27
número 2
mar/2022
Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos Confluentes/CNPq
Curso de Serviço Social (UFF - Universidade Federal Fluminense - Rio das Ostras)
György
Lukács
Verinotio
NOVA FASE
ISSN: 1981-061X - ano XVIII - 2022
50 anos depois, ainda
REVISTA VERINOTIO
NOVA FASE
GYÖRGY LUKÁCS
50 anos depois, ainda
2022
VERINOTIO REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ISSN 1981-061X v. 27 n. 2 - mar. 2022
PERIODICIDADE: SEMESTRAL
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Gomes Casalino, PUC-Campinas, Brasil.
SUMÁRIO
Editorial: Por que não somos lukácsianos ................................................................. VII
Ester Vaisman & Ronaldo Vielmi Fortes
György Lukács: 50 anos depois
Ainda sobre Lukács e o romantismo: considerações sobre o itinerário de
uma vida .......................................................................................................................................... 01
Ester Vaisman
Ensayo y método en György Lukács ........................................................................................ 39
Francisco Garcia Chicote
Lukács diante da estetização do direito .................................................................................... 58
Vitor Bartoletti Sartori
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético ........................................... 89
Mônica Hallak Martins Costa
A pintura na
Estética
................................................................................................................. 115
Ronaldo Rosas Reis
Para uma arqueologia do sentimento estético: o papel da arte paleolítica na Estética
de György Lukács ....................................................................................................................... 150
Leandro Candido de Souza
A sombra do progresso: Lukács, Balzac e as contradições do realismo ......................... 182
Paula Alves
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del Doktor Faustus de
Thomas Mann …………...………………………………………………………………...
222
Guadalupe Marando & Martín Salinas
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX ................................. 232
Leandro Candido de Souza
Hacia un realismo bien entendido: Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y
Günther Anders como intérpretes de Kafka …………………………………………. 268
Miguel Vedda
Traduções
[Apresentação] Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e
Günther Anders ............................................................................................................................ 310
Carolina Peters & Murilo Leite
Lukács-Anders: uma correspondência .................................................................................. 317
Trad. Carolina Peters & Murilo Leite
Lukács sobre Goethe: artigos de Berlim 1931-32 ............................................................ 343
Trad. e apresentação Ronaldo Vielmi Fortes
Entrevista de István Mészáros a Giorgio Riolo ................................................................... 431
Trad. Carlos Eduardo O. Berriel
Resenhas
Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe ............................................................................ 454
Carolina Peters
Goethe: para além das aparências ......................................................................................... 461
Myreli Xavier
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Editorial: Por que não somos lukácsianos
[...] raramente os intelectuais e filósofos estão
dispostos a extrair consequências filosóficas da
enorme riqueza de dados e de fatos obtidos pela
ciência.
G. Lukács,
A destruição da razão
O valor e a forma de minhas ideias não são
decididos por mim, não é minha responsabilidade
cuidar disso.
G. Lukács,
Essenciais são os livros não escritos
O leitor habituado a nossas publicações certamente observou que a
Verinotio
ganhou notoriedade pelo empenho da equipe editorial em veicular textos e entrevistas
de autoria de György Lukács, em grande parte inéditos ou em novas e acuradas
traduções. Deve também ter constatado a presença de artigos de intérpretes
prestigiados e competentes da obra lukácsiana. Com isso, o objetivo da revista é claro:
divulgar contribuições teóricas que permitam acessar o legado do filósofo húngaro de
modo rigoroso e competente
1
.
Dada a importância de sua obra no cenário contemporâneo, dominado por
tendências (de vários matizes) que subestimam, anulam ou mesmo negam
peremptoriamente a capacidade humana de saber e agir, a figura de Lukács desponta,
a despeito de suas possíveis falhas e incorreções, como a melhor formulação teórico-
filosófica que o marxismo pôde produzir. De fato, Lukács foi e continua sendo voz
isolada no deserto das ideias.
Esse posicionamento não é recente, ao contrário. tivemos oportunidade de
ressaltar, tanto nos editoriais quanto em artigos e não é o caso de retomar a
argumentação aqui , que é forçoso reconhecer a existência de diversas lacunas na
produção teórica dita marxista, todas elas relacionadas ao tratamento de temas e
questões fundamentais. Estas vão desde a correta identificação dos traços da
acumulação capitalista de nossos tempos ao devido acerto de contas com o projeto
de sua superão, radicalmente interrompido, passando, é claro, pelos dilemas
humanos que continuam a marcar a infame vida vivida. Fossem outras as
circunstâncias, provavelmente não nos encontraríamos tão desarmados teórica e
praticamente como estamos nos dias de hoje.
1
Integrantes da atual equipe editorial, assim como do próprio conselho editorial, pesquisadores,
exigentes que são na lida com textos clássicos, têm contribuído sistematicamente com traduções e
artigos sobre a obra de Lukács, o que expressa de modo concreto nosso empenho em atingir tal
objetivo.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.657
Editorial
VIII | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
Por todas essas razões, assinaladas aqui
en passant
, é que a equipe editorial
decidiu lançar mais uma edição da
Verinotio
em homenagem aos 50 anos de
falecimento de Lukács, voltada agora aos seus trabalhos na área de estética, como
forma de reconhecimento da importância das formulações do filósofo húngaro,
sobretudo de suas obras de maturidade.
É importante, contudo, destacar para os mais desavisados que, muito embora
os escritos de e sobre Lukács sejam presença constante em nossas publicações, isso
não significa, de modo algum, que possamos ser chamados de
lukácsianos
. De fato,
rejeitamos tal filiação, graças a um sem-número de razões, das quais apenas as mais
fundamentais serão aqui indicadas. Trata-se de esclarecimento necessário, tendo em
vista o tratamento que sua obra tardia, designadamente
Para uma ontologia do ser
social
, tem recebido em nossas plagas.
Desconsiderando tratar-se de esforço de ampla envergadura, ao desconhecer a
complexidade do tema não apenas no interior da história da filosofia, mas, sobretudo
no campo do marxismo, certos intérpretes e comentadores não percebem ou não
querem perceber, por ignorância ou imediatismo político que a pesquisa sobre o
assunto se apresenta como um desafio, muitas vezes de aparência inacessível, que a
facilitação e a vulgarização não desfazem. E isso porque se apressam em retirar da
obra postumamente publicada esquemas conceituais simples para uso e abuso dos
sociólogos, educadores e assistentes sociais, ou, ainda, palavras de ordem que
“estimulem” a militância. Nesse mister, conseguem complicar ainda mais a
incontornável tarefa de enfrentar a argumentação cerrada e, o raras vezes,
problemática que o autor, no entanto, procurou fundamentar com cuidado e rigor.
Consequentemente, não como compactuar com esse tipo de “leitura” da obra de
Lukács, tornada, infelizmente, moeda corrente.
Parece que boa parte dos “lukácsianos brasileiros”, adeptos do tratamento fácil
dos densos escritos do filósofo húngaro, ignoram seja por lapsos de formação, seja
por pura displicência teórica aquilo que ele próprio admitiu em várias oportunidades
no final da vida, ou seja, que trazer à baila a questão ontológica, a mais complexa e
espinhosa da história da filosofia, tende a provocar dificuldades e incompreensões de
toda sorte. para não falar da proliferação de críticas infundadas que lhe foram
dirigidas, realizadas ao arrepio de seus escritos, e em grande medida surgidas em
decorrência da trivialização de seu legado. Ou seja, a banalização das ideias de Lukács
acaba por gerar e disseminar uma imagem débil, carente, sobretudo, de estofo
filosófico, presa fácil para seus adversários, principalmente do mundo acadêmico,
ansiosos por levá-lo à desmoralização. Assim é que, à imagem de escritor stalinista,
soma-se agora outro tipo de imputação, a de um idoso delirante.
Por todas essas razões, ainda que não nos consideremos integrantes de algum
tipo de seita lukácsiana ou do “gueto ideológico” formado por seus fiéis seguidores,
é que julgamos fundamental prolongar nossa homenagem com mais uma edição,
dedicada especialmente às questões estéticas.
Sobre a importância fundamental das obras de Lukács voltadas ao tratamento
de problemas filosóficos de caráter geral, tanto no campo da estética quanto aqueles
que marcaram os debates contemporâneos, sobretudo a respeito do intrincado e
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | IX
complexo tema da ontologia, Vaisman pronunciou-se do seguinte modo:
os cerca de 30 anos que separam o início do percurso do autor e suas
obras de plena maturidade, como a
Estética
e
Para uma ontologia do
ser social
, incluídos seus
Prolegômenos
, além de serem marcados
por escritos que contribuíram decisivamente para um cenário carente
de formulações analíticas sobre a arte inspiradas em Marx, permitem
constatar a existência de um projeto de cariz eminentemente filosófico
[...]. Exemplos monumentais desse empreendimento, além, é óbvio, de
seus trabalhos de análise literária, são os livros
O jovem Hegel
(cujo
término da redação se deu em 1938, mas a publicação apenas dez
anos depois) e
A destruição da razão
(1954) (sem esquecer de
Goethe
e seu tempo
, publicado em 1938), obras que colocaram em xeque, de
modo original e competente, teses dominantes no panorama filosófico
da época, diga-se de passagem, tanto aquelas esposadas pelos
representantes do marxismo oficial quanto de acadêmicos e
especialistas renomados que se debruçaram sobre os autores tratados
(VAISMAN, 2021, p. 298).
Infelizmente, em vários redutos acadêmicos e culturais é ainda o livro
História
e consciência de classe
(para não mencionar
A alma e as formas
e
Teoria do romance
)
que é reputado como o legado mais importante do autor. Seja por conta da influência
que veio a exercer em alguns representantes da assim chamada teoria crítica, seja pela
presença no livro de certas noções caras ao weberianismo, seja, ainda, por certa dose
de ingenuidade teórico-política que essa obra de transição transpira
2
, o fato é que
esse conjunto de ensaios malgrado todas as restrições que o próprio autor dirigiu a
ele é ainda cultuado como o
opus magnum
do filósofo húngaro.
Cumpre ressaltar, no sentido de reforçar o argumento, que o culto ao conjunto
de ensaios elaborados entre os anos de 1921 e 1923 deriva de modo significativo do
papel importante nas antiteorias de Adorno de uma formulação
lukacsiana em
História e consciência de classe
, qual seja: de que o
problema da fetichização da mercadoria era o protótipo de todas as
formas de objetividade e de todas as correspondentes formas de
subjetividade na sociedade capitalista, incluindo os próprios
esquemas do pensamento burguês (VAISMAN, 2021, p. 281).
Ademais, não como negar que, na atualidade, como decorrência da total
ausência de perspectiva de futuro, em larga medida determinada tanto pelo
prolongamento histórico do capital quanto pelo fracasso das transições ao socialismo
intentadas, tudo conspira a favor da propagação de tendências irracionalistas,
autointituladas pós-modernas denominação esta que, infelizmente, seus
antagonistas vieram a adotar, ratificando, assim, um velamento de sua real natureza.
Denominar tais correntes teóricas como pós-modernas é um beneplácito, ato que
corrobora as intenções de seus titulares, cujo propósito é simplesmente confundir e
dissimular seus alvos de ataque.
É vital, assim, que as denominemos por aquilo que elas de fato representam no
plano teórico-ideológico: o
irracionalismo
. O horror à técnica e à ciência são partes
2
Ver a respeito o número 16 da
Verinotio
, dedicado aos 90 anos da publicação de
História e consciência
de classe
. Disponível em: <https://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/issue/view/13>.
Editorial
X | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
indissociáveis desse ambicioso projeto. A supremacia concedida à arte ou às diferentes
vertentes das assim chamadas “ciências do espírito”, colocando-se, aparentemente,
como movimentos de reação ao positivismo e ao predomínio epistemológico do
método das ciências naturais, ganhou adeptos
partout
. Inclusive (e principalmente)
entre os críticos da sociabilidade burguesa, nos quais a denúncia fundamental se
dirige, com especial ênfase, aos espaços recônditos da subjetividade fetichizada,
emanada dos processos reificantes, característica considerada basilar para a
compreensão dos processos manipulatórios e que teriam a capacidade nefasta de
encarcerar as diferentes individualidades.
A bem da verdade, caracterizada aqui de modo ultra geral, a tendência acima
delineada pois não é o caso de debruçar-nos sobre o assunto de modo mais concreto
e detalhado neste Editorial emerge de maneira mais ou menos relevante neste ou
naquele autor, que representantes que compartilham de modo diverso tais
características.
É também mérito de Lukács ter sido um crítico contumaz dessas tendências,
esforço consumado no livro
A destruição da razão
, trabalho sistematicamente
rejeitado, ao qual o imputadas diversas acusações, muitas delas tão toscas quanto
querem fazer o livro parecer. Na apresentação à edição brasileira tivemos
oportunidade de desenvolver argumentação a esse respeito (cf. FORTES; VAISMAN,
2020, p. XI-XIX), e não é o caso de nos delongar aqui acerca da controvertida recepção
do livro.
Tendo em vista, entretanto, o cenário atual, em que grassam formas de pensar,
propostas e projetos de cunho político-ideológico fortemente amparadas em
postulados de caráter explicitamente irracionalista, não poderíamos deixar de lembrar
que a derrocada militar do nazifascismo, culminando o término da II Guerra Mundial,
não significou necessariamente a eliminação das tendências irracionalistas que
vingaram no plano do pensamento e prepararam o caminho para o advento da
ideologia propriamente nazista. O livro de Lukács tem, nesse sentido, de fato, a
intenção não de mostrar como se verificou tal trajetória, mas, também, de
demonstrar a perpetuação do irracionalismo nas tendências filosóficas da segunda
metade do século XX. Efetivamente, grande parte do pensamento que se hegemonizou
a partir desse momento deita suas raízes nas correntes do irracionalismo do período
imperialista do século XIX e da primeira metade do século XX. Desse modo, seguindo
a periodização levada a efeito no livro, poder-se-ia dizer que se vive desde então o
terceiro período da trajetória do irracionalismo, analisado, em parte, por Lukács no
epílogo do livro, intitulado “Sobre o irracionalismo no pós-guerra”.
Sempre convém insistir, ademais, que o tom áspero e arrogante com que o livro
foi e tem sido com frequência recebido se deve, em grande medida, ao fato de trazer
críticas duras ao que se pode denominar,
grosso modo
, de pensamento de direita. No
entanto, o problema é mais complexo do que aparenta, porque o irracionalismo não é
mais um apanágio da “direita”, mas atinge também, de modo certeiro, a base teórico-
filosófica daquelas tendências referidas acima, que se colocam como críticas da
sociabilidade vigente do ponto de vista de uma suposta “esquerda” não-marxista. Em
termos diretos, atinge os pressupostos do autoproclamado anticapitalismo
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XI
hegemônico da esquerda hodierna, no interior do qual filósofos como Heidegger e
Nietzsche pontificam como figuras proeminentes e fontes de inspiração. O que, sem
dúvida, explica a intensificação da rejeição já existente ao livro.
É uma tarefa ainda por se realizar, decerto, a pesquisa e a consequente
explicitação acerca do modo como autores, de fato reacionários, acabaram por se
tornar pilares dos assim chamados movimentos críticos da sociabilidade atual, em suas
variadas nuances e plataformas específicas de “luta”. Enquanto tal empreendimento
não for viabilizado, a obra de Lukács é incontornável para todos que buscam o
entendimento e a crítica das ideias prevalentes na contemporaneidade, tanto no campo
acadêmico-cultural quanto nas movimentações políticas. Reveste-se, ainda, de
importância no esclarecimento do papel que tais tendências desempenham na
justificação do
status quo
, apesar da aparência em contrário.
Feitas essas considerações gerais, o reconhecimento do valor da obra de
Lukács, sobretudo a da maturidade, não implica velar certos problemas que
permanecem em aberto, um dos quais diz respeito às influências de Hegel na
constituição e desenvolvimento do seu modo de pensar. Ainda que não seja possível
contemplar de forma adequada, no âmbito deste Editorial, as dificuldades que tal
influência gerou, não se pode deixar de reconhecer sua presença em certos momentos
e em determinadas formulações, o que acabou por impor limites inclusive para a devida
apreensão do legado marxiano, objetivo sempre almejado pelo filósofo.
É justo também afirmar que, em dadas oportunidades relevantes, sua obra
tendeu a se realizar a partir de um tipo específico de distanciamento crítico em relação
à filosofia hegeliana, fato claramente perceptível em uma simples comparação entre os
ensaios que compõem o livro
História e consciência de classe
e sua última obra,
Para
uma ontologia do ser social,
inclusive seus
Prolegômenos
. Contudo, mesmo em seu
pensamento tardio ainda é possível constatar a presença de uma aura hegeliana.
Cumpre, assim, assinalar que os possíveis vínculos com a herança hegeliana,
apesar de fecunda em diversos momentos, não deixa de se constituir um fenômeno
teórico controverso, e mesmo contraditório. Contudo, para não sermos injustos com
esforços realizados pelo autor nesse terreno, vale destacar que Lukács nunca se furtou
a rever e criticar suas próprias posições. Como exemplo desse tipo de postura, pode-
se aventar o reconhecimento, ainda que tardio, dos problemas trazidos pela
interpretação de Lênin, tão difundida e aceita, contida nos assim chamados
Cadernos
filosóficos
, segundo a qual não se poderia compreender
O capital
sem conhecer a
Ciência da lógica
de Hegel. Todavia, o fato é que a diretiva leniniana acompanhou o
autor húngaro ao longo de sua trajetória teórica, sendo repetida aqui e ali em várias
oportunidades. É apenas nos
Prolegômenos para uma ontologia do ser social
que essa
posição é relativizada e os equívocos de se tomar a dialética marxiana como a inversão
da dialética de Hegel são devidamente denunciados (cf. LUKÁCS, 2010, p. 267-8).
Destacar a grandeza do pensamento lukácsiano, suas análises contributivas
para a compreensão do desdobramento das disputas das ideias do século XX, não
significa, portanto, a adesão desmedida e acrítica a todos os seus apontamentos. É
preciso desenvolver, diante de todo e qualquer pensador, a mesma postura de rigor
que o próprio filósofo húngaro postulou diante dos autores que passaram por sua
Editorial
XII | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
pena, inclusive ele próprio.
Desse modo, não se podem deixar também de apontar certas discrepâncias de
sua reflexão em relação à própria obra de Marx, ainda que Lukács tenha sido e continue
a ser uma porta de entrada imprescindível para a devida compreensão do filósofo
alemão, tendo em vista os rios de tinta que engrossam os descaminhos, releituras e
interpretações da obra deste; ou, para usar uma expressão mais coloquial muito cara
ao filósofo J. Chasin , Lukács funciona como uma “lupa” para a compreensão da obra
marxiana.
Aos leitores atentos à obra de Lukács, entretanto, decerto não passou
desapercebido que, dentre as possibilidades que o autor oferece à compreensão mais
precisa da obra de Marx, encontramos certas atribuições de suas próprias formulações,
um tanto extrínsecas ao que o filósofo alemão efetivamente elaborou. A título de
exemplificação, poderíamos comentar a respeito das consequências que a adesão cega
a certas formulações do pensador ngaro pode acarretar. O caso mais escandaloso
diz respeito à distinção entre as categorias “alienação” [
Entäusserung
] e
“estranhamento” [
Entfremdung
], realizada, como é sabido, nas páginas de sua obra
postumamente publicada. As leituras rápidas e vulgarizantes insistem em desviar a
atenção para a tradução dos termos, como se o problema fosse meramente semântico.
Procedendo desse modo, deixa-se a questão principal fora do foco das atenções, ou
seja, o fato de que Lukács desenvolve uma formulação distinta daquela de Marx a
respeito destas categorias.
Não é também o caso aqui de tratar de maneira detalhada dessas diferenças
(cf. FORTES, 2013): cabe apenas sublinhar que a alienação, para Lukács, é um traço
próprio da atividade humana, ou seja, trata-se da ação da subjetividade que se põe no
mundo por meio de objetivações tanto de ordem material como social. Em Marx, ambos
os termos possuem o sentido da perda, algo que uma leitura rigorosa dos
Manuscritos
econômicos-filosóficos
deixaria de todo evidente (cf. COSTA, 2013). Necessário ainda
destacar que a tese de Lukács acima referida acabou por influenciar as traduções do
texto marxiano de 1844 no Brasil, criando querelas que vão desde a transformação
da categoria em duas
Entäusserung
é traduzida por “alienação” ou “exteriorização”
(cf. MARX, 2004; p. 15-6, comentários do tradutor) ou ainda, em outra tradução
bastante conhecida, a indistinção e a absurda adulteração do texto de Marx entre
Entäusserung
e
Äusserung
, ou mesmo entre
Lebensäusserung
e
Lebensentäusserung
(cf. MARX, 2015
3
).
Outra menção se faz necessária, agora em relação ao problema da politicidade,
em que se podem encontrar diferenças significativas entre Marx e Lukács. Tal como
analisou essa dimensão da prática social, o pensador húngaro a circunscreveu como
atributo do ser social, conferindo à política o caráter de traço essencial dessa forma
3
Na p. 348, que
Lebensäusserung
é traduzida, sem nenhuma advertência ao termo original, por
“exteriorização da vida”,
Äusserung
por “exteriorização” (na ed. alemã Mega I, 2, p. 267) de maneira
indiferenciada com
Entäusserung
, traduzida pelo mesmo termo, ou seja “exteriorização”; logo na
sequência, na p. 349, o termo torna a aparecer e a categoria
Lebensäusserung
é agora traduzida por
“expressão da vida”, que a tradução anterior o pode se sustentar diante de
Lebensentäusserung
contraposta na mesma frase vertida de maneira indiscriminada como “exteriorização da vida”. O leitor
sem acesso ao original fica sem saber que se trata, nesses casos, de categorias de significados distintos.
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XIII
do ser, ainda que sempre historicamente determinada. Contudo, é bom esclarecer,
Lukács não se rendeu às teses da filosofia política de seu tempo, tendo em vista que
nele a política perde seu caráter voluntarista, ou seja, ele não a considerava, de modo
algum, o exercício da vontade livre de toda necessidade de ordem material ou
econômica. Ao contrário, a prática política, assim como todo pôr teleológico, implica
o reconhecimento e a apreensão da malha causal da objetividade social e a eficácia da
atividade que, de fato, põe em movimento aspectos da realidade social. Não se trata,
nesse sentido, do mero jogo de disputas entre vontades, mas da ação que incide sobre
o campo das possibilidades concretas e põe em curso tendências essenciais,
igualmente concretas, da realidade social. Embora tenha dado passos decisivos na
determinação do fator subjetivo na política em sua unidade dialética com os fatores
objetivos (cf. FORTES, 2015; FORTES; VAISMAN, 2014), tomada nesses termos, fica
evidente que a crítica da politicidade presente na obra marxiana passa desapercebida
ao filósofo húngaro.
Referir o problema da ontonegatividade da política ainda que neste espaço
não se possa desenvolver o problema de maneira aprofundada permite destacar um
elemento importante de seus limites na apreensão do pensamento marxiano. Tal como
bem salientou J. Chasin, para Marx a potica
é ontonegativa, precisamente, porque exclui o atributo da política da
essência do ser social, só o admitindo como extrínseco e contingente
ao mesmo, isto e, na condição de historicamente circunstancial; numa
expressão mais enfática, enquanto predicado típico do ser social,
apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-
história (CHASIN, 2009, p. 64).
É mister também referir a luta feroz de Lukács contra os dogmatismos que
vicejaram entre os marxistas, ou seja, ao contrário do que é propalado, ele não se
rendeu aos ditames do partido e, levando em conta as restrições da época, contrapôs-
se à dogmática stalinista em vários momentos. Contudo, como homem de seu tempo,
engajado na luta pela consolidação do que acreditava que era o comunismo, Lukács
não se furtou a fazer depoimentos protocolares em defesa do “socialismo realmente
existente” de seu tempo contra o capitalismo. No plano político, uma vez que se
colocava conscientemente na condição de ideólogo, Lukács sempre buscou
contemporizar suas críticas, nunca deixando escapar de maneira direta e clara suas
objeções mais enérgicas ao sistema vigente nos países que intentaram transições
socialistas. A esse propósito, o depoimento de István Eörsi, contido na introdução à
obra autobiográfica de Lukács, é bem revelador:
uma única vez, precisamente no outono de 1968, não muito depois da
marcha das tropas do Pacto de Varsóvia sobre Praga, ouvi de sua boca a
seguinte declaração: “Parece que todo o experimento iniciado em 1917
fracassou e tudo tem de ser começado outra vez em outro lugar.” (
Apud
LUKÁCS,1999, p. 13)
Não se podem, porém, negligenciar frases afirmadas e reafirmadas de maneira
veemente por Lukács, que ainda hoje provocam espanto: “mesmo o pior socialismo é
melhor que o melhor capitalismo” (LUKÁCS, 2020, p. 42). Mesmo que Lukács quisesse,
com estes termos, apontar para o fato de que a dimensão cultural nos pses ditos
Editorial
XIV | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
socialistas não havia ainda se mercantilizado, tal assertiva é danosa por subestimar
aspectos trágicos do stalinismo, como os Processos de Moscou, os expurgos de Stalin,
os
gulags
, a burocratização do estado soviético, a deturpação do pensamento
marxiano e outros. Nessa direção, István Mészáros (em entrevista publicada nesta
edição da
Verinotio
), ao comentar a afirmação de Lukács, acertadamente a refutou nos
seguintes termos: “é terrível dizer que ‘o pior socialismo é melhor que o melhor
capitalismo’, porque o pior socialismo não é o socialismo. É incompatível com o
conceito de socialismo” (pp. 444-445).
O autor nos deixou, de fato, um testamento filosófico que aponta caminhos que
precisam ser desdobrados e desenvolvidos. Dentre eles estão a tarefa de compreender
a forma da acumulação capitalista de nossos dias
4
e a necessidade de resgatar da
maneira devida a autenticidade do pensamento de Marx, além da persistência em
perspectivar transformações necessárias à emancipação humana. Vale, portanto,
insistir nesse sentido: Lukács é um pensador incontornável para todos aqueles que
pretendem fazer a crítica da sociabilidade atual e apontar caminhos para a sua
superação. Precisamente por isso, deve ser tratado com toda a seriedade a que faz jus
todo grande pensador; o que significa enfrentar de maneira rigorosa os limites de seu
pensamento e extrair as devidas consequências dos elementos-chave de seu legado.
O que se pretende com os termos deste Editorial é advertir para o risco de que
o resgate da herança de Lukács na
terra
brasilis
tenha o mesmo destino funesto que
conheceu na Hungria, logo depois de seu falecimento. No prefácio do
Pensamento
vivido
István Ëorsi, com extrema acuidade, apela para seus compatriotas para que não
sejam
responsáveis pela depreciação do nome de Lukács junto à opinião blica.
Hoje não há quase nenhuma atitude político-cultural ou editorial-cultural do
país que não seja enfeitada com citações de Lukács. O bloco dos “alunos”,
que cresce imensamente, se move sobre Lukács como moscas sobre a carne
(
apud
LUKÁCS, 1999, p. 23).
Mais do que nunca,
é preciso resgatar Lukács dos lukácsianismos dogmáticos,
vulgarizantes e simplificadores
, assim como foi necessário redescobrir o pensamento
de Marx frente às deturpões e descaminhos de seus seguidores tarefa à qual
Lukács febrilmente se dedicou. Por via de consequência, debruçar-se sobre os escritos
de Lukács, traduzir e difundir seus textos é tarefa à qual não nos furtamos, sempre
com o rigor analítico necessário, como forma de apreender de maneira precisa a
grandeza e os limites de seu pensamento.
***
A presente edição traz colaborações valiosas para a devida apreciação de
4
O que chamo de renascimento do marxismo teria, portanto, como uma de suas primeiras tarefas
examinar exatamente quais são as peculiaridades econômicas do capitalismo de hoje e eno fazer com
que a atitude em relação ao capitalismo dependa dessa análise e não das análises de 80 anos atrás.”
(LUKÁCS, 2020, p. 175)
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XV
variadas dimensões que a obra e a própria figura de Lukács nos legaram. Dentre elas,
podemos destacar traduções inéditas para o português: a primeira delas,
cuidadosamente realizada por Carolina Peters e Murilo Leite responsáveis também
pela apresentação , traz a correspondência entre G. Lukács e G. Anders, trocada entre
julho de 1964 e abril de 1971. Como bem ressaltam os tradutores, trata-se de “um
período agitado, que compreendeu as repercussões do bombardeio a Hiroshima e
Nagasaki, a Guerra do Vietnã, os movimentos políticos de Maio de 68 e as lutas do
movimento negro por direitos civis nos Estados Unidos”. Tornando-se amigos por
correspondência pois, a despeito de algumas tentativas, nunca se encontraram
pessoalmente no período , a intensa troca de cartas reflete o posicionamento de cada
um deles frente a tais acontecimentos e, malgrado algumas discordâncias, é perceptível
o esforço tuo em identificar pontos de assentimento a respeito de preocupações,
tanto práticas quanto teóricas, além da extrema gentileza com que se tratavam.
Marcadas pela sinceridade, sobretudo no que concerne à campanha de difamação
sofrida por Anders naquele momento, fica evidente a postura solidária de Lukács ao
seu correspondente. Por fim, sublinhe-se o empenho do húngaro, assim como a rápida
adesão de Anders, na campanha pela libertação de Angela Davis.
Outra tradução que enriquece a presente edição da
Verinotio
é a entrevista
concedida por István Mészáros ao editor Giorgio Riolo. Carlos Eduardo O. Berriel,
professor de história literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o
responsável pela tradução, com revisão técnica de Ronaldo V. Fortes. Instigado pelo
entrevistador, Mészáros fornece ao leitor informações relevantes a respeito do vínculo
que uniu Lukács aos poetas húngaros e, sobretudo, sobre suas preocupações no
campo da ética. Tudo isso para caracterizar a posição do mestre sobre a
responsabilidade dos intelectuais, preocupação que emergiu com frequência ao longo
de sua trajetória. O entrevistado também ressalta a formação e domínio que o filósofo
húngaro detinha acerca de questões estéticas, em particular no campo da literatura.
Tendo convivido com Lukács, Mészáros oferece outras informações acerca de
episódios de sua atividade político-partidária, de suas relações com figuras
significativas da época, além, é claro, de sua vida pessoal (algumas com certo ar de
indiscrição, diga-se de passagem), contributos excelentes para uma eventual biografia
do autor homenageado neste número, porque não contaminados por
parti pris
muito
comum entre seus comentadores mundo afora. Do mesmo modo, a entrevista revela
uma atitude destituída de qualquer tipo de louvação cega. Muito ao contrário, não
obstante a admiração nutrida em relação ao autor de
Para uma ontologia do ser social
,
Mészáros não omite suas reservas críticas acerca de determinadas afirmações e
posicionamentos que Lukács veio a assumir em momentos cruciais da história do
século XX, muito embora procure caracterizá-las levando em consideração o contexto
e as condições em que Lukács viveu e atuou.
A publicação recente no Brasil do livro
Goethe e seu tempo
o passou
despercebida pelos editores da
Verinotio
. O interesse e os estudos de Lukács sobre a
Editorial
XVI | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
obra de Goethe foram contemplados por artigos, por uma resenha
5
e pela terceira
tradução para o português publicada na presente edição, esta sob a responsabilidade
de Ronaldo Vielmi Fortes, referente a artigos sobre Goethe escritos em Berlim nos
anos 1931-32. Não por acaso, levam o título de O Goethe fascistizado [
Der
faschisierte Goethe
]. Como esclarece o tradutor, responsável também pela
apresentação, a publicação de tais artigos
coincide com o jubileu de Goethe, momento em que na Alemanha se
prestavam várias homenagens ao grande escritor, e diversos jornais
dedicaram cadernos e matérias destacando a importância de sua obra. Os
eventos comemorativos realizados põem em evidência as interpretações
tendenciosas da obra goethiana, que, em linhas gerais, o aproximam da
apologia de um suposto espírito autêntico germânico, servindo de base
inclusive para tomá-lo como um dos precursores do nacional-socialismo (p.
343).
Tendo em vista o predomínio de interpretações de caráter no mínimo duvidoso
acerca do literato alemão, que infelizmente ainda transitam em certos escaninhos
acadêmicos, Lukács se pôs a escrever artigos, claramente concebidos como textos de
combate, que tinham por objetivo desmistificar tais intentos. Assim, ainda que no
decurso dos anos subsequentes tenha modificado algumas avaliações, em função do
aprofundamento de seus estudos sobre os escritos de Goethe, o que se percebe é a
permanência de certos critérios para o devido deslindamento do pensamento do autor
alemão, quais sejam, a indicação dos limites e méritos que sua obra como um todo,
em seus próprios pés, revela.
Ainda sobre os vínculos entre Lukács e Anders, mormente o interesse manifesto
do primeiro pela reflexão do segundo sobre Kafka, a
Verinotio
traz o artigo de Miguel
Vedda intitulado Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders
como intérpretes de Kafka. Nele, o professor titular de literatura alemã da
Universidade de Buenos Aires (UBA) enfrenta com erudição e por meio de análise
cuidadosa o que talvez possa ser considerado um dos capítulos mais controversos da
obra lukácsiana. O autor denuncia, logo de saída, o tratamento superficial e enganoso
com que professores tratam as relações de Lukács com alguns de seus
contemporâneos. Com grande acerto, avalia que as análises superficiais desenvolvidas
sobre a leitura lukácsiana de Kafka, reiteradamente, colocam o filósofo húngaro na
condição de “vio” da história. E, contrariamente ao que se tem dito e escrito (e
repetido à exaustão, inclusive nos corredores das instituições universitárias e mesmo
entre seus intérpretes mais afamados), Vedda afirma que las críticas a Kafka, que
fueron mitigándose y alterándose con el paso del tiempo, convivieron con el
reconocimiento de que el autor checo es uno de los escritores más excepcionales de
la Modernidad tardía” (p. 270). Cumpre assinalar a utilização de um amplo amparo
bibliográfico por parte do autor, em que parte ponderável das referências se encontra
no original alemão, o que por si confere ao artigo não apenas erudição, mas
sobretudo solidez e rigor da pesquisa, aspectos muito rarefeitos nos estudos sobre o
tema. Como resultado, o leitor poderá descobrir o modo efetivo com que Anders e
5
Os comentários sobre os artigos e a resenha serão expostos mais adiante.
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XVII
Lukács trataram, cada um a seu modo, todavia com determinadas confluências, a obra
kafkiana.
O artigo de autoria de Ester Vaisman, intitulado Ainda sobre Lukács e o
romantismo: algumas considerações sobre os passos do itinerário de uma vida,
oferece, inicialmente, uma retomada do percurso realizado por Lukács no campo da
análise literária. Nesse caso, são problematizados aqueles comentários que tendem a
menoscabar os diversos momentos em que o autor em tela faceou o romantismo.
Nesse contexto, a autora faz a seguinte denúncia:
A “criação” ou reconstituição de um Lukács romântico (operação esta, sim,
de natureza romântica, na acepção verdadeira e negativa do termo, tanto no
sentido de salto para trás como de desrazão teórica) integra o que já foi
chamado de mitificação do jovem Lukács e tem por orientação básica fazer a
defesa de suas fases pré e protomarxista, voltando-as contra o período
culminante de sua evolução, o platô de chegada de onde desenvolveu sua
obra propriamente marxista. (p. 24)
É evidente que a consolidação de uma linha interpretativa como a acima
denunciada repercute no exame da relação de Lukács com vários autores de língua
alemã, notadamente Goethe e o próprio
Sturm und Drang
no seu conjunto. Desse
modo, o devido resgate dos traços efetivos do movimento romântico e da natureza
contraditória do evolver goethiano realizado por Lukács é o escopo central do artigo.
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX é o título do
artigo de autoria de Leandro Candido de Souza, em que há um empenho plenamente
realizado de remontar cuidadosamente, a partir dos próprios textos, o debate entre
Lukács e Adorno. A pertinência do tema é flagrante, considerando a preponderância
(mais uma vez, sobretudo, nos meios acadêmicos) das teses de Adorno lidas e
repercutidas à exaustão em tom solene acerca da presumível submissão de Lukács
aos ditames da estética oficial soviética. Com o fito de analisar com mais segurança o
confronto Adorno/Lukács a respeito do aparecimento das vanguardas, o autor se vale
de análises realizadas por N. Tertulian e M. Vedda a esse respeito. Porém, ao final,
apoiando-se de maneira especial em Peter Bürger, Candido conclui que tanto Lukács
quanto Adorno, cada um por motivos diferentes, mostraram-se incapazes de
reconhecer as reais “implicações que os empreendimentos de vanguarda tiveram na
arte do século XX” (p. 265).
No artigo intitulado A relação entre objetividade e subjetividade no ato
estético, Monica Hallak Martins da Costa, detendo-se na
Estética
, publicada em 1963,
busca recuperar a argumentação de Lukács no que concerne às relações entre a
mimese artística e a vida cotidiana, reconhecendo o modo específico como a arte se
distancia da cotidianidade, ao mesmo tempo em que mantém com ela vínculos
indissolúveis. No interior desse processo, a autora identifica também as diferenças que
emergem entre o distanciamento artístico e o científico, especialmente no que se refere
aos liames entre subjetividade e objetividade. E é exatamente que o problema da
alienação [
Entäusserung
] emerge: ainda de acordo com a autora, Lukács teria se valido
da categoria no mesmo sentido que encontramos em Hegel. Entretanto, após
estabelecer as diferenças e similitudes entre o pôr teleológico que se verifica no
trabalho e aquele que caracteriza o pôr estético, Costa afirma que a presença tanto da
Editorial
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alienação quanto da retroação da alienação no sujeito é indispensável para o artista
como para o fruidor da obra. São ainda dimensões que se entrelam e o podem
existir em separado, o que, de acordo com a avaliação da autora, diferenciaria o trato
da categoria em exame em Lukács e em Hegel.
Voltado também à
Estética
de maturidade, o artigo A pintura na
Estética:
revisão analítica e aproximação com a categoria realismo crítico, de autoria de
Ronaldo Rosas Reis, discute a teorização levada a cabo por Lukács a respeito da
mimese na pintura. Ciente das dificuldades inerentes ao tratamento da questão, o autor
retoma com cuidado e rigor, além do próprio texto lukácsiano, indicações textuais de
Marx, direta ou indiretamente vinculadas ao tema. No decorrer da análise, explora
meticulosamente, por exemplo, a bidimensionalidade, a tridimensionalidade, o
conteúdo e a coordenação, além de ater-se às relões entre naturalismo e realismo
na pintura. No primeiro passo, a partir daquelas manifestações que o próprio Lukács
considera o momento genético da pintura, salienta a sua dimensão não-pública, o que
complexifica a identificação do caráter universal dessa manifestação artística. É
importante destacar que a contribuição de Reis se reveste de caráter instrutivo, tendo
em vista a farta utilização de imagens de pinturas inclusive as rupestres com a
finalidade de tornar mais acessível aos leitores o sentido que o filósofo húngaro
identifica na evolução da atividade pictórica, no interior do qual o caráter universal da
pintura é considerado resultado da
convergência entre a tridimensionalidade e a bidimensionalidade. Para ser
capaz de revelar a intensidade do conjunto representado e de cada uma de
suas partes, e novos aspectos a todo momento, cada elemento da obra tem
de cumprir inúmeras tarefas na conformação do detalhe e na coordenação
compositiva (pp. 126-127).
O autor resgata e analisa os comentários de Lukács sobre historiadores da arte,
sobretudo da pintura, além de outras referências contrárias ou próximas aos
argumentos desenvolvidos na
Estética
, procedimento este que enriquece a exposição
pretendida.
O artigo de autoria de Candido, Para uma arqueologia do sentimento estético:
o papel da arte paleolítica na
Estética
de György Lukács, debruça-se sobre um assunto
de invulgar importância na reflexão estética de maturidade do autor húngaro, mas que
raramente tem merecido atenção dos comentadores da obra.
Ao tratar do tema, além de romper com a abordagem evolucionista da história
da arte, Lukács teria retificado, por exemplo, grande parte de seu argumento
demasiadamente lógico e abstrato contido em
Introdução a uma estética marxista
(1957) sobre a categoria da particularidade, tomada sem mais da tradição clássica
alemã. Contudo, diferentemente do que ocorre em 1957, na Estética propriamente
dita Lukács termina por reconhecer o concreto, a vida cotidiana, como ponto de partida
a partir do qual se autonomizam as categorias específicas do pôr estético. Nesse
contexto, a “lógica da particularidade” deixa de ser o centro categorial da obra de
1963, como bem demonstra ao autor.Com amplo conhecimento dos debates da
geração de Lukács, e do mesmo modo de autores que trataram do tema, o autor
fornece um quadro geral, em que o filósofo caminha em direção de um tratamento de
caráter ontológico-materialista, abandona em grande medida os passos anteriores e
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XIX
passa a dedicar sua atenção aos achados arqueológicos e pesquisas antropológicas
específicas, diante da necessidade de buscar a gênese da obra de arte. Daí a atenção
dedicada à arte pré-histórica, ou seja, às pinturas rupestres. Como resultado, tem-se
uma notável recuperação do tratamento lukácsiano dispensado ao tema e o
testemunho da coerência do filósofo em buscar a gênese dos processos de
autonomização categorial da arte.
A sombra do progresso: Lukács, Balzac e as contradições do realismo é o
título do artigo de autoria de Paula Alves. Apoiada em farta bibliografia, a autora
realiza, em um primeiro momento, questionamento fundamentado acerca de uma
suposta contraposição entre a atividade de escritor, de um lado, e a atividade política,
de outro, que teria marcado os escritos lukácsianos na década de 1920. Na sequência,
procura demarcar a importância dos textos e artigos redigidos no exílio moscovita,
sobretudo no que diz respeito aos estudos sobre Balzac, sem deixar de mencionar a
intensa polêmica travada no interior daqueles setores vinculados à atividade literária
na União Soviética nem esquecer da disseminação da sociologia vulgar, que afeta
diretamente o debate sobre as relações entre arte e sociedade. No que diz respeito à
linha de desenvolvimento da análise lukácsiana da obra de Balzac, a autora demonstra
claramente o afastamento do filósofo húngaro dos marcos de interpretação
disseminados à época, que tendiam a associar a posição pessoal de determinado autor
em relação à sociedade de seu tempo com sua obra literária. Lukács, ao contrário, no
caso específico de Balzac, fugiu desse figurino, buscando no interior da obra, a partir
da composição dos próprios personagens e de suas inter-relações, o modo como
emerge o processo social da vida. Agregando a pesquisa sobre Stendhal realizada por
Lukács, a autora afirma o que se segue:
no processo de reflexão literária, é possível que o reacionarismo se constitua
outrossim como um ponto de vista privilegiado, o que permite que as obras
de escritores conservadores ofereçam uma crítica mais contundente do
capitalismo em ascensão do que aquelas de escritores cuja visão de mundo
é relativamente mais progressista (p. 197).
Deve-se ressaltar, em relação a esse mister, que, mais uma vez, entram em cena
os vários polemistas, que agora em torno do emprego da expressão “triunfo do
realismo” empregada por Lukács na republicação, em 1939, em idioma russo, do texto
A polêmica entre Balzac e Stendhal (que havia sido publicada em 1938 na
Literaturnyi kritik
,) é publicado novamente em uma coletânea intitulada
K istorii
realizma
[Para uma história do realismo]. O debate que se seguiu e intensa a
participação de vários literatos russos são cuidadosamente referidos pela autora. O
resultado desse embate não poderia ter sido outro: em uma resolução oficial do Comitê
Central do Partido, é anunciada a dissolução da
Literaturnyi kritik
, com a justificativa
insólita de que o periódico teria perdido contato com a literatura propriamente
soviética. Prosseguindo na análise da produção teórica de Lukács realizada no exílio
moscovita, a autora se debruça nos assim chamados “Escritos de Moscou”, em especial,
sobre a noção de progresso neles contida. Por fim, realiza uma excelente análise sobre
a contradição do desenvolvimento social na obra de Balzac, na qual é trazida à tona a
avaliação precisa que Lukács concebe sobre o literato francês que, embora sempre
referida por comentadores, poucas vezes é de fato caracterizada em toda sua
Editorial
XX | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
complexidade como no artigo em tela.
Vitor Bartoletti Sartori, professor da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), volta-se à apresentação de um tema de rico interesse,
sobretudo para aqueles pesquisadores empenhados na formulação da crítica do
direito, em especial, a partir da perspectiva lukácsiana. Contudo, o artigo de sua
autoria, intitulado Lukács diante da estetização do direito, contribui para uma
aproximação mais ampla ao tema, ao focalizar criticamente a sobreposição gerada
entre estética e direito, principalmente entre autores conhecidos como pós-
positivistas. O autor destaca a influência da filosofia da linguagem em tais propósitos,
especialmente no que concerne ao problema da interpretação e, por via de
consequência, dirige sua crítica a Dworkin, autor do livro
Levando os direitos a sério
,
que aproxima o direito e a estética, na medida em que concebe o
direito como uma espécie de romance em cadeia, escrito por distintos
autores, mas sempre com um senso de totalidade e de unidade. Assim, tal
qual em uma obra literária, não se teria uma simples enumeração de fatos,
mas algo assemelhado à estrutura do romance (p. 63).
Como bem ressalta o autor, um conhecido intérprete húngaro de Lukács,
nomeadamente Csaba Varga, tem realizado tentativas no sentido de aproximar a
formulação de Dworkin à obra lukácsiana, intento que é criticamente rechaçado por
Sartori, ao evidenciar com todo o rigor que, ao contrário do que supõe Varga, quando
se trata da obra do filósofo húngaro, notadamente de
Para uma ontologia do ser social
,
é absurda toda e qualquer tentativa de aproximação do direito e a estética.
Com o propósito de contribuir para a discussão em torno do problema das
continuidades e descontinuidades presentes ao longo da obra de Lukács no seu
conjunto, Francisco García Chicote escreve o artigo Ensayo y método en György
Lukács. O ponto de partida da reflexão do autor são determinadas colocações
formuladas por Wolfgang Müller-Funk em sua conferência O filósofo do século, em
que são consagradas interpretações sobre a presença no pensamento lukácsiano, de
dois princípios opostos: de um lado, uma perspicácia sociológica e, de outro, uma
herança idealista não superada. Depois de compulsar textos de autores diversos tais
como E. Bloch, S. Kracauer, T. Adorno e outros mais em busca de avaliações sobre o
referido dualismo, Chicote não deixa de referir uma linha anatica que enfatiza a
preferência pela fase madura. Entretanto, ao arrepio das interpretações consagradas,
entende ser necessário identificar uma espécie de denominador comum que estaria
presente ao longo do extenso itinerário lukácsiano: “uma atitude não-dogmática”
vinculada ao estilo ensaístico do filósofo em tela. Tal tese defendida pelo autor decorre
de investigação junto aos trabalhos do “jovem” Lukács, por exemplo,
A alma e as
formas
, em que a forma “ensaio” teria sido concebida como alternativa à noção de
“sistema”, por seu caráter aberto. A defesa do caráter ensaístico em contraposição ao
sistema reapareceria em
Teoria do romance
e, do mesmo modo, no conjunto de
ensaios intitulado
História e consciência de classe
. Nesse passo, Chicote ressalta, para
além dos traços duramente criticados pelo próprio autor no afamado Prefácio de 1967
à obra em questão, que os
impulsos teóricos en la obra de Lukács surgen de una combinatoria peculiar
de teorías, conceptos y corrientes intelectuales generales, es decir, de una
Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XXI
constelación cuya lógica no proviene de ningún sistema preestablecido, sino
de la peculiaridad del objeto a cuyo se servicio se pone (p. 47).
O caráter ensaístico se torna, assim, o elemento crucial para a devida
compreensão da construção conceitual lukácsiana, traço este que teria perdurado nos
textos de maturidade, como o ensaio sobre
Minna von Barnhelm
de Lessing (1963) e
também no escrito sobre
Um dia na vida de Ivan Denísovich
, de Alexander Soljenítsin
(1964). Chicote sublinha que neles não se apresenta um caminho preestabelecido para
a resolução das tensões e conflitos vividos pelos personagens, muito ao contrário. As
figuras que se solidificam em princípios rígidos, prefixados, estariam condenadas à
ruína, ainda de acordo com o autor.
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
de
Thomas Mann é o título do artigo de autoria de Guadalupe Marando e Martín Salinas,
em que é oferecida uma rica análise acerca da figura do artista moderno presente no
livro
Doutor Fausto
de Mann. Tendo esse objetivo em mente, os autores, além de
percorrer as obras de juventude do escritor alemão, além daquelas escritas após a
publicação do livro em exame, identificam que nele o artista moderno é o único digno
de representação trágica, impossível de superar a figura de Adrian Leverkühn.
Acrescente-se também o fato de o modo como a figura do artista foi debatida por
outros autores contemporâneos ter recebido por parte de Marando e Salinas uma
pormenorizada contextualização. Ademais, é assinalado o reconhecimento por Lukács
de que o
Doutor Fausto
representa uma sistematização literária dos temas de
juventude de Mann, que, por seu turno, “guarda una relación particular con la propia
sistematización que Lukács lleva a cabo en su tratado
La peculiaridad de lo estético
(1963)” (p. 227).
Encerrando com chave de ouro a presente edição da
Verinotio
, publicamos duas
excelentes resenhas: a primeira, intitulada Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe,
de autoria de Carolina Peters; a segunda, escrita por Myreli Xavier, leva o título de
Goethe: para além das aparências. Frutos de leitura primorosa de dois livros, a
primeira sobre
Goethe e seu tempo
, de György Lukács, editado pela Boitempo, e a
segunda sobre o livro de Miguel Vedda,
Leer a Goethe
, publicado em Buenos Aires.
Em ambos os casos, cumpre ressaltar, o se trata apenas de comentários rápidos
sobre as obras resenhadas coisa que, infelizmente, tornou-se lugar-comum mas,
ao contrário, de resultado de esforço analítico sério no sentido de identificar o eixo
fundamental da argumentação das referidas publicações.
No caso da resenha sobre
Goethe e seu tempo
, a resenhista, ao avaliar a
contribuição da obra, assinala que o
volume de ensaios lukácsianos pode ser considerado exemplar, uma vez que,
aqui, a relação entre a arte e seu presente histórico, almejada desde o próprio
título do livro, é estabelecida a partir da análise imanente dos textos literários
(e filosóficos, no caso dos escritos estéticos de Friedrich Schiller e das
teorizações contidas na correspondência deste com Goethe), tomados em
sua singularidade (p. 455).
Análises dessa natureza e outras mais presentes na referida resenha são de
extrema utilidade não apenas na divulgação da obra, mas, sobretudo, para apresentá-
la devidamente ao público leitor.
Editorial
XXII | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022
O mesmo pode ser dito a respeito da resenha sobre o livro de Vedda, visto que
nela a autora reconhece devidamente o empenho do professor argentino em se
subtrair da facilitação trivial que muito frequentemente ocorre com livros dessa
natureza. Ademais, desde logo, Myreli Xavier, reconhecendo o esforço e a competência
do pesquisador em literatura alemã, ressalta que o livro “inicia-se, portanto, com esse
laborioso esforço de desarticular leituras homogeneizadoras, que contribuíram para
converter Goethe em um mito, uma lenda”. Ressalta também que,
valendo-se do material produzido por críticos e biógrafos relevantes, da
correspondência pessoal do escritor alemão, bem como de sua vasta
produção literária, Vedda se dedica a demonstrar que quando se efetua uma
leitura honesta e objetiva do conjunto, sem privilegiar apenas o que
impressiona e o que se harmoniza com interesses e pontos de vista próprios
ou preestabelecidos, resulta clara a incorreção das referidas interpretações
(p. 461).
Boa leitura!
Ester Vaisman
Ronaldo Vielmi Fortes
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Por que não somos lukácsianos
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. VII-XXIII - mar. 2022 | XXIII
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VAISMAN, Ester. O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade
em pleno século XXI?
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 1, p. 277-307, jan./jun.
2021.
Como citar:
VAISMAN, Ester; FORTES, Ronaldo V. Editorial: Por que não somos lukácsianos.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. VII-XXIII, mar. 2022.
VerinotioNOVA FASEISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Ainda sobre Lukács e o romantismo:
algumas considerações sobre os passos do
itinerário de uma vida*
Still about Lukács and romanticism:
some considerations about the steps of a life's itinerary
Ester Vaisman**
Resumo: No presente artigo pretende-se, de um
lado, configurar alguns momentos do itinerário de
Lukács, com o objetivo de indicar as
características de suas constantes autoavaliações.
De outro, apontar para os modos pelos quais ele
faceou o romantismo e a originalidade de sua
análise a respeito de Goethe.
Palavras-chave: György Lukács; romantismo;
Goethe.
Abstract: This article intends, on the one hand,
to characterize some moments in Lukács'
itinerary, with the aim of indicating the
characteristics of his constant self-evaluations.
On the other hand, point to the ways in which
he faced romanticism and the originality of his
analysis of Goethe.
Keywords: György Lukács; romanticism; Goethe.
Se quisermos combater a influência das correntes
reacionárias alemãs dominantes até agora não
com fraseologias, mas na realidade, é
imprescindível tomar conhecimento das lutas
culturais, ideológicas que produziram a literatura
e a filosofia alemãs clássicas.
(Lukács, Prefácio de 1947 a
Goethe e seu tempo
)
Introdução
Talvez possa ser dito que uma das principais contribuições de Lukács tenha
sido a de sustentar em uma época quando ainda era necessário demonstrá-lo
mesmo aos marxistas que seria possível pensar uma estética a partir de Marx,
muito embora as suas formulações sobre a arte em geral e a literatura em particular
nunca tenham se constituído em um sistema inteiramente conexo e fechado. A
despeito disso, para comprovar sua tese, Lukács refere a existência de passagens,
*Reedição, com modificações, do capítulo originariamente publicado em: (VAISMAN; VEDDA, 2014).
**Professora titular aposentada do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).
Ester Vaisman
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trechos de obras e correspondências em que Marx e Engels tocaram em problemas
capitais da literatura, por exemplo (LUKÁCS, 1981, p. 164-165).
Tal propositura é revelada em um artigo escrito em 1922, intitulado Origem e
valor da obra poética.
nesse momento, em pleno processo de transição ao
marxismo, com todas as vicissitudes por ele reconhecidas em 1967
1
, afirma a
superioridade da abordagem de Marx em comparação às
considerações mitologizantes da história literária burguesa, que pretendem
explicar a época a partir das grandes personalidades e a arte a partir da
essência do nio; com isso, tais considerações se movem,
evidentemente, em círculos, que o gênio, por sua vez, pode ser
explicado a partir das obras de arte (LUKÁCS, 2009, p. 27).
Com o intento de demonstrar a fertilidade do tratamento marxista da obra de
arte, Lukács aduz que mesmo “se estivéssemos em condições de explicar, segundo o
método marxista, não apenas a
origem
, mas também, o
efeito
da obra poética, não
teríamos esgotado em verdade o conhecimento da literatura” (LUKÁCS, 2007, p. 29).
Por quê? Porque seria necessário, ainda segundo ele, explicar as razões que levam
determinadas obras a exercer influência em várias épocas históricas. De acordo com
Guido Oldrini,
no início dos anos 30, durante o trabalho realizado em Moscou em
colaboração com o crítico soviético Michail Lifschitz, amadurece em Lukács
a certeza acerca da autonomia estética do marxismo, a convicção de que a
estética forma uma seção orgânica coerente em si mesma (OLDRINI,
2007, p.139).
Afirmar, contudo, a possibilidade do tratamento da obra de arte a partir da
perspectiva de Marx, não implica, por parte do autor húngaro, o tratamento
a priori
do fenômeno artístico a partir de categorias subjetivas ou previamente elaboradas.
Muito ao contrário. No decorrer de vários anos, Lukács se dedicou
a ensaios de crítica literária e estudos de história da literatura e filosofia,
sem incursões, exceto as crítico-históricas, no âmbito da estética. O
trabalho na estética propriamente dita somente pôde começar depois de
que, em novembro de 1952, ele coloca a palavra fim no livro
A
destruição da razão
[...] (OLDRINI, 2007, p. 139).
Antes disso, porém, a ideia de uma estética sistemática sequer existia, fato que
o próprio Lukács refere no prefácio de sua
Estética
: “Quando por volta de 1930
voltei a ocupar-me intensamente de problemas artísticos, não pensava em uma
estética sistemática, a não ser como uma perspectiva muito distante no horizonte”
1
. Cf. Prefácio de 1967 ao livro
História e consciência de classe
(LUKÁCS, 2003, p. 1-50).
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(LUKÁCS, 1966, p. 30).
I Alguns momentos do itinerário de Lukács:
Vamos examinar alguns momentos desse longo e sinuoso percurso, tomando-
se como ponto de partida as estadas de Lukács em Moscou. É claro que não se tem
a pretensão aqui de apresentar um roteiro biográfico completo do autor em tela. A
ideia é resgatar alguns episódios de seu itinerário com o fito de esclarecer, de modo
mais aproximado possível, o modo como Lukács, em linhas gerais, lidou com a
cultura e a realidade alemãs e, sobretudo, com o romantismo, além de destacar o
caráter precoce de suas propaladas “autocríticas”, que marcam o curso de sua
formação. Outrossim, dada a proliferação de abordagens que vinculam, por meio de
critérios duvidosos e sem amparo textual, o romantismo às reflexões e
posicionamentos do autor, é imperioso, ainda que de modo aproximativo, tratar
criticamente o modo como Lukács, de fato, lidou com a questão.
Ademais, é bom esclarecer, que não se pretende esgotar o conteúdo, muitas
vezes complexo e pleno de facetas e descontinuidades, com que Lukács faceou o
tema ao longo de seu longo e sinuoso itinerário. O objetivo aqui é bem mais
modesto e visa, do mesmo modo, a tecer alguns comentários ao relevante conjunto
de textos intitulado
Goethe e seu tempo
, recentemente publicado no Brasil.
Na sua primeira estada em Moscou, a partir do começo de 1930, ao deixar o
exílio de Viena, trabalha por mais de um ano no Instituto Marx-Engels, dirigido na
época pelo competente filósofo David Borisovich Riazanov, que então cuidava da
edição dos manuscritos juvenis de Marx e empreendia a publicação da
Marx-Engels
Gesamtausgabe
(Mega), que restou incompleta com sua expulsão em 1931 do PC
soviético, e posterior desaparecimento no bojo dos expurgos stalinistas. Foi uma
experiência mais do que invulgar, responsável por sua
inflexão decisiva
em relação
ao pensamento marxiano, e da qual ele se recordava com grande entusiasmo até o
fim da vida, como, por exemplo, na entrevista à
New Left Review
em 1968:
Quando estive em Moscou, em 1930, Riazanov me mostrou os manuscritos
de Marx elaborados em Paris em 1844. Você pode imaginar meu
excitamento: a leitura destes manuscritos mudou toda a minha relação com
o marxismo e transformou minha perspectiva filosófica (LUKÁCS, 1981, p.
49).
Essa experiência invulgar abriu certamente novas perspectivas para o filósofo, entre
as quais, a de que era necessária como referimos linhas acima uma estética
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marxista que partisse da reconstrução das concepções estéticas formuladas por Marx
e Engels, que por seu turno não se restringia a uma aspiração de ordem puramente
teórica, “a elaboração também tinha como objetivo uma política cultural que se
opusesse às tendências no interior do
Proletkult
, ou seja, as simplificações
sociologistas da linha iniciada por Plekhánov e Mehring” (BOLLENBECK, 2007, p.
130).
Na segunda, desde o momento em que é obrigado a abandonar a Alemanha,
avassalada pelo nazismo. Longo período de mais de uma década, não pôde retornar,
como da primeira vez, ao Instituto Marx-Engels, tendo centrado suas atividades em
revistas como
Internationale Literatur, Uj Hang
(Nova Voz),
Das Wort
e, muito
especialmente, na
Literaturnyi Kritik
, publicação de feitio independente que circulou
de 1933 a 1940, da qual foi, junto com M. Lifschitz, o eixo intelectual. Contraposta
às tendências literárias oficiais, representadas em especial pelo romancista Alexander
Fadeyev, que por sua estrita obediência política ao stalinismo detinha papel dirigente
na
União dos Escritores
(sucessora da RAPP), a
Literaturnyi Kritik
sofreu ataques
constantes e desafios polêmicos, e acabou extinta por ocasião de uma
“reorganização”. A partir daí, Lukács não teve mais acesso à imprensa literária russa.
2
Evocando o primeiro turno desses exílios, no Prefácio ao seu volume antológico
Arte e sociedade
, publicado em Budapeste no ano de 1968, Lukács declara:
No Instituto Marx-Engels conheci e trabalhei com o companheiro Michail
Lifschitz, com quem, no curso de longos e amigáveis colóquios, debati as
questões fundamentais do marxismo. O resultado teórico mais importante
desta clarificação foi o reconhecimento da existência de uma estética
marxista autônoma e unitária. Essa afirmação, indiscutível hoje em dia,
parecia no início dos anos trinta um paradoxo até para muitos marxistas.
(LUKÁCS, 1977, p. 11-12)
Neste campo, importa lembrar, imperavam ainda as concepções próprias ao
quadro de ideias formulado pela II Internacional.
Assim, nos discursos teóricos sobre fenômenos estéticos continuavam a
dominar as opiniões de Plekhánov e Mehring, para os quais a estética não
era uma parte integrante do sistema marxista. Plekhánov se reportava
principalmente ao positivismo francês e às tradições da crítica democrático-
revolucionária russa; Mehring por sua vez invocava a Kant e a Schiller
(LUKÁCS, 1977, p. 11-12).
No entanto, estas posições típicas da II Internacional cederam lugar, com
inesperada rapidez, à tese sustentada por Lukács e Lifschitz, junto a uma parte dos
2
A esse respeito, ver Lukács, (1974) e Prévost (1974, p. 7-59).
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marxistas daquele momento. Estes, todavia, sintomaticamente ignoravam a origem
intelectual dessa viragem. A difusão da nova tese se dera, e disto se beneficiara, em
meio ao emaranhado do combate oficial à chamada ortodoxia plekhánoviana, a ideia
de que Plekhánov fosse o mediador entre Marx e Lênin. A nova posição, que
agregou ao debate a crítica às concepções estéticas de Mehring, tornou-se pública
precisamente com o ensaio
O debate Franz von Sichingen entre Marx-Engels e
Lassalle
(
Internacionale Literatur
, 1933), no qual Lukács examina a discussão
travada, entre março e maio de 1859 (note-se que é logo após a redação de
Para a
crítica da economia política
), a propósito da extemporânea tragédia histórica de
autoria de Ferdinand Lassalle.
Em realidade, com esse texto, ou mais precisamente com o padrão reflexivo
alcançado no tratamento de sua temática básica, é que Lukács baliza, segundo
avaliação explícita, o início da parte propriamente marxista de sua obra. É no mesmo
Prefácio de
Arte e sociedade
que se lê:
A guerra e depois as revoluções russa e húngara determinaram uma
inflexão profunda na minha concepção da sociedade e na minha ideologia,
fazendo de mim um marxista. Procurei examinar de modo particularizado
esse processo, sem excluir o fracasso de minha primeira tentativa filosófica
marxista (
História e consciência de classe
) [...]. Limitar-me-ei a ressaltar que
esse processo termina em 1930, quando levei a termo meus estudos sobre
Marx no Instituto Marx-Engels de Moscou. [...] Até aquele momento havia
procurado interpretar corretamente Marx à luz da dialética hegeliana; a
partir daquele momento procurei utilizar para o presente os resultados de
Hegel e do pensamento filosófico burguês - que havia alcançado com Hegel
seu ponto culminante e também a crítica de seus limites, na base da
dialética materialista de Marx e Lênin. Enquanto a maior parte dos
dirigentes da segunda internacional havia visto em Marx exclusivamente, ou
ao menos em primeiro lugar, aquele que havia revolucionado a economia
política, agora, pelo contrário, se começou a compreender que com ele teve
início uma nova época na história de todo o pensamento humano, que a
atividade de Lênin havia tornado atual, efetiva.
O reconhecimento da
autonomia e da originalidade da estética marxiana foi o meu primeiro passo
na compreensão e efetivação de uma nova inflexão ideológica
(LUKÁCS,
1977, p. 11-12, grifos meus).
II - Do ensaísmo neokantiano à filosofia marxiana
Esclarecimentos do tipo acima estampados, que determinam as vicissitudes da
formação marxista de G. Lukács, devem ser plenamente considerados, quando mais
não seja por simples isenção e elementar honestidade intelectual. Constituem, de
fato, um autoentendimento reiterado por décadas, uma refletiva convicção que não
resultou de constrangimentos externos, mas de posturas rara e exigente, peculiar à
biografia lukácsiana: submeter a avaliações periódicas, com rigoroso critério objetivo,
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sua própria vida e obra.
Conduta que a adesão ao marxismo reforçou, mas que bem antes estava
configurada. Isso põe em evidência, acima de tudo, o perfil de um caráter, o grau de
desenvolvimento de uma personalidade, que pelo seu feitio não pôde deixar de
irritar e chocar, de afrontar e levar à perplexidade o tão diverso padrão de conduta
intelectual dominante no último século e, não por acaso, com cores acentuadas
atualmente.
Que outro pensador contemporâneo foi capaz de renunciar crítica e
deliberadamente, como ele fez por diversas vezes, ao prestígio de obras
consagradas? Renúncia que chegou ao total divórcio delas, a ponto mesmo de
manifestar completa desidentidade autoral por textos que teriam feito, cada um de
per si
, a inconfessa e sempre almejada glória de carreira de qualquer um (sobretudo
no meio acadêmico), inclusive dos melhores e mais respeitáveis.
Esse desapego, sinônimo de enorme exigência para consigo mesmo, que nunca
declinou em arrogância ou pedantismo, nem em autoproclamações de méritos ou em
bravatas de autossuficiência, em que pese a imensa solidão teórica a que esteve
constrangido seu trabalho, essa aguda consciência da responsabilidade de ser
homem e intelectual aflorou muito cedo, logo aos primeiros passos
3
.
Tem com certeza sabor de arroubo juvenil a decisão, aos dezoito anos (1903),
de queimar todos os seus escritos literários alguns dramas
à la
Ibsen e Hauptmann
(redigidos nos três anos anteriores), que em definitivo julga então “horrivelmente
ruins”. Gesto incomum, exatamente porque juvenil, e ainda mais porque dele nasceu
um critério secreto para estabelecer as fronteiras da literatura, qual seja: era
ruim aquilo que eu também poderia escrever. A literatura começa onde
tenho a impressão de não poder escrever a obra em questão (LUKÁCS,
1999, p. 32).
Apreendido pela anatomia da maturidade e velhice de Lukács, o impulso
invulgar da juventude aparece como germe ou prenúncio. Bem menos drástico, não
por isso deixando de ser muito mais significativo, é o episódio que envolve o
primeiro livro de Lukács,
História da evolução do drama moderno
, cuja primeira
versão foi finalizada aproximadamente quatro anos depois. Ainda estudante da
Faculdade de Letras de Budapeste, Lukács empreende, de 1904 a 1909, um amplo
3
Sobre as continuidades e descontinuidades no itinerário de Lukács ver: Fortes (2015, p. 177-193).
Ver também Tertulian (2008).
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projeto no campo teatral, através da fundação da
Thalia Bühne
(
Thalia Gesellschaft
),
da qual foi um dos diretores. É a sua participação no radicalismo intelectual húngaro,
que havia identificado no teatro o instrumento mais apropriado para promover a
“subversão das consciências” que tinha por alvo. Desse empenho concreto no campo
artístico, da reflexão de inúmeras questões dramatúrgicas praticamente afrontadas é
que tem origem
O drama moderno
. Premiado pela obra em 1908, Lukács entra em
desespero porque Eu achava que toda aquela gente não era competente para julgar
o assunto. Por conseguinte, a atribuição do prêmio a mim significava,
automaticamente, que devia haver algo ruim no meu livro”. É muito expressivo, do
traço lukácsiano, aqui posto em evidência, que ele confesse que Procurava o que
havia de ruim, sem, no entanto, conseguir descobrir”, e que, no caso, a ajuda tenha
vindo de Léo Popper, a quem considerava “talvez o maior talento que encontrei na
vida”, e de quem afirmava também que “possuía um senso infalível para a
qualidade”. Ajuda que consistiu não da indicação do que não funcionava no livro,
mas, ao contrário, do que “funcionava bem”. Bem mais adiante, sem desmerecer em
nada o auxílio de Léo Popper, tornando a avaliar a obra, em outro diapasão
analítico, recordou que A verdadeira filosofia do meu livro sobre o drama é a
filosofia de Simmel (LUKÁCS, 1999, p. 38), o que no contexto da historiografia
literária húngara do começo do século, no entanto, significava um contraste total
com a mesquinhez das variantes positivistas tanto do oficialismo literário como de
seus opositores, entre os quais também se manifestava, em sua estreiteza, o
impressionismo subjetivista a título de posição estética.
Em verdade, o que movia Lukács, desde o início, era a busca de uma forma de
interpretação das manifestações literárias que não fosse uma mera abstração de seus
conteúdos peculiares. Donde, na contraposição teórica em que se encontrava e sob a
aderência ao neokantismo, não ter ido além, naquela época, da equação armada em
História da evolução do drama moderno
: a da pura síntese intelectual entre
sociologia e estética, sob o amparo e sustentação do pensamento de Simmel, em
lugar de partir “das relações diretas e reais entre a sociedade e a literatura”, como
dirá no Prefácio
a
Arte e sociedade
. No qual afirma também que “não pode
surpreender que de uma postura tão artificiosa tenham derivado construções
abstratas”, sempre insatisfatórias, até mesmo quando atinam com alguma
determinação verdadeira.
Em suma, o que então praticara e que “funcionava bem” , mas que
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indiretamente o pusera em desespero, em que atinasse com a natureza do problema
fora um brilhante exercício de
ciência do espírito
. A mero título de ilustração, vale
reproduzir uma passagem do Preâmbulo da obra, escrito em dezembro de 1909: “A
forma autêntica do artista autêntico é
a priori
: é uma forma constante em face das
coisas, um algo sem o qual ele nem mesmo as poderia perceber. [...] Dizíamos: a
forma é a realidade social, participa vivamente da vida espiritual” (LUKÁCS, 1964, p.
77-78). Com abstrativismos desse tipo a forma como um
a priori
social , que
buscam exatamente amalgamar estética e sociologia (ou melhor, uma certa
sociologia), não é impossível brilhar, mas se deixa fora de alcance a especificidade
literária, bem como o preciso conteúdo humano-social que ela refigura em cada
expressão efetiva. Para quem aspirava o inverso e praticara o contrário do
pretendido, havia mesmo com que se desesperar, não obstante o talento revelado na
confecção do livro, que fora reconhecido e laureado. É precisamente a denúncia
dessa abstratividade destemperada que constitui o núcleo das considerações de
Lukács sobre
O drama moderno
no Prefácio
a
Arte e sociedade
:
Embora o ponto de partida histórico-literário, a tentativa de explicar a
forma dramática através dos efeitos produzidos sobre a massa, fosse dado
por generalização de observações justas, embora o livro contenha também,
sem dúvida, análises que se revelaram exatas, a concepção de fundo, a tese
segundo a qual o conflito dramático (trágico) é uma manifestação
ideológica da decadência de classe, precisamente por efeito de sua
abstratividade é uma construção vazia. É decerto verdadeiro que um drama
autêntico nasce somente se na realidade social as normas morais válidas,
que se criam necessariamente na sociedade, entram em contraste entre si e
se excluem mutuamente, mas a dedução direta e necessária desta
concepção da decadência de classe é de todo abstrata e se manifesta,
portanto, como uma construção vazia. (LUKÁCS, 1977, p. 6)
integrado à sua estrutura de personalidade, o “exame de consciência”
alcançará depois, sucessivamente, dois livros famosos:
A alma e as formas
(1911) e
A teoria do romance
(1914/15), obras do trânsito lukácsiano de Kant a Hegel que
culmina no último. É o percurso que o leva, sem abandonar o território das assim
chamadas
ciências do espírito
(Dilthey, Simmel, Weber), da filosofia e da nascente
sociologia alemã de Simmel para uma forma da
ciência do espírito
acoplada ou
traspassada pelo hegelianismo, responsável pela urdidura de
A alma e as formas
e
com acentuação maior de
A teoria do romance
.
Estas, é de lembrar, foram obras muito bem recebidas, inclusive por expoentes
máximos da cultura alemã, de então: Thomas Mann foi dos leitores que aprovaram
A
teoria do romance
e anteriormente afirmara que
A alma e as formas
era “a coisa mais
extraordinária que jamais fora dita sobre este tema paradoxal”; Max Weber, por sua
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vez, que não exerceu, naquele momento, influência sobre Lukács, mas sofreu a
influência deste, especialmente no que tange à reflexão das questões éticas, além de
apreciar esses dois livros, mostrou-se muito sensibilizado por outro texto lukácsiano
daquela época
Sobre pobreza do espírito
(1911), ao qual se referiu como um
“ensaio profundamente artístico” no qual à força criativa do amor é concedido o
direito de infringir a norma ética. E Max Dvorák, historiador tcheco da arte, chegou
mesmo a considerar
A teoria do romance
como o trabalho mais importante no
âmbito da vertente configurada pelas ciências do espírito (TERTULIAN, 1971, p. 18).
E, já nos princípios dos anos sessenta, Lucien Goldmann dirá que o livro
A alma
e as formas
por numerosas razões marca uma data essencial na história do pensamento
contemporâneo. Em primeiro lugar, porque depois de muitos anos de
filosofia acadêmica, Lukács recuperava nessa obra a grande tradição da
filosofia clássica, colocando no centro de suas preocupações o problema
das relações entre a vida humana e os valores absolutos (GOLDMANN,
1963, p. 25).
E ainda mais, que é com essa obra que “provavelmente começa na Europa o
renascimento filosófico que se seguiu à Primeira Guerra Mundial” (GOLDMANN,
1963, p. 25). De modo que Lukács “foi o primeiro no século XX a colocar os
problemas que dominam o pensamento filosófico e que desde a morte de Hegel
havia, mais ou menos, desaparecido da consciência europeia”. Sobre
A teoria do
romance
, Goldmann não é menos acolhedor e enfático. É também em sua Introdução
aos
Primeiros escritos de Georg Lukács
que se lê:
A
Teoria do romance
estuda as grandes formas épicas que, contrariamente
às que havia elegido precedentemente, são
realistas
, isto é, descansam, se
não sobre uma acepção da realidade, pelo menos sobre uma atitude
positiva em relação a uma realidade
possível
, cuja possibilidade está
fundada no
mundo existente.
[...] Assim, numa época em que a crise da
sociedade ocidental se tornara manifesta a todos aqueles que, poucos anos
antes, não haviam sequer suspeitado dela, Georg Lukács, que havia sido um
dos primeiros a descobri-la, afirma a categoria da esperança realista e
esboça, por isso mesmo, a categoria central de seu pensamento ulterior, a
categoria de
possibilidade objetiva.
(GOLDMANN, 1963, p. 25)
Sucesso e boa acolhida, no entanto, que não impediram Lukács, em suas
avaliações, de denunciar
A teoria do romance
precisamente como um produto típico
das ciências do espírito, por isso mesmo comprometida pelo seu todo ilusionista,
que operava por meio do estabelecimento intuitivo de abstrações infundadas, a
partir das quais, por dedução, eram abordados os fenômenos singulares. O mesmo
ocorrendo quanto ao passo anterior desse andamento, que se esforçava por dar
as costas ao modo abstrato-especulativo de entender e examinar as formações
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literárias e de refletir sobre os problemas vitais da existência humana que elas
encerram.
O autor admite que certas tematizações por ele alcançadas em
A alma e as
formas
teriam logrado alguns avanços, mas
o meu esforço de concreção se limitava à tentativa de apreender a estrutura
interna, a essência geral de determinadas formas típicas do comportamento
humano e de relacioná-las, assim, às formas literárias, mediante a
refiguração e a análise dos conflitos da vida (LUKÁCS, 1964, p. 9 -10).
De modo que as substancialidades das formas literárias afloravam nitidamente
em separado do processo histórico real. O que lhe permite concluir, pondo sem dó o
dedo sobre a ferida, que neste momento de seu itinerário intelectual não havia se
alçado mais do que a uma posição que opunha, ao sociologismo abstrato das
minhas primeiras tentativas (
O drama moderno
), uma generalização filosófica não
menos abstrata" (LUKÁCS, 1964, p. 9-10).
É oportuno ressaltar, para que não reste qualquer dúvida, quanto à natureza
das autoavaliações lukácsianas, que sua insatisfação e completo distanciamento de
A
alma e as formas
é extremamente precoce. Mal havia transcorrido um ano de sua
publicação, manifesta total
indiferença
pela obra; sentimento que veio a reiterar,
ao longo de toda a vida, em relação a todos os seus trabalhos intelectuais
superados”.
É numa carta (25 set. 1912) à escritora Margarete Susman (von Bendemann),
que três semanas antes havia publicado uma resenha de
A alma e as formas
, que
podemos apreciar por inteiro a posição e o comportamento de Lukács, em flagrante
tão característico quanto ilustrativo, especialmente porque distante quase vinte anos
de sua desembocadura propriamente marxista.
O pensador húngaro principia por declarar, gentilmente, que quase tudo que
havia de essencial em seu livro fora compreendido e formulado com força e
segurança pela resenhista, como poucos o haviam feito até então; agradece muito
que M. Susman tenha “apreendido o momento mais importante do meu caminho: o
meu conceito de forma” e externa também muita satisfação porque a autora do
pequeno artigo ressaltara “o papel da história, bem como a importância dos ensaios
inicial (
Sobre a essência e a forma do ensaio
) e final (
Metafísica da tragédia
)” no livro
sumariado (LUKÁCS, 1984, p. 302-305).
Todavia, logo à frente, naquele longínquo momento, Lukács explicita,
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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tipicamente, em face dos comentários da resenhista, um ponto de discordância”,
que muito menos censura uma interpretação errônea do livro tal como ele é do que
denuncia um defeito de sua própria obra. Para o autor de
A alma e as formas
,
Margarete Susman converte em “traço característico” aquilo que é “condição” do
ensaio, ou seja: “a ética da forma ensaística é o desespero, que nasce do
antiquíssimo dissídio interno dessa forma”. Em outros termos, “a inevitável falta de
conclusão última é o desespero deste livro”. A esse admitido comprometimento
formal da obra, Lukács contrapõe, de imediato, a seguinte consideração sintomática,
relativa à necessidade de conclusão “mas ao menos como o sinto hoje ela é
mirada algumas vezes de longe”. E desenvolve a crítica, dizendo que Susman
“considera essa meta inatingível e a sua inatingibilidade um ‘fato’ da filosofia da
história, uma característica do nosso tempo”, para replicar duramente e com muita
ênfase:
Para mim (inclusive no momento em que escrevi os ensaios inicial e final) a
meta está diante de mim perfeitamente atingível. Todavia, se eu não a
atingisse, isso o seria um fato para extrair conclusões acerca da
essência do sentimento metafísico, mas uma sentença a meu respeito (e
somente a meu respeito), sobre meu não chamamento à filosofia (LUKÁCS,
1984, p. 302-305).
De fato, é indubitável a recusa lukácsiana à inconcludência ensaística, tanto
quanto sua franca perseguição a uma verdade única e real, mesmo que à época a
identificasse abstratamente a um sistema absoluto, como testemunham suas próprias
palavras:
Se refutamos a possibilidade de responder a pergunta última, que decide
tudo, todas as nossas categorias perdem por isso seu significado
constitutivo e cada anunciado nosso acerca daquilo que está além e fora de
nós permanece em nós, torna-se reflexivo, nós perdemos a decisiva
responsabilidade pelo rigor dos conceitos, que de fato pode se dar pelo
enquadramento hierárquico no sistema absoluto (LUKÁCS, 1984, p. 302-
305).
É este, em realidade, o verdadeiro problema da crítica lukácsiana a
A alma e as
formas
, pouco depois de sua publicação: a inconcludência da obra determina sua
indiferença por ela, pois ao contrário do que gostariam de ver alguns de seus
intérpretes, não é de seu espírito, nem mesmo em sua fase idealista mais
exacerbada, exultar no gozo da patinação impotente entre contrapostos
“equivalentes” e indeterminações “intransponíveis”. Para ele, naquele momento, a
incapacidade de concluir é uma debilidade muito grande e muito desconfortável, que
confessa, ao mesmo tempo que anseia por ultrapassar. É o que esclarece à
resenhista, afirmando que, nos ensaios de
A alma e as formas
, não deixou nunca de
Ester Vaisman
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procurar fugir ao perigo da invalidação da
questão última
, de modo que “tudo que
neles de aparentemente muito subjetivo, ‘poético’, fragmentário nasceu do
esforço de tentar ser unívoco, incisivo, responsável sem possuir, sem
ainda
, a
responsabilidade evidente do sistema completo” (LUKÁCS, 1984, p. 302-305).
É óbvio, portanto, que seja, no mínimo, extremamente problemático atribuir a
Lukács, mesmo ao tempo dessa obra, um mero e simples
pathos trágico
, e, muito
mais do que isso, estender tal estado de espírito para seus futuros trabalhos. Tal
tese desentende e subverte por completo o perfil lukácsiano, especialmente em
momentos cruciais de sua evolução, inviabilizando a compreensão do momento
efetivo de sua inflexão marxiana.
Para efeito, no entanto, do que aqui se pretende sua precoce
incompatibilização com
A alma e as formas
basta arrematar com um último trecho
da carta a Margarete Susman:
Em realidade, por este livro, que provavelmente é menos do que um início,
não deveria esperar ser entendido, e decerto não o poderia exigir (como
pode pretender um ato do espírito que seja objetivo, concluso). Está, de
fato, repleto de saber intuitivo sobre aquilo que (por mim) virá,
pensamentos cujos caminho e fim somente agora vão se tornando claros
quando o conjunto e sua forma se tornaram para mim absolutamente
estranhos
(LUKÁCS, 1984, p. 302-305).
Esta última frase, grifada por mim, foi retomada por Lukács cinquenta e cinco
anos depois de escrita, para com ela evidenciar que sempre se tornou
indiferente
em
relação a obras superadas. Está inserida no volume II de suas
Obras completas
,
precisamente no Prefácio de 1967, o que lhe confere, pela importância do texto e
pela proximidade da morte do autor, expressividade ainda maior. O que deve
prevalecer, a força de um testemunho meio secular, muito bem articulado, ou alguma
grosseira imputação especulativa das muitas que a mediocridade lhe tem brindado?
Por sua vez, o diagnóstico que oferece sobre
A teoria do romance
, aludido
mais atrás, não o exclui esta obra do terreno achatado das abstrações na
prática da análise literária, como até mesmo confere a ela dimensão de
exemplaridade na ordem dessa debilidade analítica. Ou, posto em suas próprias
palavras:
A teoria do romance
é um representante típico da ciência do espírito, sem
apontar para além de suas limitações metodológicas” (LUKÁCS, 2009, p. 11). O que
é tanto mais significativo, se não se põe de lado que o talhe da crítica lukácsiana é
consistentemente matizado; ou seja, não deixa de discernir e apontar aspectos
válidos, conquistas parciais efetivadas nesse livro como nos anteriores.
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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Discernimento, todavia, que não o induz, como é tão frequente, a fragilizar a reflexão
crítica e a partir disso resvalar para o fosso comum da relativização de méritos e
deméritos. Ao contrário, é sobre a malha diferenciada destes que faz sobressair a
franqueza do resultado:
O autor de
A teoria do romance
estava em busca de uma dialética geral dos
gêneros, baseada na essência das categorias estéticas, na essência das
formas literárias dialética esta que aspira a uma vinculação entre
categoria e história ainda mais estreita do que aquela por ele encontrada
no próprio Hegel; buscava apreender intelectualmente uma permanência na
mudança, uma transformação interna dentro da validade da essência. Seu
método, no entanto, permanece muitas vezes extremamente abstrato,
precisamente em contextos de grande relevância, desvinculado das
realidades histórico-sociais concretas. Por isso, com exagerada frequência
ele conduz [...] a construções arbitrárias. (LUKÁCS, 2009, p. 13)
O reconhecimento dos matizes a propósito de
A teoria do romance,
alcança
inclusive as determinações extrateóricas da gênese desse livro, e com isso torna
ainda mais precisa a fisionomia intelectual e vivencial do seu autor quando da
elaboração do texto.
O estalar da guerra de 1914 e seu efeito sobre a intelectualidade de esquerda,
ao ser assumida pela social-democracia, é que determinam o projeto de redação de
A teoria do romance
. Esta “nasceu de um estado de espírito de permanente
desespero diante da situação mundial” (LUKÁCS, 2009, p. 8), diz Lukács, que por
mais de uma vez lançou mão de uma fórmula de Fichte para caracterizar a imagem
que nutria daquele tempo: “época da pecaminosidade consumada” (LUKÁCS, 1999,
p. 49). Essa visão infernal de uma Europa sem brechas e sem horizontes, tecida de
pessimismo eticamente modulado, faz do Lukács de
A teoria do romance
um
utópico
primitivo
, para utilizar uma expressão quase idêntica de seu próprio uso. De tal sorte
que ele pode afirmar:
A teoria do romance
não é de caráter conservador, mas
subversivo” (LUKÁCS, 2009, p. 16). E, de forma mais concreta:
no plano metodológico é um livro de história do espírito. Mas acredito
que seja o único livro desse tipo que não é orientado à direita. Do ponto
de vista moral, eu considero a época inteira condenável, e a arte como boa
só quando se contrapõe a este fluxo das coisas (LUKÁCS, 1999, p. 49).
Não expressões mais fortes do que as do próprio filósofo ngaro para
designar o utopismo sobre o qual assentava, então, sua reflexão e sua perspectiva
prática: “primitivo”, “sumamente ingênuo”, “totalmente infundado” são os
qualificativos que emprega sem qualquer embaraço. Toda sua esperança residira na
cândida suposição de que “do colapso do capitalismo, do colapso a ele
identificado [...] das categorias socioeconômicas inanimadas e hostis à vida, possa
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nascer uma vida natural, digna do homem (LUKÁCS, 2009, p. 16). É algo como uma
antecipação do que na década de vinte viria a se firmar como uma ideia da reação:
ultrapassar o mundo da economia por meio da movimentação social; e não deve
escandalizar a lembrança de que, por suas características teóricas e práticas, a
Segunda Internacional não está isenta de responsabilidade quanto à preparação
dessa idealidade perversa. Mas, ao tempo da redação de
A teoria do romance
, a
tônica estava do outro lado, e o quadro em germe daquele nódulo ideológico ainda
não havia se clivado, de modo que ambos, quadro e tônica, pertenciam à
generosidade equivocada de muitos daqueles que aderem, como Lukács, pela
extinção do prosaico mundo burguês. Em outros termos, o inocente utopismo que
subjaz em
A teoria do romance
não é um privilégio negativo de seu autor, mas, em
sua esquálida figura alimenta um texto que “expressa apesar de tudo uma corrente
espiritual que, efetivamente, existia na época” (LUKÁCS, 2009, p. 17).
Possuído por esse estado de ânimo, hoje quase inacreditável, e atado a uma
ciência do espírito formalmente hegelianizada, sobre a qual ainda projetava
elementos kierkegaardianos, além de conceber a realidade social pela lupa de Sorel,
eis em concreto o polifrontismo teórico-político que (des)organiza a cabeça de
Lukács aos trinta anos de idade. Contudo, mesmo nesse escândalo eclético-utópico,
pleno e reconhecido, Lukács, nos seus reexames, é capaz de garimpar as distinções,
localizando com toda propriedade o polo de inflexão positiva:
A teoria do romance
permaneceu uma tentativa que fracassou tanto no projeto quanto na execução, mas
que em suas intenções aproximou-se mais da saída correta do que seus
contemporâneos foram capazes de fazê-lo” (LUKÁCS, 2009, p. 13). O caráter dessa
impulsão, que faz chegar mais perto do que ninguém da solução apropriada, está
inscrito na própria obra (o que faz das “intenções” algo para além do mero desejo ou
do voto piedoso), pois ela
delineia - naturalmente ainda no interior da literatura burguesa - a teoria do
romance revolucionário. Não havia ainda qualquer coisa do gênero naquela
época. Existia uma concepção do romance na esteira das ciências do
espírito, que era conservadora tanto no plano artístico quanto no plano
ideológico. A minha
Teoria do romance
não era revolucionária no sentido
do revolucionarismo socialista, mas era revolucionária comparada à ciência
da literatura e à teoria do romance da época (LUKÁCS, 1999, p. 49).
A diferença entre os dois níveis revolucionários está em que
a época da pecaminosidade consumada de Fichte significa que a Europa
foi lançada, da solidez aparente em que os homens viviam a1914, para
onde se encontrava. Por isto essa época corresponde perfeitamente, em
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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sentido negativo, à verdade. falta, naturalmente, aquilo que foi a
conclusão de Lênin, isto é, que a sociedade inteira deve ser radicalmente
transformada. Em
A teoria do romance
isto ainda não existia (LUKÁCS,
1999, p. 50).
Posto em outras palavras, deliberadamente contundentes: em 1915 Lukács
ignorava completamente a Lênin, e estava muito aquém do Marx de 1844. Palavras
fortes, aliás, que não podem surpreender, visto que os depoimentos lukácsianos vão
sempre nessa direção, como por exemplo, em
Pensamento vivido
, quando ao invocar
como documento o romance
Os otimistas
de Ervin Sinkó, afirma:
como era confusa a relação ideológica que os intelectuais daquela época
mantinham com o comunismo. Dizer que eu fazia parte do grupo de
pessoas que via as coisas com certa clareza revela a magnitude de tal
confusão. Não pretendo exaltar a mim mesmo, quero delinear o estado
de ânimo geral. A formação marxista, mesmo de pessoas como eu, que
tinham lido Marx, era muito limitada (LUKÁCS, 1999, p. 56).
Portanto, a contundência empregada visa muito mais à identificação crítica da
época do que do autor. Tempo, em suma, como outros do gênero, que desfavorecem
e embaraçam o acesso à lucidez; no caso, a ascensão para o pensamento marxiano
de um talento íntima e espontaneamente inclinado, sem o saber, para as teses e
resoluções desta vertente. Esta observação não é efeito de mera conjectura genérica.
Data do remoto 1906, tendo tudo a ver com o que acaba de ser afirmado, uma
ocorrência do mais forte significado para a biografia lukácsiana, que estava em seus
princípios mais recuados: seu contato - de ““influência absolutamente revolucionária
com a poesia de Endre Ady. O “solavanco interior recebido da obra de Ady (
Novos
versos
) [...] foi uma das experiências mais decisivas da minha vida”. Da qual, todavia,
naquela época eu não tinha a mínima ideia de sua importância. Apenas senti pelos
poemas de Ady um entusiasmo sem reservas. Esta impactante, ainda que “confusa
primeira impressão de 1906”, “não foi uma descoberta ao acaso, como
frequentemente acontece com os jovens”, e levou mesmo Lukács a ser o primeiro a
escrever, três ou quatro anos depois, a respeito da relação pessoal de Ady com a
revolução, que ele foi um revolucionário que considerava a revolução necessária para
sua própria realização pessoal”. Mas o “efeito perturbador” não se esgota neste
flanco, mesmo porque o revolucionarismo compunha a inquietação espiritual de
Lukács em sua mais tenra mocidade.
mais, e algo muito mais específico, nesse “solavanco interior” produzido
pelos versos de Endre Ady:
uma coisa muito importante que na época, na verdade, o compreendi e
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cuja influência decisiva sobre toda minha formação literária e até mesmo
sobre meu desenvolvimento para além da literatura agora vejo com
clareza. [...] Mas algo havia acontecido, cuja importância compreendi
mais tarde, ou seja, que no desenvolvimento alemão e não apenas em Kant,
que eu conhecia na época, mas também em Hegel (três ou quatro anos
mais tarde passei às apalpadelas de Kant para Hegel), bem como naqueles
alemães modernos que eu lia, se ocultava uma boa porção de concepção
conservadora do mundo (LUKÁCS, 1999, p. 40).
Para esta longa e penosa clarificação, aqui diretamente referida por Lukács, é
que terá contribuído o espírito poético do “eu não me deixo comandar” ou “me
oponho, mesmo que isto não adiante nada”, que traduziria o ânimo poético de E.
Ady, estado de espírito “que para mim declara Lukács sempre foi a música de
acompanhamento para a
Fenomenologia
e a
Lógica
de Hegel”. Referência e restrição
a Hegel que havia sido formulada, na conclusão de sua entrevista a
New Left
Review
(1968), em forma que amplia e clarifica a especificidade da crítica:
Recebi minhas primeiras influências políticas lendo Marx como um menino
de escola e depois, o mais importante de tudo, lendo Ady o grande
poeta húngaro. [...] Ele era um revolucionário que tinha grande entusiasmo
por Hegel, embora nunca tivesse aceitado aquele aspecto de Hegel que eu,
desde o início, também rejeitava: sua
Versöhnung mit der Wirklichkeit
sua
reconciliação com a realidade estabelecida (LUKÁCS, 1981, p. 40-41).
Como arremate deste trecho, no qual alude à produção histórica de barreiras à
lucidez, concretamente os embaraços sofridos por Lukács à altura da Primeira Guerra
Mundial, cabe então transcrever a conclusão que ele próprio oferece a respeito:
Nasceu, assim, uma mistura que não existia na literatura da época, ou seja, que
alguém, hegeliano e representante da ciência do espírito, assumisse ao mesmo
tempo uma posição de esquerda e mesmo, dentro de certos limites, revolucionária
(LUKÁCS, 1999, p. 41).
Basta, no entanto, para suscitar certa empatia pela disjunção vivida por Lukács,
recordar um esclarecimento seu, repetido em várias oportunidades, a propósito da
condenação absoluta que fazia de toda a situação da época, que reafirma seu
ferrenho antibelicismo, mas que vai para muito além deste:
O meu ponto de vista na época era mais ou menos o seguinte: “Os
exércitos alemão e austríaco talvez derrotem os russos, e os Romanoff
cairão. Tudo bem. Também pode ser que os exércitos alemão e austríaco
sejam derrotados pelo exército anglo-francês e que os Habsburgos e os
Hohenzollern caiam. Tudo bem também. Mas, então, quem nos protegeria
das democracias ocidentais?” Esta era a questão que se colocava. (LUKÁCS,
1999, p. 45).
Ou seja, “não via nada que pudesse colocar no lugar daquilo que existia
(LUKÁCS, 1999, p. 45).
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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Em verdade aqui se está em face de uma famosa tematização de Lukács sobre
si mesmo, ou melhor, sobre uma das mais referidas de suas encruzilhadas.
Duas inclinações marcantes, desde o início presentes e que se mantêm ao
longo de todo seu itinerário juvenil, que matrizam ou traspassam a elaboração
lukácsiana. Todavia, incapazes de atinar com as vias de sua efetiva encarnação,
redundam a cada esforço numa perversão de si mesmas. A tendência mais geral e de
fundo, que orienta o homem e o pensador, é constituída pelo seu “ódio cheio de
desprezo que sentia desde os tempos de infância pela vida no capitalismo” (LUKÁCS,
2003, p. 5); a outra, restrita à esfera teórica, almeja ultrapassar a mera confecção
abstrata na atividade científica. Forças de impulsão, todavia, que se esboroam pela
trajetória que são levadas a trilhar: o antiburguesismo visceral se esvai em utopismo
ético, e o antiabstrativismo morde a própria cauda e reitera o objeto de sua própria
repulsa.
No plano e na execução de
A teoria do romance
, os dois balizamentos e seus
inversos
comparecem de modo extremado, cada um pelo seu lado mais fraco
potencializa o flanco mais débil do outro: Lukács sufoca na bruma de seu
antiburguesismo impotente, e sucumbe, mais uma vez, aos ardis do abstrativismo
da abstração irrazoável, corrompida ademais pela sua transfiguração imperial -, que
se reapresenta, apesar da nutrida aversão, com a aura do portador de soluções. As
balizas, portanto, se fundem.
A fusão de tendências de espírito contraditório é justamente o diagnóstico de
Lukács a respeito de si mesmo enquanto autor de
A teoria do romance
.
É obrigatório remeter, aqui, à famosa passagem do Prefácio de 1962 ao livro
em destaque em que essa avaliação é categoricamente formulada: “Dito
sumariamente, o autor de
A teoria do romance
possuía uma concepção do mundo
voltada a uma fusão de ética ‘de esquerda’ e teoria do conhecimento (ontologia etc.)
‘de direita’”. Para, menos de duas páginas adiante, quase ao final do Prefácio, tornar
a ela sob expressão ainda mais concisa, na qual se celebrizou e difundiu: “síntese de
ética de esquerda e epistemologia de direita” (LUKÁCS, 2009, p. 17-18).
A fórmula, para Lukács, não pretende retratar um vício ou exotismo intelectual
e anêmico de ordem meramente pessoal, mas indigitar uma posição agudamente
falaciosa que, na Alemanha, foi apenas inaugurada pela
A teoria do romance
.
Equívoco grave que, em verdade, veio a se expandir bastante na produção ideológica
Ester Vaisman
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dos anos vinte, à custa não mais de Lukács, mas de outros e diversos autores. O
Prefácio explicita alguns: Bloch, Benjamin, Adorno em seus primórdios; e assinala
que o fenômeno de “uma fusão de ética de ‘esquerda’ e epistemologia de ‘direita’”,
na França, “era conhecido” e “emergiu muito antes do que na Alemanha”, vindo a ter
“hoje em Sartre o representante de extrema influência dessa corrente” (LUKÁCS,
2009, p. 17-18).
Interessa reproduzir na íntegra o comentário a respeito de Bloch, porque é o
mais completo, mas também porque este autor foi para Lukács uma verdadeira chave
mestra, na orientação de seu processo formativo. Em
Pensamento vivido
, declara o
pensador húngaro em seus derradeiros meses de vida:
Bloch exerceu uma enorme influência sobre mim, pois com seu exemplo me
convenceu de que é possível fazer filosofia à maneira tradicional. Até então,
eu estava perdido em meio ao neokantismo do meu tempo e aí encontrei
em Bloch o fenômeno de alguém que filosofava como se toda a filosofia
atual não existisse, que era possível filosofar como Aristóteles ou Hegel.
(LUKÁCS, 1999, p. 39)
Reconhecimento que não desmente, nem é contraditório com sua crítica
contundente do mesmo Bloch no Prefácio de 62, feita quase dez anos antes:
Que Ernst Bloch persevere até agora, impassível, em sua síntese de ética de
esquerda e epistemologia de direita (ver, por exemplo,
Philosophische
Grundfragen I, Zur Ontologie des Noch-Nicht-Seins
[Questões Filosóficas
Fundamentais, I, Para a ontologia do Ainda-Não-ser],
Frankfurt
, 1961)
honra seu caráter, embora não possa mitigar o anacronismo de sua postura.
teórica (LUKÁCS, 2009, p. 18-19)
No primeiro caso, Lukács mostra-se agradecido a Bloch, até o fim da vida, por
ter conseguido se desembaraçar, num momento crucial da juventude, do
gnosiologismo do começo do século. Foi, daí para frente, uma lição para toda sua
existência intelectual: a abertura da senda ontológica que, apesar de todas as
adversidades sofridas, acabou por se mostrar uma aquisição definitiva. No segundo
caso, reprova em Bloch, o que o tom de censura fraterna reforça o padrão
convencional da prática ontológica que o caracteriza; a incapacidade de romper com
procedimentos teóricos limitados e distorcidos que só podem afastar dos propósitos
configurados pela ética assumida.
Mas, do que consiste a
síntese
denúncia?
A resposta está contida, também de forma breve, no mesmo Prefácio: “uma
ética de esquerda, norteada pela revolução radical, aparece alinhada a uma exegese
tradicionalmente convencional da realidade” (LUKÁCS, 2009, p. 18).
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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O estudo da colocação é inteiramente distinto da natureza alusiva de uma mera
fórmula
expressiva: sua crítica incide sobre os dois polos da amálgama - não apenas
sobre a
síntese
de ambos e implica complexos problemáticos de ideação,
designadamente “a base filosófica de tais teorias é a atitude cambiante, tanto em
termos filosóficos quanto políticos, do anticapitalismo romântico” (LUKÁCS, 2009, p.
16).
De fato, não obstante a forma sumária, Lukács faz sua análise remontar a
pontos relativamente distantes, promovendo a inclusão de elementos diversificados
na malha das determinações.
Principia por exemplificar o momento inicial da referida linha de pensamento
com o jovem Carlyle ou em Cobbett, estágio em que “trata-se de uma verdadeira
crítica do horror e da hostilidade cultural do capitalismo nascente”, ressaltando
imediatamente a seguir que, na Alemanha, essa atitude fez-se aos poucos uma
forma de apologia do atraso político-social do império dos Hohenzollern”. E para
bem enfatizar o sentido dessa mutação radical, com toda elegância, Lukács alude,
sem o dizer, ao envolvimento germano-belicista de Thomas Mann com a Primeira
Guerra Mundial, ponderando que um livro tão importante como as
Considerações de
um apolítico
, publicado pelo romancista em 1918, superficialmente pode ser
entendido como uma obra que “segue nessa mesma linha”, mas que a evolução de
Mann nos anos 20 justifica a caracterização que ele próprio ofereceu do texto:
É uma batida em retirada em grande estilo a última e mais tardia de uma
burguesia romântica alemã -, levada a efeito com a plena consciência de
sua inutilidade [...] até mesmo com a percepção da insalubridade e
imoralidade espirituais de toda a simpatia para com o que está fadado à
morte. (LUKÁCS, 2009, p. 16)
Sem dúvida, Lukács toma emprestada a força excepcional dessas frases de
Mann para fustigar com o máximo rigor, tanto a
nostalgia romântica
, quanto, com
igual obviedade, a
miséria alemã
. Em verdade, estabelece explicitamente um
contraste entre o autor de
A teoria do romance
e o autor de
Considerações de um
apolítico
. Trata-se de uma confrontação frontal e levada ao extremo, uma vez que
toma por medida o porte espiritual de um raro gigante da literatura do século XX.
Comparação que, bem a propósito, não favorece o grande romancista; ao contrário,
enquanto no escritor de
Considerações
ainda se manifesta, para usar suas próprias
palavras: “insalubridade e imoralidade espirituais de toda a simpatia para com o que
está fadado à morte”, isto é, a nostalgia romântica pela miséria alemã, Lukács pode
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categoricamente assegurar que “no autor de
A teoria do romance
[...] não se
percebem tais estados de ânimo” (LUKÁCS, 2009, p. 16). O filósofo húngaro, com
esse inteligente volteio, mais uma vez define o romantismo, e exibe a antiguidade de
sua própria definição intelectual diante dele.
Leve-se em conta, ademais, pelo espírito e contexto da distinção lukácsiana,
que não se está simplesmente em face de uma desigualdade corriqueira entre
consciências individuais isoladas, mas que a contundente contraposição é formulada
em conexão com o discernimento de modos também contrastantes de sofrer as
heranças culturais da miséria alemã. Enquanto Mann, até a proximidade dos anos
vinte, ainda que sob a forma do “último e mais tardio combate de retirada”, está
vinculado à “sublimação e estilização ideológica” que, após a solução prussiana da
unificação, apresenta a Alemanha como “destinada a superar as contradições da
democracia moderna por uma ‘unidade superior’”, expressão mistificada de sua
incontemporaneidade (LUKÁCS, 2009, p. 16, modif.), Lukács, por outro lado, na
superioridade inquestionável de sua atitude, apresenta-se, todavia, fragilizado pela
debilidade do que fora a oposição iluminista à monarquia, entre a unificação e o fim
da I Guerra:
Se a Alemanha Guilhermina conheceu uma literatura oposicionista de
princípios, se escudou nas tradições do Iluminismo, na maioria das vezes,
sem dúvida, em seus epígonos mais rasteiros, e assim uma postura de
recusa global inclusive das valiosas tradições literárias e teóricas da
Alemanha. (LUKÁCS, 2009, p. 17)
Heranças - para cujas diferenças fundamentais não terão sido desprezíveis -, o
peso do laço germânico,
central
em Mann, e o vínculo, bem mais leve, húngaro-
periférico de importação intelectual alemão, de Lukács, que de ter favorecido e
apressado ao segundo a compreensão da estreiteza comprometida do romantismo e
do nacionalismo europeu, fazendo com que assumisse muito cedo uma postura de
inquirição estética e existencial de viés aristocratizante - a espera olímpica do
desmoronamento da desumanidade da capital -, mas de fina e diferenciada
elaboração, que marca sua juventude, em que pesem todos seus limites e
insuficiências reais e clamorosas.
Posto em termos estritamente conceituais, isso significa que a prática
lukácsiana das ciências do espírito, desde a redação de
A teoria do romance
, é
desatada de qualquer
pathos
romântico - típico ou atípico. “Sua oposição ao vazio
cultural do capitalismo não contém nenhuma simpatia pela ‘miséria alemã’, e seus
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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resíduos no presente” (LUKÁCS, 2009, p. 16). O tributo pago ao conservantismo
teórico está no próprio exercício da
Geisteswissenschaft
. Lukács é
extraordinariamente preciso no tratamento da questão, que é pedra angular para o
entendimento de todo seu itinerário pré e protomarxista. Seu trânsito de Kant a
Hegel, esclarece no Prefácio de 1962, dá-se “sem contudo alterar em nada minha
relação com os métodos das chamadas ciências do espírito” e agrega que
justificativa histórica para esse problemático caminho, pois era a alternativa para
“diante da bidimensionalidade rasteira do positivismo neokantiano ou de quantos
mais, tanto no tratamento de figuras ou correlações históricas, quanto na correta
compreensão de realidades intelectuais (lógica, estética etc.)” (LUKÁCS, 2009, p. 9).
E reforça o argumento referindo
o efeito fascinante de
Das Erlebnisund die Dichtung
[Vivência e poesia],
(Leipszig, 1905) de Dilthey, um livro que em muitos aspectos parecia ser
terra virgem. Essa terra virgem nos parecia, então, um mundo intelectual de
sínteses grandiosas, tanto no horizonte teórico quanto histórico (LUKÁCS,
2009, p. 9).
Adesão entusiástica, sem dúvida, porém acrítica, pois, “não nos dávamos conta
de quão pouco esse novo método superara definitivamente o positivismo, de quão
pouco objetivamente suas sínteses eram objetivamente fundadas” (LUKÁCS, 2009, p.
9).
Um arcabouço explicativo dessa ordem fora explicitado, quase trinta anos
antes, em
Meu caminho para Marx
. Vale, no entanto, sua transcrição por inteiro, não
por ser a prova do tempo da autodiagnose lukácsiana, mas também porque
oferece alentos para uma visão mais integral do problema e da evolução futura do
autor, particularmente no que tange à sua completa recusa do kantismo;
audácia
esta
que veio a ser, a um tempo, fator dos mais relevantes para a figuração de sua obra,
bem como o motivo inconfesso de certas iras que recolhe mais hoje do que nunca, e
que não lhe perdoam ter dado as costas à “revolução copernicana”, o que desarvora
os filosofantes de nosso tempo. Sem mais, eis as considerações que faz em 1933 a
respeito de sua remota juventude:
A tese neokantiana da imanência da consciência ajustava-se perfeitamente
à minha posição de classe na época; não a submetia a qualquer exame
crítico, mas a aceitava passivamente como ponto de partida de toda e
qualquer colocação do problema gnosiológico. Na verdade, mantinha uma
constante suspeita frente ao extremado idealismo subjetivo (tanto a da
escola neokantiana de Marburgo quanto a da teoria de Mach), uma vez que
não conseguia compreender como o problema da realidade poderia ser
definido, considerando-a simplesmente como uma categoria imanente da
consciência. Embora isso não tenha me conduzido a conclusões
Ester Vaisman
22 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
materialistas, acabou me levando muito mais a uma aproximação com
aquelas escolas filosóficas que queriam resolver este problema de forma
irracionalista e relativista e até, muitas vezes, mística (Windelband-Rickert,
Simmel, Dilthey). [...] Seguindo o exemplo de Simmel eu, de um lado,
separava o quanto possível a sociologia do fundamento econômico,
concebido de modo bastante abstrato, e, de outro lado, via na análise
sociológica apenas o estágio inicial da verdadeira e real pesquisa
científica no campo da estética. Os meus ensaios publicados entre 1907 e
1911 oscilavam entre este método e um subjetivismo místico. (LUKÁCS,
1988, p. 92-93)
Em suma, o perfil do conservantismo teórico está desenhado, o
convencionalismo cognitivo das ciências do espírito posto em evidência. Todavia, a
centralização da denúncia sobre as
Geisteswissenschaften
não equivale a simples
reiteração crítica de um mesmo ato representativo inalterado; ao inverso, é a
denúncia de uma matriz que irradia por diversificações, integrando procedimentos
compósitos pluralizados.
A variante consubstanciada em
A teoria do romance
, por sua inflexão
hegeliana, acentua diferenças e aguça contrastes, tornando ainda mais visível o alto
tributo conservador pago pelos procedimentos analíticos lukácsianos à época, como
põe em evidência a própria tensão anticonservadora na qual elabora o autor, e que
aparece, por circunstância, mas, não por acaso, como uma luta difícil e nuançada
contra o neokantismo, conduzida contraditoriamente no interior e através da
atmosfera kantiana das ciências do espírito, das quais, como assinalado, Lukács
ainda não se livrara, nem tão cedo se livrará. No Prefácio de 1962, as considerações
a respeito são transparentes. Diz seu autor:
se mencionou que o autor de
A teoria do romance
tornara-se hegeliano.
Os mais antigos e importantes representantes do método das ciências do
espírito postavam-se em solo kantiano, não livres de restos positivistas;
esse é o caso sobretudo de Dilthey. E as tentativas de superar o
racionalismo raso e positivista significavam quase sempre um passo rumo
ao irracionalismo; este é o caso de Simmel, mas também do próprio Dilthey
(LUKÁCS, 2009, p. 11).
Ao lado dessa situação, uma dupla heterodoxia; o cultor
hegeliano
das
Geisteswissenschaften
e a própria heterodoxia de seu hegelianismo:
Sem dúvida, o autor de
A teoria do romance
não era um hegeliano
exclusivista e ortodoxo. As análises de Goethe e Schiller, as concepções de
Goethe em seu período maduro (o demoníaco, por exemplo), as teorias
estéticas do jovem Friedrich Schlegel e de Solger (a ironia como meio
moderno de configuração) complementam e concretizam os contornos
hegelianos genéricos. (LUKÁCS, 2009, p. 12)
E, ao assinalar que no território da estética o resultado principal da renovação
hegeliana fora a “historicização das categorias estéticas”, argumenta muito
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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sintomaticamente:
Kantianos, como Rickert e sua escola, cavam um abismo metodológico entre
valor atemporal e a realização histórica do valor. Dilthey está longe de
apreender essa contradição tão bruscamente, embora nos esboços do
método da história da filosofia -, não além da criação de uma tipologia
meta-histórica das filosofias, que se realizam historicamente em variantes
concretas. (LUKÁCS, 2009, p. 12)
Para concluir centrando sobre aspectos decisivos, já postos aqui em evidência:
O fundamento da cosmovisão desse conservadorismo filosófico é a atitude
histórico-política conservadora dos principais representantes das ciências
do espírito, que remonta intelectualmente a Ranke e com isso se opõe
frontalmente com a evolução dialética do espírito do mundo de Hegel.
(LUKÁCS, 2009, p. 12)
III A crítica ao romantismo
É notória, ainda que mal conhecida, a crítica de Lukács ao romantismo. Todavia,
aqui, é preciso se deter um pouco mais sobre o tema, posto que não falta nem
mesmo quem queira sustentar que haja e que permaneça válida uma lição
“revolucionária” do romantismo e do messianismo, inclusive com e por meio de
Lukács, o que é um simples paradoxo, para não dizer que se trata apenas de um
mero escândalo. Seja como for, paradoxo ou escândalo, é necessário que seja
afastado energicamente, a bem de um mínimo de rigor no tratamento da obra
lukácsiana e do próprio marxismo
4
.
Lukács fala criticamente sempre de c
rítica romântica do capitalismo
, não de
romantismo revolucionário
. Fazer com que uma expressão seja tomada pela outra, ou
sugerir alguma sinonímia entre ambas, é promover, a respeito desse importante
complexo temático, o desentendimento das análises lukácsianas centrais para o
conjunto de sua obra , em outros termos, é toldar voluntária ou involuntariamente a
excludência daquelas expressões. Quando de algum modo é forçada qualquer
afinidade entre Lukács, o romantismo e seus derivados é desviada e rebaixada a
herança marxiana que ele assumiu.
4
« Si le marxisme de György Lukács, dans ses écrits des années 20, donne une place si importante à
la dimension de la subjectivité révolutionnaire, c’est sans doute parce qu’il appartenait, dans les
années précédant son adhésion au communisme, au courant romantique/révolutionnaire en Europe
centrale. Par romantisme il faut comprendre non seulement un mouvement littéraire et artistique, mais
une des principales visions du monde de la culture moderne. Le romantisme peut être défini comme
une protestation culturelle contre la civilisation capitaliste moderne, au nom de valeurs prémodernes.
Souvent passéiste ou rétrograde, il peut prendre aussi - de Jean-Jacques Rousseau aux surréalistes -
des formes critico-utopiques, ou révolutionnaires. C’est à cette sensibilité qu’appartenait le jeune
Lukács, ainsi que plusieurs de ses amis de jeunesse (Karl Mannheim, Ernst Bloch) et beaucoup d’autres
intellectuels de culture allemande, souvent d’origine juive. » (LÖWY, 2006, p. 150).
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Lukács, em certa época, foi tributário da crítica romântica ao capitalismo, não
do romantismo “revolucionário” verdadeira contradição nos termos que não
encontra lastro em sua obra. Mesmo porque sua crítica ao romantismo da qual a
síntese denunciada
não é mais do que, e apenas em certa dimensão, um pequeno
aspecto está vinculada, por contraposição, a um dos eixos fundamentais do
conjunto de toda sua investigação e de todo seu esforço intelectual, em torno do
qual se manteve empenhado por toda a vida - a história real do classicismo alemão e
sua
Aufhebung
por Marx. Por consequência, a
síntese denunciada
não é uma análise
ou frase de circunstância, não é uma fórmula “conveniente” para si, para o caso de
sua própria evolução teórica, mas um resultado aplicado a si mesmo por força e
mérito de estudos conduzidos ao longo de décadas.
A “criação” ou reconstituição de um Lukács romântico (operação esta, sim, de
natureza romântica, na acepção verdadeira e negativa do termo, tanto no sentido de
salto para trás
, como de desrazão
teórica
) integra o que foi chamado de
mitificação do jovem Lukács
e tem por orientação básica fazer a defesa de suas fases
pré e protomarxista, voltando-as contra o período culminante de sua evolução, o
platô de chegada de onde desenvolveu sua obra propriamente marxista.
É o extremar, desde a década passada, de uma tendência anterior, que
converte
História e consciência de classe
em cimo da obra lukácsiana, a partir da
qual pretensamente dar-se-ia o declínio e a decadência do autor, supostamente
subordinado às teses stalinistas. Por força da inclinação dessas linhas, a valorização
passa a alcançar as obras anteriores e, coerentemente com o diapasão dessa
analítica regressiva, é recuperado o
pathos
romântico que, também supostamente,
não traspassaria toda a fase juvenil, mas seria a pedra angular de seu significado
e valor. Assim, são altamente valorizadas, por exemplo, sólidas convergências entre
A teoria do romance e O espírito da utopia
de Bloch, assim como são sublinhadas
com euforia a influência exercida por
História e consciência de classe
sobre a Escola
de Frankfurt. Quanto mais estas correlações são identificadas com correção, tanto
mais é evidente, para infelicidade dos propósitos de tais análises, a falsidade das
teses centrais que as animam - o romantismo de Lukács e o valor revolucionário do
romantismo.
Importante esclarecimento acerca da presença de supostas teses de cunho
romântico em sua trajetória intelectual são trazidas por Vedda no prefácio à edição
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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brasileira de
Goethe e seu tempo
. Contestando fortemente a tese de um jovem
Lukács romântico, o pesquisador argentino, contra as tendências ventiladas acima,
afirma:
A crença de que o jovem Lukács era defensor do romantismo e que mais
tarde mudou de posição, após ingressar no comunismo, está difundida.
Essa versão está muito longe da verdade: rigorosamente, Lukács nunca foi
tão hostil ao romantismo como no início. O ensaio sobre Novalis é uma
dura e contundente crítica contra a filosofia romântica da vida, e
A alma e
as formas
é a obra de um pensador convencido de que o neoclassicismo
oferece a resposta mais adequada aos dilemas estéticos do início do século
XX e propõe enunciar uma dramaturgia inspirada no classicismo de Racine,
Alfieri e do contemporâneo Paul Ernst e hostil ao modelo shakespeariano,
que não apenas inspirou Lessing e o
Sturm und Drang
, mas, sobretudo, o
drama romântico.
A teoria do romance
propõe uma afinidade essencial
entre o romance (
roman
) e o romantismo (
Romantik
) para apresentar toda a
era burguesa como uma época individualista cujo caráter decadente
contrasta com a epopeia antiga (Homero) e medieval (Dante), assim como
com a nova epopeia que parece brilhar na Rússia de Dostoiévski (VEDDA,
2021, p. 21).
5
De todo modo, em oposição às interpretações sobre o tema inauguradas, em
grande medida, por M. Löwy, María Guadalupe Marando, depois de extensa pesquisa
e análise do problema junto às obras mais marcantes sobre o assunto e que
culminaram na elaboração de sua tese de doutorado, afirma existir uma “visión
matizada, compleja, dialéctica del Romanticismo que se desprende de buena parte
de los escritos lukácsianos” (MARANDO, 2020, p. 244). Ademais, questiona
firmemente certas imputações destituídas de base textual que insistem em proclamar
que “el filósofo habría rechazado en bloque el movimiento en tanto eslabón de la
serie irracionalista” (MARANDO, 2020, p. 229). Ao revés, afirma ainda a autora que
la recepción lukácsiana del Romanticismo es bastante más sinuosa y
matizada de lo que la crítica, ante todo la posterior a 1945, ha estado
dispuesta a reconocer. La continua ocupación con la corriente romántica
desde
Die Seeleund die Formen
hasta los escritos filosóficos tardíos,
pasando por hitos como
Moskauer Schriften
y el trabajo ensayístico sobre
Hölderlin, Kleist, Heine y Eichendorff en los años treinta, constituye una
advertencia suficiente contra la interpretación del simple rechazo
(MARANDO, 2020, p. 229-230).
De todo modo, nunca é demais insistir, dada a difusão de atribuições feitas a
Lukács, no mais das vezes, inteiramente destituídas de fundamento, que romantizar
Lukács obriga a sê-lo mero caudatário das tendências conservadoras e irracionalistas
5
Vedda vai mais longe ao asseverar que “Nesse contexto, podem ser consideradas as reflexões sobre
o romantismo presentes em
Goethe e seu tempo
, que não se reduzem a mero rechaço e que são mais
matizadas que aquelas que apareciam em escritos anteriores. [...] Lukács argumenta que uma das
razões da superioridade de Balzac sobre Stendhal é que este ‘rejeita conscientemente o romantismo,
desde o início’” (VEDDA, 2021, p. 23).
Ester Vaisman
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de pensamento que subvertem, distorcem e mutilam a própria história da cultura
alemã. Assim, por exemplo, interpretações de cunho irracionalista tendem a atribuir
desde o
Sturm und Drang
, de Herder, até Goethe ou ainda de Hegel e Hölderlin,
manifestações ou, no mínimo, antecipações do romantismo, velando com isso por
completo o caráter do classicismo alemão e sua cortante distinção daquele. Isso é
tanto mais relevante, se não for cometida a atrocidade de deixar de lado o fato de
que para Lukács “a ocupação ideal e estética com a grande literatura alemã, tem sido
um elemento decisivo de toda a minha vida, que principiou na mais remota
juventude e que não terminou nunca” (LUKÁCS, 1968, p. 7), e que nesta condição de
empenho investigador refutou aquelas teses, produzindo um balanço objetivamente
radical da cultura alemã.
Nesse campo, desfaz a tentativa da “história reacionária” de contrapor
asperamente o desenvolvimento cultural alemão ao “movimento histórico-universal
da Ilustração”, refutando a imputação de que “grandes ideólogos progressistas do
renascimento nacional alemão” tenham alimentado “um chauvinismo antifrancês”,
aberração a partir da qual aquela historiografia “introduz sub-repticiamente na
literatura alemã do final do século XVIII uma ideologia obscurantista hostil ao
Iluminismo (A teoria do assim chamado pré-romantismo)” (LUKÁCS, 2021, p. 38).
Mehring, recorda Lukács na obra acima citada, havia demolido a tese da
francofobia ao evidenciar, a propósito de Lessing, que a crítica deste a Corneille e
Voltaire estava ligada à luta contra a pseudocultura das pequenas cortes alemãs, e
que sua polêmica tinha por arrimo a luta “travada por Lessing não sob o
estandarte de Sófocles e Shakespeare, mas e até em primeiro lugar sob o de
Diderot” (LUKÁCS, 2021, p. 38).
A falsificação cresce e é muito mais corrosiva a respeito do
Sturm und Drang
.
A história oficial e reacionária elabora, de um lado,
contrapondo a visão de mundo histórica que surge aqui ao pretenso a-
historicismo do Iluminismo; por outro lado, parte da confrontação mecânica
entre razão e sentimento, chegando assim ao suposto irracionalismo da
literatura alemã daquela época. Esta última tese não precisa ser refutada
aqui. [...] pois o que se tornou moda designar de irracionalismo no
Iluminismo em geral é isto: uma investida na direção da dialética, uma
tentativa de suplantar a lógica formal dominante até então. [...] A essa
questão está estreitamente vinculada a do historicismo. O anti-historicismo
do Iluminismo é uma lenda inventada pela reação romântica; é pensar
em fenômenos como Voltaire ou Gibbon para perceber, sem mais, a
insustentabilidade dessa lenda. No entanto, ocorreu também nesse aspecto
uma evolução por parte do Iluminismo alemão. Porém essa evolução não
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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procede no sentido do pseudo-historicismo romântico: por exemplo, a
universalidade histórica de Herder é precursora da visão de mundo dialética
de Hegel (LUKÁCS, 2021, p. 39).
Em verdade, sustenta Lukács, “um século de falsificação histórica sistemática,
que distorceu por completo todo o período clássico da literatura alemã” (LUKÁCS,
2021, p .36); o que, no sentido de uma determinação eminentemente geral e
abstrata, esvinculado à antiga observação engelsiana de que, em cada época e
para cada problema histórico, os franceses encontraram uma solução progressista e
os alemães uma solução reacionária. Ou, mais concretamente: a questão específica
da falsificação histórica do espírito alemão está associada ao complexo particular da
miséria alemã
, e o seu infeliz desfecho prussiano-conservador, ao fato de que a
Alemanha
só muito tardiamente tomou o caminho do aburguesamento moderno, tanto
em termos econômicos e políticos quanto em termos culturais. No Ocidente,
se travavam as primeiras grandes batalhas da luta de classes da classe
trabalhadora em ascensão quando, em 1848, afloraram na Alemanha, pela
primeira vez de forma concreta, os problemas da revolução burguesa
(LUKÁCS, 2021, p. 33).
Por consequência, tal como procedeu Mehring em seu estudo sobre Lessing, a
análise da literatura alemã, dos finais do século XVIII e princípios do XIX tem que
reconhecer a circunstância decisiva de que “essa literatura é o trabalho ideológico de
preparação da revolução democrático-burguesa na Alemanha”, e com esta
constatação distinguir, “todo o período de Lessing até Heine, a partir desse ponto de
vista conseguiremos vislumbrar onde se encontram nele as tendências realmente
progressistas ou aquelas realmente reacionárias” (LUKÁCS, 2021, p. 36), não
descuidando, porém, de que
A grande Revolução Francesa, o período napoleônico, a Restauração e a
Revolução de Julho são eventos que exerceram sobre o desenvolvimento
cultural alemão uma influência quase tão profunda quanto a estrutura social
interna da Alemanha. Todo escritor alemão significativo não pisou o
chão de seu desenvolvimento trio, mas foi, ao mesmo tempo, em maior
ou menor grau, um contemporâneo elaborador e aperfeiçoador
compreensivo, e o reflexo espiritual desses eventos mundiais (LUKÁCS,
2021, p. 36-37).
É do interior dessa malha determinativa que Lukács recusa o “lugar-comum
tanto da história burguesa da literatura quanto da sociologia vulgar que Iluminismo e
Sturm und Drang
, especialmente
Werther
, encontram-se em oposição excludente”;
oposição que vem a ser “o meio ideológico mais eficaz de levantar uma muralha
chinesa entre o Iluminismo e o classicismo alemão, de rebaixar o Iluminismo em favor
das tendências reacionárias posteriores do romantismo” (LUKÁCS, 2021, p. 43-44).
Ester Vaisman
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A falsa ruptura entre o Iluminismo e o
Sturm und Drang
tem por base a
afirmação de que o
Iluminismo supostamente teria levado em conta apenas o intelecto. O
Sturm und Drang
alemão teria sido, em contraposição, uma revolta do
“sentimento”, do “caráter”, do “impulso” contra a tirania do intelecto. Essa
abstração pobre e vazia serve para glorificar as tendências irracionalistas da
decadência burguesa e soterrar toda a tradição do período revolucionário
do desenvolvimento burguês (LUKÁCS, 2021, p. 44-45).
Nesse ponto da argumentação aqui exposta, é indispensável, mais uma vez,
fazer referência à análise de Vedda (2021) sobre tão intrincado assunto, pois ele
reposiciona o problema novamente, ao se contrapor não apenas, como vimos linhas
acima, ao modo como comumente são abordadas as relações entre Lukács e o
romantismo ao longo de seu complexo itinerário intelectual, mas sobretudo ao
aventar o fato de que nos ensaios que compõem o livro
Goethe e seu tempo
, o
filósofo húngaro desenvolve considerações sobre o romantismo que “não se
reduzem a mero rechaço e que são mais matizadas que aquelas que apareciam em
escritos anteriores” (VEDDA, 2021, p. 23), o que vai ao encontro da avaliação acima
realizada por Marando. Ademais, o autor argentino apresenta linhas à frente uma
importante conclusão, ao afirmar que
no contexto examinado, a incorporação de componentes românticos é um
elemento necessário para a consolidação de uma grande arte realista;
portanto, uma das razões que justificam a superioridade de Goethe sobre
Schiller é que aquele era muito menos intransigente que este em sua
rejeição das poéticas românticas (VEDDA, 2021, p. 24).
Tal assertiva abre uma perspectiva de interpretação mais factível do aquelas
comumente ventiladas a respeito, pode ser comprovada quando Lukács coloca duas
questões com o objetivo de contra-argumentar a posição que estabelece uma
ruptura inconciliável entre o Iluminismo e o
Sturm und Drang
:
1 - “Em que consistiu a essência do famigerado ‘intelecto’ no Iluminismo?”. 2 -
“Será que eles [os iluministas] mostravam algum desprezo ou menosprezo pela vida
sentimental humana?” (LUKÁCS, 2021, p. 45).
As respostas, oferecidas mais de 80 anos (o texto em citação, sobre
Os
sofrimentos do jovem Werther
, é de 1936), rejeitam essas lendas e falsificações, que
tanto embaraçam e corrompem, até hoje e na atualidade mais do que antes , não
a realidade factual, mas lastimavelmente envolvem a própria projeção dos atos
que os imperativos do presente e de futuro colocam como necessidade dramática e
incontornável, além de prejudicar fortemente a devida compreensão dos
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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posicionamentos de Lukács acerca do romantismo.
No que tange ao ‘famigerado ‘intelecto’” do Iluminismo, a resposta é direta e
contundente, tem a força da evidência irrecusável, que a corrosão e as filosofias da
desconstrução só podem cobrir de detritos:
é uma crítica implacável da religião, da filosofia teologicamente
contaminada, das instituições do absolutismo feudal, dos mandamentos
religiosos feudais da moral etc. É fácil entender que essa luta implacável
dos iluministas se tornou ideologicamente insuportável para a burguesia
em vias de se tornar reacionária (LUKÁCS, 2021, p. 43-44).
Em suma, trata-se da produção do falso por “necessidade ideológica mais
profunda”, gerada na contraposição, esta sim, do “ódio da burguesia reacionária
contra o Iluminismo revolucionário” (LUKÁCS, 2021, p. 43-44).
E basta considerar, a respeito do pretenso desprezo do Iluminismo pela vida
afetiva, a crítica de Lessing a Corneille, como o faz Lukács, para que desmorone a
contraposição entre aquele e o
Sturm und Drang
.
O próprio motor da crítica do iluminista Lessing à dramaturgia de Corneille
reside na denúncia de que a
concepção do trágico em Corneille é inumana, de que Corneille não leva em
consideração a alma humana, a vida sentimental humana, que ele, enredado
nas convenções cortesãs e aristocráticas de seu tempo, oferece construções
sem vida e puramente intelectuais (LUKÁCS, 2021, p. 46).
Ou seja:
A grande luta teórico-literária de iluministas como Diderot e Lessing era
contra as convenções da nobreza. Eles as combatiam em toda a linha, tanto
sua frieza intelectual quanto sua antirracionalidade. Entre a luta de Lessing
contra essa frieza da
tragédie classique
e sua proclamação dos direitos do
intelecto, como na questão da religião, não subsiste nem a menor
contradição. (LUKÁCS, 2021, p. 46)
A generalização dessa análise pontual rende a conclusão de que, nos
confrontos ideológicos cruciais pelo novo - humano e social, jamais se trata (a não
ser na fantasia apologética de ideólogos reacionários) da luta entre uma qualidade
abstrata e isolada do homem contra outra qualidade isolada e abstrata (impulso
contra intelecto)”. Ou, de forma ainda mais ampla, valendo agora para a generalidade
das contradições sociais:
E essas contradições naturalmente não estão dadas de modo rígido e
definitivo na vida social mesma. Pelo contrário, elas emergem de maneira
extraordinariamente desigual, correspondendo à desigualdade do
desenvolvimento social, obtêm uma solução aparentemente satisfatória em
determinado estágio do desenvolvimento, reaparecendo de forma
intensificada em um estágio mais elevado do desenvolvimento
Ester Vaisman
30 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
subsequente. (LUKÁCS, 2021, p. 46)
Configurados os liames de realidade e extraídos deles certas tramas reflexivas,
que protegem contra a simplificação mistificadora ou a gratuidade especulativa,
tantas vezes ungida com os óleos da profundidade, sempre que é feita a “defesa” do
sentimento contra a racionalidade, pode aparecer então a verdade do
Sturm und
Drang
, em sua própria complexidade e através do melhor dos meios - suas
produções e seus autores. Para ilustrar sumariamente basta arrolar os nomes de
Goethe e de Schiller. Tomados, evidentemente, em sua mocidade, quando o
Werther
habita “no mesmo nível dos dramas juvenis francamente revolucionários de Schiller”
(LUKÁCS, 2021, p. 53); ou seja:
A juventude tanto de Goethe quanto de Schiller é o último ponto de
culminância artístico do período pré-revolucionário do Iluminismo. Tanto
sua prática de juventude quanto as teorias da arte que a acompanharam
estão apoiadas sobre os ombros do Iluminismo anglo-francês do século
XVIII. Elas formam a última síntese significativa do nero específico do
Realismo artístico do Iluminismo, do período de desenvolvimento da
burguesia anterior à Revolução Francesa. (LUKÁCS, 2021, p. 86)
De modo que o delineamento lukácsiano do
Sturm und Drang
não apenas
descobre seus vínculos estruturais com o Iluminismo, mas também sua condição de
polo extremo deste na fase pré-revolucionária. Razão pela qual o associa,
particularmente por meio de sua análise do
Werther
, ao pensamento de Rousseau,
“pois é nele que as facetas ideológicas da execução plebeia da revolução burguesa
assomam pela primeira vez de modo predominante” (LUKÁCS, 2021, p. 47).
Plebeísmo
que é caracterizado como uma “elaboração dialética incipiente das
contradições da sociedade burguesa" (LUKÁCS, 2021, p. 47), e que constitui a
“valiosa novidade trazida por Rousseau”, ou seja, “novo estágio mais elevado e mais
contraditório do Iluminismo” (LUKÁCS, 2021, p. 47). E não faz diferença alguma,
mesmo porque confirma e expõe ainda mais a extensão da falsidade de vistas da
historiografia cultural pós-revolucionária, o fato de que Rousseau seja posto por
ela, cuidando de gerar ao menos certa coerência discursiva, em contraposição total
ao Iluminismo, “querem solucionar essa questão fazendo com que Rousseau se
encontre em oposição excludente com o Iluminismo, fazendo dele um ancestral do
romantismo reacionário” (LUKÁCS, 2021, p. 44).
É pela amplitude dessa via analítica, que desvenda os enlaces entre
obra
,
particularidade nacional e universalidade de certos eventos mundiais, que Lukács
pode determinar que “A produção do jovem Goethe é uma
continuação
da linha
Ainda sobre Lukács e o romantismo
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rousseauniana” (LUKÁCS, 2021, p. 47).
Com isso, a análise lukácsiana não confere ao jovem Goethe a condição de
revolucionário, nem mesmo algo próximo da posição juvenil de Schiller, mas,
distinguindo obra de autor
, a subjetividade imediata deste de sua subjetividade
estética, realiza a apreensão de que “no sentido da vinculação íntima com os
problemas básicos da revolução burguesa, as obras do jovem Goethe significam uma
culminação revolucionária do movimento iluminista europeu”, pois “O ponto central
de
Werther
é constituído pelo grande problema do humanismo revolucionário
burguês, o problema do desenvolvimento livre e universal da personalidade humana”
(LUKÁCS, 2021, p. 48). Centralidade que alcança grandeza especial com o jovem
Goethe, na medida em que a acuidade de suas elaborações está baseada numa visão
em que “oposição entre personalidade e sociedade burguesa” é alcançada para além
do “absolutismo semifeudal de pequeno formato da Alemanha de seu tempo”, e diz
respeito à “sociedade burguesa em geral”. Ou, dito de maneira detalhada, Goethe
constata que
a sociedade burguesa, cujo evolver trouxe propriamente para o primeiro
plano com toda essa veemência o problema do desenvolvimento da
personalidade, ininterruptamente opõe obstáculos a ele. As mesmas leis,
instituições etc. que servem a tal desenvolvimento no sentido classista
estrito da burguesia, que produzem a liberdade do
laisser faire
, constituem
simultaneamente os estranguladores impiedosos da personalidade que de
fato se desenvolve. A divisão capitalista do trabalho, sobre cujo
fundamento unicamente pode se dar aquele desenvolvimento das forças
produtivas que constituem a base material da personalidade desenvolvida,
simultaneamente submete a si o homem, fragmenta sua personalidade em
uma especialização sem vida etc. (LUKÁCS, 2021, p. 49).
Em suma,
Goethe figura a vida cotidiana de seu tempo com uma compreensão tão
profunda das forças motrizes, das contradições fundamentais, que a
importância de sua crítica transcende em muito a de uma crítica das
condições em que se encontra a Alemanha atrasada. A recepção
entusiástica que Werther teve em toda a Europa mostra que as pessoas dos
países mais desenvolvidos em termos capitalistas imediatamente foram
forçadas a vivenciar o destino de Werther como:
tua res agitur
(LUKÁCS,
2021, p. 48-49).
Lukács ressalta com muito vigor que o “conteúdo literário principal de
Werther
é a luta pela realização dessa máxima, uma luta contra obstáculos externos e
internos a sua realização, precisamente a batalha pela integralidade humana, a “luta
contra obstáculos externos e internos a sua realização”, o que é literariamente
configurado pela dação de forma a personagens muito diferenciados que vivem
complexamente esses problemas, e que exprimem - o autor e seus personagens -
Ester Vaisman
32 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
uma “enérgica e fervorosa rebelião contra as regras da ética” (LUKÁCS, 2021, p.
50).
É fundamental se atentar que não se trata mais ou apenas, em contraposição à
estreiteza das regras do privilégio estamental, da demanda por “leis unificadas de
validade universal para a ação humana” (que ganham com Kant e Fichte sua
expressão filosófica mais refinada), mas da reação em face das resultantes
promovidas pela contraditoriedade da própria solução histórica superior, pois, por
mais necessária que esta seja, “o que ela produz é ao mesmo tempo um obstáculo
para o desenvolvimento da personalidade”. Ou ainda de modo mais explícito:
A ética no sentido de Kant-Fichte quer encontrar um sistema unificado de
regras, um sistema de prescrições isento de contradições para uma
sociedade movida pelo princípio básico da contradição mesma. O indivíduo
que age nessa sociedade, que forçosamente reconhece, em termos gerais,
em princípio, o sistema de regras, tem de entrar ininterruptamente em
contradição com esses princípios no caso concreto. E isso não do modo
como Kant imagina, ou seja, que os impulsos do homem, baixos,
egoístas, contradizem as elevadas máximas éticas. Pelo contrário, a
contradição se origina, com bastante frequência e nos casos exclusivamente
determinantes aqui, das melhores e mais nobres paixões dos homens.
(LUKÁCS, 2021, p. 50-51)
Isso é bem configurado concretamente no caso do
Werther
, em que
sem exceção, paixões que, em si e por si sós, não contêm nada de vil, nada
de associal ou antissocial, e leis que, em si e por si mesmas, o são
rejeitadas como absurdas e inibidoras do desenvolvimento (como é o caso
das divisões estamentais da sociedade feudal), mas que carregam em si
apenas as limitações gerais de todas as leis da sociedade burguesa
(LUKÁCS, 2021, p. 52).
Em suma, Goethe e o
Sturm und Drang
estão diante da grande e grave questão
da “interação contraditória entre paixão humana e desenvolvimento social”, ou seja,
no tempo específico de que se trata:
a geração do jovem Goethe, que experimentou profundamente essa
contradição viva, mesmo que sua dialética não a tenha compreendido
intelectualmente, arremete com furiosa paixão contra esse obstáculo ao
livre desenvolvimento da personalidade (LUKÁCS, 2021, p. 51).
Rebelião ética
que foi chamada por Friedrich Heinrich Jacobi, amigo de
juventude de Goethe, de a
lei de majestade do homem
, o selo de sua dignidade”, e
cuja formulação mais explícita, na época, pensa Lukács, é também oferecida por ele,
numa carta aberta que dirigiu a Fichte, quando diz:
Sim, eu sou o ateísta e o ateu que [...] quer mentir como a Desdêmona
moribunda mentiu, que quer mentir e enganar como Pílades ao se oferecer
por Orestes, que quer assassinar como Timoleão, violar a lei e o juramento
como Epaminondas, como Johann de Witt, decidir-se pelo suicídio como
Otão, cometer o saque do templo como Davi sim, colher espigas no
Ainda sobre Lukács e o romantismo
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022| 33
sábado, pela simples razão de estar com fome e a lei ter sido feita por
causa do homem e não o homem por causa da lei. (LUKÁCS, 2021, p. 51)
É, pois, um combate no qual a dimensão plebeia não emerge em forma política,
mas sob a intensificação trágica do
dever-ser
dos ideais humanistas,
mas como oposição entre os ideais revolucionários humanistas e a
sociedade estamental do absolutismo feudal e o filistinismo. Todo o
Werther é uma confissão ardente por aquele novo homem que surge no
decorrer da preparação para a revolução burguesa, por aquela
humanização, por aquele despertar da atividade universal do homem
produzido pelo desenvolvimento da sociedade burguesa e, ao mesmo
tempo, condenado tragicamente à ruína. A formação desse novo homem
acontece, assim, no contraste dramático ininterrupto com a sociedade
estamental e o filistinismo (LUKÁCS, 2021, p. 53).
Rebelião ética
que se vincula, no jovem Goethe, com o “caráter popular de suas
aspirações”. Sob este prisma, assinala ainda a análise lukácsiana, o grande poeta
alemão é, em sua mocidade, um efetivo continuador das tendências rousseaunianas
em oposição ao aristocratismo distinto de Voltaire, cujo legado se tornaria
importante para o Goethe posterior, bastante decepcionado e resignado” (LUKÁCS,
2021, p. 52). De sorte que, nas obras do período, é constante a contraposição entre
a nova cultura do homem e
a malformação, a esterilidade, a incultura dos estamentos superiores e
com a vida enrijecida, mesquinha e egoísta dos filisteus. E cada uma dessas
confrontações é uma indicação flamejante de que a apreensão real e viva
da vida, o tratamento vivo dos seus problemas podem ser encontrados
exclusivamente junto ao próprio povo. [...] E os elementos formativos
inseridos de modo profuso no texto (alusões à pintura, a Homero, Ossian,
Goldsmith etc.) movem-se sempre nesta direção: Homero e Ossian são para
Werther
e para o jovem Goethe grandes poetas populares, reflexos
literários e expressões da vida produtiva, que está presente única e
exclusivamente entre o povo trabalhador (LUKÁCS, 2021, p. 53).
Assim, Goethe que não é, pessoalmente, nem plebeu, nem revolucionário
político, proclama com sua obra “os ideais popular-revolucionários da revolução
burguesa”, ou seja, o que Lukács denomina de “linha cultural e literária de
Rousseau”, que tem sua melhor clarificação com a célebre consideração de Marx
sobre o jacobinismo:
maneira plebeia de acabar com os inimigos da burguesia
, com
o absolutismo, o feudalismo, e o filistinismo” (LUKÁCS, 2021, p. 52)
6
.
6
Para uma análise crítica acerca das abordagens que atrelam demasiadamente as fases da obra de
Goethe à sua personalidade e eventos que marcaram a sua biografia, estabelecendo uma relação
altamente questionável de causa e efeito entre ambas, ver: (VEDDA, 2014). Em contraposição às teses
defendidas por Vedda, pode-se identificar no livro de autoria de Walter Benjamin, intitulado
Ensaios
reunidos:
escritos sobre Goethe (2018), procedimento que busca explicar as características das obras
de Goethe a partir de sua biografia. Ademais, o mesmo Benjamin, em direção oposta àquela de
Lukács, considera que Goethe foi revolucionário na juventude e conservador na velhice.
Ester Vaisman
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Jacobino
ético
, continuador da linha estética e cultural de Rousseau, Goethe o
é, no entanto, com uma importante diferença: o “mundo exterior, com exceção da
paisagem, ainda se dissolve em estados de alma subjetivos, o jovem Goethe é, ao
mesmo tempo, herdeiro do modo de figuração objetivamente claro do mundo
exterior, do mundo da sociedade e da natureza” (LUKÁCS, 2021, p. 55). De maneira
que, por esse diapasão e por essa elevação épica da dação estética de forma,
compreende-se que o
Werther
possa ser, pela adequada fundação da subjetividade,
“o ponto culminante das tendências subjetivistas da segunda metade do século XVIII.
E esse subjetivismo não é nenhuma exterioridade no romance, mas a expressão
artística adequada da revolta humanista”. Para tanto, para que essa dimensão seja
posta em seu lugar próprio e em seu autêntico significado, “tudo o que ocorre no
mundo de
Werther
é objetivado por Goethe com uma plasticidade e uma
simplicidade inauditas, tal como nos grandes realistas”, evidenciando, assim, que foi
ao longo de toda a mocidade um discípulo do Homero, popularmente entendido
(LUKÁCS, 2021, p. 55).
É por isso mesmo pela capacidade poética de articular o épico e a
subjetividade, exigida pela matéria prima que o grande escritor quer esteticamente
dominar e reconfigurar, que o
Werther
é dos romances de amor mais importantes da
literatura universal. Exatamente porque,
como toda figuração poética realmente grande da tragédia do amor
também
Werther
oferece muito mais do que uma simples tragédia amorosa.
O jovem Goethe logra envolver organicamente nesse conflito amoroso
todos os grandes problemas da luta pelo desenvolvimento da
personalidade. A tragédia amorosa de
Werther
é uma explosão trágica de
todas as paixões que, de resto, aparecem distribuídas pela vida, de modo
particular, abstrato, mas aqui, no fogo da paixão amorosa, são fundidas em
uma só massa abrasadora e reluzente (LUKÁCS, 2021, p. 56).
De sorte que é preciso dizer, no e para o âmbito em geral do
Sturm und
Drang
e seu timbre característico, que
A revolta humanista popular em
Werther
é uma das mais importantes
manifestações revolucionárias da ideologia burguesa na fase de preparação
para a Revolução Francesa. Seu sucesso mundial é o de uma obra
revolucionária. Em
Werther
culminam as lutas do jovem Goethe pelo homem
livre e universalmente desenvolvido, aquelas tendências que ele igualmente
expressou em
Götz
, no fragmento de Prometeu, nos primeiros esboços de
Fausto etc. (LUKÁCS, 2021, p. 54).
Mas compreender com isso, e nisto reside a determinação mais concreta, que o
Werther
“não é apenas a proclamação dos ideais do humanismo revolucionário, mas
é, ao mesmo tempo, também a
figuração consumada
da contradição trágica desses
Ainda sobre Lukács e o romantismo
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022| 35
ideais” (grifo meu), ou em outras palavras: “O conflito de Werther, sua tragédia, já é a
do humanismo burguês, evidencia o antagonismo insolúvel entre o
desenvolvimento livre e universal da personalidade e a própria sociedade burguesa”
(LUKÁCS, 2021, p. 55-56).
Determinação mais concreta, que não integraliza a peculiaridade da obra e
do movimento a que pertence - ambos centrados sobre a questão crucial da
autoconstrução humana
, que atormenta (ou deveria atormentar) mais hoje do que em
sua origem, exatamente porque a revolução do capital, agora, além de sua difusão
planetária e recorrentes modernizações, conta não com o velamento neoliberal
do problema, através das “excelências” da
razão mercantil
, mas também com as
“soluções” do irracionalismo contemporâneo, além, é claro, do fracasso das
transições intentadas para o socialismo - mas, determinação mais concreta, repito,
que também, exatamente por sua concretude, acesso à compreensão do passo
subsequente do evolver literário universal:
Werther
, portanto, não é um ponto culminante da grande literatura
burguesa do século XVIII, mas simultaneamente também o primeiro grande
precursor da grande literatura realista orientada a problemas do século XIX.
Quando enxerga em Chateaubriand e seus adeptos o seguimento literário
de
Werther
, a história burguesa da literatura menoscaba de maneira
tendenciosa a importância deste. Não são os românticos reacionários, mas
os grandes figuradores do ocaso trágico dos ideais humanistas no século
XIX, Balzac e Stendhal, que dão continuidade às reais tendências de
Werther (LUKÁCS, 2021, p. 55-56).
Tudo, portanto, no esforço lukácsiano de investigação da literatura alemã, faz a
demolição da lenda reacionária que procura fazer de Goethe um inimigo do
Iluminismo, valendo-se fragmentariamente de posicionamentos seus posteriores ao
Sturm und Drang
, lendas que principiam por seu
afastamento da vida pública motivado pelo ódio à Revolução Francesa, a
lenda converte o autor em uma das grandes figuras da moderna “filosofia
da vida” de cunho irracionalista, um ancestral espiritual de Schopenhauer e
Nietzsche, e, ademais, literariamente um dos fundadores do antirrealismo
estilizante. Essa lenda histórica está o disseminada e é tão influente que
se pode observar seu efeito até mesmo em autores progressistas e
antifascistas (LUKÁCS, 2021, p. 40).
Como tivemos a oportunidade de assinalar, ao longo do percurso de Lukács,
desde suas obras de juventude até aquelas elaboradas a partir da década de 1930,
a leitura atenta desses textos permite concluir que, independentemente de ter se
voltado criticamente ao romantismo, denunciando, por exemplo, os seus vínculos
com o atraso alemão e com as tendências irracionalistas, nas análises de Lukács
Ester Vaisman
36 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
uma dupla avaliação do movimento, em que são ressaltados tanto os aspectos
negativos quanto positivos, o que pode ser comprovado em
A alma e as formas
ou
nos escritos moscovitas, como por exemplo,
Hyperion de Hölderlin
, que compõe o
livro
Goethe e seu tempo
, que acaba de ser publicado no Brasil.
Não é tarefa fácil debruçar-se sobre o caráter das análises do filósofo húngaro
a respeito do tema em pauta, assim como em diversos outros assuntos e debates
polêmicos em que se envolveu, mas parece evidente que Lukács, em seus escritos
não teve a pretensão de escrever uma nova biografia do autor alemão.
