedicam a apresentar somente o período de sua juventude, Musto opta por caminho  
distinto começa do período de elaboração do primeiro rascunho da crítica da  
economia política, os Grundrisse, em 1857, chegando até o final da vida do autor,  
ressaltando os vínculos entre sua elaboração teórica, sua militância política e os  
acontecimentos mundiais e de sua vida privada. Só este recorte dá à obra um caráter  
inovador, pois quase todas as biografias até hoje publicadas privilegiam seus escritos  
juvenis. Além disso, Musto conecta a crítica da economia política a todos os inúmeros  
projetos aos quais Marx se dedicou concomitantemente ao longo dos anos, rompendo  
com “divisão fictícia entre o ‘Marx filósofo’, o ‘Marx economista’ e o ‘Marx político’”  
(MUSTO, 2018), de modo a representar com primor a totalidade da dimensão da  
proposta de um pensador profundamente dedicado a transformar o mundo.  
A escolha desse livro para o debate se insere em um momento no qual, há  
2 Mais informações sobre o autor podem ser conferidas em: <https://marcellomusto.org/>. Acesso em:  
2 set. de 2025.  
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Ana Carolina Marra de Andrade  
alguns anos, têm-se popularizado estudos sobre o “último Marx”3. Os novos materiais  
da Marx-Engels Gesamtausgabe (Mega), que vêm sendo publicados desde 1998, têm  
contribuído para a emergência de uma visão sobre Marx diferente da vulgata  
comumente impulsionada por movimentos operaístas ou stalinistas, um Marx “capaz  
de examinar as contradições da sociedade capitalista muito além do conflito entre  
capital e trabalho” (MUSTO, 2018, p. 16). Em dezembro de 2023, a versão digital de  
vários cadernos do “último” Marx foi publicada pela MEGA, referente ao IV/27 M/E:  
Excertos e notas de 1879-1881 (etnologia, história primitiva, história da propriedade  
fundiária) 2023/24 [Exzerpte und Notizen 1879 bis 1881 (Ethnologie, Frühgeschichte,  
Geschichte des Grundeigentums) 2023/24, cf. MARX, 2025]. Grande parte desse  
material permanecia inédita, o que tem impulsionado novos debates em torno da  
teoria marxiana inclusive a partir de excertos já conhecidos, anteriormente  
publicados, como na edição de Lawrence Krader dos chamados Cadernos etnológicos4.  
Esses textos têm contribuído com a visão de Marx como autor “completamente  
diferente da vulgata que o descreve como eurocêntrico, economicista e interessado  
apenas na análise da esfera produtiva e no conflito de classes entre capital e trabalho”  
(MUSTO, 2018, p. 18), o que, como explica Musto, não significa que “os textos que  
surgiram recentemente derrubam o que já se sabia sobre esse autor” (MUSTO, 2018,  
p. 19), mas o complementam. Assim, enquanto outros comentadores, como Michael  
Löwy (2018) e Jean Tible (2020), defendem que no “último” Marx um teórico que  
passou por uma grande virada em seu pensamento, deixando de lado concepções  
prévias que seriam “eurocêntricas”, Musto opta por trazer a continuidade entre seus  
escritos desde 1858.  
A obra é dividida em quatro partes: Parte I. A crítica da economia política; II.  
3 Sobre os debates em torno do “último Marx” nas últimas décadas, cita-se o trabalho do próprio Musto  
(2018), de Heather Brown (2012), Kevin Anderson (2019, 2025), e Jean Tible (2020), além de autores  
menores como Lucas Álvares (2019), Gustavo Velloso (2018), e o nosso trabalho, Andrade (2025).  
4
Os textos selecionados pelo etnólogo estadunidense Lawrence Krader são uma pequena parcela de  
todos os excertos marxianos de 1879-83, notadamente excertos de Marx referentes a quatro obras  
distintas: A sociedade antiga ou investigações sobre as linhas do progresso humano desde a selvageria,  
através da barbárie, até a civilização [Ancient society or researches in the lines of human progress from  
Savagery, through Barbarism to Civilization] (1877) de Lewis Henry Morgan; A aldeia ariana na Índia e  
no Ceilão [The Aryan village in India and Ceylon], de John Budd Phear (1880); A origem da civilização e  
a condição primitiva do homem: condição mental e social dos selvagens [The origin of civilisation and  
the primitive condition of man: mental and social condition of savages] (1870) de John Lubbock (Lord  
Avebury); e Preleções sobre o início da história das instituições [Lectures on the early history of  
institutions] (1875), de Henry Sumner Maine. Tais excertos mesclam parcialmente os cadernos de Marx  
nomeados B 146 e B 160, os quais hoje podemos ter acesso na versão digital da Mega2. O título do  
texto dado por Krader, Cadernos etnológicos, é, no mínimo, parcial. Musto (2023) prefere chamar a  
totalidade desses excertos de Cadernos antropológicos, nome utilizado também em uma versão italiana,  
Quaderni antropologici (2009), em que estão as notas sobre Morgan e sobre Maine. Para entender  
melhor o debate em torno da edição de Krader e do vínculo de Marx a essas áreas do conhecimento,  
cf. Andrade (2025).  
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“Novos rostos de Marx”  
Militância política; III. As pesquisas da última década; e IV. A teoria política. Como  
explica o autor: “A primeira delas – ‘A crítica da economia política’ – é dedicada à  
descrição das principais etapas da elaboração e redação d’O capital”, a segunda foca  
na “participação de Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores”, a terceira,  
em fazer um “exame da correspondência e dos manuscritos, alguns ainda inéditos, dos  
últimos anos da vida de Marx” (MUSTO, 2018, p. 18), e a quarta em “examinar as  
concepções de Marx sobre o modo de produção capitalista e o perfil que a sociedade  
comunista poderia assumir” (MUSTO, 2018, p. 19). O presente texto também irá seguir  
a linha temática dessa divisão  
Hic Rhodus, hic salta!”5: a crítica da economia política e o fardo da  
obra magna  
Hic Rhodus, hic salta! [Aqui é Rodes, salta aqui mesmo!]  
Hier ist die Rose, hier tanze! [Aqui está a rosa, dança agora!]”  
Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte  
Segundo Musto (2023), “a economia política não foi a primeira paixão  
intelectual de Marx” (p. 27). Assim, antes de entrar nos períodos de foco da presente  
biografia, isto é, a partir de 1857, o autor faz uma breve introdução da formação  
intelectual do autor d’O capital. Musto resgata o Marx redator da Gazeta Renana  
(1842-1843). Nesse momento, ele próprio afirma que foi impelido a se voltar para os  
chamados “interesses materiais” (MARX, 2024, p. 24), ocupando-se, em 1843, de uma  
revisão crítica da Filosofia do direito de Hegel, momento em que “amadureceu a  
convicção de que a sociedade civil era a base real do estado político” (MUSTO, 2023,  
p. 27), e, acrescenta-se, passou por uma virada crucial em seu pensamento: a crítica  
da especulação (cf. CHASIN, 2009). No mesmo ano, Marx, perseguido político da  
monarquia alemã, muda-se para Paris, e foi lá, “após ter entrado em contato com o  
proletariado [parisiense] e ficado impressionado com as considerações contidas no  
artigo de Friedrich Engels, Esboços para uma crítica da economia política (1844)”, que  
ele se volta a estudar criticamente a economia política, o que marca outra mudança da  
maior importância em seu pensamento, justamente a crítica da economia política6, e  
5
“Aqui é Rodes, salta aqui mesmo!”, provérbio latino baseado na fábula O fanfarrão, de Esopo. A  
expressão é utilizada por Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852) (cf. MARX, 2011, p. 30)  
e por Hegel no “Prefáciode sua Filosofia do direito.  
6 Opondo-se ao falseamento do tríplice amálgama originário do pensamento marxiano, que enfraquece  
e diminui sua radicalidade e originalidade, tomando-o por uma mera justaposição de pensamentos  
anteriores, J. Chasin (2009) define a formação do pensamento marxiano a partir de três grandes críticas  
ontológicas: a crítica à politicidade (p. 66), inaugurada com o texto Sobre a questão judaica (1843), no  
qual a política deixa de ter um caráter ontopositivo, isto é, perde sua dimensão resolutiva diante dos  
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Ana Carolina Marra de Andrade  
resulta nos fascinantes Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (cf. MUSTO, 2023,  
p. 28).  
O período subsequente é muito fértil em termo de produções, passando desde  
relevantes manuscritos inacabados como A ideologia alemã (1845-1846)7, livros  
publicados, como A miséria da filosofia (1847) e o Manifesto do partido comunista  
(1848), até os artigos jornalísticos da Nova Gazeta Renana: órgão da democracia  
(1848-9). Por perseguições políticas, Marx passou esse período “entre Bruxelas, Paris  
e Colônia” e “peregrinou por Berlim, Viena, Hamburgo e muitas outras cidades alemãs”  
(MUSTO, 2023, p. 29), até, após ordens de Luís Bonaparte, mudar-se para Londres,  
onde iria viver como apátrida até o resto de seus anos (exceto por alguns períodos  
menores em outros países, como na Argélia). Lá, passou por um difícil recomeço: “Os  
primeiros anos do exílio inglês foram marcados pela mais profunda pobreza e por  
doenças, que nessa data provocaram também a dramática perda de três de seus filhos”  
(MUSTO, 2023, p. 29).  
Contudo, Marx manteve uma árdua rotina de estudos, visando a entender “a  
anatomia da sociedade burguesa”, que, em suas palavras, “deve ser procurada na  
economia política” (MARX, 2014, pp. 24-5). Muitos textos e cadernos de notas com  
seus estudos foram redigidos nos anos subsequentes a sua chegada em Londres, mas  
foi em 1857 que, impulsionado pela avassaladora crise financeira8 – a qual, “ao  
contrário das crises anteriores, [...] não começou na Europa, mas nos Estados Unidos  
da América” (MUSTO, 2023, p. 32) –, redigiu os oito cadernos manuscritos de crítica  
da economia política que ficaram conhecidos como Grundrisse (1857-8). São da  
mesma época os Cadernos sobre a crise. Nesses anos, “Marx se propôs a trabalhar em  
dois projetos diferentes ao mesmo tempo: a elaboração de uma obra teórica, dedicada  
à crítica do modo de produção capitalista, e a redação de um livro, mais restrito à  
atualidade, relativo aos desdobramentos da crise em curso” (MUSTO, 2023, p. 34).  
Assim, ele também se dedicava a compilar notícias sobre a crise ao redor do mundo,  
problemas sociais; a crítica à especulação (cf. CHASIN, 2009, p. 72), marcada pela Crítica da filosofia do  
direito de Hegel (1843), em que Marx é capaz de se contrapor à “coisificação da lógica” do sistema  
hegeliano; e a crítica à economia política (cf. CHASIN, 2009, p. 74), inaugurada pelos Manuscritos  
econômico-filosóficos (1844), que marcam um pensamento propriamente marxiano na medida em que  
ela ultrapassa e engloba suas críticas anteriores, pois na “busca da anatomia da sociedade civil [...] as  
categorias da economia política são ontocriticamente elevadas à esfera filosófica, onde esplendem como  
malha categorial da produção e reprodução da vida humana” (CHASIN, 2009, p. 75).  
7 Hoje há um debate em torno da suposta unidade dos manuscritos que compõem A ideologia alemã.  
Para entender mais, cf. Hubmann; Pagel (2022).  
8 Em uma carta a Ferdinand Lassalle, de 21 de dezembro de 1857, Marx explica que “a presente crise  
comercial me estimulou a dedicar-me seriamente à formulação dos traços fundamentais da Economia  
política e, ao mesmo tempo, preparar alguma coisa sobre a atual crise” (MARX in ENGELS; MARX, 2020,  
p. 113).  
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registrando não apenas os eventos econômicos relevantes dos Estados Unidos e da  
Inglaterra, mas de toda a Europa, Índia, China, Egito, Brasil e Austrália (cf. MUSTO,  
2023, p. 35).  
Musto, então, faz uma análise de alguns dos temas que perpassam os  
Grundrisse de Marx. Na “Introduçãode 1857, Marx traz considerações críticas em  
relação ao método da economia política e ao método hegeliano, apresentando sua  
teoria das abstrações9 e condenando o “mito de Robinson Crusoé como paradigma do  
Homo oeconomicus, ou a extensão dos fenômenos típicos da era burguesa a todas as  
outras sociedades que já existiram, inclusive as primitivas”10, de modo que a economia  
política em geral parte do indivíduo isolado, algo que “antes dessa época [...]  
simplesmente não existia” (MUSTO, 2023, p. 37). O restante dos manuscritos é  
dividido em “duas partes: o ‘capítulo do dinheiro’, no qual tratou do dinheiro e do  
valor, e o ‘capítulo do capital’, no qual dedicou centenas de páginas à descrição do  
processo de produção e circulação do capital” (MUSTO, 2023, p. 51). O projeto inicial  
da crítica à economia política era dividido em seis livros: “1. Do capital (contém alguns  
capítulos introdutórios [Vorchapters]). 2. Da propriedade fundiária. 3. Do trabalho  
assalariado. 4. Do estado. 5. Comércio exterior. 6. Mercado mundial” (MARX in  
ENGELS; MARX, 2020, p. 118). Marx abandona esse plano a partir de 1863 (cf. MARX  
in ENGELS; MARX, 2020, p. 97), dando lugar ao projeto dos três livros d’O capital  
como os conhecemos, o qual tampouco foi finalizado, tendo apenas o primeiro livro  
sido publicado em vida.  
O final da década de 1850, apesar de muito produtivo, foi marcado por uma  
situação econômica difícil, na qual ele precisou contar com a ajuda financeira de seu  
amigo, Engels: “A única renda de Marx, além da ajuda que Engels lhe garantia, consistia  
nos pagamentos recebidos do jornal New York Tribune.” (MUSTO, 2023, p. 44) O  
amigo o ajudava, inclusive, redigindo parte dos textos do jornal, para que Marx  
pudesse se dedicar ainda mais à crítica da economia política. Porém, “a pobreza não  
era o único espectro que assombrava Marx. Como na maior parte de sua conturbada  
existência, foi acometido, também nesse período, por múltiplas doenças” (MUSTO,  
2023, p. 45). Nesse momento, Marx passou por dores diversas, inflamações nos olhos  
e problemas hepáticos, a maior parte das enfermidades agravadas pelo regime  
extenuante de trabalho. Contudo, mantinha-se resiliente:  
Se nunca deixou de lutar contra a sociedade burguesa, com igual  
9 Acerca da teoria das abstrações, cf. Assunção (2018).  
10  
Para entender melhor o problema da gênese do capitalismo e as críticas marxianas às  
“robinsonadas” da Economia Política, cf. Heleno (2024).  
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constância manteve a consciência de que, nessa batalha, seu principal  
objetivo era forjar a crítica ao modo de produção capitalista. Para  
cumprir essa tarefa, era necessário um estudo muito rigoroso da  
economia política e a análise constante dos eventos contemporâneos.  
(MUSTO, 2023, p. 60)  
Assim, os Grundrisse foram escritos em meio a problemas de saúde, sofrimentos  
e luto por seu sétimo filho com Jenny, que faleceu logo após o nascimento (cf. MUSTO,  
2023, pp. 45-6). Os Grundrisse fizeram parte de um projeto abandonado, o projeto  
da crítica em seis livros, e o resultado publicado de seu trabalho foi a Contribuição à  
crítica da economia política (1859), texto do qual “os Grundrisse foram o laboratório  
inicial” (MUSTO, 2023, p. 61).  
Em 1860, Marx teve que interromper seus estudos de economia política para  
lidar com acusações difamatórias espalhadas por Carl Vogt, então professor de  
Ciências Naturais em Genebra e ex-representante da esquerda na Assembleia Nacional  
de Frankfurt. Vogt vinha sendo tachado como favorável a Luís Bonaparte, e culpou  
Marx por sua reputação. O professor acusou-o de enganar os trabalhadores,  
empurrando o proletariado à destruição, e de se envolver em uma conspiração contra  
ele, além de ser “líder supremo” de um grupo denominado “Gangue do Enxofre” (cf.  
MUSTO, 2023, p. 64). Marx, então, além de processar o jornal por difamação (pedido  
rejeitado pela Real Suprema Corte da Prússia), dedicou-se a fazer um trabalho de crítica  
teórica, que ficou intitulado de Senhor Vogt [Herr Vogt], “um curto-circuito causado  
pelo desejo de destruir o adversário que, com mentiras, ameaçar sua credibilidade e  
tentara manchar sua história política e que, ao mesmo tempo, fizera-o usando de  
charlatanismo literário, algo que Marx desprezava profundamente” (MUSTO, 2023, p.  
69). O texto, contudo, foi um fracasso: além de silenciado pelos próprios jornais,  
acabou entrando na lista de censurados pelo governo alemão.  
Nesse momento, Marx seguia convivendo com seus “inimigos de sempre: a  
miséria e a doença” (MUSTO, 2023, p. 69). Em 1861, via-se novamente cercado de  
dívidas, tendo que penhorar boa parte de seus bens. No ano anterior, sua esposa,  
Jenny, contraíra varíola, e chegou a passar a qual também por um “estado de profunda  
depressão” (MUSTO, 2023, p. 70). Musto ressalta que um acontecimento relevante da  
mesma época foi a leitura de Marx d’A origem das espécies pela seleção natural (1859),  
de Charles Darwin, um livro que marcou sua era11. O Mouro, como lhe chamavam seus  
11 Como explica Maurício Vieira Martins (2024), a relevância da obra de Darwin no pensamento filosófico  
se associa à derrubada definitiva da teoria criacionista: “Foi apenas em 1859, com a publicação  
darwiniana de A origem das espécies e, mais ainda, em 1871, com A descendência do homem que  
o milenar criacionismo teve sua ontologia religiosa consistentemente demolida em bases científicas.”  
(MARTINS, 2024, p. 30)  
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amigos próximos (cf. MUSTO, 2018), foi, então, para a Holanda, onde conseguiu um  
empréstimo de seu tio Lion Philips, o que ajudou a estabilizar sua situação financeira.  
Também visitou clandestinamente a Alemanha, hospedando-se por um mês na casa de  
Ferdinand Lassalle em Berlim, um pensador da esquerda alemã com o qual Marx ainda  
travaria muitos embates teóricos e práticos12. Lá, teve que acompanhar agitados  
compromissos sociais organizados por Lassalle e sua esposa, os quais não  
combinavam com o estilo de vida “eremita” que vivia em Londres. Dessa época é “a  
primeira fotografia conhecida de Marx” (MUSTO, 2023, p. 73). Voltando para a  
Inglaterra em abril, esperava-lhe sua “Economia”.  
Ainda em 1861, logo após a eleição de Abraham Lincoln, eclodiu a Guerra Civil  
Americana (1861-5), ou Guerra de Secessão. Desde a década anterior, Marx trabalhava  
como redator do New York Tribune, e escreveu, além de importantes textos militantes  
enquanto representante da Internacional dos Trabalhadores13, vários artigos  
jornalísticos14 ressaltando as contradições da guerra e seu apoio à “morte da  
escravidão” (cf. MUSTO, 2023, p. 79). Além disso, não deixou de acompanhar, “com  
seu habitual interesse, todos os acontecimentos ligados à Rússia e à Europa Oriental”  
(MUSTO, 2023, p. 81). Em 1863, eclodiu a Revolta de Janeiro na Polônia contra a  
ocupação da Rússia czarista, reprimida com a ajuda da Prússia de Otto von Bismark,  
o que resultou na vitória russa em abril de 1864. Marx se debruçou sobre a questão  
polonesa, posicionando-se contra o massacre e em favor de uma Polônia e de uma  
Alemanha independentes da influência moscovita (cf. MUSTO, 2023, pp. 83-4). Ao  
traçar este itinerário, vemos um Marx militante, interessado na libertação dos povos  
ao redor do mundo. Musto é bem-sucedido em demonstrar como “diante dos grandes  
acontecimentos da história, ocorridos em lugares distantes e diferentes, Marx pôde,  
uma vez mais, compreender o que se passava no mundo e oferecer sua contribuição  
para transformá-lo” (MUSTO, 2023, p. 84).  
A década de 1860 também foi muito frutífera para seus estudos sobre  
economia política, escrevendo, entre agosto de 1861 e junho de 1863, “23 volumosos  
cadernos de anotações dedicados à transformação do dinheiro em capital, ao capital  
comercial e, sobretudo, a diferentes teorias com as quais os economistas explicaram a  
mais-valia” (MUSTO, 2023, p. 85). O projeto, aqui, ainda era o da escrita dos seis  
12 Para entender melhor os embates teóricos e práticos entre Marx e Lassalle, cf. Machado (2022).  
13 Cita-se o Discurso da Associação Internacional dos Trabalhadores ao presidente Johnson (1865) e o  
Discurso ao Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Estados Unidos da América (1869), dentre outros  
(cf. MUSTO, 2023, p. 80).  
14  
A tradução em português desses artigos com outros textos da mesma temática pode ser conferida  
em Escritos sobre a guerra civil americana (cf. ENGELS, MARX, 2020).  
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livros, que, notoriamente, é posteriormente abandonado pelo projeto dos três livros.  
Musto faz uma análise desses 23 cadernos e seus temas principais, explicando que  
Marx escreveu, desde uma crítica aos fisiocratas até uma análise das teorias de Adam  
Smith, Germain Garnier, Charles Ganilh, François Quesnay (em especial, seu Quadro  
econômico de 1758), Thomas Malthus, James Mill, Samuel Bailey, John Stuart Mill,  
Johann Rodbertus, David Ricardo, e muitos outros.  
Porém, o biógrafo explica que esta fase também foi marcada por uma série de  
intempéries e sofrimentos de nível pessoal, físico e financeiro. Em 1862, em razão da  
Guerra Civil, o jornal New York Tribune passava por uma crise financeira e precisou  
abdicar dos colaboradores estrangeiros, de modo que “o último artigo de Marx para  
o jornal estadunidense foi publicado em 10 de março de 1862” (MUSTO, 2023, p.  
87), e o filósofo renano perdia o que era “desde o verão de 1851, sua principal fonte  
de renda” (MUSTO, 2023, p. 87), o que novamente colocou um entrave em seus  
estudos econômicos. Marx, entretanto, “não abdicou dos estudos e dedicou-se a uma  
nova área de pesquisa: as teorias da mais-valia (1862-1863)” (MUSTO, 2023, p. 87),  
redigindo seus famosos manuscritos com este nome, que também ficaram  
posteriormente conhecidos como o “Livro IV d’O capital”, apesar de ser vinculado ao  
projeto da obra original, e não ao projeto dos três livros posteriores, mas guardando  
semelhanças estruturais com o Livro III redigido entre 1864-5 (cf. MUSTO, 2023, p.  
104).  
Afetado, ainda que brevemente, por novos problemas oculares e hepáticos, e  
sofrendo com o aprofundamento de sua preocupante condição financeira, em 1863,  
Marx teve que passar alguns períodos afastado dos estudos de economia política.  
Dedicou-se por um tempo à maquinaria, chegando a fazer um curso prático  
experimental, e estudou bastante a questão da Polônia, que enfrentava desafios  
diplomáticos com a Prússia. O Mouro, contudo, não parou completamente seus  
trabalhos, e durante esse ano redigiu os cadernos XX-XXIII e chegou a compilar “oito  
cadernos suplementares [...] contendo cerca de 600 páginas de resumos econômicos  
dos séculos XVIII e XIX e retirados de mais de 100 volumes” (MUSTO, 2023, p. 96)  
Foi a partir de 1863 que Marx deu início à redação d’O capital:  
Nesse período, de fato, ele seguiu uma ordem: o primeiro rascunho  
do Livro I; o único manuscrito do Livro III, no qual encontramos a única  
exposição de Marx sobre o processo geral da produção capitalista; e  
a versão inicial do Livro II, que contém a primeira representação geral  
do processo de circulação do capital. (MUSTO, 2023, p. 97)  
Porém, o marco da escrita de sua grande obra foi também o começo de seus  
carbúnculos, “o que sua esposa Jenny chamou de ‘a doença terrível’, contra a qual  
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Marx lutaria por muitos anos de sua vida” (MUSTO, 2023, p. 97). Musto demonstra a  
partir das diversas cartas e rascunhos como essa doença estava diretamente associada  
com o fardo de redigir a crítica da economia política quanto mais Marx trabalhava  
em seu projeto, mais os furúnculos se proliferavam. O próprio Mouro admitiu a Engels:  
“a minha doença vem sempre da cabeça” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 117). Assim,  
O capital foi escrito entre problemas físicos desconcertantes e problemas econômicos  
oscilantes, com alguns alívios financeiros intermitentes, como uma inesperada e infeliz  
porém conveniente herança do amigo Wilhelm Wolff em 1863, que lhe  
proporcionou uma condição estável até aproximadamente meados de 1865, e os  
muitos auxílios monetários periodicamente concedidos por seu amigo Engels.  
Marx alternava entre os livros durante sua escrita d’O capital, escrevia, por  
exemplo, alguns capítulos do Livro III, e depois focava no Livro II etc. Apesar de  
continuar tomado pelos furúnculos, seguiu avidamente dedicado ao seu projeto,  
especialmente após, em março de 1865, assinar o contrato para a publicação da obra  
até o final do ano, prazo que teve que ser postergado algumas vezes a publicação  
de fato ocorreu apenas em 1867. Mesmo com os percalços, Marx estudava e escrevia  
cotidianamente por longas horas, nunca deixando de lado seus deveres na Associação  
Internacional dos Trabalhadores (AIT) que realizou sua primeira conferência em  
setembro de 1865, em Londres (cf. MUSTO, 2023, p. 104).  
Nessa época, como Engels vivia em Manchester e Marx em Londres, temos uma  
longa troca de cartas entre os amigos que permitiu ao biógrafo entender com certos  
detalhes a situação do filósofo renano. Musto explica que já “no início de 1866, Marx  
deu início a um rascunho do Livro I d’O capital”, contudo, “contrariando suas previsões,  
[...] o ano inteiro foi passado na luta contra os carbúnculos e com o agravamento de  
seu estado de saúde” (MUSTO, 2023, p. 105). Em geral, o excesso de trabalho  
agravava penosamente a condição de Marx, que não abandonou suas obrigações na  
AIT, e “não obstante a tão grave e dolorosa condição os pensamentos de Marx  
continuaram voltados, principalmente, para a conclusão de sua obra” (MUSTO, 2023,  
p. 106), trabalhou até ser forçado, por seu próprio corpo, a tirar alguns meses de  
descanso, sob pena de ocorrer-lhe o pior (cf. MUSTO, 2023, p. 109).  
Os problemas físicos, as eventuais complicações de sua situação econômica, e  
sua “permanente curiosidade intelectual” (MUSTO, 2023, p. 110) que só aumentava o  
tamanho de seu projeto, seguiram sendo fatores responsáveis pelo adiamento da  
publicação d’O capital. Porém, em abril de 1867, a “tão esperada notícia” chegou: o  
livro estava pronto (cf. MUSTO, 2023, p. 113), e, com isso, a saúde de Marx também  
melhorou (MUSTO, 2023, pp. 113-4). No “Prefácioda primeira edição, o próprio Marx  
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admite: “A obra, cujo primeiro volume apresento ao público, é a continuação de meu  
escrito Contribuição à crítica da economia política, publicado em 1859. A longa pausa  
entre começo e continuação se deve a uma enfermidade que me acometeu por muitos  
anos e interrompeu repetidas vezes meu trabalho.” (MARX, 2017, p. 77)  
Marx foi a Hamburgo, cidade da editora, e depois passou cerca de um mês em  
Hanover na casa do amigo Ludwig Kugelmann. Musto analisa os relatos próximos de  
sua esposa, Franziska Kugelmann, em que descreve uma personalidade alegre e  
agradável do Mouro (cf. MUSTO, 2023, p. 114). O texto a ser publicado foi revisado  
por Engels, que sugeriu mudanças substanciais na forma da escrita e na estrutura do  
texto. Marx revisou seus rascunhos e, então, “O capital foi colocado à venda, com 14  
mil exemplares, em setembro de 1867” (MUSTO, 2023, p. 116). Ainda assim, “nos  
anos seguintes a estrutura da obra seria ampliada e várias alterações também seriam  
feitas no texto” (p. 117).  
Entre instabilidades de saúde, tanto relacionada MUSTO, 2023, com os  
furúnculos quanto com problemas hepáticos, o Mouro seguia pesquisando e  
escrevendo a crítica da economia política. O objetivo era, agora, concluir o Livro II.  
