Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 454-460 - mar. 2022 | 457
de Goethe, notadamente em
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
, objeto do
segundo ensaio, com o qual se alcança “o ponto
culminante na história da arte narrativa”
(LUKÁCS, 2021, p. 80). Como no caso anterior,
também a sua publicação representa um marco
na história da literatura, cujo legado à
posteridade – um estilo de figuração serena e
harmônica, embora decididamente marcante –,
longe de se reduzir a um traço estilístico,
concebido em perspectiva estritamente
formalista, repercute, do ponto de vista formal,
desenvolvimentos importantes do espírito e da
psique humanas no curso da história, de modo
que aqui, talvez ainda mais intensamente que
no ensaio anterior, está em questão a relação
entre forma artística e processo social.
O ponto de partida da análise lukácsiana é a
comparação entre a primeira versão do livro,
intitulada provisoriamente “A missão teatral de
Wilhelm Meister” e redigida entre 1777 e
1785, e a edição final, datada do intervalo de
1793 a 1795, “período em que a crise
revolucionária de transição” entre os séculos
XVIII e XIX, que poderiam ser considerados
como duas eras distintas do desenvolvimento
do romance moderno, “atingiu seu clímax na
França” (LUKÁCS, 2021, p. 61). A diferença
marcante entre o manuscrito preliminar e a
versão definitiva da obra, sublinha o crítico
húngaro, consiste em que a arte dramática e, de
modo geral, as artes como um todo deixam de
representar um espaço para a “libertação de
uma alma poética da estreiteza prosaica e
pobre do mundo burguês”, a partir do qual se
organiza todo o enredo, tornando-se “
meios
para o desdobramento livre e pleno da
personalidade humana” (LUKÁCS, 2021, p. 62)
– o grifo que enfatiza esse caráter mediado é
do próprio Lukács. Em outras palavras, o teatro
não é mais uma finalidade em si almejada, mas
um
ponto de passagem
– importante, sem
sombra de dúvida, mas de todo modo
transitório – na formação do jovem
protagonista, de sua personalidade. Seus anos
de aprendizado são, antes de mais nada, uma
educação do mundo que, apesar de contar com
a orientação de sucessivos tutores, se dá,
sobretudo, pela ação livre e espontânea no seio
da sociedade.
Uma tal concepção formativa tem
implicações éticas importantes, que situam
tacitamente o romance de Goethe no antípoda
da moral kantiana. A manifestação mais
evidente disso são as “Confissões de uma bela
alma”, incrustadas no centro do
Wilhelm
Meister
, mas não só. Tomada como “uma união
harmônica de consciência e espontaneidade, de
atividade mundana e vida interior
harmonicamente formada” (LUKÁCS, 2021, p.
70), a “bela alma” goetheana encontra em
Philine, a princípio uma personagem secundária
sem muita importância, mas que entre as duas
versões do livro sofre alterações bastante
significativas, outra encarnação ficcional.
Contrastando com a historiografia literária
burguesa, que sublinha em sua literatura a
“glorificação da nobreza”, Goethe figura a
jovem mulher, “em virtude de um profundo
realismo, com todos os traços da perspicácia,
da desenvoltura e da capacidade de adaptação
plebeias”, e é justamente na voz dela que faz
soar “o seu mais profundo sentimento vital”
(LUKÁCS, 2021, p. 66) – sua interpretação
humanizada do
“amor dei intellectualis
”
spinoziano, que frequentaria tantos escritos
lukácsianos sobre ética: “E se te quero bem, o
que podes fazer?”
Mais veladas ou explícitas, as polêmicas
abertas pelo
Wilhelm Meister
não se encerram
por aí, pois a contestação da falsa dicotomia
entre interioridade e atividade anuncia
igualmente o combate às tendências
subjetivistas românticas e sua postura apátrida
em relação à vida burguesa. Diante da prosa do
mundo capitalista, o apatridismo romântico-
poético pode ser sedutor, mas nunca fecundo,
como a trama desvela nos destinos malogrados
de personagens como a pequena Mignon ou o
velho harpista. Humanista, a luta de Goethe se
volta contra “toda dissolução da realidade em
sonhos, em representações ou ideais
meramente subjetivos” (LUKÁCS, 2021, p. 72),
típicos de períodos decadentes, buscando sua
poesia nas contradições imanentes à própria
vida, não na recusa e revolta cega contra o
mundo.
O compromisso de Goethe com seu tempo
presente, observado por Lukács em suas
análises literárias, nos leva inevitavelmente a
interrogar acerca do conteúdo efetivo do
“Classicismo” que compartilhou com outros
contemporâneos seus. No terceiro ensaio,
dedicado à volumosa correspondência mantida
por Goethe e Schiller, as considerações dos dois
escritores sobre a Antiguidade são trazidas à
baila, lado a lado com suas reflexões sobre as
respectivas obras e sobre a literatura e a arte,
de modo mais amplo.
Se a teoria e a crítica da literatura sempre
reconheceram a importância dos registros
mantidos pelos próprios artistas acerca de seus
processos criativos e sua produção, a relevância
dos autores em questão, que figuram entre os
nomes mais significativos de seu período
histórico, e a consistência de suas teorizações
estéticas fazem dessas cartas um documento
singular. Não obstante, é recomendável cautela
contra o “preconceito muito difundido” na era
capitalista “de que só os artistas podem dizer
algo correto sobre a arte” (LUKÁCS, 2021, p.
84), pois aquilo de verdadeiro que os grandes