Definitivamente não era o caso. Mesmo porque, de acordo com seu intento e
procedimento analíticos, além de ser um empreendimento de grande monta, o que
de fato importava era resgatar a contribuição efetiva de Goethe, desviando-a da
sanha de críticas literárias de cunho irracionalista tão em voga nos dias de hoje
bem como das avaliações temerárias que se fazem ao arrepio de sua letra,
estabelecendo com frequência ilações destituídas de fundamento, ao atrelar, no mais
das vezes, seus escritos às suas características biográficas, sejam as de
personalidade ou mesmo a determinados posicionamentos que assumiu ao longo da
vida.
No presente artigo, não houve a pretensão de esgotar o intrincado assunto,
um dos vários que resta esclarecer devidamente na obra do filósofo húngaro.
Contudo, caso se tenha conseguido ao menos indicar que se trata de assunto que
merece a devida atenção e tratamento rigoroso, acredita-se que, ao se alertar ainda
para os equívocos que se acumularam ao longo de décadas, o presente artigo, ainda
que modesto em seus contornos, tenha cumprido seus objetivos.
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Ester Vaisman
38 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 1-38 - mar. 2022
______. Apresentação. In: LUKÁCS G.
Goethe e seu tempo
. Trad. Nélio Schneider e
Ronaldo V. Fortes. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021.
Como citar:
VAISMAN, Ester. Ainda sobre Lukács e o romantismo: algumas considerações sobre
os passos do itinerário de uma vida.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 1-38,
mar. 2022.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Ensayo y método en György Lukács*
Essay and method in György Lukács
Francisco García Chicote**
Resumen: El artículo contribuye a las discusiones
sobre la continuidad/discontinuidad en la obra de
Lukács. Complejizando la impugnación al
pensamiento sistemático desarrollada por Georg
Simmel, Lukács sugiere ya en su obra de juventud
que el género ensayístico resulta especialmente
adecuado para una crítica humanizadora de las
alienaciones modernas gracias a sus atributos
formales. La exposición recorre las reflexiones del
filósofo en torno al género y sugiere que estas
dan cuenta de una actitud intelectual preñada de
implicancias epistemológicas, éticas y estéticas
que atraviesa de una manera significativa toda su
obra.
Palabras clave: realismo; idealismo; marxismo
occidental; alienación; crítica.
Abstract: The article contributes to the debates
on the continuities and discontinuities of
Lukács’ oeuvre. In keeping with Georg Simmel’s
critique of systematic thinking, the young
Hungarian philosopher claims that, thanks to its
formal features, the essay proves to be an
especially adequate form vis-à-vis a humanizing
critique of modern alienation. The article
examines Lukács’ ideas on the genre and
suggests that these account for a general
intellectual stance full of epistemological,
ethical, and aesthetical implications that
significantly condition his whole work.
Keywords: Realism; Idealism; Western Marxism;
alienation; critique.
Cuando algo se ha hecho problemático […], la
salvación no puede venir más que de la
radicalización extrema de la misma
problematicidad, de un radical marchar hasta el
final en toda problemática.
(Lukács,
El alma y las formas
)
1. Las dos almas
En su conferencia “Un filósofo del siglo”, pronunciada en ocasión del
quincuagésimo aniversario de la muerte de Lukács, Wolfgang ller-Funk se detuvo
en el carácter discontinuo de la obra del filósofo húngaro. A los ensayos tempranos,
sumamente significativos para un sector de la intelectualidad centroeuropea y aquí
* Las líneas siguientes presentan una versión ampliada y modificada de una contribución a la jornada
“Lukács50”, organizada por la Fundación Internacional Archivo Lukács y la Universidad Eötvös Loránd
de Budapest (LANA y ELTE, por sus siglas en húngaro respectivamente) en ocasión del quincuagésimo
aniversario de la muerte del filósofo. Originalmente, estas palabras sirvieron de “oposición” a la
conferencia principal, ofrecida por Wolfgang Müller-Funk. Queremos agradecer tanto a Müller-Funk
como a Miklós Mesterházi por los comentarios y críticas que surgieron de las discusiones tanto durante
como después del evento. Cuando, en las citas, la edición referida no es en castellano, la traducción es
nuestra, así como nuestras son todas las intervenciones entre corchetes (“[…]”).
** Universidad de Buenos Aires (UBA).
E-mail
: fgchicote@gmail.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.645
Francisco García Chicote
40 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 39-57 - mar. 2022
fueron tratados
El alma y las formas, La teoría de la novela
e
Historia y conciencia de
clase
, contrapuso Müller-Funk los trabajos tardíos, captados supuestamente por un
optimismo partidario y dogmático. El “esquema de pensamiento” que subyacería a
estos escritos de vejez tendría como presupuesto “el gran relato de la larga marcha o
el largo aliento de la historia hacia el giro dialéctico, hacia el socialismo”; un esquema,
por cierto, que no carecería de explicación histórica: Lukács sería a la vez “autor” [
Täter
]
y “víctima” de la “contundente dialéctica’” de las instituciones soviéticas, ante las
cuales se habría “doblegado a más tardar desde fines de la década de 1920”. Parece
así allanado el camino a la solución de la controvertida pregunta sobre el legado de
Lukács: el suyo sería un valor histórico, un significado documental. Lukács sería un
“filósofo del siglo” porque habría intentado “leer y describir” su tiempo de diferentes
modos y porque no podríamos entender este siglo si ignorásemos su obra,
múltiplemente fragmentada” (MÜLLER-FUNK, 2021).
La propuesta de Müller-Funk está sólidamente fundada. La idea de que en el
seno del pensamiento lukácsiano moran dos almas antitéticas tiene de hecho una larga
historia. Su origen se halla en las tempranas reseñas de
Historia y conciencia de clase
,
aparecidas inmediatamente después del libro; fue objeto de desarrollos ulteriores por
parte de figuras tanto centrales como periféricas de la así llamada “Escuela de
Frankfurt” en los años veinte, treinta, cincuenta y sesenta del siglo pasado; obtuvo un
enérgico impulso en los estudios norteamericanos abocados al marxismo occidental
durante las décadas siguientes y resultaba aún efectiva luego del cambio de siglo. La
formulación simple, abstracta, de esta idea que sirve como clave de interpretación del
filósofo húngaro puede expresarse del siguiente modo: habría en la obra marxista de
Lukács dos principios opuestos; por un lado, una perspicacia sociológica inaudita que
le permitiría bucear en las profundidades de las diversas manifestaciones modernas,
de modo que, a partir la heterogeneidad aparente de estas, saldrían a superficie
conexiones reales, concretamente operantes. Dicha sagacidad intelectual se opondría
empero de una manera patentemente trágica al recurso de a priori idealistas, que le
atribuirían a cada elemento descubierto una significación establecida de antemano y
lo valorarían con arreglo a un deber ser, o bien a una filosofía de la historia. Así afirma,
por ejemplo, en 1926 Siegfried Kracauer con ocasión a los álgidos debates que suscitó
Historia y conciencia de clase
y que estuvieron significativamente teñidos por las
luchas entre facciones al interior de los Partidos Comunistas húngaro y
ruso que
Lukács habría relegado la crítica materialista de “las cosas concretas” “a favor de su
Ensayo y método en György Lukács
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 39-57 - mar. 2022 | 41
sistematización formal fijada en el idealismo” (en BLOCH 1985, p. 273)
1
. Huellas de
este tipo de lectura se dejan ver en Susan Buck-Morss (1981, pp. 72-75), cuya
contribución al estudio del complejo teoría crítica” condicionó en buena medida los
trabajos posteriores. De acuerdo con Buck-Morss, la “interpretación de Lukács del
materialismo dialéctico” tendría dos componentes”: una crítica perspicaz, negativa, de
la relación entre los modos de pensamiento burgueses y las formas de existencia
capitalistas y un concepto positivo de historia de coloraciones hegelianas, que haría
coincidir el paso del proletariado con el de la historia
2
. Todavía un cuarto de siglo más
tarde, Werner Jung (2007, pp. 88-91) lamenta que el análisis lukácsiano de las
“estructuras del mundo de la vida y el trabajo se halle contaminado, durante las
décadas de 1920 y 1930, con una herencia idealista no superada”, que subordinaría
todo a un “
télos
histórico preestablecido”.
En cuanto esta clave dualista se aplica al problema del desarrollo teórico de
Lukács esto es, en cuanto se prueba en el plano diacrónico, da lugar a la
construcción de una, permítase la provocación, “ruptura epistemológica” entre el joven
y el viejo filósofo. Según el período de la obra que quiera recuperarse, se le atribuye
al otro rasgos idealistas. Recurriendo a un juego de palabras con el título de una
voluminosa obra de los años 50 (
El asalto a la razón,
cuya traducción literal sería “La
destrucción de la razón”), Adorno (2003a, p. 243) considera en 1958 los trabajos
lukácsianos de entonces como prueba de que el filósofo, a pesar de toda su perspicacia
juvenil, habría pactado con las instituciones soviéticas y con ello habría destruido su
propia razón. Y en otro pasaje puede leerse del mismo Adorno que “el error cardinal
de todos los trabajos ensayísticos tardíos de Lukács” sería la “deducción rigurosa” de
los contenidos a partir de una teoría sistemática (ADORNO, 2003b, p. 28)
3
. Una
1
Respecto de esta interpretación de
Historia y conciencia de clase
, que Bloch le habría comunicado a
Walter Benjamin, este le escribió a Kracauer el 3 de junio de 1926: “Reci su carta a Bloch como
confirmación de nuestras nuevas convergencias y espero en este sentido escucharlo nuevamente a usted
de manera directa, especialmente si es posible acerca de sus estudios sobre Marx” (BENJAMIN, 1972,
p. 169). Sobre la posición de Lukács en las luchas de facción al interior del Partido Comunista húngaro
en el exilio, véase (MESTERHÁZI, 2015).
2
Por su parte, Martin Jay (1984, p. 115) habla de un concepto “normativo” de totalidad que estaría en
juego en
Historia y conciencia de clase,
prueba de la “incapacidad de Lukács de superar el idealismo”.
3
En carta privada a Adorno de 1959, Kracauer se expresó en la misma línea: “Este hombre [=Lukács]
personalmente nos gustaba, que dijo cosas inolvidables sobre el tiempo cronológico y Flaubert [=
La
teoría de la novela
] es un traidor de la literatura y de su pasado (o también de su posible futuro). Por
lo menos no tenía por qué haber abandonado tan completamente la paradoja de su situación en el
comunismo” (ADORNO; KRACAUER, 2008, p. 503). Leszek Kolakowski, cuya sagaz exposición del
marxismo kautskyano habría sido ciertamente imposible sin el influjo del tratamiento que Lukács hace
de las antinomias del pensamiento burgués (cf. KOLAKOWSKI, 1982, pp. 37-65), ofrece una explicación
psicológica para el “absoluto dogmatismo” del pensador húngaro: “Lukács fue, de hecho, un verdadero
Francisco García Chicote
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interpretación simétricamente opuesta, que coincidiría presuntamente con
afirmaciones y reflexiones autobiográficas del filósofo, concibe los textos escritos
durante las décadas de 1920, 1930 y 1940 como ejemplos de un “protomarxismo”
(cf. OLDRINI, 2009; INFRANCA, 2013) que eventualmente habría desembocado en
cauces correctos. La preferencia, resultante de esta interpretación, por la fase madura
así esbozada causa por momentos la impresión de que esta interpretación, ante todo
en sus manifestaciones epigonales, equipara el “camino a Marx” con un camino a la
verdad.
Aquí no nos proponemos entablar una confrontación abierta con estas
interpretaciones, por lo demás tan difundidas; para una lucha en dos frentes nos faltan
las fuerzas y, en última instancia, nadie desconocerá que el desarrollo teórico de
Lukács se halla atravesado por inflexiones insoslayables que, como destaca György
Márkus (1977, p. 97), remiten a los muy diversos contextos ideológicos e históricos
en los que le tocó vivir. Pero en lo que sigue se defenderá la tesis de que en Lukács
destaca a lo largo de su vida una actitud intelectual radicalmente adogmática que se
halla estrechamente vinculada con su concepción del ensayo como forma y que habilita
una perspectiva preñada de implicancias éticas, epistemológicas, estéticas y relativas
a la teoría del arte. La crítica “ensayística” de Lukács –al menos según la construcción
que se presenta aquí puede equipararse con aquella definición marxiana de una
“critica verdaderamente filosófica”, desarrollada en el ajuste de cuentas con la
concepción hegeliana del Estado. El Marx de 25 años atribuyó a la “crítica verdadera”
la capacidad y el deber de explicar sus objetos a partir de las propiedades inherentes,
procesuales de estos, lo que, en crasa oposición al error
dogmático
de la crítica
vulgar” –que indignada, “lucha con su objeto” contraponiéndole un deber ser, tendría
como consecuencia la redención de los objetos mismos, su reconducción en relaciones
humanamente dignas. “Esta comprensión […] consiste […] en captar la lógica peculiar
del objeto peculiar” (MARX 1982, p. 403; traducción levemente corregida). En el plano
inmediato, este tipo de aproximación teórica a los objetos sociales implica el rechazo
de todo método apriorístico, de todo sistema de pensamiento abstracto, ajeno a su
intelectual, un hombre de inmensa cultura (al contrario que la gran mayoría de los ideólogos del
estalinismo), pero que aspiró a la seguridad intelectual y no pudo soportar la incertidumbre de una
concepción escéptica o empírica. En el Partido Comunista halló lo que muchos intelectuales necesitan:
una absoluta certeza a pesar de los hechos, una oportunidad de compromiso total que acalla la crítica
y cura toda ansiedad” (KOLAKOWSKI, 1983, p. 298).
Ensayo y método en György Lukács
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 39-57 - mar. 2022 | 43
objeto; consecuentemente, significa la comprensión de que las categorías analíticas
constituyen derivaciones conscientes de la estructura objetiva misma del objeto en
cuestión.
4
Si bien de manera provisoria, se argumentará aquí que tal concepción
debería conformar el punto de partida en la cuestión acerca de la significación de
Lukács: si el filósofo húngaro aún detenta actualidad, ha de deberse ante todo a su
concepto de crítica. La exposición se divide en dos partes: por un lado, indagaremos,
a la luz de las reflexiones del joven Lukács sobre el género ensayo, ciertos rasgos
formales de sus escritos tempranos, ante todo
La teoría de la novela, Historia y
conciencia de clase
y el trabajo sobre Moses Hess. Luego, nos detendremos en dos
ensayos de la última fase de producción del filósofo: los escritos sobre
Minna von
Barnhelm
, de Gotthold E. Lessing, y sobre
Un día en la vida de Iván Denísovich,
de
Alexander Soljenitsin.
2. Radicalidad en la ensayística temprana
Difícilmente se aviene el tratamiento dogmático que se le adjudica con frecuencia
a Lukács con las reflexiones en torno al ensayo en cuanto forma que el propio filósofo
esbozó en el primer trabajo de
El alma y las formas,
aparecida en 1911. Allí, el ensayo
–o “la crítica”, “llamémosle provisionalmente como prefieras” (LUKÁCS, 1985, p. 16)
se halla concebido en estricta oposición al pensamiento científico sistemático. Lukács
sigue los pasos de Georg Simmel: para el berlinés, “el sistemático” considera tanto el
elemento singular como asimismo el todo en términos de una “cosa lista, terminada,
una forma fija sacada de formas fijas, ordenadas según un principio arquitectónico-
unitario que, por así decirlo, asigna previamente su sitio a todo elemento que quepa
concebir” (SIMMEL, 2005, p. 81). Debido a su forma abierta, al carácter
irrebasablemente provisorio y fragmentario de sus afirmaciones, a su dedicación
incondicional a lo concretamente existente y sus relaciones reales, al recurso al humor
4
Se trata esta última de una idea difundida. Remitiéndose a Hegel, Fredric Jameson expresó esta idea
en 1971 de la siguiente manera: “el pensamiento dialéctico [es] un modo en que un cierto tipo de
material se eleva a la conciencia, no solo como el objeto de nuestro pensamiento, sino también como
un conjunto de operaciones mentales propuestas por la naturaleza intrínseca de ese objeto particular”
(JAMESON, 2016, p. 249; traducción levemente modificada). Refutando el difundido prejuicio de que
operaría en Hegel un “método”, Stephen Houlgate afirmó hace unos años que “dado que el ‘método’
dialéctico no es nada más que la manera en que la categoría del ser se desarrolla en categorías
ulteriores, solo podemos entender lo que ese método ha de ser cuando llegamos a entender el curso
de dicho desarrollo. No puede haber un entendimiento
a priori
de ese método” (HOULGATE, 2006, p.
35). En la misma línea, José Chasin había advertido en la segunda mitad de la década de 1990 contra
el error de adscribirle al pensamiento marxiano una “disposición operativa
a priori
de la subjetividad,
consustanciada por un conjunto normativo de procedimientos llamados científicos” (CHASIN, 2015, p.
99).
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y la ironía, a su rechazo de todo lo cargado de destino y lo definitivo, el ensayo se
halla para Lukács en condiciones tanto de alcanzar “la meta no buscada” que por
cierto constituye la meta por antonomasia, “la vida” (LUKÁCS, 1985, p. 30), como de
desenmascarar en cuanto “conclusión barata” las “pequeñas consumaciones de la
exactitud científica” y su permanecer en “todo lo aparentemente positivo e inmediato”
(LUKÁCS, 1985, p. 37). Si bien de una manera confusa, el joven filósofo insinúa que el
ensayo podría descubrir no solo la naturaleza enajenada de ciertas objetivaciones, sino
también la conciencia alienada que de ellas se sigue. La reticencia de esta forma a
aplicar modelos epistemológicos cerrados y definitivos reclamaría un tratamiento
inmanente, radical de los objetos, un abordaje que conduciría, para Lukács, a la
redención de estos: “Cuando algo se ha hecho problemático […], la salvación no puede
venir más que de la radicalización extrema de la misma problematicidad, de un radical
marchar hasta el final en toda problemática” (LUKÁCS, 1985, p. 35). Lo singular y su
constitución peculiar constituyen el alfa y el omega del ensayo, de ahí su flexibilidad y
diversidad. Es por tanto consecuente Lukács cuando defiende la tesis de que la
actualidad crítica del ensayo no se esconde en los contenidos que en cada caso pueda
proveer, sino en la
forma
: “El ensayo es un juicio, pero lo esencial en él, lo que decide
de su valor, no es la sentencia (como en el sistema), sino el proceso mismo de juzgar”
(LUKÁCS, 1985, p. 38).
El decisivo influjo que los escritos tempranos de Lukács ejercieron sobre su
generación proviene sin lugar a dudas de la naturaleza ensayística de estos. No era
infundado el temor de Max Weber de que
La teoría de la novela
, a causa de su
“inclinación ensayística”, le cerraría a su autor el camino a la habilitación y con ello a
una vida académica (cf. LUKÁCS, 1982, p. 223)
5
. Ya en el título propuesto por Lukács
y rechazado por el editor se mostraba el carácter transgresor, provocador por
contradecir al ethos de un “trabajo sistemático”, como es debido” (LUKÁCS, 1982).
Posiblemente inspirado en Simmel, Lukács habría querido nombrar el ensayo,
originalmente concebido como introducción a un libro nunca acabado sobre
Dostoievski, “La filosofía de la novela”, lo que revelaría la intención de poner en
diálogo dos ámbitos de existencia inconciliables para las teorías sociales y
5
El 14 de agosto de 1916, Weber le escribió a Lukács: “Puesto que su repentina inclinación a
Dostoievski parece darle razón a aquella opinión [= la de Emil Lask: ‘Lukács es un ensayista nato, nunca
se quedará en el trabajo sistemático (adecuado); no debería por lo tanto conseguir la habilitación’], odié
este trabajo suyo [=
La teoría de la novela
] y lo odio aún” (en LUKÁCS, 1982, p. 372).
Ensayo y método en György Lukács
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humanísticas dominantes por entonces: el ámbito del sentido –del “alma”, los
“valores”, las “formas”– y el de su carencia absoluta, la mera facticidad de la
cotidianidad.
6
Al subsumir de manera abiertamente problemática la abarcadora
“carencia de patria” de la modernidad en sus diferentes categorías formales (héroe,
acción, ambiente etc.), el género novela tendría la capacidad de introducir “la fragilidad
quebradiza de la estructura del mundo en el mundo de las formas” (LUKÁCS, 1985, p.
306). Así, el sentido de los elementos de la cotidianidad no es postulado con arreglo
a un deber ser que se les contraponga o un esquema arquitectónico-sistemático lo
que necesariamente conduciría al “estrechamiento” y “disipación” de las cosas mismas
(LUKÁCS, 1985), sino que es desarrollado a partir de la propia lógica de tales
elementos. J. R. Bernstein, para quien la problematización formal que la novela logra
de la alienación moderna constituye una toma de posición en última instancia “no
estética, sino ética” (BERNSTEIN, 1984, p. 76), formula la “metafísica” de este género
de la siguiente manera: “la novela es
inmanentemente
crítica del mundo social creado
por el capital, y teóricamente antinómica (problemática). La novela tanto expresa como
es
la crisis de la cultura del capital” (BERNSTEIN, 1984, p. 84; el énfasis en
“inmanentemente” es nuestro)
7
.
Salta a la vista el paralelismo entre el “principio de estilización” de la novela y
ethos del ensayo: ni en el uno ni en la otra, el rechazo a un deber ser prescripto, a una
arquitectónica formal conduce a una glorificación de lo “meramente subjetivo”, cuyos
trazos esenciales, para citar nuevamente a Simmel, son “aislamiento y contingencia
interior” (SIMMEL, 2005, p. 71). Al igual que la novela, el ensayo no configura ninguna
experiencia arbitrariamente subjetivada, se prueba más bien como una herramienta
6
Véase la entrevista que Kristóf Nyíri le hizo a Arnold Hauser en 1975: “
La teoría de la novela,
que en
varios aspectos figura entre los escritos más logrados de Lukács, debería haberse titulado
La filosofía
de la novela
. Pero [Max] Dessoir, que en aquel entonces publicaba la
Zeitschrift der Aesthetik
[Revista
de estética], donde debía salir el trabajo, tuvo ciertos reparos acerca de la vinculación de la palabra
‘filosofía’ con cosas como ‘novela’ y conceptos parecidos. Entonces sugerí a Lukács poner el título más
acorde con el contenido de
La teoría de la novela
. En seguida aceptó la sugerencia” (en HAUSER, 1979,
p. 44). Acerca del carácter “espiritualista”, idealista-subjetivo y “trágico” de la incipiente sociología
centroeuropea, véase el trabajo de (LENK, 1964).
7
Una posición similar es defendida por Mesterházi cuando designa al género novela como “musa
paraolímpica”: “El carácter problemático de la novela, el hecho de que uno arribe a un punto al leer
La
teoría de la novela
en el que es dominado por la sugestión de que las discusiones solo pueden concluir
en que es inimaginable que sea arte algo que por obra de su
principium stilisationis
vadea tan
profundamente en un mundo enemigo del arte, es solamente el otro lado de aquello de que la novela
es un detective en búsqueda de nosotros, un detective que, como alguien lo dijo [=Ernst Bloch], debe
ser
homogéneo
con el mundo inferior en el que busca nuestras huellas (MESTERHÁZI, 2019, p. 15;
énfasis nuestro).
Francisco García Chicote
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adecuada frente al mundo objetivo alienado, precisamente porque conforma el factor
elevado a conciencia de este mismo mundo. “La suya”, afirma Adorno en 1958 con
relación a la forma ensayística, “no es la vaga apertura del sentimiento y el estado de
ánimo [
Stimmung
], sino la que debe el contorno a su contenido” (ADORNO, 2003b, p.
27). Y remitiéndose al concepto de “segunda naturaleza”, decisivo para la teoría
lukácsiana de la novela, considera que el “tema propiamente dicho” del ensayo es “la
relación entre la naturaleza y la cultura”: “No en vano se sumerge […] en los fenómenos
culturales como en una segunda naturaleza, una segunda inmediatez, a fin de superar
la ilusión de esta a fuerza de tesón” (ADORNO, 2003b, p. 29-30).
Insoslayables son las huellas que los escritos tempranos de Lukács dejaron en
sus lectores contemporáneos de lengua alemana. El complejo intelectual que suele
designarse con las imprecisas etiquetas de “marxismo occidental” o “teoría crítica”
debe muchas de sus credenciales a
La teoría de la novela
e
Historia y conciencia de
clase
. En lo que concierne a la primera, esta valió como un “libro de culto” para Leo
Löwenthal, Max Horkheimer y los ya mencionados Adorno, Benjamin, Bloch y
Kracauer.
8
Tómense al pasar dos conceptos nodales desarrollados allí, que
condicionaron en buena medida numerosas argumentaciones en estos pensadores. Por
un lado, el “desamparo trascendental”, como posición subjetiva característica en un
mundo sin “conexión”, es decir en el mundo de relaciones burguesas. El concepto
resultó particularmente fecundo en la obra de Kracauer, no solo en su crítica ideológica
de los sectores medios durante el período de entreguerras, sino también en su
construcción epistemológica de la extraterritorialidad”, a menudo malentendida como
precursora de concepciones posmodernistas. El abordaje crítico de relaciones
alienadas, en fragmentadas y que se mueven autónomamente exige para Kracauer
un sujeto que de algún modo sea homogéneo con dichas relaciones: un
“extraterritorial”.
9
Por otro lado, la categoría, estrechamente vinculada con el
8
“Era para todos nosotros un libro de culto, que prácticamente sabíamos de memoria”, así se expre
Löwenthal en 1990 (LÖWENTHAL; KRACAUER, 2003, p. 271).
9
Amparándose en una lectura simplificada del concepto de “extraterritorialidad”, la recepción americana
y alemana de la obra de Kracauer suele ver en el autor un posmoderno
avant la lettre
”, lo que
necesariamente conduce a desestimar e incluso a menudo negar la importancia de Lukács, Marx y
Hegel en sus escritos (cf. LDER-BACH, 1998). Por el contrario, para Löwenthal, el reparo de Kracauer
de defender posiciones teóricas definitivas esto es, el principio por antonomasia de la crítica
“extraterritorial”– se halla estrechamente vinculado con la concepción lukácsiana de la modernidad:
“Pero no se trata de un compromiso absoluto, pues Kracauer quiso evitar la naturaleza definitiva del
compromiso absoluto. Se caracterizaba a sí mismo en un cierto sentido como desamparado. Demos en
este punto un pequeño salto atrás en la historia: en octubre de 1923, en ocasión de la boda con mi
primera mujer, recibí una carta de felicitaciones dentro de un sobre decorado por Kracauer y Adorno
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desamparo, de la “segunda naturaleza”: esta refiere a la constelación osificada de las
objetivaciones modernas y conforma el fundamento de las teorías de la alienación,
desarrolladas más tarde. Aquí también cítese solo un ejemplo: el concepto de segunda
naturaleza ha servido a Adorno de diversas maneras, desempeña por caso un rol
considerable en su crítica de Auschwitz de 1966 (cf. ADORNO, 2005, p. 325ss.).
Otra conmoción intelectual fue
Historia y conciencia de clase
y el análisis, allí
desarrollado, del fetichismo de la mercancía en cuanto forma de existencia que
trasciende ampliamente los límites de la esfera económica y articula una totalidad
social alienada. Por más teñido de trazos mesiánico-optimistas que resulte, el intento
por parte de Lukács de captar la emergencia y el despliegue de una conciencia no
alienada
a partir del proceso de enajenación mismo
significó un enorme progreso
intelectual con respecto al entendimiento de las relaciones capitalistas y contribuyó a
una serie de nuevas interpretaciones resáltese: contradictorias al dogma del Partido
de la obra de Marx, que aún hoy resultan actuales, ante todo la concepción del capital
como sujeto automático de la reproducción del ser social.
10
Tales impulsos teóricos en
la obra de Lukács surgen de una combinatoria peculiar de teorías, conceptos y
corrientes intelectuales generales, es decir de una constelación cuya lógica no proviene
de ningún sistema preestablecido, sino de la peculiaridad del objeto a cuyo servicio se
pone. Los escritos más importantes de la colección –aquellos redactados “en una
época de involuntario ocio”, esto es, durante la prohibición de trabajo dictada contra
Lukács en el verano de 1922 por el Comité Ejecutivo de la Internacional Comunista
11
con el remitente: Cuartel Principal General de la Oficina de Beneficencia para Desamparados
Trascendentales, y además con letra de Teddie [=Adorno]: ‘Kracauer y Wiesengrund. Dirección General
de la Oficina de Cuidado para Desamparados Trascendentales’. Naturalmente, era una referencia al
‘desamparado trascendental’ de
La teoría de la novela
de Lukács. Pero ‘desamparado trascendental’
siguió siendo una adecuada categoría para Kracauer” (LÖWENTHAL; KRACAUER, 2003, p. 275-276).
10
Según Michael Heinrich (2017, p. 14),
Historia y conciencia de clase
constituye uno de los precursores
destacados en la discusión sobre la teoría marxiana del valor. Acerca de las luces y sombras del
“optimismo mesiánico” en el libro, véase el trabajo de Tamás Krausz y Mesterházi, en particular su
tratamiento del idealismo de Lukács como una “brillante limitación” históricamente condicionada:
“Lukács no estaba solo en ‘mezclar’ el desarrollo de la conciencia de clase proletaria y la realización de
la identidad sujeto-objeto […] porque tal abordaje provenía de la actitud mesiánica del período.
No
estamos hablando aquí de ningún error lógico o conceptual, sino de las brillantes limitaciones del
período
. Después de todo, no puede negarse que el ‘emocionalismo mesiánico’ del período fue un
terreno fértil para el resurgimiento de aspectos críticos, humanistas y no especializados del pensamiento
marxiano, esto es, aquellos aspectos que se encontraban en declive en la tradición marxista. La
disminución de esta expectativa y esta perspectiva condujo al hecho de que no solo los bolcheviques,
sino también el propio Lukács comenzara a sentir que
Historia y conciencia de clase
ya no era actual.
La teoría fue confrontada con un nuevo problema […], el de la situación ‘postrevolucionaria’” (KRAUSZ;
MESTERHÁZI, 1993, p. 162, nuestro énfasis).
11
Cf. (LUKÁCS, 1969, p. XLIII). Para esta prohibición y las intrigas vinculadas con ella de la década de
1920 véase Mesterházi (2015).
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“La cosificación y la conciencia del proletariado” y “Observaciones de método acerca
del problema de la organización”, articulan de manera inaudita una noción de
cosificación de tinte simmeliano, una concepción de la personalidad que va mucho más
allá de Dilthey y desemboca en Goethe, los tipos ideales de Max Weber, un concepto
de la forma mercancía inspirado en Marx, el pensamiento estético de la filosofía clásica
alemana y las categorías hegelianas de subsunción y mediación… todos estos
fragmentos teóricos, arrancados de su conexión original, se hallan allí
refuncionalizados con miras a la captación de la peculiaridad de la relación sujeto-
objeto en el capitalismo y su superación. La construcción conceptual de estos escritos
puede graficarse con la imagen que Adorno ofrece para el modo general con que la
forma ensayo usa los conceptos. Lukács se comporta como alguien, que en un país
extranjero se ve obligado a hablar la lengua de este en lugar de ir acumulando sus
elementos como se enseña en la escuela. Leerá sin diccionario” (ADORNO, 2003b, p.
23). Resulta propia de esta manera de aprender su distendida y despreocupada
exposición al error, al que la norma del pensamiento establecido teme como a la
muerte” (ADORNO, 2003b). No debería pues sorprender si Lukács comienza su
Derrotismo y dialéctica
–es decir, la “defensa”, escrita entre 1925 y 1926 pero nunca
publicada en vida, de
Historia y conciencia de clase
con la siguiente observación:
Si hubiera habido una discusión que no dejara ninguna piedra sobre la otra
al interior de mi libro, pero que implicara un progreso en este sentido, yo me
habría alegrado en silencio por este progreso, y no habría defendido ni una
sola afirmación de mi libro. Mis críticos se mueven, empero, en la dirección.
opuesta (LUKÁCS, 2015b, p. 17)
Lukács parece un extranjero, un permítasenos decirlo con las palabras de
Simmel “por esencia movible”, que “no se liga orgánicamente […] a la fijeza del
parentesco, de la localidad, de la profesión” (SIMMEL, 2014, p. 655)… ni siquiera en
sus propios escritos se siente en casa. Ningún modelo epistemológico fijo es
perseguido, se trata más bien de una actitud osada, llena de riesgos, que toma su
fuerza de la carencia de patria del ensayo en cuanto género. Para un procedimiento
tal no hay un camino prescripto, su consigna parece ser más bien, como el viejo Lukács
una vez sugirió,
Je prends mon bien je le trouve
”, tomo mi bien donde lo encuentro
(cf. LUKÁCS, 1974, p. 36), y lo que es encontrado en el camino es la meta no buscada,
que se prueba empero mucho más rica y mucho más preñada de responsabilidades
que lo fue ambicionado al principio.
El rechazo, por parte de Lukács, de toda perspectiva propia de una filosofía
del futuro se halla en consonancia con esta actitud ensayística y es, al menos desde la
Ensayo y método en György Lukács
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década de 1920,
continuo
y
explícito.
Ya en la conferencia “Vieja y nueva cultura”,
redactada en la víspera de la declaración de la República de los Consejos, el futuro
comisario consideró ridículo” todo “intento de previsión” respecto de las relaciones
sociales venideras (LUKÁCS, 1973, p. 86). Y en el rico análisis del neohegelianismo
radical, que el filósofo publicó con el título de “Moses Hess y los problemas de la
dialéctica idealista” en 1926, los rasgos de épocas históricas construidos
apriorísticamente” son despreciadas en tanto constituyen “diferenciaciones
dentro del
concepto
, que luego son aplicadas con suma violencia a la realidad histórica”
(LUKÁCS, 2005, p. 186). Las contradicciones, que resultan de toda filosofía del futuro,
entre lo abstractamente pensado y lo que concretamente es propician para Lukács no
solo un enfoque pasivo y contemplativo, sino también una actitud llena de
compromisos e incluso
reaccionaria
:
[T]odo utopismo abstracto, precisamente en la medida en que es
abstractamente utópico, tiene que hacerle más concesiones a la empiria
superficial que un realismo verdaderamente dialéctico: tiene que absolutizar
formas transitorias del presente, tiene que fijar la evolución en tales
momentos del presente, tiene que volverse reaccionario. (LUKÁCS, 2005,
p.182)
La implicancia política del enfoque epistemológico que Lukács le atribuye en este
ensayo a un “realismo dialéctico” se asemeja a la radicalidad que Adorno le arroga al
ensayo en cuanto género treinta años más tarde: este sería “radical en el no
radicalismo, en la abstención de toda reducción a un principio, en la acentuación de lo
parcial frente a lo total, en fragmentario” (ADORNO, 2003b, p. 19). Condice con el
punto de vista del ente concreto, que Lukács reclama para una verdadera filosofía, la
identificación, insinuada en el ensayo sobre Hess, de la crítica auténtica con la linterna
de Diógenes, que hurga “en la pila de bosta de mentiras que constituyen la religión y
la política, para descubrir todavía allí, de ser posible, algunos objetos aprovechables”
(LUKÁCS, 2005, p. 191)
12
. Lukács vuelve sobre esta cuestión en los años sesenta, pero
ahora en el marco de su teoría ontológica del ser social. Señala allí en qué medida
todo enfoque abstractamente utópico supone una “eliminación total” en el
pensamiento “del ser humano individual realmente vivo” y, siguiendo a Marx, afirma
12
En este punto simplemente menciónese que Michael Löwy arriba a una conclusión antitética. De
acuerdo con Löwy, la argumentación en “Moses Hess y los problemas de la dialéctica idealista” esconde
una supuesta justificación de la opresión soviética: “Luego de una fase utópica-revolucionaria que duró
de 1919 a 1921 y un breve pero monumental clímax de realismo revolucionario desde 1922 a 1924,
Lukács se aproximó desde 1926 al realismo puro y simple y, en consecuencia, en un plano político a la
Realpolitik
no revolucionaria de Stalin. Su ‘Moses Hess’ de 1926 tuvo implicancias de largo alcance:
proveyó la base metodológica para su apoyo al ‘Termidor’ soviético” (LÖWY, 1979, p. 196).
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que precisamente una evasión crítica del utopismo abstracto posibilitaría la detección
de elementos concretamente existentes en los cuales el camino a la superación de las
alienaciones estaría ya latente (LUKÁCS, 2013, pp. 65-6)
13
.
3. Lessing y Soljenitsin en el último Lukács
Esta suerte de crítica pervive inequívoca y activamente en el último Lukács. Se
muestra por ejemplo en dos trabajos de la década de 1960 que han llamado poca
atención, en particular porque conforman una suerte de textura contrapuntística con
los escritos de juventud que hemos comentados arriba. Nos referimos al ensayo sobre
el
Minna von Barnhelm
de Gotthold Ephraim Lessing, de 1963, y al que trata sobre
Un
día en la vida de Iván Denísovich,
de Alexander Soljenitsin, de 1964.
Destaca ante todo un rasgo común. Lukács enfatiza en ambos casos que las
obras tematizan explícitamente el carácter transicional de sus períodos, es decir, su
carácter de “punto medio”: ciertas estructuras, relaciones y modos de comprensión
sociales ya no existen o ya no resultan eficaces y las formaciones venideras solo
pueden ser esbozadas como posibilidad, como latencia. Contradice los muchos
prejuicios que le atribuyen a Lukács una concepción teleológica, cerrada y con ello
autoritaria del proceso histórico este interés por tiempos ambiguos, en los que el
presente es comprendido como un campo de fuerzas inestable, preñado de pasado y
posibilidades de futuro. En este punto, Lukács parece estar siguiendo sus propios
pensamientos, desarrollados en escritos tempranos e inequívocamente inspirados en
Simmel, acerca de la modernidad como movilidad incesante. Ya en 1918 había
descripto el presente como una época de “distensión” del estado de las cosas, como
un tiempo de crisis, en el que el curso de la realidad pierde la “direccionalidad unívoca”
que presenta en momentos “entumecidos”. El moderno es un tiempo en el que “parece
como si uno estuviese colocado nuevamente frente a una elección, como si uno debiera
nuevamente decidir acerca de si ha de permanecer en el camino una vez tomado de
nuestra realidad o si pisa un sendero que, de acuerdo con su esencia, le es ajeno a
uno” (LUKÁCS, 2020, p. 222). Y en otro contexto, en el que Lukács se ocupa de la
contribución teórica de un Simmel recientemente fallecido, se insinúa que estos
períodos de transición reclaman, por obra de la expresa corrosión de las formas
13
Tal exploración daría lugar a la “perspectiva […] de formar un representante, un órgano de la
genericidad ya no muda”, una perspectiva que consecuentemente no sería “un afecto subjetivo del tipo
de la esperanza, sino el reflejo consciente y la ampliación del propio desarrollo objetivamente
económico” (LUKÁCS, 2018b, p. 296).
Ensayo y método en György Lukács
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espirituales y materiales que en ellos se encuentran y ya se muestran como obsoletas,
una filosofía al servicio de lo concretamente vivo, de lo latentemente posible, una
filosofía que no tendría “centro” alguno, que solamente sería ‘experimento’ y ninguna
conclusión”, cuya trabazón “laberíntica” proveería una formulación más adecuada que
la proveniente del “eterno a priori” del sistema, “que violenta la plétora de la vida”
(LUKÁCS, 2018a, p. 634-637)
14
.
El propio Lessing encarnaría un momento en tensión de la Ilustración: en su
obra, la “estrechez y la timidez” de los primeros impulsos ilustrados alemanes están
superadas, pero la clara perspectiva aún no se ha “turbado” por causa de la
contradictoriedad interna del reino de la razón” (LUKÁCS, 1968, p. 29). Su
Minna von
Barnhelm
configuraría a su vez una situación crítica en la que dos amantes
“desamparados” ansían una vida digna. No hay, sin embargo, camino claro que
conduzca a ella, pues los sistemas morales de los que los personajes disponen una
incondicional obediencia “de cadáver” a las autoridades
versus
un desenfrenado
aventurerismo epicúreo se hallan en conflicto el uno con el otro y resultan ambos
abstractos, obsoletos y ajenos a la vida. Los amantes se ven entonces forzados a librar
una batalla “ética” en dos frentes contra estos antitéticos principios y mandamientos,
es decir una lucha que les exige una intensificación, cimentada en la praxis, de la auto-
reflexividad y una movilización consciente y coordinada de sus diferentes capacidades
individuales independientemente de si tales intensificación y movilización conducen
a una superación de la alienación o, por el contrario, a la emergencia de nuevas y más
complejas enajenaciones, o a una recaída en viejas etc. . Así se configura, para Lukács,
la superación ética de la moral en la comedia de Lessing: “Mientras que en las épocas
de dominio único y absoluto de un sistema moral parece cosa obvia el seguir sus
mandamientos”, cuando “los seres humanos se ven puestos en la alternativa entre dos
sistemas en pugna, tienen que arbitrar una decisión y están obligados y dispuestos a
obtener de ella todas las consecuencias. […] De este modo nace el comportamiento
ético de los conflictos entre deberes morales (LUKÁCS, 1968, p. 33)
15
.
En la novela corta de Soljenitsin se trataría de los intentos de superación del
14
Este no es el lugar para indagar en detalle las dimensiones del concepto de transición en Lukács.
Pero señálese como prueba de que tal concepto opera de manera significativa a lo largo de su obra su
presencia en los escritos sobre literatura de la década de 1930, por ejemplo en las reflexiones sobre la
sátira, de 1932, y en el ensayo sobre la novela como epopeya burguesa, de 1934.
15
Oldrini (2010) ha mostrado en qué medida este ensayo constituye un impulso temprano para el
proyecto, apenas esbozado, de la
Ética
de Lukács.
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período estaliniano, apenas incipientes, sobrios y acompañados de muchas
dificultades. El escritor ruso, en cuya obra Lukács divisa un posible renacimiento de
la literatura rusa por entonces reducida a mera manipulación, habría logrado, a partir
de la configuración de la vida en el Gulag, dar con un símbolo de la cotidianidad en la
era estaliniana. Aquí también el presente es concebido como un campo de fuerzas
preñado de efectos recíprocos en el que ninguna dirección establecida de antemano
resulta útil. Las figuras heroicas, que nutren su propia conciencia con una resistencia
marmórea, cimentada en principios preestablecidos, a la degradación, avanzan
inexorablemente a la ruina. Para conservar la vida en el Gulag, cada decisión ha de
descansar más bien sobre una investigación lo más imparcial y objetiva posible de los
medios disponibles. Por ello remarca Lukács la importancia de la realidad en
Soljenitsin, es decir de
los seres humanos concretos y las cosas concretas
: “Cada
detalle va cargado con la alternativa morir-seguir-viviendo; cada objeto puede
desencadenar destinos salvadores o catastróficos” (LUKÁCS, 1974, p. 23). Este
permanecer en el mundo cotidiano, este aferrarse incondicional al análisis de la
estructura objetiva de las cosas que rodean a los seres humanos constituiría en
Soljenitsin una por cierto extremadamente agudizada prueba de que el “hacia
dónde” y el “para qué” se hallan siembre abiertos y como continuo experimento. El
ahora viejo filósofo sigue siendo fiel a sus pensamientos de juventud: “[T]odo juicio
más ambicioso sobre el estilo del período que se acerca, todo juicio que intente
anticipar el futuro”, dice en este ensayo, “será teóricamente vacía escolástica y
artísticamente una chapucería” (LUKÁCS, 1974, p. 34).
Ambos ensayos se remiten a los escritos tempranos, si bien de un modo implícito.
La cuestión central es siempre la de la alienación y su superación,
16
y Lukács se sirve
para ello de una categoría de la mediación que fue formulada programáticamente ya
en la fase de
Historia y conciencia de clase
. El rebasamiento de la vida degradada,
escribe Lukács en 1923, no es nada que se introduzca desde fuera (subjetivamente)
entre los objetos, ni un juicio de valor o un deber-ser que se contrapusiera a su ser
correspondiente,
sino que es la manifestación de la estructura cósica, objetiva y propia
de esos objetos mismos
(LUKÁCS, 1969, p. 180)
.
Pero también en otros sentidos se
16
Es indiferente en este punto con qué término se coloca el problema. Por ejemplo, el “único
pensamiento” de Lukács sería para Márkus la cuestión de la posibilidad de una
cultura.
“La cultura fue
el ‘único pensamiento’ de la vida de Lukács […]. La cuestión de la cultura fue siempre idéntica para
Lukács con la cuestión de la
vida
, o, para decirlo en sus propios términos, con ‘el sentido inmanente en
la vida’” (MÁRKUS, 1977, p. 97).
Ensayo y método en György Lukács
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vinculan estos escritos con los ensayos de las décadas de 1910 y 1920. La
interpretación lukácsiana de
Minna von Barnhelm
vale como una auténtica revisión,
incluso una inversión de las premisas de varios pasajes de
El alma y las formas
,
especialmente aquellos presupuestos sobre los que se construye el concepto allí
desarrollado de tragedia. En el ensayo de 1963, Paul Ernst el dramaturgo trágico
glorificado por Lukács en 1911 es refutado sin reparos, y se afirma que en Lessing
la comedia alcanza un potencial crítico más elevado que la tragedia gracias a su
flexibilidad y movilidad: el drama del ilustrado rebasaría las tendencias osificadoras y
las concepciones morales falsas que derivan de ellas y que encuentran en la tragedia
una expresión legitimadora. Superaría tales alienaciones al
no permitir que ninguna
tesis, ninguna formulación se fije y se complete
:
Como la composición de la entera comedia tiende a superar (en el triple
sentido hegeliano), mediante una movida oscilación, las falsas concepciones
moralizadoras, las tendencias de la moralidad estoica a la rigidez, en nombre
de una ética auténticamente humana, no es posible que ninguna formulación
intelectual pueda fijarse definitivamente a ese nivel de los conceptos,
terminada y perfecta. Cada una de ellas se sumerge en las corrientes de
contraefectos humanos y éticos. (LUKÁCS, 1968, p. 45-46)
La forma móvil, en extremo dinámica de la comedia se aproximaría a la estructura
fluida, siempre cambiante de los cuentos de hadas (LUKÁCS, 1968), el género que
Lukács consideró en su juventud como alternativa a la tragedia y con ello como
expresión de la posibilidad de una vida dichosa.
17
Pero la comedia en Lessing lograría
la configuración de una atmósfera llena de oxígeno no por obra de la magia y la evasión
en la maravilla, sino gracias al permanecer en la empiria y al incansable y riesgoso
trabajo con las cosas que en ella existen de manera concreta (LUKÁCS, 1968, p. 49).
Trazos propios de los cuentos de hadas pueden encontrarse también en el
ensayo sobre Soljenitsin: uno se tropieza aquí y allá con insinuaciones sorprendentes,
emergen invitaciones a un modo de pensar transgresor sin otra limitación que el
respeto a los objetos concretos. Piénsese por ejemplo en la referencia positiva a el
escritor soviético antiestalinista Victor Nekrasov, o la afirmación, parcialmente irónica
y que funciona en todo el texto como un
basso ostinato
, de que las mejores
manifestaciones del realismo socialista serían las de la década de 1920, esto es, antes
de que le asignara al concepto un contenido normativo, incluso un nombre. O piénsese
17
Véase por ejemplo el fragmento escrito hacia 1910 “La estética del ‘romance’. Tentativa para una
fundamentación metafísica del drama no trágico”, o la versión más breve, publicada al año siguiente,
“El problema del drama no trágico”. Allí, la forma dramática que supera a la tragedia se concibe como
“una aproximación […] al cuento maravilloso” (LUKÁCS, 2015a, p. 131).
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en los elementos que conforman una textura contrapuntística con los escritos
tempranos. Destaca por un lado el recurso de su viejo ahora empero con una nueva
formulación concepto de segunda naturaleza: la novela corta lograría una
representación de las instancias sociales de la era estaliniana que descubriría el
carácter fetichista de estas. Por otro lado, se trata nuevamente de una reflexión
filosófica sobre las posibilidades expresivas de un género épico, esta vez la novela
corta.
18
Lukács propone la tesis en extremo provocadora de que la novela corta en
cuanto género estaría en condiciones de configurar literariamente un mundo histórico
al que la épica grande la novela
ya no o aún no
puede darle forma. Las reflexiones
sobre este género no conducen empero a ninguna definición normativa, dogmática.
Por el contrario: se muestra en qué medida la significación de
Un día en la vida de Iván
Denísovich
radica precisamente en que se desvía de la forma tradicional de la novela
corta al prescindir del rasgo distintivo del género. Nada especial sucede en el relato,
no hay ningún “suceso inaudito” (LUKÁCS, 1974, p. 16). Toda obra de arte
significativa, creía Lukács, a la vez cumple y amplía las leyes de su género (cf. LUKÁCS,
1966, p. 10), y este transgredir no obedece ninguna arbitrariedad subjetivista, sino
exclusivamente la lógica peculiar del objeto peculiar.
4. Observaciones provisorias sobre el problema de la actualidad
Las síntesis fáciles levantan sospecha en la mente exploratoria. Una toma de
posición acerca de si Lukács debería verse como un documento filosófico del pasado
o como un pensador lleno de actualidad requiere un análisis profundo de una obra
múltiplemente diversa. De manera provisoria puede empero decirse: Lukács fue,
naturalmente, un hijo de su tiempo, pero el tiempo y en especial este nuestro oscuro
instante no es de ninguna manera homogéneo; contiene en sí, como Lukács insistió
una y otra vez, diferentes posibilidades de diferentes clases y diferentes consecuencias
que reclaman, para dejar de ser mera potencia, una perspicacia experimental,
detectivesca, transgresora. “Pensar”, dijo Bloch en ocasión de Lessing, “es transgredir”
y lo mejor de este tiempo es que, en su heterogeneidad, genera transgresores (cf.
BLOCH, 1983, p. 15-16).
19
A la luz de su concepción ensayística, hemos querido
18
Lo que delata la profundidad de la crítica lukácsiana al estalinismo. Jameson considera este ensayo
como “uno de los momentos de ‘alta seriedad’ en la historia del pensamiento marxista reciente” y llama
la atención al hecho de que “cuando el viejo Lukács respondió a la urgencia de apoyar la denuncia de
Soljenitsin al estalinismo, lo hizo sentándose en su escritorio y escribiendo un estudio sobre el género,
por cierto uno de sus mejores” (JAMESON, 1975, p. 160).
19
La frase en alemán “
Denken ist Überschreiten
” fue vertida en la edición que tomamos como “pensar
Ensayo y método en György Lukács
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mostrar que en Lukács opera un enfoque crítico general, básico, que condiciona
significativamente sus ideas epistemológicas, éticas y estéticas y que concibe este
transgredir como una dedicación por principio sin preconceptos, proclive siempre a
la autocrítica y ajena a todo esquema sistemático al objeto mismo. De este modo, se
allana un camino para la dilucidación de la controvertida pregunta sobre su actualidad:
el descontento es ciertamente una manifestación de la subjetividad, pero quien quiera
caminar erguido, habrá de tomar distancia de la moda dominante y considerar al objeto
y su estructura objetiva como los principios rectores de la crítica. Para decirlo en el
espíritu del joven Marx: para hacer bailar a las relaciones de un mundo alienado,
perdido en sí mismo, no ha de contraponerse ninguna moral, ningún dogma, ningún a
priori. Más bien, se trata de cantarles a estas relaciones su propia melodía, con vistas
a que despierten de su sueño.
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Como citar:
CHICOTE, Francisco García. Ensayo y método en György Lukács.
Verinotio
, Rio das
Ostras, v. 27, n. 2, pp. 39-57, mar. 2022.
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Lukács diante da estetização do direito
Lukács on aesthetization of Law
Vitor Bartoletti Sartori*
Resumo: Diante da questão da especificidade do
direito, na contramão de parte importante da
teoria do direito contemporânea, demostraremos
a impossibilidade de se aproximar a esfera
estética da jurídica. Para Lukács, o complexo
jurídico é inerentemente marcado por uma
espécie de manipulação homogeneizante, sendo
incapaz de apreender o contraditório acontecer
social; os especialistas da esfera jurídica ocupam
também uma posição na divisão do trabalho,
realizando funções objetivamente definidas pela
reprodução do ser social, ligadas ao domínio
classista e à presença de categorias como
mercadoria e dinheiro. A esfera estética, por
outro lado, é completamente distinta. A
especificidade da arte faz dela uma forma de
objetivação superior ao passo que as
objetivações presentes no direito são
manipuladas e fetichizadas.
Palavras-chave: Lukács; direito; estética; teoria
do direito; manipulação.
Abstract: Faced with the issue of the specificity
of law, contrary to an important part of the
contemporary Theory of law, we will show the
impossibility of bringing the aesthetic sphere
close to the legal one. For Lukács, the legal
complex is inherently marked by some sort of
manipulation and homogenization; it is
incapable of apprehending the contradictory
social movement; specialists in this sphere also
occupy a position in the division of labor,
performing functions objectively defined by the
reproduction of the social being and linked to
the class domain and the presence of categories
such as merchandise and money. The aesthetic
sphere, on the other hand, is completely
different. The specificity of art makes it a
superior form of objectification, whereas the
objectifications present in law are manipulated
and fetishized.
Keywords: Lukács, law; aesthetics; theory of
Law; manipulation.
Introdução
Principalmente depois da década de 1970, surgiram teorias do direito que
procuraram se contrapor ao chamado positivismo jurídico (vertente que tem como
maior expoente o neokantiano Hans Kelsen). Elas fazem isto, dentre outros pontos, ao
trazer certa proximidade entre a argumentação jurídica e a arte, mais precisamente, a
literatura, sendo tal aproximação muito visível em autores como Dworkin, que pode
ser considerado o pai fundador da tendência “pós-positivista” (cf. MACEDO, 2008,
2011; MUÑOZ, 2008). No presente artigo, a partir da teoria madura de Lukács e do
que José Chasin chamou de análise imanente, pretendemos demonstrar porque tal
empreitada é baseada em uma confusão inaceitável entre a esfera jurídica e a estética.
* Doutor pela universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Pontifícia Universidade Católica (PUC SP).
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail
: vitorbsartori@gmail.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.631
Lukács diante da estetização do direito
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Explicitaremos esta posição em um contexto em que intérpretes supostamente
autorizados sobre a temática do direito no autor de
Para uma ontologia do ser social
como Csaba Varga (2012) procuram demonstrar que o tratamento do complexo
jurídico por parte de Lukács é valioso, dentre outras coisas, por convergir com autores
como Dworkin. Aqui, defenderemos que o que acontece é o oposto: o chamado pós-
positivismo é baseado justamente em procedimentos manipulatórios criticados
fortemente pelo marxista húngaro em sua obra madura. Não como se apropriar
“criticamente” destes autores.
A sedução da argumentação jurídica operacionalizada pela centralidade da
interpretação e pela estetização do direito
As teorias como as de Dworkin e Alexy autoproclamadas pós-positivistas se
contrapõem a autores positivistas como Hart (1983; 2003) e Kelsen (1986; 2003) e
são hoje o ponto de partida para o tratamento do direito (ATIENZA, 2014;
MACCORMICK, 2006). Diante da ausência de uma teoria normativa sobre a decisão
judicial e sobre a argumentação jurídica nos autores do positivismo jurídico, e no
contexto da década de 1970, a posição dos mencionados autores se volta também a
uma teoria sobre o que se pode e deve fazer na atividade dos próprios juristas. Ou
seja, parte da sedução destas teorias está na valorização da atividade daqueles que
operam o direito.
Principalmente a partir do debate com autores da filosofia da linguagem como
Austin (1975) e Wittgenstein (1996), a atividade jurídica passa a ser vista como
relacionada a determinados jogos de linguagem em meio à capacidade em parte,
performativa de se “fazer coisas com palavras”. Tem-se, transplantado para o campo
da teoria do direito, o giro linguístico da filosofia (MUÑOZ, 2008). Tratar-se-ia,
supostamente, da superação de quaisquer visões de mundo “realistas”, em que
prepondera a oposição entre sujeito e objeto e em que algo como uma realidade
objetiva.
O aparato com o qual se equipa filosoficamente o chamado pós-positivismo
passa, portanto, pela filosofia da linguagem. Ela tem uma importante função, a de
tentar se voltar contra a relação opositiva entre sujeito e objeto e a de trazer a
linguagem contextual e em uma forma de enunciado que não fosse “meramente”
constatativa. As filosofias de Austin e Wittgenstein, porém, para Dworkin, ainda
conviveriam com outras influências, constantemente citadas, como as de Dilthey
(1950) e as de Gadamer (1997, 2002, 2009), as quais enfatizam o momento
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interpretativo. Elas posicionam-se no sentido de não haver somente uma situação em
que a linguagem é considerada como parte da atividade ou de formas de vida para
Wittgenstein, “o termo ‘jogo de linguagem’ deve salientar que o falar da linguagem é
uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 35).
Não se teria que a linguagem seja, ela mesma, um fazer para Austin, “em alguns
casos, e sentidos específicos (somente em alguns, pelo amor de Deus!) em que
dizer
algo é
fazer
algo; ou em que por dizer ou ao dizer algo estamos fazendo alguma coisa”
(AUSTIN, 1975, p. 12). também uma posição em que a “compreensão” (central a
Dilthey em sua concepção sobre as ciências do espírito) é o momento central da
interpretação e remete à necessária relação entre a moral e o direito.
É verdade que, por vezes, transposições bastante diretas da filosofia da
linguagem ao campo do direito. MacCormick, a partir do debate entre Hart e Dworkin
chamado de “debate metodológico” , diz que “o pronunciamento de um veredicto
é o que J. L. Austin chamou de ‘enunciado performativo’: é um exemplo da realização
de um ato institucionalmente definido mediante o uso de palavras” (MACCORMICK,
2006, p. 43). Porém, geralmente, as coisas se dão de outro modo, com mediações
maiores no que diz respeito à interpretação. É verdade também que Dworkin diz que,
na interpretação, trata-se de “não apenas utilizar o mesmo dicionário, mas compartilhar
aquilo que Wittgenstein chamou de uma forma de vida suficientemente concreta”
(DWORKIN, 2014, p. 77). Porém, o autor também fala que “precisamos primeiro
lembrar uma observação crucial de Gadamer, de que a interpretação deve pôr em
prática uma intenção” (DWORKIN, 2014, p. 67). Ou seja, a intenção inerente à
compreensão (em oposição ao que ocorre na explicação) faria parte da própria
atividade de interpretar, não podendo, simplesmente ser deixada de lado. E, assim,
Dworkin também diz que é sempre preciso lembrar de “Gadamer, que acerta em cheio
ao apresentar a interpretação como algo que reconhece as impostações da história ao
mesmo tempo em que luta contra elas” (DWORKIN, 2014, p. 75). Ou seja, por mais
que haja na teoria do direito uma base filosófica assentada na filosofia da linguagem,
interações com aquilo que ficou conhecido como hermenêutica filosófica, e que gira
em torno de uma apreensão da tensão entre compreensão, explicação e interpretação,
e que parte da problemática de Dilthey (a oposição entre ciências da natureza e do
espírito, entre explicação e compreensão), mas que bebe fortemente na apresentação
heideggeriana da questão (cf. GADAMER, 2009).
Assim, não se trata propriamente de uma retomada direta da filosofia do começo
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do século XX, mas de algo contemporâneo às leituras que são realizadas no momento
do pós-II Guerra e que têm influência da filosofia da linguagem. Grondin diz sobre isso
que “a hermenêutica filosófica [...] é de uma data bastante recente. No sentido restrito
e usual, ela designa a posição filosófica de Hans-Georg Gadamer e, eventualmente,
também a de Paul Ricoeur” (GRONDIN, 1998, p. 24). Ou seja, trata-se da apreensão
de algo que, de certo modo, está no ar naquele momento. Dizemos tudo isto para
deixar claro que as teorias pós-positivistas acreditam ter consigo o melhor dos
aparatos filosóficos.
Tratar-se-ia, portanto, de uma teoria sobre o direito baseada na nata da filosofia
de uma época; ter-se-ia também que os juristas, e a atividade deles, teriam bastante
importância prática e teórica. Tal teoria, assim, viria a valorizar o direito e os juristas.
Em meio a uma apropriação dos temas e das categorias da hermenêutica
filosófica e da filosofia da linguagem, surge a tematização da interpretação como algo
central. Com esta fundamentação, a teoria do direito não poderia deixar de se colocar
sobre uma teoria da interpretação.
Isto ocorreria até mesmo porque o próprio conceito de legalidade seria
interpretativo: “desde o início a legalidade foi um ideal interpretativo, e assim continua
sendo para nós” (DWORKIN, 2010, p. 240-241). Tratar-se-ia de ver o direito como
algo que não se confunde com alguma forma de objetividade que precisaria ser
descoberta, mas que traz consigo as noções de sujeito e de objeto (em verdade,
renegadas tanto pela filosofia da linguagem quanto pela hermenêutica filosófica) de
modo distinto. Ter-se-ia uma correlação entre sujeito e objeto, de modo que, tal como
na esfera estética, haveria uma espécie de identidade entre sujeito e objeto (cf.
LUKÁCS, 1966 a). Isto faria com que a interpretação de uma obra de arte e a
interpretação jurídica tivessem muitas similitudes e pudessem, no essencial, convergir.
Sobre o assunto, ao trazer à tona a correlação entre as práticas sociais e as obras de
arte, diz Dworkin:
A interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um
objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou
do gênero aos quais se imagina que pertençam. Daí não se segue, mesmo
depois dessa breve exposição, que um intérprete possa fazer de uma prática
ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem; [...] Do
ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação
entre propósito e objeto. (DWORKIN, 2014, p. 63-64)
Não entraremos em algumas questões essenciais, como o ecletismo da teoria do
direito. Ele é bastante óbvio quando Dworkin fala de sujeito e de objeto estando
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baseado em autores, como os da filosofia da linguagem e da hermenêutica filosófica,
que renegam tal par categorial como algo ultrapassado. A noção de propósito, e sua
oposição ao objeto traz o mesmo problema, que deixa evidente que o rigor filosófico
não é a maior preocupação dos autores do chamado pós-positivismo. Aqui, precisamos
enfocar outros pontos essenciais para o nosso tema, como a centralidade da
interpretação.
Esta última seria construtiva, exigindo sempre um posicionamento inclusive
moral e político do intérprete. Trata-se de algo que, segundo Dworkin, estaria
presente na categoria da compreensão e “esse pressuposto tem uma base mais geral
na literatura filosófica da interpretação” (DWORKIN, 2014, p. 62-63)
1
.
A interpretação construtiva traria uma correlação entre propósito, objeto ou
prática. A historicidade e o horizonte compreensivo se conformariam nesta interação,
em que a forma ou o gênero a que pertencem o objeto ou a prática dariam a tônica
daquilo que é trazido pelo intérprete construtivamente. A posição ativa do intérprete,
relacionada à valoração moral e política, seria pungente, portanto. Mas ela somente se
colocaria como algo que traz o melhor exemplo possível de determinada forma ou
gênero.
Para o autor de
Levando os direitos a sério
, a resposta à seguinte pergunta é
central: “como as convicções morais de um juiz devem influenciar seus julgamentos
acerca do que é o direito?” (DWORKIN, 2010, p. 3). Não havendo em meio a uma
interpretação que é sempre compreensiva como se afastar das convicções morais, a
questão essencial seria como elas fariam parte da interpretação construtiva. Não se
trataria nunca de fazer de uma obra de arte ou de uma prática jurídica o que se quer,
simplesmente. O propósito, amparado em justificações morais, sempre estaria
presente. Mas ele precisaria ter como lastro a forma artística ou o gênero de prática
social em cada caso.
No caso da prática jurídica, haveria, inclusive o requisito da integridade: “a
1
Continua o autor americano dizendo que “Wilhelm Dilthey, um filósofo alemão que foi especialmente
importante em dar forma ao debate sobre a objetividade nas ciências sociais, usou a palavra
verstehen
para descrever especificamente o tipo de entendimento que adquirimos ao saber o que outra pessoa
quer dizer com aquilo que diz (poderíamos dizer que esse é um sentido da compreensão no qual
entender alguém implica chegar a um entendimento com tal pessoa), em vez de descrever todas as
possíveis maneiras ou modalidades de entender seu comportamento ou vida mental” (DWORKIN, 2014,
p. 62-63).
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integridade, mais do que qualquer superstição de elegância, é a vida do direito tal
qual a conhecemos” (DWORKIN, 2014, p. 203). Nela, seria preciso trazer uma
correlação entre decisões passadas, presentes e futuras; elas trariam, não uma
coerência e uma historicidade, mas uma espécie de narrativa. Tratar-se-ia de ver o
direito como uma espécie de romance em cadeia, escrito por distintos autores, mas
sempre com um senso de totalidade e de unidade. Assim, tal qual em uma obra
literária, o se teria uma simples enumeração de fatos, mas algo assemelhado à
estrutura do romance
2
.
Diz Dworkin que “os juízes devem conceber o corpo do direito que administram
como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para
tomar ou emendar uma por uma, com nada além do que interesse estratégico pelo
restante” (DWORKIN, 2014, p. 203). Tal dever faria dos juízes pessoas com um dever
de integridade; e isto ocorreria não só ao passo que se “pede aos que criam o direito
por legislação que o mantenham coerente quanto aos princípios” (DWORKIN, 2014, p.
203). Mas que se tenha, além da integridade na legislação, “o princípio de integridade
no julgamento”, que “pede aos responsáveis por decidir o que é a lei, que a vejam e
façam cumprir como sendo coerente nesse sentido” (DWORKIN, 2014, p. 203). Ter-se-
ia ainda “a integridade política”, que “supõe uma personificação particularmente
profunda da comunidade ou do Estado” (DWORKIN, 2014, p. 204). Confluente com a
semelhança entre a esfera jurídica e a estética, haveria todas essas suposições, que
são importantíssimas para um pós-positivista como Dworkin. A noção de integridade
traria parâmetros normativos, inclusive, no que diz respeito ao funcionamento das
instituições.
Para que a interpretação construtiva possa se realizar de modo bem-sucedido,
tais requisitos de integridade precisariam ser cumpridos. Somente então, o intérprete
estaria pronto para considerar as práticas sociais do direito como o resultado de uma
espécie de romance em cadeia. A aproximação entre esfera estética e jurídica aparece
como central.
O que pretendemos deixar claro aqui é que a estrutura da teoria de um autor
como Dworkin levanta tal proximidade a partir de alguns pressupostos, que, no limite,
2
Há professores de Direito que, em seus cursos de hermenêutica jurídica, indicam a leitura do famoso
ensaio de Lukács sobre narrar ou descrever. Como veremos em nosso texto, isto não pode deixar de
ser irônico.
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levam à necessidade de considerar os juízes como alguém que se coloca em uma
posição análoga ao escritor de um romance em cadeia. Trata-se de algo que ainda traz
algumas suposições, como aquela da figura de um juiz ideal, que pudesse dedicar toda
a sua vida à resolução de um caso controverso e difícil. Trata-se do que o autor
americano chamou de juiz Hércules (DWORKIN, 2007). Somente com ele, e com
aquilo que colocamos acima, é que se poderia ter a situação em que “uma teoria geral
do direito deve ser ao mesmo tempo normativa e conceitual” (DWORKIN, 2007, p. XIII-
IX). Tratar-se-ia de uma teoria do direito que, de modo compreensivo, elabora seus
conceitos ao mesmo tempo em que traz propósitos que corroborem a integridade do
direito e a historicidade e narratividade das decisões, colocadas no ideal do romance
em cadeia.
Não podemos explicitar todas as determinações mais importantes da teoria de
Dworkin (como a oposição entre princípios e regras, a noção de comunidade de
princípios e de regras, os argumentos de princípios e os de política etc.). Porém, pelo
que mostramos, a base filosófica utilizada pelo autor e por muitos expoentes do
chamado pós-positivismo traz uma valoração da teorização mais geral sobre a
linguagem e sobre a interpretação. Isto é realizado trazendo uma conceituação que,
ao mesmo tempo, é normativa e que traz propósitos, não em cada decisão
individual, mas quanto ao funcionamento das instituições. E é interessante notar que
a operacionalização das decisões judiciais precisaria remeter a um funcionamento que
é típico da esfera estética, e remete mais precisamente à literatura. Isto dito, podemos
trazer à tona a posição de Lukács, que é diametralmente oposta àquela dos expoentes
do pós-positivismo.
Lukács diante da conformação objetiva da esfera jurídica na divisão do trabalho
Como dissemos, Varga (2012) tenta aproximar o tratamento lukácsiano da
Ontologia
da abordagem de autores como Dworkin. O intérprete da obra de Lukács
acaba por trazer certa valorização do direito, com isto. Veja-se o que ele diz sobre a
administração da justiça e sobre a relação do complexo jurídico com a sociedade:
O papel assumido conscientemente pelo administrador da justiça pressupõe
um duplo caráter e até certo ponto uma personalidade cindida. O jurista está
consciente de que ele é somente um servidor, um servo da lei, ao mesmo
tempo, sabe que os préstimos da lei são somente um meio de servir à
sociedade. (VARGA, 2012, p. 154)
De acordo com Varga, a partir de Lukács, haveria uma teorização sobre a
administração da justiça, e sobre o modo pelo qual o direito poderia ter um papel
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decisivo na visão de mundo crítica. O autor de
Para uma ontologia do ser social
traria
uma posição segundo a qual o jurista, bem como o administrador da justiça, seria de
grande importância a tal ponto que haveria, tanto um dever diante da sociedade,
quanto diante da lei. Tal personalidade cindida do administrador da justiça, portanto,
no limite, poderia ser parte da resolução dos problemas sociais decisivos de uma
época. Com estes pressupostos, Varga tenta aproximar Lukács de autores como
Dworkin.
Lukács, porém, é bastante claro quando diz que “os limites histórico-sociais da
gênese e do fenecimento da esfera do direito estão determinados fundamentalmente
como limites temporais” (LUKÁCS, 2013, p. 244). Ou seja, é preciso que se diga que
o direito tem uma gênese e um termo. Ele não é eterno e seria preciso ver as condições
mediante as quais ele surge, desenvolve-se e pode vir a fenecer. Neste sentido, sequer
seria possível se falar de um direito socialista e seria necessário deixar claro que, ao
fim, trata-se da supressão do direito: “o desenvolvimento do socialismo rumo ao
comunismo criará uma condição social que não necessitará do direito; por isto, não
creio que, desse ponto de vista, se possa falar num direito socialista especial” (LUKÁCS,
2008, p. 245). Ou seja, enquanto Varga supostamente a partir de Lukács toma o
complexo jurídico como essencial na resolução das contradições sociais, o autor da
Ontologia
aponta que o direito depende das contradições sociais das sociedades
classistas, da propriedade privada, da família patriarcal e da existência do Estado. Ou
seja, a única maneira pela qual as contradições sociais poderiam ser resolvidas ao se
tratar do direito é aquela do processo em que as sociedades classistas, e com elas a
própria esfera jurídica, são superadas.
A primeira razão, segundo a qual não como aproximar a abordagem de Lukács
daquelas dos autores do pós-positivismo, é que os últimos tomam o direito como um
ponto de partida e um ponto de chegada. Na
Ontologia
, por outro lado, trata-se da
necessidade do fenecimento do direito. Em verdade, portanto, ele não poderia sequer
ser um ponto de partida, não podendo sequer se falar em uma espécie de direito
socialista.
Neste sentido específico, Lukács chega a dizer que “não diferença entre o
direito socialista e o direito capitalista” (LUKÁCS, 2008, p. 245). No que, a partir de
um debate com os posicionamentos de Marx na
Crítica ao programa de Gotha
, diz:
Remeto aqui a Marx. Na
Crítica ao programa de Gotha
, Marx afirma
claramente que o direito dominante no socialismo é ainda o direito civil,
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mesmo que sem a propriedade privada, e que este lado formal do direito foi
desenvolvido pela civilização capitalista; e não dúvidas de que ele
permanece, no socialismo, enquanto direito. (LUKÁCS, 2008, p. 245)
Ao tratar da fase de transição como “socialismo” – seguindo o exemplo leninista
Lukács explicita que nem mesmo em meio às formas transicionais que se colocam
entre o domínio da classe trabalhadora e a supressão das classes sociais é o direito
um ponto de partida válido na luta emancipatória. Ele ainda seria uma espécie de
direito civil, formalmente colocado em torno de uma concepção de igualdade
burguesa: “após a desapropriação dos exploradores, o direito igual permanece
essencialmente um direito burguês com suas limitações aqui arroladas” (LUKÁCS,
2013, p. 244). As individualidades colocadas como “os indivíduos universalmente
desenvolvidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão
igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário” (MARX, 2011, p. 164)
são incompatíveis com a igualdade reconhecida pelo direito. O que Marx chamou de
“o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos” (MARX, 2012, p. 33) também. E,
assim, Lukács é claro ao dizer que “queremos enfatizar apenas que Marx considera
irrevogável, também nesse estágio, a discrepância entre o conceito de igualdade do
direito e de desigualdade da individualidade humana” (LUKÁCS, 2013, p. 244). Ou
seja, a existência do direito, mesmo em uma fase transicional, é indissolúvel do
aviltamento da personalidade dos homens e, em verdade, do reconhecimento de
potências sociais estranhadas.
3
Não como teorizar sobre o direito com a suposição de que ele é compatível
com o desenvolvimento multifacetado das individualidades. É preciso sempre realizar
uma crítica do direito, e nunca a busca de uma teoria crítica sobre o uso do direito.
Ou seja, é preciso se falar abertamente do fenecimento do direito. Ao analisar a
gênese e o desenvolvimento do direito, nota-se sua insuficiência intrínseca na
regulamentação das relações sociais. E mais: a esfera aparece relacionada, de um lado,
com aspetos da religião, doutro, com uma moral entendida de modo abstrato. E, assim,
em meio às determinações basilares da esfera jurídica, necessariamente aviltamento
3
Diz Lukács sobre a persistência destas potências e, em especial, sobre o fenômeno do estranhamento:
“o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente também o desenvolvimento das
capacidades humanas, mas - e aqui emerge plasticamente o problema do estranhamento (
Entfremdung
)
- o desenvolvimento das capacidades humanas não produz obrigatoriamente aquele da personalidade
humana. Ao contrário: justamente potencializando capacidades singulares, pode desfigurar, aviltar etc.
a personalidade do homem” (LUKÁCS, 1981, p. 564).
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da personalidade dos indivíduos. Mas, para que se compreenda isto, é necessário
explicitar a gênese do direito e do modo pelo qual, objetivamente, ele depende de
certos especialistas.
Ao falar das comunidades primitivas, em grande parte em diálogo com Gordon
Childe, diz Lukács em
Para uma ontologia do ser social
que:
Por mais que, naquelas condições primitivas, as pessoas singulares, em
situações vitais, tomavam espontaneamente decisões em média mais
parecidas do que posteriormente, por mais que, na igualdade de interesses
que naquele tempo ainda predominava, tenha havido menos razões objetivas
para resoluções contrárias, sem dúvida houve casos de fracasso individual,
contra os quais a comunidade precisou se proteger. Assim, teve de surgir
uma espécie de sistema judicial para a ordem socialmente necessária, por
exemplo, no caso de tais cooperações, muito mais no caso de contendas
armadas; porém, ainda era totalmente supérfluo implementar uma divisão
social do trabalho de tipo próprio para esse fim; os caciques, os caçadores
experientes, guerreiros etc., os anciãos podiam cumprir, entre outras, também
essa função, cujo conteúdo e cuja forma estavam traçados em
conformidade com a tradição, a partir de experiências reunidas durante longo
tempo. (LUKÁCS, 2013, p. 230)
A dissolução das comunidades traz a contraposição das pessoas singulares entre
si e diante do interesse coletivo. Trata-se do processo em que o interesse da
comunidade começa a destoar dos individuais. Este processo está na base da gênese
do direito.
Ele traz consigo uma espécie de sistema judicial, mas ainda não leva à uma
divisão social do trabalho de tipo próprio. Ou seja, inicialmente, este tipo de sistema
judicial ainda o traz os especialistas que posteriormente serão necessários ao
desenvolvimento do complexo jurídico. Líderes dos mais diversos tipos ainda realizam,
dentre outras, as funções que posteriormente serão características do direito.
Neste momento, isto se ainda de acordo com a tradição. Ou seja, a
contraposição entre o público e o privado começa a emergir e a gênese do direito está
baseada nesta dissolução dos laços comunitários. Porém, um sistema judicial
propriamente dito ainda não está presente. Ele somente vai aparecer com a divisão
das sociedades em classes e em meio ao intercâmbio de mercadorias:
quando a escravidão instaurou a primeira divisão de classes na sociedade,
quando o intercâmbio de mercadorias, o comércio, a usura etc.
introduziram, ao lado da relação “senhor-escravo”, ainda outros
antagonismos sociais (credores e devedores etc.), é que as controvérsias que
daí surgiram tiveram de ser socialmente reguladas e, para satisfazer essa
necessidade, foi surgindo gradativamente o sistema judicial conscientemente
posto, não mais meramente transmitido em conformidade com a tradição. A
história nos ensina também que foi num tempo relativamente tardio que
até mesmo essas necessidades adquiriram uma figura própria na divisão
social do trabalho, na forma de um estrato particular de juristas, aos quais
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foi atribuída como especialidade a regulação desse complexo de problemas.
(LUKÁCS, 2013, p. 230)
Lukács é claro no sentido de a gênese do direito precisar das classes sociais. Ele,
porém, não subordina diretamente o complexo jurídico às lutas de classes que se
colocam diretamente entre as classes fundamentais de determinada sociedade: a
emergência da escravidão, bem como da relação senhor-escravo são decisivas para
que o direito possa surgir. Porém, o comércio e outros antagonismos sociais
(LUKÁCS, 2013, p. 230) vêm a ser decisivos quando se fala da necessidade da
regulamentação jurídica.
O sistema judicial propriamente dito, portanto, possui uma ligação mediada com
o Estado e uma relação mais imediata com o intercâmbio de mercadorias, o comércio,
a usura etc. No caso, tem-se a correlação entre a mercadoria, o dinheiro e os juros
como decisivos para que a regulamentação jurídica comece a se colocar sobre os
próprios pés.
Isto se na medida em que o estrato de juristas começa a se desenvolver e
adquirir uma posição, cada vez mais própria, na divisão do trabalho. Se é relativamente
tarde que este processo se completa, é verdade que ele se inicia já no surgimento das
sociedades classistas. E, assim, é possível dizer que o direito traz consigo a oposição
entre o público e o privado, gestada na dissolução das comunidades primitivas, porém,
ele depende da existência das classes sociais, da propriedade e do Estado. O que
vimos, porém, é que, de acordo com Lukács, a relação do complexo jurídico com o
domínio classista que se põe como central a determinada sociedade não é direta. A
ligação da esfera jurídica com as classes sociais passa por oposições que se dão, em
geral, no interior das relações mercantis, como aquelas entre credores e devedores.
Subjacente à forma jurídica, estão as formas sociais da mercadoria, do dinheiro, bem
como a figura dos juros.
Estas categorias econômicas, e seu desenvolvimento na história, trazem a tônica
do processo em que os especialistas necessários ao funcionamento do direito ganham
um lugar na divisão do trabalho. Tal lugar, por sua vez, não depende simplesmente da
vontade dos juristas ou dos administradores da justiça: ele é caracterizado de modo
objetivo em meio ao processo de reprodução do ser social (SARTORI, 2010).
E, neste ponto, temos algo importante para o tema que aqui tratamos: a
conformação da administração da justiça, bem como dos juristas não é algo que
Lukács diante da estetização do direito
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dependa essencialmente do conhecimento jurídico ou jusfilosófico. Trata-se de uma
configuração que somente pode ser entendida em meio ao processo de reprodução
do ser social.
Ou seja, uma teoria do direito pode tentar ser “normativa e conceitual” o quanto
quiser; porém, os nexos reais sobre os quais ela opera são aqueles vigentes nos
sistemas produtivos de cada época. O direito, desde a sua gênese, lida com a oposição
entre o público e o privado, bem como com o comércio e o intercâmbio de
mercadorias. A regulamentação jurídica só pode se dar nos limites destas
determinações. Ao se considerar a conformação objetiva do direito, a aproximação
bem como a diferença específica que precisa ser destacada, portanto, não é aquela
entre a esfera jurídica e a estética. Antes, tem-se a necessidade de aproximar e de
trazer a autonomização existente entre a esfera de produção e circulação de
mercadorias diante da esfera jurídica.
Os especialistas da esfera jurídica, que se desenvolvem a partir desta condição
social, têm crescentemente uma posição na divisão social do trabalho. Portanto, eles
não se colocam acima dos conflitos sociais. Em verdade, fazem parte deles, sendo a
caracterização destes especialistas uma resultante das oposições e contradições que
envolvem a reprodução do ser social. Para que se compreenda a dimensão interna das
práticas jurídicas, portanto, não se trata tanto de desenvolver uma teoria do direito
normativa e conceitual. Deve-se analisar a simultânea autonomia e dependência dos
juristas diante da realidade socioeconômica.
Reprodução do ser social e a função concreta dos especialistas do direito
Quando se fala da reprodução do ser social, pensa-se em dois polos, entre os
quais se colocam séries de complexos sociais: o indivíduo singular e o complexo social
total. De acordo com Lukács, portanto, não se pode compreender o processo de
reprodução sem que se olhe, simultaneamente, para estes polos e as mediações que
se interpõem entre eles.
No caso do direito, vimos como a mediação jurídica traz consigo uma
determinação econômica ligada à economia mercantil (não necessariamente em sua
forma capitalista). Isto, porém, precisa ser explicado de modo mais cuidadoso.
Para Lukács, a especialização, bem como o surgimento de uma posição bastante
clara dos juristas na divisão do trabalho, só pode ser vista quando a especificidade do
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direito se encontra completamente caracterizada. E isto se daria na passagem à
sociedade capitalista, em que vem a se impor a forma jurídica caracterizada pela
vigência da regulamentação jurídica universal e que redunda no “domínio material
universal do capital” (LUKÁCS, 2010, p. 283). Ao tratar deste processo, diz nosso
autor que:
Num primeiro momento, eles são considerados no âmbito do direito privado
neste, a conexão entre direito e intercâmbio de mercadorias é diretamente
perceptível. Obviamente também nesse caso o desenvolvimento é desigual.
O fato de que, por exemplo, na Idade Média, o poder estatal fosse
descentralizado, de que indivíduos pudessem dispor o de armas, mas
também de séquitos maiores ou menores de homens armados, fazia com que,
naqueles tempos, a imposição de um decreto emanado do direito estatal
muitas vezes se tornasse uma questão de combate aberto entre o poder
central e a resistência contra ele. A socialização da sociedade impôs nesse
ponto formas de transição tão paradoxais, que para certas épocas o conteúdo
do direito passa a ser avaliar em que casos tais resistências são juridicamente
válidas. Aqui não é o lugar para esmiuçar as contradições dessas teorias; elas
decorrem principalmente da problemática da passagem contraditória do
feudalismo para o capitalismo, que necessariamente procurou implementar
uma regulação jurídica universal de todas as atividades sociais, como também
simultaneamente transformou em questão principal da vida social a
superioridade e, desse modo, a autoridade da regulação central perante
todas as demais. (LUKÁCS, 2013, p. 235)
A passagem à regulamentação jurídica universal e para um papel mais
proeminente do direito na reprodução do ser social é aquela em que uma luta
para a expansão do comércio e do poder central do Estado. Na emergência da
sociedade capitalista, tais elementos ganham destaque e tal transição não é das mais
simples.
A implementação da regulamentação universal se impõe com o domínio
universal do capital. E, assim, a especificidade do complexo jurídico emerge tanto mais
a socialização da sociedade avança, certamente. Porém, ela é mais proeminente
verdadeiramente neste momento específico em que a socialização avança a passos
largos, aquele da emergência da sociedade capitalista. E isto é central ao que tratamos.
As formas da mercadoria e do dinheiro, que acompanham a gênese do direito,
passam a estar envolvidas em um processo específico de reprodução, aquele do
capital. Trata-se, portanto, tanto de um momento da história em que os especialistas
jurídicos aparecem de modo mais claro na divisão social do trabalho, quanto da
situação em que a reprodução se torna acumulação de capital, reprodução ampliada
do capital.
Lukács diante da estetização do direito
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A função concreta que os especialistas do direito realizam, portanto, é
indissolúvel do movimento em que o capital está se reproduzindo de maneira
ampliada.
Lukács, portanto, está longe de trazer as aspirações que Varga parece lhe atribuir.
Antes, a sociedade a que o administrador da justiça se volta, bem como a lei a que se
submete, são aquelas que trazem determinações do desenvolvimento contraditório da
relação-capital. A superioridade da regulamentação universal, bem como o poder
central passam, cada vez mais, a se subordinar ao processo de acumulação de capital.
Se fosse possível falar da vida do direito como uma espécie de romance em
cadeia, portanto, não se trataria de qualquer obra de arte. Antes, ter-se-ia um enredo
imposto por imperativos reprodutivos do capital. E mais: os escritores deste romance
teriam suas funções determinadas por uma potência estranhada, que se impõe sobre
suas personalidades de modo aviltante; estão mais para
Ghost Writers
que para
artistas.
A função dos especialistas do direito não é definida por suas posições mais ou
menos críticas, mas por suas posições objetivas na divisão social do trabalho. Lukács
diz sobre o direito que esse complexo é capaz de se reproduzir se a sociedade
renovar constantemente a produção dos ‘especialistas’ (de juízes e advogados até
policiais e carrascos) necessários para tal” (LUKÁCS, 2013, p. 247). Os carrascos
podem ser o quão críticos e conscientes quiserem, continuarão a exercer a função de
carrascos; os policiais exercem sua função de vigilância em torno de uma ordem
específica, que não é da escolha dos indivíduos singulares da corporação. Advogados,
vendem sua força de trabalho e oferecem serviços em troca de pagamento. Os juízes
também têm suas funções definidas objetivamente pelo contraditório acontecer social.
Todos podem ser conscientes, no limite, da impossibilidade de a sociedade capitalista
oferecer futuro à humanidade; porém, a função que exercem está colocada em
correlação com a vigência da regulamentação universal baseada em uma forma
específica de igualdade e liberdade. Como diz Lukács: “não se afirma simplesmente
uma aparência de liberdade e de igualdade, mas precisamente sua essência econômica,
ou seja, o que liberdade e igualdade efetivamente representam na circulação capitalista
das mercadorias” (LUKÁCS, 2008, p. 93). A reprodução dos especialistas do direito,
portanto, liga-se ao mesmo processo de reprodução ampliada e universalização da
circulação capitalista de mercadorias.
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E isto se também com os juízes, promotores, defensores públicos, técnicos
judiciários e tantos mais funcionários públicos ligados a funções judiciais quanto se
possa pensar. Eles são de grande importância para a conformação da mediação jurídica
na sociedade capitalista e ocupam uma posição na divisão do trabalho bastante clara,
mesmo que isto não se de modo tão direto quanto em alguns casos que
mencionamos acima.
Algo importante nisto, porém, é que os juristas não julgam realizar esta função.
Isto ocorre, em parte, devido à especificidade dos especialistas reproduzidos
para que o direito possa ser efetivo. Eles trazem consigo uma linguagem específica,
marcada por categorias jurídicas, que parecem ter uma impessoalidade e uma
autonomia diante da sociedade. Há uma forma jurídica que se desenvolve e parece ser
algo discutido somente no Olimpo dos juristas, e não em meio aos conflitos sociais
concretos. Ela parece ser fruto de debates regados à base das mais elaboradas
filosofias e com as mentes mais brilhantes e doutas de uma época. E não é de se
estranhar que estes indivíduos, que ganham a aparência de uma espécie de elite
intelectual, possam se ver como uma espécie de artistas. Isto tudo, porém, decorre do
próprio processo de reprodução social, que é marcado, ao mesmo tempo, pela
dependência diante dos imperativos reprodutivos do complexo social total e pela
autonomização da esfera jurídica:
Por trás da especialização reiteradamente exigida dos representantes da
esfera do direito, oculta-se um problema referente à reprodução do ser social
que não deixa de ser importante. Ao expandir-se quantitativa e
qualitativamente, a divisão social do trabalho gera tarefas especiais, formas
específicas de mediação entre os complexos sociais singulares, que,
justamente por causa dessas funções particulares, adquirem estruturas
internas bem próprias no processo de reprodução do complexo total. Com
isso, as necessidades internas do processo total preservam a sua prioridade
ontológica e, por essa razão, determinam o tipo, a essência, a direção, a
qualidade etc. nas funções dos complexos mediadores do ser. Contudo,
justamente pelo fato de o funcionamento correto no vel mais elevado do
complexo total atribuir ao complexo parcial mediador funções parciais
particulares, surge nesse complexo parcial chamada à existência pela
necessidade objetiva certa independência, certa peculiaridade autônoma
do reagir e do agir, que precisamente nessa particularidade se torna
indispensável para a reprodução da totalidade. (LUKÁCS, 2013, p. 248)
tarefas especiais na divisão social do trabalho que acabam por exigir, em
verdade, certa falta de conhecimento sobre os motivos reais que regem a totalidade
do processo social. E, no caso do direito, é necessária uma autonomia de reagir e agir
que está amparada teoricamente na dogmática jurídica e nas teorias do direito.
Ou seja, a emergência das categorias jurídicas e da teorização sobre elas
Lukács diante da estetização do direito
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depende do processo de reprodução social e traz as necessidades internas do
processo total. Com isso, tem-se o direito operando sobre a universalização do capital.
Sua regulamentação universal, bem como sua vigência universal, são frutos deste
processo. Mas, e isto é essencial para nós, isto é possível porque funções
bastante específicas que se colocam ao complexo jurídico e exigem um grau de
especialização e de autonomia no reagir e no agir que são pungentes. O direito
pode estar subordinado ao processo de acumulação de capital porque consegue se
colocar com uma linguagem e um funcionamento próprios, estando o complexo
autonomizado diante de outros complexos sociais parciais. A falta de conhecimento
dos juristas sobre o processo total, portanto, por vezes, é um pressuposto para a
efetividade deste mesmo processo. O “conhecimento jurídico”, tanto prático quanto
teórico, é um requisito importante, tanto para a reprodução do complexo jurídico e de
seus especialistas quanto para a totalidade do processo.
Nesse ponto, precisamos de uma digressão em que a esfera estética e a jurídica
podem ser comparadas: Lukács diz sobre a esfera estética, que nela os homens não
sabem, mas fazem algo que alcança a autoconsciência do gênero humano. A
subjetividade estética do artista coloca-se com todas as suas vicissitudes no cotidiano;
tem-se aí o homem inteiro, com todas as suas idiossincrasias. Porém, a subjetividade
do artista é superada na obra de arte, que, se digna de tal qualificação, não pode ser
resumida de modo algum à uma dimensão particular, trazendo os grandes problemas
da humanidade à tona e alcançando uma esfera de universalidade típica das formas
superiores de objetivação. Trata-se do processo em que a alienação e a posterior
retrocaptação: a subjetividade estética traz, em um primeiro momento, a superação do
homem inteiro do cotidiano, subordinando-se a determinado meio homogêneo. A
partir das determinações de cada modo de apreensão das formas estéticas, as
questões essenciais para o próprio gênero humano emergem da relação colocada
entre individualidade e generidade. Ou seja, na arte está colocada de modo explícito
a autoconsciência do gênero.
Na esfera estética, os homens não sabem, mas trazem uma grande contribuição
para a autoconsciência do gênero humano, como mencionado. O meio homogêneo
que caracteriza cada gênero artístico traz especificidades que elevam as vivências
cotidianas a um nível de universalidade e, assim, a essência e a aparência são inter-
relacionadas de tal modo que as formas de aparecimento estético revelam a essência
do conteúdo que se coloca no desenvolvimento humano genérico (cf. LUKÁCS, 1966a).
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Ao contrário do que ocorre no caso da esfera jurídica, a antropomorfização não traz
qualquer imputação manipulatória de sentido à realidade. Também não ocorre um
espelhamento necessariamente equivocado do ser-propriamente-assim da sociedade.
Antes, trata-se da mimese, em que as determinações do real se explicitam sob forma
artística e subordinadas a meios homogêneos específicos. Ou seja, as categorias, as
formas de ser do próprio real, aparecem em correlação com o elemento humano
sempre (daí o caráter necessariamente antropomorfizador da arte e a existência de
uma espécie de sujeito-objeto idêntico); o centro da tematização estética está na
correlação, sempre mediada, entre os indivíduos e o gênero, havendo a apreensão
consciente da autoconsciência do gênero humano.
Pelo que vimos, aquilo que se passa no direito é diametralmente oposto. É
verdade que, também aqui, os indivíduos não sabem, mas fazem algo. Porém, ao passo
que eles acreditam estar discutindo os grandes temas da humanidade em meio às
ideias sobre o direito, a justiça, a administração da justiça, estão trazendo formas
diferenciadas de regulamentar a expansão do capital. Os juristas, portanto, partem de
uma universalidade abstrata e rumam a um particularismo pueril. Este último, porém,
é visto como algo decisivo aos próprios rumos da humanidade. Se possível, seria
desejável que um juiz pudesse passar a vida inteira decidindo, por exemplo, sobre
uma disputa comercial ou de herança (estes são temas tratados pelas decisões
analisadas por Dworkin, diga-se de passagem). A teorização jurídica que aproxima a
estética da prática social dos juristas também está longe de buscar superar a
subjetividade dos especialistas do direito; antes, um verdadeiro elogio à
necessidade de desenvolvimento destes especialistas, que passam a ser decisivos: em
vez de os destinos da humanidade serem o central na teorização jurídica, a
subjetividade dos juristas parece ser o mais importante para a própria humanidade. A
mesquinhez dos especialistas é universalizada, e não superada.
O meio no qual trabalham os juristas também é marcado por uma forma e, tal
qual na arte, uma subordinação das individualidades às formas sociais nas quais
operam. Porém, no direito, a forma jurídica, caracterizada pela regulamentação
universal, é plenamente dependente da universalização do capital e dos destinos da
mercadoria, do dinheiro etc. Não se tem no complexo jurídico qualquer consciência do
gênero humano (como na ciência) ou autoconsciência do gênero humano (como na
arte); antes, há uma subordinação da esfera jurídica aos problemas que se colocam de
imediato na esfera econômica.
Lukács diante da estetização do direito
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Portanto, por mais que os teóricos do direito possam tratar dos meandros da
interpretação, da linguagem e do caráter normativo e conceitual de uma teoria do
direito, os casos que o levados à justiça geralmente mediante pagamento, diga-se
de passagem dizem respeito a conflitos que supõem o grau de desenvolvimento
social em que vige a reprodução ampliada do capital. Tem-se formas específicas de
mediação, estruturas internas bem próprias ao direito e isto se coloca no sentido do
desenvolvimento de categorias jurídicas autonomizadas; porém, elas sempre operarão
sobre a facticidade econômica. Ou seja, não qualquer conexão entre a
homogeneização abstrata do direito e a colocação de questões que dizem respeito às
grandes questões de uma época e à essência da sociedade. Antes, permanece-se em
meio às formas fenomênicas de aparecimento da sociabilidade e tenta-se dar um ar de
grandiosidade a elas. Neste sentido específico, a esfera estética e a jurídica não
poderiam ter determinações mais opostas.
Por meio das categorias jurídicas, busca-se a elaboração de um sistema jurídico
completo, em que os meios e as mediações mais variados da vida social devem ser
organizados de tal modo que possam elaborar em si essa completude, que também
no âmbito do direito leva a uma homogeneização formal” (LUKÁCS, 2012, p. 388). Em
meio à reprodução do ser social, a reprodução do complexo jurídico passa por
estruturas internas meandradas, bem como por funções de grande especificidade. Por
isto, as categorias jurídicas aparecem de modo a formar um sistema autônomo diante
de outros complexos sociais como a política, a arte e a religião, por exemplo e ele
não deixa de passar por uma espécie de homogeneização formal, que marca a
linguagem jurídica. Há, portanto, uma dependência diante da realidade econômica;
atua-se também em meio às suas determinações. Porém, tal dependência traz consigo
um sistema autonomizado e marcado pela homogeneização. E, assim, como diz Lukács,
“o sistema o brota do espelhamento da realidade, mas pode ser sua manipulação
homogeneizante de cunho conceitual-abstrato” (LUKÁCS, 2013, p. 238-239). A
manipulação que advém da própria formação das categorias jurídicas é parte
constitutiva do complexo jurídico. Não há, portanto, como falar de sistema jurídico sem
falar de manipulação. A subjetividade que marca os especialistas do direito, portanto,
não é elevada a um patamar superior em meio à atividade hermenêutica; antes, ela
permanece aviltada e ao aviltamento da personalidade é conferida uma aparência
grandiosa e, no limite, resolutiva.
A integridade e a coerência de que fala Dworkin, portanto, são conceitos da
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teoria jurídica que vêm a revestir este processo de que trata Lukács. Longe de se ter
uma espécie de meio homogêneo como na estética, em que há uma caracterização
específica de cada gênero pela especificidade de cada meio tem-se uma
homogeneização abstrata e manipulatória. A comparação do direito com a arte, para
Lukács, é descabida.
Em verdade, ela pode ser considerada como parte da ilusão jurídica e qualquer
posicionamento minimamente condizente com a apreensão do ser-propriamente-assim
da sociedade deve rechaçá-la com vigor. Os especialistas do direito, portanto, trazem
consigo autoilusões, que são elevadas a um patamar aparentemente científico e
filosófico pela teoria e a filosofia do direito. Lukács passa longe de reproduzir tais
ilusões; em verdade, ele mostra como são gestadas pela própria posição que os
juristas ocupam na divisão do trabalho e pelo modo como as ilusões jurídicas são
necessárias à reprodução do ser social. Há, efetivamente, uma correlação entre as
funções concretas dos especialistas na reprodução ampliada do capital e a reprodução
interna do complexo jurídico. Isto se tanto ao se propiciar que especialistas
continuem a ser formados, quanto ao passo que as categorias jurídicas e a teorização
sobre estas categorias são desenvolvidas e começam a fazer parte do cotidiano
daqueles que operam o direito.
Espelhamento manipulado e método do direito
A autonomização do complexo jurídico é um requisito da própria reprodução
social da sociedade capitalista. No caso, isto ocorre quando os especialistas ganham
uma posição clara na divisão social do trabalho. Também se liga à caracterização mais
explícita das categorias e linguagens próprias ao direito.
Lukács é claro no sentido de haver uma convergência entre a particularidade
específica da esfera jurídica e sua função na reprodução do complexo social total.
Existe tanto um ímpeto autorreprodutivo ligado à formação dos mais diversos
especialistas da área quanto uma conexão concreta com a reprodução ampliada do
capital. E mesmo que os juristas possam se julgar, por vezes, uma elite autônoma e
uma guardiã de um sistema jurídico amparado no rigor técnico-jurídico e em um
sistema autonomizado, tem-se, efetivamente, algo muito diverso. E, assim, na medida
mesma em que se acredita que há uma espécie de lógica especificamente jurídica, no
caso da interpretação, por exemplo, uma correlação imediata entre as decisões
jurídicas e o funcionamento das categorias econômicas que se colocam em
determinado momento do desenvolvimento social.
Lukács diante da estetização do direito
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Tendo estas questões em mente, diz Lukács que:
É possível tirar uma importante conclusão para o funcionamento e a
reprodução dos complexos sociais parciais, a saber, a necessidade ontológica
de uma autonomia que não pode ser prevista nem adequadamente
apreendida no plano lógico, mas que é racional no plano ontológico-social e
uma peculiaridade de desenvolvimento de tais complexos parciais. Por essa
razão, estes conseguem cumprir suas funções dentro do processo total tanto
melhor quanto mais enérgica e autonomamente elaborarem a sua
particularidade específica. Isso fica diretamente evidente para a esfera do
direito. (LUKÁCS, 2013, p. 248)
O exemplo perfeito das simultâneas particularização, autonomização e
dependência dos complexos sociais diante de outros complexos e do complexo social
total está na esfera do direito. Pelo que vimos, justamente a homogeneização formal,
a formação de um sistema aparentemente autônomo e o ensimesmamento dos juristas
são desenvolvidos em meio às distintas funções que o complexo jurídico cumpre na
reprodução do ser social. E as categorias jurídicas não espelham a realidade efetiva de
modo adequado; ao mesmo tempo, atuam em meio às categorias que compõem esta
realidade mesma. De acordo com Lukács, isso advém de uma especificidade do
espelhamento que aparece na esfera jurídica: “o espelhamento jurídico não possui um
caráter puramente teórico, devendo possuir, muito antes, um caráter eminente e
diretamente prático para poder ser um sistema jurídico real” (LUKÁCS, 2013, p. 239).
Ao mesmo tempo em que se forma um sistema aparentemente autônomo no
plano teórico, este sistema mesmo está ligado imediatamente ao caráter prático da
atividade jurídica. Esta última, como vimos, em conjunto com a teorização sobre ela,
adquire um caráter claramente manipulatório e toda a “constatação jurídica”, assim,
vem a possuir certa ambiguidade. A sistematização jurídica se afasta da realidade na
medida mesma em que opera em meio a ela. As categorias jurídicas são formas de
homogeneização formal, que parecem ser fruto do debate “técnico-jurídico”, porém,
elas são efetivas por meio das categorias que compõem a própria realidade; daí,
segundo Lukács, haver uma espécie de duplo caráter do espelhamento jurídico
(SARTORI, 2010):
Toda constatação jurídica de fatos possui, portanto, um caráter duplo. Por
um lado, pretende-se que ela seja a única fixação no pensamento relevante
de uma factualidade, expondo-a do modo mais exato possível em termos de
definição ideal. E essas constatações individuais devem, por sua vez, compor
um sistema coeso, coerente, que exclui contradições. Diante disso, evidencia-
se, uma vez mais, de modo muito claro que quanto mais elaborada for essa
sistematização, tanto mais ela necessariamente se afastada realidade. O
que no caso da constatação singular de fatos pode representar uma
divergência relativamente pequena, como componente de tal sistema,
interpretado nos termos deste, deve se distanciar bem mais do chão da
realidade. Com efeito, o sistema não brota do espelhamento da realidade,
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mas pode ser sua manipulação homogeneizante de cunho conceitual-
abstrato. (LUKÁCS, 2013, p. 238-239)
Há, simultaneamente, a tentativa e a impossibilidade de se refletir, espelhar, de
modo preciso o ser-propriamente-assim da sociedade. Em cada caso, em cada
controvérsia jurídica, tem-se o ímpeto de escavar os fatos e trazer uma fixação ideal
no pensamento; com isto, a interpretação jurídica poderia se dar de modo correto.
Porém, isto ocorre sem qualquer intenção de apreensão reta do real: em verdade, a
referência precisa ser feita ao se recorrer a um sistema pretensamente coeso, coerente
e sem contradições. Olha-se para a realidade por meio de um sistema que
necessariamente se distancia dela, e que é uma manipulação homogeneizante
conceitual.
Desenvolve-se a tentativa de apreender de modo preciso e exato a realidade
social por meio de um sistema que, necessariamente, se afasta da realidade efetiva e
a homogeneíza de modo manipulatório. Isto é a antítese direta do que ocorre na arte:
o espelhamento artístico traz um elemento imanente ineliminável e que nunca leva a
uma homogeneização mais ou menos manipulatória. A mundanidade é expressa em
um meio homogêneo específico somente na medida em que a forma e o conteúdo
imanentes do real expressam-se de modo coerente, trazendo na própria forma de
aparecimento a manifestação da essência daquilo que é abordado. A esfera jurídica,
portanto, não poderia se afastar mais da estética. De acordo com Lukács, há sempre
na estrutura mesma do direito uma oposição entre a conformação de uma
universalidade abstrata e a singularidade trazida em cada caso concreto. Com isto,
tem-se a inerência de uma homogeneização formal ligada ao próprio funcionamento
mais ou menos prosaico da esfera jurídica. E, assim, tem-se uma “manipulação
homogeneizante de cunho conceitual-abstrato” (LUKÀCS, 2013, p. 239) como algo
que faz parte do ser-propriamente-assim do direito; não se tem um mero desvio na
esfera jurídica, mas sim um desvio que o caracteriza de modo necessário.
Aqui também, vê-se que as teorias jurídicas tentam dar respostas a esta oposição
entre a universalidade abstrata do sistema jurídico e a singularidade do caso concreto.
Uma teoria como a de Dworkin busca trazer o sistema jurídico como algo em constante
construção e que traz uma espécie de lógica interna similar àquela de um romance e
que é marcada pela integridade. Pelo que vemos aqui, a partir de Lukács, pode-se
dizer que o processo e o método manipulatório que marcam o direito são apreendidos
pelo autor americano até certo ponto. Porém, o autor de
Levando os direitos a sério
Lukács diante da estetização do direito
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não faz isto de modo crítico, buscando denunciar aqueles que permanecem no estreito
horizonte jurídico; ele pinta com as tintas da filosofia da linguagem e da hermenêutica
filosófica tal horizonte como se fosse algo profundo e de enorme relevo, no limite,
resolutivo, do ponto de vista social. A teoria jurídica acaba por voltar-se aos próprios
especialistas do direito e trazer a estes ilusões, por vezes, necessárias à conformação
de certa visão colorida sobre a própria atividade e função dos juristas.
A manipulação que caracteriza o método do direito, assim, não é teórica. Como
dissemos, ela é essencialmente prática. E, se é verdade que vimos que a esfera jurídica
surge com uma relação mediada com as lutas de classes, isto também ocorre com o
seu desenvolvimento, em que o caráter manipulatório da atividade jurídica tem uma
função concreta nas lutas de classes e na manutenção da ordem social do capital:
A coesão teórica do respectivo sistema jurídico positivo, essa sua falta de
contraditoriedade oficialmente decretada, é mera aparência. Todavia, apenas
do ponto de vista do sistema; do ponto de vista da ontologia do ser social,
toda forma de regulação desse tipo, até a mais energicamente manipulada,
constitui uma regulação concreta e socialmente necessária: ela faz parte do
ser-propriamente-assim justamente da sociedade na qual ela funciona. Mas,
precisamente por essa razão, o nexo sistemático, sua dedução,
fundamentação e aplicação logicistas são apenas aparentes, ilusórias, porque
a constatação dos fatos e seu ordenamento dentro de um sistema não estão
ancorados na realidade social mesma, mas apenas na vontade da respectiva
classe dominante de ordenar a práxis social em conformidade com suas
intenções. (LUKÁCS, 2013, p. 239-240)
Ao mesmo tempo em que o funcionamento do direito não se dá por uma lógica
propriamente jurídica, o desenvolvimento de algo que neste sentido da teorização
sobre este tipo de lógica é imperativo, como vimos. Na medida mesma em que os
especialistas pensam operar por categorias próprias a determinado meio (meio este
que é autonomizado em um sistema pretensamente coeso, coerente e sem
contradições), eles não o fazem. E, deste modo, há um ponto interessante: a ausência
de contraditoriedade do sistema jurídico não tem como existir porque a oposição entre
uma dimensão universal abstrata e a singularidade de cada caso é inerente à esfera
jurídica. Porém, disto não resulta que a regulação jurídica universal o consiga trazer
certa ausência de contraditoriedade em certo sentido, ligado à regulamentação da
atividade social.
Lukács diz que se tem a aparência de coesão e de falta de contraditoriedade
colocadas no plano teórico: por definição, o sistema jurídico não tem como obedecer
a estes ideais autoimpostos. Porém, a regulamentação jurídica, por mais manipulada
que seja, é socialmente necessária e opera em meio ao ser-propriamente-assim da
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sociedade. E, desta maneira, por trás da manipulação teórica e prática do direito não
se coloca tanto um ímpeto universalizado de um romance em cadeia, ou da
integridade, como quer Dworkin; na atividade prática e na cotidianidade, o direito
opera por meio do Estado e, por conseguinte, em acordo com os interesses e as
vontades das classes dominantes.
A manipulação, portanto, não é um instrumento da teoria e das ilusões
jurídicas. Trata-se de uma forma de operar que se coloca nas disputas classistas de
cada época. E, por isso, como dito, é preciso ver como o direito se relaciona com o
plano da economia, e não com aquele da arte. O complexo jurídico, ao mesmo tempo,
procura ter um acabamento formal baseado em uma homogeneização abstrata e
precisa operar em meio ao ser-propriamente-assim das relações econômicas da
sociedade:
O acabamento formal de um sistema de regulação desse tipo tem uma
relação de incongruência com o material a ser regulado, embora seja seu
espelhamento. Mas, apesar disso, para poder exercer sua função reguladora
ele deve captar corretamente, no plano ideal e prático, alguns de seus
elementos efetivamente essenciais. (LUKÁCS, 2012, p. 238)
O direito opera na superfície da sociedade. No momento em que desenvolve sua
especificidade de modo mais claro, vem a naturalizar de modo enérgico a correlação
entre a mercadoria, o dinheiro e o capital. Toma, portanto, a acumulação de capital
como uma espécie de segunda natureza e, assim, capta corretamente sua função,
mesmo que o faça ao apreender elementos essenciais da sociedade de uma época ao
torná-los eternos.
A regulamentação jurídica, portanto, traz um duplo caráter porque não apreende
nem pode apreender o contraditório acontecer social; também se tem um
espelhamento manipulado da facticidade. Porém, isto traz consigo uma função social
que precisa, no plano ideal e prático, que aspectos essenciais do funcionamento da
sociedade sejam conscientemente interiorizados na prática dos especialistas. No que
chegamos a um ponto importante sobre a manipulação jurídica: ela remete a um
sistema baseado na “manipulação homogeneizante de cunho conceitual-abstrato”
(LUKÀCS, 2013, p. 239); ele também traz consigo a vontade das classes dominantes.
Porém, esta vontade, por vezes, consegue se impor justamente devido à técnica
jurídica moderna. Sem ela, no campo das disputas políticas que se dão na esfera
pública, não haveria como determinados interesses prosperarem. E, assim, a técnica
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jurídica moderna pode trazer posicionamentos políticos a partir de uma manipulação
conceitual-abstrata:
Com a cnica jurídica moderna, todo Estado tem sempre algum “artifício
legal” para proceder em termos legalmente corretos, no plano da forma,
contra correntes e pessoas declaradas perigosas e, com meios de fato
injustos, torná-las “inofensivas”, exatamente como se fazia na época do culto
à personalidade, com o desprezo aberto e cínico de qualquer legalidade.
(LUKÁCS, 2008, p. 172)
O funcionamento do direito, portanto, traz a manipulação classista da legalidade.
Se autores como Dworkin dizem que a legalidade mesma é um conceito interpretativo,
chamam a atenção para um fato essencial: na sociedade capitalista tal qual na URSS
stalinista a legalidade não é propriamente uma proteção ao cidadão, mas um artifício
que somente é efetivo mediante a técnica jurídica moderna e por meio das disputas
classistas. O autor de
Levando os direitos a sério
acredita que a aproximação da esfera
jurídica com a estética pode garantir que isto nunca seja exercido com fins
manipulatórios, e muito menos com a manipulação classista. Por outro lado, segundo
Lukács, o caráter interpretativo do direito precisa ser acentuado, até mesmo porque
“nenhuma lei, artigo de lei etc., é possível sem uma particularização que o determine,
pelo mero fato de que o ponto final de toda a jurisdição é a aplicação ao caso singular”
(LUKÁCS, 1966b, p. 222). E isto não tem como não ocorrer de modo manipulado e em
correlação necessária com um ímpeto classista mais ou menos direto.
Ou seja, há, na melhor das hipóteses, uma ilusão segundo a qual se opera o
direito ao modo de uma teoria hermenêutica baseada no conceito de integridade e de
romance em cadeia. Em verdade, tal ímpeto, independente das posições subjetivas dos
operadores do direito, vem a ser efetivo por meio dos nexos objetivos da economia
capitalista.
A forma jurídica traz consigo a especificidade de ser um complexo que não se
caracteriza somente pela regulamentação jurídica universal. Esta última ampara-se
sobre o “domínio material universal do capital” (LUKÁCS, 2010, p. 283), o qual, por
vezes, precisa da técnica jurídica moderna para se impor.
4
Esta imposição pode se dar
de várias maneiras, com ou sem a participação direta dos especialistas do direito.
Porém, quando envolve a esfera jurídica, traz consigo um método bastante próprio:
4
Aqui o podemos discutir aque ponto este é o caso do stalinismo. Para isso, seria necessário
averiguar como os imperativos do capital por vezes ligados à expansão do parque industrial
estiveram presentes no auge do domínio de Stalin.
Vitor Bartoletti Sartori
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O funcionamento do direito positivo está baseado, portanto, no seguinte
método: manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso
surja não um sistema unitário, mas um sistema capaz de regular na prática
o acontecer social contraditório, tendendo para a sua otimização, capaz de
mover-se elasticamente entre polos antinômicos por exemplo, entre a pura
força e a persuasão que chega às raias da moralidade , visando implementar,
no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação
de classe que se modifica de modo lento ou acelerado, as decisões em cada
caso mais favoráveis a essa sociedade, que exerçam as influências mais
favoráveis à práxis social. Fica claro que, para isso, faz-se necessária uma
técnica de manipulação bem própria, o que basta para explicar o fato de
que esse complexo é capaz de se reproduzir se a sociedade renovar
constantemente a produção de “especialistas” (de juízes e advogados até
policiais e carrascos) necessários para tal. (LUKÁCS, 2013, p. 247)
Lidar com as contradições que apontamos anteriormente acaba por constituir
o próprio método por meio do qual o funcionamento do direito positivo se sustenta.
A técnica jurídica moderna é, como afirmado, “uma técnica de manipulação bem
própria” (LUKÁCS, 2013, p. 247) que es ligada aos especialistas, os quais se
colocam, de modo mais ou menos mediado, como operadores do direito. A formação
destes especialistas, assim, pode oscilar entre polos antinômicos naturalmente, sem
que pareça haver qualquer contradição nisto; tanto a pura força quanto a persuasão
com vestes morais podem ser utilizadas a depender das circunstâncias, e teorias que
justifiquem tais oscilações não faltam.
A de Dworkin, por exemplo, é uma delas e, nela, há tanto uma teorização sobre
um lado da questão quanto de outro. O autor diz, por exemplo, que a justiça é uma
questão que remete à melhor (ou mais correta) teoria do que é justo, moral e
politicamente, e a concepção de justiça de uma pessoa é a sua teoria, imposta pelas
suas próprias convicções sobre a verdadeira natureza dessa justiça” (DWORKIN, 2014,
p. 122). E, assim, o polo da moral e da persuasão é bastante enfatizado. Depois, ele
diz que o direito, porém, é diferente da justiça porque “o direito é uma questão de
saber o que do suposto justo permite o uso da força pelo Estado, por estarem incluídos
em decisões políticas do passado, ou nelas implícitos” (DWORKIN, 2014, p. 122). Ou
seja, o necessário uso da força por parte do Estado. A grande questão seria justificar
este uso por uma teoria em que “o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação
construtiva, de que nosso direito constitui a melhor justificação do conjunto de nossas
práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa que faz dessas práticas as melhores
possíveis” (DWORKIN, 2014, p. XI).
Longe de Lukács confluir com uma posição como esta, como vimos, ele é
profundamente crítico quanto a este meio de proceder. O método da técnica jurídica
Lukács diante da estetização do direito
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 58-88 - mar. 2022| 83
moderna aparece neste campo, em verdade, com toda a força. Mesmo que
subjetivamente um autor como Dworkin possa não desejar qualquer manipulação
classista, o que se tem é justamente o que Lukács descreve: uma “otimização, capaz
de mover-se elasticamente entre polos antinômicos - por exemplo, entre a pura força
e a persuasão que chega às raias da moralidade” e isto se daria visando implementar,
no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classe
que se modifica de modo lento ou acelerado” de modo a se ter “as decisões em cada
caso mais favoráveis a essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis à
práxis social” (LUKÁCS, 2013, p. 247). Ou seja, uma confluência bastante grande
entre o método manipulatório criticado por Lukács e o modo de proceder de alguém
como Dworkin.
Não só a aproximação entre direito, estética e literatura é absurda. O modo pelo
qual ela é desenvolvida é aquele em que a manipulação é necessária. De um lado,
um sistema unitário e supostamente baseado em uma lógica jurídica (ou em um ideal
de integridade, relacionado à noção de romance em cadeia); de outro, tem-se que este
sistema precisa ser capaz de regular o acontecer social contraditório. O funcionamento
mesmo do direito positivo traz consigo necessariamente um método que opera da
maneira descrita acima. Por mais que autores como aquele de
Levando os direitos a
sério
procurem dar uma tônica diferente a este método, de acordo com Lukács, eles
estão pintando com cores róseas determinações aviltantes que são inerentes ao
complexo jurídico.
Ao se falar da oscilação entre polos antinômicos, notamos que a sistematização
do direito, bem como a autonomização deste complexo, é fruto necessário do
desenvolvimento social. Porém, segundo Lukács, é possível que se tenha certa
oposição a este desenvolvimento dentro do próprio funcionamento do direito. Se
haveria, de um lado, uma ênfase no sistema unitário, coerente, e carente de
contradições, o oposto também poderia ocorrer; a técnica jurídica moderna poderia
muito bem ignorar o próprio ideal de legalidade, ou reinterpretá-lo, para que se
tenham “as decisões em cada caso mais favoráveis a essa sociedade, que exerçam as
influências mais favoráveis à práxis social” (LUKÁCS, 2013, p. 247). E, com isto, o
direito e as ilusões jurídicas não teriam, de modo algum, como se aproximarem da
esfera estética; antes, isso sempre foi ilusório, mas trazia consigo o polo da persuasão
e da moral. vezes, porém, em que no direito passa a preponderar algo que se
assemelha muito ao simples cálculo econômico.
Vitor Bartoletti Sartori
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Sobre este assunto, que aparece explicitamente em teorias como as de Richard
Posner (2011) expoente da análise econômica do direito, contra quem Dworkin se
insurge , Lukács também se posiciona. O autor húngaro diz que o fetichismo centrado
na sistematização do direito acaba por dar lugar a outra forma de fetichismo, que
também estaria presente no direito, aquela segundo a qual o cálculo econômico é
central. Ou seja, os polos antinômicos que marcam o funcionamento do direito positivo
também aparecem nas teorizações sobre o direito. Estas últimas acabam por trazer
uma visão ideal e ilusória sobre as práticas jurídicas de uma época e a oscilação entre
os pontos de vista mencionados não adviria simplesmente dos debates jurídicos, mas
das determinações presentes nas contradições sociais que dão o conteúdo concreto
da esfera jurídica.
Foi a abrangência total cada vez mais abstrata do direito moderno, a luta
para regular juridicamente o maior número possível de atividades vitais
sintoma objetivo da socialização cada vez maior da sociedade , que levou
ao desconhecimento da essência ontológica da esfera do direito e, por essa
via, a tais extrapolações fetichizantes. O século XIX, o surgimento do Estado
de direito que foi se aperfeiçoando gradativamente, fez com que esse
fetichismo aos poucos esmaecesse, mas apenas para dar origem a um novo.
À medida que o direito foi se tornando um regulador normal e prosaico da
vida cotidiana, foi desaparecendo no plano geral o
thos
que adquirira no
período do seu surgimento e mais fortes foram se tornando dentro dele os
elementos manipuladores do positivismo. Ele se torna uma esfera da vida
social em que as consequências dos atos, as chances de êxito, os riscos de
sofrer danos são calculados de modo semelhante ao que se faz no próprio
mundo econômico. (LUKÁCS, 2013, p. 236)
O movimento de consolidação do direito moderno traria consigo a
regulamentação jurídica universal, que é a expressão jurídica do domínio universal do
capital. Uma vez consolidado este processo, tem-se, segundo Lukács, certa
centralidade sendo colocada na noção de Estado de direito; trata-se do processo em
que a classe burguesa deixa de trazer um ímpeto politicamente progressista e em que
se tem a “transformação [...] da democracia revolucionária em um liberalismo covarde
e de compromisso, que flerta com qualquer ideologia reacionária” (LUKÁCS, 2011, p.
391).
O processo de implementação da regulamentação jurídica universal é aquele da
luta pela centralização política do Estado moderno, pela supressão do localismo
político, contra os privilégios feudais e a favor da economia capitalista. O
pathos
original do direito moderno, portanto, é revolucionário. A expressão jurídica deste
processo é fetichista e se expressa no desconhecimento da essência ontológica da
sociedade, necessário à formação dos sistemas e das lógicas jurídicas. Trata-se do
Lukács diante da estetização do direito
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 58-88 - mar. 2022| 85
fetichismo que criticamos. Porém, como mencionado, outra forma de fetichismo, que
também se coloca no direito com a perda de qualquer
pathos
revolucionário, aquela
inerente ao positivismo. E ela vem justamente com a consolidação do estado de direito.
A democracia revolucionária, com certos ideais ligados ao direito natural,
expressou-se no ímpeto ligado ao polo da persuasão e da moral. No caso do Estado
de direito, acompanhado pelo liberalismo, ocorre a regulamentação jurídica universal
como algo prosaico. A cotidianidade e os hábitos dos indivíduos tomam o direito
como um regulador prosaico da vida cotidiana e, deste modo, os elementos
manipulatórios do positivismo tomam a dianteira de modo ainda mais brutal. Antes,
isto se dava com a manipulação conceitual-abstrata em foco; agora, o enfoque está
diretamente ligado às consequências dos atos regulados, que deveriam se ajustar
otimamente tendo-se, assim, repetimos, “as decisões em cada caso mais favoráveis a
essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis à práxis social” (LUKÁCS,
2013, p. 247). Trata-se, portanto, de outra forma de fetichismo.
5
Ambas são inerentes
ao funcionamento do direito.
De um lado, no limite, uma visão estetizada do direito, de outro, uma visão
economicista. Aqui não podemos tratar do assunto, mas talvez seja possível dizer que
visões como a de Dworkin tentam acentuar unilateralmente o “lado bom” do direito
enquanto aquelas como a de Posner procuram destacar, de modo igualmente
unilateral, o “lado mau” do funcionamento do direito positivo. Para o que nos cabe
aqui, é bom que fique claro que Lukács é crítico a ambas as posições. Ainda não
uma crítica imanente às teorias do direito, infelizmente. E esta tarefa precisa ser
realizada, amesmo porque aquilo que coloca Lukács sobre o funcionamento e o
método do direito positivo parece convergir bastante com as unilateralidades das
teorias jurídicas.
O espelhamento jurídico, tanto em sua expressão mais ligada à prática quanto
em sua vertente teórica, é profundamente marcado pela manipulação. E, assim, uma
posição como a de Varga (2012), que tenta aproximar Lukács de autores como
Dworkin, é, para dizer o mínimo, profundamente equivocada. Ao mesmo tempo, ela
mostra a necessidade de uma crítica imanente às teorias do direito e, por isto, tal
5
Posner fala sobre o utilitarismo que “nesta concepção a transação de mercado é considerada como
paradigma da ação moralmente adequada. Esta concepção, embora abominável para quem quer que
conserve mesmo o mínimo de simpatia em relação ao socialismo nesta era de triunfo do capitalismo
pode ser defendida (ainda que não se saiba ao certo com que grau)” (POSNER, 2011, p. 101).
Vitor Bartoletti Sartori
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colocação errada do intérprete da obra de Lukács pode render trabalhos futuros, a
nosso ver, necessários.
Apontamentos finais
Pelo que vimos, as tendências que se colocam na teoria do direito são passíveis
de crítica a partir da teoria de Lukács. Em verdade, elas expressam justamente o que
foi profundamente criticado pelo autor húngaro: o funcionamento necessariamente
manipulatório do direito e a oscilação entre polos antinômicos que caracteriza o
método do direito positivo e da teorização sobre ele. Aqui, porém, sequer entramos
na crítica imanente propriamente dita a estas teorias, embora acreditemos que isto
seja necessário.
Nesta empreitada, seria preciso tanto uma crítica à fundamentação filosófica das
teorias do direito (colocada na filosofia da linguagem e na hermenêutica filosófica)
quanto um estudo aprofundado de sua gênese, estrutura e função social. Aqui,
pretendemos explicitar como a obra lukácsiana é a antítese direta destas teorias.
Enfocamos, principalmente, o modo pelo qual, a partir de Lukács, é impossível
aproximar a esfera jurídica da estética. Ao mesmo tempo em que procuramos explicitar
como tal aproximação parece fazer todo o sentido para aquele que atua como jurista.
Ou seja, a própria conformação dos especialistas em uma posição objetiva na divisão
do trabalho faz com que pareça ser plausível a relação entre arte e direito, ao mesmo
tempo em que torna tal relação absolutamente esdrúxula. Os próprios elementos
manipulatórios, que são indissociáveis do funcionamento do direito, são pintados com
tintas róseas pelas teorias do direito. Assim, qualquer solução para as questões que
aparecem de modo deformado nas teorias jurídicas nunca poderia aparecer nestas
mesmas teorias. Em verdade, ela remete ao funcionamento da própria sociedade e à
necessária transformação substantiva da sociedade capitalista, trazendo uma
sociabilidade superior. A obra madura de Lukács buscou trazer as condições teóricas
para isto e é, no mínimo, equivocado tentar aproximar as teorias do autor húngaro
com as de alguém como Dworkin.
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Como citar:
SARTORI, Vitor Bartoletti. Lukács diante da estetização do direito.
Verinotio
, Rio das
Ostras, v. 27, n. 2, pp. 58-88, mar. 2022.
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
A relação entre objetividade e subjetividade
no ato estético
The relationship between objectivity and subjectivity in the aesthetic act
Monica Hallak Martins da Costa*
Resumo: Este artigo tem por objetivo
acompanhar a análise de Lukács acerca da
especificidade do espelhamento artístico. Para
tanto, o autor diferencia o reflexo estético
daqueles da ciência e do cotidiano. A partir deste
contexto, Lukács analisa o papel da
Entäusserung
no pôr estético. A abordagem de
Lukács será cotejada com a análise de Chasin do
complexo objetividade/subjetividade e, ao final,
serão levantadas algumas questões acerca da
dupla base (natural e social) da produção
humana.
Palavras-chave: Ontologia do ser social; György
Lukács; marxismo e estética.
Abstract: This article aims to follow Lukács'
analysis of the specificity of artistic mirroring.
Therefore, the author differentiates the
aesthetic reflection from those of science and
everyday life. From this context, Lukács
analyzes the role of
Entäusserung
in aesthetic
putting. Lukács' approach will be collated with
Chasin's analysis of the objectivity/subjectivity
complex and, at the end, some questions will be
raised about the double basis (natural and
social) of human production.
Keywords: Ontology of the social being; György
Lukács; Marxism; Aesthetics.
Imortal é o autor que lega polêmica à posteridade.
Antes de iniciar a elaboração de sua
Ontologia
, Lukács concluiu a
Estética
,
publicada em 1963. Nessa grande obra (que, não obstante suas 1.600 páginas, era
apenas a primeira parte de um projeto maior), Lukács tratou da alienação apoiando-
se em Hegel. Vejamos, de início, como compreende os reflexos científico e estético
para, posteriormente, tratar de forma específica da
Entäusserung
, como momento do
espelhamento estético.
Na abordagem inicial em
Estética,
Lukács apresenta os elementos do pensamento
cotidiano a partir dos quais brotam as diferenciações tanto do pôr científico quanto
do artístico. Seu escopo é o de capturar a especificidade do estético delimitando sua
distinção em relação à ciência. Para a compreensão do significado da
Entäusserung
em Lukács, a distinção é importante tanto para compreender a apropriação da
Entäusserung
hegeliana na análise da relação sujeito/objeto na arte, quanto para
* Doutora em serviço social; professora do curso de serviço social da Pontifícia Universidade Católica
(PUC Minas). E-mail: monicahallak@uol.com.br.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.647
Monica Hallak Martins da Costa
90 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 89-114 - mar. 2022
refletir a futura introdução (Lukács o fará explicitamente em
Ontologia
) dessa
categoria na análise de toda objetivação humana como uma característica do trabalho
em geral.
Nos passos subsequentes àquela primeira abordagem do pensamento cotidiano,
Lukács detalha os momentos distintivos que dão origem à ciência e à arte. Ele havia
exposto que, tanto uma quanto a outra forma de reflexo, nascem do metabolismo entre
homem e natureza, pois a “gênese real das objetivações deve encontrar-se na própria
hominização, no paulatino nascer da linguagem e do trabalho” (LUKÁCS, 1970, p. 51).
Nesse processo, os sentidos são constituídos na ordenação e armazenamento de
experiências visuais, auditivas etc. graças à intervenção do pensamento que torna
possível a substituição de um sentido pelo outro, assim, o “olho assume as mais
variadas funções perceptivas do tato, das mãos, com o que estas se tornam disponíveis
para o trabalho propriamente dito e podem desenvolver-se de forma superior e
diferenciar-se cada vez mais” (LUKÁCS, 1970, p. 51).
Os experimentos rudimentares baseiam-se, antes de tudo, na imitação dos
objetos imediatamente encontrados, mas as ferramentas assim produzidas são
modificadas em função do que Lukács chamou de “imitação do aspecto subjetivo”, ou
seja, “de uma imitação dos movimentos que dão bom resultado na prática do trabalho,
da continuidade de sua experiência. Assim pois, quanto mais relativa ao homem é a
imitação, tanto mais fecundamente pode continuar a operar inclusive em estágios
superiores” (LUKÁCS, 1970, p. 72).
Conforme ainda observa:
Em sua forma humana, a imitação pressupõe uma relação sujeito-objeto
relativamente elaborada, porque essa imitação se orienta claramente até um
objeto determinado como parte ou momento do entorno do homem; isso
supõe uma certa consciência de que esse objeto se encontra frente ao sujeito,
existe com independência dele, mas, em certas circunstâncias, pode
modificar-se pela atividade do sujeito. (LUKÁCS, 1970, p.72)
E por isso pode dizer, com segurança, que o homem primitivo se encontra em
um nível qualitativamente superior aos animais mais evoluídos pelo fato de que o
conteúdo do reflexo e da imitação tem como meio a linguagem e o trabalho” (LUKÁCS,
1970, p. 72), o que, mesmo em estágios rudimentares de desenvolvimento, pressupõe
a relação entre sujeito e objeto. Relação essa que se constrói objetivamente, na
atividade e a partir de todos os sentidos. Mesmo assim, diz: “todo o mérito do rápido
progresso da civilização se atribui à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 89-114 - mar. 2022| 91
cérebro” (LUKÁCS,1970, p. 76).
Lukács dedica parte do capítulo referente às diferenciações produzidas a partir
do cotidiano para o exame do reflexo religioso, do qual só trataremos na medida em
que envolver uma forma específica de espelhamento que deve ser diferenciada do
espelhamento estético, aquele chamado pelo filósofo de subjetivista-antropomórfico,
no qual “a imagem cósmica [...] se centra teleologicamente no homem (seu destino,
sua salvação), se refere diretamente a seu comportamento em relação a si mesmo, em
relação a seus próximos, em relação ao mundo” (LUKÁCS, 1970, p. 99). Essa forma de
comportamento em relação a si mesmo do homem entra, com frequência, em
divergência, na vida cotidiana, com o trato científico da realidade, visto que:
O conhecimento científico serve, simplesmente, para superar todas as
consequências subjetivas imediatas e a priori, para mover aos homens a
operar sobre a base de uma consideração objetiva e sem preconceitos dos
fatos e da conexão entre eles. Esta tendência opera também, como é natural,
na vida cotidiana: o choque entre as duas atitudes ocorre muito
frequentemente na consciência humana o como tal choque entre atitude
científica e atitude religiosa, mas seu sentido segue sendo, inclusive em níveis
elevados de desenvolvimento, uma divergência real do pensamento
cotidiano. (LUKÁCS, 1970, p. 99-100)
A
questão
que se coloca é, pois, “[...] se o domínio humano da realidade pode
ter lugar sobre uma base antropomorfizadora, teleologicamente centrada no homem,
ou se exige necessariamente um distanciamento mental em relação aos ditos
momentos” (LUKÁCS, 1970, p. 100). A essa exigência de distanciamento mental do
homem em relação a si mesmo Lukács chama desantropomorfização, traço típico do
reflexo científico que pressupõe a dedicação exclusiva a um campo homogêneo sobre
o qual o homem está inteiramente voltado.
Para que esse reflexo se realize é necessário, é certo, um salto em relação ao
campo heterogêneo da cotidianidade, melhor dizendo, um deslocamento do aspecto
específico da realidade a ser analisado, sob a ótica científica, para um espaço no qual
este elemento destacado é o centro. Na vida cotidiana, esse tipo de isolamento não é
possível, por ser a esfera do homem inteiro, ocupado com as mais diversas atividades
necessárias para sua reprodução física e social. Como constataremos em páginas
vindouras, também o espelhamento artístico pressupõe a separação em relação à vida
cotidiana, separação que se expressa efetivamente no fato de, tanto o exercício da arte
quanto da ciência, exigirem “certo ócio, uma certa liberdade por mais que relativa
em relação às preocupações cotidianas, em relação às reações imediatas da
cotidianidade às necessidades elementares” (LUKÁCS, 1970, p. 170). Tal afirmação
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encontra ressonância nos
Manuscritos de 1844
, no qual Marx afirma que o homem
(diferentemente do animal) produz verdadeiramente quando livre da necessidade
física imediata.
No caso do reflexo científico, o salto em relação ao cotidiano significa certa
dessubjetivação
que, no entanto, “não suprime as propriedades, qualidades decisivas
do homem inteiro que esse salto, senão na medida em que obstaculizam a
reprodução do meio homogêneo pelo sujeito” (LUKÁCS, 1970, p. 147); pelo contrário,
exige agudeza, dom de observação, capacidade de combinar dados, constância,
capacidade de resistência adquiridos a partir da lida no cotidiano.
Lukács esclarece que a desantropomorfização não tem nenhuma relação com
tendências anti-humanas, estas “nascem sempre do solo da vida histórico-social, das
estruturas sociais, de situações de classe no seio de uma formação” (LUKÁCS, 1970,
p. 148). Nas relações capitalistas de produção, o princípio desantropomorfizador, de
fato, aparece “[...] em função do desejo de lucro como força impulsora, como princípio
da inumanidade extrema e até de anti-humanidade”, mas ele é “essencialmente um
princípio de progresso e de humanização”, salienta marcando sua contraposição em
relação à “crítica romântica, retrógrada” (LUKÁCS, 1970, p.160).
Em um rápido apanhado histórico, resgatando o percurso filosófico de defesa
das tendências desantropomorfizadoras, Lukács valoriza, sobretudo, o trabalho de
Bacon, autor que “levou a cabo a separação entre pensamento cotidiano e reflexo
científico-objetivo da realidade em si de um modo muito mais amplo e sistemático que
qualquer outro [...] nesse período fundamental” (LUKÁCS,1970, p. 152). Resume o
“sentido central e mais geral da epistemologia baconiana” comparando-a aos esforços
metodológicos de Galileu: “trata-se de transformar de tal modo o sujeito humano, de
superar de tal modo suas limitações imediatamente dadas, que seja capaz de ler o
livro da realidade em si” (LUKÁCS, 1970, p. 156).
Também em Spinoza, o referido escritor encontra, sem desconsiderar as
distinções em relação a Bacon, a preocupação de reeducar o “sujeito no sentido da
recepção das leis da realidade em si, sem deformações humano-subjetivas, a reflexão
sobre a realidade segundo sua própria natureza, e não segundo os efeitos humanos,
e a sistematização do todo”, transformação que se torna possível pelo
“distanciamento em relação ao pensamento cotidiano, de sua imediatez e seu
antropomorfismo” (LUKÁCS, 1970, p. 156).
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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Mesmo explicitando a crescente diferenciação da ciência em relação ao cotidiano,
Lukács nunca deixa de destacar a constante interação entre as duas esferas, seja por
meio das perguntas postas pelas necessidades do dia a dia, seja pela “influência
inversa das conquistas da ciência na prática cotidiana” (LUKÁCS, 1970, p. 163). Por
isso mesmo, de certa forma, Lukács responde aqui àqueles críticos que veem, em sua
análise, a presença de tendências totalizantes em relação à possibilidade do
conhecimento, pois justamente em função desse constante intercâmbio, ele esclarece
que o conteúdo da realidade “[...] não pode ser nunca esgotado nem pela ciência e a
arte mais perfeitas”. Em parte porque sempre aspectos da realidade ainda o
explorados ou explorados de uma forma e não de outra, “e em parte porque essa
infinitude extensiva e intensiva da realidade objetiva produz também a correspondente
inesgotabilidade dos problemas vitais de cada indivíduo humano, a um nível cada vez
mais alto” (LUKÁCS, 1970, p.166), a saber, surgem novos problemas inexistentes nas
formas anteriores, problemas cada vez mais específicos e, ao mesmo tempo, mais
amplos; o que significa dizer que objetividade e subjetividade desenvolvem-se em
interação, ainda que, muitas vezes, tal interação tenha a marca da contraditoriedade.
Como expressa Chasin, “objetividade e subjetividade humanas são produtos da
autoconstutividade do homem [...]. O homem e seu mundo são produções de seu
gênero a interatividade universal e mutante dos indivíduos em processualidade
infinita” (CHASIN, 2009, p. 92). A interação entre objetividade e subjetividade ocorre
em todas as formas da atuação humana, “não importa quão radicalmente contraditória
e, de fato, cruel, perversa e mutiladora seja a maior parte dessa trajetória sem fim”
(CHASIN, 2009, p. 93).
Se, na esfera da ciência, as contradições entre subjetividade e objetividade
tendem a se reproduzir de acordo com a especificidade de sua diferenciação em
relação ao cotidiano (o que inclui e implica decididamente relações sociais de
produção), na arte esse desenvolvimento assume características peculiares. Segundo
Lukács (1970), a esfera da arte não está tão arraigada à necessidade social de
produção e de reprodução da mera existência, como a necessidade da ciência. Para o
autor, essa aproximação maior da ciência em relação à vida cotidiana é facilmente
perceptível, pois a
[...] consecução de conhecimentos acerca do mundo externo circundante, o
incipiente descobrimento de suas conexões, é uma parte tão integrante da
prática cotidiana que inclusive os homens mais primitivos têm que percorrer
esse caminho, sob pena de perecer (LUKÁCS, 1970, p. 170).
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A necessidade da ciência aparece, por esse motivo, como necessidade de
sobrevivência do próprio homem, necessidade de conhecer a realidade à sua volta, ter
o mínimo de controle sobre ela.
A distinção entre o campo da arte e o da ciência aparece nitidamente na forma
do espelhamento: no caso da ciência, o reflexo busca conhecer a realidade objetiva,
“levando à consciência seus conteúdos, suas categorias etc.”, na arte opera-se o
movimento contrário, “tem lugar uma projeção de dentro para fora” (LUKÁCS, 1970,
p. 178). Trata-se, portanto, da diferença entre os princípios antropomorfizador e
desantropomorfizador. No entender do autor, a objetividade estética ainda que
também ela antropomorfizadora, se distingue qualitativa e essencialmente das formas
de objetividade da cotidianidade, a religião e a magia” (LUKÁCS, 1970, p. 178).
A exigência de diferenciação, para fins analíticos, não significa, claro, que na
realidade essas esferas se desenvolvam autonomamente. De modo adverso, para o
analista em questão, as “primeiras formas de expressão do reflexo científico e filosófico
da realidade aparecem mescladas com elementos estéticos” (LUKÁCS, 1970, p. 179).
Mais do que isso: o desenvolvimento da ciência e da filosofia permite e promove
efetivamente o surgimento de novas expressões artísticas, porquanto “por trás da
transformação qualitativa dos fatos da vida, das relações entre os homens, das
condições de sua ação, de sua psicologia, de sua moral, atuam forças sociais objetivas,
que a pesquisa científica pode descobrir e explicar” (LUKÁCS, 1970, p.182) e todas
essas transformações são matérias-primas da expressão do artista. Assim, no mesmo
processo por meio do qual os objetos da natureza são conhecidos, convertidos no
reflexo científico, de objetos em-si em objetos para-nós” nascem objetivamente outros
produtos como a música, a arquitetura com “traços diversos dos meramente
destinados à conversão do em-si em para-nós (LUKÁCS, 1970, p.189) da ciência. Para
Lukács, a diferença entre os objetos produzidos pela arte e pela ciência é que o último
uma vez produzido é tão em-si como os objetos naturais.
Por diversas que sejam sua
estrutura objetiva e as leis de sua eficácia em relação às leis da natureza, seu reflexo
científico procede igualmente pelo direto caminho que vai do em-si ao para-nós”
(LUKÁCS, 1970, p. 189-190, grifo nosso). O autor compreende que, no campo da
ciência, é “mais difícil conseguir a forma pura da objetividade” (LUKÁCS, 1970, p. 189-
190), visto que o espelhamento científico se volta para as leis e estrutura da
objetividade exterior, da matéria natural pronta e acabada e o espelhamento estético
debruça-se sobre a compreensão interior, para a conformação subjetiva; porém, a
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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própria interioridade se constitui socialmente, e não de forma isolada e interna.
A formulação de Lukács, reproduzida sinteticamente acima, inspira-se, segundo
reconhece o autor, nos
Manuscritos de 1844
. Ele assume abertamente essa filiação ao
pensador alemão ao citar um longo trecho desses rascunhos no qual aparece a
conhecida afirmação de que a “formação dos cinco sentidos é fruto de toda a história
do mundo até aqui” (MARX, 2004, p. 110). Marx não se refere especificamente à arte,
ainda que tenha utilizado exemplos relacionados à música (ao ouvido musical) e à
beleza da forma (ao olho capaz de percebê-la). Ele também fala do homem faminto
que não percebe a forma humana do alimento, ou seja, uma forma na qual a
subjetividade, o saber, os sentidos formados humanamente estão presentes. Nossa
alimentação é subjetividade humana objetivada em produtos sociais, constituídos
historicamente no contato entre os homens.
A amplitude da análise de Marx não passou despercebida pelo filósofo húngaro.
Lukács salienta que o desenvolvimento dos cinco sentidos aludido por Marx
“compreende naturalmente muito mais que o desenvolvimento de uma receptividade
estética” e o “exemplo dos alimentos mostra que em sua concepção trata-se antes de
tudo de manifestações elementares da vida, cuja elevação objetiva e subjetiva é
produto do desenvolvimento do trabalho” (LUKÁCS, 1970, p. 191). Mesmo assim, ele
observa que as “interações entre objetividade e subjetividade pertencem à essência
objetiva das obras de arte” (LUKÁCS, 1970, p.190). E não pertenceriam também,
perguntamos, à essência objetiva de todo produto social? Chasin forjou, a partir de
Lukács
1
, a expressão
dação de forma
para explicitar o significado da prática social,
humana: “uma vez que a efetivação humana de alguma coisa é dação de forma humana
à coisa, bem como só pode haver forma subjetiva, sensivelmente efetivada, em alguma
coisa” (CHASIN, 2009, p. 97). Por isso, é pela mediação da prática que “objetividade
e subjetividade são resgatadas de suas mútuas exterioridades [...] de tal modo que
interioridade subjetiva e exterioridade objetiva são enlaçadas e fundidas, plasmando
o universo da realidade humano-societária” (CHASIN, 2009, p. 98).
Para Lukács, no caso da obra de arte é válida a máxima “que em qualquer outro
1
Cf. LUKÁCS, 1970, p. 167;1982, p. 215. A edição italiana (1970) da
Estética
traduziu por “figuração”.
Na edição espanhola (1982), a tradução é “dação de forma”.
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campo da vida humana seria idealismo filosófico” segundo a qual “não pode existir
objeto algum sem sujeito” (LUKÁCS, 1970, p. 190).
Outra aquisição, reconhecida por Lukács, a partir das ideias de Marx, além do
reconhecimento “da historicidade radical da arte e da receptividade artística”, é a
consideração do autor dos
Manuscritos de 1844,
de que “os sentidos,
qualitativamente distintos, tem que possuir relações (e, portanto, interações) também
qualitativamente distintas com o mundo dos objetos” (LUKÁCS, 1970, p.191). Ainda
assim “sempre são sentidos de um homem inteiro” que “vive em sociedade com seus
semelhantes, desenvolve nessa sociedade suas mais elementares manifestações vitais
e consequentemente tem em seus sentidos elementos e tendências profundamente
comuns com as desses outros homens”. A heterogeneidade e separação entre os
sentidos, portanto, não significa que possam se separar hermeticamente uns dos
outros” (LUKÁCS, 1970, p. 195), porque
A divisão do trabalho entre os sentidos, a facilitação e o aperfeiçoamento do
trabalho por meio deles, a recíproca relação de cada sentido com os demais
através dessa colaboração cada vez mais diferenciada, a crescente conquista
do mundo externo e interno do homem [...] tudo isso põe [...] a tendência a
desenvolver mais peculiarmente as próprias qualidades imanentes e a
conquistar para estas uma tal universalidade, uma tal capacidade de
compreensão que sem prejuízo da independência de cada arte em
particular penetre progressivamente no que é comum a todas , o meio do
estético. (LUKÁCS, 1970, p. 195-196)
Comum a todos os sentidos e a todos os homens é, antes de tudo, o metabolismo
da sociedade com a natureza que se efetiva em relações de produção determinadas.
Por isso Lukács considera:
Quanto mais forte é, intensiva e extensivamente, esse intercâmbio ou
metabolismo, tanto mais acusadamente aparece na arte o reflexo da própria
natureza. Esse reflexo não é o ponto de partida, pelo contrário, é o produto
de um nível sumamente desenvolvido do dito intercâmbio. Mas, de outra
parte, o reflexo do intercâmbio da sociedade com a natureza é o objeto
último e verdadeiramente conclusivo do reflexo estético. Em-si,
objetivamente, esse intercâmbio contém a relação de todo indivíduo com o
gênero humano e com seu desenvolvimento. Este conteúdo implícito se
explicita na arte, e o em-si, com frequência oculto, aparece como um plástico
ser-para-si. (LUKÁCS, 1970, p. 197)
O autor admite que esse processo também ocorre na vida cotidiana, no
intercâmbio presente no próprio trabalho, mas para ele no trabalho “as componentes
objetiva e subjetiva conseguem uma eficácia relativamente independente,
desenvolvem-se com relativa autonomia, ainda que, sem dúvida, em ininterrupta
interação” (LUKÁCS, 1970, p. 197). A arte aparece, em sua análise, como o
desenvolvimento da componente subjetiva, que só pode ser tardio, pois, ela nasce do
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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desenvolvimento da objetividade por meio do metabolismo da sociedade com a
natureza que “manifesta constantemente aspectos novos, novas leis etc. da natureza
em sua relação com o homem, e inclui assim a própria natureza, intensiva e
extensivamente, cada vez com mais energia naquele intercâmbio com a sociedade”
(LUKÁCS, 1970, p. 198). A unidade entre subjetividade e objetividade
[...] significa, pois, que se abandona a unidade de um determinado estádio
do desenvolvimento para substituí-la por outra mais complicada, mais
mediada, mais altamente organizada. Este processo está em íntima interação
com o desenvolvimento da componente subjetiva, cujo desenvolvimento,
imediata e aparentemente, é interno (LUKÁCS, 1970, p. 198).
Esse desenvolvimento, que é interno aparentemente, realiza-se, de fato, no
intercâmbio com os objetos e relações efetivamente constituídos na vida social. Sob
esse aspecto, diferentemente do reflexo científico que nem sempre espelha o
intercâmbio com a natureza, que desenvolve “caminhos próprios que não
desembocam de novo naquele processo senão através de amplas mediações” (a
matemática, por exemplo), o reflexo artístico só “pode captar e conformar a natureza
com seus próprios meios” (LUKÁCS, 1970, p. 198), tendo por base o metabolismo
entre o natural e o social.
Outra distinção em relação ao reflexo científico é que este deve sempre buscar
“as determinações gerais do objeto estudado em cada caso”, enquanto na arte o
reflexo “se orienta imediata e exclusivamente a um objeto particular” (LUKÁCS, 1970,
p. 199). A particularidade refere-se, em primeiro lugar, à linguagem própria de cada
objeto artístico (palavra, som, imagem), mas também ao modo próprio do objeto
estético se expressar. Segundo Lukács, “a generalização estética é a elevação da
individualidade ao típico e não como na científica, o descobrimento da conexão entre
o caso individual e a legalidade geral”. Por isso, “a base real que subjaz a todo reflexo,
a sociedade em seu intercâmbio com a natureza, não pode manifestar-se senão” por
meio de “mediações, postas em movimento pela imediatez estética evocadora”, o que
vale para o objeto que conforma a imediatez de “um fragmento da natureza (como na
pintura paisagística)” e para aquele que traduz um “acontecimento humano puramente
interno (como no drama)” (LUKÁCS. 1970, p. 199).