Entre seus estudos, Musto destaca comentários de Marx sobre livros de história e  
agricultura que leu em 1868, incluindo considerações vanguardistas sobre ecologia  
que datam dessa época. Além disso, o autor considera, a partir de uma análise das  
correspondências, que é possível entender que Marx supera a noção da lei da queda  
tendencial da taxa de lucro após 1868:  
Data de fins de abril de 1868 a carta enviada a Engels na qual Marx  
traçava um novo esboço da sua obra, com particular referência ao  
“desenvolvimento, nas suas características muito gerais [...] da taxa de  
lucro”. Foi a última vez em que se referiu, em sua correspondência, à  
lei da queda tendencial da taxa de lucro. Apesar da grande crise  
econômica que se desenvolveu a partir de 1873, esse conceito, tão  
enfatizado posteriormente ao qual é dedicada toda a terceira seção  
do Livro III d'O capital (que foi escrito em 1864-1865) , nunca mais  
foi mencionado por Marx e foi considerado superado. (MUSTO, 2023,  
p. 119)  
Assim, 1868 marca a última menção da lei da queda tendencial da taxa de  
lucro, o que sustenta o argumento de que ele seria superado15. Essa é a posição de  
outros autores vinculados à Mega2, em especial Michael Heinrich (2013), que não  
apenas critica tal lei marxiana como sustenta que o próprio Marx teria a revisado ainda  
15 Leonardo Gomes de Deus, Bovick Wandja Yemba e Lucien André Regnault Marques (2018) apontam  
que esse é um dos grandes debates da contemporaneidade, analisando suas principais vertentes.  
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em vida16, contudo, essa concepção não é consensual dentro da tradição marxista17,  
até mesmo porque o próprio Marx nunca afirmou propriamente o abandono dessa  
concepção. Outro grande acontecimento da vida de Marx na mesma época é que, em  
1869, em razão de seu estudo da questão agrária e “depois de tomar conhecimento  
da nova e nada desprezível literatura que analisava as mudanças ocorridas na Rússia”  
(MUSTO, 2023, p. 120), dedicou-se avidamente ao estudo da língua russa, como se  
16  
Para Michael Heinrich (2013), “as mudanças mais importantes ocorreram enquanto Marx trabalhava  
no terceiro rascunho (1871-81). Presumivelmente, Marx estava atormentado por dúvidas consideráveis  
sobre a lei da taxa de lucro. Já no Manuscrito de 1863-5, Marx não estava completamente convencido  
com sua explicação, como fica claro pelas repetidas tentativas de formular uma justificativa. Essas  
dúvidas provavelmente se amplificaram ao longo da década de 1870. Em 1875, surge um manuscrito  
abrangente que foi publicado pela primeira vez sob o título “Tratamento matemático da taxa de mais-  
valia e da taxa de lucro”. Aqui, sob várias condições de contorno e com muitos exemplos numéricos,  
Marx tenta compreender matematicamente a relação entre a taxa de mais-valia e a taxa de lucro. A  
intenção é demonstrar as “leis” do “movimento da taxa de lucro”, através do qual rapidamente se torna  
evidente que, em princípio, todos os tipos de movimento são possíveis. Várias vezes, Marx observa as  
possibilidades de aumento da taxa de lucro, embora a composição do valor do capital estivesse  
aumentando. No caso de uma composição renovada do Livro III, todas essas considerações teriam que  
ser incluídas em uma revisão do capítulo sobre a “lei da queda tendencial da taxa de lucro”. Uma  
consideração consistente sobre elas deveria ter levado ao abandono da “lei”. Marx também sugere isso  
em uma nota manuscrita que fez em sua cópia da segunda edição do Volume I, que não se encaixa mais  
na queda tendencial e que Engels incorporou como nota de rodapé na terceira e quarta edições (numa  
tradução livre): “Nota aqui para trabalhar mais tarde: se a extensão for apenas quantitativa, então, para  
um capital maior e um menor no mesmo ramo de atividade, os lucros são proporcionais às magnitudes  
dos capitais avançados. Se a extensão quantitativa induzir uma mudança qualitativa, então a taxa de  
lucro sobre o capital maior aumenta ao mesmo tempo.”  
17  
A discussão acerca da lei da queda tendencial da taxa de lucro acompanha a história de recepção  
d’O capital. Leonardo Costa Ribeiro, Leonardo Gomes de Deus, Pedro Mendes Loureiro e Eduardo da  
Motta Albuquerque (2017) fazem um mapeamento de alguns dos debates envolvendo a lei da queda  
tendencial da taxa de lucro tanto nos textos do Marx quanto a partir de suas repercussões na tradição  
marxista. Ainda que a elaboração marxiana seja de fato autêntica, um debate sobre a tendência da  
queda da taxa de lucro (e suas contratendências) remonta à economia política clássica, estando presente  
em autores como Smith, Ricardo e Mill. Já as críticas à lei como elaborada por Marx remontam, dentre  
outros, a Paul Sweezy (1942), Nobuo Okishio (1961), e, mais recentemente, a uma nova tendência  
encabeçada por Heinrich, que nasceu do trabalho filológico da Mega2, que inaugurou novas  
perspectivas sobre o Livro III d’O capital. Boa parte do argumento dessa tendência, como vimos, gira  
em torno de Marx não mais ter abordado a lei da queda tendencial da taxa de lucro após seus  
manuscritos de 1863-5. Contudo, Ribeiro et al. (2017) trazem o manuscrito de Marx de 1875, Taxa de  
mais valor e de taxa de lucro consideradas matematicamente, no qual remete-se à lei em questão, leia-  
se: “Ao considerar a taxa de lucro – distinta da taxa de mais-valor , partimos de um determinado  
capital, com uma determinada composição e uma determinada taxa de valorização. Em seguida,  
deixamos que ele passe por uma série de mudanças possíveis que produzem alterações na taxa de  
lucro, que é, em última análise, uma função de diferentes variáveis, e encontramos as leis que  
determinam o aumento, a queda ou a constância da taxa de lucro, em uma palavra, as leis de seu  
movimento. As leis descobertas dessa maneira são válidas para o capital social, considerado como um  
único capital, portanto, para a taxa de lucro considerada como uma proporção entre o capital social em  
funcionamento e o mais-valor por ele produzido (MEGA II.14, p. 128)” (MARX apud RIBEIRO et al., 2017,  
pp. 5-6 tradução livre). Assim, para os autores, Marx não abandonou sua perspectiva anterior sobre  
a lei da queda tendencial da taxa de lucro e suas contratendências, o que, ademais, também implicaria  
mudanças com relação a outros temas também tratados em seu Livro I. Para eles: “Em outras palavras,  
no final de sua trajetória, Marx não abandonou sua perspectiva, pois isso implicaria abandonar também  
a perspectiva do Volume I. As leis que regem a taxa de lucro são outra maneira de abordar as leis  
descritas no processo de acumulação no volume I. Se descrevermos as leis da composição do capital,  
da concorrência e do mais-valor, encontraremos a lei da queda tendencial da taxa de lucro. No entanto,  
como ‘leis do movimento’, elas não são inevitáveis, nunca fazem parte de uma teoria do colapso do  
capitalismo. A lei descreve um processo da sociedade capitalista que, como Marx sabia, é contraditório  
e, portanto, deve incluir as contratendências como elemento-chave.” (RIBEIRO et al., 2017, p. 6 –  
tradução livre)  
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fosse, nas palavras de sua esposa, “uma questão de vida ou morte” (LONGUET apud  
MUSTO, 2023, p. 120).  
Musto apresenta um Marx nada dogmático, mesmo diante de seu magnum opus:  
em 1872, finalmente foi publicada uma reimpressão do Livro I d’O capital, com sua  
estrutura inteiramente reformulada. Apenas em 1875 foi publicada a tradução  
francesa, que foi quase uma nova edição, pois o próprio Marx não apenas corrigiu,  
mas “reescreveu passagens” e páginas inteiras “para tornar palatável ao público  
francês” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 122), aproveitando para fazer retificações e  
mudanças (cf. MUSTO, 2023, pp. 123; 203). É notório que os rascunhos do Livro II  
foram deixados incompletos, e os do Livro III, também, além de possivelmente  
desatualizados. Contudo, nem mesmo o Livro I, Marx, em seu perfeccionismo,  
considerou completo: “nem a tradução francesa, de 1872-1875, nem a terceira edição  
alemã, de 1881, podem ser consideradas como a versão definitiva que estava em suas  
aspirações” (MUSTO, 2023, p. 124).  
O “filósofo” preocupado em mudar o mundo: da militância na  
Internacional até o trabalho do “último Marx”  
Explicitados alguns dos principais acontecimentos da elaboração e publicação  
da crítica da economia política marxiana, a segunda parte da biografia reflete  
particularmente acerca da militância política de Marx, em especial na Associação  
Internacional dos Trabalhadores (AIT), na luta pela libertação irlandesa, e em torno da  
Comuna de Paris. Marx, apesar de não ser um dos fundadores da AIT (cf. MUSTO,  
2023, p. 131), foi um de seus principais membros e articuladores, chegando a liderar  
uma de suas correntes majoritárias. Musto analisa a organização desde sua gênese a  
partir de diversos documentos da época desde a assembleia de fundação, em 1864  
em Londres. As principais correntes na fundação eram: o sindicalismo inglês; o  
mutualismo francês, seguidores de Pierre-Joseph Proudhon; os comunistas, liderados  
por Marx, inicialmente minoritários; e alguns outros grupos ainda menores (cf. MUSTO,  
2023, pp. 129-30). Proudhon já havia sido alvo de numerosas críticas de Marx e de  
Engels na obra Miséria da filosofia, de 1847, resposta à Filosofia da miséria do  
pensador francês (cf. ENGELS; MARX, 2017), e seria um de seus principais opositores  
políticos nos anos subsequentes na AIT, sobretudo por sua força hegemônica entre os  
membros da França, da Suíça francófona, Valônia e Bruxelas (cf. MUSTO, 2023, p.  
146).  
A Alemanha não possuía representantes na AIT, até mesmo em razão da censura  
e perseguição política que o país sofria na época, mas a Associação Geral dos  
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Trabalhadores Alemães (AGT) girava em sua órbita. A AGT era uma organização  
fundada e liderada por Ferdinand Lassalle, que, contudo, “seguiu um diálogo ambíguo  
com Otto von Bismarck e perdeu interesse pela Internacional durante os primeiros  
anos de sua existência” (MUSTO, 2023, p. 138). Lassalle e sua relação com a  
monarquia alemã foram profundamente criticados por Marx ao longo de sua vida, seja  
por meio de cartas (cf. MUSTO, 2023, p. 150), ou, na década de 1870, na célebre  
Crítica do Programa de Gotha (1975) (cf. MARX, 2012), redigida como resposta ao  
manifesto de unificação da AGT com o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores,  
movimento vinculado a Marx na Alemanha (cf. MUSTO, 2023, pp. 204-5).  
A organização era diversa, e Marx cumpria um relevante papel na agregação  
dos diferentes grupos, mesmo sem poupá-los de suas críticas. Para Musto, “a sua  
habilidade política permitiu-lhe conciliar o que parecia irreconciliável e garantiu um  
futuro à Internacional que, sem o seu protagonismo, teria partilhado o mesmo rápido  
esquecimento de todas as outras numerosas associações operárias que a precederam”,  
de modo que “foi ele quem criou um programa político não excludente, mas  
firmemente classista, garantindo uma organização que aspirava ser de massas e não  
sectária” (MUSTO, 2023, p. 131). O protagonismo do autor d’O capital foi crescendo  
dentro da organização. Muitos membros se identificavam com o modo através do qual  
ele expressava claramente seu projeto comunista e ressaltava que a organização não  
deveria se preocupar com a disputa de eleições: “não podemos nos tornar o trampolim  
de mesquinhas ambições parlamentares” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 133)18, mas  
sem abandonar, como os seguidores de Proudhon, a perspectiva das conquistas  
concretas, como a legislação pela redução da jornada de trabalho. No primeiro  
congresso da AIT, em 1866 em Genebra, a linha vinculada a Marx era majoritária, e  
sua maior oposição era composta pelos mutualistas franceses, que acabaram perdendo  
no resultado geral (cf. MUSTO, 2023, pp. 141-2).  
Com o tempo, o mutualismo foi perdendo força. Este foi um resultado de uma  
firme disputa política de Marx, mas, conforme Musto, “mais ainda do que Marx, foram  
18 Essa concepção do papel da política em Marx foi posteriormente denominada pelo filósofo brasileiro  
José Chasin de concepção ontonegativa da politicidade. Essa concepção é identificada como uma noção  
fundante do pensamento marxiano a partir de 1843, notadamente em Sobre a questão judaica,  
momento no qual Marx “vai da sustentação ardorosa do estado universal, racionalmente posto, à  
negação radical de sua possibilidade, e não por mero recurso a algum volteio cético, mas pela  
emergência de um complexo determinativo que se afirma como reprodução ideal do efetivamente real,  
ou seja, pela via da crítica ontológica à mais elevada expressão, à época, da reflexão política” (CHASIN,  
2013, p. 46). O reconhecimento da incapacidade da politicidade de resolver a miséria social, isto é, de  
seu caráter essencialmente negativo, não é um abandono da esfera da política ou mesmo da luta por  
direitos, mas o reconhecimento de que a verdadeira emancipação humana não é a emancipação política,  
mas a emancipação do homem da política com a dissolução da sociedade civil-burguesa (cf. MARX,  
2010). Assim, resumidamente, o fim último da política não deve ser ela própria, isto é, por exemplo, a  
ocupação de um cargo eleitoral, mas remeter para além de si mesma, para a emancipação humana.  
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os próprios trabalhadores que tornaram a doutrina proudhoniana marginal na  
Internacional” (MUSTO, 2023, p. 147), pois, pelo aumento das greves, da luta por  
direitos, e da mobilização do movimento operário em geral, as teses mutualistas  
pareciam cada vez mais desconectados da luta concreta dos trabalhadores. Ao analisar  
os documentos do Congresso de Bruxelas de 1868, Musto destaca que pela primeira  
vez a AIT se posicionou claramente sobre a necessidade de socialização dos meios de  
produção por meio da utilização do poder público (cf. MUSTO, 2023, p. 148), uma  
grande derrota para os mutualistas.  
Não obstante, o congresso marcaria o início da virada coletivista da  
organização. Contando com a participação do russo Mikhail Bakunin, então membro  
da Aliança Social-Democrata, com o tempo Marx foi “confrontado com um rival ainda  
mais duro, um adversário que formava uma nova tendência o anarquismo coletivista  
no seio da organização e que pretendia conquistá-la” (MUSTO, 2023, p. 153). Musto  
descreve: “Em suma, Bakunin queria transformar a Internacional em uma organização  
controlada por ele, ‘por meio da infiltração desta [a Aliança Social Democrata]  
sociedade secreta’. Marx denunciou este objetivo e abriu-se um conflito sem limites  
entre os dois.” (MUSTO, 2023, p. 162)  
No interior do cenário político dos anos 1860 e 70, Marx foi um grande defensor da  
união internacional dos trabalhadores e da libertação dos povos em geral. Em  
inúmeros textos e cartas, Marx denuncia a burguesia inglesa por antagonizar seus  
proletários ao proletariado irlandês para favorecer seu domínio classista, defendendo  
em 1870 que “o golpe decisivo contra as classes dominantes na Inglaterra (e que será  
decisivo para o movimento operário mundial) só pode ser desferido na Irlanda e não  
na Inglaterra” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 158). Marx foi redator da Primeira e da  
Segunda Mensagem do Conselho Geral sobre a Guerra franco-prussiana, guerra a  
qual eclodiu em 1870 e terminou em 71 com a derrota francesa, posicionando-se  
fortemente contra Luís Bonaparte19, mas também contra a Prússia, em prol da uma  
união proletária pela paz, e expressando seus medos com relação aos frutos futuros  
da guerra (cf. MUSTO, 2023, pp. 164-5).  
Em março de 1871, eclodiu um dos eventos mais relevantes do século, a  
Comuna de Paris, a qual, apesar do “papel desempenhado pelos dirigentes da  
Internacional” estava, contudo, “nas mãos da ala jacobino-radical” (MUSTO, 2023, p.  
170). Dois dias após sua violenta repressão, em maio, Marx “regressou ao Conselho  
19 Observa-se que Marx já havia escrito, entre 1848 e 1850, artigos sobre Luís Bonaparte e a situação  
francesa, publicados na Nova Gazeta Renana. Esses textos foram republicados por Engels, em 1895,  
em um compilado intitulado As lutas de classes na França de 1848 a 1850. Além disso, em 1852, Marx  
publicou na revista Die Revolution o ensaio O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.  
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Geral e trouxe consigo um manuscrito intitulado A guerra civil na França (1871)”  
(MUSTO, 2023, p. 168), que também foi aprovado e publicado em nome do Conselho  
Geral da AIT, e reflete a postura ao mesmo tempo de exaltação da coragem dos  
communards e reconhecimento de sua relevância histórica, mas também de crítica a  
um movimento “que estava condenado à derrota” (MUSTO, 2023, p. 166).  
Com o fim da Comuna, os países europeus em geral se tornaram mais  
repressivos com os movimentos de oposição, e a AIT, independente de não ter tido  
parte na direção do movimento de Paris, passou a ser demonizada, juntamente com  
seus dirigentes. Marx afirmou, com tons irônicos, que teve a “honra de ser o homem  
mais caluniado e mais ameaçado de Londres” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 171).  
Assim, a tarefa do Mouro na organização agora era dupla: ao mesmo tempo “defender  
a Internacional do ataque de forças hostis e colocar por terra a influência crescente de  
Bakunin” (MUSTO, 2023, p. 171), e ele não conteve esforços para sanar, na mídia e  
nos encontros políticos, ambas ameaças. Na conferência de Londres de 1871, a AIT  
publicou uma resolução que definia o partido político (em sentidos muito distintos e  
mais amplos do que entendemos hoje)20 como um “instrumento fundamental da luta  
do movimento operário” (MUSTO, 2023, p. 174), o que foi muito mal visto pelos  
comunitaristas. Em razão de sua má recepção entre os apoiadores de Bakunin, Musto  
diagnostica a resolução como um “erro de avaliação cometido por Marx que acelerou  
a crise da internacional” (MUSTO, 2023, p. 177). Fato é que a conferência marcou o  
início de um período desfavorável à ala comunista.  
Os conflitos se aprofundaram de tal modo que, no ano seguinte, o V Congresso  
Geral da Internacional, em Haia, no qual Marx e Engels estavam presentes, marcaria o  
fim da organização, ao menos nos moldes de sua fundação em 1864. Com receio de  
a organização ser tomada por representantes de uma “seita sectária” e  
“abstencionista” comandada por Bakunin, foi votada a transferência da sede do  
Conselho Geral para Nova York, defendida também por Marx e por Engels, decisão  
que venceu por poucos votos, muito criticada não apenas pelos comunitaristas, mas  
também pelos blanquistas, que “abandonaram o congresso e, pouco depois, também  
a Internacional” (MUSTO, 2023, p. 186). Contudo, o evento acabou sendo, nas palavras  
de Musto, uma “vitória de Pirro” para Marx, pois, na verdade “agravou  
20 Nota-se que é anacrônico transpor, aqui, a definição de partido no sentido de partido político atual,  
sendo mais associada à organização geral da classe. Musto ressalta: “Convém sublinhar que, nessa  
época, a noção de partido político tinha um significado muito mais amplo do que aquele que se  
consolidou no século XX, e que a concepção de Marx era radicalmente diferente tanto da blanquista,  
com a qual acabou por entrar em conflito, como da leninista, mais tarde implantada em muitas  
organizações comunistas após a revolução de outubro.” (2023, pp. 174-5)  
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significativamente a crise da organização” (MUSTO, 2023, p. 188), e acelerou sua  
dissolução. Após sua transferência, “a Internacional foi substituída por dois  
agrupamentos de forças muito pequenos” e “sem capacidade de planejamento e  
ambição política”, os “centralistas” e os “autonomistas” ou “federalistas” (MUSTO,  
2023, p. 194), ambos os quais rapidamente foram extintos.  
À luz deste embate, Musto analisa decisões da Internacional e outros textos em  
que Marx e Engels se contrapõem ao revolucionário russo, e vice-versa, notadamente  
As chamadas cisões na Internacional (1872) de Marx e Engels; Excertos e comentários  
críticos ao “Estado e anarquia” de Bakunin (1875) de Marx; a Carta ao La Liberté de  
Bruxelas (1872) de Bakunin, e Estado e anarquia (1873), a única obra completa do  
russo. Contudo, é importante frisar que o biógrafo critica a tese de que o fim da  
Internacional se deu apenas pelos conflitos internos, ou pior, a que personifica tais  
conflitos, alegando que derivou de uma disputa pessoal entre Marx e Bakunin. A  
derrocada da organização deve ser entendida à luz de seu contexto histórico, das  
determinações objetivas dos elementos econômicos e sociais que a engendraram:  
A tese, sugerida por numerosos acadêmicos, de que foi o conflito  
entre as suas duas correntes ou, o que é ainda mais improvável, o  
conflito entre dois homens, ainda que do calibre de Marx e Bakunin,  
que determinou o declínio da Internacional, não parece convincente.  
As razões de seu fim devem ser procuradas em outro lugar. O que  
tornou a Internacional obsoleta foram, acima de tudo, as grandes  
mudanças que ocorreram fora dela. O crescimento e a transformação  
das organizações do movimento operário, o reforço dos estados-  
nação com a unificação nacional da Itália e da Alemanha, a expansão  
da Internacional em países como Espanha e a Itália, caracterizados por  
condições econômicas e sociais profundamente diferentes das da  
Inglaterra e da França, onde a associação nasceu, a definitiva guinada  
à moderação do sindicalismo inglês e a repressão que se seguiu à  
queda da Comuna de Paris, tudo isto agiu conjuntamente para tornar  
a configuração original da Internacional inadequada às novas  
condições históricas. (MUSTO, 2023, p. 187)  
Fato é que o fim da Internacional em 1872 foi também o fim de uma era muito  
relevante para Marx. A organização devia muito a ele, que foi por alguns anos um de  
seus principais líderes, e ele à organização, que também ajudou a popularizar suas  
teorias entre os trabalhadores. A data é também um marco da sua última década, dado  
seu falecimento em março de 1883.  
Entre seus recorrentes problemas de saúde, que não cessavam, na década de  
1870, especificamente entre 1872-75, Marx também se ocupava com a tradução –  
ou, melhor dizendo, edição – francesa do Livro I d’O capital, que consistiu em uma  
revisão crítica com mudanças e acréscimos em toda a obra. Outros textos relevantes  
da mesma época são um manuscrito para o Livro III, A relação entre a taxa de mais-  
valia e a taxa de lucro desenvolvida matematicamente (1875), e a Crítica do Programa  
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de Gotha (1875) sobre a unificação dos partidos socialistas na Alemanha. Além disso,  
desde 1869 o autor aprendia russo e não deixava de pesquisar sobre as mudanças  
sociais que ocorriam no país, recebendo uma série de livros e publicações de seu  
amigo e economista russo, posteriormente tradutor d’O capital, Nicolai Danielson. Em  
1875, na Alemanha, travou amizade com o historiador russo Maksim Kovalevsky, com  
quem também trocou obras e correspondências até o final de sua vida (cf. MUSTO,  
2023, pp. 206-7). Os livros teóricos lidos por Marx sem contar com as muitas obras  
de literatura que conhecia eram, em geral, tão diversos quanto seus interesses, não  
se limitando à história ou economia política. Na época passaram, por exemplo, desde  
fisiologia e botânica até formas de propriedade coletiva (cf. MUSTO, 2023, pp. 208-  
9).  
Com o advento da Guerra Russo-Turca (1877-1878), Marx se ocupou em  
estudar o que era chamado em sua época de “questão oriental” e o papel da  
reacionária Rússia tsarista, que, contudo, passava por seus próprios conflitos sociais  
internos após a (segundo Marx, lamentável) vitória de Alexandre II (cf. MUSTO, 2023,  
pp. 210-1). Na Alemanha, apesar de o Partido Socialista dos Trabalhadores da  
Alemanha (PSTA) estar se expandindo, a situação era preocupante, pois ele era cada  
vez mais dominado por tendências conflitantes com os interesses da classe  
trabalhadora. Esse foi um dos motivos que levou Marx a escrever o décimo capítulo  
da obra de Engels Anti-Dühring, contra o professor e intelectual socialista alemão (cf.  
MUSTO, 2023, p. 212) cujos apoiadores cresciam dentro do PSTA. Sobre a conjuntura  
alemã, o autor d’O capital também viu de modo negativo a tentativa do anarquista  
Karl Eduard Nobiling de assassinar o Rei Wilhelm I, resultado de uma leitura “tola” do  
contexto social que apenas acarretou no aumento das perseguições aos socialistas no  
país (cf. MUSTO, 2023, pp. 214-5). Ele entendia que os anarquistas do partido, ao  
contrário da massa de operários que o compunham, eram “um esboço da juventude  
sem problemas que quer fazer história e apenas demonstra como as ideias do  
socialismo francês [podem] se tornar uma caricatura de homens degradados de classes  
superiores” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 215). De outro lado, Marx também temia o  
avanço da “ralé do socialismo de cátedra” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 217),  
socialistas de estado que dominavam as universidades alemãs, como Adolph Wagner  
(cf. MUSTO, 2023, p. 234).  
O principal projeto de Marx ainda continuava ativo: “Entre 1877 e 1881, Marx  
redigiu novas versões de várias partes do Livro II d’O capital.” (MUSTO, 2023, p. 218)  
Entre problemas pessoais (dentre eles, o falecimento da segunda esposa de Engels em  
1878) e de saúde, dedicou-se a estudar livros sobre comércio, capital financeiro,  
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bancário, e circulação de capital em geral (cf. MUSTO, 2023, pp. 218-20).  
Paralelamente, estudava sobre “os desenvolvimentos econômicos da Rússia e dos  
Estados Unidos” (MUSTO, 2023, p. 220), chegando a afirmar que “o campo mais  
interessante para os economistas, est[ava], sem dúvida, nos Estados Unidos” (MARX  
apud MUSTO, 2023, p. 221).  
Os próprios estudos para o Livro II o levaram a, em 1878, focar em “geologia,  
mineralogia e química agrária” (MUSTO, 2023, p. 221), visando sobretudo a aumentar  
seu conhecimento sobre renda da terra (cf. MUSTO, 2023, p. 222). Não obstante a  
continuidade de seus trabalhos, o prazo para a finalização do segundo livro estava em  
suspenso, o que justificou, em uma carta para Danielson, em razão de: (1) poder  
“esperar até que a crise industrial na Inglaterra atingisse seu ponto mais alto”, (2)  
precisar estudar melhor o material que havia recebido sobre a Rússia e os Estados  
Unidos; e (3) ordens médicas para reduzir seu tempo de trabalho (cf. MUSTO, 2023,  
pp. 225-6).  
O ano de 1879 é marcado por estudos sobre Ciências naturais, química, física,  
fisiologia e geologia (cf. MUSTO, 2023, p. 229), dos quais, como sempre, tomava notas  
em seus cadernos pessoais. Em setembro, dedicou-se ao livro A propriedade comum  
da terra… (1879) de seu amigo e correspondente, Kovalevsky, que lhe fora enviado  
pelo próprio autor. Dele, tomou extratos nos quais “resumiu as diferentes maneiras  
pelas quais os colonizadores espanhóis na América Latina, os ingleses na Índia e os  
franceses na Argélia haviam regulamentado os direitos de posse” (p. 229), passando  
“formas de propriedade da terra existentes entre as civilizações pré-colombianas”  
(MUSTO, 2023, p. 229). Ademais, dedicou-se extensivamente a tomar notas referentes  
à colonização inglesa na Índia, que compõem mais da metade de seus excertos sobre  
o autor russo. Entre 1879-80, decidiu organizar uma cronologia da história indiana,  
as Notas sobre a história da índia (664-1858), baseada em diversos autores com os  
quais teve contato ao longo de sua vida, o que aponta um claro interesse do autor na  
região. Nesse período, Marx também se voltou a estudar textos sobre as comunidades  
indígenas e a economia na Austrália, resultado de seu interesse geral em entender a  
realidade das colônias inglesas. São da mesma época as Glosas marginais do Tratado  
de economia política de Wagner (1880), nas quais critica veementemente seu chamado  
“socialismo de estado” (cf. MUSTO, 2023, pp. 233-5).  
Em 1880, Marx acompanhava de perto a emergência da Federação do Partido  
Socialista dos Trabalhadores da França (FPTSF), redigindo o Programa eleitoral dos  
trabalhadores socialistas (1880), com Lafargue. Nele, escreve que, além da  
necessidade da expropriação dos meios de produção, “a emancipação da classe  
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produtiva é a emancipação de todos os seres humanos sem distinção de sexo e raça”  
(MARX apud MUSTO, 2023, p. 236). Ele via a recém formada organização como o  
“primeiro movimento real dos trabalhadores na França”, diferente de organizações  
anteriores que se constituíram enquanto “seitas que recebiam a palavra de ordem de  
seus fundadores” (MARX apud MUSTO, 2023, p. 237). Ainda em 1880, Marx organizou  
a Enquete operária (1880), um questionário publicado na Revue Socialiste a ser  
preenchido pelos operários, circulando 25 mil cópias pela França. A enquete foi uma  
iniciativa original, voltada a dar voz aos próprios operários; uma alternativa aos,  
também muito utilizados por Marx, relatórios de inspetores que constavam nos Livros  
azuis [Blue books].  
Outros eventos da época são o encontro com o jornalista liberal dos Estados  
Unidos John Swinton, que posteriormente afirmou que, ao contrário de suas  
expectativas, viu em Marx um homem de muito bom caráter. Do mesmo ano é, também,  
a Carta à Assembleia de Genebra (1880), em comemoração da revolução polonesa de  
1830, de Marx e Engels. A nível pessoal, o autor d’O capital nunca deixou de batalhar  
contra seus muitos problemas de saúde, mas agora enfrentava também uma  
deterioração na condição física de sua amada esposa, Jenny, que padecia de um grave  
câncer no fígado.  
Em seus últimos anos, Marx dedicou-se a estudos diversos. Entre dezembro de  
1880 e junho de 1881 escreveu a maior parte das notas que foram publicadas, em  
1972, na compilação denominada Cadernos etnológicos, feita por Krader, mas hoje  
disponíveis na versão digital no site da Mega2. Na vida privada, esse período foi, sem  
dúvida, bastante penoso. Enquanto suas dores reumáticas e problemas respiratórios  
pioravam, ele viu membros de sua família adoecendo. Sua querida filha mais nova,  
Eleanor (“Tussy”), passou por um sério período depressivo por volta de 1880-81, e  
sua esposa Jenny von Westphalen estava a cada dia mais fraca em decorrência do  
câncer. Sua companheira de vida morreu em 2 de dezembro de 1881, aos 68 anos  
(cf. MUSTO, 2023, p. 254). Por este advento trágico, somado à necessidade própria  
de recuperação, Marx viaja, sob recomendação médica de mudança de “ares”, para a  
Argélia, aportando em Argel em 20 de fevereiro de 1882. Estimulado pelo novo  
ambiente, estudou sobre o país e a cultura árabe, e, em suas cartas “atacou, com  
indignação, os abusos violentos dos colonizadores franceses em Argel” (MUSTO, 2023,  
p. 259). Contudo, sua condição física não melhorou, ao invés, o isolamento do restante  
de sua família surtiu-lhe um efeito negativo, fazendo-lhe retornar à Europa pouco  
tempo depois, desembarcando já no dia 5 de maio (cf. MUSTO, 2023, p. 259).  
Mesmo diante de intempéries, Marx manteve-se ativo intelectualmente. Outros  
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textos relevantes do “último Marx” são o Caderno B 168 / B 150 (duplamente  
numerado em sua capa), de outubro 1882, no qual estão, dentre outras21, suas notas  
sobre The origin of civilisation and the primitive condition of man (1870), de John  
Lubbock; e uma cronologia de fatos importantes da história mundial, desde o século I  
aC (1881-2). São da mesma época a famosa carta à Vera Zasulich (1881) e o “Prefácio”  
à edição russa do Manifesto do partido comunista (1882)22. Os últimos meses de Marx,  
em 1883, foram vividos em Londres. Já bastante debilitado, sofreu mais uma perda  
irreparável, a de sua filha: “Em 11 de janeiro [de 1883], antes mesmo de completar  
39 anos, Jenny morreu de câncer na bexiga.” (MUSTO, 2023, p. 264) A partir de então,  
a deterioração de Marx se agravou rapidamente, e desenvolveu um abscesso pulmonar.  
O autor d’O capital faleceu às 14h45 do dia 14 de março de 1883, e a seu amigo  
Engels, coube “‘fazer alguma coisa’ com seus manuscritos inacabados” (MUSTO, 2023,  
p. 266). Marx se foi, mas, como ressalta Musto, “nunca o abandonou a certeza de que  
muitos outros continuariam seu trabalho teórico e que milhões deles, em todos os  
cantos do mundo, continuariam a luta pela emancipação das classes subalternas”  
(MUSTO, 2023, p. 266).  
Marx e o projeto de uma sociedade emancipada  
“E nós bradamos: A revolução está morta! Viva a revolução!”  
Karl Marx, As lutas de classes na França  
A quarta parte da biografia escrita por Musto, “A teoria política”, é voltada para  
analisar a dialética do capitalismo e o caráter da sociedade comunista. Parte da leiga  
crítica, aponta Marx como um teórico que teve uma visão positiva da sociedade civil-  
burguesa, e até mesmo etapista23 ou evolucionista da história, por tratar da  
possibilidade do comunismo como engendrada pelo modo de produção capitalista.  
Musto, contudo, explica como essas inferências são equivocadas, na medida em que:  
1) Marx não coloca que as sociedades devem passar por estágios históricos  
necessários; e 2) as condições para o comunismo serem engendradas no interior da  
sociedade capitalista é devido ao desenvolvimento da produção humana em geral, não  
a uma visão engessada da história. O biógrafo resume essas condições da seguinte  
maneira:  
[...] constituem os pré-requisitos fundamentais para o possível  
surgimento da sociedade comunista [...]: 1) a cooperação do trabalho;  
21  
Notadamente, notas sobre Egyptianf finance (1882), de Michael George Mulhall; e Spoiling the  
Egyptians, de Sheldon Amos (1882).  
22 Para entender mais sobre os textos do “último Marx” sobre a Rússia, cf. Souza (2025).  
23 Para entender as críticas à concepção de que Marx seria um “etapista histórico”, cf. Heleno (2019).  
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2) o aporte científico-tecnológico para a produção; 3) a apropriação  
das forças da natureza pela produção; 4) a criação de grandes  
máquinas que só podem ser usadas em conjunto pelos operários; 5)  
a economia dos meios de produção; 6) a tendência a criar o mercado  
mundial (MUSTO, 2023, p. 273).  
O modo de produção capitalista inaugura um índice de produção nunca antes  
alcançado pela humanidade, ao mesmo tempo que cria “uma classe que tem de  
suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens” (ENGELS;  
MARX, 2007, p. 2.007). Ou seja, os produtos do trabalho humano não são acessados  
por aqueles que os produzem. Tem-se, por exemplo, de um lado, a capacidade de  
produzir, transportar e armazenar uma imensidão de alimentos, muitos descartados  
no lixo; de outro, a fome e a miséria24. Contudo, já existindo tal capacidade tecnológica,  
produtiva, a possibilidade de uma sociedade que não sofra de fomes periódicas em  
razão de secas naturais, já está dada pela própria realidade. Marx era “profundamente  
contrário ao ditame produtivista do capitalismo” (MUSTO, 2023, p. 278), mas o  
exemplo utilizado por nós serve para demonstrar que não se trata de romantizar a  
sociedade civil-burguesa, e sim de situar a possibilidade do comunismo  
historicamente, pensamento foi mantido por Marx ao longo de toda sua vida:  
[...] com continuidade, desde as primeiras formulações da concepção  
materialista da história na década de 1840 até suas últimas  
intervenções políticas na década de 1880, Marx destacou a relação  
entre o papel fundamental do incremento produtivo gerado pelo  
modo de produção capitalista e as pré-condições necessárias para o  
surgimento da sociedade comunista pela qual o movimento dos  
trabalhadores deveria lutar (MUSTO, 2023, pp. 279-80).  
Apesar de considerar que o capitalismo fornece as pré-condições do  
comunismo, Marx “negou inúmeras vezes – tanto em textos publicados quanto em  
manuscritos não publicados que tivesse concebido uma interpretação unidirecional  
da história, segundo a qual os seres humanos estavam destinados a seguir o mesmo  
caminho em todos os lugares e, além disso, por meio dos mesmos estágios” (MUSTO,  
2023, pp. 281-2). O autor d’O capital é veementemente contrário à posição de que  
todas as sociedades devem fazer uma revolução civil-burguesa, e “durante os últimos  
anos de sua existência” dedicou-se a refutar “a tese, erroneamente atribuída a ele, da  
inexorabilidade histórica do modo de produção burguês” (MUSTO, 2023, p. 282).  
24 É válido pontuar que exemplo dado por nós não pode ser considerado um problema de distribuição  
de alimentos, como trata boa parte do socialismo vulgar, na medida em que não é possível dissociar a  
distribuição do modo de produção. Nas palavras de Marx: “A distribuição dos meios de consumo é, em  
cada época, apenas a consequência da distribuição das próprias condições de produção; contudo, esta  
última é uma característica do próprio modo de produção. [...] O socialismo vulgar (e a partir dele, por  
sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar  
a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo  
como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição.” (MARX, 2012, p. 25)  
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Com essas condições dadas pela revolução industrial inglesa, o próprio Marx  
deixa explícito em sua carta à Vera Zasulich (1882), que a Rússia do século XIX, por  
exemplo, já poderia fazer uma transição ao comunismo através de sua própria comuna  
rural, sem antes realizar uma revolução burguesa, “trocando de pele sem cometer  
suicídio (MARX in ENGELS; MARX, 2013, p. 100). Para ele, “a contemporaneidade da  
produção ocidental, que domina o mercado mundial, permite à Rússia incorporar à  
comuna todas as conquistas positivas produzidas pelo sistema capitalista sem passar  
por seus forcados caudinos [fourche caudines]” (MARX in ENGELS; MARX, 2013, p. 94).  
Nesse sentido, Marx entendia que a “história da Rússia, ou de qualquer outro país, não  
precisava refazer todas as etapas que marcaram a história da Inglaterra ou de outras  
nações europeias” (MUSTO, 2023, p. 284). Essa postura não é uma “ruptura dramática  
com suas convicções anteriores”, mas, para Musto, o “amadurecimento de sua posição  
teórico-política” (MUSTO, 2023, p. 285). Para nós, não é uma mudança, e sim uma  
consequência de seu pensamento anterior, acrescido agora de novos estudos  
específicos sobre a Rússia.  
Marx teve a oportunidade de criticar em vida as “interpretações” equivocadas  
que entendiam O capital como uma fórmula das etapas da história de todos os países,  
e “dogmatismos” desse tipo que surgiam em seu nome (cf. MUSTO, 2023, p. 289). Ele  
contestou, por exemplo, Mikhajlovsky por “transfigurar seu ‘esboço da gênese do  
capitalismo na Europa Ocidental em uma teoria histórico-filosófica da marcha universal  
fatalmente imposta a todos os povos, qualquer que seja sua situação história’” (MARX  
apud MUSTO, 2023, p. 283). A escolha da Inglaterra como o enfoque d’O capital se  
dá em razão da forma clássica de entificação do capitalismo, sendo o país na qual as  
determinações específicas da sociedade civil-burguesa já estavam colocadas, à época  
de Marx, de modo mais evidente, como ele próprio explica no “Posfáciode sua obra25.  
Apesar de ler autores evolucionistas, Marx nunca foi afetado por essa tendência, como  
Musto explica em sua biografia sobre o “último” Marx:  
Todos os autores lidos e resumidos por Marx nos Cadernos  
etnológicos haviam sido influenciados com nuances distintas pela  
teoria evolucionista que imperava à época, e alguns deles eram  
também defensores convictos da superioridade da civilização  
burguesa. Um estudo dos Cadernos etnológicos mostra claramente  
que Marx não sofreu nenhuma influência dessas asserções  
25  
O que pretendo nesta obra investigar é o modo de produção capitalista e suas correspondentes  
relações de produção e de circulação. Sua localização clássica é, até o momento, a Inglaterra. Essa é a  
razão pela qual ela serve de ilustração principal à minha exposição teórica, mas, se o leitor alemão  
encolher farisaicamente os ombros ante a situação dos trabalhadores industriais ou agrícolas ingleses,  
ou se for tomado por uma tranquilidade otimista, convencido de que na Alemanha as coisas estão longe  
de ser tão ruins, então terei de gritar-lhe: De te fabula narratur [A fábula refere-se a ti]! (MARX, 2017,  
p. 78)  
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ideológicas. (2018, p. 39)  
A última seção do capítulo da teoria política é dedicada a traçar o “perfil da  
sociedade comunista”. Antes de Marx, destacam-se os socialistas “críticos-utópicos”,  
que cumpriram uma função histórico-crítica específica, apesar de suas visões  
moralistas e seus projetos irrealizáveis (cf. MUSTO, 2023, pp. 292-3), e de que nunca  
alcançaram o estatuto de crítica aos reais fundamentos da sociedade civil-burguesa.  
Após a revolução francesa, emergiu a suposição de que “todos os males da sociedade  
acabariam assim que fosse estabelecido um sistema de governo fundado na igualdade  
absoluta de todos os seus membros” (MUSTO, 2023, p. 293), o igualitarismo, que foi  
um “princípio orientador da Conspirações dos Iguais”, defendida, por exemplo, por  
François-Noël Babeuf e Sylvain Maréchal (MUSTO, 2023, p. 294). Musto analisa as  
ideias e vertentes do igualitarismo desde a revolução francesa até meados do século  
XX. Eles eram baseados em uma “ideologia igualitária ingênua” como solução dos  
problemas sociais, baseadas em uma imposição “de cima para baixo” (MUSTO, 2023,  
p. 295).  
Outra corrente relevante dos primeiros socialistas, defendida por, dentre outros,  
Henri de Saint-Simon, Charles Fourier, Robert Owen e Étienne Cabet, apostava “que a  
elaboração teórica de melhores sistemas de organização social era uma condição  
suficiente para mudar o mundo” (MUSTO, 2023, p. 296). Muitos deles tinham de fato  
o “compromisso de promover o surgimento de pequenas comunidades alternativas”  
(MUSTO, 2023, p. 297), todas as quais, sabe-se, tiveram o mesmo destino fatal. Esses  
movimentos eram, essencialmente, antirrevolucionários. Com o tempo, “suas  
organizações se tornaram [...] seitas políticas dogmaticamente vinculadas a sistemas  
teóricos que já estavam predeterminados e, portanto, completamente desvinculadas  
dos conflitos reais da classe trabalhadora” (MUSTO, 2023, p. 299), como tratam Marx  
e Engels no panfleto da AIT As ditas cisões na Internacional (1872) e na chamada Carta  
circular (1879).  
Marx “refutou a ideia de que [sua teoria] poderia ser a inspiração para um novo  
credo político dogmático” e “se recusou a propor a configuração de um modelo  
universal de sociedade comunista” (MUSTO, 2023, p. 302), por exemplo no “Posfácio  
à segunda edição(1873) do Livro I d’O capital e nas Glosas marginais sobre Wagner  
(1879-1880). Ainda assim, ele escreveu sobre o comunismo, no que Musto classifica  
por três grupos textuais distintos: 1) críticas às concepções de socialismo de outros  
autores; 2) “escritos sobre luta e propaganda política destinados às organizações da  
classe proletária de sua época” (MUSTO, 2023, p. 304); e 3) observações críticas ao  
modo de produção capitalista que geram reflexões sobre o comunismo. Contudo,  
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ressalta, “suas anotações [...] não devem ser avaliadas como o modelo marxista a ser  
adotado dogmaticamente, nem, muito menos, como as soluções que [...] deveriam ter  
sido aplicadas, indiferenciadamente, em diferentes lugares e épocas” (MUSTO, 2023,  
p. 304).  
O comunismo não é a aplicação de um ideal, mas uma sociedade emancipada26,  
sem classes e sem política, baseada na associação de seres humanos livres e na  
produção coletiva (cf. MARX, 2017, p. 153), que parte “de cada um segundo suas  
capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, 2012, p. 25). As  
condições objetivas para a existência da sociedade comunista estão dadas, mas não  
faz sentido deliberar, a partir do arcabouço categórico marxiano, sobre um modelo  
afirmativo de como a revolução será e como a sociedade comunista se organizará,  
redundando em utopias sem fundamento ou futurologias crassas. É necessário retirar  
as deturpações amplamente disseminadas sobre o sentido de comunismo e resgatar  
o projeto revolucionário marxiano em seu sentido profundamente emancipatório.  
A partir da obra de Musto, é possível notar como Marx nunca foi um intelectual  
apartado em sua “torre de Marfim” – não há uma cisão entre “teoria” e “prática” em  
sua obra; elas são, ao invés, indissociáveis. Em sua vida, Marx teve uma postura de  
participação ativa e de agregação dos movimentos de esquerda, sem nunca abandonar  
seus próprios pensamentos ou poupar seus pares de duras críticas. Criticando o  
materialismo contemplativo, Engels e Marx (2007) redigiram a famosa tese 11: “os  
filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é  
transformá-lo” (p. 535), objetivando romper com a oposição entre filosofia e mundo.  
A transformação material do mundo depende da devida compreensão da realidade, e  
vice-versa:  
A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o  
poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria  
também se torna força material quando se apodera das massas. A  
teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad  
hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser  
radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o  
próprio homem. (MARX, 2013, pp. 151-2)  
Assim, entender a realidade é também intervir nela as armas da crítica nas  
mãos das massas são força material. Marx é muito maior que qualquer tipo de  
deturpação economicista, etapista ou evolucionista de sua teoria, ou de toda crítica  
26  
“[...] a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver  
recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual  
na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver  
reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ [forças próprias] como forças sociais e, em consequência,  
não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política.” (MARX, 2010, p. 54)  
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que tenta vendê-lo como um teórico eurocentrista e colonialista a ser descartado. Não  
se trata de não o entender como um europeu do século XIX, e sim reconhecer que ele  
foi muito além dos preconceitos burgueses da ideologia dominante em seu tempo,  
partindo de um projeto de emancipação material dos seres humanos em geral.  
Espaço de discussão  
Como mencionamos anteriormente, nos tempos atuais tem ressurgido um  
grande interesse na vida e obra de Marx, impulsionado pela recente publicação de  
muitos cadernos de anotações do “último Marx” pela Mega2, antes inéditos ao público.  
Assim, os textos dessa época, nos quais Marx trata de questões como gênero,  
colonialismo, dentre outros, têm sido alvo de grandes debates na tradição marxista.  
Se para Edward Said, Marx apresenta uma visão “orientalista romântica”, a qual  
mantém até o final de sua vida (cf. SAID, 2012, p. 197), há uma corrente que defende  
que esses textos marcam uma mudança radical de pensamento de Marx, em que ele  
deixa de lado supostas tendências eurocêntricas anteriores. Para Michael Löwy (2020),  
por exemplo, os Cadernos etnológicos mostram a “evolução de Marx, a partir de  
posições eurocêntricas, em direção a uma crescente abertura ao ‘Outro’” (p. 23), de  
modo que “A morte interrompeu um extraordinário processo de reelaboração, de  
reformulação, de reinvenção do materialismo histórico e da teoria da revolução”  
(LÖWY, 2018).  
Jean Tible (2020) propõe um Marx selvagem a partir dos escritos do “último  
Marx”. Para ele, o filósofo, ao final da vida, volta-se “às sociedades sem classes em  
busca de inspiração para futuras organizações” (TIBLE, 2020, p. 104). Assim, os  
cadernos representariam uma virada do pensamento marxiano em direção a outros  
povos, uma “mudança em que o autor passa a valorizar por si mesmas as experiências  
e formas de resistência que ocorrem fora dos países da Europa Ocidental” (TIBLE,  
2020, p. 93). Para ele, essas sociedades serviriam de “modelo” para o comunismo, de  
modo que elas servem de inspiração como contraposição, apesar do avanço das forças  
produtivas, à desigualdade que acompanha evolução da técnica: “na visão de Marx –  
e de vários marxistas haveria um elo entre comunismo primitivo e comunismo  
moderno que resolveria essa contradição, unindo o pré e o pós-capitalismo” (TIBLE,  
2020, p. 99), isto é, “um elo entre passado e futuro, tradição e porvir” (TIBLE, 2020,  
p. 104). Nesse sentido, nos extratos do “último Marx” e n’A origem da família… “a  
conclusão de Morgan é retomada por Marx e Engels assim como as formas sociais  
igualitárias e sem classes constituem inspiração para futuras organizações” (TIBLE,  
2020, p. 104), já presente em outros de seus textos, mas intensificado na obra de  
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ambos na década de 1880.  
A biografia de Musto mostra um olhar distinto sobre o “último Marx”. Para ele,  
o autor d’O capital manteve-se a par da história e dos acontecimentos de países de  
fora do velho continente não apenas ao final de sua vida, mas ao longo de toda ela –  
evidentemente, a partir dos limites do material disponível em sua época. Além disso,  
entende que Marx “nunca desejou um retorno ao passado, mas sim, como anotou nos  
extratos sobre Morgan, o advento de um ‘tipo superior de sociedade, baseado em uma  
nova forma de produção e um modo diferente de consumo” (MUSTO, 2023, p. 248).  
Nesse sentido, Marx nunca teve como “solução” uma “reedição socialista do ‘mito do  
bom selvagem’” (MUSTO, 2018, p. 37), mas a construção de um novo tipo de  
sociedade, que, além disso, “não surgiria por meio de uma evolução mecânica da  
história, mas somente por meio da luta consciente dos trabalhadores” (MUSTO, 2023,  
p. 248).  
Entendemos que “Marx não estava revisando e reformulando todo seu  
arcabouço teórico anterior, mas, na verdade, colhendo seus resultados” (ANDRADE,  
2025, p. 36), e ao olhar para seu percurso teórico, isso se confirma. Igualmente, o  
filósofo não trata de comunidades sem estado buscando um modelo de inspiração  
para a sociedade comunista não se trata de olhar para o passado, até mesmo porque  
várias dessas sociedades foram contemporâneas a ele, e existem ainda no presente.  
Não há uma “receita de bolo” para a revolução ou para o comunismo, como tentaram  
os chamados “socialistas utópicos”, pois projetar um modelo na realidade é impossível.  
Para Marx (2012): “Cada passo do movimento real é mais importante do que uma  
dúzia de programas” (p. 17) – trata-se de partir do real, do existente.  
Ademais, Marx não parte das conclusões de Morgan, mas critica o romantismo  
mistificador com do estadunidense diante das sociedades ditas “primitivas”.  
Entendemos que se “Morgan transporta princípios burgueses até as comunidades que  
analisa, como fraternidade, igualdade e democracia”, Marx, por outro lado, opõe a ele  
sua própria visão acerca da história, criticando a transposição anacrônica de ideais  
burgueses até sociedades distintas, e “a todo momento remontando às relações reais  
e concretas” (ANDRADE, 2025, p. 202).  
De um modo geral, nota-se como o estudo da relação entre a vida e obra de  
Marx é essencial para entendermos seu pensamento em torno de sua gênese, estrutura  
e função. Ante a tais “novos rostos de Marx”, percebe-se como ele foi um pensador  
muito à frente de seu tempo e, em certo sentido, também muito à frente de nosso,  
tendo muitas contribuições pouco exploradas, seja em razão de materiais ainda não  
publicados ou de perseguições políticas e deturpações posteriores feitas com seu  
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“Novos rostos de Marx”  
arcabouço teórico. Apresenta-se um teórico muito interessado em se manter atualizado  
sobre as pesquisas mais avançadas de sua época sobre as mais variadas sociedades.  
Longe de se circunscrever às noções tradicionais de um economista, um cientista  
político, sociólogo, historiador etc., ou até um “filósofo” em sentido estrito, Marx era  
um pensador que não se limitou diante da divisão parcelar do conhecimento.  
Como Musto ressalta, ao longo de toda sua trajetória intelectual, Marx  
foi, ainda que apátrida, um verdadeiro “cidadão do mundo”:  
O mundo inteiro, portanto, estava contido em seu escritório. Mesmo  
permanecendo sentado à escrivaninha, por meio de seu estudo das  
transformações sociais nos Estados Unidos, das esperanças nutridas  
pelo fim da opressão colonial na índia, do apoio à causa feniana, da  
análise da crise econômica na Inglaterra e da atenção dedicada às  
eleições na França, Marx observava constantemente os sinais dos  
conflitos sociais que se desenvolviam em todas as latitudes do globo  
terrestre. Onde quer que emergisse, ele tentava acompanhá-los.  
Não é sem razão, é verdade, costumava dizer de si mesmo: “Sou um  
cidadão do mundo, e ajo onde me encontro”. Seus últimos anos de  
vida não desmentiram esse modo de ser. (MUSTO, 2018, p. 57)  
Nesse sentido, se, por um lado, reconhecer e humanizar a trajetória de Marx  
contribui para tirá-lo de um “pedestal” muito comumente atribuído aos grandes  
pensadores, por outro, fortalece também uma visão contrária a certas tendências que  
o postulam como antiquado ou preso às determinações de seu próprio tempo. A obra  
de Musto é muito frutífera para a formação de uma visão realista sobre essa  
personalidade tão controversa, e vem em um momento em que essa tarefa é da mais  
suma importância. A partir dessa biografia, é evidente como boa parte da leiga crítica  
ao autor d’O capital é insustentável, pois ao contrário da imagem muito disseminada  
por movimentos anticomunistas mas também por uma parcela de marxistas , Marx  
não é um pensador etapista, evolucionista ou eurocentrista, e nunca considerou  
“apenas” a luta entre burgueses e operários, ou “apenas” a Europa ou a Inglaterra.  
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Como citar:  
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v. 30, n. 2, pp. 402-431, 2025.  
Verinotio  
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nova fase  
DEBATES  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.785  
Dialética do sionismo1  
Maurício Tragtenberg*  
O sionismo aparece como um fato “revolucionário”: leva pessoas a deixarem  
seu país para viver uma vida radicalmente diversa, renunciando à sua origem social, à  
sua língua, à sua cultura, às suas relações sentimentais, rompendo brutalmente com  
seu passado, para reconstruir sua vida. Os únicos precedentes paralelos são as  
Cruzadas e os emigrados que fundam os Estados Unidos. Nos futuros estados-nações  
não estava previsto um lugar para os judeus. Eles eram “diferentes”. Mais e mais[, ]  
largar tudo e construir um “lar nacional” animava os judeus. Todos esses movimentos  
nacionais tinham uma matriz comum: voltados ao passado, cada povo cada povo  
cuidava de inventar um passado nacional glorioso, pretendendo marcar por sua  
existência o retorno a uma “idade de ouro”. Era natural que os primeiros sionistas, na  
lógica dos movimentos nacionalistas da época, [tivessem] a tendência a ver num  
território nacional a solução do problema judeu e visualizar na sua vida num novo  
estado um prolongamento da história judaica, após curta interrupção de 2.000 anos.  
Os velhos reinos judeus criaram a primeira comunidade, centrada no Primeiro Templo.  
Após o retorno do exílio babilônio, a segunda comunidade judaica instituiu-se em  
torno do Segundo Templo. Era chegado o momento de criar uma Terceira  
Comunidade, um estado judeu moderno, um verdadeiro Terceiro Templo. O  
pensamento político sionista torna-se inseparável de uma mística religiosa. Embora  
Herzl, o autor de O estado judeu, não fosse movido por uma inspiração messiânica,  
com o contato [com] as massas judaicas da Europa Central, convence-se de que essa  
mística era essencial ao sionismo.  
Outro elemento integra o desenvolvimento do nacionalismo judaico: o ideal  
socialista. Para os jovens judeus dos guetos da Rússia e da Polônia, os evangelhos  
eram Marx, Tolstói. O trabalho manual exerce uma atração mágica sobre esses jovens  
que assistem seus parentes envelhecerem como comerciantes ou usurários. Todas  
essas aspirações resumem-se numa só: partir, não ser mais uma minoria sem defesa,  
1
[Publicado originalmente na revista Nova Escrita Ensaio, São Paulo, Ensaio, ano IV, n. 10, pp. 105-  
13, 1982. Revisado por Vânia Noeli Ferreira de Assunção. NE]  
*
[1929-1998]. Cientista político e professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação  
Getúlio Vargas (FGV), professor da PUC/SP onde lecionou por vários anos e da Faculdade de Educação  
da UNICAMP.  
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à mercê da primeira tropa de cossacos que encontram no judeu o “bode expiatório”  
da incapacidade do tsarismo em atender aos reclamos populares.  
Deixar essa miserável existência que leva ao autodesprezo do corpo e do  
espírito. Trabalhar a terra e se libertar pelo contato místico com ela, nossa mãe. Criar  
uma sociedade sem senhores e escravos, onde todos serão iguais. Realizar isso no  
“seu” país, marchar nas esteiras dos antigos heróis de seu povo, ressuscitar uma  
comunidade judia, viver nos espaços dos relatos bíblicos, tal era o sonho. Esse sonho  
maravilhoso, exaltante, conduziu inúmeros jovens judeus da Europa Central a uma  
província turca denominada Palestina.  
Esse movimento de libertação, puro e corajoso, se propunha a criar uma  
sociedade harmoniosa onde a única luta a ser travada era a luta contra si mesmo; no  
meio de tanto entusiasmo um fato perdeu-se de vista: a Palestina já era um território  
habitado.  
O sionismo político inicia-se com a obra de T. Herzl O estado judeu, que trata  
da “habitação dos trabalhadores”, da “aquisição de terras”, dos “operários não  
qualificados”; tudo é previsto, inclusive as cores da nova bandeira nacional.  
Em toda a obra de Herzl não há uma só menção sobre a existência dos árabes  
palestinos. Explica-se quando Herzl sonha com o “estado judeu” pensando em localizá-  
lo em qualquer lugar, Argentina, Canadá ou Uganda. Somente quando redige o último  
capítulo de seu livro verifica que só a Palestina como espaço do futuro “estado judeu”  
seria capaz de mobilizar emocionalmente as massas judias da Europa Central. Para ele,  
o “estado judeu” na Palestina se constituiria num “ponto firme da civilização contra a  
barbárie”, num “posto avançado da Europa na Ásia”.  
Chaim Weizmann que se tornou primeiro presidente de Israel , no Congresso  
Sionista de 1931, admite que Herzl não ligava necessariamente o sionismo a um  
estado judeu, nem [apontava] a Palestina como sede.  