O típico expresso nos objetos da arte sempre se volta para reflexão da própria
subjetividade, orienta-se ao próprio homem abarcando “os conteúdos do mundo
concreto do modo mais completo possível” (LUKÁCS, 1970, p. 202). Trata-se da velha
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e, segundo Goethe
2
, inútil exigência de conhecer-se a si mesmo. O filósofo húngaro,
amparado no literato alemão, recusa a orientação à interioridade na referência ao
sujeito e se norteia em um comportamento direcionado ao mundo. Desse modo, ele
prepara o leitor para a compreensão da especificidade da antropomorfização na arte,
posto que, agora, ele pode dizer que o desprendimento “da autoconsciência em
relação à prática cotidiana [...] não é nenhuma supressão do reflexo antropomorfizador,
mas só a constituição de uma peculiar espécie dele, independente e qualitativamente
nova” (LUKÁCS, 1970, p. 203). Significa referir-se a uma forma de antropomorfização
que não se volta para a reprodução do particular, como no caso da vida cotidiana, mas
que busca responder à seguinte questão: “até que ponto é realmente este mundo um
mundo do homem, um mundo que ele possa afirmar como mundo próprio, adequado
à sua humanidade?” (LUKÁCS, 1970, p. 204).
Ao evidenciar a peculiaridade do reflexo antropomorfizador da arte, Lukács não
está isolando a expressão estética do comportamento cotidiano. Ao contrário, segundo
ele:
Na vida cotidiana os desejos e as satisfações se centram [...] no indivíduo:
por um lado, nascem de sua existência individual, real e particular e, por
outro, se orientam a uma satisfação real, prática, de desejos pessoais
concretos. Não dúvida de que a conformação artística nasce
originariamente desse solo. (LUKÁCS, 1970, p. 204)
Na arte, no entanto:
Surge um tipo particular de generalização [...] estritamente contraposta à
desantropomorfização da ciência, [ela] consiste em que o artisticamente
conformado se libera da individualidade meramente particular e, com isso,
da satisfação prático-fática da necessidade, cismundana ou ultramundana,
mas sem perder o caráter de vivencialidade individual e imediata. Ainda mais:
este tipo de generalização tem precisamente a tendência a robustecer e
aprofundar esse traço. Pois, preservando a individualidade no objeto e em
sua recepção, sublinha o genérico e supera desse modo a mera
particularidade. (LUKÁCS, 1970, p. 205)
Assim, consoante à visão do analista, a expressão artística eleva a “um nível
superior a determinação da autoconsciência, da estreita e particular esfera do
2
Sobre a exigência de conhecer a si mesmo, Lukács cita Goethe no livro publicado por Eckermann,
Conversações com Goethe
: “Sempre é dito e repetido que que intentar conhecer-se a si mesmo.
Curiosa exigência, que nada tem satisfeito até agora e que propriamente não cumprirá nada. O homem
está orientado, com todos os seus sentidos e aspirações, ao externo, ao mundo em torno de si, e está
bastante ocupado no trabalho de conhecer esse mundo e -lo a seu serviço na medida em que o
necessita para seus fins. Ele conhece a si mesmo quando goza ou quando sofre, e a dor e a alegria
lhe informam sobre si mesmo, dizem-lhe o que deve buscar ou evitar” (GOETHE
apud
LUKÁCS, 1970,
p. 202).
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meramente cotidiano e adquire uma generalidade” própria, que tem por traço
distintivo uma generalização sensível e manifesta do homem inteiro, conscientemente
baseada no princípio antropomorfizador” (LUKÁCS, 1970, p. 205). Uma criação do,
para e pelo homem que assume seu caráter fictício (diferentemente da religião que
pretende ser “uma realidade transcendente mais verdadeira que a da vida cotidiana”)
e assim recusa a transcendência, a busca da verdade além da própria vida. Por isso,
Lukács afirma que a obra de arte cria “formas específicas de reflexo da realidade,
formas que nascem desta e regressam ativamente a ela” (LUKÁCS, 1970, p. 207), pois
tais formas não se pretendem uma verdade independente da existência.
A percepção sensível do mundo é, portanto, a referência permanente do reflexo
antropomorfizador da arte que, dessa maneira, não deve nunca perder o contato com
a existência cotidiana, suas dores, seus prazeres, suas diferentes configurações etc., já
que as “generalizações [da arte] se realizam no marco da sensibilidade humana, e [...]
por força acarretam de certo modo uma intensificação da imediatez sensível para poder
executar com êxito estético o processo de generalização” (LUKÁCS, 1970, p. 207). A
generalização estética realiza-se, portanto, na intensificação do traço individual, que
assim caracterizado expressa
no objeto
da arte sua entificação especial, particular,
única e, por isso mesmo, universal.
Do lado
do sujeito
, o caráter potencializador do aspecto individual em cada
campo particular da arte se vincula “à possibilidade de desenvolvimento e refinamento
dos sentidos humanos, entendida, desde logo, no mais amplo sentido”, o que não
significa que “a cada sentido deva corresponder uma arte”, porque, no curso do
desenvolvimento, surgem “interações que se fazem cada vez mais íntimas e
penetrantes” (LUKÁCS, 1970, p. 208).
Para Lukács, também no produto do reflexo estético tem-se “uma realidade de
existência tão independente da consciência do indivíduo e da sociedade como no caso
do em-si da natureza; mas se trata de uma realidade na qual o homem está
necessariamente e sempre presente. Como objeto e como sujeito” (LUKÁCS, 1970, p.
209). Essa afirmação associada àquela na qual o autor estabelece que o objeto da
ciência uma vez produzido é tão em-si como qualquer objeto natural” pode se
constituir em um indicativo para compreendermos a insistência de Lukács, em
Ontologia
(2012) e em
Prolegômenos
(2010), em relembrar, a todo momento, o
caráter dúplice (natural e social) da entificação humana, motivo pelo qual, em relação
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a essa citação, assim como a assertiva anterior, podemos perguntar se nos produtos
do trabalho não eso homem também necessariamente presente como objeto e como
sujeito? Será que, para Lukács, nos reflexos científico e do trabalho o homem é
sujeito? E o objeto exterior é matéria? Cabe aqui lembrar a I Tese
ad Feuerbach
, na
qual Marx reclama da incapacidade do velho materialismo em reconhecer a presença
da subjetividade no objeto. Assim, como demonstra Chasin, “o materialismo antigo
ignora por completo a qualidade da objetividade social, isto é, sua
energia,
sua
atualização pela
atividade sensível dos homens
ou, simplesmente, desconhece sua
forma subjetiva
(CHASIN, 2009, p. 97). É certo que não podemos acusar Lukács da
mesma insuficiência. O objetivo é tão somente aprofundar a interlocução com os
resultados da análise do marxista húngaro. Mesmo porque, como veremos adiante, em
sua abordagem do reflexo estético, ele demonstra a especificidade dessa forma de
espelhamento.
Nesse sentido, o autor esclarece seu entendimento da especificidade da
generalização nessa forma de espelhamento:
A profunda verdade vital do reflexo estético repousa, não em último lugar,
em que, ainda que sempre aponte ao destino do gênero humano, não separa
nunca este dos indivíduos que o constituem, não pretende fazer nunca dele
uma entidade existente com independência dos próprios indivíduos. O
reflexo estético mostra sempre a humanidade na forma de indivíduos e
destinos individuais. (LUKÁCS, 1970, p. 209)
Enquanto poder-se-ia dizer na tentativa de compreender o encaminhamento
analítico do autor os objetos do trabalho e do reflexo científico podem se constituir
independentemente dos destinos individuais e são objetos que não se referem direta
e imediatamente aos indivíduos, os objetos da arte não podem adquirir caminho
próprio.
Como resultado de uma forma de reflexo que sempre se debruça sobre os
caminhos individuais, a obra de arte não se limita a “fixar simplesmente um fato em si,
como a ciência, mas eterniza um momento do desenvolvimento histórico do gênero
humano” (LUKÁCS, 1970, p. 209), que se expressa, como vimos, na intensificação da
especificidade daquele momento. Por isso, Lukács afirma que a verdade artística é,
pois, como verdade, histórica; sua verdadeira gênese converge com sua
verdadeira vigência, porque esta não é mais que a descoberta e
manifestação, o ascender da vivência de um momento do desenvolvimento
humano que formal e materialmente merece ser assim fixado (LUKÁCS, 1970,
p. 209).
Diz respeito a uma fixação material e formal em que a íntima interação entre
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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subjetividade e objetividade [...] do objeto e do sujeito do reflexo estético, não destrói
a objetividade das obras de arte, mas, pelo contrário, põe precisamente o fundamento
específico de sua específica peculiaridade” (LUKÁCS, 1970, p. 210).
Em síntese, para Lukács:
[...] enquanto a diferenciação do reflexo científico da realidade nas diversas
ciências está essencialmente determinada pelo objeto, na origem das
diversas artes e dos distintos gêneros desempenha um papel decisivo
também o momento subjetivo. Não, naturalmente, o arbítrio meramente
particular de cada sujeito. A arte é em todas as suas fases um fenômeno
social. Seu objeto é o fundamento da existência social dos homens: a
sociedade em seu intercâmbio com a natureza, mediado naturalmente, pelas
relações de produção, as relações dos homens entre si, mediadas por elas.
Um tal objeto social geral não pode ser adequadamente refletido por uma
subjetividade aferrada à mera particularidade; para conseguir um nível de
aproximada adequação o sujeito estético tem que desenvolver em si os
momentos de uma generalização à escala da humanidade: os momentos do
especificamente humano. Mas no terreno do estético, não pode tratar-se do
conceito abstrato de gênero, mas de homens individuais concretos, objetivos
sensíveis, nos quais o caráter e em cujos destinos estejam contidos concreta
e sensivelmente, individual e imanentemente, as qualidades e o nível de
desenvolvimento alcançado pelo gênero (LUKÁCS, 1970, p. 211).
Assim compreendida, a especificidade do pôr estético, a tarefa de analisar a
própria subjetividade estética aparece como uma exigência incontornável, pois Lukács
precisará justificar e desenvolver o que diferencia o reflexo e a construção da obra de
arte dos outros campos da vida humana. sabemos que um ponto central dessa
diferença é que “a subjetividade estética não é em absoluto simplesmente idêntica à
subjetividade da vida cotidiana”, ainda que o estético coloque sempre “no centro o
momento subjetivo que o alimenta” (LUKÁCS, 1970, p. 492).
A questão que o autor considera é:
como, em resposta a que necessidade, dirigida por quais forças se produz
uma tal intensificação da subjetividade que esta pode valer como um
qualitativo-ser-outro em relação à subjetividade da cotidianidade? E que
papel desempenha a esfera estética nesse desenvolvimento? (LUKÁCS, 1970,
p. 492).
Na própria colocação do problema, Lukács sinaliza para a presença da questão
da gênese, isto é, se compreende o estético “como um modo de pôr humano, que
é produto de determinadas necessidades constantemente presentes a partir de uma
certa fase de desenvolvimento” (LUKÁCS, 1970, p. 492-493). Como vimos, esse
aparecimento tardio da arte relaciona-se à necessidade de um “determinado nível de
bem-estar material, de ócio” (LUKÁCS, 1970, p. 494) para que o equilíbrio, a harmonia,
a proporcionalidade apareçam como carência para os homens. Historicamente, tal
situação se torna possível a partir de um certo desenvolvimento da divisão do
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trabalho, o que não significa, segundo o escritor, que a
necessidade social da arte
esteja circunscrita a uma fase histórica particular, pois sua base “não é tal ou qual
formação social concreta [...], mas a essência do homem em sociedade” (LUKÁCS,
1970, p. 494-495).
Não obstante a universalidade da necessidade da arte, ela se apresenta sempre
em uma forma concreta, situada histórico-socialmente, pois “contém as determinações
básicas da relação entre homem e mundo, entre o sujeito humano e as forças que
decidem, segundo leis, seu destino, seu bem e sua dor” (LUKÁCS, 1970, p. 505) e
ainda porque “o estético se esforça sempre por despertar uma totalidade humana que
inclui o mundo sensível aparencial, que, portanto, o estético se orienta na mimese a
uma ampla e ordenada riqueza da realidade” (LUKÁCS, 1970, p. 503), realidade que
é sempre concreta.
Ao tratar do caminho do sujeito em direção ao espelhamento estético, Lukács
dedica um item específico para a questão da alienação (
Entäusserung
) e sua
reapropriação do sujeito. Ele considera a aplicação da categoria da alienação, nos
termos de Hegel, “a mais acertada descrição da relação sujeito-objeto” na esfera do
estético “ainda que o próprio Hegel parece não ter considerado sua aplicação” nesta
esfera. Inicia suas considerações a esse respeito partindo da relação sujeito-objeto no
campo do trabalho humano. Diz ele:
No trabalho a subjetividade e a objetividade têm que unir-se
inseparavelmente: a introdução da teleologia posta pelo sujeito depende
exclusivamente de que o ser-em-si do objeto do trabalho e da ferramenta
tenham sido refletidos corretamente. Por outra parte, sua objetividade
permanece praticamente morta, alheia ao homem, esterilizada, se não se
alimenta da subjetividade que se estranha de si mesma e volta a si desse
estranhamento. (LUKÁCS, 1970, p. 510)
Em sua perspectiva, a unidade de subjetividade e objetividade no trabalho
raramente se reflete desse modo na consciência. Nela, domina
[...] em geral o ser-em-si do objeto como entrega absoluta ao trabalho
objetivo ou de um modo corrente em níveis mais desenvolvidos, como um
estar perdido no mundo dos objetos ao qual o trabalhador se sente
condenado , ou impera uma imaginária onipotência da subjetividade que
e os fins (LUKÁCS, 1970, p. 510).
O autor afirma que não tratará nem de um nem de outro caso. Ele refere-se ao
primeiro caso como estranhamento socialmente condicionado” e ao segundo como
“tendência mitologizadora” (LUKÁCS, 1970, p. 510).
Colocando a questão nesses termos, Lukács critica aquelas interpretações que
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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consideram o “estar perdido no mundo dos objetos” uma condição inerente a qualquer
forma de produção. Ele menciona que nas formas mais complexas, como mercadoria,
dinheiro, o estranhamento é ainda maior, pois “as relações entre os homens criadas
pela sua própria atividade aparecem na consciência cotidiana como coisas em relação
às quais o homem se comporta imediatamente como com a natureza que ele não
produziu” (LUKÁCS, 1970, p. 510). O estranhamento, portanto, estaria associado a
essa imersão em um mundo não criado pelo próprio homem, seja ele a natureza ou o
mundo dos objetos produzidos de forma alheia aos produtores. O mundo humano é
o mundo objetivo criado pelos homens por meio de seu metabolismo com a natureza.
Esta visão de Lukács está relacionada a outra na parte anterior do texto (referente à
primeira parte da estética na qual ele afirma que uma vez fixado o objeto do trabalho
é
tão em-si como os objetos naturais).
É assim que a abordagem de Marx nos
Manuscritos de 1844,
acerca da relação
entre subjetividade e objetividade no trabalho, é tão significativa para Lukács, porque
com ela
[...] termina de uma vez por todas o sonho do demiurgo. A ação inovadora
do trabalho não pode consistir na criação de uma objetividade a partir do
nada, de um caos não menos místico: a ação do trabalho é “só” mas esse
“só” abarca toda a história humana , a transformação, correspondente aos
fins humanos, das formas de objetividade presentes em si, mediante o
conhecimento finalístico e a aplicação das leis intrínsecas àquelas
objetividades (LUKÁCS, 1970, p. 511).
Nesse mundo produzido pela atividade dos homens é que se fundamenta, para
ele, a necessidade do estético, pois a vida se realiza em um mundo real e objetivo e
ao mesmo tempo “adequado às mais profundas exigências do ser-homem (do gênero
humano)” (LUKÁCS, 1970, p. 512-513). Em Lukács, o ato estético originário se efetua
na “entrega incondicional à realidade e no apaixonado desejo de transcendê-la”, sem,
no entanto, impor um
ideal
, e sim buscando
destacar traços da realidade que em si lhe são imanentes, mas nos quais se
faz visível a adequação da natureza ao homem e se superam a estranheza e
a indiferença em relação ao ser humano, sem afetar por isso a objetividade
natural e ainda menos querer aniquilá-la (LUKÁCS, 1970, p. 513).
Isso porque a necessidade em questão é justamente a de uma objetividade
adequada ao homem” (LUKÁCS, 1970, p. 513).
A unidade entre objetividade e subjetividade no ato estético constitui, na
compreensão de Lukács, “um nível superior, mais espiritual e consciente do próprio
trabalho no qual a teleologia que transforma o objeto do trabalho é inseparável da
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captação dos segredos da matéria dada” (LUKÁCS, 1970, p. 513).
No entanto, adverte Lukács:
[...] enquanto no trabalho se trata de uma relação puramente prática entre o
sujeito e a realidade objetiva, razão pela qual a unidade do ato o é mais
que o princípio coordenador do processo de trabalho e por isso perde sua
significação ao consumar-se esse processo e não a consegue de novo senão
mais tarde, ao contrário, essa unidade adquire na arte uma objetivação
própria; tanto o próprio ato quanto a necessidade social que o suscita
tendem a essa captação, fixação, eternização da relação do homem com a
realidade, à criação de uma coisidade objetivada na qual se encarne a
unidade sensível e significativa, evocadora de dita impressão (LUKÁCS, 1970,
p. 513-514).
É compreensível que Lukács considere diferentemente a objetivação no trabalho
prático e aquela na obra de arte. Mas será que é o caso de considerar a última como
“um nível superior” em relação ao trabalho? A característica de comportar uma maior
espiritualidade é própria da obra de arte, pois sua intensificação recai sobre a
dimensão evocadora do humano resgatada no objeto. Assim, poder-se-ia dizer que,
no trabalho, a subjetividade se adapta ao objeto e, na arte, o objeto acomoda-se,
ajusta-se à subjetividade. Com isto, de fato, o ato estético torna-se mais espiritual”,
como afirma Lukács; todavia qual a referência de valor para que ele afirme que esse
ato compreende um nível superior” do trabalho? Isso significa que ele é mais
humano porque seu maior compromisso é com a adequação espiritual? Então, as
características espirituais são mais humanas do que as corporais? É possível, nos
termos de Marx, fazer essa separação? É pertinente hierarquizar valorativamente as
formas de reflexo no trabalho e na arte? As perguntas obviamente implicam uma
posição frente a elas. Por ora, vejamos como Lukács desenvolve a questão. Ele declara
que essa
[...] contraditoriedade [entre objetividade e subjetividade], como motor da
posição estética (e da necessidade social que lhe dá vida) se apresenta sob
traço filosoficamente talvez mais essencial: a intensificação simultânea da
subjetividade e da objetividade acima do nível da cotidianidade (LUKÁCS,
1970, p. 514).
Será esse o motivo para que considere a arte “um nível superior”? Mas, não é
ele próprio quem admite que, no trabalho, uma elevação em relação à mera
cotidianidade? As objeções colocadas aqui não significam que não se compreende a
diferença entre as objetivações próprias do trabalho e aquelas do ato estético. Na
verdade, a hierarquização realizada por Lukács pode ser um indicativo para a
compreensão do uso que ele fará na
Ontologia
da categoria da alienação
[
Entäusserung
] entendida como momento subjetivo do ato laborativo, seja ele qual for
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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(na lida direta com o objeto ou naquela específica do trato da arte).
De todo modo, o ponto central para o autor, tanto no reflexo do trabalho quanto
no ato estético, é a crescente adequação da realidade ao homem. No primeiro caso,
essa adequação é objetiva, material; no segundo, é subjetiva, espiritual, ainda que
expressa também objetivamente, pois como sustenta o escritor:
[...] a adequação de que falamos não é mais que o manifestar-se do trabalho
que a humanidade realizou ao largo de toda sua história com a natureza,
com as inter-relações entre o homem e a natureza, com e no próprio homem:
o que antes, como expressa Marx, chamamos de metabolismo da sociedade
com a natureza. Esse metabolismo é antes de tudo um metabolismo material,
uma transformação da superfície terrestre de acordo com as necessidades
dos homens. (E é óbvio que nessa transformação as leis naturais consciente
ou inconscientemente são utilizadas, não se superam ou aniquilam, como
tampouco se destroem no trabalho individual). O alcance desse metabolismo
é, entretanto, muito maior que o da penetração e a transformação materiais
da natureza concreta pelo trabalho e o esforço da sociedade, pois, esse
processo produziu o homem e, ademais, transforma-o constantemente, o
enriquece, eleva e aprofunda. Também esta transformação é uma alteração
da realidade, interna e externamente (LUKÁCS, 1970, p. 515).
Lukács refere-se, portanto, à transformação real da materialidade em torno do
homem, das relações entre os homens, do metabolismo dos homens com a natureza
e daquela de cada ser humano individual no seu contato com o mundo. Atesta ainda
que essa
[...] adequação [resultado do intercâmbio entre sociedade e natureza] em que
pensamos é cismundana, imanente e isso em dois sentidos: em
primeiro
lugar
, o movimento que nasce com ela e que produz alterações radicais não
pode desenvolver-se senão dentro do marco de cumprimento definido pelas
leis naturais; em
segundo lugar
, todas as finalidades postas pelo homem com
consciência verdadeira ou falsa estão também determinadas pelas leis
objetivas do desenvolvimento social (LUKÁCS, 1970, p. 515, grifo nosso).
O autor volta a mencionar que, no caso da atividade estética, é válida a premissa:
não objeto sem sujeito, porquanto o objeto existe enquanto objeto estético para
um sujeito e não em si, que sua essência é “evocar certas vivências no sujeito
receptor por meio da mimese, que é uma forma específica de reflexo da realidade
objetiva” (LUKÁCS, 1970, p. 517). A recepção do objeto artístico significa uma forma
de apropriação sensível que envolve inteiramente (para usar a expressão de Lukács) o
sujeito receptor, diferentemente dos objetos que não têm a função de
evocar vivências
,
como a obra de arte, mas tem outras atribuições na vida social. Isto significa que
aquela atitude da ciência, e do reflexo desantropomorfizador, de dessubjetivação para
o efetivo conhecimento do objeto que é exterior ao sujeito e tem características
próprias, não é válida para a obra de arte, pois esta necessita, para ser conhecida, da
aproximação subjetiva do sujeito e não de seu distanciamento. Então, o alienar-se e o
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retroagir da alienação no sujeito são válidos tanto para o artista como para o
apreciador das obras de arte. Para o artista, os dois momentos são necessários para
a reconfiguração da realidade, para o receptor são eles que possibilitam a efetiva
apropriação do objeto estético. Isso não significa que uma identidade entre a
subjetividade posta pelo artista, na elaboração da obra de arte, e a do receptor em
sua apreensão. A intensificação subjetiva no objeto realizada pelo artista pode evocar
aspectos da subjetividade do receptor que não eram possíveis a ele prever e que não
estavam presentes na elaboração da obra.
Na forma como Lukács compreende a alienação e a retroação, elas se constituem
enquanto momentos entrelaçados, diferentemente de como aparecem na
Fenomenologia
de Hegel como “dois atos claramente separados que se completam
precisamente em sua contraposição”, mas o autor húngaro mantém “a contraposição
[entendida a partir do entrelaçamento de ambas] de suas respectivas orientações” na
sua definição desse ato (duplo e unitário): “alienação significa
caminho do sujeito
ao
mundo objetivo, às vezes até perder-se nele; a retroação ou reabsorção desta
alienação significa, ao contrário, que toda objetividade
assim nascida é totalmente
copenetrada da particular qualidade do sujeito
” (LUKÁCS, 1970, p. 522, grifo nosso).
Então, será que podemos dizer que na obra de arte a subjetividade do artista e a do
receptor estão presentes? No artista, a alienação realiza o mergulho no mundo
objetivo para destacar o aspecto da realidade a ser reconfigurado esteticamente,
enquanto a retroação é a própria reconfiguração ou a objetivação da obra de arte. No
receptor, a alienação é o mergulho na própria obra e a retroação é a mudança efetivada
na subjetividade (que pode ter implicações efetivas em sua vida) dele próprio por meio
da recepção.
Assim constituído o espelhamento na arte, manifesta-se ao mesmo tempo sua
forma imediata e, nela mesma, sua essência. A relação essência e aparência, portanto,
aparece de forma distinta daquela dos demais objetos em-si, já que a aparência é ela
própria seu desvelamento, ou nas palavras de Lukács:
A fecunda contraditoriedade do reflexo estético consiste em que, por um
lado, se esforça por captar todo objeto e, antes de tudo, a totalidade dos
objetos, sempre em conexão inseparável, ainda que não explícita e
diretamente dita, com a subjetividade humana de um sujeito [...] e, por
outra parte, fixa e dá sentido ao mundo dos objetos não só em sua essência,
senão também em sua forma de manifestação imediata: a dialética da
aparência e da essência se impõe em sua legalidade geral e, ademais, em sua
imediatez, tal como se apresenta ao homem na vida (LUKÁCS, 1970, p. 523).
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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A dialética entre essência e aparência, na forma estética, expressa a
simultaneidade dos atos de alienação e sua retroação nessa esfera específica do
espelhamento humano. É o que se depreende de:
Na esfera estética, a alienação e sua retroação estão estreitamente unidas: a
subjetividade se supera na alienação e a objetividade na retroação, de tal
modo que o momento da preservação e elevação a um vel superior adquire
certa preponderância no ato complexo da superação. Do efeito coincidente
dos dois movimentos resulta, pois, algo unitário: um mundo objetivo
conformado, como reflexo da realidade, o qual sublinha em sua intenção a
objetividade desta ainda mais energicamente do que ela se impõe nas
impressões e vivências da cotidianidade; pois o que se apresenta sempre ao
espectador ou ao leitor é um grupo de objetos relativamente pequeno, e essa
secção, esse fragmento, tem que evocar nele a realidade como um mundo
objetivo e fechado ou completo, e isso em circunstâncias que parecem ser
para ele efeito da objetividade mais desfavoráveis que as da cotidianidade
porque lhes falta necessariamente a força de convicção do meramente fático,
do
factum brutum
, posto que estão inevitavelmente postas como meros
reflexos, como formações miméticas que não podem conquistar uma
objetividade senão por seu conteúdo e por sua forma (LUKÁCS, 1970, p.
523-524).
O objeto conformado esteticamente, logo, é o que é não por sua materialidade
(ao contrário dos objetos em-si), mas pelo conteúdo que o está somente nele
mesmo, mas na sua relação com a subjetividade do artista e a do receptor que lhe dão
forma. Isso significa que:
A entrega do sujeito à realidade na alienação, sua imersão nela, produz desse
modo uma objetividade internamente intensificada. Mas esta e tal é o
sentido da retroação no sujeito está penetrada de subjetividade por todos
seus poros, e precisamente de uma subjetividade concreta e determinada. Na
obra mimética genuína esta subjetividade não é um acréscimo, um
comentário, nenhuma espécie de aura que circunda os objetos, mas é ao
contrário um momento constitutivo, uma parte integrante da sua própria
objetividade, é um elemento necessário, também a própria base de sua
existência determinada. (LUKÁCS, 1970, p. 524)
Alienação e retroação realizam o trânsito, a troca efetiva entre dois complexos
de realidade aparentemente exteriores um ao outro. O mundo objetivo das coisas e o
subjetivo e exclusivamente humano de sensações, desejos, sentimentos, ideais. Por
isso mesmo, na obra de arte, sempre se expressa a posição do artista frente ao mundo
que ele conforma. E não poderia ser de outro modo, que essa conformação é
subjetiva, a obra expressa algo que o artista quer dizer sobre o complexo de realidade
que ele elaborou artisticamente. A própria definição do objeto a ser configurado é
uma tomada de posição, mas esta, como mostra Lukács, não subjetiviza a obra:
É um preconceito moderno a suposição de que essa onipresença da tomada
de posição, da particularidade, subjetiviza as obras de arte. O caminho, que
passa pela alienação e leva à retroação desta, é o oposto estrito do
subjetivismo. se produz subjetivismo quando o sujeito é incapaz de, ou
se nega a, empreender o rodeio até si mesmo que passa pela alienação, pelo
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perder-se no mundo dos objetos, pela entrega incondicional ao mesmo.
(LUKÁCS, 1970, pp. 527-528)
O chegar a si mesmo pela alienação significa que a subjetividade do sujeito da
arte é assumidamente constituída no contato com o mundo social e humano dos
objetos e não a partir de si mesmo isoladamente. O autor húngaro identifica, no
próprio Hegel, a denúncia do risco dessa deformação da subjetividade que pretende
constituir o mundo a partir de si própria:
Hegel que, como sabemos, aplicou a perspectiva do problema da alienação
e de sua retroação antes de tudo à vida social e ao conhecimento adquirido
e desenvolvido no curso da evolução da humanidade, analisa várias vezes as
deformações que produz a subjetividade que quer confiar integral e
exclusivamente em si mesma, que crê poder renunciar à necessidade daquela
entrega receptiva ao mundo externo, ao mundo dos objetos. (LUKÁCS, 1970,
p. 528)
É essa entrega que marca, no entender de Lukács, a diferença entre a
subjetividade na estética e na vida cotidiana, pois esta referencia-se na imediatez do
mundo sensível, enquanto a primeira se diferencia dela cada vez mais qualitativamente
“ainda que sem suprimir a vinculação à personalidade, ao caráter subjetivo da
subjetividade; mais ainda: a orientação do movimento diferenciador é contrária a essa
eliminação, é um reforço, uma intensificação da subjetividade originariamente dada”
(LUKÁCS, 1970, p. 530).
Após acompanhar a análise de Lukács da relação objetividade/subjetividade na
arte, vejamos alguns pontos para o aprofundamento da interlocução com o autor
húngaro especialmente quanto às suas considerações sobre a “dupla base” na
constituição do ser social.
Reflexões sobre a “dupla base”
As afirmações acerca da “dupla base” da entificação humana aparecem
especialmente na
Ontologia
, escrita e publicada após
Estética
. Ainda na primeira parte
da
Ontologia,
Lukács afirma que no
momento em que Marx faz da produção e da reprodução da vida humana o
problema central, surge tanto no próprio homem como em todos os seus
objetos, relações, vínculos etc. a
dupla determinação
de uma insuperável
base natural e de uma ininterrupta transformação social dessa base (LUKÁCS,
2012, p. 285, grifo nosso).
Certamente, o objetivo do autor é se distanciar de sua própria posição na
juventude, desenvolvida em
História e consciência de classe
, e não cair na armadilha
idealista de separar absolutamente natureza e sociedade, desconsiderando os
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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problemas relativos ao metabolismo entre essas duas esferas do ser na constituição
da sociabilidade. Ao colocar a questão nesses termos, Lukács aponta para uma
formação dúplice da sociabilidade humana que tende, ironicamente, a recolocar a
discussão idealista (retomaremos esta
ironia
adiante).
No capítulo sobre Marx da
Ontologia
, Lukács afirma que
a orientação de fundo no aperfeiçoamento do ser social consiste
precisamente em substituir determinações naturais puras por formas
ontológicas
mistas
, pertencentes à naturalidade e à sociabilidade [...],
explicitando ulteriormente - a partir dessa base as determinações
puramente sociais (LUKÁCS, 2012, p. 289, grifo nosso).
A indagação que pode ser colocada nesse preciso momento diz respeito à
validade em utilizar a expressão
determinações naturais puras
que justificaria a
identificação de
formas ontológicas mistas
ou
orientação exclusiva da natureza
quando, de fato, o que está em questão é o metabolismo entre sociedade e natureza.
No capítulo da reprodução, a abordagem da dupla base reaparece com grande ênfase,
mas, ao mesmo tempo, é perceptível também certa tensão nas tentativas exaustivas
de explicar o problema sob nova perspectiva. Mas, voltemos à
Estética
, na qual, como
vimos, a questão já se apresenta, ainda que não seja explicitada.
Quando Lukács afirma, em
Estética,
que as “interações entre objetividade e
subjetividade pertencem à essência objetiva das obras de arte” (LUKÁCS, 1970, p.
190), tem por objetivo justificar sua compreensão de que, no caso da obra de arte, é
válida a máxima: não pode existir objeto algum sem sujeito” (LUKÁCS, 1970, p. 190).
Uma questão se coloca aqui: é possível afirmar sobre os demais objetos da atividade
humana que eles podem existir sem sujeito? Somente para os objetos da natureza a
realidade em-si é de todo independente do sujeito e mesmo assim eles se
reconfiguram na relação com os homens. Não no trabalho que faz de uma árvore
uma mesa, mas na mais simples opção de plantar ou cortar uma árvore. A árvore ou a
mesa são igualmente em-si independentes do sujeito, tornam-se efetivamente objetos
autônomos (como expõe Marx, no livro I de
O capital,
tratando do processo de
produção). Por outro lado, para que a mesa tenha efetivamente uma existência de
mesa, os homens reais devem sentar à sua volta ou utilizá-la como tal em outras
situações, além, claro, de produzi-la. Tanto os objetos naturais quanto aqueles
produzidos pelo homem (artísticos ou não) são efetivamente independentes dos
homens, mas, em sua configuração real, os produtos humanos são também
“subjetividade objetivada ou, o que dá no mesmo, [...] objetividade subjetivada” para
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usar a expressão de Chasin (2009, p. 98).
Em suma, ao identificar somente nos objetos da arte a interação entre
objetividade e subjetividade como essência, Lukács justifica sua compreensão de que
os produtos humanos não artísticos são “tão em-si como os objetos da natureza”
(LUKÁCS, 1970, p. 190), uma vez que eles são fixados materialmente como algo
independente dos homens e a ênfase desta
fixação
recai sobre a objetividade.
A ironia mencionada acima refere-se ao fato de Lukács recolocar uma distância
tal entre objetividade e subjetividade que o trânsito entre uma esfera e outra sempre
apareça sob a rubrica de uma dupla determinação natural e social. O que significaria
que o físico (a objetividade), para Lukács, corresponderia ao natural e o espiritual (a
subjetividade), ao social, duas esferas separadas que se relacionam externamente. Só
assim a constituição humana continuaria sempre a aparecer como social de um lado e
natural de outro. Como se o físico fosse um fardo de naturalidade que o homem tivesse
que carregar por toda a eternidade, sem nunca romper com ele. É evidente que Lukács
não concluiu explicitamente que o homem é de um lado espírito e de outro, matéria.
Pelo contrário. Explicitamente ele diz exatamente o oposto. Os argumentos construídos
aqui dizem respeito às consequências da frequente identificação da base biológica
como dado ineliminável concorrendo sempre com a esfera social.
Chasin questiona a posição de Lukács exatamente neste ponto, porque, para ele,
a “legalidade natural vai sucumbindo na ruptura e progressivamente à legalidade
social” de tal modo que “em sua efetividade no ser social a legalidade natural não
mais atua por si, é dependente do ser social, não é mais a legalidade de um ser, pois
não mais um ser natural, mas um atributo natural dependente da essência social”
(CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXV). Por isso, para Chasin, as esferas de ser
precedentes (inorgânica e orgânica) não são
codeterminantes
, pelo contrário, são
subordinadas à nova formação.
As observações de Chasin, que caracterizam o natural como predicado, podem
direcionar a discussão por um caminho aberto pelo próprio Lukács. Isso significa que
a natureza obviamente participa da
autoformação
do humano, pois ela “inclui a própria
dação de forma e resolução ao predicado natural ou biológico: dação de forma que
em suma é dação de forma social ao predicado biológico” (CHASIN
apud
VAISMAN,
2001, p. XXV). A expressão
dação de forma,
como mencionado anteriormente, foi
utilizada por Lukács para tratar do produto da arte, mas nas considerações de Chasin
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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ela ganha outra dimensão, visto caracterizar a transformação humano-social que não
é meramente material já que “todo ente que muda de lugar muda de natureza, sem
alterar uma célula de sua composição material” (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p.
XXV).
Em
Prolegômenos
(2010), Lukács chega a afirmar que a existência biológica é
superada, mas clama sempre pela impossibilidade de ruptura com a natureza,
recolocando com grande insistência a esfera biológica como base. Os questionamentos
de Chasin incidem diretamente sobre esse ponto, porque para ele a base é sempre
[...] a sociabilidade, enquanto a naturalidade é apenas o insuprimível
predicado biológico, que passa a viger na forma e sob a regência da
sociabilidade. Não perde, por isso, uma célula de sua composição orgânica,
mas na sua efetividade muda de caráter. No interior da esfera societária, o
predicado biológico é um outro de si. Se originariamente foi o ponto de
partida, agora é produzido e reproduzido pela legalidade de um ser que o
ultrapassa e o domina, vive e pode viver na subjugação de um novo
estatuto. Ou seja, ao integrar como predicado o ser de nível mais elevado
realiza a sua máxima potência e isso é, ao mesmo tempo, sua
desnaturalização ou perecimento. Imperecível como predicado, o é base,
pois determina só por seus limites, pelas carências, não pelas determinações
resolutivas, nem mesmo em suas forças e sentidos, pois enquanto
virtualidades estas são humanas e superiores em resolução societária.
Ademais não é nunca um criador de novas necessidades, o que caracteriza a
legalidade social (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXVI).
Como já tivemos a oportunidade de mostrar em outro momento (COSTA, 1999),
as palavras de Chasin encontram ressonância na análise de Marx presente desde os
Manuscritos de 1844
até os chamados textos de maturidade. Trata-se, dessa maneira,
de uma ruptura de outra ordem, não simplesmente física ou material, enquanto forma
de ser a própria natureza se torna objetividade social.
Os indicativos de Chasin, além de formular o problema em novos termos,
esclarece a tendência aberta por Lukács ao colocar a questão a partir da
dupla base
,
que é, de acordo com sua argumentação, a de
[...] procurar deduzir, em graus diferentes em cada caso, o ser social do
natural, esquecendo que se trata da emergência do novo, de uma
configuração ontológica nova, e que o novo nunca é um simples
desdobramento do estágio anterior, no caso - do grau de ser antecedente,
ou seja, que entre os dois níveis ocorre o que se chama salto, um intervalo
em que a potência causal do antecedente não contém a capacidade, a
potência, ou a potencialidade para gerar o novo. Um intervalo que fica, assim,
indeterminado (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXIII-XXIV).
Será que se pode dizer que Lukács não estava atento a essa
novidade
? Claro
que não! Tanto é assim que a solução para a dificuldade está também em suas
formulações. Ou seja, a compreensão do surgimento do ser social a partir de um salto
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que inaugura uma nova forma de ser foi desenvolvida pelo próprio Lukács. No entanto,
perguntamos: por que ele retorna com tanta insistência ao que ele chamou de
base
biológica
? Talvez a resposta esteja em sua trajetória e nos diálogos que ele
estabeleceu com a tradição filosófica. De todo modo, qualquer tentativa de resposta
levaria à mera especulação, por isso registramos aqui apenas algumas possibilidades
colocadas por Chasin para o aprofundamento de nossa interlocução com Lukács que
apontam para as conquistas do próprio autor húngaro com relação ao marxismo do
século XX.
Chasin, ao colocar o problema em termos de
dação de forma
, explica que, mesmo
que o fator natural não seja jamais suprimido (como afirma Lukács diversas vezes), é
suprimida
[...] sua capacidade de autodeterminação, resta, portanto, simplesmente, o
que não é pouco, como um predicado do ser humano, um predicado
insuprimível, mas apenas como predicado biológico de um ser de outra
natureza e essência. A naturalidade é retida como predicado imprescindível,
mas não como essência. Donde, não são mais duas legalidades ontológicas
que coexistem, mas a legalidade superior, mais complexa, subsume a
legalidade natural, que não mais se autodetermina, mas é resolvida pela e do
interior da outra. Assim, o predicado natural do homem recebe forma e
resolução sociais, ou seja, o predicado natural é subsumido à legalidade
social (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXV).
A nova forma de colocar o problema percorre, na verdade, um caminho que foi
aberto pelo próprio Lukács em vários momentos. É como se sua antiga filiação e
posterior crítica às ciências do espírito o levassem a suspeitar do risco de se desprezar
a presença da natureza na constituição do mundo humano (o que, na realidade, não é
o caso, como vimos nas afirmações de Chasin). Provavelmente, o que permite a Chasin
levantar tais questionamentos, quase trinta anos depois da redação de
Prolegômenos,
é sua distância em relação à polêmica que pesou sobre o solitário autor de
Ontologia
do ser social
e o colocou na difícil e peculiar situação de lutar contra suas próprias
posições do passado
3
.
3
Celso Frederico cita o seguinte trecho de uma carta de Lukács de 10 out. 1959 endereçada a Lucien
Goldman que insistia em “valorizar as obras juvenis de Lukács (inclusive as não marxistas), em
detrimento de sua produção madura: ‘Se eu tivesse morrido por volta de 1924 e minha alma perene
olhasse sua atividade literária do além, ela ficaria plena de um verdadeiro reconhecimento de você se
ocupar tão intensamente de minhas obras de juventude. Mas como eu não estou morto e como durante
trinta e quatro anos eu criei o que se pode chamar apropriadamente a obra de minha vida e como, para
você, essa obra simplesmente não existe, é difícil para mim, enquanto ser vivo, cujos interesses estão
claramente dirigidos para a própria atividade presente, tomar posição sobre suas considerações’”
(FREDERICO, 2000, p. 299).
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 89-114 - mar. 2022| 113
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Monica Hallak Martins da Costa
114 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 89-114 - mar. 2022
Como citar:
COSTA, Monica Hallak Martins da.
A relação entre objetividade e subjetividade no ato
estético
.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 89-114 mar. 2022.
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
A pintura na
Estética
: revisão analítica e
aproximação com a categoria realismo crítico
Painting in
Aesthetics
: analytical review and approach to the critical
realism category
Ronaldo Rosas Reis*
Resumo: O propósito deste ensaio é realizar uma
revisão analítica de parte da seção 6 do volume
II da
Estética
de György Lukács. Trata-se do
problema da mimese na pintura, em especial o
tratamento dado pelo autor húngaro aos
pressupostos para a condição de universalidade
da obra de arte. Complementarmente o título do
ensaio indica um esforço aproximativo no sentido
de apreender a categoria realismo crítico na
pintura. O eixo norteador do estudo parte da
problematização do impulso teleológico do
artista na realização da pintura diante do desafio
de dar forma humana à realidade que o cerca.
Por conseguinte, adota como pressupostos a
ideia lukácsiana que relaciona a imanência
ontológica da atividade criadora na arte à
capacidade de esta fundar a autoconsciência
histórica do ser humano; e ainda a ideia marxiana
de que à educação estética formal cabe
reproduzir criticamente o conhecimento teórico
acumulado sobre a arte. Além das obras
específicas do pensador húngaro e do repertório
de Marx e Engels, nos valeremos de
contribuições pontuais de Lionello Venturi e
Fredric Jameson, dentre outros.
Palavras-chave: Realismo crítico; pintura;
estética; educação estética.
Abstract: The purpose of this essay is to carry
out an analytical review of part of the section 6
of volume II of the
Aesthetics
of György Lukács.
It deals with the problem of mimesis in painting,
in particular the treatment given by the
Hungarian author to the presuppositions for the
condition of universality of the work of art.
Complementarily, the title of the essay indicates
an approximate effort to apprehend the
category of critical realism in painting. The
guiding axis of the study starts from the
problematization of the artist's teleological
impulse in the realization of the painting, facing
the challenge of giving human form to the
reality that surrounds him. Therefore, it adopts
as presuppositions: the Lukacsian idea that
relates the ontological immanence of the
creative activity in art to its capacity to find the
historical self-awareness of the human being;
and still the Marxian idea that formal aesthetic
education is responsible for critically
reproducing accumulated theoretical
knowledge about art. In addition to the specific
works of the Hungarian thinker and the
repertoire of Marx and Engels, we will make use
of specific contributions from Lionello Venturi,
Fredric Jameson among others.
Keywords: Critical realism; painting; aesthetic;
aesthetic education.
* Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com Pós-doutorado
em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pintor e desenhista
Instagram: @ronaldorosa63.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.648
Ronaldo Rosas Reis
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Introdução
Para os leitores do Ocidente a ideia György
Lukács tem, frequentemente, parecido mais
interessante do que o real György Lukács.
Fredric Jameson
O que distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é que ele figura na mente sua construção
antes de transformá-la em realidade.
Karl Marx
No ano em que lembramos a passagem dos 50 anos da morte de György Lukács,
pensei no interesse que poderia despertar junto a um público leitor mais amplo do
que somente os estudiosos da estética uma abordagem do tema do realismo crítico
nas Belas Artes
1
, considerando, no caso, a especificidade da pintura. Se é verdade que
a lembrança da data o oferece muitos motivos para comemorações no contexto atual
de indigência em que se encontram as condições de produção e exposição artística
em nosso país, fato que tem mantido os setores combativos da sociedade em
permanente estado de atenção, busco salientar, nesse sentido, que o tema foi
motivado principalmente pela urgente necessidade de debater questões estéticas e
artísticas que talvez possam contribuir para a resistência do que kantianamente
subsumimos como “humanismo crítico” (LIMA, 2008). Quero dizer com isso que, na
ausência de um termo mais adequado para designar uma perspectiva humanista não
necessariamente marxista, este, ao menos, pareceu-me mais próximo de um termo
progressista.
A partir dos escritos estéticos de Lukács é forçoso reconhecer que a abordagem
do realismo crítico nas artes plásticas não é tarefa tranquila sob qualquer um dos dois
pontos de vista necessários, o teórico e o prático. E isso não quer dizer que o seria
caso estivéssemos abordando a literatura e a poesia ou mesmo o teatro , expressões
artísticas as quais o filósofo húngaro dedicou o seu mister crítico por mais de meio
século ao longo de sua vida adulta. Primeiramente porque os escritos lukácsianos
voltados para as Belas Artes, salvo os que se apresentam de forma mais sistematizada
nos volumes 2 e 4 da
Estética
(1972; 1967), respectivamente, estão esparsos em
diversas publicações, a maioria deles na forma de um comentário esclarecendo ou
exemplificando uma determinada tese na exposição principal. É verdade que, conforme
indica José Paulo Netto,
1
Refiro-me basicamente às categorias tradicionais das Belas Artes ou artes plásticas, ou ainda artes
visuais, sendo elas o desenho, a pintura, a gravura, a escultura, a cerâmica, a colagem.
A pintura na
Estética
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As bases da
Estética
configuram nitidamente uma concepção ontológica do
marxismo, ainda que o seja explicitada como tal. Por isso, não há nenhuma
relação excludente (ou mesmo colidente) ou ainda, externa entre a
Estética
e
a elaboração dos últimos anos de Lukács, salvo no plano terminológico.
Antes, o que de fato se verifica é uma articulação íntima e medular entre a
Estética
e a
Ontologia:
nesta, os pressupostos daquela são expostos e
tratados enquanto fundantes de toda a reflexão marxiana (não por acidente,
Lukács enfatiza os “princípios ontológicos fundamentais” de Marx) (NETTO,
2012).
Tome-se como um bom exemplo disso o que encontramos na amplitude do
capítulo sobre o Estranhamento, em
Para uma ontologia do ser social II
(2013, pp.
576-838). Nele o filósofo recupera a sua tese genérica da contribuição da arte para a
autoconsciência do indivíduo desenvolvida na seção IV
Base y perspectiva de la
liberación
do último capítulo do citado volume 4 da
Estética
(1967),
La lucha
revolucionária del arte
(pp. 368-576), aplicando-a ao processo ontológico de
desfetichização. Para tanto, partindo do pressuposto lukácsiano segundo o qual a
relação entre os sentidos imanentes do artista e o brotar espontâneo da criação do
artista “[...tornando-o], como criador, uma personalidade não mais particular” (LUKÁCS,
2013, p. 616), é que o presente ensaio irá deitar algumas de suas raízes. Com efeito,
recorrendo a Cézanne, Lukács reporta que o pintor considera
[...] a sua própria pessoa particular como um bom aparelho de registro da
realidade, mas quando ela interfere na reprodução da realidade ele rejeita
radicalmente essa atividade da “miserável”, visto que ela turva e perturba o
essencial que ele exige da obra de arte, a saber, conferir constância à
natureza nas mudanças fenomênicas de seu ser-em-si (LUKÁCS, 2013, p.
616).
Ademais, do que está explícito na relação acima apontada pelo filósofo, o
segundo aspecto a ser considerado no presente ensaio, refere-se à problemática
teórica da educação dos sentidos, explorada quase sempre de forma insuficiente nos
textos da área de Educação. Ainda na
Ontologia
, Lukács procura deixar claro uma
situação recorrente no senso comum quando defrontada com a obra de arte: a
presença das “teorias deformadoras que vislumbram [na arte] um comportamento
puramente contemplativo [...] ou que absolutizam a tomada de partido que sempre
estará contido nela” (LUKÁCS, 2013, p. 616). Das “teorias deformadoras” é bastante
conhecido o paradoxo produzido pelo senso comum quando apreende a atividade
artística como um trabalho não necessário, ou mesmo supérfluo, ao mesmo tempo em
que atribui ao indivíduo que a realiza uma inspiração de natureza divina, um dom, “[...]
velando a sua materialidade concreta e alimentando a dissociação entre o trabalho de
arte e o trabalho em geral”. Portanto, atribuições genéricas como “dom”, “genialidade”
etc. acabam por encobertar “os processos concretos de produção artística desde a sua
Ronaldo Rosas Reis
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aprendizagem a o momento em que o produto artístico é consumido como
mercadoria pelo público” (REIS; REQUIÃO, 2015, p. 128).
A publicação no Brasil de
As ideias estéticas de Marx
, de Adolfo Sánchez
Vázquez, precedeu em um ano o lançamento da primeira edição de
Realismo crítico
hoje
(1969). Cabe recordar que antes mesmo dessas duas publicações, em 1966,
A
necessidade da arte
, de Ernst Fischer, poeta e ensaísta austríaco, por alguns anos
próximo a Lukács, seria publicado no país e, em 1967 Leandro Konder publicaria
Os
marxistas e a arte
. Cinco anos depois, os dois volumosos tomos de
História social da
literatura e da arte
(1972), do historiador da arte húngaro Arnold Hauser, companheiro
de Lukács e de outros estudiosos da arte no Círculo Dominical de Budapeste,
chegariam ao público brasileiro, e em 1978, a
Introdução a uma estética marxista
, era
publicada no país fechando um ciclo inaugural de publicações traduzidas e colocadas
ao alcance de uma geração de universitários carentes de obras de referência marxistas
no campo da arte e da estética em língua portuguesa. A propósito disso, ainda hoje
me parece surpreendente que todas essas publicações tenham sido traduzidas,
editoradas, comercializadas e adotadas em muitos cursos superiores do país no
mesmo período em que a ditadura civil-militar (1964-1985) editava o Ato Institucional
5/1968 e o Decreto-lei 477/1969, os quais impunham, dentre outras
barbaridades, a censura prévia, a proibição de manifestações públicas contra o regime
e a perseguição de professores e alunos então considerados subversivos.
O significado da menção que faço a esse contexto histórico-social pretérito sobre
as publicações marxistas no campo da estética deve-se, primeiramente, à percepção
de um certo efeito tardio do pensamento marxiano em geral e, particularmente o de
Lukács, no Brasil, em especial nos terrenos da cultura e da educação. É importante
registrar que por “efeito tardio” entenda-se um modo de pensar as teses marxistas
que se contrapõem ao marxismo filistino que por anos vigorou na esquerda brasileira
antes das publicações mencionadas no parágrafo anterior. Certo ou errado quanto a
esse ponto, o fato é que, entre nós, o avanço do repertório marxiano na estética e na
história social da arte se fez e faz aos solavancos, entre arbitrariedades e liberalidades
da elite dominante. Após o fértil ciclo de lançamentos desse repertório registrado nos
anos 1960 e 1970, nas três décadas seguintes (1980-2000), sob os auspícios da
abertura política lenta e gradual do país, setores da
intelligentsia
burguesa, até então
relativamente próxima da resistência aos desmandos do regime, se entrega
A pintura na
Estética
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 119
vigorosamente ao que há tempos chamei de
impulso anti-intelectualista
(REIS, 2012)
2
.
Ao voltar o seu interesse para a crítica agenciada ideologicamente pelo mercado de
arte europeu e estadunidense, a
intelligentsia
nacional zelosamente se propõe a
provocar uma reversão radical no rumo do debate cultural e educacional do país,
mitigando a tensão causada por algumas tendências marxistas que ganhavam força no
ambiente cultural e educacional, em meio ao avanço do movimento pela abertura
política do país. Mais do que isso, de corte conformista e celebratório de uma
apoteótica “inatualidade aberta”, conforme pregava o crítico de arte italiano Achille
Bonito Oliva (
apud
PONTUAL, 1984, p. 38), o anti-intelectualismo difundido por
jornalistas e formadores de opinião com assento nos cadernos culturais e nas editoras
nacionais, em verdade travavam uma luta política, no sentido tático, a fim de operar
uma metamorfose teleológica na ideia de criação artística, associando o seu sentido
libertador à exigência de dar cabo da razão moderna. Isto é, de acordo com a crítica
anti-intelectualista, para abrir espaço para o imaginário criador e libertário pós-
modernista, tornava-se necessário destruir todo e qualquer tipo de racionalidade
aprisionadora (REIS, 2012)
3
. Conforme notava Fredric Jameson à época (1992), o
surgimento dessa visão populista ou demagógica segundo a qual a cultura do alto
modernismo teria gerado um valor social estigmatizado por sua associação com a elite
universitária, estava atrelada à radical guinada à direita no Ocidente que se seguiu à
ascensão de Margaret Thatcher, na Inglaterra, continuada por Ronald Reagan nos EUA,
até a condução de Helmut Kohl ao poder na Alemanha. Com base no pressuposto de
que o “governo não era a solução, mas o problema” (Ronald Reagan
apud
HOBSBAWM,
1995, p. 401), o trio conhecido como “falcões do neoliberalismo”, executaria um
repertório de medidas ultraliberais, tornando-as desde então o fio político condutor
da economia mundial, e se impondo como a expressão da
liberdade empreendedora
.
na superestrutura global, o crescimento por toda a parte da Teologia da
Prosperidade somado a um anti-intelectualismo derrisório, todavia eficaz no combate
avant la lettre
do que pejorativamente hoje chamam de
Marxismo Cultural
,
2
Cabe o registro das exceções às publicações simultâneas, em 1992, por editoras diferentes, de
Arte
moderna
, e
História da arte como história da cidade
, ambas do historiador da arte e político italiano
comunista, Giulio Carlo Argan.
3
Os principais ideólogos europeus da reação conservadora no campo das artes visuais foram os críticos
Achille Bonito Oliva (Itália), Rudi Fuchs (Holanda) e Jacques-Louis Binet (França), e, no Brasil, Sheila
Leirner, Roberto Pontual e Frederico Morais. Ver: (REIS, 1994).
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conformariam a lógica cultural anarquista-reacionária e predadora que conhecemos
nos tempos atuais. Ao final do ensaio voltaremos a abordar esse assunto.
O esforço dos diversos grupos de estudo e pesquisa com acesso a bibliotecas
detentoras de antigas publicações em português e em língua estrangeira, de algum
modo manteve vivo o pensamento de Lukács, especialmente nos cursos de filosofia,
sociologia e educação. A despeito desses grupos terem produzido algumas dezenas
de dissertações e teses ao longo dos anos 1990 e 2000, o alcance limitado desses
meios de difusão limitaram a sua reprodução e a amplitude do debate, sendo que nos
cursos universitários de formação artística, nas licenciaturas em arte e nas respectivas
pós-graduações, a produção intelectual associada ao pensamento estético marxiano-
lukácsiano se manteve praticamente estagnada. Apesar de tudo, certamente as
editoras nacionais devem ao esforço desses setores da academia o recente e tímido
ressurgimento do interesse pela ontologia e pela estética marxiana, fato esse que nos
coloca diante do desafio de José Paulo Netto, para quem a viabilidade do marxismo
será possível somente se ele estiver aberto ao debate e plural, mas com fronteiras
claras e suscetíveis de polêmica e dissenso”, e é nesse sentido que devemos apreender
a atualidade da obra de Lukács como um pensamento prospectivo (NETTO, 2012).
Procurando concluir essa introdução que se faz extensa, daremos início ao
desenvolvimento metodológico do texto abordando a universalidade da pintura
enquanto fenômeno social, portadora de uma linguagem que comunica e expressa a
particularidade do ser. Para tanto, nessa parte, realizaremos uma revisão analítica dos
textos de Lukács sobre o reflexo estético, especialmente a mimese, de modo a
problematizar adiante as categorias
naturalismo
e
realismo
na pintura. Além das ideias
de Lukács, Marx e Engels, centrais nessa revisão, nos valeremos, subordinadamente,
de autores como Arnold Hauser (1972) e Lionello Venturi (1968). Seguiremos adiante
abordando a especificidade da categoria realismo crítico na perspectiva ontológica
lukácsiana. Aqui o nosso esforço metodológico será no sentido de transportar as
referências literárias do autor para o terreno das Belas Artes, buscando responder
teoricamente à pergunta sobre a natureza dos elementos que devem ser considerados
na concepção de mundo e na intenção do artista quando da definição prévia do tema
e da realização da obra. Em suma, a pergunta busca apreender na pintura o
télos
originário do artista mediante o qual a sua expressão final “poria em relevo uma
realidade que se situa muito além dos dados brutos, imediatamente fornecidos pelo
processo associativo [...]” (LUKÁCS, 1969, p. 34).
A pintura na
Estética
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Da pintura: princípios e problematização
Pôr teleológico e generidade
Em
A ideologia alemã
, uma das obras seminais para a moderna ontologia, Marx
e Engels apresentam uma chave para compreendermos o papel da linguagem na
evolução do ser social. Para eles, o fato de a linguagem ser “a consciência real, prática
[...] da humanidade”, existindo para os outros seres humanos como também, primeiro,
para mim mesmo , demonstra que ela nasce da necessidade de o ser da espécie se
relacionar com outros seres da mesma espécie, de realizarem trocas, de se
comunicarem entre si e de expressarem seus sentimentos diante de tudo o que se
apresenta estranho ou aparentemente intangível (MARX; ENGELS, 2002, p. 24). E
completam dizendo que ainda que no seu estágio evolutivo inicial a linguagem seja
“uma simples consciência gregária” acionada pelos sentidos, portanto, longe de
adquirir condições de se desenvolver plenamente como consciência, ela reúne na sua
forma singular as características de um instinto consciente” (MARX; ENGELS, 2002
pp. 25-26). Saliente-se aqui que o fenômeno ontologicamente casual da existência nos
hominídeos de um cérebro pensante está associado ao seu metabolismo mediatizado
pelo trabalho na natureza. Com efeito, os primeiros grupos de hominídeos não sabiam
produzir ferramentas, tal como machados, lanças, serras, armas de caça etc. Eram
grupos nômades, em grande parte coletores, que dependiam de encontrar um animal
morto ou ferido. Gordon Childe (1966) destaca que duraria cerca de 250 mil anos o
processo de observação, seleção e classificação que levaria alguns grupos, como o do
Homem de Pequim, a produzir instrumentos ocasionais recolhendo pedaços de pedras
e outros materiais, como galhos de árvore, fosse para utilizá-los aumentando a
potência da força das suas mãos e braços com a finalidade de quebrar alguma coisa
(nozes, o crânio de um inimigo ou de um animal), ou como extensão deles, a fim de
colher frutos localizados nos lugares mais altos de uma árvore. Numa fase posterior
eles desenvolveriam armadilhas mimetizando os silvos dos pássaros ou utilizando as
peles de animais mortos a fim de atrair a possível caça, portanto, ainda não haviam
desenvolvido uma ferramenta específica para cada finalidade. Entretanto, esse longo
período serviria para que, submetidos ao esforço coletivo para fazer frente às suas
necessidades elementares, os indivíduos desenvolvessem, inicialmente, a práxis social
que os distinguiria das demais espécies. Com o aumento das necessidades e da
população, a divisão do trabalho material imporia a exigência de planejamento
intelectual dando origem a uma nova divisão do trabalho, condição que levaria à
Ronaldo Rosas Reis
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transformação da consciência gregária em “consciência que representa
realmente
algo
sem representar algo real” (MARX; ENGELS, 2002, p. 26, grifos da publicação). É nesse
ponto que a consciência na forma de linguagem é apreendida como consciência
universal que o ser da espécie comunica e expressa o que os seus sentidos
experimentam das coisas e dos fatos comuns a todos os demais seres humanos. Ora,
se “o que faço a partir de mim, faço a partir de mim para a sociedade, e com a
consciência de mim como um ser social” (MARX, 2004, p. 107), temos, por
conseguinte, que a emancipação da consciência é o salto da sua condição particular
para a condição de generidade. Tal característica positiva da linguagem é o que define
o pôr teleológico do ser humano, uma decorrência ontológica exclusiva do trabalho
intelectual. Nesse sentido, parece evidente que a processualidade da objetivação de
um conceito, ou seja, o caminho percorrido entre o trabalho intelectual (o pôr
teleológico) de criar e atribuir previamente uma ideia ou nome a um determinado
objeto, não está isento de contradições, dentre elas a alienação.
Na arte, a universalidade concreta ou generidade do fenômeno estético ocorre
de forma diferenciada na totalidade dos variados gêneros expressivos conhecidos.
Todavia, ressalta Lukács, alguns desses gêneros, como o canto, a dança, a música, a
encenação, a escultura e a arquitetura, alcançaram muito mais rapidamente o “terreno
de um nível social já consciente de si mesmo como vida pública” do que a pintura, fato
que muito contribuiu, desde sempre, para serem estudados como gêneros artísticos
historicamente reconhecidos (LUKÁCS, 1972, p. 164). De modo breve, a dimensão
pública a que se refere o filósofo está conectada à empatia, ou seja, à possibilidade
de cada pessoa reconhecer emocionalmente na particularidade de uma obra o seu
próprio mundo, conferindo a ela a qualidade de um conceito comum a todas as demais
pessoas presentes na sua vida social cotidiana. A universalidade de uma obra de arte
não se restringe, evidentemente, a mera aparência da representação e do
representado, posto que, conforme lembra Marx nos
Manuscritos de Paris,
[...] a apropriação
sensível
da essência e da vida humana, do ser humano
objetivo, da
obra
humana para e pelo homem, não pode ser apreendida
apenas no sentido da
fruição imediata
, unilateral, não somente no sentido da
posse
, no sentido do
ter
. O homem se apropria da sua essência omnilateral
de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total (MARX, 2004,
p. 108, grifos do tradutor).
Por extensão, Marx está aqui sublinhando com toda clareza que no processo de
apropriação e fruição da realidade pelo ser humano, os órgãos que caracterizam o ser
sócia, como “pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar etc.” (MARX, 2004,
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Estética
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p.108), igualmente participam no desenvolvimento da práxis artística, nela imprimindo
o sentido comunitário. Nesse ponto, aplicando o que dissemos um pouco antes, vemos
que é, primeiramente, o resultado do trabalho intelectual do artista, cujo pôr
teleológico a prospectou na sua mente sob a forma de um conceito que,
secundariamente, ao ser apropriado e mediado pela coletividade, assume a condição
de generidade. Adiante retomarei essa problemática de modo a relacioná-la com a
processualidade da criação artística.
Mimese: bidimensionalidade e tridimensionalidade
Analisando o “espaço mimético de criação do mundo” na pintura, Lukács chama
a atenção para a maior dificuldade de se examinar a apreensão da sua universalidade
em relação a outras manifestações artísticas. Como visto logo acima, a ausência de
uma dimensão pública da pintura é o principal fator que confere a esse gênero artístico
um caráter específico no estudo da problemática estética da mimese. Dado que a
pintura tem uma origem “enraizada profundamente na vida privada do cotidiano”
(LUKÁCS, 1972, p. 164), fato que pode ser comprovado nas pinturas rupestres do
paleolítico situadas em locais ermos no interior das cavernas em determinadas regiões
da Europa continental ou de difícil alcance nos continentes americano, africano e
asiático, e nas pinturas históricas etrusca e cretense anteriores à Antiguidade clássica
na Grécia. Para demonstrar essa dificuldade, Lukács exemplifica traçando brevemente
uma linha evolutiva de um processo no qual as incorporações de representações de
uma grande diversidade de descrições de elementos naturais (bosques, hortas,
pomares etc.), evocativas de modos de vida particulares cotidianos, impõem barreiras
para o reconhecimento da sua universalidade. A partir desses e de outros fatos
psíquicos análogos da vida cotidiana, nasce a demanda pela pintura:
[...] a exigência de refiguração mimética de um espaço concreto em cada caso,
também preenchido por objetos concretos de tal forma que pareçam ter um
local adequado de sua existência e de tal forma que tudo isso tenha para o
espectador a forma aparente de ser a refiguração visível e dominável do
mundo do homem (LUKÁCS, 1972, p.165).
Bidimensionalidade
Em sua origem pré-histórica a pintura era chapada na parede da caverna. Para
fins da representação o autor não tirava partido do suporte (se curvo, reto, inclinado,
convexo, côncavo etc.) para fins miméticos, fato perceptível dada a ausência de
bidimensionalidade ou, grosso modo, de
enquadramento
. Segundo Fischer (1983, pp.
33-34), isso pode ser explicado na medida em que “o homem pré-histórico via o
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mundo como um todo indeterminado”, desde o ponto de vista representacional, a
inexistência de eixos bidimensionais, verticais e horizontais determinantes nas pinturas
rupestres. Por conseguinte, a imagem dissolvida em meio a outros objetos no espaço,
e, não mantendo assim qualquer relação com um espaço específico, expõe a dupla
negatividade da bidimensionalidade, fato que Lukács destacará como uma expressão
fortuita de uma individualidade singular, acrescentando que
Não é por acaso que, quando uma multiobjetividade relacional começa a
aparecer, o milagre da individualidade singular termina ao mesmo tempo que
as figuras ligadas entre si se aproximam de uma certa simplicidade e
abstração ornamental (LUKÁCS, 1972, p. 166).
Ainda sobre esse ponto, o esforço seguinte do filósofo será no sentido de
demonstrar que, contrariamente ao que afirma a dialética idealista, as pinturas
rupestres não são elementos de uma dupla negatividade, sendo, de um lado, “mimese
pura” e, de outro lado, sua antítese, “ornamentação pura”. Em verdade, a pintura
rupestre não nasce de si mesma nem tampouco da imitação de outra, mas, sim, de
“reflexos estéticos e formas de expressão estéticas de uma complicada evolução
histórica”. Lukács apoia a sua tese na convicção de que a pintura rupestre “não é um
movimento primário da vida social, o movimento estrutural, mas, sim, um movimento
da superestrutura no qual [...] toda transformação se segue das alterações
fundamentais do modo de produção da vida” (LUKÁCS, 1972, p. 166). Nessa mesma
direção, o paleontólogo francês André Leroi-Gourhan (s/d, p. 191) dirá que “com
muitas variantes, a arte pré-histórica gira em volta de um tema provavelmente
mitológico, onde se defrontam complementarmente
imagens de animais e representações de homens e
mulheres” (Figs. 1/1a). Com efeito, produzida longe
dos olhos da coletividade, em grutas e outros lugares
de difícil acesso e visualização, a pintura rupestre não
encontrava um
sentido público
, como ocorria com o
canto, a dança, a encenação etc. De fato, ainda que em
sua origem estivesse associada ao momento em que a
dialética homem-natureza se encontrava num
estágio de desenvolvimento em que a consciência do
indivíduo havia introjetado a existência de uma
segunda natureza
(a cultura), a pintura, diversamente
das demais formas expressivas citadas, não alcançava
Figs. 1 e 1a - França, c. 40.000 anos
A pintura na
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a coletividade, a despeito de manifestar, como as demais, a imaginação de o artista
poder exercer um domínio mágico sobre o mundo que o cercava. Nos termos de
Lukács, a pintura rupestre era despojada de universalidade, “uma ornamentística sem
mundo” (LUKÁCS, 1972, p. 166).
Tridimensionalidade
Lukács destacará dois aspectos importantes da pintura no seu despertar para
uma mimese “orientada para a universalidade” (LUKÁCS, 1972, p. 166). O filósofo
nota, primeiramente, que o surgimento da pintura na Antiguidade histórica não tem
conexão histórica alguma com o paleolítico, posto que, não somente a pintura renasce
espontaneamente partindo de uma nova situação vital, como, em segundo lugar, é
também qualitativamente diversa do paleolítico, não podendo ser continuação desta
sob nenhum aspecto, devendo ser apreendida, do ponto de vista ornamental-
decorativo, como uma nova consideração artística do mundo (LUKÁCS, 1972, p. 167).
Diz ele inicialmente que, nessa nova condição, os princípios ordenadores decisivos da
mimese também devem ter caráter mimético. Lukács
justifica essa caracterização dizendo que “os objetos
representados e igualmente as relações entre eles e
com o espaço que os cerca, que eles preenchem,
pertencem a um sistema de complicadas interações,
se convertendo em um espaço concretamente
evocador”. Portanto, tais objetos o são mais um
acréscimo secundário, determinável por categorias
abstratas geométricas (no sentido de decorativos). De acordo com o filósofo, na
principal corrente evolutiva da pintura, a composição nascente detém princípios que
podem derivar da coexistência tridimensional de
figuras humanas e objetos da natureza de suas
relações (de seu dramatismo, por exemplo, como
ocorre de forma diversa no afresco
A crucificação de
São Pedro
(Fig. 2, 1545-1550), de Michelangelo, e
no óleo
A lição de anatomia do Dr. Tulp
(Fig. 3,
1632), de Rembrandt, ou de sua função
representativa como é frequente na obra de Rafael,
Fig. 3 - A lição de anatomia do dr. Tulp
Fig. 2 - A crucificação de S. Pedro
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especialmente no afresco
A Escola de Atenas
(Fig. 4,
1511). De acordo com o filósofo húngaro, os
princípios ordenadores da mimese voltada para a
universalidade, têm a característica do estético
(artístico) pleno em suas origens , nascendo
organicamente em cada caso “a partir do ser
concreto, portanto, do conteúdo a ser modelado,
generalizando a sua singularidade da maneira específica à arte”, justificando assim “a
inesgotável variedade histórica e individual das composições originadas neste campo”,
não necessariamente isso significando um arbítrio subjetivista” (LUKÁCS, 1972, p.
167).
Conteúdo
Para Lukács, por um lado, os “princípios da composição estão determinados pelo
conteúdo em cada caso”, sendo que, se o conteúdo nasce de “necessidades sociais
reais, uma classe real, em um tempo histórico real, isso é interpretado visualmente
pelo artista segundo a concepção de mundo de cada um, ou seja, pela posição
individual diante dos problemas da vida” (LUKÁCS, 1972, p. 167). Segundo o filósofo,
[...] desse modo a subjetividade conformadora pode se impor livremente e
de forma ampla, mas sempre limitada pela natureza, o alcance etc. do jogo
formal e de conteúdo nascido desses condicionamentos, e movida em
determinadas direções, de acordo com determinados modos e meios de
expressão etc. (LUKÁCS, 1972, p. 167).
Por outro lado continua ele:
a subjetividade criadora se move pelo caminho direcionado por esses
componentes. Nenhum artista pode ignorar a coerência do que foi iniciado
dessa maneira, porque o valor estético da sua subjetividade mostra sua
justificativa precisamente no fato de que eles podem empreender e seguir
até suas consequências finais um caminho ousado e incomum (LUKÁCS,
1972, p.168).
Lukács ressalta, porém, que a unidade da objetividade visual evocadora,
tridimensional e concreta não é mais um aspecto da composição. Quer ele dizer que,
numa composição, a imagem tridimensionalmente representada, capaz de evocar algo
real, conhecido, realiza também uma unidade bidimensional de algo formado por
vários elementos, tais como a cor, a linha, a sombra etc. Em suma, diz o filósofo que a
universalidade da pintura se deve à convergência entre a tridimensionalidade e a
bidimensionalidade. Para ser capaz de revelar a intensidade do conjunto representado
e de cada uma de suas partes, e novos aspectos a todo momento, cada elemento da
Fig. 4 - A Escola de Atenas
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obra tem de cumprir inúmeras tarefas na conformação do detalhe e na coordenação
compositiva. Conforme Lukács, muito embora essa tendência se encontre
germinalmente na forma inicial da mimese, logo ela se eleva a um nível
qualitativamente superior, se difunde, se aprofunda e intensifica pela unidade
inseparável da mimese espacial-objetiva que tende a uma totalidade concreta destas
novas formas do decorativo-ornamental. A referencialidade recíproca indissolúvel
funciona em ambos os fatores, modificando-os. A busca pela totalidade, pelo
fechamento de tendências frequentemente orientadas de forma abrangente em um
espaço relativamente pequeno e a busca pela intensidade do sistema de referências
entre os objetos de representação, devem ser reforçadas mesmo nessa interação. Em
vez disso, o princípio decorativo-ornamental perde muito de sua abstração e falta de
conteúdo (ou seu conteúdo transcendente, que é o mesmo). Mas como seu trabalho a
serviço do todo é reduzido a colocar objetos concretos e suas relações também
concretas em contextos bidimensionais, ou seja, despertar suas possibilidades
decorativas, o que é exclusivo a esse princípio recebe um acento positivo. Como será
visto logo em seguida, torna-se o princípio da consumação final de uma aspiração à
totalidade concreta, ao conteúdo consumado, ao
próprio mundo artístico do homem, como se pode
constatar na admirável tela
A rendição de Breda
(Fig. 5, 1635), do pintor ibérico Diego Velázquez.
Lukács (1972, p. 169) adianta a exposição desse
princípio resumindo a trajetória de sua análise “das
formas abstratas do reflexo” até aqui. Diz ele
primeiramente que, com a exceção da
ornamentística puramente geométrica, todas as
formas abstratas de reflexão com conformação mimética da realidade têm um caráter
meramente aproximativo. Como esses elementos (ritmo, proporção, simetria etc.)
aparecem como os princípios ordenadores de uma realidade objetiva mundana, sua
aplicabilidade é tanto uma realização quanto uma autodissolução. Quanto mais
mundana uma formação mimética se torna, mais determinado é o caráter meramente
aproximado das formas abstratas. Mas isso significa, ao mesmo tempo, uma inflexão
qualitativa de todo o relacionamento conteúdo-forma. Adiante retomaremos essa
questão.
Fig. 5 - A rendição de Breda
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O geométrico aparece agora meramente como
limite extremo da concentração mimética, quase como
uma
ideia reguladora
, no sentido kantiano, determinando
ao mesmo tempo tudo e nada na objetividade real
4
Sem
embargo, um dos exemplos mais famosos desse tipo de
composição é o quadro de Leonardo da Vinci,
A virgem,
o menino Jesus e Santa Ana
(Fig. 6, 1503-1519).
Segundo Wölfflin, trata-se de uma composição formando
um triângulo equilátero, no qual todas as figuras se
movem concentricamente e as direções opostas estão
concentradas em formas fechadas. Para ele, Leonardo teria tentado preencher num
espaço cada vez menor uma quantidade cada vez maior de conteúdos de movimento
etc. Por seu turno, Lukács diz ser desnecessário estabelecer uma discussão especial
com as ideias de Wölfflin, tendo como finalidade o esclarecimento do contraste entre
a função artística de tal triângulo e a que ela teria em um ornamento verdadeiramente
abstrato. Para o filósofo húngaro, no exemplo de Leonardo e dos artistas seus
contemporâneos, a consequência da universalidade do trabalho na vida dos homens
já pode ser afirmada objetivamente, algo que até o momento podíamos fazer apenas
de uma maneira geral.
Concluindo esta análise específica do princípio do conteúdo, diz ele que agora
os princípios abstratos da ordenação devem ser reformulados para fornecer categorias
de objetividade concreta. Em seguida, Lukács dirá que as tendências decorativas-
ornamentais da pintura recaem inicialmente sobre a complexidade por ela alcançada à
medida que no seu desenvolvimento passa a se encontrar a si mesma como arte
(LUKÁCS, 1972, pp. 169-170). Ou seja, quanto mais avançado for o estágio de
desenvolvimento da pintura, maiores serão as exigências para a sua fruição. Tal
complexidade se mostra na importância crescente da combinação decorativa das cores
e do uso dos fundamentos de suas funções mais complicadas de objetividade e
espacialidade em sua
harmonia fisiológica
5
, como o claro-escuro, as sombras, a
4
Lembrando que, em Kant, as ideias têm a função de regular as ações humanas, assim listadas: Deus,
Alma e Mundo como totalidade metafísica. Ver: (FERRATER, 1994).
5
Peço desculpa pela extensão da nota, mas acho importante comentar a utilização que me parece no
mínimo curiosa do termo
harmonia fisiológica
. É um termo médico há tempos conhecido e pesquisado
na fisiologia. Trata-se de um estado de equilíbrio do meio interno do corpo humano independente do
que se passa no meio externo. O meio interno é o líquido que circula em nossas lulas chamado de
Fig. 6 - A virgem, o menino Jesus e
Santa Ana
A pintura na
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perspectiva, o valor etc. Para o filósofo, essa harmonia se apresenta de maneira tanto
mais mediada e oculta quanto mais elaborada for a pintura como tal, de todo modo,
sendo a sua base, deve sempre estar presente, porque, caso contrário, toda a
bidimensionalidade se torna confusa, sem caráter, incoerente etc. Certamente que esta
supremacia do puramente pictórico (de novo, do princípio da bidimensionalidade) não
se reduz, óbvio, ao colorido pois que está presente em todos os aspectos da
composição. Um desenho em preto e branco pode estar projetado de um modo
pictórico, e também o desenho pode dominar perfeitamente as pinturas coloridas.
Entretanto, por mais complexa e oculta que seja a influência dessas determinações, há
sempre uma harmonia bidimensional da pintura, seu arranjo e domínio passivo por
princípios decorativos. De acordo com Lukács, na história da pintura moderna isso não
ocorre, porém, de imediato, sendo observado que, dependendo da mimese específica
do momento, de resto conformada pelo próprio mundo tridimensional, muitas novas
correntes têm sido admiradas ou recusadas de modo igualmente apaixonado. Segundo
ele, dessas disputas entre os
ismos
de vanguarda decorre a formação de uma
consciência estética geral conformada segundo a natureza decorativa da pintura
modernista. Para ele, estas e outras tendências subjetivistas e formalistas promovidas
pelo idealismo filosófico burguês na sua consideração mais recente da arte terminam
por induzir muitos pesquisadores importantes da arte a identificar (confundir) na
pintura o decorativo como pictórico.
Por ora é importante observar que, nesse ponto, Lukács procede a duas críticas
importantes para a compreensão das suas ideias. Na primeira delas dá como exemplo
as análises “grosseiras”, segundo ele próprio, de um seu famoso contemporâneo, o
historiador da arte estadunidense Bernard Berenson. Nesse sentido, a crítica de Lukács
(1972, p. 171) se volta principalmente para a separação entre forma e conteúdo que
Berenson faz, atribuindo ao último uma qualidade extra artística e à primeira uma
qualidade artística, medida que leva “à destruição da unidade da obra de arte”. Cabe
aqui abrir um parêntese para registrarmos que o pesquisador estadunidense é
conhecido pelos numerosos estudos sobre a arte renascentista italiana. No Brasil tem
intersticial. Nas primeiras décadas do século XX essa dinâmica foi investigada pelo fisiologista
estadunidense Walter Cannon que a denominou de
homeostase
. Como Lukács não faz referência a isso
e tampouco menciona qualquer estudo de estética ou filosofia anterior que tenha utilizado o conceito,
me permiti considerar a hipótese de que ele tenha mimetizado o conceito de forma original para
designar o equilíbrio interno da composição pictórica.
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um único livro publicado,
Estética e história
(1972), restando dizer que dos cinco
ensaios publicados no livro apenas dois deles,
Valor
e o aqui aludido por Lukács,
Ilustração
, são suficientes para apreendermos a extração filosófica idealista do autor,
sendo que os demais se mostram sem interesse e flagrantemente datados. Lukács
criticará ainda a posição formalista do historiador da arte vienense Alois Riegl
6
. Não
obstante, dirá que Riegl se distingue “vantajosamente sobre muitos dos seus colegas
na medida em que percebe haver uma conexão entre conteúdo artístico e conteúdo
iconográfico” (LUKÁCS, 1972, p. 171). Citando Riegl:
“Pois não pode haver dúvida de que entre as representações que o homem
deseja ver tornadas sensíveis na obra de arte, e a maneira como ele aspira
tratar os meios sensíveis utilizados (figuras etc.), existe uma conexão íntima
(LUKÁCS, 1972, p. 171).
Nesse sentido, Lukács observa que decerto o tratamento do conteúdo
iconográfico é muitas vezes totalmente separado dos problemas estéticos da criação
de formas, e que, inversamente, muitas vezes o conteúdo nada mais é do que um
pretexto para expressar efeitos pictóricos decorativos, independentemente do espaço
e do tempo da história. Mais adiante devemos voltar a isso. Por ora, ele irá insistir no
esclarecimento de que o estético não pode ser contrastado conscientemente,
especificamente, em todos os seus detalhes, considerando a dialética conteúdo e forma
com suas contrapartes mecânicas. Todavia, aqui, ele afirma que “se deve indicar que
o que normalmente é chamado de conteúdo iconográfico faz parte da demanda que a
vida coloca em cada caso da arte”. Este conteúdo abrange certas situações humanas,
ações que as preparam e as seguem, certos personagens, destinos, relacionamentos
entre homens etc. Explicitamente:
Na medida em que esse complexo se constitui como mito, saga, escrita
sagrada ou profana, a demanda por conteúdo colocado na representação
artística constitui, apesar de toda determinação como conteúdo, e mesmo no
caso de uma formulação iconológica exata e profunda, uma matéria-prima
caótica, sem caráter, do ponto de vista do artista. Este a transforma em
conteúdo artístico concreto o que se contrapõe como postulado, como
imposição social, desde a conformação pictórica tanto decorativos como
miméticos, bem como sua unidade na coincidência dos princípios
tridimensionais e elementos de composição com os bidimensionais (LUKÁCS,
1972, pp. 171-172).
Em suma, o que Lukács afirma é que tais conteúdos iconográficos não podem
ser impostos, exceto como uma forma específica desse conteúdo, que é particular,
6
Falecido em 1901, Alois Riegl foi um importante pesquisador da arte italiana de características
helenísticas na fase de declínio do Império Romano.
A pintura na
Estética
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e não iconograficamente geral. Para ele,
[...] nem a pintura é uma mera realização da tarefa social iconograficamente
proposta, nem a missão social é um mero pretexto de que a arte pode fazer
qualquer coisa. A melhor maneira de descrever a essência dessa relação é
considerá-la um campo de jogo:
concreto
, porque engloba e de alguma forma
resume os desejos de continuidade, a eles uma certa figura, uma certa
direção etc.;
abstrato
, porque apenas a atividade artística de modelagem
realiza inequivocamente as possibilidades, muitas vezes contraditórias, que
nela dormem (LUKÁCS, 1972, p. 172).
Lukács faz referência aos estudos de Riegl para insistir no fato de que as relações
entre as exigências sociais de conteúdos iconográficos, por exemplo, o retrato de um
rei, de um papa, de um nobre ou de um burguês poderoso, e o conteúdo pictórico
(estético/mimético) adotado pelo artista são complicadíssimas” (LUKÁCS, 1972, p.
171). Ainda fazendo referência a Riegl, ele diz que o fato de determinados conteúdos
iconográficos guardarem alguma convergência com a “solução formal”, não significa
isso uma “vinculação unívoca”, dado que os
caminhos que se apresentam para a solução são
variados. Como exemplo, Lukács chama a atenção
para o quadro de Rembrandt
Os síndicos da guilda
de alfaiates
(
De Stallmeesters
, Fig. 7, 1662),
utilizado por Riegl para comprovar a sua tese
teoricamente e também factualmente, isto é, no
quadro ele mesmo. O tema da pintura vem a ser um
retrato de regente
, entendendo-
se tal sujeito (regente) como um indivíduo em posição de mando. O tema é
especialmente reconhecido pela sociedade holandesa no século XVII, tendo sido
adotado por um grande número de artistas, os quais eram disputados pela aristocracia
e pela burguesia indistintamente. Riegl, de acordo com Lukács, mostra que se de um
modo geral o tema da regência
promove e produz um modo de composição orientado a coordenar a atenção
do espectador, mas ao mesmo tempo mostra como [nesse quadro]
Rembrandt subverte isso acrescentando uma subordinação, dado que ele
seguia uma concepção do mundo que em seus esboços sempre tende a
capturar o germe de um conflito dramático (LUKÁCS, 1972, pp. 172-173).
Ainda sobre a questão do conteúdo iconográfico, Lukács passa a abordar a tarefa
social-iconográfica, dado que oferece um escopo ao pintor no momento de ele
organizar a composição, mesmo que ocorra de as diferenças contidas no quadro não
aguçarem as eventuais contraposições. Também entende, com Riegl, que tal tarefa
igualmente oferece uma meta aos princípios que orientam o conteúdo iconográfico do
Fig. 7 - Os síndicos da guilda
de
alfaiates
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quadro (coordenação e subordinação) na sua ordenação formal quanto à disposição
dos elementos bidimensionais (altura e largura) e tridimensionais (altura, largura e
profundidade). Entretanto, na medida em que o artista avança na realização da pintura
transpondo o registro factual de um determinado modelo, um retrato apenas, por
exemplo, para o terreno do artístico de fato
,
por extensão, um retrato artístico, “tomam
uma direção de conteúdo decisiva para a qualidade evocadora da imagem”. No caso
da pintura de Rembrandt acima vista, uma situação estática e tranquila ou dramatismo
interno. Lukács refere-se tanto à pose coordenada dos retratados como à relação de
subordinação que eles mantêm com o pintor (por extensão categórica com o
espectador da cena). Analisando o quadro segundo a categoria “coordenação”, temos
a postura estática dos retratados, aparentando tranquilidade pela consciência do
status
social que têm como representantes de uma guilda importante à época. Os seis
retratados estão em torno de uma mesa que ostenta uma rica tapeçaria importada de
seda (possivelmente da Pérsia). À exceção de um personagem que está em ao
fundo, possivelmente um criado ou secretário, que olha para o síndico, todos os
demais, inclusive o próprio síndico, o par mais influente do grupo, olham na direção
do espectador. Enquanto os demais componentes da guilda o aguardavam, o síndico,
flagrado no momento em que se curva para sentar-se a fim de dar início à reunião,
toma o assento mais próximo do primeiro plano do quadro. O grupo parece ter sido
surpreendido pela entrada do observador, no caso, Rembrandt, contratado para
registrar a cena. Nesse ponto, a coordenação do quadro é subvertida dramaticamente
pela subordinação imposta pelo olhar do artista (por extensão, do espectador) sobre
os participantes da cena. Todo esse conjunto de olhares e poses somados aos
elementos decorativos da composição, a parede e o painel ornamental de estuque com
sanca à meia altura envolvendo uma lareira de pedra, às ricas cadeiras trabalhadas,
além do já citado tapete cobrindo a mesa central, contrastando com as vestes negras
ornadas com golas alvas e largas resume o que Lukács denomina como “a dramática
natureza contraditória de uma sociedade” que acolhe e esnoba o artista, que nela tem
a sua fonte de oposição composicional entre coordenação e subordinação (LUKÁCS,
1972, p. 173). De passagem, Lukács adverte que seria um grande erro esquemático-
formalista identificar simplesmente o contraste entre tais princípios de composição
com as contraposições de concepção do mundo que acabou de indicar (o mundo
burguês na Holanda, especialmente, mas não somente, em Amsterdã de meados do
século XVII). Ele refere-se, evidentemente, ao dramatismo explorado conscientemente
A pintura na
Estética
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 133
por Rembrandt neste e em outros muitos
quadros com a mesma temática retrato de
regente”
7
. Em suma, nem todos os quadros
do período renascentista denotam o
interesse do artista pela contraposição,
coordenação e subordinação explorada
dramaticamente por Rembrandt. Dentre os
exemplos por ele citados, chamamos a
atenção para a tela
A crucificação
(Fig. 8,
1617), de Pieter Bruegel, na qual a
subordinação é utilizada articuladamente com a coordenação, para expressar a
violência e a injustiça do Duque de Alba contra aldeões em Flandres, produzindo um
efeito dramático trágico, como vemos na tela. Por fim, Lukács nota conclusivamente
ser “evidentemente claro que o que acabou de expor vale também para a concentração,
em última instância formal, das formações mimético-cotidianas em todos os casos de
aplicação de princípios de composição decorativa” (LUKÁCS, 1972, p. 173). Alinha
ainda algumas considerações pertinentes às formas abstratas de reflexo que absorvem
e assimilam a mimese criadora de mundo. Diz ele que as formas abstratas não estão
em contraposição antinômica com as tendências mimético-realistas, muito embora,
contraditoriamente, são fecundas no reforço a essas tendências. Recorda que ao
estudar o ritmo em outra parte da
Estética
, a aplicação deste na poesia e no canto
serve para elevar a um nível superior o reflexo realista da realidade. Para Lukács, a
arte abstrata é uma arte sem mundo”, a despeito de em determinados casos alcançar
a universalidade. Tal aparente paradoxo ocorre apenas quando elementos ornamentais
que, em um nível inicial, são suficientes apenas para esse fim, para criar uma grande
classe de arte, embora sem mundo, mas perfeita precisamente no seu mundanismo.
Isto é, ela pode ter um repertório temático e elementos gramaticais capazes de
constituir uma obra de arte que afete os sentidos humanos de uma forma universal.
Todavia, como se trata de um repertório e de uma linguagem sem referência ontológica
nas relações sociais, sua universalidade é superficial, restrita ao transitório, ao que é
mundano, incapazes de “formar sistemas estéticos fechados e substantivos” (LUKÁCS,
7
Dentre os mais conhecidos, o já mostrado aqui
Lição de anatomia do Doutor Tulp
(1632) e a
A ronda
noturna
(1642).
Fig. 8 - A crucificação
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1972, p. 174). De acordo com ele, na pintura, as
tendências ornamentais-decorativas se
encontram, por sua essência estética, “ao serviço
de uma consumada conformação artística da
mimese”. Observa ele como ressalva que “o fato
de historicamente serem produzidos com
frequência quadros nos quais o predomínio do
princípio decorativo leva à superficialidade ou
variedade, ou a do princípio mimético à desordem
artística, é algo que não afeta a validade dessa
afirmação” (LUKÁCS, 1972, p. 174). Nesse
sentido, Lukács encaminha a conclusão da sua
abordagem oferecendo um exemplo, a partir de
Wölfflin (1982), comparando os respectivos
afrescos da última ceia de autorias de Leonardo da
Vinci (Fig. 9), de Ghirlandaio (Fig. 10) e de Giotto (Fig.
11), respectivamente, e uma pintura sobre o mesmo
tema de Tintoretto (Fig. 12). Segundo o filósofo, não
se trata de fazer um juízo de valor sobre as obras, mas
tão somente demonstrar de que modo a disposição
dos personagens no espaço pictórico de cada autor é
instrutiva, na medida em que nos permite apreender a
relação entre “ordenação decorativa e conteúdo tonal
espiritual”. Ou seja, de que modo a unidade de cada
quadro é capaz de sintetizar a mimese imaginária com
o sentimento religioso. Lukács diz que tal unidade
“produz uma intensificação da infinitude de todos os
detalhes e de tudo que abrange as suas relações
internas” (LUKÁCS, 1972, p.175.), acentuação que
leva uma composição a se tornar mais viva.
Naturalismo e realismo
“O naturalismo desenvolve-se à custa da forma”, adverte o historiador da arte
húngaro Arnold Hauser na obra
História social da literatura e da arte
(1972, p. 782),
Fig. 9 - Última Ceia, Leonardo da Vinci, 1498
Fig. 10 - Última Ceia, Ghirlandaio, 1480
Fig. 11 - Última Ceia, Giotto, 1306
Fig. 12 - Última Ceia, Tintoretto, 1566
A pintura na
Estética
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mais especificamente no capítulo dedicado ao classicismo no contexto da emergência
revolucionária da burguesia europeia. Para Hauser,
A história da arte moderna é assinalada pelo progresso consistente e quase
ininterrupto do naturalismo; as tendências no sentido do rigoroso formalismo
só, rarissimamente, se manifestam e assim mesmo de forma transitória,
existindo, não obstante, sempre presentes de forma latente (HAUSER, 1972,
p. 782).
Evidencia-se aqui uma contradição em termos no que diz
respeito ao naturalismo como tendência estética das artes
plásticas no interior do classicismo, sendo esta a primeira
manifestação artística da era moderna. O naturalismo não apenas
esteve presente na origem renascentista do classicismo em fins
do século XV, como acompanharia a evolução deste último,
tornando-se, de fato, a mais extraordinária tendência estética
representada ao longo da existência do classicismo. Todavia, isso
de modo algum quer dizer que internamente o naturalismo não
tenha enfrentado conflitos e se metamorfoseado teleologicamente
ao longo daquela evolução. Sem embargo, ao atingir o
Setecentos, período em que a manifestação classicista seria
consolidada em quase toda Europa, ela experimentaria diversos
conflitos na sua orientação artística, sendo o naturalismo, como
tendência estética dominante, aquela que apresentaria o maior
número de oposições internas. Dentre os
conflitos mais significativos citamos os
observados entre o intelectualismo formalista do
legado artístico da pintura da renascença clássica
e a liberdade pictórica adotada por artistas como
Parmigianino (Fig. 13, 1540), El Greco (Fig. 14,
c. 1600), Caravaggio (Fig. 15, c. 1590) e Velázquez (Fig. 16,
1656), respectivamente, principais representantes das
tendências estilísticas maneiristas e barrocas surgidas entre
1510 e 1670.
Antes de seguirmos adiante nesta revisão analítica
abordando as categorias estéticas do naturalismo e do realismo
na pintura, achamos que poderá ser útil retomarmos num
Fig. 16 - Autorretrato
Fig. 14 - Autorretrato
Fig. 13 - Autorretrato
Fig. 15 - Autorretrato
Ronaldo Rosas Reis
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parêntese a questão conteúdo-forma deixada em aberto mais atrás. Por um lado,
porque pode nos ajudar a esclarecer dois ou três aspectos do pensamento lukácsiano
sobre a forma artística, até para entendermos o motivo de ele não a adotar ao lado do
conteúdo como um princípio. Depois, porque apesar de em rias oportunidades da
Estética
e em outros textos afins o filósofo adotar o partido de Hegel quanto à
conversão recíproca e incessante de um no outro, Lukács (1978) considera que a forma
artística “é sempre a forma de
um determinado conteúdo
(LUKÁCS, 1978, p. 183,
grifo da publicação), acrescentando que, para ter “interesse estético”, a forma deverá
se apresentar de “modo genuíno e original”, isto é,
[...] como objetivação do reflexo estético da realidade, no processo criador e
no comportamento estético-receptivo em face da arte [ficando aqui evidente]
precisamente quando tiver importância estética a forma específica e
peculiar daquela determinada matéria que constitui o conteúdo de uma dada
obra (LUKÁCS, 1978, p. 184).
Caminhando no sentido contrário à dialética marxiana, Lionello Venturi,
respeitado historiador e crítico de arte italiano, contemporâneo de Lukács, considera
a pintura uma síntese de forma e conteúdo” (VENTURI, 1968, p. 89), conferindo a
uma e outra uma acentuada autonomia relativa, diferentemente do que pensa Lukács,
conforme vimos anteriormente. O crítico italiano parte da ideia de que os elementos
constitutivos da composição estrutural da obra, tais como, proporção, simetria,
dinamismo, plástica, volume, massa e anatomia, serão determinantes para a
caracterização da forma artística pictural desde que em unidade com o conteúdo. Para
Venturi, grosso modo, o conteúdo de uma obra estaria associado à temática espiritual
desenvolvida pelo artista, cabendo registrar a esse propósito que ao atribuir à
processualidade criativa/produtiva de cada artista a busca da expressão individual, o
historiador e crítico italiano tangencia a categoria da particularidade de Lukács. De
fato, Venturi credita à particularidade do “artista autêntico uma concepção própria de
beleza” identificando-a com “o ideal que a sua
imaginação procura atingir” (VENTURI,1968, p. 10). Para
ele, a processualidade da realização da obra de arte é o
momento da mediação entre o pôr teleológico do artista
e a objetivação da pintura, tal como busca explicitar a
seguir num juízo estético sobre o conhecido afresco de
Michelangelo Buonarroti,
A tentação de Adão e Eva
(Fig.
17, 1512). Nesse sentido,
Fig. 17 - A tentação de Adão e Eva
A pintura na
Estética
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A concepção de forma de Michelangelo era baseada no seu conhecimento de
anatomia. Na sua
Tentação
, as imagens possuem um acentuado relevo, como
se fossem não imagens picturais, mas estátuas em pleno relevo. São vistas
por meio de claro-escuro e não das cores. Os seus gestos têm por fim pôr
em evidência as qualidades plásticas. [...] O objetivo de Michelangelo é não
mostrar quer a ação, quer a forma do corpo, mas transcender forma e
ação na expressão da energia e do movimento (VENTURI, 1968, p. 87, grifo
da publicação).
-se aqui que Venturi busca fixar a sua ideia de “síntese forma-conteúdo”
considerando o processo mediador entre o pôr teleológico e a execução/produção do
afresco do artista renascentista. Todavia, ao dar continuidade às suas considerações a
ideia de síntese parece se enfraquecer quando o crítico distingue duas caracterizações
na concepção de forma artística: a
pictural
e a
plástica
. Utilizando como exemplo
distinguidor uma pintura a óleo de Ticiano com o mesmo
tema pintado por Michelangelo,
A tentação de Adão e
Eva
(Fig. 18, 1550), Venturi diz ser a
forma pictural
atribuída a Ticiano aquela que prioriza a massa e
concebida pelo caminho do exterior do suporte pictórico
para o interior do mesmo. a
forma plástica
atribuída
a Michelangelo aquela que prioriza a estrutura da
superfície a ser observada, concebida a partir do interior
do suporte pictórico para o exterior. Por conseguinte, o
que apreendemos aqui é, como disse antes, o
enfraquecimento da ideia de síntese, posto que na
processualidade da execução está estabelecido um
a priori
da verificação da síntese,
qual seja, a objetivação da forma segundo uma espécie de taxonomia, subordinando
o juízo estético do resultado a um determinado ideal previamente estabelecido. Por
fim, embora presuma que tais considerações marginais à revisão analítica do problema
do reflexo estético em Lukács justificam a relevância da abordagem da forma em
Lionello Venturi, gostaria de concluir esse parêntese sobre a questão conteúdo-forma
reforçando que a diferença entre a “conversão num e noutro” (Lukács) e a “síntese de
ambos” (Venturi), deve-se à diferença metodológica utilizada pelos respectivos autores
na apreciação estética da pintura, sendo de um lado a ontologia crítica e, de outro, a
gnosiologia kantiana.
Retomando e seguindo adiante na abordagem dos conflitos internos do
naturalismo, citamos os observados entre o intelectualismo formalista do legado
artístico da pintura da renascença clássica e a liberdade pictórica dos artistas
Fig. 18 - A tentação de Adão e Eva
Ronaldo Rosas Reis
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maneiristas e barrocos. Segundo Arnold Hauser (1972), o principal fator constituinte
dessa oposição foram as relações sociais de produção e reprodução associadas à
disputa pelo poder político entre as classes médias burguesas e a diversidade de
aristocracias espalhadas pelo território europeu. Nos países onde o puritanismo da
reforma protestante avançou e se consolidou, o gosto pela literatura, a poesia e o
teatro, fazendo com que o classicismo setecentista buscasse agir como “um freio
contra os instintos, uma defesa contra a torrente de emoções, um dissimulador do que
é vulgar e exageradamente natural”, a disputa na esfera religiosa, no plano jurídico e
relativamente às respectivas formações estético-culturais prevaleceu na classe média
burguesa culta (HAUSER, 1972, p. 785). nos países predominantemente católicos,
como a Itália e a Espanha, as artes plásticas, especialmente a pintura e a escultura,
acumulavam prestígio e gozavam dos benefícios da cultura palaciana. Hauser busca
esclarecer tal aspecto do Setecentos chamando a atenção para
O fato de o classicismo naturalista nunca haver predominado tão fortemente
nas artes plásticas como no drama deve atribuir-se, principalmente, a serem
as relações históricas da burguesia francesa muito menos íntimas com a
pintura do que com o teatro e à circunstância de elas ainda não poderem
dispor dos recursos necessários para exercer uma influência tão
verdadeiramente esmagadora (HAUSER, 1972, p. 784).
O esclarecimento de Hauser é, sobretudo, indicador do contraste apontado
anteriormente por Lukács ao fazer referência ao modo que apreendemos a relação
entre ordenação decorativa e conteúdo tonal espiritual das formas expressivas de
quatro representações distintas de um mesmo substrato temático, no caso,
a última
ceia
. Estendendo-se até pouco mais de meados do Setecentos, a pintura maneirista e,
principalmente, a barroca, enquanto tendências estilísticas internas ao classicismo,
seriam fontes permanentes de conflito com o naturalismo como tendência formalista
dominante, contudo, sobretudo a pintura barroca, denotaria desde logo os sinais do
esgotamento da estética naturalista no classicismo e, concomitantemente, uma
transição fragmentária dos estilos até então conhecidos. Nesse sentido, pedindo
desculpa mais uma vez por tomar a liberdade para abrir um novo parêntese, penso
ser interessante comentar o realismo na pintura analisando a conhecida pintura
barroca
As meninas
, de Diego Velázquez (Fig. 19, 1656)
8
.
8
Talvez uma das pinturas mais analisadas de todos os tempos. A título de ilustração a Wikipédia oferece
um interessante conjunto de informações acerca do quadro. Ver em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/As_Meninas_(Vel%C3%A1zquez).
A pintura na
Estética
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Na tela de grandes dimensões encontram-se
onze personagens mais um cão num amplo salão. Da
esquerda para direita ocupando o primeiro plano do
quadro vemos a parte posterior de uma grande tela
esticada num chassi e apoiada num cavalete. Logo
atrás num plano intermediário, uma dama de
companhia agachada serve algo para a princesa
Margarida, a herdeira do trono, de ao seu lado. À
esquerda desta, outra dama de companhia faz uma
mesura, e, completando o semicírculo, se encontram
outros funcionários da corte com algum título
nobiliárquico menor: uma bufona anã e um bufão liliputiano que apoia o pé sobre um
grande cão. À esquerda do espectador, um pouco afastado dessa cena, encontra-se o
próprio Velázquez, pintor oficial da corte. Ele está posicionado com o pincel e a paleta,
como se estivesse observando, comparando e avaliando, simultaneamente, a grande
tela que parece pintar e a totalidade da cena refletida num grande espelho defronte a
todos. Um pouco mais atrás, à direita do espectador, encontram-se mais dois
funcionários da corte: a aia e o valete, cuidadores pessoais da rainha e do rei,
respectivamente. Ao fundo, num plano extraquadro à direita do espectador, logo atrás
de um portal de onde é projetada uma claridade acentuada, encontra-se o Marechal
do Palácio, Dom Velázquez, tio do pintor. Também ao fundo, à esquerda da porta
aberta onde se encontra o Marechal, vemos um espelho menor refletindo as imagens
do rei Filipe IV e de sua esposa, a rainha Maria Ana de Áustria. Por suposto, o casal
real está de sob o arco de uma porta ao lado do grande espelho, numa posição
simétrica à porta ao fundo do salão tendo à sua frente toda a cena. Compondo a cena,
vemos as paredes do grande salão ocupadas por quadros e tapeçarias, sugerindo que
o salão seria a pinacoteca real e ainda o ateliê do pintor.
Ao longo de quase quatro décadas como pintor oficial e curador do acervo
artístico da corte real espanhola, Velázquez trouxe à luz uma extraordinária quantidade
de quadros cujas composições tinham manifestamente um acentuado foco social.
Consta do anedotário das Belas Artes que o tema da obra
As meninas
, concluída em
1656, a corte real, teria surgido a partir das visitas da infanta Margarida, herdeira do
trono espanhol, e de sua mãe, Maria Ana de Áustria, ao salão onde o pintor trabalhava
e boa parte do acervo do reino estava guardado sob os cuidados deste último.
Fig. 19 - As meninas
Ronaldo Rosas Reis
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Contando com isso, Velázquez reuniu o núcleo da família real, suas damas de
companhia e seus funcionários mais próximos, incluindo dois bufões, todos com níveis
variados de nobreza. Desde pronta, a obra jamais deixou de provocar um
extraordinário interesse de críticos e historiadores da arte, colecionadores, filósofos e
artistas, dentre eles Pablo Picasso no século XX. Seguindo uma linha explorada pelo
professor de arte e psicanalista MD Magno num conhecido estudo de 1982, procurarei
me concentrar apenas na sua composição para comentar o realismo do pintor.
Numa de suas primeiras publicações,
As palavras e as coisas
, de 1966, Michel
Foucault analisa a composição de
As meninas
tendo duas hipóteses em mente: de que
o quadro denota o interesse do pintor em estabelecer a relação hierárquica de
autoridade a partir do casal real até o seu reflexo no espelho menor ao fundo do salão.
Assim, o casal real, situado num ponto onde estão o próprio artista, e, por extensão,
o espectador. Todo esse grupo admira à sua frente a parte da corte que lhe priva da
intimidade, que lhe é mais próxima. E Velázquez faz isso tanto se valendo dos eixos
geométricos bidimensionais e tridimensionais, como se valendo do claro-escuro e da
luz vazada do exterior e refletida nos dois espelhos que descrevemos acima. Na
sequência e conclusivamente, Foucault busca demonstrar que na medida mesma em
que o quadro intenta representar-se a si mesmo” (FOUCAULT, s/d, p. 33), isto é,
representar a organização coordenada da subordinação de todos retratados ao casal,
algo como uma epistemologia do poder real na corte espanhola do século XVII,
também representa o vazio disso tudo ou o seu desaparecimento, se oferecendo, por
conseguinte, como “pura representação” (FOUCAULT, s/d, p. 33).
Concordando até o ponto em que a convicção gnosiológica de Foucault se
reporta à ausência de sentido do poder da realeza, ao vazio propriamente dito, temos,
no entanto, uma divergência quanto à conclusão do estruturalista francês. Ou seja, ao
autonomizar a representação estabelecida no quadro, Foucault desqualifica as relações
sociais concretas nele presentes. E, nesse sentido, destitui do quadro o domínio
mediador do artista e o seu poder de provocar a empatia a partir da experiência
particular sobre as condições estabelecidas pela realidade espanhola no Seiscentos.
Sem embargo, o que vemos na obra de Velázquez é a intenção (o pôr teleológico do
artista) em estabelecer uma contraposição ao poder da realeza quanto à capacidade
de reconhecer o que é verdadeiramente autêntico, o que é, de fato, real. Como
aludimos antes, ao longo de sua vida artística Velázquez, sem deixar de realizar os
retratos e os temas religiosos e míticos mais explorados pelo barroco cortesão do
A pintura na
Estética
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Seiscentos na Espanha e na Itália, sempre manteve em suas obras um olhar crítico
voltado para o contraste entre o ócio cortesão e a rudeza do trabalho manual. Nesse
sentido, no caso de
As meninas
, entendemos que o pressuposto do artista é uma
disputa tal como as obras de Jordaens e de Rubens, seus contemporâneos e
influenciadores, expostas no salão retratado. Poderíamos resumir a disputa
perguntando quais dos onze personagens representados teriam acesso autêntico à
realidade e em que condições?
No quadro exposto no Museu do Prado, o espectador pode reconhecer os temas
das tapeçarias expostas ao fundo da tela na parte superior do espelho que reflete a
imagem do casal real, cujos significados históricos remetem a uma iconografia de
disputas mitológicas, como a disputa de Hera
versus
Aracne em torno da melhor tecelã,
e de Apolo
versus
Mársias sobre quem era o melhor músico. Além disso, no
autorretrato de Velázquez ele se representa como um pintor destro, o que seria no
mínimo estranho considerando que sendo ele destro e todo o quadro um reflexo do
grande espelho, sua representação segurando o pincel seria com a mão esquerda
diante do espectador, tal como Picasso o retratou num de inúmeros estudos realizados
na primeira metade da década de 1950 sobre
As meninas
(Fig. 20). Portanto, é factível
considerar que o dramatismo interno explorado por
Rembrandt no quadro anteriormente visto
Os
síndicos da guilda dos alfaiates
, é reproduzido aqui
pelo pintor ibérico. Um drama tramado em torno da
disputa da autoridade sobre o autêntico
conhecimento sobre a realidade social em meio às
relações desiguais numa época de crescimento e
consolidação do mundo burguês.
A fim de concluir essas considerações em torno dos conflitos entre as tendências
estilísticas internas ao classicismo, tendo o naturalismo como tendência formalista
dominante, penso ser importante registrar a posição de Lukács sobre o fenômeno que
combina o esgotamento de uma tendência estilística e a transição para outra. Para ele,
parte dos conflitos que permeara o classicismo teve como elemento determinante o
papel exercido pela técnica na elaboração da obra de arte. Segundo o filósofo, dado
que “a forma artística é a forma de um conteúdo determinado” o contraste no interior
da tendência dominante dá-se em razão de uma “impossibilidade de aplicar
universalmente uma determinada técnica artística, e menos apenas a de recebê-la
Fig. 20 - As meninas - estudo
Ronaldo Rosas Reis
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pronta e acabada, sem fazer nenhuma modificação” (LUKÁCS, 1978, p. 189). Nessa
direção, Hauser dirá em acréscimo que, pertencendo o classicismo ao
Zeitgeist
da
modernidade artística, no qual sobressai uma intensa polaridade entre a regulação ou
o controle da técnica e a liberdade formal (HAUSER, 1972, pp. 786-788), não haveria
surpresa que, na evolução do naturalismo, emergissem tendências estilísticas
fragmentadas pela aplicação de novas técnicas, tal como, de resto, foi analisado aqui
quando abordamos a concepção de forma artística em Venturi. Ademais, a transição
fragmentária do classicismo que se estende do fim do Setecentos a meados do
Oitocentos é, para Hauser, representativo de um “processo dialético que é tanto
resultado das circunstâncias extrínsecas como um passo novo na tendência dominante”
(HAUSER, 1972, p. 788). Nesse sentido, a partir de meados do Oitocentos, parece
natural que o reflexo das lutas revolucionárias por independência em curso no extenso
continente americano, e também no próprio continente europeu, configurasse nas
artes a divisão de posições na sociedade da época. O ecletismo advindo da
fragmentação das tendências estéticas manifestas em estilos como o rococó cortesão
dominante, o classicismo arqueológico das classes médias da burguesia de oposição,
e outras manifestações artísticas menores na preferência do público, por um certo
tempo disputariam um espaço no mercado de arte e no gosto popular.
Em fins do Século XVIII, no período pós-revolucionário, abrigado pelo espírito
romântico em toda esfera da cultura, nas Belas Artes, em especial na pintura, além da
tendência Neoclassicista liderada pela figura carismática de Jacques-Louis Davi,
inúmeras outras tendências pictóricas emergiriam e desapareceriam sem deixar
vestígios no curso do Novecentos, dentre elas o Historicismo, o Neobarroco e o
Palladianismo. Em todas elas prevaleceu uma rigorosa orientação acadêmica mediante
a qual era contemplado o gosto dos setores ricos e conservadores da sociedade,
fossem eles da burguesia ou remanescentes da antiga aristocracia. Nesse contexto do
romantismo e em oposição ao seu espírito de rebeldia, todavia, no período da
Restauração, surgiria ainda na pintura um classicismo de corte realista conservador
“essencialmente burguês”, nas palavras do historiador da arte Arnold Hauser (1972,
p. 898). De fato, enquanto na literatura e na poesia as obras de Stendhal, Balzac e
Goethe vicejavam contrapondo a realidade das relações de produção e reprodução da
vida social à rebeldia niilista e à mistificação alienadora da crítica romântica subjetivista
de Flaubert e de Proust, nas Belas Artes, em especial na pintura, o realismo
conservador das elites burguesas consolidava sua posição nas academias, no mercado
A pintura na
Estética
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de arte e nos acervos das instituições museológicas. Isso porque, de algum modo,
tornou-se norma oculta nas instituições artísticas e museológicas sob a guarda do
Estado, operarem um aparato legislador sobre a estética das artes e ofícios, seja para
manter sob seu controle o sistema de formação de novos artistas, a produção, a
reprodução e a guarda de obras, seja para agregar valor artístico ao produto final.
Nesse sentido, os mestres catedráticos das diferentes disciplinas exerciam a função de
autoridades oficiais com a finalidade de exarar juízos estéticos (REIS, 2018), e, por
conseguinte, pintores formados pelo francês Jean-Auguste Ingres e o retratista alemão
Franz Winterhalter, dentre outros mais, representavam “a maioria daqueles que
encomendavam, compravam ou criticavam publicamente os quadros, que dirigiam as
academias artísticas e decidiam quais os trabalhos que seriam expostos”, de resto
estabelecidos no idealismo acadêmico (HAUSER, 1972, p. 950).
O realismo crítico na pintura: uma aproximação
Para Hegel, contrariamente aos românticos, a saúde ética dos povos depende do
sentido de sua liberdade. Nesse sentido, ele diria que “a simples recusa à escravidão
resultante do acúmulo dos anos de passividade, se impõe na forma de uma melancolia
decadente, da lassidão moral e do niilismo sendo subsumidos num mesmo sentimento
de perdição e revolta” (HEGEL
apud
HYPPOLITE, 1971, p. 80). Ora, vivenciamos no
mundo inteiro o dilema de que não basta apenas sermos contra o que nos revolta,
como a escravidão e o racismo, é preciso que no presente lutemos contra as novas
formas de escravidão e que sejamos antirracistas, eis a atualidade do realismo crítico
contido no pensamento de Hegel. Parto desse ponto para uma aproximação do
realismo crítico com a pintura.
Se na literatura o leitor segue a narrativa estabelecida pelo autor e
pari passu
os
personagens, o cenário e o contexto vão se formando em sua mente como uma
composição, na pintura o mesmo não ocorre dessa forma. Nesta última recebemos de
imediato e em conjunto o impacto das formas, das manchas de cor, da luz e dos demais
elementos da composição. Num primeiro momento o olhar do espectador busca se
apropriar do conteúdo da pintura selecionando aqueles elementos e organizando a
composição conforme a sua sensibilidade é afetada como um todo. Desde que
organizado esse primeiro momento na mente do espectador, o conteúdo pretendido
pelo autor começa a se configurar como narrativa singular sobre a realidade, momento
esse em que a fruição estética toma impulso e ganha intensidade para admirar, ou
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condenar, a interpretação criativa, ou modo de ver particular do artista sobre a
realidade. Na condição de mediada pelo olhar do espectador, a pintura artística assume
a condição de generidade, independente de vir a ser considerada obra de arte
autêntica ou não. Ora, logo no início deste ensaio chamamos a atenção para a
importância da educação estética na formação social do ser humano, a qual
relacionamos agora com a “saúde ética dos povos” e o sentido dado à sua liberdade,
conforme sublinhado por Hegel no parágrafo anterior. Assim, se do ponto de vista da
recepção, a pintura irá exigir da parte do espectador uma formação estético-cultural
que lhe condições objetivas para uma apreciação crítica, em contrapartida, temos
que a particularidade individual do artista não deve se limitar à pura sensibilidade
passiva diante da realidade, dado que aquela particularidade abarca todas as reações
do indivíduo diante dos fenômenos da vida em sua espontaneidade imediata, o que
naturalmente não exclui nem o caráter adquirido nem o seu ser objeto da consciência”
(LUKÁCS, 1978, p. 200). Dê-se o nome de “beleza moral”, como quer o crítico de arte
Lionello Venturi (1968, pp. 184-185), ou realismo crítico, como até aqui vimos nos
aproximando, o fato é que, desde que autêntica, a obra de arte comporta a realidade
incorporando o sentido ético e moral e as emoções sob domínio do artista. Conforme
Lukács,
No processo do reflexo da realidade, no processo de sua reprodução artística,
os dois estratos da personalidade do criador entram incessantemente em
oposição. Até aqui ainda não existe nada que seja específico do reflexo
estético, que a vida cotidiana de todo homem está repleta de conflitos.
Para o processo de criação artística, porém, é característico que o resultado
possa se fixar e ganhar forma na obra de modo a contradizer os preconceitos,
ou mesmo a concepção de mundo própria do artista, que este nível superior
receba uma forma estética sem que para isto deva ter um lugar
correspondente na personalidade privada particular-individual do artista
(LUKÁCS, 1978, pp. 200-201).
No sentido do exposto, o filósofo chamará a atenção para a influência recíproca
entre concepção de mundo e realização formal determinantes das condições de
efetivação do realismo crítico. Com base em Hegel, Lukács observa que o momento
do nascimento de um novo olhar sobre a realidade social decaída deve estar no centro
da criação artística, refletindo as causas e consequências das modificações estruturais
da sociedade nas relações recíprocas entre os indivíduos. Ora, notamos aqui o filósofo
húngaro retomar o seu (também nosso) pressuposto da arte como autoconsciência do
desenvolvimento da humanidade, dado que ao situar o olhar do artista como
determinante no ato do reflexo estético (o centro da criação artística), faz nascer no
A pintura na
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sujeito estético uma contradição dialética que, por sua vez, é reveladora do reflexo das
condições de desenvolvimento da humanidade (LUKÁCS, 1978).
Precisaríamos de um esforço muito mais abrangente e intenso, além de tempo
útil e de espaço de publicação indefinidos, para continuarmos esta aproximação do
conceito de realismo crítico e a pintura, se é que conseguiríamos realizar isso. Gostaria
de ter ido além das breves observações sobre o realismo na magnífica pintura
As
meninas
(Fig. 19), de Diego Velázquez, e, ainda, concluir o ensaio analisando uma
pintura de Siron Franco, fabuloso artista goiano, cujo olhar crítico sobre a realidade
social do país ao passo que estimula a resistência dos setores progressistas da
sociedade, há décadas vem denunciando o desastre das políticas sociais e ambientais
perpetrado pelas elites brasileiras no país. De todo modo, antes de avançar para o
final do ensaio quero retomar brevemente o que deixei prometido na introdução acerca
dos ataques décadas perpetrados por correntes anti-intelectualistas de extrema
direita contra o que denominam “Marxismo cultural”. Acredito que, com isso, sempre
correndo o risco de cair num desvio reformista, poderei justificar a minha posição
acerca da controversa radicalidade de Lukács ao qualificar genericamente a mimese
decorativa da arte de vanguarda modernista como um “modismo superficial”.
No século XX, grande parte dos estudos de arte subordinaram a produção
artística ao axioma positivista da arte pura (da arte pela arte) e, por conseguinte, à
ideia de um evolucionismo da forma artística. Nesse sentido, a principal determinante
dos tipos essenciais dos
ismos
modernos como o funcionalismo, o abstracionismo, o
surrealismo, o hipermaneirismo etc., a arte moderna passaria a ser analisada como um
movimento natural, isto é, mais uma evolução estilística no curso da história da arte.
Sem embargo das particularidades expressas no campo ideológico para a
compreensão geral da arte contemporânea, é fato que tais estudos se sustentam sobre
uma base idealista que participa da ideia de que a natureza original da obra de arte
estaria associada às teorias deformadoras criticadas por Lukács, conforme aludimos
no início desse ensaio. Parece óbvio que tais estudos desconsideraram a avassaladora
pressão fetichizante da mercadoria, e daí ao serem absorvidas pela indústria cultural
e as indústrias de bens de consumo, as obras modernistas perderiam as suas
características transgressoras de origem, sua negatividade, e, subsumidas na forma
mercadoria e massificadas pelo
mass media
, as inovações formais modernistas seriam
internalizadas subliminarmente no imaginário das massas consumidoras como o novo
télos
estético-cultural do mundo burguês. Assim, na curta passagem de duas décadas
Ronaldo Rosas Reis
146 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022
e meia, aproximadamente, a práxis artística das vanguardas europeias se deparou com
inúmeras contradições internas perdendo o que ainda restava do vigor criativo de
origem. Portanto, o refluxo observado no desenvolvimento da arte foi o tempo
necessário para que o mapa das relações sociais de produção artística fosse
redesenhado a fim de se ajustar à teleologia do sistema que emergia metamorfoseado
pela crise daquele período. Nesse sentido, podemos concordar com Lukács em vários
sentidos sobre o fato de o modernismo europeu ter transformado a busca de uma arte
verdadeira numa disputa sem fim e sem propósito estético algum, decorrendo daí o
decorativismo por ele criticado. Notoriamente amplo e propositadamente indefinido, o
modernismo representa a unificação num conceito híbrido das mais variadas práticas
artísticas e ideologias estéticas vanguardistas que se estenderam por cerca de trinta
anos consecutivos (ANDERSON, 1985). Mesmo para um pensador liberal como Roland
Barthes, as disputas travadas pelas inúmeras correntes vanguardistas constituíam um
caso limite de atrito entre a arte e o mercado, contribuindo para tornar ainda mais
“espessa a cultura burguesa” (BARTHES, 1982, p. 131). Pois, à medida que a arte de
vanguarda passara a depender do mercado para obter o reconhecimento da
atualização do seu ajustamento aos avanços da técnica e da ciência, isso significava
reconhecer o mercado como indispensável para sua própria renovação, sua condição
de vitalidade.
Apesar disso, a generalização lukácsiana afirmando que o que foi produzido se
encaixa num modismo superficial, não condiz com o fato de uma parcela significativa
das pinturas de artistas como Picasso (Fig. 21, 1937), a despeito do caráter decorativo
da mimese pictórica, e com
todas as suas diferenças e
contradições estilísticas e
estéticas, produziram muito
mais do que apenas registros
históricos fundamentais, como
suas obras foram seminais para
a compreensão de um novo
modo de interpretar o mundo.
Teresópolis Rio de Janeiro, primavera de 2021
Fig. 21 - Guernica
A pintura na
Estética
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 147
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A pintura na
Estética
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 115-149 - mar. 2022| 149
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Figura 20: https://mundovastomundo.com.br/barcelona/museu-picasso/
Figura 21: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/afp/2017/03/31/obra-
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Como citar:
REIS, Ronaldo Rosas. A pintura na Estética: revisão analítica e aproximação com a
categoria realismo crítico.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 115-149, mar.
2022.
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Para uma arqueologia do sentimento estético:
o papel da arte paleolítica na
Estética
de György Lukács
For an archeology of aesthetic sentiment:
the role of paleolithic art in the
Aesthetics
of György Lukács
Leandro Candido de Souza*
Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir o
papel da arte paleolítica na elaboração da
Estética
lukácsiana, bem como avaliar sua
importância na definição de algumas categorias
que caracterizam os últimos trabalhos do autor.
Em um primeiro momento, estabeleceremos os
referenciais teóricos para a compreensão da
arquitetura categorial da obra e seus principais
objetivos filosóficos. Em seguida, a partir da
análise textual imanente dos capítulos em que o
tema é tratado com maior profundidade,
exploraremos definições como reflexo,
antropomorfização, mimesis e vida cotidiana, a
fim de identificar seus significados e nexos mais
relevantes. Como veremos, o interesse de Lukács
pela gênese do estético”, em particular pelas
pinturas rupestres franco-cantábricas, cumpriu a
importante função de especificar a peculiaridade
da atividade artística no processo de
humanização do homem: sua cismundanidade e
seu caráter evocador. Com base nos resultados
obtidos, sugerimos que o destaque dado ao tema
pode nos ajudar a solucionar algumas questões
sensíveis em sua obra tardia, como o conflito
entre seu projeto de “retorno a Marx” e o
horizonte teórico-metodológico de seu tempo,
em especial a tensão entre a inclinação
ontológica de seu materialismo e as imposições
estabelecidas pelo debate gnosiológico da época.
Palavras-chave: György Lukács; estética marxista;
ontologia; arte pré-histórica.
Abstract: This paper aims to discuss the role of
paleolithic art in the creation of a Lucacksian
Aesthetics
, while also looking at its importance
in determining some categories characteristic of
the creator's latest works. Theoretical references
are initially established in order to understand
the categorical architecture of the work and its
implicit philosophical objectives. This is followed
by a textual analysis within the chapters where
this topic is discussed with more depth,
exploring definitions such as
reflection,
anthropomorphization, mimesis and everyday
life
, in an effort to identity its meanings and
more relevant connections. We will see that
Lukács's interest in "aesthetic genesis",
particularly in Franco-Cantabrian cave paintings,
played an important role in specifying the
peculiarity of artistic activity in the process of
humanizing man: its
cismundanity
and his
evocative
nature. Based on the results found, it
is suggested that shining a light on this topic
can help us to resolve some sensitive issues in
his later work, such as the conflict between his
project to "return to Marx" and the theoretical-
methodological horizon of his time, especially
the tension between the ontological inclination
of his materialism and the impositions put in
place by the gnosiological debate of the time.
Keywords: György Lukács; Marxist aesthetic;
ontology; prehistoric art.
Para Lívia Cotrim (
in memoriam
)
*Doutor em história pela PUC-SP e pós-doutor pela Universidade Estadual Paulista (Unesp FCL -
Assis/Fapesp).
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.629
Para uma arqueologia do sentimento estético
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 150-181 - mar. 2022| 151
Introdução
Entre as décadas de 1880 e 1940, o pensamento europeu foi abalado por
sucessivas descobertas de pinturas paleolíticas em grutas na região que se estende
do nordeste da Espanha ao sudoeste francês. Esse é o período compreendido entre
as descobertas de Altamira e Lascaux, o mesmo intervalo de tempo que separa o
pioneiro opúsculo de Marcelino Sanz de Sautuola,
Breves apuntes sobre algunos
objetos prehistóricos de la provincia de Santander
(1880), e a consagração
internacional de Henri Breuil após quatro décadas de publicações sobre o assunto
1
.
O acúmulo de informações, reproduções e a ampla divulgação científica e midiática
(principalmente devido à popularização da fotografia) fizeram o assunto magnetizar
parte significativa do debate teórico e intelectual em torno das artes visuais no
segundo pós-guerra.
Um novo objeto, no sentido epistemológico, inseria-se no debate acadêmico e
intelectual europeu, provocando os mais diferentes rearranjos, como podemos
perceber na sucessão de obras que trataram do tema nas décadas seguintes
2
. Em
1950, Ernst Gombrich publicou sua
A
história da arte
(GOMBRICH, 1951, p. 19-32);
em 1951, Arnold Hauser lançou sua
História social da arte e da literatura
(HAUSER,
1995, p. 1-24); em 1953 foi a vez de Germain Bazin publicar
Histoire de l'art de la
préhistoire à nos jours
(BAZIN, 1953, p. 1-11); pouco depois, em 1962, saiu a
História da arte
de H. W. Janson (JANSON, 1969, p. 26-52) e, no ano seguinte, veio
à luz o mais conhecido estudo de Ernst Fischer,
A necessidade da arte
(FISCHER,
1987, p. 21-58). Foi a partir desse contexto que Lukács produziu sua
Estética
.
Apesar de ter se tornado tema obrigatório de toda história da arte redigida
desde então, a arte pré-histórica jamais foi objeto de reflexão estética ou, menos
1
As primeiras interpretações do significado das pinturas paleolíticas por Gabriel de Mortillet datam de
meados do século XIX, mas não resistiram à descoberta de “cavernas profundas” como Altamira
(Espanha, 1879), Combarelles e Font-de-Gaume (Dordogne, 1901), sendo então substituídas pelo
célebre escrito de Émile Cartailhac,
Les cavernes ornées de dessins. La grotte d'Altamira, Espagne.
« Mea culpa » d'un sceptique
(1902). Na mesma época, Henri Breuil deu início a seus trabalhos com
La
Caverne d’Altamira à Santillane près Santander (Espagne)
, de 1906, escrito com Émile Cartailhac, e
que foi sucedido por obras como
La Caverne de Font-de-Gaume aux Eyzies (Dordogne)
(1910, com
Louis Capitan e Denis Peyrony) e
Les Combarelles aux Eyzies (Dordogne)
(1924, novamente com
Louis Capitan e Denis Peyrony). Em 1952, depois de ter trabalhado em Lascaux, na África e outros
lugares, lançou
Quatre cents siècles d’art pariétal
(1952).
2
Apesar de as descobertas de pinturas em cavernas serem recentes, escritos sobre pinturas rupestres
em abrigos e falésias são conhecidos há mais de dois mil anos, desde os textos de Han Fei (280-233
a.C.), ou, de modo mais sistemático, desde o livro
Shui jing zhu
(“Notas sobre os sistemas de rios”), do
geógrafo Li Daoyuan (c. 472-527 d.C.) (cf. BAHN, 1998, p. 1-29).
Leandro Candido de Souza
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ainda, de análises concretas, figurando em quase todos os casos como um
preâmbulo à discussão sobre a arte burguesa (autônoma). A principal exceção foi,
certamente, Ernst Fischer. Além disso, a conexão desse novo objeto com a história
da arte ocidental sempre apresentou muitas dificuldades, o que explica parcialmente
sua rápida desaparição do campo da arte a partir dos anos 1970. E isso ocorreu
apesar de ter ficado claro o potencial de
rendimento monopólico
3
associado a esses
bens culturais após a descoberta de Lascaux e com a massificação da fotografia. Essa
desaparição teórica se deveu, portanto, muito mais à dificuldade de conciliação entre
esses dois sistemas simbólicos tão diferentes que exigem reconsiderações teóricas
regularmente evitadas, quase sempre sob alegação de dificuldades inerentes à
distância temporal.
Como poderemos observar a partir do caso de Lukács, a desaparição do
assunto o sequestro da arte primitiva no debate sobre arte se deve menos à
superação das concepções cronológico-lineares ou evolucionistas dominantes até
meados do século passado (o que hoje conhecemos como “o fim da história da
arte”), do que ao fim do horizonte moderno que animou o interesse daquelas
grandes narrativas sobre a arte nas décadas anteriores. Desde meados de 1970, a
reflexão sobre o significado e alcance histórico da arte paleolítica coube quase que
exclusivamente à arqueologia, principalmente a partir do legado de Henri Breuil e
das inovações trazidas pelo estruturalismo de André Leroi-Gourhan, principalmente
por
Préhistoire de l'art occidental
(1965). Nos anos seguintes, os primeiros trabalhos
a se destacar foram os de Jean Clottes, David Lewis-Williams e Gerhard Bosinski,
seguidos por muitos outros, como os de Paul Bahn, Marc Azéma, José Luis
Sanchidrián, Carole Fritz e Margaret Conkey.
Lukács talvez tenha sido o último grande pensador da arte, o último esteta a
refletir sobre o assunto, e muito provavelmente também foi o que lhe dedicou maior
espaço, assumindo todas as implicações que esse objeto poderia gerar em seu
pensamento. A investigação sobre a “paradoxal essência artística da pintura
rupestre” se transformou em uma investigação sobre as bases reais da própria
gênese da arte, de tal modo que as “grandes conquistas” da pintura rupestre ainda
3
Referimo-nos à ideia apresentada por David Harvey acerca do “poder ou “privilégio” monopólico
associado a alegações de singularidade e autenticidade não duplicáveis de determinados produtos e
serviços, uma ampliação da observação de Marx sobre as implicações do “preço monopólico” nos
rendimentos de certas vinícolas, contida no terceiro livro de
O capital
(HARVEY, 2002, p. 94).
Para uma arqueologia do sentimento estético
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estavam por ser encontradas. Como outros marxistas do período, Lukács aproveitou
essa vaga de descobertas arqueológicas para retomar as ideias de Marx e Engels
sobre o comunismo primitivo e os efeitos de sua dissolução, deslocando, assim, o
eixo das discussões estéticas para a função social da arte, permitindo uma solução
fecunda para os problemas diante dos quais quase todos seus contemporâneos
haviam recuado. Essa tendência teve seu ponto alto em sua
Estética
, projeto
assumido em meados da década de 1950, finalizado em 1960 e publicado em
1963. Sem dúvida, o principal trunfo dessa aplicação atualizada dos escritos de Marx
e Engels foram os trabalhos do arqueólogo australiano Gordon Childe, sempre à luz
dos “velhos pré-historiadores”, como Morgan, Tylor e Frazer.
O diferencial de sua
Estética
que delimita sua ruptura com o evolucionismo,
sem jamais abandonar as ideias de evolução e progresso é não estabelecer uma
discussão cronológica sobre a arte, como ocorreu com a maior parte de seus
contemporâneos, incluindo Arnold Hauser
4
e Ernst Fischer
5
, dois dos mais próximos
a seu pensamento. Os objetivos filosóficos de Lukács, em particular a inspiração
ontológica da obra, exigiram uma arrumação sistemática, mas não cronológica, que,
em última instância, buscava estatuir uma nova forma de pensar. Sua reflexão parte
do concreto (o cotidiano) e se desenvolve de modo materialista, dialético e
historiográfico, mas não se organiza por meio de uma exposição linear das etapas do
progresso do gênero humano, ainda que permaneça de um nítido eixo
evolucionista e uma menos perceptível epistemologia de origem hegeliana.
Desde que começou a preparar o terreno para sua grande estética,
notadamente com a publicação de seus
Prolegômenos a uma estética marxista
6
, em
1957, Lukács demonstrou uma inclinação a admitir a discussão do marxismo nos
4
Hauser redigiu sua
História social da arte e da literatura
ao longo da década de 1940, publicando-a
em 1951. Sua abordagem da arte pré-histórica começa pela discussão entre Alois Riegl e Gottfried
Semper, ainda no século XIX, até chegar aos então recentes trabalhos de Gordon Childe. Como
Fischer, ampara-se na teoria da arte pré-histórica/primitiva de Bücher, Tylor e Lévy-Bruhl, mas
conciliando-a com Hugo Obermaier e M.C. Burkitt.
5
Assim como a
Estética
de Lukács,
A necessidade da arte
de Ernst Fischer também foi escrita no final
da década de 1950 e lançada em 1963. Se a presença de pressupostos teóricos materialistas devido
ao aprofundamento do marxismo o coloca alguns passos à frente de Hauser, por outro lado, sua
abordagem é menos concreta, sem qualquer referência a estudos específicos sobre esse tipo de arte:
Marx, Engels, Childe, George Thomson que se juntam a Herder, Humboldt, Mauthner, Schiller, Morgan,
Pavlov, Bücher, Ruth Benedict, Frazer e Bachofen; todos textualmente citados apenas no capítulo
sobre as origens da arte.
6
Traduzida para o português por Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, e publicada em 1978
como
Introdução a uma estética marxista:
sobre a categoria da particularidade (LUKÁCS, 1978).
Leandro Candido de Souza
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“moldes tradicionais da divisão e classificação das ciências”, em um universo
extramarxiano que concebe um lugar próprio à lógica por meio da categoria da
particularidade
. Como demonstrou José Chasin, essa interrupção epistemológica no
trajeto que leva de Hegel a Marx é mais do que clara, naquela obra, no uso de Hegel
como contraposição a Kant e Schelling. De tal modo que, “quanto mais estritamente
lógico vai se tornando o discurso lukácsiano, tanto menos ele se ampara em
elementos teóricos e, por conseguinte, em citações diretas da obra marxiana, até que
estas desaparecem por completo dos enunciados” (CHASIN, 2009, pp. 165-176).
Na
Estética
, essa discussão sobre a
particularidade
só acontece no capítulo 12,
demarcando uma alteração de percurso que confere primazia metodológica ao
concreto, neste caso, mais de mil páginas que fundamentam a origem cotidiana da
arte. Esse deslocamento da discussão sobre a
particularidade
como categoria central
da atividade estética, que na obra maior é tomada como algo que pode ser
deduzido
da análise estrutural da fundamentação e da especificidade do pôr estético
(PATRIOTA, 2010, p. 18), demonstra como sua
Estética
retifica muitas ênfases
presentes em seus
Prolegômenos
. Nos
Prolegômenos
, predomina a discussão com a
tradição de língua alemã, de Kant a Marx, passando por Hegel e Goethe, com um
pequeno acréscimo de Lênin, mas toda desenvolvida no interior da autonomia, que é
tomada como ponto de chegada dessa forma de reflexo.
Nesse aspecto, sua
Estética
encontra-se muito à frente, pois ela começa
refletindo sobre o cotidiano e depois se lança em um rastreamento genético das
categorias que se autonomizam. É aqui que entra a pré-história como desvio daquele
projeto esboçado nos
Prolegômenos
, a fim de contornar algumas de suas falhas,
entre as quais podemos incluir a própria adoção da definição alemã clássica da
particularidade
como centralidade do estético. Nada pequeno, esse deslocamento
indica uma preocupação com o enraizamento materialista e genético da arte, o que
acaba tornando mais claro o caráter tardio desta prática para o gênero humano.
Nosso objetivo nas próximas páginas é discutir esse importante capítulo da
produção teórica de Lukács, que, de muitas maneiras, sintetiza um tempo de
encerramento do debate estético pós-vanguardas históricas (BÜRGER, 2008, p. 184)
e que prenuncia a ideia de fim da história da arte. “A arte não está morta. O que
acaba é a sua história como progresso para o novo”. Também morre o esquema
narrativo da velha historiografia nascida com Varesi e que passou por Winckelmann e
Para uma arqueologia do sentimento estético
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a Escola de Viena, todos centrados na arte autonomamente compreendida que, no
segundo pós-guerra, se dissolvia no campo mais geral da cultura de massas
(BELTING, 2012, p. 206).
O projeto da
Estética
Como muitos de seus companheiros de geração, Lukács estava envolvido na
elaboração de uma teoria da arte em bases marxistas. Algumas das principais teses
dessa geração surgiram nas primeiras décadas do século XX, principalmente em
torno das leituras de
História e consciência de classe
por autores que hoje
associamos à Escola de Frankfurt (Adorno, Benjamin, Kracauer etc.) e se aprofunda
durante o chamado “debate sobre o expressionismo”, envolvendo, entre outros,
Lukács, Benjamin, Bloch, Brecht e Adorno (cf. MACHADO, 2016). Em pouco mais de
uma década, praticamente sozinho, Lukács transformou o debate sobre o
expressionismo em uma discussão sobre o
realismo
, forçando os defensores do
primeiro a lutar em seu próprio campo e em seus próprios termos (JAMESON, 1980,
p. 200). Não só em decorrência da tentativa de ampliar os argumentos apresentados
anteriormente, mas como resultado legítimo das décadas de pesquisas que se
acumulavam na trajetória de cada um dos envolvidos, começaram a surgir as grandes
obras de síntese: Benjamin (
Passagens
, 1927-1940), Bloch (
O
princípio esperança
,
1939-1947), Kracauer (
Theory of film:
the redemption of physical reality, 1960) e
Adorno (
Teoria estética
, 1956-1969). A reflexão lukácsiana sobre a arte pré-histórica
nasceu nesse momento de síntese operada pelo marxismo de língua alemã outrora
quase todo adepto da forma
ensaio
no campo da reflexão estética. No seu caso, a
atenção dada às pinturas paleolíticas nos permite vislumbrar com maior nitidez o
peso de seu materialismo que recorre à antropologia evolucionista, à arqueologia
pré-histórica, à fisiologia pavloviana e ao que mais for necessário a fim de pôr à
prova os pressupostos que, cada vez mais, vão sendo reorganizados nos moldes de
uma ontologia (TERTULIAN, 2003).
Como dissemos, a princípio, a
Estética
tinha como objetivo discutir alguns
desdobramentos concretos das ideias apresentadas em
Prolegômenos a uma estética
marxista
, sobretudo a definição da
particularidade
como categoria central da
atividade estética. No entanto, o primeiro e único volume redigido indica uma
considerável alteração de rota, voltando-se primordialmente à “fundamentação da
especificidade do pôr estético, a dedução da categoria específica da estética e a
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demarcação de suas fronteiras em relação a outros territórios”
7
, ou, em termos mais
resumidos, “a peculiaridade do estético”. Originalmente concebida em três volumes,
a obra ainda previa uma segunda parte que deveria se chamar “A obra de arte e o
comportamento estético” e, por fim, um último volume voltado ao “método do
materialismo histórico”, tal como aparece em diversas oportunidades ao longo do
único volume publicado. Esse programa teórico indica bem o universalismo filosófico
que Lukács extraiu da estética hegeliana, seu “modo histórico-sistemático de
sintetizar”, algo que ele perseguiu desde os primeiros anos da década de 1930,
como podemos notar, entre outros lugares, em
Marx e o problema da decadência
ideológica
(1938) e sua crítica à ausência de aspirações à universalidade em Max
Weber (cf. LUKÁCS, 2010, p. 63-ss.).
Essa sua fidelidade ao método marxista, no entanto, divergia em muitos
aspectos da ortodoxia” proposta por
História e consciência de classe
(LUKÁCS,
2003, p. 63-104), como ele próprio assinalaria posteriormente em seu conhecido
prefácio de 1967. A diferença fundamental consiste no abandono do “caráter
epistêmico e apriorístico” de seu método, por mais que a divisão entre materialismo
histórico e materialismo dialético oficializada por Stalin permaneça no plano geral de
sua
Estética
. Estamos diante de uma tentativa de conciliação entre a análise do
“automovimento do ser social” e a “ortodoxia” que divide o marxismo em duas
disciplinas (materialismo histórico e materialismo dialético). Essa tensão
metodológica entre os
Manuscritos
de 1844 e a oficialidade gnósio-epistêmica do
período se manifesta com toda força em sua “teoria do reflexo”, que, na
Estética
,
passa a ser problematizada pelo acréscimo da ideia de “mimese” (FREDERICO, 2013,
p. 115)
8
.
Como afirmamos pouco, José Chasin criticou esse epistemologismo da
Estética
em
Marx Estatuto ontológico e resolução metodológica
(2009), ao
assinalar como a ênfase na
particularidade
não só decorre da “absoluta precariedade
teórica e documental da argumentação lukácsiana”, mas também de sua adesão à
7
NB. Recorro excepcionalmente à tradução de Rainer Patriota para esta passagem do prólogo
lukácsiano (PATRIOTA, 2010, p. 18).
8
A teoria do reflexo lukácsiana, em 1963, assume características ontológicas e se distancia da teoria
do reflexo defendida por Engels, Lênin e o próprio Lukács em seu texto
Arte e verdade objetiva
, de
1934. A ideia de “reflexo” foi então redefinida como uma forma de ideação, de intelecção da matéria,
que assume uma forma específica de relação entre sujeito e objeto a partir da mimese (FREDERICO,
2013, p. 126).
Para uma arqueologia do sentimento estético
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“fragilíssima tese do vínculo lógico entre Marx e Hegel” e, consequentemente, de sua
admissão de uma problemática “extrínseca às resoluções marxianas” (CHASIN, 2009,
p. 190). Rainer Patriota desdobrou os problemas detectados por Chasin,
aprofundando-os a partir de uma ótica atualizada, principalmente pelos trabalhos de
Nicolas Tertulian. Segundo Patriota, a
particularidade
(
Besonderheit
) é uma
“categoria tardia gestada no contexto da teoria do reflexo para dar sustentação ao
conceito de realismo e esclarecer a distinção entre arte e ciência” (PATRIOTA, 2010,
p. 17). Nem a categoria da
particularidade
, nem a teoria do reflexo são decisivas
para a organização da
Estética
, tendo mais a ver com uma pista fornecida por Goethe
e que Lukács seguiu naquilo que se tornou seus
Prolegômenos a uma estética
marxista
, uma concepção que acabou secundada na execução da
Estética
.
A arte primitiva ocupa parte importante desse novo perfil reflexivo, sendo
reconhecida como um dos pontos de realização de seu sistema materialista histórico-
dialético (que deveria ocupar os dois primeiros volumes dos três concebidos), por ser
um dos momentos em que se manifestam as grandes dificuldades, mas também os
logros, de seu método genético-ontológico. O modo como a
Estética
foi concebida e
aquilo que dela nos foi apresentado sinalizam que a reflexão sobre a
particularidade
foi relativizada, por mais que seus resultados tenham sido publicados à parte, como
Prolegômenos a uma estética marxista
. O capítulo 12 da
Estética
, dedicado à
particularidade
, difere do esforço anterior por seu posicionamento, soando como
uma recapitulação de questões trabalhadas nas páginas anteriores. Em muitos
aspectos, a
Estética
, ou ao menos seu primeiro livro, está mais próxima de uma
retomada em bases materialistas dos lineamentos de sua estética de juventude, no
sentido de uma retomada da fenomenologia do processo de identidade sujeito-
objeto, com a finalidade de deduzir a peculiaridade do estético e suas categorias
referenciadoras, a partir de sua gênese na vida cotidiana. É nessa problemática
relação entre “o velho e o novo” que reside um importante aspecto de seu projeto
de uma estética sistemática, pois ao retomá-lo Lukács reabilitou “a estrutura
essencial do projeto de Heidelberg”, ainda que operando constantes e substantivas
alterações que acabam por reformular o projeto original (PATRIOTA, 2010, p. 17-
ss)
9
.
9
A chamada “estética de Heidelberg” (ou “estética de juventude”) é composta por dois manuscritos,
Filosofia da arte
(1912-1914) e
Estética de Heidelberg
(1916-1918), abandonados por Lukács desde
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Esses são alguns dos problemas que surgem de seu projeto durante a segunda
metade da década de 1950, indicando que a importância concedida ao assunto “arte
pré-histórica” não atendia apenas ao interesse interno de desenvolvimento da teoria
lukácsiana, pois também funcionava como uma atualização materialista, científica, de
sua reflexão à luz do conhecimento de ponta da época, neste caso, da arqueologia e
seus mais recentes debates. A busca lukácsiana pela gênese da arte, decididamente
o conduz ao reconhecimento da arte como um produto histórico relativamente tardio
do processo de autodesenvolvimento da espécie humana, tal como esboçado nos
manuscritos marxianos de 1844: a arte é tão histórica quanto os sentidos e
sentimentos humanos que a fundamentam. Do mesmo modo que o olho se torna
olho humano quando seu objeto se converte em objeto social que medeia a relação
entre os homens, a arte se concretiza historicamente como forma de objetivação
decisiva nesse processo de autoformação dos cinco sentidos do homem. Os cinco
sentidos se tornam sentidos humanos tanto subjetivamente quanto objetivamente: “o
olho
humano
frui de maneira diversa da que o olho rude, não humano; o
ouvido
humano [frui] diferente da [maneira] do ouvido rude etc.” (MARX, 2008, p. 109). Uma
ideia que reencontramos na arte como antecipação do que está por vir, nos
Grundrisse
: “o objeto de arte como qualquer outro produto cria um público
capaz de apreciar a arte e de sentir prazer com a beleza. A produção, por
conseguinte, produz o somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito
para o objeto” (MARX, 2011, p. 66).
Esse enraizamento materialista permitiu a Lukács superar as definições
idealistas seja a negação do apriorismo das categorias do espírito em Kant, seja a
recusa à primazia da Ideia no idealismo objetivo de Hegel e reconhecer a essência
da arte “como resultado de um longo desenvolvimento histórico, de uma
necessidade surgida na vida cotidiana” e cujas categorias são “engendradas
concretamente pelo processo histórico-social” (FREDERICO, 2013, p. 116-119). Esse
o início de seu trabalho sobre Dostoiévski. Seu primeiro projeto de uma estética sistemática era,
assim, interrompido para dar lugar a um livro que deveria conter, para além do escritor russo, boa
parte da “ética metafísica e filosofia da história” do jovem húngaro. Deste novo livro, apenas a
primeira parte, redigida no inverno de 1914-1915, foi publicada em 1916, na revista de Max Dessoir,
com o título de
A teoria do romance
, e, como livro, em 1920, pela editora de Paul Cassirer (LUKÁCS,
2000). Apenas nos anos 1980, suas inacabadas
Anotações sobre Dostoiévski
foram publicadas.
Sobre a conexão entre gênero formal e questões éticas no jovem Lukács, veja-se: (MACHADO, 2004)
e (VAISMAN, 2005). Particularmente sobre a estética de Heidelberg, veja-se: (SILVA, 2021, p. 283-
366), e a respeito das permanências e rupturas entre as duas estéticas lukácsianas, veja-se:
(TERTULIAN, 1980, p. 107-156) e (PATRIOTA, 2010, p. 165-252).
Para uma arqueologia do sentimento estético
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é o motivo de sua
Estética
começar pela reflexão sobre o cotidiano. Nos termos
lukácsianos, a arte é uma forma superior de reflexo que, em sua gênese, abrigava
simultaneamente as formas abstratas” (ritmo, simetria, proporção, ornamento) e a
“mimese mágica”, mas que, com o tempo, torna-se independente, adquire
mundanidade e revela sua “essência” propriamente dita. A arte seria uma das formas
de objetivação do ser social que surge quando “as possibilidades latentes do reflexo
estético” presentes na vida cotidiana adquirem certa autonomia e se tornam um
“mundo próprio” afastado do cotidiano (FREDERICO, 2013, p. 117).
A arte mantém um vínculo antropomórfico com a vida cotidiana, com a magia e
com a religião, que se rarefaz com o tempo, na mesma medida em que diminuem
seus vínculos com a ciência
10
. Essa dupla separação é o que estabelece as categorias
específicas da arte em distinção das demais formas de reflexo, sendo que, segundo
Tertulian, cada categoria levantada por Lukács corresponde a um estágio
historicamente determinado da relação sujeito-objeto (TERTULIAN, 1980, p. 194).
Como se vê, esses dois grandes sistemas de objetivação, ciência e arte, são
concebidos por contraposição, nos termos da Introdução à
Contribuição à crítica da
economia política
de Marx, na qual está expresso que “o método cientificamente
correto” deve reconhecer que “o concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas
determinações, portanto, unidade da diversidade”. Por esse mesmo motivo, ele deve
se concentrar na “reprodução do concreto por meio do pensamento” e não na
expressão de uma “determinação abstrata”. Na ciência, o concreto aparece no
pensamento “como processo da síntese, como resultado”, embora ele também seja o
ponto de partida da intuição e da representação: “o todo como um todo de
pensamentos, tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se
apropria do mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de
sua apropriação artística, religiosa e prático-mental” (MARX, 2011, p. 77-79).
Essa afirmação da arte como “autocontemplação da subjetividade, isto é, como
uma forma desenvolvida da relação sujeito-objeto (FREDERICO, 2013, p. 119)
configura uma refundação da relação sujeito-objeto na estética” (PATRIOTA, 2010,
10
Guido Oldrini explicitou do seguinte modo o núcleo categorial que faz
teoria estética
e
científica
convergirem em Lukács: “o fato que, sendo a realidade una e contínua, as mesmas categorias
fundamentais devem necessariamente comparecer em todas as esferas da realidade o que não exclui
a existência de categorias específicas para cada uma” (OLDRINI, 2002, p. 60). É o
realismo ontológico
como aspiração a uma totalidade objetiva, o que inevitavelmente o põe diante dos mesmos problemas
da ciência: a relação entre sujeito e objeto, consciência e mundo.
Leandro Candido de Souza
160 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 150-181 - mar. 2022
p. 179-243): a radicação da atividade artística no cotidiano, como uma forma
desenvolvida de reflexo sistemático da relação sujeito-objeto, equivalente à ciência,
mas oposta a ela. Esse é o motivo de sua
Estética
começar por uma reflexão sobre o
cotidiano: este é seu ponto de saída e de chegada, como os pressupostos de
A
ideologia alemã
. Enquanto reflexo próprio da vida cotidiana, aquele “materialismo
espontâneo” apegado à “imediatez do comportamento” (ao fenomênico, ao
heterogêneo e ao descontínuo) se mantém no reino do “homem inteiro”, ao passo
que a arte se dirige ao “homem inteiramente”, ao indivíduo que supera sua
singularidade e contata sua generidade (LUKÁCS, 1967b, p. 207-262)
11
. Como uma
forma superior de consciência, a arte se eleva do cotidiano a fim de orientá-lo por
meio de uma visão depurada, desprovida da universalização abstrata que caracteriza
as ciências.
A discussão tem início logo nos primeiros capítulos, em especial na parte
Princípios e começos da diferenciação
(LUKÁCS, 1966a, p. 81-145), com um
referencial parecido com o mobilizado por Ernst Fischer (FISCHER, 1987, p. 21-58),
chegando a citar outro trabalho desse mesmo autor,
Arte e humanidade
, publicado
em Viena, em 1949. Mas é no capítulo 6 que o tema da pintura rupestre é realmente
discutido (LUKÁCS, 1966b, p. 108-ss), com uma solidez teórica (não falamos apenas
de seu marxismo) incomparável, onde podemos encontrar o materialismo que faltou
a Hauser e a concretude do objeto ausente em Fischer, por exemplo
12
. Outra
diferença notável em relação a estes dois autores, como observaremos mais à frente,
é que a historicização lukácsiana das categorias estéticas não se confunde com a
tentativa de escrever uma história da arte, estando antes relacionada à determinação
do papel da arte no interior da história social, a peculiaridade do estético ante as
demais formas de reflexo da realidade. Além de levar ao campo da arte algumas das
questões levantadas pelos fundadores do marxismo em torno do comunismo
primitivo, em especial a importância da divisão do trabalho, Lukács desenvolveu uma
atualizada interpretação da arte do paleolítico superior, explorando uma fresta aberta
na história da arte pelas descobertas das grutas de Altamira, Combarelles, Font-de-
Gaume e Lascaux.
11
Agnes Heller apresentou uma aprofundada leitura das teses lukácsianas acerca da estrutura da vida
cotidiana, a partir dessa mesma contraposição entre “homem inteiro” (da vida cotidiana) e o “homem
inteiramente” (na experiência artística) (cf. HELLER, 1992, p. 17-41).
12
Cf. Notas 4 e 5.
Para uma arqueologia do sentimento estético
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A gênese do objeto estético
Esse objetivo materialista de contornar um problema detectado na confecção
de seus
Prolegômenos a uma estética marxista
, inevitavelmente, impôs dificuldades
que foram expostas na seção
Princípios e começos da diferenciação
, primeiro passo
de seu esforço por especificar os termos que definem a gênese da atividade estética
como resultado evolutivo da complexificação do pensamento e da vida cotidiana dos
homens. Progressivamente, a relação sujeito-objeto adquire mediações que
engendram “sistemas de objetivação”, que Lukács também chamará de “formas
superiores” de reflexo. Em outros termos, apesar de admitir que “a essência da arte
não pode se separar de suas funções na sociedade, e não pode ser estudada a não
ser em estreita conexão com sua gênese, com seus pressupostos e condições”,
Lukács reconhece dois grandes obstáculos vinculados a essa necessidade
historicizante: a carência de estudos sobre o assunto em meados do século XX e a
distância temporal/cultural dos objetos analisados. Esse duplo condicionamento faz
com que Lukács busque a gênese dessa diferenciação entre as esferas da vida, por
meio de “hipóteses reconstrutivas dos fatos”, sempre inspirado na afirmação
marxiana de que “a anatomia do homem é a chave para a compreensão da anatomia
do macaco”. Seu “método reconstrutor” consistiria, portanto, em “explicar
reconstrutivamente partindo do estágio social superior ao estágio inferior” (LUKÁCS,
1966a, p. 81-83).
A decifração da essência da arte como fenômeno social só pode ser insinuada a
partir da captura da especificidade de sua gênese nos estágios sociais em que havia
o mínimo de objetivações, ou melhor, sua gênese coincide com a “gênese real das
objetivações” que desenvolvem os sentidos humanos a partir da
linguagem
e do
trabalho
, como descrito nos
Manuscritos econômico-filosóficos
de Marx, na
Dialética
da natureza
e na
Origem da família, da propriedade privada e do estado
de Engels, e
nos trabalhos de Gordon Childe. É esse processo de desprendimento das formas de
objetivação, em relação ao solo comum das atividades humanas, que pode explicar a
“peculiaridade qualitativa” dos sistemas ou formas superiores de objetivação por
meio dos quais se processa a “divisão do trabalho entre os sentidos humanos”. E
seguindo o caminho aberto principalmente por Childe, Lukács traça as primeiras
linhas de seu painel histórico dos estágios iniciais da evolução humana, desde a
fabricação dos primeiros machados a partir de seixos, até a colaboração coletiva que
introduz cada vez mais “mediações entre a necessidade e sua satisfação”, até o
Leandro Candido de Souza
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ponto de indagar sobre as leis e as necessidades objetivas (LUKÁCS, 1966a, p. 87).
O destaque concedido à análise de Ernst Fischer (
Arte e humanidade
) sobre a
correlação
sujeito-objeto
na determinação do modo específico de intercâmbio dos
homens entre si e com a natureza (possibilitado pelo trabalho e sua evolução
refletida na evolução da linguagem) reforça o eixo principal de sua argumentação: a
centralidade da relação sujeito-objeto, administrada por Lukács desde seu período
pré-marxista. Essa retomada materialista de certa fenomenologia da experiência
estética se lança, então, na decifração desse abandono da imediatez cotidiana para o
“descobrimento de conexões, de legalidades” que abriram o caminho para o domínio
humano sobre a realidade objetiva. Um domínio que é tanto mérito do trabalho
quanto da linguagem que evolui por meio de um movimento duplo: a superação
generalizante das limitações da imediatez e a cristalização do objetivo logrado como
uma segunda imediatez (LUKÁCS, 1966a, p. 92).
É de se suspeitar que Lukács não tratou a questão cronologicamente, porque
uma de suas principais preocupações teóricas sempre foi a investigação das
consequências que o “progresso desigual” produz no campo da arte. Outra prova
nesse mesmo sentido é o uso da palavra primitivo” que, em seu vocabulário, não
corresponde a uma tipologia pré-estabelecida, mas a uma projeção no passado, de
modo que, em sua visão, uma sociedade pode ser mais ou menos primitiva de
acordo com o desenvolvimento de suas formas de objetivação, isto é, podem existir
mais ou menos mediações na relação sujeito-objeto e, nesse caso, o menos
corresponde a uma relação de maior proximidade com o momento originário em que
um grupo dos animais superiores se tornou humano. Aqui, mais uma vez, a
referência é a aproximação entre sociedades não-ocidentais, passado greco-romano-
judaico-cristão e os caçadores-coletores do paleolítico. Essa divisão agrupadora em
“níveis evolutivos” descende de boa parte de suas referências, em especial dos
citados “velhos pré-historiadores” evolucionistas, em especial Frazer.
O que permite a Lukács aproximar essas referências é, fundamentalmente, a
relação sujeito-objeto estabelecida por meio dos “sistemas da magia”, cujas
instituições e rituais passam a estruturar a consciência cotidiana e seu processo
nominativo, de modo a conceder poderes cada vez mais concentrados aos magos,
configurando o “momento de uma inicial divisão do trabalho” (LUKÁCS, 1966a, p.
103). Trata-se ainda de uma magia prática”, que não se confunde com a religião,
Para uma arqueologia do sentimento estético
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pois possui um grau menor de generalização e maior domínio sobre a imediatez. Nos
povos mais primitivos, “os limites reconhecíveis entre mundo interno e mundo
externo estão mais esfumados, são mais imprecisos que no período religioso-
animista”, do mesmo modo que a relação predominante com o mundo externo é
desprovida de mediação ético-religiosa. Estamos nos passos de Frazer, que falou da
magia como um “sistema inautêntico” no qual a ciência é falsa, e a arte, estéril, e que
tem na analogia seu “principal veículo intelectual de generalização e sistematização
da vida cotidiana”. A fim de amplificar o materialismo de Frazer, Lukács recorre a
George Thomson:
A magia primitiva se baseia na ideia de que ao criar a ilusão de dominar a
realidade, domina-se realmente a ela. É uma técnica ilusória, complemento
da ausência de uma técnica real. De acordo com o baixo vel da produção,
o sujeito é só imperfeitamente consciente do mundo externo, e, portanto, a
execução de um ritual prévio aparece como causa do êxito do
empreendimento; mas ao mesmo tempo, como orientação à ação, a magia
encarna a valiosa verdade de que o mundo externo pode realmente ser
alterado pelo comportamento subjetivo dos homens. (THOMSON
apud
LUKÁCS, 1966a, p. 107)
A descrição corresponde à definição clássica da
falsa consciência
como parte
integrante do fenômeno ideológico, tal como definido em
História e consciência de
classe
e que se tornaria posteriormente a base de desenvolvimento da teoria crítica.
Mas, ainda assim, apesar da complementação que enfatiza o aspecto de verdade
dessa falsa consciência, Lukács sublinha aquele que seria, em sua opinião, o principal
achado teórico de Frazer, e que estrutura todo o primeiro volume de sua
Estética
: “a
grande importância da imitação como fato elementar da relação do homem com a
realidade objetiva” (LUKÁCS, 1966a, p. 108). A imitação como primeira forma de
“reação primitiva, prático-imediata” ao reflexo imediato da realidade, ainda que se
mantendo no nível do pensamento analógico, portanto, sem a busca por conexões
causais. A evolução técnica que conduz do uso de seixos como ferramentas às
ferramentas propriamente tecnológicas é fruto da imitação, que, nesse momento do
texto, Lukács considera ser uma capacidade identificável em outros animais
superiores.
A diferença é que o conteúdo do reflexo e da imitação no homem primitivo tem
como meio a linguagem e o trabalho, isto é, não se efetiva de modo espontâneo
como no restante da natureza. A natureza se torna um objeto e o homem um sujeito
nessa relação, sendo que o próprio destacamento da relação homem-natureza é a
instauração da dualidade sujeito-objeto. Estamos ainda no plano do materialismo
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espontâneo da vida cotidiana, em que são empregados meios mágicos para a
realização de objetivos práticos, como caça, fertilidade, boa colheita etc. Nesse
sistema mágico estão presentes, amalgamados, os germens do que depois serão
arte, ciência e religião; uma “mistura inextricável” estabelecida em um “estágio inicial
de pré-diferenciação” que Engels chamou de “estupidez originária”. De todo modo,
magos, curandeiros e xamãs representam a primeira forma de divisão do trabalho,
ainda que falte a sua atividade uma orientação ética nascida do terreno da tradição e
da opinião pública (LUKÁCS, 1966b, p. 115).
O tema é desenvolvido no capítulo 5 (
Problemas da mimese. I. A gênese do
reflexo estético
), quando Lukács retoma a discussão sobre como o
trabalho
engendra
“modos de comportamento independentes”, como a arte e a ciência, mas agora o
acento recai sobre a diferença entre eles. A arte herda esse papel
antropomorfizador
,
sua tendência à
evocação emocional
, da magia e da religião. Lukács chega a chamar
essa herança de “aura”, e a afirmar que com o desenvolvimento da ciência tem lugar
“uma debilitação, uma degradação da aura”, sem, no entanto, fazer qualquer menção
a Walter Benjamin
13
. O que diferenciaria o sistema mágico de objetivação seria o fato
de ele operar suas sínteses do cotidiano a partir da
mimese
. As conformações
mimético-artísticas da realidade, ainda que orientadas a um fim mágico, têm efeitos
positivos enquanto imitação evocadora de reflexos da realidade, o que
evidentemente é diferente das objetivações propriamente estéticas, que “já não
imitam para determinados fins práticos”, pois se concentram “na intenção de
despertar no espectador determinadas ideias, convicções, determinados sentimentos,
paixões etc.” (LUKÁCS, 1966b, p. 38).
Essa é a principal distinção entre o reflexo estético e a magia, a despeito do
antropomorfismo em comum: a propriedade imanente da arte em
conceber a reprodução reflexa da realidade precisamente como reflexo,
13
Em seu clássico ensaio sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de 1936,
Walter Benjamin falou das pinturas nas grutas da idade da pedra como exemplo primeiro da função
de
culto
da obra de arte, em contraposição ao valor de
exposição
na arte burguesa (perda da aura):
“Os dois polos [da história da arte] são o valor de culto da obra e seu valor de exposição. A produção
artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa nessas imagens é que elas existem,
e não que sejam vistas. O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um
instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens, no máximo, ele deve
ser visto pelos espíritos. O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as obras de arte”
(BENJAMIN, 1987, pp. 172-173). Essa ideia benjaminiana de uma “perda da aura” decorrente da
reprodutibilidade técnica, no entanto, será contestada por Lukács na seção
O filme
, no capítulo 14
(LUKÁCS, 1967b, p. 174).
Para uma arqueologia do sentimento estético
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algo que se contrapõe à realidade transcendente da magia e da religião,
que atribuem realidade objetiva ao sistema de seus reflexos e exigem a
correspondente (LUKÁCS, 1966b, p. 40).
O afastamento da vida normal e a volta a ela por um meio homogêneo
evocador corresponde a uma
suspensão
temporal da relação direta com a própria
vida, uma característica notável na prática da magia. A imitação isola (separa
formalmente) o espectador do fluxo da vida cotidiana, pela criação de um universo
de caráter espaço-temporal fechado e, portanto, necessariamente concentrado e
ordenador dos elementos desde um ponto de vista unitário”, oferecendo um mundo
homogêneo em que todos os momentos importantes da totalidade são apresentados
de um modo breve (LUKÁCS, 1966b, p. 52-53).
Esse acontecimento revela a dimensão qualitativa de uma ultrapassagem de
nível ocorrida com o surgimento do “desenho ou a construção dos personagens”,
dois produtos relativamente tardios da evolução humana.
A necessidade de caracterização individual tanto na vida quanto no
reflexo não aparece a não ser com os conflitos nascidos das relações
entre os indivíduos e a sociedade, ou seja, em um período posterior,
subsequente à dissolução do comunismo primitivo. (LUKÁCS, 1966b, p. 55)
O resultado é, como se sabe, o surgimento da literatura e sua centralização na
“colisão”, que encaminha a evolução social da arte para sua autonomia em relação à
dança ou ao canto, por exemplo.
É nesse momento que se concretizam novas categorias dessa forma de reflexo,
como o caráter profundamente social do típico e sua concentração dos fatos da vida
no reflexo que, antes do mundo burguês, foram mais típicos nas situações que nos
personagens. Enquanto o “típico primitivo” nascia das necessidades práticas da
magia, contendo os germens de divergência entre a magia e a arte, o típico
legitimamente artístico não pode começar enquanto não forem produzidas “colisões
entre o indivíduo e a totalidade”, a saber, após a “decomposição do comunismo
primitivo e o nascimento das primeiras diferenciações em classes” (LUKÁCS, 1966b,
p. 57). Essas correntes contrárias (arte/magia, imanência/transcendência,
interceder/evocar etc.) coexistem até o surgimento da finalidade estética do objeto
artístico e do sistema de objetivação superior que o possibilita.
É assim que a “generidade deixa de ser um objeto transcendente intencional da
singularidade” e passa a determiná-la de ltiplas maneiras, rompendo a unidade
imediata e orgânica do geral e do singular, originando uma nova categoria, a
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particularidade
. “Uma vez consumado esse processo, fica constituído o estético como
princípio real substantivo do desenvolvimento da humanidade”. Essa afirmação é
importante quando lembramos as recorrentes referências ao recurso metodológico
marxiano da anatomia do homem como chave para a compreensão da anatomia do
macaco, sua bússola teórica na busca da gênese da arte: “só a visão clara do ponto
de chegada pode iluminar as obscuridades do ponto de partida”. Ao menos nesse
sentido seu esforço sobre a
particularidade
se justifica, promovendo a conclusão de
que a arte é uma forma de reflexo distinta da ciência, por mais que haja uma
“identidade” entre suas categorias e conteúdos, uma vez que ambas refletem uma
mesma realidade
14
(LUKÁCS, 1966b, p. 65).
Como vimos, o sistema mágico de objetivações é o espaço em que se
configuram as principais categorias que serão encontradas nas práticas propriamente
estéticas, isto é, naquelas objetivadas em um sistema reflexivo próprio, no qual os
elementos evocadores da vida cotidiana sua pensada combinação, disposição,
intensificação etc. são conscientemente orientados para sua “verdadeira e concreta
essência” puramente evocadora. Nesse ponto, Lukács estabelece sua divergência em
relação à póstuma
Estética
(1953) de Nicolai Hartmann, reprovando sua não
vinculação entre a orientação consciente da ação estética e a vida cotidiana, uma
forma de reflexo que visa a transformar o
em-si
em um
para-nós
. Essa vivência
estética e sua potencialidade imanente, essa “entrega imediata a um complexo
unitário de imagens reflexas da realidade, sem ilusão alguma de estar em presença
da realidade mesma” é o que de mais característico na atividade artística
(LUKÁCS, 1966b, p. 71).
A amundanidade das pinturas paleolíticas
A arte surge, portanto, como um desdobramento daquela necessidade de
separação entre o cotidiano
lato sensu
e os conteúdos socialmente relevantes que
ele porta, a fim de expressar “um efeito evocador concreto”; um expediente que,
como visto até aqui, estava presente no sistema mágico, mas que foi
14
Conforme a definição lukácsiana apresentada no capítulo
O típico: problemas do conteúdo
, de seus
Prolegômenos a uma estética marxista
, o típico possui uma dimensão formal e de conteúdo: “um
conteúdo que deve conservar e fixar, aprofundando-a, a imediaticidade sensível das formas
fenomênicas, que deve renunciar a priori e em princípio a reproduzir a infinitude extensiva do mundo,
um conteúdo que deve atingir sua força de convicção exclusivamente a partir da força evocativa na
conformação da realidade reproduzida, um tal conteúdo deve dirigir o seu sentido universalizante a
fim de elevar a singularidade na particularidade” (LUKÁCS, 1978, p. 261).
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progressivamente se desgarrando. Em muitos casos, também como afirmado, essa
separação se apresenta como uma secularização das formas estabelecidas no
universo mágico que, não raro, são reaproveitadas pelas religiões (formas
transcendentes que instauram a ética como mediação da relação sujeito-objeto),
neste último caso, pouco alterando a posição social e a função da arte (LUKÁCS,
1966b, p. 103). Lembremos que para Lukács a imitação não está associada apenas à
arte, mas à sobrevivência nos animais superiores de uma forma mais ampla, não
sendo sequer uma exclusividade humana; uma constatação que ao longo do texto é
periodicamente associada ao
reflexo condicionado
como “princípio de antecipação
dos fenômenos reais”, tal como estabelecido por Pavlov. Esse é o enraizamento
material último para a ontogênese das formas superiores de reflexo associadas ao
trabalho
. A arte seria o resultado tardio dessa evolução dos sistemas de reflexo, na
qual formas anteriores, como o “adorno somático” e os instrumentos do “ornamento
puro”, adquirem uma dimensão estética, autenticamente autônoma no sentido da
produção de um “mundo próprio”, ultrapassando sua condição anterior de
amundanidade (LUKÁCS, 1966b, p. 109).
Esse é o processo de “desenvolvimento da mundanidade das formações
artísticas”, impossível de ser concretizado com os conteúdos sociais de seu começo.
Os limites mal definidos da relação sujeito-objeto nos momentos iniciais do homem
impediam o desenvolvimento desse modo específico de reflexo, que se caracteriza
pelas “formas puras de mimese” que medeiam a relação entre “o homem
imediatamente dado” e sua “auto-objetivação no reflexo” (LUKÁCS, 1966b, p. 111).
O caráter sem mundo da ornamentística se desprende da essência da coisa,
de tal modo que inclusive quando a intenção original era de caráter
predominantemente mimético, como no caso dos caçadores do paleolítico,
o efeito é mais frequentemente o de um ornamento insuficientemente
alcançado do que o de um reflexo unilateral e excludente da realidade.
(LUKÁCS, 1966b, p. 112)
Por mais que falte mundo às pinturas do paleolítico, elas “provam que já estava
objetivamente presente a contraposição interna” entre as
formas estéticas
e o
conteúdo/finalidade mágico
, dois princípios em si heterogêneos e dotados de uma
“impressionante fidelidade evocadora” (LUKÁCS, 1966b, p. 113). O que a descoberta
das grutas profundas, ocorrida no início do século XX, trouxe à discussão foi o
aspecto suplementar de quase invisibilidade expositiva de muitas das pinturas, tão
difícil e laboriosamente acessíveis ao espectador que fica excluído que o motivo de
sua produção tenha podido ser a intenção de despertar uma impressão visual
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imediata e menos ainda um mero gosto visual”. Lukács chega, inclusive, a aventar a
possibilidade de diferentes funções das figuras a depender de sua localização mais
ou menos acessível, mais ou menos iluminada, algo que ele afirma a partir dos
estudos de Adama Van Scheltema
15
, Hoernes-Menghin e Herbert Kühn, o mais
importante do ponto de vista da pintura paleolítica. Além, evidentemente, de Gordon
Childe
16
.
Estava descartado o valor de exposição de parte considerável dessas obras,
para falarmos em termos benjaminianos, ou a intenção de “evocação visual”, para
nos mantermos na dicção lukácsiana estabelecida a partir de Herbert Kühn, por mais
que não se duvidasse do fechamento e substantividade” de sua forma artística ou
da eficácia de sua ação evocadora, ainda que relacionada à magia. Importa a Lukács
a relação entre “a determinação mágica do conteúdo com as formações estéticas
produzidas por sua conformação”, sendo que quanto mais primitiva é uma
sociedade, maior é a tendência de mimese mágica e mimese estética se fundirem.
Nesse itinerário, a “obra figurativa” marca um nível de objetivação superior,
orientado ao estético, por mais que essas primeiras figuras possuíssem um evidente
papel mágico-ritualístico (imitativo ou de transposição), em uma terminologia que
pula de Frazer para Gehlen (LUKÁCS, 1966b, p. 116-120). nessas cavernas uma
lógica dupla que envolve a exposição e o culto das pinturas, que se reflete tanto na
alternância entre
lugares restritos/de difícil acesso
e
lugares espetaculares
, quanto na
sobreposição de imagens que ritualiza o próprio ato de gravar a parede, e cuja
finalidade transcende o efeito visual produzido. Essas cavernas são, ao mesmo
tempo, lugares liminares de conexão entre mundos, e por isso também são lugares
de poder, lugares em que a divisão social do trabalho se fixa pela primeira vez
17
.
15
Já utilizado na primeira seção do capítulo 4, e que reaparecerá nos capítulos 14 e 16.
16
À medida que o assunto se aprofunda, o mesmo ocorre com as referências: Pavlov, Scheltema,
Hoernes-Menghin, Herbert Kühn, Gordon Childe, Arnold Gehlen, Max Verworn, Lévy-Bruhl, Franz Boas
etc. Tylor é mencionado uma única vez ao longo de toda a obra, ainda que suas ideias estejam
presentes em muitas passagens. Mais impressionante é vermos uma única menção a Morgan como
alguém que inspirou Marx quanto às origens das sociedades, sem que sua obra seja utilizada
(LUKÁCS, 1967b, p. 550). Ernst Fischer é mencionado rias vezes nos primeiros capítulos e volta a
ser utilizado em capítulos futuros, enquanto a obra de Hauser não é citada.
17
A despeito das dificuldades impostas pela dualidade entre, por exemplo, a composição heterogênea
em Altamira e a disposição homogênea das figuras em Lascaux, a sacralização do lugar parece
indiscutível, seja pela repetição e sobreposição das figuras, seja pela inacessibilidade ou especialidade
multifuncional do local. A primeira característica, particularmente, além de testemunhar a sacralização
da parede e o recurso acumulativo de signos deixados por antepassados, tem um aspecto de “manual
do xamã”, de inscrições que transmitem um determinado saber. A escolha da(s) parede(s) a serem
pintadas não envolve, portanto, apenas questões “físicas” da superfície, mas também aquelas
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Essa definição é mais uma prova da eficácia do materialismo de Lukács, pois o
permitiu, no campo da filosofia, adiantar em algumas décadas uma discussão que, na
arqueologia, se estabeleceria apenas nos anos 1980. Vale a pena especificar essa
afirmação, ainda que de maneira breve, para termos uma dimensão prática da
validade de seu materialismo, bem como alguns de seus resultados imediatos. Desde
que Salomon Reinach estabeleceu sua autocrítica em
L'art et la magie: à propos des
peintures et des gravures de l'Âge du Renne
”, em 1903, predominou nas ciências da
arte pré-histórica a ideia de “magia simpática” extraída de Frazer
18
, transformada nos
anos seguintes na tese da “magia da caça”, segundo a qual o “homem primitivo” ao
ferir sua figura, fere o animal real (CLOTTES, 2011, p. 26). Essa tese garantia a
requerida duplicidade das pinturas; mágicas e utilitárias ao mesmo tempo: a
ornamentação visível funcionaria como amuleto ou talismã, ao passo que as pinturas
mais escondidas teriam o objetivo de influenciar a realidade por meio de sua
representação
19
.
Outra implicação emerge daí, seu caráter mágico faz com que a
performatividade da pintura se torne tão importante quanto seu resultado visual;
uma explicação derivada da conjugação entre utilidade e magia que parecia explicar
as conhecidas sobreposições de figuras em uma mesma parede, denotando uma
ritualística. Na segunda metade do século XX, a metodologia estruturalista deu
alguns passos nessa direção com a sistematização do estudo dos modos de
agenciamento das figuras e suas técnicas e disposições, sem, no entanto, ter sido
capaz de fornecer novos elementos interpretativos
20
. Paralelamente, em 1951, o
historiador das religiões Mircea Eliade apresentou sua tese de que os homens do
relacionadas à iluminação, à acústica e à espiritualidade atribuída ao local (CLOTTES, 2011, p. 175-
189).
18
Essa ideia de “magia simpática”, na qual “imagem e realidade estão estreitamente ligadas e,
portanto, através da imagem pode-se influenciar diretamente sobre o real” (CLOTTES, 2011, p. 73)
estava presente no
Ramo de ouro
de Frazer, de 1890, mas com um destaque muito maior para o
caráter imitativo do comportamento mágico (cf. FRAZER, 1900, p. 7-128).
19
Na história da arte, essa mudança de paradigma interpretativo coincide com o fim da polêmica
iniciada por Alois Riegl, em 1893, sobre “origem imitativa naturalista” da arte, em contraposição à
“teoria mecanicista materialista” de Gottfried Semper, existente desde 1860, que considerava a arte
como um subproduto técnico-prático da atividade manual que tende naturalmente à ornamentação.
Essa linha argumentativa de Riegl, que reconhece o pioneirismo das “formas de expressão
naturalisticamente imitativas”, foi seguida por Salomon Reinach, Henri Breuil, Hugo Obermaier,
Herbert Kühl, Adama van Scheltema, Gordon Childe e tantos outros que as obras de Lukács e Hauser
compartilham (cf. HAUSER, 1995, p. 994).
20
Em
Les religions de la préhistoire
:
paléolithique, de 1964, Leroi-Gourhan desconfiava da magia
como sistema explicativo, afirmando que ela “muito presumivelmente existia no Paleolítico, mas vimos
que nada a demonstra, nem as figuras, nem a organização”. Um ceticismo que se estendeu à
explicação via xamanismo (LEROI-GOURHAN, 1995, p. 134-136).
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paleolítico tiveram uma religião de tipo xamânico, a qual foi desenvolvida ao longo
da segunda metade do século até encontrar em David Lewis-Williams seu principal
difusor, no final dos anos 80. Quase dez anos depois, Jean Clottes aderiu a essa
interpretação (CLOTTES, 2011, p. 54-55). De modo surpreendentemente atual para a
época, Lukács falava em um universo de “fronteiras fluidas” (a partir de Frazer), em
“práticas xamanísticas” como formas exemplares para a compreensão das origens do
sistema mágico (a partir de Gehlen), e mencionava as “práticas dos curandeiros, dos
xamãs etc.” como “fenômeno generalíssimo da vida dos povos primitivos” (a partir
de
Psyche
, de Erwin Rohde) (LUKÁCS, 1966b, p. 36-49).
Podemos encontrar uma contraprova semelhante da eficácia da abordagem
lukácsiana em seu aparte sobre as pequenas estatuetas que os arqueólogos
costumam chamar de “vênus”, com suas características sexuais exageradas,
provavelmente associadas a rituais de fecundidade. Lukács amplia de tal modo a
discussão que chega a tatear a ideia de que essas obras eram registros da definição
dos gêneros a partir de parâmetros de genitalidade nesse caso, pensando a partir
de
A origem da família, da propriedade privada e do Estado
o que também foi
demonstrado por estudos posteriores, como os de André Leroi-Gourhan (1965)
21
,
Jean Clottes (2011) e, fugindo da pintura parietal
stricto sensu
, John Zerzan
22
. Em
suas palavras, tais imagens indicam “que aqueles homens haviam entendido o papel
21
Durante os anos 1950 e 1960, a arqueologia também teve seu auge estruturalista, principalmente
em torno dos trabalhos de Leroi-Gourhan que refutavam a presença de aleatoriedade na inscrição dos
desenhos nas cavernas. Segundo Leroi-Gourhan, as imagens em toda a Europa Ocidental pareciam
estar organizadas em torno da binaridade masculino/feminino e em grupos específicos de animais e
diferentes formas de representação das genitálias; sem desconsiderar as sobredeterminações
oriundas, p. ex., da localização dos desenhos nas paredes, seus esquemas e, principalmente, os
elementos que permitem reconhecer as permanências estilísticas dos períodos, apesar da diferente
complexidade das imagens que não parecem obedecer à cronologia alguma (cf. LEROI-GOURHAN,
1995 p. 68-74).
22
Segundo Zerzan e seu anarco-primitivismo que radicaliza lições da
Dialética negativa
de Adorno, as
pinturas rupestres do paleolítico estavam criando, a um só tempo: 1) a submissão da mulher enquanto
natureza selvagem e perigosa a ser domada e 2) a capacidade humana de representar (o surgimento
do pensamento simbólico). Em trabalhos como
Futuro primitivo e outros ensaios
(ZERZAN, 1994) e
Patriarcado, civilização e as origens do gênero
(ZERZAN, 2011), o pensamento simbólico é
apresentado como decorrência e condição, portanto como necessidade, da dominação, uma vez que
os homens viveram mais de dois milhões de anos sem precisar dele. A agricultura e,
consequentemente, o rebaixamento da mulher à condição de Grande Mãe, isto é, reprodutora fértil de
homens e alimentos, a qual existe em todas as religiões camponesas, é muito recente, tendo apenas
10 mil anos. Sua explicação é a de que, uma vez que não existe na natureza nenhuma razão para a
divisão de gênero, a autodomesticação pela linguagem, pelo ritual e pela arte, que inspirou a
dominação de animais e plantas que lhe seguiu, teve que ser criada pela proibição tabu e naturalizada
pela ideologia ritual. o esses rituais que acentuam e facilitam novas renúncias em favor da divisão
do trabalho; e o primeiro registro de sua existência são justamente as pinturas rupestres do
paleolítico (ZERZAN, 1994).
Para uma arqueologia do sentimento estético
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da mulher na origem da nova vida, e que o generalizavam magicamente aos animais
e às plantas dos quais viviam” (LUKÁCS, 1966b, p. 120). A figuração simbólica é o
sinal decisivo da ascensão dos valores abstratos que caracterizam toda forma de
dominação, incluindo a nova etapa que se abre na organização da espiritualidade
com o advento da religião.
Mesmo que não pareça, esse é um momento crucial da reflexão desenvolvida
na
Estética
, no qual podemos identificar com maior nitidez “o papel da causalidade
no decurso da gênese do estético”, o que demonstra a existência nesta obra de
lineamentos teóricos que podem ser reconhecidos como ontológicos, “mesmo que
dita expressão não tenha sido utilizada, seja porque Lukács a associava com o
existencialismo, seja porque ele próprio não havia se dado conta da possibilidade de
uma ontologia em bases materialistas” (VAISMAN, 2007)
23
. A luta intestina que
existe na própria formação estética da arte se deve ao fato de que “o estético
começa por formar-se dentro do mundo ideal e emocional da magia” e apenas
depois produz nos homens o hábito de apreciar a criação de um mundo por parte da
arte, o que ocorre quando a evolução social sedimenta ideias e sentimentos que
despertam e aprofundam o estético, possibilitando a peculiaridade do reflexo
artístico da realidade” (LUKÁCS, 1966b, p. 121). Dessa maneira, Lukács associa a
consolidação mimética da arte, não mágica, ao processo desigual de dissolução do
comunismo primitivo, que se manifesta no surgimento da pintura e da literatura,
artes que têm um caráter “imediatamente contemplativo” de evocação subjetiva de
ideias e emoções.
Esta formação de mundo se expressa formalmente no arredondamento e na
consumação internos da formação artística. Mas é claro que esse caráter
formal não pode ser mais que expressão imediata da consumada totalidade
do conteúdo [...]. Esta totalidade realizada do conteúdo constitui o
mundano das obras de arte, o caráter de independência em completude
interna. (LUKÁCS, 1966b, p. 122)
A experiência artística possui, portanto, duas dimensões, uma objetiva e outra
subjetiva. De um ponto de vista subjetivo sua consumação indica o caráter
23
Aqui, Ester Vaisman segue a já apresentada crítica de Chasin a Lukács (CHASIN, 2009, p. 139-219),
na qual o filósofo afirmou ser “impressionante notar que a própria
Estética
, em cuja arquitetura a
dimensão ontológica é patente, exiba a presença marcante da conciliação entre lineamentos do
ideário marxiano e a forma exterior da problemática do conhecimento. Em seu capítulo 13, na parte
voltada ao exame da categoria do
em-si
, pode-se apreciar com extrema clareza a manifestação dessa
ocorrência, na qual, à semelhança do que se passa no conjunto da história da ontologia até Marx, os
temas e os procedimentos propriamente ontológicos são embaralhados e confundidos com problemas
gnosiológicos” (CHASIN, 2009, p. 192-193).
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antropocêntrico do mundo representado, que se refere exclusiva e inevitavelmente
ao homem. Por outro lado, um aspecto objetivo em que o formalmente
consumado reflete a totalidade intensiva da realidade refigurada, suas
determinações essenciais, seus objetivos e suas relações”. Essa é uma das
características fundamentais da passagem da arte mágica para a estética,
diferenciando-se definitivamente da ornamentística, na qual as “imagens reflexas da
realidade objetiva” foram desenraizadas de seu habitat natural e inseridas em usos
“que não têm nada que ver com sua própria essência objetiva”. A ornamentística
seria, nesse sentido, um deslocamento semelhante ao que se com a alegoria, mas
com finalidade distinta, pois, neste caso, o ato artístico faz com que sua
objetividade própria se atrofie em mero e decorativo simbolismo” (LUKÁCS, 1966b,
p. 123).
Essa eliminação programada de toda “realidade intensiva” dos objetos própria
à ornamentação, no entanto, configura um sistema particularmente diferente daquele
em que funciona a arte mágica e suas figuras soltas, desprovidas de qualquer marco
espacial representacional e sem uma linha que estabeleça alguma relação entre elas;
o que Lukács afirma a partir das descrições dos casos de Altamira, Font-de-Gaume e
Niaux. Apesar da ausência de unidade entre as figuras, tanto o esmero de sua
execução quanto a dupla funcionalidade de suas existências parecem corroborar as
afirmações de Gordon Childe mencionadas por Lukács, a respeito do sítio
magdaleniano de Limeuil, em Dordogne: “um verdadeiro mostruário de lâminas de
pedra e seixos, nos quais se gravou algo como esboços reduzidos das pinturas
rupestres”. Atestando não apenas a maestria técnica de seus executores, mas
também uma dedicação formativa especial, tais indícios permitem a ambos, Lukács e
Childe, considerar os primeiros artistas dos povos caçadores do paleolítico como os
“primeiros especialistas da história”, isto é, um grupo de profissionais ligados aos
ofícios rituais que seria mantido pelos demais produtores diretos da comunidade
(LUKÁCS, 1966b, p. 125).
Essa primeira forma de especialização teria sido o elemento fundamental para
esse autêntico “florescimento cultural” em uma economia bastante rudimentar,
assentada basicamente na caça e na coleta. Contraditoriamente, como não poderia
deixar de ser, o baixo nível da cultura material da época foi o reitor da miséria e do
esplendor daqueles povos, manifestando sua positividade por meio de um “talento
sensível de observação e fixação das singularidades do mundo circundante, em si
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extraordinário e muito superior ao das culturas posteriores” (LUKÁCS, 1966b, p.
128). Essa é, segundo Lukács, “a essência específica do grande período da pintura
rupestre”, o porquê de sua “prematura imperfeição, única e irrepetível” que a torna,
ao mesmo tempo, realista e carente de mundo (LUKÁCS, 1966b, p. 124). Aqui, outra
vez, nos encontramos diante de um paradoxo, pois, para Lukács, realismo e
amundanidade são, esteticamente, pontas de uma contraposição excludente:
todo reflexo da realidade que não se detenha no nível superficial do
naturalista e imediato, que se oriente à reprodução da totalidade intensiva,
da totalidade das determinações essenciais e sensivelmente manifestas dos
objetos, cria uma espécie de mundo, com intenção ou sem ela. O paradoxo
das obras-primas da pintura rupestre paleolítica consiste em que os animais
reproduzidos, considerados como objetos soltos, parecem possuir essa
totalidade intensiva das determinações, ou seja, uma intenção de
mundanidade, enquanto, ao mesmo tempo, são representados
completamente isolados, em seu abstrato ser-para-si, como se sua
existência não estivesse em interação alguma com o espaço que as rodeia
imediatamente, para não falar de seu ambiente natural. Essas figuras estão,
pois, artisticamente fora de todo o mundo, e sua conformação é em
última instância amundanal (LUKÁCS, 1966b, p. 127).
Essa falta de mundanidade nas pinturas rupestres do paleolítico, essa falta de
uma apresentação dos objetos em suas relações com o mundo circundante e com as
relações ambientes, no entanto, não permite que se fale em “mero naturalismo”, em
“mera imitação fiel” ou em “mera imitação fotográfica dos modelos singulares”, pois,
ao menos no caso das grandes pinturas do magdaleniano, a representação sempre
se orienta “energicamente ao típico, e os detalhes resultantes da verdade natural
estão submetidos à hierarquia artístico-realista; sua proximidade com a natureza não
é mais que um veículo para expressar pictoricamente, visualmente, a tipicidade
(LUKÁCS, 1966b, p. 127). A mesma singularização pictórica que representa os seres
existentes em um “ser-para-si absoluto, isolado”, por outro lado, suscita a ideia de
que existem determinações objetivas que, por não serem representadas, arrancam
tais imagens de sua singularidade e as convertem em “protótipos de si mesmo”
(LUKÁCS, 1966b, p. 127). A soltura de tais figuras seria um sinal de complexidade
ritual, assim como a busca das formações espeleológicas para sua execução o que
Jean Clottes chamou de “animais imanentes à rocha” (CLOTTES, 2011, p. 197)
indica que a pesquisa e seleção com finalidade representacional também faziam
parte do trabalho de dar forma a um estado de espírito em que as imagens têm mais
a ver com uma religiosidade fluida do que com o naturalismo que conhecemos da
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história da arte
24
.
A “perfeição extraordinária das obras”, que aparentemente contrasta com o
grau de desenvolvimento das forças produtivas que as possibilitaram, habita a
reminiscência distante daquele momento primevo e imaginado em que se
estabeleceu a divisão social do trabalho. Sua excepcionalidade na captação visual
sensível da realidade da época, que significou, antes de tudo, uma ultrapassagem de
horizontes que em breve (no mesolítico) desapareceria, foi possível graças a uma
provável profissionalização propiciada pela divisão social das tarefas. A “excepcional
altura dessa cultura de caçadores” (LUKÁCS, 1966b, p. 131) desapareceu assim que
as condições para sua existência deixaram de existir, sem “sequer abrir
possibilidades abstratas de continuação, para não falar de progresso imanente em
uma formação mais desenvolvida”. Com o fim da última era glacial e, mais
especificamente após o período das chamadas artes holocenas, as novas condições
de organização social exigiram novos métodos para a produção e reprodução da
vida, de acordo com as transformações ocorridas nas condições ambientais (de caça
e coleta de alimentos). Em uma citação direta de Childe, Lukács sumariza: “quando as
geleiras derreteram, o bosque avançou por tundras e estepes, e as manadas de
mamutes, renas, bisões e cavalos imigraram ou se extinguiram. Com sua desaparição
se deterioraram também as culturas que haviam vivido deles” (LUKÁCS, 1966b, p.
126).
Considerações finais
As formas abstratas de reflexo que podemos encontrar na natureza (simetria,
proporção, ornamentalística etc.) se tornam evocadoras, se tornam
antropomorfizadoras, quando se distanciam da imediaticidade do trabalho, da
atividade cotidiana, para se tornarem um reflexo dela. Esses elementos
essencialmente formais e vazios, “objetivamente sem mundo próprio; e,
subjetivamente, sem sujeito”, entram no domínio estético quando conseguem se
desgarrar da utilidade, autonomizando-se. Ao fim e ao cabo, a falta de mundanidade
24
Não exagero em repetir que, apesar de reconhecer que nas pinturas rupestres o realismo
contrasta com a ausência de mundo (uma vez que suas figuras estão soltas, sem ligação com qualquer
entorno), Lukács jamais as associa ao
naturalismo
que ele depreciou desde a publicação do ensaio
Narrar ou descrever?
, de 1936 (LUKÁCS, 2010, pp. 149-185)
.
“Diferentemente da ornamentística, a
pintura rupestre é mimética, de modo que a ausência de mundo não nasce como consequência interna
e coerente de um princípio criador, mas antes aparece em contradição com sua base” (PATRIOTA,
2010, p. 156).
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das pinturas paleolíticas é expressão da ausência de uma zona de mediações em que
se inscreve toda ação ética. Sua amundanidade é o registro histórico de uma
sociedade cujo sistema de atividades não tem espaço para a formulação ética
(TERTULIAN, 1991, p. 82).
A visão de mundo subjacente às pinturas do paleolítico não inclui nenhuma
ideia de “segunda natureza”, assim como não comporta nenhuma dualidade entre
matéria e espírito. Uma concepção do mundo mágica, fluida e complexa como esta
“impossibilita um para-si explícito tanto no pensamento quanto na criação de
figuras”, por mais que seja evidente nessa arte a vontade de dominar intelectual e
praticamente o espaço circundante (LUKÁCS, 1966b, p. 137). A evolução das formas,
e consequentemente a autoafirmação da arte como autoafirmação do homem, é uma
decorrência das tentativas de solução desse conflito entre o desenvolvimento
imanente da matéria expressiva (tendência estética) e a magia como sistema de
objetivação reflexa que responde aos novos e progressivos problemas que a vida
cotidiana coloca para a coletividade humana.
Se pretendemos descobrir de verdade a gênese filosófica do estético,
temos que esclarecer com todos seus paradoxos a correta determinação da
pintura rupestre paleolítica. Por um lado, sua magnífica força realística, por
outro, a impossibilidade radical de continuá-la e logo a necessidade
histórica e estética em que se a evolução da arte de começar em certo
modo desde o princípio o reflexo da realidade, milênios depois de haver
alcançado aquelas conquistas culminantes [...] Por isso é claro que a
mimese pictórica da realidade visível não pode cobrar o caráter de um
mundo, mas que se os objetos representados se encontram em uma
interação real, derivada de sua mesma objetividade, entre eles e com seu
entorno. O espaço pictórico ricamente conformado como unidade concreta
sensível-intelectual de tais complexos racionais é o único fator capaz de
evocar artisticamente a existência de um mundo. Se falta essa unidade
contraditória e concreta, a imagem carece daquela profundidade que
também sentimos falta na ornamentística, tem que se manter no decorativo-
ornamental, como as imagens dos bosquímanos e muitas pinturas rupestres
do sul da Espanha, diferentemente do que ocorre com as representações
animais que analisamos. (LUKÁCS, 1966b, p. 123-139)
25
Como afirmamos no início deste artigo, investigar a “paradoxal essência
artística da pintura rupestre” significa inquirir as bases reais da própria gênese da
experiência estética e questionar como ela possibilita, no campo antropomórfico, a
superação do sistema de reflexo estabelecido pela religião, por mais que ou
justamente porque a relação com o transcendente e as divergências entre reflexo
25
Note-se aqui mais uma semelhança entre a visão de Lukács e a posterior leitura de John Zerzan: a
busca de uma analogia entre a cultura de povos bosquímanos e os agrupamentos humanos que
viveram na Europa durante o paleolítico, dada a semelhança do modo de produção e,
presumivelmente, de organização social.
Leandro Candido de Souza
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mágico e reflexo estético se constituam como uma contradição interna da própria
mimese artística (LUKÁCS, 1966b, p. 77). No caso das pinturas paleolíticas, sua
essência estaria na inigualável “predisposição subjetiva para a observação” dos
fenômenos visuais em sua singularidade e tipicidade, uma “finíssima sensibilidade
para o caso singular” que caracteriza esse estágio inicial da divisão do trabalho entre
os cinco sentidos, com um tendencial universalismo da visão e do ouvido. Essas
pinturas são “a transposição artística dessas capacidades imprescindíveis para a vida
cotidiana” da época, o que foi possível pela divisão do trabalho e o nascente
profissionalismo artístico.
O referido caráter mágico seria, portanto, imposto “desde fora” a essa
necessidade inerente ao desenvolvimento da linguagem de maneira heteronômica,
diríamos nós. Suas conformações singulares, suas figuras de fundo puramente
espeleológico são mimese da realidade para influir de modo favorável à
comunidade”. Um realismo que esquece o entorno dos objetos porque seu objetivo é
transcendental, determinado pelo caráter mágico de sua finalidade evocadora
calcada na “ubiquidade”: “o
páthos
dessa concentração sobre um objeto reproduzido
fora de todo entorno, mas concebido de um modo pico-realista, tem fundamentos
mais profundos que a ‘falsa consciência’ da magia, absolutamente dominante na
época” (LUKÁCS, 1966b, p. 133). Afinal, ao se orientar ao “evocador”, essas pinturas
desenvolviam artisticamente as específicas capacidades visuais e de concentração
(consequentemente a atenção e a comunicação) daqueles primitivos caçadores. Esse
é o momento de verdade dessa falsa consciência.
Longe de serem uma forma de ornamentação de grutas, cavernas, abrigos e
falésias, as pinturas do paleolítico são “uma antecipada e isolada erupção das
capacidades e possibilidades realista-miméticas do homem” que não logrou
continuidade, mas que tornou evidente a união indissolúvel da mimese evocadora
com o realismo artístico”, ainda que falte “um dos rostos da mimese, a criação de
mundo, de modo tão completo quanto o da perfeição com que nos é apresentada a
produção realista do objeto”. Essa falta é compensada pela heteronomia do sistema
mágico em que tais objetos funcionam; ou seja, a função atribui um sentido que falta
à imanência da representação. Há uma “vontade de arte” nessa “mimese
magicamente determinada” que sublima emoções por meio da representação típico-
realista de objetos concentrados em figuras singulares e com total desprezo por seu
entorno (LUKÁCS, 1966b, p. 134).
Para uma arqueologia do sentimento estético
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 150-181 - mar. 2022| 177
Existe, portanto, uma vinculação direta entre a falta de “alegria cismundana” de
suas figuras isoladas (a ausência de reprodução da realidade dos homens) e sua
funcionalidade mágica, a qual Lukács considerou ser a “gênese do estético sob a
cobertura mágica” (LUKÁCS, 1966b, p. 60). A conexão dialética entre a evocação e o
mimético, o efeito evocador das formas miméticas”, ou ainda, a imitação como
forma mais primitiva de expressão do trânsito do homem com a realidade, tanto em
sentido subjetivo quanto em sentido objetivo, é atravessada desde seu nascedouro
pela heteronomia de seu sistema de reflexo. No entanto, nas pinturas do paleolítico,
o elemento mais proeminente do humanismo do estético está presente como
“autoconsciência da humanidade”, como memória transmissível da luta pelo domínio
do mundo externo, da luta
contra
a natureza. A tantas vezes referida cismundanidade
da arte, sua concentração no “mundo de cá”, traz em si “o selo do antropocêntrico”,
pois cria uma realidade autônoma que absorve toda a vida, intelectual e emocional
do homem, a eleva, a intensifica e a aprofunda” (LUKÁCS, 1966b, p. 112).
Se a sensibilidade estética é um resultado tardio da relação sujeito-objeto, uma
emanação consideravelmente recente do processo histórico de autoconstrução
humana, a arte é a forma superior de objetivação imitativa, uma forma de
comunicação especificamente estabelecida por meio do envolvimento emocional do
destinatário, que nasceu junto à magia, passou pela religião, até se estabelecer
autonomamente. Ainda, se por um lado esse caráter evocativo (antropomorfizador) a
distingue da ciência, por outro ela se distancia da magia e da religião por sua
cismundanidade, por seu impulso imanente ao invés de transcendente (o reflexo da
realidade entendido como ficção fechada em si mesma). A diferença estaria, portanto,
na forma específica de evocação efetuada pela criação de um espaço homogêneo
destinado a evocar sentimentos humanos por meio da seleção e intensificação de
traços.
Manter a coerência e sustentar as exigências metodológicas concernentes à
busca da gênese dos processos, mesmo quando se trata de um objeto (a experiência
artística) cujas categorias são extemporâneas à origem e cuja gênese quase não
possui registro, foi uma tarefa arriscada à qual o velho Lukács não se furtou
26
. Talvez
26
Nicolas Tertulian destacou bem as dificuldades impostas pela tarefa: “Por mais rico que possa ser o
material fornecido pela arqueologia e etnografia a respeito das formas da arte primitiva, subsistem
vazios muito importantes e o tempo é um fator por demais irreversível para tornar possível uma
reconstituição histórica exata da gênese da arte. A essa dificuldade de ordem histórica vem se juntar
Leandro Candido de Souza
178 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 150-181 - mar. 2022
por isso, até mesmo um de seus mais amargos desafetos, Adorno, sempre tenha
considerado sua personalidade “acima de tudo inquestionável”
27
(ADORNO, 2009, p.
173). O mesmo Adorno que no capítulo
Teorias sobre a origem da arte
, de sua
Teoria estética
, considerou esse debruçar lukácsiano sobre a “penumbra da pré-
história” um esforço tão difícil como vão (ADORNO, 1982, p. 358), desconsiderando
assim a centralidade ontológica do presente no procedimento metodológico do
húngaro. Se a submissão do próprio método à prova da realidade foi uma das
consignas do pensamento de Lukács em seu caminho ontológico iniciado na cada
de 1930 (cf. OLDRINI, 2002), do mesmo modo, seu trabalho com as grandes escalas
de tempo, com a reconstituição das grandes linhas e etapas decisivas do gênero
humano (mais uma marca do Lukács maduro) jamais se viu imobilizado por eventuais
lacunas do conhecimento histórico. Afinal, se “a anatomia do homem fornece a chave
para a anatomia do macaco”, o mergulho na gênese do objeto não se desliga nem
dissimula sua preocupação com as formas resultantes de seu desenvolvimento no
presente, neste caso, a arte autônoma burguesa
28
.
O reflexo artístico nasce do trabalho, da atividade prática que fez do homem
sujeito. O reflexo é a forma de consciência emanada dessa relação “entre as
causalidades do mundo exterior e a teleologia humana” (LUKÁCS, 1966b, p. 120), de
tal modo que muitas das categorias que estruturam as diferentes formas de reflexo
enraízam-se nos próprios fenômenos da natureza que, desse modo, assumem a
forma originária de “reflexos incondicionados” da natureza do homem. O trabalho, a
ação teleológica humana, é o que alça essas categorias a sua dimensão propriamente
humana, ultrapassando a condição de reflexos condicionados” no sentido
pavloviano de um reflexo adquirido pelo exercício (experiência e repetição). A arte
surge quando a ação teleológica humana sobre a natureza “deixa de ser um
momento da vida cotidiana imediata para ser o reflexo desse momento” (LUKÁCS,
outra, de caráter teórico, possivelmente mais importante: a falta de material histórico suficiente não
corre o risco de levar a extrapolar às formas primitivas de arte um conceito tirado de suas formas
incomparavelmente mais evoluídas?” (TERTULIAN, 1980, p. 191).
27
“Lukács’s personal integrity is above all suspicion”, na tradução para o inglês por Rodney
Livingstone (JAMESON, 1980, p. 153); ou “A pessoa de Lukács está acima de qualquer dúvida”, na
tradução de Carlos Eduardo Jordão Machado e Marlene Holzhausen (MACHADO, 2016, p. 321).
28
Essa é a principal premissa metodológica de Peter Bürger no mencionado
Teoria da vanguarda
,
originalmente publicado em 1974. Sua interpretação das vanguardas como autocrítica da arte
(autônoma) na sociedade burguesa se a partir do modelo fornecido por Marx nos
Grundrisse
ao
analisar o cristianismo como “autocrítica” da religião: o método retroativo que permite ver o passado
como pré-história do presente (BÜRGER, 2008, p. 54-66).
Para uma arqueologia do sentimento estético
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 150-181 - mar. 2022| 179
1966b, p. 122).
O paradoxo lukácsiano de uma arte mimética desprovida de mundo coaduna
com a ideia bastante atual da arte paleolítica como carente de significado por ser
puramente representacional e, portanto, plenamente adequada a um universo fluido
e complexo, no qual tudo está interconectado e a permeabilidade é uma regra. A
diferença é que, em Lukács, os paradoxos quase nunca são respostas, e suas
demonstrações são sempre buscas por uma
forma
ética, semelhante à tarefa do
ensaísta em
A alma e as formas
, ou ao herói romanesco em
A teoria do romance
, por
maiores que sejam as diferenças quanto ao
método
(Kant-Kierkegaard
vs
. Hegel-
Marx),
escala
(experimento-arte
vs
. sistema categorial) ou
visão de mundo
(melancolia-desamparo transcendental
vs.
realismo-comunismo) subjacente à síntese
operada. Em maio de 1960, essa busca desembocou no início do manuscrito que
viria a ser sua
Ontologia
, mas que inicialmente era pensado, claro, como uma
Ética
.
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Como citar:
SOUZA, Leandro Candido de. Para uma arqueologia do sentimento estético: o papel
da arte paleolítica na
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de György Lukács.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n.
2, pp. 150-181, mar. 2022.
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
A sombra do progresso: Lukács, Balzac e as
contradições do realismo
The shadow of progress: Lukács, Balzac and the contradictions of realism
Paula Alves*
Resumo: Esse artigo procura situar as leituras de
Lukács sobre Balzac, coligidas no volume
Balzac
und der französische Realismus
[Balzac e o
realismo francês] no contexto dos debates que
movimentaram a vida intelectual soviética àquela
altura, isto é, ao longo dos anos 1930. Nesse
sentido, foram fundamentais os debates contra a
sociologia vulgar, nos quais Lifschitz, com quem
Lukács irá manter por muitos anos uma rica
interlocução, logo tomou a dianteira. Além do
“triunfo do realismo”, outros conjuntos de
problemas ligados à relação entre literatura e
visão de mundo viram-se no centro de uma
disputa acalorada, que culminou na suspensão da
revista literária
Literaturnyi kritik
. Tanto Lukács
quanto Lifschitz operam um deslocamento desse
debate que concerne aparentemente problemas
da teoria literária para o campo da filosofia da
história, mais precisamente, das concepções
sobre o progresso, para expor afinal qual era de
fato o objeto da polêmica. Iremos então nos deter
nesse nó, acompanhando as consequências que
Lukács extrai daí para as suas leituras de Balzac.
Palavras-chave: Lukács; realismo literário;
Lifschitz; debate sobre a sociologia vulgar;
Balzac.
Abstract: This article aims to place Lukács'
readings on Balzac, gathered in the volume
Balzac und der französische Rrealismus
[Balzac
and the French realism], in the context of the
debates that stimulated the Soviet intellectual
life at that time, that is, throughout the 1930s.
In this regard the debates against vulgar
sociology were fundamental, in which Lifschitz,
who would become a long-time companion and
interlocutor of Lukács, soon took the lead. In
addition to the “triumph of realism”, other
constellation of problems linked to the
relationship between literature and worldview
found themselves at the center of a heated
dispute, which culminated in the suspension of
the literary magazine
Literaturnyi kritik
. Both
Lukács and Lifschitz operated a displacement of
this debate to the field of philosophy of history,
more precisely, of the opposing conceptions
about progress, to expose, after all, what was in
fact the object of the controversy. We will then
address this crucial point, following the
consequences that Lukács draws from it for his
readings of Balzac.
Keywords: Lukács; literary realism; Lifschitz;
debate on vulgar sociology; Balzac.
A crítica literária de Lukács no período moscovita
Nos ensaios coligidos em
Balzac und der französische Realismus
[
Balzac e o
realismo francês
], Lukács retorna uma outra vez à obra desse célebre romancista
francês. Publicado em 1952 pela editora Aufbau
1
, esse livro é a versão alemã de
uma coletânea que saiu anteriormente em húngaro, ao final da II Guerra Mundial,
* Mestre em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (USP).
E-mail
: paulaama@hotmail.com.
1
Erich Wendt, seu editor na época na Aufbau, sugere em uma carta (9 ago. 1950) que um ensaio
sobre Maupassant tornaria o livro “completo”, mas Lukács não se em condições de escrevê-lo, em
virtude de seu ritmo de trabalho àquela altura. Para a edição alemã, que é, portanto, idêntica à
húngara, Lukács expressa apenas a necessidade de modificar um pouco o prefácio.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.634
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 183
quando Lukács retornou a Budapeste depois de quase três décadas vivendo no
exílio.
Embora haja um forte vínculo entre eles, esses textos foram concebidos de
maneira independente. Com exceção de
Zum hundertsten Geburtstag Zolas
[
Para o
centenário de Zola
], que foi publicado pela primeira vez em 1940, tanto em revistas
húngaras (
Korunk
,
Uj hang
) quanto na União Soviética (
Literaturnoje Obosrenije
) a
propósito da efeméride dos cem anos de nascimento de Zola, os demais artigos
datam de meados dos anos 30.
Balzac: Les Illusions perdues
(1935) bem como
Die Bauern
[
Os camponeses
] (1934) foram escritos como prefácios às edições
soviéticas desses romances;
A polêmica entre Balzac e Stendhal
(1935)
apresentava a publicação do debate entre esses dois escritores na revista de teoria e
crítica literária soviética
Literaturnyi kritik
(cf. SZIKLAI, 1990, p. 133).
Esses são, portanto, textos cuja escrita data daquele período da produção de
Lukács que ficou conhecido como “exílio moscovita” (1930-1931 e 1933-1945), em
referência ao lugar em que ele se encontrava. Durante esses anos, Lukács redigiu os
artigos que se tornariam referência na discussão sobre sua teoria do realismo: os
referidos ensaios sobre Balzac, mas também aqueles sobre Goethe e o realismo
alemão, os ensaios sobre os realistas russos (de Púchkin até os realistas soviéticos),
o
Romance histórico
e os
Moskauer Schriften
[
Escritos de Moscou
], uma coletânea
que foi organizada e publicada postumamente
2
.
Embora seja conhecida a afirmação de que o período do exílio em Moscou
marcaria o retorno de Lukács à teoria e crítica literária, após mais de uma década de
intensa atividade política no movimento comunista húngaro após, portanto, seus
“anos de aprendizado do marxismo” (LUKÁCS, 1968, p. 34) , ela não corresponde
aos fatos
3
. Nos anos 1920, além de publicações com temática eminentemente
2
Lamentavelmente, passado tanto tempo, ainda é atual a reivindicação de László Sziklai em 1978
pouco depois da primeira publicação dessa coletânea considerando a quantidade de textos que,
tendo sido escritos durante esse período de exílio, ficaram de fora dos
Escritos de Moscou
: “A seleção
oferece apenas uma pequena parte dos escritos que surgiram durante os quase 15 anos da
emigração em Moscou. [...] Assim, a publicação dos
Escritos de Moscou
o pode ser considerada
finalizada e não foi finalizada. [...] Portanto, a publicação dos Escritos de Moscou deve ser continuada,
na Hungria como no mundo todo; é até mesmo nosso dever continuá-la” (SZIKLAI, 1978, p. 128).
3
László Illés, por exemplo, afirma que “a atividade de Lukács como crítico literário emergiu
concomitantemente à sua retirada do ativismo político”, chamando logo em seguida a atenção para a
“vasta atividade de crítica e teoria literária que Lukács exerceu na imprensa de língua húngara na
segunda metade dos anos 1920” (ILLÉS, 1993, p. 236), o que me parece incoerente, a não ser que
se considere insignificante essa “vasta atividade de crítica e teoria literária” na imprensa húngara,
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política e de intervenção, além de textos (mais ou menos extensos) sobre assuntos
filosóficos, Lukács publica diversos artigos sobre literatura na imprensa húngara
(
100%
,
Új Márzius
, muitas vezes sob pseudônimos) bem como na imprensa alemã
(
Rote Fahne
em 1922-23 e
Die Tat
). Já nesse momento, portanto, Lukács exerce uma
“atividade literária direta” (LUKÁCS, 2009, p. 32), embora ela não constitua o centro
de seu interesse. É preciso, assim, determinar melhor a especificidade do período
moscovita, no que diz respeito à abordagem de problemas literários. Se
diferenças importantes, inclusive do ponto de vista metodológico
4
, entre essa fase de
sua produção e a posterior, também algumas linhas de continuidade que se
revelam, por exemplo, na recorrência dos autores de que ele trata esse é o caso de
Balzac, sobre quem Lukács escreveu um artigo para a
Rote Fahne
em 1922 e que irá
depois retornar nos artigos coligidos em
Balzac und der französische Realismus
.
Além de algumas afirmações do próprio Lukács (cf. OPITZ, 1990, p. 4), o que
ajudou a consolidar essa ideia equivocada de um interstício entre os textos de
juventude (antes, portanto, de sua entrada no partido comunista) sobre os problemas
de estética e aqueles propriamente marxistas, é que ela parece convincente sobre o
pano de fundo daqueles anos, tendo em vista a intensa atividade política de Lukács,
à qual se ligam ainda certos revezes em sua biografia. Por vezes, atribui-se esse
“retorno” às questões estéticas nos anos 1930 a uma infeliz injunção, que Lukács
se viu forçado a sair do movimento político húngaro, depois que suas
Teses de Blum
,
apresentadas no II Congresso do Partido Comunista Húngaro, foram derrotadas
5
.
além dos textos publicados nessa mesma época na
Rote Fahne
.
4
Nos anos vinte, Lukács considerava a relação entre literatura e sociedade de uma maneira
mecanicista, daí porque muitas vezes ele estabelece uma relação de correspondência direta entre a
classe social do autor e perspectiva da obra. Para uma análise detida dessa questão, ver: (OPITZ,
1990).
5
Ao ser perguntado sobre a influência desse acontecimento sobre a sua trajetória, Lukács comenta:
“Até as
Teses de Blum
eu era funcionário do partido ngaro. Portanto, o âmbito de minha atividade
foi determinado em larga medida por essa circunstância. Após as
Teses de Blum
, quando compreendi
e isso é o essencial nelas que a revolução proletária e a revolução democrático-burguesa, em se
tratando de uma revolução real, não estão separadas por uma muralha da China, adentrei um terreno
em que podia me movimentar livremente e no qual estava dado esse espaço democrático para a ética.
Permita-me fazer uma espécie de confissão: depois de escrever as
Teses de Blum
, por um lado,
tornou-se claro para mim que eu não era um político, porque um político não as teria escrito naquela
época ou, pelo menos, não as teria publicado. Por outro, compreendi enquanto trabalhava nelas que a
revolução proletária não é um acontecimento isolado, mas a conclusão de um processo histórico.
Consequentemente, as
Teses de Blum
têm um lado bom, a saber, elas libertam o desenvolvimento
ideológico na direção da democracia. Para ter liberdade nessa questão reconhecida como importante,
submeti-me completamente à linha ngara; não queria proporcionar a Béla Kun um triunfo nesse
quesito, não queria que ele tornasse as
Teses de Blum
um problema internacional. Desse modo, o
caso foi reduzido a um problema húngaro e o conteúdo de toda minha filosofia se transformou. Eu
passei da linha húngara para a alemã, ou antes, para a russa” (LUKÁCS, 2005a, p. 116-117).
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 185
Assim, ao se voltar para as questões estéticas, Lukács teria a possibilidade de
continuar obliquamente determinadas discussões, nas quais não poderia tomar parte
de outro modo.
No entanto, a despeito de sua verossimilhança, essa interpretação deixa de
considerar parte da atividade publicística de Lukács ao longo dos anos 1920, ao
mesmo tempo em que distorce, em certa medida, as correlações entre as limitações
conjunturais e sua atividade intelectual. Haveria pelo menos duas razões que
tornariam esse apagamento problemático. Artigos como aqueles publicados na
Rote
Fahne
documentam, já nessa “fase inicial de apropriação do marxismo” (OPITZ,
1990, p. 4), o aparecimento de certos problemas nos campos da história e teorias
literárias que serão desdobrados e reformulados posteriormente, à medida que
Lukács aprofunda sua compreensão do marxismo. De modo que, do ponto de vista
de seu desenvolvimento teórico, esses escritos sobre literatura nos anos 1920
podem ser vistos como importantes documentos de seu “caminho para Marx”,
testemunhando um momento relativamente inicial, impregnado de contradições, de
sua concepção da conformação social da literatura. Apagá-lo, por sua vez, de modo a
ressaltar a maior importância que os trabalhos de crítica e teorias literárias assumem
nos anos 30, acaba por estabelecer um dualismo inexistente entre estes e a
atividade política, como se fossem ocupações claramente dissociadas ou excludentes,
do ponto de vista teórico, mas também biográfico; como se houvesse, afinal, um
abismo entre “tática” e “teoria” que poderia, inclusive, justificar, sem mais, uma
“hierarquia de valor” (SZIKLAI, 1990, p. 135)
6
. Assim, por tabela, relega-se ao lugar
de um prêmio de consolação um campo de discussão que, no caso de Lukács, tem
uma significação que é também política: a literatura
7
. A reflexão sobre essa forma
6
Este dualismo parece repercutir um outro, que vira e mexe é utilizado para se caracterizar inclusive
de um ponto de vista biográfico a trajetória intelectual de Lukács: a divisão entre sua atividade
partidária e sua atividade teórica, a discrepância entre o
partisan
e o filósofo, como se uma coisa
impossibilitasse a realização plena da outra. Assim, a pretensão de distinguir entre eles costuma ser
ainda menos descritiva do que parece: trata-se, no fim das contas, de “salvar” um Lukács do outro, ao
invés de se discernir as possíveis tensões que o posicionamento do autor no movimento comunista
gera na sua produção intelectual. Nesse sentido, o caminho indicado por Sziklai parece mais
proveitoso: “as possibilidades positivas de uma estética comunista não dependem apenas da justeza
objetiva (realidade) da tática do partido e dos objetivos concretos do movimento, mas também da
capacidade do pensador de evidenciar os elementos reais das tendências contraditórias inerentes à
tática e
dar-lhes uma forma teórica em sua estética
” (SZIKLAI, 1990, p. 135, grifos meus).
7
Essa “lenda” de que Lukács, nos anos 30, teria retornado para o campo de atividade de sua
juventude por “razões ticas” (SZIKLAI, 1990, p. 136) também afirma nas entrelinhas que a crítica
literária seria um “campo de atuação aparentemente inofensivo” (SZIKLAI, 1990, p. 136). Se essa
afirmação pode ser questionada, de um modo geral, no caso da Rússia czarista, uma vez que a
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artística ocupa em sua teoria um lugar privilegiado por causa do (e não apesar de)
seu cunho político. A questão é antes como se estabelece essa relação, cujo sentido
não está fora do tempo, entre literatura e política, quais as mediações que constroem
a ponte entre esses dois campos de atuação.
Como se sabe, nos anos 30, a “atividade literária direta” de Lukács, que
continua a se dar sobretudo na forma de artigos para jornais e revistas
8
, assume um
lugar de proa. László Illés (1993, p. 237), por exemplo, dirá que nesse período na
União Soviética “a reconstrução e elaboração de uma estética” constituiu a essência
de sua atuação. Para contextualizá-la, demarcando, por um lado, a diferença entre
esse momento e o anterior, e por outro, esclarecendo os possíveis motivos por trás
dessas diferenças, parece-nos necessário recolocar essa questão a partir de uma
outra chave analítica: a dos desafios históricos aos quais ela responde. Para além do
banimento político, para além das tarefas no interior do partido, existe um outro tipo
de motivação prática que impele a sua teoria: “a força motriz da história da teoria
filosófica e estética do marxista Lukács é a revolução socialista” (SZIKLAI, 1990, p.
126). Por esse motivo, Sziklai caracteriza sua estética como uma “estética
comunista”
9
.
Um ponto-chave na constituição dessa “estética comunista” foi o contato que
Lukács teve com textos que até então eram desconhecidos ou de difícil acesso de
Marx, Engels e Lênin. Naquela altura, sob a direção de Riazanov, o Instituto Marx-
literatura no século XIX desempenhava um papel político importante, comparável àquele que
desempenhavam instituições políticas desde o século XVII na Europa Ocidental (cf. MEIER, 2014, p.
23) não por acaso Lukács irá comentar a atividade de democratas revolucionários como Bielínski ou
Tchernichévski , no caso da União Soviética, em que a política cultural era um campo minado de
disputa, sob o qual pairava de maneira mais ou menos fantasmagórica a figura de Stalin enquanto
referência da doutrina oficial (como se sabe, certas posições poderiam custar a vida), a lenda parece
ainda mais sem fundamento. Ademais, no que tange a essas questões dos riscos associados à
“inofensiva” crítica literária, é preciso considerar que o lugar de Lukács, enquanto teórico da cultura,
era assentado sobre uma ambiguidade: se ele era, já então, visto como uma figura de peso no cenário
soviético, ao mesmo tempo, ele não escapava de suspeitas por ser um exilado na URSS, ligado à
tradição alemã, durante a guerra contra a Alemanha nazista (cf. TIHANOV, 2000, p. 65).
8
Mesmo
O romance histórico
, que conhecemos na forma de livro, foi publicado pela primeira vez em
russo, de forma seriada, na revista
Literaturnyi kritik
.
9
Desse ponto de vista, é possível compreender uma tensão que confere ao período moscovita de
Lukács sua feição particular, e que foi muito bem caracterizada por L. Sziklai: por um lado, o caráter
secundário, se não irrelevante, da ocasião que motivou os artigos, na medida em que Lukács escolhia
essas ocasiões e mais do que isso, ele determinava a concepção dos artigos; por outro, a
importância do “
hic et nunc
concreto” para qualquer avaliação desses escritos estéticos, pois eles não
podem ser entendidos como uma historiografia da literatura enquanto tal e remetem para essa
peculiaridade de sua estética, uma estética comunista, uma estética do “movimento” comunista
(SZIKLAI, 1990, p. 133-134).
A sombra do progresso
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Engels, no qual Lukács trabalhou como pesquisador
10
ao lado de Michail Lifschitz
quando se instalou da primeira vez em Moscou (1930-1931), preparava para a
publicação os volumes da primeira
Marx und Engels Gesamte Ausgabe
(MEGA).
Lukács pôde então ler os
Manuscritos econômico-filosóficos
de Marx e o impacto que
essa leitura, junto com os
Cadernos filosóficos
de Lênin, teve sobre o
desenvolvimento posterior de toda sua teoria está bem documentado
11
. Podemos
dizer, assim, que Lukács encontrou nos anos 1930 não um velho novo campo de
atuação, mais inofensivo a teoria e crítica literária –, mas “um ‘novo’ Marx”
(SZIKLAI, 1990, p. 137), numa situação em que, ao invés de uma onda
revolucionária mundial, que não ocorreu, o horizonte estava carregado pela
tempestade fascista
12
.
Tal “virada” em sua perspectiva filosófica
13
está estreitamente ligada ao rumo
que Lukács toma em suas reflexões estéticas. Ele afirma, no prefácio a uma coletânea
em húngaro de seus escritos sobre arte, que o reconhecimento da autonomia e da
originalidade da estética marxista foi o meu primeiro passo na direção da
compreensão e da realização de uma nova inflexão ideológica” (LUKÁCS, 2009, p.
10
Essa atividade foi exercida por Lukács de maneira contínua durante seu exílio moscovita: “Fora uma
breve interrupção (em 1939-42), Lukács foi, ao longo de sua estadia em Moscou, um pesquisador no
Instituto de Literatura e Artes da Academia Comunista de Moscou, a qual depois de 1934 funcionou
como um departamento do Instituto de Filosofia da Academia Soviética de Ciências” (ILLÉS, 1993, p.
239).
11
Veja-se a esse respeito as afirmações de Lukács no prefácio à edição húngara de
Arte e sociedade
(2009, p. 27). Para uma análise detalhada dos desenvolvimentos teóricos que a leitura desses textos
permitiu a Lukács, no sentido de uma superação de traços idealistas que se mantinham na sua teoria
literária, remeto a (COTRIM, 2009). Como se sabe, esse período é notável não pelas mudanças no
que tocam as concepções estéticas de Lukács. Nele, Lukács “consolida boa parte de sua produção
intelectual e as mudanças em sua relação com o marxismo” (DUAYER, 2020, p. 97). Nesse mesmo
sentido, atestando a importância desse momento para a gênese da ontologia crítica marxista, Oldrini
afirma que [...] é exatamente ali, em Moscou, que se forma o Lukács maduro” (OLDRINI, 2002, p.
53). Sziklai entende que “a publicação dos
Manuscritos
foi um evento que, por diversos motivos,
transcendeu em importância a descoberta ordinária de uma obra. A
intelligentsia
que tinha uma
orientação decididamente anticapitalista encontrou na
antropologia
de Marx um ponto de vista que
correspondia à sua própria concepção política e leu nas entrelinhas dessa obra a mensagem
extremamente atual de uma crítica humanista positiva (comunismo como superação positiva da
propriedade privada e da autoalienação humana; a apropriação humana da essência humana; o
desdobramento completo do humanismo)” (SZIKLAI, 1990, p. 32).
12
Para Opitz, a “forte tendência para a objetividadeque caracteriza a teoria de Lukács a partir dos
anos 30, tem ainda um componente biográfico: “tão determinante como os outros dois fatores
mencionados para esse desenvolvimento intelectual foram os momentos da biografia pessoal; todo
um conjunto de características constitutivas do sistema de Lukács de 1934, como a forte tendência
para a objetividade, podem ser corretamente classificados e avaliados como uma negação
consequente de posições filosóficas e estéticas da juventude e dos anos 20” (OPITZ, 1990, p. 184).
13
Com base nos materiais disponíveis à época, Opitz põe em questão esse aspecto súbito implicado
pela ideia de uma virada, concordando antes com a tese de Sziklai de que “se trata de um longo
processo de repensar, que levou muitos anos e na verdade pode ser considerado como concluído
por volta do final dos anos 1930” (OPITZ, 1990, p. 112).
Paula Alves
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27). Nesse momento se tornará claro para ele que, ao contrário do que defendiam
figuras importantes da II Internacional, como Mehring, a estética não estaria fora do
conjunto de reflexões de Marx e Engels; por conseguinte, uma estética marxista não
precisaria ser criada como que “do zero” a partir de excertos tirados, por exemplo,
da estética kantiana, que seria possível encontrar nos escritos dos clássicos do
marxismo uma “teoria estética imanente
in nuce
(COUTINHO; NETTO, 2009, p. 14).
Esse “reconhecimento da existência de uma estética marxista, autônoma e unitária”
foi, para Lukács, “o resultado ideal mais relevante deste processo de esclarecimento”
(LUKÁCS, 2009, p. 25). Partindo, portanto, dessa convicção, ele irá se dedicar a
desenvolver essa estética propriamente marxista; seus escritos sobre literatura
durante os anos 1930 e 1940 integram esse esforço, que culminará depois de
algumas décadas nos dois volumes de sua
Estética
.
O interessante é como, nesse momento, a metamorfose que se delineia na
teoria estética de Lukács, remete continuamente às possibilidades (e limites) do
movimento comunista. Ela é, como define Sziklai de modo muito preciso, uma
“estética em movimento mais exatamente uma estética
do
movimento” (SZIKLAI,
1990, p. 133). Uma das dimensões dessa inserção no “movimento”, de um
desenvolvimento teórico no seu interior, é justamente o debate constante em torno
das ideias e estratégias do movimento comunista (cf. JUNG, 1990, p. 110) e Lukács
tinha clara consciência do papel que a publicística desempenhava nesse ponto (cf.
SZIKLAI, 1990, p. 134). Não surpreende, desse modo, o caráter, em larga medida
publicístico, de sua estética nesses anos. Não há, praticamente, nenhum órgão da
imprensa literária comunista e isso a nível mundial em que não tenha saído nessa
época uma contribuição sua (cf. SZIKLAI, 1990, p. 133).
Assim, é em meio a debates, interligados “organicamente com a vida literária e
artística contemporânea na União Soviética” (ILLÉS, 1993, p. 246), que Lukács
desenvolve sua concepção de realismo. Nesse contexto, poderiam ser mencionados:
aquele contra a Associação Russa de Escritores Proletários (RAPP), o debate sobre a
filosofia no início dos anos 1930
14
, os debates sobre o naturalismo e sociologia
14
Nesse debate, Stalin iniciou uma investida contra Deborin e seus alunos. No prefácio de
Arte e
sociedade
, Lukács o situa no contexto político da União Soviética: “A condição teórica para atingir
esta finalidade [construção do socialismo em um país] era fazer com que a opinião pública
reconhecesse em Lênin não somente o grande tático da luta revolucionária, mas também aquele que
restaurou e desenvolveu teoricamente o marxismo contra os desvios ideológicos da Segunda
Internacional. O debate filosófico dos anos 1930-1931 caminhou nesse sentido” (LUKÁCS, 2009, p.
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vulgar da arte ou o debate em torno do romance enquanto gênero literário
15
. Tendo
em vista, contudo, o fio condutor de seu desenvolvimento nesse período, isto é, o
empenho de Lukács na reconstrução dos fundamentos de uma estética marxista a
partir das concepções de Marx, Engels e Lênin, os debates contra a sociologia vulgar
parecem assumir um lugar central, na medida em que, como ressalta Sziklai, essas
duas frentes constituem “dois lados de um mesmo processo” (SZIKLAI, 1978, p.
95)
16
.
Debate contra a sociologia vulgar e os escritos sobre realismo de Lukács
Surgida nos anos 1920, a escola sociológica foi uma corrente importante no
pensamento estético soviético, representada por autores como V. M. Fritsche e V. F.
Pereverzev. Valendo-se, dentre outras fontes, da teoria de Plekhânov
17
, ela concebia
26-27). Como Lukács relembra em
Pensamento vivido
, tratou-se de um acontecimento muito
importante para seu desenvolvimento teórico, a despeito dos “posteriores traços stalinistas” que já se
tornaram visíveis nesse debate: a crítica de Stalin a Plekhânov me levou também a uma crítica a
Mehring. Plekhânov e Mehring consideravam necessário completar Marx, se estivessem sendo
debatidas outras questões que não as socioeconômicas” (LUKÁCS, 2005, p. 123).
15
Foi pedido tanto a Lukács como a um aluno de Pereverzev, G. Pospelov, que escrevessem uma
entrada sobre o romance para a
Literaturnaya enciklopedija
. Baseando-se nesse artigo, Lukács deu
uma palestra na Seção de Literatura do Instituto de Filosofia da Academia Comunista em 1934, à qual
se seguiu um debate de alguns dias. De acordo com L. Illés, esse foi, “em essência, um dos primeiros
confrontos entre o círculo em torno da
Literaturnyi kritik
e os sociólogos vulgares que se reuniam em
torno de Pereverzev” (ILLÉS, 1993, p. 255).
16
Tendo-se em vista o cenário da crítica soviética nos anos 1920, torna-se muito claro o motivo de
essas duas frentes estarem estreitamente relacionadas: “na diversidade do pensamento soviético dos
anos 20 sobre história da arte e crítica literária, pode-se diferenciar duas linhas principais no que
concerne ao tratamento teórico de problemas da arte e da literatura. Uma (de uma forma ou outra
associada com o método formal) se concentrava na investigação da organização interna da obra de
arte e seus vários componentes, assim como na investigação dos embates e sucessões na história da
arte; a outra vertente, orientada sociologicamente, que combatia o método formal, via na arte e na
literatura ou uma projeção de ideias e humores sociais de grupos da sociedade que historicamente se
substituíam e lutavam entre si ou o reflexo de um determinado nível de desenvolvimento econômico e
das formas de organização sociais correspondentes” (FRIDLENDER, 1990, p. 516). Como nota L. Illés
com base no ensaio de Lukács sobre Mehring, a sociologia vulgar, com sua crença em uma
“correspondência direta entre base de classe e ideologia”, dava continuidade ao pensamento da
Segunda Internacional, “a época em que a social-democracia abandonou a herança revolucionária da
dialética hegeliana e voltou novamente para Kant, afundou-se em oportunismo e falhou em empregar
o princípio marxista mobilizador do ‘desenvolvimento desigual’” (ILLÉS, 1993, p. 248).
17
Sobre a relação dos sociólogos vulgares com a teoria de Plekhânov, veja-se (LIFSCHITZ, 1988a, p.
470). Como lembra Leandro Konder, Plekhânov foi considerado “em certa fase o verdadeiro criador
da teoria estética do marxismo”, ocupando, junto com Mehring, o lugar dos “dois primeiros grandes
críticos de arte de orientação marxista” (KONDER, 1967, p. 39-40). Depois do debate filosófico,
contudo, seu renome foi posto em questão. Städtke alerta, em sua apresentação desse teórico, para a
necessidade de não se reduzir a recepção de Plekhânov às suas limitações sociologizantes: “é preciso
levar em conta que Plekhânov exerceu um importante papel de mediador entre a teoria literária russa
clássica e o programa estético da RAPP, especialmente no que diz respeito à tese da especificidade
da arte e da literatura em transmitir um conhecimento de mundo através de imagens sensíveis”
(STÄDTKE, 1977, p.11). Lifschitz, na verdade, também segue por essa linha: reconhecendo o vínculo
entre a sociologia vulgar e a teoria de Plekhânov, ele não deixa de observar que esta é “cara a todo
marxista” e que a sociologia vulgar “mobiliza os
piores
lados de Plekhânov, seu relativismo
Paula Alves
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a forma literária como a expressão da visão de mundo do autor empírico,
determinada, por sua vez, por sua posição de classe (cf. MEIER, 2014, p. 114). Essa
aplicação direta de categorias da sociologia à análise de obras literárias foi o que lhe
rendeu a pecha de “vulgar” entre os colaboradores da
Literaturnyi kritik
(cf. MEIER,
2014, p. 114), uma revista de crítica e teoria literária que iniciou suas atividades em
1933 e na qual Lukács publicou “pela primeira vez” todos os seus “artigos teóricos
e de princípio sobre a essência do realismo” (LUKÁCS, 2009, p. 28).
Tem-se os protagonistas de sucessivas polêmicas no interior da esquerda
soviética: de um lado, os sociólogos da arte, dos quais se aproximam também alguns
membros da então extinta RAPP, de outro, o círculo em torno da
Literaturnyi
kritik
18
, que publica diversos artigos em que o afastamento oficial da linha defendida
pela RAPP, isto é, da prescrição da dialética materialista como método artístico, se
combina com uma crítica do pensamento mecanicista, particularmente da sociologia
vulgar (cf. MEIER, 2014, p. 82). Isso faz com que essa revista seja considerada como
o centro de uma campanha movida contra essa corrente de pensamento, ainda que a
maior parte dos artigos explicitamente com esse propósito tenha sido publicada em
outros periódicos (cf. MEIER, 2014, p. 115).
Foi na
Literaturnyi kritik
que, após a resolução oficial de dissolução de todas as
associações literárias e a subsequente criação da União dos Escritores Soviéticos,
travou-se uma intensa discussão sobre a visão de mundo do autor e o método de
representação literária, entre 1933 e 1935
19
. A redação da
Literaturnyi kritik
,
representada por Rosenthal, defendia a posição de que um escritor, em princípio,
sociológico” (LIFSCHITZ, 1988b, p. 501; grifos meus).
18
Lukács considera que a
Literaturnyi kritik
surgiu a partir da outra “ala” na qual se bifurcou o
movimento contra a RAPP e seu sectarismo: uma ala estritamente stalinista, que se contentou em
isolar Averbach e a outra, “que se dedicou à transformação revolucionária e democrática da literatura
russa” (LUKÁCS, 2005a, p. 138). De acordo com szló Illés, a maior parte dos colaboradores da
Literaturnyi kritik
pertencia ao círculo de Lunatcharski (cf. ILLÉS, 1993, p. 245). Lukács é certamente o
nome mais conhecido dentre os teóricos e críticos em torno dessa revista, que contava também com
M. Lifschitz, I. Satz, I. Usievic, W. Grib, P. Judin, M. Rosenthal e G. Fridlender entre seus colaboradores.
Alguns deles ficaram conhecidos na União Soviética como “nova corrente (
novojtecenie
). Além de
Lukács, a essa “nova corrente” pertenciam, entre outros, Lifschitz, Usievic e Fradkin (cf. BRENNER,
1991, p. 170-171). Para N. Meier, eles apoiam uma crítica da vulgarização do marxismo tal como
praticada na União Soviética; a descoberta de textos até então inéditos de Marx teria possibilitado o
surgimento de novas correntes no interior do marxismo que portavam esse potencial de crítica radical
desde o campo socialista (cf. MEIER, 2014, p. 165).
19
Sziklai menciona que essa discussão se alongou por mais de 30 contribuições e foi interrompida
durante um certo tempo em 1934 (cf. SZIKLAI, 1978, p. 120). Para uma reconstrução detalhada
desse debate, bem como de sua relação com as mudanças na política cultural da União Soviética, veja-
se: (MEIER, 2014).
A sombra do progresso
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poderia fazer boa literatura (realista)
apesar
(em russo:
vopreki
) de sua visão de
mundo, pois, tendo características específicas, próprias desse campo, a prática
artística do escritor poderia atuar como um corretivo sobre sua visão de mundo e
seus preconceitos subjetivos. Contrariando essa tese, os defensores do
“blagodarismo” sustentavam que os escritores apenas são capazes de oferecer um
retrato realista da realidade
graças
(em russo:
blagodarya
) a sua visão de mundo. Foi
em torno dessas noções que o debate girou: “apesar da” ou “graças à” visão de
mundo do artista.
Nusinov, que é um representante do “blagodarismo”
20
, rejeitava igualmente os
postulados da RAPP, que, além do mais, ele considerava prejudiciais para o
desenvolvimento da literatura soviética (cf. MEIER, 2014, p. 101). No entanto, assim
como defendia a RAPP, ele supunha que a literatura poderia ser reduzida às
características do
milieu
de seu criador, à sua gênese social, de modo que, para
Nusinov, a essência da obra manifestaria necessariamente a ideologia da classe do
artista, demonstrando a sua potência se essa classe cumpre naquele momento
histórico o papel de arauto do progresso ou, pelo contrário, a miopia tacanha das
classes decadentes. Ao fim e ao cabo, o autor é lido como um porta-voz de sua
classe, a cujos limites ele está submetido como a uma fatalidade.
Na medida em que consideram a literatura apenas como expressão direta de
uma consciência determinada pela posição de classe, os sociólogos vulgares seguem,
em princípio, a mesma linha que os “blagodaristas” (cf. MEIER, 2014, p. 114).
Impulsionado não pelo momento oportuno, que se anuncia nos deslocamentos
que então sucediam na política cultural soviética (cf. PIKE, 1982, p. 268), senão que,
pelo empenho em dar continuidade ao pensamento estético de Lênin e dos clássicos
do marxismo (cf. SZIKLAI, 1978, p. 97)
21
, Lifschitz publica em 1936 um artigo na
Literaturnaja gazeta
,
O leninismo e a crítica de arte
e assume assim a frente da
campanha contra a sociologia vulgar
22
. Nesse texto, ele relaciona as limitações
20
Sobre Nusinov, Lifschitz afirma que ele “continua sendo o modelo ultrapassado da sociologia vulgar
consequente, que sabe como fazer as coisas [
wo Barthel den Most holt
]” (LIFSCHITZ, 1998a, p. 508).
21
Observe-se ainda que a crítica de Lifschitz à sociologia vulgar da arte, a partir de uma interpretação
dos escritos de Marx, Engels e Lênin, remonta já a seus primeiros trabalhos (cf. FRIDLENDER, 1990, p.
517); é difícil e errado, portanto, interpretá-la como um mero oportunismo político.
22
Para Sziklai, embora nos anos anteriores a relação entre visão de mundo e obra de arte, tal como
entendida pela sociologia da literatura, tivesse sido criticada na
Literaturnyi kritik,
é a partir desse
artigo de Lifschitz que a polêmica toma corpo. Ele considera que os primeiros artigos como os de
Rozenthal, Judin e Nusinov trataram a questão de modo muito “abstrato” e se valiam de
Paula Alves
192 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022
frequentemente observadas na crítica de arte soviética, que muitos buscavam
superar com uma retificação da figura do crítico (mais talento, mais honestidade…),
com um sistema de esquemas sociológicos, provenientes de uma concepção rasa e
dogmática do marxismo; com a influência, portanto, da sociologia vulgar sobre esse
campo do pensamento.
Um dos pontos centrais no argumento de Lifschitz é que, ao restringir o escopo
de percepção e criação do artista à psicologia de sua classe, da qual ele é, portanto,
“um produto passivo” (SZIKLAI, 1978, p. 96), a sociologia vulgar distorceria o
processo de formação da consciência de classe, que pressupõe, por sua vez,
diferentes mediações com o mundo exterior, com a realidade objetiva, apagando
assim “as contradições de classe fundamentais de cada época histórica” (LIFSCHITZ,
1988a, p. 478). As oscilações, as inconsistências manifestações características de
épocas em que
se mostra a “revolta contra os opressores”, mas
ainda
não
se
chegou à “luta consciente e consequente contra eles” (LIFSCHITZ, 1988a, p. 475),
isto é, em que “o velho ‘já’ foi ultrapassado, o novo ‘ainda’ não tem forças” (SZIKLAI,
1978, p. 97) , isso escapa, sistematicamente, aos esquemas lineares da sociologia
vulgar. Lifschitz conclui, assim, que essas “pessoas que tanto escrevem e falam sobre
‘análise de classe’ não compreendem nada da luta de classes real” (LIFSCHITZ,
1988a, p. 478).
Poucos meses depois, em uma tréplica
23
, Lifschitz irá mostrar como a análise
das relações de classe da sociologia vulgar
24
faz sentido em face de determinada
concepção do que é o progresso, a qual ele considera abstrata e distante do
marxismo (cf. LIFSCHITZ, 1988b, p. 510):
Se falamos do caráter progressista de uma classe, então a sociologia vulgar
se entusiasma com a força e a saúde da besta com bochechas rosadas e
musculosas. A burguesia saudável, a jovem burguesia repetem sem
cessar e com deleite os representantes da orientação por nós conhecida.
fundamentos filosóficos “lábeis” (SZIKLAI, 1978, p. 95).
23
De acordo com Sziklai, a sociologia vulgar mudou diversas vezes de figura ao longo dos anos 30.
Lifschitz aponta em mais de uma passagem de suas tréplicas para essas mudanças que foram se
operando nos argumentos de seus adversários, que, adaptando-se ao clima político, foram se
tornando mais ecléticos, pinçando até mesmo argumentos de seus opositores (SZIKLAI, 1978, p. 95).
24
Esse tipo de análise é próprio do marxismo dogmático, dirá Lifschitz: “o marxismo dogmático
entende por análise de classe a constatação dos tipos e estilos sociopsicológicos de pensamento
primordiais, que da mesma forma que são verdadeiros do ponto de vista da própria classe, são falsos
do ponto de vista da classe oposta. O sociólogo explica apenas esses tipos e suas explicações
equivalem à filosofia do doutor Pangloss: ‘está comprovado que as coisas não podem ser diferentes
do que elas são, pois como tudo foi criado para um fim determinado, tudo deve necessariamente se
dirigir para o melhor fim’” (LIFSCHITZ, 1988a, p. 474).
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 193
(LIFSCHITZ, 1988b, p. 517)
Uma classe “saudável” seria, nessa linha de pensamento, aquela que dirige a
economia, impulsionando o desenvolvimento das forças produtivas; nesse momento,
tal classe cumpriria a função de motor da história e conduziria a humanidade adiante,
vale dizer: a classe dirigente materializa o progresso e é, por conseguinte,
progressista. Assim, conclui Lifschitz, a tarefa da crítica literária seria então algo
simples, se ela consistisse apenas, como quer a sociologia vulgar, em “prender no
local do crime os clássicos da literatura mundial e comprovar que, em virtude de seu
nascimento, de sua educação ou, por fim, da expressão direta de suas visões
políticas, eles pertencem à classe dominante” (LIFSCHITZ, 1988b, p. 487). Pois, a
partir desse entendimento do que é o progresso, bastaria deduzir o “valor” das
obras de arte: a classe que conduz o desenvolvimento econômico realiza o
movimento de evolução da humanidade; na medida em que este é considerado
historicamente necessário, racional, na medida em que essa classe é, portanto,
progressista
25
, ela é capaz de criar obras de relevo, isto é, obras que expressam por
meio de seu estilo de classe
26
a visão de mundo progressista das classes dirigentes.
Lifschitz contrapõe a essa uma outra concepção sobre a luta de classes e seu
sentido histórico, que acentua o ponto de vista da totalidade. Trata-se, em última
instância, de ponderar o vínculo [do artista] ao poder e à propriedade [...] em
relação à totalidade das forças sociais colidentes” (SZIKLAI, 1978, p. 96). Seria
preciso considerar as relações de antagonismo entre as classes da perspectiva de
todo
o desenvolvimento, e “não quanto ao seu estado morto [
tote
Zustandshaftigkeit
], mas quanto suas principais tendências de movimento” (SZIKLAI,
1978, p. 96). Em sua raiz, o progresso remete para Lifschitz à vida do povo”, ao
“movimento vindo de baixo” das massas populares e à pressão que elas exercem nos
25
Não se engana quem entende que, seguindo essa linha, tudo é, no limite, uma expressão do avanço
da humanidade, na medida em que realiza uma necessidade histórica: “Não desperta no leitor a
impressão de que isso seria a dialética do doutor Pangloss, que achava que até mesmo a sífilis e a
santa Inquisição foram boas, pois elas foram o produto legítimo [
gesetzmäßig
] da história. Tudo é
progressista a seu tempo. Assim julgam também os nossos sociólogos, que emprestam dos antigos
escritos social-democratas a sua concepção de progresso” (LIFSCHITZ, 1988b, p. 516). Outra
passagem bastante significativa, nesse sentido, é esta, que remete mais diretamente ao contexto da
época: “De acordo com essa teoria, até mesmo o fascismo pode nos presentear com ‘valores
espirituais’. Nusinov comprova com detalhes que as ideias mais contrárias aos homens
[
menschenfeindlichsten
], mais larápias e mendazes são capazes de produzir obras-primas, porque
essas ideias contribuem para a ‘autopreservação’ das classes proprietárias e fortalecem a
crença
na
necessidade de sua dominação” (LIFSCHITZ, 1988b, p. 501-502).
26
Como sintetiza Sziklai, em seu artigo sobre Lifschitz, “o movimento das classes coincide com o
movimento das grandes orientações de estilo: ‘o estilo é a classe’” (SZIKLAI, 1978, p. 94).
Paula Alves
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“de cima”:
As massas populares sempre exerceram com sua pressão uma grande
influência na política dos reis e aqui se deve procurar a principal força
motriz do progresso. Mesmo a troca de dinastias, a usurpação do trono,
que ocorre tão frequentemente na história, não pode ser entendida sem a
referência ao desenvolvimento do movimento das massas. (LIFSCHITZ,
1988b, p. 512)
Assim, dirá Lifschitz num artigo de 1940, quando essa polêmica tomou um
outro rumo e a revista
Literaturnyi kritik
acabará como veremos mais adiante por
ser oficialmente suspensa, “o progresso não é
absoluto
”, nem “o conflito da
democracia burguesa com a reação feudal é a
única
forma na qual foi realizada a luta
a favor dos interesses populares e pelo desenvolvimento de uma visão de mundo
progressista” (LIFSCHITZ, 1988c, p. 544). Ideologias progressistas da burguesia em
ascensão, como foi a seu tempo o racionalismo, podem afinal se transformar no seu
contrário (cf. SZIKLAI, 1978, p. 96). Portanto, para apreender o sentido dos
fenômenos do complexo ideológico, o basta usar conceitos como progressista”
ou “reacionário” como etiquetas de classificação; apenas uma análise que os situe
social e historicamente no movimento das classes, tendo em vista a diferenciação
dos interesses no interior das mesmas, pode dar conta dessa tarefa, de modo que
estes conceitos históricos são, “do ponto de vista da dialética marxista, relativos”
(LIFSCHITZ, 1988c, p. 544):
Os interesses do partido burguês-progressista coincidiram às vezes com os
interesses do povo, mas não em todo lugar nem completamente. Desta
forma, é possível uma crítica conservadora e até mesmo reacionária ao
progresso que contenha elementos valiosos e até mesmo socialistas.
(LIFSCHITZ, 1988c, p. 545)
***
A participação de Lukács nesses debates de início não se dá, como é o caso de
Lifschitz, na forma de uma confrontação direta (provavelmente isso se deve ao fato
de que ele não dominava a língua russa)
27
; mas ele elabora sua posição, que
converge em muitos pontos com a de seu camarada russo e polemiza, portanto, com
a sociologia vulgar, nos diversos artigos que escreveu sobre literatura durante o
período de seu exílio moscovita, muitos dos quais foram traduzidos e publicados na
Literaturnyi kritik
. Sua influência nesta revista é inegável e Nils Meier (2014, p. 128),
por exemplo, o considera propriamente um “voprekista”, isto é, um integrante
27
Comentando essa questão nas suas memórias, Lukács diz o seguinte: Nessa linha, por exemplo, a
Usievic eu nem tanto, porque eu não sabia russo atacou a literatura política de seu tempo de
maneira bem contundente, sem que ela fosse presa por isso” (LUKÁCS, 2005a, p. 143).
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 195
daquele grupo que admitia a possibilidade de uma representação realista na obra
apesar da
visão de mundo do autor empírico (essa era, como vimos, a orientação que
os editores dessa revista defenderam na polêmica sobre a relação entre visão de
mundo e método de representação literária), fazendo ao mesmo a seguinte ressalva:
Lukács desenvolveu uma “versão do
voprekismo
(MEIER, 2014, p. 127).
28
Seria
Lukács então um “voprekista”, que teria visto em Balzac um realista
apesar de
suas
ideias reacionárias, que estariam em contradição com seu método artístico?
De fato, Lukács, assim como Lifschitz, retoma a leitura de Engels sobre Balzac.
Como se sabe, para Engels, o fato de que esse autor representa de maneira crítica,
em diversos momentos de sua obra, aquela classe com que ele simpatizava “os
seus queridos nobres”, como Engels formula em sua carta a Margaret Harkness
consiste num de seus traços mais “extraordinários”, num dos “maiores triunfos do
realismo” (ENGELS, 1948, p. 104). Igualmente importante para os dois
colaboradores da
Literaturnyi kritik
são os artigos de Lênin sobre Tolstói. Escritos
entre 1908 e 1911, nesses textos, Lênin analisa “do ponto de vista da revolução
russa e de suas forças motrizes” (LÊNIN, 1977, p. 95) como a obra desse escritor,
que, de nascimento, pertence à nobreza latifundiária, reflete as concepções de
“milhares de camponeses” (LÊNIN, 1977, p. 107), como ela expressa esse tempo
convulsivo da perspectiva dessas figuras, na sua ingênua limitação, mas também na
sua potência revolucionária
29
.
28
Meier diferencia a posição de Lukács daquela de Rozenthal no que toca a questão da honestidade
[
Aufrichtigkeit
] e sua relação com um movimento social: “Na
discussão sobre visão de mundo e
método
parte-se do pressuposto de que só se pode tratar, quanto ao movimento social que está mais
próximo da verdade objetiva do desenvolvimento [
Fortschritt
] histórico, da política de governo
soviética, interpretada como ‘construção do socialismo’, e sua realização. Desse modo, também para
Rozenthal, uma captura ‘honesta’ da realidade soviética está, de saída, comprometida com a afirmação
da política dominante implicada na sua interpretação como ‘construção do socialismo’. [...]Lukács, pelo
contrário, pensa em um ‘movimento social’, que nessa altura ele também imagina como o proletariado
combativo [
klassenkämpfendes
], mas que, de acordo com a situação histórica, poderia ter outras
raízes sociais e orientações políticas” (MEIER, 2014, p. 127).
29
Para Lênin, o Tolstói doutrinador e o Tolstói artista não se excluem; antes, relacionam-se de
maneira contraditória em suas obras literárias e filosóficas. Sziklai mostra como também Lifschitz,
seguindo as observações de Lênin, atenta-se para essa possibilidade característica das sociedades
anteriores ao socialismo: “Também nesse caso é decisivo se, em suas obras, a representação fiel à
realidade ‘da Rússia dos vilarejos’, do ‘ânimo da democracia camponesa’ se impõem, ou então se o
misticismo do artista, seu desejo de escapar ao mundo ou sua opinião sobre ‘não ofereça nenhuma
resistência contra o mal’ se subordinam à realidade. Ambas essas tendências fundamentalmente
distintas (que nem mesmo Plekhânov conseguiu separar uma da outra) podem até mesmo se enfrentar
no interior de uma única obra, e onde a última vence, ali a obra se transforma inevitavelmente em um
romance de tendência, em um sermão que enobrece os costumes” (SZIKLAI, 1978, p. 99). Não é por
acaso, portanto, que “ao combater a sociologia da arte vulgar, seus autores [da
Literaturnyi kritik
]
discutiram as apreciações de Engels sobre Balzac e os artigos de Lênin sobre Tolstói” (ILLÉS, 1993, p.
Paula Alves
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Assim, nessa tradição que tanto Lukács quanto Lifschitz recuperam, é
possível notar uma elaboração de certa descontinuidade entre o resultado plasmado
na obra literária e o
milieu
de origem do escritor, entre a expressão artística e a
ideologia de classe. Dessa árvore não parece cair um fruto “blagodarista”. Ao mesmo
tempo, a consequência que eles extraem dessas leituras não é, tampouco, a de que
um escritor burguês chega a uma representação realista
apesar de
sua visão de
mundo porventura reacionária. Não se alcança, na verdade, esquadrinhar o
posicionamento desses críticos quanto a essa questão, e nem da tradição a que eles
se referem, a partir dessa relação de rígida oposição (
ou
graças à visão de mundo,
ou
apesar dela), pois eles rejeitam a separação
abstrata
entre o lado “bom” e o lado
“ruim” de determinada ideologia, como se fosse possível salvaguardar com as
devidas loas os elementos progressistas e jogar fora o resto reacionário.
30
Por vezes,
esses aspectos compõem uma unidade contraditória e sua relação recíproca
responde pela força de uma determinada obra; outras vezes, a figuração da realidade
se sobrepõe à visão de mundo do autor empírico e a revida, trazendo à tona uma
verdade que escapa às suas convicções; outras tantas, estas põem a perder o
trabalho artístico. É antes o modo de percepção da realidade e a forma de sua
representação literária, com sua legalidade própria, que desempenham um papel
decisivo. Há, portanto, uma complexidade maior nessa interdependência entre o
autor, sua ideologia e a obra. Considerada por si só, fora da relação com o processo
criativo e o grau de abertura que este incorpora frente à realidade objetiva, a visão
de mundo não nos permite compreender os fenômenos literários, pouco importa se
ela é progressista ou reacionária.
31
Esse é o entendimento que Lukács irá
desenvolver naqueles textos sobre o realismo em que trata dessa questão, sendo os
artigos sobre Balzac paradigmáticos nesse sentido, pois este é um dos casos em que
ele comenta um escritor realista cuja visão de mundo contém elementos reacionários.
Ao analisar os romances desse escritor francês, Lukács não se limita a
245).
30
De acordo com Illés, “em essência, essa posição ideológica, a posição do ‘ou-ou’, caracterizou
Lukács até meados dos anos 1930. Sua concepção política sofreu uma mudança substantiva após o
sétimo Congresso do Comintern, o qual proclamou a estratégia da frente popular [...]. As mudanças
nas suas concepções estéticas acompanharam esse processo num paralelismo dialético que, partindo
da demanda por uma ‘grande arte proletária’ (Lukács foi um dos autores do esboço de programa da
Associação dos Escritores proletários-revolucionários que demandava isso em 1932!), passando pela
elaboração da teoria do realismo, culminou na postulação do ‘triunfo do realismo’” (ILLÉS, 1993, p.
242).
31
A respeito das condições do “triunfo do realismo”, veja-se (ALVES, 2020).
A sombra do progresso
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caracterizar suas posições quanto ao desenvolvimento da sociedade burguesa; ele
vai buscar, a partir da composição dos personagens e de suas relações, desentranhar
“sua lei
formal
fundamental”, que se mostra num “trazer à tona as determinações
mais importantes do processo social da vida em seu desenvolvimento histórico,
mostrando a sua forma de aparição específica nos diferentes indivíduos” (LUKÁCS,
1965a, p. 471; grifos meus). Para além das intenções propriamente políticas, Lukács
enfatiza assim a fatura da obra literária, embora também não sejam incomuns
formulações como “embora politicamente legitimista” (LUKÁCS, 1965a, p. 441), as
quais insinuam uma “vitória do realismo” sobre as limitações reacionárias do escritor
francês e se aproximam, nesses termos, da abordagem “voprekista”. Esse flerte com
o “voprekismo” é de fato um momento em sua interpretação. É sobretudo no texto
em que contrapõe o monarquista Balzac a seu “rival mais progressista”, Stendhal,
onde emerge com clareza as intrincadas correlações que Lukács identifica no
problema da visão de mundo na literatura:
A peculiaridade da dialética da história, o desenvolvimento desigual de
todas as ideologias tem a consequência notável de que Balzac,
por causa
de sua visão de mundo imediata mais confusa, amiúde francamente
reacionária, refletiu com mais perfeição e mais profundidade o período
entre 1789 e 1848 do que seu grande rival, intelectualmente mais claro e
mais progressista. De início, é certo que Balzac critica o capitalismo desde a
direita, pelo lado feudal-romântico. Mas seu ódio clarividente contra a
degradação do mundo capitalista nascente, que se origina desse
posicionamento, cria aqueles tipos eternos dessa sociedade, como são
Nucingen ou Crével. Basta contrapor essas figuras ao velho Leuwen, o
único capitalista que Stendhal figurou, para ver quão menos profundo e
abrangente ele foi aqui, embora a personagem mesma, enquanto
encarnação de um espírito superior e de uma cultura superior com um
talento financeiro incidental, seja uma transposição extraordinariamente
fidedigna para a Monarquia de Julho dos traços iluministas pré-
revolucionários. (LUKÁCS, 1965a, p. 503-504, grifos meus)
Contrapondo Balzac a Stendhal, Lukács mostra como, no processo de reflexão
literária, é possível que o reacionarismo se constitua outrossim como um ponto de
vista privilegiado, o que permite que as obras de escritores conservadores ofereçam
uma crítica mais contundente do capitalismo em ascensão do que aquelas de
escritores cuja visão de mundo é relativamente mais progressista.
32
Pois, em última
instância, o “triunfo do realismo” não diz respeito ao conteúdo – independentemente
de seu grau de progressismo da visão de mundo do autor empírico, mas à
“imagem do mundo que emerge na obra mesma” (VEDDA, 2015, p. 30), que pode
32
Lukács reconhece dois “complexos” em que Balzac, do ponto de vista da figuração, é superior a
Stendhal: na figuração dos capitalistas bem como na sua concepção do período da Restauração (cf.
LUKÁCS, 1965a, p. 503-506 e 1981, p. 73).
Paula Alves
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ser mais ou menos realista, que pode ser mais ou menos bem-sucedida na reflexão
da realidade objetiva. Interessa, portanto, ao crítico aquilo que está figurado na obra,
se nela a realidade em seu movimento é capaz de se sobrepor figurativamente às
intenções subjetivas do autor que porventura a distorcem. Dirá Lukács em outro
lugar que, para a crítica literária marxista, são
decisivas
a obra elaborada e sua
relação com a realidade objetiva” (LUKÁCS, 1964b, p. 225; grifo meu).
Em 1939, esse texto,
A polêmica entre Balzac e Stendhal
, que havia sido
publicado na
Literaturnyi kritik
, é publicado novamente em russo em uma coletânea
intitulada
K istorii realizma
[
Para uma história do realismo
]. O volume reúne também
artigos sobre Goethe, Hölderlin, Kleist, Büchner, Heine, bem como sobre Tolstói e
Gorki.
33
Nele, como afirma László Illés, Lukács usa de “maneira consistente a teoria
do ‘triunfo do realismo’” (ILLÉS, 1993, p. 256). Logo após sua publicação, Lukács se
viu no centro de um “áspero debate”, que tematizou, justamente, a legitimidade de
se empregar na literatura o “triunfo do realismo”:
A discussão, que se prolongou por um ano, centrava-se no seguinte
problema: em que medida era lícito aplicar em literatura o princípio da
vitória do realismo, já sugerido por Marx em
A sagrada família
, que ganhou
extrema importância na correspondência dos últimos anos de vida de
Engels e se tornou o fio condutor dos ensaios de Lênin sobre Tolstói? Será
que não atentaria contra o “caráter ideológico” da literatura a afirmação de
que a medida do valor literário consiste na visão de mundo, elaborada
artisticamente, que se expressa na obra e não na ideologia consciente do
autor, na qual se exprime diretamente a tomada de posição política no
momento dado? (LUKÁCS, 2009, p. 30)
A discussão tem início com os artigos de V. Ermilov e J. Knipovitch, na revista
Literaturnaja gazeta
(cf. SZIKLAI, 1978, p. 121). Num primeiro momento, é assim
que alguns participantes percebem essa polêmica que irá culminar na
descontinuação da revista
Literaturnyi kritik
por meio de uma resolução do Comitê
Central do Partido em novembro de 1940: como uma discussão. Mas o fato é que,
no mesmo dia da publicação de seu artigo sobre Lukács, Ermilov endereça uma carta
ao secretário do Comitê Central, Jdánov, denunciando essa revista como um “centro
de convicções politicamente prejudiciais” (MEIER, 2014, p. 188). Em seguida, o
33
Os ensaios contidos nesse volume são:
O sofrimento do jovem Werther, Os anos de aprendizagem
de Wilhelm Meister, Hyperion de Hölderlin, Die Tragödie Heinrich von Kleists [A tragédia de Heinrich
von Kleist], Der faschistisch verfälschte und der wirkliche Büchner [Büchner, o falsificado pelo fascismo
e o autêntico], Heinrich Heine als nationaler Dichter [Heinrich Heine como poeta nacional], Balzac: Die
Bauern, Balzac: Les Illusions perdues, A polêmica entre Balzac e Stendhal, Tolstoi und die Probleme
des Realismus [Tolstói e os problemas do realismo] e Die menschliche Komödie des vorrevolutionären
Russlands [A comédia humana da Rússia pré-revolucionária].
A sombra do progresso
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órgão de pronunciamento do Comitê Central adverte diversas revistas a se
orientarem de modo mais rigoroso pela tarefa da “educação comunista das massas”,
ao escolherem os textos que publicam (MEIER, 2014, p. 188).
A acusação central levantada a partir desse debate gira em torno do
“voprekismo” da
Literaturnyi kritik
, do que se conclui que ali seria veiculado um
“menosprezo do fator político-ideológico na criação literária” (BRENNER, 1991, p.
175): “o significado da visão de mundo como um todo, mas particularmente da visão
de mundo marxista progressista, seria negado e o papel de visões reacionárias
superestimado” (SZIKLAI, 1978, p. 101). Fica subentendido, portanto, que os críticos
da revista, ao falarem de obras de outros tempos e de outros contextos, estariam na
verdade desenvolvendo um modelo que também se aplicaria à situação soviética
contemporânea. A defesa do “triunfo do realismo” é assim transformada em uma
mácula de teor político, pois, se “a realidade sempre vence, logo o artista socialista
não precisaria de uma visão de mundo marxista” (SZIKLAI, 1978, p. 98) e, como
resultado, a problemática das classes poderia ser posta de lado. Nota-se aqui o
ressurgimento da crítica feita pelos “blagodaristas” por ocasião do debate sobre a
sociologia vulgar, rebatido por Lifschitz como uma “lenda”: quando nossos
oponentes literários levantam contra o escritor dessas linhas a acusação de que ele
rejeita a análise de classes, então eles tomam um desejo pela realidade” (LIFSCHITZ,
1988b, p. 506). Meier menciona outras questões que, interligadas a essa recusa do
esquema
da luta de classes, parecem igualmente suspeitas aos adversários de
Lukács e da revista:
Nesse contexto, a referência reiterada na
Literaturnyi kritik
à categoria de
“povo” e
narodnost’
[vínculo ao povo] é entendida como uma negação
equivocada da luta de classes. Corretamente, reconhece-se que a crítica ao
escritor moderno desenvolvida por Lukács nos artigos
Chudožnik i kritik
[
Escritor e crítico
] e
O dvuc htipachch udožnikov
[
Sobre dois tipos de
escritor
] diz fundamentalmente respeito também às circunstâncias na União
Soviética. Também o vínculo da crítica feita na
Literaturnyi kritik
à
illjustrativnost’
[caráter ilustrativo] da literatura soviética é reconhecida de
modo fundamentalmente correto. (MEIER, 2014, p. 189-190)
Então, conclui Illés, tanto Lukács quanto Lifschitz, “com suas visões sobre o
desenvolvimento desigual da arte e sobre o triunfo do realismo, tornaram-se vítimas
da luta contra as visões rappistas, que ressurgiram dos mortos na virada dos anos
trinta para os quarenta” (ILLÉS, 1993, p. 245). Contudo, é preciso levar também em
conta, como faz Lukács retrospectivamente, que a “antiga linha da RAPP” continuou
a dar o tom mesmo depois de sua dissolução: o “grupo da antiga direção da RAPP”
Paula Alves
200 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022
ele cita nomeadamente Ermilov e Fadeiev “conquistou postos decisivos na nova
organização” (LUKÁCS, 2009, p. 29). Se, insolitamente, os pesquisadores em torno
da
Literaturnyi kritik
ainda puderam nessas condições veicular sem impedimentos
uma “tendência crítica” a essa orientação,
34
isso se deve fundamentalmente, às
“contradições internas”: “formalmente, exigia-se em geral a qualidade artística; mas,
desde que o autor fosse fiel ao partido, proclamava-se como arte de alto nível
mesmo o pior naturalismo” (LUKÁCS, 2007, p. 30).
No entanto, a querela pública sobre as questões literárias, ainda que sua
interpretação política fosse evidente à época, parece menos determinante para a
decisão de terminar a publicação da
Literaturnyi kritik
do que as considerações de
ordem tática. De acordo com Meier, Ermilov e Fadeiev também atuaram “por trás dos
bastidores”, difamando o grupo da revista no Comitê Central do Partido assim como
entre os seus dirigentes incluindo Stalin, pessoalmente:
com esse fim, eles produziram um relatório com o título
Ob antipartijnoj
gruppiroke v sovetskoj kritike [Sobre o grupo antipartido na crítica
soviética]
, no qual denunciavam o fato de que a
Literaturnyi kritik
havia se
tornado a porta-voz não simplesmente de um grupo, mas até mesmo de
uma “corrente” (MEIER, 2014, p. 190).
Conforme esse relatório, Lukács seria o líder dessa “corrente” e seu vínculo
com o marxismo, questionável a dura crítica de Lênin a ele nos anos 1920 foi
usada como prova nesse sentido (cf. MEIER, 2014, p. 190). Mais do que outra coisa,
34
A relação dessa polêmica em torno da visão de mundo do escritor com as mudanças na política
cultural da União Soviética é marcada por ambivalências. Não consenso de que a posição dos
pesquisadores em torno da
Literaturnyi kritik
estivesse na
contramão
da linha oficial da política
cultural na URSS, pois, ao fim e ao cabo, mais do que este ou aquele posicionamento sobre questões
de ordem literária, interessava, como explicita Lukács, a possibilidade de instrumentalização da
literatura, seu aproveitamento para a propaganda das ações do partido seu aproveitamento tico,
portanto. Foi Stalin quem encaminhou a dissolução das associações literárias entre elas, a RAPP ,
alegando a necessidade de se superar o sectarismo embutido num projeto de implementação de uma
literatura exclusivamente proletária. Lukács saúda inicialmente essa iniciativa como a possibilidade de
“um apogeu, desatravancado de toda forma de burocratismo, da literatura socialista, da teoria e crítica
literária marxista” (LUKÁCS, 2005b, p. 41). Que essa aparente abertura apenas recobria um
aprofundamento burocrático do controle sobre as manifestações culturais explica a “tensão entre o
entusiasmo inicial e o crescente ceticismo” que atravessa, de acordo com Miguel Vedda (2015, p. 26),
os
Moskauer Schriften
. László Illés, por exemplo, afirma que até meados dos anos 30, os objetivos de
Lukács e Lifschitz “estavam em acordo com a linha geral da política cultural; suas dificuldades
surgiram sobretudo na segunda metade da década quando paradoxalmente as possibilidades
positivas da política da frente popular se depararam com desenvolvimentos sociais e políticos em
piora, desfavoráveis” (ILLÉS, 1993, p. 246). Para Sziklai, ao contrário, “a concepção do realismo de
Lifschitz, a exigência do reflexo da
realidade
era um protesto contra a literatura que estetizava e
cobria com verniz a sociedade soviética” (SZIKLAI, 1978, p. 99-100). Dietmar-Ingo Michels, que
escreveu o posfácio para a edição alemã dos
Moskauer Schriften
, aponta o mesmo em relação a
Lukács, que, em virtude de sua situação complicada, na contracorrente das opiniões dominantes, viu-
se na necessidade de camuflar sua crítica à maneira de um
partisan
(cf. MICHELS, 1981, p. 149-150).
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 201
foi essa dispersão evocada pela formação de grupos que despertou a atenção de
Stalin, para quem era de suma importância evitá-la, que estes teriam mais
facilidade para escapar das garras administrativas (cf. MEIER, 2014, p. 191). Desse
ponto de vista, o grupo em torno da
Literaturnyi kritik
seria uma pedra no meio do
caminho. E de fato, com o fim da política da frente popular em virtude do pacto de
não-agressão entre a Alemanha e a União Soviética (1939), a revista deixa de ser
“útil para a grande política” (MEIER, 2014, p. 192). Quando anuncia a sua suspensão
porque a revista teria perdido o contato com a literatura soviética, exercendo pouca
influência sobre sua formação (cf. MEIER, 2014, p. 192)
35
, a resolução oficial do
Comitê Central do Partido de certa forma deixa transparecer, ainda que com sinais
trocados, essa perda de função como possível instrumento de propaganda.
Lukács reagiu a esses ataques escrevendo uma série de artigos, dos quais dois
foram publicados nos primeiros meses de 1940 na
Literaturnaja gazeta
:
Londonskiy
tuman
[Névoa londrina
], em que Lukács corrige a apresentação de seus argumentos
sobre o “triunfo do realismo” feita por seus oponentes, e
Pobeda realizma v
osveshchenii progressistov
[
O
triunfo do realismo
à luz dos defensores do
progresso
] (cf. SZIKLAI, 1978, p. 121). Este último, que traz mais diretamente a
visão teórica de Lukács, foi publicado pela primeira vez em alemão postumamente
sob o título
Verwirrungen über den “Siegdes Realismus
[
Confusões sobre o triunfo
do realismo
] nos
Moskauer Schriften
, onde podemos encontrar alguns outros artigos
imbuídos do mesmo propósito.
Para dissipar as brumas criadas em torno de seu trabalho sobre a história do
realismo, Lukács torna mais precisa nesses artigos “sua concepção literária em
domínios centrais de problemas” (BRENNER, 1991, p. 174), o que confere interesse
particular a essas intervenções. A crítica à sociologia vulgar da arte, com seu método
abstrato que esvazia a obra literária inclusive de sua dimensão histórica, é palpável e
atravessa, como assinala M. Vedda (2015, p. 26), os
Moskauer Schriften
. A origem
35
Fridlender apresenta essas circunstâncias de modo um pouco diferente, como se houvesse ocorrido
um processo de reorganização (um pouco como Lukács, aliás, em seus escritos autobiográficos): “No
final de 1940, parou-se de publicar a revista
Literaturnyi kritik
. A resolução foi ditada pelo esforço do
Partido e do governo soviético, diante do fascismo e do perigo da guerra, de fortalecer as áreas de
responsabilidade da crítica e da publicística literária e artística. Por isso, os antigos colaboradores
bem como os membros da redação da
Literaturnyi kritik
foram delegados a elas. Da mesma forma,
decidiu-se interromper o debate entre os ‘voprekistas’ e os ‘blagodaristas’ na
Literaturnaja gazeta
.
Discussões sobre problemas específicos da estética e da teoria literária deveriam ser postergadas até
uma nova situação. A necessidade de sua solução passou para o segundo lugar diante da guerra
mundial desencadeada por Hitler” (FRIDLENDER, 1990, p. 537).
Paula Alves
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do conjunto de mal-entendidos e afirmações falsas que têm livre curso na análise
literária dos sociólogos vulgares deriva, para Lukács, não tanto de uma premissa de
caráter estritamente literário, mas da concepção profundamente falsa que eles
advogam sobre a história e o sentido do progresso, deformado a ponto de se tornar
retilíneo: “para eles, o caminho do progresso burguês é tão linear que a avenida
Nevski, em comparação, é uma sinuosa trilha de brejo” (LUKÁCS, 1981, p. 74). A
sociologia vulgar reaproveita não por acaso e de maneira conveniente os restos
da ideologia liberal, que não tem uma “concepção própria da história literária”
(LUKÁCS, 1981, p. 95).
Também nesse ponto o argumento de Lukács coincide com o de Lifschitz; mais
ou menos na mesma época, ambos reconhecem no núcleo metodológico da
sociologia vulgar uma tendência para hipostasiar um esquema histórico, por si
duvidoso: o do enfrentamento da burguesia com a nobreza feudal. Para Lukács, essa
transposição se mostra tanto mais imprópria na medida em que pressupõe a
identificação do caráter progressista da economia capitalista, que tem a ver com a
“enorme ascensão econômica do capitalismo” (LUKÁCS, 1981, p. 109), com um
papel progressista da burguesia enquanto classe (cf. LUKÁCS, 1981, p. 104). Ora,
dirá ele, essa equiparação não é adequada em termos puramente econômicos”
(LUKÁCS, 1981, p. 104): a fome canina [
Heißhunger
] de exploração com base no
prolongamento da jornada de trabalho é a mesma entre os fabricantes capitalistas e
os boiardos feudais” (LUKÁCS, 1981, p. 104); ao passo que mantém e se sustenta
sobre a exploração de uma classe pela outra, o capitalismo conserva elementos
arcaicos do feudalismo, cujas formas ele revoluciona. Especificando então qual seria
o “momento propriamente progressista, que diferencia de maneira decisiva a
produção capitalista das formas anteriores de exploração” (LUKÁCS, 1981, p. 104),
Lukács indica a mais-valia relativa, a qual foi, por sua vez, uma novidade que se
instituiu malgrado à burguesia, que lhe foi
imposta
pela resistência das classes
trabalhadoras” (LUKÁCS, 1981, p. 104). De modo que, de um ponto de vista político
e cultural, o papel que a burguesia, enquanto classe, desempenhou “no
desenvolvimento de sua própria sociedade” é, na caracterização de Lukács, “covarde
e hipócrita” (LUKÁCS, 1981, p. 109) e isso se evidencia particularmente na sua
atuação durante as revoluções burguesas, isto é, quando a sociedade é transformada
em função das necessidades da produção capitalista. A essência de toda e qualquer
revolução burguesa que encontra seu termo é “essa contradição entre conteúdo e
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 203
objetivo burgueses da revolução e os métodos plebeus de sua realização” (LUKÁCS,
1981, p. 106). No Termidor, que marca o fim da ditadura plebeia na Revolução
Francesa, essa contradição geral “entre as massas populares postas em movimento e
o beneficiário da Revolução, a burguesia” (LUKÁCS, 1981, p. 107), manifesta-se de
modo mais nítido, embora ela seja igualmente uma característica das demais
revoluções burguesas. Apenas a correta compreensão desses aspectos permitiria, de
acordo com Lukács, explicar os fenômenos da vida cultural ao longo do século XIX.
A contradição do progresso nos
Escritos de Moscou
É dessa situação que Lukács parte, em
Marxismus oder Proudhonismus in der
Literaturgeschichte?
[
Marxismo ou proudhonismo na história literária?
], para tratar
de alguns “problemas conhecidos do marxismo”, mas que, no curso da “discussão
literária atual”, isto é, do debate contra a sociologia vulgar, foram submetidos a um
procedimento sistemático de simplificação (cf. LUKÁCS, 1981, p. 103). Assim,
detendo-se primeiramente no papel que coube à burguesia nas revoluções
burguesas, Lukács passa em seguida a repertoriar algumas concepções significativas
sobre o progresso, para então examinar como essa dinâmica funciona
especificamente no campo da literatura.
O progresso, diz Lukács
en passant,
é o “conteúdo social da revolução
burguesa” (LUKÁCS, 1981, p. 113). Mas o marco que ele adota nessa breve e seleta
história sobre essa ideia é o golpe do Termidor, “a vitória do conteúdo burguês da
revolução sobre as ilusões historicamente necessárias dos heroicos plebeus”
(LUKÁCS, 1981, p. 106), a qual acarreta “uma crise do jacobinismo burguês”
(LUKÁCS, 1981, p. 81). Uma situação nova, portanto, com a qual se encerra “o
período heroico das revoluções na Europa Ocidental” (LUKÁCS, 1981, p. 107) e que
possui “um caráter enigmático na cabeça dos estreitos liberais” (LUKÁCS, 1981, p.
106) (aqui poderíamos, sem prejuízo, trocar “liberais” por “sociólogos vulgares”). E,
não por acaso, o primeiro destaque coube a Hegel. É na sua filosofia da história que
emerge, para Lukács, um aspecto que havia sido negligenciado até então (e que a
sociologia vulgar continuou a negligenciar, ainda que por razões distintas e
fundamentalmente apologéticas): se é possível falar de progresso, de um ponto de
vista econômico, associado ao desenvolvimento das forças produtivas por meio do
capitalismo, como fez por exemplo Ricardo na sua “prosa da produção da mais-valia”
(LUKÁCS, 1981, p. 112), a contraparte social desse progresso do gênero” é a
Paula Alves
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tragédia do indivíduo. É esse vínculo contraditório” entre indivíduo e gênero que
está na base da filosofia de Hegel e do
Fausto
de Goethe, dois autores da tradição
alemã que concebem o desenvolvimento da sociedade burguesa como um processo
unitário e assim levam ao limite e dissolvem “as velhas ilusões” do Iluminismo. Mas,
nesse curso, eles não abandonam (e a rigor não era possível outra coisa) o horizonte
de expectativas da sociedade burguesa: no lugar das ilusões desfeitas, surgem dessa
forma ilusões novas, nas quais o futuro acaba por se confundir com o estado de
coisas presente.
Para Lukács, o próximo passo nessa compreensão da realidade do presente em
seu movimento contraditório é dado pelo socialismo utópico, que traz uma
“perspectiva totalmente nova” para a ideia de progresso:
o reino redentor da razão dos iluministas, que surge aqui sob uma nova
figura, não é o reflexo idealizado da sociedade burguesa, mas, pelo
contrário, uma idealização de um estado do mundo sonhado, no qual as
contradições que ali são insolúveis podem ser superadas (LUKÁCS, 1981,
p. 115).
Os socialistas utópicos e nesse ponto Lukács destaca particularmente Fourier
souberam exprimir “a crítica mais profunda e fundamental” da sociedade
capitalista, expondo suas abominações como seu “produto necessário e orgânico”,
ao mesmo tempo em que formulam a partir dessa elaboração contundente de suas
contradições “a concepção genial da perspectiva do socialismo tornado realidade”
(LUKÁCS, 1981, p. 115). No entanto, com essa “virada ideológica decisiva” (SZIKLAI,
1990, p. 128), interpõe-se entre o estado de coisas vigente e o futuro imaginado um
“abismo”, o qual, para os socialistas utópicos, “não pode ser transposto com nenhum
meio da ciência” (LUKÁCS, 1981, p. 115). Trata-se, portanto, de uma crítica social
notável, à qual falta, contudo, um “elo mediador concreto” (LUKÁCS, 1981, p. 116).
Essa falta é, por sua vez, o índice da ilusão que assumirá então “diversas formas
fantásticas de superação” (LUKÁCS, 1981, p. 116), sem que o vigor crítico perdesse
o fio ao postular uma reconciliação no presente, reconhecidamente impossível: ele
ficou no ar, num “salto” (LUKÁCS, 1981, p. 117) projetado para o futuro.
O próximo nessa breve história das ideias sobre o progresso são as críticas
românticas ao capitalismo. Nestas, o que oferece um contrapeso aos efeitos
destrutivos do capitalismo não é a projeção de um futuro fora de seus liames, mas a
nostalgia de um passado pré-capitalista, não raro de coloração medieval, que ao
mesmo tempo contém em suas invectivas contra a moderna sociedade burguesa uma
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 205
“ameaça do futuro” (MARX; ENGELS
apud
LUKÁCS, 1981, p. 118); por isso, Lukács
emprega aqui e ali o termo “utopismo reacionário” (LUKÁCS, 1981, p. 124) para
descrever essa mistura. Citando o
Manifesto comunista
, ele destaca nesse sentido
duas correntes, o socialismo pequeno-burguês e o socialismo feudal, as quais são
caracterizadas com mais vagar por meio de comentários sobre algumas figuras
representativas, particularmente Sismondi e Carlyle. A respeito desse último Lukács
comenta:
Pois, quando Carlyle, por exemplo, contrapõe ao trabalhador livre
[
vogelfrei
] a existência segura no auge da Idade dia, quando ele
contrapõe ao escravo fragmentado da divisão capitalista do trabalho o
artesão trabalhando com sentido, que realiza sua personalidade no trabalho
etc., sem dúvidas esse contraste é, em termos imediatamente econômicos,
pequeno-burguês e reacionário. Mas ele revela, por um lado, aspectos
importantes e desumanos do capitalismo e contém, por outro, certamente
de uma forma confusa, reacionário-utópica, uma intuição do futuro, que, por
exemplo, não mais conhecerá a submissão escrava sob a divisão do
trabalho. (LUKÁCS, 1981, p. 127)
Não dúvidas, para Lukács, de que a glorificação da Idade Média tem um
caráter reacionário e este se mostra, do ponto de vista imediatamente econômico,
como uma pedra no sapato, impedindo que o modo de produção capitalista seja
apreendido em termos próprios. O ponto de vista de Carlyle, em sua limitação,
equivale ao dos representantes da pequena burguesia, em sua origem uma classe
pré-capitalista, a qual se constantemente sob a ameaça de desaparecer e
submergir no proletariado; assim ela incorpora por definição uma contradição,
oscilando entre o proletariado, do qual se compadece, e a burguesia, pela qual é
constantemente seduzida. No entanto, Lukács entende que essa visão de mundo
passadista embasa ao mesmo tempo um momento de revelação daquele fator
subjetivo-pessoal” (LUKÁCS, 1981, p. 113) no qual se condensa a tragédia do
indivíduo no capitalismo (exposta aqui na degradação que acompanha a divisão
capitalista do trabalho) e que constitui, numa constelação de todo diversa, algo da
originalidade da apreensão de Hegel e Goethe sobre o “progresso do gênero” (
LUKÁCS, 1981, p. 113-114). Lukács, que não adota um critério “formal-democrático”
(LUKÁCS, 1981, p. 120), mas
funcional
frente ao papel que as ideologias, incluso as
reacionárias, cumprem objetivamente num determinado contexto sócio-histórico,
reconhece que o ódio que o Carlyle p-1848 isto é, antes de ele passar
“abertamente para o campo da contrarrevolução” dirige contra a “anarquia do
capitalismo” (LUKÁCS, 1981, p. 126) atinge o ponto, ainda que de “forma confusa”.
Movido por uma nostalgia da velha ordem com seus valores, Carlyle contesta a
Paula Alves
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desagregação imposta pela ordem capitalista e, nesse sentido, sua crítica contém um
momento de ameaça à existência da sociedade burguesa e aponta para o futuro.
36
Tal gesto da “ameaça do futuro” é o que Lukács destaca como fundamental nesses
casos específicos, sem deixar de ressaltar seu caráter contraditório:
Essa tendência que aponta objetivamente para o futuro (para o futuro
socialista) é o fundamento último da crítica brilhante e acertada ao
capitalismo. Mas não estaria a modalidade peculiar dessa crítica com
frequência profunda e certeira em Carlyle ou Cobbett estreitamente
vinculada à Idade Média idealizada? (LUKÁCS, 1981, p. 127)
O que interessa a Lukács nessas ideias sobre o progresso que, ao mesmo
tempo, o problematizam, é uma tendência, um vislumbre de futuro; “é necessário”,
ele afirma, “colocar a ‘ameaça do futuro’ em primeiro plano” (LUKÁCS, 1981, p. 127),
esta se torna a base do pensamento crítico. E não se trata, como ele mesmo
explicita, de um futuro qualquer, mas do “futuro socialista”, de modo que essa
tendência que aponta para o futuro exprime “um desmascaramento verdadeiro do
capitalismo” (LUKÁCS, 1981, p. 124) e, em última linha, pressagia a necessidade de
sua superação.
Guardadas as diferenças entre eles
37
, isso implica, no caso de todos esses
pensadores, a superação da ideologia do Iluminismo
38
, que pavimentou o caminho
para a Revolução Francesa; implica o reconhecimento (necessariamente limitado, daí
as ilusões) da face dupla do ideário modernizador e civilizatório no qual se envolve o
capital em seu movimento de ascensão, ao mesmo tempo em que deixa por onde
passa um rastro de estragos. Nesse sentido, esse reconhecimento do caráter
36
Como nota M. Vedda, nessas considerações “Lukács infere uma valorização do legado romântico
mais matizada do que a que amiúde se atribui a ele; com efeito, sem deixar de questionar a nostalgia
por um mundo pré-capitalista presente em boa parte dos artistas e pensadores dessa tradição, o
autor dos
Escritos de Moscou
reconhece no Romantismo um aporte incontornável para a análise e o
julgamento da Modernidade capitalista” (VEDDA, 2015, p. 27).
37
Seria possível dividir, grosseiramente, esses pensadores em dois grupos: um que vislumbra a
possibilidade de resolução dessas contradições no interior da sociedade burguesa (Hegel e Goethe) e
outro que considera essas contradições irresolvíveis, donde as diversas saídas utópicas por meio de
um salto ou para o futuro, ou para o passado (correntes socialistas pré-marxistas: socialistas utópicos,
socialismo pequeno-burguês, socialismo feudal).
38
Não se trata aqui de uma simples contraposição. Como afirma L. Illés, com base em um material
mais amplo do que este que está sendo trabalhado aqui, mas que converge com ele: “foi no âmbito
deste programa que Lukács realizou o estudo do humanismo do classicismo alemão, as conquistas de
Hegel e de Goethe, e analisou as obras dos ‘grandes realistas’, as quais ele definiu como um padrão.
Ele considerava o classicismo alemão como o reflexo específico da Revolução Francesa” . O caráter
específico desse “reflexo” tem que ver com uma postura crítica, partilhada pelo próprio Lukács: “ele
insistia teimosamente na defesa histórica da ideia do progresso humano contida no legado do
Iluminismo francês e inglês, mas, ao mesmo tempo, tinha plena consciência da natureza contraditória
do progresso” (ILLÉS, 1993, p. 243-244).
A sombra do progresso
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contraditório do progresso contém um gérmen de desilusão, que se expressa com
maior ou menor intensidade, quanto aos horizontes então concretizados da
Revolução Francesa: eles descartam, por assim dizer, as ilusões que tornaram
possível “o impulso revolucionário” de um Marat ou de um Robespierre (cf. LUKÁCS,
1981, p. 122), as quais, por sua vez, haviam sido àquela altura “refutadas pela
própria história, pela Revolução Francesa, pela Revolução Industrial na Inglaterra”
(LUKÁCS, 1981, p. 111). A tarefa histórica que se colocava na ordem do dia consistia
em reconhecer essa nova realidade, com a qual esses pensadores estavam
confrontados, reconhecer sua “essência contraditória” (LUKÁCS, 1981, p. 82). A
“decepção” (LUKÁCS, 1981, p.115), nesse contexto histórico, s-revolucionário,
cumpre, portanto, a função de aguçar os sentidos para o caráter contraditório do
desenvolvimento nas sociedades de classe, constituindo a base do
verdadeiro
desmascaramento
do capitalismo”, que é afinal o que importa, mais do que as
intenções daquele que desmascara” (LUKÁCS, 1981, p. 124).
Justamente a contradição do progresso é o que permite, no entendimento de
Lukács, explicar fenômenos como “a crítica romântica da sociedade capitalista, a
crítica desde a direita da mais diversa observância” (LUKÁCS, 1981, p. 124). Ele
retoma nesse ponto uma definição de Engels, para quem o progresso representa
sempre um recuo, na medida em que fixa o desenvolvimento numa única direção,
excluindo todas as outras possibilidades (cf. ENGELS
apud
LUKÁCS, 1981, p. 124). A
crítica dessa unilateralidade vem por vezes acompanhada de concepções falsas, de
ilusões; isso não significa, contudo, que ela esteja no caminho falso. Não havendo
nenhuma saída concreta à vista, aparece na obra de boa parte dos ideólogos
burgueses uma mistura entre progressismo e reação. Voltando-se ao exemplo de
Balzac, cujo ódio contra o capitalismo ele considera a “fonte de sua grandeza
literária” (LUKÁCS, 1981, p. 84), Lukács então se pergunta: esse ódio, afinal, é
progressista ou reacionário? Depende, ele conclui:
Todo ódio contém determinadas
possibilidades
progressistas, por exemplo,
a possibilidade para a crítica descrita acima [desmascaramento do
capitalismo, P.A.]. Mas, ao mesmo tempo, todo ódio também contém com
exceção do ódio do trabalhador com consciência de classe possibilidades
reacionárias dos mais diversos matizes de visão de mundo e políticos.
(LUKÁCS, 1981, p. 84)
Para especificar a natureza dessas possibilidades instauradas por uma postura
impregnada de uma recusa ao capitalismo, é preciso analisar caso a caso,
concretamente, isto é, situando a obra em questão em seu contexto histórico. A
Paula Alves
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breve história que Lukács nos apresenta das ideias sobre o progresso é, nesse
sentido, um exemplo desse método concreto de análise, que ele contrapõe ao
método dos sociólogos vulgares, do qual trataremos mais adiante. Ao mesmo tempo,
ela permite que Lukács mostre a extensão dessa intricada dialética que permeia toda
produção cultural, não a de autores reacionários. Na sociedade de classes, no
interior do pensamento pré-marxista, o desenvolvimento ideológico ocorre sempre
com uma falsa consciência: “uma forma determinada de ‘triunfo do realismo’ e, com
isso, uma forma determinada de
apesar de
, está presente nos representantes de toda
ideologia do pensamento pré-marxista” (LUKÁCS, 1981, p. 89). Dessa maneira,
conclui Sziklai, Lukács situa o problema do realismo “no interior do quadro geral da
filosofia marxista
”:
A relação entre obra e visão de mundo não pertence, portanto, apenas ao
território da estética, nem em primeiro lugar ao da teoria literária (ou
história literária), mas é uma parte natural do domínio mais amplo da
história da filosofia. É uma das leis fundamentais desse domínio, enunciadas
em diversos lugares pelos clássicos, que os homens, nas sociedades de
classes, fazem a sua própria história e batalham até o fim no mais das
vezes com uma falsa consciência, o que não significa que os objetivos de
“conteúdo limitado” (Marx) imbuídos de uma consciência subjetivamente
falsa, realizados com “ilusões heroicas”, não possam levar sob condições
determinadas a resultados objetivamente corretos. O princípio marxiano da
desigualdade
atinge nesse domínio plena validade: é definitivamente
necessário diferenciar os conflitos e as contradições socio-históricas que se
desdobram a si mesmas na realidade das formas ideológicas, através das
quais os homens vivenciam esses conflitos, tornam-nos conscientes e os
resolvem. (SZIKLAI, 1976, p. 130)
A ideologia liberal, na qual concorrem resquícios do Iluminismo e que está na
base das premissas falsas dos sociólogos vulgares, não pode ou não quer ver os
antagonismos que operam na vida social. Dessa forma, o progresso é definido como
“não contraditório” e “avança numa avenida reta desde o começo do mundo até o
seu fim e, especialmente, desde a burguesia liberal até o socialismo” (LUKÁCS, 1981,
p. 69). O momento de revolta que, para Lukács, é imprescindível e toma corpo numa
crítica mais ou menos confusa, mais ou menos matizada do capitalismo não
encolhe na sua importância dentro do paradigma dos sociólogos vulgares, mas se
torna o puro índice do pessimismo e da falta de perspectiva:
E como esse caminho
deve
ser
tão linear
, incondicionalmente, a qualquer
preço, apesar de todos os fatos da vida econômica, política e cultural; como
para eles o progressismo da burguesia deriva, sem contradições, do caráter
progressista do desenvolvimento das forças produtivas, então toda
insurreição contra o capitalismo, contra a cultura burguesa, que não seja
socialista ou ainda não seja puramente socialista, deve ser punida com um
grande anátema. (LUKÁCS, 1981, p. 74)
A sombra do progresso
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Nesse sentido, como afirma Vedda, Lukács se contrapõe ao “deslumbramento
de muitos marxistas daqueles anos com as ‘ilusões do progresso’” (VEDDA, 2015, p.
26), o qual estende sua sombra sobre os acontecimentos culturais do século
anterior, mas se expressa, correlatamente, numa imagem do socialismo como uma
etapa histórica em que a síntese fora alcançada e o aspecto contraditório do
desenvolvimento finalmente superado uma imagem do socialismo trivialmente
otimista, não-dialética, autocomplacente e livre de conflitos” (SZIKLAI, 1978, p.
113)
39
. Frente a esse colosso da harmonia, toda crítica inclusive a crítica à
burguesia é denunciada como uma crítica ao progresso em geral, como
pessimismo, como pura reação” (LUKÁCS, 1981, p. 69)
40
. O esforço de Lukács
consiste então em mostrar as consequências metodológicas dessa forma de
pensamento por antinomias: “ou a afirmação incondicional ou a negação do
progresso” (BRENNER, 1991, p. 179), a qual ele designa como “proudhonismo”:
39
Esse é um outro capítulo dessa história, do qual não irei tratar. Fique, contudo, sugerido que existe
uma ligação entre essa discussão sobre o “triunfo do realismo”, que, no que toca a Lukács, trata
sobretudo de autores europeus clássicos, e a situação contemporânea da União Soviética. De fato,
esse paralelo é explicitado por ele em suas anotações autobiográficas e pode também ser recuperado
a partir de suas concepções sobre a contradição como sendo um fenômeno que também existe no
interior do socialismo (cf. LUKÁCS, 1965a, p. 118), o que seria inconcebível num registro stalinista:
“Expansão do campo de atividade, prolongamento dos conflitos ocorre quase imperceptivelmente,
ainda de forma alguma como virada direta e consciente contra o sistema stalinista, embora sua
estreiteza e rigidez burocráticas emerjam cada vez mais claramente nos debates (texto:
Tribuno do
povo ou burocrata
) Começo: diferenciação de Lênin contra unidade mecânica de Stalin. Do mesmo
modo: vem para o primeiro plano sempre com maior força o ‘triunfo do realismo’ de Engels contra
regulamentação da ideologia a partir de ‘cima’” (LUKÁCS, 2005a, p. 218). Essa forma de crítica
oblíqua do stalinismo no período moscovita por meio do tratamento de questões literárias e
filosóficas é comentada por Brenner (1991, p. 187-188), por Illés (1993, p. 251-252), bem como por
Sziklai (1978, p. 136).