Weizmann nota que, no Primeiro Congresso Sionista em 1897, quando Herzl  
admite a ideia de a ressurreição do povo judeu dar-se na Palestina, a fórmula “estado  
judeu” desaparece de suas declarações. O programa sionista adotado pelo Congresso  
preocupa-se em “assegurar uma existência legal aos judeus na Palestina”.  
Era a época do apogeu do imperialismo, aureolado de glória e idealismo,  
quando os poemas de Kipling cantam o “fardo” do homem branco em territórios  
inóspitos. Cecil Rhodes era convertido em herói. Não se relacionava o ressurgimento  
da Ásia ou África com o surgimento dos nacionalismos europeus.  
O sionismo no seu início não é somente o produto dos nacionalismos europeus,  
faz parte da última vaga da expansão imperialista. O sionismo apareceu cem anos  
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depois, sem poder beneficiar-se do movimento da expansão europeia, 30 anos antes,  
para encontrar a resistência afro-asiática à sua presença em terra árabe.  
Os sionistas, por ocasião do Congresso da Basiléia de 1897, não conheciam a  
Palestina, onde jamais puseram os pés. Só conheciam uma realidade: a Europa, com  
seus “pogroms”, discriminações e terríveis presságios de futuras tragédias. Sabiam  
vagamente que a Palestina possuía alguns habitantes, mas isso na época não constituía  
um centro de preocupações.  
Herzl era um europeu, e suas ideias, respostas a situações europeias. Os  
sionistas contemplavam o passado do povo judeu, e não a paisagem da Palestina.  
Sion e a menor colina de Jerusalém tornam-se símbolo religioso, local da palavra  
divina. A estrela de David é o símbolo do novo movimento. O novo estado escolhe  
a “menorah”, o candelabro do templo, como símbolo agregado. Nesse universo  
simbólico não há espaço para o período não hebraico da história da Palestina, muito  
menos para a herança gloriosa de outras nações semíticas irmãs.  
Herzl procurava o apoio das grandes potências para seus projetos, daí dirigir-  
se ao sultão da Turquia: “Se Sua Majestade, o sultão, nos desse a Palestina, poderíamos  
comprometer-nos a estabilizar completamente as finanças da Turquia. Para a Europa,  
constituiríamos ali um bastião contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da  
civilização contra a barbárie. Manteríamos, como estado neutro, relações constantes  
com toda a Europa, que deveria garantir nossa existência.” (HERZL, 1926, p. 95)  
Eis o sionismo colocado no quadro das políticas imperialistas europeias. O texto  
aprovado significava, no pensamento dos fundadores, visar à autonomia da Palestina  
judia, sob a soberania do sultão, com a garantia das grandes potências.  
Outro traço da política de Herzl era especular com o antissemitismo e com o  
desejo de se desembaraçar da população judia, para promover a emigração à  
Palestina. Assim, em 1903, Herzl obteve [aval] do ministro tsarista Plehve, organizador  
de “pogroms”, iniciando uma tradição política em que a convergência do programa  
sionista com o dos antissemitas, abertamente reconhecida por ele, tornava-se quase  
fatal. Plehve promete ao sionismo “apoio material e moral, na medida em que certas  
de suas medidas práticas sirvam para diminuir a população judia na Rússia”, conforme  
relata Bernfeld (1920, pp. 399ss).  
Isso leva Herzl a dizer que “até hoje, meu partidário mais ardente é o  
antissemita de Petersburgo (hoje Leningrado) Ivan V. Simonyi”, conforme relata A.  
Chouraqui (HERZL, 1926, p. 141). Witte, ministro das Finanças do tsar, explica a Herzl  
que, “se fosse possível afogar no Mar Negro seis ou sete milhões de judeus, ficaria  
perfeitamente satisfeito com isso; mas, como tal não é possível, nesse caso, devemos  
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deixá-los viver”. Quando Herzl observa que espera do governo russo certos estímulos,  
ele responde: “Mas damos aos judeus estímulos para emigrarem como, por exemplo,  
pontapés.” (HERZL, 1926, pp. 301ss). Herzl reconhece: “Objetar-me-ão razoavelmente  
que faço o jogo dos antissemitas quando proclamamos que constituímos um povo, um  
povo único.” (HERZL, 1926, p. 259)  
A realização do estado sionista liga-se a um ato político inglês, a Declaração  
Balfour, de 2/11/1917. Por que motivos a Inglaterra emitiu a Declaração Balfour?  
Para alguns antissemitas, ela o fez para compensar os pretensos esforços dos judeus  
norte-americanos para arrastarem os Estados Unidos para a guerra ou pelas vultosas  
compras de títulos de guerra pelos judeus ingleses, ou pela teoria romântica, segundo  
a qual a “declaração” se deu como resposta à invenção de um poderoso explosivo por  
Heinz Weizmann utilizado pela Inglaterra. [O que mostra] como é inaceitável a tese de  
Chaim Weizmann, segundo a qual isso se deu por obra da sedução exercida pelo  
grande retorno sionista no espírito dos ingleses impregnados pela Bíblia (como ele  
formula em WEIZMANN, 1950, p. 226).  
Sabia Weizmann que uma potência empenhada numa guerra de alcance mundial  
não se moveria por razões metafísicas para conferir aos sionistas um lar nacional  
judeu” na Palestina, daí escrever ele que, “ao apresentar-vos a vossa resolução,  
confiamos o nosso destino nacional e sionista ao Foreign Office e ao Gabinete de  
Guerra Imperial, esperançados em que o problema seria considerado à luz dos  
interesses imperiais defendidos pela ‘Entente’(WEIZMANN, 1950, p. 258).  
Os grandes motivos da Declaração Balfour foram outros. Foram os efeitos de  
propaganda esperados sobre os judeus dos impérios centrais e da Rússia, na  
esperança de colher benefícios na futura liquidação do Império Otomano. Os judeus  
da Alemanha (onde esteve instalada a sede da Organização Sionista até 1914) e da  
Áustria-Hungria tinham sido conquistados para o esforço de guerra pelo fato de se  
tratar de combater a Rússia tsarista, perseguidora dos judeus. No território russo  
conquistado, os alemães apresentavam-se como protetores dos judeus oprimidos,  
como libertadores do jugo moscovita. “Por demasiado tempo haveis sofrido o jugo de  
ferro moscovita”, declara, na sua proclamação aos judeus da Polônia, o Alto Comando  
dos Exércitos Alemão e Austro-Húngaro em agosto/setembro de 1914. É irônico,  
depois da experiência que se seguiu com o nazismo , ler esta violenta denúncia dos  
“pogroms” e do antissemitismo tsarista. Os partidos social-democrata alemão e austro-  
húngaro utilizavam também o álibi da luta contra o tsarismo como reacionário e  
antissemita para justificar seu apoio ao governo na guerra imperialista.  
Por outro lado, a Revolução Russa reforçava as tendências derrotistas na Rússia.  
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Atribuía-se aos judeus papel importante na Revolução Russa. Era fundamental dar-lhes  
motivos para apoiarem a causa aliada. Não constitui mera coincidência [o fato de] a  
Declaração Balfour surgir cinco dias antes de 7 de novembro (25 de outubro, no  
calendário juliano), em que os bolcheviques tomaram o poder. Um dos objetivos da  
Declaração era apoiar Kerensky. Pensava-se também na força dos judeus norte-  
americanos, pois os Estados Unidos juntaram-se aos Aliados, daí ser necessário obter  
um esforço máximo quando neles predominava a tendência ao pacifismo. Isso  
confirmado pela declaração de Lloyd George à Palestine Royal Commission em 1936:  
“Os dirigentes sionistas fizeram-nos a promessa firme de que, se os aliados se  
comprometessem a dar-lhes facilidades para o estabelecimento de um lar acional na  
Palestina, fariam o que estivesse ao seu alcance para mobilizar os sentimentos e o  
auxílio dos judeus à causa aliada através do mundo. Fizeram o melhor que podiam”,  
conforme G. Lencowski (1962, pp. 81ss). Era necessário antecipar-se aos sionistas  
alemães e austríacos que negociavam com os seus governos uma espécie de  
“Declaração Balfour”, conforme relata K. J. Herrmann (1965, pp. 303-20).  
Enquanto isso, as grandes potências manobravam junto a Hussein para uma  
revolta contra os turcos em troca de um grande reino árabe; no mesmo momento o  
acordo Sykes-Picot partilhava em 1916, na mesma região, as zonas de influência entre  
Inglaterra e França; essa utilizava suas relações com os libaneses para edificar a  
“Grande Síria” (incluindo a Palestina), não era mau dispor no Oriente Médio de uma  
população ligada à Inglaterra pelo reconhecimento e necessidade. Converter a  
Palestina em problema especial, atribuindo à Inglaterra uma responsabilidade  
particular, que era obter base sólida de reivindicação na partilha após a guerra.  
Weizmann insistiu no seu pedido à Inglaterra para que ela exercesse um  
protetorado sobre o futuro estado judaico (1950, p. 243). A vitória sobre o Império  
Otomano na Palestina e Síria permitiu a aplicação da “Declaração Balfour”.  
Segundo Weizmann, até 1918 a questão árabe estava em segundo plano e os  
sionistas a tinham negligenciado. Porém, a fase de realização do sionismo coincide  
com o surgimento do movimento nacionalista árabe. Ainda era possível uma aliança  
entre o sionismo e o movimento nacional árabe; o dirigente árabe mais importante  
oferecia na época aos sionistas um estado autônomo reunido à Síria sob sua coroa;  
30 anos depois o rei Abdullah, irmão de Faiçal, fazia o mesmo. Mas a direção do  
movimento sionista instalada na Palestina após 1918 não o aceitou. Nenhum de seus  
membros tinha a mais leve noção do que era o movimento nacionalista árabe, a união  
contra o imperialismo lhe parecia sem importância. Faiçal mostra-se favorável ao  
estabelecimento de uma comunidade judaica na Palestina sob sua coroa. No seu  
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universo tribal, a raça se constituía em fator importante, ele considerava os judeus  
membros da família semítica. Numa de suas “Mensagens”, ele desculpa-se por não  
poder comparecer a uma das assembleias da Organização Sionista por razões  
puramente circunstanciais, ajuntando que “tais manifestações são importantes para a  
compreensão entre duas nações unidas por tão antigos laços”. Em 1919 ele manifesta-  
se junto ao líder judeu norte-americano, Felix Frankfurter: “Sabemos que árabes e  
judeus são irmãos de raça. Faremos tudo que estiver ao nosso alcance para aceitarmos  
as propostas sionistas na Conferência de Paz e acolheremos de todo coração os judeus  
que se juntarem a nós. O movimento judeu não é um movimento imperialista, é um  
movimento nacional. Creio verdadeiramente que, para atingir seus objetivos, cada um  
de nós precisa do outro.” O acordo Faiçal-Weizmann previa a formação de um grande  
estado árabe apoiado pela Organização Sionista e o apoio árabe à formação de um  
estado palestino. Isso jamais foi realizado. Faiçal colocou como condição a aceitação  
de suas pretensões à Síria junto à Conferência de Paz; fazia o acordo depender da  
outorga da independência árabe, sem o que não valia. Os franceses invadem Damasco,  
depõem Faiçal, reprimem o nacionalismo sírio e palestino. Mas em 1920, na  
Conferência de San Remo, as teses sionistas são aceitas pelas grandes potências.  
A situação tem seu desfecho com o mandato conferido à Inglaterra, concedido  
pela Sociedade das Nações a 24 de julho de 1922, com a finalidade de criar um estado  
de coisas destinado ao estabelecimento de um lar nacional na Palestina aos judeus.  
Algumas conclusões parciais se impõem. A realização de um projeto sionista  
iniciou-se depois, graças a um ato político obtido da Grã-Bretanha pela pressão da  
Organização Sionista. Com isso, esperava a Inglaterra obter o apoio à sua política geral  
em relação aos judeus da Rússia e dos Estados Unidos, também em função de seus  
interesses no Oriente Médio após a decadência do Império Otomano. A Inglaterra  
conciliava o apoio ao projeto sionista com o apoio à dinastia hachemita. Os dirigentes  
sionistas ajudaram essa conciliação mantendo em hibernação a ideia de um estado  
judeu, contentando-se em reivindicar direito a emigração de judeus à Palestina. Razão  
pela qual os palestinos árabes podem legitimamente considerar que a implantação de  
um elemento estrangeiro novo (o europeu) lhes foi imposto por uma nação europeia,  
graças à vitória militar de um grupo de nações europeias contra um outro grupo a  
que aderiu o Império Otomano.  
A reivindicação da independência do estado de Israel ante a Inglaterra tem  
como base a existência, em 1943, de 539.000 judeus, ou seja, 31,5% da  
população total, quando em 1922 a proporção não atingia 11%. Essa imigração  
maciça só foi possível com o apoio inglês. Daí os dirigentes sionistas sob mandato  
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inglês reclamarem o reforço do corpo de polícia britânica e se oporem a qualquer  
organismo representativo que diminuísse, por pouco que fosse, a autoridade do alto  
comissário.  
Os mesmos acontecimentos que serviram de base para a instalação de um  
estado judaico serviram para desembaraçar os árabes do jugo turco. Porém, em vez  
do estado árabe unitário independente, eles assistiram à “balcanização” da região  
pelas potências ocidentais, dividida a região entre a França e a Inglaterra. Enquanto,  
porém, as organizações nacionalistas árabes tinham como base de suas reivindicações  
as massas locais, as organizações sionistas tinham contra elas a maioria do povo do  
país onde queriam estabelecer um estado soberano.  
A Inglaterra publica o Livro branco em 1939, onde rechaça a ideia de um  
estado judeu englobando toda a Palestina, ao mesmo tempo em que limita a imigração  
e a venda de terras a sionistas. O nazismo tornou-se num elemento de pressão do  
judaísmo na Palestina, contrário ao Livro branco e às limitações à imigração. Em fins  
de 1943, a população judia na Palestina atingia 32%.  
Isso possibilitava ao sionismo falar claro: “O fim do sionismo manteve-se  
inalterável desde Herzl: a transformação da Palestina numa pátria judaica, a fundação  
de um estado judeu. Por motivos de tática política, esse fim nem sempre foi  
abertamente enunciado. Mas o desenvolvimento da Palestina e do problema judaico  
em geral atingiram um tal grau de maturidade que se tornou necessário falar claro.”  
(WEIZMANN, 1950, p. 139)  
No Livro branco a Inglaterra tornava claro que o estabelecimento de um lar  
nacional judeu na Palestina não significava impor a nacionalidade judia a todos os  
habitantes da Palestina, mas desenvolver a comunidade judaica já existente com o  
concurso de judeus de outras partes do mundo. A Organização Sionista decidiu aceitar  
o Livro branco supondo que “se for aplicado oferece-nos um quadro para constituir  
uma maioria judaica na Palestina e para levar à eventual fundação de um estado judeu”  
(WEIZMANN, 1950, p. 361).  
Foi com o acordo sionista sobre a interpretação da Declaração Balfour excluindo  
um estado judeu que foi apresentado na Liga das Nações o projeto do texto  
concedendo à Inglaterra o mandato sobre a Palestina, que a Liga das Nações retificou  
a 24 de julho de 1922.  
Com isso não concordava a facção “revisionista” dirigida por Jabotinsky, no  
seio da Organização Sionista; pleiteava ela uma ação militar que constituísse o estado  
judeu nas duas margens do Jordão, sem levar em conta os árabes.  
Bem ou mal, a Inglaterra representou junto à comunidade judaica na Palestina  
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o papel de metrópole de uma colônia de povoamento, devido ao apoio ao crescimento  
dela, da mesma maneira como protegeu a colonização britânica na América do Norte,  
e a França, a colonização francesa.  
A primeira revolta dirigiu-se contra a Inglaterra, daí a formação das unidades  
terroristas do “Irgun” e “Grupo Stern”, quando surge o “Programa de Baltimore”, que  
pede um estado judeu sobre toda a Palestina e um exército judaico e a imigração  
ilimitada de judeus à Palestina. Isso fez passar ao segundo plano a questão árabe.  
O que impressiona é ver jovens exaltados em querer livrar “seu país” da tirania  
inglesa não lembrarem que os “indígenas árabes” teriam algo a dizer também. Embora  
grupos árabes se dirigissem ao “Irgun” oferecendo-se para combater contra o  
imperialismo inglês. Porém, nesse momento, a ideia de um estado binacional entra em  
desuso, ficando claro que no futuro estado instalado na Palestina judaizada pela  
imigração ilimitada os árabes teriam que escolher entre a subordinação e a imigração.  
Por isso, em 1946, Martin Buber censurava o sionismo oficial por procurar  
firmar-se mais em acordos internacionais em vez de um acordo na região com os  
árabes, interessados diretos. Daí precisar ele que “o Programa de Baltimore (nome de  
um hotel americano onde se realizou a reunião da Organização Sionista), interpretado  
como reconhecendo o objetivo da ‘conquista’ do país mediante manobras  
internacionais, não só desencadeou a cólera árabe contra o sionismo oficial, mas tornou  
suspeitos todos os esforços tendentes a uma compreensão entre judeus e árabes”  
(BUBER; MAGNES; SIMON, 1947, pp. 7-13).  
Daí veio a partilha decretada pela ONU, não aceita pelos árabes, que  
desencadeou a “Guerra de Independência” de Israel. Porém, é necessário entender  
que, para as massas árabes, aceitar as decisões da ONU significava uma capitulação  
sem condições perante um diktat da Europa, do mesmo tipo que a capitulação dos  
reis negros ou amarelos do século XIX ante os canhões ocidentais apontados para  
seus palácios. A Inglaterra, como potência mandatária na Palestina, impediu uma  
reação indígena para expulsar esses colonos, ao mesmo tempo em que se dava a  
garantia falaciosa de que se tratava da implantação pacífica de alguns grupos  
perseguidos e inofensivos, destinados a permanecer minoritários. Quando o designo  
real deles se revela, o mundo euro-americano, com a União Soviética, queria impor  
aos árabes o fato consumado. Roosevelt e Truman não prometeram que não tomariam  
nenhuma decisão a respeito da Palestina sem consultar judeus e árabes, em cartas a  
Ibn Seud de 5/4/45 e 28/10/46? Após a Guerra, a minoria árabe em Israel ficou  
sendo considerada quinta-coluna, daí a ampliação das medidas discriminatórias que já  
estava sofrendo havia tempos.  
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Isso leva-nos a uma conclusão particular. A implantação na Palestina de uma  
nova população de origem europeia se deu em consequência de um movimento  
ideológico europeu, o sionismo. Alcançou sua finalidade: o domínio sobre o território  
onde se implantavam os imigrantes, graças à Declaração Balfour, com força de direito  
internacional pela vitória dos Aliados sobre o Império Otomano, graças à força da  
comunidade judaica na Palestina, com sua capacidade de manipular técnicas modernas,  
armas e organização do poder de pressão de que dispunha na Europa e América. Alie-  
se o sentimento de culpa europeu pelo genocídio cometido pelos nazistas, seus irmãos  
de cultura europeia, e seu desejo de se desculpar, sem grande mal, em detrimento dos  
árabes palestinos. No decurso do processo, desejos, sentimentos e aspirações árabes  
não foram levados em consideração. O acordo Faiçal-Weizmann nascera morto, pois o  
primeiro não conseguiu o apoio das massas árabes para suas reivindicações. Por outro  
lado, a história tem sua lógica interna: querer criar um estado judeu na Palestina árabe  
no século XX só conduziria a uma situação colonial, com um tipo de racismo e  
afrontamento militar de etnias.  
Fundamentar em direitos históricos a colonização sionista é não conhecer a  
história. O último estado verdadeiramente independente da Palestina desapareceu a  
63 aC, quando Pompeu se apoderou de Jerusalém.  
Esse processo termina com a revolta de Bar Kochba contra o imperialismo  
territorial romano a 135. A população judia na Palestina diminuiu em consequência  
das deportações e da escravização, mas sobretudo pela emigração (já considerável  
muitos séculos antes da perda da independência) e pela conversão de inúmeros judeus  
ao paganismo, cristianismo e islamismo. É muito provável que os habitantes  
considerados árabes da palestina possuíam mais “sangue” hebraico do que a maior  
parte dos judeus da Diáspora (Dispersão), cujo exclusivismo religioso não impedia a  
absorção dos convertidos de origem diversa. O proselitismo religioso foi importante  
na própria Europa Ocidental, durante séculos, e o mesmo ocorreu em outros locais  
durante longos períodos. Historicamente, bastará para nos convencermos disso evocar  
o estado judeu da Arábia do Sul no século XI, de base árabe meridional judaizada, o  
estado judeu turco dos Khazars, no sudeste da Rússia nos séculos VIII a X, os judeus  
assimilados da China, os judeus negros do Cochim, os Falashas da Etiópia. Admite-se  
que o grupo heterogêneo formado por todos os judeus do mundo permanecesse em  
contato com o judaísmo religioso, fosse considerado dotado de caracteres  
permanentes a despeito de suas mudanças internas; cabe perguntar: como seria  
possível atribuir-lhes direitos sobre um território determinado? Nesse caso, poderiam  
os árabes reivindicar a Espanha.  
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O caráter colonial da implantação do sionismo na Palestina reside no fato de  
que o sionismo não desejava as riquezas do país, mas sim a substituição da mão de  
obra árabe pela judaica na Palestina. A compra de terras, pela Organização Sionista,  
dos latifundiários árabes levou o “felah” à exclusão do processo produtivo: quanto  
mais aumenta a compra sionista de terras, mais aumenta o número de camponeses  
árabes sem terra. É a colonização sionista que cria reativamente o nacionalismo árabe.  
Os camponeses árabes diaristas, despojados de suas terras, são a base do problema  
palestino. Inimigo da assimilação judia, o sionismo crê que possa assimilar os árabes  
a seu projeto.  
A criação de uma central sindical ao mesmo tempo empresarial, como a  
Histadruth, que integra o “trabalho judeu” nas suas fileiras e exclui o árabe, é um dos  
fundamentos de uma formação econômico-social de “apartheid”. Trabalho “judeu” e  
produção “judia” são a base da Histadruth. Ela é a responsável por 20% do produto  
bruto produzido.  
Segundo o líder trabalhista sionista Tabenkin, o movimento operário sionista,  
sofrendo concorrência da mão de obra árabe, estabelece uma economia judia nova. O  
processo de autocriação de uma classe operária judia em Israel se dá pela expulsão  
da mão de obra árabe das colônias judias e a criação de uma economia sionista nova,  
fundada sobre a colonização operária, por meio do fundo nacional e instituições  
associadas. Como a mão de obra judia é mais cara que a árabe, o empresário judeu é  
subsidiado pela Organização Sionista para aceitá-la.  
Após a proclamação do estado de Israel, verifica-se a espoliação metódica das  
terras árabes; assim publicava em 1948 uma Proclamação de rgência sobre as  
propriedades de pessoas ausentes, elevada a lei em 1950 com o título “Lei sobre a  
Propriedade de Pessoas Ausentes”. Considera-se ausente o camponês árabe em Israel  
que abandonou seu antigo domicílio antes de 1/8/48 ou que se instalou por qualquer  
razão naquelas áreas da palestina controladas por forças opostas ao estado de Israel  
entre 29/11/47 e a abolição do “estado de emergência” instituído pelo governo  
em 19/4/48.  
[O caso de] muitos dos árabes “ausentes” se deveu ao temor do campesinato  
árabe [da] repetição do massacre da aldeia de Deir Yassin, onde a “Irgun”, exército  
terrorista de Beguin, massacrou mais de 200 camponeses com mulheres e crianças. A  
lei permite ao governo declarar “zonas fechadas” por razões de “segurança” qualquer  
área. Para se entrar ou sair tem que se ter uma justificação escrita passada pelo  
comandante militar. Muitas das zonas de aldeia foram declaradas “zonas interditas”  
depois de seus habitantes terem sido expulsos. Com isso, comodamente suas terras  
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Maurício Tragtenberg  
foram confiscadas. Com as “leis de emergência” em vigor, o ministro da Defesa recebia  
poderes para declarar “zona de segurança” qualquer região de Israel, dela expulsando  
todos os habitantes, dez dias depois dessa Declaração. Foi assim que foram expulsos  
à força os habitantes árabes camponeses de duas aldeias da Galileia, Ikret e Kfar  
Baram. Apelaram ao Supremo Tribunal; antes que ele se pronunciasse, o Exército  
dinamitou as casas dos aldeões. Em 1953, foi promulgada a Lei sobre a Propriedade  
Fundiária, seis meses depois, com base na lei, foram confiscadas terras de 250 aldeias  
árabes. Para fixar a indenização expropriatória, fixou-se o preço do dunan (dez dunans  
valem um hectare) em vigor em janeiro de 1950, valendo cinco vezes menos que em  
1953, quando a lei entrou em vigor. Em 1958, promulgou-se a Lei de Prescrição, uma  
emenda de leis otomanas que fixava em dez anos o período segundo o qual poderia  
o camponês que trabalhava a terra registrá-la em seu nome. A Lei de Prescrição  
estende para 20 anos o prazo, tornando impossível muitas vezes que o camponês  
registrasse a terra em seu nome, permitindo ao estado de Israel pôr as mãos sobre  
uma superfície de terras árabes, que atingem muitos milhões de dunans. Surgiu a Lei  
da Ordenação Fundiária (desapropriação por interesse público) em 1943; com ela, o  
governo apropriou-se de grande parte das terras árabes em volta de Nazaré,  
construindo uma cidade judaica.  
Igual expropriação se deu na região onde se construiu a cidade judaica de  
Carmelo. Isso contraria a resolução das Nações Unidas de 29/11/47, que estipula:  
“Não se poderá proceder a qualquer expropriação de terra de um árabe, no estado  
judaico, salvo em casos de interesse público. Em todos os casos de expropriação, o  
Supremo Tribunal fixará o montante da indenização que terá que ser paga  
integralmente antes de se proceder à expropriação.” Os bens religiosos (Wakfs)  
islâmicos foram expropriados pelo estado, que retirou da comunidade islâmica o seu  
usufruto, apoderando-se de sua administração, apossando-se de seus rendimentos. Os  
bens islâmicos produzem grandes lucros, porém, a comunidade muçulmana em nada  
se beneficia, daí a estagnação de suas atividades religiosas e culturais.  
No campo, a implantação do “kibutz”, a exploração coletiva da terra por quem  
nela trabalha, se dá em terras de “refugiados” árabes onde se dá a exploração da  
mão de obra árabe, especialmente nas terras confiscadas. Nas mãos do capital  
bancário que o absorve, o “kibutz” se torna uma exploração coletivista da mão de obra  
assalariada árabe das aldeias próximas. Quando instalado na fronteira, integra-se no  
Exército de Israel para vigiar a volta de “infiltrados”, [que] são os “árabes expropriados,  
transformados em ‘refugiados’ e mortos como ‘infiltrados’”.  
A estrutura coletivista do “kibutz” insere-se na mecânica da economia  
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capitalista de Israel; eles são integrados no mercado capitalista e dele dependem.  
Ocupam mais de 70% da terra cultivada, seus componentes na sua maioria são  
mestres, contramestres e administradores. Se se suprimi[sse] a mão de obra assalariada  
árabe, eles desapareceriam, na sua maioria. Na Galileia, foram instalados 20 “kibutzim”  
em terras expropriadas de camponeses árabes. Entre 1948 e 1953, foram instalados  
370 novos “kibutzim”, em Nazaré foram expropriados 120 hectares de terras em 1956  
para fundar “kibutzim”.  
As “zonas ocupadas” pelo estado de Israel têm como finalidade suprir a  
burguesia israelense de mão de obra a preço vil, explorando um trabalhador sem  
defesa sindical. Em suma, economia “autárquica” judaica fechada ao “árabe” palestino,  
expropriação deste e sua transformação em “refugiado”, discriminação racial, criando  
um cidadão de segunda classe: o estado sionista procura realizar-se pelo  
expansionismo a pretexto de “defesa”. Os massacres de Sabra a Chatila mostram até  
que ponto o racismo pode levar ao extermínio; aliás, os judeus sentiram-no em sua  
pele na II Guerra Mundial. Seria o caso de não transformar os palestinos nos “judeus  
do século XX”.  
Referências bibliográficas  
BERNFELD, Marcel. Le sionisme : étude de droite international public. Paris : Jouve,  
1920.  
BUBER, Martin; MAGNES, Judah Leon; SIMON, Ernst Akiba. “Part II”. In: Towards union  
in Palestine : essays on Zionism and Jewish-Arab cooperation. Jerusalem: Ihud  
(Union) Association, 1947.  
HERRMANN, Klaus J. Political response to the Balfour Declaration in imperial Germany:  
German Judaism. Middle East Journal, XIX, 3, 1965, pp. 303-320.  
HERZL, T. L’état juif. Paris : Lipschutz, 1926.  
LENCOWSKI, George. The middle East in world affairs. Ithaca, N.Y.: Cornell University  
Press, 1962.  
WEIZMANN, Chaim. Trial and error. London: East and West, 1950.  
Como citar:  
TRAGTENBERG, Maurício. Dialética do sionismo. Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2,  
pp. 432-443, 2025.  