40
Otimismo ou pessimismo eram termos correntes no debate soviético sobre o realismo. Como
esclarece Homero Freitas, o otimismo era considerado como uma expressão dessa etapa histórica
inaugurada pela Revolução socialista: “alguns críticos opunham o realismo socialista ao realismo
crítico ou burguês. Afirmavam que o realismo burguês tinha raízes em uma postura crítica, que
apresentava uma visão negativa da realidade. Já o realismo socialista, que devia refletir a realidade e a
mentalidade socialista, parte ‘de uma postura positiva em relação à nova realidade de uma sociedade
coletivizada. Por isso ele é fundamentalmente otimista, diz sim à vida, ao passo que o velho realismo
burguês era fundamentalmente pessimista e implicava frequentemente uma concepção doentia do
mundo’” (FREITAS, 2010, p. 160). São elementos do realismo socialista concebido nesses termos
tanto o herói positivo quanto o romantismo revolucionário. Sobre as concepções de romantismo
revolucionário em disputa no contexto soviético, ver: (MEIER, 2014, p. 140). Lukács, quanto a sua
posição nesse ponto, afirma o seguinte: rton Horváth destacou e nisto estava apoiado nos
fatos que nunca empreguei, nos meus trabalhos, a expressão ‘romantismo revolucionário’; segundo
ele, quando me ocupava de escritores socialistas (na época, tratava-se em especial de
O Don
silencioso
), escolhia apenas autores cuja orientação não era efetivamente típica da literatura soviética
e, portanto, careciam daquela função decisiva” (LUKÁCS, 2009, p. 31). Já em relação ao que afirma no
artigo
O romance como epopeia burguesa
, incluído nos
Moskauer Schriften
, sobre o herói positivo é
necessário reconhecer algo das suas ilusões quanto ao desenvolvimento do socialismo na União
Soviética, embora, como afirma A. Cotrim, ao aventar essa possibilidade para o romance soviético, o
sentido dessa previsão de Lukács não é o da “glorificação do proletariado [...] ou aquilo que se tornou
ampla e vulgarmente conhecido como ‘realismo socialista’” (COTRIM, 2009, p. 319).
Paula Alves
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Proudhon queria eliminar os “aspectos ruins” do capitalismo e conservar
apenas seus “aspectos bons”. Kirpotin quer realizar essa obra na história da
literatura. De acordo com ele, do progressista pode surgir o
progressista; do reacionário, o reacionário. Então, faz-se necessário
extirpar a metade dos clássicos cuja visão de mundo contém elementos
reacionários e uma obra pode ser considerada um fenômeno literário
autêntico ali onde expressa diretamente o que Kirpotin considera
progressista. Assim, como em Proudhon, os aspectos “bons” e “ruins” são
absolutizados, extraídos do espaço, do tempo e do contexto social.
(LUKÁCS, 1981, p. 119)
Com essa referência a Proudhon, na qual ecoam os escritos de Marx, Engels e
Lênin que polemizam contra esse autor, Lukács aponta para a perda de senso da
processualidade histórica, para uma “cegueira” frente à contradição do
desenvolvimento social, a qual, aliás, não cessaria com o fim do antagonismo de
classe. Nessa toada da mera repetição de palavras caras à tradição esclarecida como
“progresso”, “reação”, “caráter popular” num contexto em que estas haviam
ganhado um outro peso histórico, elas se convertem em uma apologia trivial do
capitalismo
41
; “passa a absurdo a razão, o benefício a praga”
42
, palavras do
Fausto
de Goethe que, para Lukács (1981, p. 112), “demonstram sua validade perante cada
grande virada histórica”:
Essa cegueira frente à desigualdade, frente o caráter contraditório do
desenvolvimento capitalista é um resíduo menchevista: a valoração
menchevista errônea e unilateral do papel da burguesia na revolução
burguesa persiste na forma da sobrevalorização de seu papel na cultura e
no desenvolvimento literário na era capitalista. (LUKÁCS, 1981, p. 129)
Pois, se o desenvolvimento desigual da sociedade burguesa é complexo, ele
vem à tona de maneira ainda mais complicada nas questões ideológicas (cf. LUKÁCS,
1981, p. 122). Tanto mais nítidas são, portanto, as insuficiências da sociologia
vulgar, um “proudhonismo literário” (LUKÁCS, 1981, p. 122), na sua abordagem
dessa ordem de problemas:
a desorientação da sociologia vulgar diante das contribuições intelectuais
mais significativas da primeira metade do século XIX especialmente Hegel
intensifica-se ainda mais perante a relação mais complexa entre visão de
mundo subjetiva e o teor objetivado na obra (BRENNER, 1991, p. 183).
41
Há, aqui, um outro entrecruzamento de perspectivas históricas, como bem nota Sziklai, e que tem a
ver com a
debacle
corporificada pelo fascismo: “Nos trabalhos de Lifschitz vinha para o primeiro
plano o problema do desenvolvimento da sociedade capitalista. ‘Qual é a essência dessa discussão?’ É
que Knipovitch, Kirpotin, Ermilov, Serebryanskiy glorificavam a democracia burguesa progressista, o
humanismo numa era em que a burguesia havia ajudado
o fascismo
a chegar ao poder. A rejeição
categórica dos ideais burgueses é, em Lifschitz e em Lukács, penetrada pela profunda convicção de
que na era do imperialismo a burguesia não é capaz, como resultado do pleno desenvolvimento do
declínio social-ideológico, de produzir novos valores espirituais, que pudessem estar a serviço da
grande arte realista” (SZIKLAI, 1978, p. 102).
42
Tradução de Jenny Klabin Segall (cf. GOETHE, 2004, p. 191).
A sombra do progresso
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Seguindo então o argumento de Lukács, que considera a literatura, bem como
as outras formas ideológicas, um fenômeno marcado pelo “espaço”, pelo “tempo” e
pelo “contexto social” específico em que ela surge, não é possível, ao analisá-la,
utilizar um método que joga de maneira desajeitada com dualismos, num
malabarismo relativista que solapa as diferenças entre os autores na tentativa de
tampar as lacunas causadas pelo apagamento do caráter contraditório do
desenvolvimento social:
Essa concepção aparece geralmente com relação a escritores que possuem
uma concepção de mundo reacionária. Essa visão de mundo é criticada de
forma demolidora e então se explica sem qualquer coerência que uma
“maestria” enigmática do escritor produziu uma grande obra de arte. Esse
dualismo eclético
se mostra entre nós de uma forma tão nítida que certos
“teóricos” inclusive acreditam que o escritor precisaria apenas adotar sua
visão de mundo como algo pronto e acabado, e o leitor experimentaria o
contentamento de reconhecer em uma expressão artística algo já sabido.
Em ambos os casos, surgem esquemas mortos. Somente são de fato
reconhecidos aqueles escritores cuja visão de mundo é progressista,
isto é,
no mundo capitalista, democrática ou liberal
. Se um escritor reconhecido
que pertence a essa orientação é demasiado importante ou demasiado
complexo para ser encaixado nesse esquema, então ele é retocado de
maneira correspondente. Assim, em tais considerações literárias,
desaparecem as contradições
na personalidade de Heine, sempre
destacadas por Marx e Engels, e nos deparamos com uma imagem de Heine
que se distingue daquela de Victor Hugo apenas pela língua ale. As
expressões que se tornaram
slogans
“caráter popular”
[
Volkstümlichkeit
], “humanismo” etc. tem por consequência que é
possível distinguir uma caracterização de Homero daquela de Saltykóv-
Schedrin atentando-se ao nome dos autores. (LUKÁCS, 1981, p. 128-129;
grifos meus)
A contradição do desenvolvimento social nos romances de Balzac
Esses desenvolvimentos na filosofia, que deram de frente com o problema da
contradição nessa nova etapa de construção da sociedade burguesa após a
démarche
da Revolução Francesa, encontram também um paralelo na história da
literatura. Se a
Fenomenologia do espírito
de Hegel tem em comum com o
Fausto
de
Goethe a representação do progresso “que se realiza em um grande processo
unitário, mas que é, ao mesmo tempo, o calvário das aspirações mais nobres, dos
ideais mais sublimes, dos indivíduos mais grandiosos, que foram arruinados”
(LUKÁCS, 1981, p. 82), Balzac é, por sua vez, “o grande fenômeno literário paralelo
a Fourier”:
Reconhecidamente, Balzac não era socialista, mas, ao contrário, um realista
legitimista. Contudo, quando observamos a obra artística de Balzac, -se
ali uma forma de crítica social extraordinariamente aparentada a de Fourier.
Também em Balzac, as contradições da vida capitalista são investigadas até
suas últimas profundezas; são descobertas contradições, cujo caráter
irresolúvel nos marcos do capitalismo emergem de maneira profundamente
convincente da representação balzaquiana. Em termos pessoais, resulta daí,
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para Balzac, um pessimismo e, como ele o expressa com frequência,
observadores superficiais como E. Knipovitch o consideram “sem
perspectiva”.
Não se trata, contudo, daquilo que Balzac pensava, mas daquilo que sua
obra representa objetivamente. Ele não pôde jamais dar aquele salto, com o
qual Fourier desatende o abismo entre a sociedade de classes em
dissolução e a utopia socialista. Mas sua obra inteira não é senão que um
enorme impulso para esse salto. Essa obra mostra, como resultado da
representação múltipla e profunda, o quanto a marcha da própria história
se encontrava prestes a dar esse salto.
Esse impulso para frente, para além da sociedade capitalista (e, ao mesmo
tempo, para além dos preconceitos do autor) que caracteriza a obra de
Balzac é o fundamento para o paralelo com os socialistas utópicos.
(LUKÁCS, 1981, p. 117)
Essa é uma comparação insólita e, ao mesmo tempo, bastante reveladora. Por
um lado, dela se desprende o problema da falsa consciência, que, como vimos, é um
momento de toda produção intelectual pré-marxista; daí que, para Lukács, seja
“impensável no quadro das possibilidades do romance burguês uma representação
sem ilusões e sem utopia” (BRENNER, 1991, p. 154). Assim como na análise das
ideias sobre o progresso, também no caso de Balzac, ele se detém no “impulso para
a frente”, isto é, no “salto” para o futuro que, implodindo os horizontes do próprio
escritor, ganha forma na crítica social de seus romances. Nesse sentido, uma
convergência entre dois autores que, partindo de posições diferentes, reagem a uma
mesma realidade, alinhavada pelo clima pós-revolucionário. Por outro, chama a
atenção, se nos atermos justamente às posições diante do futuro que acabamos de
glosar, que Balzac seja um
pendant
literário de Fourier e não de um Carlyle; afinal, a
crítica do presente que ambos patenteiam e que porta uma “ameaça do futuro” toma
não em uma projeção fantasiosa de um outro mundo, desconhecido, mas em um
sentimento nostálgico em relação ao passado. Trocando em miúdos, por que Balzac
não foi um crítico romântico do capitalismo?
De fato, aqui e ali, e sobretudo em
A polêmica entre Balzac e Stendhal
, Lukács
explora as afinidades mais ou menos eletivas entre o escritor francês e os
românticos. Entretanto, curiosamente, a mola dessa comparação não é a base
reacionária comum, mas uma dificuldade formal que se coloca para o romance
moderno: não sendo possível lidar com a crescente contradição da vida burguesa
por meio da “velha pureza e simplicidade da forma clássica” (LUKÁCS, 1964a, p.
104), é indispensável empregar novas técnicas que permitam a representação
adequada da espessura histórica. Daí que o romance moderno possua uma certa
A sombra do progresso
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vocação analítica, que se realiza por meio da elaboração polifônica dos detalhes
(LUKÁCS, 1964c, p. 36)
43
. Por isso, Balzac sabe ser impossível pintar a vida
contemporânea tal como ele se propõe a fazer no prefácio de
A comédia humana
por meio de traços ligeiros, indicando simplesmente a classe social a que pertencem
seus personagens, ou mencionando um determinado traço característico, recorrente,
como se isso fosse iluminar todo o espectro de suas motivações e tornar
compreensíveis as suas ações
44
. Ele tem que se haver, assim, com as nuances do
indivíduo, com sua fisionomia particular, que não pode mais ser deduzida a partir
de seu estrato social.
Lukács nota, contudo, que essa tendência para a análise, cuja supressão
artificial traria consigo o “empobrecimento do conteúdo” (LUKÁCS, 1964c, p. 36),
provoca no limite a uniformização de toda a estrutura composicional da obra (cf.
LUKÁCS, 1964c, p. 37). Desse impasse ou empobrecer o conteúdo pela falta de
análise, ou homogeneizar por meio da (incontornável) análise a estrutura da obra
resultam assim “as grandes lutas estilísticas do século XIX” (LUKÁCS, 1964c, p. 37).
Ora, essa luta estilística é a outra face da tensão que Lukács identifica entre o
romantismo e o realismo (ou realismo crítico, tal como ele se refere ao realismo
dessa época) no desenvolvimento literário a partir do século XIX. Sendo o
romantismo um “produto orgânico, necessário da nova vida que emerge” (LUKÁCS,
1964b, p. 104), o embate com ele se na teoria e na práxis de todos os escritores
relevantes do período (cf. LUKÁCS, 1964b, p. 104). Este é um problema estilístico
que se entrecruza de uma maneira direta com a visão de mundo, nos termos da
crítica romântica do capitalismo:
Trata-se aqui de uma questão central de visão de mundo e de estilo de
todo o século XIX: a do arrazoamento com o romantismo. Nenhum grande
escritor que atuou depois da Revolução Francesa poderia escapar desse
43
A elaboração polifônica dos detalhes aparece como algo incontornável. O escritor é
compelido
pelas circunstâncias históricas e sociais a “fundir em cada detalhe todos os pontos de vista” , a
trabalhá-los, portanto, de modo polifônico, para que o “todo do mundo representado seja tornado
verdadeiro e inteligível” (LUKÁCS, 1964c, p. 36). Desse modo, cada “fenômeno singular” é complexo
tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da forma, porque ele se “desdobra diante de nós
explicitamente, na totalidade de suas determinações”. É assim que se expressa, nesse tipo de
representação, a “realidade multifacetada” (LUKÁCS, 1964c, p. 38).
44
É o que ele expõe em seu ensaio sobre
A cartuxa de Parma
, de Stendhal, contrapondo-se ao
método literário dos séculos XVII e XVIII: “não creio que a pintura da sociedade moderna seja possível
através do procedimento severo da literatura dos culos XVII e XVIII. A introdução do elemento
dramático, da imagem, do
tableau
, da descrição, do diálogo me parece indispensável na literatura
moderna” (BALZAC, 2000, p. 201). Lukács cita esse mesmo trecho em
A polêmica entre Balzac e
Stendhal
(LUKÁCS, 1965a, p. 492).
Paula Alves
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debate, que começa já no período weimariano de Goethe e Schiller e atinge
seu ápice literário na crítica de Heine ao romantismo. O problema
fundamental desse debate consiste em que o romantismo enquanto
corrente não foi somente uma orientação literária. Na ideologia
[
Weltanschauung
] romântica ganhou expressão uma revolta espontânea e
profunda contra o capitalismo em desenvolvimento acelerado, por certo em
uma forma extraordinariamente contraditória. Justamente os românticos
extremos se tornaram reacionários feudalistas ou obscurantistas cristãos.
Mas no fundo do movimento havia essa rebelião espontânea contra o
capitalismo. E para os grandes escritores dessa época, que, por um lado,
não podiam ultrapassar o horizonte burguês, e por outro, aspiravam a uma
imagem do mundo compreensiva e verdadeira, resultou daí um dilema
peculiar. (LUKÁCS, 1965a, p. 492)
Mais adiante Lukács especifica que o romantismo “no sentido amplo da palavra,
[...] é antes uma tomada de posição quanto ao desenvolvimento pós-revolucionário
da sociedade burguesa” (LUKÁCS, 1965a, p. 502). Sendo assim, como explica
Vedda, o romantismo é nesse contexto pós-revolucionário uma parada obrigatória
para se compreender as “condições da modernidade” (VEDDA, 2015, p. 28). Nessa
encruzilhada se encontrava também Balzac, um daqueles escritores nos quais essa
recepção do romantismo e, ao mesmo tempo, a tentativa de uma superação ocorreu
da forma mais ampla e consciente” (LUKÁCS, 1965a, p. 493). Lukács fala aqui em
“tentativa”, pois nenhum dos grandes escritores dessa época alcançou realizar essa
“síntese” de maneira plena, isto é, “sem restos e sem contradições” (LUKÁCS, 1965a,
p. 492); a questão do romantismo tem assim certo parentesco estrutural com a da
falsa consciência no pensamento pré-marxista
45
(do que poderíamos concluir que ela
também alude, no limite, ao “triunfo do realismo”). Assim, é possível identificar
pegadas românticas tanto na construção das obras de Balzac, no seu método
artístico, afeito à análise, bem como no ódio que ele devota ao capitalismo. Talvez
por isso, em alguns manuais literários, ele encontre um lugar singelo entre os
representantes dessa escola; talvez por isso, “a despeito de toda a crítica”, ele tenha
sido admirado pelos românticos de peso, “a partir de Chénier e Chateaubriand”
(LUKÁCS, 1965a, p. 493).
Mas se tivesse sido de fato um romântico, acresce Lukács, Balzac jamais
poderia ter compreendido o seu próprio tempo, seu “movimento para frente”
(LUKÁCS, 1965a, p. 492), de modo que é possível notar diferenças decisivas em
seus pontos de contato, isto é, tanto na questão do estilo quanto na sua concepção
45
Há, nesse entremeio, uma impossibilidade objetiva, a qual essa falta simboliza: todos esses
escritores, afirma Lukács, “criaram suas maiores qualidades literárias a partir das contradições da
situação social e espiritual que para eles eram
objetivamente irresolúveis
, e ainda assim eles as
levaram até o final corajosamente” (LUKÁCS, 1965a, p. 492; grifos meus).
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de mundo. Isso significa, quanto à sua composição, que em seus romances a vocação
analítica convive, ou melhor, complementa, uma “tendência apaixonada ao essencial,
o desprezo apaixonado por todo realismo apequenado” (LUKÁCS, 1965a, p. 494). O
imbricamento entre essas duas vertentes aparentemente contraditórias confere, por
sua vez, certa peculiaridade ao que Balzac entende por “essencial”: ele o considera
“de modo muito mais complexo, intrincado, muito menos condensado em alguns
grandes momentos do que Stendhal” (LUKÁCS, 1965a, p. 494). Essa diferença se
ramifica e opõe o princípio composicional de ambos, ecoando sobre todo o conjunto
dos “problemas específicos”:
O mundo de Balzac é, realmente, como o de Hegel: um círculo que é feito
de uma porção de círculos.
O princípio de composição de Stendhal é completamente oposto. Também
ele faz, como Balzac, o esforço de figurar a cada instante um todo, mas a
cada instante ele quer forçar os momentos essenciais de uma época (da
Restauração em
O vermelho e o negro
, do Absolutismo provincial
[
Kleinstaat-Absolutismus
] italiano em
A cartuxa de Parma
, da Monarquia de
Julho em
Lucien Leuwen
) na biografia de um certo tipo de pessoas.
(LUKÁCS, 1965a, p. 497)
Assim Lukács descreve duas posições opostas em relação aos aportes dos
românticos; se Balzac se coloca de modo consciente em relação a essa tradição de
pensamento, Stendhal passa ao largo dela, como um “amargo inimigo” (LUKÁCS,
1965a, p. 506), e busca dar continuidade “de maneira consequente e interessante à
ideologia pré-revolucionária do Iluminismo” (LUKÁCS, 1965a, p. 503).
No que concerne à sua visão de mundo, essa tentativa de superação do
romantismo da parte de Balzac se manifesta na especificidade da sua tomada de
posição, que também tem consequências para a fatura de seus romances, frente ao
caráter do desenvolvimento capitalista:
[...] Balzac não se contenta em reconhecer e figurar as situações sociais
trágicas ou tragicômicas aqui esboçadas. Ele vê e alcança mais longe. Ele vê
que o fim do período heroico do desenvolvimento burguês francês significa
ao mesmo tempo o começo da grande ascensão do capitalismo francês
(LUKÁCS, 1965a, p. 474).
Enquanto um momento de sua concepção de mundo, a atitude romântica
permite que Balzac expresse um desacordo com o estado das coisas, expondo seu
caráter hediondo, indicando a profundidade da perda que o estiolamento da ilusão
na sua melhor forma representa para toda a humanidade. Na medida, contudo, em
que figura o caráter necessário desse desenvolvimento, Balzac abandona a
fantasmagoria qualitativa que se desprende da idealização do passado e seus
valores, sendo capaz de mostrar os nexos entre este e a nova realidade ele figura,
Paula Alves
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desse modo, o presente como história, configurada socialmente pela ação humana:
A experiência mais profunda de Balzac foi a da necessidade histórica do
processo histórico, a necessidade histórica do ser-precisamente-assim do
presente, embora justo ele tenha visto com mais clareza do que qualquer
outro antes dele a rede infinita de acasos que forma o pressuposto dessa
necessidade. (LUKÁCS, 1965b, p. 99)
Com isso, não desaparece o sentimento do fim do mundo: em
Os camponeses
(cf. LUKÁCS, 1965a, p. 453), um dos romances utópicos de Balzac, a apreensão de
que a marcha civilizatória, o aburguesamento da sociedade, significa o fim da cultura
ganha até mesmo um tom elegíaco. Daí provém o pessimismo que tanto incomodava
aos sociólogos vulgares, mas que, para Lukács, tem uma parcela de culpa no que diz
respeito à força artística desse escritor:
Por isso, o ódio desesperado de Balzac contra o capitalismo não é “sem
perspectiva”, como acredita Knipovitch, mas autenticamente progressista:
ele eleva a um alto nível do conhecimento figurado, do desmascaramento
artisticamente rematado, a profunda decepção das mais amplas camadas do
povo trabalhador com os resultados sociais da Revolução Francesa, da
revolução burguesa, que “sem dúvidas libertou o povo dos grilhões do
feudalismo e do absolutismo, mas forjou para ele os novos grilhões do
capitalismo e da democracia burguesa”. Esse movimento popular grande e
em última instância progressista ganhou em Balzac sua expressão
artística mais elevada, assim como em Fourier a sua expressão intelectual
mais elevada. Na medida em que Balzac, nessa crítica, nesse ódio
clarividente, nesse desvelamento multifacetado e abrangente do
capitalismo, figura as dores e os desejos mais profundos de um movimento
popular poderoso e em última instância progressista, ele se tornou um
artista progressista “graças” ao seu anticapitalismo “pessimista”, romântico.
(LUKÁCS, 1981, p. 91-92)
Na verdade, a “tragédia da cultura”, que aparece com força particular nos
romances utópicos de Balzac, não representa senão a outra face da experiência da
necessidade histórica; a queda da nobreza, sua “degradação interna nesse processo”
(LUKÁCS, 1965a, p. 466) com o que se coloca, para ele, o problema da
subsistência da cultura e da civilização é um momento necessário desse
desenvolvimento maior e que lhe infunde certa desconfiança:
A grandeza da concepção de
A comédia humana
tem por base a visão
profunda da unidade desse desenvolvimento. Revolução, Napoleão,
Restauração, Monarquia de Julho Balzac isso como meras
etapas
de
um grande processo unitário e contraditório, do processo de capitalização
da França em sua mistura indissociável de irresistibilidade e hediondez.
(LUKÁCS, 1965a, p. 466)
Compare-se isso então com o que Lukács constata a respeito do romantismo
alemão no prefácio para esse volume de suas obras completas: “Ele amputa da
história a categoria do progresso: histórico é apenas o que cresce ‘organicamente’,
toda reviravolta, até mesmo toda ação consciente com o fim de mudar a realidade
A sombra do progresso
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seria anti-histórica” (LUKÁCS, 1965c, p. 10)
46
. É porque Balzac figura essa mistura
indissociável” entre necessidade e horror no mecanismo do capitalismo,
perscrutando seu caráter profundamente social, que seu pessimismo romântico não o
converte em um romântico propriamente dito e a crítica do presente contida em suas
obras se aproxima daquela dos socialistas utópicos, embora Balzac não fosse, longe
disso, socialista. Para Lukács isso não era, como ficou exposto, necessário.
Por fim, cabe mostrar um dos limites nessa aproximação entre o artista e o
ideólogo, que tem que ver, por um lado, com a especificidade da literatura enquanto
forma de representação da realidade e por outro, com o tempo do mundo, com o
seu curso. Tanto Balzac quanto Fourier viveram no “período do socialismo utópico”,
de modo que pode-se conceder a Balzac um milionário pleno de entendimento,
assim como a seu contemporâneo mais velho, Fourier” (LUKÁCS, 1965a, p. 451).
Mas, enquanto este viveu em uma época em que o movimento dos trabalhadores mal
tinha despontado, “Balzac fantasia as saídas utópicas para salvar o capitalismo no
tempo de seu avanço tempestuoso” (LUKÁCS, 1965a, p. 451). Isso confere uma
outra torção para as utopias do escritor francês, cujo caráter de autossabotagem é
em certo sentido mais pronunciado:
E por mais que nesses romances Balzac, contra seu hábito, queira dobrar a
realidade de modo pedagógico-propagandista em um sentido não típico, o
grande realista, o observador incorruptível aparece não obstante por toda
parte e acentua desse modo as contradições presentes de qualquer forma.
(LUKÁCS, 1965a, p. 450)
Mais do que essa matéria histórica que se apresenta com uma diferença de
grau, o que vale dizer que na realidade havia se acirrado o desenvolvimento
contraditório característico da modernidade burguesa, e isso certamente não deixa
de ecoar na obra de Balzac, a perspectiva deste é qualitativamente diferente da de
Fourier porque, além do mais, em virtude de seu
tier
, “ele se viu obrigado a
figurar
os milionários” (LUKÁCS, 1965a, p. 451; grifos meus). A figuração, dirá
46
Nesse prefácio, escrito em 1964, Lukács é bem mais contundente em sua crítica ao romantismo e
os matizes que podemos notar a esse respeito nos
Moskauer Schriften
desaparecem; compare-se
nesse sentido a análise de Carlyle nessa obra, glosada na seção anterior, com o seguinte trecho:
“contudo, a ponta de uma tal crítica sempre quebra, porque a dinâmica das contradições nos
românticos não aponta para o futuro (como é o caso, por exemplo, dos grandes utopistas do calibre
de Fourier ou Owen), mas quer sempre girar para trás a roda da história e joga contra o presente a
Idade Média, o Antigo Regime, joga contra o capitalismo a simples circulação de mercadorias. Assim
surge literariamente o verdadeiro romantismo, de Chateaubriand passando pela escola alemã
romântica até Vigny ou Coleridge; da mesma forma, social-economicamente, em Sismondi, em Cobbett
ou no jovem Carlyle” (LUKÁCS, 1965c, p. 12).
Paula Alves
218 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022
Lukács, “é extraordinariamente característica para a contradição da utopia
balzaquiana”:
Os heróis de ambos os romances, doutor Benassis e ronique Graslin (
O
cura da aldeia
) são penitentes. Ambos cometeram um grande pecado em
suas vidas, ambos arruinaram assim sua felicidade pessoal; ambos veem
como encerrada a própria vida, veem sua atividade como penitência
religiosa apenas sobre esse fundamento o grande realista Balzac
conseguiu imaginar pessoas que são inclinadas e apropriadas para tornar
real sua utopia. (LUKÁCS, 1965a, p. 451)
Um fundamento que, como se vê, põe em xeque a viabilidade de seu plano
utópico (uma autocrítica inconsciente, dirá Lukács).
Dada a especificidade da forma literária, Balzac não se viu forçado a elevar ao
nível da abstração essas figuras nas quais se condensam sua idealização de uma
outra sociedade. Essa necessidade não diminuiu em nada a grandiosidade da crítica
social elaborada por Fourier, cuja genialidade Lukács não cansa de ressaltar nos mais
diversos contextos. Nisso reside, como vimos, seu parentesco com Balzac, que não
se resume de modo algum a generalidades” e “se estende da sátira e da ironia até
importantes correspondências no conteúdo” (LUKÁCS, 1981, p. 117). No entanto,
parece acertado dizer que o pendor para a abstração cobrou seu preço no que diz
respeito ao visionamento da sociedade ideal, isto é, à dicção da utopia. Balzac
captura e representa as contradições mesmo aquelas relacionadas à ruína da
cultura na sociedade burguesa na forma de tipos humanos concretos, com suas
paixões individuais que, ao serem postas no movimento das relações que articulam a
trama do romance, transbordam os limites do meramente individual. Assim, as
tentativas de uma resolução pela verve utópica se chocam com frequência com uma
impossibilidade imanente, a qual é um resultado do processo consequente de
figuração artística e que problematiza, desse modo, as aspirações do escritor
igualmente encarnadas em suas obras. Essa relação tensa de forças que se
contrapõem, se complementam e por vezes se sobrepõem
47
é uma possibilidade de
realização do “triunfo do realismo” que se coloca de modo especial para a literatura,
a qual possui uma margem de manobra maior do que outras formas ideológicas:
47
Esse é o caso de Balzac: “O triunfo do realismo significa, então, em escritores do tipo Balzac-Tolstói
que na sua visão de mundo (em si largamente mesclada com elementos reacionários),
o momento de
crítica do capitalismo
se torna preponderante em relação à utopia reacionária. A despeito das
tendências que apontam para o passado, que pertencem ao declínio, -se até mesmo de maneira
nítida onde o velho (os restos feudais) são mantidos, desenvolvidos, tornados ainda mais sujos pela
capitalização” (LUKÁCS, 1981, p. 136).
A sombra do progresso
VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 182-221 - mar. 2022| 219
Mas, em si mesmo, o espaço livre, dentro do qual mesmo a mais destemida
honestidade [
Aufrichtigkeit
] artística não conduz a uma ruptura integral e
aberta com a própria classe, à necessidade de transição para o
proletariado, é incomparavelmente maior do que nas ciências sociais. A
literatura é, de um ponto de vista imediato, a representação de homens e
destinos singulares que apenas em última instância tocam as relações
sociais da época e, sobretudo, não precisam necessariamente mostrar uma
conexão direta com a oposição burguesia-proletariado. (LUKÁCS, 1971, p.
266-267)
Por causa da dialética imanente à obra, na qual são figurados de modo sensível
personagens e situações típicos, os preconceitos, as ilusões, as utopias (reacionárias
ou não) tendem a se expressar de uma maneira diferente daquela na qual o autor
empírico as expõe quando as defende em escritos de cunho mais teórico. Assim,
quando K. Brenner parafraseia o “triunfo do realismo” em sentido lato como um
“triunfo da figuração” (BRENNER, 1991, p. 134), ela ressalta justamente esse
desdobramento da teoria de Lukács, que tem relação com a concretização, ao longo
dos anos 1930, da especificidade do objeto estético, e que leva também a um
apuramento de certas categorias fundamentais do realismo
48
. Mas essa é uma
outra história.
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Como citar:
ALVES, Paula. A sombra do progresso: Lukács, Balzac e as contradições do
realismo,
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 182-221, mar. 2022.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura
lukácsiana del
Doktor Faustus
de Thomas Mann
How to tell tragedy: on the Luckacsian reading of
Doktor Faustus
by
Thomas Mann
Guadalupe Marando*
Martín Salinas**
Resumen: El artículo indaga en el tratamiento de
la problemática del artista moderno en la obra de
Thomas Mann, específicamente, en el análisis
ciertos motivos presentes en narraciones y
ensayos y en la lectura propuesta por György
Lukács de la novela Dr. Faustus, de 1947. Para
Lukács, el abordaje parte de la problemática del
artista ingenuo y del artista sentimental
promovido por Schiller, y analiza, desde esa
perspectiva, la condición del artista en las
sociedades modernas y la relación que mantiene
con la historia y con cada presente histórico.
Palabras-claves: Realismo; artista; novela corta;
novela; marxismo.
Abstract: The article investigates the treatment
of the problem of the modern artist in the work
of Thomas Mann, specifically, in the analysis of
certain themes present in narrations and essays
and in the reading of the novel el Dr Faustus
proposed by György Lukács, from 1947. For
Lukács, the approach starts from the problem of
the naive artist and the sentimental artist
promoted by Schiller, and analyzes, from that
perspective, the condition of the artist in
modern societies and the relationship he
maintains with history and with each historical
present.
Keywords: Realism; artist; short novel; novel;
Marxism
I
Si, como cree Lukács, la novela
Doktor Faustus
(1947) de Thomas Mann es una
sistematización monumental de todos sus temas de juventud (LUKÁCS, 1969, p. 53),
ante todo los referidos al estatuto del arte y del artista, el último capítulo de las
Consideraciones de un apolítico
(1918), “Ironía y radicalismo”, constituye su versión
preliminar, módica y en clave ensayística. Allí enumera Mann los rasgos que definen la
especificidad y la condena del arte moderno, un arte sentimental, irónico, erótico,
modesto y melancólico (MANN, 1978, pp. 579-594). La afirmación de la vigencia del
diagnóstico schilleriano, según el cual el arte sentimental es el más afín a la moderna
subjetividad desgarrada y el más fiel a esa distancia respecto de la vida que ya no
* Doutora em Letras pela Universidad de Buenos Aires. Docente da Faculdade de Filosofia e Letras da
Universidade de Buenos Aires e do Instituto de Desarrollo Humano de la Universidad Nacional de
General Sarmiento.
E-mail
: mariaguadalupemarando@gmail.com.
** Doutor em Letras pela Universidad de Buenos Aires. Auxiliar docente de la cátedra de Literatura
Alemana, Facultad de Filosofía y Letras (UBA) e de la Universidad Nacional Arturo Jauretche (UNJ).
E-
mail
: jjmartinsalinas@gmail.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.650
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
de Thomas Mann
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 222-231 - mar. 2022 | 223
puede imitarse sin modalización, es para Mann el fundamento de su carácter erótico e
irónico. Como el Eros descrito por Diótima en
El banquete
, que no es hombre ni dios,
sino
daimon
que media entre hombres y dioses, el arte encuentra su lugar en esa difícil
equidistancia respecto de la vida sensual (cuyo punto más bajo es el amor a un cuerpo
bello) y del espíritu (cuyo punto más alto es el amor a la virtud). En la medida en que
no puede pertenecer de manera aproblemática ni a una ni a otro, o lo que es lo mismo,
en la medida en que no puede ser radical, el arte está destinado a la ironía, a la
distancia crítica de ambos extremos. De allí que al artista le estén vedados el gesto
dogmático y la pretensión didáctica del “literato de la civilización”, nombre que Thomas
Mann da a la posición radical y que enmascara el nombre del hermano Heinrich y el
de todo artista que, desconociendo su naturaleza híbrida y su posición intermedia,
toma partido. Obligado a la modestia, el artista problemático solo puede entregarse a
esa pasión modesta y moderada que, como escribe Schiller en
Sobre poesía ingenua
y sentimental
, acompaña la contemplación de lo que ya no somos, de la naturaleza y
de los niños, de aquellos a los que todavía se les permite ser ingenua y
espontáneamente: la melancolía.
En efecto,
Tonio Kröger
(1903), el Schiller de
Hora difícil
(1905) y Gustav von
Aschenbach de
La muerte en Venecia
(1912), las figuras artísticas más logradas y
representativas de la producción juvenil de Thomas Mann, corporizan sistemáticamente
estos rasgos; todos son irónicos y melancólicos, todos anhelan la comunión perdida
con los semejantes y los goces de los sentidos que se esfuerzan por reprimir, todos
aspiran o consiguen consagrarse a la obra al precio de una disciplina férrea que
debilita los cuerpos y los excluye de “la vida en su seductora banalidad” (2010, p.
257)
1
.
¿Qué sucede entre la sistematización ensayística de estas ideas en el último
capítulo de las
Consideraciones
y aquella otra, literaria y monumental, que hallamos
1
Las afinidades entre las concepciones juveniles de Thomas Mann y Lukács han sido suficientemente
señaladas. Es sabido que la tematización de la problematicidad del arte y de la tensión entre formas y
vida en
Tonio Kröger
fue una influencia decisiva para el autor de
El alma y las formas
, y que los ensayos
sobre Theodor Storm (1909) y Charles-Louis Philippe (1910) incluidos en esa compilación incidieron
directamente en el tratamiento que en
La muerte en Venecia
se da, respectivamente, al tema de la
disciplina vital y a la cuestión del rodeo por lo sensual al que está obligado el artista, imposibilitado de
cumplir con el ascetismo prescrito por Sócrates y exigido por el ideal del gran amor. El objeto de los
anhelos sin esperanza de Kröger y Aschenbach era ese mundo, perdido para siempre, en el que aún era
posible conciliar el arte con la actividad burguesa, cuyo último representante fue el Storm del joven
Lukács (cf. MARCUS-TAR, 1987, p. 12; 22; 29; TERTULIAN, 1980, p. 68-69).
Guadalupe Marando & Martín Salinas
224 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 222-231 - mar. 2022
en
Doktor Faustus
? Durante el difícil transcurso de la República de Weimar Thomas
Mann abandona sus posturas conservadoras, aristocráticas y nacionalistas en favor del
republicanismo y de una visión cosmopolita próxima a la que desde hacía años
defendía su hermano Heinrich. Luego llegarán el exilio de 1933 y el compromiso cada
vez mayor con la causa antifascista. La historia, que también es irónica, obligará a
Thomas Mann a convertirse en un “literato de la civilización”. En el plano literario, por
su parte, la producción novelística que había comenzado con
Los Buddenbrook
(1901)
y
Alteza real
(1909) continuará con
La montaña mágica
(1924), la saga de
José y sus
hermanos
(1933-1943) y
Carlota en Weimar
(1939), novelas que exhiben una
ocupación creciente con la historia, mientras que el trabajo con la narrativa breve, de
la que habían surgido Kröger y Aschenbach, se convertirá en un laboratorio en el que
Mann probará nuevas fórmulas para llegar finalmente a la conclusión que ilustra
Doktor
Faustus
y a la que nos predispone el ensayo que Lukács le dedica,
La tragedia del arte
moderno
: que el artista problemático, el artista típicamente moderno y burgués es el
único digno de representación trágica el diletante y el esteta ya habían merecido la
ironía explícita y el sarcasmo, y el artista ingenuamente integrado, el olvido;
2
que esa
condición es producto de una evolución histórica y social, y por lo tanto algo superable;
y que si se quiere permanecer fiel a la realidad ante todo a la alemana y al principio
antiutópico, no es posible imaginar un tipo de artista que, en la línea evolutiva del arte
burgués, supere al encarnado por Adrian Leverkühn (LUKÁCS, 1969, p. 113ss)
En el ensayo citado Lukács insiste principalmente en el segundo aspecto; allí
señala que los problemas relativos al artista y al arte que, en su juventud, Mann
abordaba de manera subjetiva, monotemática, psicológica y suprahistórica, se
presentan en
Doktor Faustus
en un marco históricamente concreto y plural (LUKÁCS,
1969, p. 58). Si Kröger y Aschenbach veían en su destino algo universalmente válido
e intemporal, Leverkühn, claramente situado en el tiempo por Zeitblom, es tentado
por un diablo plenamente consciente de la tarea específicamente moderna, del
programa antihumanista y anticlásico que intenta promover (LUKÁCS, 1969, p. 83). En
2
Prácticamente todos los relatos de Mann entre
Visión
(1893) y
La muerte en Venecia
giran en torno
de artistas o personajes con sensibilidad artística. Kröger, Schiller y Aschenbach constituyen la serie de
las figuras próximas a la sensibilidad del autor, mientras que el resto es objeto de una caracterización
mordaz. Son los diletantes, los decadentes y los estetas, que no sienten nostalgia por la vida que
desprecian y mantienen con el arte una relación parasitaria tal es el caso del narrador de
La muerte
(1897), del protagonista de
Decepción
(1898), del narrador de
El payaso
(1897), del Dedev Spinell de
Tristán
(1903) y del Sigmundo de
Sangre de Welsungos
.
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
de Thomas Mann
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 222-231 - mar. 2022 | 225
Doktor Faustus
se comprueba, entonces, la persistencia de la caracterización juvenil
del artista, al mismo tiempo que la toma de distancia respecto de esa figura a través
de la puesta en perspectiva histórica.
Un doble movimiento similar puede seguirse en algunos ensayos del exilio. En
el de 1937 dedicado a Schopenhauer, Mann insiste en su concepción de juventud
cuando compara la posición del artista con la del astro lunar; los antiguos, señala,
creían que la luna era sagrada “en su posición intermedia e intermediaria entre el
mundo solar y el terrenal”, siendo “el más impuro de los cuerpos celestes, pero el más
puro de los terrestres”. Ese “carácter mediador”, recuerda Mann, “es la fuente de su
ironía” (MANN, 1986, p. 35). En cambio, un ensayo anterior, de 1934, que registra el
impacto de su lectura del
Quijote
incluye una consideración histórica del estatuto del
artista, al mismo tiempo que su crítica. Luego de reivindicar la “dependencia” de
Cervantes de los poderes de su tiempo, dependencia cuya contracara positiva era la
integración, para siempre perdida, del artista en su comunidad, Mann describe y
condena la situación actual evocando los atributos de Kröger y Aschenbach: “hoy se
empieza con el genio, el yo, el espíritu y la soledad, y eso es enfermizo”; “los artistas
se han convertido en águilas enfermas gracias al proceso de solemnización que ha
sufrido desde entonces el arte y que de una manera desdichada ha elevado y llenado
de melancolía el oficio del artista, y también ha hecho solitario, melancólico e
incomprendido el arte” (MANN, 2002a, p. 103).
Como ya anticipamos, es posible interpretar la producción de
Novellen
de
Thomas Mann posterior a las
Consideraciones
a la luz de la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
. La serie de novelas cortas que comienza con
Señor y perro
(1919) y
culmina más allá de
Doktor Faustus
con
La engañada
(1955) puede verse como un
terreno en el que Mann ensaya soluciones alternativas a las ofrecidas en sus relatos
de artista anteriores, en el que juega, prueba y descarta con la libertad del que se
mueve tras bastidores. Allí no solo abandona la representación de artistas puros el
único exponente de este tipo es Anna, personaje secundario de
La engañada
sino
que además coloca en primer plano y experimenta con aquello que el artista debía
superar. Si la admiración no irónica de la naturaleza, la ingenuidad infantil y el amor a
un cuerpo bello sin sublimación por el arte solo podían ser objeto de la nostalgia del
artista, y por ello no ingresaban como elementos eficaces al relato, se vuelven ahora
temas posibles y productivos en
Señor y perro
,
Desorden y dolor precoz
(1925) y
La
engañada
, respectivamente. Sin embargo, esta tentativa de alejamiento del relato de
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artista convive con la persistencia de los motivos asociados a él, motivos que en
Doktor
Faustus
retornan con toda su fuerza. El Moisés de
La ley
(1943), escultor del pueblo
judío, es configurado de acuerdo con el modelo Kröger-Aschenbach: fruto de la unión
de la sensual princesa egipcia y el esclavo hebreo, su origen recuerda el doble linaje
de las primeras figuras artísticas de Mann; Moisés es, como ellos, melancólico y
distante, solitario y espiritual (MANN, 2010, p. 853-854). Anna, la artista de
La
engañada
, pertenece a la misma estirpe; es fría, reflexiva y melancólica, no puede,
como Kröger, valerse plenamente del cuerpo, y sus pinturas subliman las impresiones
sensoriales en figuraciones abstractas, matemáticas y ascéticas (MANN, 2010, p. 885-
889).
Desorden y dolor
precoz es probablemente la narración que mejor exhibe el
doble movimiento de persistencia de motivos juveniles y toma de distancia que luego
se verá en
Doktor Faustus
, con la ventaja adicional de que aquí se tematiza lo que en
la novela, de acuerdo con Lukács, aportará la perspectiva faltante en los primeros
relatos: la historia. La acción está, como pocas veces en la producción de
Novellen
de
Mann, claramente situada en el período de inflación posterior a la guerra. La época
deja sus marcas en las costumbres burguesas, que se han vuelto más relajadas, en el
deterioro de la casa patricia y en la ropa gastada de los personajes, convertidos en
“proletarios de mansión” (MANN, 2010, p. 643). El protagonista, Cornelius, es un
profesor de historia con rasgos de artista; prefiere la historia pasada, provista de la
coherencia y el carácter concluso de una obra de arte, por sobre la que está
aconteciendo, y ensaya las frases que espera pronunciar ante sus alumnos con el celo
de un actor. Con Kröger y Aschenbach comparte la melancolía, la reticencia a participar
de las alegrías mundanas y la inclinación a la muerte, cuya cifra reconoce en su
predilección por las épocas concluidas. Sin embargo, Cornelius reflexiona e ironiza
acerca de su desacuerdo con la vida y llega a reconocer en él “algo que no termina de
estar bien” (MANN, 2010, p. 648). No permanece, como Kröger, detrás de los cristales
viendo como los otros bailan, sino que atraviesa el salón y participa de esa fiesta en
la que “todo el mundo se tutea” (MANN, 2010, p. 657). A diferencia de los personajes
aislados de
La montaña mágica
, a quienes solo llegan los ecos lejanos del acontecer
histórico, Cornelius debe salir de su encierro y enfrentar el desorden de lo que
efectivamente está sucediendo, tan imposible de sistematizar como de detener. El
relato capta al protagonista en el momento en que cede a la intrusión de ese devenir
histórico y personal, justo cuando está a punto de comprender que es tan insensato
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
de Thomas Mann
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ignorar la historia que sucede y no se puede fijar, como el hecho de que su pequeña
hija está creciendo y no será ni pequeña ni suya para siempre.
Vistos como ensayos en relación con la problemática del artista, estos relatos
suponen a la vez un éxito y un fracaso: Mann podrá efectivamente tomar distancia de
su posición juvenil, pero ninguno de sus personajes alcanzará la estatura de Kröger y
de Aschenbach.
Doktor Faustus
es la lección que Mann extrae de este aprendizaje.
II
La sistematización literaria de los temas de juventud de Thomas Mann que Lukács
reconoce en la novela
Doktor Faustus
guarda una relación particular con la propia
sistematización que Lukács lleva a cabo en su tratado
La peculiaridad de lo estético
(1963).
Sobre todo si se tiene en cuenta que tal sistematización supone, en ambos
casos, un ajuste de cuentas con aquellas corrientes estéticas que influyeron en sus
respectivas obras. Si
Lotte en Weimar
(1939) representa, tal como sostiene Lukács, el
paso definitivo para el ingreso de la historia en la obra de Th. Mann (cf. LUKÁCS, 1969,
p. 45), en
Doktor Faustus
la periodización histórica alcanza una complejidad formal en
la que las mismas tendencias históricas son llevadas al plano crítico que Th. Mann le
adjudica a la novela como forma (cf. LUKÁCS, 1969, p. 95ss). También de 1939 es
El
arte de la novela
, ensayo en el que el impulso sentimental es considerado como la
expresión moderna de un arte para el que resulta constitutiva la instancia crítica que
supone la “conciencia creativa” (MANN, 2002b, p. 161). En
Doktor Faustus
, el
reconocimiento de los componentes históricos y críticos resultan inherentes al
desarrollo de la narración: el recuerdo del curso de la vida que sirve de objeto de la
narración (la vida del compositor Adrian Leverkühn) se entrelaza con el tiempo
histórico del mismo narrador en un presente que, en la medida en que aguarda por su
lector, se coloca en perspectiva
3
.
George Steiner ha resaltado la conjunción de intereses que vincula la crítica
ideológica lukácsiana a la praxis artística de Th. Mann; de acuerdo con el crítico francés,
3
“Desde el día en que comencé estas notas, casi ha transcurrido un año, y mientras escribía los últimos
capítulos entrábamos en abril de 1944. Naturalmente, por esa fecha, entiendo aquella en que mi
actividad se ejerce, y no la otra en que demi narración, y que se sitúa en otoño de 1912, veinte meses
antes del desencadenamiento de la otra guerra […]. Yo no por qué ese doble lculo cronológico
retiene mi atención, y por qué me he obligado a señalarlo […]. Hay un cruce muy singular de épocas,
por lo demás destinado a reunirse con un tercer periodo, en que el lector se dignará dar buena acogida
a mi relato […]” (MANN, 1951, p. 321).
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El asalto a la razón
(1954) “constituye el intento de un filósofo por resolver el misterio
que Thomas Mann noveen
Doktor Faustus
. ¿Cómo se desató la marea de oscuridad
sobre el alma germana?” (STEINER, 1969, p. 14). La compleja modalidad con la que
la obra vincula y representa de manera simultánea la antesala cultural de la barbarie
fascista y sus consecuencias le permite a Lukács ligar la evolución artística del autor
de
La montaña mágica
con lineamientos estéticos que resultarían fundamentales en su
Estética
: la crítica del realismo socialista de su periodo moscovita, enmascarada en la
crítica del naturalismo (que lleva a cabo en sus intervenciones en
Linkskurve
, a partir
de 1931), representaba ya la defensa de un realismo burgués que se proponía como
una productiva herencia literaria; en esa línea, su ensayo
A la búsqueda del burgués
(1945), ve en la obra de Mann la perspectiva de un realismo que, en virtud de su
“impronta fáustica” apunta más allá de los parámetros ideológicos burgueses que le
sirven de fundamento (cf. LUKÁCS, 1969, p. 48ss). Su
Estética
, orientada al análisis
histórico de los orígenes concretos de la praxis artística y de la experiencia estética,
así como a las potencialidades y límites históricos del arte burgués moderno, también
encuentra en la obra de Mann, y de un modo particular en su obra tardía, un
tratamiento que confirma la herencia burguesa sobre la que se construye su estética
marxista: se trata de la posibilidad de una obra en la que convergen tanto el ingenuo
carácter representativo de la sociedad burguesa a la que pertenece, como aquellos
motivos que exceden, en virtud de su consciente realismo, el marco ideológico burgués
del que parte (LUKÁCS, 1969, p. 68ss). A partir de esta cualidad, Lukács sostiene que
en la obra de Thomas Mann se ha hecho consciente el núcleo sociológico del
descubrimiento schilleriano de la esencia del arte moderno” (LUKÁCS, 1969, p. 21).
La referencia al pensamiento estético de Schiller no es casual. En los análisis
estéticos de Lukács previos a la composición de su
Estética
la figura de Schiller
representa un núcleo histórico problemático: por un lado encarna el eslabón necesario
que conduce a la periodización histórica del arte propia de la estética hegeliana (cf.
LUKÁCS, 1968, p. 195), por otro, y en la medida en que la defensa de la autonomía
del arte, en el contexto de una intensificada división capitalista del trabajo, acentúa la
aparente oposición entre arte y vida social, anticipa los principios filosóficos de
L’art
pour l’art
que surgen de las reflexiones estéticas de Schopenhauer, Kierkegaard y
Nietzsche. En el reconocimiento del núcleo sociológico del arte moderno que Lukács
le adjudica a Th. Mann también Schiller ocupa una posición germinal. Acomo en la
obra la aparente divergencia de épocas es superada a través del presente histórico de
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
de Thomas Mann
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la narración, la antinomia entre la conciencia sentimental de Zeitblom y el carácter
ingenuo de Adrian Leverkühn también es puesta en perspectiva histórica: la novela
como totalidad comprende, de este modo, un doble proceso de creación artística, en
la medida en que la obra del artista ingenuo (el
Canto de dolor del Doktor Faustus
) se
constituye como la materia del proceso de composición narrativa de Zeitblom.
En la novela de artista de Thomas Mann
Lukács reconoce una respuesta histórico-
literaria a la paulatina pérdida del sentido histórico que, a partir de la segunda mitad
del siglo XIX, desarrolla el irracionalismo filosófico; de este modo, el retorno de Mann
a las temáticas que lo ocuparan en su juventud, es interpretado como un modo de
conjurar, a partir de las exigencias del presente histórico, aquellas fuerzas demoniacas
que también ejercieran sobre el mismo Lukács una influencia significativa (cf. LUKÁCS,
1966, p. 402; LUKÁCS, 1969, p. 17ss; LUKÁCS, 1974, p. 107). Pero la superación
crítica de las tendencias irracionalistas que en Lukács se encuentra estrechamente
vinculada con la postulación de la alternativa representada por el eje “Lessing-Goethe-
Hölderlin-Büchner-Heine-Marx” (LUKÁCS, 1969, p. 50), en la novelística de Thomas
Mann cobra la forma de la tragedia. La perspectiva histórica que el ensayo
El arte de
la novela
introducía en la producción crítica de Th. Mann en torno al análisis de la
novela como el “producto democrático de la conciencia creativa” (MANN, 2002b, p.
161), se ve debilitada en los ensayos tardíos dedicados a Dostoievsky, Nietzsche y
Schiller, en los que se trasluce un tono idealista, por cuanto se encuentran dirigidos,
no al análisis de formas artísticas, sino a figuras problemáticas en las que la
enfermedad y el arte confluyen: Thomas Mann encuentra en Schiller, el “escritor
enfermo”
4
(MANN, 2002b, p. 321), el núcleo de aquel germen demoniaco que, nacido
del clasicismo alemán, deviene, a través de Schopenhauer, Kierkegaard y Nietzsche, en
una estética del genio, de la enfermedad como fuerza vital. La obra del novelista Mann
expresa su superación por cuanto expone un recorrido histórico que lleva al extremo
el carácter problemático del arte moderno. En efecto, la relación que la novela
establece entre la aparente indeterminabilidad artística de la música y las filosofías
irracionalistas se constituye como una problemática que contiene como complemento
una reactualización histórica: si la antítesis entre poesía ingenua y poesía sentimental
4
La “enfermedad” en Schiller se encuentra estrechamente vinculada a la reflexión filosófica referida al
componente pulsional del arte: Schiller “sentía el impulso del arte, oscuro y procedente del
subconsciente, como algo inhumanamente obsesivo y no quería entregarse a la fuerza creadora antes
de haber elevado lo instintivo a ley de la razón claramente consciente” (MANN, 2002b, p. 314).
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poseía en Schiller el germen de una superación ilustrada, el resultado de su
actualización histórica, esto es, la antinomia de las formas apolíneas y dionisíacas del
arte postulada por Nietzsche
5
, supone el advenimiento de una “neo-barbarie
consciente” (MANN, 1951, p. 466), respecto de la cual el humanismo ilustrado
representado por Zeitblom se encuentra indefenso (la relación histórica que la obra
establece entre la
Novena sinfonía
y la obra de Leverkühn traslada al ámbito de la
creación artística el desarrollo histórico de la crítica cultural). El mismo Zeitblom, quien
suscribe al carácter autónomo del arte y por ello rechaza de plano la perspectiva
sugerida por Leverkühn de “un arte que se tutee con la humanidad” (“el arte es espíritu
y el espíritu no debe sentirse comprometido con la sociedad, con la colectividad”),
llama la atención acerca de “la vecindad entre el esteticismo y la barbarie del
esteticismo como predecesor de la barbarie” (MANN, 1951, pp. 408s-470).
La sistematización que Lukács advierte en
Doktor Faustus
supone la puesta en
perspectiva de los presupuestos de los que parte: la superación de la representatividad
que adquiere el artista ingenuo en tanto condensación de fuerzas sociales que se
trasladan al propio material artístico, así como del carácter anacrónico de una crítica
que, si bien es capaz de reconocer lo inhumano que subyace al arte moderno, resulta
inoperante en cuanto a su función social, configura una novela en la cual, desde la
perspectiva de Lukács, el elemento crítico alcanza un grado de conciencia inédito en
la obra de Th. Mann. El ajuste de cuentas con aquellas fuerzas demoníacas afines a la
sensibilidad del joven Mann que Lukács reconoce en su obra tardía, y que en más de
un sentido refieren a su propio desarrollo teórico, en todo caso, confirma la toma de
posición subjetiva que, de acuerdo con su lectura, toda obra de arte contiene en su
misma objetividad: “Si el sentido de una narración no es un
tua res agitur
de la
realidad, no hay ninguna evidencia épica auténtica en el narrar” (LUKÁCS, 1969, p.
67).
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. Trad. Manuel Sacristán. Barcelona-
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5
Thomas Mann subraya la afinidad conceptual que vincula el tratado de Schiller con los postulados de
Nietzsche que estructuran
El origen de la tragedia
en su ensayo
La filosofía de Nietzsche a la luz de
nuestra experiencia
(1947): “lo dionisíaco, como constitución anímico-artística, es contrapuesto al
principio artístico de la distancia y la claridad apolíneas, de manera muy parecida a como Schiller
contrapone lo ‘ingenuo’ a lo ‘sentimental’ en su famoso ensayo” (MANN, 2000, p. 104).
Cómo contar la tragedia: sobre la lectura lukácsiana del
Doktor Faustus
de Thomas Mann
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Como citar:
MARANDO, Guadalupe; SALINAS Martín. Cómo contar la tragedia. Sobre la lectura
lukácsiana del
Doktor Faustus
de Thomas Mann.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2,
pp. 222-231, mar. 2022.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Avessos da dialética:
Adorno, Lukács e o realismo no século XX*
Averses from Dialectics: Adorno, Lukács and the realism in the twentieth
century
Leandro Candido de Souza**
Resumo: Com a publicação de A reconciliação
extorquida (1958), Theodor Adorno tornou
público seu desacordo com a interpretação da
literatura do século XX apresentada por György
Lukács em
Realismo crítico hoje
(1957).
Nucleada pela categoria do realismo, a contenda
explicitou o antagonismo existente entre as duas
filosofias: a ontologia do ser social do húngaro e
a dialética negativa do alemão. São precisamente
as causas e consequências dessa divergência que
o presente artigo tenta demonstrar.
Palavras-chave: Lukács; Adorno; realismo;
vanguarda; ontologia; dialética negativa.
Abstract: Since the publication of Extorted
reconciliation”
(1958), Theodor Adorno made
public his disagreement with the interpretation
of the literature from twentieth century by
György Lukács in his
The Meaning of
Contemporary Realism
(1957). Focused by the
realism
category, the struggle explained the
antagonism between the two philosophies: the
ontology of social being of the Hungarian and
German's negative dialectics. These are
precisely the causes and consequences of this
difference that this article attempts to
demonstrate.
Keywords: Lukács; Adorno; realism; avant-
garde; ontology; negative dialectics.
Ponto alto das discussões sobre a arte então nascente, a querela adorno-
lukácsiana, travada no crepúsculo dos movimentos históricos de vanguarda, revelou
um século XX rico não apenas em derrotas da perspectiva do trabalho, mas também
em perseguições às atuações contracorrentes, as quais muitas vezes implicaram um
enfrentamento desigual com as forças stalinistas. O estudo da cultura transformava-
se, assim, numa arena para espraiamento e resistência, por parte de intelectuais da
esquerda à direita, à bravata de ortodoxias e dogmatismos, assumindo importância
histórica não pela relevância dos nomes que envolvia, mas por sua contribuição
crítica aos descaminhos do marxismo.
Oscilando do elogio cuidadoso, ainda que reticente, como no caso de “Leitura
de Balzac”
,
em que Adorno reconhece a pertinência de algumas considerações
lukácsianas a respeito do realismo do escritor francês (ADORNO, 2009, p. 132-146),
* Publicado originalmente em
Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas
, n. 12, ano 6,
p. 65-85, out./2010.
** Doutor em história pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e pós-doutor pela Universidade
Estadual Paulista (Unesp FCL-Assis/Fapesp).
E-mail:
lecanza@yahoo.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.635
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 232-267 - mar. 2022 | 233
à crítica nem sempre bem-educada, a famosa querela deflagrou-se por definitivo com
o artigo de Adorno A reconciliação extorquida
1
de 1958, a respeito do ensaio de
Lukács
Realismo crítico hoje
2
publicado no ano anterior, que por sua vez recebeu
réplica lukácsiana no prefácio de 1962 à
Teoria do romance
e estendeu-se a a
redação da
Dialética negativa,
em que Adorno responde ao estudo de Lukács
Heidegger redivivus, de 1949.
Mais que diferentes apostas na literatura do século XX, a discussão pôs em jogo,
a partir de um núcleo de preocupações convergentes, as antinomias de dois
pensadores radicalmente opostos. Enquanto Lukács defendia com intransigência uma
literatura ancorada nos grandes conflitos morais da existência, Adorno, com sua
proposta de uma
dialética negativa
, dobrava-se à desqualificação ontológica
principiada por Kant ao defender o isolamento monadológico das formas artísticas.
Aqui, com a finalidade de estabelecer os aspectos fundamentais dessa polêmica
que continua, ainda hoje, a suscitar interesse, recompusemos sumariamente a estrutura
dos textos mencionados, obedecendo a sua cronologia e apontando, quando
necessário, para outros estudos, destacadamente os de Nicolas Tertulian (1985;
2007a), Miguel Vedda (2006) e Peter Bürger (1993).
Realismo crítico hoje
Desde a década de 1930, Lukács havia retomado seus estudos sobre arte,
brevemente interrompidos após a redação de artigos para o jornal do Partido
Comunista alemão
Rote Fahne
(1923). Naquele momento, sua conversão ao marxismo
já era definitiva devido aos seus trabalhos no Instituto Marx-Engels, durante seu exílio
em Moscou (1930-1931), ocasião em que tomou contato com os
Cadernos filosóficos
de Lênin e, especialmente, os
Manuscritos econômico-filosóficos
de Marx. O fato de,
nesta obra, arte e cultura figurarem como indissociavelmente atadas ao processo de
autoformação do gênero humano não sendo, portanto, reduzidas à expressão
ideológica de uma classe conduziu o filósofo a uma ruptura com seu pensamento
1
No original,
Erpresste Versöhnung
, publicado in
Der Monat
, n. 11, nov. 1958, e reproduzido em
Noten
zur Literatur
. Para o presente artigo, foi utilizada a tradução francesa de Sibylle Muller (“Une
réconciliation extorquée: a propos de la signification presente du realisme critique de George Lukács”),
cotejada com a de Andrés Vera Segovia para o espanhol (“Lukács y el equivoco del realismo”).
2
No original,
Wider das missverstandenen Realismus
, publicada pela primeira vez em italiano como
Il
significato attuale del realismo critico
, Einaudi, 1957, e traduzido para o português (da edição francesa)
por Ermínio Rodrigues.
Leandro Candido de Souza
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precedente, inclusive com sua obra introdutória no marxismo, a largamente difundida
História e consciência de classe
3
, de 1923.
Essa mudança se deu em uma década conturbada pela coexistência entre
nazismo e stalinismo e que em 1934 viu se realizar o I Congresso de Escritores
Soviéticos capitaneado pelas figuras de Máximo Gorki e Andrej Zdhanov no qual
se estabeleceu a doutrina panfletária do
realismo socialista
como padrão artístico-
metodológico reconhecido pela oficialidade revolucionária.
Justamente nesse momento histórico de fechamento dos horizontes, Lukács
se empenha na defesa do realismo. Porém, sua concepção de realismo
destoava completamente daquela forma defendida pelo stalinismo. Por isso,
Lukács se viu na contingência de fazer “citações protocolares” de Stalin como
expediente tático para fingir concordância com a nova linha vigente no campo
artístico. Em meio à sua rica argumentação, Lukács introduzia sub-
repticiamente algumas frases de Stalin […], que em geral não guardavam
maior relação com as ideias centrais do texto. Assim, ele fingia estar afinado
com a nova orientação. (FREDERICO, 1997, p. 24)
Podemos reconhecer sem muita dificuldade que, a partir da leitura dos
manuscritos marxianos de 1844, Lukács estabeleceu uma crítica veemente às
concepções artísticas não realistas e, concomitantemente, um afastamento da
oficialidade estética stalinista do
realismo socialista
. Foi, pois, a partir de tal leitura
que Lukács passou a insinuar um entendimento de arte e cultura inseridas na
autogênese do ser social, em um processo de relação seminal mútua entre sujeito e
objeto no curso da história, o que evidentemente não se precipitou da noite para o
dia.
Lukács dava assim os primeiros passos em uma linha que culminaria em sua
hercúlea
Estética
(1955-60, publicada em 1963), cujos apontamentos mais
fundamentais já estavam presentes em
Introdução a uma estética marxista
, de 1957;
o que não implicou a negação de autocríticas e correções ao longo de seu itinerário,
todo permeado pela ideia fundamental de uma relação indesatável entre
vida social
e
seus reflexos no plano
ideológico
.
O itinerário lukácsiano está marcado por uma rara coerência entre as ideias
e a vida do autor. Da indignação moral da juventude à tentativa de renovação
do marxismo ensaiada pelo incansável octogenário, uma perturbadora
coerência.
Pensamento vivido
, não por acaso, é o título de um de seus últimos
livros, uma longa entrevista em tom autobiográfico. (FREDERICO, 1997, p.
28)
A consideração ecoa palavras do filósofo brasileiro J. Chasin, que em 1982
3
Índice probatório de sua conversão teórica é o conhecido prefácio autocrítico redigido em 1967.
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 232-267 - mar. 2022 | 235
reconheceu que “dadas afirmações, concernentes a ter ele soçobrado aos limites do
seu tempo e situação, escondem, por algum motivo, que Lukács forçou a exploração
destes limites para muito além do que fez qualquer outro autor da época” (CHASIN,
1982, p. 56); ou mesmo o que foi dito por Adorno em “A reconciliação extorquida”:
“Ele ensaiou uma oposição tímida, atrofiada pela consciência de sua própria
impotência. Esta timidez não é um recurso tático. A personalidade de Lukács é acima
de tudo inquestionável” (ADORNO, 2009, p. 173).
Ocorreu, ao longo dos anos 1930, um aprofundamento ontológico do
pensamento de Lukács, ainda que carente de um projeto diretivo, o que se deu
após sua leitura de Nicolai Hartmann e Ernst Bloch (1961), na
Ontologia do ser social
.
São precisamente esses os traços gerais que fundamentam
Realismo crítico hoje
e sua
tônica na busca pela libertação do entulho zdhanovista.
Nessa obra Lukács opõe-se de maneira bastante explícita à desqualificação do
realismo como forma de valorização da
vanguarda
, bem como ao entendimento do
realismo socialista como superação do realismo burguês. Seu artifício é a utilização da
“concepção do mundo” como quesito avaliativo que responsabiliza o indivíduo quanto
às consequências de sua posição, decorrência da apropriação do conceito hegeliano
da “racionalidade do real”. Lukács afirmava, pela centralidade da concepção do mundo,
uma “razão no mundo” (1969, p. 30), portanto, uma nova forma de clivagem entre os
homens (entre o bem moral e o interesse da humanidade), que lhe serviu como ponto
de referência reflexiva.
É este elemento que nos revela a coesão interna e as bases sociais duma
unidade essencial, capaz de subsistir apesar das maiores divergências, desde
aquele que surge, para o escritor, da profundidade mais essencial da vontade
artística e que é, ao mesmo tempo, produto histórico das correntes
fundamentais do período em que vivemos. (LUKÁCS, 1969, p. 30)
E o próprio Lukács se adianta, assinalando que o estabelecimento da
concepção
do mundo
como critério para confrontação de tendências (realismo e antirrealismo,
vanguarda e decadência) esbarra em problemas na avaliação de obras concretas, ao
enquadrá-las em um ou outro polo da literatura que lhe é contemporânea. É essa
consciência que impõe ao crítico a concretude própria das obras, porém sem
necessariamente restringi-lo “aos critérios de ordem formal: maneira de escrever,
técnica literária, processos imediatos da realização” (LUKÁCS, 1969, p. 30).
Segundo o autor, só com esse esforço de mão dupla pode-se fugir a “analogias
de superfície”, agarrando a diferença entre uma
estagnação sem objetividade
e uma
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236 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 232-267 - mar. 2022
ordenação do essencial revelador
, o que não consiste em uma diferença técnica (de
escrita), mas de imagens do mundo comunicadas por meio das obras. Por isso é
forçoso notar que tal concepção do mundo é sempre tomada como subjacente ao
objeto estético
, nunca “às intenções conscientes do autor, nem à ideia que este tem
dos seus próprios escritos” (LUKÁCS, 1969, p. 36), uma vez que, para o grande artista,
o que importa é mimetizar o mundo, e não apresentar sua concepção subjetiva a
respeito dele.
Para Lukács, portanto, o mais importante na distinção qualitativa de objetos
artísticos é a forma como determinados produtos estéticos se relacionam com o
homem concreto, vinculando-se, em maior ou menor medida, à
humanitas
, critério
presente desde seus primeiros escritos marxistas sobre literatura da década de 1930
(
cf
. LUKÁCS, 1965).
O centro, o coração desta estrutura que determina a forma é sempre, em
última análise, o próprio homem. Seja qual for o ponto de partida duma obra
literária, o seu tema concreto, o objetivo a que ela visa diretamente etc., a
sua essência mais profunda exprime-se sempre por esta pergunta: O que é o
homem? […] Por muito fortes que sejam as suas convicções vanguardistas,
um escritor de talento não pode deixar de exprimir na sua obra, acerto
ponto, um
hic et nunc
de caráter concreto. (LUKÁCS, 1969, p. 36-39)
Os critérios estão bem colocados, contudo a confrontação, a relação de mão
dupla entre
concreto
e
abstrato
, as ilações e nuanças acabam abrindo espaço para um
enquadramento bívio: decadência vanguardista ou positividade realista, com uma
separação abissal fundamentada em uma reconciliação forçada” entre sujeito e
objeto, dirá Adorno entre
possibilidade abstrata
e
possibilidade concreta
, na qual a
elevação da primeira indica o “isolamento ontológico” do homem, e a da segunda, a
solidão como circunstância do indivíduo concretamente determinado.
Posto dessa forma, a vertente
realista
é a que busca o
caráter puramente humano destes personagens, aquilo que eles têm de mais
profundamente singular e pico, o que faz deles, no plano da arte, figuras
impressionantes nada de tudo isso pode ser separado do seu enraizamento
concreto no seio de relações concretamente históricas, humanas e sociais
que são a contextura da sua existência (LUKÁCS, 1969, p. 37).
a
vanguarda
plasma um homem “essencialmente solitário, desligado de todas
as relações humanas e,
a fortiori
, social, ontologicamente independente” (LUKÁCS,
1969, p. 37).
Exemplificando seus acenos, Lukács menciona os personagens Filoctetes, de
Sófocles, Frédéric Moreau, de Flaubert, e Ivan Ilitch, de Tolstói, como exemplos de
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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isolamento momentâneo, nutrido no conjunto concreto constituído por homens
vivendo em comum e exercendo uns sobre os outros, influência recíproca” (LUKÁCS,
1969, p. 38). Uma solidão, portanto, correspondente a um destino social, nunca a uma
eterna “condição humana”, como no caso dos escritores da decadência, cuja solidão
ontológica que refiguram pela adoção do tempo como duração da existência pessoal
é encarada como análoga à a-historicidade heideggeriana do “ser-jogado-no-mundo”
(
Geworfenheit
).
Como dito, essa compartimentação se deve à categoria da
possibilidade
, a
qual o autor divide em
possibilidade concreta
(a possibilidade real hegeliana,
condicionada por predisposições naturais e seu desenvolvimento ao longo da história)
e
possibilidade abstrata
(possibilidade subjetivada que, por infinita, reduz a primeira,
tornando a realidade arbitrária), pois, para Lukács,
as peripécias interiores da obra literária, sobretudo no drama, têm por
objetivo descrever a irrupção até o nível da realidade efetiva de determinada
possibilidade real, cuja atualização as circunstâncias, até então, impediam.
Estas possibilidades são bem reais, que podem transformar-se
precisamente, para a pessoa considerada, no verdadeiro fundamento da sua
existência, mesmo quando essa existência se reduz a um trágico fracasso
(LUKÁCS, 1969, p. 41).
Em contrapartida, no leque de possibilidades abstratas subjetivas, essa
factibilidade concreta dissolve-se em uma desimportante e arbitrária equivalência de
casualidades, eliminando a narrativa da qual emana o realismo.
Sendo assim, a possibilidade
concreta
põe-se como força essencial do ambiente
onde as personalidades se movem, ao passo que a
abstrata
só existe subjetivamente.
É isso que o leva ao reconhecimento de que a elevação desmesurada das
possibilidades abstratas implica abdicação da refiguração dos “homens concretos, nas
suas relações concretas com o mundo exterior” (LUKÁCS, 1969, p. 43). Por isso, em
Lukács, a vanguarda está necessariamente associada à decadência, pois “põe o
indivíduo em relação a si próprio”, desligando-o de tudo que o circunda, ocasionando
um corte radical entre literatura e mundo. É esse, sempre segundo Lukács, o
modus
operandi
que permite “a dissolução da forma objetiva em elementos subjetivos” em
Joyce, ou a exaltação da “existência sem qualidades” de Musil, pois:
o que caracteriza o homem, quer o consideremos na sua própria vida, quer
na literatura que a reflete, é a sua escolha quando uma questão decisiva põe
em causa a sua existência: é, pois, dentre todas as suas possibilidades
concretas, aquela que exprima efetivamente a sua essência [...]. Quando
perguntam a Ulrich, o herói do seu grande romance, o que faria se
governasse o mundo, ele responde: “Só me restaria suprimir a realidade
efetiva”. É evidente, de fato, que a supressão da realidade efetiva
Leandro Candido de Souza
238 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 232-267 - mar. 2022
corresponde, no plano do mundo exterior, àquilo que uma existência
subjetiva “sem qualidades” representa (LUKÁCS, 1969, p. 44-45).
Lukács concebe essa dissolução da realidade como base da forqueadura entre
diferentes concepções do mundo, na qual a defesa das possibilidades concretas é o
fator preponderante para o realismo, enquanto a elevação das possibilidades abstratas
consiste na própria supressão da realidade efetiva, configurando um falso objetivismo.
Portanto, dissolução do homem e dissolução do mundo pertencem ambas ao
mesmo sistema, ampliam-se e reforçam-se mutuamente. Na base,
encontramos sempre a mesma concepção do homem: um ser desprovido de
qualquer unidade objetiva, simples sequência incoerente de fragmentos
instantâneos, extraídos de experiências vivas que são, por definição, o
impenetráveis para o indivíduo que as vive como para os outros homens.
(LUKÁCS, 1969, p. 46)
Abarcamos assim um elemento fundamental na literatura de vanguarda, a
“dissolução da personalidade”, o que, segundo Lukács, não é mais que uma “confusão
entre possibilidade concreta e possibilidade abstrata”, correlata “ao desenvolvimento
do universo mental peculiar à decadência”. Decadência que ele encontra
filosoficamente personificada na continuação heideggeriana da guerra à dialética,
iniciada por Kierkegaard de que a pedra angular é a negação de uma unidade
indissociável entre interioridade e exterioridade, tal como defendia Hegel
4
, cuja visão
expressava a ideia de que “cada homem vive num incógnito perfeitamente
impenetrável a outros homens e que nenhuma força humana pode romper” (LUKÁCS,
1969, p. 47).
Mostramos já até que ponto a supressão da distinção entre possibilidade abstrata e
possibilidade concreta esteriliza, nas suas próprias bases, o esforço do artista para
concretizar as suas criaturas. Vemos agora que, com a negação dos laços existentes
entre o exterior e o interior, a oposição perde, no seio da personalidade, o que fazia
dela uma força viva e eficaz (LUKÁCS, 1969, p. 49).
Uma dupla ruptura que permite a Lukács reconhecer a existência de uma linha
diretiva do
naturalismo
ao
vanguardismo
: à luz desta continuidade estilística, as
transformações, as oposições, as novidades, os conflitos de tendência, que dizem
apenas respeito ao aspecto formal do estilo, deixam de ter importância para
caracterizar o conjunto duma época” (LUKÁCS, 1969, p. 58). Ou seja, Lukács verifica
na ausência de seleção, na recusa de orientação e de hierarquização das imagens, pela
montagem de fragmentos inorgânicos da realidade seja no descritivismo cientificista
do naturalismo, seja na deformação do aparente nos movimentos de vanguarda o
rebaixamento da ação humana à igualdade dos detalhes, uma apresentação
4
O desdobramento desta reflexão pode ser encontrado em seu escrito
A destruição da razão,
de 1953.
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conformista da realidade coagulada pelas impressões da sensopercepção.
uma continuidade real na literatura recente entre o naturalismo e a
vanguarda. […] Esta unidade só é perceptível, sem dúvida, para quem saiba
penetrar no mais fundamental das concepções do mundo. […] A patologia,
que era a princípio simples ornamento estético [para naturalistas e
impressionistas], mancha de cor viva no quadro cinzento de todos os dias,
tornou-se protesto moral contra um mundo ignóbil. (LUKÁCS, 1969, p 50)
A obra de vanguarda deixa de cumprir seu papel estético por não conseguir
converter um determinado conjunto de experiências historicamente vividas em
generidade capaz de reverberar uma voz humana universal, pondo-se finalmente como
consciência de si do próprio gênero humano.
Os escritores cuja concepção do mundo assenta na definição aristotélica do
“animal social” nunca criam tipos sem os ligar, duma forma orgânica e
indissolúvel, às contradições que se revelam, ao mesmo tempo, nos fatores
sociais que condicionam o desenvolvimento humano e o próprio indivíduo
quando ele é plenamente desenvolvido. […] Como se vê, não se trata nem
duma questão que diga respeito a uma ciência particular, nem de um
problema de técnica literária, mas de todo o complexo que se enraíza numa
concepção do mundo. (LUKÁCS, 1969, p. 53)
Aqui começam a luzir dois juízos centrais de Lukács a respeito das vanguardas:
a associação entre descrição da aparência fetichizada e sua apologia essa “patologia,
perversidade e […] idiotia, consideradas como formas típicas da condição humana”
(LUKÁCS, 1969, p. 54-55) e a abstração do real como geradora da individualidade
vista como onticamente isolada.
[…] o mesmo caráter atribuído ao patológico protesto inconsciente, ou
melhor, recalcado pela sociedade , o mesmo rousseuísmo pervertido, a
mesma recusa do social. É esta uma característica geral de toda a literatura
de vanguarda […]. Tendo assim mostrado, nos seus aspectos mais concretos,
a concepção do mundo que serve de base a toda literatura de vanguarda,
podemos levar a nossa análise mais longe, nesta direção. E a primeira
verificação se impõe desde logo, à luz destes pressupostos, é que tal
literatura poderia produzir obras desprovidas de perspectiva (LUKÁCS,
1969, p. 55-57).
Nesse contexto, toda e qualquer exposição de uma fratura profundamente
desperspectivante entre subjetividade e objetividade é encarada como anti-
humanismo, indiferentemente se sob as formas mais distintas, como as que separam
Beckett de Kafka ou Joyce de Proust, para citar apenas alguns exemplos, pois
é dela [da perspectiva] que dependem, em cada época, as linhas diretivas
que orientam a criação artística, que ela constitui assim, em última análise,
o princípio universal de seleção entre o essencial e o superficial, entre o
decisivo e o episódico, entre o importante e o anedótico etc. (LUKÁCS, 1969,
p. 57).
É a representação do mundo desumanizado como cúmplice desse mundo e a
angústia própria da vanguarda tomada como imanência do mundo, não como crítica.
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Não encontramos nós, no gosto da vanguarda pelo patológico, uma espécie
de aversão pelo tempo adjeto, uma nostalgia de um objetivo indeterminado?
Na realidade, tal atitude implica, neste caso, a absoluta supremacia do
terminus a quo
, do estado a partir do qual aparece a repugnância; o
movimento para o
terminus ad quem
é
a priori
condenado à impotência.
(LUKÁCS, 1969, p. 60)
Notamos, assim, que, na vanguarda, “a transcendência a que ela se refere implica,
mais ou menos conscientemente, na recusa de toda imanência possível, de todo
esforço para dar sentido ao mundo terreno” (LUKÁCS, 1969, p. 60), na quebra da
organicidade mundana entre sujeito e objeto, no isolamento ôntico, no estilhaçamento
da realidade. Nas palavras do próprio autor: “quanto mais autênticas e profundas são
estas experiências, mais quebram a unidade, sensorialmente perceptível, que é a
condição prévia e a base de toda a impressão estética” (LUKÁCS, 1969, p. 62).
Lukács afirma que essa problemática, que se apodera das artes com o surgimento
dos movimentos de vanguarda, também foi filosoficamente formulada pelo idealismo
subjetivista na separação entre as temporalidades do indivíduo e da realidade
objetiva em movimento e alcançou seu ponto máximo em Bergson: para ele, o tempo
‘propriamente dito’, o tempo ‘autêntico’, não é mais do que o tempo puramente
subjetivo, o da experiência vivida, completamente desligado do mundo real ou
objetivo, sem que ele tenha a pretensão […] de atingir a essência da realidade efetiva”
(LUKÁCS, 1969, p. 63).
É, contudo, no conceito de alegoria que encontramos uma possível justificativa
para o enrijecimento lukácsiano, o qual, vale adiantar, o é uma mera hipótese, tendo
sido posteriormente reconhecido por ele próprio
5
. Segundo Lukács, o idealismo traz
consigo um corte conceitual entre o
tempo
e o
espaço
consequentemente, entre a
realidade
objetiva
e o
movimento
que atinge seu ponto máximo no alegorismo da
literatura moderna, introduzindo “a subjetividade do tempo”, do sujeito fechado em si
mesmo, isolado do mundo objetivo e reduzido à intuição subjetivista. Juízo que se
apresenta, nessa obra de Lukács, por sua apropriação sintomal e condenatória da
tematização de Walter Benjamin em
Origem do drama barroco alemão
.
Essa leitura de Lukács, por mais que entabule sem aprofundar uma necessária
distinção entre Proust e Bergson (LUKÁCS, 1969, p. 63), lega à temporalidade
5
Em correspondência a Carlos Nelson Coutinho, Lukács, ao falar de Proust e Kafka, reconheceu:
“Também seria importante fazer uma distinção mais nítida do que habitualmente se faz entre os dois,
particularmente Kafka, por um lado, e, por outro, a literatura subsequente. (Também sobre isso meu
ensaio [
Realismo crítico hoje
] não é suficiente.)” (COUTINHO, 2005, p. 211-212).
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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subjetivista moderna a responsabilidade pela aniquilação da forma literária ao superar
a tipicidade por meio da generalização do alegórico.
Tudo pode significar tudo, quer se trate duma pessoa, duma coisa ou duma
relação. Esta possibilidade implica num julgamento aniquilante e, no entanto,
justificado, sobre o mundo profano; nesse mundo não há lugar para o rigor
dos pormenores. […] Finalmente, a alegoria torna-se vazia. O mal puro e
simples, que a sustenta firmemente do interior, existe nela; é apenas
alegoria, significa uma coisa diferente dele próprio. Significa precisamente o
nada daquilo que ele representa. (BENJAMIN
apud
LUKÁCS, 1969, p. 70-71)
Para Benjamin, a alegoria é um fragmento do contexto original, esvaziado de seu
significado, e que precisamente por esse esvaziamento emerge com um novo
conteúdo, capaz de gatilhar uma renovação artística, ideia que se afina com sua
tentativa de “escovação da história a contrapelo”. Para Lukács, essa ruptura com um
sentido artístico fechado, como aposta de uma atualização poética, é a própria
supressão do estético motivada pela descrença, pela perda do
pathos
social e pela
negação das possibilidades concretas do futuro: a mais profunda experiência vivida é
a de um mundo que o tem rigorosamente nenhum sentido, exclui toda a esperança,
e que é o nosso mundo, o mundo do homem burguês de hoje” (BENJAMIN
apud
LUKÁCS, 1969, p. 72). E Lukács conclui em negativa:
Do ponto de vista formal, um André Gide não tem qualquer pretensão
revolucionária; no entanto, pela sua própria estrutura, a concepção do mundo
que se exprime na sua obra implica, nele, no rompimento das formas
literárias. Os seus
Moedeiros falsos
apresentam-se como um romance. Mas,
no essencial, a construção do livro liga-se à arte de vanguarda pelo seu duplo
conteúdo, visto que o herói do livro, que é, ao mesmo tempo, o seu autor,
introduz o seu próprio diário no romance. Enquanto escritor, foi necessário
que Gide revelasse, pelo conteúdo de sua obra, que num solo como esse não
pode nascer nenhum romance, nenhum escrito com forma estética.
Assistimos aqui à realização, na prática literária, desta autodestruição da
estética, de que Benjamin teve o grande mérito de nos fornecer a teoria.
(LUKÁCS, 1969, p. 74-75)
Lukács e o equívoco do realismo (a reconciliação extorquida)
Logo na abertura de sua crítica ao ensaio lukácsiano, Adorno reconhece como
mérito estrito do trabalho de Lukács suas obras de juventude
A alma e as formas
(1911),
Teoria do romance
(1920)
e
História e consciência de classe
(1923) , por sua
“inovadora aplicação, no materialismo dialético, da categoria da reificação como
princípio da problemática filosófica” (ADORNO, 2009, p. 171), configurando um
objetivismo histórico não ontológico.
Quando o objetivismo de Lukács do início dos anos vinte começou a
sucumbir, não sem conflitos iniciais, à doutrina comunista oficial e Lukács
renegou, ao estilo do bloco oriental, aqueles escritos; contra si mesmo, fez
suas as críticas mais subalternas da hierarquia do partido, em detrimento dos
argumentos hegelianos, e durante esse decênio esforçou-se, em seus ensaios
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e livros, por reduzir seu pensamento ao nível lamentável do “pensamento”
soviético, que envileceu a filosofia, degradando-a ao ofício de simples
instrumento de dominação. (ADORNO, 2009, p. 171-172)
As obras posteriores a
História e consciência de classe
são, segundo Adorno, a
negação de todo o seu talento juvenil, o que culminou em
A destruição da razão
, que
teria revelado o verdadeiro Lukács, especialmente pela deturpação dialética que lhe
permitiu alinhar todo o irracionalismo da guinada do século XX ao fascismo e à reação.
[…] sem mentar que, em algumas correntes, ao contrário do que ocorre com
o idealismo acadêmico, o pensamento se erigia contra a coisificação da
existência e do pensamento, […] que sob o verniz de uma crítica radical à
sociedade, passava de contrabando os mais esquálidos clichês daquele
conformismo contra o qual ele dirigira outrora sua crítica social (ADORNO,
2009, p. 172).
Adorno uma triste capitulação à vulgaridade do bloco soviético, uma
redução de seu potencial anterior a uma mera propagandeação ideológica que não se
submete jamais à disciplina de uma obra determinada e a seus problemas imanentes.
A nostalgia manifestada por Lukács em sua obra de juventude adquire um
tom de profunda tristeza. Aparece de novo aquela imanência vital do
significado” que foi um dos traços característicos da sua
Teoria do romance
,
porém deformada pelo slogan segundo o qual a vida tem um sentido durante
a construção do socialismo, dogma apropriado, para justificar em termos
filosóficos a rosada “positividade” com que o estado social-popular
condecora a arte. O livro [
Realismo crítico hoje
] aparece meio congelado
entre aquilo que se convencionou chamar de “degelo” e uma nova glaciação.
(ADORNO, 2009, p. 173)
A vulgaridade adviria, segundo Adorno, de seu materialismo apriorístico e pouco
dialético “apesar de todas as alegações de dinamismo” (ADORNO, 2009, p. 173)
que forçava uma separação arbitrária entre
conteúdo
e
forma
, a partir da crítica de
Hegel ao formalismo estético kantiano. Foi assim, sempre segundo Adorno, que Lukács
achatou sua capacidade de análise ao desconsiderar os momentos formais construtivos
como parte integrante e indissociável do conteúdo artístico, legando-os à condição de
“elementos contingenciais”, em lugar de reconhecer sua função objetiva no conteúdo
estético (ADORNO, 2009, p. 173).
Essa desconsideração de Lukács confirma-se, aos seus olhos, como uma
vulgaridade de quem desconhece a especificidade do estético, “até o ponto de afirmar
que a arte moderna supervaloriza o estilo, a forma, os meios expressivos; como se
Lukács pudesse ignorar que através destes momentos a arte se distingue, enquanto
conhecimento, das ciências” (ADORNO, 2009, p. 173)
6
.
6
A esse respeito Lukács formularia uma boa distinção, em sua
Estética
, que firmaria a autonomia relativa
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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Um alto funcionário barbudo não sabe discorrer sobre arte valendo-se de
meios artísticos; é o tom de um homem habituado a falar do alto de uma
cátedra, sem correr o risco de ser interrompido, sem jamais recuar diante de
longas digressões, demonstrando claramente essa capacidade de reação que
ele censura em suas vítimas como esteticismo, decadentismo e formalismo,
apesar de ser precisamente esta a única coisa que permite alguma relação
com a arte. (ADORNO, 2009, p. 174)
Para Adorno, o evolver da arte é o evolver da técnica, uma vez que, posta sob o
mundo administrado, a arte pode cumprir seu papel desfetichizador quando
radicalmente nova. Por isso, o esteticismo dos séculos XIX e XX não seria uma forma
de decadência, e se afiguraria como decadência perante o conceito de “concreto”
de extração hegeliana, um endurecimento dogmático da noção de
conteúdo
isolado
da
forma
, “tão característico a quem rende uma homenagem puramente formal a uma
dialética que, de saída, já tomou partido, tornando-se não dialética” (ADORNO, 2009,
p. 175).
Eis, pois, o dogmatismo vislumbrado por Adorno em Lukács, que se põe como o
núcleo estruturador de sua crítica. Esse enrijecimento, arbitrário e ortodoxo,
desqualifica tudo o que se afasta do
realismo
como
decadentismo
,
“um insulto que
cobre todas as infâmias da perseguição e da repressão não na Rússia” (ADORNO,
2009, p. 175), congregando de maneira despectiva toda a heterogenia gradiente da
vanguarda, numa tentativa de propiciar uma consciência filosófica da arte moderna a
partir de uma “redução instrumental”, inclusive de Hegel.
A acusação central à teoria de Lukács é a de
ontologismo
, que, segundo Adorno,
permitiu ao filósofo húngaro associar toda literatura de vanguarda ao existencialismo
heideggeriano, valendo-se para isso da afirmação aristotélica do homem como um ser
social, cuja notabilidade e “qualidade puramente humana, profundamente individual”
se dá por meio de seu “enraizamento concreto em relações concretamente históricas”
(ADORNO, 2009, p. 179), algo que ele também espera encontrar na arte de vanguarda.
Mas Lukács, que pretende pensar segundo um historicismo radical, estava obrigado
a compreender que, numa sociedade individualista, essa mesma solidão é produto de
uma mediação social e que seu conteúdo é essencialmente histórico. (ADORNO,
da arte enquanto antropomorfizadora, em contraposição à ciência: “este conteúdo material e estrutural
[a unidade do múltiplo e não uma síntese intelectualmente elaborada], que funda e produz tais vivências
estéticas a partir do objeto, determinando que essas vivências não se convertam em pontos de partida
de uma reflexão posterior […] ocasiona a separação do estético com relação aos pensamentos e
sentimentos da cotidianidade e o delimita, ao mesmo tempo, com relação às investigações e reflexos
científicos da realidade” (LUKÁCS, 1966, p. 313-314).
Leandro Candido de Souza
244 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 232-267 - mar. 2022
2009, p. 179)
E esse novo imperativo histórico, para Adorno, apresenta-se com Baudelaire,
exigindo, assim, uma reavaliação de boa parte das categorias de que se vale Lukács
(como
decadência
,
formalismo
,
esteticismo
etc.), uma vez que essa nova arte não
pretende caracterizar a essência humana invariável, sua solidão ou derrelição, mas a
natureza da modernidade, que é igualmente social e não abstrata; argumento que
serviu posteriormente de arrimo para sua
Teoria estética
.
O Novo é o sinal estético da reprodução ampliada, juntamente com a sua
promessa de abundância ilimitada. A poesia de Baudelaire foi a primeira a
codificar o fato de que a arte, no seio da sociedade de mercadorias
totalmente desenvolvida, consegue apenas na sua impotência ignorar essa
tendência. ao reduzir a sua
imagerie
à sua autonomia é que consegue
superar o mercado da heteronomia. A arte é moderna através da mimese do
que está petrificado e alienado. É assim, e não pela negação do seu mutismo,
que ela se torna eloquente; eis porque não tolera nenhuma inocência.
(ADORNO, 1982, p. 33)
A refutação se exemplifica na defesa adorniana do caráter histórico de Joyce
que Lukács acusa de ser “um homem absolutamente intemporal” –, que não “forja
nenhum fundo mitológico exterior ao mundo que representa, mas tenta explicitar a
essência, boa ou má, desse mundo, até o ponto de torná-la tica em virtude de um
princípio de estilização que o Lukács de hoje estima tão pouco” (ADORNO, 2009, p.
180).
Fica claro que Adorno discorda de que a quebra da hierarquia entre
possibilidades
concretas
e
abstratas
ponha necessariamente o homem como
ontologicamente isolado. Para o filósofo alemão, trata-se de uma leitura de obras
artísticas
tale quale
filosofias, que se a arte “oferece essência e imagens, isso não
ocorre por culpa do idealismo; e quando muitos artistas sustentam concepções
filosóficas de caráter idealista, isso não significa nada do essencial do conteúdo de
suas obras” (ADORNO, 2009, p. 181), pois é “só na cristalização da sua própria lei
formal, e não na passiva admissão de objetos que a arte converge com a realidade”
(ADORNO, 2009, p. 181), em um conhecimento artisticamente mediado.
Não é outro o caso do
solipsismo
. O que é depreciado por Lukács como visão
imediatista da relação sujeito-sociedade não é considerado por Adorno como “a
negação do objeto, mas a tendência dialética da conciliação com ele”, algo
progressivamente dificultado pela reificação. Propositadamente, o exemplo evocado
por Adorno é o de Marcel Proust, autor que Lukács reavaliou com positividade em sua
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autocrítica de maturidade
7
. Nas palavras de Adorno, “Proust decompõe a unidade do
sujeito por meio da introspecção: o sujeito acaba por transformar-se no próprio teatro
onde aparecem os objetos” (ADORNO, 2009, p. 182)
8
.
A partir disso, o monólogo interior, o estranhamento e a ignorância do mundo,
preteridos por Lukács por serem uma visão pessimista e conformista, põem-se como
a
verdade
e a
aparência
do mundo contemporâneo, na qual o homem se recolhe sob
sua sombra na medida em que “objetivamente a totalidade social precede o indivíduo
que se forja na alienação enquanto reproduz essa contradição social” (ADORNO, 2009,
p. 182). Por isso, Adorno defendia o primitivismo de Beckett e refutava a consideração
de uma “atmosfera do episódico” como nociva, uma vez que o “conteúdo substancial
de uma obra de arte pode consistir na representação minuciosa, não expressamente
polêmica, da insensatez crescente e pode se perder quando se hipostasia” (ADORNO,
2009, p. 183). Para Adorno, qualquer reconciliação entre sujeito e objeto é “forçada”
e “ideológica”.
Quando Lukács afirma que só se pode sentir, apesar dos programas, Dublin
em Joyce, a monarquia dos Habsburgos em Kafka e Musil como “atmosfera
do episódico”, como subproduto secundário, reduz com ele, para garantir
seu
thema probandum
, a plenitude épica que se afirma negativamente ou
seja, a substância ao papel de elemento acessório. (ADORNO, 2009, p.
182)
Segundo Adorno, é a ideia fixa em uma “imanência do conteúdo” que conduz
Lukács a seus descaminhos, permitindo que posições “objetivamente polêmicas” como
as de Beckett sejam transformadas em “representações do patológico, da
7
“Proust é muito diferente de Joyce. Em
À la recherche du temps perdu
, existe um retrato real do
mundo, não uma fotomontagem naturalista pretensiosa e grotesca de associações. O mundo de
Proust pode parecer fragmentário e problemático. De muitas maneiras ele preenche a situação do último
capítulo de
L’éducation sentimentale
, em que Frédéric Moreau volta para casa após o esmagamento da
Revolução de 1848; ele já não tem mais nenhuma experiência da realidade, apenas a nostalgia de seu
passado perdido. O fato de que esta situação constitua, com exclusividade, o conteúdo da obra de
Proust é a razão de seu caráter fragmentário e problemático. Não obstante, trata-se de um retrato de
uma situação verdadeira, produzido com arte. Como vê, o que procuro num romance não é saber se ele
retrata naturalisticamente meu mecanismo íntimo […] mas se acrescenta algo à soma de minha
experiência da vida. Proust me proporcionou isso; Joyce, não.” (LUKÁCS, 1969, p. 12)
8
Não custa mencionar que sua conclusão a respeito de Proust vai ao encontro do comentário de outro
teórico da dialética, Eric Auerbach: “A intenção de aproximação da realidade autêntica e objetiva
mediante muitas impressões subjetivas, obtidas por diferentes pessoas, em diferentes instantes, é
essencial para o processo moderno que estamos considerando. Diferencia-se nisto fundamentalmente
do subjetivismo unipessoal, que só permite que fale um único ser, geralmente muito peculiar e que só
considera válida a sua visão de realidade. Do ponto de vista histórico-literário, é claro que uma
estreita relação entre a representação da consciência unipessoal e subjetiva e a pluripessoal, que visa
à síntese: esta última nasceu da outra, e há obras em que as duas formas se entrecruzam de tal forma
que se pode observar o seu surgimento, sobretudo no grande romance de Marcel Proust” (AUERBACH,
2004, p. 483-484).
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perversidade, da idiotice como forma típica da condição humana”, atribuindo assim “à
representação o representado” (ADORNO, 2009, p. 183).
Vale dizer que em Lukács, como em toda a tradição estética ocidental, a arte é
uma forma de conhecimento que não se contrapõe à ciência
9
, algo que, segundo
Adorno, consiste em um imediatismo que cerra as vanguardas como comprovação de
uma determinada realidade. Para Adorno, trata-se exatamente do contrário: a arte que
reproduz a realidade de modo “perspectivistanão conhece a essência daquilo que
retrata, o que ocorre quando essa representação “expressa, em virtude de sua
constituição autônoma, o que estivera velado pela aparência empírica da realidade”.
Afinal, “o gesto que proclama a impossibilidade de conhecer”, como em Eliot e Joyce
ambos severamente censurados pelo filósofo húngaro , constitui “um momento do
conhecimento” que revela “o abismo aberto entre o mundo influente e inassimilável
das coisas e a experiência que se choca em vão com sua superfície lisa” (ADORNO,
2009, p. 184).
O que essencialmente distingue as obras de arte como conhecimento
sui
generis
do conhecimento científico é precisamente que toda a realidade
empírica, sem exceção, é transformada, que os conteúdos materiais
adquirem um sentido objetivo quando com a intenção subjetiva. (ADORNO,
2009, p. 184)
Uma tendência que pode ser vislumbrada, segundo Adorno, de forma latente
desde Balzac e Dickens. Uma reconstrução fantástica da realidade que Lukács não nota
por sua incondicional filiação aos cânones do realismo oitocentistas, nos quais o
método de criação traz em si a consciência dialética da totalidade (ADORNO, 2009, p.
185)
10
. Eis a contradição angular em Lukács:
[ele] não pode deixar de reconhecer que esteticamente a verdade social vive
só nas obras de arte configuradas de um modo autônomo, […] [e que] essa
autonomia traz consigo, para o seio da obra de arte, tudo o que ele não
tolerava, o que hoje como ontem põe abaixo toda a doutrina comunista
reinante (ADORNO, 2009, p. 185).
É, portanto, através de uma dialética do individualismo que se movem as
9
O italiano Guido Oldrini explicou a coincidência entre
teoria estética
e
científica
em Lukács da seguinte
maneira: “o fato que, sendo a realidade una e contínua, as mesmas categorias fundamentais devem
necessariamente comparecer em todas as esferas da realidade o que não exclui a existência de
categorias específicas para cada uma” (OLDRINI, 2002, p. 60). É o
realismo ontológico
como aspiração
a uma totalidade objetiva, o que inevitavelmente o põe diante dos mesmos problemas da ciência: a
relação entre sujeito e objeto, consciência e mundo.
10
“Balzac, baseado no sentimento formal de sua obra, pensa que seu monólogo é a plenitude do
mundo, enquanto os grandes romancistas do século XX ocultam sua universalidade [no monólogo].”
(ADORNO, 2009, p. 185)
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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vanguardas, e não por meio de um individualismo ontológico de um “estado de solidão
irreflexiva” constituído sobre os modelos da teoria heideggeriana da “derrelição” (em
O ser e o tempo
), como tantas vezes afirmado.
Segundo o autor da
Dialética negativa
, escapa a Lukács a atomização das
individualidades como um princípio fundamentador da própria lógica da sociedade
burguesa, portanto, não sendo uma idiota construção transcendental, mas a sociedade
historicamente mediada
11
. Em última menção, para Lukács, o protesto que existe na
refiguração da solidão pela vanguarda é uma prostração ao mercado espiritual. O autor
conclui adiante:
desse modo, a qualidade e a superioridade artísticas do realismo socialista
seriam duas coisas diferentes. É necessário estabelecer uma distinção entre
o valor literário em si e o valor soviético-literário que deve estar
no
verdadeiro
, de alguma maneira pela graça do espírito universal. Tal
duplicidade se assenta mal a um tão patético defensor da unidade da razão
(ADORNO, 2009, p. 188).
Vista por esse ângulo, a
concepção
do
mundo
serve, quando muito, como critério
para a compreensão da lógica que move determinado artista, nunca para a avaliação
de suas obras individuais concretas, pois a solidão para Adorno é inevitável nessa
sociedade que padece historicamente condicionada pela negatividade da reificação.
Por isso, as grandes obras de vanguarda comportam seu verdadeiro valor em sua
objetivação radicada monadologicamente como arte, em sua lei formal, e, portanto,
intervindo também seu substrato social” (ADORNO, 2009, p. 188).
Sendo assim, em Adorno a arte o pode se orientar pela pura expressão
consciente da angústia algo queestava exposto na sua
Filosofia da nova música
, devendo aparecer na imanência de sua forma, enquanto para Lukács a vanguarda
deforma as possibilidades existentes no real, esfacelando as tendências opostas (nunca
uma crítica à decadência) por meio da contraposição possibilidade
concreta versus
abstrata
. Na proposição adorniana essa oposição é uma crítica insistente: “o otimismo
oficial das tendências opostas e das forças contrárias obriga Lukács a recusar a tese
hegeliana da ‘negação da negação’ da ‘deformação da deformação’ como uma
afirmação” (ADORNO, 2009, p. 190).
Descobre-se a tonalidade moralista dos conceitos de Lukács, sobretudo suas
11
Os ontologistas de hoje se colocam demasiado submetidos a vínculos que, atribuídos como tais ao
ser, concedem a todo o tipo de autoridade heterônoma a aparência do eterno. […] O sujeito singular
não tem a seu alcance a possibilidade de superar a solidão, determinada coletivamente, mediante uma
eleição e uma decisão.” (ADORNO, 2009, p. 187)
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lamentações a propósito da “ausência de mundo” subjetivista, como se os
vanguardistas houvessem chegado a pôr em prática de um modo literal o
que na fenomenologia de Husserl denomina-se, grotescamente, “aniquilação
metódica do mundo”. (ADORNO, 2009, p. 190)
O que também se verifica com relação à
durée
bergsoniana.
O debate sobre o tempo, inaugurado por Bergson, é considerado como um
-górdio. Posto que Lukács é um bom objetivista, o tempo objetivo a
última palavra, e o tempo subjetivo não é mais que uma simples deformação
decadente. Foi o insuportável desse tempo alienado, reificado, carente de
sentido (que o jovem Lukács intuiu muito bem na
Educação sentimental
) o
que obrigou Bergson a construir a teoria do tempo vivido e fluido. (ADORNO,
2009, p. 193)
E Adorno encaminha o fechamento de sua crítica afirmando que o procedimento
lukácsiano restringe a análise dialética à esfera das intenções pré-julgadas, levando
sua filosofia a padecer, por seu juízo pré-estético, “a favor da matéria e do conteúdo,
que se confunde com sua objetividade artística” (ADORNO, 2009, p. 194), algo tão
característico ao hegelianismo desmedido dos comunistas.
A crítica hegeliana da “consciência infeliz”, assim como o impulso da filosofia
especulativa a a transcendência da aparente ilusão da subjetividade
isolada, transforma-se sub-repticiamente em ideologia para os tacanhos
funcionários do partido que ainda não alcançaram o nível de sujeito. […] Mas
o salto dialético não é dialético porque converte a consciência infeliz em feliz
por mera volição, dependendo dos momentos sociais e técnicos da produção
artística, objetivamente postas. (ADORNO, 2009, p. 195)
Há, portanto, uma grande diferença entre o “esforço espiritual e os temas
tratados”, o que leva o
realismo
de seu opositor
a não ser “outra coisa senão a
cobertura ideológica de uma triste realidade” (ADORNO, 2009, p. 197). Portanto, no
intuito de superar a “fase da resignação” presente em Hegel, Lukács buscou em Goethe
seu conceito de realismo capaz de operar uma “reconciliação” entre sujeito e objeto,
entre o homem e o seu mundo: “a maldição que aprisiona Lukács e o impede de voltar
à utopia de sua juventude perpetua essa reconciliação forçada que ele denuncia no
idealismo absoluto” (ADORNO, 2009, p. 199). Trata-se de importante pecha levantada
por Adorno, que será retomada quase 50 anos depois pelo lukácsiano argentino
Miguel Vedda em seu livro
La sugestión de lo concreto
12
.
Vivência trágica ou plenitude épica?
O pensador argentino reconhece, a exemplo do romeno Nicolas Tertulian, que o
“núcleo de convergências e pressupostos comuns” não é menor que a separação
12
Guido Oldrini também observa que, durante os anos 1930, Goethe é o contraponto ideal encontrado
por Lukács como “alternativa teórica para o seu marxismo hegelianizado” (OLDRINI, 2002, p. 58-59).
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existente entre os dois filósofos. Segundo Vedda, as diferenças advieram de suas
distintas posições ante uma antinomia da sociedade burguesa assimilada
pela tradição marxista desde seu início: quanto mais os homens buscam,
como indivíduos isolados, seu benefício particular, tanto mais se encontram
massificados e se submetem ao funcionamento do todo (VEDDA, 2006, p.
196).
Em Lukács, é notável, desde sua mais tenra produção intelectual, a percepção da
“hostilidade do capitalismo ao nascimento de uma verdadeira cultura”, confirmando a
arte como autorreconhecimento genérico dos indivíduos. Isso se verifica não só em
A
teoria do romance
definida pelo próprio Lukács como uma “kierkegaardização da
dialética histórica hegeliana” (LUKÁCS, 2005, p. 13) , mas ainda antes, em
A alma e
as formas
, obras que aliam ao colapso do capitalismo um evidente “utopismo
primitivo” como necessidade para o florescimento de uma vida humana autêntica
(LUKÁCS, 2005, p. 15).
Dedicando-se ao exame da apropriação goethiana nos dois autores, Vedda nota
que a
tragédia
,
que ocupava lugar privilegiado na obra juvenil de Lukács, cede lugar,
especialmente a partir de
Teoria do romance
, às formas
épicas
, em particular ao
romance. Isso não quer dizer que o drama perca sua importância dentro do
corpus
teórico lukácsiano, apenas que o novo gênero assume privilégio em seus escritos a
partir de então, assinalando a existência de um caráter
épico
, e não
trágico
, na
dinâmica histórica do mundo burguês.
[…] o drama é considerado uma
totalidade do movimento
, oposta à
totalidade dos objetos
que caracteriza a epopeia. Se a tragédia necessita
criar uma realidade mais intensa que a existente, e pode manifestar os
momentos em que se manifesta a essência do que se deseja plasmar, o
objetivo do
epos
(e, logo, o do romance) é exibir os homens
também
em
circunstâncias prosaicas da cotidianidade. Frente à totalidade intensiva do
drama, a epopeia mostra em forma extensiva a realidade externa (VEDDA,
2006, p. 197).
Com
A teoria do romance
,
vemos que no
epos
os heróis não superam muito seus
semelhantes o que será posteriormente reafirmado em
O romance histórico
,
especialmente em seu comentário sobre Aquiles na
Ilíada
, traçando,
in negatio
, o
fundamento primordial da tragédia: plasmar uma realidade distinta da cotidiana. Cabe
ainda lembrar, com a ajuda do prefácio lukácsiano à mesma obra, que a distinção entre
forma
épica
e
dramática
constava em suas obras anteriores, mas com pesos
invertidos exaltando a forma trágica devido a sua formação neokantiana que
apartava
vida empírica
de
vida autêntica
, o que foi superado após a “experiência
da Grande Guerra”, na qual Lukács descobriu o colapso da ideologia kantiana e
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intentou rastrear a verdade na vida cotidiana.
É a partir daí que a ação humana assume relevância e arruína a separação
transcendental entre essência
e vida. Portanto, a tragédia, bem como sua
correspondente filosófica máxima, o platonismo, é substituída por uma busca pela
imanência da realidade, que encontra guarida na “humanidade livre e terrena” das
obras de Goethe, especialmente no
Fausto
. Mais do que uma derivação estético-
filosófica de Hegel, tratava-se de uma concepção da realidade na época “fortemente
influenciada por Sorel” (LUKÁCS, 2005, p. 13).
[…] com a elevação do indivíduo ao nível da espécie [
Gattungsleben
], reduz-
se a incidência dos eventos trágicos da história: os efeitos desse processo
não podem ser vistos na aproximação entre o drama moderno e a epopeia,
mas também em que, como assinalara Balzac, o romance assume cada vez
mais elementos próprios do drama. […] A falsa autossuficiência do herói
trágico deve abrir caminho a uma visão mais sensível e harmônica da
personalidade humana; os personagens demoníacos, que reduzem a
multiplicidade de suas possibilidades vitais a uma obsessão que os separa
da espécie, cedem lugar a Orestes, Ifigênia, que renunciam ao fatalismo e
reconciliam-se com o gênero humano […] (VEDDA, 2006, p. 199-200).
A figuração artística do novo estágio histórico exige, portanto, a substituição do
“drama do destino” por um “drama épico” encarnado em um herói problemático cuja
personalidade se assemelha a todo sujeito normal. Essa troca do herói monstruoso
por excelência
por um indivíduo radicado no cotidiano permeado pelo profundo
descompasso entre o desenvolvimento das capacidades humanas e o da personalidade
individual impõe a adoção da categoria da
catarse
, que persistirá como bússola
teórica de toda a obra madura de Lukács. É a catarse, por sua origem na vida cotidiana,
que permite a desejada redução do titanismo dos “indivíduos demoníacos” da
tragédia, por meio da reintegração destes no cotidiano social.
Vedda confirma, com certeira tenacidade:
Mas seria utópico acreditar que a arte pode exercer uma influência imediata
sobre o homem enterrado na cotidianidade. Lukács desconfia de uma virtude
que é resultado do efeito estético: apoia sua argumentação em Goethe, que
no “Suplemento à
Poética
de Aristóteles” não dirigiria a análise da
catarsis
aos efeitos sobre o espectador, e sim à estrutura imanente da obra artística.
São os personagens do drama que hão de purgar suas paixões para favorecer
o fechamento artístico; mas a argumentação conduz a resultados similares
aos de Lessing: à imitação das trilogias gregas, o drama deve mostrar no
final a conciliação entre o herói trágico e a comunidade. (VEDDA, 2006, p.
202-203)
Para atingir esses efeitos pretendidos, a arte não deve se entregar a convicções
de “edificação moral ou propaganda”, mas contribuir para uma nova visão do mundo,
pela ampliação e aprofundamento das vivências do indivíduo em fruição, que se
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purifica e libera suas emoções ao se ver confrontado com sua generidade. Portanto,
para Lukács, a arte tem um papel humanizador, funcionando como ponto arquimediano
para a crítica do mundo reificado, por meio de um objeto que não é a realidade nem
se confunde com ela –, mas uma convenção que põe o real sob carnes, que “apresenta
um mundo objetivo novo e desenvolve novos sentidos para compreender a realidade
modificada” (VEDDA, 2006, p. 202-203).
Como vimos, enquanto para Lukács a vida plena de sentidos é a vida
socialmente conformada”, para Adorno o isolamento é a conduta ética e politicamente
correta” (VEDDA, 2006, p. 203), pois para o primeiro a existência do herói titânico
perde sentido por sua vida estar afastada da cotidianidade, enquanto, para o segundo,
isso não assume tanta relevância, uma vez que a principal característica das obras de
arte é, precisamente, o fato de elas manterem sua autonomia com relação à realidade
cotidiana (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
Curiosamente, ambas as posições tanto a de Adorno quanto a de Lukács são
firmadas a partir de Goethe, o que forçou Miguel Vedda a reconhecer em Adorno uma
voluntária apropriação retórica, com a finalidade exclusiva de sustentar suas teorias.
Os princípios de reconciliação [
Versöhnung
] e resignação [
Entsagung
], o
rechaço da literatura e da filosofia introspectiva, a repugnância ante o culto
romântico do herói titânico ou doentio, a atenção dirigida ao mundo externo
antes que ao interior, são elementos essenciais em Goethe e impossíveis de
dissimular; Adorno não os suprime: rastreia em Goethe uma concepção
distinta que aflora em momentos isolados. (VEDDA, 2006, p. 205)
Revelando-se bastante próximo das análises de Walter Benjamin a respeito de
As afinidades eletivas
, especialmente no horror goethiano ante a manipulação da
natureza, Adorno
considera que o domínio do mundo natural […] encontra uma expressão
filosófica coerente no despotismo que o sujeito do conhecimento exerce
sobre o objeto. Semelhante dominação […] implica em uma teoria do
conhecimento antropomórfica, empenhada em impulsionar uma
reductio ad
hominem
de todo o universo material (VEDDA, 2006, p. 207-208).
É devido a esse alicerçamento que Adorno propôs a prioridade do objeto
[
Vorgand des objekts
] em franca contraposição ao ontologismo lukácsiano, pois se o
homem separou o sujeito do objeto, fomentando a dominação deste sobre aquele, a
resolução dessa problemática se da pela renúncia, por parte do sujeito, à
continuidade desse domínio. É nessa impossibilidade de delinear um estado de
reconciliação
entre sujeito e objeto que se fundamenta toda sua
Teoria estética
.
Na visão de Adorno, o sujeito é agente, não
constituens
do objeto” (VEDDA,
Leandro Candido de Souza
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2006, p. 209), uma tematização que se fundamenta, segundo Vedda, em seu
menosprezo pela centralidade do trabalho como categoria fundante da sociabilidade,
ignorando inclusive a distinção estabelecida por Marx entre “o trabalho orientado à
criação de valores de uso e a realização das capacidades essenciais [
Wesenskäfte
]
humanas, e trabalho abstrato, alienado”, como indicado nos manuscritos marxianos de
1844. É a
razão instrumentalista
adorniana contraposta à posição de Lukács em sua
Ontologia
que distingue o trabalho
abstrato
(alienado) do trabalho
concreto
como
fenômeno originário [
Urphänomen
] da sociabilidade, e portanto objetivação da
essência genérica humana e via única para a liberdade
13
.
Desta forma, podemos concluir que Lukács viu nas concepções goethianas e
marxianas de generidade [
Gattungsmäßigkeit
] o reconhecimento do trabalho como
objetivação da vida genérica humana. Portanto, o objetivismo do pensador húngaro,
seu materialismo, refere-se à
matéria social
, ou seja, à matéria trabalhada pelo homem
como ser consciente que se reproduz de forma ampliada, como expresso em
A
ideologia alemã
. É a aceitação do trabalho enquanto práxis, enquanto afirmação ôntica
das forças sociais objetivadas pelos homens e que em arte assume um papel decisivo:
transformar a materialidade em sentidos humanos, pois “o caminho da espécie
[humana] não é trágico, mas se conduz através de inumeráveis tragédias individuais
objetivamente necessárias” (LUKÁCS
apud
VEDDA, 2006, p. 212) e a “meta da
evolução da espécie não é uma passiva contemplação, mas a construção de uma
comunidade livre e ativa, tal como a que entrevê Fausto ao final da tragédia” (VEDDA,
2006, p. 212).
É essa ênfase sobre a relação entre indivíduo e gênero que podemos facilmente
notar como ausente na análise de Adorno, em que a contemplação supera a
importância da ação algo que ele alega ter encontrado em Goethe, especialmente no
Fausto
, transformando seu ódio à “vontade de domínio” em ódio à ação; o que revela
que a ética adorniana consiste em uma “estratégia de hibernação”, na qual “a
esperança não é concebida […] como uma aspiração ativa, mas como uma estrela que
surge ante a humanidade contemplativa” (VEDDA, 2006, p. 213).
13
Quanto às posições de Adorno, ver
Dialética negativa
(ADORNO, 1975, p. 179-80). Já a respeito de
Lukács, ver o capítulo “Trabalho” no segundo volume de
Per l’ontologia dell’ essere sociale
(LUKÁCS,
1976-1981).
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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Polêmicas e mal-entendidos
Quem também dedicou significativo espaço teórico à polêmica Adorno-Lukács
foi o lukácsiano Nicolas Tertulian. Ele também reconhece que Adorno recebeu forte
influência do Lukács de
A teoria do romance
e
História e consciência de classe
14
e vai
buscar, tal como Vedda, em um momento mais recôndito que a publicação de “A
reconciliação extorquida” o início das divergências entre os dois, notabilizando-a em
1925. Foi nessa ocasião que Adorno enviou uma carta a Alban e Helena Berg,
afirmando seu descontentamento com o autor húngaro, precisamente em decorrência
do aprofundamento lukácsiano no pensamento de Marx e Engels. Mais do que um
desconforto ante a concretude assumida a partir de então pela realidade na teoria de
Lukács, o que desagradava a Adorno era a ideia de uma dialética imanente ao próprio
‘objeto’” (TERTULIAN, 2007a, p. 62).
Está aí, segundo o pensador romeno, a hipótese mais provável para a
compreensão da subsequente negação adorniana do realismo ontológico de Lukács,
gestado desde sua “profissão de feuerbachiana” e suas severas censuras a
Kierkegaard.
Lukács havia se tornado para ele a encarnação de uma regressão teórica,
depois do suposto alinhamento do seu modo de pensar às exigências da
ortodoxia comunista. O episódio de Viena, com as censuras da III
Internacional e sua aceitação por Lukács, pesava agora com força sobre a
interpretação de Adorno, que via a expressão simbólica do sacrifício do
pensamento a imperativos heterônimos. (TERTULIAN, 2007a, p. 63)
Vale mencionar, como já bem o fez Tertulian, que essa aceitação lukácsiana não
se deu sem ressalvas, haja vista a existência de um artigo do mesmo ano do referido
episódio de Viena (1925), em que Lukács refuta, ponto a ponto, as críticas a ele
dirigidas pela III Internacional
15
, posição bem contrária às descritas por Adorno. Como
atenta Tertulian, muito provavelmente Adorno desconheceu “as múltiplas
transfigurações e o caminho complexo de Lukács no interior do movimento comunista”
(TERTULIAN, 2007a, p. 64), como seu combate incessante à linha sectária de Béla Kun
e à vulgata stalinista
16
. De acordo com o esquematismo adorniano, suas divergências
14
Mais marcadamente os conceitos de “segunda natureza” [
zweite Natur
] e “lugar transcendental”
[
transzendentaler Ort
] do primeiro e “reificação” [
Verdinglinchung
] do segundo (
cf
. TERTULIAN, 2007a,
p. 61).
15
Segundo J. Chasin, foi Lukács quem resolveu as questões dadas como sabidas ou desimportantes
desde a II Internacional, contribuindo de maneira sem igual para a reformulação do marxismo (
cf
.
CHASIN, 1982, p. 56).
16
Os apontamentos críticos de Lukács a respeito do stalinismo foram reunidos em
Marxismus und
Stalinismus
(lançado pela Rowolt em 1970) e em
Demokratiesierung heute und morgen
(1968),
Leandro Candido de Souza
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com Lukács culminantes no fim da década de 1950 deveram-se, essencialmente,
a “sua [de Lukács] capitulação diante de certo ‘objetivismo’ em seu pensamento sobre
a história (seu assujeitamento às assim chamadas ‘tendências objetivas’)” (TERTULIAN,
2007a, p. 64), que teve como corolário a negação da irredutibilidade do sujeito. Estava
preterida por completo a defesa lukácsiana do valor emancipatório da subjetividade
exposta desde
O jovem Hegel
.
Tertulian ainda observa, corroborando nossa exposição precedente, que o infeliz
paralelo criado por Adorno entre os destinos de Heidegger e Lukács em suas obras
de maturidade se sustenta pela suposta existência, em ambos, desse “objetivismo
extremo” – e seu consequente “antissubjetivismo” – que em Heidegger apareceria em
seu pensamento sobre o
ser,
e em Lukács, em seu
realismo ontológico
; ambos fruto
de uma “necessidade desmedida de autoridade” [
masslosses Autoritätsbedürfnis
]
característica aos intelectuais que não souberam, ou não quiseram, enfrentar a
tormenta do novo século (TERTULIAN, 2007a, p. 64)
17
.
A empreitada de demolição da obra de maturidade de Lukács, perseguida
com obstinação por Adorno depois de 1950, em seus escritos e cursos (e
até em suas cartas particulares, como a de 3 de junho de 1950 a Thomas
Mann, em que ele critica violentamente
O jovem Hegel
), foi agravada por um
handcap
prejudicial: nem a
Estética
nem
Ontologia do ser social
as obras
em que Lukács produziu a expressão mais acabada de seu pensamento
entram no campo visual do autor da
Dialética negativa
. (TERTULIAN, 2007a,
p. 65)
Este foi o empenho de Adorno após 1950, e que se estendeu a seus seguidores
(“
Haut dem Lukács
tornou-se o
slogan
da atividade intelectual no seu entorno),
conforme retrata um de seus discípulos, Elizabeth Lenk, em sua publicação das
correspondências trocadas com o antigo professor.
No imaginário filosófico de Adorno, Lukács era considerado o pensador que,
de modo antinômico ao seu, tinha submetido seu pensamento à lei da
positividade histórica,
id est
, à disciplina do Partido Comunista, conservando
uma confiança obsoleta na racionalidade da história e recuando diante de
suas aporias. Sua consciência teria sido submetida ao constrangimento e à
autoridade (Adorno falava de um
Gewissenszwang
), traindo assim o impulso
emancipador que animava antes a crítica da reificação em seu livro
História
e consciência de classe
. (TERTULIAN, 2007a, p. 65)
Falamos, portanto, de uma ruptura entre dois intelectuais com origens
publicado na França em 1989 sob o título
Socialisme et démocratisation
(TERTULIAN, 2002b, 39) e foi
tratada com detalhes por Nicolas Tertulian em seu ensaio “Lukács e o stalinismo” (
cf
. TERTULIAN,
2007b).
17
Tanto Tertulian (2002b) quanto Vedda (2006) reconhecem que Lucien Goldmann operou esta mesma
aproximação entre os dois pensadores em sua obra
Lukács et Heidegger
(Paris: Médiations, 1973).
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aparentemente comuns: um
materialismo dialético
pendente de Hegel. Contudo, se
essa aproximação não é falsa, também não dá conta da especificidade de cada autor,
pois ambos tiveram trajetórias político-intelectuais radicalmente díspares. Podemos
assim dizer que Adorno e Lukács, oriundos de uma mesma matriz intelectual (o
hegelianismo, e posteriormente o marxismo), conciliam-se em um ponto fundamental,
o combate intransigente à reificação, contudo separam-se
no plano filosófico após a orientação de Lukács em direção a um materialismo
de caráter ontológico, ao qual sua obra final
Ontologia do ser social
forneceu
a expressão mais acabada, enquanto Adorno empreendeu um combate
encarniçado contra a própria ideia de ontologia, que resultou em um antídoto
poderosíssimo representado pela
Dialética negativa
. […] O postulado de
Lukács de um ser que transcende a consciência, indiferente em sua autarquia
ontológica à atividade da subjetividade, para Adorno é sinônimo de uma
traição à dialética: a ideia de uma transubjetividade do ser lhe parece
restaurar um dualismo estático entre ser e consciência, incompatível com o
entrelaçamento dialético que caracteriza em realidade as relações entre os
dois (TERTULIAN, 2007a, p. 67).
Adorno considerava, como já dito,
dogmática
a ideia de uma dialética imanente
ao ser e aproximava-se de Sartre ao apoiar uma “dialética crítica”, fundada sobre “a
presença inelutável da subjetividade” (TERTULIAN, 2007a, p. 68), capaz de recusar a
ontologia, algo notável desde seu
Sobre a metacrítica da teoria do conhecimento
(1937), sobre Husserl. Entretanto, essa sua batalha contra “a pretensão de uma busca
dos
primeiros princípios
tinha pertinência enquanto crítica ao “absolutismo lógico” de
Husserl e às certezas primordiais, como também à “ontologia fundamental” de
Heidegger (reflexão sobre o ser “como algo prévio à reflexão sobre o ente”), mas
extrapola seu valimento ao alçar tais censuras a toda tentativa de fundamentação
ontológica do pensamento.
[…] do mesmo modo ele se equivoca desde logo na identificação da
ontologia
tout court
a uma
prima philosophia
que enunciaria seus postulados
com uma independência pura em relação à reflexão das ciências e às
aquisições do pensamento cotidiano (TERTULIAN, 2007a, p. 68).
Essa sua
desconfiança
ante qualquer tentativa de ontologismo se explicita em
sua ignorância
quase absoluta da “ontologia crítica” de Nicolai Hartmann e em sua
recusa intransigente
ao materialismo dialético de cunho ontológico de Lukács, cuja
negação máxima se dá em sua conceituação antagônica entre
ontologia
e
dialética
, na
qual o dogmatismo ortodoxo característico à primeira é incompatível com a
necessidade de flexibilidade crítica da segunda, pontuação que permeará quase a
totalidade dos membros da Escola de Frankfurt (TERTULIAN, 2007a, p. 69).
Uma investigação mais detalhada das posições ontológicas de Hartmann e
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Lukács prova que não há antagonismo entre as duas categorias,
como queria Adorno,
uma vez que o nesses autores a necessidade da ontologia de fixar as “invariantes
do ser”. Conforme indica o filósofo brasileiro J. Chasin, em Lukács, a ontologia está
atrelada à dialética por ser um estudo do ser, não em acepção metafísica, mas do
ser
social
. Por isso, sua retomada da “dialética da particularidade” se em concomitância
“ao desenvolvimento de uma ontologia do ser social”, a fim de reconquistar a
possibilidade de “conhecimento pleno do objeto real e, portanto, da modificação
deste” (CHASIN, 1982, p. 58).
O que se verifica em Hartmann e, principalmente, em Lukács é, portanto, uma
historicidade do ser
e de suas categorias. Prova disso é a distinção que Hartmann
estabelece entre a “antiga filosofia” e a “nova filosofia” “crítica e fundamentada sobre
as múltiplas aquisições da experiência cotidiana e das diferentes ciências” (TERTULIAN,
2007a, p. 69) tal como a atribuição lukácsiana de prioridade à
intentio recta
em
detrimento à
intentio obliqua
, ancorando de maneira definitiva a reflexão ontológica
na experiência cotidiana.
A transubjetividade do ser, teorema fundamental do realismo ontológico, não
é a projeção de um “objetivismo sem mediação”, como pretendia Adorno (ao
falar de um
unvermittelten Objektivismus
), mas o resultado de uma reflexão
crítica sobre a natureza do conhecimento, que é, por definição, um ato
“transcendente”, confrontado sem cessar com a exterioridade que exige ser
apreendida. (TERTULIAN, 2007a, p. 69)
Adorno não refuta essa necessidade de confrontação entre conhecimento e
exterioridade, contudo recusa a “tese da autarquia do ser-em-si” (TERTULIAN, 2007a,
p. 69) relativamente autônomo à subjetividade cognoscente, com a qual o autor se
bate devido à dificuldade de pôr em curso uma resolução ao duplo risco filosófico
oferecido: por um lado, pelo
idealismo filosófico
(que prioriza a consciência ante o
objeto) e, por outro, pelo
materialismo metafísico
(que prima pelo objeto). Adorno
assumia assim uma problemática posição materialista que, todavia, não pactuava com
o materialismo vigente no bloco soviético.
O que Adorno considera um antagonismo entre
ontologia
e
dialética
, entretanto,
para Lukács tomará resolução radicalmente distinta. Igualmente incomplacente em
suas críticas aos descaminhos do marxismo, Lukács entenderá que é justamente
graças ao resgate da ontologia que o pensamento pode reencontrar a abertura para
o infinito categorial do ser” (TERTULIAN, 2007a, p. 70) e o consequente e necessário
renascimento do marxismo, ao qual se dedicará intensamente até o final de sua vida.
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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Enquanto a
Dialética negativa
, apesar das ambições metafísicas de seu autor,
é um trabalho essencialmente epistemológico girando em torno da relação
sujeito-objeto (a seção sobre a ética é deduzida dos postulados
epistemológicos),
Ontologia do ser social
é uma “doutrina das categorias”
[
Kategorienlehre
], em particular das categorias constitutivas do ser social,
em que o método é crítico por excelência e as categorias definidas por seu
substrato. (TERTULIAN, 2007a, p. 70)
Essa superação do epistemologismo pelo estabelecimento de uma posição
autenticamente ontológica, portanto também dialética, fica evidente na postulação do
realismo
lukácsiano. Para Lukács, ao se deparar com essas mesmas dificuldades,
Adorno considerou-as irresolúveis, hospedando-se confortavelmente em um grande
hotel para contemplar o abismal mundo contemporâneo (“Grande Hotel Abismo”,
referiu-se Lukács, como o fizera a respeito de Schopenhauer, em
A destruição da
razão
18
).
Outro importante elemento para a discordância entre os dois autores está no
segundo dos
Três estudos sobre Hegel
, de Adorno, no qual ele critica a aproximação
demasiada de Lukács à “contestável” tese hegeliana da “racionalidade do real”,
exposta em
Realismo crítico hoje
. “Se você considerar o mundo racional, ele vai
considerá-lo também como racional. Entre você e ele há uma determinação recíproca”
(TERTULIAN, 2007a, p. 71). Esta crítica de Adorno resplandece de maneira definitiva
a divergência entre os dois intelectuais: a fidelidade de um à
negatividade
e do outro
à ideia de
positividade
; divergência que os distancia para além das eventuais
afinidades.
Adorno e Lukács se encontram, portanto, até certo ponto, opondo o Hegel
logicista ao Hegel historicista, o Hegel que afirmava o caráter
devindo
(e não
coagulado) das determinações do ser. A reabilitação da contingência [
Zufall
],
contra o necessitarismo, lógico e histórico, se inscreve igualmente nesse
passo que lhes é comum. (TERTULIAN, 2007a, p. 72)
Situando cronologicamente, verificamos que, ao mesmo tempo em que Adorno
publicava sua
Dialética negativa
, Lukács dava os primeiros passos na elaboração da
sua
Ontologia do ser social
, fixando a superação dos problemas ante os quais Adorno
agonizava em pessimismo, tudo por meio de uma defesa da autonomia ontológica do
ser, fornecedora do fundamento primordial e inadiável de uma dialética materialista
18
“Somente após a vitória sobre Hitler, após a restauração e o ‘milagre econômico’ pôde essa função
da ética de esquerda na Alemanha sumir pelo cadafalso e ceder lugar, no fórum da atualidade, a um
conformismo disfarçado de não-conformismo. Boa parte dos escritores que ocuparam um lugar
importante na intelectualidade alemã inclusive Adorno hospedou-se no ‘Grande Hotel Abismo’ […]
‘um hotel provido de todo conforto moderno, mas à beira do abismo, do nada, do absurdo. O espetáculo
cotidiano do abismo, entre uma cozinha de qualidade e distrações artísticas, faz elevar o prazer
desse ‘requintado conforto’.” (LUKÁCS, 2005, p. 17-18)
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autêntica, capaz de superar, em um golpe, o idealismo filosófico e o materialismo
metafísico. Nas palavras de Tertulian:
tratava-se efetivamente de dar uma consistência categorial ao objeto, a que
Adorno reconhecia também o primado, mostrando o mapa de suas categorias
fundantes (a casualidade em primeiro lugar), pois estava clara para Lukács
uma verdadeira dialética sujeito-objeto (TERTULIAN, 2007a, p. 72).
A comprovação do primado da ontologia como raiz da querela entre os dois
autores é explicitada por Tertulian por meio do “caso Alfred Schmidt”, em que Adorno,
em seu prefácio em coautoria com Horkheimer, corrobora a tese de fundo do livro
O
conceito de natureza na doutrina de Karl Marx
. Trata-se da suposta oposição entre
Engels e Marx quanto à existência de uma natureza em si, tese prontamente refutada
por Lukács, que reconheceu o erro de Schmidt como originado de sua leitura de
História e consciência de classe
, na qual está afirmada a inexistência de uma dialética
da natureza. Assim, enquanto Adorno sustentará até o fim da vida essa inexistência,
Lukács consignará uma ontologia da natureza como o prelúdio necessário a uma
ontologia do ser social, conduzindo a complexificações filosóficas, especialmente das
relações sujeito-objeto. Tertulian diz a respeito de Adorno:
[…] ele admite muito bem a transcendência do objeto, mas lhe parece inconcebível
que as mediações assim descobertas (o sujeito se descobre de modo condicionado
múltiplo pelo objeto) tenham uma existência exterior ao trabalho mediador do sujeito.
Admiti-lo seria cair no pecado de uma ontologia que postula a autonomia ontológica
do ser-em-si, exterior a toda atividade mediadora do sujeito (TERTULIAN, 2007a, p.
73).
Contrário ao reconhecimento lukácsiano da existência objetiva de mediações na
“dialética da imediaticidade e da mediação na imanência do real”, Adorno refuta a
preponderância de uma autonomia da
causalidade
sobre a atividade do sujeito, devido
ao “caráter transubjetivo da teleologia humana nos nexos causais” (TERTULIAN, 2007a,
p. 75), como reconhecera Lukács em sua
Ontologia do ser social
.
A odisseia da subjetividade é descrita de modo mais complexo em
Ontologia
do ser social
(Adorno e Horkheimer planejavam também escrever uma
Urgeschichte
uma história originária do sujeito), entre outras razões porque
a heteronomia do sujeito, sua ancoragem na multiplicidade de cadeias
causais, é evocada de maneira mais completa e articulada: a tensão dialética
entre o sujeito e o objeto, entre a heteronomia do sujeito, entre o
constrangimento e a autoafirmação, é perseguida por Lukács na estratificação
de seus níveis, desde a relação entre objetivação e exteriorização, entre
reificação ou alienação e emancipação, aa dualidade entre gênero humano
em si e gênero humano para si. (TERTULIAN, 2007a, p. 74)
Esse apurado trato da subjetividade, que põe a captação dos nexos causais como
condição de possibilidade da atividade teleológica ao reconhecer a participação
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enérgica do sujeito na construção do real
19
, não teve tratamento semelhante na
Dialética negativa
ou em qualquer outra obra de Adorno. Por mais que não tenha
poupado censuras à suposta atrofia de Lukács no tratamento da subjetividade, Adorno
fundamenta sua tese na existência de uma
disharmonia prestabilita
na história,
executando uma aproximação, a ele agradável, entre Hegel e Schopenhauer, na qual a
“tese dialética de acordo com a qual a dissolução é consubstancial a tudo o que existe
se associa com a metafísica […] da irredutibilidade do mal” (TERTULIAN, 2007a, p.
74). Ou seja, se para Lukács a dialética negativa configura um “falso revolucionamento”
pela absolutização da negatividade do mundo e aqui se faz forte a imagem do
Grande Hotel Abismo , para Adorno tratava-se de diminuir a positividade da visão
lukácsiana da resolução das contradições históricas, mero “epifenômeno das
convicções comunistas do filósofo” (TERTULIAN, 2007a, p. 75).
Equacionadas as posições, Lukács não admite “situações sem saída”, o que torna
a negatividade do mundo um mito, pois mesmo nas condições humanas mais abismais,
nas quais o colapso caótico é mais iminente, o sujeito histórico sempre é capaz de
encontrar “na imanência do real as alternativas às ameaças que pesam contra ele”
(TERTULIAN, 2007a, p. 75), contrapondo à ideia de
liberdade
o conceito de
alternativa
.
Para Adorno a noção de
alternativa
é uma “genuflexão diante do real”, como se
constata na passagem de sua
Dialética negativa
precisamente levantada por Lukács:
“Mas assim que a situação alternativa deva servir à ideia de autonomia, ela é
heterônoma, mesmo antes de todo conteúdo. […] Será livre apenas aquele que não se
submeter a nenhuma alternativa e, efetivamente, se recusar a toda alternativa é um
índice de liberdade” (TERTULIAN, 2007a, p. 75-76).
Como se vê, as divergências estéticas entre os autores se baseiam na diferença
existente entre suas perspectivas históricas, pois Lukács depositava no indivíduo a
capacidade de resistência a situações de extrema penúria e desperspectivação, ao
passo que Adorno via nessa positividade lukácsiana a condução do filósofo húngaro a
erros na avaliação das obras de arte, pois sua
dialética afirmativa
atava-o a ditames
estéticos clássicos que não lhe permitiam vislumbrar o que havia de mais elevado na
arte moderna, precisamente sua ruptura com o realismo de fundamentação clássico-
19
Essa é a fisionomia fundamental de sua “teoria do reflexo”, em que não se trata do reflexo passivo
do mundo, mas uma forma especial, mimética, que realiza a missão da arte como desfetichizadora, por
meio do retrato fiel do movimento da realidade.
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humanista, forma única para revelar por “autênticas imagens dialéticas a negatividade
profunda do nosso tempo” (TERTULIAN, 2007a, p. 78).
É bom frisar, todavia, que Lukács não ignora a negatividade presente na
realidade mundana contemporânea. Ele apenas não considera tal condição como uma
inelutabilidade histórica, pois confia na existência imanente de contraforças e
contratendências”, sempre à procura da
vox humana
de alcance universal”
(TERTULIAN, 2007a, p. 78). Também não podemos esquecer que a posição de Lukács
se modificou bastante, desde o seu
Realismo crítico hoje
até os últimos escritos de sua
Estética
, na qual ele mesmo chega a contrapor Kafka a Beckett, ficando o primeiro no
estatuto de grande escritor, ao patamar de Jonathan Swift, “expressão parabólico-
fantástica da negatividade do seu tempo” (TERTULIAN, 2007a, p. 79)
20
.
Assumindo os riscos que toda síntese acarreta, poderíamos dizer que Adorno
e Lukács se conciliam no reconhecimento da condição excepcional da obra de arte
(que se emancipa da pressão ideológica por sua obediência a uma lógica própria,
relativamente autônoma), mas se distanciam pelo apego lukácsiano à
catarse
como
coditio sine qua non
da positivação mimética, em clara oposição à concepção
adorniana de imersão monadológica da lei formal da obra” como transcendência à
perspectiva humanista, logo, à “ingerência ideológica sobre a imanência estética das
obras, […] [pois] apenas uma expressão sem concessões e conduzida ao limite da
negatividade podia fazer justiça à verdadeira condição do homem contemporâneo”
(TERTULIAN, 2007a, p. 79), encarnando o caráter essencialmente utópico da arte
21
.
A categorização da instituição arte (um adendo)
Antecedendo em 11 anos o primeiro texto de Nicolas Tertulian sobre o tema
(1985), e em 22 o de Miguel Vedda (2006), o teórico marxista Peter Bürger
desenvolveu, na Universidade de Bremen, o seu trabalho
Avantgarde und bürgerliche
20
“Infelizmente, por causa de condições muito desfavoráveis, concluí de modo muito apressado meu
pequeno livro [
Realismo crítico hoje
], de modo que determinados pontos de vista não foram expressos
nele de modo bastante claro. Refiro-me, sobretudo, ao fato de que existe em Kafka uma tensão que tem
uma única analogia na era moderna, ou seja, com Swift.” (COUTINHO, 2005, p. 211-212)
21
Em música isso não se deu de maneira distinta. Lukács buscava a moção dos afetos por meio de uma
vox humana
universal, a qual encontrou em seu conterrâneo Béla Bartók, especialmente em suas obras
tardias, nas quais o compositor desenvolveu uma nova forma de organização do espectro sonoro a
partir de modos populares, atitude que Adorno considerava um retrocesso para alguém que teve um
início de carreira o promissor. Para Lukács, Bartók era a contraposição justa e necessária a Adrian
Leverkühn (
Doutor Fausto
de Thomas Mann, inspirado na
Filosofia da nova música
de Adorno), enquanto
para Adorno, não passava de
Völkisch
(populismo). A este respeito, ver o detalhado artigo de Nicolas
Tertulian,
Lukács/Adorno: la réconciliation impossible
.
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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Gesellschaft
[
Vanguarda e sociedade burguesa
], no qual dedicou vultoso espaço
analítico à presente disputa. O trabalho foi publicado em 1974, com o título de
Teoria
da vanguarda
.
Em sua obra, Bürger considera que Lukács aplicou o modelo da estética
hegeliana à sociedade burguesa, articulando-a a uma interpretação marxista da
história, o que acabou redundando, por força epistemológica, em seu afamado
“classicismo” (BÜRGER, 1993, p. 16)
22
. E, se o autor é enfático ao comentar a
depreciação das vanguardas em Lukács legando-a a traços epistemológicos
hegelianos ainda existentes no seu método materialista , por outro, não é menos
crítico ao falar de sua contraposição máxima: a teoria estética adorniana.
Ao torná-lo [o método hegeliano] extensivo à literatura pós-1848,
considerada a partir dos cânones do realismo clássico, o ponto de vista de
Lukács toma a evolução literária como um sintoma da decadência da
sociedade burguesa. […] Adorno, pelo contrário, tenta idealizar o
desenvolvimento da arte na sociedade burguesa segundo o desenvolvimento
de um incremento de racionalidade, de um crescente controlo do homem
sobre a sua arte. O ponto em que as perspectivas destas teorias parecem
encontrar-se é uma visão dos movimentos de vanguarda como sendo o
estádio mais avançado da arte na sociedade burguesa. (BÜRGER, 1993, p.
16-17)
Seguindo o raciocínio de Bürger, a arte de vanguarda ocupa “pontos de
referência” nas teorias de ambos; em um caso, marcado por positividade, e no outro
por negatividade, o que “ocultou e suspendeu por muito tempo o estudo daquilo que
ambos, marxistas hegelianos, têm em comum, e que consiste no método da crítica
dialética” (BÜRGER, 1993, p. 34). No entanto, se a análise dialética dos objetos
ideológicos é o ponto comum entre os autores, esses “objetos são contraditórios, e a
missão da crítica é expressar conceitualmente essa contradição. […] A relação entre
crítica da ideologia e crítica da sociedade é evidentemente diferente no caso de Lukács
e Adorno” (BÜRGER, 1993, p. 35).
É o que se verifica nas páginas iniciais de
Teoria estética
, em que Adorno expõe
suas categorias para a análise das obras de arte, especialmente as modernas. Uma vez
que, em sua visão, a arte também está submetida à pressão do consumo, à
mercadificação, à produção incessante do novo na sociedade mercantil industrial, a
busca constante pelo novo torna-se a forma única de resistência a essa pressão do
22
Como se verá adiante, a crítica de Bürguer é bastante específica e de modo algum infundada. Não se
trata, como ocorrido outrora, da acusação de hegelianismo reacionário” (Otto Pöggeler) ou
“classicismo epigonal” (Ernst Bloch), mas do reconhecimento de traços epistemológicos hegelianos que
persistem em seu direcionamento ontológico.
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consumo, pois “só conduzindo sua
imagerie
(refere-se à poesia de Baudelaire) em
direção à autonomia própria pode atravessar esse mercado que lhe é heterônimo. O
moderno é arte mediante a imitação do estranho” (BÜRGER, 1993, p. 108).
Adorno chama moderna à arte produzida a partir de Baudelaire. O conceito
engloba os antecedentes dos movimentos de vanguarda, os próprios
movimentos e a neovanguarda. Enquanto eu tento mostrar os movimentos
históricos de vanguarda como um fenômeno delimitado pela história, Adorno
parte da unidade da arte moderna como única arte legítima do presente.
(BÜRGER, 1993, p. 136)
Esse teorema de Adorno, que vê os empreendimentos da vanguarda como
elos
naturais
no desenvolvimento da arte moderna, segundo Bürger, perde sua validade
quando se descobre que os movimentos históricos de vanguarda não
pretendem romper com os sistemas de representação herdados, como ainda
aspiram superar a instituição arte em geral. Trata-se, de fato, de fazer algo
de
novo
, que este
novo
distingue-se qualitativamente tanto das
transformações dos processos artísticos quanto da transformação dos
sistemas de representação” (BÜRGER, 1993, p. 110).
Seu conceito a respeito da arte moderna não é, portanto, necessariamente falso,
contudo, é inaplicável à especificidade vanguardista.
Os movimentos de vanguarda transformaram a sucessão histórica de processos e
estilos numa simultaneidade do radicalmente diverso. O resultado foi que nenhum
movimento histórico pode hoje arvorar a pretensão de ocupar,
enquanto arte
, um
lugar historicamente superior ao de outro movimento. De modo que a neovanguarda,
ao assumir esta pretensão, mais não pode do que proclamá-la, porque já foi realizada
num período anterior. Contra a aplicação de técnicas realistas, é possível argumentar
nos dias de hoje recorrendo ao nível histórico das técnicas. Se Adorno argumentou
assim, isso demonstra que como teórico pertence à época dos movimentos históricos
de vanguarda. Prova disso é tê-los considerado não como algo de histórico, mas
como algo cuja vida perdurou até ao presente. (BÜRGER, 1993, p. 112)
Profundamente calcada na teoria da alegoria benjaminiana, essa instauração
crítica de Bürger entende a
vanguarda
como uma tentativa de ruptura com a categoria
da autonomia estética, num desejo profundo de dissolver a arte na práxis cotidiana, o
que põe fim tanto à monadologia técnica de Adorno, quanto à particularidade do
estético de Lukács
23
.
O fervor entusiasta pelo material e a sua resistência contra o acaso é, desde os
poemas de Tristan Tzara à base de recortes de jornal até aos modernos
happening
,
não causa, mas consequência de uma situação social onde a falsa consciência
respeita as manifestações do acaso, libertas de ideologia, não estigmatizadas pela
total coisificação das relações vitais entre os homens. […] A partir da verificação de
que numa sociedade ordenada conforme à racionalidade dos fins, a possibilidade de
desenvolvimento dos indivíduos é sempre limitada, os surrealistas procuram descobrir
momentos de imprevisão na vida quotidiana. A sua atenção concentra-se, portanto,
em fenômenos que não cabem no mundo da racionalidade dos fins. (BÜRGER, 1993,
23
Segundo Bürger, essa transposição da arte para a práxis cotidiana, intentada pelos movimentos de
vanguarda, não pôde nem pode ocorrer nos marcos da sociedade burguesa, a não ser como “falsa
superação”. Contudo, seu resultado não é desprezível, uma vez que assim se torna reconhecível o
peso da instituição arte na recepção das obras individuais.
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 232-267 - mar. 2022 | 263
p. 113)
Longe de qualquer tonalidade apologética, Bürger na arte de vanguarda o
surgimento de uma obra inorgânica”, na qual as partes não se subordinam a uma
unidade total, como tão claramente defendera Lukács. Nesta nova forma artística, a
qual o autor prefere chamar simplesmente de “manifestação” ou “empreendimento”
de vanguarda uma vez que ela rompe com as especificidades do estético , os
elementos técnicos “perdem o valor como ingredientes de uma totalidade de sentido
e ganham-no como signos relativamente independentes” (BÜRGER, 1993, p. 144)
24
.
Essa contraposição entre obra de arte orgânica e vanguardista é a base das
críticas de Lukács e Adorno às vanguardas, ainda que tragam divergências
fundamentais, mesmo antagônicas. Para Lukács a obra de arte orgânica é a obra
“realista” – e lhe é bastante cara a distinção entre
realismo
e
naturalismo
, por isso a
vanguarda é uma
decadência
. Para Adorno, a obra de vanguarda atende ao imperativo
histórico de negação do realismo no novo estágio societal, tornando o realismo no
século XX um retrocesso estético, como ficou mais que evidente em “A reconciliação
extorquida”.
No caso lukácsiano, Bürger nota a presença de “alguns momentos essenciais da
concepção hegeliana”, contudo conduzidos a sua devida materialidade. O que em
Hegel era uma contraposição oriunda do movimento dialético de forma e conteúdo no
evolver do espírito em sua autorrevelação, em Lukács torna-se a oposição entre arte
realista e vanguarda. Ou seja, para ambos a arte é concebida dentro do quadro de
uma filosofia da história, todavia, para o pensador húngaro, a história não é o
movimento autônomo do espírito, mas a história da sociedade burguesa, entendida a
partir dos apontamentos marxianos. Por isso, Lukács vislumbra uma inviabilização da
arte burguesa após 1848 e a perda da totalidade como uma forma de decadência
historicamente necessária
25
.
Lukács, assim, transfere a crítica hegeliana da arte romântica para o
fenômeno da decadência historicamente necessária da arte de vanguarda, e
faz o mesmo com a ideia de Hegel segundo a qual a obra de arte orgânica
constitui um tipo de perfeição absoluta, com a diferença de considerar a
perfeição mais realizada nas grandes novelas realistas de Goethe, Balzac e
24
Antes de Bürger, o poeta e crítico brasileiro Haroldo de Campos havia chegado a conclusões bastante
similares em seu artigo intitulado A obra de arte aberta (
Diário de São Paulo,
3 jul. 1955), o que
posteriormente foi reconhecido por Umberto Eco, em sua introdução à edição brasileira de
A obra
aberta
, como antecipação de suas ideias estéticas (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 1987, p. 49-54).