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ENTREVISTA  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.784  
E n t r e v i s t a  
_____  
Constituinte e revolução  
Entrevista com Florestan Fernandes  
*
J. Chasin (JC): Há quase dez anos estivemos aqui mesmo, nesta sala,  
entrevistando o intelectual. Ora, neste intervalo muitas coisas aconteceram,  
reordenaram sua prática e, por certo, algo de sua vida. Mas gostaria de dizer ao  
cidadão Florestan que, hoje, quando conversaremos sobre sua existência de deputado,  
quero continuar entrevistando o intelectual. Isso tem uma boa dose de malícia, porque  
está subentendendo a independência em relação a tudo, a reconhecida independência  
que sempre caracterizou o intelectual Florestan Fernandes. Eu quero que ele olhe para  
o deputado, que é hoje, e fale com a mesma tranquilidade.  
Florestan Fernandes (FF): Posso falar com a mesma tranquilidade, porque me  
mantive um intelectual. Tanto é verdade que, apesar de um certo entusiasmo inicial  
pela atividade parlamentar, dentro da Assembleia Nacional Constituinte e mais tarde  
na Câmara, acabei me desinteressando. Durante o ano passado usei o "pinga-fogo", o  
"grande expediente" e o "debate de temas constitucionais" que resultou numa pequena  
publicação de discursos. Em seguida, somente quando foi necessário ao partido fui  
rotineiramente à tribuna. Preferi ser o intelectual, visto que seria inútil transformar-me  
num político profissional. Este, no Brasil, tem um perfil tão complexo, e ao mesmo  
tempo tão pouco atraente, que o esforço não valeria a pena. Conheci gente boa, gente  
ruim, gente de esquerda, de direita, com a qual se pode conversar, mas nem por isso  
a tentação de pertencer ao parlamento chegou a se cristalizar, tanto que não saberia  
o que fazer, caso o PT me pedisse para voltar a ser candidato, coisa que não é muito  
* Entrevista concedida a J. Chasin, Ricardo Antunes, Antônio Rago Filho, Paulo Douglas Barsotti e Maria  
Dolores Prades em fevereiro de 1989. [Publicada originalmente na Revista Ensaio, São Paulo, Ensaio,  
n. 17/8, pp. 123-58, 1989. Revisada por Vânia Noeli Ferreira de Assunção.]  
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certa. Acho que, para alguém que é socialista, não é por dentro do parlamento que se  
dá a possibilidade de fazer alguma coisa, a não ser lutar por certas condições, certos  
pré-requisitos da atividade política dos de baixo, daqueles que são excluídos da  
sociedade civil em termos materiais, culturais e políticos. Na verdade, não se tratou de  
uma vitória do intelectual. A carga política de nosso parlamento é de tal natureza que  
bloqueia a assimilação daqueles que têm outras aspirações, outras esperanças. No  
entanto, ainda que mantenha aquela ideia fundamental de que uma revolução  
democrática é essencial para a mobilização política dos trabalhadores tanto na cidade  
quanto no campo, não acredito que isso seja algo que passe por uma instituição, mas  
muito pela própria atividade organizada dos trabalhadores. Aliás, cheguei a me  
pronunciar sobre esta questão, ainda que fosse impossível fazer um discurso socialista,  
pois a instituição está tão envolvida na defesa da ordem que ela não assimila uma  
palavra socialista. Os discursos dos deputados mais radicais do PT, do PC do B, do  
PCB, do PSB acabam se conformando a essa magra perspectiva da politização  
"democrática" da nossa burguesia.  
É um parlamento controlado pelas classes dominantes, instrumento do  
executivo, cuja hegemonia é exercida de forma direta. Ela é tão forte que explica o  
porquê de os partidos não conseguirem crescer, terem vitalidade própria, dinamismo.  
A nossa burguesia não precisa de partidos no rateio do poder, ela o faz sem eles, que  
são apenas instrumentos para estabelecer ajustamentos superficiais. Daí o fato de os  
políticos pularem de partido como macaco pula de galho. O partido não possui  
substância. Apesar de possuir conteúdo político-ideológico, não tem condições  
materiais para efetivá-lo. Isso não é uma descoberta minha recente; melancolicamente,  
é algo que todos já sabíamos, embora não a traduzíssemos de uma forma tão  
contundente como agora, através de uma linguagem concreta, de uma linguagem que  
é fruto de uma experiência.  
Maria Dolores Prades (MDP): Fale dessa experiência...  
FF: Bem, há grande habilidade nos políticos que lidam com o parlamento como  
técnica de estado a serviço da monopolização do poder. Como o aparato do estado é  
um aparelho de monopolização, não de democratização, os líderes partidários não  
entendem as reivindicações dos partidos reais de minorias radicais, revolucionárias, e  
quando entendem fingem que não o fazem, porque isso não é algo que lhes convém  
entender e discutir.  
Antônio Rago Filho (ARF): Por que não se trata de combinar interesses, mas  
de impô-los?  
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FF: Na verdade, trata-se de excluir. Foi graças ao meu prestígio como intelectual  
que acabei enfrentando uma situação inicialmente estranha: os parlamentares, de  
modo geral, não gostam que se leve para fora o que acontece lá dentro. É como se  
um companheiro rompesse as regras do jogo. Atualmente, já se habituaram e até ficam  
contentes de ter um intelectual como ornamento da casa. Existem senadores e  
deputados que não são de esquerda, mas que leem os meus artigos e, curiosamente,  
são os que mais discutem comigo, são os mais solidários, talvez por contingência,  
porque a esquerda não é solidária.  
Paulo Douglas Barsotti (PDB): A esquerda, além dessa postura, não se  
preocupa muito com sua preparação intelectual.  
FF: Veja, eu respeito os companheiros de esquerda. É duro ser de esquerda lá  
dentro, mesmo que seja uma esquerda física.  
PDB: Nominal?  
FF: Mas tem uma esquerda combatente, que inclusive travou e trava sérias  
batalhas. Quando acontecia alguma coisa, os senadores e deputados do centro e de  
direita vinham conversar, gostavam que eu estivesse ali. Todos me conheciam, me  
cumprimentavam, e eu ficava meio perplexo com o fato de ignorar as dimensões reais  
daquele mundo. Fiz amizade duradoura com alguns, inclusive com o Bisol.  
No Congresso ou na Constituinte, o Bisol, que é senador pelo Rio Grande do  
Sul, tornou-se um companheiro inseparável, tanto que se sentava na bancada do PT,  
tendo lugar cativo ao meu lado. É um excelente intelectual, radical em termos de  
posição, mas não em termos de atividade. Este é o quadro: o intelectual que existia  
dentro de mim está intacto e o político "profissionalfeneceu antes de nascer.  
JC: Isso não me surpreende.  
FF: Aliás, não seria mau se tivesse me tornado um político profissional, porque  
acredito que seria um político profissional de um outro tipo. Não do mesmo calibre  
que os da burguesia. Dominando as técnicas parlamentares necessárias para combater,  
mas mantendo uma integridade de esquerda, fazendo o discurso necessário tendo em  
vista mudanças das quais o Congresso não será o instrumento.  
JC: Bem, de algum modo o intelectual no parlamento está mais ou menos  
caracterizado, assim como uma flor exótica, enquanto personalidade que ganha o  
respeito, a atenção e até mesmo o "carinho de convivência" inclusive da direita. O que  
o intelectual no parlamento consegue, para além dessa acolhida?  
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FF: Não consegue nada. É claro que teria vantagem ao correr uma lista, se o  
fizer, as pessoas assinam, pois a maioria diz: "aquilo que vem de você assino sem ler”.  
Consegui um diálogo e, às vezes, até mesmo arredondar um artigo da Constituição,  
como aconteceu numa discussão com alguns deputados e senadores do PFL. Mas isso  
é apenas um dos aspectos, não o fundamental. Para alguém que é socialista, isto é  
uma pobreza, talvez a pobreza da própria esquerda, pois ela é pouco numerosa para  
alterar os dinamismos do parlamento. Na medida em que as classes trabalhadoras, de  
um lado, contribuem para eleger políticos do centro e, de outro, raramente elegem  
representantes saídos de suas fileiras, o que faz com que a composição da esquerda  
seja débil demais.  
Ricardo Antunes (RA): Sem dúvida alguma.  
FF: Quando ocorria uma votação de caráter ideológico extremo, juntavam-se  
uns 40, 50, 60 votos. Para conseguir alguma coisa era preciso uma coligação com  
elementos do centro, ou então acordos interpartidários, e aí já se punha em jogo um  
fato elementar: ao fazer-se o acordo, o essencial para a esquerda volatizava-se. Neste  
contexto, o acordo faz parte de uma estratégia de dominação política, que não se  
rompe facilmente.  
Para que o parlamento e todo o estado mudassem de caráter, seria preciso que  
a própria sociedade civil desse maior peso, maior força às classes trabalhadoras. A  
alternativa seria extraparlamentar, mas essa, por sua vez, seria esmagada pela "mão  
armada" da burguesia... Ainda com relação ao intelectual, há um problema muito grave:  
a visão que eu tinha do estado brasileiro, até certo ponto, era simplista. Acreditava ser  
possível, através das representações que os partidos de esquerda conquistaram,  
introduzir no parlamento como no caso europeu um clima em que o socialismo  
tivesse algum significado e que as reivindicações populares ressoassem com maior  
vigor. Por isso, na minha campanha prometi, um pouco precipitadamente, levar, como  
intelectual, as minhas profissões de fé socialistas, marxistas para o parlamento. Mas  
foi uma promessa inteiramente equivocada. Não conhecia bem a realidade do  
parlamento, da representação política em nosso país e pensava que naquela onda de  
transformações, que estávamos vivendo, seria possível conter a pressão que vinha no  
sentido da manutenção de uma forma de estado que é a ditadura com um novo  
revestimento. Pensava que conseguiríamos difundir lá dentro mensagens mais claras,  
mais profundas dos anseios não só proletários, mas populares...  
"O processo de transformação se desencadeia a partir da classe e não do estado."  
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ARF: Mas este espaço é inexistente.  
FF: Estava equivocado. Esta não é uma promessa que possa ser feita depois de  
vivida a experiência com que me defrontei. Seria demagogia...  
JC: É muito importante essa colocação e não me surpreende, porque estava  
particularmente convencido de que, no contexto do nosso momento histórico, o  
parlamento, em realidade, não absorveria nada mais incisivo. Estou contente com esse  
seu depoimento, por essa verdadeira autocrítica em relação à campanha. Todavia,  
parece-me que foi a campanha que lhe deu as maiores satisfações de ordem política,  
até o momento, possibilitando um diálogo de profundidade que no parlamento foi  
impossível.  
FF: Sim, na campanha pude, por assim dizer, exercitar os músculos e ganhar  
impulso. Num certo sentido, imaginei que poderia servir ao proletariado, mas,  
infelizmente, o instrumento não era aquele; poderia ser, em outras condições, se as  
classes trabalhadoras tivessem maior peso e voz ativa na sociedade civil. Como dizem  
os dois mestres, Marx e Engels, a chave está na sociedade civil. Estado e sociedade  
civil são interdependentes, mas o processo de transformação se desencadeia a partir  
da classe e não do estado. O parlamento pode atingir o modo de ser do estado,  
possibilitando a criação de um novo padrão de vida, de certas reformas vitais para o  
trabalhador, permitindo que ele possa viver de maneira mais decente. Mas para ir além  
é preciso que a própria classe trabalhadora tenha meios de transformar sua relação  
com a burguesia. Nós vivemos numa sociedade na qual as classes trabalhadoras não  
acertaram as contas com a burguesia, a não ser num plano muito restrito, das  
reivindicações salariais do movimento sindical. A pressão da classe trabalhadora, hoje,  
atingiu um nível tal que permitiria uma maior repercussão no parlamento. Porém, sua  
organização de classe e os partidos que podem representá-la continuam muito débeis.  
Quer dizer, o PT, o PC do B, o PCB, o PSB não foram além de promessas, algumas  
claramente de radicalismo burguês, outras definidamente socialistas, social-  
democratas ou marxistas, mas, de fato, o problema da reforma e da revolução ainda  
não foi colocado de jeito contundente, como seria desejável. O uso de certas  
instituições continua decididamente nas mãos dos esquemas que monopolizam esse  
instrumento de poder, como parte do aparato de dominação de classe. É um caso  
curioso, porque se ouve um sociólogo do valor de Fernando Henrique dizer que o  
estado não é mais um comitê para gerir os negócios comuns da burguesia...  
PDB: Parece-me que o próprio Chico de Oliveira também andou defendendo  
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teses nessa mesma direção, na revista Teoria e Debate.  
FF: Na verdade, o estado moderno já ultrapassou essa condição. Todavia, não  
se pode pensar num comitê mais eficiente! Ainda que a esquerda esteja presente e  
obtenha algumas conquistas visíveis na Constituição, estas conquistas perdem o  
caráter proletário-socialista e nem sequer ganham o sentido de reformas estruturais  
burguesas propriamente ditas, pois resultam sempre do acordo, da conciliação; se a  
burguesia cede alguma coisa, ela também neutraliza riscos candentes e obtém ganhos  
compensadores. Estamos também no solo histórico brasileiro...  
JC: Sim, são dimensões que, no conjunto, têm dissolvidos seus significados  
implícitos.  
FF: É. Certa vez aconteceu uma coisa curiosa, um político do PMDB disse-me:  
“Florestan, você não pode imaginar o que a presença do PT representou aqui. Ele nos  
obrigou a mudar completamente o nosso estilo de atuação.” O PT contribui para  
avançar, criou maior seriedade, maior percepção da necessidade de uma ação  
organizada, exigente, com caráter permanente!  
ARF: Deu um pouco mais de trabalho...  
FF: Sim, mas nem por isso temos uma Constituição tão distinta, seja da  
Constituição mistificadora da ditadura, a de 67/69, seja da de 46. É nitidamente uma  
Constituição melhor, com uma ampliação da temática, uma redefinição das liberdades  
fundamentais, dos direitos sociais, mas tudo isso ainda é um avanço no terreno  
abstrato. Veja que os trabalhadores, os aposentados, precisam recorrer à justiça para  
descobrir se certas disposições constitucionais são aplicáveis ou não e para conseguir  
impô-las, nem sempre com êxito!  
PDB: Isso sem falar da necessidade de regulamentação.  
FF: São contestadas, são proteladas...  
PDB: Regulamentações que desmentem claramente artigos que, em princípio,  
estão consagrados.  
FF: Sim. Um exemplo muito importante é o das medidas provisórias. Elas  
servem para mostrar, de um lado, o quanto o executivo está interessado em  
desmoralizar o parlamento, em impedir que este exerça suas prerrogativas. O executivo  
não quer ceder nem um mínimo de sua parcela de poder, eis o ponto. O judiciário, por  
sua vez, procura manter-se fora desse embate. O poder central tem uma grande  
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capacidade de pressão sobre o judiciário. Por outro lado, este possui uma identidade  
de classe muito firme. Os lobbies mais fortes dentro do parlamento lutavam por  
privilégios. Entre eles estava o do judiciário. Tanto que a parte referente à organização  
do estado na Constituição continua arcaica. É uma carta de privilégios. Não mudou  
nada. A introdução das medidas provisórias artificio que permitiria ao poder  
executivo enfrentar um problema emergencial de gravidade acabou servindo para  
que o executivo agisse de forma arbitrária e, ao mesmo tempo, ostensivamente  
negativa em relação ao Congresso Nacional. Na verdade, confundiram deliberadamente  
medida provisória com decreto-lei, inundando o Congresso Nacional com tais medidas.  
O executivo tem ao alcance das mãos um meio para paralisar o Congresso Nacional,  
pois ficamos girando em torno da discussão de tais medidas. Isso foi produto de uma  
imitação da Espanha e da Itália. Mas nós não estamos nem na Espanha nem na Itália,  
não temos um regime parlamentarista. Além disso, nosso presidente é cada vez mais  
irresponsável perante os demais poderes e a nação. Consequentemente, a medida  
provisória acabou se tornando um instrumento do arbítrio do poder presidencial, do  
poder imperial, da república autocrática. Esse é um bom exemplo: os poderes que  
deveriam ser independentes, autônomos, reciprocamente fiscalizados, acabam não o  
sendo, na medida em que só existe um poder verdadeiro e hegemônico, o executivo.  
Os políticos, por sua vez, não lutam contra isso, já que a grande maioria está muito  
mais presa ao executivo do que ao parlamento. O nexo oculto da dependência está no  
clientelismo. Quem dispõe de meios para dar ao político profissional e aos partidos –  
que são partidos da ordem recursos para a reeleição e para ganhar eleições é o  
executivo. Assim, o poder de contestação do parlamento é mínimo. Este não tem como  
defender suas prerrogativas, nem apoio popular suficiente para ousar um passo à  
frente. Caso contrário, o executivo fecha as portas do legislativo e... tchau.  
"Há uma esquerda parlamentar importante, mas não é uma esquerda do proletariado,  
mas da burguesia."  
JC: Esta consciência da debilidade do parlamento em face de um poder  
autocrático, tal como descrito em suas palavras, é, nas pequenas bancadas de  
esquerda e especialmente no PT, algo consciente?  
FF: Não sei. Raramente tenho conversado sobre isso com os colegas. O modo  
pelo qual o governo usou as medidas provisórias criou rapidamente uma consciência  
generalizada de que as coisas não poderiam continuar daquela maneira. Só os  
parlamentares mais comprometidos com o governo é que defendiam as medidas  
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provisórias. Se o governo tentasse aumentar a inundação, teria sido provável que uma  
maioria dentro da casa saísse vitoriosa contra os demais. Duvido que o governo  
conseguisse arriscar-se incolumemente, pois em todos os partidos surgiram facções  
ou núcleos de parlamentares que se revoltaram, que viram o parlamento ameaçado.  
Tratava-se não apenas de um abuso, mas de um processo de desgaste com vistas,  
inclusive, a uma justificativa para encerrar o funcionamento do legislativo ou provocar  
o afastamento de certos partidos. Contudo, mantém a chaleira em ebulição e o  
Congresso cede...  
RA: Lembro-me que um dos pontos que você levantava constantemente, nos  
seus artigos e durante sua campanha, dizia respeito à formação um leque de forças de  
esquerda na Constituinte, que era vista como um dos terrenos possíveis de atuação.  
Passado este processo constituinte, que balanço faz dessa proposta?  
FF: Posso dizer que, de fato, houve um arco de centro-esquerda e de esquerda  
que acabou sendo minoritário, o qual reunia os radicais muito heterogêneos, que  
pertenciam ao PMDB e que depois se transformaram, em sua maioria, num novo  
partido, o PSDB. O centro teve um papel muito grande na elaboração dessa  
Constituição e algumas de suas figuras mais sólidas e decididas deram apoio à  
esquerda. A vitória da esquerda foi resultado desse enlace entre o centro e esquerda.  
Na verdade, o PMDB tinha dentro de seus quadros um setor radical e progressista no  
qual certas pessoas se proclamavam social-democratas e socialistas, no sentido  
específico. Alguns inclusive gostariam de ir para o PT, mas acabaram desistindo,  
porque as condições de participação no PT são um pouco caras para a média dos  
parlamentares. A maior parte ficou dentro do PSDB e pode-se observar, pelas  
declarações de Mário Covas, que esse setor não quer ser identificado com o socialismo,  
mas com a social-democracia. Alguns filiaram-se ao PSB ou ao PDT. O que deixa os  
que são efetivamente socialistas no PSDB constrangidos vem a ser a contradição entre  
a identidade socialista almejada e a predisposição social-democrática oscilante e  
moderada do partido como um todo.  
RA: Mas será isso surpreendente?  
FF: Foi surpreendente pelo menos para os parlamentares que estavam lá dentro  
e acabaram indo para o PDT, para o PSB. Nenhum deles quis se integrar ao PT. Aliás,  
sou amigo de um político que me consultou no sentido de entrar para o PT, mas  
infelizmente não o pôde fazer, porque não tinha condições de dar a contribuição que  
nós estávamos acostumados a fazer. Dois outros amigos apontaram os problemas que  
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teriam com suas bases em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. De tal sorte que houve  
dissensões que não eram propriamente de caráter social-democrático ou radical. Por  
exemplo, no PFL há políticos que pensam o neoliberalismo dentro de um esquema  
utópico, votaram congruentemente por medidas inovadoras. Alguns se aproximaram  
de mim e tentaram, durante certo tempo, votar conosco (antes do advento das  
emendas-ônibus*, que misturavam proposições exclusivas!).  
RA: Que núcleo formava esse arco?  
FF: O núcleo, propriamente dito, que formava o chamado arco radical,  
progressista ou de esquerda, estava no PT, PDT, PSB e nos dois PC. Aí se formou uma  
clara aliança defensiva. Evidentemente, Mário Covas tinha interesse em ver certas  
medidas aprovadas e o apoio dessa conglomeração de esquerda foi importante para  
fazer o processo constituinte avançar. Dessa forma, o centro e este setor da esquerda  
movimentaram-se e deram um conteúdo mais democrático ao processo constituinte.  
Nos momentos em que se conseguia uma maioria notória [o processo] não dependia  
somente da esquerda. A explicação é outra: muitas vezes, setores mais nacionalistas  
da burguesia tinham interesse em defender o país de uma excessiva dominação  
externa e em proteger o desenvolvimento de uma tecnologia avançada, de ponta, sob  
controle interno. Os entraves financeiros, os pacotes tecnológicos, os controles  
externos, restrição ao acesso aos recursos minerais e até os princípios abstratos de  
defesa das liberdades políticas, dos direitos sociais eram vistos como pontos de  
interesse nacional mínimo. Assim, a esquerda ganhou certa importância prática e  
realizou conquistas pontuais. Houve uma articulação produtiva, ainda que sofrêssemos  
derrotas em pontos inesperados, no capítulo sobre os direitos sociais, na questão da  
reforma agrária ou na "exclusividade de verbas públicas para o ensino público". Com  
frequência ficamos isolados, pois, às vezes, nem os setores radicais do PMDB nos  
acompanharam no processo de votação. O arco era mais "progressista" e "radical  
burguês" que propriamente de esquerda. A minha pregação na campanha eleitoral e  
as ilusões parlamentares reformistas viram-se em confronto direto com as  
contingências predominantes. Portanto, o arco obtido era precário e só em sentido  
lato poderia ser considerado uma articulação de esquerda. O que não impediu que em  
muitos momentos, com o apoio do centro, dos "progressistas" do PMDB e de outros  
partidos evitássemos muitas derrotas e um desastre fatal. Boa parte da proclamada  
esquerda não o era em sentido específico. A esquerda da burguesia (ou seu  
*
Essas emendas coletivas eram negociadas pelas lideranças, em colaboração com os correligionários  
mais interessados, para apressar a elaboração final do texto da Constituição.  
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equivalente) somava-se a várias modalidades de radicalismo, de nacionalismo, de  
social-democratismo e de socialismo proletário propriamente dito.  
JC: Isso faz recordar um pouco a Alemanha de 1848.  
FF: É. Na América Latina, a Argentina conheceu a experiência de um partido  
radical desde o início do processo político mais decisivo. No caso brasileiro, ao  
contrário, devido às peculiaridades da Primeira República oligárquica, não tivemos  
essa experiência. Poderíamos ter tido uma burguesia radical, através da Aliança Liberal,  
mas a Revolução de 30 acabou impondo um fechamento progressivo do espaço  
político, que redundou no Estado Novo. Nós nunca tivemos um radicalismo burguês.  
Há, sim, uma esquerda parlamentar importante, mas não é uma esquerda do  
proletariado, mas da burguesia, que se põe como se fosse uma esquerda em geral,  
"radical-progressista" ou social-democrática. Ora, a esquerda, em sentido restrito,  
abrange realmente apenas aqueles partidos que são os conhecidos: PT, PSB, PC do B,  
PCB e PDT. O PDT é heterogêneo, porque abriga pessoas que são social-democratas,  
socialistas ou apenas defendem a reforma capitalista do capitalismo.  
ARF: Também nos outros partidos está presente esta gama de diferentes  
tendências. Não se poderia falar em homogeneidade em nenhuma das siglas.  
FF: Nem mesmo no PT. Pode-se falar em homogeneidade e até em dogmatismo  
teórico somente no PC do B.  
RA: É um dogmatismo de feição stalinista.  
JC: Mas tende a haver homogeneidade na "direita" da esquerda, não é?  
FF: Sim. Mas é necessário precisar, para não cometer uma injustiça, porque,  
apesar dos problemas inerentes ao dogmatismo, o PC do B sempre foi coerente com  
seu programa, com suas posições teóricas. Existe um dogmatismo que nasce de  
condições que são bem conhecidas. Não obstante, o PC do B defendeu a frente de  
esquerda antes dos outros, enquanto o PDT, ou de forma mais precisa o Brizola, abre  
as baterias contra o PT, contra o Lula, e o PCB desloca a articulação para o segundo  
turno.  
JC: Mas há também a recíproca, não? Ouvi algumas coisas realmente impróprias  
para um contexto como o nosso, que não contribuem em nada para o avanço político  
concreto.  
FF: Antes da campanha houve mesmo um instante onde se deu “um troca de  
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gentilezas" um tanto grosseiras entre Lula e Brizola, todavia, isso já foi superado.  
"Existe uma falsa consciência de que a revolução burguesa está em curso no Brasil."  
MDP: Retomemos o fio da meada: afinal, em sua opinião, a burguesia teria  
condições de apresentar um projeto constitucional para o país?  
FF: Houve uma anomalia nesse processo: o PMDB e o PFL, enquanto partidos  
da ordem e, portanto, do governo, não tinham um projeto constitucional para o país.  
Eis um ponto muito importante. A burguesia não conta com um projeto constitucional  
e seus partidos são incapazes de formulá-lo. A divisão dentro da burguesia, tanto no  
plano ideológico como no político, atingiu proporções tais que ela se viu  
impossibilitada de apresentar um projeto de constituição para a nação. Dessa forma,  
o PMDB, enquanto partido majoritário, inventou, com o assessoramento do senador  
Fernando Henrique Cardoso e do deputado Plínio de Arruda Sampaio, esse movimento  
de ir de baixo para cima: as subcomissões, as comissões, a comissão de sistematização  
e o plenário. Quando se chegasse ao produto final, o paradigma da Constituição  
deveria ser o projeto Cabral. Mas nesse momento surge a pressão do governo, dos  
interesses conservadores da burguesia nacional e, especialmente, da estrangeira, dos  
militares etc. Um conjunto de pressões que agiu no sentido de impedir que a  
Constituição tivesse todos os avanços básicos possíveis. Em plena transição para o  
século XXI, esse projeto foi considerado muito radical, o que é inacreditável! Nem com  
toda minha experiência de sociólogo, na análise do que chamei de resistência  
sociopática à mudança, pensei que isso fosse possível. O que fez esse setor? Criou  
uma formação política dentro da Assembleia Nacional Constituinte chamada  
posteriormente de Centrão que elaborou um projeto de constituição calcado, em  
parte, no projeto Cabral, em parte, na ordem ilegal vigente, incluindo as duas  
constituições, de 67 e 69, e também a de 46. O Centrão apresentou, então, o seu  
projeto de constituição. Houve um golpe dentro do plenário, que foi sustentado pelo  
presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães que,  
com base no princípio da soberania da maioria, deferiu o pedido! O que havia por trás  
era um imenso acordo conservador, igual ou pior do que aquele da conciliação  
transada, que deu origem à da Nova República. A maioria votou a favor desse projeto,  
surgido "por baixo da saia da madame" e que se tornou, então, o projeto de referência.  
O paradigma não era o produto de um longo trabalho, mas o fruto espúrio de uma  
elaboração paralela, feita contra o que deveria ser o projeto matriz. É uma coisa  
diabólica, que escapa até aos romances de García Márquez. O paradoxal é que tivemos  
de votá-lo para podermos introduzir emendas essenciais do projeto original. Todavia,  
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a situação é única na história comparada das constituições... Nem todos os países têm  
uma burguesia que não merecem!...  
PDB: Trata-se do "realismo fantástico"!  
FF: Isso. Inclusive, este é um processo que poucos povos seriam capazes de  
admitir como possível. O regimento interno obrigava a todos! As tentativas de  
impugnação eram encaminhadas para uma a comissão anteriormente preparada para  
que não houvesse impugnação nenhuma, uma vez que o presidente, arbitrariamente,  
decidira que não haveria contestação durante a votação. O paradigma passou a ser,  
então, um projeto improvisado, elaborado não por uma comissão ampliada nem por  
uma comissão de notáveis, mas por uma comissão ad hoc do Centrão. O que era  
produto do próprio corpo de constituintes, eleitos para desempenhar as tarefas  
específicas de construir uma constituição, passou a ser um projeto vencido. O projeto  
do Centrão foi aprovado, independentemente das emendas, às quais foram agregadas  
outras, que entraram em processo de votação pela ordem sucessiva dos artigos. Foi a  
perversão total do processo! Seria muito melhor ter um corpo de notáveis que  
elaborasse um projeto que fosse examinado a fundo pelo plenário e depois alterado.  
A articulação da esquerda nem sequer conseguiu deslocar esse procedimento, anormal  
em termos de elaboração constitucional ou de votação parlamentar. A esquerda não  
pôde fazer coisa alguma.  
MDP: A esquerda conseguiu certa mobilização popular?  
FF: Conseguiu. E este foi o lado curioso do drama: essa mobilização popular, e  
principalmente a denúncia que a CUT e o PT fizeram, a denúncia que essa manifestação  
de tolerância autocrática exigia.  
JC: Acho que foi o único momento vivo da Constituinte.  
FF: Sim, ela teve um impacto muito grande. Se não fosse a massa de sugestões  
oferecidas a partir de fora, o produto final acabaria sendo muito mais conservador. A  
pressão popular às vezes adquiriu uma tonalidade dramática. E, justamente nesse  
momento, parece que faltou a conexão entre ação parlamentar e ação  
extraparlamentar. As contribuições externas ocorreram normalmente e a interação com  
os parlamentares deu-se em torno de propostas específicas. O filtro foi mais largo ou  
mais estreito de acordo com a composição das comissões temáticas, das  
subcomissões. Mas, em termos das comissões temáticas, a preponderância era mais  
visível, aí a pressão externa se fez através de pessoas que foram ao Congresso para  
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ouvir, protestar e pressionar. As galerias, em muitas ocasiões, contavam com a  
presença de pessoas gritando que aquilo era um absurdo, como forma de pressionar  
parlamentares e o presidente da comissão.  
MDP: O que não foi suficiente para reverter o processo. Haveria a necessidade  
de uma articulação mais inteira, mais orgânica entre os movimentos populares e os  
partidos políticos comprometidos com suas reivindicações.  
FF: Veja, a situação é bastante complicada. O progresso industrial está  
praticamente perdido dentro dessa massa de excluídos, de oprimidos, de  
marginalizados e de gente que procura emprego por qualquer meio. Isso leva a um  
enfraquecimento do movimento operário, que não é ocasional, mas permanente. Não  
é por acaso que o estado estimula o deslocamento do campo para a cidade,  
provocando o processo de inchaço das cidades. Com isso, ele aumenta ainda mais a  
invasão de uma imensa população excedente num pequeno exército de trabalhadores,  
que fica, então, à mercê das classes capitalistas tanto em termos de determinação do  
nível de salário quanto em termos de sua fraqueza orgânica intrínseca. Essa situação  
cria e Marx se refere a isso uma constante competição entre os trabalhadores. Por  
isso, um partido socialista não necessariamente revolucionário, embora seja difícil  
pensar num partido socialista que não queira ser revolucionário, um partido  
congruente, mesmo no momento em que não esteja disposto a pregar a revolução,  
porque sabe que ela não é possível deveria estar atento a isso. As posições ofensivas  
que a classe trabalhadora vem assumindo, através de seu setor mais decidido e  
organizado, não têm se irradiado para o conjunto da sociedade. Como poderiam se  
deslocar para Brasília os operários de São Paulo?  
MDP: Realmente não poderiam, mas não era isso que eu tinha em mente.  
FF: Aqui reside um elemento fundamental! A burguesia não precisou fazer esse  
tipo de pressão a não ser no caso da propriedade e uso da terra, quando mobilizou,  
deslocando para Brasília, não só grandes proprietários agrários, mas também  
pequenos proprietários, meeiros, peões e trabalhadores semilivres do campo. Nessa  
ocasião ocorreu uma manifestação, "uma marcha de cavaleiros", onde se viam oficiais  
do Exército fardados, marchando ao lado dos donos da terra. Era um enquadramento  
perfeito! Era a Ordem se defendendo contra as mudanças, mudanças que a burguesia  
de outros países realizou em nome de interesses capitalistas, mas que, num país como  
o Brasil e na periferia em geral, a burguesia não se sente atraída para realizar. Qual é  
o interesse da burguesia em fazer a reforma agrária onde prevalecem os latifúndios?  
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Num país em que o capitalismo monopolista (oligopolista) recompõe a grande  
propriedade territorial? Ela não tem interesse algum na reforma agrária!  
JC: Perfeito! Precisamente porque esta burguesia, que não pode reproduzir os  
passos dos processos clássicos das burguesias europeias penso fundamentalmente  
na França e na Inglaterra , está impossibilitada estruturalmente de propor e realizar  
um projeto democrático-revolucionário, é que estamos diante de um desafio específico  
e incontornável. Desafio que expressa a peculiaridade do caso brasileiro e de outros  
países do mesmo tipo. É isto que torna dramático e lamentável a esquerda organizada  
no Brasil nunca ter se indagado sobre a viabilidade de um projeto democrático de  
feitio parlamentar-burguês no país. Este é, entre muitos, o maior pecado teórico da  
esquerda brasileira.  
FF: Aí realmente há uma falsa consciência, no sentido de Lukács, que é dos  
autores que você mais respeita...  
JC: É porque ele tenta ser a lupa de Marx. Só por isso.  
FF: Observa-se, a partir dele, que a amplitude da opacidade da consciência  
burguesa cresce em função das condições históricas de realização da burguesia. Você  
encontra na Europa diferentes burguesias.  
JC: A alemã, por exemplo, não tem nada a ver com a francesa...  
FF: As revoluções típicas são a francesa, a inglesa e a norte-americana. As  
revoluções alemã e japonesa são atípicas, não desencadeiam revoluções burguesas,  
em face da debilidade de suas burguesias. Na Alemanha a revolução poderia ter sido  
típica. Porém, para usar a expressão de Marx e de Engels, sua burguesia era covarde  
e cedeu terreno, preferindo uma aliança com a casa imperial e com a nobreza à  
realização de sua liberdade através do parlamento. Esse é o sentido do trabalho que  
desenvolveram sobre a revolução social na Alemanha. Agora, no Brasil, como  
aconteceu na Rússia no passado, houve um momento de ilusão de que havia uma  
revolução burguesa em processo. De fato, havia, mas era atípica. O próprio Lênin, a  
quem não se pode negar a categoria de revolucionário, chegou a escrever um pequeno  
ensaio intitulado "A nossa revolução" sobre a revolução burguesa russa. Foi, mais  
tarde, com as Teses de Abril, em função das reflexões que fez, na proximidade do  
momento crítico da desagregação da ordem, que chegou à conclusão de que a  
burguesia tinha perdido sua oportunidade histórica.  
Foram as Teses de Abril que lhe forneceram a consciência de que a revolução  
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já não era burguesa, mas proletária. Nós repetimos a mesma ilusão que houve na  
Rússia. Eu mesmo, certa vez, num discurso como paraninfo, cheguei a colocar que nós,  
gostássemos ou não, tínhamos uma revolução burguesa em curso e, portanto,  
quiséssemos ou não, teríamos que apoiá-la para avançar. Não para realizar os  
objetivos da burguesia, mas para fortalecer o processo de negação da ordem.  
ARF: A que momento você está se referindo?  
FF: Isso foi em março, em 1965 (conceituei a "revolução brasileira" como o  
equivalente da revolução burguesa na Europa e nos Estados Unidos). O que acontece  
é que essa ilusão está entranhada até hoje. Existe, então, essa falsa consciência de que  
a revolução burguesa está em curso no Brasil.  
JC: É como pensa, em termos de "modernização", o PSDB, a talante de Fernando  
Henrique Cardoso e outros mais, que gostariam de "completá-la"...  
FF: Quando, na verdade, a "revolução burguesa” no Brasil não se deu pela  
burguesia nacional, mas pelo capital monopolista.  
JC: Exatamente.  
FF: É o imperialismo que tem o papel hegemônico e realiza os papéis dos  
prussianos ou então da dinastia Meiji. O capital estrangeiro moderniza, mas, ao mesmo  
tempo, retira da modernização o seu conteúdo e sentido revolucionários. E com isso  
temos uma sociedade que pode avançar no sentido do desenvolvimento capitalista,  
mas raramente pode associar esse desenvolvimento capitalista a uma democracia que  
estenda a todos as liberdades fundamentais dos cidadãos, as garantias sociais.  
JC: Entendo que este é o nódulo da questão.  
FF: Exatamente! Nós temos uma perfeita consciência. Já a tínhamos antes. O  
que esse processo constituinte fez foi aumentá-la, tornando mais clara a verdade da  
nossa visão, mas isso pouca coisa nos adianta, porque a esquerda não incorporou esta  
questão essencial.  
RA: Na referência feita a Lênin, vale a pena a menção e o registro de uma forte  
diferença em relação à nossa Assembleia Constituinte. O PT, os PC e a Igreja  
elaboraram o seu projeto de constituição no calor do processo constituinte, o que  
demonstra que, às vésperas de sua abertura, a esquerda enquanto tal não tinha um  
programa articulado para defender na Constituinte. No universo da formulação de  
Lênin, a Constituinte era algo concebido como um fórum para desmontar a ordem  
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tsarista. Sua proposta possuía todo um conteúdo programático, composto de objetivos  
econômicos e políticos, defendidos fortemente, pelo menos desde 1902, objetivando  
o fim do regime autocrático. O que se verifica é que a esquerda brasileira fez da  
Constituinte a sua bandeira, porém destituída de um objetivo claro e de um programa  
definitivo. Era uma Constituinte sem programa. Com relação à burguesia, parece-me  
que, se ela não possuía um projeto constitucional, ela tinha um instrumental...  
FF: Sim, não tinha um projeto constitucional, mas tinha programa.  
RA: E possuía todo esse instrumental para conseguir fazer com que, ao fim de  
toda aquela trajetória, de todo o processo, acabasse consolidando um projeto burguês  
que contemplava as suas diretrizes básicas. Mas, retomando a análise da esquerda, o  
PC defendia, desde o seu Congresso de 67, a ideia da Constituinte como a grande  
saída. E a esquerda em geral acabou indo ao processo Constituinte sem um programa  
que tivesse como centro os interesses das massas trabalhadoras. Ao passo que na  
formulação leniniana tratava-se de uma constituinte no universo tsarista, porém com  
um programa que tocava em alguns dos pontos essenciais; terra, trabalho, liberdade.  
Pontos essenciais para se enfrentar a miséria material e política das massas russas.  
Aqui reside diferença: uma proposta de constituinte amarrada a um conteúdo  
programático, fundada numa análise concreta, num ideário, numa concepção teórico-  
ideológica que norteava aquele projeto. E isso, justamente, foi o que faltou aqui. Os  
projetos de constituição que os partidos apresentaram, no calor da Constituinte, não  
refletiam uma trajetória dessa espécie.  
FF: De qualquer maneira, poderíamos dizer que Lênin já tinha consciência do  
processo revolucionário em 1903. Trótski desde 1905, também precocemente, aliás.  
Além disso, o percurso da revolução na Rússia não começa com os marxistas, ele é  
anterior. Os marxistas foram herdeiros de uma luta travada desde 1850 e que atingiu  
seu apogeu na década de 1860, quando se muda o estatuto da propriedade rural e  
se elimina a servidão, pelo menos legalmente. Enquanto nós, aqui, não tivemos uma  
conexão entre o fim da escravidão e um processo político de transformação reformista  
ou revolucionária da ordem. O Partido Republicano, que poderia preencher esse papel,  
num momento estratégico da luta pela conquista do poder, deixou de combater pelo  
escravo e passou a fazer alianças com os fazendeiros e, com isso, a república nasceu  
como uma traição aos princípios republicanos. Na história não podemos transplantar  
experiências concretas sem as suas específicas mediações. Podemos afirmar apenas  
que há traços comuns, experiência acumuladas.  
Eu não acredito que, dos anos 20 para cá, nós tenhamos desaprendido, mas  
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sim crescido sempre na aprendizagem. Entretanto, o que nós não revelamos foi força  
para manter partidos organizados com propósitos revolucionários. Aqui, por exemplo,  
o PT torna-se um partido forte e, imediatamente, quer conquistar o poder, quer fazer  
a revolução de cima para baixo. Ora, essa revolução de cima para baixo que, num  
dado momento, chegou a ser reflexão de Lênin não passou disso, pois se evidenciou  
impraticável. É uma ilusão pensar que aqui, no Brasil, nós possamos conquistar o poder  
legal e, daí, fazer uma revolução de cima para baixo. É claro que não podemos medir  
a força de nossa burguesia por ela própria. Temos que medi-la pelo sistema capitalista  
mundial de poder. Por isso, essas ilusões custam muito caro e os partidos repelem sua  
concretização.  
Eu sou muito bem-vindo no PT, gostam muito de mim, mas lá fiquei  
relativamente isolado. Sou como um sabiá que canta sozinho. Não tenho, nem procurei  
me fundir em nenhum dos grupos; não adianta pretender participar de alguma  
tendência porque isso não teria sentido para mim. O que de nos falta,  
verdadeiramente, é aquela decisão de ir para a revolução de uma vez, e isto implica  
dizer que as condições históricas revolucionárias ainda não apareceram nem foram  
criadas pela rebelião coletiva. Quando indivíduos de origem pequeno-burguesa, ou até  
de classes sociais que seriam mais do que pequeno-burguesas, como sucedeu na  
Rússia, lançam-se à revolução, rompendo com a ordem, isso é sinal de que a revolução  
é um processo histórico muito forte.  
Lênin poderia ser um advogado, mas foi um revolucionário. Trótski tinha diante  
de si uma ampla perspectiva, assim como muitas figuras do grupo bolchevique, ou do  
próprio POSDR, que não precisariam romper violentamente com a ordem, tal como  
ocorreu. Nós aqui não encontramos essas condições; temos que conciliar. Esta casa,  
com a sua biblioteca, contém uma identidade burguesa em confronto com o projeto  
revolucionário. Quando fazemos esta conciliação, falando seriamente, esperamos que  
a revolução seja fruto do acaso. Por que isto acontece? Todos nós, aqui, temos uma  
relação orgânica com o proletariado e, certamente, não somos como aqueles  
intelectuais que, ocasionalmente, passam pela esquerda, têm suas conversas e depois  
dizem tchau... e vão tratar da vida de outra forma. E, no entanto, não nos resta outra  
alternativa, a não ser nos conformarmos com um padrão de vida, com uma situação  
social que é de classe média tradicional em decadência. Não podemos fazer aquela  
opção. Se a fizermos, o que acontecerá?  
JC: Perderemos o pouco de tribuna que temos...  
FF: Por outro lado, o que vai acontecer com a insurreição? Nada!  
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"Não faço parte daqueles que acham que o marxismo está morto."  
JC: Nós não somos os maiores pecadores!  
FF: A revolução sempre foi um processo histórico que caminhou pouco nas  
estruturas da sociedade brasileira, ainda que o movimento operário tenha crescido,  
que o protesto operário seja uma realidade, que a posição ofensiva dos trabalhadores  
tenha avançado, que a luta contra a hegemonia burguesa seja uma luta muito mais  
definida do que há meio século, ou há quase sete décadas. Apesar disso tudo, nós  
estamos ainda engolfados numa condição dramática e impotente. O que exige,  
naturalmente, partidos de um outro tipo, partidos que definam sua relação com a  
ordem em termos de negação e de destruição não de mudança cosmética. Isso de  
modo algum depende da vontade de grupos tomados isoladamente. Não estamos em  
Cuba. Estamos num país onde há uma burguesia poderosa, com vínculos internacionais  
sufocantes e perigosos.  
JC: E o contexto mundial é extremamente desfavorável. Há pouco você afirmava  
que "não desaprendemos no último meio século". Vamos analisar um pouco esse "não  
desaprendemos". Há meio século, pelo menos no pré-64, havia uma ideia que era mais  
ou menos consensual: a presença espoliadora do imperialismo. Depois, foi a diluição...  
Hoje, nos anos mais recentes, a gente já se atreve, até certo ponto, a voltar a falar em  
imperialismo...  
FF: Mas poucos fazem isto!  
JC: Pouquíssimos! E o que predomina, complacentes, são teorias de  
acomodação de uma intelectualidade que envergou o fardão do político "full time".  
FF: Mas no passado faziam a confusão do feudalismo.  
JC: Sem dúvida, e não quero de modo nenhum resgatá-la. Aliás, incluo esse  
erro grosseiro entre os derivados pueris da tragédia do nosso século, que é o processo  
do Leste europeu e dos demais países afins, de outras partes, em conjunto. Em geral,  
são referidos ao socialismo, ao passo que eu entendo que uma das nossas maiores  
obrigações intelectuais é mostrar que, naquelas regiões, dramáticos e heroicos  
processos não redundaram, nem poderiam redundar, em socialismo.  
FF: Aí eu discordo...  
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JC: Eu sei. Nós temos as nossas discordâncias. Alimentemo-las, como estamos  
fazendo há décadas.  
FF: Falar em stalinismo é um erro. Mas, de qualquer maneira, o regime stalinista  
impôs a ideia de que a União Soviética tinha atingido o estágio mais avançado do  
socialismo, o que não era verdadeiro nem naquele momento nem hoje.  
JC: Sem dúvida. Eu não queria que enveredássemos por aí, porque, em  
concordância ou discordância, na generalidade temos uma malha de posições em  
comum. Vivemos um século trágico, que teve início com a grande esperança da  
redenção humana em 1917, e que termina melancolicamente com a ideia de que a  
revolução é uma velharia que deve ir para os arquivos. Temos "coisas" medonhas,  
como a produção teórica nacional e internacional mais recente, digamos dos últimos  
30 anos, que exibe formulações escandalosas, seja no plano científico, seja no plano  
político.  
RA: Por exemplo, a proposta de restaurar, nos anos 90, o welfare state na  
periferia, como sugere, entre outros, o PSDB.  
JC: Quando o welfare state está desmentido e quebrado no próprio "centro".  
Quando se dá grande ênfase ao neoliberalismo. Quando são admitidos e estimulados  
processos indiscriminados de desestatização, tal como tentam por aqui, mesmo ao  
estarmos cansados de saber que a economia privada é a mais dissipadora de todas,  
visto que, para dar um exemplo de gravidade mínima, para vender um sabonete de  
dez centavos gasta um bilhão em propaganda e embalagens. O chavão é que o estado  
é mau empresário, no entanto, não há nada mais perdulário do que o capital privado,  
que é aquele que dá o tom. Hoje isso é mais do que visível, no interior da "economia  
do desperdício". Tende a não ser mais possível consertar um aparelho qualquer porque  
vão desaparecendo, de propósito, as firmas de assistência técnica, os técnicos perdem  
a habilitação e se transformam em meros trocadores de peças. E o negócio acaba na  
compra precoce de um novo aparelho. Com toda essa visibilidade, todavia, há gente,  
no Brasil e na América Latina em geral, que se dispõe a catar, com muito gosto, as  
sobras do lixo teórico e material dos países ricos. Acho que é uma questão crucial,  
porque, se o processo revolucionário mundial, a superação do capital, tem que se dar  
por algum lugar, não será, de início, pelo lugar dos países centrais.  
FF: Isso é uma coisa que está clara.  
JC: É uma evidência, no entanto, desconsiderada por todos os partidos  
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existentes. Fazíamos referência há pouco aos tucanos, penso que vivem numa gaiola  
conceitual muito pouco divertida. De outra parte, considere-se o PT, onde temos como  
inclinação dominante uma posição antimarxista, ou pelo menos indiferente ao  
marxismo. Como é que disto pode resultar alguma coisa? Como é que o PT, que abriga  
fortes correntes dessa ordem, não só da Igreja, e tantos daqueles que acreditam na  
eternidade do capital, e que desacreditam da crítica teórico-prática do marxismo,  
poderá de fato contribuir, a não ser como uma espécie de peão mais teimoso de uma  
ilusão social que a própria burguesia não pôde realizar e que já abandonou?  
FF: Eu vivi a coisa de uma outra forma. Penso que o que há de melhor no PT  
não é nem marxista nem católico, mas é a sua base proletária e o que se abre para um  
movimento socialista mais maduro.  
JC: Poderia concordar até certo ponto, mas, quando se considera como vacila  
a CUT diante dos golpes de estabilização Cruzado, Bresser, Verão, é desorientador  
nutrir esperanças.  
ARF: Após a eleição da Erundina, o Weffort, que já estava esquecido pelo  
próprio PT, numa entrevista ao Jornal da Tarde, afirmou que ela significou a vitória de  
sua tese a de que o PT jamais poderia ser um partido marxista, pois desse modo não  
se projetaria sobre as massas. E o que mais assusta é que hoje as não tendências de  
esquerda, cada vez mais, abandonam as posições revolucionárias e se afastam do  
marxismo.  
FF: Acreditam que o caminho é, necessariamente, o de passar por uma  
transformação democrática, para depois encontrar um novo ponto de partida.  
PDB: É o velho PC ressurgindo de todos os lados.  
FF: Para mim, o problema da democracia é um problema de impregnação da  
sociedade civil. Ou seja, qual a possibilidade de os trabalhadores livres e semilivres  
desempenharem papéis ativos em todos os níveis na sociedade civil? Com a  
democracia isso é possível. No entanto, orientar esta perspectiva num sentido  
revolucionário exige consciência socialista e um partido que seja capaz de difundir o  
socialismo, um socialismo proletário, marxista e revolucionário. Refiro-me a proletário  
como forma delicada de dizer marxismo, pois explicitar claramente que é marxismo...  
aí o pessoal já nem admite discutir. Se digo que é um socialismo proletário, ficam  
pensando: que diabo é isso?  
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JC: Isso confirma meu ceticismo.  
FF: Não faço parte daqueles que acham que o marxismo está morto, mas que  
o marxismo precisa se redefinir. Em todas as revoluções ele se redefiniu e não poderia  
ser revolucionário se assim não o fizesse, o que não significa "rever” marxismo (ou ser  
revisionista), e sim pôr toda uma filosofia política dentro de um contexto histórico  
concreto. Quanto ao PT, existem dentro dele várias tendências e a sua riqueza reside  
na confiança que conseguiu despertar nas massas trabalhadoras, primeiro em algumas  
cidades e, em seguida, numa extensão mais ampla da sociedade brasileira, inclusive  
no campo. Agora, se o PT ficar numa posição não socialista, não fará sequer uma  
revolução dentro da ordem, será apenas instrumental para essa modernização dirigida  
a partir de fora e de cima!  
ARF: Nós sabemos que, enquanto os constituintes ficaram confinados no  
Congresso, o governo foi seguidamente implantando a sua política, na linha do  
desarme do movimento social. Por outro lado, os partidos subordinados à lógica  
parlamentar não conseguiram dar conta das necessidades das massas que, por várias  
vezes, jogadas a sua própria sorte, respondiam como podiam à ofensiva do governo,  
do capital. O grande equívoco da esquerda foi o de considerar que a grande luta  
centrava-se no parlamento e no processo constituinte. Supôs, ainda, que o governo  
Sarney não dispunha de força suficiente para comandar o país. Afinal, onde se  
localizava dispunha o centro de poder?  
FF: O processo constituinte foi idealizado pelo regime como um processo de  
revisão constitucional, e não como um processo de ruptura. Todo o eixo da chamada  
conciliação transada, conservadora, repousou na aliança entre militares e civis que  
estavam incorporados à ditadura e civis que eram contrários ao regime ditatorial. Essa  
conciliação serviu para unificar esses vários setores. O processo constituinte ocupou  
os deputados e senadores constituintes, divorciando praticamente o político  
profissional da realidade política do dia a dia. Ficaram um pouco de escanteio,  
elaborando a Constituição, como se fosse um brinquedinho, com o propósito de  
manter os ritmos lentos da transição lenta, gradual e segura. Impedir que isso fosse  
até o fim foi uma das grandes vitórias da esquerda e do centro autêntico no  
parlamento. Foi, talvez, a maior vitória e a menos reconhecida, por não ter uma  
expressão objetiva. Ela ocorreu porque se acreditou que o corpo de constituintes fosse  
soberano e que, portanto, o nexo com a república institucional não deveria  
desaparecer da Constituição, que representava um outro momento da formação de um  
estado burguês diferente. Não se pretendia ainda a ruptura como tal, mas também não  
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era o que o próprio esquema do governo esperava, e o Centrão não conseguiu  
remediar essa disjunção que se estabeleceu entre os políticos profissionais e a ordem  
existente. Isso fez com que o setor militar acabasse restabelecendo a sua autonomia  
dentro do aparelho de estado. Sarney era um títere, um travesti, o "outro" na  
presidência, não o presidente. Realmente, havia é um triunvirato militar à testa do  
governo, constituído pelos generais Bayma Denis, Ivan Mendes e Leônidas Pires  
Gonçalves, que punha e dispunha, (tanto que, quando o Jornal do Brasil noticiou os  
acontecimentos de Volta Redonda, na mesma página encontramos uma notícia que  
mostrava que esses três generais elaboraram a decisão e que Sarney apenas a  
endossou). Ou seja, ele aparecia nitidamente como o "outro".  
ARF: Ele é a expressão formal.  
FF: De um lado temos, então, esse triunvirato militar, que desfruta de  
atribuições muito amplas. De outro, uma burguesia que não tem coragem de romper  
com a transição porque, ao mesmo tempo em que está farta desta situação, querendo  
livrar-se dela um obstáculo à livre iniciativa e ao uso independente do seu poder de  
classe , ela não se sente protegida o bastante e teme a efervescência popular e a  
contestação operária, que a nós parecem tão débeis, mas que para a burguesia é muito  
assustadora.  
RA: Porque, mesmo no plano da espontaneidade operária, a burguesia sabe  
que essa efervescência popular e proletária toca no pilar fundamental de seu processo  
de acumulação, que é a superexploração da força de trabalho, a política econômica  
fundada no arrocho salarial; e que, se esta manifestação for conduzida politicamente,  
põe em risco o eixo central da sua estrutura de dominação econômica.  
FF: A burguesia tem aquele medo histórico, que levou à mobilização  
monstruosa da "Marcha da Família" em São Paulo e que está de novo presente, só que  
ampliado, manipulado por órgãos de comunicação de massa que têm conexões com o  
aparelho do estado. De tal sorte que esse retorno militar acaba encontrando suporte  
burguês. Às vezes, o suporte burguês reluta, tenta ganhar corpo, tornar-se  
independente, mas em seguida cai em si e, através da palavra amável do Amato,  
sucumbe e concorda. O setor da UDR nem sequer se dá ao luxo de ambiguidades. Ele  
está plenamente afinado com esse setor militar, com esse dispositivo. A ruptura  
deveria ter-se dado com a Constituição e não se deu. Provavelmente poderá ocorrer  
em conexão com as eleições presidenciais.  
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"O problema da república reside em como a burguesia poderá recolher a sua mão  
militar."  
JC: E assim chegamos a um capítulo deste papo.  
FF: As eleições presidenciais podem nos aproximar de um aprofundamento real  
da ruptura, dependendo da capacidade de mobilização dos diferentes setores da  
sociedade, inclusive passando por cima dos interesses da burguesia e do aparato de  
defesa e contra-ataque do estado. Vimos que em Volta Redonda foi feito um teste  
explícito, não foi nem preciso recorrer a elaborações interpretativas complicadas, nem  
determinar sua conexão de sentido, na acepção weberiana, para descobrir qual era a  
real dimensão de uma reação popular e operária.  
PDB: Se os operários de Volta Redonda resistiram com firmeza à repressão  
militar, lamentavelmente o movimento sindical e popular não esteve à altura das  
necessidades do episódio. Parece-me claro que, mais uma vez, a luta operária foi  
subordinada aos interesses das campanhas municipais, que ocorriam exatamente  
naquele momento. Volta Redonda ficou isolada, sem base de apoio social.  
FF: Teve resposta, mas foi pequena. Houve agora uma nova provocação, com a  
condecoração dos militares envolvidos, e o que vimos foi que a indignação ficou  
restrita às vítimas mais diretas da ocorrência. Além disso não houve nada. Todo o  
aparato sindical brasileiro, todos os partidos de esquerda fizeram protestos retóricos  
nas tribunas para isso servem os parlamentos! e o episódio foi encerrado. Os  
militares estão, portanto, com o caminho livre e o governo tem, por sua vez, a  
possibilidade de estabelecer um programa de extrema-direita que pode assumir duas  
saídas. Uma, eleitoral, se encontrarem um candidato suficientemente forte para ganhar  
as eleições, acreditando no peso econômico da burguesia, na capacidade de pressão  
do estado e nos meios de comunicação de massa. Poderá então aparecer um candidato  
político que unifique a direita e permita estabelecer, por outros meios, um golpe  
branco, já que o dispositivo que opera dentro do aparelho de estado conta com  
recursos institucionais e de poder para alcançar facilmente esse fim.  
MDP: Ele é o estado.  
FF: É o recrudescimento da defesa da ordem a partir de cima. Aí, ou são  
expulsos do parlamento os partidos de esquerda e se encerra essa brincadeira de ter  
parlamentares e partidos de esquerda num país onde a burguesia não tem a  
capacidade de promover o bem-estar geral, ou, então, se fecha de uma vez o  
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parlamento. Aliás, a campanha de desmoralização do parlamento tem sido orquestrada  
sistematicamente, sem respeito a quaisquer limites. Os partidos de esquerda não têm  
sabido responder a essa farsa. Nesse processo de descontinuidades e continuidades,  
as descontinuidades foram compatibilizadas com as continuidades e estão nos  
enfraquecendo. Com isso, ficamos dependendo de uma situação conjuntural para  
tentar a ruptura de novo, a exemplo do que se deu no movimento das diretas-já e no  
processo constituinte. Não menciono a formação da Aliança Democrática, porque foi  
um episódio de fortalecimento da continuidade. As eleições municipais mostraram que  
a alternativa eleitoral foi uma alternativa quente para enfrentar os partidos da ordem  
e o governo. As eleições presidenciais poderão se definir como uma possibilidade real  
de ruptura, mas isso vai depender muito de uma estratégia que a esquerda saiba ainda  
elaborar. A esquerda teria que trabalhar com um pouquinho mais de sensibilidade para  
com as exigências da situação, inclusive para desmascarar esse esquema, tão torpe e  
visível, de conspiração contra a nação como um todo, porque é uma conspiração contra  
todos por parte de uma minoria, em nome da defesa da ordem, da honra e da família.  