25
Essa concepção está presente em seu pensamento desde a década de 30 (
cf
. “Narrar ou descrever”
in
LUKÁCS, 1965).
Leandro Candido de Souza
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Stendhal do que na arte grega. (BÜRGER, 1993, p. 146)
É o
realismo crítico
como método de reprodução artística da realidade por meio
do recurso à
tipicidade
e à
narração
formas inalienáveis para a captação da
negatividade oculta ao imediato sensível e um critério para o julgamento da arte, o
que põe, para Lukács, o ponto máximo do desenvolvimento da arte no passado, ainda
que sua execução no presente não esteja inviabilizada , numa notável superação da
similar assertiva hegeliana do fim da arte, admitindo, mesmo, o valor artístico do
realismo burguês no século XX, o que se liga à mencionada questão das
alternativas
dentro do fluxo histórico.
A este respeito, Adorno, firmado no entendimento da negatividade dialética e
crítico voraz da identidade, falou da arte como um eterno devir que não se submete à
“reconciliação forçada” entre arte e realidade. Por isso, “para ele, a obra vanguardista
constitui a única expressão autêntica da situação atual do mundo” (BÜRGER, 1993, p.
146), ou seja, a expressão historicamente necessária da alienação nas sociedades
capitalistas modernas, nas quais as esperanças depositadas no socialismo estão
descartadas pelos fatos históricos.
Nesta perspectiva, a obra de vanguarda oferece-se como expressão
historicamente necessária da alienação na sociedade capitalista avançada;
pretender aplicar-lhe o padrão da unidade orgânica das obras clássicas, isto
é, realistas, seria inadequado. (BÜRGER, 1993, p. 146)
Aqui notamos outro ponto similar na diagnose: a consideração de que os
movimentos de vanguarda são expressão da alienação do indivíduo sob a égide do
capitalismo industrial avançado. Entretanto, em Lukács esse índice não basta, cabendo
ao artista a missão de identificar as forças históricas reais que se opõem a essa
alienação e lutam para conseguir a transformação da sociedade, ao passo que, em
Adorno, “o progresso técnico abre a possibilidade de uma existência humanamente
digna para todos, mas de modo algum necessariamente a provoca” (BÜRGER, 1993,
p. 147).
Resumindo-o em forma de tese: a polêmica entre Lukács e Adorno sobre a
legitimidade da arte de vanguarda reduz-se ao aspecto do meio artístico e
às alterações que produz no tipo de obra (orgânica
versus
vanguardista).
Nenhum dos dois se ocupa, no entanto, do ataque dirigido contra a
instituição arte pelos movimentos históricos de vanguarda. (BÜRGER, 1993,
p. 147)
No ataque da vanguarda à instituição arte é onde se “o acontecimento
decisivo no evoluir da arte na sociedade burguesa, porque pôs em evidência o papel
desempenhado pela instituição arte, determinando o efeito de cada obra em particular”
Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no século XX
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(BÜRGER, 1993, p. 147), algo que não está presente em Adorno, que a arte de
vanguarda como um protesto radical e último contra toda a “falsa reconciliação com o
existente” não a enxergando como uma afronta radical à autonomia da arte pela
tentativa de dissolução da arte na práxis cotidiana , nem em Lukács, que condenava
o protesto vanguardista como desvalido de suas intencionalidades exatamente por
essa negação.
O significado da ruptura na história da arte, provocada pelos movimentos
históricos de vanguarda, não consiste, de fato, na destruição da instituição
arte, mas talvez na destruição da possibilidade de considerar valiosas as
formas estéticas. (BÜRGER, 1993, p. 148)
O que o adendo bürgeriano nos demonstra é que tanto Adorno quanto Lukács,
devido não apenas a um constrangimento histórico, mas a suas posições éticas, foram
incapazes de reconhecer seja pela negação, no caso lukácsiano, seja pela apologia,
no adorniano as implicações que os empreendimentos de vanguarda tiveram na arte
do século XX. Se bem que Lukács, diferentemente de Adorno, falou em “autodestruição
da estética” (
Realismo crítico hoje
) ao aperceber-se das inflexões que essa “falsa
superação” teve na determinação do papel da estética nas obras individuais a partir
de então
26
, ainda que não tenha conseguido medi-la com precisão em todos os casos.
Por fim, isso se exemplifica novamente em uma negação comum advinda de
motivações antagônicas: a recusa de ambos ao teatro de Bertolt Brecht. Lukács, por
seu apego ético à epopeia, considerava-o alinhado ao “inorganismo”, à desnaturação
dos elementos próprios do fazer estético, enquanto Adorno o filiava negativamente ao
“ideologismo”, pois, para o filósofo, a relação entre obra e sociedade deve ser
inconsciente, devido ao isolamento monadológico da forma artística, algo
absolutamente contraposto à poética brechtiana.
Em última palavra, os movimentos históricos de vanguarda nascidos na primeira
metade do século passado operaram uma
ruptura
no desenvolvimento da arte na
26
Walter Benjamin conseguiu perceber isso devido a seu desejo de desativar violentamente as
categorias da estética idealista. Séquito de seu desapego epistemológico, o anti-idealismo radical de
Benjamin que não se deu sem consequências permitiu-lhe apreender, a partir dos esforços
conjugados dos surrealistas e do teatro inovador de Bertolt Brecht, a superação da autonomia da arte,
a qual ele apresentou, entre tantas maneiras, pela “perda da aura”. Já Lukács providenciou um grande
aprofundamento dessa problemática em seu ensaio sobre as obras de Alexander Soljenitsin (1969)
publicado em francês com o título
Soljénitsine
(Paris: Gallimard, 1970) , no qual estabeleceu uma
transformação na forma romanesca operada a partir das manifestações vanguardistas: a “totalidade de
reações” do novo realismo, contraposta à “totalidade dos objetos”, característica ao realismo épico-
burguês.
Leandro Candido de Souza
266 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 232-267 - mar. 2022
sociedade burguesa, não sua supressão.
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em: 10 set. 2021.
VEDDA, Miguel.
La sugestión de lo concreto.
Estudios sobre teoría literaria marxista.
Buenos Aires: Editorial Gorla, 2006.
Como citar:
SOUZA, Leandro Candido de. Avessos da dialética: Adorno, Lukács e o realismo no
século XX,
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 232-267, mar. 2021.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y
Günther Anders como intérpretes de Kafka
For a thoroughly understood realism: György Lukács and Günther
Anders as interpreters of Kafka
Miguel Vedda*
Resumen: El presente artículo se ocupa de
analizar las interpretaciones presentadas por
Günther Anders y György Lukács acerca de la
obra de Franz Kafka. Con el objetivo de
desmitificar falsas confrontaciones, se cuestionan
algunos puntos centrales de este debate: las
afinidades entre Anders y Lukács, la problemática
de la extranjería y de la alienación en la
modernidad y el carácter profético del realismo
kafkiano. Finalmente, se examinarán los límites
de las lecturas de ambos, centrándose sobre
todo en la novela
El desaparecido
.
Palabras clave: Günther Anders; György Lukács;
Franz Kafka; realismo; alienación.
Abstract: This paper is concerned with analyzing
the interpretations of Günther Anders and
György Lukács in relation to the work of Franz
Kafka. With the aim of demystifying false
confrontations, some central points in this debate
are questioned: the affinities between Anders
and Lukács, the problems posed by foreignness
and alienation in Modern times, and the
prophetic nature of Kafkaesque realism. Finally,
the limits on the interpretations of both will be
examined, focusing mostly on the novel
Amerika
.
Keywords: Günther Anders; György Lukács; Franz
Kafka; realism; alienation.
I
Bajo una primera mirada (y no solo bajo la primera), los caminos de György
Lukács y Günther Anders podrían parecer predestinados a permanecer eternamente
separados y aun a seguir direcciones opuestas. Sería no solo sencillo, sino también
actual establecer entre ambos una de esas confrontaciones entre ángeles y demonios
que tanto se complacen en proponer los ámbitos académicos contemporáneos; ante
todo, al considerar a pensadores marxistas. Resulta curioso que profesores
convencidos de la necesidad de deconstruir las matrices binarias de pensamiento se
muestren incapaces de ir más allá del enfrentamiento similar a los que prodiga el cine
de masas entre héroes y villanos. De esa manera suelen despacharse de manera
rápida y banal importantes debates filosóficos del siglo XX. La obra del gran filósofo
* Prof. titular plenario de la cátedra de Literatura Alemana y Director del Departamento de Letras
(Facultad de Filosofía y Letras, UBA). Investigador principal del Conicet. Miembro del consejo de
redacción de la revista
Herramienta
.
E-mail
: miguelvedda@yahoo.com.ar.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.637
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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marxista húngaro ha sido víctima recurrente de estas estrategias de trivialización; así,
las confrontaciones entre Lukács y Adorno, entre Lukács y Sartre, entre Lukács y
Benjamin, entre Lukács y Bloch son a menudo expuestas a partir de un modelo binario,
en el cual el autor de la
Ontología
funciona como la cabeza de turco que es preciso
cercenar. Esto requiere recurrir a la estrategia, llamativamente reiterada, de atribuir a
Lukács posiciones que jamás defendió, o que incluso dedicó la mayor parte de su vida
a combatir; así, por ejemplo, se le imputa el empeño en subordinar la obra de arte a
la difusión de un programa político determinado. Los autores de la imagen
absurdamente infundada de un Lukács hostil a la autonomía estética no logran, por
ejemplo, explicar por qse empeñó el filósofo en encumbrar las obras de Balzac,
Scott y Thomas Mann, en lugar de dedicarse a ensalzar a los poetastros del stalinismo.
La forma habitual de exponer la polémica Lukács-Brecht ofrece un ejemplo típico de
esta estrategia de banalización: para ciertos profesores norteamericanos y europeos,
Brecht habría sido el encargado de rescatar al Expresionismo del anatema lanzado
sobre él Lukács en los conocidos artículos publicados en
Das Wort
. El lector de la obra
ensayística de Brecht sabe muy bien que el aborrecimiento que sentía este último por
el Expresionismo era muy intenso y que dio lugar a declaraciones que superan
ampliamente, en su virulencia y encono, a los comentarios críticos desplegados en
“Grandeza y decadencia del Expresionismo” (1934) o en “Se trata del realismo” (1938).
Cabría fácilmente imaginar un artículo estructurado con semejante espíritu
reduccionista. Ese artículo diría, por ejemplo, que la diferencia que existe entre Anders
y Lukács es la que media entre un intelectual “independiente”, “libre” y otro sometido
a la férrea disciplina de un partido; diría que la identificación del ensayista alemán con
los exiliados y marginales con la figura del
Außenseiter
diverge del presunto empeño
del pensador húngaro en identificarse con las instancias oficiales. Opondría la
celebración andersiana de la literatura vanguardista Kafka, Döblin, Brecht a la global
condena lukácsiana de esa tradición y aun de los autores indicados. Desde un punto
de vista similar, pero con signos invertidos, podría asimismo apuntarse la diferencia
entre el compromiso político del militante marxista y el supuesto indiferentismo
político del censor
kulturkritisch
de la Modernidad tecnocrática. Agregaría en esta
misma línea que el pesimismo radical de Anders se encuentra en las antípodas del
filósofo que se complacía en parafrasear así la célebre frase de Zola:
La vérité est
Miguel Vedda
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lentement en marche, et à la fin des fins, rien ne l’arrêtera
1
. Afirmaría, por fin, que las
expectativas puestas por Lukács en las posibilidades emancipadoras del proletariado
contrastan con la identificación de Anders con los marginales, tras la cual podría acaso
esconderse una nostalgia por la
bohème
lumpemproletaria. Pero en cuanto se empieza
a golpear con la vara en la superficie de estas contraposiciones, comienza a notarse
que se trata de construcciones huecas, que un análisis sutil conseguiría rápidamente
desmantelar. Pronto se advertiría que Lukács se encontró siempre muy lejos de ser un
exponente reverente y reverenciado de los Partidos Comunistas húngaro y soviético
en particular, durante el período stalinista; que él se mostraba muy escéptico respecto
del optimismo de la voluntad y la esperanza que animaba a otros intelectuales
marxistas contemporáneos (pensemos en Bloch y en Korsch, para mencionar a dos
figuras muy diferentes entre sí en otros aspectos); que las críticas a Kafka, que fueron
mitigándose y alterándose con el paso del tiempo, convivieron con el reconocimiento
de que el autor checo es uno de los escritores más excepcionales de la Modernidad
tardía. Por otra parte, la silueta de Anders como pesimista desesperanzado no se
condice con la realidad del intelectual intensa y valientemente comprometido con
variedad de causas, entre las cuales cabe destacar la del desarme nuclear, a la que se
entregó con ejemplar empeño; no en vano uno de los capítulos principales de la
correspondencia con Lukács tuvo que ver con la campaña, impulsada por este último,
por Angela Davis. También se pondría en evidencia que en la valoración que hace
Anders de los escritores modernistas no faltan los tonos críticos; así, en relación con
Kafka, quien recibe tanto elogios como críticas en un estudio que lleva el sugestivo
título de
Kafka pro und contra
(1951). Por otra parte, hay en el Anders maduro y tardío
un reconocimiento constante de la obra de Marx, en cuanto herramienta indispensable
para comprender y transformar la Modernidad capitalista, y una identificación rotunda
con la clase proletaria no menor que la que posee con otros humillados y ofendidos.
Y no debe entenderse como una impugnación de la clase trabajadora el hecho de que
Anders le pida a esta, por un lado, que no demande mejores condiciones de vida en
el mundo existente, sino la anulación de las relaciones esencialmente indignas entre
trabajo asalariado y capital esto mismo es lo que exigía Marx, después de todo; por
1
La frase de Zola (“
La vérité est en marche, et rien ne l'arrêtera!
”) fue uno de los más difundidos gritos
de guerra durante el caso Dreyfus. Cuando el senador Scheurer-Kestner exigió la revisión de dicho caso,
Zola escribió un artículo en
Le Figaro
(25 de noviembre de 1897) encabezado, precisamente, por esa
fórmula.
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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otro, que salga a las calles para manifestarse en contra de la producción de mercancías
moralmente despreciables. De ahí que haya propuesto formular en estos términos el
imperativo categórico de la era atómica:
Posee solo aquellas cosas cuyas máximas de
acción podrían convertirse también en máximas de tu propio accionar
(ANDERS,
1992, v. 1, p. 298).
2
En sí, las extensas reflexiones de Anders sobre el fetichismo de
la mercancía y sus efectos sobre la conciencia recuerdan en muchos aspectos al Lukács
de “La cosificación y la conciencia del proletariado” (1922). Especial trascendencia
tiene el hecho de que ambos autores hayan realizado apasionadas defensas de sus
concepciones tan particulares y tan mal comprendidas del realismo artístico y hayan
intentado bosquejar los contornos de un realismo acorde con las específicas
condiciones del siglo XX.
Un cotejo más escrupuloso podría descender hasta los pequeños detalles, en
los que, de acuerdo con la conocida máxima, se oculta el buen Dios. Una cita recurrente
en la obra teórica y crítica, así como en los escritos personales de Lukács, es la célebre
declaración del personaje de Philine en los
Años de aprendizaje de Wilhelm Mesister
de Goethe:
und wenn ich dich lieb habe, was geht‘s dich an?
”. La cita procede del
episodio del libro cuarto, capítulo nueve, en el que Wilhelm confiesa sentirse turbado
ante la incapacidad de devolverle a Philine la ayuda que de esta ha recibido; la
respuesta de la muchacha es una suerte de reedición en clave terrenal y plebeya de la
ética spinoziana: Nunca le he concedido demasiada importancia a la gratitud de los
hombres, por eso tampoco a ti te exigiré nada. Además, si yo te quiero, ¿a ti qué más
te da? (GOETHE, 2006, p. 353). El propio Goethe, en
Poesía y verdad
(1808-31),
vincula la fascinación que despertó en él el descubrimiento de la filosofía de Spinoza
justamente con esta declaración de Philine, que suena como una reformulación del
amor dei intellectualis
. Dice Goethe en la autobiografía:
Aquella peregrina sentencia: “Quien bien ama a Dios no debe exigir que Dios
le ame a él”, con todas las premisas anteriores que le sirven de base y todas
las consecuencias que de ella se desprenden, absorbían toda mi capacidad
de reflexión. Ser desprendido en todo, y sobre todo en el amor y la amistad,
era mi afán supremo, mi máxima, mi ejercicio, de suerte que aquella
descarada frase ulterior: “Si yo te quiero, ¿a ti qmás te da?”, me saltó
verdaderamente del alma. (GOETHE, 1985, p. 397; la traducción ha sido
levemente corregida)
Lukács cita en varias ocasiones estas palabras de Philine, en las que encuentra
2
En general, hemos tratado de citar de acuerdo con las buenas ediciones disponibles en castellano.
Cuando no hay edición en castellano, o las ediciones existentes no nos convencen, ofrecemos, como
aquí, una traducción propia.
Miguel Vedda
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una íntima afinidad con su ideario ético tardío. Por ejemplo, en la conferencia “Marx y
Goethe” (1970) hace referencia
a la revolucionaria teoría de Spinoza acerca del
amor dei intellectualis
. Las
viejas teorías sobre una relación metafísica de la ética con el premio y el
castigo, fueron atacadas aquí duramente; en última instancia, en interés de
una praxis humana terrenal, acorde con la esencia genérica; una praxis
humana que descartando el premio y el castigo como o reales reconocía
en su contenido humano (genérico) el único criterio real de su valor propio.
La influencia de Spinoza sobre Goethe es conocida. Piensen, por ejemplo, en
la sentencia que Goethe puso en boca de su Philine bastante poco virtuosa,
según los parámetros de un burgués medio–: “y si te amo, ¿qué te importa?”.
(LUKÁCS, 2007, p. 56)
La cita que acabamos de reproducir aparece en el contexto de una justificación
de la genericidad (
Gattungsmäßigkeit
) como “parámetro sólido para las decisiones de
nuestra interioridad, la que se torna prácticamente fructífera y, en este sentido,
imprescindible para una vida verdaderamente humana” (LUKÁCS, 2007, p. 58).
También para Anders y estamos convencidos de que este es una de las bases más
firmes, si no la fundamental, de su amistad con Lukács es la genericidad un parámetro
constante para el pensamiento y, sobre todo, para la acción, al margen de que aparezca
o no la categoría en sus escritos. Consideramos revelador que, a la hora de formular
el
Prinzip-Trotz
(el principio “a pesar de”), en el que intenta resolver la (en apariencia)
paradójica conjunción de un pesimismo y un compromiso intensos que reconoce en él
mismo, Anders realice una paráfrasis de las palabras de Philine: “‘¡Si estoy
desesperado, qué me importa!’. Este no es ningún ‘principio esperanza’. A lo sumo, un
‘principio a pesar de’” (RADDATZ, 1986, p. 30). No es un hecho azaroso, entonces,
que, en respuesta a la carta en que Anders enuncia su
Prinzip-Trotz
”, Lukács
responda: “Su posición interna frente a la desesperación me ha caído muy bien en
términos humanos. Creo, con todo, que en el plano intelectual se debe ir más allá de
afectos tales como la esperanza o la desesperación”. Y agregue: “El hecho de que no
lo haga y quiera hacer de un afecto un principio objetivo es uno de los límites
intelectuales de Bloch” (LUKÁCS, 1997, p. 61; carta del 6 enero 1968). Las discusiones
en torno a la actualidad de la desesperación y los modos sociales de reaccionar ante
ella cumplen un papel en los análisis que hacen ambos autores de la obra de Kafka.
II
La afinidad elemental de Anders con Kafka podría encontrarse en la identificación
intensa y dramática de ambos con la figura del extranjero. A partir de esto sería posible
trazar paralelos con la obra del joven Lukács, en la que la Modernidad burguesa es
descripta como una era en la que, desvanecida toda cultura auténtica, los seres
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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humanos se encuentran condenados a una perpetua incomprensión mutua. La ausencia
de una
comunicación cualitativa
condena a los sujetos al solipsismo y hace que ellos
se pierdan en el laberinto de los
malentendidos
(
Mißverständnisse
).
Nous mourrons
tous inconnus
: en esta tesis enunciada por el narrador de la
Historia de los Trece
de
Balzac se resume, para el joven Lukács, el modo de existencia de los hombres en las
civilizaciones burguesas. El hecho de que, en el drama moderno, no existe un
verdadero diálogo entre los caracteres, tal como se expone con todo detalle en
Evolución histórica del drama moderno
(escrita, en su mayor parte, entre 1907-9, y
editada, con algunos cambios significativos, en 1911), es tan sintomático como la
centralidad que, dentro de los géneros épicos, ha ido asumiendo la novela, a la que
Lukács define como la forma más representativa de la era del individualismo. En
Teoría
de la novela
,
3
la posición del joven Lukács frente a este estado del mundo se expresa
de manera especialmente profunda y concisa cuando se presenta al desamparo
trascendental (
transzendentale Obdachlosigkeit
) como la vivencia distintiva del hombre
moderno y se afirma que “en el Nuevo Mundo, ser hombre quiere decir ser solitario”
(LUKÁCS, 1985, p. 304). Pero el anhelo del joven Lukács es la recuperación de la
comunicación cualitativa; lo que equivale a decir: la gestación de nuevas culturas,
capaces de restituir un sentido un
ethos
a la vida de los hombres, rescatándolos de la
mortal soledad a la que los ha condenado la vida burguesa. La disposición de Anders
frente al “desamparo” es más pesimista: no hay en él una
Gemeinde
rusa capaz de
proveer una alternativa para el individualismo burgués; de ahí que sea más rotunda su
simpatía por los desplazados y marginados; en palabras suyas: por los
hombres sin
mundo
. En esto se asemeja mucho menos a Lukács que a Siegfried Kracauer; sobre
todo, al Kracauer posterior al gran viraje de 1925-26. Hay en este una recurrente
celebración de la
extraterritorialidad
(
Exterritorialität
) como única forma auténtica de
vida bajo el capitalismo tardío. Esto explica la fascinación que ejercieron sobre
Kracauer figuras reales o ficticias tales como las de Offenbach, Kafka, Schweik, el
vagabundo de Chaplin o su propio
alter ego
novelístico: Ginster. También la
caracterización positiva del intelectual como exiliado que recorrerá luego la obra de
Kracauer, y que encontrará uno de sus puntos de cristalización más altos en
Historia.
Las penúltimas cosas
(publ. en 1969), a través de la directa identificación del
historiador con Ahasverus, el judío errante. Más aún: de acuerdo con Kracauer, la figura
3
Escrita en 1914-15; publicada como libro en 1920.
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en la que debería hallar su modelo el historiador materialista sea, según el autor de
Historia
, la del exiliado:
El verdadero modo de existencia del exiliado es el del extranjero. De manera
que puede ver su existencia anterior con los ojos de alguien “que no es de
la casa”. Y así como es libre para salir de la cultura que le era propia, es lo
suficientemente independiente para introducirse en la mentalidad del pueblo
extranjero en cuyo seno está viviendo. Hay grandes historiadores que deben
buena parte de su grandeza al hecho de que eran expatriados. (KRACAUER,
2010, p. 122)
Resulta explicable que Kracauer haya sido uno de los críticos tempranos más
agudos de la obra kafkiana, que reseña a medida que va siendo publicada. También
este interés acerca mutuamente a ambos autores, quienes además se destacaron por
haber empleado un lenguaje capaz de apelar a un público lector amplio y muy variado.
Diversas declaraciones de Anders se asemejan a estas posiciones del gran ensayista
frankfurtiano; así, cuando afirma: “Tu pedido de una
vita’
4
me pone en apuros. No tuve
ninguna
vita
. No puedo acordarme. Los emigrantes no pueden hacerlo. Nosotros, los
perseguidos por la historia universal, hemos sido engañados en cuanto al singular ‘La
Vida’” (ANDERS, 1985, p. 64). Acaso más contundente es esta fórmula que podría
funcionar como epígrafe de su biografía: “No pertenecí a ningún lugar” (RADDATZ,
1986, p. 15). Pero, más allá de su general escepticismo y del devastador efecto que
dejó sobre su vida y su obra el Tercer Reich, Kracauer está lejos del pesimismo
extremado que sostiene los escritos de Anders posteriores al ascenso del nazismo y,
todavía más, al hecho que marcó su trayectoria intelectual de manera más decisiva: el
bombardeo de Hiroshima y Nagasaki. El autor de
Los empleados
, a partir de su
aproximación al marxismo, se empeñó en descubrir, en el “desamparo trascendental”
de la vida moderna, espacios para la experimentación y la improvisación imposibles en
las
Gemeinschaften
cerradas con las que fantaseaban los “fanáticos de la comunidad”.
Puede decirse incluso, a riesgo de simplificar las cosas, que la evolución de los dos
ensayistas fue en un punto inversa: si el viraje asumido por el pensamiento de Kracauer
a mediados de la década de 1920 permitió una parcial reconciliación con las
condiciones de la Modernidad, la gran cesura en la carrera intelectual de Anders derivó
en una ruptura con la antropología filosófica temprana, para la cual el hombre era un
ser con mil caminos abiertos. Aparecen ya en esta las consideraciones sobre la esencial
extrañeza del hombre respecto del mundo la
Weltfremdheit
, pero de esta
distancia
del ser humano respecto del mundo en el mundo
se deriva, como un inapreciable
4
Es decir: un
curriculum vitae
.
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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provecho, la libertad: para el Anders temprano, el ser humano no está fijado a un
mundo de la vida determinado, a un código de comportamiento determinado o a un
lenguaje determinado, sino que está obligado, pero también capacitado para vivir en
los mundos, costumbres y lenguajes más diversos” (ANDERS, 1982, p. 281). La idea
de que la artificialidad es la naturaleza misma del hombre y de que la esencia de este
es la mutabilidad un pensamiento que vertebra los escritos tempranos y que recuerda
en varios aspectos al existencialismo sartreano se estrelló contra la realidad del
nazismo. El intelectual que nace de la experiencia de la barbarie fascista no es ya el
apóstol de la apertura al mundo (
Weltoffenheit
) como posibilidad concreta para todos
los seres humanos; las ilusiones perdidas trajeron, como un fruto valioso, una atención
hacia la dimensión social e histórica que estaba ausente en la obra temprana. Esta
transformación marca el nacimiento de Anders como agudo crítico de la Modernidad
y militante incansable: una conjunción que terminó garantizándole un lugar destacado
en el escenario intelectual del siglo XX.
El opúsculo sobre Kafka está enmarcado en esta transformación de la
antropología filosófica
de Anders; es ya significativo que en él se identifique la
perspectiva del escritor checo con la del extranjero; el yo que protagoniza, ante todo,
las novelas kafkianas es uno que no vive en el mundo narrativo, que no pertenece a la
conventio
de la comunidad ficcional y que, por ende, no es
convencional
. Para un
hombre de tal condición y Anders sugiere pensar en el emigrante como tipo, todos
los usos y costumbres de los demás constituyen un sistema de reglas decretadas por
las instancias burocráticas,
[] y como tal le parece al forastero K., que llega al pueblo como viajero,
todo el mecanismo de lo que allí es “usual”… como tal le parece, aunque él,
en su anhelo de pertenecer, intenta acatar las reglas “religiously”. Pero esto
fracasa precisamente porque él malentiende las costumbres como decretos
comprensibles. Como comprensibles: pues, siendo un recién llegado, K. se
convierte necesariamente en racionalista frente al país de acogida. (ANDERS,
1993, p. 61)
Como otros autores de lengua alemana marcados a fuego por la persecución nazi
y por las condiciones del exilio pensemos, por ejemplo, en Benjamin, Kracauer y
Adorno, Anders se siente irresistiblemente tentado a vincular las vivencias de los
protagonistas kafkianos (y ante todo la del agrimensor) con las propias experiencias
personales. Si la estrategia funciona en esta ocasión, eso se debe a que la elaboración
de la extranjería es un ingrediente esencial de la narrativa kafkiana. El modo en que se
describe la situación vital del escritor resume de manera contundente su compleja y
variada extranjería:
Miguel Vedda
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Como judío no pertenece enteramente al mundo cristiano. Como judío
indiferente pues eso era él originariamente, no pertenece enteramente a
los judíos. Como germanoparlante, no pertenece enteramente a los checos.
Como judío germanoparlante, no pertenece enteramente a los alemanes de
Bohemia. Como bohemio, no pertenece enteramente a Austria. Como
funcionario de una aseguradora de riesgos de trabajo, no pertenece
enteramente a la burguesía. Como hijo de burgueses, no pertenece
enteramente a la clase trabajadora; Pero tampoco pertenece a la oficina, pues
se siente un escritor. Pero tampoco es escritor, pues sacrifica su energía a la
familia. Pero “vivo en mi familia más extranjero que un extranjero”. (ANDERS,
1993, p. 54; Carta a su suegro)
Parte del rito que Anders reconoce en Kafka procede de la capacidad de este
para hacer de la necesidad virtud, convirtiendo los horrores de la extranjería en un
instrumento para descifrar el mundo moderno. La estrategia de colocar en paralelo el
obrar estético de Kafka con los objetos con la descripción marxiana del fetichismo de
la mercancía es tan persuasiva como suspicaz; ante todo porque se encarece el hecho
de que hayan sido dos judíos quienes formularon del modo más agudo la alienación.
El proyecto de Kafka, tal como se advierte en aquella obra que, para Anders, representa
el punto más alto del arte narrativo kafkiano,
El castillo
, consiste en describir el mundo
ficcional desde afuera y en presentar la incorporación como fracaso. Para el autor de
Kafka pro und contra
,
El castillo
invierte la perspectiva de la novela tradicional del
mundo burgués, en la cual la incorporación a dicho mundo era plasmada en términos
de educación (
Erziehung
). La tesis supone una cierta simplificación del problema; la
lectura de las obras más destacadas en la tradición del
Bildungsroman
de lengua
alemana el
Anton Reiser
de Moritz, el
Wilhelm Meister
de Goethe, el
Heinrich el verde
de Keller muestra que el “aprendizaje” de los protagonistas y su “inserción” en la
sociedad son tan complejos como contradictorios, y que el laberíntico proceso que los
personajes recorren difícilmente puede ser definido como un simple progreso. Como
el
Fausto
de Goethe, los
Bildungsromane
han recibido el duro tormento, por parte de
los manuales de divulgación y, en general, por la industria de la cultura, de ser
descriptos, desde un punto de vista
perfectibilista
,
5
como un simple y lineal
gradus ad
Parnassum
. En el caso de Anders, al menos esta simplificación sirve para definir
ex
negativo
las cualidades del mundo kafkiano como un infierno íntegramente terrenal,
en el que los extranjeros están condenados a permanecer de continuo en la antesala.
Uno de los mayores aciertos de Anders es señalar que ese punto de vista del extranjero
que, a nuestros ojos, retiene algo del punto de vista propio del ingenuo voltaireano
5
El término
perfectibilismo
fue acuñado para designar a aquellos intérpretes del
Fausto
que insisten,
forzadamente, en ver, en la evolución del protagonista del drama goetheano un proceso constante de
perfeccionamiento.
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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y de los persas de Montesquieu requiere medios estéticos específicos, orientados a
extrañar la realidad de un modo parecido a lo que vemos en las obras y en las teorías
de Brecht. Sobre esta base explica Anders, de manera muy apropiada, las
peculiaridades del realismo kafkiano; como Brecht, como Marx, Kafka es un constructor
de dispositivos orientados a tomar distancia de la realidad cotidiana, volviéndola
extraña con el propósito de desvelar, merced a ese distanciamiento, la alienación de
esa realidad. En lo que en el fondo está apoyándose Anders es en la categoría de
modelo
(
Modell
), tal como fue empleada justamente por Brecht con vistas a definir las
posibilidades y límites de un realismo del siglo XX. En la medida en que este siglo, en
vista de su amplitud y complejidad inabarcables, ya no puede ser descripto de manera
extensiva, como ocurría todavía durante el siglo XVIII y parte del XIX, los artistas y
escritores necesitan construir artefactos modelos en los que, a la manera de ciertos
experimentos científicos, se toman en consideración solo algunos elementos
particulares, en tanto otros son directamente excluidos del análisis. En el arte, no
menos que en la ciencia, la reproducción no es nunca algo “natural”, sino un artificio,
el resultado de la productividad artística; la física reciente, según Brecht, ha necesitado
construir modelos para hacer comprensible lo invisible (por ejemplo, la estructura del
átomo); de un modo parecido tendría que conseguir el artista que los hombres, a través
de construcciones, descubran las leyes sociales, que tampoco son perceptibles de
manera inmediata. Anders que mantuvo una relación cercana con Brecht y escribió
sobre él estudios iluminadores encuentra en Kafka una metodología que anticipa de
muy cerca a la brechtiana:
Mil veces da el ser humano actual con aparatos cuya naturaleza le es
desconocida y con las cuales en vista de que sus relaciones con el sistema
de necesidades del ser humano se encuentran infinitamente mediadas solo
puede mantener relaciones “alienadas”: pues “alienación” no es justamente
un truco del filósofo o del poeta Kafka, sino un fenómeno del mundo actual;
solo que precisamente la alienación en la vida cotidiana está encubierta por
la costumbre vacía. A través de su cnica de alienación, Kafka descubre la
encubierta alienación de la vida cotidiana…; de esta manera es, pues, un
realista. Su “deformación” [
Entstellung
] “constata” [
stellt fest
]. (ANDERS,
1993, p. 49)
Igualmente lúcido es el análisis de los personajes kafkianos; para Anders, los
caracteres de Kafka no son alegorías; no son abstracciones antropomorfas, sino que
encarnan a hombres abstractos, entendiendo la palabra “abstracto” en “su sentido
originario, derivado de
abs-trahere
: los seres humanos que hace aparecer Kafka han
sido
arrancados
a la plenitud de la existencia humana. Muchos no son, de hecho, más
que funciones: un ser humano es mensajero y nada más que eso; una mujer, una ‘buena
Miguel Vedda
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relación’ y nada más que eso” (ANDERS, 1993, p. 77). A diferencia de las novelas
realistas convencionales, que representan los acontecimientos de tal modo que las
funciones laborales de los seres humanos permanecen invisibles, “mientras, pues,
falsifican la realidad mediante la descripción de ‘seres humanos plenos y completos’,
Kafka, al introducir marionetas, es el realista más verdadero” (ANDERS, 1993, p. 78).
Estas reflexiones recuerdan las que aparecen en los ensayos de Kracauer a partir de
finales de los años veinte; en La biografía como arte neoburgués” (1930), por
ejemplo, se sostiene que, con el desvanecimiento de la individualidad autónoma y de
un
ethos
social vinculante, la novela tenía que entrar en una honda crisis, si no quería
permanecer anacrónicamente apegada a fórmulas carentes de relación con la realidad
contemporánea. Esto último es lo que hacen aquellos autores de biografías que,
evitando extraer todas las consecuencias de las nuevas circunstancias históricas,
siguen adheridos a los antiguos conceptos de individualidad, y que al hacerlo actúan
como aquella burguesía retrógrada que está empeñada en negar todos aquellos
conocimientos y problemas formales que podrían poner en riesgo su existencia. Dicha
burguesía “Siente en los huesos el poder de la historia y ha tomado buena nota de
que el individuo se ha convertido en un ser anónimo, pero no extrae de sus
conocimientos, que se le imponen con la fuerza de las experiencias fisonómicas,
conclusión alguna que pudiese iluminar la situación actual” (KRACAUER, 2006, p. 312
y s). Como Kracauer, piensa Anders que los personajes abstractos de Kafka tienen
mayor realidad que las figuras plenas, múltiples de otros novelistas, que pueden
proveer una evasión a los lectores, pero no ayudarlos en la tarea de comprender el
mundo en el que viven.
Kafka es, entonces, realista porque muestra hombres reducidos a funciones; el
personaje kafkiano plantea Anders incurriendo, como veremos, en una simplificación
del problema ha sido íntegramente absorbido por su profesión: esta asume una
índole tan absoluta que se aproxima a la
vocatio
religiosa. Más allá de su desmesura,
esta observación conduce a Anders a una hipótesis lúcida: al configurar a seres
humanos cuya existencia se agota en su profesión, Kafka pudo observar
proféticamente, en la sociedad de su época, rasgos que anticipaban a los ulteriores
fascismos; así, a propósito de la réplica del azotador a las tentativas de soborno que
realiza K.: “Me contrataron para que sea azotador, y en consecuencia, azoto” (KAFKA,
2006, p. 91), señala Anders:
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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Hoy la respuesta del azotador se nos presenta bajo una luz totalmente
diversa: es idéntica a aquellas respuestas que han dado durante los
interrogatorios los empleados de los campos de exterminio alemanes. Es la
respuesta de aquel que carece de poder, del que no posee responsabilidad,
del que se ve privado de esta porque no se le admite responsabilidad alguna;
en suma: la respuesta de aquel que no vive realmente, sino que “es vivido”.
(ANDERS,1993, p. 79)
En la obediencia debida que aduce el azotador a fin de justificar su ocupación,
se anuncia ya la barbarie fascista; o, dicho de otro modo, en aquella se señala ya la
línea de desarrollo que une al burócrata del Imperio Austrohúngaro con el torturador
nazi; una constatación que también hace Ernst Fischer en su brillante ensayo sobre el
escritor checo:
Conocí a un médico que olía el cáncer ya en el indemostrable estadio inicial.
Kafka olía la putrefacción de una sociedad en apariencia aún intacta; en el
burócrata de hoy, al azotador, al verdugo de mañana; en el germen
imperceptible, la catástrofe inminente. Estaba en condiciones de hacerlo
porque su situación individual se correspondía con una situación social;
porque, en torno a él, lo negativo de la época aparecía más claramente que
en cualquier otro lugar. (FISCHER, 1962, p. 283)
Es característico que también Fischer ponga este carácter “profético” de Kafka
en directa relación con su carácter de
outsider
existencial y, por extensión, estético. Lo
distintivo en Anders es que, además de elogiar las virtudes de Kafka, cuestione la obra
de este, no ya a causa de algún detalle particular o accesorio, sino integralmente
en
cuanto proyecto de escritura
. Pareciera como si Anders le reprochara a Kafka no haber
adoptado con la suficiente consecuencia el punto de vista del extranjero; en última
instancia y el crítico alemán vuelve a centrar aquí su interpretación en
El castillo
, la
narrativa kafkiana asumiría como auténtica la perspectiva de la comunidad que rechaza
al advenedizo:
Que el recién llegado, en su sospecha de que las costumbres son decretos,
pueda tener razón; que el racionalista pueda tener quizás la oportunidad de
ver la
verdad
: esta idea nunca ha sido expresada por Kafka. Para él, el que
llega
siempre
está equivocado, pues en cierto sentido Kafka ve el problema
del extranjero, del recién llegado, del judío,
con los ojos de aquel que no
acepta al forastero
. Kafka es, por ende, un
racionalista avergonzado
; como
todos aquellos judíos que intentan asimilarse a un país cuya Constitución no
ha proclamado el reconocimiento racionalista de un ser humano por lo
tanto, pues, del forastero
en cuanto ser humano
. (ANDERS, 1993, p. 62)
En una dirección parecida se desarrolla la crítica esta vez, sustentada en un
comentario sobre
El proceso
a lo que Anders llama
ambigüedades
en Kafka, en las
que debería verse, de un modo insidioso, la mala conciencia del escritor. La
ambigüedad, por ejemplo, de que Kafka vincule, por un lado, a las instancias judiciales
con la indigencia los tribunales están ubicados en las buhardillas de una calle en la
que viven pobres y que, por otro, muestre que las clases dominantes tienen contactos
con los tribunales. En lo personal, consideramos enigmático el modo en que Anders
Miguel Vedda
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llega a esta formulación; lo importante es que ella desemboca en una acusación contra
el escritor: Kafka, según Anders, tendría una mala conciencia en dos direcciones:
él no solo consideraba como una culpa no pertenecer a los totalmente
desfavorecidos, sino también, al mismo tiempo, no pertenecer al “mundo”
[de los poderosos]; es decir, ser “incapaz”. Nunca llegó a tener claridad sobre
esta ambigüedad de la conciencia; y no es exagerado decir: la metáfora del
“alto” tribunal oculta la vaguedad de su posición moral [es decir: la de Kafka]
e idealiza su propia irresolución en cuanto paradoja. (ANDERS, 1993, p. 77)
Pero las diversas críticas convergen en una impugnación final, que el propio Kafka
habría dirigido contra su propia obra: esta solo posee una perfección artística, y por
eso habría ordenado su destrucción. El análisis de Anders tiene, desde el título mismo,
un carácter casi jurídico; el crítico quiere pronunciar una sentencia y hacer un balance;
no en vano se cierra el estudio con una reseña del debe y el haber del autor checo;
reseña que concluye, ella misma, en una ambigüedad: no deberíamos quemar a Kafka,
sino ver en al pintor de un mundo infernal que no supo incluir en sus cuadros las
debidas soluciones. Anders le pide a la obra kafkiana lo que esta no tiene por qué
ofrecer: soluciones útiles; de ahí las palabras finales del opúsculo: “deberíamos esperar
quizás de él pueda hacer como admonitor lo que no pudo hacer para sí mismo o para
otros como consejero: ayudar” (ANDERS, 1993, p. 122). En el fondo, lo que Anders
está objetándole a Kafka es no haber podido ser más que un notable escritor; lo acusa
de formular despiadadamente problemas sin proveer una solución práctica o un
consuelo. Y aquí nos preguntamos si es
esto
lo que debería aportar una obra literaria
que no quiera degradarse al nivel de los libros de autoayuda. Se comprende mejor el
punto de vista de Anders cuando se advierte que uno de los términos de comparación
positivos para evaluar a Kafka es Bertolt Brecht. En uno de los artículos dedicados al
autor de
Madre coraje
traza un sugestivo paralelo entre los dos escritores en que sale
victorioso el gran dramaturgo:
¡Cuán grandiosamente se diferencia Br. de Kafka! ¡Y cuánto más socrático y
auténtico es, a pesar de sus astucias! Como, en él, el mensajero debe
entender el mensaje a fin de poder transmitirlo, la razón y la dignidad humana
son salvadas. Mientras que, en Kafka, se había leído: “¿Qué le importa ya el
mensaje al mensajero? Su función consiste en comunicar correctamente los
mensajes. Incluso mensajes que ya no son válidos. […]”. Y aquellos
mensajeros que infieren el sentido del mensaje a partir de la manera correcta
de transmitirlo, habrían sido incluso descalificados por Kafka: en cuanto
religiosa o metafísicamente indiscretos. (ANDERS, 1993, p. 141)
Al igual que en Kafka, el mundo de las criaturas de Brecht es un mundo jurídico,
de modo que cada una de las piezas podría llevar como título:
El proceso
. “Solo” que
Brecht “quiere volver al espectador maduro para juzgar y capaz de calar los prejuicios
como tales; que él instruye en el juzgar; que él muestra juicios verdaderos y falsos”
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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(ANDERS, 1993, p. 141 y s). Anders echa de menos en Kafka al moralista ilustrado
que descubre en Brecht; es llamativa la elección del término
mensaje
, en tan
problemático para evaluar literatura.
6
No es este el único aspecto cuestionable en la
interpretación de Anders; otras afirmaciones merecerían ser revisadas. Por ejemplo,
aquella que dice que las representaciones kafkianas son las primeras en las que todo
“progreso” o “desarrollo” son abandonados programáticamente. Esta afirmación
rotunda podría ser rebatida a través de una somera revisión de las novelas. Si se
estudia la estructura de
El proceso
, considerando el peculiar modo en que se inició el
trabajo con esta obra Kafka escribel primer capítulo y el último, para intentar luego
cubrir los eslabones intermedios, podrá verse que existe una evolución en K.; solo
que esta se produce en el sentido de una regresión: Josef K. va perdiendo
progresivamente la energía y la concentración iniciales, así como la voluntad de
desafío, para ir tornándose cada vez más débil, distraído, sumiso; el estadio final es su
muerte “como un perro”. Pero ya en el capítulo “En la catedral”, la actitud que mantiene
K. ante el sacerdote instalado en el púlpito remeda la posición de un perro frente al
amo. La
metamorfosis
paulatina de K. va en el sentido de una desarticulación de la
mascarada del éxito inicial como apoderado que, en “un tiempo relativamente breve,
había sabido conquistar su alta posición en el banco y mantenerse en esa posición
reconocido por todos” (KAFKA, 2006, p. 139) el modo de existencia que Walter Sokel
ha denominado
fachada
, y una degradación al nivel de la existencia perruna
(
hündische Existenz
) o de lo que Sokel designa como
yo puro
. En su continuo
proceso
de caída, K. se siente cada vez más lejos de su directo rival y paradigma de éxito
profesional, el vicedirector del banco (la encarnación misma de la fachada) y cada vez
más próximo al representante por excelencia del “yo puro”: el comerciante Block. Este
reúne varios de los atributos más representativos de ese modo de existencia: carencia
de poder económico y prestigio social, debilidad, ascetismo, falta de confianza en las
propias capacidades y búsqueda exacerbada de ayudantes. Exhibe un comportamiento
dependiente y sumiso; en términos del propio Kafka:
perruno
(
hündisch
); así, si en una
de las solicitudes escritas para Block, el abogado Huld se humilla “de un modo
directamente perruno ante el tribunal” (KAFKA, 2006, p. 196). Las demostraciones
más notorias de servilismo pueden verse en Block mismo, quien, hincado de rodillas
6
No podríamos desarrollar aquí hasta cuál punto simplifica Anders el concepto brechtiano de
enseñanza
, que no consiste precisamente en la transmisión de “verdades” científicas e ideológicas.
Miguel Vedda
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ante la cama del abogado y besando la mano de este, da muestras de plena
complacencia en la humillación, y revela no ser ya “un cliente, era solo el perro del
abogado” (KAFKA, 2006, p. 216). Lo que buscamos explicar con esto es que en
El
proceso
no hay una ausencia plena de desarrollo, sino un nítido desarrollo
descendente o, en términos más concretos, una
regresión
, en virtud de la cual el
personaje se convierte paulatinamente en cosa; y como un objeto inerte es tratado,
precisamente, por sus verdugos al final de la novela.
La estructura de
El desaparecido (América)
presenta algunas semejanzas con la
de
El proceso
: a lo largo de la novela, asistimos a la repetición de un desarrollo
recurrente: Karl se incorpora una y otra vez que a una comunidad determinada y busca
adaptarse a sus modos de funcionamiento, pero concluye infringiendo
involuntariamente una norma, de lo cual se deriva la irrevocable expulsión; esto
ocurre en el ámbito familiar de origen, en la casa del tío, en el Hotel Occidental; y cabe
deducir un proceso análogo en el departamento de Delamarche y Brunelda. En
particular, resulta inevitable entender la “carrera” de Rossmann en Estados Unidos
como una regresión: el trabajo taylorizado, realizado a ritmos demenciales, en el Hotel
Occidental constituye una notoria caída respecto de la vida en casa del tío; pero puede
parecer un paraíso si se lo compara con la vida servil, bestializada que debe arrastrar
en casa de Brunelda. Anders menciona el “final” de la novela, en el Teatro Natural de
Oklahoma, como un
happy ending
; frente a lo cual podríamos señalar, no solo que no
existe un final de
El desaparecido
, sino que en la admisión en el Teatro asoman una y
otra vez los rasgos infernales del mundo norteamericano, tal como está configurado a
lo largo de toda la novela. La sugerencia de que esta habría de cerrarse con un final
feliz procede de una fuente tan poco fiable como Max Brod; en contra de esa propuesta
hablan las notas del propio autor y lo más destacado de la tradición crítica sobre la
novela, con la que coincidimos en este punto.
Objetable encontramos también la rotunda tesis según la cual los personajes
de Kafka quedan absorbidos por su profesión, y no son más que su profesión. Esto es
válido ante todo para
un modelo
de personaje al que Sokel define como
yo
concentrado
y para el estilo de vida norteamericano, tal como aparece en
El
desaparecido
, ante todo en personajes como el tío de Karl, el estudiante que vive en
el departamento contiguo al de Brunelda o el jefe de mozos y la encargada de cocina
del Hotel Occidental. Pero resulta inapropiado para variedad de personajes kafianos;
en sí, el desarrollo de
El proceso
muestra mo Josef K. va perdiendo su poder de
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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concentración y, con él, la identificación sin reservas con su profesión para volverse un
yo disperso y, finalmente, “perruno”. Un elemento que enriquece, precisamente, la obra
kafkiana es la convivencia de una diversidad de tipos, que configuran una visión
diversificada y compleja de la Modernidad.
Las observaciones que hacemos a la lectura de Anders no apuntan de ningún
modo a cuestionar el hecho de que
Kafka pro und contra
es un libro totalmente
excepcional, que en varios puntos abrió líneas de lectura novedosas sobre el autor de
El proceso
. Anders no es culpable de no haber conocido estudios profundos,
exhaustivos e intensamente renovadores que, como ocurre con los de Wilhelm Emrich
(1965) y Walter Sokel (1983), revolucionaron el modo de leer a Kafka, pero que son
muy posteriores al estudio andersiano. Este, por lo demás, cuenta con el mérito de ser
un estudio
personal
, que deliberadamente antecede y, luego, ignora la “moda” Kafka
y los más de 11.000 artículos publicados sobre su obra; un estudio que carece de las
intenciones banales y los desvaríos burocráticos de los
papers
académicos. A esto
hace una saludable referencia Anders en el prólogo de
Hombre sin mundo
(1984):
[…] ¿por quién habrían de ser, pues, tan urgentemente necesitadas, e incluso
leídas las 11.000 [interpretaciones], además de los propios 11.000 autores,
cada uno de los cuales, sin embargo, solo lee una vez el suyo, que espera
poder emplear como tarjeta de visita personal para un “Dept. for German
Literature”. […] No he leído, en todo caso, ninguno de esos 11.000 textos
secundarios; y, por cierto, no solo porque yo, que no pertenezco a la
empresa, no suelo saber nada acerca de la existencia de tales textos, sino
porque en nuestra época, en la que se trata de luchar contra el estallido de
una cierta catástrofe, consideraría inapropiado perder el tiempo revisando
vagones de filología germánica. (ANDERS, 1993, p. XXXVIII)
La libertad de movimientos que muestra Anders supone una sana alternativa
frente a la cosificación de la investigación académica, tanto en el plano del método
como en el no menos fundamental del lenguaje. Como Kracauer, como Benjamin que,
en nuestra opinión, realizaron lecturas más agudas de la obra kafkiana, Anders se ha
empeñado en ser un pensador incompatible con las ortodoxias y, a la vez,
comprometido con los problemas más serios y urgentes de su propio tiempo, sin
rebajar nunca su reflexión a la mera propaganda. Como Edmund Wilson, como Orwell,
como el mencionado Kracauer, supo cultivar un estilo accesible para el
common reader
y se preciaba de hacerlo; en
Sobre la dicción filosófica y el problema de la
popularización
(1992) comenta al respecto: Esa dicción académica no sirve. Es
necesaria una dicción diferente. Una no extravagante. Antes bien, se tiene que dar
‘solo’ el paso de regreso hacia el lenguaje normal. En el habla normal se le habla
a
alguien, y sobre cosas que afectan a ese alguien, y en un tono que ese alguien
Miguel Vedda
284 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 268-309 - mar. 2022
entiende” (ANDERS, 1992, p. 6).
III
Las consideraciones de Lukács sobre Kafka cuentan igualmente con el mérito de
no
haber sido escritas con el propósito de satisfacer las exigencias de la rutina
académica. Como ocurre continuamente en sus escritos, la intención del filósofo
húngaro es intervenir en una discusión que percibe como actual. Los comentarios más
conocidos sobre Kafka aparecen en
Contra el realismo mal entendido
(1958),
7
un
pequeño libro polémico que no se encuentra entre los más destacados del autor, pero
que incluye tesis brillantes y provocadoras. El contexto en que el volumen aparece está
marcado por la guerra fría, la muerte de Stalin, el XX Congreso del Partido Comunista
de la Unión Soviética, la insurrección húngara de 1956 en la que participó muy
activamente Lukács y la ola de temor y debates suscitada por el peligro de un
apocalipsis nuclear. En relación con este último punto, varias declaraciones casi
parecen escritas en referencia a Anders; así, por ejemplo, cuando se dice que la “fe en
la inevitabilidad de la guerra, en la aniquilación de la cultura humana a través de
bombas atómicas y de hidrógeno, puede remontarse a una visión del mundo fatalista”
(LUKÁCS, 1958, p. 10); o cuando se constata que “recientemente surgió en la así
llamada era atómica la perspectiva de una extinción de toda la humanidad” (LUKÁCS,
1958, p. 70). Enfocado en encontrar un
tertium datur
, aunque se cuide de declararlo
expresamente, entre vanguardismo y realismo socialista (que a sus ojos representaba,
en general, una continuación del naturalismo), Lukács se propone remontar las diversas
manifestaciones de la vanguardia contemporánea a una posición general ante el
mundo por parte de los intelectuales, cuya vivencia fundamental desencadena “los
afectos del miedo, la repulsión, el abandono, la desconfianza hacia mismo y hacia
los otros, el desprecio y el autodesprecio, la desesperación” (LUKÁCS, 1958, p. 85).
Si el estancamiento en el miedo pánico” se ha convertido en “protovivencia del ser
humano del presente”, esto suscita un comportamiento acrítico frente a la vida de su
tiempo por parte de los escritores, que captan y representan superficialmente
un
aspecto de la realidad como la realidad completa. Esta posición es atribuida a una
variedad de escritores, ideológica y estéticamente muy variados, quienes en opinión
de Lukács encarnan una misma actitud fundamental. Dentro de esta amplia tradición
7
Editado en castellano con el título de
Significación actual del realismo crítico
.
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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posee Kafka un lugar a la vez anómalo y destacado; en primer lugar, por su modo de
expresar la paralización en un miedo ciego y pánico ante la realidad:
Su posición singular en la literatura actual se basa en que él expresa este
sentimiento vital de manera directa y simple; están ausentes en él las formas
de representación formalistas, tecnicistas, manieristas del contenido
fundamental. […] Este aspecto de la configuración parece alinear a Kafka en
la familia de los realistas importantes. Y él pertenece desde un punto de
vista subjetivo en una medida aún más importante a esa familia por el hecho
de que hay pocos escritores en los que la naturalidad y elementalidad en la
captación y reproducción del mundo, la estupefacción ante su no-estar-aún-
presente-allí hayan sido conformadas tan poderosamente como en él.
(LUKÁCS, 1958, p. 86)
Este enrevesado elogio se completa con la afirmación de que Kafka es “uno de
los pocos escritores vanguardistas cuya captación del detalle es selectiva, destaca
sensorialmente lo esencial; es decir, no es naturalista” (LUKÁCS, 1958, p. 55). En la
caracterización del realismo kafkiano aparecen algunas similitudes con
Kafka pro und
contra
, del que dirá luego Lukács, en la correspondencia con Anders, que “desde
entonces no he leído nada mejor sobre Kafka” (LUKÁCS, 1997, p. 47; carta del 23
mayo 1964); no solo por la impugnación de las interpretaciones teológicas
à la
Brod
y por el énfasis sobre la vinculación de Kafka con el realismo estético, sino también (y
todavía más) por el carácter profético atribuido al escritor, que elabora la base social
objetiva de su miedo en una época en que este se encontraba aún lejos de haber
alcanzado su desarrollo pleno: Kafka no “describe y eleva a la dimensión de lo
diabólico, pues, el mundo concreta y fácticamente diabólico del fascismo, sino que la
vieja Monarquía de los Habsburgos recibe a la luz del miedo “profético” de Kafka, esa
objetividad espectral” (LUKÁCS, 1958, p. 87). Este arraigo en la vieja Austria, por un
lado, concede a los detalles de su narrativa un
hic et nunc
sensorial y concreto; por
otro, la indefinición de la objetividad es configurada con la ingenuidad genuina de la
mera intuición, del
no saber
fáctico. Esto coloca a Kafka por encima del formalismo de
posteriores autores; pero esta superioridad no aparece en Lukács como una rotunda
ventaja; ante todo, en vista de que se define como la vivencia fundamental
(
Grunderlebnis
) kafkiana el miedo como concentración de todo el arte moderno y que
se señala que el motivo básico de toda su producción es el “ánimo de la plena
incapacidad, de la parálisis ocasionada por el poder de las circunstancias, que no
puede ser dominado con la vista ni superado (LUKÁCS, 1958, p. 37). La íntegra obra
de Kafka sería, pues, el símbolo de una conmovedora visión angustiosa de una
exposición plena del hombre y de todo acontecer ante un terror inexplicable,
impenetrable e insuperable, a la vez que una elegía por el abandono del mundo por
Miguel Vedda
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parte de Dios y por el desvanecimiento de una auténtica trascendencia; desde esta
última perspectiva,
los jueces superiores en
El proceso
, la auténtica administración en
El castillo
,
representan la trascendencia de las alegorías kafkianas: la nada. Todo apunta
a ellas, todo podría recibir un sentido solo en ellos, todos creen en su
existencia y omnipotencia, pero nadie los conoce, nadie intuye siquiera cómo
se accede a ellos. (LUKÁCS, 1958, p. 46)
En este punto, Lukács está basándose en una interpretación de la obra kafkiana
vastamente difundida aún hoy, pero un tanto desacertada. Si Kafka no fuera más
que un angustiado configurador de objetividades espectrales, paralizado por el horror
ante su época, hace tiempo habría sido olvidado, como ocurre en general con aquellos
escritores superficiales que (como sostuvo varias veces el propio Lukács) solo
consiguen captar el ánimo de un período y no representan más que una moda pasajera.
Nuestro parecer es que las obras más importantes de Kafka y, en particular, las novelas
encierran una lectura de la Modernidad sumamente original e intrincada, y que esa
intrincación y originalidad no han sido percibidas, en toda su riqueza, por Anders y
Lukács. Es cierto que, con el correr de los años, el filósofo húngaro ha revisado las
posiciones defendidas en
Contra el realismo mal entendido
; algunas de las
declaraciones más específicas a ese respecto aparecen en la correspondencia con el
gran pensador brasileño Carlos Nelson Coutinho, donde Lukács reconoce que la
reflexión desplegada en el mencionado libro es insuficiente y algo superficial; ante
todo, en relación
con los cuentos
del autor checo:
Infelizmente, a causa de condiciones muy desfavorables, concluí de manera
muy apresurada mi pequeño libro, de modo que determinados puntos de
vista no fueron expresados en él de modo muy claro. Me refiero sobre todo
al hecho de que existe en Kafka una tensión que tiene una única analogía en
la era moderna, es decir, con Swift. Si usted compara a Swift con sus grandes
contemporáneos, sobre todo con Defoe, veque este último describió de
modo realista su tiempo presente, en tanto que Swift intentó dar basándose
en las tendencias reales de su tiempo un panorama crítico-utópico del
desarrollo global y de la esencia más profunda de la sociedad capitalista. Una
tendencia análoga está presente en Kafka, solo que él en función de
condiciones sociales del período de su actividad no podía lograr una síntesis
tan profunda y motivadamente pesimista como la de Swift. (KONDER;
COUTINHO, 2002, p. 153 y s)
Nos permitimos citar
in extenso
esta declaración porque en ella encontramos una
definición más productiva y provocadora que todas las que aparecen en
Contra el
realismo mal entendido
. El autor de este artículo debe decir que, al leer por primera
vez estas palabras de Lukács, se sintió vivamente impresionado a raíz de que en ellas
se hacía referencia a una dimensión fundamental de la narrativa de Kafka, cuya plena
ausencia en análisis tales como los de Anders y los de
Contra el realismo mal entendido
no dejaba de sorprenderlo. Sobre todo, nos parecía sorprendente que el autor de un
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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estudio tan brillante como
Sobre la cuestión de la sátira
no percibiera
la presencia
frecuente y sobresaliente de elementos satíricos
en Kafka, que no constituyen un
elemento secundario, sino un aspecto central de su poética. La comparación con Swift
es en ese sentido pertinente; y podría incluso haberse conectado con una observación
de
Contra el realismo mal entendido
: aquella que dice que “una perspectiva demasiado
abstracta, que se extiende puramente sobre un período histórico-universal, que
comprende meramente sus rasgos meramente más generales, promueve, ante todo en
obras predominantemente satíricas, la elaboración de figuras y situaciones típicas.
(Swift, Saltykov-Schtschedrin)” (LUKÁCS, 1958, p. 60). En esta línea podría colocarse
a Kafka, quien por otra parte se empeñó vanamente en destacar la vena humorística
de sus propias narraciones. Habría que señalar quizás, por otro lado, en esta dificultad
para percibir los trazos satíricos e irónicos la influencia sobre Anders y Lukács de una
ideología alemana
que ha tenido sus efectos sobre la recepción estética. Es
característico que Thomas Mann se haya lamentado, a propósito de su
Muerte en
Venecia
, de que los lectores alemanes hayan sido capaces de percibir la tragicidad del
destino de Aschenbach, pero hayan permanecido ciegos ante el carácter grotesco,
cómico del personaje: un aspecto, para el autor, totalmente consustancial a la obra. En
su
Lebensabriss
(1930), Mann hace explica a partir de las características del “público
alemán, que en el fondo solo se interesa por lo serio e importante, no por lo ligero”
(MANN, 1990, p. 124 y s), la dirección asumida por la recepción temprana de
Muerte
en Venecia
. Algo similar ha sucedido con una narración tan permeada por el particular
humorismo de Kafka como
La metamorfosis
. Los rasgos de la sátira kafkiana, que no
podemos describir aquí, en parte se vinculan con la velada, insidiosa pero continua
presencia de una dimensión utópica y de una devota reverencia por la verdad que, por
otro lado, remiten a la función iluminadora que, más allá de su complejidad, querría
conceder Kafka a su propia escritura. Estos son algunos de los elementos que permiten
desarticular la leyenda del escritor nihilista, que se detuvo paralizado ante el
desesperante curso del mundo. La propia biografía del autor desmiente esta leyenda;
sería también extenso e iría más allá de los propósitos de este artículo examinar el
ideario político concreto o las afinidades y la participación de Kafka con movimientos
sociales y políticos contemporáneos; baste señalar que estos hechos son demasiado
intensos, y tienen las suficientes repercusiones sobre su obra ficcional, como para que
Miguel Vedda
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sea posible desestimarlos.
8
Es de lamentar que Lukács sobre todo, en el tan productivo período tardío
no haya dedicado un análisis específico
concreto
de una obra de Kafka, comparable
con los consagrados, por ejemplo, al
Wilhelm Meister
o al
Fausto
de Goethe, a la
Educación sentimental
de Flaubert, a las
Waverley Novels
de Walter Scott o al
Ivan
Denísovitch
de Solyenitsin. También que los cambios en la valoración de Kafka
posteriores a la publicación de
Contra el realismo mal entendido
se hayan expresado
ante todo a través de declaraciones personales y no de estudios puntualizados. Sobre
todo porque creemos que la teoría estética lukácsiana, más allá de los gustos
personales y las opiniones conscientes del pensador, habría permitido
en cuanto
método
un abordaje productivo y orientado a destacar la excepcional importancia de
la obra de Kafka; una obra destinada a integrarse de manera permanente a la
memoria
viva de la humanidad
. En esta dirección van las observaciones que desarrollaremos a
continuación.
IV
En un ensayo publicado en 1969, Lukács formula enfáticamente su convicción,
de prolongada trayectoria en su pensamiento, según la cual “el poeta del partido no
debe ser ni un dirigente ni un soldado; es s bien un partisano que se encuentra
profundamente vinculado con las tareas histórico-mundiales del partido, pero que, en
todas las cuestiones concretas, debe conservar una libertad práctica, hasta el derecho
a la desesperación’” (LUKÁCS, 2003c, p. 128 y s). No encontramos razones para
pensar que esta afirmación deba aplicarse solo al “poeta del partido” y no también al
poeta
tout court
; el escritor debería, pues, en cuanto tal tener ante todo un
compromiso estético y ético con la propia escritura. Este compromiso con el
métier
,
que supone a la vez un firme compromiso con la humanidad, es por otro lado la única
posición coherente con la defensa que hacen el Lukács maduro y el tardío de la
autonomía estética. Si debiera ser juzgado ya según estos parámetros, Kafka debería
ser considerado como una figura totalmente excepcional; en pocos autores puede
verse una identificación tan extrema, obsesiva con la escritura entendida como una
tarea que requiere, por un lado, la máxima dedicación y, por otro, una ponderación tan
escrupulosa de su sentido, su finalidad y sus efectos. Pero a la vez la obra kafkiana
8
Un análisis muy detallado y persuasivo de esta dimensión “anarquista” en Kafka aparece en el libro de
Michael Löwy
Franz Kafka, rêveur insoumis
(2004).
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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ofrece una interpretación de la realidad contemporánea, y de las tendencias que en
estas apuntan al futuro, de un notable nivel de veracidad y abstracción, acorde con el
que exigía Lukács de los grandes realistas. En los más diversos períodos de su obra,
el filósofo húngaro se ocupó de abordar la cuestión de por qué ciertos autores se
incorporan de manera persistente a la memoria de la humanidad, en tanto otros, que
disfrutaron de una intensa moda pasajeras, se hundieron luego en el olvido o
retrocedieron a segundo o tercer planos. Ya en sus escritos premarxistas pensamos
en “Para una teoría de la historia de la literatura” (1910) muestra Lukács cómo la
historia literaria ha conocido, por ejemplo, a escritores dotados de una excepcional
destreza para reproducir la apariencia externa de una realidad determinada digamos,
Zola, pero cuya relativa impericia a la hora de captar los rasgos esenciales de esa
realidad ha impedido que crearan caracteres capaces de perpetuarse en la memoria
de los hombres. En contraposición con el detallismo del narrador naturalista, la obra
de digamos Dante, Shakespeare o Thomas Mann posee un notable poder de
generalización. Así, el poeta isabelino parece situarse, según Lukács, en una atalaya
desde la cual domina la realidad que se propone plasmar; como Balzac o Scott,
Shakespeare no se interesa por la fidelidad histórica al pasado que configura
poéticamente; no le interesan los hechos concretos, sino los grandes tipos, sus
pasiones y sus destinos: se propone escribir la filosofía de la historia, no la crónica del
feudalismo agonizante. En este mismo sentido, en una entrevista de 1968, Lukács
señala que lo que aprendió Marx de la literatura es “a comprender los conflictos en la
historia y los períodos de transición no solamente como la suma total de las jugadas
de ajedrez individuales, sino a ver la forma en la que estaban conectadas, es decir, a
verlas en su propio contexto” (LUKÁCS, 2003b, p. 118 y s).
Partiendo de estos parámetros, tenemos numerosos motivos para incluir a Kafka
entre los escritores más importantes en la historia de la literatura. Parafraseando a
Lukács, cabe decir que, en sus narraciones y aun en sus escritos personales
estéticamente
tan valiosos, el autor checo se coloca sobre una atalaya desde la cual
consigue dominar muchos de los rasgos definitorios de la Modernidad; la aseveración
andersiana de que en
El proceso
encontramos una visión profética de los campos de
exterminio es cierta, pero también limitada: en muchas otras dimensiones hallamos en
Kafka a un observador lúcido de los caminos por los cuales estaba conduciendo a la
naturaleza y a la humanidad el capitalismo. Nos ocuparemos a continuación de esbozar
a grandes rasgos esa interpretación kafkiana centrándonos sobre todo en la novela
El
Miguel Vedda
290 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 268-309 - mar. 2022
desaparecido
.
9
De igual modo podríamos haberlo hecho con las otras dos novelas del
autor. En todo caso,
El desaparecido
desarrolla una crítica de la Modernidad que
reaparece en las dos novelas posteriores y que presenta, asimismo, paralelos con una
serie de narraciones breves del escritor checo. Para comprender la especificidad de
esa crítica convendría retomar aspectos del tratamiento kafkiano del conflicto entre la
antigua ley y la nueva, tal como se ve, ante todo, en “Durante la construcción de la
muralla china” (1917) –que incluye el célebre relato “Un mensaje imperial”– y en una
serie narraciones compuestas entre agosto y diciembre de 1920: “La negativa”, “Sobre
la cuestión de las leyes”, “El escudo de armas de la ciudad”, “El reclutamiento de
tropas” y “Una página antigua”. De estas obras es posible extraer la imagen de un
orden premoderno cuyos ideales de comunidad y justicia contrastan con los del mundo
burgués. La instalación de este se funda en el desvanecimiento del impulso idealista
de la humanidad; también en la imposición de un conformismo cuya encarnación
histórica más conspicua es el burócrata y cuya expresión alegórica más extremada
podría ser el hombre de campo que, indolente y sumiso, se sienta durante años a
esperar que lo autoricen a ingresar a la Ley. En el Oriente atávico al que se remonta el
narrador de “Durante la construcción de la muralla china”, los hombres tenían, en
cambio, el ambicioso propósito de construir la Torre de Babel con vistas a alcanzar al
cielo. Solo que este proyecto fracasó
a causa de la debilidad del fundamento
, y así fue
que los hombres postergaron la tarea de edificar la torre celestial y se dedicaron a
construir la muralla terrena. Pero tenían aún al menos en vista el objetivo idealista:
según un erudito, la muralla china proveerá por primera vez, en los tiempos humanos,
un fundamento seguro para una nueva torre de Babel. Así pues: primero la muralla y
luego, la torre” (KAFKA, 1994, v. 6, p. 69). Con el tiempo, los hombres dedicaron tanta
atención al proyecto terreno que olvidaron el temprano impulso utópico; se
circunscribieron a la concreción de objetivos terrenales. A estos se refiere el narrador
de
El escudo de armas de la ciudad
, que explica que los hombres antiguos, confiados
en la realización de sus proyectos, no imaginaron que la humanidad pudiera perder de
vista sus fines más elevados. Tales pensamientos paralizaron las fuerzas, de modo que
“más que de la construcción de la torre, la gente se ocupaba de construir la ciudad de
los obreros” (KAFKA, 1994, v. 6, p. 69). De esta concentración exclusiva en lo terrenal
9
Escrita, con prolongadas interrupciones y abandonada en estado fragmentario, entre 1911 y 1914;
publicada por primera vez, con el título de
América
y con problemáticas modificaciones, en 1927, por
el albacea literario de Kafka, Max Brod.
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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se derivó una guerra de todos contra todos: despojados de un proyecto común, los
hombres se entregaron al individualismo desatado: “Cada asociación regional quería
tener el barrio más bonito, lo cual provocaba altercados que se exacerbaban hasta
acabar en sangrientos combates. Estos combates ya no cesaron” (KAFKA, 1994, v. 6,
p. 69), y de aquí extrajeron los gobernantes un nuevo argumento para afirmar que la
torre, a falta de la concentración necesaria, debía ser edificada muy lentamente o, mejor
aún, iniciarse solo después de que se estableciera la paz general. Contribuyó al olvido
del proyecto inicial el hecho de que los hombres, en las pausas entre los combates, se
abocaran a embellecer la ciudad, lo que provocó “nuevas envidias y nuevos combates.
Así pasó el período de la primera generación, pero ninguna de las siguientes fue
distinta, solo no cesaba de aumentar la destreza y, en consecuencia, la belicosidad
(KAFKA, 1994, v. 6, p. 229). Aocurrió que ya la segunda generación o la tercera
reconocieron que carecía de sentido la construcción de la torre, pero “estaban
demasiado ligados entre como para abandonar la ciudad” (KAFKA, 1994, v. 7, p.
147); en lugar del sueño comunitario de ascenso al cielo, las sagas y los cuentos
populares están ahora cargados del anhelo de un día profético en que la ciudad “será
destrozada por un puño gigantesco mediante cinco golpes que se sucederán a cortos
intervalos. Por eso también tiene la ciudad el puño en el escudo de armas” (KAFKA,
1994, v. 7, p. 147).
A esta genealogía del materialismo se añade el paso de un modelo personal de
poder a otro impersonal y ubicuo. Para este significativo cambio histórico encuentra
en Kafka un correlato en el desarrollo individual; de acuerdo con la Carta al padre”
(1919), el tiempo de la infancia y el de la primera juventud coinciden con la etapa de
pleno acatamiento del poder paterno, en tanto, en la vida posterior, la presencia del
poder se torna más difusa, menos abiertamente avasalladora, pero también más exten-
dida y universal. Esta transición podría ser puesta en paralelo con la evolución de la
propia escritura kafkiana: en algunas de las narraciones más representativas del
período temprano, el poder más aún: el poder en cuanto mal se halla localizado en
el ámbito familiar e identificado con la autoridad paterna, mientras que, en las obras
del período medio y el tardío, el poder está difuminado por las diversas instituciones
sociales. En las narraciones vinculadas con el proyecto de la torre celestial y la
edificación de la muralla, emperador y pueblo se presentan como dos entidades
enlazadas de un modo casi necesario. Pero entre uno y otro existe una distancia casi
infinita, superar la cual habría sido, en tiempos más antiguos, tarea de la nobleza; a
Miguel Vedda
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esta habría correspondido la tarea de elevar a los hombres corrientes, como la torre
babélica, hasta unas alturas en las que se sitúa, no este o aquel emperador, no esta o
aquella dinastía individuales, sino la idea misma del emperador y, con él, la idea de
justicia. Sin embargo, la nobleza perdió, con el correr de las generaciones, su función
originaria para devenir en un obstáculo entre pueblo y verdad. Reside en ella toda esa
influencia maléfica que, en Kafka, poseen las instancias intermedias. En palabras de
Emrich:
La “nobleza”, que alguna vez debió mediar entre emperador y pueblo, se ha
convertido en una instancia intermedia autónoma, que de esa manera
abandona también su posición “intermedia” intercesora; se autonomiza ella
misma como una instancia determinante. Pero precisamente esta es la “ley”
de nuestra sociedad, cuyas instancias y aparatos mediadores se convierten
en un poder que todo lo domina, se colocan delante de la verdadera ley bajo
la forma de disposiciones imprevisibles, asimilan dentro de toda la realidad,
se representan como la única realidad legisladora. (EMRICH, 1965, p. 220)
10
Un rasgo decisivo de la nueva ley es la proliferación de los intermediarios; en
manos de estos se concentra, de manera creciente, el poder que antes residía en las
instancias superiores: no en el emperador empírico y en las leyes concretas, sino en el
emperador y la Ley ideales. De este traspaso del poder hacia las regiones intermedias
no se derivan ni la desarticulación del sistema del poder ni una democratización de la
justicia, sino más bien una perversión de esta última. En efecto, los nuevos poderes no
buscan suprimir la violencia, sino tan solo desdibujarla; no tratan de edificar una
realidad más “humana”, sino de estetizar el mundo existente, de modo tal que quede
escamoteada pero de ningún modo suprimida la permanente barbarie. Cabe
destacar la complejidad del tratamiento que da Kafka a la antítesis entre vieja ley y
nueva ley: el hecho de que la segunda sea una depravación de la primera no implica
que esta última haya sido en misma justa, positiva, sino tan solo que los tiempos
más recientes están marcados por la voluntad de ocultar la ejecución de prácticas no
menos atroces que las del pasado.
Reaparecen estas cuestiones en una de las narraciones más importantes del
período medio: “En la colonia penitenciaria” (1914). Al comienzo de la narración vemos
cómo un viajero destinado a supervisar una colonia instalada en una isla desértica e
invadida por un sol abrasador, distante de Europa, asiste a la ejecución de un recluso.
El medio que se emplea no es alguno de los convencionales, sino un peculiar aparato
(
eigentümlicher Apparat
) que, a lo largo de doce horas, escribe en la espalda del
10
Donde no se indica algo diverso, las traducciones son nuestras.
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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condenado el mandamiento que este ha infringido. La ardua escritura, que resulta casi
imposible desentrañar mediante la simple lectura, es comprendida por el recluso a
partir de sus propias lesiones.
11
Una vez concluido el proceso de ejecución y escritura,
el cuerpo sin vida es arrojado a la fosa. El discurso que el oficial dedica a elogiar tanto
la perfección del aparato como la del ideal de justicia al que aquel se encuentra
vinculado despliega una estetización entusiasta de la crueldad y la violencia. También
explicita la identificación del funcionario con el antiguo comandante, el responsable de
la creación de la máquina de ejecución y el carismático impulsor del antiguo sistema
de justicia. En oposición con este se encuentra el nuevo comandante, que, influido por
un grupo de mujeres, querría suprimir el método anterior de ejecución e introducir un
trato más benévolo hacia los reclusos. El oficial procura en vano convencer al viajero
de la superioridad de los viejos procedimientos frente a los modernos; persuadido de
la iniquidad del viejo sistema, y a la vista de la autoinmolación del oficial, el viajero es
conducido a la casa de té ante la cual se encuentra la tumba del antiguo comandante.
Un soldado le informa que existe una profecía según la cual “el comandante, después
de un número determinado de años, resucitará y, desde esta casa, conducirá a sus
seguidores hacia la reconquista de la colonia. ¡Creed y esperad!” (KAFKA, 1994, v. 1,
p. 195). Al escuchar estas palabras, el viajero abandona a toda prisa la isla, rechazando
al soldado y al recluso que corren tras él. En la versión publicada en 1919, la narración
concluye de este modo; pero en las anotaciones de Kafka es posible hallar un final
diferente. En los “Fragmentos” incluidos en los
Diarios
, la figura del
nuevo comandante
asume rasgos más definidos:
emerge como hombre práctico y optimista, cuyos actos
no se orientan solo a reformar la vida presente, sino además a prestar servicios al
demonio, a quien se presenta como la serpiente (
die Schlange
) y como la gran señora
(
die große Madam
). El objeto de la colonia no es ya despertar en los reclusos el
conocimiento de la propia culpa, sino antes bien difuminarlo a través de la entrega a
la vida activa; más concretamente: al trabajo forzado; al alentar esperanzas en este
mundo, se sustrae a los hombres la lucidez y se los degrada a la condición de alimento
de la serpiente (
Schlangenfraß
). Entregados a las atormentadoras distracciones del
trabajo alienado, los reclusos ya no tienen tiempo de reflexionar sobre su propia
condición. Con esto puede verse mejor el sentido de la construcción de Kafka: lo que
11
Usted lo ha visto, no es fácil descifrar la escritura con los ojos; pero nuestro hombre las descifra con sus
heridas” (KAFKA, 1994
,
v. 1, p. 173).
Miguel Vedda
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diferencia la era del antiguo comandante de los tiempos del nuevo es que, en aquella,
resultaban visibles el sufrimiento y la muerte como hechos determinantes y recurrentes
de la vida social; mientras que, en los segundos, los aparatos de distracción tergiversan
la realidad, embelleciéndola. Como señala Sokel:
La colonia penitenciaria de Kafka es aquella región en que aún domina la
“mirada primitiva”. Su ley suprema es el dolor, y sus mandamientos son
meros pretextos para producir el éxtasis del dolor. […] Solo en la apasionada
veneración del dolor y de las heridas, en que la víctima es un fin en sí mismo,
asume sus plenos derechos la verdad no tergiversada de la existencia, sin ser
atenuada por ningún sentimentalismo sentimental. (SOKEL, 1983, p. 126)
Esta mirada es la que procura, precisamente, sepultar el nuevo comandante con
su mendaz humanitarismo, su perspectiva utilitarista y su desdén hacia los cultos y las
costumbres. A partir de esto puede verse que, al enfrentar al antiguo comandante con
el nuevo, Kafka no está enfrentando meramente dos épocas, sino también dos visiones
del mundo vigentes en su propio tiempo. El discurso del nuevo comandante, tal como
es presentado por el oficial, es el pensamiento secularista y liberal, positivista en el
fondo, propio del liberalismo, con su mítica fe en el progreso y su arrogante desprecio
de la tradición. El discurso del antiguo comandante, que hace suyo el oficial, es el del
irracionalismo de fines del siglo XIX y comienzos del XX, de intensa vigencia en Europa
occidental y central, y en cuya base se encuentra una condena de la civilización
moderna, afianzada en argumentos extraídos de Nietzsche y de toda la
Kulturkritik
alemana.
12
En tal sentido, el enfrentamiento entre el antiguo comandante y el nuevo
se asemeja a otros trazados por la literatura en lengua alemana de comienzos del siglo
XX; ante todo, recuerda la oposición entre el liberal Settembrini y el anticapitalista
romántico Naphta, tal como ha sido configurada por Thomas Mann en
La montaña
mágica
(1924). Sokel ha mostrado que “En la colonia penitenciaria”
representa un
punto de viraje en la evolución de Kafka: el antiguo comandante, una figura
desvanecida, añorada y aguardada por el oficial y los adeptos del antiguo régimen, no
es ya el padre visible y concreto de las narraciones tempranas, pero tampoco el poder
inaprehensible y ubicuo de
El proceso
o
El castillo
. En la obra posterior, “el sentido es
insondable, la justicia es inalcanzable, y la comprensión del poder, el desciframiento
12
“Al equipamiento del irracionalismo moderno pertenecen la mayoría de las cosas que definen a la
colonia penitenciaria: la glorificación de la muerte sacrificial como realización de la vida; el entusiasmo
nostálgico con un orden social en el que el centro de la vida no es lo útil (construcciones portuarias),
sino el ritual y el culto; la idea de las situaciones límite, el descubrimiento de la existencia auténtica al
borde del abismo y de la muerte; la veneración del dolor corpóreo, ya que este representa la verdad
más pura, es decir: la vivencia pura, y la equiparación de verdad y vivencia, la que se expresa en esta
perspectiva del dolor” (SOKEL, 1983, p. 128).
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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de su ‘mensaje’ permanece como un anhelo incumplido, así como el conocimiento de
la verdad”. (SOKEL, 1983, p. 135)
El Oriente en el que se desarrollan las narraciones vinculadas con el problema
de la vieja ley y la nueva ley no es una realidad existente en algún momento del pasado,
sino una construcción que funciona como antítesis de la Modernidad europea no
menos que el buen salvaje rousseauniano, la Edad Media romántica o la Grecia de
Nietzsche. Es, en una medida mayor que la isla aún regida por el antiguo comandante,
un estadio anterior de la Modernidad europea. Inversamente, como un estadio ulterior,
más “desarrollado” de esta última emerge la América de
El desaparecido.
Como es
habitual en el uso lingüístico alemán, el término “América” no se refiere aquí al
conjunto del continente, sino a unos Estados Unidos que, todavía a comienzos del
siglo XX, eran observados, desde la mirada centroeuropea, como un catalizador, a la
vez, de ansiedades y deseos, de impulsos regresivos y de anhelos utópicos. Kafka
configura una Norteamérica vista con ojos europeos; sugestivo es que la novela ofrezca
los puntos de vista que acerca del país poseen diversos emigrantes europeos. A lo
largo de toda la novela, América aparece como el escenario de una demencial
aceleración de los ritmos de vida. Todos los trabajos son realizados a extrema
velocidad y bajo condiciones de extrema presión, tal como lo muestra la ocupación de
Karl como ascensorista en el Hotel Occidental. Este último ofrece una imagen
paroxística de un vértigo que define a la sociedad norteamericana
in toto
; ya la
inhumana agitación del salón comedor pone en evidencia este tipo de barbarie, que
se revela asimismo en la descripción que hace de las condiciones de trabajo de los
ascensoristas la encargada de cocina, quien ve en aquellas un ejemplo muy
representativo del
american way of life
–una “jornada de trabajo de diez a doce horas
es un poco excesiva para un auxiliar […]. Pero eso es común en América” (KAFKA,
2017, p. 186). Therese completa la descripción diciendo que, en el hotel, “plantean
exigencias muy grandes. Hace un mes, una auxiliar de cocina se desmayó por el
esfuerzo excesivo y debió permanecer catorce días en el hospital” (KAFKA, 2017, p.
191); y dice mucho acerca del carácter representativo del escenario el hecho de que
el hotel reciba el sugestivo nombre de
Occidental
. Todo en él subraya, en forma
estridente, el desquiciado vértigo del estilo norteamericano: desde los encargos que
lleva a cabo en la ciudad Therese en compañía de Karl, y que “debían ser realizados
en todos los casos con la mayor premura” (KAFKA, 2017, p. 201), hasta la
enloquecedora rutina de las ventanillas de informes, que contempla Karl no sin
Miguel Vedda
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admiración luego de haber sido despedido. Un método análogo es el que se aplica en
la oficina del tío, que también exhibe los males del trabajo fordista; en estos términos
se describe el tráfico de los empleados:
En medio de la sala había un tránsito continuo de personas que corrían de
un lado a otro. Nadie saludaba; el saludo había sido abolido, y cada uno
seguía los pasos del que lo precedía y miraba el suelo, sobre el que trataba
de avanzar con la mayor rapidez posible, o atrapaba solo palabras o números
sueltos de los papeles que sostenía en la mano y que flameaban en su carrera
(KAFKA, 2017, p. 107).
Una visión temprana de esta iniquidad se halla ya en el puerto de Nueva York,
cuyo tráfico intenso, incesante ofrece la imagen de un “movimiento sin fin, transferido
desde el inquieto elemento a los desvalidos seres humanos y sus obras” (KAFKA,
2017, p. 79). Como una extensión del ajetreo de las olas se muestra, en las calles
norteamericanas, el ajetreo del tránsito, que asume rasgos infernales durante la
caminata hacia Ramses de Delamarche, Robinson y Karl, o cuando este último escapa
del hotel. Los automóviles son, como el artefacto de ejecución de la colonia
penitenciaria,
peculiares aparatos
cuya marcha incesante y desquiciada somete a los
hombres, que se vuelven, como sucede regularmente en Kafka, apéndices de la
maquinaria. Llamativo es que los hombres permanezcan invisibles en el interior de los
automóviles:
como durante todo el día, los automóviles pasaban una y otra vez muy cerca
uno de otro, como si fueran lanzados una y otra vez desde la lejanía en un
número preciso y fueran aguardados en la misma cantidad en la otra lejanía.
Durante todo el día, desde lo más temprano de la mañana, Karl no había
visto detenerse ningún automóvil, no había visto descender a ningún
pasajero (KAFKA, 2017, p. 169).
El mundo norteamericano es la exacerbación de la
ratio
capitalista, que en la
novela adquiere dimensiones míticas. Emrich ha destacado con acierto que, en
El
desaparecido
, el ser humano
no es el señor de su mundo laboral, sino que se encuentra “desvalidamente”
expuesto a él, como, en tiempos arcaicos se hallaban expuestos los hombres
a los poderes naturales de los “elementos”. El mundo industrial consuma, sin
presentirlo, el retorno a la prehistoria arcaica, de la que se había elevado la
humanidad, a través de un laborioso desarrollo milenario, formándose para
la autodeterminación libre e individual, de modo similar a como el yo libre e
individual retrocede, en Kafka, hasta el animal prehumano-arcaico-mítico.
(EMRICH, 1965, p. 227)
La deshumanización moderna es caracterizada por Kafka “como una recaída en
el mundo arcaico, propio de la humanidad temprana; de las hordas colectivas, de los
atavismos mítico-animales y del retorno monótonamente circular de lo siempre
idéntico, en el que toda historia, toda conciencia temporal individual y toda
responsabilidad personal se encuentran extinguidas” (EMRICH, 1965, p. 227 y s). En
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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la medida en que América es la radicalización hasta el paroxismo de la “nueva ley”,
puede entenderse que en ella se arroguen plenos poderes las figuras intermedias; la
irracionalidad de la
ratio
se muestra aquí en la proliferación de instancias mediadoras
que impiden toda comunicación efectiva. Es sugestivo que la empresa del tío, de
manera representativa, no se aboque a la producción de bienes ni a la venta directa
de estos, sino a infinitas tareas de mediación:
Era una especie de negocio de comisión y expedición, como no era posible
quizás encontrarlo en Europa, hasta donde podía recordarlo Karl. Su negocio
consistía, en efecto, en un comercio intermediario que no llevaba, sin
embargo, las mercancías, por ejemplo, desde los productores a los
consumidores o quizás a los comerciantes, sino que facilitaba el tráfico de
todas las mercancías y materias primas para los grandes consorcios fabriles,
y también entre estos. Era, pues, un negocio que comprendía la compra, el
depósito, el transporte y la venta en un volumen gigantesco, y que debía
mantener conexiones telefónicas y telegráficas muy precisas y constantes con
los clientes. (KAFKA, 2017, p. 106)
Figuras representativas del nuevo orden, en cuanto mediadores por excelencia
entre el adentro y el afuera, entre la pertenencia a una institución determinada y la
expulsión o exclusión de esta, son, en Kafka, los guardianes y porteros. El más
conocido de ellos es el guardián (
Türhüter
) que recibe al hombre de campo ante las
puertas de la ley en la parábola incluida en
El proceso
; así como este guardián posee,
a ojos del campesino, dimensiones gigantescas, pero a la vez asevera, a propósito de
los siguientes guardianes, que cada uno más poderoso que el anterior. Ya la visión
del tercero no puedo ni siquiera yo tolerarla” (KAFKA, 2006 p. 237), así también los
mediadores americanos son vistos, por sus inferiores directos, como colosos míticos,
en cuyas manos (y no en las de las autoridades más altas) reside la suma del poder. A
esta especie de presuntos gigantes pertenecen personajes que, en diversos ámbitos,
expulsan o retienen a Karl en contra de su voluntad. Así sucede con el señor Green,
quien, en una tarea típica de mediador, es el encargado de poner en manos de Karl el
mensaje por el que este queda para siempre desterrado de la casa del tío, y que en el
momento de entregar la carta parece agigantarse hasta adquirir “unas dimensiones ya
ridículas”, de modo que Karl “se planteó, a modo de broma, la pregunta de si él no
habría devorado quizás al buen señor Pollunder” (KAFKA, 2017, p. 146). Pero en la
novela nadie encarna tan cabalmente el papel de guardián como el portero del Hotel
Occidental, quien también actúa en forma extremadamente despótica y literalmente
torturante
con sus inmediatos subordinados; al mismo tiempo, extrae un notorio placer
de sus afanosas prácticas de tormento no menos que el oficial de la colonia o el
azotador de
El proceso
. Es característico que, así como el oficial dice actuar en
Miguel Vedda
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nombre del antiguo comandante, y así como el azotador afirma haber sido designado
por la ley para ejercer sus funciones, así también el portero Feodor alegue realizar sus
prácticas de tortura en nombre de la dirección del hotel. Definitorio es, en estas figuras
mediadoras, el placer que extraen de sus tormentos; de aquí que los torturadores
suelan acompañar sus suplicios con ademanes eróticos que sugieren, a la vez que su
papel de ejecutores de la ley, su posición de dominio respecto de los personajes
femeninos. El hecho de que el portero atormente a Karl con un brazo mientras, con el
otro, atrae provocativamente a Therese es tan representativo del trasfondo erótico que
caracteriza al sadismo de los guardianes como la circunstancia de que el señor Green
aproveche la misión, asignada por el tío Jakob, de entregarle la carta a Karl para tocar
“a Klara con una intención evidente” (KAFKA, 2017, p. 120). Si la hegemonía de los
mediadores es manifestación distintiva de la degradación del mundo moderno, es
comprensible que en ellos se exprese de manera paroxística el impulso dico, en el
que veía Kafka una forma extrema de depravación de las relaciones humanas. En
conversación con Janouch afirma el escritor que el marqués de Sade es “el auténtico
patrono de nuestra época. […] El marqués de Sade solo puede obtener la alegría de
vivir a partir del sufrimiento del otro, así como el lujo de los ricos es pagado a través
de la miseria de los pobres” (JANOUCH, 1951, p. 78). Estos comentarios ofrecen un
indicio del modo en que Kafka, influido por el pensamiento libertario, enjuiciaba el
capitalismo: como un sistema que todo lo asimila y aniquila, como una suerte de
Juggernaut que aplasta todo lo que se interpone en su camino; un sistema en el que,
como dice Karl ya bien avanzada la novela, todos aprovechan su poder e insultan al
inferior” (KAFKA, 2017, p. 332). En referencia a una imagen de Georg Grosz en que el
capitalismo aparece como un hombre obeso que permanece sentado sobre el dinero
de los pobres, le comenta Kafka a Janouch:
El hombre obeso domina al hombre pobre en el marco de un sistema
determinado. Pero él no es el sistema mismo. Ni siquiera es su dominador.
Al contrario: el hombre obeso también lleva cadenas que no están
representadas en la imagen. La imagen no está completa. De ahí que no esté
bien. El capitalismo es un sistema de dependencias que van desde adentro
hacia fuera, desde afuera hacia adentro, desde arriba hacia abajo y desde
abajo hacia arriba. Todo es dependiente, todo está encadenado. El
capitalismo es un estado del mundo y del alma. (JANOUCH, 1951, p. 90)
Por efecto de la imposición de este universal sistema de dependencias, la vida
queda, según Kafka, envilecida y banalizada: “Ya no hay arriba ni abajo; la vida se
achata al nivel de mera existencia; no hay ningún drama, ninguna lucha, sino tan solo
el consumo de material, decadencia” (JANOUCH, 1951, p. 102). De esta depravación
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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general no están excluidas las mujeres, quienes, como se advierte en la novela,
promueven relaciones sádicas con los personajes masculinos. Así, la seducción de Karl
a manos de la criada Johanna muestra menos los rasgos de una relación amorosa que
los de una violación; en la casa de Pollunder, Karl es sometido a la violencia sádica de
Klara; en la pensión, Robinson experimenta una intensa humillación de parte de
Brunelda, quien lo cautivarlo en la medida en que lo degrada.
Es preciso destacar la función que en la novela posee la praxis laboral más
concretamente: el
trabajo alienado
; un mundo que conocía de cerca Kafka, quien,
como secretario adjunto de una aseguradora de accidentes de trabajo, observó de
cerca los efectos de la racionalización del proceso laboral. A propósito del sistema
Taylor es decir: de la segmentación del proceso de trabajo en unidades disociadas
entre sí y cronometradas, Kafka señala, en conversación con Janouch:
De ese modo no solo se humilla y degrada a la creación, sino ante todo al
ser humano, que es parte integrante de aquella. Así, una vida taylorizada es
una maldición espantosa, de la solo pueden derivarse hambre y miseria, en
lugar de la riqueza y del beneficio deseados [...]. La nea de montaje de la
vida lo lleva a uno hacia alguna parte, pero no se sabe cuál. Se es más cosa,
objeto, que ser vivo. (JANOUCH, 1951, p. 32)
El vértigo de los ámbitos de trabajo en la América kafkiana es la expresión
exacerbada de un mundo taylorizado. El trabajo de los ascensoristas en el hotel ilustra
los efectos que tiene la segmentación del proceso de trabajo, no solo sobre la
existencia física, sino también sobre el “almade los trabajadores. Particularmente
alienante es, para estos, el hecho de que la rutina segmentada no les permita acceder
a la visión total tanto de los procesos de trabajo como de la maquinaria a la que se
someten:
Decepcionado estaba Karl, ante todo, por el hecho de que un ascensorista
solo tuviera algo que ver con la maquinaria del ascensor en la medida en que
lo ponía en movimiento a través de una simple presión en el botón, mientras
que, para las reparaciones del motor, se empleaba exclusivamente a los
maquinistas del hotel, de modo que, por ejemplo, Giacomo, a pesar de su
medio año de servicio en el ascensor, no había visto con sus propios ojos ni
el motor en el sótano ni la maquinaria en el interior del ascensor, a pesar de
que esto, como dijo expresamente, lo habría alegrado mucho. (KAFKA, 2017,
p. 195)
El sentimiento de alienación que genera en el trabajador la imposibilidad de
conocer la totalidad del proceso del que forma parte es, en Kafka, el correlato en la
enajenación del individuo ante unas instituciones sociales y, en última instancia, ante
un todo social cuya estructura y cuya función le resultan incomprensibles. La
multiplicación de las mediaciones (en términos específicos: la creciente
burocratización) en sociedades cada vez más complejas y estratificadas ha vuelto cada
Miguel Vedda
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vez más arduo, para la perspectiva individual, el acceso a una comprensión de la
sociedad en su conjunto. Hasta allí ha hecho llegar sus influencias nocivas la
ratio
burguesa. Si el casi inalcanzable ideal es, en Kafka, el acceso inmediato a la verdad
que a menudo es comparada, por el escritor checo, con una luz muy intensa, su
inversión perfecta es un oscuro mundo infernal en el cual la multiplicación de los
intermediarios logra, a la vez, dificultar el ingreso y fragmentar la visión total. Esta
doble función puede verse en “Ante la ley”: a medida que el hombre del campo
envejece, su voluntad va debilitándose junto con su vista; el hombre renuncia al deseo
inicial de ingresar directamente a la ley para concentrase en mediadores de inferior
jerarquía. Con el paso de los años, ya ni siquiera quiere sobornar al primer guardián,
sino tan solo a las pulgas que este lleva en el cuello de piel de su abrigo. La realidad
se torna, para sus ojos, fragmentaria y oscura: “Finalmente, su vista se debilita, y ya
no sabe si ha oscurecido realmente alrededor de él, o si solo lo engañan sus ojos. Pero
ahora reconoce, en la oscuridad, un destello que emerge, inextinguible, de la puerta
de la ley” (KAFKA, 2006, p. 238). El destello de la ley es indicio de esperanza: la
esperanza de que, más allá de la realidad fragmentada por la
ratio
, persista en los
hombres la intuición de la verdad, de la razón plena y emancipadora. En términos de
Kafka: si, en su intrincada e inabarcable fragmentación, la muralla china es cifra de la
confusión humana, es preciso mantener viva la memoria del abandonado ideal de
edificar la torre celestial.
La Norteamérica de Kafka funciona como un estado más agudo en un proceso
de modernización que el escritor checo juzgaba de manera crítica. De esto no habría
que inferir que la configuración del nuevo mundo es simple y unívoca. Hay en él, como
señala Manfred Engel, trazos que parecen indicar una superación de las ignominias
que Karl debió padecer en Europa. Por un lado, porque en el continente nuevo no
tienen validez las convenciones morales del viejo: para un país en el que no rigen los
estrictos códigos europeos, una “falta” como aquella que derivó en la expulsión del
hogar carece de importancia, según explica el tío Jakob; y la relación prematrimonial
entre Klara y Mack, para asombro de Karl, es en América algo sencillamente aceptado.
Por otro lado, porque no hay en América una estructura social fija como la que existía
en Europa: el ascenso social, corporeizado de manera paroxística por el tío Jakob,
viene a ilustrar esta diferencia específica. Para insertarse en esta realidad en principio
dinámica y móvil es preciso pagar, sin embargo, un costo elevado, que incluye, ante
todo, practicar y aun internalizar una severa autodisciplina; el modelo de yo favorecido
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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por la sociedad norteamericana es el de un yo “blindado” (Musil) ante las asechanzas
del anárquico caos de lo elemental e instintivo. Para escalar posiciones en América, es
necesario convertirse en lo que Sokel denomina un
yo concentrado
, es decir: en un
sujeto dedicado íntegramente a la consecución de sus propósitos y empeñado a
sacrificar en una medida extrema la satisfacción de los deseos instintivos; la novela
ofrece toda una variedad de ejemplos de semejante concentración, ya sea exitosos (la
encargada de cocina, el jefe de mozos; del modo más exacerbado, el tío Jakob) o
malogrados. Entre estos últimos se encuentra el estudiante que vive en el cuarto
contiguo al de Brunelda y que, empeñado en dividir su vida entre el estudio y el
trabajo, ha decidido simplemente renunciar a dormir. El estudiante se muestra decidido
a continuar aplicando sus métodos aun cuando estos no le reporten otro beneficio que
el de seguir perteneciendo a la compañía como vendedor de la más baja categoría.
Contraparte necesaria de este concepto despótico de la disciplina es un caos elemental
que a cada momento puede estallar de manera violenta, y en cuya base se halla una
energía o, mejor aún, una voluntad de poder que se manifiesta de manera intensa, más
allá de la diversidad de sus expresiones, en todos los personajes que ejercen el poder:
ya sea en la autoridad mesurada del tío y del jefe de mozos, ya en la violencia material
descontrolada del portero principal, ya en la sexualidad agresiva de Klara y Brunelda.
La manifestación política a la que asiste Karl desde el balcón de Brunelda es acaso la
expresión más desmesurada de estas potencias elementales que, sustraídas a cualquier
orden o mesura, amenazan con una recaída brutal en el caos. Esta erupción volcánica
de lo elemental, que es, como dijimos, la necesaria contraparte de la
ratio
y de la
autodisciplina convertida en un fin en sí mismo, concede, como sostiene Engel,
a la América ultramoderna de Kafka curiosos rasgos arcaicos. La novela los
explica implícitamente por el hecho de que, en América, las energías vitales
quedan en cierto modo liberadas y descubiertas como si estuvieran bañadas
en una luz solar que súbitamente se hubiera vuelto s intensa; energías
que el código europeo intenta, por un lado, camuflar, pero también, por el
otro mantener, aunque de manera insuficiente, dentro de ciertos límites.
(ENGEL, 2010, p. 186)
Situado entre la América a la que querría integrarse y la Europa que acaba de
abandonar, Karl experimenta la escisión entre, por un lado, el empeño en convertirse
en un norteamericano es decir: un yo concentrado y satisfacer, de ese modo, los
deseos del tío, y, por otro, el deseo de formarse como artista, lo que representa una
elección totalmente incongruente con el
american way of life
, tal como se halla
representado en la novela. A este cabría aplicar la máxima formulada por Karl al leer
la convocatoria para el Gran Teatro de Oklahoma: “Nadie quería convertirse en artista,
Miguel Vedda
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pero seguramente todos querían ser pagados por su trabajo” (KAFKA, 2017, p. 334).
La pasión por la música está siempre ligada en Karl con la nostalgia del terruño;
ejemplo de esto es la canción que recurrentemente toca en el piano: una vieja canción
soldadesca de su patria, que se cantan unos a otros los soldados de ventana a ventana
cuando, por la noche, se acuestan en las ventanas de los cuarteles y dirigen sus
miradas a la plaza sombría” (KAFKA, 2017, p. 102). Representativo del desafiante
optimismo inicial es que, en los primeros tiempos, esperara mucho de su ejecución
de piano” y no se avergonzara “ante la posibilidad de influir inmediatamente en sus
circunstancias en América a través de la ejecución del piano” (KAFKA, 2017, p. 102).
Prueba de la falta de fe en su destino de artista es el escepticismo en el que se hunde
Karl al percibir la desproporción entre su afán de influencia y la inmensidad de la
inabarcable América, de la que solo puede percibir inconexos fragmentos: “pero
entonces miraba a la calle, y veía que esta permanecía invariable y solo era un pequeño
fragmento de un gran circuito que no era posible retener por mismo sin conocer
todas las fuerzas que obraban en torno” (KAFKA, 2017, p. 102). Es característico que
Jakob muestre poca aprobación por los ejercicios de piano de su sobrino, como
también por cualquier desviación de este hacia actividades placenteras o
contemplativas. Sobre esta base querría impedir la visita de Karl a casa de Pollunder,
que a sus ojos significaría un inadmisible relajamiento de la disciplina. De ahí que la
desobediencia de Karl acarree la decisión del tío de impedirle para siempre todo
vínculo futuro con él: hombre de principios, enemigo de todo lo espontáneo e
instintivo, Jakob no podía tolerar que Karl cediera ante el canto de sirenas del placer
encarnado en Klara, la verdadera razón para que el joven anhele viajar a casa de
Pollunder antes de haber blindado su yo mediante la disciplina; lo que equivale a
decir, en el fondo: antes de haberse inmunizado frente a cualquier disfrute considerado
improductivo. Testimonio de la duplicidad interna a Karl es que alterne en este el deseo
de convertirse en artista con la aspiración a ser ingeniero; es decir: que fluctúe entre
la dedicación a una tarea personalmente gratificante, pero improductiva desde la
perspectiva pragmatista de América, y la elección de una carrera eminentemente
práctica que le permita adaptarse sin reservas a las condiciones del nuevo mundo. Aún
en las ginas finales de la novela, durante la admisión en el Gran Teatro de Oklahoma,
vacila Karl sobre si debería incorporarse a él para convertirse en artista o en ingeniero;
y un indicio de que prevalece en él la adaptación al principio de realidad es el hecho
de que termine privilegiando la segunda opción, a pesar de que, al llegar, había
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mostrado una destreza para la ejecución musical que contrastaba con la impericia de
las mujeres que, ataviadas como ángeles, hacían sonar estridentemente sus trompetas.
No bien llega al hipódromo en el que se deciden las admisiones, Karl deplora el
maltrato que las mujeres infligen a sus instrumentos y, con la trompeta de Fanny,
comienza él mismo a tocar
con toda energía una canción que había escuchado una vez en una taberna
en el algún sitio. Se sentía feliz […] de poder tocar la trompeta favorecido
por encima de todos […]. Muchas mujeres dejaron de tocar y se pusieron a
escuchar; cuando él súbitamente se detuvo, apenas si la mitad de las
trompetas estaban en actividad, solo poco a poco volvió a producirse el ruido
a pleno. (KAFKA, 2017, p. 338)
Ante la hábil ejecución de Karl, Fanny exclama “Eres un artista” y lo insta a pedir
trabajo como trompetista; pero en Karl tanto como en Kafka prevalece siempre un
sentimiento de inseguridad acerca de su propio talento artístico; un talento que, por
otra parte, encuentra incompatible con las condiciones de vida dominantes.
La alternancia entre la vocación artística y la profesión burguesa se superpone
con la antítesis entre el terruño y europeo y el país de acogida, ante los cuales también
mantiene Karl una posición ambivalente. Esto se advierte con intensidad en el primer
capítulo, “El fogonero”, el único con el que Kafka estaba plenamente satisfecho y que
accedió a publicar en vida.
13
En él se exponen las circunstancias del arribo de Karl a
América, sus vanas tentativas para defender al fogonero presuntamente hostigado
por el jefe de máquinas Schubal y el inesperado encuentro con el tío Jakob. La
disposición de Karl, a lo largo del episodio, oscila entre un anhelo regresivo, nostálgico
de retornar al interior del barco, que representa su lazo de unión con el terruño
abandonado, y la determinación de desembarcar en América e incorporarse en el
mundo nuevo. Los personajes en los que se objetivan estos dos impulsos son,
respectivamente, el fogonero y el tío; uno y otro encarnan dos formas de subjetividad
que aparecen frecuentemente enfrentadas en la obra de Kafka. Sokel ha demostrado
que esta se encuentra atravesada por el enfrentamiento entre dos tipos humanos: por
un lado, una existencia en la que se encarnan el éxito económico o social, la confianza
en las propias capacidades y la relación positiva con las mujeres (existencia que, como
anticipamos, Sokel denomina
fachada
); por otro, un modo de vida antigregario,
ascético, en el que convergen la falta de fe en las propias condiciones, la soltería y la
carencia de reconocimiento social, configurando conjuntamente lo que Sokel designa
13
Nuestro análisis del capítulo se apoya en parte en la exégesis de Sokel (1983, p. 347 y ss.)
Miguel Vedda
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como
yo puro.
En la célebre “Carta al padre” se encuentran perfiladas de manera nítida
estos dos modelos en las figuras del hijo y del padre; Hermann Kafka emerge como la
encarnación de la voluntad de poder, o –en los términos empleados en la “Carta”– de
una “voluntad de vida, comercio y conquista”; en el padre coinciden, pues: “vigor,
salud, apetito, voz potente, talento oratorio, contentamiento consigo mismo,
supremacía frente al mundo, perseverancia, presencia de ánimo, conocimiento de los
hombres” (KAFKA, 1994, v. 7, p. 12). Bajo el influjo del padre, Kafka fue tornándose
“inconstante, inseguro” (KAFKA, 1994, v. 7, p. 24); se convirtió en “un niño
malhumorado, distraído, desobediente, siempre en búsqueda de una huida,
generalmente interior” (KAFKA, 1994, v. 7, p. 25). Los resultados de la educación
paterna fueron “la debilidad, la falta de confianza en mismo, el sentimiento de culpa”
(KAFKA, 1994, v. 7, p. 52). En el capítulo inicial de
El desaparecido
, el yo puro y la
fachada están representados, pues, de manera extremada por el fogonero y el tío;
ambos demarcan el espacio de alternativas dentro del cual debe tomar Karl las
decisiones que han de determinar su vida futura. Es sugestivo que el encuentro con el
fogonero se vincule con el deseo de Karl de retornar al interior del barco para recuperar
un objeto olvidado, y que este objeto sea precisamente un paraguas, la expresión
simbólica del deseo de Karl de encontrar un amparo eficaz ante las amenazas de lo
desconocido. Un resguardo tal lo halla en la habitación del fogonero, sobre cuya cama
consigue reposar un instante; como sostiene Sokel:
Karl se siente como en casa en la cama del fogonero. La nacionalidad alemana
que comparten subraya el contenido de recuerdos que la figura del fogonero
posee para Karl. […] No solo la patria común une a ambos, sino también la
común condición de marginales. Karl fue expulsado, el fogonero es oprimido
y, por cierto, justamente a causa de su nacionalidad y de su terruño, que hace
que Karl le cobre afecto. Ambos son marginales en el barco y en el mundo,
están aislados y son despreciados. (SOKEL, 1983, p. 347 y s)
La unión de “fidelidad al pasado y al origen por un lado, marginalidad y
postergación por otro” son “el rasgo distintivo del yo puro” (SOKEL, 1983, p. 348).
Propio de este último es una tendencia a la autocompasión y a la queja por la marcha
del mundo, que no se desarrolla en concordancia con sus propios deseos; solo que las
raíces para el descontento como se advierte en las lamentaciones del fogonero por
el maltrato que sufre en el barco son subjetivas. Las desventajas y riesgos distintivos
del yo puro dependen de su reclusión en la propia interioridad y en la incapacidad
para establecer una mediación satisfactoria con el mundo externo; de ahí las
dificultades para la comunicación y la falta de eficacia persuasiva que comparten
exponentes tan típicos del yo puro como el autor de la carta, el Gregor Samsa devenido
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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en monstruo de “La metamorfosis”, el oficial de la colonia y el fogonero. Caracterizan,
asimismo, a este último como en general al yo puro “lo laberíntico, enrevesado y
amorfo. Antes de que este elemento se manifieste en el en enrevesado discurso del
fogonero, aparece en su localización espacial dentro de la narración. Karl encuentra al
fogonero en la medida en que se ha extraviado en el laberinto del interior del barco”
(SOKEL, 1983, p. 349). El interior en el que se halla confinado el fogonero su
camarote se presenta como un ámbito oscuro en el que se destaca, como elemento
esencial la cama; recordando lo ya dicho a propósito del hombre del campo en la
parábola “Ante la ley” podemos concluir que
oscuridad
y
reposo
son dos atributos
característicos del yo puro. En este recinto halla momentáneamente Karl un lugar
ameno: el efecto inquietante “de encontrarse sobre el suelo inseguro de un barco,
junto a la costa de un continente desconocido” queda conjurado a partir del instante
en que Karl se siente “como en casa allí, sobre la cama del fogonero” (KAFKA, 2017,
p. 69). El fogonero es la exacerbación de una serie de rasgos presentes en el propio
Rossmann y que, por ende, lo aproximan al modelo del yo puro: marginalidad, carencia
de poder, falta de concentración, olvido; y es precisamente a partir de un olvido el
del paraguas que tiene lugar el encuentro con el fogonero, así como la permanencia
en el camarote de este derivará en otro olvido: el de la valija abandonada en cubierta.
Pero existen también en Karl cualidades diversas, que lo emparientan con el modelo
de la fachada, cuyo representante por excelencia es, según vimos, el tío Jakob. De ahí
que, oponiéndose al ánimo resignado de su nuevo amigo, Karl lo acompañe, con vistas
a defender su causa, a la oficina de capitán. Esta es el espacio típico de la fachada:
moderna y luminosa, provista de amplias ventanas, se diferencia de la claustrofóbica
oscuridad del camarote del fogonero en la misma medida en que, en
El proceso
, el
despacho de Josef K. en el banco se opondrá a las oscuras, anticuadas y herméticas
dependencias del tribunal. Si el camarote era el lugar del repliegue y la resignación, la
oficina del capitán es el escenario en el que se toman las decisiones y en el que,
significativamente, tiene lugar el encuentro con el tío. Los empeños de Karl para
defender al fogonero y conquistar la adhesión del capitán son un intento para
hermanar los dos mundos inconciliables. Es revelador que, a medida que va
desplegando su talento oratorio, no logre Karl hacer avances en la defensa de la causa
del fogonero, sino alienarse de este; la acción volcada hacia el mundo externo hace
que el joven se sienta cada vez más alejado del resignado repliegue en la interioridad;
en la oficina del capitán, Karl siente una confianza en sí mismo que lo arrima al mundo
Miguel Vedda
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arrogante de las fachadas: Karl, por cierto, se sentía tan fuerte y en pleno juicio como
quizás nunca lo había estado en casa. ¡Si sus padres pudieran verlo, si pudieran ver
cómo luchaba por el bien en un país extraño, ante personalidades distinguidas!; ¡y,
aunque aún no había conquistado la victoria, cómo al menos se mostraba plenamente
preparado para la última conquista!” (KAFKA, 2017, p. 83). Esta confianza en mismo
hace que Karl termine pagando un elevado precio con vistas a adaptarse a la sociedad
vigente; en este caso: para ingresar a América de la mano del exitoso y respetado tío
Jakob. El precio es sacrificar la pureza moral que lo había llevado, justamente, a
defender al fogonero; en palabras de Sokel:
El instinto de autoconservación depende, en la obra de Kafka, de la capacidad
para sustraerse al puro subjetivismo, ajustarse a los otros y adaptarse a ellos.
La paradoja en torno a la cual gira la obra de Kafka es que, en función de la
autoconservación, es preciso renunciar a la pureza y soberanía del yo. Esto
se le hace claro a Karl Rossmann en la soleada cubierta del transatlántico,
antes de que pueda pisar tierra en América. Tiene que sacrificar al preferido
de su corazón, al fogonero, para poder dirigirse a tierra con el tío. (SOKEL,
1983, p. 355)
Senador, floreciente hombre de negocios,
self-made man
, Jakob es la encarnación
de la fachada; eficazmente adaptado al código norteamericano, ha roto toda relación
con su familia y querría inducir a su sobrino a asumir la misma actitud. De lograr una
plena ruptura con su pasado, Karl habría podido renunciar a toda esa dimensión de su
carácter que lo vincula con el yo puro; el problema es que no logra deshacerse de esa
faceta de su personalidad, así como no podría convertirse íntegramente en yo puro
identificándose con aquellos caracteres que como el fogonero o Robinson
corporeizan ese modelo. El destino de Karl, como el del estudiante, pone al descubierto
el cariz siniestro de la adaptación a los códigos norteamericanos: la “nueva ley”
demanda la conformación de un yo perfectamente concentrado y orientado de manera
exclusiva a la autoconservación y la adaptación a las normas vigentes. Pero los
esfuerzos invertidos no proporcionan recompensas capaces de compensar los ingentes
sacrificios: el destino del estudiante muestra que los sacrificios necesarios para
constituirse en un yo concentrado pueden continuarse
ad infinitum
sin que se consigan
los beneficios esperados. Algo de este orden ocurre con el destino americano de Karl:
el sacrificio del fogonero al final del primer capítulo y la unión con el tío, así como la
conversión en un ascensorista ejemplar en el Hotel Occidental capaz de cumplir
irreprochablemente con sus deberes y renunciar a todos los placeres que se permiten
sus colegas, son desvelos que no rinden dividendo alguno.
Esperamos que a partir del análisis anterior pueda concluirse cuán lejos estaba
Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders como intérpretes de Kafka
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Kafka de la imagen del escritor alejado del mundo, paralizado en la desesperación
frente a una realidad cuyos fundamentos no se atreve a indagar. Lejos de ello, el
escritor checo se dedicó a investigar con ejemplar minucia los principios mismos de la
Modernidad capitalista, y buscó iluminar, por medio de su obra, los fundamentos de
esta, con un poder de generalización y una profundidad de crítica totalmente
ejemplares. Existe, pues, una “leyenda Kafka” que necesita ser revisada y desarticulada
por la teoría estética marxista; existe, al mismo tiempo, una necesidad imperiosa de
rescatar a Kafka de lo que buena parte de la tradición crítica ha hecho con él. Lukács
escribió que el gran realista “puede reaccionar negativamente en el plano político,
moral, etc., frente a muchos fenómenos de su época y frente a la evolución histórica;
pero, en un sentido determinado, está enamorado de la realidad, considera siempre a
esta con los ojos de un enamorado, aunque, eventualmente, escandalizado o
indignado” (LUKÁCS, 2003a, p. 44). Es nuestro parecer que estas palabras definen
cabalmente la misión que cumplió Kafka como escritor; vemos en su obra un odio
expreso a la barbarie capitalista y el convencimiento de la necesidad de ir más allá de
él, aunque sus narraciones no encierren indicaciones “prácticas” sobre las vías para ir
más allá del mundo burgués. Volvemos a plantear aquí lo que dijimos a propósito de
Anders: ¿es esa acaso la función del escritor? En
Contra el realismo mal entendido
,
Lukács propone como “punto arquimédico” para la actualidad en términos subjetivos,
“no considerar ya la realidad como caos, sino reconocer en ella sus legalidades, sus
tendencias de desarrollo, el papel del ser humano en ellas” (LUKÁCS, 1958, p. 77), y
nos preguntamos tan solo si no es eso precisamente lo que hizo Kafka en su narrativa.
Es cierto que, en esta, la explicación pormenorizada del mundo burocratizado y
cosificado solo admite la irrupción de señales débiles, incipientes aunque
inequívocas de un mundo mejor y distinto, que en cuanto tales asumen matices
utópicos; pero entonces recordamos la observación de Lukács: “Es llamativo que, en
Goethe y Balzac, en Stendhal y Tolstoi, la perspectiva esté siempre más o menos
embebida de elementos utópicos” (LUKÁCS, 1958, p. 67). Kafka ha conseguido
configurar un realismo profundo y nos atrevemos a decir
necesario
para la
comprensión de la Modernidad, y esta es una verdad que Günter Anders y György
Lukács, en sus brillantes análisis, solo parcialmente han logrado percibir.
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Como citar:
VEDDA, Miguel. Hacia un realismo bien entendido: György Lukács y Günther Anders
como intérpretes de Kafka.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 268-309, mar.
2022.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Em prol de uma boa causa: a correspondência
entre György Lukács e Günther Anders
Carolina Peters*
Murilo Leite**
Para quem estuda a obra teórica de um determinado autor, o contato com sua
correspondência, tanto ativa quanto passiva, é sempre uma fonte importante de
pesquisa. Exigindo cuidado redobrado quando utilizadas como fonte da investigação
filosófica, mesmo aquelas cartas mais íntimas são capazes de aproximar o pesquisador
de seu objeto de estudo, seja porque desvelam aspectos biográficos que ajudam a
iluminar o curso de uma trajetória intelectual o escopo de suas preocupações,
referências culturais e bibliográficas, relações pessoais, sua reação a eventos históricos
etc. , seja porque, constrangidos aos limites mais restritos da comunicação epistolar,
os remetentes são levados a explicitar de maneira sintética problemas longamente
desenvolvidos, em textos publicados ou manuscritos mantidos na gaveta.
A correspondência entre György Lukács e Günther Anders, filósofo polonês
radicado na Áustria, aqui publicada pela primeira vez em língua portuguesa,
certamente oferecerá aos estudiosos das obras dos autores contribuições valiosas
acerca de suas produções intelectuais, além da relação de ambos com os problemas
de seu tempo. Os dois trocaram cartas com regularidade entre julho de 1964 e abril
de 1971, ano do falecimento do marxista húngaro; um período agitado, que
compreendeu as repercussões do bombardeio a Hiroshima e Nagasaki, a guerra do
Vietnã, os movimentos políticos de Maio de 68 e as lutas do movimento negro por
direitos civis nos Estados Unidos. Durante esse tempo, cada qual se dedicava àquela
que se tornou sua
magnum opus
: Lukács, à sua ontologia do ser social, e Anders, à
segunda parte de seu trabalho sobre a obsolescência do homem, ainda inédito em
* Mestranda em Filosofia pela UFMG, graduada em Letras pela UFRJ. E-mail:
carolinapeters50@gmail.com.
** Professor do Curso de Direito da UEMG campus Ituiutaba, doutorando em Direito pela UFMG. Email:
murilo.leite.pereira@gmail.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.654
Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e Günther Anders
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 310-316 - mar. 2022 | 311
português.
Não obstante, estavam atentos aos acontecimentos e protagonizaram iniciativas
de resistência. Anders foi uma figura destacada no movimento antinuclear, e Lukács
encabeçou uma iniciativa de intelectuais europeus pela liberdade de Angela Davis.
Como se vê, os filósofos demonstraram profundo compromisso com aquelas que eram
as grandes causas do presente. Foram, portanto, filhos de seu tempo e, mais do que
apreender seu tempo em pensamento, engajaram-se pela transformação efetiva do
mundo, ainda que conforme as cartas revelam nem sempre estivessem de acordo
quanto à tática a ser adotada. Diferenças à parte, partilhavam de uma visão de mundo
comum que dava substância à sua amizade. Com maior otimismo, como no caso de
Lukács, ou com uma atitude mais pessimista, como a de Anders, mas, em todo caso,
sempre dispostos a tomar uma posição enérgica e prática em prol de uma boa causa”,
como escreve o húngaro sobre o companheiro.
O intervalo de quase uma década coberto pela correspondência contempla
alguns períodos de comunicação mais intensa, praticamente semanal (uma semana,
informa Lukács, era aproximadamente o tempo necessário para que uma carta
chegasse de Budapeste a Viena, ou fizesse o caminho inverso), o que nos permite
discernir pelo menos três blocos de debates, com seus respectivos eixos temáticos.
O primeiro deles gira em torno do problema do estranhamento e das discussões
sobre Claude Eatherly, oficial da Força Aérea estadunidense que entrou para os anais
da história como “o piloto de Hiroshima”. Em 6 de agosto de 1945, a bordo do
bombardeiro
Enola Gay
, Eatherly sobrevoava Hiroshima com ordens para fornecer um
relatório meteorológico, quando a bomba foi lançada; no momento da explosão,
encontrava-se a menos de 500 quilômetros do local. Horrorizado com o ocorrido,
Eatherly recusou ativamente o cínico epíteto de “herói de guerra”, o que não impediu
que fosse acusado reiteradamente de mentiroso e autor do disparo. Anders foi um de
seus maiores defensores e, ao longo da década de 1960, dedicou-se intensamente,
em detrimento mesmo de sua produção científica, à “luta [...] pela honra do piloto de
Hiroshima”, como sintetizou Lukács, “uma questão tão importante para a moralidade
em nossos dias”.
Motivado pelo envio de um texto de Anders, Lukács retoma o contato com o
filósofo pela primeira vez, desde que estiveram juntos em Viena provavelmente no
início da década de 1950 , quando recebeu do amigo um exemplar de seu
Kafka: pró
Carolina Peters & Murilo Leite
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e contra
, publicado em 1951
.
Único livro de Anders editado no Brasil, ainda nos anos
1960, pela Perspectiva, reeditado pela finada Cosac Naify e atualmente esgotado,
tornou-se um dos cânones dos estudos kafkianos e não passou despercebido por
Lukács. Inicialmente uma palestra ministrada, em 1934, por ocasião dos dez anos da
morte do autor tcheco, seu título original “Teologia sem deus” talvez baste para
que os conhecedores da obra lukácsiana de maturidade compreendam seu interesse
pelo escrito e o profundo elogio que lhe faz: “não li nada melhor sobre Kafka desde
então”.
O escrito mais recente, “Der sanfte Terror”, que mais tarde integraria o segundo
volume da principal obra de Anders,
Die Antiquiertheit des Menschen
, despertava
agora igual interesse em Lukács, justamente por abordar uma questão que lhe era
cara, o estranhamento contemporâneo, a partir de uma perspectiva da qual
compartilhava. Diferentemente da média da literatura sobre o assunto, não interessava
a ele (como a Lukács) apenas “‘desmascarar’” o estranhamento “como se
concernisse à
misera plebs
e de modo algum ao autor, o aristocrata intelectual não-
conformista”. Acima de tudo, Anders sabia que “o problema da ultrapassagem do
estranhamento é
o
problema”, com todas as ênfases que seu grifo no artigo definido
evoca.
Pertence ainda a este primeiro bloco da correspondência a cópia, encaminhada
para Lukács, de uma carta de Günther Anders, datada de 18 de junho de 1964,
originariamente endereçada a Hans Deutsch. À época, Deutsch era proprietário da
Forvm
, revista fundada em 1954 com o subtítulo “publicação austríaca mensal em
favor da liberdade cultural”, e em cujas páginas foram publicados muitos artigos de
Anders e de Lukács, incluindo alguns dos primeiros escritos lukácsianos sobre a
ontologia. Se, anos mais tarde, o periódico contribuiria enormemente com a difusão
das ações em defesa da liberdade de Angela Davis, no bojo da campanha de
intelectuais europeus articulada por Lukács, em meados da década de 1960 seu então
editor chefe, Friedrich Torberg, que assumiu o cargo quando do lançamento da revista
e aí permaneceu até 1965, conferia à
Forvm
uma linha editorial pouco progressista e
afeita à difamação de intelectuais como Thomas Mann, Bertolt Brecht e, naquele
momento, Günther Anders, sobre cuja relação com Claude Eatherly fez insinuações
indecorosas, para dizer o mínimo, e às quais o filósofo responde, na missiva a Deutsch,
com toda indignação e vigor.
Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e Günther Anders
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 310-316 - mar. 2022 | 313
Um segundo eixo, que anima a comunicação entre os filósofos nos anos de 1967
e 1968, diz respeito à confluência de seus trabalhos em tomar a vida cotidiana como
ponto de partida e de chegada da reflexão filosófica e da investigação da realidade,
coisa até então quem aponta é Lukács, ao que talvez nos seja permitido acrescentar,
ainda hoje
largamente negligenciada pela filosofia, sociologia etc., além de
menosprezada por parte substantiva da literatura contemporânea, que sucumbindo à
estética naturalista recai em figurações fetichizadas do mundo.
Novamente, a troca de cartas é iniciada por uma publicação de Anders remetida
a Lukács, desta vez o livro
Die Schrift an der Wand
, um diário filosófico mantido ao
longo de mais de duas décadas de trabalho. À leitura das entradas do diário de Anders,
Lukács declarou ao amigo ser “da opinião de que o abordado aí pertence às questões
mais importantes do conhecimento da realidade social: a saber, a investigação exata
do que eu chamaria de ontologia da vida cotidiana”, algo de que se ocupava
pessoalmente no momento, enquanto redigia
Para uma ontologia do ser social
.
A partir da afinidade neste tópico da ontologia da vida cotidiana, que não deixa
de remeter ao acordo prévio dos dois quanto ao problema do estranhamento, Lukács
e Anders engatam uma discussão acerca das noções de otimismo e pessimismo que
deixa transparecer, com grande vivacidade, o fundamento ético de sua relação pessoal,
uma amizade que, infelizmente, pela força das circunstâncias, não pôde alcançar a
“realidade mais densa” do convívio presencial que Anders almejara com uma viagem,
nunca realizada, a Budapeste. Apesar de seu contundente ceticismo, que a princípio o
distanciaria de Lukács, Anders costumava repetir: “Se eu estou desesperado, o que
posso fazer?”. No lema, ecoa a célebre frase de Philine, personagem de
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
, tantas vezes relembrada pelo crítico húngaro como
expressão de um comportamento ético. Ao ser interpelada pelo protagonista do
romance de Goethe, receoso por não ser capaz de retribuir os generosos cuidados
que lhe dedicava, a jovem responde, sem titubear,
se eu te quero bem, o que podes
fazer?
No tópico “A base objetiva do estranhamento e da sua superação”, parte final do
último capítulo do segundo tomo de
Para uma ontologia do ser social
, Lukács chegaria
a registrar em nota de rodapé a postura exemplar de Anders, que, ao tomar como
ponto de partida a rejeição contra a bomba atômica, recusava esboçar uma imagem
de mundo
a priori
desesperançosa de qualquer sublevação contra os novos
Carolina Peters & Murilo Leite
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estranhamentos.
O terceiro e último momento da correspondência é pautado pela campanha em
defesa da liberdade de Angela Davis, presa em 13 de outubro de 1970. Militante do
Partido Comunista, ela figurava na lista de mais procurados do FBI desde agosto
daquele ano, taxada como uma “perigosa terrorista”. Ao tomar conhecimento do caso
e prevenido por amigos marxistas estadunidenses, Lukács envia, em de
novembro, uma carta ao historiador Herbert Aptheker,
1
membro do partido que, ao
lado de sua filha Bettina, esteve na linha de frente das mobilizações em favor de Davis,
a fim de oferecer sua ajuda prática na articulação da campanha nos países socialistas
e da Europa ocidental.
Não custa nada lembrar que, a essa altura da vida, contando 85 anos, o filósofo
húngaro encontrava-se bastante debilitado em razão de um câncer, recentemente
descoberto em estágio terminal. Não obstante, como sua correspondência documenta
e contra todos aqueles que se regozijam em enaltecer o jovem anticapitalista
romântico, em detrimento do revolucionário maduro, a quem taxam inadvertidamente
de stalinista e conservador , engajou-se na causa em prol de Angela Davis com grande
afinco até seus últimos dias.
Munido de informações jurídicas sobre o caso e outras orientações para as ações
de solidariedade a Davis, ele redige uma proposta inicial de protesto público. Era um
texto breve e escrito de uma forma tão geral que assiná-lo não significa que você está
aderindo a um determinado programa político”, mas que, no entanto, não perdia de
vista a denúncia contundente do caráter político da prisão da militante comunista e
antirracista. Remetendo ao notório
affair Dreyfus
, ocorrido na França em fins do século
XIX, e à condenação dos anarquistas Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, na década
de 1920, nos Estados Unidos, o documento alertava para a ameaça oferecida pelo
processo judicial (que se anunciava viciado desde o princípio) não apenas à
liberdade, como à própria vida de Angela Davis.
O chamado à manifestação em favor de sua liberdade foi logo remetido por
Lukács a diversos intelectuais conhecidos seus, Anders entre eles. Talvez pela
experiência na articulação do movimento antinuclear, o amigo passaria a cumprir, a
1
A carta pode ser lida em: <http://real-ms.mtak.hu/15209/>.
Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e Günther Anders
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 310-316 - mar. 2022 | 315
seu lado, um papel fundamental na coleta de assinaturas e divulgação da campanha,
além de fazer sugestões ao texto final, abaixo traduzido por nós:
Os signatários deste chamado dirigem-se à opinião pública americana com a
convicção de que expressam uma profunda preocupação, vívida em milhares
de intelectuais europeus, com o caso de Angela Davis. O caso Dreyfus, na
Europa, e o trágico destino de Sacco e Vanzetti, na América, deram provas
suficientes a qualquer ser humano perspicaz de que é possível, com o
cumprimento formal de todas as disposições legais, tirar de um ser humano
sua liberdade e até permitir que seja assassinado, quando os preconceitos
são sistemática e demagogicamente dirigidos contra ele. Todos os sinais
indicam que uma tal campanha psicológica de preparação do assassinato
judicial está ocorrendo contra Angela Davis. Dois tipos de preconceito
estão sendo mobilizados para sua privação da liberdade ou aniquilação. O
primeiro e mais forte é o ódio racial, que através da pessoa de Angela Davis
visa aterrorizar um grupo de seres humanos que lutam por sua emancipação.
A outra variedade de preconceito é dirigida contra os lutadores de esquerda.
Não é preciso estar de acordo com as ideias de Angela Davis para respeitá-
la como um ser humano que vive por seus princípios e por eles faz sacrifícios,
ou para ver com clareza a natureza e os objetivos dessa demagogia que
agora ameaça sua liberdade. Os signatários deste chamado sentem
conjuntamente o temor de que, com um trabalho formalmente correto do
aparato jurídico, esteja sendo preparado um atentado contra um ser humano
inocente e, através de sua pessoa, um atentado coletivo contra milhões de
seres humanos. Por isso nos dirigimos aos representantes das mais diversas
visões de mundo para quem democracia e justiça (como quer que as
interpretem) não são retórica vazia a fim de que, com o poder de oposição
da opinião pública, a injustiça aqui preparada possa ser evitada e Angela
Davis seja novamente posta em liberdade.
2
Este chamado foi publicado em março de 1971, originalmente em alemão, na
Neues Forvm
, ora dirigida por Günther Nenning, que após o contato feito por Anders
se somou pessoalmente à lista de signatários. Com destaque na capa da edição 207,
o texto era assinado por nomes como Ernst Bloch, grande amigo de Lukács na
juventude, mas de quem se distanciara, retomando agora o contato em razão da
campanha; por artistas, como os escritores Heinrich Böll, Elsa Morante, o poeta Nelo
Risi e a pianista húngara Annie Fischer; pelo ensaísta austríaco Ernst Fischer; por Agnes
Heller, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz, intelectuais próximos a Lukács; além
de cerca de mil estudantes europeus. A baixa adesão à campanha entre figuras
renomadas dos países europeus centrais é uma preocupação expressa na troca de
cartas.
No número 210 da revista, de maio e junho de 1971, seria publicado ainda um
segundo chamado, assinado por Lukács, com o intuito de arrecadar dinheiro para as
2
Vários documentos relativos à campanha pela liberdade de Angela Davis podem ser acessados em:
<http://real-ms.mtak.hu/22100/>.
Carolina Peters & Murilo Leite
316 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 310-316 - mar. 2022
despesas de defesa a princípio, honorários dos advogados e custos do processo,
cujo montante poderia ultrapassar 100 mil dólares. Este foi um ponto importante de
divergência tática entre ele e Anders, pois este receava que o financiamento
estrangeiro comprometesse a causa em favor de Davis. Após consultar Aptheker,
Lukács leva a cabo a iniciativa de levantar fundos para a campanha, como informa a
Anders na última carta trocada entre os dois, enviada em 27 de abril de 1971. Lukács
contribuiu pessoalmente com uma doação de dois mil dólares, mas não chegou a ver
o sucesso da ação. Em fevereiro de 1972, Angela Davis foi libertada após o pagamento
de fiança no valor de 100 mil dólares; o veredito que a declarou inocente viria apenas
em 4 de junho, exatamente um ano após o falecimento de György Lukács.
Como citar:
PETERS, Carolina; LEITE, Murilo. Em prol de uma boa causa: a correspondência entre
György Lukács e Günther Anders.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 310-316,
mar. 2022.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Lukács-Anders: uma correspondência*
György Lukács & Günther Anders
23 de maio de 1964
Caro Sr. Anders!
Recebi sua publicação
1
com grande alegria. Afinal, é o primeiro sinal de vida seu
desde que me entregou, anos atrás, seu estudo sobre Kafka,
2
em Viena; aliás: não li
nada melhor sobre Kafka desde então. Depois disso, li com grande interesse
Die
Antiquiertheit des Menschen
3
e, especialmente, sua publicação sobre o piloto de
Hiroshima.
4
Agora, pude ler seu novo estudo com grande interesse e muito prazer. Você não
é o único que se preocupa com o estranhamento [
Entfremdung
] contemporâneo e
procura expressar essas preocupações cientificamente. Mas sou muito cético em
relação ao modo como a média da literatura aborda o estranhamento. Predomina nela
uma complacência covarde e falsa. O estranhamento é desmascarado, mas como se
concernisse à
misera plebs
e de modo algum ao autor, o aristocrata intelectual
[
Geistesaristokraten
] o-conformista. Esta é a minha postura, que expressei em outros
contextos no prefácio da
Teoria do romance
, a saber, que tais autores costumam viver
no Grande Hotel Abismo, e ali, à beira do abismo, o abismo como um serviço
particularmente refinado da sociedade contemporânea, desfrutam de consciência
* Traduzido por Murilo Leite e Carolina Peters a partir de Briefwechsel zwischen nther Anders und
Georg Lukács 1964-1971”, in: BENSELER, Frank; JUNG, Werner (org.).
Lukács 1997 Jahrbuch der
Internationalen Georg-Lukács-Gesellschaft
. Berna: Peter Lang, 1998, pp. 47-72. Revisão técnica de Vitor
Bartoletti Sartori. Quando as obras citadas ao longo da correspondência não possuem edição brasileira,
mantivemos seu título original. Salvo quando especificado como Nota da Tradução [N. T.], as notas são
da edição original.
1
Der sanfte Terror [O terror suave], in:
Merkur
n. 193 e 194, 1964, pp. 209-224; 334-354. Este é
um texto que também foi publicado de forma expandida no segundo volume de
Die Antiquiertheit des
Menschen
, de Anders (Munique, 1980, pp. 131-187).
2
Kafka pro und contra. Die Prozeß-Unterlagen.
Munique, 1951. Ed. brasileira:
Kafka pró e contra: os
autos do processo
. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Perspectiva, 1969; Cosac Naify, 2007 [N. T.].
3
Lukács se refere ao primeiro volume da principal obra de Günther Anders,
Die Antiquiertheit des
Menschen
, cuja primeira edição foi publicada em Munique, em 1956.
4
Off limits für das Gewissen. Der Briefwechsel zwischen dem Hiroshima-Piloten Claude Eatherly und
Günther Anders 1959-1961
. Herausgegeben und eingeleitet von Robert Jungk. Reinbek, 1961.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.655
György Lukács & Günther Anders
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tranquila [
guten Gewissens
].
Não é nenhuma surpresa para mim que você não pertença às fileiras desses
críticos culturais. E devo dizer que fiquei especialmente contente em ver como sua
crítica do estranhamento se aproxima da manipulação branda, concepção sobre a
qual escrevi em meu artigo para a
Forvm
.
5
Mas isso exigiria uma conversa. Como o
velho Fontane costumava dizer, este é um campo amplo demais para uma carta.
Com os melhores cumprimentos e obrigado novamente por enviar a publicação,
Seu, Georg Lukács.
4 de junho de 1964
Günther Anders, atualmente na pensão Augustus,
Laigueglia (Savona), Itália
Caro Sr. Lukács,
Não preciso dizer o quanto fiquei satisfeito com suas palavras de concordância.
Sim, claro que o problema da ultrapassagem [
Überwindung
] do estranhamento é
o
problema; mas ainda estou afogado em manuscritos que apresentam a forma do
estranhamento contemporâneo, em suma: no segundo volume da
Antiquiertheit
, que
na verdade deveria ter sido concluído muito tempo, mas está progredindo
lentamente devido à minha atividade não teórica no movimento antinuclear. No
momento, estou totalmente ocupado em repelir um ataque infame contra Claude
Eatherly e, para isso, tenho que escrever um livreto.
Creio que assim que eu tiver quatro ou cinco dias de folga, pergunto a você se
está bem, e depois dirijo até Budapeste a fim de encontrá-lo. Há muito tempo desejo
poder falar longamente com você. Estou animado para que este desejo se torne
realidade num futuro próximo.
Com os mais calorosos agradecimentos e grande respeito,
Seu, Günther Anders.
P.S.: O endereço acima é válido até 1º de julho.
5
Probleme der kulturellen Koexistenz [Problemas da coexistência cultural], in:
Forvm
, v. XV n. 124 e
125, 1964, pp. 181-184; 241-244.
Lukács-Anders: uma correspondência
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Budapeste, 12 de junho de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado pela sua amável carta de 4 de junho. Eu entendo perfeitamente que
você esteja momentaneamente dominado pela crítica negativa do estranhamento. Sua
versatilidade e determinação são muito importantes nesta questão atualmente. Fiquei
particularmente satisfeito por você querer se posicionar no caso do piloto de
Hiroshima. É também um dos sintomas de nosso tempo que tudo, do fascismo ao
consumo ostentatório [
Prestigekonsumption
], seja desculpado e, se alguém age
heroicamente contra o tempo, uma campanha de difamação terá que surgir. Você
conhece o caso Niekisch
6
na Alemanha? Algo semelhante está acontecendo lá.
Estou muito contente com seu plano de vir a Budapeste. A partir de 1º de julho
provavelmente estarei aqui por um período mais longo, mas seria bom se você me
avisasse quando pretende vir em tempo hábil. Você deve ter em conta que uma carta
leva cerca de uma semana para chegar à Áustria e outra semana para retornar da
Áustria. Meus alunos estão tentando publicar seu ensaio em uma revista daqui, em
húngaro. As coisas parecem bem, por enquanto. Se uma decisão positiva for tomada,
você terá um honorário maior para cobrir seus custos aqui.
Com os melhores cumprimentos e na esperança de vê-lo novamente,
Georg Lukács.
21 de junho de 1964
Günther Anders, atualmente na pensão Augustus,
Laigueglia (Savona)
Caro Sr. Lukács,
É uma alegria ouvir que minha análise do conformismo, ou melhor, do
congruísmo
7
agora está sendo lida também por húngaros, e que existe até a
6
Ernst Niekisch (1889-1967); professor de formação, inicialmente membro do Partido Social-Democrata
da Alemanha (SPD), depois ativista no Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (USPD),
protagonista do chamado bolchevismo nacional. Após a resistência de 1933, foi condenado à prisão
perpétua em 1939, e desde a libertação viveu em Berlim Ocidental. Entre 1948 e 1954 esteve como
professor titular de Sociologia na Universidade Humboldt, em Berlim Oriental. Seus últimos anos de
vida estão repletos de esforços infrutíferos para ser reconhecido na República Federal como uma vítima
do fascismo (cf. MOHLER, Armin.
Die Konservative Revolution in Deutschland 1918-1932
. Dritte, um
einen Ergänzungsband erweiterte Auflage. Dannstadt, 1989, p. 465).
7
Nas palavras de Anders: “[...] o conformista ótimo não é apenas conformista, mas congruísta. E isso
György Lukács & Günther Anders
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possibilidade de publicar o texto em húngaro. Muito obrigado por ajudar nisso. Claro,
este artigo é apenas um P.S., ele foi criado como um posfácio para entradas do diário
filosófico sobre os cosmonautas, das quais apenas uma parte foi publicada até agora.
(Também na
Merkur
).
8
Alguns dias atrás, você deve ter recebido uma cópia curta de uma carta minha.
que presumo que você recebe a
Forvm
regularmente, você terá entendido ao que a
carta se referia: fui chamado pelo editor-chefe desta revista, um escritor
megalomaníaco e politicamente perigoso chamado Torberg, com os insultos mais
rudes e incompetentes minha carta foi a reação a isso. Por vinte anos, Torberg se
limitou a importunar Thomas Mann e Brecht; agora, tendo visto a futilidade de seus
insultos em relação a esses dois grandes homens, ele mudou de alvo e agora me honra
com seu ódio.
Sim, eu conheço um pouco o caso Niekisch, Drexel
9
me enviou seu livro sobre o
assunto. Mas, no momento, estou tão ocupado defendendo Eatherly de acusações
caluniosas que não posso lidar com mais nada. Visto que como indivíduos nunca
vivemos à altura da infâmia que nos cerca, escolhas precisam ser feitas.
Claro, se eu vir a possibilidade de uma viagem a Budapeste, eu o informarei o
mais rápido possível. Porque uma viagem para Budapeste que não fosse também uma
viagem para Lukács não seria uma viagem a Budapeste para mim.
Com os melhores cumprimentos e meus melhores votos,
Seu, Günther Anders.
significa que ele não apenas se conforma com o conteúdo a ele destinado e entregue, mas que, em
última análise, o conteúdo de sua vida anímica coincide com esse conteúdo” (cf. ANDERS, Günther.
Die
Antiquiertheit des Menschen
. Bd. II. Munique: Beck, 1992, p. 149, tradução nossa) [N. T.].
8
“‘Helden und Ignoranten. Tagebuchblätter während des sowjetischen Weltraumfluges [Heróis e
ignorantes: páginas de diário durante o voo espacial soviético], in:
Merkur
, n. 181, 1963, pp. 223-
238; também publicado em
Der Blick vom Mond. Reflexionen über Weltraumflüge
. Munique, 1970.
9
Joseph Drexel (1896[-1976]) esteve em contato com Ernst Niekisch desde 1925, trabalhou para sua
revista
Widerstand
, publicou um serviço de informação ilegal e, em 1939, foi condenado a quatro anos
de prisão. Após a guerra, foi coeditor do
Nürnberger Nachrichten
(a partir de 1948). Lukács refere-se
ao livro
Der Fall Niekisch. Eine Dokumentation
. Stuttgart; Colônia, 1964. (Cf. KOSCH, Wilhelm.
Biographisches Staats-Handbuch. Lexikon der Politik, Presse und Publizistik
. Bd. 1. Berna; Munique,
1963, p. 258).
Lukács-Anders: uma correspondência
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Carta de Günther Anders a Hans Deutsch,
10
18 de junho de 64
Günther Anders, atualmente na pensão Augustus,
Laigueglia (Savona)
Caro Sr. Professor Deutsch,
Você provavelmente admitirá que o que aconteceu na
Forvm
não é apenas um
lapso, mas um escândalo. Tenho o seguinte a dizer sobre as seis páginas
11
do Sr.
Professor Torberg:
Torberg publicou um texto meu sem pedir autorização a mim, o autor. Como você
sabe, eu nunca a teria dado a ele.
Ele o publicou de forma degradante, ou seja, feito em pedaços.
E isso, embora eu tenha, em consideração a você, recusado sua oferta generosa
de publicar meu artigo, apesar das repetidas solicitações. Na presença de sua família,
expliquei-lhe: “Obviamente, não esqueça as dificuldades que isso lhe causaria”.
E isso, embora você tivesse me garantido à época que alertaria o Sr. Professor
Torberg e que poderia atestar que depois de sua conversa com ele algo como o
primeiro ataque a mim não voltaria a ocorrer na
Forvm
. Para minha grande tristeza,
não posso mais acreditar em suas garantias.
Não quero ir além das imprecisões factuais [
sachlichen
] que abundam do texto
do Sr. Professor Torberg; ou do fato de que ele está jubiloso porque Eatherly não
jogou a bomba (o que nem Eatherly nem eu alegamos, pelo contrário: em sua
correspondência comigo ele enfatiza expressamente que não). Mas quando alguém se
atreve a argumentar que em minha correspondência com Eatherly, que hoje é
considerada um testemunho de nosso período histórico, não algo que “cheira
mal”, mas que esse cheiro “cai do céu”; ou quando alguém fala sobre borrar as calças
em relação a mim; ou quando alguém se refere a mim, um filósofo com mais de
sessenta anos não completamente desconhecido, como um moleque, então não
posso deixar tudo isso passar despercebido e sou forçado a partir para o contra-
10
Dr. Hans Deutsch (nascido em 1906), jurista e editor austríaco, emigrou em 1938 para Tel Aviv.
Tornou-se posteriormente proprietário da
Forvm
.
11
No número 124, de abril de 1964, da
Forvm
, em que Torberg escreve sobre duas peças de teatro,
ele novamente ataca Anders. No final do artigo com o significativo título Das Unbehagen in der
Gesinnung [O desconforto na disposição], a fim de se mostrar um defensor da política externa
americana, considera a bomba atômica o único dissuasor adequado contra os esforços expansionistas
ideológico-imperialistas de uma ditadura totalitária (cf. p. 212).
György Lukács & Günther Anders
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ataque. Qualquer pessoa respeitosa entenderia isso. Então você também entende.
Da mesma forma, você compreenderá que provavelmente terei de remeter esse
assunto ao meu advogado. Este passo pode ser evitado por meio de sua
intervenção pessoal. Apenas fazendo uma declaração detalhada e inequívoca na
Forvm
; uma explicação que deveria realmente aparecer como um grande artigo
dedicado apenas a este tópico na próxima edição da
Forvm
; uma declaração na qual
você inequivocamente descreve o relato do Sr. Professor Torberg (de que você
“gostaria de se livrar” de mim) acerca do seu relacionamento comigo pelo que ele é; e
na qual você confirma que, ao contrário, decepcionado com o filme de Leiser,
12
você
repetidamente me incitou a fazer um filme melhor com o material. Que você me pediu
para fazer isso na presença do meu advogado na época, o professor Peter, e que
existem memorandos a respeito; que você ficava me pedindo, inclusive em nosso
último encontro em maio (quando lhe entreguei o roteiro do Janouch), para poder
realocar minha produção; e que sempre tive que recusar essa oferta, que estou
contratualmente obrigado a duas outras editoras.
Peço-lhe que seja claro ao descrever sua posição, Sr. Deutsch. Você permitiu que
um autor, cuja contribuição você aceitou de bom grado, fosse insultado em sua revista
da maneira mais ignóbil e insípida. Se eu pudesse ter previsto essa possibilidade
isso, porém, teria sido ultrajante para você eu teria rompido todas as relações com
você e teria entregado o manuscrito de Janouch a outro editor.
Posso imaginar que voestá terrivelmente envergonhado diante de mim e eu
não queria estar na sua pele. Eu sinto muito, mas o Sr. Professor Torberg é o único
culpado por isso. O único consolo é que, afinal, sua intervenção pode resolver a
situação embaraçosa. E eu recomendo que você faça isso.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
12
Trata-se do documentário
Wähle das Leben
[Decisão da vida] (1963), dirigido por Erwin Leiser, que
aborda o bombardeio de Hiroshima [N. T.].
Lukács-Anders: uma correspondência
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Budapeste, 5 de julho de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado por suas cartas de 18 e 21 de junho. Obviamente, faremos o possível
para publicar seu ensaio em húngaro. Claro, não posso prometer sucesso incondicional
porque nossa situação aqui ainda é bastante precária. Minha aluna, Sra. Agnes Heller,
que vem tratando desse assunto, também luta pessoalmente pela honra do piloto de
Hiroshima. Ela escreveu um artigo sobre ele que, por enquanto, está vagando de
revista em revista.
Quanto à
Forvm
, só recebo os números em que aparecem artigos meus. Mas sua
resposta é totalmente suficiente para me esclarecer sobre o assunto. A causa em si
possui um caráter de princípio. Os conformistas não-conformistas odeiam
instintivamente todas as pessoas que não fraseologicamente [
phrasenhaft
], mas
realmente se rebelam contra o estranhamento e a manipulação. É por isso que o caso
do piloto é uma questão tão importante para a moralidade [
Moralität
] em nossos dias
e estou muito feliz que você esteja travando essa batalha incansável.
Compreendo muito bem que, nessas circunstâncias, você não tem tempo a perder
no caso Niekisch. É uma pena, porém, que você não tenha pelo menos um pequeno
artigo de jornal a respeito, porque esse caso não é menos característico de nosso
tempo que o do piloto.
Espero que possamos nos encontrar em um futuro próximo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
13 de julho de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Muito obrigado por sua carta de 5 de julho. Eu estava certo de que você recebia
os números da
Forvm
regularmente. Visto que não é esse o caso, estou lhe enviando
uma cópia do artigo miserável de Torberg. Eu gostaria de dizer que nunca ofereci meu
artigo contra Torberg para a
Forvm
, portanto, o escândalo começou antes da
impressão do meu texto. Em certo sentido, é claro que é uma honra ser atacado por
György Lukács & Günther Anders
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Torberg dessa forma, porque a cada década ele tem um inimigo especial que para ele
se torna uma
idée fixe
negativa: na última cada foi Brecht, na penúltima Thomas
Mann.
Faça o favor de comunicar meus calorosos agradecimentos à Sra. Heller por
trabalhar no caso Eatherly como minha aliada. Em breve poderei enviar a ela uma cópia
do meu artigo contra Huie, Die Entlarvung des Entlarvers,
13
ou seria ainda melhor se
eu pudesse ir logo a Budapeste e levar a cópia diretamente para ela.
Eu ainda tenho que terminar este script. Em seguida, notifico você para saber se
é possível visitá-lo. Já estou ansioso por esta viagem para vê-lo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 8 de agosto de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado pela carta de 13 de julho e por me enviar o material. O artigo de
Torberg é realmente um escândalo literário e sua indignação a respeito é perfeitamente
justificada. Eu só conhecia sua oposição a Brecht, já sua oposição a Thomas Mann me
era desconhecida.
A Sra. Heller ficou contente com sua carta, ainda mais com a perspectiva de
conhecê-lo pessoalmente em Budapeste. Também estou contente pela perspectiva de
um novo encontro, bem como por sua polêmica a respeito do piloto de Hiroshima.
Espero que você possa lidar com isso em breve.
Você leu o romance
A grande viagem
, do escritor espanhol Semprun, que
escreve em francês? Acho que é uma das novas publicações mais importantes.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
13
Entlarvung des Entlarvens[O desmascaramento do desmascarador], in:
Die Zeit
, 28 de agosto de
1964. Este ensaio é uma réplica ao livro de William Bradford Huie,
The Hiroshima Pilot
, no qual o piloto
do bombardeio, Eatherly, é retratado como um fanfarrão frustrado.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 325
17 de agosto de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Você não tem ideia do grande prazer que me deu com suas últimas linhas. A
posição de poder de Torberg aqui é tão grande que, com raras exceções, nenhum dos
meus colegas realmente teve a coragem de expressar sua indignação pelo escandaloso
ataque a mim a propósito, Torberg atacou Thomas Mann por muito mais tempo e
com muito mais ódio do que fez com Brecht; e Mann me disse, quando esteve em
Viena pela última vez, que ele evitaria passar por aqui se fosse exposto à infâmia de
Torberg novamente em conferências de imprensa.
Infelizmente, minha luta por Eatherly me força a mil atividades nada filosóficas
de detetive; tenho muitas dúvidas se algum dia chegarei à conclusão do segundo
volume de minha
Antiquiertheit
.
Sim, claro que meu plano de o visitar o mais rápido possível ainda está de pé; e
ficarei feliz em conhecer a Sra. Heller.
Não conheço o livro de Semprun ainda. Foi publicado em alemão, francês ou
inglês?
Obrigado mais uma vez pela sua indignação solidária,
Seu, Günther Anders.
22 de agosto de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado por sua carta de 17 de agosto. Eu não pude evitas ler suas observações
sobre os temores em relação ao Sr. Torberg com um sorriso no rosto. Nos anos 1930,
eu não tinha medo de atacar Fadeiev ou Yermilov, assim como nos anos 1940 e 1950
não tinha medo de Rákosi ou Révai. O que tenho a temer do Sr. Torberg?
Espero que em breve você termine sua defesa do piloto e volte ao trabalho
teórico. O livro de Semprun foi publicado em alemão em edição da Rowohlt.
Espero vê-lo em Budapeste em um futuro não muito distante. Enviarei seus
cumprimentos à Sra. Heller.
György Lukács & Günther Anders
326 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
1º de outubro de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Eu tenho que me desculpar com você, porque eu não escrevo há muito tempo; e
ainda não consegui iniciar a viagem a Budapeste, esperada meses. Sou
simplesmente um prisioneiro do caso Eatherly-Huie, meu trabalho consiste apenas em
uma atividade de defesa o que é tanto mais urgente e difícil na medida em que Huie
está na Europa no momento e, aparentemente com bastante fascinação, encoraja
jornalistas de segunda classe a entrevistá-lo, escrever artigos sobre ele etc. Receio que
poderei retomar meus planos novamente quando essa onda de tumulto tiver
diminuído; e espero sinceramente que isso aconteça em breve e que não tenha de
suspender por muito tempo minha expectativa de uma conversa com você.
Acabei de ler em um jornal que Kindermann
14
falou sobre você na Akademie.
15
Estou muito surpreso, porque K. foi um dos piores nazistas e até aqui se tenta, às
vezes com sucesso o que já é uma grande conquista para Viena afastá-lo de certas
iniciativas culturais.
Com os melhores votos,
Seu, Günther Anders.
5 de outubro de 1964
Caro Sr. Anders!
Muito obrigado pela sua amável carta de 1º de outubro. Lamento muito que
14
Heinz Kindermann (1894-1985), germanista e estudioso do teatro, nomeado em 1936 para a
Universidade de Münster, e em 1943 para a recém-fundada cadeira de estudos teatrais em Viena,
demitido depois de 1945 e reintegrado ao seu cargo em 1954. A partir de 1933, Kindermann foi um
dos protagonistas de um estudo literário popular, cujas categorias foram derivadas de ideias da
comunidade nacional e tipologias raciais, sua obra é a mais extensa entre todos os germanistas do
Terceiro Reich (cf. KILLY, Walther (org.).
Literaturlexikon. Autoren und Werke deutscher Sprache
. Bd. 6.
Munique, 1990, p. 323ss.).
15
Trata-se da Akademie der bildenden Künste, de Viena [N. T.].
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 327
esteja tão envolvido com o caso do piloto. Infelizmente, isso é inevitável quando se é,
como você, uma das poucas pessoas que hoje luta por uma boa causa.
Esperançosamente, você encerrará a campanha em breve.
Eu ficaria feliz com isso, porque então poderíamos ter discussões reais. Devo
dizer-lhe, nas poucas palavras que uma carta prescreve, que discordo de algumas de
suas brochuras sobre Eichmann.
16
É correto entender a manipulabilidade
[
Manipuliertheit
] como um recurso econômico fundamental de nossa época, mas o
regime de Hitler era algo muito especial dentro desta unidade, e esse aspecto especial
não aparece com precisão suficiente em suas polêmicas. Mas temos que discutir isso
verbalmente.
Fiquei sabendo da visita de Kindermann pela sua carta, acompanho muito pouco
os acontecimentos. É uma contradição estranha no que se chama agora de
liberalização. Estou muito familiarizado com o papel de Kindermann durante a era
Hitler. Mas eu sei que muitas vezes é mais fácil perdoar do que aderir consistentemente
aos princípios do marxismo. Esta é, de fato, uma contradição mais cômica, mas mais
real.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
10 de outubro de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Muito obrigado por suas linhas gentis. Você está absolutamente certo, não
formulei as especificidades do nacional-socialismo neste texto. Na verdade, eu queria
destacar a repetibilidade do que aconteceu. E martelar esse pensamento na geração
mais jovem porque a carta não é endereçada a uma única pessoa, mas a uma geração.
Você usa a palavra cômico para caracterizar o caso Kindermann. Francamente,
dificilmente me sinto capaz de apenas ver o cômico da questão. Acho simplesmente
insuportável que este homem seja agora homenageado em Viena por ocasião do seu
16
Wir Eichmannsöhne. Offener Brief an Klaus Eichmann
. Munique,1964.
György Lukács & Günther Anders
328 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
70º aniversário em uma festa oficial da universidade no final, eu até vejo isso como
uma desonra , porque a celebração mostra quão pouco a sério se leva os textos
nazistas que K. produziu quando foi oportuno.
O caso Eatherly-Huie continua a crescer, os jornais competem para publicar
excrementos de rumores completamente sem sentido enquanto ao fundo permanece
a nuvem de cogumelo de Hiroshima, que parece não ter chegado à consciência de
nenhum desses escribas.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 31 de outubro de 1964
Caro Sr. Anders!
Agradeço de coração a carta de 10 de outubro. Estou contente por estarmos
unidos na questão fundamental do problema específico do fascismo. Trazer tudo de
volta à moderna técnica manipuladora e fazer uma conclusão geral unitária disso é tão
sedutor quanto perigoso. Isso levaria ao fatalismo. E você realmente não quer parecer
fatalista.
um mal-entendido no caso Kindermann. Achei que tivesse acontecido aqui
sem que eu percebesse. É por isso que achei o assunto no contexto doméstico tão
cômico. Se a cena for Viena, então sua indignação é inteiramente justificada.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
22 de novembro de 1967
Caro Sr. Anders!
Obrigado por gentilmente me enviar seu livro,
Die Schrift an der Wand
.
17
Como estou muito ocupado completando minha
Ontologia do ser social
, não
consegui terminar de -lo. Mas gostei extraordinariamente do que pude apreender
17
Die Schrift an der Wand. Tagebücher 1941 bis 1966
. Munique,1967.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 329
dessas páginas até agora, sobretudo a análise da existência [
Existenz
] na emigração e
no repatriamento subsequente. Em geral, sou da opinião de que o abordado
pertence às questões mais importantes do conhecimento da realidade social: a saber,
a investigação exata do que eu chamaria de ontologia da vida cotidiana. Esse é um
complexo de questões que a filosofia, a sociologia etc. parecem ignorar em nossos
dias, e a maior parte da literatura contemporânea está tão presa a um naturalismo
artístico que não se pode aprender quase nada sobre essa questão. Aqui, o contraste
com a velha grande literatura (pense em Balzac ou Stendhal, Tolstói ou Tchekhov) é
talvez mais notável. E eu acredito que você nunca será capaz de entender os
pensamentos e sentimentos das pessoas em seu nível mais alto, ou seja, na melhor
poesia e literatura e claro também na filosofia, se você não compreender e analisar a
ontologia da vida cotidiana, que é diferente em cada período. Essas tendências
estavam presentes em seus escritos anteriores; os novos momentos que mencionei em
seu livro apenas fortaleceram minha aprovação de tais tendências de apresentação
[
Darstellungtendenzen
].
Peço desculpas pela unilateralidade dessas observações, mas foi exatamente
esse problema que particularmente me deteve ao ler seu livro.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
5 de dezembro de 1967
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro Sr. Lukács,
Acabo de voltar de Copenhague, onde nós, os juízes do Tribunal Internacional
de Crimes de Guerra,
18
acusamos os Estados Unidos de genocídio por causa das
operações de extermínio no Vietnã do Sul e do Norte. Sua carta estava no topo da
montanha de cartas que me recebeu quando cheguei em casa. Foi um bom retorno à
18
Anders participou do Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, convocado para investigar a guerra
travada pelos Estados Unidos no Vietnã e determinar a natureza da guerra (RUSSELL, Bertrand.
“Ansprache anläßlich des ersten Tribunals der Mitglieder des Vietnam-Tribunals, 13. November 1966”,
citado a partir de: RUSSELL, Bertrand.
Autobiographie. 1944-1967
. Frankfurt, 1971, p. 333). A
participação de Anders no tribunal está documentada no escrito: Nürnberg und Vietnam. Synoptisches
Mosaik. Voltaire Flugschrift 6. Bernward Vesper (org.). Berlim, 1967.
György Lukács & Günther Anders
330 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
casa ser recebido com tais palavras de consentimento.
Você está absolutamente certo: o que você chama de “ontologia da vida
cotidiana” é uma das tarefas mais importantes para mim. O fato de você enfatizar este
lado do meu trabalho não se deve apenas ao fato de ter lido minhas anotações no
diário sob a perspectiva de sua
Ontologia do ser social
, mas também porque este
tópico está em primeiro plano para mim.
Suas linhas me deixaram ainda mais satisfeito, pois subsequentemente tive a
sensação de que minha análise de Döblin
19
poderia ter ido contra a corrente. Mas por
isso escolhi este ensaio, porque me pareceu estar intimamente relacionado com o
problema do realismo, que é tão importante para você; ainda que os artefatos
examinados por mim fossem de natureza quase surrealista.
Espero muito poder enviar a você um livreto sobre o Vietnã
20
em breve. O título
é:
Visit beautiful Vietnam
um título que tirei diretamente de um folheto publicitário
no Vietnã do Sul. Será tão desagradável de ler quanto qualquer um dos meus escritos
mas provavelmente não é minha culpa.
Mais uma vez, muito obrigado e desejo-lhe boa saúde e muita energia para o
seu trabalho!
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 21 de dezembro de 1967
Caro Sr. Anders!
Obrigado por sua carta de 5 de dezembro. Estou muito satisfeito por termos a
mesma opinião sobre a questão do significado da ontologia da vida cotidiana. É por
isso que suas preocupações acerca de seu ensaio sobre Döblin não são mais válidas.
Considero o estudo da ontologia da vida cotidiana muito importante também para os
problemas estéticos. E é justamente sob esse aspecto que seu ensaio mostra os
problemas do realismo estético em Döblin.
19
“‘Der verwüstete Mensch’. Über Welt- und Sprachlosigkeit in Döblins
Berlin Alexanderplatz
(1931)”
[O homem devastado: sobre a ausência de mundo e de palavras em
Berlin Alexanderplatz
, de Döblin
(1931)], in: BENSELER, Frank (org.).
Festschrift zum 80. Geburtstag von Georg Lukács
. Neuwied; Berlim,
1965, pp. 420-442.
20
“Visit beautiful Vietnam”. ABC der Aggressionen heute.
Colônia, 1968.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 331
Estou aguardando seu livro sobre o Vietnã com grande interesse. Acho que a
única diferença entre nossos pontos de vista é que você é muito mais cético e
pessimista do que eu. Portanto, para mim é sempre um prazer constatar que seu
ceticismo nunca o impede de tomar uma posição enérgica e prática em prol de uma
boa causa.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
29 de dezembro de 1967
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro Sr. Lukács,
As suas últimas linhas deixaram-me extremamente feliz, fiquei especialmente feliz
com a sua última frase, na qual diz que o meu ceticismo não me impede de defender
uma boa causa. Na verdade, essa sua frase é quase idêntica àquela que ditei, anos
atrás, para os alunos não-conformistas da assim chamada Universidade Livre de Berlim,
e que dizia: “Se eu estou desesperado, o que posso fazer?”
Em alguns dias, uma primeira impressão parcial
21
de meu livro sobre o Vietnã
aparecerá em uma revista alemã. Eu tomarei a liberdade de lhe enviar uma cópia.
Talvez o livro também pudesse ser publicado na Hungria. (?)
Durante anos, pretendi ir a Budapeste de carro, a fim de conferir uma realidade
[
Wirklichkeit
] mais densa ao nosso contato, até então unicamente escrito. Se isso não
aconteceu até hoje é simplesmente porque as exigências práticas e políticas me
mantêm tão requisitado que tive de adiar os planos privados. Mas eu realmente espero
que o projeto possa finalmente ser realizado em 68.
Desejo-lhe saúde e força de trabalho para este ano novo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
21
“Vietnam und kein Ende” [Vietnã e sem fim], in:
Das Argument
, n. 42, 1967, pp. 1-21; “Der
amerikanische Krieg in Vietnam oder Philosophisches Wörterbuch Heute I” [A guerra americana no
Vietnã ou Dicionário filosófico contemporâneo I], in:
Das Argument
, n. 45, 1967, pp. 349-397.
György Lukács & Günther Anders
332 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
6 de janeiro de 1968
Caro Sr. Anders!
Obrigado pela sua carta de 29 de dezembro. No nível humano, gostei muito da
sua atitude interior em relação ao desespero. Mas acredito que é preciso pensar além
dos afetos como esperança ou desespero. (O fato de ele o fazer isso e querer
transformar um afeto em um princípio objetivo é um dos limites intelectuais de Ernst
Bloch.) Acredito que objetivamente se trata do problema da perspectiva próxima e
distante. Pode-se muito bem ser muito pessimista sobre o presente e o futuro imediato
sem perder o horizonte mais amplo da perspectiva final. Você não precisa
necessariamente ser um marxista para fazer isso. Lembre-se de que Stendhal tinha
uma posição muito semelhante sobre o presente e o futuro.
Estou muito contente em poder conhecer seu livro sobre o Vietnã. E mais ainda
por você ter a intenção de vir a Budapeste mais cedo ou mais tarde. Seria muito bom,
e você poderia conhecer aqui alguns jovens que, com seus discursos, reforçassem seu
otimismo latente.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
Budapeste, 30 de novembro de 1970
Caro Anders!
A esta carta, anexo o texto do chamado
22
que eu, em defesa de Angela Davis,
ameaçada de morte, enviei a numerosos intelectuais. Acho supérfluo enfatizar o que
significam, para uma pessoa de esquerda, o processo preparatório e o previsível
julgamento caso o protesto não force a demagogia reacionária a recuar. Peço-lhe que
se junte à campanha com seu nome e reputação, e também convide intelectuais
respeitados que você conhece em seu país a aderir. Escrevi o texto de uma forma tão
22
Já prestes a morrer, Lukács decidiu iniciar uma campanha internacional em defesa da professora de
filosofia negra e comunista, Angela Davis, que havia sido demitida da Universidade da Califórnia e
figurava na lista dos dez mais procurados pelo FBI, acusada de assassinato e sequestro. Após sua
prisão, comitês pela libertação de Angela Davis se formaram do dia para a noite. Lukács comparou o
caso Davis aos casos Dreyfus e Sacco e Vanzetti; ele enviou cartas a numerosos intelectuais na França,
Alemanha, Itália e Inglaterra solicitando apoio, encontrando, no entanto, apoio limitado (cf., para uma
visão geral, KADARKAY, Arpad.
Georg Lukács. Life, Thought, And Politics
. Cambridge, 1991, pp. 467ss.).
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 333
geral que assiná-lo não significa que você está aderindo a um determinado programa
político. Penso que é natural, no entanto, que cada um possa apresentar a sua própria
proposta de alteração e também que cada um tenha o direito de protestar
individualmente, embora gostaria de salientar que a apresentação em conjunto tem
um maior efeito. Por favor, envie-me um telegrama se quiser participar da campanha,
informando os nomes das pessoas que o comunicaram sobre sua decisão de participar.
Peço também que persuada a imprensa de seu país, se possível, a publicar o panfleto
de protesto. Em seguida, enviarei os nomes de todos aqueles que aderiram à
campanha aos referidos órgãos de imprensa.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
P.S.: Você poderia me ajudar passando o endereço de Havemann, caso o
conheça?
9 de dezembro de 1970
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro Georg Lukács,
Obrigado pelo pedido. lhe disse por telegrama que pode ter o meu nome à
sua disposição. Imediatamente tentei entrar em contato com várias personalidades,
mas até agora consegui encontrar uma: o Prof. Friedrich Heer, do Burgtheater de
Viena, que imediatamente disponibilizou seu nome. Com algumas personalidades,
tenho dúvidas se devo perguntar a elas, pois certas coisas no cenário político mudaram
aqui. Chamei imediatamente a
Forvm
, não só para ganhar Nenning como signatário,
mas também sua revista, para fins de publicação do texto. Ainda não consegui falar
com Nenning pessoalmente, mas espero um telefonema dele hoje ou amanhã. Em todo
caso, seria bom ter uma lista dos que já assinaram, porque em ocasiões semelhantes
a experiência é que, como reação inicial, normalmente digam: “Quem já assinou?”.
Você me informa que ainda podem ser sugeridas pequenas mudanças no texto.
Tenho uma sugestão a fazer. Parece-me que a palavra medo, que aparece na
terceira linha, tem um tom psicológico um tanto privado; eu falaria de profunda
preocupação” em vez de “medo”. Mas esta proposta não é imperiosa.
Para voltar a um dos pontos mencionados acima: me parece que o texto
György Lukács & Günther Anders
334 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
poderá ser publicado quando estiver finalizado talvez haja sugestões de outras
fontes e quando um número mínimo de assinaturas for atingido.
Claro, fico pensando a quem devo perguntar aqui em Viena, não sou austríaco
nativo nem “adquirido”, então tenho que mobilizar a ajuda de amigos para isso. Quase
não há homens internacionalmente famosos aqui, como critério para a seleção usarei
o fato de que as pessoas a serem consultadas também têm um nome fora das fronteiras
de nosso pequeno país.
Obrigado por tomar a iniciativa dessa campanha, com os melhores votos e
cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
P.S.: Acabei de telefonar para Nenning, da
Forvm
. Ele também disponibiliza seu
nome. Ele também concordou em publicar seu texto, evidentemente seu argumento
foi o mesmo que o meu somente após receber uma lista de nomes e assinaturas.
Além disso, ele, que tem muito mais contatos pessoais do que eu, organizará outros
nomes de signatários.
29 de dezembro de 1970
Caro amigo Anders!
No final desta semana, através da mediação dos representantes locais dos
principais jornais mundiais, espero poder enviar ao exterior a carta de protesto em
relação à questão de Angela Davis. No entanto, se quisermos continuar a campanha,
a partir de Budapest só podemos fazê-lo de uma maneira complicada; desde um país
ocidental, isso poderia ser feito muito mais rapidamente. Enviarei mais tarde, portanto,
todo o material, com o pedido de que seja divulgado no Ocidente, tenho a convicção
de que, no interesse da causa, você assumirá esse encargo. Vou encaminhar todo
material que vier a mim para você.
Agradeço antecipadamente,
com saudações cordiais,
Seu, Georg Lukács.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 335
2 de janeiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg, 1/5
Caro amigo Lukács,
Em primeiro lugar, meus melhores votos de Ano Novo!
Suas linhas gentis e a lista de nomes acabam de chegar com as primeiras
correspondências do ano novo. Muito obrigado. Claro, vejo com horror que por engano
meu nome não aparece na lista. Eu me sinto um pouco desconfortável. Acrescentarei
meu nome nas cópias que enviarei para a publicação. É claro que, para realmente dar
andamento ao assunto, preciso de algumas cópias da declaração, cuja redação
suponho ser diferente do original, porque acho que minha proposta de alteração, que
você aceitou, não foi a única.
Aliás, na lista o que me deixa um pouco preocupado está o nome de uma
pessoa que nunca foi perguntada e que felizmente agora como acabei de descobrir
por telefone consentiu retrospectivamente com o uso de seu nome.
Em minha última mensagem expressa para você, eu o havia dado o endereço que
você pediu na DDR; mas o nome não aparece na lista.
Para que tudo dê certo, entrego imediatamente a lista completa dos signatários
para Nenning, que possui uma cópia do texto original. Mas eu gostaria de avançar
mais apenas quando tiver recebido a lista final e as palavras finais de você. Por favor,
envie-me essas peças o mais rápido possível.
Com saudações cordiais,
Seu, Günther Anders.
2 de janeiro de 1971
Günther Anders 1090 Viena, Lackiererg 1/5
Neues Forvm
Aos cuidados do Sr. Dr. Günther Nenning
Caro Günther Nenning,
Desejo-lhe um bom 1971!
Acabo de receber de Lukács a lista daqueles que assinaram seu chamado. Como
György Lukács & Günther Anders
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você deve se lembrar, enviei a você o texto do chamado anteriormente. Agora você
pode publicar o texto com os nomes dos signatários na próxima edição.
Lukács me pediu para divulgar o texto o mais amplamente possível na Europa.
Você poderia fazer a gentileza de citar alguns órgãos que você acha que publicariam
a declaração?
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
06 de janeiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Sua carta me deixou um tanto perplexo. O fato de seu nome não constar nas
listas é um escandaloso acidente. Por favor, esqueça esse descuido o mais rápido
possível. Ao mesmo tempo, enviaremos a você a lista de assinaturas, desta vez sem
erros. Ainda não é a lista completa, esperamos acréscimos, principalmente da Itália. A
propósito: Não consegui descobrir de quem você recebeu a confirmação por telefone.
Tanto quanto me lembro, não incluímos um nome que não tenha sido confirmado
pessoalmente (por carta ou telégrafo).
Obrigado novamente pela ajuda eficaz e urgente. Desejo-lhe um feliz ano novo!
Seu, Georg Lukács.
P.S.: Não recebi uma resposta de Havemann até agora, então o nome não aparece
na lista.
8 de janeiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Agora estou enviando as novas adesões à lista. Os nomes são os seguintes:
Ayer, Alfred
23
(Inglaterra), Fischer, Annie (Hungria), Hegedüs, Andras (Hungria),
Kovács, András (Hungria), Risi, Nelo (Itália). enviei a lista mais completa para o
23
No texto datilografado ainda constava o nome de Alfred Ayer, que posteriormente foi riscado a mão.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 337
representante da imprensa local.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
9 de janeiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado pela sua carta e pela lista acrescida.
Eu imediatamente remeti uma cópia dessa lista para a
Forvm
; e, à
Forvm
, que
por sua vez (sem minha iniciativa) recolheu nomes, pedi que me enviasse seus novos
nomes para que eu possa encaminhá-los a você.
Foi apenas por meio de suas amáveis palavras de desculpas que me lembrei que,
por acidente, meu nome estava faltando em sua lista anterior, o que tinha esquecido,
é claro. Mas, como eu disse, deslembreinovamente. Por outro lado, gostaria de
chamar a atenção para dois erros na nova lista; 1. Elisabeth Freundlich não mora na
República Federal da Alemanha, mas aqui em Viena e 2. a pessoa que segue este
nome deve ser Gollwitzer e não Gollowitzer.
Eu vou manter você informado. Por favor, me mantenha atualizado também. Em
primeiro lugar, gostaria de saber por que é que não há um único francês ou britânico
na lista.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 22 de janeiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Agora estou enviando a você a lista de nomes acrescida e, espero, sem falhas.
Essa lista também não está completa: espero mais nomes dos italianos. Mas o que é
muito importante, recebi um sim incondicional por telégrafo de Havemann.
Quanto à sua pergunta: dos intelectuais de esquerda franceses, enviei cartas e
telegramas a Sartre, Semprun, Lefebvre, Aragon, aos editores das
Lettres Françaises
e
György Lukács & Günther Anders
338 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
a Duclos. Não obtive resposta de parte alguma. Peço que tente novamente, você pode
obter respostas positivas. A agora, o chamado com os nomes dos signatários
apareceu no
Le Monde
.
Na Inglaterra, eu só tinha uma pista: Alfred Ayer, que se recusou a entrar. Então,
escrevi uma carta para meu ex-aluno, István száros, que agora leciona na
Universidade de Brighton, mas até hoje o recebi uma resposta dele. Eu peço que
você faça mais tentativas aí também.
Obrigado novamente por sua ajuda até agora. Esperançosamente, nossos
esforços não serão malsucedidos.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
P.S.: Anexo uma cópia que recebi de Berlinguer, através do movimento italiano,
sobre o assunto.
28 de janeiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado por me enviar a nova lista. Na primeira inspeção, percebi que o
Hochhuth havia sido atribuído a um domicílio errado. Hochhuth mora na Basiléia,
embora seja cidadão da República Federal. Estou melhorando essas pequenezas na
lista que vou enviar, fico feliz que a coisa com Havemann deu certo.
Ficaria muito grato se pudesse considerar esta lista como a definitiva. Porque eu
deixaria a redação nervosa se continuasse enviando novas listas.
No que diz respeito à França, estou muito certo de que há uma campanha sendo
feita nesse país. Eu poderia escrever para Sartre, mas mais correspondência atrasaria
muito a publicação da lista novamente.
Estou convencido de que você encontrará a revista
Blätter für deutsche und
internationale Politik
em uma sala de revistas da universidade. O 171 contém de
longe a cobertura mais competente do caso Angela Davis feita por meu amigo, Martin
Hall, cujo relatório sobre a América você, sim, conhecerá.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 339
Obrigado pela cópia da carta de Berlinguer.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
1º de fevereiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Em minha última carta, escrevi que espero mais nomes da Itália. Nesse ínterim
fiquei sabendo que a carta sobre os movimentos italianos com a lista de participantes
estava mal endereçada, mas não consigo mais entrar em contato com seu remetente,
Nelo Risi, porque ele estava indo para a Etiópia. Peço-lhe então que se dirija a Elsa
Morante a esse respeito (Via dell’oca 27, Roma), ela pode certamente nos ajudar.
Ainda estou esperando uma carta da Inglaterra: meu ex-aluno, István száros,
me disse que estava tentando iniciar uma campanha entre os intelectuais ingleses.
Isso, creio eu, encerrará a primeira fase da nossa campanha, os próximos passos
dependerão do andamento do processo. Por favor, mantenha-me atualizado, eu
também irei mantê-lo informado sobre todos os desenvolvimentos.
Com os melhores votos,
Seu, Georg Lukács.
7 de fevereiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado por sua carta. Por enquanto, enviei a lista à
Forvm
, ao
Stimme
der Gemeinde
e ao
Blättern für deutsche und internationale Politik
. Fiquei sabendo
que as duas primeiras revistas vão publicar o chamado na próxima edição, no que diz
respeito à terceira revista, acho que a publicação pode ser dada como certa. As
publicações futuras podem certamente conter outros signatários.
Não entendi bem por que eu escreveria para Elsa Morante, que não conheço e
que não me conhece não seria mais promissor se você mesmo fizesse isso. Mas se
você acha que é mais prático que eu faça isso, eu o farei.
György Lukács & Günther Anders
340 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
Na minha opinião, novas etapas ainda não devem ser preparadas, pois
dependerão do julgamento contra Angela Davis, e esse julgamento ainda não
começou. Receio que se interviermos muito cedo, quando nada é previsível nem é
necessário pedir algo específico, nossa pólvora se esgotará. Então, primeiro eu faria
uma pausa.
Claro, vou mantê-lo atualizado e ficarei ao seu lado caso algo aconteça em breve,
com meus melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 23 de fevereiro 1971
Caro amigo Günther Anders!
Perdoe-me por não escrever tanto tempo, mas estava esperando para falar
sobre os últimos desenvolvimentos do caso Davis. O camarada Aptheker me informou
que o custo do processo ainda pode ultrapassar US$ 100.000 é por isso que sugeri
esta nova campanha.
Estou encaminhando agora o texto do próximo chamado à imprensa mundial.
Como você pode entrar em contato com Nenning indiretamente, gostaria de pedir-lhe
que forneça o texto do chamado para as colunas da
Neues Forvm
.
Aliás, você ouviu alguma novidade de Morante sobre os movimentos italianos?
Agradeço antecipadamente por seus esforços. Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
P.S.: Infelizmente não consigo encontrar a revista mencionada aqui. Peço-lhe, se
não for difícil, que me envie uma cópia.
27 de fevereiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo,
Muito obrigado por sua carta e pelo depósito: o segundo chamado relacionado
Angela Davis. Em anexo envio-lhe o artigo que mencionei na minha última carta
extraído da revista de esquerda
Blätter für deutsche und internationale Politik
ficaria
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 341
muito grato por comentários ocasionais.
Estou um tanto hesitante quanto à sua nova campanha. Angela Davis tem cinco
dos melhores advogados da América, e o financiamento da defesa e os custos legais
são amplamente aceitos e assegurados pelo povo americano. Temo que a mulher
possa ser prejudicada se um financiamento estrangeiro for acrescido. É por isso que
estou relutante em recorrer à
Neues Forvm
para a publicação do chamado. Por favor,
não entenda mal a minha recusa. Não nos diferenciamos no objetivo, mas sim na tática
para atingir o objetivo. Se meu argumento não soar convincente para você, é claro que
você ainda tem a opção de enviar pessoalmente seu texto para Günther Nenning (a
propósito, espero que seu primeiro chamado e os nomes dos signatários sejam
publicados na próxima edição da
Neues Forvm
).
Eu ficaria muito triste se essa diferença de tática fosse prejudicial para o nosso
relacionamento. Mas eu realmente não consigo imaginar isso.
Com os mais calorosos cumprimentos,
como sempre, seu, Günther Anders.
Budapeste, 17 de março de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Muito obrigado pela sua carta e pelo artigo (já o envio de volta em anexo).
Compreendo perfeitamente suas preocupações a respeito da minha nova
campanha. Concordo plenamente com você que não diferimos quanto ao objetivo, mas
apenas quanto à tica usada para atingir o objetivo. Se me dirigir pessoalmente a
Günther Nenning, significa que as consultas indiretas sobre este assunto com o
camarada Aptheker e com os advogados de Davis me convenceram de que esta nova
campanha é essencial para atingir nosso objetivo. Aliás, na minha [opinião], tais
diferenças táticas são inerentes ao movimento político.
Obrigado novamente pelo artigo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
György Lukács & Günther Anders
342 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - jan./jun. 2021
31 de março de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado por sua carta e por devolver o artigo sobre Angela. Fico muito
feliz que você demonstre tanta compreensão pela minha concepção, diferente da sua,
acerca da técnica da campanha a favor de Angela.
Acabei de receber uma carta da filha de Aptheker pedindo-me para ajudar a
financiar a publicação de seu chamado no
New York Times
. Eu a encaminhei a Günther
Nenning: ela deveria pedir a ele que publicasse em sua revista um chamado para a
arrecadação do dinheiro.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
27 de abril de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Muito obrigado pelas informações sobre a correspondência com a filha de
Aptheker. A propósito, gostaria de informar que está em andamento a publicação
do meu segundo chamado na
Neues Forvm
;
24
ele aparecerá na próxima edição.
Muito obrigado por sua amável ajuda.
Com os melhores cumprimentos,
Georg Lukács.
Como citar:
LUKÁCS, György; ANDERS, Günther. Lukács-Anders: uma correspondência. Trad.
Carolina Peters e Murilo Leite.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 317-342, mar.
2022.
24
Os chamados redigidos por Lukács foram publicados em:
Forvm
v. XVIII, n. 207, 208,1971 e
Forvm
v. XVIII, n. 210/I/II, 1971, p. 22. Cf. DAVIS, Angela. Kapitel X. In:
Freiheit - Für Wen? Ghetto, Gericht,
Gefängnis, Tod. Stimmen des Widerstands
. Neuwied; Darmstadt: Sammlung Luchterhand, 1972.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - mar. 2022
Lukács sobre Goethe
Artigos de Berlin 1931-32*
György Lukács
APRESENTAÇÃO
Ronaldo Vielmi Fortes
O conjunto de artigos aqui traduzidos, inéditos em português, reúne estudos de
Lukács acerca da obra de Goethe escritos em um momento bastante significativo da
história universal. Trata-se do período que antecede a Segunda Guerra Mundial,
marcado pela ascensão do nazismo na Alemanha. Esse período trágico da história
alemã coincide com o jubileu de Goethe, momento em que na Alemanha se prestavam
várias homenagens ao grande escritor, e diversos jornais dedicaram cadernos e
matérias destacando a importância de sua obra. Os eventos comemorativos realizados
põem em evidência as interpretações tendenciosas da obra goethiana, que, em linhas
gerais o aproximam da apologia de um suposto espírito autêntico germânico, servindo
de base inclusive para tomá-lo como um dos precursores do nacional-socialismo. Em
meio à essa atmosfera social e cultural, Lukács se posiciona criticamente, realizando
importantes apontamentos acerca do modo como a obra de Goethe repercute na
aurora drástica desse período. Ao realizar a crítica das reinterpretações e
consequentes deformações da letra de Goethe, Lukács estabelece análises
significativas sobre o pensamento e a obra do escritor alemão, tratando de temas
importantes tanto da literatura quanto da filosofia.
Os textos são escritos no contexto da imigração de Lukács da União Soviética
para Berlin, no ano de 1931, onde permaneceu por 2 anos. Em 1933 ele deixa a
Alemanha por ocasião da ascensão ao poder pelos nazistas. Nos anos de sua
permanência Lukács tornou-se vice-presidente do grupo berlinense da
Associação dos
* Tradução Ronaldo Vielmi Fortes. Revisão técnica Ester Vaisman.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.651
György Lukács
344 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
Escritores Alemães
, participa também como membro da
União dos Escritos Proletários
Revolucionários
. Esse período é marcado por uma fase bastante produtiva de sua
atividade crítica literária, redige vários artigos (cerca de 29) em que trata de temas de
grande relevância da atividade literária, além de realizar a análise de diversos
escritores alemães e russos
1
.
Posteriormente ao ano de 1933, quando regressou à URSS ele prosseguiu em
seus estudos e escreveu o conjunto de artigos mais conhecidos sobre Goethe
publicados sobre a forma de livros, são eles: “Goethe e seu tempo”
2
(conjunto de
artigos escritos entre os anos de 1934 e 36) e os Estudos sobre Fausto”
3
(1940). Os
artigos aqui presentes, apesar de serem os primeiros escritos a propósito de Goethe,
demonstram uma apropriação analítica aprofundada do pensamento do autor
alemão. São artigos caracteristicamente de combate, em que Lukács enfrenta de
maneira direta uma ampla série de interpretações sobre a herança literária de Goethe.
Conforme se poderá observar, ele debate e refuta proeminentes figuras de seu tempo,
sejam elas jornalistas ou críticos literários.
É interessante notar que o conjunto das elaborações do período culminam no
mais polêmico livro escrito por Lukács,
A destruição da razão
. Interessante observar
que nos artigos aqui traduzidos, é percetível, pelo menos em germe, teses
posteriormente desenvolvidas sobre a demarcação do predomínio do pensamento
irracionalista no período pré-guerra e pós-guerra. Mas não apenas esse elemento se
faz presente. Trata-se de demonstrar a
gênese
e
função social
de todo pensamento,
ou seja, as tendências sociais e políticas de certo período implicam a determinação
social do pensamento, os desvios (ingênuos ou conscientemente mal-intencionados)
tem raízes sociais concretas, não se tratando de modo algum de simples incapacidades
ou limites meramente subjetivos de comentadores e intérpretes. A interpretação
desvirtuada de Goethe se deve, segundo Lukács, à atmosfera do período em questão,
e essa não se limita à simples versões nazistas de um Goethe nacionalista. A edificação
do perfil do escritor como precursor do fascismo tem sua origem nas formas
predominantes do pensamento alemão do período fundadas na ideologia imperialista
1
[NT] Todos os artigos publicados no período encontram-se reunidos no livro: Alfred Klein, Georg
Lukács;
Georg Lukács in Berlin
. Literaturtheorie und Literaturpolitik der Jahre 1930-32; Berlin: Aufbau
Verlag, 1990.
2
LUKÁCS, György;
Goethe e seu tempo
; trad. Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes (Ensaio 5); São
Paulo: Boitempo; 2021.
3
No prelo, pela Boitempo.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 345
burguesa pré-guerra. Segundo Lukács, pode-se localizar a origem de tais descaminhos
em teóricos “liberais” como Simmel ou Gundolf”, autores esses que desempenham
um papel importante (muitas vezes não reconhecido) na construção da imagem fascista
de Goethe”.
Defender Goethe contra seus detratores e deformadores não significa, no
entanto, colocar-se ao lado de seus apologistas, ainda que dentre esses últimos se
encontre uma figura marxista de relevância como Franz Mehring. Lukács não pode
concordar com a posição expressa por este segundo a qual, a revolução implicaria o
encontro definitivo do proletariado com Goethe**. A rigor, sem desconsiderar a
importância do poeta alemão, não se pode ficar incólume e negligenciar a posição de
classe de Goethe, que faz com que ele expresse em sua obra sempre uma posição
crítica da situação de seu tempo do ponto de vista privilegiado do indivíduo,
escamoteando desse modo, análises que deveriam levar em conta não a
unilateralidade da da vida privada do indivíduo burguês”, mas o tratamento “de todas
as questões do ser social [...] do ponto de vista da vida pública, geral e política da
classe; portanto, do ponto de vista da burguesia e não dos citoyens”.
Nesse sentido, outro aspecto relevante destes artigos que os diferenciam dos
escritos posteriores, reside no fato de que eles não se limitam à crítica dos desvios
das interpretações de Goethe. Outra dimensão importante comparece em tais escritos,
em particular no artigo
Goethe e a Dialética
. O leitor mais familiarizado com as
elaborações de Lukács acerca de Goethe, poderá observar o tom crítico dirigido contra
o próprio escritor alemão. Por meio de uma análise rigorosa e profunda nosso autor
percorre diversos momentos da obra goethiana, desde suas obras literárias até seus
textos científicos, estéticos etc., demonstrando a grandeza e os limites de seu
pensamento. Nesse artigo se encontra a análise comparativa entre a concepção
dialética hegeliana e a refutação, por parte de Goethe, da dialética. Esse tratamento
do problema em Goethe é provavelmente a grande novidade das análises de Lukács,
e salvo melhor juízo não se apresenta em suas obras posteriores. As insuficiências
** Cabe aqui lembrar das considerações de Lukács acerca de Mehring presentes em seu livro
Pensamento
Vivido
[São Paulo: Ad Hominen; Viçosa: Editora da UFV, 1999; p. 87-8) em que destaca as tendências
do crítico marxista em tomar a obra de Marx como insubsistente no que tange ao tema da estética,
propondo a tarefa de suprir as insuficiências a partir de Kant. Lukács sempre considerou que “o
marxismo não é uma teoria econômico-social, junto à qual lugar também para outras coisas, mas
uma visão universal do mundo. Logo, devia haver uma estética marxista própria, que o marxismo não
tomava nem de Kant nem de nenhum outro” [idem, ibidem].
György Lukács
346 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
e limites do pensamento de Goethe possuem nesse texto maior proeminência. A
análise ali presente demonstra como a concepção de mundo, da natureza, da religião,
da sociedade em geral terminam por determinar e trazer limites decisivos para as
configurações de suas obras estéticas, sem que isso seja um empecilho para
desdobramentos de grande valor humano e para a percepção das grandes questões
humanas de seu tempo. Não que Lukács tenha mudado posteriormente sua posição a
respeito dos apontamentos críticos elaborados nesse período, mas em suas
considerações posteriores acerca de Goethe, o tom crítico mais direto e áspero já não
se faz presente de maneira tão clara e direta.
Decerto, para os nossos dias, o teor das análises lukacsianas oferecem ainda
grandes préstimos. Em primeiro lugar, por destacar a natureza da determinação social
do pensamento nas interpretações de Goethe, aspecto que nos instrui sobre a
necessidade de sempre analisar toda obra (todo comentador, intérprete) a partir do
tripé analítico: demonstrar a gênese e função social de um pensamento, mas sem
descurar a análise imanente dos textos e pensamentos analisados. O tratamento das
razões sociais das distorções da obra de Goethe é um registro histórico de forte
relevância para a compreensão dos desdobramentos posteriores que vieram a se fazer
presentes tanto na crítica literárias como no pensamento filosófico. Em segundo lugar,
o teor das análises do pensamento de Goethe, seja de suas obras literárias, seja de
seu pensamento em geral, são ainda elementos analíticos que muito auxiliam a
compreender a importância de Goethe para a literatura universal, na medida em que
demonstra sua grandeza e relevância na apreensão dos problemas mais cruciais da
humanidade em um período decisivo da história humana, marcado pela transição da
sociedade feudal e o advento da forma cabal da sociabilidade capitalista. As formas
das individuações desse período são retratadas por Goethe por meio de uma riqueza
de detalhes e percepções, que fazem de sua obra uma remissão necessária para a
apreensão das grandes questões das individualidades em meio a sociabilidade do
capital.
Lukács sobre Goethe
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Der faschisierte Goethe
O Goethe fascistizado
Assim como a burguesia alemã ingressou
na fase fascista, a lenda Goethe burguesa
também entrou em nova fase de seu
desenvolvimento. Isso não significa, é
claro, que a conexão com o passado, ou
mesmo a continuidade com ele, foi
rompida. Muito ao contrário. Assim como
o próprio fascismo “brota” da democracia
de Weimar e reestrutura seus elementos
do modo que lhe corresponde, a ideologia
fascista brota organicamente da ideologia
pré-guerra da burguesia imperialista
alemã, apesar de toda a polêmica ruidosa
contra o liberalismo”. Com isso não
referimos apenas para permanecer no
campo da história literária os
historiadores reacionários e críticos do
período pré-guerra, como Adolf Bartels ou
H. St. Chamberlain, que são rotulados de
autoridades fascistas. Não, teóricos
“liberais” como Simmel ou Gundolf
também desempenham um papel
importante (muitas vezes não
reconhecido) na construção da imagem
fascista de Goethe.
Die Goethe-Legende der deutschen
Bourgeoisie tritt mit dem faschistischen
Abschnitt ihrer Entwicklung ebenfalls in
einen neuen Abschnitt. Das bedeutet
freilich nicht, daß der Zusammenhang mit
der Vergangenheit, ja selbst die
Kontinuität mit ihr zerrissen wäre. Ganz im
Gegenteil. So wie der Faschismus selbst
aus der Weimarer Demokratie
„herauswächst“, ihre Elemente
entsprechend umbaut, so wächst die
faschistische Ideologie, trotz aller
lärmenden Polemik gegen den
„Liberalismus“, aus der Vorkriegsideologie
der imperialistischen deutschen
Bourgeoisie organisch heraus. Wir meinen
damit keineswegs bloß um auf dem
Gebiet der Literaturgeschichte zu bleiben -
, daß reaktionäre Historiker und Kritiker
der Vorkriegszeit wie Adolf Bartels oder H.
St. Chamberlain zu faschistischen
Autoritäten gestempelt werden. Nein, auch
„liberale“ Theoretiker wie Simmel oder
Gundolf spielen (oft
uneingestandenerweise) eine große Rolle
in der Konstruktion des faschistischen
Goethe-Bildes.
Se enfatizamos desde o início, que Goethe
é de fato interpretado na literatura do
jubileu de acordo com as necessidades do
Wenn wir gleich eingangs hervorheben,
daß Goethe in der Jubiläumsliteratur den
Bedürfnissen des Faschismus
György Lukács
348 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
fascismo, isso não significa de forma
alguma que toda a literatura alemã sobre
Goethe em nossos dias tenha um caráter
nazista uniforme. A mesma unidade (e as
mesmas contradições) que de outra forma
se manifestam econômica, política e
ideologicamente entre as várias frações da
burguesia também entram em jogo na
interpretação, na assimilação e falsificação
de Goethe. E muitas tendências
fundamentais desse ajustamento foram
ideologicamente elaboradas na literatura
sobre Goethe do pré-guerra.
entsprechend zurechtinterpretiert wird, so
bedeutet dies keineswegs, daß nunmehr
die ganze deutsche Goethe-Literatur
unserer Tage ein einheitliches
Nazigepräge hätte. Dieselbe Einheit (und
dieselben Gegensätze), die sich sonst
ökonomisch, politisch und ideologisch
zwischen den verschiedenen Fraktionen
der Bourgeoisie zeigen, kommen auch in
der Auslegung, in dem Zurechtstutzen und
Verfälschen Goethes zur Geltung. Und
viele grundlegenden Tendenzen dieses
Zurechtstutzens sind bereits in der
Goethe-Literatur der Vorkriegszeit
ideologisch vorgearbeitet.
Isso fica mais claro na ênfase da
religiosidade de Goethe. A forma de
manifestação original da lenda alemã de
Goethe, o Goethe "olímpico" também foi a
do "grande pagão". A atitude
fundamentalmente negativa de Goethe em
relação ao cristianismo era muito
conhecida: as correntes materialistas da
própria burguesia, ainda que de forma
vulgarizada, eram fortes demais para que
a falsificação também tivesse início nesse
terreno. O comportamento hostil de
Goethe para com o Cristianismo, seu
panteísmo foi lamentado, criticado,
rejeitado, mas não negado, mas não
reinterpretado no sentido contrário. Os
mencionados Simmel, Gundolf e outros
construíram a ponte para a visão de hoje.
Dies kommt am klarsten in dem
Hervorheben der Religiosität Goethes zum
Vorschein. Die ursprüngliche
Erscheinungsform der deutschen Goethe-
Legende, der „Olympier“ Goethe war
zugleich der „große Heide“. Goethes im
Grunde ablehnende Haltung zum
Christentum war zu bekannt, die
materialistischen Strömungen in der
Bourgeoisie selbst, wenn auch in
vulgarisierter Form, waren zu stark, als
daß die Umfälschung auch auf diesem
Gebiet hätte einsetzen können. Goethes
feindliches Verhalten zum Christentum,
sein Pantheismus wurde bedauett,
bekrittelt, abgelehnt, jedoch nicht
abgeleugnet, nicht ins Gegenteil
umgedeutet. Die bereits erwähnten
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 349
O próprio panteísmo de Goethe contém
muitos elementos de um compromisso
ideológico; permite sobretudo uma
exploração estética (conclusão de
Fausto
4)
e também moral (
Afinidades Eletivas
5) dos
elementos do Cristianismo. Essa meia-
medida agora permitia - com a ajuda de
Nietzsche, Bergson e outros pensadores
reacionários - converter o panteísmo
goethiano em uma "religião não
dogmática" para os "instruídos". Mas
mesmo isso não é suficiente para as
necessidades de hoje; foi um trabalho
preparatório útil, de fato indispensável,
mas apenas um trabalho preparatório.
Hoje se tornou necessário um
compromisso mais decisivo (de Goethe)
com a religião.
Simmel, Gundolf und andere haben die
Brücke zur heutigen Auffassung
geschlagen. Goethes Pantheismus selbst
enthält manche, viele Elemente eines
ideologischen Kompromisses; er gestattet
vor allem ein ästhetisches (Schluß von
Faust) sowie moralisches
(Wahlverwandtschaften) Ausnutzen der
Elemente des Christentums. Diese Halbheit
gestattete nun - mit Hilfe von Nietzsche,
Bergson und anderer reaktionärer Denker
-, den Goetheschen Pantheismus in, eine
„undogmatische Religion“ für die
„Gebildeten“ umzubauen. Für die heutigen
Bedürfnisse reicht aber auch dies nicht
aus; es ist zwar eine nützliche, ja
unentbehrliche Vorarbeit gewesen, aber
nur Vorarbeit. Heute ist ein
entschiedeneres Bekenntnis (Goethes) zur
Religion notwendig.
Dada a estreita interrelação entre
economia e religião, não é surpreendente
que o
Berliner Börsenzeitung
6 apresente
um tom tão decisivo.
Bei dem innigen Wechselverhältnis
zwischen Wirtschaft und Religion ist es
nicht verwunderlich, daß die „Berliner
Börsenzeitung“ einen derart
entschiedenen Ton anschlägt.
O grande sábio mundial de Weimar já sentiu o
pulso da nossa vida, a vida que temos que
viver... Segundo Goethe, não existe cultura
sem religião; pois teria que negar a última
Der große Weimarer Weltweise hat schon den
Pulsschlag unseres Lebens, des Lebens, das
wir leben müssen, empfunden ... Eine
religionslose Kultur gibt es nach Goethe nicht;
4
[NT] GOETHE, Johann Wolfgang von;
Fausto
; trad. Jenny Klabin Segall; São Paulo: Editora 34, 2011.
5
[NT] GOETHE;
Afinidades eletivas
; trad, Tercio Redondo; São Paulo: Peguin, 2014.
6
[NT] O
Berliner Börsen-Zeitung
, também conhecido como BBZ, foi um jornal diário publicado duas
vezes por semana como edição de manhã e à noite em Berlim, de 1855 a 1944, durante um período
de 89 anos, cobrindo cinco guerras e quatro formas de governo. Segundo a filiação partidária do seu
fundador, o
Berliner Börsen-Zeitung
foi chamado o jornal do Partido Alemão do Progresso (DFP).
Também se atribuía ao jornal "ao partido liberal nacional e, em particular, à
Hurra-Richtung
.
György Lukács
350 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
fonte original de onde veio e, portanto,
perecer... (Unterhaltungsbeilage7, 20 de
março de 1932.)
denn sie müßte den letzten Urquell, dem sie
entstammt, verleugnen und daher versicgen...
(Unterhaltungsbeilage, 20. März 1932.)
O
Zentrumsblätter
não considera a
questão da religião em Goethe algo tão
simples. Seus jornalistas são mais
experientes em questões de religião, pois
não têm a piedade pungente e simples de
nosso homem da bolsa de valores. Com o
suor de seu rosto, eles se esforçam para
reconciliar a visão de mundo de Goethe
com o cristianismo. O padre Muckermann8
até admite abertamente:
Die Zentrumsblätter sehen die Frage der
Religion bei Goethe nicht so einfach. Ihre
Publizisten sind in den Fragen der Religion
routinierter, sie haben nicht die ergreifend
schlichte Gläubigkeit unseres
Börsenmannes. Sie bemühen sich daher im
Schweiße ihres Angesichtes ab, Goethes
Weltanschauung mit dem Christentum zu
versöhnen. Pater Muckermann gibt sogar
offen zu:
Portanto, do cristianismo não temos a menor
razão e nem mesmo os pressupostos internos
para organizar as celebrações de Goethe,
como se se tratasse de um poeta que esteve em
solo cristão ou que quisesse nele ficar de pé.”
(Germania, Suplemento, 22 de março de
1932.)
Wir haben also vom Christentum aus nicht
den geringsten Grund und gar nicht die
inneren Voraussetzungen, Goethe-Feiern zu
veranstalten, so als ob es sich um einen
Dichter handele, der auf christlichem Boden
gestanden hätte oder überhaupt hätte stehen
wollen. (Germania, Beilage, 22. März 1932.)
Mas: "Quem se empenha em se esforçar...",
também é concedida a graça. O camarada
e colega de Muckermann, Prof. Günther
Müller9 encontrou a palavra redentora.
Ele afirma que “Goethe era de natureza
fortemente religiosa”. E no período de
maturidade, após superar o período
Sturm
Aber: „Wer immer strebend sich
bemüht...“, dem wird auch die Gnade
zuteil. Muckermanns Mitstreiter und
Kollege Prof. Dr. Günther Müller findet
schon das erlösende Wort. Er stellt fest,
„daß Goethe eine stark religiöse Natur
gewesen ist“. Und in der Reifezeit, nach
7
[NT] em tradução livre: “suplemento de entretenimento”; ao que tudo indica seção do jornal
supracitado
8
[NT] Friedrich Johannes Muckermann (1883-1946) jornalista e jesuíta. Consagrou-se como um dos
opositores católicos mais decididos contra o nacional-socialismo e foi um crítico literário de destaque
na Alemanha católica nas décadas de 1920 e 1930. Destacou-se também como um proeminente crítico
também do stalinismo.
9
[NT] Günther Müller (1861-1931). Estudou filologia e filosofia em Würzburg, Munique, Leipzig e
Göttingen, Converteu-se à Igreja católica em 1920. No período de 1926 a 1939, foi responsável pela
edição da
Literaturwissenschaftliche Jahrbuch der Görres-Gesellschaft
e notabilizou-se como um dos
representantes da formação dos estudos literários católicos. Sua obra é marcada pelo profundo
interesse nos escritos literários e científicos de Goethe.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 351
und Drang
, ele identifica no conhecimento
e no sentimento de Goethe a respeito da
natureza algo que pode ser “entendido de
modo muito cristão”.
der Überwindung der Sturm-und-Drang-
Periode findet er gerade in Goethes
Naturerkenntnis und Naturgefühl vieles,
was man „sehr wohl christlich verstehen“
kann.
E há, sem dúvida, uma relação notável com
certas áreas do tomismo na visão de Goethe
sobre o ser natural e seu cumprimento da lei
divina ... (ibid.).
Und zweifellos liegt in Goethes Blick auf das
naturhafte Sein und seine Erfülltheit vom
göttlichen Gesetz eine bemerkenswerte
Verwandtschaft mit gewissen Bereichen des
Thomismus... (ebenda).
E o professor Oskar Walzel10 corre em seu
auxílio declarando que a concepção de
Heine de "Wolfgang-Apollo, que lutou
contra o judaísmo e o cristianismo em
nome do direito do ser natural do homem"
é errada. O papel de “libertador” de
Goethe é completamente outro. "A
desconfiança de tudo o que é natural no
homem ainda é peculiar ao século XVIII em
seu ápice" (?! Diderot?! Rousseau?! - G.L.).
Goethe nos libertou disso, ou seja, do
século XVIII. (Suplemento do
Kölnische
Volkszeitung
11, 20 de março de 1932.)
Und Professor Oskar Walzel eilt ihm zu
Hilfe, indem er Heines Auffassung vom
„Wolfgang-Apollo, der gegen Judentum
und Christentum wieder das Recht des
Naturhaften im Menschen erstritten habe“,
für falsch erklärt. Goethes „Befreier“-Rolle
ist eine ganz andere. „Mißtrauen gegen
alles Naturhafte im Menschen ist dem 18.
Jahrhundert noch auf seinen Höhen eigen“
(?!Diderot?! Rousseau?! - G.L.). Davon -
also vom 18. Jahrhundert - hat uns Goethe
befreit. (Beilage der „Kölnischen
Volkszeitung“, 20. März 1932.
Deus, o imperador e a pátria pertencem
um ao outro por toda a eternidade.
Portanto, eles também devem pertencer
ao Goethe atual”. As formas de aparência
superficiais são diferentes, mas a essência
Gott, Kaiser und Vaterland gehören in alle
Ewigkeit zusammen. Sie müssen also auch
bei dem „aktuellen“ Goethe
zusammengehören. Die oberflächlichen
Erscheinungsformen sind verschieden, das
10
[NT] Oskar Franz Walzel (1864-1944) pesquisador literário austríaco-alemão, professor de literatura
alemã moderna em Berna, Dresden e Bonn. Foi um dos historiadores mais influentes da literatura alemã
do início do século XX. No ano de 1933 recebeu a nomeação de professor emérito, no entanto em
1936, o reitor da Universidade de Bonn retirou a
venia legendi
de Walzel em função de sua "filiação
judaica". Sua morte ocorreu em 1944 sob circunstâncias pouco claras durante um bombardeio. A sua
esposa, também judia, foi deportada para Theresienstadt no mesmo ano e foi assassinada.
11
[NT] Fundado em 1868 por Josef Bachem, em Colônia (1860), Seu fundador procurou estabelecer
um jornal diário de orientação católica ao lado do liberal
Kölnische Zeitung
da casa de DuMont. O jornal
só foi realmente bem sucedido sob o nome de
Kölnische Volkszeitung
a partir de 1868.
György Lukács
352 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
é a mesma. Hanns Johst12 termina seu
discurso comemorativo sobre Goethe
(
Völkischer Beobachter
13, 22 de março de
1932) com a glorificação de Goethe como
súdito.
Wesen ist das gleiche. Hanns Johst endet
seine Festrede auf Goethe (Völkischer
Beobachter, 22. März 1932) mit der
Verherrlichung Goethes als Untertan.
Durante esse tempo ... Goethe se admite como
monarquista: era tão difícil para um intelectual
de então como é hoje. Mas Goethe viu com os
seus próprios olhos. Neles se refletia a vida do
senhor e príncipe a quem servia, e ele via a
imagem de um homem que não passava de um
servo de seu estado, um súdito de seu povo. O
que todas as teorias do pensamento
sociológico e filosófico em todas as escolas de
todo o mundo, tornam a humanidade feliz se
aplicam a ele, a quem os sentidos e suas visões
nunca enganam? A política, que ganha seu
direito de existir por meio da persuasão das
eventuais maiorias e, assim, renuncia a seu
ímpeto pessoal, a sua independência
aristocrática, não pode parecer importante
para ele [!}. Portanto, politicamente falando,
Goethe é um súdito.
In dieser Zeit... bekennt sich Goethe als: Das
war für einen Geistigen damals ebenso
schwierig wie heute. Aber Goethe dachte mit
seinen eigenen beiden Augen. In ihnen
spiegelte sich das Leben des Herrn und
Fürsten, dem er diente, und er sah da das Bild
eines Mannes, der selber nichts war als ein
Diener seines Staates, Untertan seines Volkes.
Was konnten ihm da alle
menschheitbeglückenden Theorien
soziologischer und philosophischer
Gedanklichkeit sämtlicher Schulen aller Welt
gelten, ihm, den die Sinne und ihre Gesichte
nie trügten? Die Politik, die ihre
Existenzberechtigung durch Überredungen
schließlicher Majoritäten gewinnt und damit
ihren persönlichen Impetus, ihre
aristokratische Selbständigkeit aufgibt, kann
ihm nicht wichtig erschienen [!}. Goethe ist
also, politisch gesprochen, Untertan.
Como um súdito consequente, Goethe
tornou-se consequentemente um
funcionário público. “Para ele, a política
não é um assunto para todos como a
alfaiataria ou a confecção de sapatos”
(ibid.). E Alfred Rosenberg14 confirma (ibid)
que Goethe também era um defensor
filosoficamente convicto do Estado
Als konsequenter Untertan ist Goethe
konsequent zum Beamten geworden.
„Politik ist ihm ebensowenig
Jedermannssache wie Schnei derei oder
Schusterei“ (ebenda). Und Alfred
Rosenberg bestätigt (ebenda), daß Goethe
auch philosophisch überzeugter Anhänger
des nationalsozialistischen Ständestaates
12
[NT] Hanns Johst (1890-1978) foi um poeta e dramaturgo alemão vinculado à filosofia nazista, foi
membro das organizações de escritores oficialmente aprovadas pelo Terceiro Reich.
13
[NT] O
Völkischer Beobachter
foi o órgão do partido da NSDAP, de dezembro de 1920 a 30 de abril
de 1945. Em nítida distinção aos jornais burgueses, o VB descreveu-se a si próprio como um "órgãoó
rgde combate" e estava programaticamente mais interessado na agitação do que na informação.
14
[NT] Alfred Ernst Rosenberg (1893-1946) político e escritor alemão, foi o principal teórico do
nacional-socialismo, cujas ideias centrais foram expressas na obra
O Mito do século XX
(Der Mythus des
zwanzigsten Jahrhunderts, 1930). Foi conselheiro de Adolf Hitler e ministro encarregado dos territórios
da Europa Oriental, em 1941. Foi responsável pela deportação e extermínio de milhares de pessoas,
principalmente judeus. Foi condenado pelo Tribunal de Nuremberg, que o sentenciou ao enforcamento
por crimes de guerra.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 353
corporativo nacional-socialista. Ele toma
seu ponto de partida no místico medieval
Meister Eckhart (a quem -
independentemente de seu
comportamento real em relação às lutas de
classes de seu tempo - o professor
vienense Othmar Spann15 o colocou
muito tempo na galeria ancestral do
fascismo), e chega à conclusão de que a
“liberdade da alma”, na qual “toda a
existência de Goethe estava enraizada”, já
se concretizou para todos em sua classe.
gewesen ist. Nimmt er doch seinen
Ausgangspunkt vom mittelalterlichen
Mystiker Meister Eckhart (den
unbekümmert um sein tatsächliches
Verhalten zu den Klassenkämpfen seiner
Zeit - der Wiener Professor Othmar Spann
bereits vor langer Zeit in der Ahnengalerie
des Faschismus eingereiht hat), kommt er
doch zur Schlußfolgerung, daß die
„Freiheit der Seele“, worin „Goethes
ganzes Dasein wurzelte“, für jeden in
seinem Stand zur Verwirklichung gelangt.
É por isso que mesmo o homem mais simples
pode ser 'completo'” se ele “se mover dentro
dos limites de suas habilidades e aptidões“.
Darum kann auch der geringste Mensch
‚komplett‘“ sein, wenn er sich „innerhalb der
Grenzen seiner Fähigkeiten und Fertigkeiten
bewegt“.
Assim a glorificação de Goethe pela
burguesia liberal pré-guerra, o misticismo
cético de Simmel sobre o "tornar-se
simbólico" de cada atividade humana, a
glorificação de Max Weber das "demandas
do dia" como regra de vida, floresceu
alegremente no estado corporativo
fascista.
Womit die Goethe-Verherrlichung der
liberalen Vorkriegsbourgeoisie, Simmels
skeptische Mystik über das „Symbolisch-
Werden“ einer jeden menschlichen
Tätigkeit, die Max Webersche
Verherrlichung der „Forderung des Tages“
als Lebensregel, glücklich in den
faschistischen Ständestaat
hinübergewachsen ist.
Assim, por essa ponte, Goethe é
transferido para o campo do fascismo.
Mesmo na interpretação de Goethe antes
da guerra, essa ponte foi construída sobre
a ignorância ou falsificação dos
So wird Goethe über diese Brücke ins
Lager des Faschismus überführt. Diese
Brücke ist schon in der Goethe-Auslegung
der Vorkriegszeit auf Unkenntnis oder
Verfälschung der geschichtlichen
15
[NT] Othmar Spann (1878-1950) economista, sociólogo e filósofo de nacionalidade austríaca. Spann
foi um dos pioneiros intelectuais do austrofascismo.
György Lukács
354 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
fundamentos históricos da existência e
eficácia de Goethe. Se esses fundamentos
forem removidos, as contradições na obra
de Goethe, a coexistência do “colossal” e
do “mesquinho”, “filisteu”, também podem
ser facilmente removidas. Então, o
mesquinho-filisteu pode ser celebrado no
Goethe “atemporal” e exagerado no
modelo da germanidade de hoje. Essa
abordagem completamente a-histórica -
uma "noite em que todos os gatos são
pardos"16, como diz Hegel - os
pesquisadores burgueses e jornalistas
quase invariavelmente sucumbem a ela.
Desse modo, o Fr. Hielscher17 construiu
um “modelo da nação” de Goethe,
reunindo Friedrich II, Napoleão, Hegel e
Goethe em uma “unidade”. Nessa lenda,
Napoleão "sonha" "o sonho do império
medieval, o sonho dos reis alemães mais
uma vez" (segundo o qual o traço comum
entre Frederico II e Napoleão é que, devido
à diferença em suas bases de classe, eles
quiseram e fizeram coisas diferentes, mas
nenhum deles poderia pensar em “sonhar
este sonho”), Hegel “assume a herança de
Frederico, o Grande”, e Goethe e Hegel
reconhecem “um no outro o amigo e
camarada da mesma luta”.
Grundlagen der Existenz und der
Wirksamkeit Goethes aufgebaut. Wenn
nämlich diese Grundlagen entfernt worden
sind, können die Widersprüche im
Lebenswerk Goethes, das
Nebeneinanderbestehen des „Kolossalen“
und des „Kleinlichen“, „Philisterhaften“,
ebenfalls leicht entfernt werden. Dann
kann im „zeitlosen“ Goethe gerade das
Kleinlich-Philisterhafte gefeiert und zum
Vorbild des heutigen Deutschtums
aufgebauscht werden. Dieser völlig
unhistorischen Betrachtungsweise einer
„Nacht, in der alle Kühe schwarz sind“, wie
Hegel sagt - verfallen die bürgerlichen
Forscher und Publizisten fast
ausnahmslos. So konstruiert Fr. Hielscher
aus Goethe ein Vorbild der Nation“,
indem er Friedrich IL, Napoleon, Hegel und
Goethe in eine „Einheit“ bringt. In dieser
Legende „träumt“ Napoleon den Traum
des mittelalterlichen Kaisertums, den
Traum der deutschen Könige noch einmal“
(wobei also das Gemeinsame zwischen
Friedrich IL. und Napoleon darin besteht,
daß sie zwar infolge der Verschiedenheit
ihrer Klassengrundlagen durchaus
Verschiedenes gewollt und getan haben,
jedoch keinem von beiden es einfallen
konnte, diesen „Traum zu träumen“), Hegel
16
[NT] HEGEL.
Fenomenologia do espírito
; trad. Paulo Menezes; Petrópolis: Editora Vozes, 1992; p. 29.
17
[NT] Friedrich Hielscher (1902-1990) intelectual alemão ligado ao movimento conservador
revolucionário durante a República de Weimar e participou da resistência alemã no período nazista.
Fundou o movimento esotérico ou neopagão, o
Unabhängige Freikirche
(UFK, "Igreja Livre
Independente"), que dirigiu desde 1933 até a sua morte.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 355
Diz Hielscher em resumo:
„tritt das Erbe Friedrich des Großen an“,
und Goethe und Hegel erkennen „jeder im
anderen den Freund und Kameraden
desselben Kampfes“.
Então leva [...] a um caminho direto de Goethe
via Nietzsche (novamente vemos o caminho
Simmel-Gundolf para a visão atual de
Goethe!) para o que é nossa função hoje: a
união de interioridade e poder.
(Lokalanzeiger, 20 de março de 1932)
„So führt“, sagt Hielscher zusammenfassend,
„ein unmittelbarer Weg von Goethe über
Nietzsche (wieder sehen wir den Simmel-
Gundolfschen Weg zur heutigen Auffassung
Goethes!) zu dem, was heute unseres Amtes
ist: die Vereinigung von Innerlichkeit und
Macht“ (Lokalanzeiger, 20. März 1932).
fomos despertados desse lindo sonho
pelo fato de que a Goethe não ocorreu
nem em sonho - apesar da amizade
pessoal e do respeito pessoal por Hegel -
concordar com a dialética hegeliana. Ele
rejeita com palavras áridas a transição da
quantidade para a qualidade, as
interseções das relações de proporção.
Chama a concepção de Hegel de
"monstruosa", "querendo destruir a
realidade eterna da natureza por meio de
uma piada sofista" (carta a T. J. Seebeck.
Koncept. Steinsche Briefsammlung VI, 283
e seguintes). Claro, se a dialética for
removida de Hegel, se Goethe for o
precursor de Nietzsche, se Friedrich II e
Napoleão sonharem o mesmo sonho -
tudo é possível nesta noite de construções
abstratas a-históricas.
Aus diesem schönen Traum werden wir nur
dadurch geweckt, daß es Goethe nicht im
Traum einfiel trotz persönlicher
Freundschaft mit und persönlicher
Hochachtung für Hegel mit Hegels
Dialektik übereinzustimmen. Er lehnt den
Übergang von Quantität in Qualität, die
Knotenlinie der Maßverhältnisse mit
dürren Worten ab. Er nennt Hegels
Auffassung „monströs“, „die ewige Realität
der Natur durch einen schlechten
sophistischen Spaß vernichten zu wollen“
(Brief an T. J. Seebeck. Koncept. Steinsche
Briefsammlung VI, 283 ff.). Freilich, wenn
aus Hegel die Dialektik entfernt wird, wenn
Goethe der Vorläufer Nietzsches ist, wenn
Friedrich II. und Napoleon denselben
Traum träumen - so ist in dieser Nacht der
unhistorischen abstrakten Konstruktionen
alles möglich.
Mas mesmo nessa noite, quando na
verdade todos os gatos são pardos e
todos os professores vestem camisa
Aber selbst in dieser Nacht, wo wirklich
alle Kühe schwarz sind und alle
Professoren braune Hemden tragen,
György Lukács
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marrom, certas dificuldades para a
ciência e para o jornalismo burgueses
preparar Goethe para os propósitos
(fascistas) de hoje. Com o professor Max
Wundt18 e o professor Hans Freyer19, essas
dificuldades são expressas abertamente.
Freyer, um dos mais brilhantes e
certamente o mais erudito dos professores
universitários próximos ao fascismo,
admite abertamente que o
desenvolvimento burguês no século XIX (e
de hoje) não tem quase nada a ver com
Goethe. Mas, uma vez que ele não é capaz
nem deseja descobrir a base social para
isso, ele simplesmente termina seu ensaio
com frases embaraçosas segundo a qual
Goethe não é uma "possessão
corporificada" ou uma "bandeira" para o
povo alemão (ou seja, para a burguesia), é
apenas um "espírito flutuante", "som de
sino onipresente sobre as engrenagens do
dia" (DAZ20, 20 de março de 1932). Muito
semelhante à “esquerda” de Willy Haas21
entstehen gewisse Schwierigkeiten für die
bürgerliche Wissenschaft und Publizität,
Goethe für die heutigen (faschistischen)
Zwecke zurechtzumachen. Bei Professor
Max Wundt und Professor Hans Freyer
kommen diese Schwierigkeiten offen zum
Ausdruck. Freyer, einer der klügsten und
sicherlich der gebildetsten unter den dem
Faschismus nahestehenden
Universitätsprofessoren, gesteht offen ein,
daß die bürgerliche Entwicklung im 19.
Jahrhundert (und auch heute) mit Goethe
so gut wie nichts zu tun hat. Da er aber die
soziale Grundlage dafür aufzudecken
weder fähig noch gewillt ist, schließt er
seinen Aufsatz mit den
Verlegenheitsphrasen, daß Goethe für das
deutsche Volk (d. h, für die Bourgeoisie)
kein „verkörperter Besitzt“, keine „Fahne“
ist, bloß „umherschwebender Geist“,
„allgegenwärtiger Glockenton über dem
Getriebe des Tages“ (DAZ, 20. März
1932.) Sehr ähnlich auch der linke“ Willy
18
[NT] Max Wundt (1879-1963) foi um filósofo alemão antissemita e nacional-socialista.
19
[NT] Hans Freyer (1887-1969) sociólogo e académico alemão. Como simpatizante do movimento
favorável a Hitler, combateu e derrotou seu oponente o sociólogo Ferdinand Tönnies assumindo a
presidência da Sociedade Sociológica Ale(DGS). Em 1933 assinou o juramento de fidelidade dos
professores alemães a Adolf Hitler e ao Estado nacional-socialista.
20
[NT]
Deutsche Allgemeine Zeitung
(DAZ) jornal diário alemão publicado em Berlim entre 1861 e
1945. Até o ano de 1918, o jornal chamava-se
Norddeutsche Allgemeine Zeitung
. Embora Wilhelm
Liebknecht, um dos fundadores do SPD e colaborador próximo de Karl Marx e Friedrich Engels, tenha
sido membro do conselho editorial fundador em 1861, o jornal rapidamente se tornou um porta-
estandarte conservador da imprensa alemã (
Bismarcks Hauspostille
). No final da Primeira Guerra
Mundial, o nome foi alterado para
Deutsche Allgemeine Zeitung
, com a intenção de formar um
equivalente conservador e democrático do jornal britânico
The Times
na Alemanha e dar ao Reich uma
imagem mais democrática.
21
[NT] Willy Haas (6 de Julho de 1891 - 4 de Setembro de 1973) editor, crítico de cinema e jornalista
alemão. Escreveu para 19 filmes entre 1922 e 1933, e foi membro do júri do 8º Festival Internacional
de Cinema de Berlim. Depois da I Guerra Mundial, Haas foi para Berlim, onde fez trabalho editorial e
também trabalhou como jornalista e crítico de cinema. Juntamente com Ernst Rowohlt, fundou o
semanário
Die literarische Welt
em 1925.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 357
em
Die Literarische Welt
22 (4 de março de
1932). Essa admissão de completa
perplexidade é muito característica da
melhor parte da intelectualidade fascista.
Max Wundt torna seu trabalho muito mais
fácil. Ele simplesmente escolhe tudo o que
é retrógrado nas visões econômicas e
sociais de Goethe, em particular a
glorificação do artesanato em contraste
com a incipiente indústria de grande
escala,
Hermann e Dorothea
23 como a
"canção de louvor à vida real dos alemães"
para fazer de Goethe um arauto do
caminho fascista para a barbárie.
Haas in „Die Literarische Welt“ (4. März
1932). Dieses Eingeständnis der völli- gen
Ratlosigkeit ist sehr bezeichnend für den
besseren Teil der faschistischen
Intelligenz. Wesentlich leichter macht sich
Max Wundt seine Aufgabe. Er greift einfach
alles Rückständige aus Goethes
ökonomischen und gesellschaftlichen
Anschauungen heraus, insbesondere die
Verherrlichung des Handwerks im
Gegensatz zu der beginnenden
Großindustrie, Hermann und Dorothea“
als „Hohelied eines bodenständigen
deutschen Lebens“, um aus Goethe einen
Herold des faschistischen Weges in die
Barbarei zu machen.
Hoje sabemos o que o espírito ocidental
significa para nós e quão perniciosos foram
seus efeitos sobre a germanidade. Uma nova
onda de espírito atingiu a Alemanha com a
Revolução Francesa, e não os piores alemães
que a princípio receberam a nova mensagem
com entusiasmo, sem perceber seus perigos
para nós. Goethe, por outro lado, desde cedo
só se sentia em oposição a este mundo. (Neue
Preußische [Kreuz-] Zeitung24, 20. März
1932.)
Wir wissen heute, was der westlerische Geist
für uns bedeutet und wie verderblich seine
Wirkungen auf das Deutschtum gewesen sind.
Von der französischen Revolution her schlug
eine neue Welle des Geistes nach Deutschland
hinein, und nicht die schlechtesten Deutschen
nahmen die neue Botschaft zuerst mit
Begeisterung auf, ohne ihre Gefahren für uns
zu erkennen. Goethe dagegen hat sich von
früh an nur in Gegensatz zu dieser Welt
gefühlt. (Neue Preußische [Kreuz-Zeitung,
20. März 1932.)
Que Goethe não tenha entendido e tenha
Daß Goethe zwar die französische
22
[NT]
Die literarische Welt
. Unabhängiges Organ für das deutsche Schrifttum (Órgão Independente para
a Literatura Alemã) periódico publicado na República de Weimar, de edição semanal, fundado por Ernst
Rowohlt e Willy Haas em Berlim, em 1925. A revista apareceu em 1925 e foi interrompida em 1933,
por intervenção dos nazistas. Em 1934, no decurso do que os governantes nazis chamavam
"Gleichschaltung", seu nome mudou para
Das deutsche Wort
. Desde 1998,
Literarische Welt
tem sido
publicado como suplemento do jornal diário Die Welt.
23
[NT] GOETHE; Herman e Dorotéia; São Paulo: Flama Editorial, 1944.
24
[NT] O
Kreuzzeitung
foi um jornal diário nacional publicado entre 1848 e 1939 no Reino da Prússia
e mais tarde no Reich alemão. De início tinha a Cruz de Ferro impressa em seu título, e, na época,
chamava-se
Neue Preußische Zeitung
. Em 1911 foi rebatizado de
Neue Preußische
(Kreuz)Zeitung e a
partir de 1929
Neue Preußische Kreuz-Zeitung
. De 1932 a 1939 o título oficial foi simplesmente
Kreuzzeitung
.
György Lukács
358 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
rejeitado a Revolução Francesa, mas
sempre por causa de Napoleão, da
Inglaterra, em uma palavra pela então
progressista civilização burguesa
“ocidental”; que ele tenha assumido a
posição de que seu desenvolvimento
juvenil havia sido essencialmente
determinado por Voltaire, Diderot,
Rousseau etc., que mesmo na velhice,
desconsiderando a literatura alemã
"prática" e reacionária, ele tenha se
interessado apaixonadamente pela
literatura ocidental, por Balzac, Stendhal e
Merimee, por Byron e Scott e por Hugo e
Beranger, não incomoda nem um pouco
nosso "douto" professor em sua distorção
histórica fascista. Nem mesmo, se um
colega reacionário como o professor Max
J. Wolff25 tenha que admitir abertamente o
atraso das visões econômicas de Goethe.
(
Der Tag
26. Wirtschaftszeitung, 22 de
março de 1932.)
Revolution nicht verstanden und
abgelehnt hatte, aber stets für Napoleon,
für England, mit einem Wort für die damals
fortschrittliche „westlerische“ bürgerliche
Zivilisation. Stellung nahm, daß seine
Jugendentwicklung von Voltaire, Diderot,
Rousseau usw. wesentlich bestimmt war,
daß er sich auch im höchsten Lebensalter
bei Mißachtung der „bodenständigen“ und
reaktionären deutschen Literatur
brennend für die Literatur des Westens, für
Balzac, Stendhal und Merimee, für Byron
und Scott und für Hugo und Beranger
interessierte, stört unseren „gelehrten“
Professor in seiner faschistischen
Geschichtsklitterung nicht im geringsten.
:Auch nicht, daß selbst ein so reaktionärer
Kollege wie Professor Max J. Wolff offen
die Rückständigkeit der ökonomischen
Anschauungen Goethes zugeben muß.
(Der Tag Wirtschaftszeitung, 22. rz
1932.)
Como era de se esperar, a chamada
imprensa de esquerda não mostra
resistência perceptível a essa onda de
“fasticização” de Goethe. Como ela deveria
se mostrar de uma maneira diferente no
campo da política literária do que no
campo político geral? E especialmente no
Dieser Welle der „Faschisierung“ Goethes
gegenüber zeigt wie zu erwarten ist
die sogenannte linke Presse keinen
irgendwie bemerkbaren: Widerstand. Wie
sollte sie sich auch auf literatur politischem
Gebiete in anderem Lichte zeigen als auf
allgemein politischem Gebiete? Und
25
[NT] Max Joseph Wolff (1868-1941) advogado, escritor e tradutor alemão.
26
[NT]
Der Tag
foi um jornal diário ilustrado publicado em Berlim, fundado por August Scherl Verlag,
cuja existência compreendeu o período de 1900 a 1934.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 359
caso de Goethe, onde, como indicado
acima, seus próprios “clássicos” do
período pré-guerra forneceram as
ferramentas intelectuais para a fasticização
de Goethe? (Max Wundt também conecta
Goethe com a "filosofia de vida", ou seja,
com Dilthey / Simmel. Suplemento do
Deutsche Zeitung
, 22 de março de 1932.)
Em tais circunstâncias, não é de todo
surpreendente, mas muito pelo contrário
bastante natural, que o
Berliner
Tageblatt
27 publique do fascista declarado
[Giovane] Gentile, ao lado de Masatyk, um
artigo duro (22 de março). É certo que a
visão de "esquerda" sobre Goethe
permanece muito mais sob o encanto das
autoridades do pré-guerra: ao fazê-lo, no
entanto, eles expressaram os mesmos
pensamentos de uma forma mais indecisa
e desinteressante daquela que
encontramos entre os fascistas declarados.
Assim, os aspectos “ocidental” e
“pacifista” de Goethe são enfatizados
(Thomas Mann, Gerhart Hauptmann), e
Goethe é feito o padroeiro da
“democracia” de Weimar. “Portanto, a
palavra 'Goethe' deve ser uma espécie de
paz de deus para os alemães”, escreve o
Frankfurter Zeitung
(22 de março),
vergonhosamente (ou naturalmente) sem
mencionar que a “paz de deus” hoje
insbesondere im Falle Goethe, wo, wie
angedeutet, ihre eigenen „Klassiker“ aus
der Vorkriegszeit das geistige Rüstzeug
zur Faschisierung Goethes geliefert haben.
(Auch der bereits erwähnte Max Wundt
bringt Goethe mit der „Lebensphilo
sophie“, also mit Dilthey/Simmel in
Zusammenhang. Beilage zur „Deutschen
Zeitung“, 22. März 1932.) Unter solchen
Umständen ist es gar nicht überraschend,
sondern im Gegenteil ganz natürlich, daß
das „Berliner Tageblatt“ ausgerechnet den
offenen Faschisten Gentile neben Masatyk
zum Festartikler macht. (22. März.) Freilich
bleibt die „linke“ Goethe-Auffassung viel
stärker im Banne der Vorkriegsautoritäten:
damit drückten sie aber nur
unentschiedener und uninteressanter
dieselben Gedanken aus, die wir bei den
offenen Faschisten angetroffen haben.
Freilich wird das „Westliche“, das
„Pazifistische“ an Goethe hervorgehoben
(Thomas Mann, Gerhart Hauptmann),
Goethe wird zum Schutzpatron der
Weimarer „Demokratie“ erhoben. So
müßte das Wort ‚Goethe‘ für Deutsche eine
Art Gottesfriede sein“, schreibt die
„Frankfurter Zeitung“ (22. März), wobei sie
schamhaft (oder als Selbstverständlichkeit)
verschweigt, daß der „Gottesfriede“ heute
Notverordnung und Versammlungsverbot
27
[NT]
Berliner Tageblatt
jornal alemão publicado em Berlim entre 1872 e 1939. Juntamente com o
Frankfurter Zeitung
, tornou-se um dos jornais alemães liberais mais importantes do seu tempo.
György Lukács
360 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
significa decreto de emergência e
proibição de reunião. Portanto, Hermann
Wendel28 glorifica Goethe (casualmente
falando, com referência a Karl Grün29, que
é caracterizado por Engels neste caderno)
como o progenitor espiritual de
Bernstein30
bedeutet. So verherrlicht Hermann Wendel
(beiläufig gesagt, unter Berufung auf den
von Engels in diesem Heft
charakterisierten Karl Grün) Goethe als
geistigen Stammvater Bernsteins
Para Goethe, a etapa mais essencial do
progresso foi a suplantação da barbárie pela
civilização. A revolução e os atos de violência
não se encaixavam em sua visão de mundo,
tendo como centro a lei do desenvolvimento
orgânico; sua essência foi contrariada não
pela revolução, mas também pela guerra,
contradizendo tudo o que era apertado,
flagrante e odioso”. (Vorwärts, 22 de março)
Die wesentlichste Stufe des Fortschritts war
für Goethe die Überwindung der Barbarei
durch die Gesittung. In sein Weltbild mit dem
Gesetz der organischen Entwicklung als
Mittelpunkt paßte Umsturz und Gewalttat
nicht hinein; seinem Wesen widersprach nicht
nur die Revolution, sondern auch der Krieg,
widersprach alles Verkrampftc, Grelle und
Gehässige.“ (Vorwärts, 22. März) -
e professa Goethe em nome de seu
partido:
und bekennt sich im Namen seiner Partei
so zu Goethe:
Mas não apenas nos sentimos ligados a ele por
meio de nossa crença na validade da lei do
desenvolvimento, mas também honramos sua
memória por meio da luta diária por uma
ordem social em que o livre desdobramento da
personalidade que ele proclamou e a elevação
da humanidade a grande governante do
destino humano, se torna possível.
Wir aber fühlen uns ihm nicht nur durch den
Glauben an die Gültigkeit des
Entwicklungsgesetzes verbunden, sondern
ehren auch sein Gedächtnis durch den
yytäglichen Kampf für eine gescllschaftliche
Ordnung, in der die von ihm verkündete freie
Entfaltung der Persönlichkeit sowie die
Erhebung der Humanität zur großen Reglerin
des Menschengeschicks erst möglich wird.
Assim, a literatura da imprensa burguesa
So bietet die Goethe-Literatur der
28
[NT] Carl Max Ludwig Hermann Wendel (1884-1936) político, historiador, jornalista e escritor alemão.
Editou o folhetim do
Volksstimme
de Frankfurt de 1908 a 1913. Em 1933 emigrou para França e
trabalhou como membro do órgão social-democrata do exílio
Neuer Vorwärts
. Publicou diversos escritos
sobre o movimento operário e várias obras histórico-políticas e etnográficas sobre os eslavos do Sul.
29
[NT] Karl Grün (1817-1887), foi um jornalista, filósofo, teórico político e socialista alemão. Foi uma
figura de grande relevo nos movimentos políticos radicais que anteriores às Revoluções de 1848, nas
quais também veio a participar. Manteve relações com personalidade do socialismo de grande
envergadura, tais como Heinrich Heine, Ludwig Feuerbach, Pierre-Joseph Proudhon, Karl Marx, Mikhail
Bakunin e outros.
30
[NT] Eduard Bernstein (1850-1932) político e teórico político alemão. Consagrou-se como o primeiro
revisionista da teoria marxista se constituiu como um dos principais teóricos da social-democracia.
Membro do Partido Social-Democrata (SPD), e o fundador do socialismo evolutivo e do revisionismo,
Bernstein tinha realizado estreita associação de Karl Marx e Friedrich Engels, mas mostrou-se crítico do
pensamento marxista. Bernstein refutou elementos significativos do pensamento marxista que, segundo
ele, estavam fundados na metafísica hegeliana, rejeitando principalmente a perspectiva da dialética
hegeliana.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 361
sobre Goethe não oferece nada,
absolutamente nada para entender o que
Goethe realmente foi e como seu impacto
realmente ocorreu. Por outro lado, o
estudo desta literatura como reflexo do
fascínio geral da Alemanha, como forma
fenomênica literária da frente única de
Rosenberg aWendel (especialmente ao
reconhecer as diferenciações), desperta
muito interesse. O nível científico é muito
mais baixo do que por ocasião do jubileu
de Hegel; as verdadeiras forças motrizes
que determinam essa ideologia, a
fasticização de Goethe, são expressas com
a mesma clareza com que o foram na
fasticização de Hegel.
bürgerlichen Presse nichts, aber gar nichts
zur Erkenntnis dazu, was Goethe wirklich
gewesen ist und wie seine Wirkung
wirklich vor sich ging. Dagegen bringt das
Studium dieser Literatur als
Widerspiegelung der allgemeinen
Faschisierung Deutschlands, als
literarische Erscheinungsform der
Einheitsfront von Rosenberg bis Wendel
(gerade bei Erkenntnis der
Verschiedenheiten) sehr viel Interessantes.
Das wissenschaftliche Niveau istnoch
vieltiefer als bei Gelegenheit des Hegel-
Jubiläums; die wirklichen treibenden
Kräfte, die diese Ideologie, die
Faschisierung Goethes, bestimmen,
kommen aber ebenso klar zum Ausdruck,
wie sie bei der Faschisierung Hegels zum
Ausdruck kamen.
Die Linkskurve, Sonderheft 1932
György Lukács
362 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
Goethe und die Dialektik
Goethe e a dialética
Parte-se do determinante: isto e
aquilo são necessários, mas não
compreendemos a unidade destes
momentos; isto remete a Deus.
Portanto, Deus é, por assim dizer, a
sarjeta em que convergem todas as
contradições.31
Es wird vom Bestimmten
ausgegangen: dies und jenes ist
notwendig, aber wir begreifen die
Einheit dieser Momente nicht; diese
fällt in Gott. Gott ist also gleichsam
die Gosse, worin alle die
Widersprüche zusammenlaufen.
Hegel über Leibniz
I
A luta pela formação da dialética é o
problema teórico central da época clássica
da filosofia e da literatura alemãs, a época
de Lessing a Hegel. A filosofia e a literatura
alemãs se apoiam no desenvolvimento
anglo-francês dos séculos XVII e XVIII,
herdando de suas realizações,
desenvolvendo seus problemas na direção
da dialética - a dialética idealista. Enquanto
o principal ramo do desenvolvimento anglo-
francês da filosofia materialista, partindo de
Locke, via Holbach - Helvetius de volta à
Inglaterra, levou ao "utilitarismo" de
Bentham, uma "restauração vitoriosa e
completa" da metafísica e filosofia do século
XVII surgiu na Alemanha por Descartes,
Der Kampf um die Ausbildung der Dialektik
ist das theoretische Zentralproblem der
klassischen Epoche der deutschen
Philosophie und Literatur, der Epoche von
Lessing bis Hegel. Die deutsche Philosophie
und Literatur steht dabei auf den Schultern
der englischfranzösischen Entwicklung des
17. und 18. Jahrhunderts, tritt das Erbe
ihrer Errungenschaften an, entwickelt ihre
Probleme in der Richtung auf Dialektik -
idealistische Dialektik weiter. Während
der Hauptzweig der englisch-französischen
Entwicklung der materialistischen
Philosophie, von Locke ausgehend, über
Holbach - Helvetius wieder nach England,
zum „Utilitarismus“ Benthams führta,
31
[NT]
Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III
; Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1971,
P. 256.
a Vgl. darüber das glänzende Kapitel: „Kritische Schlacht gegen den französischen Materialismus“ in
„Heilige Familie“, III. Band der Gesamtausgabe, 300 ff. und das bis jetzt leider nur in der ganz
schlechten Ausgabe von J. P. Meyer veröffentlichte - Kapitel über „Exploitationstheorie“ aus der
„Deutschen Ideologie“, II, 428 ff. Cf. Sobre isto o brilhante capítulo: "Batalha crítica contra o materialismo
francês" em "Sagrada Família", III. volume da edição completa, 300 ss. [ed. Bras. MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich; A sagrada família; São Paulo: Boitempo, 2003; p. 137 ss.] e o capítulo sobre "Teoria da
Exploração" da "Ideologia Alemã", II, 428 ss. [MARX, Karl; ENGELS, Friedrich;
A ideologia alemã
; São
Paulo: Boitempo, 2007; “Moral, intercâmbio e teoria da exploração”; p. 394ss.] - infelizmente até agora
apenas publicado na edição muito ruim de J. P. Meyer.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 363
Malebranche, Spinoza e Leibniz. O aspecto
filosoficamente significativo desse
desenvolvimento é a formação dos germes
dialéticos, sugestões e abordagens da
filosofia mais antiga até o auge da dialética
idealista que a obra de Hegel representa.
Por um lado, esse desenvolvimento se
distancia cada vez mais dos elementos
materialistas que herda, embora, como
veremos, essa distância não seja tão clara e
completa para muitos representantes
importantes do desenvolvimento alemão,
como a história da filosofia burguesa
costuma apresentar. Por outro lado,
desenvolveu, reconhecidamente de forma
idealista (e, portanto, abstrata e distorcida),
o lado ativo” da filosofia, que o antigo
materialismo “intuitivo” negligenciava, e
teve de negligenciar.
entstand in Deutschland eine „siegreiche
und gehaltvolle Restauration“ der
Metaphysik des 17. Jahrhunderts, der
Philosophie von Descartes, Malebranche,
Spinoza und Leibnizb. Das philosophisch
Bedeutsame dieser Entwicklung ist die
Herausbildung der dialektischen Keime,
Andeutungen, Ansätze der älteren
Philosophie bis zu jenem Gipfelpunkt der
idealistischen Dialektik, die das Lebenswerk
Hegels vorstellt. Diese Entwicklung entfernt
sich einerseits immer stärker von den
materialistischen Elementen, die sie als Erbe
übernimmt, obwohl, wie wir sehen werden,
diese Entfernung bei vielen bedeutenden
Vertretern der deutschen Entwicklung
keineswegs so eindeutig und
hundertprozentig ist, wie dies die
bürgerliche Philosophiegeschichte
darzustellen pflegt. Andererseits bildete sie,
freilich in idealistischer (und darum
abstrakter und verzerrter) Form, die „tätige
Seite“ der Philosophie aus, die der alte
„anschauende“ Materialismus
vernachlässigt hat, vernachlässigen mußte.
Se quisermos determinar a posição de
Goethe nesse desenvolvimento, mesmo que
apenas sugestivamente, temos que
considerar duas coisas. Primeiro, o atraso
econômico geral da Alemanha em
comparação com a Inglaterra e a França,
Wenn wir nun Goethes Stellung in dieser
Entwicklung, wenn auch nur andeutend,
bestimmen wollen, so müssen wir zweierlei
berücksichtigen. Erstens die allgemeine
ökonomische Zurückgebliebenheit
Deutschlands im Vergleich zu England und
b
Heilige Familie
, III, 301 [ed. Bras.
A sagrada família
; p. 137].
György Lukács
364 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
que teve como consequência necessária o
atraso político correspondente. Esse atraso
não impediu, como escreve Engels (carta a
C. Schmidt, 27 de outubro de 1890), “que
países economicamente atrasados possam
tocar o primeiro violino da filosofia”, caso
da Alemanha no período de que estamos
tratando. Essa situação peculiar, causada
pelo desenvolvimento desigual, se reflete
de forma contraditória nos efeitos do atraso
econômico e político, bem como nas
consequências filosóficas que foram
extraídas do desenvolvimento internacional
do período (Revolução Francesa, Napoleão,
desenvolvimento industrial na Inglaterra,
conquistas das ciências da natureza etc.).
Em segundo lugar, o problema particular
das questões filosóficas centrais, que esse
desenvolvimento herdou e trabalhou de
acordo com as necessidades específicas de
cada classe.
Frankreich, die eine entsprechende
politische Zurückgebliebenheit zur
notwendigen Folge hatte. Diese
Zurückgebliebenheit verhinderte nicht, wie
Engels (Brief an C. Schmidt, 27. Oktober
1890) schreibt, daß ökonomisch
zurückgebliebene nder in der Philosophie
doch die erste Violine spielen können“, so
Deutschland in der von uns behandelten
Periode. Diese eigenartige Lage, verursacht
durch die ungleichmäßige Entwicklung,
spiegelt sich widerspruchsvoll sowohl in
den Einwirkungen der ökonomisch
politischen Rückständigkeit wie in den
Konsequenzen, die philosophisch aus der
internationalen Entwicklung der Periode
(französische Revolution, Napoleon,
industrielle Entwicklung in England,
Errungenschaften in der Naturwissenschaft
usw.) gezogen wurden. Zweitens die
besondere Problemlage der
philosophischen Zentralfragen, die diese
Entwicklung als Erbe übernahm und den
eigenen, klassenmäßig bestimmten
Bedürfnissen entsprechend bearbeitete.
Temos que nos limitar às questões centrais
e, portanto, somos forçados a apresentar a
situação muito diversa (e ainda pouco
pesquisada) de uma maneira muito
simplificada. A filosofia alemã da época - e
com ela Goethe - encontrou duas tentativas
fundamentalmente opostas de resolver o
problema dialético central, a questão da
Wir müssen uns hier auf die Zentralfragen
beschränken und sind demgemäß
gezwungen, die sehr vielseitige (und noch
wenig erforschte) Situation stark vereinfacht
darzustellen. Die deutsche Philosophie
dieser Zeit - und mit ihr Goethe - fand zwei
im Grunde entgegengesetzte, in vielen
konkreten Fällen jedoch ineinander
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 365
contradição, mas em muitos casos
concretos fundindo-se uma na outra. O
primeiro tipo desta tentativa de solução foi
a antinomia. As contradições na natureza e
na sociedade tornaram-se tão flagrantes
que se tornou cada vez mais impossível
para os pensadores honestos e
razoavelmente consistentes não se
aperceberem delas. Consequências
filosóficas nem sempre foram retiradas
disso. Poderia muito bem ocorrer, como
aconteceu, por exemplo, na filosofia clássica
da Inglaterra, em que fatos antinômicos
foram trabalhados com uma energia
implacável sem tirar conclusões apropriadas
da sua incompatibilidade. Mas também era
possível resolver essas contradições com
clareza, elevá-las a um nível filosófico de
abstração e ver o limite do conhecimento
humano nas antinomias não resolvidas e
que eram entendidas como insolúveis; a
“Crítica da Razão Pura” de Kant é
particularmente típica dessa tentativa de
solução, em que o caráter agnóstico das
contradições que são fixadas como
insolúveis (liberdade-necessidade etc.)
emerge de maneira particularmente clara.
Para além desse lado agnóstico, é
particularmente característico desse tipo de
solução que essa concepção de realidade
seja incapaz de lidar - filosoficamente - com
übergehende Lösungsversuche des
zentralen dialektischen Problems, der Frage
des Widerspruchs, vor. Der erste Typus
dieses Lösungsversuchs war der der
Antinomie. Die Widersprüche traten in Natur
und Gesellschaft so kraß hervor, daß es
ehrlichen und einigermaßen konsequenten
Denkern immer unmöglicher wurde, sie
nicht festzustellen. Daraus mußten nicht
immer philosophische Konsequenzen
gezogen werden. Es konnte sehr wohl
geschehen, wie es z. B. in der klassischen
Philosophie Englands geschah, daß die
antinomischen Tatbestände mit
rücksichtsloser Energie herausgearbeitet
wurden, ohne aus ihrer Unvereinbarkeit
entsprechende Folgerungen zu ziehenc. Es
war aber auch möglich, diese Widersprüche
klar herauszuarbeiten, auf eine
philosophische Höhe der Abstraktion zu
erheben und in den ungelösten und als
unlösbar aufgefaßten Antinomien die
Grenze der menschlichen Erkenntnis zu
erblicken; Kants „Kritik der reinen Vernunft“
ist besonders typisch für diesen
Lösungsversuch, wobei hier der
agnostizistische Charakter der als unlösbar
fixierten Widersprüche (Freiheit
Notwendigkeit usw.) besonders klar
hervortritt. Neben dieser agnostizistischen
Seite ist für diesen Typus der Lösungen
c Em Ricardo, diz Marx, "o novo e significativo desenvolve-se em meio ao 'estrume' das contradições",
Theories of Surplus Value,
III, 94 [ed. bras. MARX, Karl; Teorias da mais-valia, III, Rio de Janeiro, DIFEL,
1980, p. 1139].
György Lukács
366 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
o devir, com a história mesmo quando o
caráter histórico é descoberto e
vigorosamente enfatizado nas legalidades
singulares da natureza ou da história
(astronomia de Kant). O segundo tipo tenta
de alguma forma alcançar a unidade das
contradições. Mas esse avanço,
especialmente com os representantes
consistentes dessa direção, conduz para o
transcendente, para o além. Ou seja, eles
reconhecem o problema dialético como
solucionável. Admite-se a união dos
opostos e a exigência de apresentar essa
união, essa unidade, essa coincidência de
contradições como problema, mesmo como
um problema central da filosofia A unidade
das contradições é, no entanto - de forma
mística -, transferida para o além, para Deus.
J. G. Hamann32, que exerceu influência
decisiva sobre Goethe na juventude, foi
talvez o representante mais significativo
dessa tendência na Alemanha da época, e
foi precisamente com ele que as antigas
tradições dessa tendência se expressaram
com clareza. O próprio Goethe estava
preparado para esse problema pelo fato de
- após seu regresso a Frankfurt da
Universidade de Leipzig - ter lidado em
detalhe com a filosofia natural da
besonders charakteristisch, daß diese
Auffassung der Wirklichkeit das Werden, die
Geschichte philosophisch nicht zu
bewältigen vermag, selbst dann nicht, wenn
in Einzelgesetzmäßigkeiten in Natur oder
Geschichte der historische Charakter
entdeckt und energisch hervorgehoben wird
(Kants Astronomie). Der zweite Typus
versucht, in irgendeiner Weise zu der Einheit
der Widersprüche vorzustoßen. Dieser
Vorstoß geht aber, gerade bei den
folgerichtigen Vertretern dieser Richtung,
ins Transzendente, ins Jenseitige. Das heißt,
es wird von ihnen das dialektische Problem
als lösbar anerkannt. Das
Zusammengehören der Gegensätze und die
Forderung, diese Zusammengehörigkeit,
diese Einheit, dieses Zusammenfallen der
Widersprüche als Problem, ja als zentrales
Problem der Philosophie zu stellen, wird
zugegeben. Die Einheit der Widersprüche
wird jedoch - in mystischer Weise - ins
Jenseits, in Gott verlegt. J. G. Hamann, der
auf Goethe in seiner Jugend einen
entscheidenden Einfluß ausübte, war
vielleicht der prägnanteste Vertreter dieser
Richtung im damaligen Deutschland, wobei
gerade bei ihm auch die alten Traditionen
32
[NT] Johann Georg Hamann (1730-1788) filósofo e escritor alemão. Foi profundamente marcado por
uma vivência religiosa em 1758, que o levou à defesa de uma posição fundamentalista dentro do
cristianismo. A partir desta época, Hamann adota o socrático não saber, contrapondo a ele o fundamento
na Fé. Crítico radical do Racionalismo e do Iluminismo, dedicou sua carreira literária à defesa de uma fé
cristã genuína, ainda que não fosse católico. Ele é considerado um precursor do
Sturm und Drang
.
Goethe se referiu a ele como uma das mentes mais brilhantes de seu tempo. (fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Johann_Georg_Hamann)
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 367
Renascença, especialmente com seus ramos
místicos (Paracelso, etc.).
dieser Tendenzd klar zum Ausdruck kamen.
Goethe selbst war zu dieser
Problemstellung auch dadurch vorbereitet,
daß er nach seiner Rückkehr nach
Frankfurt von der Leipziger Universität
sich eingehend mit der Naturphilosophie
der Renaissance, insbesondere mit deren
mystischen Abzweigungen (Paracelsus
usw.), befaßte.
Seria simplificar demais o problema se
descrevêssemos a primeira tendência,
fortemente representada no materialismo
francês (embora reconhecidamente não com
suas consequências germânicas), como
progressista e a segunda como reacionária.
Na Alemanha, em particular, elementos
progressistas e reacionários se misturam em
ambas as direções, e uma interação
ininterrupta entre as duas tendências. Isso é
mais evidente na questão idealismo contra
materialismo. Como foi enfatizado, a
principal corrente de desenvolvimento em
direção à dialética vai na direção idealista,
ou seja, de afastamento do materialismo. A
vacilante posição agnóstica de Kant sobre a
questão da coisa- em -si torna-se um claro
idealismo subjetivo em Fichte, na mais
íntima conexão com a tentativa de converter
precisamente a doutrina das antinomias em
uma doutrina da unidade das contradições,
Es wäre eine zu große Vereinfachung des
Problems, wenn wir die erste Tendenz, die
im französischen Materialismus (wenn auch
freilich nicht mit ihren deutschen
Konsequenzen) stark vertreten war, als
progressiv, die zweite als reaktionär
bezeichnen würden. Insbesondere in
Deutschland mischen sich sowohl
progressive und reaktionäre Elemente in
beiden Richtungen, und es findet eine
ununterbrochene Wechselwirkung zwischen
beiden Tendenzen statt. Dies kommt in der
Frage Idealismus gegen Materialismus am
deutlichsten zum Vorschein. Wie bereits
hervorgehoben wurde, geht der Hauptstrom
der Entwicklung auf die Dialektik zu in
idealistischer Richtung, und zwar in der
Richtung vom Materialismus weg. Die
schwankend-agnostizistische
Stellungnahme von Kant in der Frage des
Dinges an sich schlägt bei Fichte in einen
d
A filosofia natural da Renascença
, sobretudo Giordano Bruno, que nisto, Hamann o sabia, regressou
a Nicolau de Cusa
György Lukács
368 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
ou seja, em uma dialética. Por outro lado, a
tendência transcendente-dialética, com
todo o “cumprimento piedoso” de suas
últimas consequências na luta contra o
agnosticismo, o idealismo subjetivo etc., é
forçada - pelo menos parcial e
provisoriamente - a se aproximar de certas
afirmações materialistas. Assim, por
exemplo, Hamann combate a separação
idealista de Mendelssohn de "razões para a
verdade" e "razões para o movimento", bem
como a separação de Kant entre razão e
sensibilidadee. Em geral, o retorno a um
empirismo - em alguns lugares - é
característico de toda essa direção. A
dificuldade de traçar limites nítidos é
acentuada pelo fato de que - como
consequência do atraso da Alemanha - a
luta filosófica não ocorre claramente entre
materialismo e idealismo, mas tais
problemas são trazidos à tona, em que uma
contraposição frontal muito clara é muito
difícil de início. O problema mais
significativo - também o mais característico
do próprio Goethe - desse tipo é o
panteísmo. A questão da unidade de Deus
e da natureza adotada por Spinoza pode ser
tanto um caminho para o materialismo
quanto um caminho para longe dele. Por
exemplo, o Lessing tardio foi sem dúvida o
primeiro, especialmente quando se opôs
ferozmente à concepção idealista da
klaren subjektiven Idealismus um, im
engsten Zusammenhang mit dem Versuch,
gerade die Lehre von den Antinomien in
eine Lehre von der Einheit der
Widersprüche, in eine Dialektik,
umzuwandeln. Andererseits ist die
transzendent-dialektische Tendenz, bei aller
„Gotterfülltheit“ ihrer letzten Konsequenzen
im Kampfe gegen Agnostizismus,
subjektiven Idealismus usw., gezwungen,
sich wenigstens teilweise und
vorübergehend gewissen
materialistischen Feststellungen
anzunähern. So bekämpft z. B. Hamann das
Mendelssohnsche idealistische Trennen von
„Wahrheitsgründen“ und
„Bewegungsgründen“, ebenso die Kantsche
Trennung von Verstand und Sinnlichkeit.
Überhaupt ist ein Zurückgehen auf einen -
stellenweise - materialistisch gefärbten
Empirismus für diese ganze Richtung
kennzeichnend. Die Schwierigkeit hierbei,
scharfe Grenzen zu ziehen, wird noch
dadurch gesteigert, daß - infolge der
Zurückgebliebenheit Deutschlands - der
philosophische Kampf sich nicht klar
zwischen Materialismus und Idealismus
abspielt, sondern solche Probleme in den
Mittelpunkt gerückt werden, bei denen eine
ganz klare Frontstellung von vornherein
sehr erschwert ist. Das bezeichnendste
und auch für Goethe selbst
e cf. Rezension Hegels über Hamanns Werke, XVII, 83-85.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 369
prioridade da consciência sobre o ser. “É um
dos preconceitos humanos”, diz Lessingf,
“que consideremos os pensamentos como
os primeiros e mais nobres e queiramos
derivar tudo deles; uma vez que tudo,
incluindo as ideias, depende de princípios
superiores”. No entanto, verifica-se
imediatamente de modo muito
característico - que este “princípio superior”
é mais elevado do que o pensamento, a
extensão e o movimento (portanto, a
matéria). Em Schelling, pode-se observar o
caminho oposto.
charakteristischste Problem dieser Art ist
der Partheismus. Die von Spinoza
übernommene Fragestellung von der
Einheit von Gott und Natur kann ebenso ein
Weg zum Materialismus wie ein Weg vom
Materialismus weg sein. Beim späten
Lessing war es z. B. ohne Zweifel der
erstere, insbesondere, wo er sich aufs
heftigste gegen die idealistische Konzeption
der Priorität des Bewußtseins dem Sein
gegenüber wehrt. „Es gehört“, sagt Lessing,
„zu den menschlichen Vorurteilen, daß wir
den Gedanken als das Erste und
Vornehmste betrachten und aus ihm alles
herleiten wollen; da doch alles, die
Vorstellungen mit einbegriffen, von höheren
Prinzipien abhängt.“ Allerdings stellt sich
sogleich - sehr charakteristischerweise
heraus, daß dieses „höhere Prinzip“ höher
ist als sowohl Gedanke wie Ausdehnung,
Bewegung (also Materie). Bei Schelling kann
man einen umgekehrten Weg beobachten.
2
A posição de Goethe é aqui a de uma
característica posição intermediária -
registrada com mais ou menos flutuações.
Ele sempre se distingue do idealismo
filosófico com bastante determinação. Essa
distinção é sempre expressa
Für Goethes Stellung ist hier eine - mit mehr
oder weniger Schwankungen festgehaltene
- Zwischenstellung charakteristisch. Er
grenzt sich stets mit ziemlicher
Entschiedenheit vom philosophischen
Idealismus ab. Diese Abgrenzung wird von
f Jacobis Spinozabüchlein, Ausgabe Fr. Mautner, München, 1912, S. 70.
György Lukács
370 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
acentuadamente por ele,
independentemente de amizade pessoal e
da cooperação objetiva. É assim, sempre
contra F. H. Jacobi; assim também contra
Schiller. Goethe resume, por exemplo, a
diferença entre o seu método criativo e o de
Schiller da seguinte forma: “Há uma grande
diferença se o poeta busca o particular em
relação ao geral, ou olha o particular em
relação ao geral. Desse tipo de alegoria
surge onde o particular conta apenas como
um exemplo, como um exemplo do geral;
esta última, entretanto, é na verdade a
natureza da poesia ... ”(Provérbios em
Prosa, IV Seção) Em Goethe, no entanto,
essa demarcação, essa falta de vontade de
seguir o caminho da dialética através do
idealismo não significa de forma alguma
uma posição decididamente materialista.
Embora sua relação com a filosofia
materialista dos séculos XVII e XVIII seja
muito mais próxima do que ele próprio a
descreve de forma muito distorcida em
"Dichtung und Wahrheit" (
Poesia e
Verdade33
), ele nunca foi além de uma
posição intermediária entre o materialismo
e o idealismo. Depois de descobrir seu
ihm unbekümmert um persönliche
Freundschaft und sachliche
Zusammenarbeit stets scharf
ausgesprochen. So stets gegen F. H. Jacobi;
so auch gegen Schiller. Goethe faßt z. B. den
Unterschied zwischen deiner und Schillers
schöpferischer Methode so zusammen: „Es
ist ein großer Unterschied, ob der Dichter
zum Allgemeinen das Besondere sucht,
oder im Besonderen das Allgemeine schaut.
Aus jener Art entsteht Allegorie, wo das
Besondere nur als Beispiel, als Exempel des
Allgemeinen gilt; die letztere aber ist
eigentlich die Natur der Poesie ...“ (Sprüche
in Prosa, IV, Abt.) Aber diese Abgrenzung,
dieser Unwille, den Weg zur Dialektik durch
den Idealismus hindurch zu gehen, bedeutet
bei Goethe keineswegs eine entschieden
materialistische Stellungnahme. Zwar sind
seine Beziehungen zur materialistischen
Philosophie des 17. bis 18. Jahrhunderts
viel enger, als er es selbst in „Dichtung und
Wahrheit“ in sehr entstellter Weise
schildertg, er ist aber niemals weiter als bis
zu einer Zwischenstellung zwischen
Materialismus und Idealismus gekommen.
So schreibt er, nach Entdeckung seines
„Natur-Aufsatzes aus den achtziger Jahren
an den Kanzler Müller: „Weil aber die
Materie nie ohne Geist, der Geist nie ohne
33
[NT] GOETHE;
Memórias: poesia e verdade
; trad. Leonel Valandro; Brasília: Editora Universidade de
Brasilia, 1986.
g Cf. sobre este tema no ensaio de Hubert Röck em „Archiv für Geschichte der Philosophie“, neue
Folge, XXX.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 371
ensaio “Natureza”34 da década de 1780, ele
escreve para o Chanceler Müller: “Mas
porque a matéria nunca existe sem espírito,
e o espírito nunca existe e pode ser eficaz
sem matéria, a matéria também pode
aumentar, assim como o espírito insiste em
atrair e repelir...” (24 de maio de 1828.)
Que esta seja uma posição intermediária
pode ser demonstrado pelo fato de Goethe
repetidamente delimitar nitidamente essa
visão do materialismo. Em seu “Campanha
na França”35 (seção: Pempelfort, novembro
de 1792) ele chama sua visão de mundo de
“hilozoísmo” e diz sobre ela: “torna-me
insensível, mesmo implacável, a essa forma
de pensar que se estabelece como um
credo, uma matéria morta, seja qual for a
forma como é levantada e estimulada".
Materie existiert und wirksam sein kann, so
vermag auch die Materie sich zu steigern, so
wie sich’s der Geist nicht nehmen läßt,
anzuziehen und abzustoßen .. .“ (24. Mai
1828.) Daß es sich dabei um eine
Zwischenstellung handelt, zeigt sich darin,
daß Goethe gerade diese Anschauung
wiederholt ganz scharf vom Materialismus
abgrenzt. In seiner „Campagne in
Frankreich“ (Abschnitt: Pempelfort,
November 1792) nennt er seine
Weltanschauung „Hylozoismus“ und sagt
von ihr: sie „macht mich unempfindlich, ja
unleidsam gegen jene Denkweise, die eine
tote, auf welche Art es auch sei, auf- und
angeregte Materie als Glaubensbekenntnis
aufstellte“,
Para Goethe, trata-se de encontrar um
caminho entre o materialismo e o idealismo
que lhe permita formular dialeticamente os
resultados do desenvolvimento histórico, na
medida em que as necessidades imediatas
da investigação o exijam, ou seja, libertar-
se das amarras do materialismo mecânico,
sem por isso ter de se alinhar com as
Es handelt sich hierbei für Goethe darum,
zwischen Materialismus und Idealismus
einen Weg zu finden, der ihm gestattet,
seine entwicklungsgeschichtlichen
Resultate, so weit es die unmittelbaren
Forschungsbedürfnisse bedürfen,
dialektisch zu formulieren, also sich von den
Fesseln des mechanischen Materialismus zu
34
[NT] “A natureza”. In: GOETHE;
Ensaios científicos
; trad, Jacira Cardoso; São Paulo: Barany Editora, Ad
Verbum Editorial, 2012. O Fragmento sobre a
Natureza
é um ensaio aforístico de Johann Wolfgang
von Goethe, escrito por volta de 1780 e publicado pela primeira vez no
Tiefurter Journal
em 1781. No
entanto, a autoria de Goethe foi posta em dúvida; o próprio Goethe, como confessou numa carta ao
Chanceler Müller em 1828, o tinha a certeza da sua autoria, mas confirmou que o conteúdo
correspondia às suas opiniões na altura. Tanto quanto sabemos hoje, o ensaio não foi realmente escrito
por Goethe, mas pelo jovem teólogo suiço Georg Christoph Tobler, e foi escrito entre 1781 e 1783; foi
inserido no 32º número do "
Tiefurter Journal
" e apareceu pela primeira vez em 1784.” Fonte:
<https://anthrowiki.at/Bibliothek:Goethe/Naturwissenschaft/Die_Natur>.
35
[NT] GOETHE;
A campanha na França e outros relatos de viagem
; trad. Mario Luiz Frungillo; São Paulo:
Editora UNESP, 2001.
György Lukács
372 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
construções ousadas e muitas vezes
extravagantes do idealismo. No entanto,
essa necessidade cotidiana de seu trabalho
científico está intimamente relacionada com
suas necessidades poéticas e ideológicas.
Em termos poéticos, Goethe segue uma
linha realista, com flutuações ocasionais.
Por isso quer manter à distância as
exigências do idealismo poético (Schiller,
Romantismo). Por outro lado, ele se
distingue muito nitidamente do realismo
fotográfico escrupuloso de seus
contemporâneos, que apenas refletem a
estreiteza e o atraso da vida burguesa na
Alemanha (Iffland36), mas sem o realismo
ousado da burguesia francesa e inglesa -
especialmente com o avanço da idade a
não ser com interesses benevolentes
(Diderot, Balzac etc.). Goethe tenta assumir
uma posição intermediária semelhante à de
um cientista natural. Ou seja, a sua prática
baseia-se resolutamente na descoberta de
leis da evolução (ossos intermediários no
homem e nos animais como precursor do
darwinismo etc.), as suas simpatias estão
sempre do lado da penetração gradual do
tratamento dialético da ciência natural
(Geoffroy de St.- Hilaire, do lado da
superação do mecanismo (contra Lineu37,
befreien, ohne deshalb die kühnen und oft
verstiegenen Konstruktionen des Idealismus
mitmachen zu müssen. Dieses
Tagesbedürfnis seiner wissenschaftlichen
Arbeit steht jedoch mit seinen dichterischen
und weltanschaulichen Bedürfnissen in
engem Zusammenhang. Dichterisch vertritt
Goethe mit zeitweiligen Schwankungen -
eine realistische Linie. Er will also die
Anforderungen des dichterischen
Idealismus (Schiller, Romantik) sich vom
Leibe halten. Andererseits grenzt er sich
sehr scharf vom kriecherischen,
photographischen Realismus seiner
Zeitgenossen, die bloß die Enge und
Zurückgebliebenheit des bürgerlichen
Lebens in Deutschland widerspiegeln
(Iffland) ab, ohne aber den kühnen
Realismus der französischen und englischen
Bourgeoisie insbesondere mit
vorrückendem Alter anders als mit
wohlwollendem Interesse zu verfolgen
(Diderot, Balzac usw.). Eine ähnliche
Zwischenstellung versucht nun Goethe auch
als Naturforscher emzunehmen. D. h., seine
Praxis geht entschieden auf die Entdeckung
von Entwicklungsgesetzen aus
(Zwischenknochen bei Mensch und Tier als
Vorstufe des Darwinismus usw.), seine
36
[NT] August Wilhelm Iffland (1759-1814) ator e dramaturgo alemão.
37
Carl von Linné, (1707-1778) [Carlos Lineu] naturalista sueco que lançou as bases do sistema moderno
de nomenclatura binominal. Considerando que o conhecimento científico exige que se nomeie coisas,
ele listou, nomeou e classificou sistematicamente a maioria das espécies vivas conhecidas no seu tempo,
com base nas suas observações e nas da sua rede de correspondentes. A hierarquia de classificações
que ele apresentou tornou-se a nomenclatura padrão no século XIX1.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 373
contra Cuvier). Ele não cai assim no erro dos
dialéticos idealistas que, com exceção de
Hegel, menosprezam, sem qualquer crítica e
de maneira a-histórica, os seus
predecessores mecanicistas (Schelling: "Eu
desprezo Locke").
Sympathien stehen stets auf der Seite des
allmählichen Eindringens der dialektischen
Behandlung der Naturwissenschaft
(Geoffroy de St.-Hilaire), auf der Seite der
Überwindung des Mechanismus (gegen
Linne, gegen Cuvier), Er verfällt dabei nicht
in den Fehler der idealistischen Dialektiker,
die, mit Ausnahme von Hegel, auf ihre
mechanistischen Vorgänger unkritisch und
unhistorisch herabsehen (Schelling: „Ich
verachte Locke.“).
Mas com tudo isso ele não foi capaz de
“superar” dialeticamente o mecanicismo em
sua maneira de ver as coisas. Em vez disso,
ele o considerava como uma forma de ver
as coisas que existiam ao lado das suas,
embora limitadas, mas, no entanto - dentro
de certos limites - justificadas. A sua
metodologia visa, portanto, afirmar a
igualdade da própria visão com a visão
mecânica, segundo a qual, na maioria das
vezes, considera que estes são dois tipos
"eternamente humanos" que podem se
complementar e ajudar a evitar erros. "Uma
vez que ambas as formas de pensar são
originais e se enfrentarão para sempre, sem
se unir ou aniquilar, então tome cuidado
com toda controvérsia e apresente suas
convicções de maneira clara e nua." (Sobre
as ciências naturais).
Aber er war bei alledem nicht imstande, den
Mechanismus in seiner Betrachtungsweise
dialektisch „aufzuheben“. Er betrachtete ihn
vielmehr als eine neben der seinen
bestehende, zwar beschränkte, aber
trotzdem - innerhalb bestimmter Grenzen
berechtigte Betrachtungsweise. Seine
Methodologie geht also darauf aus, die
Gleichberechtigung der eigenen Auffassung
neben der mechanischen durchzusetzen,
wobei er zumeist die Anschauung vertrat, es
handle sich um zwei ewig menschliche“
Typen, die einander gegenseitig ergänzen
können und im Vermeiden von Fehlern
behilflich sein können. „Da nun beide
Vorstellungsweisen ursprünglich sind und
sich einander ewig gegenüberstehen
werden, ohne sich zu vereinigen oder
aufzuheben, so hüte man sich ja vor aller
Controverse und stelle seine
Überzeugungen klar und nackt hin.“ (Über
Naturwissenschaft.)
György Lukács
374 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
Essa maneira de ver as coisas passa por um
longo desenvolvimento com Goethe. De
início, mostra-se puramente empírico,
rejeitando com certo orgulho qualquer
generalização filosófica. Numa carta a
Schiller (6 de janeiro de 1798) Goethe fala
ainda do "estado filosófico da natureza" em
que se encontra e quer encontrar a si
próprio. Acima de tudo, porém, esta é sua
posição defensiva, tanto contra o idealismo
de Kant-Fichte quanto contra o
materialismo declarado. Pois assim que a
filosofia alemã - com a "Crítica do Juízo" e,
acima de tudo, com a filosofia natural do
jovem Schelling - encontra um fundamento
apropriado para o compromisso ideológico
de Goethe, sua posição muda de forma
muito acentuada. Afinal de contas, Hegel
escreveu a Schelling sobre a teoria das
cores de Goethe em 1807 (23 de maio): “...
por ódio ao pensamento pelo qual outros
estragam a coisa, adere inteiramente ao
empírico, em vez de ir além disso para o
outro lado, ao conceito, que virá a brilhar
através dele.” Este empirismo de Goethe é,
contudo, como ele mesmo diz, "um
empirismo sutil que se torna idêntico ao
objeto e, por conseguinte, torna-se numa
verdadeira teoria... O melhor seria:
compreender que todo o fatual já é 'teoria'"
(Provérbios em Prosa, IV. Seção). O caráter
dialético desse “empirismo sutil” é evidente.
Mas é apenas um avanço na direção da
dialética, que se detém na metade do
Diese Anschauungsweise macht bei Goethe
selbstredend eine lange Entwicklung durch.
Anfangs zeigt sie sich rein empiristisch,
weist mit einem gewissen Stolz jede
philosophische Verallgemeinerung zurück.
Noch in einem Brief an Schiller (6. Januar
1798) spricht Goethe von dem
„philosophischen Naturzustande“, in dem er
sich befindet und befinden will. Dies ist aber
vor allem seine Abwehrstellung, sowohl
gegen den Idealismus von Kant Fichte
wie gegen den ausgesprochenen
Materialismus. Denn sobald die deutsche
Philosophie mit der Kritik der
Urteilskraft“ und vor allem mit der
Naturphilosophie des jungen Schelling
eine für das Goethesche weltanschauliche
Kompromiß angemessene Fundierung
findet, verschiebt sich seine Stellungnahme
sehr stark. Immerhin schreibt Hegel noch
1807 (23. Mai) an Schelling über Goethes
Farbenlehre: ». .. er hält sich aus Haß gegen
den Gedanken, durch den die anderen die
Sache verderben, ganz ans Empirische, statt
über jenen hinaus zu der anderen Seite von
diesem, zum Begriffe zu übergehen, welche
etwa nur zum Durchschimmern kommen
wird.“ Dieser Empirismus Goethes ist aber,
wie er selbst sagt, „eine zarte Empirie, die
sich mit dem Gegenstand identisch macht
und dadurch zur eigentlichen Theorie wird...
Das Höchste wäre: zu begreifen, daß alles
Faktische schon 'Theorie“ (Sprüche in Prosa,
IV. Abt.). Der dialektische Charakter dieser
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 375
caminho. Esse deter-se no meio do caminho
está firmemente ancorado na natureza de
Goethe. O seu “empirismo”, ainda que seja
uma visão de mundo enquadrada num
panteísmo, tem para ele uma função
semelhante - desde o século XVII - ao
agnosticismo, ao “materialismo
envergonhado” (como diz Engels): para
retirar tudo o que é necessário para o
trabalho de investigação imediata do
materialismo, das tendências dialéticas
emergentes, para manter Deus e a teologia
longe deste campo - mas também aqui, sem
deixar chegar a uma luta ideológica aberta.
A
Crítica do Juízo
oferece uma abordagem
completamente diferente para este tipo de
compromisso em relação à
Crítica da Razão
.
Seu conceito de "razão intuitiva", concebido
com muito cuidado por Kant como uma
"ideia reguladora", como um modo de
conhecimento que é negado ao homem, dá
uma perspectiva sobre a união dos polos
antinômicos sem realmente vê-los em uma
inter-relação viva e ao mesmo tempo, sem
dissolver sua unidade em um misticismo
abertamente admitido. É um agnosticismo
"sutil".
„zarten Empirie“ ist offensichtlich. Sie ist
aber doch nur ein Vorstoß in der Richtung
auf Dialektik, der auf dem halben Wege
stehenbleibt. Dieses Stehenbleiben auf dem
halben Wege ist sehr tief in Goethes Wesen
verankert. Sein „Empirismus“, auch wenn er
in einen Pantheismus weltanschaulich
eingerahmt ist, hat bei ihm eine ähnliche
Funktion, wie seit dem 17. Jahrhundert
der Agnostizismus, der „verschämte
Materialismus“ (wie Engels sagt): alles, was
für die unmittelbare Forschungsarbeit
notwendig, ist aus dem Materialismus, aus
den aufkommenden dialektischen
Tendenzen auszuschöpfen, Gott und die
Theologie von diesem Gebiete fernzuhalten
aber auch hier, ohne es auf einen offenen
weltanschaulichen Kampf ankommen zu
lassen. Die „Kritik der Urteilskraft“ bietet
nun für diese Art von Kompromiß ganz
andere Handhabe als die Vernunftkritik. Ihr
Begriff der „anschauenden Vernunft“, bei
Kant sehr vorsichtig als „regulative Idee“, als
Erkenntnisweise, die dem Menschen versagt
ist, gefaßt, gibt eine Perspektive auf die
Zusammengehörigkeit der antinomischen
Pole, ohne sie wirklich in lebendigem
Wechselverhältnis zu erblicken und
zugleich, ohne ihre Einheit in offen
eingestandene Mystik aufzulösen. Es ist ein
„zarter“ Agnostizismus.
György Lukács
376 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
3
Não é de admirar que Goethe tenha sido
reforçado na formulação filosófica das suas
tendências científicas por este mesmo livro
("Influência da nova filosofia", "juízo
intuitivo38"). Especialmente quando
Schelling transferiu essa forma de conhecer
com a "intuição intelectual" para o centro do
debate filosófico. Goethe, que estava mais
próximo de qualquer pensador
contemporâneo do que Schelling, foi
capaz de retornar ao seu ponto de partida
original: deixar a unidade dos opostos, que
é apreendida através da "intuição
intelectual", crescer organicamente a partir
da sua investigação singular, apreendê-la
como a essência da natureza, formular a
unidade dos fenômenos naturais como
movimento, como "metamorfose" e
substancializar filosoficamente o horizonte
místico-agnóstico da sua visão global. Não
é possível referir aqui em detalhes o
"pensamento juvenil sincero" de Schelling
(Marx para Feuerbach, 26 de outubro [3] de
1843), nem documentar a simpatia e a
concordância múltipla de Goethe em relação
a ele. Limito-me a salientar que até mesmo
surgiu o plano de um poema conjunto sobre
a natureza (carta de Goethe a Knebel, 1799,
Caroline a Schelling, 1800, etc). No entanto,
o decisivo para nós é que a relação acerca
Es ist kein Wunder, daß Goethe gerade
durch dieses Buch in der philosophischen
Formulierung seiner
naturwissenschaftlichen Tendenzen
bestärkt wurde („Einwirkung der neuen
Philosophie“, „Anschauende Urteilskraft“).
Insbesondere als Schelling diese
Erkenntnisweise mit der „intellektuellen
Anschauung“ in den Mittelpunkt der
philosophischen Debatte rückte. Goethe,
der keinem zeitgenössischen Denker näher
stand als gerade Schelling, ist es dadurch
erst möglich geworden, zu seinem
ursprünglichen Ausgangspunkt
zurückzukehren: die Einheit der
Gegensätze, die durch die „intellektuelle
Anschauung“ erfaßt wird, aus seinen
Einzelforschungen organisch
herauswachsen zu lassen, sie als Wesen der
Natur zu fassen, die Einheit der
Naturerscheinungen als Bewegung, als
„Metamorphose“, zu formulieren, den
mystisch-agnostizistischen Horizont seiner
Gesamtanschauung philosophisch zu
begründen. Es ist hier nicht möglich, über
den „aufrichtigen Jugendgedanken
Schellings“ (Marx an Feuerbach, 26. [3.]
Oktober 1843) ausführlich zu sprechen,
ebensowenig wie die Sympathie und die
vielfache Übereinstimmung Goethes mit ihm
38
[NT] O juízo intuitivo constitui a base essencial do método de investigação científica de Goethe, com
o qual desenvolveu a sua
Teoria das Cores
e
Metamorfose
.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 377
da concepção dos problemas dialéticos é
óbvia demais. O ponto central permanece: o
reconhecimento das contradições como
base da estrutura da realidade e a
descoberta de um ponto em que estas
contradições são superadas. A continuação
da “Crítica do juízo” por parte do jovem
Schelling, a concepção da - mística -
“intuição intelectual”, como um órgão com
o qual se percebe sua unidade, tem três
consequências importantes. Primeiro, a
superação dos opostos significa “encontrar”
uma esfera onde os opostos, as
contradições, se extinguem; a unidade dos
opostos é sua identidade absoluta. Em
segundo lugar, essa esfera da unidade dos
opostos está separada das contradições
encontradas na realidade por um abismo
que só pode ser superado por meio de um
salto, por meio da "intuição intelectual"
mística; a unidade reside como a base
(mística) por trás das contradições que
aparecem, mas não é mediada por elas: o
mundo das contradições e o mundo da
unidade ainda são dura e,
irreconciliavelmente opostos um ao outro,
as contradições se solidificam em
polaridades e a unidade torna-se mística.
Em terceiro lugar - para ter provas
empiricamente demonstráveis para esse
“órgão” místico de apreensão da unidade -
dokumentarisch zu belegen. Ich verweise
bloß darauf, daß sogar der Plan eines
gemeinsamen Gedichts über die Natur
aufgetaucht ist (Goethes Brief an Knebel,
1799, Caroline an Schelling, 1800 usw.).
Denn das r uns Entscheidende, die
Verwandtschaft in der Auffassung der
dialektischen Probleme, ist zu augenfällig.
Der zentrale Punkt bleibt dabei:
Anerkennung der Widersprüche als
Grundlage des Aufbaus der Wirklichkeit und
Auffinden eines Punktes, wo diese
Widersprüche aufgehoben werden. Die
Weiterführung der Kritik der Urteilskraft“
seitens des jungen Schelling, die Auffassung
der mystischen „intellektuellen
Anschauung“ als Organ, mit dessen Hilfe
ihre Einheit erblickt wird, hat drei: wichtige
Folgerungen. Erstens bedeutet die
Aufhebung der Gegensätze das „Auffinden“
einer Sphäre, wo die Gegensätze, die
Widersprüche, ausgelöscht sind; die Einheit
der Gegensätze ist ihre absolute Identitäth.
Zweitens ist diese Sphäre der Einheit der
Gegensätze von den in der Wirklichkeit
vorgefundenen Widersprüchen durch eine
Kluft getrennt, die nur durch einen Sprung,
durch die mystische, „intellektuelle
Anschauung“ genommen werden kann; die
Einheit liegt zwar als (mystischer) Grund den
erscheinenden Widersprüchen zugrunde, ist
h Vgl. z. B. Schelling: System des transzendentalen Idealismus. Werk I, III, 600, über Freiheit -
Notwendigkeit.
György Lukács
378 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
a arte recebe a função de demonstrar a
realidade da “intuição intelectual”.
aber mit ihnen nicht vermittelt: die Welt der
Widersprüche und die Welt der Einheit
stehen einander noch immer schroff und
unvereinbar gegenüber, die Widersprüche
erstarren zu Polaritäten, und die Einheit
wird eine mystische. Drittens um für
dieses mystische „Organ“ der Erfassung der
Einheit doch einen empirisch aufweisbaren
Beweis zu haben erhält die Kunst die
Funktion, die Realität der „intellektuellen
Anschauung“ nachzuweiseni.
É claro que seria um grande exagero
simplesmente designar Goethe como
schellingiano em função de sua
concordância com Schelling nessas
importantes questões metodológicas. Não.
Ele representa - com base nessas
concordâncias, que se baseiam em suas
velhas tendências - aqui uma nuance muito
particular. Esse matiz diferente se deve ao
fato de que ele transforma ideologicamente
o misticismo afirmativo de Schelling, que faz
afirmações positivas sobre a natureza do
universo, em um agnosticismo místico. A
unidade mística dos opostos permanece um
horizonte místico de sua visão de mundo,
que por um lado lhe permite não seguir o
método de construção de Schelling, para
ficar mais perto do empirismoj; ele,
Es wäre freilich eine starke Übertreibung,
Goethe infolge seiner Übereinstimmung mit
Schelling in diesen wichtigen
methodologischen Fragen einfach als
Schellingianer zu bezeichnen. Nein. Er
vertritt - auf Grundlage dieser
Übereinstimmungen, die auf seinen alten
Tendenzen beruhen - hier eine ganz
besondere Nuance. Diese abweichende
Schattierung beruht darauf, daß er
weltanschaulich den Schellingschen
affirmativen, über das Wesen des
Universums positive Aussagen machenden
Mystizismus in einen mystischen
Agnostizismus verwandelt. Die mystische
Einheit der Gegensätze bleibt ein mystischer
Horizont seiner Weltanschauung, die ihm
einerseits gestattet, die Schellingsche
i Schelling a. a. O., 625. Vgl. dazu zahllose Aussprüche Goethes, z. B. Das Schöne i-t eine Manifestation
geheimer Naturgesetze, die uns ohne diese Erscheinung ewig wären verborgen gewesen“, Sprüche in
Prosa, III. Abt.
j O fenómeno originário como o último, como limite do nosso conhecimento positivo: Se me acalmo
perante o fenômeno primordial, é também apenas resignação; mas permanece uma grande diferença
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 379
portanto, ocupa uma posição intermediária
entre a “Crítica do Juízo” e a filosofia de
identidade de Schelling. Por outro lado,
essa posição intermediária permite-lhe ao
mesmo tempo não participar do
desenvolvimento cada vez mais reacionário
da filosofia de Schelling, ou seja, manter
suas abordagens materialistas e dialéticas,
ainda que apenas como abordagens, bem
como manterk sua posição panteísta
“conciliatória” frente a religião. O que
Engels diz sobre Goethe é bastante correto:
“Goethe não gostava de lidar com 'Deus'; a
palavra o incomoda, ele se sente em casa
no humano..." (Werke II, 428), mas a
resultante "emancipação da arte dos
grilhões da religião" não foi alcançada
sem uma luta aberta contra a religião, mas
até com tolerância em relação a ela, na
medida em que ela não interfira em sua área
. Essa linha é contínua em Goethe. - Na
época dos estudos mais zelosos de
Spinoza, ele o chama de o filósofo “mais
cristão” (para F.] J. [! H.] Jacobi, 9 de junho
de 1785). Assim, no final da vida, ele
demarca os territórios da seguinte forma
"Como poeta e artista sou um politeísta,
mas como naturalista sou um panteísta.... Se
eu precisar de um Deus para a minha
Methode der Konstruktion nicht
mitzumachen, der Empirie näher zu bleiben;
er nimmt also eine Zwischenstellung
zwischen der „Kritik der Urteilskraft“ und
Schellings Identitätsphilosophie ein.
Andererseits gestattet diese
Zwischenstellung ihm zugleich, sowohl die
immer reaktionärer werdende Entwicklung
der Schellingschen Philosophie nicht
mitzumachen, also ihre materialistischen
und dialektischen Ansätze, wenn auch nur
als Ansätze, zu bewahren, wie seine
pantheistische Stellungnahme auch
weiterhin gegen die Religion
„versöhnlerisch“ zu halten. Es ist zwar ganz
richtig, was Engels über Goethe ausführt:
„Goethe hatte nicht gern mit ‚Gott‘ zu tun;
das Wort macht ihn unbehaglich, er fühlte
sich nur im Menschlichen heimisch ...“
(Werke II, 428), aber die daraus folgende
„Emanzipation der Kunst aus den Fesseln
der Religion“ vollzog er doch nicht nur ohne
oflenen Kampf gegen die Religion, sondern
sogar mit Duldsamkeit ihr gegenüber,
soweit sie sich nicht in seinen Bereich
mischt. Diese Linie ist bei Goethe
durchgehend. -So nennt er zur Zeit der
eifrigsten Spinoza-Studien Spinoza den
„allerchristlichsten“ Philosophen (an F. ]J.
entre resignar-me nos limites da humanidade e resignar-me dentro de uma hipotética limitação do meu
indivíduo limitado (Sprüche in Prosa, IV. Abt.); O homem deve persistir na crença de que o
incompreensível é compreensível; caso contrário, não perguntaria“ (ibidem).
k Refiro-me ao poema „Epikuräisches Glaubensbekenntnis“ de Heinz Widerporst para o jovem
Schelling, Werke I, IV, 546.Ronaldo: tem certeza que essa nota está bem localizada no texto?
György Lukács
380 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
personalidade como ser humano moral,
então isso também está previsto" (para
Jacobi, 6. janeiro 1813). E essa tolerância
não é um simples “compromisso com o
exterior”, mas uma consequência lógica do
agnosticismo, que está em seu “império
sutil” com um horizonte panteísta místico.
Basta ler a seguinte confissão de de
Fausto, que certamente expressa as
convicções mais profundas de Goethe, com
a réplica muito característica de Gretchen,
em que a ironia indubitavelmente oculta
nesta resposta de forma alguma nega nossa
afirmação:
[!H.] Jacobi, 9. Juni 1785). So grenzt er im
späten Alter die Gebiete folgendermaßen
ab: „Als Dichter und Künstler bin ich
Polytheist, Pantheist hingegen als
Naturforscher... Bedarf ich eines Gottes für
meine Persönlichkeit als sittlicher Mensch,
so ist dafür auch gesorgt“ (an Jacobi, 6.
Januar 1813). Und diese Duldsamkeit ist
kein einfaches „Kompromiß nach außen“,
sondern eine logische Folge des
Agnostizismus, der in seiner „zarten
Empire“ mit mystisch pantheistischem
Horizont steckt. Man lese bloß das folgende
Glaubensbekenntnis Fausts, das sicherlich
die tiefsten Überzeugungen von Goethe
ausdrückt, mit der sehr charakteristischen
Replik Gretchens, wobei die in dieser Replik
unzweifelhaft verborgene Ironie unsere
Feststellung keineswegs aufhebt:
Margarida:
Não crês em Deus?
Fausto:
Benzinho meu que lábios
Podem dizer: “Eu creio em Deus?”
Pergunta-o a sacerdotes, sábios,
E em réplica ouvirás dos seus
Escárnios, só, do indagador.
Margarida:
Não crês, então?
Fausto:
Compreende bem, meu doce coração!
Quem o pode nomear?
Quem professar:
„Eu creio nele?“
Quem conceber
E ousar dizer:
“Não creio nele”?
Margarete:
Glaubst du an Gott?
Faust:
Mein Liebchen, wer darf sagen:
Ich glaub an Gott?
Magst Priester oder Weise fragen,
Und Ihre Autwort scheint nur Spott
Über den Frager zu sein.
Margarete:
So glaubst du nicht?
Faust:
Mißhör mich nicht, du holdes Angesicht.
Wer darf ihn nennen?
Und wer bekennen:
Ich glaub ihn.
Wer empfinden
Und sich unterwinden
Zu sagen: Ich glaub ihn nicht?
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 381
Ele, do todo o abrangedor,
O universal sustentador,
Não abrange e não sustém ele
A ti, a mim, como a si próprio?
Lá no alto não se arqueia o céu?
Não jaz a terra aqui embaixo, firme?
E em brilho suave não se elevam
Perenes astros para o alto?
Não fita o meu olhar o teu,
E não penetra tudo
Ao coração e ao juízo teu,
E obra invisível, em mistério eterno,
Visivelmente ao lado teu?
Disso enche o coração, até ao extremo.
E quando transbordar de um êxtase supremo,
Então nomeio-o como queiras,
Ventura! Amor! Coração! Deus!
Não tenho nome para tal!
O sentido é tudo;
Nome é vapor e som,
Nublando ardor celeste.
Margarida:
Tudo isso há de ser belo e bom;
Diz nosso padre quase que o disseste,
Tão só de modo algo diverso.39
Der Allumfasser,
Der Allerhalter,
Faßt und erhält er nicht
Dich, mich, sich selbst?
Wölbt sich der Himmel nicht da droben?
Liegt die Erde nicht hier unten fest?
Und steigen freundlich blickend
Ewige Sterne nicht herauf?
Schau ich nicht Aug’ in Auge dir,
Und drängt nicht alles
Nach Haupt und Herzen dir,
Und webt im ewigen Geheimnis
Unsichtbar sichtbar neben dir?
Erfüll’ davon dein Herz, so groß es ist,
Und wenn du ganz in dem Gefühle selig bist,
Nenn’ es dann, wie du willst,
Nenn’s Glück! Herz! Liebe! Gott!
Ich habe keinen Namen
Dafür! Gefühl ist alles;
Name ist Schall und Rauch,
Umnebelnd Himmelsglut.
Margarete:
Das ist alles recht schön und gut;
Ungefähr sagt das der Pfarrer auch,
Nur mit ein bißchen anderen Worten.
4
Essa posição de Goethe determina seu
posicionamento sobre a forma mais
desenvolvida do método dialético, sobre a
filosofia de Hegel. Goethe e Hegel foram
pessoalmente próximos um do outro ao
longo de suas vidas e se valorizaram muito
reciprocamente. E essa amizade também
Diese Position Goethes bestimmt seine
Stellungnahme zur entwikkeltsten Form der
dialektischen Methode, zur Philosophie
Hegels. Goethe und Hegel standen einander
zeitlebens persönlich nahe und schätzten
einander gegenseitig sehr hoch ein. Und
diese Freundschaft hatte auch eine
39
[NT] GOETHE;
Fausto: uma tragédia
, primeira parte, tradução de Jenny Klabin Segall; São Paulo:
Editora 34, 2016; p. 381-2.
György Lukács
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teve uma - aliás nunca expressa - base na
declaração muito semelhante sobre os
grandes acontecimentos internacionais de
seu tempo: o período de Napoleão e sua
derrubada. Ambos viam na França
napoleônica o estado e o ideal social que
correspondiam à sua posição de classe (a
grande burguesia como líder de um
movimento totalmente burguês); ambos
rejeitaram friamente a "guerra pela
liberdade" alemã com levante patriótico;
ambos eram basicamente negativos às
ideologias de restauração do Romantismo -
embora não sem que ambos tivessem se
apropriado muito do Romantismo em seu
pensamento etc. No entanto, por trás dessa
postura básica afim, há também uma visível
diferença acentuada. Goethe rejeitou
veementemente a Revolução Francesa;
como resultado, Napoleão tornou-se, aos
seus olhos, apenas o conquistador, mas não
o herdeiro da Revolução Francesa; sua
imagem adquiriu assim algo de “irracional”,
“demoníaco”, como dizia Goethe para
Hegel; por outro lado, a Revolução Francesa
pertenceu necessariamente à estrutura
gradual da filosofia da história e foi, por
conseguinte, um momento necessário de
desenvolvimento para todo o sistema de
Hegel; com a ressalva, é claro, de que para
o Hegel maduro, a Revolução Francesa
cumpriu esse papel como um passado (que
na Alemanha não pode se tornar o
presente).
übrigens nie ausgesprochene Grundlage
in der sehr ähnlichen Stellungnahme zu den
großen internationalen Ereignissen ihrer
Zeit: zur Periode Napoleons und seines
Sturzes. Beide sahen im napoleonischen
Frankreich das staatliche und
gesellschaftliche Ideal, das ihrer
Klassenposition (der Großbourgeoisie als
Führerin einer gesamtbürgerlichen
Bewegung) entsprach; beide lehnten den
deutschen „Freiheitskrieg“ mit seinem
patriotischen Aufschwung kühl ab; beide
standen im Grunde ablehnend zu den
Restaurationsideologien der Romantik -
allerdings nicht ohne daß sie beide viel aus
der Romantik ihrem Denken angeeignet
hätten usw. Jedoch hinter dieser
verwandten Grundhaltung ist zugleich eine
scharfe Differenz sichtbar. Goethe lehnte die
französische Revolution leidenschaftlich ab;
dadurch wurde Napoleon in seinen Augen
bloß zum Überwinder, nicht aber zum Erben
der französischen Revolution; sein Bild
erhielt damit etwas „Irrationales“,
„Dämonisches“, wie Goethe zu sagen
pflegte. Bei Hegel hingegen gehörte die
französische Revolution notwendig in den
Stufenbau der Geschichtsphilosophie hinein
und war dementsprechend r das ganze
System Hegels ein notwendiges Moment
der Entwicklung; freilich mit der
Beschränkung, daß für den reifen Hegel die
französische Revolution als Vergangenes
(das in Deutschland nicht zur Gegenwart
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 383
werden kann) diese Rolle erhielt.