O ministro Oscar Corrêa vem com a lei da censura e diz que não está querendo regular  
nada, que, ao contrário, obedece ao "espírito da Constituição". Ora, a Constituição  
consagra total liberdade de organização e expressão! O que é central é a  
desmoralização do parlamento, que é parte vital desse jogo. O governo poderá fechar  
ou fazer uma intervenção circunscrita e nada vai acontecer, porque a desmoralização  
programada já atingiu seus objetivos. Há uma ampla massa da população que não  
entendeu nada e que está achando que a culpa de tudo é dos parlamentares; não está  
pensando no estado como um todo, e muito menos no executivo, que fica por trás da  
cena; não vê que as malhas do governo estão no executivo. A população como um  
todo está com os olhos vedados e os partidos não a esclarecem porque não dispõem  
de meios para fazê-lo.  
JC: Não têm meios, nem mesmo, enquanto partidos, uma visão bem delineada.  
Mas, poderíamos resumir, independentemente de diferenças de acentuação ou até  
mesmo de conceitos, que a forma de poder dos militares se autorreformou pela figura  
do Sarney. Evitei meu conceito preferido para não gerar maiores diferenças. Porém,  
quero lembrar que sempre manifestei a convicção de que a transição desembocaria  
numa forma de poder autocrático, uma solução constitucional, legalizada, mas sempre  
autocrática, uma vez que a conduta das "oposições" sempre foi o que foi... De modo  
que concordo inteiramente que a ruptura foi transferida para o processo sucessório, é  
onde se põe a questão política de fato. Tudo até aqui foi ensaio ou exercício. Se alguma  
coisa pode ser alterada é pelo questionamento, agora, nas eleições presidenciais, do  
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poder que vem sendo exercido há décadas. O quadro sucessório ainda não está  
configurado, vai demorar mais um pouco, mas há evidentemente indícios. O deputado  
Florestan Fernandes pertence a um partido que tem um candidato, tudo bem até aqui.  
Tenho certeza, no entanto, de que, para o intelectual, que já deu demonstrações disto  
antes, a solução não está dada. Nós todos estamos aí com um grande dilema; não  
quero adiantar nem desenvolver nada, simplesmente colocar a questão, e pedir ao  
intelectual que tome criticamente as principais candidaturas potenciais.  
FF: As eleições presidenciais estão amarradas ao solo histórico onde nascem.  
Toda a reflexão sobre a burguesia, sobre as classes trabalhadoras, sobre os partidos,  
as instituições, o parlamento, o executivo, o judiciário está interligada. É claro que,  
dentro da tradição brasileira, o partido fica em plano secundário, mesmo na esquerda  
as personalidades estão em nível mais visível, o que torna o desmascaramento do  
processo muito difícil e complexo, pois as raízes não se desvelam com facilidade. Para  
a burguesia está sendo difícil achar um candidato à altura dos oponentes que vão  
aparecer na esquerda e no centro-esquerda, porque, de fato, queira ou não, o regime  
existente, se não for capaz de cancelar ou de condicionar as eleições e determinar seus  
resultados, vai sofrer as consequências do processo eleitoral. É por isso que se coloca  
a ruptura. A importância dessas eleições reside precisamente aí e não no fato de serem  
as primeiras após tantos anos. Desde Jânio nós não tivemos nenhuma eleição.  
Impusemos um vice-presidente que foi derrubado e depois sucessivas manipulações  
que mostraram um universo minado, frágil e inconsistente, com uma política sem  
parâmetros definidos através de programas, partidos, ideologias, utopias vazias, como  
se nós estivéssemos no vácuo político. Essas eleições repõem o ser político, quebram  
a vidraça de tudo o que o sistema ditatorial montou ao longo desses anos, diretamente  
ou através da "Nova República". Tudo isso voará pelos ares se as eleições se  
realizarem, dependendo de uma circunstância: se o governo tiver a possibilidade de  
descobrir e apostar em um candidato de extrema-direita afinado com a transição e  
o jogo vai ser muito forte nesse sentido. Entretanto, se não o encontrarem, podemos  
esperar de tudo, até o que chamei de golpe branco. Podemos até esperar que esse  
setor aceite as eleições e depois procure domesticar o futuro presidente de uma  
maneira “suave”, não mais dentro de parâmetros diretos, sem nenhuma interferência  
ostensiva. Acho que há, dentro das Forças Armadas, clima para isso. Há várias  
polarizações e, portanto, vários cenários. Um dos cenários fortes é e isso até entre a  
oficialidade jovem o do golpe branco. Outro seria o que poderíamos chamar de  
recuperação de um nacionalismo, de um desenvolvimentismo de fachada, que serviria  
de eixo para uma acomodação de interesses, divergentes ou convergentes, entre  
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militares e civis. O fato é que os militares, tratando-se de uma questão de poder,  
desempenham papéis inequívocos no processo, de tal maneira que, queiram ou não,  
têm de se movimentar, estão em movimento, e vão se movimentar crescentemente –  
ou perdem sua supremacia tecnocrática no seio do governo. Esta aparente  
neutralidade militar perante as eleições é uma balela, não tem nenhuma consistência.  
Mesmo que o candidato vitorioso seja um candidato inesperado, mas  
"compatibilizável", a saliência militar continuará e aumentará como um cancro. O  
problema da república reside em como a burguesia poderá recolher a sua "mão  
militar". Ela quer usar luvas de pelica, não quer ser tolerante e compreensiva, e todas  
as composições acabam sofrendo um impacto militar profundo. Os meios de  
comunicação de massa servem como instrumentos para adensar a importância do setor  
militar isso é pacífico! A burguesia não a nacional, mas a "nossa" burguesia, que é  
seminacional, semiestrangeira, plurinacional e pluri-internacional, isto é, associada ou  
composta procurará manejar esse setor militar, que conquistou um grau de  
autonomia no aparato de estado que o torna um árbitro oscilante. Portanto, nada vai  
ser fácil na relação dos militares com o sistema central de poder. Desse ângulo, da  
direita e do centro-direita, as candidaturas são secundárias e as demais são  
"trabalháveis".  
PDB: Que tipo de projeto, de perspectiva econômica, teria essa burguesia  
compósita, no quadro atual?  
FF: O parlamento ilustra bem isso, é como se a gente olhasse a burguesia no  
microscópio. Há um setor pequeno a grande burguesia que é nacionalista no  
sentido da autoproteção do capital e do seu privilegiamento como elemento receptor  
da proteção do estado e na exploração do país. Este nacionalismo, este progressismo  
adaptativo são frutos de uma situação de interesses muito fraca e que torna a parte  
negativa da burguesia aberta a composições que permitam combater inclusive a  
privatização. Não porque seja contra a desestatização, mas porque não concentra em  
suas mãos meios para competir com os setores da burguesia que são estrangeiros e  
que a deslocarão, no médio ou no largo prazo, das suas posições e bloquearão o seu  
acesso às oportunidades abertas pela privatização. Foi muito sintomático sofrermos  
derrotas seguidas no caso das medidas provisórias e ganharmos na questão da  
privatização, porque houve uma fragmentação da burguesia com relação a questões  
essenciais para o desenvolvimento capitalista. E essa fragmentação, assim como a  
representação de classe direta, instrumentalizou os partidos e a conglomeração de  
forças, independentemente do grau de racionalidade política das decisões. Isso porque  
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esse setor da burguesia é um setor mais culto, mais esclarecido, às vezes até com  
formação universitária, com um conhecimento comparado do que aconteceu com  
outras burguesias da periferia, com capacidade de prospecção sobre o futuro do Brasil,  
segundo alternativas diferentes, da evolução do capitalismo monopolista.  
MDP: Seria possível dar alguns nomes dessa burguesia para o leitor visualizá-  
la empiricamente?  
FF: Severo Gomes, por exemplo, teve uma posição pioneira, ele arrastou os  
senadores, contra o projeto de privatização que havia sido aprovado na Câmara. É  
interessante ver como a divisão da burguesia atinge uma faixa estreita do grande  
capital e que o que pode ser decidido em termos de uma representação estadual não  
se consegue através de uma representação proporcional, pois foi mais fácil a vitória  
através dos senadores do que através dos deputados.  
PDB: Na realidade, houve uma inversão.  
FF: É uma inversão fácil de entender: o capitalismo oligopolista, que tem um  
nexo neocolonial visível, realiza a sua função por dentro da nação hospedeira, ou seja,  
a captação de recursos, a acumulação de capital, a drenagem de capital líquido se faz  
a partir de dentro e não de fora. As grandes empresas ocuparam o espaço  
internamente, internacionalizaram a economia e os processos de decisão. O que  
acontece, então, é que existem desigualdades na capacidade da burguesia de operar  
dentro do país e nas regiões menos desenvolvidas; os setores mais fracos da burguesia  
são famintos de alianças com o capital estrangeiro e, ao mesmo tempo, desejam  
oportunidades que são nefastas para a nação, como a implantação de zonas de  
exportação, investimentos etc. Aquela ideia de que podemos transferir o capital  
acumulado no exterior, apesar de tudo que acarretou de mal ao Brasil, não  
desapareceu do horizonte burguês. Há, ainda, uma ilusão de que podemos pôr esse  
processo em andamento sem os erros cometidos até o presente, como se esse capital  
acumulado exteriormente pudesse ser captado sem custos extorsivos e sem danos  
permanentes. Isso explica como a fragmentação é desigual e porque na Câmara dos  
Deputados a pressão burguesa foi mais vitoriosa que no Senado, em função da  
situação econômica do país, em conexão com os dinamismos políticos que estão ao  
alcance das mãos da burguesia e do estado. Há, de outro lado, setores da burguesia  
nacional que estão firmemente identificados com a ideia de que hoje não é mais  
possível a livre iniciativa concebida em termos de um país implantado na economia  
capitalista internacional, e que toda a nação ocupa uma posição em função das suas  
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relações com os países centrais, em termos econômicos, financeiros, políticos e  
culturais. Trata-se de uma burguesia pró-imperialista e que não compartilha de nenhum  
ressentimento, nenhuma vergonha de ser pró-imperialista. Aquela que utiliza suas  
posições no sentido de sua autodefesa e tem êxitos parciais. Mas o relatório final do  
Severo Gomes, na comissão de economia, foi golpeado, apesar de sua vitória no  
Senado. Isso demonstra como as coisas escapam das mãos desse setor mais  
esclarecido do grande capital e como aquela mentalidade que foi instaurada em 64  
continua presente. Em 64, essa mentalidade sustentava que a transformação capitalista  
não era necessariamente um processo autônomo, mas um caminho de  
interdependência. Implicava a internacionalização do modo de produção, do mercado  
interno, da exportação, da acumulação de excedente econômico, a associação no  
crescimento econômico. O que mostra que a maior parte da burguesia é destituída de  
um projeto nacional, pois não o coloca mais como algo visível. Os próprios  
economistas vêm falando isso há tempo. Primeiro foi Celso Furtado, dizendo que não  
seria viável conceber hoje um país no qual fosse possível isolar uma economia nacional  
da internacional. Depois vieram outros, que consolidaram essa consciência e, por fim,  
até o Gorbatchev está servindo a esse baile de máscaras, para demonstrar que o  
caminho correto seria abrir-se internacionalmente, fortalecer-se pelos elos com o  
capital externo.  
PDB: Seria mais ou menos aquilo que Roberto Campos vem defendendo há  
décadas.  
FF: Só que Roberto Campos aparece muito como um extremista do liberalismo  
e do imperialismo. Suas posições são rejeitadas porque vão até às últimas  
consequências. Nosso grande capital ainda não adquiriu experiência, o que seria fácil  
demonstrar: bastaria ler alguns livros de administração, como, por exemplo, o de Peter  
Drucker que, num ensaio publicado em O Estado de S. Paulo, afirmava que, para uma  
corporação multinacional, um país como o Brasil seria um ponto no mapa. Nossa  
burguesia não tem imaginação para perceber que ser um ponto no mapa é algo muito  
irrelevante. Ela fica muito orgulhosa de ser a “oitava economia” no mundo, sem saber  
o que isso representa. Pois, se ela é a oitava economia, a que custos isso se deu, quais  
são as distorções que ocorreram aqui e o que isso representa para o país em termos  
do presente e do futuro? Isto não a preocupa. O que a preocupa é uma estratégia no  
curto prazo. A ausência de um projeto de constituição corresponde certamente à  
ausência de um projeto econômico dessa burguesia.  
PDB: Como ela vislumbra um novo processo de acumulação?  
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FF: É difícil dizer, mas num debate com dois elementos jovens, que fazem parte  
do empresariado com uma nova mentalidade dentro da Fiesp, eles se colocaram contra  
os velhos empresários e suas limitações intelectuais. Mas nada como os "velhos  
empresários” com suas limitações intelectuais para esclarecer aos novos empresários  
sem estas limitações: o que estes querem é realizar o mais depressa possível o  
processo de aceleração da incorporação, adotando a racionalidade da produção  
capitalista que criaria um fluxo de duas mãos, um vaivém, da economia brasileira para  
a economia internacional. Há também uma ausência de projeto econômico porque, no  
essencial, este vem pronto e acabado de fora, como os pacotes de tecnologia, de  
educação etc. O pacote de política econômica não é só um rol de prescrições e ordens  
do FMI, do Bird e dos bancos internacionais, é a adoção de uma política que reflete a  
expectativa do grande capital estrangeiro de que encontrará aqui docilidade e  
cooperação. Os conflitos que nós vivemos internamente aparecem exemplificados  
nessa estrada que liga o Acre à fronteira do Peru: um projeto japonês que os norte-  
americanos tentam impedir, o que será difícil conseguir, e que no máximo possibilitará  
uma negociação na qual os americanos surgirão como parceiros. Prevalece a ausência  
de projetos criativos internos e autônomos. Os militares poderiam produzi-los, pois,  
para nossa desgraça, eles também são empresários intelectuais, com um banco de  
cérebros que abrange também civis e que recebe assessoria de grandes especialistas  
do exterior e do país. Mas, apesar disso, a nossa é uma burguesia sem projeto de  
nação e de futuro e que, quando vê que não tem cacife para isso, abaixa o nível de  
exigências e, no limite, serve de elo, de mediação para uma exploração mais intensa  
do Brasil por parte do capital estrangeiro. Aquilo que, no passado, eu descrevi como  
uma acumulação dual hoje é uma realidade corriqueira, na qual cada vez mais só o  
setor financeiro revela uma capacidade de autoproteção significativa. Os outros setores  
são obrigados a ceder a parte do leão ao capital "transnacional", à comunidade  
internacional de negócios. Com isso, vivemos aquela realidade que eu designava como  
a de uma nação dependente que cultiva a ideologia da nação dominante, que se  
manifesta pela ação da classe dominante 1ocal e cujo elo para essa absorção  
ideológica é o capital externo. Para a grande burguesia, a sua utopia é a utopia da  
burguesia internacional, a de conseguir, por meio da sua ação, uma acomodação entre  
sistemas inconciliáveis de organização da economia, do estado e da sociedade. Hoje,  
a grande utopia burguesa é essa.  
MDP: Apesar de estarmos ainda distantes da definição do quadro de  
candidatos para as eleições presidenciais, gostaria que você analisasse os possíveis  
nomes que representam esse setor.  
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nova fase  
Constituinte e revolução  
FF: Bom, os candidatos, infelizmente, podem ir de Jânio Quadros, passando por  
Aureliano, por Quércia, até Ulysses. Quércia é um candidato com um grande cacife.  
Aureliano é um candidato com maior bafejo militar, se a questão fosse de preferência,  
ele seria o escolhido da cúpula militar. Agora, pode ser que conjunturalmente Quércia  
acabe sendo o candidato-chave, porque é suficientemente destituído de escrúpulos  
para servir às diferentes determinações negativas que virão dos vários setores internos  
e externos. É um demagogo sutil, porque não revela sua face demagógica, não torna  
a demagogia evidente e, de outro lado, suficientemente frio para resguardar e levar  
adiante o seu cálculo político racional. Nesse sentido, é a pior figura que existe no  
cenário político brasileiro e, por isso mesmo, a melhor em termos da conjuntura para  
a burguesia*. Ulysses perdeu a chance com as oscilações do PMDB e com o próprio  
fato de que protelou de tal maneira soluções, que tinham caráter de urgência, que  
degolou a si próprio. Quércia, pela ressonância que encontra entre os políticos em  
nível nacional, o que, em termos eleitorais, nada significa, pode vir a ser o escolhido,  
apesar das resistências existentes dentro do PMDB.  
ARF: Há a notícia de que ele teria acertado já um acordo com Ulysses, que a  
essa altura já estaria consagrado, na pré-convenção de hoje.  
FF: Quércia já deixou de ser o candidato. Houve uma ampla análise sobre ser  
ou não ser candidato, e para ele seria muito melhor continuar governador e se  
candidatar na outra sucessão. Mas isso tudo não passa de cogitação, porque ninguém  
sabe se vai haver esta ou a próxima eleição. Além do que, se Quércia puder bigodear  
Ulysses e isso for decisivo para ele, bigodeará com arte extremamente refinada, pois  
é um mafioso. No entanto, as especulações em torno de nomes são naturalmente  
vazias, porque de fato a seleção, o peneiramento, vai se dar em termos dos interesses  
do grande capital, de estamentos como o militar, o judiciário e o próprio legislativo; e  
ninguém pode prever ainda quem sairá como candidato. O processo não fechou, ele  
está em andamento. A posição de Mário Covas é uma posição quase privilegiada,  
porque está dentro, mantendo-se fora, deslocando-se em uma posição altamente  
vantajosa e correndo o páreo como se não estivesse nele. Tem agora muito mais  
chance de acabar sendo um candidato bafejado pela burguesia do que antes já teve.  
O problema é reconquistar a confiança. A sua luta em torno do processo das eleições  
presidenciais é a de se recompor com os empresários. Sua votação em São Paulo, para  
*
Essas opiniões foram emitidas na data da entrevista. O desenrolar dos acontecimentos parece  
desmenti-las. Mas mostra, ao contrário, o conteúdo de verdade que elas possuíam (e ainda contêm).  
[Nota do entrevistado.]  
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um político que não tinha uma projeção extraordinária, indica um suporte muito forte  
de interesses econômicos variados, assim como religiosos, intelectuais, comerciais e  
financeiros. Aglutinou uma porção de interesses e muitos desses se divorciaram dele,  
porque foi estigmatizado como líder do PMDB no processo constituinte. Não deveria  
ter acontecido isso, pois ele sempre se pautou por assumir compromissos de centro.  
É curioso que pague por ser extremista, quando nunca o foi. Trata-se de um político  
hábil, com capacidade de liderança e de negociação não iria "queimar-se"  
infantilmente. É uma figura decisiva sem suporte partidário compatível. O PSDB  
realizou um complô de intelectuais, que viram como fazer a dissensão, souberam se  
separar em tempo do corpo do PMDB, mas não tiveram a competência de levar junto  
a máquina partidária, a não ser em casos isolados. Os que souberam fazer isso  
ganharam eleições ou, então, estão em boa posição para compor. Mas o PSDB ficou  
sem a máquina partidária, que em São Paulo está com Quércia, e o resto do país ficou  
sob controle conservador. No momento, vivem um dilema: ou reconquistam parte da  
máquina, através de novas cisões, ou têm de procurar uma ampla recomposição com  
outras forças partidárias. Esta pode ser instrumentalizada, pois não há grandes  
obstáculos entre os históricos do PMDB e o PSDB. O grande problema é saber em que  
direção vai caminhar o grande capital: se, na falta de um bom candidato de direita ou  
de extrema-direita, vai realmente preferir Covas, que não é apenas um mal menor, mas  
será literalmente um presidente seguro para a burguesia.  
ARF: No exame das possibilidades e do significado dos candidatos, Ulysses, na  
sua reflexão, é uma carta inteiramente fora do baralho?  
FF: Não, e nunca será uma carta fora do baralho. Poderá ser alijado, na medida  
em que o complexo de poder, instaurado no governo, conseguir um candidato bom  
de extrema-direita.  
ARF: Ele poderia surgir como candidato de uma aglutinação da qual o próprio  
poder federal participaria, uma vez que ele é organicamente expressão do  
conservadorismo ilustrado?  
FF: Sim, mas ele chegou a ser o candidato da transição, o candidato oficial,  
porém, repudiou essa condição, porque cometeu um equívoco: acreditou que perderia  
no processo eleitoral, se recebesse o bafejo do sistema de poder de forma visível. Por  
isso, dispersou forças e, ao mesmo tempo, ao prolongar essa condição, criou uma  
situação insustentável. E, com essa técnica, que ele usa costumeiramente, se  
desgastou, convertendo-se em um agente da desagregação do PMDB.  
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“Creio que a união à esquerda seria extremamente necessária."  
JC: Duas questões mais gerais: gostaria, agora, que você examinasse: 1) quais  
seriam os princípios de referência para a indicação de um candidato da esquerda; 2)  
qual o limite do que a esquerda pode esperar nesse momento do processo?  
FF: Se a questão fosse colocada ao nível político, a focalização seria mais  
exigente. O candidato ideal estaria fora do ringue. A dificuldade está no que você falou  
há pouco: a falta de renovação das propostas da esquerda. A esquerda ficou parada  
em torno de reivindicações que, na verdade, traduziam, com um máximo de  
radicalidade, aquilo que a burguesia deveria ter feito. Ou seja, a esquerda configurou-  
se como uma espécie de "outro" da burguesia, de uma burguesia que nunca existiu e,  
dessa maneira, tem de realizar a revolução dentro da ordem a partir de um eixo  
popular e proletário. Por isso, tenho a impressão de que nós deveríamos colocar o  
Brasil dentro de um contexto latino-americano, com processos específicos e variados,  
que nos levam a vê-1o como um país mais avançado do que a Nicarágua, com  
problemas muito diferentes dos do Chile e assim por diante. Em nosso país nem sequer  
tivemos um setor social suficientemente forte, que se despregasse da ordem e  
ameaçasse o governo e as instituições-chave existentes. O que se tem verificado, nos  
processos eleitorais, é a luta pela formação de um "poder popular" que, para um  
marxista, seria uma questão indigesta. Pensar na ideia do povo no poder, pela via  
eleitoral, é um absurdo nas condições existentes no Brasil. A questão que se coloca  
refere-se, pois, à criação de uma dupla polaridade. No entanto, nosso processo  
eleitoral está sujeito a coações e a múltiplas manipulações. Caso se realize, será um  
processo que terá de ser filtrado pelas instituições da ordem existente, não só no nível  
partidário, mas também no nível das várias instâncias da organização do estado e de  
outras instituições igualmente. conservadoras. Portanto, a questão fundamental, o  
principal desafio, seria cristalizar um poder antagônico ao poder da burguesia, mas  
que fosse legitimado pelo próprio processo eleitoral.  
RA: Para atingir o poder ou, pelo menos, para possibilitar a construção de uma  
oposição expressiva?  
FF: Sim. Esse poder teria de crescer como um poder popular, um poder capaz  
de exprimir um conjunto de exigências que apareceram na história da Europa, sem  
querer repetir aqui a história da Europa ou a história dos Estados Unidos. Na verdade,  
os avanços da democracia na Europa e nos Estados Unidos não foram concessões das  
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classes dominantes. No livro American political tradition, de Richard Hofstadter, você  
vai ver como os "founding fathers” (os pais da pátria) eram pessoas que não só tinham  
pensamento aristocrático, mas que desconfiavam da massa, e de tal modo que criaram  
vários entraves para impedir que surgisse nos Estados Unidos uma democracia plena,  
capaz de “plebeizar” o processo político. Houve, então, resistência nas classes  
dominantes à cristalização de uma alternativa popular de poder, e de uma maneira  
mais expressiva que na Europa, porque nos Estados Unidos a tradição aristocrática  
tinha raízes profundas, especialmente no Sul.  
Os países da periferia, por seu lado, não têm uma esfera de liberdades políticas,  
de direitos instituídos que fizessem parte da tradição dos direitos consuetudinários,  
direitos sobre o uso de uma porção da terra, liberdades que conferissem proteção à  
pessoa e que acabaram, na Europa, facilitando a transição do regime feudal para o  
regime capitalista. Lá, o modo de produção capitalista está vinculado ao aparecimento  
dos operários que haviam sido mestres e, mais tarde, tornaram-se técnicos, operários  
qualificados (além de comerciantes e capitalistas), o que elevou o nível de exigência e  
consciência do trabalhador. Formou-se, assim, um estrato operário dotado da  
capacidade de sofrer as frustrações, devido a um sistema de produção que não estava  
tão distante das opressões, das servidões do regime feudal. Desse modo, o antigo  
regime desaparece, mas muitos inconvenientes sobrevivem e a burguesia busca  
realizar-se, num curto período de tempo, passando de classe revolucionária para classe  
dominante, e de classe dominante para classe dominante reacionária, como nos casos  
da França e Inglaterra, fazendo com que a cristalização de um poder popular, da  
cidadania como uma forma de afirmação da pessoa, que a revolução burguesa  
renegou, fossem conquistados pela pressão da própria camada social excluída. São os  
democratas, os revolucionários, os trabalhadores, as populações destituídas que vão  
lutar contra a burguesia para obter concessões crescentes, aumentando a sua área de  
autoafirmação como classe em si e inventando técnicas sociais de autodefesa e de  
contra-ataque, usadas em termos defensivos e ofensivos. Esse processo teve grande  
dificuldade de realização no Brasil, não só por causa da nossa origem colonial e do  
modo de produção escravista, mas, também, pelo fato de que o aparecimento do  
trabalho como uma categoria histórico-social, como trabalho livre, deu-se numa  
condição de substituto, de sucessor do trabalho escravo. Os trabalhadores forjaram  
essa categoria histórica e o movimento prolongado, em ziguezague, pelo qual lutaram  
por sua liberdade e acabaram, em plena ditadura militar, contestando a burguesia. A  
herança colonial e escravista reforçava a defesa da estabilidade política por métodos  
violentos. O mesmo sucedia com o imperialismo, que fomentava a democracia em seus  
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países e a estabilidade a qualquer preço como requisito da proteção de seus bens,  
investimentos e lucros. Nessa situação complexa, é de fundamental importância o  
processo de formação de um poder popular ainda sob o capitalismo e de uma  
república democrática que reconheça a legitimidade da luta de classes. Ambas as  
condições são essenciais para que as massas populares e as classes trabalhadoras  
possam organizar-se para optar com autonomia pelo capitalismo ou pelo socialismo,  
pela reforma "melhorista" ou pela revolução social.  
RA: Gostaria que você mencionasse quais seriam os pontos programáticos  
indicativos de uma candidatura que pudesse aglutinar os setores populares na atual  
especificidade brasileira.  
FF: O ponto central é esse: despertar no oprimido, no excluído, no trabalhador  
assalariado, no trabalhador semilivre da cidade e do campo a consciência social da sua  
privação de uma cidadania plena, ou seja, de que são despojados de peso e voz na  
sociedade civil. Precisaríamos traduzir isso em termos claros e concretos e não dizer,  
pura e simplesmente, que os trabalhadores irão construir um poder popular, uma  
formulação política demasiado abstrata.  
JC: Esta sua fórmula "despertar a consciência da privação me faz lembrar  
uma dimensão característica de A mãe, de Górki: aquisição da verdade, processo pelo  
qual todos os personagens que vão aparecendo se transfiguram, sem perder  
identidade, apropriam-se pessoalmente da verdade, que não é mera abstração  
doutrinária, mas verdade na forma da própria vivência individual, precisamente porque  
são vivência e verdade objetivas de muitos, generalidade descoberta e compreendida.  
FF: Não se pode, pura e simplesmente, chegar ao trabalhador e dizer que ele  
precisa conquistar o poder real! O trabalhador brasileiro coloca a coisa em termos de  
privação, de arrocho salarial, de ter escola para o filho, de ter hospital para a mulher  
etc. Seria preciso apresentar todas essas reivindicações, mas, ao mesmo tempo,  
envolvê-las num processo de explicação socialista da realidade e de consciência crítica  
da luta política, pois o mais importante é dizer por que ele sofre precisamente essas  
privações, por que está assim e como poderá sair dessa situação subalterna.  
PDB: Aí a demanda teórica, mais uma vez, se apresenta como necessária.  
FF: E é aí que vem a contribuição fundamental do candidato político, do  
candidato que encarnaria a ótica socialista proletária, que teria de enlaçar a falta de  
hospitais, a falta de meios de comunicação, a falta de drenagem de água a um modo  
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de brutalizar o agente do trabalho produtivo como mercadoria e o instrumento  
humano de aceleração da acumulação capitalista...  
JC: Que destroça o ser humano... no singular e no plural.  
FF: ... da ausência de peso e voz do trabalhador e da massa popular na  
sociedade civil, do fato de uns deterem o poder e outros não. Aí é que o poder é  
decisivo, o poder popular como uma concreção da humanização da pessoa, da  
concretização da mulher e do homem. Por isso, é preciso ter coragem de levar uma  
linguagem socialista para o processo eleitoral.  
ARF: A propósito, gostaria que você falasse sobre a perspectiva social-  
democrata que assola o país, tomando conta das cabeças mais diferentes. Diante da  
profunda crise estrutural do capitalismo, as "melhores soluções" visam a revitalizar e  
bem gestionar esse mesmo capitalismo. Recentemente, um grupo de economistas do  
PT apresentou um programa emergencial e só não o levou a Sarney por causa da sua  
ilegitimidade. Caso fosse um governo legítimo, seria apresentado a ele. No entanto,  
esse programa econômico não toca em nada das questões estruturais e, não se pondo  
como uma alternativa concreta da perspectiva do trabalho, acaba, mais uma vez, numa  
crítica moralista, abstrata e utópica. Outra versão do tipo aparece no discurso da  
gestão transparente do estado, para a qual bastaria abrir a caixa vazia do estado para  
que as massas tomassem consciência de que as greves têm um limite. Nesse sentido,  
como você vê a proposta de civilizar o "capitalismo selvagem", de administrar a crise  
do capital?  
FF: É como um candidato moderado que quer civilizar a sociedade civil, quando,  
de fato, a civilização desta é um passo para acabar com a barbárie que ela contém.  
Veja, a sociedade de classes inglesa de hoje, ao invés de avançar, recuou, mas outras,  
que estão avançando, contêm a barbárie também. Por isso, a alternativa barbárie x  
socialismo não é conjuntural e, desse modo, um candidato socialista não pode dizer  
que vai humanizar o capitalismo, porque este nunca poderá ser humanizado. Qual é o  
candidato que irá dizer que está havendo uma exploração sistemática do trabalhador,  
que ele não tem casa, que não tem escola, que sofre o arrocho salarial, a  
superexploração da força de trabalho? Tal candidato não pode dizer que tudo é  
produto da dívida externa, porque a própria dívida é parte de um processo de  
espoliação capitalista que, no fundo, é a questão da exploração da força de trabalho  
como mercadoria. Mesmo que a gente não possa, numa campanha eleitoral, botar as  
coisas tão claras, porque nenhum partido assumiu essa posição avançada e necessária,  
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poder-se-ia pelo menos colocar a questão de que os trabalhadores só poderão lutar  
por sua humanização e autoemancipação coletiva quando se organizarem e lutarem  
para alcançar formas reais de participação na sociedade civil e no estado e  
transformarem no sentido da criação da liberdade com igualdade social. Sem que isso  
aconteça, nunca vai haver dupla polaridade. Se a burguesia não abriu caminho para  
uma democracia, nem sequer a burguesa, então, o caminho para uma democracia  
deverá ser aberto por uma polaridade que é proletária. Isso eu já sustentei na  
campanha várias vezes e tenho mantido sem reservas tal posição. Agora, é claro que  
esse não é o nosso objetivo imediato. Trata-se de atingir um patamar que sirva como  
meio para fins ulteriores mais amplos e propriamente revolucionários.  
No Peru, por exemplo, os diferentes partidos da esquerda se unem para fazer  
uma campanha que busca suscitar o problema da organização popular e da conquista  
do poder popular. Não se trata de uma volta ao passado, as alianças nas quais as  
massas populares e as classes trabalhadoras constituíam a cauda política de setores  
"progressistas" da burguesia. Mas de obrigar, a partir de baixo e pelos de baixo, as  
elites econômicas, culturais e políticas da burguesia a ceder espaço para a formação  
de uma democracia de participação ampliada e, em seguida, uma república  
democrática pluralista (como se viram compelidas a fazer as burguesias da Europa  
industrial e dos Estados Unidos). No entanto, essa democracia burguesa, sendo  
capitalista, não vai fazer outra coisa senão fechar o processo de mudança dentro de  
limites que são estreitos (de "defesa da ordem" ou de “reforma capitalista do  
capitalismo"). Por isso, há uma armadilha na pergunta, porque a resposta plena envolve  
a discussão de um partido socialista revolucionário devotado a trabalhar diretamente  
fora do quadro institucional e contra a ordem, coisa que escapa, no momento, à  
situação eleitoral. Nessa situação, as reivindicações não são mais do que um rosário  
de repetições. O que falta é adicionar esclarecimentos: a origem dessas limitações e  
como está na mão do trabalhador, na mão do excluído, o meio de corrigir isso, exigindo  
a sua parcela de poder dentro da sociedade civil e na relação com o estado, colocando  
a sociedade sobre seus próprios pés. É claro que a indicação fundamental está nos  
conselhos e nas funções que eles podem desempenhar nessa inversão (pois  
atualmente a sociedade está de cabeça para baixo, sob a tutela "senhorial" da minoria  
privilegiada).  
Nas eleições, deve-se aproveitar para difundir a ideia da necessidade e da  
função dos conselhos. Eles podem nascer vinculados a reivindicações muito  
corriqueiras, muito estreitas, mas, com o crescimento natural do processo, podem se  
converter numa alternativa de poder, numa fonte de conflito, e a burguesia não os  
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poderá abafar simplesmente com meios militares; se vier a fazê-lo, terá de enfrentar  
insurreições crescentes. No entanto, é preciso lidar com os conselhos de uma maneira  
branda, difundindo a concepção de que se trata de um modo da auto-organização da  
participação popular.  
JC: Principalmente se entendemos o conselho como um meio que conduz à  
explicitação de contradições, realizando, assim, a democracia.  
FF: Agora, uma palavra sobre as candidaturas da esquerda, porque o próprio  
Mário Covas é um candidato de centro-esquerda, embora, vamos dizer, da faixa mais  
moderada da social-democracia. O fato de ele excluir a identidade socialista não  
significa que tenha deixado de ser um candidato de centro-esquerda, mesmo que seja  
a esquerda da burguesia. Há uma faixa de militantes e políticos do seu partido que  
está mais à esquerda e em posições socialistas.  
Penso que se deve considerar a candidatura de Lula e a candidatura de Leonel  
Brizola, no seu contexto próprio ou específico, que os solda à construção da  
democracia. Para mim, como militante e deputado do PT, a candidatura de Lula é a  
que faz mais sentido na esquerda. Estou empenhado em sua campanha eleitoral e nas  
pugnas políticas que têm por objetivo a sua história.  
PDB: Nessa dispersão, existe ainda a candidatura de Roberto Freire. Ela  
apresenta um discurso aparentemente diferente da prática de seu partido, movendo-  
se nitidamente no oportunismo, que busca reconstruir uma estrutura falida com a  
sedução de uma nova roupagem, mas escondendo de fato aquilo que o PC representa  
politicamente.  
FF: Bem, a candidatura de Freire foi inicialmente explicada como necessidade  
de restaurar a identidade política do PCB. Eu acho legítimo que o Partido Comunista  
faça isso no primeiro turno. Na pior das hipóteses, o processo eleitoral pode indicar a  
sua fraqueza e encorajar a burguesia a tolerar a existência e a sobrevivência de uma  
organização partidária que chegou a ser tão estigmatizada e temida. Mas, de qualquer  
maneira, creio que a união à esquerda seria uma coisa extremamente necessária,  
porém, as peculiaridades pessoais dos candidatos e a fome dos partidos pela  
conquista do poder impedem essa união. Não sei por que nenhum dos candidatos  
desenvolveu esse raciocínio elementar, porque o melhor seria, já no primeiro turno,  
procurar essa união e sair com uma candidatura única. O ideal, neste instante, seria  
desenvolver uma forte compatibilidade e caminharmos para uma educação política das  
massas, mostrando que não há a necessidade de destruição do antagonista que está  
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no mesmo campo. O importante é identificar que o inimigo principal não são aqueles  
que defendem objetivos convergentes, ainda que não análogos, mas que podem  
competir sem se destruir. No entanto, não é isso que está acontecendo: Brizola está  
avançando no sentido de isolar Lula em um gueto, com isso leva o PT a responder  
com chumbo grosso. Isso vai dividir a esquerda, ao invés de uni-la.  
JC: Acredito que recolhemos o material pretendido. Gostaria de saber se de sua  
parte há algum interesse em fazer alguma complementação ou finalização.  
FF: Eu estava disposto a responder o que me fosse perguntado. Na realidade,  
pensei que vocês me poriam mais contra a parede do que o fizeram. Vocês investiram  
em mim, politicamente, mais do que eu merecia, e não correspondi como devia.  
JC: Eu não colocaria nesses termos!  
FF: Tentei corresponder, mas o fato é que não há espaço político para certas  
aspirações, e os partidos políticos de esquerda ainda são frágeis para fazer com que  
avancemos como seria desejável. No mais, continuo onde estava! Um partido que  
aspire à conquista do poder para o proletariado, sem vincular entre si a "revolução  
dentro da ordem" e a "revolução contra a ordem", comete um grande equívoco e  
caminha irremediavelmente para a social-democratização à la latino-americana...  
Como citar:  
CHASIN, J. et al. Constituinte e revolução: entrevista com Florestan Fernandes.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 444-481, 2025.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 30, n. 2, pp. 444-481jul.-dez., 2025 | 481  
nova fase  
TRADUÇÃO  
DOI 10.36638/1981-061X.2025.30.2.768  
T r a d u ç ã o  
_____  
Karl Marx/Friedrich Engels  
Resenha a  
François-Pierre-Guillaume GUIZOT  
Por que a revolução na Inglaterra foi bem-sucedida?  
Conferência sobre a história da Revolução Inglesa*  
A resenha ora traduzida é parte de um conjunto de resenhas contidas nos volumes que foram  
publicadas sem assinatura nos números 2 e 4 da “Neue Rheinische Zeitung. Politisch-  
ökonomische Revue”. Em 1892, Engels relatou em um esboço biográfico sobre Marx, que  
juntamente com ele Marx também havia escrito na “Revista” resenhas e análises políticas. No  
que diz respeito a algumas resenhas, como as dos livros de Emile de Girardin e Guizot, é muito  
provável que tenham sido escritas por Marx, enquanto a resenha do livro de Thomas Carlyle  
provavelmente foi escrita por Engels. No entanto, como isso não pode ser comprovado com  
certeza, mais correto seria considerar a resenha que se segue como uma produção conjunta.  
O panfleto do Sr. Guizot1 tem como objetivo provar por que Luís Filipe e a  
política de Guizot não deveriam ter sido derrubados em 24 de fevereiro de 1848 e  
como o caráter repreensível dos franceses foi o responsável pelo vergonhoso colapso  
da monarquia de julho de 1830, após dezoito anos de existência árdua, que não durou  
tanto quanto a monarquia inglesa desde 1688.  
Este panfleto mostra como até mesmo as pessoas mais capazes do ancien  
régime2 e, mesmo aquelas que certamente possuíam talento para a história, foram tão  
*
Titulo original da resenha: GUIZOT; Pourquoi la révolution d'Angleterre a-t-elle réussi? Discours sur  
l'histoire de la révolution d'Angleterre. Paris: Victor Masson, 1850. Publicado em Neuen Rheinischen  
Zeitung. Politisch-ökonomische Revue. Zweites Heft, Februar 1850. Traduzido por Ronaldo Vielmi  
Fortes a partir da edição da Marx-Engels Werke. Band 07: August 1849-Juni 1851. Berlim: Dietz Verlag,  
1960.  
1
Guizot, François-Pierre-Guillaume (1787-1874) Historiador e estadista francês, orleanista; dirigiu a  
política interna e externa da França de 1840 a 1848, representando os interesses da grande burguesia  
financeira.  
2 Antigo Regime  
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nova fase  
     
Tradução da resenha a Guizot, Por que a revolução na Inglaterra foi bem-sucedida?  
completamente lançadas na confusão pelos eventos fatídicos de fevereiro que  
perderam toda a compreensão histórica, até mesmo a compreensão de suas próprias  
ações anteriores. Em vez de serem levados pela Revolução de Fevereiro a reconhecer  
as circunstâncias históricas totalmente diferentes, as posições completamente distintas  
das classes sociais na monarquia francesa de 1830 e na monarquia inglesa de 1688,  
o Sr. Guizot reduz toda a diferença a algumas frases morais e afirma, ao final, que as  
políticas derrubadas em 24 de fevereiro são "as únicas que preservam os Estados e,  
portanto, superam as revoluções".  
A questão que o Sr. Guizot deseja responder, formulada precisamente, é: Por  
que a sociedade burguesa na Inglaterra se desenvolveu por mais tempo sob a forma  
de uma monarquia constitucional do que na França?  
A seguinte passagem pode servir para caracterizar o conhecimento do Sr.  
Guizot sobre o curso do desenvolvimento burguês na Inglaterra:  
Sob os reinados de George I3 e George II4, o espírito público tomou  
um rumo diferente: a política externa deixou de ser sua principal  
preocupação; a administração interna, a manutenção da paz, as  
finanças, as colônias, o comércio, o desenvolvimento e as lutas do  
regime parlamentar tornaram-se a ocupação predominante do  
governo e do público.  
O Sr. Guizot encontra apenas dois momentos notáveis no reinado de Guilherme  
III: a manutenção do equilíbrio entre o Parlamento e a Coroa, e a preservação do  
equilíbrio europeu através da luta contra Luís XIV. Sob a dinastia hanoveriana, contudo,  
o "espírito público" subitamente toma um rumo diferente; ninguém sabe como ou  
porquê. Aqui vemos como o Sr. Guizot aplica as frases mais comuns do debate  
parlamentar francês à história inglesa, acreditando tê-la explicado dessa forma. Da  
mesma maneira, o Sr. Guizot, enquanto ministro, também se imaginava responsável  
pelo equilíbrio entre o Parlamento e a Coroa e pelo equilíbrio europeu, quando na  
realidade não fez nada além de vender o Estado francês e toda a sociedade francesa,  
pedaço por pedaço, aos financistas judeus da bolsa de valores de Paris.  
Que as guerras contra Luís XIV foram puramente guerras de concorrência para  
destruir o comércio francês e o poderio naval francês, que sob Guilherme III o domínio  
da burguesia financeira recebeu sua primeira sanção com a criação do banco e a  
3
George Ludwig de Hanover (1660-1727), ascendeu ao trono com o nome de George I da Grã-  
Bretanha, foi eleitor de Hanover do Sacro Império Romano de 23 de janeiro de 1698 até seu morte e  
rei da Grã-Bretanha e Irlanda de 1 de agosto de 1714 até sua morte.  
4
George II Augusto de Hanôver (George II), Rei da Grã-Bretanha e Irlanda (1727-1760) e Eleitor de  
Hanôver (1727-1760). Foi ainda príncipe-eleitor de Hanôver e duque de Brunsvique-Luneburgo.  
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nova fase  
   
Karl Marx/Friedrich Engels  
introdução da dívida pública5, que a burguesia manufatureira recebeu um novo  
impulso com a implementação consistente do sistema de tarifas protecionistas, o Sr.  
Guizot não considera que valha a pena falar sobre isso. Para ele, apenas as frases  
políticas têm significado. Ele nem mesmo menciona que, sob a rainha Anna6, os  
partidos governantes só puderam se manter e preservar a monarquia constitucional  
prolongando a duração dos parlamentos para sete anos por meio de um golpe de  
força, destruindo assim quase totalmente a influência do povo sobre o governo.  
Sob a dinastia de Hanôver, a Inglaterra já estava pronta para travar a guerra de  
concorrência contra a França na sua forma moderna. A Inglaterra só combatia a França  
na América e nas Índias Orientais, enquanto no continente se contentava em pagar  
príncipes estrangeiros como Frederico II para guerrearem contra a França. E quando a  
guerra externa assume outra forma, diz o Sr. Guizot: “A política externa deixa de ser a  
questão principal” e em seu lugar surge “a manutenção da paz”. Em que medida “o  
desenvolvimento e as lutas do regime parlamentar se tornaram a ocupação  
predominante do governo e do público”, compare-se as histórias de corrupção sob o  
ministério de Walpole7, que, aliás, se assemelham muito aos escândalos que se  
tornaram comuns sob o senhor Guizot.  
O Sr. Guizot explica que a Revolução Inglesa teve um desfecho mais próspero  
do que a Francesa por duas razões principais: em primeiro lugar, porque a Revolução  
Inglesa teve um caráter totalmente religioso, ou seja, não rompeu de forma alguma  
com todas as tradições do passado; e, em segundo lugar, porque desde o início não  
foi destrutiva, mas conservadora, com o Parlamento defendendo as antigas leis  
existentes contra as transgressões da Coroa.  
No que diz respeito ao primeiro ponto, o Sr. Guizot esquece que o espírito  
liberal, que tanto o assusta na Revolução Francesa, não foi importado para a França  
de nenhum outro país senão da Inglaterra. Locke foi seu pai, e em Shaftesbury e  
Bolingbroke ele já assumiu aquela forma espirituosa que mais tarde teve um  
desenvolvimento tão brilhante na França. Chegamos assim ao curioso resultado de  
que o mesmo espírito liberal que, segundo o Sr. Guizot, levou ao fracasso da Revolução  
5 O Banco da Inglaterra foi fundado em 1694. Seus fundadores disponibilizaram o capital de fundo ao  
governo como empréstimo, dando início à dívida pública.  
6 Ana (1665-1714) foi a Rainha da Inglaterra, Escócia e Irlanda de 8 de março de 1702 até 1 de maio  
de 1707, quando uniu a Inglaterra e a Escócia em um único estado soberano, o Reino da Grã-Bretanha,  
com o Tratado de União. Ela continuou a reinar como a Rainha da Grã-Bretanha e Irlanda até sua morte,  
e foi a última monarca da Casa de Stuart.  
7
Robert Walpole, 1.º Conde de Orford (1676-1745), foi um estadista britânico que serviu como o  
primeiro primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Seu mandato durou vinte anos, tornando-o o primeiro  
ministro mais antigo da história britânica.  
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Tradução da resenha a Guizot, Por que a revolução na Inglaterra foi bem-sucedida?  
Francesa, foi um dos produtos essenciais da Revolução Religiosa Inglesa.  
Em relação ao segundo ponto, o Sr. Guizot esquece completamente que a  
Revolução Francesa começou de forma tão conservadora, ou mesmo muito mais  
conservadora, do que a Inglesa. O absolutismo, especialmente como se manifestou na  
França, foi também aqui uma inovação, e contra essa inovação se levantaram os  
parlamentos, defendendo as antigas leis, os us et coutumes8 da antiga monarquia  
estamental. E se o primeiro passo da Revolução Francesa foi o ressurgimento dos  
Estados Gerais, extintos desde Henrique IV e Luís III, a Revolução Inglesa, por outro  
lado, não apresenta nenhum fato de conservadorismo clássico semelhante.  
Segundo o Sr. Guizot, o principal resultado da Revolução Inglesa foi que o rei  
ficou impossibilitado de governar contra a vontade do Parlamento e da Câmara dos  
Comuns. Toda a revolução consiste agora no fato de que, no início, ambos os lados, a  
coroa e o Parlamento, ultrapassaram seus limites e foram longe demais, até que  
finalmente, sob Guilherme III, encontraram o equilíbrio certo e se neutralizaram. Guizot  
considera desnecessário mencionar que a submissão da monarquia ao Parlamento é  
sua submissão ao domínio de uma classe. Por isso, ele não precisa entrar em detalhes  
sobre como essa classe adquiriu o poder necessário para finalmente tornar a coroa  
sua serva. Para ele, toda a luta entre Carlos I e o Parlamento se resume a privilégios  
puramente políticos. Não se diz uma palavra sobre por que o Parlamento e a classe  
por ele representada precisavam desses privilégios. O Sr. Guizot também não  
menciona as intervenções diretas de Carlos I na livre concorrência, que tornavam cada  
vez mais impossível o comércio e a indústria da Inglaterra, nem a dependência do  
Parlamento, na qual Carlos I se afundava cada vez mais devido à sua contínua crise  
financeira, quanto mais tentava desafiar o Parlamento. Por isso, toda a revolução só é  
explicável para ele pela má vontade e pelo fanatismo religioso de alguns agitadores  
que não se contentavam com uma liberdade moderada. O Sr. Guizot também não  
consegue esclarecer a relação entre o movimento religioso e o desenvolvimento da  
sociedade burguesa. A república é, naturalmente, também obra de alguns ambiciosos,  
fanáticos e mal-intencionados. O fato de que, na mesma época, em Lisboa, Nápoles e  
Messina, também foram feitas tentativas de introduzir a república, e, assim como na  
Inglaterra, também com vistas à Holanda, é um fato que não é mencionado. Embora o  
Sr. Guizot nunca perca de vista a Revolução Francesa, ele nem mesmo chega à  
conclusão simples de que a transição da monarquia absoluta para a constitucional só  
ocorre em todos os lugares após violentas lutas e após a passagem pela república e  
8 tradições e costumes.  
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Karl Marx/Friedrich Engels  
que, mesmo assim, a antiga dinastia, considerada inútil, deve dar lugar a uma linha  
lateral usurpadora. Sobre a queda da monarquia inglesa da Restauração, ele só sabe  
dizer os lugares-comuns mais triviais. Ele nem mesmo menciona as causas imediatas:  
o medo dos novos grandes proprietários fundiários, criados pela Reforma, do  
restabelecimento do catolicismo, com o qual eles teriam naturalmente que devolver  
todos os bens eclesiásticos que haviam roubado, ou seja, com o qual sete décimos de  
toda a área territorial da Inglaterra teriam mudado de proprietário; o receio da  
burguesia comercial e industrial em relação ao catolicismo, que de modo algum se  
encaixava em seu comércio; a indiferença com que os Stuarts, para seu próprio  
benefício e o de sua nobreza, venderam toda a indústria inglesa, juntamente com o  
comércio, ao governo da França, ou seja, ao único país que na época representava  
uma concorrência perigosa e, em muitos aspectos, vitoriosa para os ingleses, etc.  
Como o Sr. Guizot omite os momentos mais importantes em todos os aspectos, não  
lhe resta nada além de uma narrativa extremamente insuficiente e banal dos  
acontecimentos meramente políticos.  
O grande enigma para o Sr. Guizot, que ele só consegue decifrar graças à  
inteligência superior dos ingleses, o enigma do caráter conservador da revolução  
inglesa, é a aliança contínua entre a burguesia e a maior parte dos grandes  
proprietários fundiários, uma aliança que distingue essencialmente a revolução inglesa  
da francesa, que destruiu as grandes propriedades fundiárias através do parcelamento.  
Essa classe de grandes proprietários fundiários ligada à burguesia, que aliás já havia  
surgido sob Henrique VIII, não se encontrava, como a propriedade fundiária feudal  
francesa em 1789, em contradição, mas sim em total harmonia com as condições de  
vida da burguesia. Suas propriedades fundiárias não eram, na verdade, feudais, mas  
sim propriedades burguesas. Por um lado, eles forneciam à burguesia industrial a  
população necessária para o funcionamento das manufaturas e, por outro, eram  
capazes de dar à agricultura o desenvolvimento que correspondia ao estado da  
indústria e do comércio. Daí seus interesses comuns com a burguesia, daí sua aliança  
com ela.  
Com a consolidação da monarquia constitucional na Inglaterra, a história inglesa  
chega ao fim para o Sr. Guizot. Tudo o que se segue limita-se, para ele, a uma agradável  
alternância entre Tories e Whigs9, ou seja, para ele, ao grande debate entre o Sr. Guizot  
9
O Whig Party, era o partido que reunia as tendências liberais no Reino Unido, e contrapunha-se ao  
Tories Party, de linha conservadora.  
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e o Sr. Thiers10. Na realidade, porém, é apenas com a consolidação da monarquia  
constitucional que começa o magnífico desenvolvimento e a revolução da sociedade  
burguesa na Inglaterra. Onde o Sr. Guizot vê apenas uma calma suave e uma paz idílica,  
na realidade desenvolveram-se os conflitos mais violentos, as revoluções mais  
decisivas. Primeiro, sob a monarquia constitucional, a manufatura se desenvolveu a  
uma escala até então desconhecida, para então dar lugar à grande indústria, à máquina  
a vapor e às fábricas gigantescas. Classes inteiras da população desaparecem, novas  
classes tomam seu lugar, com novas condições de vida e novas necessidades. Surge  
uma nova burguesia, ainda mais colossal; enquanto a velha burguesia luta contra a  
Revolução Francesa, a nova burguesia conquista o mercado mundial. Ela se torna tão  
poderosa que, mesmo antes que a lei de reforma lhe conceda poder político direto, já  
obriga seus oponentes a promulgar leis quase exclusivamente em seu interesse e de  
acordo com suas necessidades. Ela conquista representação direta no Parlamento e a  
utiliza para destruir os últimos resquícios de poder real que restavam à propriedade  
fundiária. Ela está, finalmente, neste momento, ocupada em demolir completamente o  
belo edifício da Constituição inglesa, diante do qual o Sr. Guizot permanece admirado.  
E enquanto o Sr. Guizot elogia os ingleses por não terem deixado que os  
excessos repreensíveis da vida social francesa, o republicanismo e o socialismo, os  
pilares fundamentais da monarquia que traz a felicidade, não abalaram os alicerces da  
monarquia, enquanto na Inglaterra as diferenças de classe na sociedade atingiram um  
nível sem igual em nenhum outro país, onde uma burguesia com riqueza e força  
produtiva incomparáveis se contrapõe a um proletariado igualmente incomparável em  
termos de poder e concentração. O reconhecimento que o Sr. Guizot presta à Inglaterra  
resume-se, portanto, ao fato de que aqui, sob a proteção da monarquia constitucional,  
se desenvolveram elementos de uma revolução social muito mais numerosos e muito  
mais radicais do que em todos os outros países do mundo juntos.  
Quando os fios do desenvolvimento inglês convergem para um ponto crucial  
que ele próprio não consegue mais resolver com meras frases políticas, o senhor  
Guizot recorre a frases religiosas, à intervenção armada de Deus. Assim, por exemplo,  
o espírito de Deus repentinamente se apodera do exército e impede Cromwell de se  
proclamar rei, etc. etc. Guizot salva sua consciência por meio de Deus e salva-se do  
público profano por meio do estilo.  
10  
Thiers, Louis-Adolphe (1797-1877) Historiador e estadista francês, orleanista; Primeiro-Ministro  
(1836, 1840); Deputado da Assembleia Nacional Constituinte em 1848; Presidente da República (1871  
a 1873), executor da Comuna de Paris.  
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Karl Marx/Friedrich Engels  
De fato, não apenas les rois s'en vont11, mas também les capacités de la  
bourgeoisie s'en vont12*.  
Como citar:  
MARX/ENGELS. Resenha a Guizot: Por que a revolução na Inglaterra foi bem-sucedida?  
Conferência sobre a história da Revolução Inglesa. Trad. por Ronaldo Vielmi Fortes.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 30, n. 2, pp. 482-488, 2025.  
11 os reis vão embora  
12 as capacidades da burguesia vão embora  
*
Em seu artigo “Marx e o problema da decadência ideológica” [in: LUKÁCS; Marx e Engels como  
historiadores da literatura; São Paulo: Boitempo, 2016; p. 100] Lukács faz uma instrutiva relação dessa  
frase final com um trecho de O 18 Brumário, afirmando que a passagem “oferece um fundamentação  
epigraficamente condensada” da sentença a seguir: “A burguesia tinha a noção correta de que todas as  
armas que ela havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que  
todos os recursos de formação que ela havia produzido se revelavam contra a sua própria civilização,  
que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela” (MARX, O 18 brumário de Luís Bonaparte;  
São Paulo: Boitempo, 2011; p. 80).  
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nova fase  
     
Julho/dezembo  
2025  
Volume 30.2  
Em um tempo em que posições favoráveis ou  
contra ao pensamento cienꢀfico ocupam o cenário  
dos debates políꢁcos e ideológicos, nada mais  
oportuno do que tecer alguns comentários sobre os  
desdobramentos que assisꢁmos em nossos dias em  
torno do tema – parꢁcularmente em terra brasilis.  
De um lado, testemunhamos o completo desprezo  
ou ainda, a cabal negação da ciência, e, de outro,  
embora afirmando sua necessidade, não são raros  
os casos de negligência com os padrões mínimos de  
rigor cienꢀfico. Tornou-se lugar comum, no intuito  
de conferir às ideias políꢁcas o semblante de rigor,  
ilustrar todo o discurso com argumentos que simu-  
lam demonstrações cienꢀficas, muito embora não  
passem de um jogo manipulatório de seleção de  
dados ardilosamente recolhidos, que nada mais fa-  
zem do que subordinar aspectos da realidade às  
ideias prévias a serem defendidas. Nesse caso, a si-  
mulação cienꢀfica cumpre apenas a função de per-  
suasão. Cumprida a função de convencimento, é  
rapidamente descartada, e subsꢁtuída por outra do  
mesmo calibre, sobretudo se a narraꢁvaoptar  
por outro ꢁpo de assunto ou estratagema a defen-  
der ou atacar. É a forma pela qual se atualiza o tão  
conhecido dito de Fichte: se a teoria entra em con-  
flito com os fatos, tanto pior para a fatos.