Afinal , a revolução tornou-se assim parte
da dialética hegeliana. Aqui, claro, se
pode afirmar e não provar que tanto o
progresso da dialética de Hegel em
comparação com todas as suas
antecessoras, a nova versão da unidade de
contradições como princípio móvel da
realidade (obviamente idealista: como o
"automovimento do conceito"), sua
implementação em categorias transitórias
decisivas (quantidade e qualidade,
concepção das determinações de reflexão,
linha nodal das relações de medida, etc.),
bem como seus limites idealistas, que são
ao mesmo tempo limites para a
implementação consistente da dialética,
estão intimamente relacionados a esta
concepção da revolução. Mas o mero
estabelecimento do fato é suficiente para
esclarecer a diferença entre a concepção de
dialética de Hegel e todas as anteriores,
incluindo a de Goethe. Cabe apenas
mostrar, com a ajuda de alguns exemplos,
como essa diferença foi expressa em Goethe
e que consequências teve para a sua visão
global.
Immerhin wurde damit die Revolution zum
Bestandteil der Hegelschen Dialektik. Hier
kann freilich nur behauptet und nicht belegt
werden, daß sowohl der Fortschritt der
Hegelschen Dialektik im Vergleich zu allen
ihrer Vorgänger, die neue Fassung der
Einheit der Widersprüche als bewegendes
Prinzip der Wirklichkeit (freilich idealistisch:
als „Selbstbewegung des Begriffs“), ihre
Durchführung in entscheidenden
Übergangskategorien (Quantität und
Qualität, Auffassung der
Reflexionsbestimmungen, Knotenlinie der
Maßverhältnisse usw.), wie auch seine
idealistischen Schranken, die zugleich
Schranken der konsequenten Durchführung
der Dialektik sind, aufs engste mit dieser
Auffassung der Revolution
zusammenhängen. Aber die bloße
Feststellung der Tatsache genügt, um die
Differenz der Hegelschen Auffassung der
Dialektik von allen früheren Goethes mit
inbegriffen klarzulegen. Es kommt nur
noch darauf an, an der Hand einiger
Beispiele zu zeigen, wie diese Differenz bei
Goethe zum Ausdruck kam und welche
Folgen sie für seine Gesamtanschauung
hatte.
A amizade bem fundada em termos de
identidade de classe entre Goethe e Hegel,
a diplomacia mútua em suas declarações,
torna isso um tanto difícil, mas não
Die klassenmäßig wohlfundierte
Freundschaft zwischen Goethe und Hegel,
ihre gegenseitige Diplomatie in ihren
Äußerungen macht dies etwas schwierig,
György Lukács
384 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
impossível. Após a publicação da Lógica de
Hegel, temos uma declaração pessoal de
Goethe sobre um novo ponto muito
essencial em seu método, a transformação
da quantidade em qualidade. "Suponho que
não é possível dizer nada mais monstruoso.
Querer destruir a realidade eterna da
natureza por uma sofística piada de mau
gosto parece-me indigno de um homem
razoável". (Briefkonzept an Seebeck, 28.
November 1812.) Pelo que a sua
indignação aparentemente, como se pode
ver pela citação referida, enfatizava a
transformação violenta, a submersão de
uma figura por outra, em vez da
"metamorfose" puramente evolutiva. Bem
na mesma linha, é que ele, no Berlin
Naturforschende Versammlung
(provavelmente sob a influência de Hegel ou
dos seus estudantes), escreveu um belo
verso, genuinamente dialético: "Pois tudo
deve decair em nada se quiser persistir em
ser", em letras douradas, escreveu
imediatamente um contra-poema: "Nenhum
ser pode se dissolver no nada", a fim de
refutar a sua própria "estupidez". (Conversa
com Eckermann, 12 de fevereiro de
182940). É claro que uma diferença
decisiva aqui. E Hegel, mesmo que
aparentemente não conhecesse a dura
rejeição de Goethe, resultado de seu
aber nicht unmöglich. Nach
Veröffentlichung der Hegelschen Logik
besitzen wir eine intime Äußerung Goethes
über einen sehr wesentlichen neuen Punkt
seiner Methode, des Umschlagens der
Quantität in Qualität. Es ist wohl nicht
möglich etwas Monströseres zu sagen. Die
ewige Realität der Natur durch einen
schlechten sophistischen Sp vernichten
zu wollen, scheint mir eines vernünftigen
Mannes unwürdig.“ (Briefkonzept an
Seebeck, 28. November 1812.) Wobei seine
Empörung offenbar, wie aus dem von ihm
angeführten Zitat ersichtlich ist, das
gewaltsame Umschlagen, das Untergehen
der einen Gestalt durch die andere, an Stelle
der rein evolutionären „Metamorphose“
hervortief. Ganz in derselben Richtung liegt,
daß er, als die Berliner Naturforschende
Versammlung (wahrscheinlich unter dem
Einfluß Hegels oder seiner Schüler) seine
schönen, echt dialektischen Verse: Denn
alles muß in Nichts zerfallen, wenn es im
Sein beharren will“, in goldenen Buchstaben
ausgestellt hat, sogleich ein Gegengedicht:
„Kein Wesen kann zu Nichts zerfallen“
schrieb, um seine eigene „Dummheit“ zu
widerlegen. (Gespräch mit Eckermann, 12.
Februar 1829.). Daß es sich hier um eine
entscheidende Differenz handelt, ist klar.
Und Hegel hat, wenn ihm auch offenbar
40
[NT] ECKERMANN, Johann;
Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida -1823-1832
; São
Paulo: Editora UNESP, 2016; p. 306.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 385
comportamento diplomático, enfatizou
muito cuidadosa e diplomaticamente o
ponto crucial de sua diferença, a insistência
de Goethe sobre o fenômeno originário,
causada pela incapacidade de captar a
unidade viva das contradições inerentes aos
objetos imanentes e não místico-
agnósticos, isto é, transcendentes. Assim
ele escreve sobre o fenômeno originário “A
metamorfose das plantas de Goethe deu
origem a um pensamento racional sobre a
natureza das plantas ao arrancar a ideia do
foco sobre meros detalhes para reconhecer
a unidade da vida. A identidade dos órgãos
é predominante na categoria de
metamorfose; a diferença definitiva e a
função peculiar dos membros, pelos quais o
processo de vida é definido, são o outro
lado necessário para essa unidade
substancial” (
Enciclopédia
, parágrafo 345,
adendo). E em uma carta minuciosa
endereçada a Goethe (24 de fevereiro de
1821), ele tenta muito cuidadosamente
interpretar os fenômenos originários como
meras formas de transição para a
compreensão dialética do contexto geral.
“Nesse crepúsculo (ou seja, o fenômeno
originário), espiritual e compreensível pela
sua simplicidade, visível ou tangível pela
sua sensibilidade, os dois mundos se
cumprimentam: o pensamento dialético e a
“existência aparente”.
infolge von Goethes Diplomatie dessen
schroffe Ablehnung nicht bekannt wurde,
sehr vorsichtig und diplomatisch den
springenden Punkt ihrer Differenz, das
Stehenbleiben Goethes beim Urphänomen,
verursacht durch die Unfähigkeit, die
lebendige, den Gegenständen
innewohnende Einheit der Widersprüche
immanent und nicht mystisch-
agnostizistisch, transzendent zu fassen,
hervorgehoben. So schreibt er über das
Urphänomen: „Goethes Metamorphose der
Pflanzen hat den Anfang eines vernünftigen
Gedankens über die Natur der Pflanzen
gemacht, indem sie die Vorstellung aus der
Bemühung um bloße Einzelheiten zum
Erkennen der Einheit des Lebens gerissen
hat. Die Identität der Organe ist in der
Kategorie der Metamorphose überwiegend;
die bestimmte Differenz und die
eigentümliche Funktion der Glieder,
wodurch der Lebensprozeß gesetzt ist, ist
aber die andere notwendige Seite zu jener
substanziellen Einheit.“ (Enzyklopädie,
Paragraph 345, Zusatz.) Und in einem
ausführlichen Brief an Goethe (24. Februar
1821) versucht er sehr vorsichtig die
Urphänomene als bloße Übergangsformen
zur dialektischen Erfassung des
Gesamtzusammenhanges zu deuten. „In
diesem Zwielichte (nämlich des
Urphänomens), geistig und begreiflich
durch seine Einfachheit, sichtbar oder
greiflich durch seine Sinnlichkeit, begrüßen
György Lukács
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einander die beiden Welten“: das
dialektische Denken und „das erscheinende
Dasein“l.
Essa diferença entre Goethe e Hegel se faz
presente em toda a estrutura dos
respectivos sistemas e métodos. A
consequência disso é que Goethe ignorou
descuidadamente a inovação mais
importante da dialética (a segunda parte da
lógica da essência), embora seria
justamente ali que ele poderia ter
encontrado a chave para a solução filosófica
de muitas questões que o ocuparam ao
longo de sua vida e às quais ele nunca foi
realmente capaz de responder. (Coisa-em-
si, coisa e atributo, “interno” e “externo”
etc.) Mas a rejeição da transição “repentina”
da quantidade para a qualidade bloqueou o
caminho de Goethe para compreender a
dialética do abstrato e do concreto, a
dialética da aparência e da essência etc.
Para Goethe, quantidade e qualidade
permaneceram “os dois polos da existência
aparente”, que não podem ser mediados
dialeticamente entre si. É por isso que, para
Goethe, a física e a matemática também
devem permanecer separadas uma da outra.
"A primeira deve persistir em uma
independência resoluta e procurar penetrar
na natureza e na vida sagrada com todos os
Diese Differenz zwischen Goethe und Hegel
setzt sich im ganzen Aufbau beider Systeme
und Methoden durch. Sie hat zur Folge, daß
Goethe gerade an der bedeutendsten
Neuerung in der Dialektik (an dem zweiten
Teil der Logik des Wesens) achtlos
vorbeiging, obwohl er gerade dort den
Schlüssel zur philosophischen Lösung vieler
Fragen, die ihn sein ganzes Leben lang
beschäftigten und die er nie wirklich zu
beantworten imstande war, hätte finden
können. (Ding an sich, Ding und
Eigenschaft, „Inneres“ und „Äußeres“ usw.)
Aber schon die Ablehnung des „plötzlichen“
Übergangs von Quantität in Qualität
versperrte Goethe den Weg dazu, die
Dialektik des Abstrakten und Konkreten, die
Dialektik von Erscheinung und Wesen usw.
zu begreifen. Quantität und Qualität blieben
für Goethe „die zwei Pole des
erscheinenden Daseins“, die miteinander
nicht dialektisch vermittelt werden können.
Darum müssen für Goethe auch Physik und
Mathematik voneinander getrennt bleiben.
„Jene muß in einer entschiedenen Unab--
hängigkeit bestehen und mit allen
liebenden, verehrenden, frommen Kräften in
l É tão característico da posição intermédia de Goethe que o idealista subjetivo, Schiller, julgou assim o
mesmo fenômeno originário: "Isso não é experiência, isso é uma ideia" (nomeadamente no sentido
kantiano), os
Anais de Goeth
e 1794.
Lukács sobre Goethe
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poderes amorosos, adoradores e piedosos,
sem se preocupar muito com o que a
matemática faz e executa de sua parte".
(Provérbios em Prosa, IV. Seção). Ao mesmo
tempo, portanto, que Hegel empreende a
tentativa de conceber a matemática como
um elemento da dialética geral, Goethe
permanece, com esta separação precisa,
com o banimento da matemática da
pesquisa natural concreta, na melhor das
hipóteses, portanto, com o reconhecimento
da matemática ao lado da ciência natural,
independente dela, como um dos dois
ramos do conhecimento.
die Natur und das heilige Leben
einzudringen suchen, ganz unbekümmert,
was die Mathematik von ihrer Seite tut und
leistet.“ (Sprüche in Prosa, IV. Abt.) Zur
selben Zeit also, wo Hegel den Versuch
unternimmt, die Mathematik als Bestandteil
der Gesamtdialektik aufzufassen, bleibt
Goethe: bei’ dieser genauen Trennung, bei
der Verbannung der Mathematik aus der
konkreten Naturforschung, bestenfalls also
bei der Anerkennung der Mathematik zeben
der Naturwissenschaft, unabhängig von ihr,
als eines der zwei Zweige der Erkenntnis
stehen.m
As críticas de Hegel em essência afiadas e
precisas, por mais diplomáticas que sejam,
tocam assim no cerne da dialética de
Goethe: Goethe reconhece a contradição
nos fenômenos (e consequentemente
também no pensamento), mas como, por
razões de classe, ele queria reconhecer
unilateral e exclusivamente a evolução, a
transição gradual, sem saltos e não violenta
de um fenômeno para outro, ele teve que se
fechar em relação aos aspectos novos e
pioneiros da dialética de Hegeln.
Die, wenn auch noch so diplomatisch
ausgedrückte; aber dem Wesen nach
scharfe und treffende Kritik Hegels berührt
also den Kernpunkt der Goetheschen
Dialektik: Goethe erkennt den Widerspruch
in den Erscheinungen (und demzufolge auch
im Denken) an, da er aber, aus
klassenmäßigen Gründen, einseitig und
ausschließend nur die Evolution, den
allmählichen, sprunglosen, gewaltlosen
Übergang der einen Erscheinung in die:
andere anerkennen wollte, mußte er sich
m "Sobre a Matemática e o seu Abuso" (1826). Esta opinião de Goethe é exatamente paralela à sua
opinião sobre Lineu e Cuvier e está intimamente relacionada com ela; em ambos os casos é uma questão
da sua incapacidade de incluir as "determinações de reflexão" na sua dialética. Neste sentido ele difere
muito do Romantismo reacionário, que, na sua luta contra o materialismo mecânico, caiu num misticismo
selvagem. No entanto, os elementos místicos também estão presentes em Goethe, e a forma como se
salva das piores consequências é precisamente com base em uma posição fundamentalmente
inconsistente.
n O hegeliano de direita Goeschel observa corretamente que a rejeição do vulcanismo em geologia por
Goethe está intimamente relacionada com a sua rejeição da revolução na história. (Hegel e seu tempo,
p. 18-19).
György Lukács
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gerade vor dem Neuen und
Bahnbrechenden in Hegels Dialektik
verschließen.
A consequência disso, entretanto, é que
quando ele estabelece conexões dialéticas
singulares na natureza, ele se limita aos
fenômenos originários e rejeita o
reconhecimento da conexão geral ou se
perde no misticismo em sua formulação
conceitual. Damos apenas um exemplo
característico:
Das hat aber dann zur Folge, daß er, bei der
Feststellung von einzelnen dialektischen
Zusammenhängen in der Natur, bei den
Urphänomenen stehenbleibt und für den
Gesamtzusammenhang entweder die
Erkennbarkeit ablehnt oder sich bei seiner
gedanklichen Fassung in Mystik verliert. Wir
führen nur cin charakteristisches Beispiel an:
Todos os efeitos, sejam eles de que tipo forem,
que observamos na experiência, estão ligados
da maneira contínua, fundem-se uns aos outros,
ondulam do primeiro ao último. Que eles devem
ser separados uns dos outros, opostos uns dos
outros, misturados uns com os outros, é
inevitável, ... mas um conflito sem limites deve,
portanto, surgir nas ciências. O pedantismo
rígido e discriminatório e o misticismo
escabroso trazem o mesmo mal-estar. Mas essas
atividades, desde as mais medíocres até as mais
elevadas, desde o tijolo que cai do telhado até o
clarão luminoso de inspiração que amanhece
em voe que você comunica, são amarradas
juntas. Tentamos dizer isto. Por acaso
Mecanicamente
Fisicamente
Quimicamente
Orgânicamente
Mentalmente
Eticamente
Religiosamente
Genialmente.
(Suplementos à teoria das cores, 31)
Alle Wirkungen, von welcher Art sie seicn, die
wir, in der Erfahrung bemerken, hängen auf die
stetigste Weise zusammen, gehen ineinander
über, sie undulieren von der ersten bis zur
letzten. Daß man sie voneinander trennt, sie
einander entgegensetzt, sie untereinander
vermengt, ist unvermeidlich, :. doch mußte
daher in den Wissenschaften ein grenzenloser
Widerstreit entstehen. Starre scheidende
Pedanterie und verflößender Mystizismus
bringen beide gleiches Unheil. Aber jene
Tätigkeiten, von der gemeinsten bis zur
höchsten, vom Ziegelstein, der dem Dache
entstürzt, bis zum leuchtenden Geistesblitz, der
dir. aufgeht und den du mitteilst, reihen sich
aneinander. Wir versuchen es auszusprechen.
Zufällig
Mechanisch
Physisch
Chemisch
Organisch
Psychisch
Ethisch
Religiös
Genial.
(Nachträge zur Farbenlehre, 31)
Isso é, em suas conclusões, misticismo
romântico. É muito significativo que o
desenvolvimento da sequência de etapas de
Goethe, ao se tratar do homem, evite todos
Das ist in seinen Schlußfolgerungen
romantischer Mystizismus. Es ist dabei sehr
bezeichnend, daß Goethes Entwicklung der
Stufenfolge, sobald sie zum Menschen
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 389
os contextos históricos e leve em
consideração apenas o homem singular.
Esse é um limite fundamental de Goethe,
aquele que mais fortemente influenciou
tanto sua poesia quanto seu pensamento
(incluindo seu pensamento sobre a
natureza, como vimos). Ele, o observador
atento das conexões dialéticas na natureza,
nos homens singulares, na convivência
privada dos homens singulares, também na
base social de seu ser privado, fechou-se ao
longo de sua vida ao conhecimento da
dialética da história, da sociedade como um
todo. Aceitou a história e a sociedade como
dadas, mistificou - "cientificamente" - um
"eterno devir", uma evolução delas, também
mistificou como “demoníaco” o destino
singular, ali onde uma compreensão das
conexões sociais em seu movimento teria
sido necessária etc. (Sobre ele mesmo,
Napoleão, Byron etc., em Eckermann, ver em
Poesia e Verdade
.) Apesar de toda a sua
universalidade, a economia foi um livro com
sete selos41 para ele, e mesmo que
ocasionalmente identificasse a penetração
do capitalismo na agricultura (por exemplo,
em
Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister
42), tudo isso é possível caso se
encaixe em seu quadro evolucionista geral:
kommt, allen geschichtlichen
Zusammenhängen aus dem Wege geht und
nur den Einzelmenschen in Betracht zieht.
Dies ist eine grundlegende Schranke
Goethes, die sowohl seine Dichtung wie sein
Denken (auch sein Denken über die Natur,
wie wir gesehen haben) aufs stärkste
beeinflußte. Er, der scharfäugige
Beobachter dialektischer Zusammenhänge
in der Natur, im Einzelmenschen, im
privaten Zusammenleben von
Einzelmenschen, auch in der
gesellschaftlichen Grundlage ihres privaten
Seins, verschloß sich zeit seines Lebens vor
der Erkenntnis der Dialektik der Geschichte,
der Gesellschaft in ihrer Gesamtheit. Er
nahm Gesellschaft und Geschichte als
gegeben hin, mystifizierte
„naturwissenschaftlich“ ein ewiges
Werden“, eine Evolution in sie hinein,
mystifizierte auch das Einzelschicksal,
sobald zu einem Verständnis die Erkenntnis
gesellschaftlicher Zusammenhänge in ihrer
Bewegung notwendig gewesen wäre, als
„dämonisch“ usw. (Über sich selbst,
Napoleon, Byron usw., bei Eckermann, in
„Dichtung und Wahrheit.) Bei all seiner
Universalität war ihm die Ökonomie ein
Buch mit sieben Siegeln, und wenn er auch
41
[NR] Livro com sete selos é referido na bíblia no (À direita de Deus, João viu um livro selado com sete
selos escrito por dentro e por fora (Apoc. 5:1). Ninguém podia abrir, nem ler e nem olhar para aquele
livro (Apoc. 5:2-4). O único que podia abrir o livro era o Leão da tribo de Judá, que representa Jesus
Cristo (Apoc. 5-7).
42
[NT] GOETHE;
Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister
; trad. Nicolino Simone Neto; São Paulo:
Editora Ensaio, 1994.
György Lukács
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não ameace romper o amálgama pacífico
entre a nobreza e a burguesia. A dialética
de Hegel foi baseada em uma - embora
distorcida de maneira idealista - elaboração
intelectual da Revolução Francesa e da
revolução industrial na Inglaterra (Adam
Smith, Ricardo). Goethe não concordou com
esse desenvolvimento. É por isso que ele
teve que rejeitar suas reflexões intelectuais.
ab und zu das Eindringen des Kapitalismus
in die Landwirtschaft (z. B. in Wilhelm
Meisters Lehrjahren) gut geschildert, so ist
all dies nur so weit möglich, als es seinen
evolutionistischen Gesamtrahmen: die
friedliche Verschmelzung von Adel und
Bourgeoisie nicht zu sprengen droht.
Hegels Dialektik fußte auf einer - wenn auch
idealistisch verzerrten gedanklichen
Durcharbeitung der französischen
Revolution und der industriellen Revolution
in England (Adam Smith, Ricardo). Diese
Entwicklung hat Goethe nicht mitgemacht.
Darum mußte er auch ihre gedanklichen
Spiegelbilder ablehnen.
Der Marxist, 5/1932
Der Aufsatz wurde erstveröffentlicht in: Der Marxist, Blätter der Marxistischen
Abenschule, II. Jahrgang Heft 5, Sommer 1932, S. 13-24, OCR-scan red. trend
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 391
Was ist uns heute Goethe?
O que é Goethe para nós hoje?
Para a classe burguesa, esta pergunta não
é difícil de responder mesmo hoje: ele é a
pessoa exemplar por excelência. Às
vésperas da revolução de 48, Grün43, o
frívolo “verdadeiro socialista”, celebrava
Goethe como a imagem ideal, como o
conquistador de todas as revoluções, como
um precursor dos tempos, que estava um
século à frente de seus contemporâneos,
que havia resolvido todos os problemas
de desenvolvimento social, tanto intelectual
quanto poeticamente, antes ainda que
tivessem emergido concretamente na
realidade histórica. Com isso, Grün apenas
repetiu as frases dos glorificadores
anteriores de Goethe. No entanto, embora
superficial e desajeitadamente, ele repetiu
os motivos intelectuais essenciais que,
através de Simmel, Gundolf e outros
espíritos proeminentes do período
imperialista na Alemanha, se tornaram
propriedade intelectual comum da
intelectualidade burguesa, na verdade, de
toda a classe burguesa. Começando com o
Grünschen Sudelei
, Engels caracterizou
brilhantemente toda essa tendência. Grün
elogia todo o filistinismo de Goethe como
humano, faz do frankfurtiano e do
funcionário público Goethe um 'homem de
Für die bürgerliche Klasse ist diese Frage
auch heute nicht schwer zu beantworten: er
ist der vorbildliche Mensch schlechthin. Der
seichte „wahre Sozialist“ Grün hat, am
Vorabend der achtundvierziger Revolution,
Goethe als Idealbild, als Überwinder jeder
Revolution, als Vorwegnehmer der Zeit
gefeiert, der seinen Zeitgenossen um ein
Jahrhundert voraus war, der alle Probleme
der gesellschaftlichen Entwicklung
gedanklich wie dichterisch früher gelöst
habe, bevor sie in der geschichtlichen
Wirklichkeit konkret hervorgetreten wären.
Grün hat damit nur die Phrasen der früheren
Goethe-Verherrlicher nachgeplappert. Er
hat aber, wenn auch flach und ungeschickt,
die wesentlichen gedanklichen Motive
vorgeplappert, die dann durch Simmel,
Gundolf und andere führende Geister der
imperialistischen Periode in Deutschland
zum geistigen Gemeingut der bürgerlichen
Intelligenz, ja der ganzen bürgerlichen
Klasse geworden sind. Engels hat, von der
Grünschen Sudelei ausgehend, diese ganze
Richtung glänzend charakterisiert. „Grün
preist alle Philistereien Goethes als
menschlich, er macht den Frankfurter und
Beamten Goethe zum ‚wahren Menschen‘,
während er alles Kolossale und Geniale
43
[NT] Ver nota 26.
György Lukács
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verdade', enquanto ignora ou até cospe em
tudo que é colossal e engenhoso. De tal
forma que esse livro fornece a prova mais
brilhante de que o homem = o pequeno-
burguês alemão” (carta a Marx, 15 de
janeiro de 1847). Muito embora os
glorificadores posteriores de Goethe
superem Grün em suas declarações
individuais, essa característica básica, a
idealização dos lados mesquinhos e filisteus
da aparência geral de Goethe, também
constitui seu traço essencial. Só depois que
o "homem" perdeu gradual e
completamente todos os elementos da
revolução burguesa que ele teve em
Feuerbach no curso do desenvolvimento da
classe burguesa, eles puderam ter essa
característica muito mais facilmente do que
Grün, que escreveu em um período
preparatório da revolução burguesa e
realizou o achatamento burguês de
Feuerbach por intermédio de Goethe. Se,
por exemplo, Gundolf pode transformar
Goethe em um precursor ideológico de
Nietzsche e Bergson, ele o faz de forma
mais desinibida, mais artística”, “mais
profunda” do que o velho Grün, embora o
cerne da visão de classe permaneça
semelhante, embora, porém, o todo de
interpretar Goethe não mude de forma
decisiva. Pois o fato de que agora, do ponto
de vista da burguesia em declínio da época
imperialista, grandes traços individuais de
Goethe são agora reinterpretados como
übergeht oder gar bespuckt. Dergestalt,
daß dieses Buch den glänzendsten Beweis
liefert, daß der Mensch = der deutsche
Kleinbürger“ (Brief an Marx, 15. Jänner
1847). Mögen die späteren Verherrlicher
Goethes Grün in ihren Einzelausführungen
weit übertreffen, dieser Grundzug, die
Idealisierung der kleinlichen, philisterhaften
Seiten von Goethes Gesamterscheinung
bildet auch ihren Wesenszug. Nur haben
sie’s, nachdem „der Mensch“ im Laufe der
Entwicklung der rgerlichen Klasse alle
Elemente der bürgerlichen Revolution, die
er bei Feuerbach hatte, allmählich
vollständig verlor, viel leichter als Grün, der
in einer Vorbereitungsperiode der
bürgerlichen Revolution schrieb und die
spießbürgerliche Verflachung Feuerbachs
durch das Medium Goethe vollzog. Wenn
etwa Gundolf aus Goethe einen
weltanschaulichen Vorläufer Nietzsches und
Bergsons macht, so kann er dies
ungehemmter, „künstlerischer“, „tiefer“
machen als der alte Grün, obwohl der Kern
des Klassenstandpunktes ähnlich bleibt,
obwohl deshalb die Methode der
Interpretation Goethes sich nicht
entscheidend ändert. Denn die Tatsache,
daß nunmehr vom Standpunkt der
niedergehenden Bourgeoisie der
imperialistischen Epoche auch einzelne
große Züge Goethes ins Philisterhafte
umgedeutet werden, daß der Gundolfsche
Philister großartige ästhetisch-
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 393
filisteus, que o filisteu Gundolf assuma
grandes ares estético-filosóficos, etc., não
pode mudar fundamentalmente a essência
da questão
philosophische Allüren annimmt usw., kann
am Wesen der Sache nichts Grundlegendes
ändern.
Para o proletariado, a questão Goethe é
muito menos simples. Pois aqui se trata de
trabalhar concretamente as características
colossais com a ajuda da dialética
materialista e, ao mesmo tempo, desvendar
sua conexão com o filisteu, suas raízes
comuns no ser social de Goethe. Não basta
expor as falsificações de Goethe pelos
literatos burgueses, para combater o
aspecto filisteu de Goethe. Isso resultaria no
máximo em uma comparação proudhoniana
e não dialética de seus lados “bom” e
“mau”. É igualmente insuficiente - como fez
Mehring - considerar a glorificação da
burguesia por Goethe como um tipo de
ferrugem da qual sua estátua poderia ser
limpa. Mehring foge da questão dialética
verdadeira quando encerra um ensaio
fortemente polêmico escrito contra os
apologistas burgueses de Goethe como
segue: “Mas podemos ver o dia aproximar-
se cada vez mais, quando as nuvens terão
desaparecido, o que hoje o deixa (o sol
de Goethe - G. L.) brilhar com uma luz fraca.
O dia em que o povo alemão se libertar
econômica e politicamente será o jubileu de
Goethe, porque a arte passará a ser
propriedade comum de todo o povo.”
(
Goethe e o presente
, 1899, Wk. I, 99). Pois
Für das Proletariat liegt die Frage Goethe
viel weniger einfach. Denn hier handelt es
sich darum, die kolossalen Züge mit Hilfe
der materialistischen Dialektik konkret
herauszuarbeiten und zugleich ihren
Zusammenhang mit dem Philisterhaften,
ihre gemeinsame Wurzel im
gesellschaftlichen Sein Goethes
aufzudecken. Es genügt nicht, die Goethe-
Fälschungen der bürgerlichen Literaten zu
entlarven, das Philisterhafte an Goethe zu
bekämpfen. Damit käme man höchstens zu
einer proudhonistischen und nicht zu einer
dialektischen Gegenüberstellung seiner
„guten“ und „schlechten“ Seiten. Es genügt
ebensowenig wie Mehring es tat die
Goethe- Verherrlichung der Bourgeoisie als
eine Art Rost aufzufassen, von dem sein
Standbild gereinigt werden könnte. Mehring
weicht vor der eigentlichen dialektischen
Fragestellung aus, wenn er einen scharf
polemischen Aufsatz gegen die
bürgerlichen Goethe-Apologeten so
schließt: „Wohl aber sehen wir den Tag
näher und näher heranrücken, wo die
Wolken verschwunden sein werden, die sie
(die Sonne Goethes - G. L.) heute nur mit
gedämpftem Lichte strahlen lassen. Der
Tag, an dem das deutsche Volk sich
György Lukács
394 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
é imediatamente claro que o legado de
Goethe que o proletariado revolucionário
está disposto a assumir não inclui todo
Goethe em nenhuma circunstância. E é
precisamente a experiência na questão do
legado filosófico no caso de Hegel que a
inversão materialista não é simplesmente
uma reversão de sinais, uma “remoção” dos
“componentes” idealistas enquanto mantém
o “método” inalterado, mas um real re-
arranjamento crítico dialético-materialista,
uma elaboração crítica, tanto do método
quanto dos resultados, tanto o conteúdo
quanto da forma.
ökonomisch und politisch befreit hat, wird
Goethes Jubeltag werden, weil an ihm die
Kunst ein Gemeingut des ganzen Volkes
werden wird“ (Goethe und die Gegenwart,
1899, Wk. I, 99). Denn es ist ohne weiteres
klar, daß das Goethe-Erbe, das das
revolutionäre Proletariat anzutreten gewillt
ist, unter keinen Umständen den ganzen
Goethe umfaßt. Und gerade die Erfahrungen
in der Frage des philosophischen Erbes im
Falle Hegel zeigt deutlich, daß die
materialistische Umstülpung nicht einfach
eine Umkehrung der Vorzeichen, eine
„Entfernung“ der idealistischen
„Bestandteile“ bei unveränderter
Beibehaltung der „Methode“ ist, sondern
eine wirkliche, dialektisch-materialistische,
kritische Umknetung, Durcharbeitung,
sowohl der Methode wie der Resultate,
sowohl des Inhalts wie der Form.
A questão é relativamente mais simples
para Hegel do que para Goethe. Em
primeiro lugar, porque as questões da
filosofia foram esclarecidas com muito mais
clareza do que as dos poetas por meio das
discussões muito conhecidas, mas
apenas agora trabalhados, a partir dos
escritos publicados de Marx, Engels e Lenin,
inclusive os recentemente publicados. Em
segundo lugar, porque a posição de Hegel
nas grandes lutas de classes histórico-
mundiais de seu tempo é muito mais clara e
mais decisiva do que a de Goethe. Trabalhar
Dabei steht die Frage bei Hegel
verhältnismäßig einfacher als bei Goethe.
Erstens, weil die Fragen der Philosophie
durch die längst bekannten, aber jetzt neu
durchgearbeiteten, sowie durch die neu
veröffentlichten Schriften von Marx, Engels
und Lenin, durch die bisherigen
Diskussionen viel geklärter sind, als die der
Dichter. Zweitens, weil die Stellungnahme
Hegels zu den großen weltgeschichtlichen
Klassenkämpfen seiner Zeit viel klarer und
entschiedener ist als die Goethes. Das
Herausarbeiten der dialektischen
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 395
o entrelaçamento dialético dos elementos
progressivos e regressivos de sua visão de
mundo é, portanto, uma tarefa mais fácil em
Hegel do que em Goethe.
Verflochtenheit der fortschrittlichen und
rückschrittlichen Elemente seiner
Weltanschauung ist also bei Hegel eine
leichtere Aufgabe als bei Goethe.
Situação de classe de Goethe
Goethes Klassenlage
Externamente, é claro, a posição de classe
de Goethe é clara. Ele vem - pelos padrões
da época - da classe média alta da cidade
imperial independente de Frankfurt.
Consequentemente, ele passou sua
juventude sem preocupações materiais, mas
em permanente dependência material da
casa de seus pais; o que não é isento de
consequências ideológicas. Mais tarde, ele
viveu uma vida próspera, mas sem fortuna
própria, com o salário de funcionário
público; méritos literários apenas
desempenham um papel importante nos
últimos anos de vida. Mesmo esse contexto
externo de vida mostra que Goethe nunca
pertenceu aos escritores da Alemanha
daquela época que, para evitar qualquer
compromisso com o absolutismo do
pequeno Estado, empreenderam uma vida
literária incerta e livre. (Por exemplo,
Lessing.) Por outro lado, a sua adaptação a
este sistema não é de forma alguma simples
e direta. É preciso ter cuidado para não
superestimar o caráter revolucionário de
seus escritos de juventude. Até Napoleão
Äußerlich freilich ist die Klassenlage
Goethes eindeutig. Er stammt nach
damaligen Maßstäben - aus dem
Großbürgertum der freien Reichsstadt
Frankfurt. Er verlebt seine Jugend
dementsprechend ohne materielle Sorgen,
aber in dauernder materieller Abhängigkeit
von seinem Elternhaus; was auch
ideologisch nicht ohne Folgen bleibt. Er lebt
später wohlhabend, aber ohne eigenes
Vermögen, von seinem Beamtengehalt; die
literarischen Verdienste spielen erst in
späteren Lebensjahren eine wichtige Rolle.
Schon dieser äußerliche Lebensrahmen
zeigt, daß Goethe niemals zu jenen
Schriftstellern des damaligen Deutschlands
gehött hat, die, um jedem Kompromiß mit
dem Kleinstaatabsolutismus zu entgehen,
ein unsicheres freies Literatenleben auf sich
nahmen. (Z. B. Lessing.) Anderseits ist sein
Sichabfinden mit diesem System
keineswegs einfach und geradlinig. Man
muß sich hüten, den revolutionären
Charakter seiner Jugendschriften zu
überschätzen. Schon Napoleon sah, daß der
György Lukács
396 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
viu que o conflito entre o Werther burguês
e a sociedade aristocrática era um
ingrediente inorgânico nas obras; o próprio
Goethe, em
Poesia e verdade
(Livro XVII),
caracteriza as obras do período juvenil da
seguinte forma: “Eu ocupava nessa época
uma posição muito favorável em relação às
classes superiores. Se bem que no
Werther
44 sejam reprimidos com
impaciência os dissabores que uma pessoa
experimenta no limite de duas categorias
determinados, isso me era perdoado em
consideração dos outros interesses da obra,
pois cada qual percebia que ali não se tinha
em vista nenhuma ão imediata. Mas o
Götz von Berlichingen45
, me colocava muito
bem em face das classes altas”46. É de se
notar também que na edição de 1773 desta
última obra, todas as passagens da versão
original que aludiam à opressão e
exploração dos camponeses foram
eliminadas.
Konflikt zwischen dem bürgerlichen Werther
und der adeligen Gesellschaft eine
unorganische Zutat im Werke ist; Goethe
selbst charakterisiert in „Dichtung und
Wahrheit“ (17. Buch) die Werke der
Jugendzeit folgendermaßen: „In dieser Zeit
war meine Stellung gegen die oberen
Stände sehr günstig. Wenn auch im
Werther
die Unannehmlichkeiten an der Grenze
zweier bestimmter Verhältnisse mit
Ungeduld ausgesprochen sind, so ließ man
das in Betracht der übrigen
Leidenschaftlichkeiten des Buches gelten,
indem jedermann wohl fühlte, daß es hier
auf keine unmittelbare Wirkung abgesehen
sei. Durch den
Götz von Berlichingen
aber
war ich gegen die oberen Stände sehr gut
gestellt... .“ Wozu noch zu bemerken ist, daß
aus der Ausgabe des letzteren Werkes
(1773) alle Stellen der ursprünglichen
Fassung, wo auf die Unterdrückung und
Ausbeutung der Bauern angespielt war,
gestrichen wurden.
Mas, com todas as limitações e
compromissos indicados aqui, Goethe foi
continuador das tradições revolucionárias
do desenvolvimento anglo-francês do
século XVIII. No entanto, as próprias
manifestações de Goethe, especialmente em
Aber mit allen hier angedeuteten
Beschränkungen und Kompromissen war
Goethe doch ein Fortsetzer der
revolutionären Traditionen der englisch-
französischen Entwicklung des ı8.
Jahrhunderts. Allerdings geben die eigenen
44
[NT] GOETHE;
Os sofrimentos do jovem Werther
; trad. Marcelo Backes; Porto Alegre: L&PM Editores,
2001.
45
[NT] GOETHE;
Götz von Berlichingen da Mão de Ferro
; trad. Felipe Vale da Silva; São Paulo: Aetia
Editorial, 2020.
46
[NT] GOETHE; Memórias: poesia e verdade... op. cit.; p. 535.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 397
Poesia e Verdade,
dão uma imagem
completamente distorcida. Se compararmos
a descrição de Voltaire e seus
contemporâneos em
Poesia e Verdade
com
representações anteriores (correspondência
com Schiller, comentários sobre
O sobrinho
de Rameau
etc.) ou mesmo com declarações
orais posteriores (Eickermann), surge um
forte contraste. Na realidade, Goethe é
muito mais dependente de Voltaire e seus
sucessores do que ele admite
"oficialmente". Uma prova ainda mais clara,
porém, é sua prática. Em um excelente
ensaio sobre a correspondência de Goethe
com Charlotte von Stein (Goethe am
Scheidewege, 1909, Wk. I, 99 f.), Mehring
descobriu a ruptura decisiva em sua vida.
Goethe foi a Weimar a fim de erradicar pelo
menos os piores resquícios do feudalismo
através da sua influência pessoal sobre o
Duque, a fim de realizar os objetivos
revolucionários burgueses, pelo menos
nesta área limitada. Claro: nunca de uma
forma revolucionária; mas Voltaire estava
completamente distante disso. Mehring
mostra como Goethe falhou miseravelmente
em seus esforços de reforma, como ele
fugiu para a Itália por essa razão - não por
causa de Frau von Stein e, como a partir
daí, a resignação se tornou a principal
característica de seu ser.
Darstellungen Goethes, insbesondere in
„Dichtung und Wahrheit“, ein ganz
entstelltes Bild. Vergleicht man etwa die
Schilderung Voltaires und seiner
Zeitgenossen in „Dichtung und Wahrheit“
mit früheren Darstellungen (Briefwechsel
mit Schiller, Anmerkungen zu „Rameaus
Neffe“ usw.) oder selbst mit späteren
mündlichen Äußerungen (Eickermann), so
zeigt sich ein schroffer Gegensatz. Goethe
ist in Wirklichkeit viel abhängiger von
Voltaire und seinen Nachfolgern, als er es
„offiziell“ zugibt. Ein noch deutlicherer
Beweis ist aber seine Praxis. Mehring hat in
einem ausgezeichneten Aufsatz über
Goethes Briefwechsel mit Charlotte von
Stein (Goethe am Scheidewege, 1909, Wk.
I, 99 f.) den entscheidenden Bruch in seinem
Leben aufgedeckt. Goethe ging nach
Weimar, um dort durch seinen persönlichen
Einfluß auf den Herzog wenigstens die
ärgsten Überreste des Feudalismus
auszumerzen, um wenigstens auf diesem
beschränkten Gebiet die bürgerlich-
revolutionären Ziele zu verwirklichen.
Freilich: niemals auf revolutionärem Wege;
der lag aber auch Voltaire vollständig fern.
Mehring zeigt nun, wie kläglich Goethe mit
seinen Reformbestrebungen gescheitert,
wie er deshalb und nicht wegen Frau von
Stein - nach Italien geflüchtet ist, wie von
nun an die Resignation zum Grundzug
seines Wesens wurde.
György Lukács
398 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
No entanto, tanto esse colapso quanto suas
consequências para Goethe estão
intimamente relacionados a certas
características básicas de seu ser, que
existiam no período pré-Weimar, ainda que
não totalmente desenvolvidas. Queremos
indicar brevemente os dois motivos básicos,
em que fica imediatamente claro que eles
estão ideologicamente unidos e que ambos
são consequências necessárias de seu ser
social. Em primeiro lugar, Goethe pertence
aos "entusiastas da natureza" (Marx),
àqueles representantes da ideologia
revolucionária burguesa que, do século XVI
a Feuerbach, levantaram os problemas da
revolução do pensamento do lado natural.
Em segundo lugar, Goethe coloca todas as
questões do ser social a partir da vida
privada do indivíduo burguês e não do
ponto de vista da vida pública, geral e
política da classe; portanto, do ponto de
vista da burguesia e não dos cidadãos. (Este
esquema pode ser visto claramente em
Werther
; em
Egmont
47
,
n’
Os anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
, em
Afinidades eletivas
é ainda mais evidente,
sobretudo de forma mais consciente.)
Allerdings stehen sowohl dieser
Zusammenbruch wie seine Folgen für
Goethe in engstem Zusammenhang mit
gewissen Grundzügen seines Wesens, die
bereits in der vorweimarischen Periode,
wenn auch nicht voll entfaltet, vorlagen. Wir
wollen hier die beiden grundlegenden
Motive kurz andeuten, wobei es zugleich
ohne weiteres klar wird, daß sie
weltanschaulich zusammengehören und
beide notwendige Folgen seines
gesellschaftlichen Seins sind. Erstens gehört
Goethe zu den „Naturenthusiasten“ (Marx),
zu jenen Vertretern der bürgerlich-
revolutionären Ideologie, die vom 16.
Jahrhundert bis zu Feuerbach die Probleme
der Umwälzung des Denkens von der
Naturseite aufrollten. Zweitens stellt Goethe
alle Fragen des gesellschaftlichen Seins vom
Privatleben des bütgerlichen Individuums
und nicht vom Standpunkt des öffentlichen,
allgemeinen, politischen Lebens der Klasse;
also vom Standpunkt des bourgeois und
nicht des citoyens. (Dieses Schema ist schon
im „Werther“ klar ersichtlich, in „Egmont“,
„Wilhelm Meisters Lehrjahre“,
„Wahlverwandtschaften“ tritt es noch
deutlicher, vor allem bewußter zutage.)
Se considerarmos primeiro este segundo
motivo, deve ficar claro que a questão de
Goethe é uma continuação em linha direta
Wenn wir zuerst dieses zweite Motiv
betrachten, so muß es auffallen, daß
Goethes Fragestellung eine geradlinige
47
[NT] GOETHE;
Egmont
; São Paulo: Melhoramentos, 1949.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 399
das tradições da literatura revolucionária
burguesa. A classe burguesa desenvolveu-
se no quadro de um feudalismo moribundo
(como o "terceiro estado"); ela costumava
ter sua própria economia, seu próprio ser
social e, consequentemente, sua própria
vida cotidiana peculiar, sua própria
moralidade, etc., antes de poder afirmar-se
politicamente, de fato, muitas vezes
reivindicou esta validade política de forma
clara e aberta. Assim, é típico dos
primórdios da literatura burguesa, que em
seus poemas, ela confronte de modo
polêmico esse ser social com o modo de
vida da classe dominante. É claro que o faz
de tal modo que se opõe ao ser de sua
própria classe como o “humano geral”,
como o “natural”, o particular, o antinatural,
o artificial etc. na vida da classe dominante.
É por isso que essa configuração determina
a representação da vida privada. É claro,
entretanto, que tais descrições da vida
privada faziam parte das lutas de classes da
época. É certo que alguns grandes
escritores surgiram de forma acusadora ou
satírica dessas representações realistas dos
problemas da vida privada burguesa, para
se tornarem grandes críticos da sociedade
como um todo nessa época de transição (Le
Sage, Swift, Lessing, etc.); é certo que
também existem alguns escritores que
levantaram a questão do lado político geral,
do lado do citoyen. No entanto, eles são
conduzidos para um método idealista
Fortsetzung der Traditionen der bürgerlich-
revolutionären Literatur ist. Die bürgerliche
Klasse entwickelte sich im Rahmen des
absterbenden Feudalismus (als „dritter
Stand“), sie hatte früher eine eigene
Ökonomie, ein eigenes gesellschaftliches
Sein, und demzufolge ein eigenartiges
Alltagsleben, eine eigene Moral usw., bevor
sie sich politisch durchzusetzen vermochte,
ja häufig auch nur diese politische Geltung
klar und offen beansprucht tte.
Dementsprechend ist es für die Anfänge der
bürgerlichen Literatur typisch, daß sie
dieses gesellschaftliche Sein in ihren
Dichtungen der Lebensweise der
herrschenden Klasse polemisch
gegenüberstellt. Sie tut es selbstredend in
der Weise, daß sie ihr eigenes Klassensein
als das „allgemein Menschliche“, als das
„Natürliche“, dem Partikularen,
Unnatürlichen, Gekünstelten usw. am Leben
der herrschenden Klasse entgegensetzt.
Darum bestimmt diese Gestaltung die
Darstellung des privaten Lebens. Es ist aber
klar, daß solche Schilderungen des
Privatlebens einen Teil der damaligen
Klassenkämpfe gebildet haben. Freilich
erhebt sich eine Reihe von großen
Schriftstellern anklagend oder satirisch aus
diesen realistischen Darstellungen der
Probleme des bürgerlich-privaten Lebens zu
großen Kritikern der ganzen Gesellschaft
dieser Übergangsepoche (Le Sage, Swift,
Lessing usw.); freilich gibt es auch
György Lukács
400 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
devido a sua situação social (Milton). Mas
essa colocação da vida privada em primeiro
plano, nada tem a ver com as questões
tematicamente semelhantes da burguesia
em declínio. Aqui, “o mesmo” tipo de
questionamento é uma fuga dos
problemas reais da luta de classes. No
entanto, também aqui o desenvolvimento é
desigual: no século XVIII havia escritores
burgueses que tinham elementos deste
último motivo. (Sterne, um favorito
particular de Goethe, que já declarou - com
a aprovação de Goethe -: "Nossa parte nos
negócios públicos é sobretudo filisteísmo.")
vereinzelte Schriftsteller, die die Frage von
der allgemein-politischen Seite, der citoyen-
Seite stellen. Diese werden aber durch ihre
gesellschaftliche Lage zu einer
idealistischen Methode getrieben (Milton).
Aber dieses In-den- Vordergrund-Stellen
des privaten Lebens hat nichts mit der
thematisch ähnlichen Fragestellung der
niedergehenden Bourgeoisie zu tun. Hier ist
„dieselbe“ Art der Fragestellung bereits ein
Ausweichen vor den wirklichen Problemen
des Klassenkampfs. Allerdings geht auch
hier die Entwicklung ungleichmäßig vor
sich: schon im 18. Jahrhundert gibt es
bürgerliche Schriftsteller, bei denen
Elemente dieses letzteren Motivs vorhanden
sind. (Sterne, ein besonderer Liebling
Goethes, der bereits - von Goethe
zustimmend angeführt - erklärt hat: „Unser
Anteil an öffentlichen Angelegenheiten ist
meist nur Philisterei.“)
Sociedade e Estado
Gesellschaft und Staat
É aqui que se encontram os dois motivos
em sua essência, aos quais nos referimos
anteriormente. O programa de Goethe é ver
a sociedade e os acontecimentos históricos
"de cima", com o olhar frio e objetivo,
"desprovido de interesses", do cientista
natural (“Spinozista”). Esse “apartidarismo”
é tanto uma mera ilusão, que não apenas
não se prova por um momento quando se
considera a sociedade, como ilumina
Hier begegnen sich jene beiden Motive
seines Wesens, auf die wir früher
hingewiesen haben. Goethe hat das
Programm, dic Gesellschaft, die
geschichtlichen Ereignisse „von oben“, mit
dem kühlobjektiven, „von Interessen nicht
getrübten“ Auge des Naturforschers
(„spinozistisch“) zu betrachten. Diese
„Überparteilichkeit“ ist so sehr bloße
Illusion, daß sie nicht nur in der Betrachtung
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 401
retrospectivamente os limites de sua
dialética no conhecimento da natureza.
Mesmo o reacionário hegeliano de direita
Goeschel viu claramente que a rejeição de
Goethe ao vulcanismo na geologia tem a
mesma fonte que sua aversão a qualquer
transformação revolucionária da sociedade;
e inúmeros enunciados de Goethe, assim
como toda sua poesia, mostram que ele
reconhecia o princípio do movimento
apenas nos indivíduos e em seu destino
pessoal e o aplicava como base de seu
método criativo, mas que sempre
considerou o estado, a sociedade, as
instituições sociais, etc., como poderes
imutáveis do destino. Obviamente, foi difícil
para os contemporâneos da Revolução
Francesa, de Napoleão, da Santa Aliança e,
finalmente, da Revolução de Julho fechar os
olhos para o fato da transformação dessas
estruturas. Aqui, porém, a “visão da
natureza” “apartidária”, “olímpica” se torna
um dever filisteu. “Natural” é a
transformação gradual, passo a passo. A
revolução é um mal; desordem, caos. Não
que Goethe fosse radicalmente hostil ao
conteúdo social da Revolução Francesa. Sua
admiração por Napoleão, pelo herdeiro e
seguidor da revolução, é obviamente
determinada em termos de conteúdo de
classe e não um entusiasmo literário pelo
gênio “demoníaco”, como os apologistas o
retratam. (Pode-se então compreender por
que o velho Goethe tinha um interesse tão
der Gesellschaft sich keinen Moment lang
bewährt, sondern rückwirkend die Grenzen
seiner Dialektik auch in der Naturerkenntnis
beleuchtet. Schon der reaktionäre rechte
Hegelianer Goeschel hat klar gesehen, daß
Goethes Ablehnung des Vulkanismus in der
Geologie dieselbe Quelle hat wie seine
Abneigung gegen jede revolutionäre
Umgestaltung der Gesellschaft; und
unzählige Äußerungen Goethes sowie seine
gesamte Dichtung zeigen, daß er das
Prinzip der Bewegung nur in den
Einzelpersonen und in ihrem persönlichen
Schicksal erkannt und als Grundlage seiner
schöpferischen Methode angewendet hat,
daß er sich aber Staat, Gesellschaft,
gesellschaftliche Institutionen usw. stets als
unwandelbare Schicksalsmächte vorstellte.
Es war freilich für den Zeitgenossen der
Französischen Revolution, Napoleons, der
Heiligen Alliance und schließlich der
Julirevolution schwer, vor der Tatsache der
Wandlung dieser Gebilde die Augen zu
schließen. Hier aber schlägt die
„überparteiische“, „olympische“
„Naturbetrachtung“ in ein philisterhaftes
Sollen um. „Naturhaft“ ist die allmähliche,
schrittweise Umwandlung. Die Revolution
ist ein Übel; Unordnung, Chaos. Nicht, als ob
Goethe dem sozialen Inhalt der
Französischen Revolution gegenüber
radikal feindlich gewesen wäre. Seine
Verehrung für Napoleon, für den Erben und
Volistrecker der Revolution, ist selbstredend
György Lukács
402 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
vivo por Byron, Manzoni, Stendhal, Balzac,
Victor Hugo, Beranger, etc., enquanto ele se
opunha friamente ao romantismo -
reacionário - alemão.) Essa veneração de
Napoleão e a rejeição da guerra de
libertação contra Napoleão surgiram da
mesma fonte que os esforços de reforma do
primeiro período de Weimar. Mas aqui como
ali, Goethe não penetra até as raízes; nem
tanto quanto teria sido possível no estágio
de desenvolvimento da burguesia alemã
com os meios de pensamento da época.
Não foi além de Voltaire, por exemplo:
reformas, transformação burguesa do
Estado e da sociedade; mas “de cima”, sem
que “a multidão” tenha nada a ver com isso.
A concepção dessas reformas também não
é apreendida a partir do ponto central, da
economia. Goethe reconheceu,
especialmente na velhice, a importância
técnica e revolucionária do capitalismo
(Canal de Suez, Canal do Panamá, fim de
"Fausto" II), e não desconhecia inteiramente
as implicações sociopolíticas deste
desenvolvimento técnico ("Os caminhos-de-
ferro criam a unidade alemã"; Eckermann,
23 de outubro de 182848). Mas a economia
do capitalismo, o significado da economia
como a “anatomia” da sociedade burguesa,
era um livro com sete selos para ele.
Embora tenha lido Necker49 quando era um
inhaltlich-klassenmäßig bedingt und nicht
ein literatenhaftes Schwärmen für das
„dämonische“ Genie, wie es die Apologeten
darstellen. (Die dann ebensowenig
verstehen können, warum der alte Goethe
für Byron, Manzoni, Stendhal, Balzac, Victor
Hugo, Beranger usw. ein so lebhaftes
Interesse hatte, während er der deutschen
reaktionären Romantik kühl
ablehnend gegenüberstand.) Diese
Napoleon-Verehrung sowie die Ablehnung
des Freiheitskriegs gegen Napoleon stammt
eben aus derselben Quelle wie die
Reformbestrebungen der ersten Weimarer
Periode. Aber hier wie dort dringt Goethe
nicht bis zu den Wurzeln; nicht einmal so
weit, wie es auf der damaligen
Entwicklungsstufe des deutschen
Bürgertums, mit seinen damaligen
Denkmitteln möglich gewesen wäre. Er ist
bier nicht weiter gekommen als etwa
Voltaire: Reformien, bürgerliche
Umgestaltung von Staat und Gesellschaft;
aber von oben“, ohne daß „die Menge“
damit aktiv zu tun haben dürfte. Dabei ist
die Konzeption dieser Reformen auch nicht
aus dem Mittelpunkt, aus der Ökonomie
erfaßt. Goethe erkannte zwar, insbesondere
im Alter, die technisch-umwälzende
Bedeutung des Kapitalismus (Suezkanal,
Panamakanal, Schluß von „Faust“ II), ja’er
48
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit.
; p. 657.
49
[NT] Jacques Necker (1732-1804) foi um banqueiro suíço e estadista que serviu como ministro das
finanças de Luís XVI.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 403
ministro (carta para Charlotte von Stein, 8
de abril [! 8 de setembro (e 11 de
setembro)] 1785), mas mais tarde - em
nítido contraste com Hegel - o
desenvolvimento da economia na Inglaterra
passou-lhe despercebido. É por isso que a
inclusão dos problemas econômicos (a
agricultura capitalista nos
Anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
etc.) não
pode tirar de suas obras a rigidez estática
do contexto social. Quanto mais poderosos
eram os acontecimentos mundiais que se
lhe associam, mais acentuado era o
contraste entre os destinos puramente
privados retratados em primeiro plano e o
contexto social figurado. (Revolução
Francesa em
Hermann e Dorothea
).
war auch über die gesellschaftlich-politische
Tragweite dieser technischen Entwicklung
nicht ganz im unklaren („Eisenbahnen
schaffen die deutsche Einheit“; Eckermann,
23. Oktober 1828). Aber die Ökonomie des
Kapitalismus, die Bedeutung der Ökonomie
als „Anatomie“ der bürgerlichen
Gesellschaft war für ihn ein Buch mit sieben
Siegeln. Zwar hat er in seiner Ministerzeit
Necker gelesen (an Charlotte von Stein, 8.
April [! 8. (und II.) September] 1785), aber
später ging in schroffem Gegensatz zu
Hegel - die Entwicklung der Ökonomie in
England unbemerkt an ihm vorbei. Darum
kann das Hineinspielen ökonomischer
Probleme (kapitalistische Landwirtschaft in
„Wilhelm Meisters Lehrjahre“ usw.) seinen
Werken das statisch Starre des
gesellschaftlichen Hintergrun des nicht
nehmen. Je mächtiger die hineinspielenden
Weltereignisse sind, desto schroffer kommt
gerade dieser Kontrast zwischen den
bewegt dargestellten rein privaten
Schicksalen im Vordergrund und dem
stehend gedachten gesellschaftlichen
Hintergrund zur Geltung. (Französische
Revolution in „Hermann und Dorothea“.)
Método criativo
Schöpferische Methode
A mesma ambiguidade, cuja raiz
reconhecemos no ser social de Goethe, se
mostra em seu método criativo. Sua
principal característica é um realismo sadio.
Dieselbe Zwiespältigkeit, deren Wurzel wir
im gesellschaftlichen Sein Goethes erkannt
haben, zeigt sich in seiner schöpferischen
Methode. Ihr Grundzug ist ein gesunder
György Lukács
404 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
Goethe sempre quer partir do exterior, da
realidade objetiva e figurar tudo o que é
“interior” como sua consequência, seu
reflexo. Ele diz: O clássico é sadio, o
romântico é doente. Ovídio permaneceu
classicamente até no exílio: ele não busca o
seu infortúnio em si mesmo, mas no
distanciamento da capital do mundo... O
universal e o particular coincidem; o
particular é o universal, aparecendo em
diferentes condições... portanto, também o
mais particular que acontece, aparece
sempre como imagem e semelhança do
mais universal...” (Provérbios em prosa). Por
consequência, “o poeta”, explica Goethe
(Eckermann, 11 de junho de 1825), “deve
abordar o particular e, quando este for algo
sadio, expressará através dele o
universal”50. A aplicação desses princípios é
onde reside a grandeza poética de Goethe.
Aqui ele herda a poesia realista-
revolucionária da burguesia em ascensão,
pela qual seu método criativo se beneficia
do fato de que ele experimenta e participa
daquela transição significativa em que a
dialética ocasional e inconsciente dos
antigos materialistas (Diderot: "O sobrinho
de Rameau") começa a transformar-se em
dialética consciente. A posição de Goethe
nesse processo de desenvolvimento não é
de modo algum clara e simples. Por um
lado, ele se recusa a seguir a transição na
Realismus. Goethe will stets von der
äußeren, von der objektiven Wirklichkeit
ausgehen und alles „Innere“ als deren
Folge, deren Reflex gestalten. So sagt er:
„Klassisch ist das Gesunde, romantisch das
Kranke. Ovid blieb klassisch auch im Exil: er
sucht sein Unglück nicht in sich, sondern in
seiner Entfernung von der Hauptstadt der
Welt... Das Allgemeine und Besondere fallen
zusammen; das Besondere ist das
Allgemeine, unter verschiedenen
Bedingungen erscheinend.... deswegen
auch das Besonderste, das sich ereignet,
immer als Bild und Gleichnis des
Allgemeinsten auftritt...“ (Sprüche in Prosa).
„Der Poet“, führt Goethe darum ganz
konsequent aus (Eckermann, 11 Juni 1825),
„soll das Besondere ergreifen und wird,
wenn dieses nur etwas Gesundes ist, darin
ein Allgemeines darstellen.“ In der
Durchführung dieser Prinzipien liegt die
dichterische Größe Goethes. Er tritt hier das
Erbe der realistisch-revolutionären Dichtung
der aufstrebenden Bourgeoisie an, wobei es
seiner schöpferischen Methode zugute
kommt, daß er jenen bedeutsamen
Übergang erlebt und mitmacht, wo die
gelegentliche und unbewußte Dialektik der
alten Materiali.sten (Diderot: „Rameaus
Neffe“) in bewußte Dialektik umzuschlagen
beginnt. Goethes Stellung in diesem
Entwicklungsprozeß ist aber keineswegs
50
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit
.; p. 164.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 405
direção do idealismo (ao contrário de
Schiller, também ao romantismo), por outro
lado, ele não está em condições de figurar
de modo consistente o movimento dialético
do conteúdo que tem em mente com meios
realistas. Na medida em que sua situação de
classe analisada acima, e sua visão de
mundo que emergiu dela permitem, isto é,
na configuração de homens privados
individuais em conexão com seu ambiente
imediato, na configuração da atmosfera
especial de um meio, na configuração de
humores, sentimentos, vivências em
conexão com as causas que as despertam
diretamente, ele vai muitas vezes muito
além da literatura dos séculos XVII e XVIII
no aperfeiçoamento dialético do realismo
poético. Sim, ele até consegue figurar de
forma realista as tendências subjetivistas
que, em Rousseau, Sterne, etc., já haviam se
tornado idealistas, devolvendo-as aos
fundamentos do seu ser.
eindeutig und einfach. Einerseits lehnt er es
ab, auf diesem Wege das Umschwenken in
die Richtung des Idealismus mitzumachen
(Gegensatz zu Schiller, auch zur Romantik),
anderseits ist er nicht imstande, die
dialektische Bewegtheit des Inhalts, der ihm
vorschwebt, konsequent mit realistischen
Mitteln zu gestalten. Soweit seine oben
analysierte Klassenlage und seine daraus
erwachsene Weltanschauung es ihm
gestatten, also in der Gestaltung der
einzelnen privaten Menschen im
Zusammenhang mit ihrer unmittelbaren
Umgebung, in der Gestaltung der
besonderen Atmosphäre eines Milieus, in
der Gestaltung von Stimmungen, Gefühlen,
Erlebnissen im Zusammenhang mit den sie
unmittelbar erregenden Ursachen geht er in
der dialektischen Vervollkommnung des
dichterischen Realismus oft weit über die
Literatur des 17. bis 18. Jahrhunderts
hinaus. Ja, es gelingt ihm sogar, jene bei
Rousseau, Sterne usw. bereits ins
Idealistische umschlagenden,
subjektivistischen Tendenzen wieder auf
ihre Seinsgrundlagen gestaltend
zurückzuführen, realistisch darzustellen.
Este realismo é de grande liberdade e
generosidade em relação aos princípios da
configuração. Precisamente porque Goethe
"jamais olhou [olhei] para a natureza com
objetivos políticos" (Eckermann, 18 de
Dieser Realismus ist von einer großen
Freiheit und Großzügigkeit in den
Gestaltungsprinzipien. Gerade weil Goethe
„niemals die Natur politischer Zwecke
wegen betrachtet“ hat (Eckermann, ı8.
Jänner 1827), sondern aus seinen
György Lukács
406 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
janeiro de 1827)51, mas a partir de seus
estudos da natureza, de seus esforços
pictóricos etc., possuía um tesouro
sistematizado e livremente controlado de
conhecimento da realidade objetiva, podia
mover-se aqui muito livremente no material,
retratando o movimento, o auto-movimento
do material ao mesmo tempo essencial e
significativamente como auto-movimento.
Em sua crítica a Grün, Engels também
aponta que o homem goethiano é um
homem de carne e osso real e não uma
abstração feeuerbachiana. Ele, ao mesmo
tempo, aponta as “Elegias Romanas” como
exemplo deste tipo de configuração de
Goethe. Os exemplos poderiam ser muito
multiplicados, principalmente na poesia de
Goethe. Ainda seria necessário mostrar que
existem poucos poetas na literatura mundial
capazes de apresentar personagens vivos
com meios tão econômicos e retumbantes
como Goethe frequentemente conseguia
fazer (Gretchen em Fausto, Klärchen em
Egmont, etc.). No entanto, esse grande
método criativo sempre falha quando
Goethe é tematicamente forçado a abordar
conteúdos em relação aos quais sua
dialética e seu realismo falham por razões
ideológicas. Esse é o caso de quase todos
os seus poemas maiores. O próprio fato de
o movimento da matéria afetar apenas o
indivíduo e não se relacionar com o todo
Naturstudien, malerischen Bestrebungen
usw. einen systematisierten und frei
beherrschten Schatz von Kenntnissen der
objektiven Wirklichkeit besaß, konnte er
sich hier ganz frei im Stoffe bewegen, die
Bewegung, die Selbstbewegung des Stoffs
zugleich wesentlich und sinnfällig als
Selbstbewegung abbilden. Engels weist in
seiner Grün-Kritik mit darauf hin, daß der
Goethesche Mensch ein Mensch von
wirklichem Fleisch und Blut und nicht eine
Feuerbachsche Abstraktion sei. Er weist
auch gleichzeitig auf die „Römischen
Elegien“ als ein Beispiel dieser
Gestaltungsart Goethes hin. Die Beispiele
ließen sich, insbesondere aus der Lyrik
Goethes, stark vermehren. Es müßte dabei
noch gezeigt werden, daß es wenige
Dichter der Weltliteratur gibt, die fähig
waren, mit so sparsamen und dennoch
durchschlagenden Mitteln lebensvolle
Gestalten hinzustellen, wie dies Goethe oft
gelungen ist (Gretchen im „Faust“, Klärchen
im „Egmont“ usw.). Diese großartige
schöpferische Methode muß jedoch stets
versagen, wenn Goethe thematisch
gezwungen ist, an Inhalte heranzutreten,
denen gegenüber seine Dialektik und sein
Realismus aus weltanschaulichen Gründen
versagen. Dies ist aber fast in allen seinen
größeren Dichtungen der Fall. Schon die
Tatsache, daß die Bewegtheit des Stoffs sich
51
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit
.; p. 216.
Lukács sobre Goethe
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(social) enfraquece o realismo da
configuração também no indivíduo, e muitas
vezes acaba por lhe conferir um caráter
silencioso e embotado, que é o lado poético
da sua "resignação" ideológica. Assim,
surge a situação peculiar em que Goethe
descreve a atmosfera sensível e espiritual
de uma época, de uma classe social, em
todos os seus pormenores de uma forma
cativante e generosa, todavia não retrata a
sua totalidade, mas sim a faz figurar
obliqua, unilateral e estaticamente (Götz
von Berlichingen, Wilhelm Meister, etc.).
Nesse aspecto, Goethe está entre os
grandes realistas dos séculos XVIII e XIX
(Defoe, Fielding, Balzac). No entanto, essa
contradição interna muitas vezes também
afeta a configuração dos detalhes. Pois a
dialética do indivíduo, que Goethe observou
e figurou com maestria, se deixada ao seu
próprio movimento dialético, levaria a
consequências que Goethe não teria
tolerado em termos ideológicos - ou às
vezes apenas publicamente. Em tais casos,
um mecanismo de correção se instala: o
movimento dos personagens é
artificialmente adaptado à rigidez
comprometedora e não dialética do quadro
social geral e, portanto, torna-se rígido,
convencional e falso. (A parte final de
“Afinidades Eletivas”, também muito em
“Hermann e Dorothea”, Wilhelm Meister”
etc.) E esse é o caso mais favorável. Porque
Goethe frequentemente “consegue”, desde
nur im einzelnen auswirkt und sich nicht auf
das (gesellschaftliche) Ganze bezieht,
schwächt den Realismus der Gestaltung,
auch im einzelnen, ab, gibt ihr oft einen
abgedämpft- abgestumpften Charakter, der
die dichterische Seite seiner
weltanschaulichen „Resignation“ ist. Es
entsteht also die eigentümliche Lage, daß
Goethe die sinnliche wie geistige
Atmosphäre einer Zeit, einer
Gesellschaftsschicht in allen Einzelheiten
packend und großzügig schildert, ihre
Gesamtheit aber überhaupt nicht oder
schief, einseitig, statisch gestaltet (Götz von
Berlichingen, Wilhelm Meister usw.). In
dieser Hinsicht steht Goethe tief unter den
großen Realisten des 18. und 19.
Jahrhunderts (Defoe, Fielding, Balzac).
Dieser innere Gegensatz spielt jedoch oft
auch in die Gestaltung der Einzelheiten
hinüber. Denn die von Goethe meisterhaft
beobachtete und gestaltete Dialektik des
einzelnen würde, der eigenen dialektischen
Selbstbewegung überlassen, zu
Konsequenzen führen, die für Goethe
weltanschaulich oder zuweilen: bloß
öffentlich nicht tragbar gewesen wären.
In solchen Fällen setzt nun ein Mechanismus
des Zurechtrückens ein: die Bewegung der
Gestalten wird künstlich der
kompromißlerisch-undialektischen Starrheit
des allgemein-gesellschaftlichen Rahmens
angepaßt und damit starr, konventionell,
unwahr gemacht. (Ausgang der
György Lukács
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o início, ajustar a configuração a essa
finalidade ideológica, e a uniformidade da
configuração é adquirida com o predomínio
de uma rigidez geral. (“Filha natural”,
também em partes do “Tasso”.) Por vezes,
essa contradição se manifesta no fato de
que o horizonte da configuração se dissolve
em uma névoa simbólico-mística e toda a
obra se espedaça em partes heterogêneas.
(“Os anos de transformação de Wilhelm
Meister”.) Assim, o método criativo de
Goethe apresenta a mesma contradição de
sua visão de mundo. E aqui como ali seu
efeito no campo burguês está ligado aos
lados débeis, filisteus, comprometedores de
seu ser contraditório ou, na melhor das
hipóteses, à mistura de características
filisteias e grandiosas. Para o proletariado,
é importante encontrar, ao mesmo tempo, a
ligação e a distinção corretas com críticas
severas e processar a grandeza que em
Goethe de forma materialista e dialética.
„Wahlverwandtschaften“, auch vieles in
„Hermann und Dorothea“, „Wilhelm
Meister“ usw.) Und dies ist noch der
günstigere Fall. Denn oft „gelingt“ es
Goethe, die Gestaltung von vornherein auf
dieses weltanschauliche Ziel einzustellen
und die Einheitlichkeit der Gestaltung ist mit
dem Vorherrschen einer allgemeinen
Starrheit erkauft. („Natürliche Tochter“,
teilweise auch „Tasso“.) Zuweilen äußert
sich dieser Gegensatz darin, daß der
Horizont der Gestaltung sich in einen
symbolisch-mystischen Dunst auflöst und
das ganze Werk in heterogene Teile
zerflattert. („Wilhelm Meisters
Wanderjahre“.) So zeigt sich in Goethes
schöpferischer Methode derselbe
Gegensatz wie in seiner Weltanschauung.
Und hier wie dort knüpft seine Wirkung im
bürgerlichen Lager an die schwächlichen,
philisterhaften, kompromißlerischen Seiten
seines widerspruchsvollen Wesens an oder
bestenfalls an die Vermischung der
philisterhaften und großartigen Züge. Für
das Proletariat kommt es darauf an, mit
scharfer Kritik den richtigen
Zusammenhang und zugleich die richtige
Scheidung zu finden und das Große an
Goethe materialistisch- dialektisch zu
verarbeiten.
Linksfront, 5 und 6/1932
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 409
Goethes Weltanschauung
Visão de mundo de Goethe
52
A situação de classe
Die Klassenlage
Em Goethe essa situação é muito clara. Ele
vem - pelos padrões da época - da classe
média alta da cidade imperial independente
de Frankfurt. Consequentemente, ele
passou sua juventude sem preocupações
materiais, mas em permanente dependência
material da casa de seus pais; o que não é
isento de consequências ideológicas. Mais
tarde, ele viveu uma vida próspera, mas sem
fortuna própria, com o salário de
funcionário público; méritos literários
apenas desempenham um papel importante
nos últimos anos de vida. Mesmo esse
contexto externo de vida mostra que
Goethe nunca pertenceu aos escritores da
Alemanha daquela época que, para evitar
qualquer compromisso com o absolutismo
do pequeno Estado, empreenderam uma
vida literária incerta e livre. (Por exemplo,
Lessing.) Por outro lado, a sua adaptação a
este sistema não é de forma alguma simples
e direta. É preciso ter cuidado para não
superestimar o caráter revolucionário de
seus escritos de juventude. Até Napoleão
Goethes ist ganz eindeutig. Er stammt
nach damaligem Maßstabe aus dem
Großbürgertum der Freien Reichsstadt
Frankfurt. Er verlebt seine Jugend
dementsprechend ohne materielle Sorgen,
aber in dauernder materieller Abhängigkeit
von seinem Elternhause, was auch
ideologisch nicht ohne Folgen bleibt. Er lebt
später wohlhabend, aber ohne eigenes
Vermögen von seinem Beamtengehalt; die
literarischen Verdienste spielen erst in
späteren Lebensjahren eine wichtige Rolle,
Schon dieser äußerliche Lebensrahmen
zeigt, daß Goethe niemals zu jenen
Schriftstellern des damaligen Deutschlands
gehört hat, die, um jedem Kompromiß mit
dem Kleinstaatabsolutismus zu entgehen,
ein unsicheres freies Literatenleben auf sich
nahmen (Lessing). Andererseits ist sein
Sichabfinden mit diesem System
keineswegs einfach und gradlinig. Man muß
sich hüten, den revolutionären Charakter
seiner Jugendschriften zu überschätzen.
Schon Napoleon sah, daß der Konflikt
52
[NT] Esse artigo é uma adaptação com variações do artigo
O que é Goethe para nós hoje?
Apresenta
a mesma redação com a supressão de algumas passagens. Apenas as seções Pesquisa natural e
dialética” e “Panteísmo e religião, embora tenham conteúdos muito semelhantes àqueles
desenvolvimentos anteriores, receberam uma redação diferente.
György Lukács
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viu que o conflito entre o Werther burguês
e a sociedade aristocrática era um
ingrediente inorgânico nas obras; o próprio
Goethe, em
Poesia e verdade
(Livro XVII),
caracteriza as obras do período juvenil da
seguinte forma: “Eu ocupava nessa época
uma posição muito favorável em relação às
classes superiores. Se bem que no
Werther
53 sejam reprimidos com
impaciência os dissabores que uma pessoa
experimenta no limite de duas categorias
determinados, isso me era perdoado em
consideração dos outros interesses da obra,
pois cada qual percebia que ali não se tinha
em vista nenhuma ão imediata. Mas o
Götz von Berlichingen54
, me colocava muito
bem em face das classes altas”55. É de se
notar também que na edição de 1773 desta
última obra, todas as passagens da versão
original que aludiam à opressão e
exploração dos camponeses foram
eliminadas.
zwischen dem bürgerlichen Werther und der
adeligen Gesellschaft eine unorganische
Zutat im Werke ist, Goethe selbst
charakterisiert in „Dichtung und Wahrheit“
(17. Buch) die Werke der Jugendzeit
folgendermaßen. „In der Zeit war meine
Stellung gegen die oberen Stände sehr
günstig. Wenn auch im Werther die
Unannehmlichkeiten an der Grenze zweier
bestimmter Verhältnisse mit Ungeduld
ausgesprochen sind, so ließ man das in
Betracht der übrigen Leidenschaftlichkeiten
des Buches gelten, indem jedermann wohl
fühlte, daß es hier auf keine unmittelbare
Wirkung abgesehen ist. Durch den Götz von
Berlichingen aber war ich gegen die oberen
Stände sehr gut gestellt...“ Wozu noch zu
bemerken ist, d aus der Ausgabe des
letzteren Werkes (1773) alle Stellen der
ursprünglichen Fassung, wo auf die
Unterdrückung und Ausbeutung der Bauern
angespielt war, gestrichen wurden.
Mas, com todas as limitações e
compromissos indicados aqui, Goethe foi
continuador das tradições revolucionárias
do desenvolvimento anglo-francês do
século XVIII. No entanto, as próprias
manifestações de Goethe, especialmente em
Poesia e Verdade,
dão uma imagem
Aber mit allen hier angedeuteten
Beschränkungen und Kompromissen war
Goethe doch ein Fortsetzer der
revolutionären Traditionen der englisch-
französischen Entwicklung des 18.
Jahrhunderts. Allerdings geben die eigenen
Darstellungen Goethes, insbesondere in
53
[NT] GOETHE;
Os sofrimentos do jovem Werther
; trad. Marcelo Backes; Porto Alegre: L&PM Editores,
2001.
54
[NT] GOETHE;
Götz von Berlichingen da Mão de Ferro
; trad. Felipe Vale da Silva; São Paulo: Aetia
Editorial, 2020.
55
[NT] GOETHE; Memórias: poesia e verdade... op. cit.; p. 535.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 411
completamente distorcida. Na realidade,
Goethe é muito mais dependente de
Voltaire e seus sucessores do que ele
admite "oficialmente". Uma prova ainda
mais clara, porém, é sua prática. Em um
excelente ensaio sobre a correspondência
de Goethe com Charlotte von Stein (Goethe
am Scheidewege, 1909, Wk. I, 99 f.),
Mehring descobriu a ruptura decisiva em
sua vida. Goethe foi a Weimar a fim de
erradicar pelo menos os piores resquícios
do feudalismo através da sua influência
pessoal sobre o Duque, a fim de realizar os
objetivos revolucionários burgueses, pelo
menos nesta área limitada. Claro: nunca de
uma forma revolucionária; mas Voltaire
estava completamente distante disso.
Mehring mostra como Goethe falhou
miseravelmente em seus esforços de
reforma, como ele fugiu para a Itália por
essa razão - não por causa de Frau von
Stein e, como a partir daí, a resignação se
tornou a principal característica de seu ser.
„Dichtung und Wahrheit“ ein ganz
entstelltes Bild. Goethe ist in Wirklichkeit
viel abhängiger von Voltaire und seinen
Nachfolgern, als er es offiziell“ zugibt. Ein
noch deutlicherer Beweis ist aber seine
Praxis. Mehring hat in einem
ausgezeichneten Aufsatz über Goethes
Briefwechsel mit Charlotte von Stein
(Goethe am Scheidewege, 1909, W. I, 99 ff.)
den entscheidenden Bruch in seinem Leben
aufgedeckt. Goethe ging nach Weimar, um
dort wenigstens die ärgsten Überreste des
Feudalismus durch seinen persönlichen
Einfluß auf den Herzog auszumerzen, um
wenigstens auf diesem beschränkten Gebiet
die bürgerlich revolutionären Ziele zu
verwirklichen. Freilich: niemals auf
revolutionärem Wege; der lag aber auch
Voltaire vollständig fern. Mehring zeigt nun,
wie kläglich Goethe mit seinen
Reformbestrebungen gescheitert, wie er
deshalb - und nicht wegen Frau von Stein
nach Italien geflüchtet ist, wie von nun an
die Resignation zum Grundzug seines
Wesens wurde.
As duas tendências fundamentais de Goethe
Die zwei grundlegenden Tendenzen
Goethes
No entanto, tanto esse colapso quanto suas
consequências para Goethe estão
intimamente relacionados a certas
características básicas de seu ser, que
existiam no período pré-Weimar, ainda que
Allerdings stehen sowohl dieser
Zusammenbruch, wie seine Folgen für
Goethe im engsten Zusammenhang mit
gewissen Grundzügen seines Wesens, die
bereits in der vorweimarischen Periode,
György Lukács
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não totalmente desenvolvidas. Queremos
indicar brevemente os dois motivos básicos,
em que fica imediatamente claro que eles
estão ideologicamente unidos e que ambos
são consequências necessárias de seu ser
social. Em primeiro lugar, Goethe pertence
aos "entusiastas da natureza" (Marx),
àqueles representantes da ideologia
revolucionária burguesa que, do século XVI
a Feuerbach, levantaram os problemas da
revolução do pensamento do lado natural.
Em segundo lugar, Goethe coloca todas as
questões do ser social a partir da vida
privada do indivíduo burguês e não do
ponto de vista da vida pública, geral e
política da classe; portanto, do ponto de
vista da burguesia e não dos cidadãos. (Este
esquema pode ser visto claramente em
Werther
; em
Egmont
56
,
n’
Os anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
, em
Afinidades eletivas
é ainda mais evidente,
sobretudo de forma mais consciente.)
wenn auch nicht voll entfaltet, vorlagen. Wir
wollen hier die beiden grundlegenden
Motive kurz andeuten, wobei es zugleich
ohne weiteres klar wird, daß sie
weltanschaulich zusammengehören und
beide notwendige Folgen seines
gesellschaftlichen Seins sind. Erstens gehört
Goethe zu den „Naturenthusiasten“ (Marx),
das heißt zu jenen Vertretern der
bürgerlich-revolutionären Ideologie, die
vom 16. Jahrhundert bis zu Feuerbach die
Probleme der Umwälzung des Denkens von
der Naturseite aufrollten. Zweitens stellt
Goethe alle Fragen des gesellschaftlichen
Seins vom Privatleben des bürgerlichen
Individuums und nicht vom Standpunkt des
öffentlichen, allgemein, politischen Lebens
der Klasse; also vom Standpunkt des
Bourgeois und nicht des „citoyens“. (Dieses
Schema ist schon im „Werther“ klar
ersichtlich, in „Egmont“, „Wilhelm Meisters
Lehrjahre“, „Wahlverwandtschaften“ tritt es
noch deutlicher, vor allem bewußter
zutage.)
S Se considerarmos primeiro este segundo
motivo, deve ficar claro que a questão de
Goethe é uma continuação em linha direta
das tradições da literatura revolucionária
burguesa. A classe burguesa desenvolveu-
se no quadro de um feudalismo moribundo
(como o "terceiro estado"); ela costumava
Wenn wir zuerst diese zweiten Motive
betrachten, so muß es auffallen, daß
Goethes Fragestellung eine gradlinige
Fortsetzung der Traditionen der bürgerlich-
revolutionären Literatur ist. Die bürgerliche
Klasse entwickelte sich im Rahmen des
absterbenden Feudalismus (als „dritter
56
[NT] GOETHE;
Egmont
; São Paulo: Melhoramentos, 1949.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 413
ter sua própria economia, seu próprio ser
social e, consequentemente, sua própria
vida cotidiana peculiar, sua própria
moralidade, etc., antes de poder afirmar-se
politicamente, de fato, muitas vezes
reivindicou esta validade política de forma
clara e aberta. Assim, é típico dos
primórdios da literatura burguesa, que em
seus poemas, ela confronte de modo
polêmico esse ser social com o modo de
vida da classe dominante. É claro que o faz
de tal modo que se opõe ao ser de sua
própria classe como o “humano geral”,
como o “natural”, o particular, o antinatural,
o artificial etc. na vida da classe dominante.
É por isso que essa configuração determina
a representação da vida privada. É claro,
entretanto, que tais descrições da vida
privada faziam parte das lutas de classes da
época. É certo que alguns grandes
escritores surgiram de forma acusadora ou
satírica dessas representações realistas dos
problemas da vida privada burguesa, para
se tornarem grandes críticos da sociedade
como um todo nessa época de transição (Le
Sage, Swift, Lessing, etc.); é certo que
também existem alguns escritores que
levantaram a questão do lado político geral,
do lado do citoyen. No entanto, eles são
conduzidos para um método idealista
devido a sua situação social (Milton). Mas
essa colocação da vida privada em primeiro
plano, nada tem a ver com as questões
tematicamente semelhantes da burguesia
Stand“), sie hatte früher eine eigene
Ökonomie, ein eigenes gesellschaftliches
Sein und demzufolge ein eigenartiges
Alltagsleben, eine eigene Moral usw., bevor
sie sich politisch durchzusetzen vermochte,
ja häufig auch nur diese politische Geltung
klar und offen beansprucht tte.
Dementsprechend ist es für die Anfänge der
bürgerlichen Literatur typisch, daß sic
dieses gesellschaftliche Sein in ihren
Dichtungen der Lebensweise der
herrschenden Klasse polemisch
gegenüberstellt. Sie tut es selbstredend in
der Weise, daß sie ihr eigenes Klassensein
als das „allgemein Menschliche“, als das
„Natürliche“ dem Partikularen,
Unnatürlichen, Gekünstelten usw. am Leben
der herrschenden Klasse entgegensetzt.
Darum herrscht in diesen Gestaltungen die
Darstellung des privaten Lebens vor. Es ist
aber klar, daß eine solche Schilderung des
Privatlebens ein Teil der damaligen
Klassenkämpfe gewesen ist. Freilich erhebt
sich eine Reihe von großen Schriftstellern
anklagend oder satyrisch aus diesen
realistischen Darstellungen der Probleme
des bürgerlich-privaten Lebens zu großen
Kritikern der ganzen Gesellschaft dieser
Übergangsepoche. (Le Sage, Swift, Lessing
usw.) Freilich gibt es auch vereinzelte
Schriftsteller, die die Frage von der
allgemein-politischen Seite, der Citoyen-
Seite stellen. Diese werden aber durch ihre
gesellschaftliche Lage zu einer
György Lukács
414 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
em declínio. Aqui, “o mesmo” tipo de
questionamento é uma fuga dos
problemas reais da luta de classes. No
entanto, também aqui o desenvolvimento é
desigual: no século XVIII havia escritores
burgueses que tinham elementos deste
último motivo. (Sterne, um favorito
particular de Goethe, que já declarou - com
a aprovação de Goethe -: "Nossa parte nos
negócios públicos é sobretudo filisteísmo.")
idealistischen Methode getrieben (Milton).
Aber dieses In-den- Vordergrund-Stellen
des privaten Lebens hat nichts mit der
thematisch ähnlichen Fragestellung der
niedergehenden Bourgeoisie zu tun. Hier ist
„dieselbe“ Art der Fragestellung bereits ein
Ausweichen vor dem wirklichen Problem
des Klassenkampfes. Allerdings geht auch
hier die Entwicklung ungleichmäßig vor
sich: schon im 18. Jahrhundert gibt es
bürgerliche Schriftsteller, bei denen
Elemente dieser letzteren Motive vorhanden
sind. (Sterne, ein besonderer Liebling
Goethes, der bereits - von Goethe
zustimmend angeführt erklärt hat: „unser
Anteil an öffentlichen Angelegenheiten ist
meist nur Philisterei“.)
Pesquisa natural e dialética
Naturforschung und Dialektik
Antes de examinarmos mais de perto a
posição de Goethe sobre esse
desenvolvimento, é aconselhável apontar
brevemente o sentido criativo ideológico e
poético de seu “entusiasmo pela natureza”.
É bem sabido que o estudo das ciências
naturais desempenhou um papel decisivo
em toda a sua vida, que seu trabalho sobre
a história do desenvolvimento foi um
precursor do darwinismo. Aqui precisamos
mostrar apenas algumas características
específicas dessas tendências em Goethe.
Acima de tudo, que ele não foi um
estudante e continuador da orientação
Bevor wir nun Goethes Stellung zu dieser
Entwicklung näher betrachten, ist es ratsam,
kurz auf die weltanschauliche und
dichterische schöpferische Bedeutung
seines „Naturenthusiasmus“ hinzuweisen.
Daß das naturwissenschaftliche Studium in
seinem ganzen Leben eine
ausschlaggebende Rolle spielte, daß seine
entwicklungsgeschichtlichen Arbeiten
Vorläufer des Darwinismus sind, ist
allgemein bekannt. Hier müssen nur einige
spezifische Züge dieser Tendenzen bei
Goethe aufgezeigt werden. Vor allem, daß
er kein Schüler und Fortsetzer der auch
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 415
então progressiva das ciências naturais da
física matemática e dos primórdios da
química. Embora ele tenha se familiarizado
com as visões filosóficas da natureza dos
franceses e ingleses desde cedo, os pontos
de partida de sua pesquisa natural, que
também foram decisivos mais tarde, vêm da
filosofia natural - pietisticamente mediada -
da Renascença (Paracelso, etc.). Influências
de Hamann57, Lavater58 (fisiognomia) etc.
reforçaram essas tendências, e o tipo de sua
pesquisa na teoria da cor o colocou em
oposição aberta a Newton e ao todo
matemático. Certo traço retrógrado está
assim impresso em seus esforços relativos à
filosofia da natureza desde o início. Por
outro lado, em todas essas tendências
um núcleo importante da luta entre a visão
dialética da natureza e a meramente
mecanicista. (Metamorfose das plantas -
contra Lineu59; metamorfose dos animais -
contra Cuvier, para Geoflroy de Saint-
Hilaire.) Ele, portanto, pertence à cadeia de
precursores das tentativas dialéticas de
examinar a natureza na Alemanha, que se
estende de Herder a Hegel.
damals fortschrittlichen Richtung der
Naturwissenschaft der mathematischen
Physik und der Anfänge der Chemie
gewesen ist. Obwohl er mit den
naturphilosophischen Ansichten der
Franzosen und Engländer früh bekannt
wurde, stammen die für später auch
entscheidenden Ausgangspunkte seines
Naturforschens aus der pietistisch
vermittelten - Naturphilosophie der
Renaissance (Paracelsus usw.). Einflüsse von
Hamann, Lavater (Physiognomik) usw.
verstärkten diese Tendenzen, und die Art
seiner Forschung in der Farbenlehre bringt
ihn in einen offenen Gegensatz zu Newton
und zu der mathematischen Methode. Damit
ist seinen naturphilosophischen
Bestrebungen von vornherein ein
bestimmter rückschrittlicher Zug
aufgeprägt. Andererseits steckt aber in allen
diesen Tendenzen ein bedeutsamer Kern
des Kampfes der dialektischen
Betrachtungsweise der Natur gegen die
bloß mechanistische. (Metamorphose der
Pflanzen - gegen Linne; Metamorphose der
Tiere gegen Cuvier, für Geoflroy de Saint-
Hilaire.) Er gehört also in jene Vorläuferkette
der dialektischen Betrachtungsversuche der
Natur in Deutschland, die von Herder bis zu
57
[NT] Ver nota 29.
58
[NT] Johann Kaspar Lavater (1741-1801), pastor, filósofo, poeta e teólogo. Foi um adepto do
magnetismo animal na Suíça. Considerado o fundador da fisiognomonia (arte de conhecer a
personalidade das pessoas através dos traços fisionômicos).
59
Vide nota 33.
György Lukács
416 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
Hegel reicht.
Goethe chega a uma teoria da evolução que
deveria refletir o fluxo das coisas, pensar
sua rigidez dissolvida no movimento, sem
poder contudo penetrar até a dialética real.
Ele rejeita veementemente a mudança
dialética da quantidade para a qualidade em
Hegel. Quer sempre resolver as
contradições, cujo caráter fundamental ele
reconhece, (“Tudo é igual, tudo é desigual,
tudo útil e prejudicial, falante e mudo,
racional e irracional”,
Provérbios em prosa
)
de modo harmônico e não, como Hegel, o
movimento enquanto o princípio dinâmico
do desenvolvimento.
Goethe kommt zu einer Entwicklungslehre,
die den Fluß der Dinge widerspiegeln, ihre
Starrheit in Bewegung aufgelöst denken
soll, ohne dabei bis zur wirklichen Dialektik
vordringen zu können. Den dialektischen
Umschlag der Quantitätin Qualität bei Hegel
lehnt er schroff ab. Er will die Widersprüche,
deren grundlegenden Charakter er erkennt
(‚Alles ist gleich, alles ist ungleich, alles
nützlich und schädlich, sprechend und
stumm, vernünftig und unvernünftig“,
Sprüche in Prosa
) stets in Harmonie
auflösen und nicht wie Hegel in ihnen das
bewegende Prinzip der Entwicklung
erblicken.
Estado e sociedade
Staat und Gesellschaft
É aqui que se encontram os dois motivos
em sua essência, aos quais nos referimos
anteriormente. O programa de Goethe é ver
a sociedade e os acontecimentos históricos
"de cima", com o olhar frio e objetivo,
"desprovido de interesses", do cientista
natural (“Spinozista”). Esse “apartidarismo”
é tanto uma mera ilusão, que não apenas
não se prova por um momento quando se
considera a sociedade, como ilumina
retrospectivamente os limites de sua
dialética no conhecimento da natureza.
Mesmo o reacionário hegeliano de direita
Goeschel viu claramente que a rejeição de
Hier treffen sich nun jene beiden Motive
seines Wesens, auf die wir früher
hingewiesen haben. Goethe hat das
Programm, die Gesellschaft, die
geschichtlichen Ereignisse „von oben“, mit
dem kühl objektiven, von Interessen nicht
getrübten“ Auge des Naturforschers
(„spinozistisch“) zu betrachten. Diese
„Überparteilichkeit“ ist so sehr bloße
Illusion, daß sie sich nicht nur in der
Betrachtung der Gesellschaft keinen
Moment lang bewährt, sondern rückwirkend
die Grenzen seiner Dialektik auch in der
Naturerkenntnis beleuchtet. Schon der
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 417
Goethe ao vulcanismo na geologia tem a
mesma fonte que sua aversão a qualquer
transformação revolucionária da sociedade;
e inúmeros enunciados de Goethe, assim
como toda sua poesia, mostram que ele
reconhecia o princípio do movimento
apenas nos indivíduos e em seu destino
pessoal e o aplicava como base de seu
método criativo, mas que sempre
considerou o estado, a sociedade, as
instituições sociais, etc., como poderes
imutáveis do destino. Obviamente, foi difícil
para os contemporâneos da Revolução
Francesa, de Napoleão, da Santa Aliança e,
finalmente, da Revolução de Julho fechar os
olhos para o fato da transformação dessas
estruturas. Aqui, porém, a “visão da
natureza” “apartidária”, “olímpica” se torna
um dever filisteu. “Natural” é a
transformação gradual, passo a passo. A
revolução é um mal; desordem, caos. Não
que Goethe fosse radicalmente hostil ao
conteúdo social da Revolução Francesa. Sua
admiração por Napoleão, pelo herdeiro e
seguidor da revolução, é obviamente
determinada em termos de conteúdo de
classe e não um entusiasmo literário pelo
gênio “demoníaco”, como os apologistas o
retratam.
reaktionäre rechte Hegelianer Goeschel hat
klar gesehen, daß Goethes Ablehnung des
Vulkanismus in der Geologie dieselbe
Quelle hat wie seine Abneigung gegen jede
revolutionäre Umgestaltung der
Gesellschaft. Und unzählige Äußerungen
Goethes sowie seine gesamte Dichtung
zeigen, daß er das Prinzip der Bewegung
nur in den Einzelpersonen und in ihrem
persönlichen Schicksal erkannt und als
Grundlage seiner schöpferischen Methode
angewendet hat, daß er sich aber Staat,
Gesellschaft, gesellschaftliche Institutionen
usw. stets als wesentlich unwandelbare
Schicksalsmächte vorstellte. Es war freilich
für den Zeitgenossen der Französischen
Revolution, Napoleons, der Heiligen Alliance
und schließlich der Julirevolution schwer,
vor der Tatsache der Wandlung dieser
Gebilde die Augen zu schließen. Hier aber
schlägt die „überparteiische“, olympische
Naturbetrachtung“ in ein philisterhaftes
Sollen um. „Naturhaft“ ist die allmähliche
schrittweise Umwandlung. Die Revolution
ist ein Übel; Unordnung, Chaos. Nicht, als ob
Goethe dem sozialen Inhalt der
Französischen Revolution gegenüber
radikal feindlich gewesen wäre. Seine
Verehrung für Napoleon, für den Erben und
Vollstrecker der Revolution ist
selbstverständlich inhaltlich klassenmäßig
bedingt und nicht ein literatenhaftes
Schwärmen für das „dämonische Genie“, wie
es die Apologeten darstellen.
György Lukács
418 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
Essa veneração de Napoleão e a rejeição da
guerra de libertação contra Napoleão
surgiram da mesma fonte que os esforços
de reforma do primeiro período de Weimar.
Mas aqui como ali, Goethe não penetra até
as raízes; nem tanto quanto teria sido
possível no estágio de desenvolvimento da
burguesia alemã com os meios de
pensamento da época.
Diese Napoleonverehrung sowie die
Ablehnung des Freiheitskrieges gegen
Napoleon stammt aus derselben Quelle wie
die Reformbestrebungen der ersten
Weimarer Periode. Aber hier wie dort dringt
Goethe nicht bis zu den Wurzeln; nicht
einmal so weit, wie es auf der damaligen
Entwicklungsstufe des deutschen
Bürgertums mit seinen damaligen
Denkmitteln möglich gewesen wäre.
Não foi além de Voltaire, por exemplo:
reformas, transformação burguesa do
Estado e da sociedade; mas “de cima”, sem
que “a multidão” tenha nada a ver com isso.
A concepção dessas reformas também não
é apreendida a partir do ponto central, da
economia. Goethe reconheceu,
especialmente na velhice, a importância
técnica e revolucionária do capitalismo
(Canal de Suez, Canal do Panamá, fim de
"Fausto" II), e não desconhecia inteiramente
as implicações sociopolíticas deste
desenvolvimento técnico ("Os caminhos-de-
ferro criam a unidade alemã"; Eckermann,
23 de outubro de 182860). Mas a economia
do capitalismo, o significado da economia
como a “anatomia” da sociedade burguesa,
era um livro com sete selos para ele.
Embora tenha lido Necker61 quando era um
ministro (carta para Charlotte von Stein, 8
Er ist hier nicht weiter gekommen als etwa
Voltaire: Reformen, bürgerliche
Umgestaltung von Staat und Gesellschaft;
aber von oben“, ohne daß „die Menge“
damit aktiv zu tun haben dürfte. Dabei ist
die Konzeption dieser Reformen auch nicht
aus dem Mittelpunkt, aus der Ökonomie
erfaßt. Goethe erkannte zwar, insbesondere
im Alter, die technisch-umwälzende
Bedeutung des Kapitalismus (Suez-Kanal,
Panama-Kanal, Schluß von Faust II), ja er
war auch über die geselischaftlich politische
Tragweite dieser technischen Entwicklung
nicht ganz im unklaren (Eisenbahnen
schaffen die deutsche Einheit, Eckermann,
23. Oktober, 1828). Aber die Ökonomie des
Kapitalismus, die Bedeutung der Ökonomie
als „Anatomie“ der bürgerlichen
Gesellschaft war für ihn ein Buch mit sieben
Siegeln. Zwar hat er in seiner Ministerzeit
60
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit.
; p. 657.
61
[NT] Jacques Necker (1732-1804) foi um banqueiro suíço e estadista que serviu como ministro das
finanças de Luís XVI.
Lukács sobre Goethe
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de abril [! 8 de setembro (e 11 de
setembro)] 1785), mas mais tarde - em
nítido contraste com Hegel - o
desenvolvimento da economia na Inglaterra
passou-lhe despercebido. É por isso que a
inclusão dos problemas econômicos (a
agricultura capitalista nos
Anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
etc.) não
pode tirar de suas obras a rigidez estática
do contexto social. Quanto mais poderosos
eram os acontecimentos mundiais que se
lhe associam, mais acentuado era o
contraste entre os destinos puramente
privados retratados em primeiro plano e o
contexto social figurado. (Revolução
Francesa em
Hermann e Dorothea
).
Necker gelesen (an Charlotte von Stein, 8.
[und] ıı. [September] 1785), aber später
ging in schroffem Gegensatz zu Hegel
die Entwicklung der Ökonomie in England
unbemerkt an ihm vorbei. Darum kann das
Hineinspielen ökonomischer Probleme
(kapitalistische Landwirtschaft in „Wilhelm
Meisters Lehrjahre“ usw.) seinen Werken
das statisch Starre des gesellschaftlichen
Hintergrundes nicht nehmen. Je mächtiger
die hineinspielenden Weltereignisse sind,
desto schroffer kommt gerade dieser
Kontrast zwischen den bewegt
dargestellten rein privaten Schicksalen im
Vordergrund und dem stehend gedachten
gesellschaftlichen Hintergrund zur Geltung
(Französische Revolution in „Hermann und
Dorothea“).
Panteísmo e religião
Pantheismus und Religion
Com isso voltamos ao ponto de partida, aos
fundamentos de classe do ser goethiano.
Esse contraste expressa ideológica e
poeticamente aquela tendência básica de
Goethe de que via o desenvolvimento na
linha da "modernização" e gradual
capitalização da Alemanha feudal-
absolutista de sua época de mãos dadas
com a ascensão e "florescimento" da
burguesia na corte. A forma “natural”,
“orgânica” de desenvolvimento do Estado e
da sociedade acaba por ser uma tendência
ideológica decorrente dessa posição de
Damit sind wir zum Ausgangspunkt, zur
Klassengrundlage des Goetheschen Seins
zurückgekehrt. Dieser Kontrast drückt
weltanschaulich und dichterisch jene
Grundtendenz Goethes aus, daß er die
Entwicklung in der Linie der
„Modernisierung“ und allmählichen
Durchkapitalisierung des feudal-
absolutistischen Deutschlands seiner Zeit
Hand in Hand mit dem Aufstieg, der „Blüte“
des Bürgertums in den Hofadel erblickt hat.
Die „naturhafte“, „organische“
Entwicklungsform von Staat und
György Lukács
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classe. Na verdade, verifica-se que essa
tendência foi transposta muito menos do
método científico natural de Goethe para
sua maneira de ver a sociedade, o Estado e
a história do que, inversamente, originou-se
dessa última e se tornou dominante no
primeiro; o que, é claro, não exclui
interações, uma vez que ambos derivam do
mesmo ser social. Essa conexão também se
mostra claramente na síntese filosófica da
visão de mundo de Goethe: [que] do seu
panteísmo ao "indiferentismo", leva à
tolerância das mais diversas ideologias
religiosas. Goethe sempre ao seu
spinozismo uma virada tal que Deus o
desaparece na unidade de Deus e da
natureza: seu panteísmo não é um “ateísmo
polido”, mas sim um compromisso
diplomático entre religião e pesquisa
natural imparcial. Com Goethe, isso cria uma
forma peculiar de compromisso ideológico
típico entre a burguesia e a religião. A
liberdade de pesquisa natural, que é
indispensável para o desenvolvimento das
forças produtivas, é reforçada sem
prejudicar as influências ideológicas da
Igreja e da religião sobre as massas. Com
Goethe, esse compromisso assume a forma
pela qual “com as múltiplas direções do
meu ser, não poderia ter apenas uma forma
de pensar: como poeta e artista sou um
politeísta, mas como cientista natural sou
panteísta... Se eu precisar de um deus para
a minha personalidade como homem moral,
Gesellschaft erweist sich also als eine aus
dieser Klassenlage entspringende
ideologische Tendenz. Ja es zeigt sich, daß
diese Tendenz viel weniger aus der
naturwissenschaftlichen Methode Goethes
in seine Betrachtungsweise von
Gesellschaft, Staat und Geschichte
hineingetragen wurde, als vielmehr
umgekehrt, aus dieser entstammend, in
jener herrschend geworden ist; was
selbstredend Wechselwirkungen nicht
ausschließt, da beide aus dem gleichen
gesellschaftlichen Sein herrühren. Dieser
Zusammenhang zeigt sich auch ganz klar in
der philosophischen Zusammenfassung von
Goethes Weltanschauung: [der] in seinem
Pantheismus zum „Indifferentismus“, d. h.
zur Duldung der verschiedensten religiösen
Ideologien führt. Goethe gibt seinem
Spinozismus immer eine solche Wendung,
daß in der Einheit von Gott und Natur Gott
nicht verschwindet: sein Pantheismus ist
kein „höflicher Atheismus“, vielmehr ein
diplomatisches Kompromiß zwischen
Religion und unbefangener Naturforschung.
Damit entsteht bei Goethe eine eigenartige
Form des typischideologischen
Kompromisses der Bourgeoisie mit der
Religion. Es wird die für die Entwicklung der
Produktivkräfte unentbehrliche Freiheit der
Naturforschung erzwungen, ohne dabei die
ideologischen Einflüsse von Kirche und
Religion auf die Massen zu beeinträchtigen.
Bei Goethe nimmt dieses Kompromiß die
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 421
isso também está cuidado” (carta a FH
Jacobi, 6. ı. 1813). Ele quer ter as mãos
completamente livres dos laços religiosos
na ciência e na arte, sem entrar em conflito
aberto com a religião, com as estruturas da
sociedade civil que ele apoia
ideologicamente (casamento, etc.). Engels,
portanto, tem razão ao dizer: “Goethe não
gostava de lidar com 'Deus', a palavra o
incomodava, ele se sentia em casa no
'humano', e essa humanidade, essa
emancipação da arte dos grilhões da
religião é o que constitui a grandeza de
Goethe” (Die Lage Englands, Werke II, 428.)
Mas Goethe é, como Engels mostra mais
tarde na crítica ao livro de Grün sobre
Goethe, de natureza ambivalente: “ora
colossal, ora mesquinho”, e cria por meio
esta ambiguidade, em sua rejeição da
religião, forneceu uma base ideológica para
a burguesia ale do capitalismo em
declínio: negar a religião de uma forma "não
vinculativa" e, ao mesmo tempo, deixá-la
ingressar de uma forma "estética",
"espiritual", "mítica", "simbólica "etc. Como
uma espécie de religião, esse panteísmo
realmente se torna a religião de uma parte
da "Alemanha educada", de acordo com a
necessidade; até mesmo Heine, que viu
claramente esse perigo no panteísmo
goetheano, sucumbiu a ele mais de uma
vez.
Form auf, er könne „bei den mannigfaltigen
Richtungen meines Wesens nicht an einer
Denkweise genug haben: als Dichter und
Künstler bin ich Po- Iytheist, Pantheist
hingegen als Naturforscher... bedarf ich
eines Gottes für meine Persönlichkeit als
sittlicher Mensch, so ist dafür auch gesorgt“
(Brief an F. H. Jacobi, 6. ı. 1813). Er will also
für sich in Wissenschaft und Kunst
vollkommen freie Hand von religiösen
Bindungen haben, ohne deshalb in einen
offenen Konflikt mit der Religion, mit den
von ihr ideologisch unterstützten Gebilden
der bürgerlichen Gesellschaft (Ehe usw.) zu
geraten. Engels sagt daher mit vollem
Recht: „Goethe hatte nicht gern mit ‚Gott‘ zu
tun, das Wort machte ihn unbehaglich, er
fühlte sich nur im Menschlichen heimisch,
und diese Menschlichkeit, diese
Emanzipation der Kunst von den Fesseln
der Religion macht eben Goethes Größe
aus.“ (Die Lage Englands, Werke II, 428.)
Aber Goethe ist, wie es Engels später, in der
Kritik des Grünschen Goethe- Buches
nachweist, von zwiespältiger Natur: „bald
kolossal, bald kleinlich“, und schafft durch
diese Zwiespältigkeit in seiner Ablehnung
der Religion eine ideologische Grundlage
für die deutsche Bourgeoisie des
niedergehenden Kapitalismus: die Religion
in einer „unverbindlichen“ Form zu
verneinen und zugleich in einer
„ästhetischen“, „seelischen“, „mythischen“,
„symbolischen“ usw. Form wieder
György Lukács
422 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
hereinzulassen. So wird dieser Pantheismus
als eine Art Religion je nach Bedarf wirklich
zur Religion eines Teiles des „gebildeten
Deutschlands“, selbst Heine, der diese
Gefahr im Goctheschen Pantheismus klar
erblickt hat, ist ihr mehr als einmal erlegen.
Método criativo
Schöpferische Methode
A mesma ambiguidade, cuja raiz
reconhecemos no ser social de Goethe, se
mostra em seu método criativo. Sua
principal característica é um realismo sadio.
Goethe sempre quer partir do exterior, da
realidade objetiva e figurar tudo o que é
“interior” como sua consequência, seu
reflexo. Ele diz: O clássico é sadio, o
romântico é doente. Ovídio permaneceu
classicamente até no exílio: ele não busca o
seu infortúnio em si mesmo, mas no
distanciamento da capital do mundo... O
universal e o particular coincidem; o
particular é o universal, aparecendo em
diferentes condições... portanto, também o
mais particular que acontece, aparece
sempre como imagem e semelhança do
mais universal...” (Provérbios em prosa). Por
consequência, “o poeta”, explica Goethe
(Eckermann, 11 de junho de 1825), “deve
abordar o particular e, quando este for algo
sadio, expressará através dele o
universal”62.
Dieselbe Zwiespältigkeit, deren Wurzel wir
im gesellschaftlichen Sein Goethes erkannt
haben, zeigt sich in seiner schöpferischen
Methode, Ihr Grundzug ist ein gesunder
Realismus. Goethe will stets von der
äußeren, von der objektiven Wirklichkeit
ausgehen und alles „Innere“ als dessen
Folge, dessen Reflex gestalten. So sagt
Goethe: Das Allgemeine und Besondere
fallen zusammen: Das Besondere ist das
Allgemeine unter verschiedenen
Bedingungen erscheinend,.... deswegen
auch das Besonderste, das sich creignet,
immer als Bild und Gleichnis des
Allgemeinsten auftritt... .“ (Sprüche in
Prosa). „Der Poet“, führt Goethe darum ganz
konsequent aus (Eckermann, ıı. ı. [! 6.]
1825), „soll das Besondere ergreifen, und
wird, wenn dieses nur etwas Gesundes ist,
darin ein Allgemeines darstellen.“
62
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit
.; p. 164.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 423
A aplicação desses princípios é onde reside
a grandeza poética de Goethe. Aqui ele
herda a poesia realista-revolucionária da
burguesia em ascensão. A posição de
Goethe nesse processo de desenvolvimento
não é de modo algum clara e simples. Por
um lado, ele se recusa a seguir a transição
na direção do idealismo (ao contrário de
Schiller, também ao romantismo), por outro
lado, ele não está em condições de figurar
de modo consistente o movimento dialético
do conteúdo que tem em mente com meios
realistas.
In der Durchführung dieser Prinzipien liegt
die dichterische Größe Goethes. Er tritt hier
das Erbe der realistisch-revolutionären
Dichtung der aufstrebenden Bourgeoisie an.
Goethes Stellung in diesem
Entwicklungsprozeß ist aber keineswegs
eindeutig und einfach. Einerseits lehnt er es
ab, auf dem Weg der Dialektik das
Umschwenken in die Richtung des
Idealismus mitzumachen (Gegensatz zu
Schiller, auch zur Romantik). Andererseits ist
er nicht imstande, die dialektische
Bewegtheit des Inhalts, der ihm vorschwebt,
konsequent mit realistischen Mitteln zu
gestalten.
Este realismo é de grande liberdade e
generosidade nos princípios da
configuração. Em sua crítica a Grün, Engels
também aponta que o homem goethiano é
um homem de carne e osso real e não uma
abstração feeuerbachiana. No entanto, esse
grande método criativo sempre falha
quando Goethe é tematicamente forçado a
abordar conteúdos em relação aos quais
sua dialética e seu realismo falham por
razões ideológicas. Goethe descreve a
atmosfera sensível e espiritual de uma
época, de uma classe social, em todos os
seus pormenores de uma forma cativante e
generosa, todavia não retrata a sua
totalidade, mas sim a faz figurar obliqua,
unilateral e estaticamente (Götz von
Berlichingen, Wilhelm Meister, etc.). Nesse
Dieser Realismus ist frei und großzügig in
den Gestaltungsprinzipien. Engels weist in
seiner Grün-Kritik mit Recht darauf hin, daß
der Goethesche Mensch ein Mensch von
wirklichem Fleisch und Blut und nicht eine
Feuerbachsche Abstraktion sei. Diese
großartige schöpferische Methode muß
jedoch stets versagen, wenn Goethe
thematisch gezwungen ist, an Inhalte
heranzutreten, denen gegenüber seine
Dialektik und sein Realismus aus
weltanschaulichen Gründen versagen. Die
sinnliche wie geistige Atmosphäre einer
Zeit, einer Gesellschaftsschicht schildert
Goethe oft in allen Einzelheiten packend
und großzügig, ihre Gesamtheit gestaltet er
aber überhaupt nicht oder schief, einseitig,
statisch (Götz von Berlichingen, Wilhelm
György Lukács
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aspecto, Goethe está entre os grandes
realistas dos séculos XVIII e XIX (Defoe,
Fielding, Balzac).
Meister usw.). In dieser Hinsicht steht
Goethe tief unter den großen Realisten des
18. und 19. Jahrhunderts (Defoe, Fielding,
Balzac).
Assim, o método criativo de Goethe
apresenta a mesma contradição de sua
visão de mundo. E aqui como ali seu efeito
no campo burguês está ligado aos lados
débeis, filisteus, comprometedores de seu
ser contraditório ou, na melhor das
hipóteses, à mistura de características
filisteias e grandiosas. Para o proletariado,
é importante encontrar, ao mesmo tempo, a
ligação e a distinção corretas com críticas
severas e processar a grandeza que em
Goethe de forma materialista e dialética.
So zeigt sich in Goethes schöpferischen
Methoden derselbe Gegensatz wie in seiner
Weltanschauung. Und hier wie dort knüpft
seine Wirkung im bürgerlichen Lager an die
schwächlichen, philisterhaften,
kompromißlerischen Seiten seines
widerspruchsvollen Wesens an oder
bestenfalls an die Vermischung der
philisterhaften und großartigen Züge. Für
das Proletariat kommt es darauf an, mit
scharfer Kritik den richtigen
Zusammenhang und zugleich die richtige
Scheidung zu finden und das Große an
Goethe, materialistisch dialektisch zu
verarbeiten.
Illustrierte Neue Welt, 2/1932
Goethes Weltanschauung. In: KLEIN: Berlin; Weimar: Aufbau, 1990. pp. 433-441.
Publicado originalmente em Illustrierte Neue Welt, 2/1932. [1932c]
Lukács sobre Goethe
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Goethe und die Gegenwart
Einige grundsätzliche Bemerkungen zu den Goethe-Vorträgen der deutschen Sender
Goethe e o presente
Algumas observações básicas sobre as palestras sobre Goethe nas emissoras alemãs
Nesse ano, as portas das estações de rádio
estarão amplamente abertas aos papas e
aos filisteus de Goethe. Com isso, os
programas de rádio de todas as estações
alemãs receberão este ano a sua espinha
dorsal espiritual, por mais fraca que seja.
Uma torrente de discursos cairá sobre os
ouvintes, a única saída é desligá-los.
In diesem Jahr werden den Goethe-Päpsten
und den Goethe-Philistern die Tore der
Funkhäuser weit geöffnet. Mit Goethe
werden die Rundfunkprogramme aller
deutschen Sender in diesem Jahr ihr, wenn
auch noch so schwaches, geistiges Rückgrat
erhalten. Ein Strom von Reden wird sich
über die Hörer ergießen, denen als Ausweg
nur noch das Abstellen bleibt.
O que é que os ouvintes que trabalham
sabem sobre Goethe? Ouviram-no uma vez
na escola e de uma forma tão aborrecida
que muito que o esqueceram. O que é
Goethe para nós, um grande poeta que foi
também um ministro! - temos outras
preocupações, será a resposta da maioria
dos ouvintes trabalhadores. Goethe tornou-
se e permaneceu parte integrante da
educação da classe dominante. Também
este ano, a rádio fingirá que todo o
trabalhador ouvinte leva o seu Goethe no
bolso do seu colete, e apenas espera que
um papa no assunto lhe apresente o exame
mais preciso da moralidade e da virtude na
vida de Goethe, que nunca foram violadas.
Was wissen die werktätigen Hörer von
Goethe? Irgendwann hat man das einmal in
der Schule gehört und zudem in einer so
langweiligen Art, daß man es längst
vergessen hat. Ein großer Dichter, der
gleichzeitig Minister war! wir haben
andere Sorgen, was geht uns Goethe an,
wird die Antwort der meisten Arbeiterhörer
sein. Goethe ist ein fester Bestandteil der
Bildung der herrschenden Klasse geworden
und geblieben. Und auch in diesem Jahr
wird .der Rundfunk so tun, als wenn jeder
Arbeiterhörer seinen Goethe in der
Westentasche trägt und nur darauf wartet,
daß ihm ein Goethe-Papst eine genaueste
Untersuchung einer nie verletzten Moral
und Tugend in Goethes Leben vorsetzt.
György Lukács
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Mesmo assim, é importante tratar mais de
perto e de maneira crítica essas palestras
sobre Goethe no rádio como manifestações
de um espírito profundamente reacionário,
e isso será feito brevemente aqui. Como no
caso de Hegel, a “opinião pública” burguesa
tentará compilar uma imagem
uniformemente reacionária a partir dos
lados retrógrados da personalidade
contraditória de Goethe e usá-la como um
modelo para o presente. Sua tarefa é muito
mais fácil desta vez. Porque a
reinterpretação de Goethe como o santo
padroeiro do filisteísmo reacionário tem
uma velha tradição na Alemanha. Hoje
apenas precisa ser moldado de acordo com
as necessidades fascistas atuais, mas
também não é necessário levar a
reinterpretação tão longe para transformar
Goethe, assim como Hegel, em um fascista
ativo. A tarefa que Goethe sempre assumiu
nas lutas intelectuais da burguesia alemã
também pode ser cumprida hoje: ele serve
de modelo para toda a pequena burguesia
que não se preocupa com “política” ou
“interesses gerais”, mas que procura e
encontra no “desdobramento da
personalidade” um campo de atividade que
seja “superior” ao dessas “lutas inferiores”.
Ao mesmo tempo, no entanto, tal atividade
deve se conciliar com as “demandas do dia”.
Ou seja, a "personalidade" polida de Goethe
adapta-se a qualquer ordem social (claro
que apenas a capitalista), com a condição
Aber dennoch ist es wichtig, sich mit diesen
Goethe-Vorträgen des Rundfunks als
Erscheinungen eines zutiefst reaktionären
Geistes näher und kritisch zu befassen, und
das soll hier kurz geschehen. Die
bürgerliche „öffentliche Meinung“ wird,
ebenso wie bei Hegel, versuchen, aus den
rückständigen Seiten der
widerspruchsvollen Persönlichkeit Goethes
ein einheitlich reaktionäres Bild
zusammenzustellen und es als Vorbild der
Gegenwart entgegenzuhalten. Ihre Aufgabe
ist diesmal viel leichter. Denn die
Umdeutung Goethes zum Schutzpatron des
reaktionären Philistertums hat in
Deutschland eine alte Tradition. Sie m
heute bloß den aktuell-faschistischen
Bedürfnissen entsprechend weitergebildet
werden, es ist aber auch nicht notwendig,
die Umdeutung so weit zu treiben, um aus
Goethe einen aktiven Faschisten, wie aus
Hegel, zu machen. Die Aufgabe, die Goethe
in den geistigen Kämpfen der deutschen
Bourgeoisie stets einnahm, läßt sich auch
heute erfüllen: er dient als Muster für alle
Kleinbürger, die sich nicht um „Politik“, nicht
um „allgemeine Interessen“ kümmern,
sondern in der „Entfaltung der
Persönlichkeit“ ein Tätigkeitsfeld suchen
und finden, das „höher“ steht als diese
„niedrigen Kämpfe“. Zugleich soll aber eine
solche Tätigkeit mit den „Forderungen des
Tages“ versöhnen. Das heißt, die von
Goethe erzogene „Persönlichkeit“ paßt sich
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 427
de que ele erga um reino de sua própria
personalidade “livre”, “atemporal” “atrás”,
“acima” dessa passividade pública.
einer beliebigen Gesellschaftsordnung
(freilich nur einer kapitalistischen) an, mit
dem Vorbehalt, daß er „hinter“, „über“
dieser öffentlichen Passivität sich ein Reich
der eigenen „freien“, „zeitlosen“
Persönlichkeit errichtet.
Este modelo goethiano surge - como
sempre quando a burguesia toma os
modelos de seu período revolucionário -
enfatizando os traços retrógrados e
comprometedores de uma figura como os
únicos essenciais, tudo o mais, tanto o traço
progressista e revolucionário quanto as
causas sociais do compromisso, deve ser
omitido. Ambos também ocorrem no caso
de Goethe. O fator mais importante é a
ocultação do compromisso e suas causas.
Porque os elementos progressistas da visão
de mundo de Goethe residem - em parte -
em áreas que também são aceitáveis para a
burguesia alemã de hoje.
Dieses Goethesche Vorbild entsteht wie
stets, wenn die Bourgeoisie ihre Vorbilder
aus ihrer revolutionären Periode holt -
dadurch, daß die rückständigen,
kompromißlerischen Züge einer Gestalt als
die allein wesentlichen hervorgehoben, alles
andere, sowohl das Fortschrittliche und
Revolutionäre wie die gesellschaftlichen
Ursachen des Kompromisses, weggelassen
werden. Auch bei Goethe geschieht beides.
Dabei ist das Verschweigen des
Kompromisses und seiner Ursachen das
wichtigere Moment. Denn die
fortschrittlichen Elemente von Goethes
Weltanschauung liegen - teilweise auf
Gebieten, die auch für die heutige deutsche
Bourgeoisie tragbar sind.
A falsificação da imagem de Goethe consiste
principalmente no fato de que a
ambiguidade de sua posição nas lutas de
classes de seu tempo é obscurecida. A
ambiguidade que, como enfatiza Marx,
consiste no fato de que ele às vezes “fugia
hostilmente” da realidade alemã de seu
tempo, “se rebela”, “derrama sobre ela sua
zombaria amarga”, mas logo se torna
“amigo” dela, “se lança nela”, sim ele a
Die Verfälschung von Goethes Bild besteht
also vor allem darin, daß die Zwiespältigkeit
seiner Stellung in den Klassenkämpfen
seiner Zeit verwischt wird. Die
Zwiespältigkeit, die, wie es Marx
hervorhebt, darin besteht, daß er bald vor
der deutschen Wirklichkeit seiner Zeit
„feindselig flieht“, „gegen sie rebelliert“,
seinen „bitteren Spott über sie ausgießt“,
bald aber sich mit ihr „befreundet“, sich „in
György Lukács
428 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
“celebra” e a “defende”. Como
consequência dessa dicotomia, Goethe
torna-se, segundo a caracterização de Marx,
“ora colossal, ora mesquinho, ora
desafiador, gênio zombeteiro, que despreza
o mundo, ora mais atencioso, frugal, filisteu
estreito”. E na medida em que o princípio
de discórdia é afastado da vida de Goethe,
todo o seu desenvolvimento é falsificado. A
catástrofe decisiva na vida de Goethe é que
ele tentou, nos primeiros anos de Weimar,
realizar pelo menos parte das demandas
econômicas e sociais da classe burguesa
daquela época, ainda que "de cima",
falhando vergonhosamente nessa
empreitada. E agora também a tentativa
ansiosa para se manter longe de combates
desse tipo desaparece da imagem burguesa
de Goethe. Não é mencionado que o Goethe
"olímpico" do período tardio era um homem
resignado que - com vários graus de
sucesso - se esforçou para separar sua vida
privada e, nesse âmbito, manter e
desenvolver os ideais da burguesia
progressista. A debilidade da classe
burguesa da época quebrou em dois o
desenvolvimento do maior poeta alemão.
Se, no entanto, essa ruptura não for apenas
encoberta, mas idealizada como modelo,
pode surgir daí uma tendência reacionária -
não importa se defendida por professores
ligados à tradição ou por figuras literárias
anarquistas. O proletariado revolucionário
quer aprender dialeticamente com o legado
sie schickt“, ja sie „feiert“ und „verteidigt“.
Infolge dieses Zwiespalts wird Goethe, nach
der Charakteristik von Marx, „bald kolossal,
bald kleinlich, bald trotziges, spottendes,
weltverachtendes Genie, bald
rücksichtsvoller, genügsamer, enger
Philister“. Und indem das Prinzip des
Zwiespalts aus Goethes Leben
wegretouschiert wird, wird seine ganze
Entwicklung verfälscht. Die entscheidende
Katastrophe in Goethes Leben, daß er in
den ersten Weimarer Jahren versucht hat,
wenigstens einen Teil der ökonomischen
und sozialen Forderungen der bürgerlichen
Klasse dieser Zeit, wenn auch „von oben“ zu
verwirklichen, daß er mit diesem Bestreben
schmählich gescheitert ist und von nun an
ängstlich bemüht war, sich von Kämpfen
dieser Art fernzuhalten, verschwindet aus
dem Goethe-Bild der Bourgeoisie. Sie
verschweigt, daß der olympische“ Goethe
der Spätzeit ein Resignierter gewesen ist,
der mit sehr wechselndem Erfolg -
bemüht war, sein Privatleben für sich
abzugrenzen und in diesem Privatleben die
Ideale der progressiven Bürgerlichkeit
aufrechtzuerhalten und weiterzuentwickeln.
Die Schwäche der bürgerlichen Klasse
dieser Zeit hat die Entwicklung des größten
deutschen Dichters entzweigebrochen. Wird
aber dieser Bruch nicht nur verkleistert,
sondern sogar zur Vorbildlichkeit idealisiert,
so kann daraus nur eine reaktionäre
Tendenz entstehen ganz einerlei, ob sie
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022 | 429
da época progressista de desenvolvimentos
anteriores. Rejeita categoricamente o ponto
de vista de Mehring, como se Goethe,
falsificado pela burguesia, esperasse uma
restauração, uma “ressurreição” na
sociedade socialista. A restauração de
Goethe significa uma restauração das
contradições em sua posição de classe, as
declarações e soluções contraditórias que
resultaram para ele.
von traditionsgebundenen Professoren oder
anarchistelnden Literaten vertreten wird.
Das revolutionäre Proletariat will aus dem
Erbe der fortschrittlichen Epoche früherer
Entwicklungen dialektisch lernen. Es lehnt
dabei den Standpunkt Mehrings, als ob den
von der Bourgeoisie verfälschten Goethe in
der sozialistischen Gesellschaft eine
Wiederherstellung, eine „Auferstehung“
erwarten würde, kategorisch ab. Die
Wiederherstellung Goethes bedeutet eine
Wiederherstellung der Widersprüche seiner
Klassenlage, der widerspruchsvollen
Stellungnahmen und Lösungen, die sich
daraus für ihn ergeben haben.
Nesta base - mas somente nesta base -
Goethe é uma parte muito importante do
legado que o proletariado revolucionário
deve absorver para construir sua cultura
socialista. Mas se trata de uma absorção
dialético-crítico: um exame materialista e
crítico da herança, uma eliminação
implacável de tudo que é obsoleto ou
reacionário, uma absorção crítica e um
desenvolvimento adicional dos elementos
progressivos da obra da vida de Goethe. A
extensão e o conteúdo desse legado ainda
não podem ser avaliados hoje - quando
ainda não fizemos o primeiro trabalho
preparatório. Mas a rejeição mais implacável
da propaganda radiofônica reacionária de
Goethe não deve nos levar à idealização
realizada por Mehring ou à rejeição cega
Auf dieser Grundlage aber nur auf dieser
Grundlage - ist Goethe ein sehr wichtiges
Stück jenes Erbes, das das revolutionäre
Proletariat antreten, für sich verarbeiten
muß, um seine sozialistische Kultur
aufzubauen. Dies ist aber ein dialektisch-
kritisches Verarbeiten: eine materialistische
Sichtung und Kritik des Erbes, ein
unnachsichtiges Ausscheiden alles
Veralteten oder Reaktionären, ein kritisches
Verarbeiten und Weiterbilden der
fortschrittlichen Elemente von Goethes
Lebenswerk. Umfang und Inhalt dieses
Erbes läßt sich heute wo von uns nicht
einmal die ersten Vorarbeiten gemacht
worden sind noch nicht abschätzen. Aber
die rücksichtsloseste Ablehnung der
reaktionären Goethe-Propaganda im
György Lukács
430 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - mar. 2022
desse legado.
Rundfunk darf uns weder zu einer
Mehringschen Idealisierung noch zu einem
blinden Verwerfen dieses Erbes verleiten.
Arbeiter-Sender, 2/1932
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Em prol de uma boa causa: a correspondência
entre György Lukács e Günther Anders
Carolina Peters*
Murilo Leite**
Para quem estuda a obra teórica de um determinado autor, o contato com sua
correspondência, tanto ativa quanto passiva, é sempre uma fonte importante de
pesquisa. Exigindo cuidado redobrado quando utilizadas como fonte da investigação
filosófica, mesmo aquelas cartas mais íntimas são capazes de aproximar o pesquisador
de seu objeto de estudo, seja porque desvelam aspectos biográficos que ajudam a
iluminar o curso de uma trajetória intelectual o escopo de suas preocupações,
referências culturais e bibliográficas, relações pessoais, sua reação a eventos históricos
etc. , seja porque, constrangidos aos limites mais restritos da comunicação epistolar,
os remetentes são levados a explicitar de maneira sintética problemas longamente
desenvolvidos, em textos publicados ou manuscritos mantidos na gaveta.
A correspondência entre György Lukács e Günther Anders, filósofo polonês
radicado na Áustria, aqui publicada pela primeira vez em língua portuguesa,
certamente oferecerá aos estudiosos das obras dos autores contribuições valiosas
acerca de suas produções intelectuais, além da relação de ambos com os problemas
de seu tempo. Os dois trocaram cartas com regularidade entre julho de 1964 e abril
de 1971, ano do falecimento do marxista húngaro; um período agitado, que
compreendeu as repercussões do bombardeio a Hiroshima e Nagasaki, a guerra do
Vietnã, os movimentos políticos de Maio de 68 e as lutas do movimento negro por
direitos civis nos Estados Unidos. Durante esse tempo, cada qual se dedicava àquela
que se tornou sua
magnum opus
: Lukács, à sua ontologia do ser social, e Anders, à
segunda parte de seu trabalho sobre a obsolescência do homem, ainda inédito em
* Mestranda em Filosofia pela UFMG, graduada em Letras pela UFRJ. E-mail:
carolinapeters50@gmail.com.
** Professor do Curso de Direito da UEMG campus Ituiutaba, doutorando em Direito pela UFMG. Email:
murilo.leite.pereira@gmail.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.654
Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e Günther Anders
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 310-316 - mar. 2022 | 311
português.
Não obstante, estavam atentos aos acontecimentos e protagonizaram iniciativas
de resistência. Anders foi uma figura destacada no movimento antinuclear, e Lukács
encabeçou uma iniciativa de intelectuais europeus pela liberdade de Angela Davis.
Como se vê, os filósofos demonstraram profundo compromisso com aquelas que eram
as grandes causas do presente. Foram, portanto, filhos de seu tempo e, mais do que
apreender seu tempo em pensamento, engajaram-se pela transformação efetiva do
mundo, ainda que conforme as cartas revelam nem sempre estivessem de acordo
quanto à tática a ser adotada. Diferenças à parte, partilhavam de uma visão de mundo
comum que dava substância à sua amizade. Com maior otimismo, como no caso de
Lukács, ou com uma atitude mais pessimista, como a de Anders, mas, em todo caso,
sempre dispostos a tomar uma posição enérgica e prática em prol de uma boa causa”,
como escreve o húngaro sobre o companheiro.
O intervalo de quase uma década coberto pela correspondência contempla
alguns períodos de comunicação mais intensa, praticamente semanal (uma semana,
informa Lukács, era aproximadamente o tempo necessário para que uma carta
chegasse de Budapeste a Viena, ou fizesse o caminho inverso), o que nos permite
discernir pelo menos três blocos de debates, com seus respectivos eixos temáticos.
O primeiro deles gira em torno do problema do estranhamento e das discussões
sobre Claude Eatherly, oficial da Força Aérea estadunidense que entrou para os anais
da história como “o piloto de Hiroshima”. Em 6 de agosto de 1945, a bordo do
bombardeiro
Enola Gay
, Eatherly sobrevoava Hiroshima com ordens para fornecer um
relatório meteorológico, quando a bomba foi lançada; no momento da explosão,
encontrava-se a menos de 500 quilômetros do local. Horrorizado com o ocorrido,
Eatherly recusou ativamente o cínico epíteto de “herói de guerra”, o que não impediu
que fosse acusado reiteradamente de mentiroso e autor do disparo. Anders foi um de
seus maiores defensores e, ao longo da década de 1960, dedicou-se intensamente,
em detrimento mesmo de sua produção científica, à “luta [...] pela honra do piloto de
Hiroshima”, como sintetizou Lukács, “uma questão tão importante para a moralidade
em nossos dias”.
Motivado pelo envio de um texto de Anders, Lukács retoma o contato com o
filósofo pela primeira vez, desde que estiveram juntos em Viena provavelmente no
início da década de 1950 , quando recebeu do amigo um exemplar de seu
Kafka: pró
Carolina Peters & Murilo Leite
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e contra
, publicado em 1951
.
Único livro de Anders editado no Brasil, ainda nos anos
1960, pela Perspectiva, reeditado pela finada Cosac Naify e atualmente esgotado,
tornou-se um dos cânones dos estudos kafkianos e não passou despercebido por
Lukács. Inicialmente uma palestra ministrada, em 1934, por ocasião dos dez anos da
morte do autor tcheco, seu título original “Teologia sem deus” talvez baste para
que os conhecedores da obra lukácsiana de maturidade compreendam seu interesse
pelo escrito e o profundo elogio que lhe faz: “não li nada melhor sobre Kafka desde
então”.
O escrito mais recente, “Der sanfte Terror”, que mais tarde integraria o segundo
volume da principal obra de Anders,
Die Antiquiertheit des Menschen
, despertava
agora igual interesse em Lukács, justamente por abordar uma questão que lhe era
cara, o estranhamento contemporâneo, a partir de uma perspectiva da qual
compartilhava. Diferentemente da média da literatura sobre o assunto, não interessava
a ele (como a Lukács) apenas “‘desmascarar’” o estranhamento “como se
concernisse à
misera plebs
e de modo algum ao autor, o aristocrata intelectual não-
conformista”. Acima de tudo, Anders sabia que “o problema da ultrapassagem do
estranhamento é
o
problema”, com todas as ênfases que seu grifo no artigo definido
evoca.
Pertence ainda a este primeiro bloco da correspondência a cópia, encaminhada
para Lukács, de uma carta de Günther Anders, datada de 18 de junho de 1964,
originariamente endereçada a Hans Deutsch. À época, Deutsch era proprietário da
Forvm
, revista fundada em 1954 com o subtítulo “publicação austríaca mensal em
favor da liberdade cultural”, e em cujas páginas foram publicados muitos artigos de
Anders e de Lukács, incluindo alguns dos primeiros escritos lukácsianos sobre a
ontologia. Se, anos mais tarde, o periódico contribuiria enormemente com a difusão
das ações em defesa da liberdade de Angela Davis, no bojo da campanha de
intelectuais europeus articulada por Lukács, em meados da década de 1960 seu então
editor chefe, Friedrich Torberg, que assumiu o cargo quando do lançamento da revista
e aí permaneceu até 1965, conferia à
Forvm
uma linha editorial pouco progressista e
afeita à difamação de intelectuais como Thomas Mann, Bertolt Brecht e, naquele
momento, Günther Anders, sobre cuja relação com Claude Eatherly fez insinuações
indecorosas, para dizer o mínimo, e às quais o filósofo responde, na missiva a Deutsch,
com toda indignação e vigor.
Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e Günther Anders
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 310-316 - mar. 2022 | 313
Um segundo eixo, que anima a comunicação entre os filósofos nos anos de 1967
e 1968, diz respeito à confluência de seus trabalhos em tomar a vida cotidiana como
ponto de partida e de chegada da reflexão filosófica e da investigação da realidade,
coisa até então quem aponta é Lukács, ao que talvez nos seja permitido acrescentar,
ainda hoje
largamente negligenciada pela filosofia, sociologia etc., além de
menosprezada por parte substantiva da literatura contemporânea, que sucumbindo à
estética naturalista recai em figurações fetichizadas do mundo.
Novamente, a troca de cartas é iniciada por uma publicação de Anders remetida
a Lukács, desta vez o livro
Die Schrift an der Wand
, um diário filosófico mantido ao
longo de mais de duas décadas de trabalho. À leitura das entradas do diário de Anders,
Lukács declarou ao amigo ser “da opinião de que o abordado aí pertence às questões
mais importantes do conhecimento da realidade social: a saber, a investigação exata
do que eu chamaria de ontologia da vida cotidiana”, algo de que se ocupava
pessoalmente no momento, enquanto redigia
Para uma ontologia do ser social
.
A partir da afinidade neste tópico da ontologia da vida cotidiana, que não deixa
de remeter ao acordo prévio dos dois quanto ao problema do estranhamento, Lukács
e Anders engatam uma discussão acerca das noções de otimismo e pessimismo que
deixa transparecer, com grande vivacidade, o fundamento ético de sua relação pessoal,
uma amizade que, infelizmente, pela força das circunstâncias, não pôde alcançar a
“realidade mais densa” do convívio presencial que Anders almejara com uma viagem,
nunca realizada, a Budapeste. Apesar de seu contundente ceticismo, que a princípio o
distanciaria de Lukács, Anders costumava repetir: “Se eu estou desesperado, o que
posso fazer?”. No lema, ecoa a célebre frase de Philine, personagem de
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
, tantas vezes relembrada pelo crítico húngaro como
expressão de um comportamento ético. Ao ser interpelada pelo protagonista do
romance de Goethe, receoso por não ser capaz de retribuir os generosos cuidados
que lhe dedicava, a jovem responde, sem titubear,
se eu te quero bem, o que podes
fazer?
No tópico “A base objetiva do estranhamento e da sua superação”, parte final do
último capítulo do segundo tomo de
Para uma ontologia do ser social
, Lukács chegaria
a registrar em nota de rodapé a postura exemplar de Anders, que, ao tomar como
ponto de partida a rejeição contra a bomba atômica, recusava esboçar uma imagem
de mundo
a priori
desesperançosa de qualquer sublevação contra os novos
Carolina Peters & Murilo Leite
314 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 310-316 - mar. 2022
estranhamentos.
O terceiro e último momento da correspondência é pautado pela campanha em
defesa da liberdade de Angela Davis, presa em 13 de outubro de 1970. Militante do
Partido Comunista, ela figurava na lista de mais procurados do FBI desde agosto
daquele ano, taxada como uma “perigosa terrorista”. Ao tomar conhecimento do caso
e prevenido por amigos marxistas estadunidenses, Lukács envia, em de
novembro, uma carta ao historiador Herbert Aptheker,
1
membro do partido que, ao
lado de sua filha Bettina, esteve na linha de frente das mobilizações em favor de Davis,
a fim de oferecer sua ajuda prática na articulação da campanha nos países socialistas
e da Europa ocidental.
Não custa nada lembrar que, a essa altura da vida, contando 85 anos, o filósofo
húngaro encontrava-se bastante debilitado em razão de um câncer, recentemente
descoberto em estágio terminal. Não obstante, como sua correspondência documenta
e contra todos aqueles que se regozijam em enaltecer o jovem anticapitalista
romântico, em detrimento do revolucionário maduro, a quem taxam inadvertidamente
de stalinista e conservador , engajou-se na causa em prol de Angela Davis com grande
afinco até seus últimos dias.
Munido de informações jurídicas sobre o caso e outras orientações para as ações
de solidariedade a Davis, ele redige uma proposta inicial de protesto público. Era um
texto breve e escrito de uma forma tão geral que assiná-lo não significa que você está
aderindo a um determinado programa político”, mas que, no entanto, não perdia de
vista a denúncia contundente do caráter político da prisão da militante comunista e
antirracista. Remetendo ao notório
affair Dreyfus
, ocorrido na França em fins do século
XIX, e à condenação dos anarquistas Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, na década
de 1920, nos Estados Unidos, o documento alertava para a ameaça oferecida pelo
processo judicial (que se anunciava viciado desde o princípio) não apenas à
liberdade, como à própria vida de Angela Davis.
O chamado à manifestação em favor de sua liberdade foi logo remetido por
Lukács a diversos intelectuais conhecidos seus, Anders entre eles. Talvez pela
experiência na articulação do movimento antinuclear, o amigo passaria a cumprir, a
1
A carta pode ser lida em: <http://real-ms.mtak.hu/15209/>.
Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e Günther Anders
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 310-316 - mar. 2022 | 315
seu lado, um papel fundamental na coleta de assinaturas e divulgação da campanha,
além de fazer sugestões ao texto final, abaixo traduzido por nós:
Os signatários deste chamado dirigem-se à opinião pública americana com a
convicção de que expressam uma profunda preocupação, vívida em milhares
de intelectuais europeus, com o caso de Angela Davis. O caso Dreyfus, na
Europa, e o trágico destino de Sacco e Vanzetti, na América, deram provas
suficientes a qualquer ser humano perspicaz de que é possível, com o
cumprimento formal de todas as disposições legais, tirar de um ser humano
sua liberdade e até permitir que seja assassinado, quando os preconceitos
são sistemática e demagogicamente dirigidos contra ele. Todos os sinais
indicam que uma tal campanha psicológica de preparação do assassinato
judicial está ocorrendo contra Angela Davis. Dois tipos de preconceito
estão sendo mobilizados para sua privação da liberdade ou aniquilação. O
primeiro e mais forte é o ódio racial, que através da pessoa de Angela Davis
visa aterrorizar um grupo de seres humanos que lutam por sua emancipação.
A outra variedade de preconceito é dirigida contra os lutadores de esquerda.
Não é preciso estar de acordo com as ideias de Angela Davis para respeitá-
la como um ser humano que vive por seus princípios e por eles faz sacrifícios,
ou para ver com clareza a natureza e os objetivos dessa demagogia que
agora ameaça sua liberdade. Os signatários deste chamado sentem
conjuntamente o temor de que, com um trabalho formalmente correto do
aparato jurídico, esteja sendo preparado um atentado contra um ser humano
inocente e, através de sua pessoa, um atentado coletivo contra milhões de
seres humanos. Por isso nos dirigimos aos representantes das mais diversas
visões de mundo para quem democracia e justiça (como quer que as
interpretem) não são retórica vazia a fim de que, com o poder de oposição
da opinião pública, a injustiça aqui preparada possa ser evitada e Angela
Davis seja novamente posta em liberdade.
2
Este chamado foi publicado em março de 1971, originalmente em alemão, na
Neues Forvm
, ora dirigida por Günther Nenning, que após o contato feito por Anders
se somou pessoalmente à lista de signatários. Com destaque na capa da edição 207,
o texto era assinado por nomes como Ernst Bloch, grande amigo de Lukács na
juventude, mas de quem se distanciara, retomando agora o contato em razão da
campanha; por artistas, como os escritores Heinrich Böll, Elsa Morante, o poeta Nelo
Risi e a pianista húngara Annie Fischer; pelo ensaísta austríaco Ernst Fischer; por Agnes
Heller, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz, intelectuais próximos a Lukács; além
de cerca de mil estudantes europeus. A baixa adesão à campanha entre figuras
renomadas dos países europeus centrais é uma preocupação expressa na troca de
cartas.
No número 210 da revista, de maio e junho de 1971, seria publicado ainda um
segundo chamado, assinado por Lukács, com o intuito de arrecadar dinheiro para as
2
Vários documentos relativos à campanha pela liberdade de Angela Davis podem ser acessados em:
<http://real-ms.mtak.hu/22100/>.
Carolina Peters & Murilo Leite
316 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 310-316 - mar. 2022
despesas de defesa a princípio, honorários dos advogados e custos do processo,
cujo montante poderia ultrapassar 100 mil dólares. Este foi um ponto importante de
divergência tática entre ele e Anders, pois este receava que o financiamento
estrangeiro comprometesse a causa em favor de Davis. Após consultar Aptheker,
Lukács leva a cabo a iniciativa de levantar fundos para a campanha, como informa a
Anders na última carta trocada entre os dois, enviada em 27 de abril de 1971. Lukács
contribuiu pessoalmente com uma doação de dois mil dólares, mas não chegou a ver
o sucesso da ação. Em fevereiro de 1972, Angela Davis foi libertada após o pagamento
de fiança no valor de 100 mil dólares; o veredito que a declarou inocente viria apenas
em 4 de junho, exatamente um ano após o falecimento de György Lukács.
Como citar:
PETERS, Carolina; LEITE, Murilo. Em prol de uma boa causa: a correspondência entre
György Lukács e Günther Anders.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 310-316,
mar. 2022.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Lukács-Anders: uma correspondência*
György Lukács & Günther Anders
23 de maio de 1964
Caro Sr. Anders!
Recebi sua publicação
1
com grande alegria. Afinal, é o primeiro sinal de vida seu
desde que me entregou, anos atrás, seu estudo sobre Kafka,
2
em Viena; aliás: não li
nada melhor sobre Kafka desde então. Depois disso, li com grande interesse
Die
Antiquiertheit des Menschen
3
e, especialmente, sua publicação sobre o piloto de
Hiroshima.
4
Agora, pude ler seu novo estudo com grande interesse e muito prazer. Você não
é o único que se preocupa com o estranhamento [
Entfremdung
] contemporâneo e
procura expressar essas preocupações cientificamente. Mas sou muito cético em
relação ao modo como a média da literatura aborda o estranhamento. Predomina nela
uma complacência covarde e falsa. O estranhamento é desmascarado, mas como se
concernisse à
misera plebs
e de modo algum ao autor, o aristocrata intelectual
[
Geistesaristokraten
] não-conformista. Esta é a minha postura, que expressei em outros
contextos no prefácio da
Teoria do romance
, a saber, que tais autores costumam viver
no Grande Hotel Abismo, e ali, à beira do abismo, o abismo como um serviço
particularmente refinado da sociedade contemporânea, desfrutam de consciência
* Traduzido por Murilo Leite e Carolina Peters a partir de Briefwechsel zwischen nther Anders und
Georg Lukács 1964-1971”, in: BENSELER, Frank; JUNG, Werner (org.).
Lukács 1997 Jahrbuch der
Internationalen Georg-Lukács-Gesellschaft
. Berna: Peter Lang, 1998, pp. 47-72. Revisão técnica de Vitor
Bartoletti Sartori. Quando as obras citadas ao longo da correspondência o possuem edição brasileira,
mantivemos seu título original. Salvo quando especificado como Nota da Tradução [N. T.], as notas são
da edição original.
1
Der sanfte Terror [O terror suave], in:
Merkur
n. 193 e 194, 1964, pp. 209-224; 334-354. Este é
um texto que também foi publicado de forma expandida no segundo volume de
Die Antiquiertheit des
Menschen
, de Anders (Munique, 1980, pp. 131-187).
2
Kafka pro und contra. Die Prozeß-Unterlagen.
Munique, 1951. Ed. brasileira:
Kafka pró e contra: os
autos do processo
. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Perspectiva, 1969; Cosac Naify, 2007 [N. T.].
3
Lukács se refere ao primeiro volume da principal obra de Günther Anders,
Die Antiquiertheit des
Menschen
, cuja primeira edição foi publicada em Munique, em 1956.
4
Off limits für das Gewissen. Der Briefwechsel zwischen dem Hiroshima-Piloten Claude Eatherly und
Günther Anders 1959-1961
. Herausgegeben und eingeleitet von Robert Jungk. Reinbek, 1961.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.655
György Lukács & Günther Anders
318 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - mar. 2022
tranquila [
guten Gewissens
].
Não é nenhuma surpresa para mim que você não pertença às fileiras desses
críticos culturais. E devo dizer que fiquei especialmente contente em ver como sua
crítica do estranhamento se aproxima da manipulação branda, concepção sobre a
qual escrevi em meu artigo para a
Forvm
.
5
Mas isso exigiria uma conversa. Como o
velho Fontane costumava dizer, este é um campo amplo demais para uma carta.
Com os melhores cumprimentos e obrigado novamente por enviar a publicação,
Seu, Georg Lukács.
4 de junho de 1964
Günther Anders, atualmente na pensão Augustus,
Laigueglia (Savona), Itália
Caro Sr. Lukács,
Não preciso dizer o quanto fiquei satisfeito com suas palavras de concordância.
Sim, claro que o problema da ultrapassagem [
Überwindung
] do estranhamento é
o
problema; mas ainda estou afogado em manuscritos que apresentam a forma do
estranhamento contemporâneo, em suma: no segundo volume da
Antiquiertheit
, que
na verdade deveria ter sido concluído muito tempo, mas está progredindo
lentamente devido à minha atividade o teórica no movimento antinuclear. No
momento, estou totalmente ocupado em repelir um ataque infame contra Claude
Eatherly e, para isso, tenho que escrever um livreto.
Creio que assim que eu tiver quatro ou cinco dias de folga, pergunto a você se
está bem, e depois dirijo até Budapeste a fim de encontrá-lo. Há muito tempo desejo
poder falar longamente com você. Estou animado para que este desejo se torne
realidade num futuro próximo.
Com os mais calorosos agradecimentos e grande respeito,
Seu, Günther Anders.
P.S.: O endereço acima é válido até 1º de julho.
5
Probleme der kulturellen Koexistenz [Problemas da coexistência cultural], in:
Forvm
, v. XV n. 124 e
125, 1964, pp. 181-184; 241-244.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 319
Budapeste, 12 de junho de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado pela sua amável carta de 4 de junho. Eu entendo perfeitamente que
você esteja momentaneamente dominado pela crítica negativa do estranhamento. Sua
versatilidade e determinação são muito importantes nesta questão atualmente. Fiquei
particularmente satisfeito por você querer se posicionar no caso do piloto de
Hiroshima. É também um dos sintomas de nosso tempo que tudo, do fascismo ao
consumo ostentatório [
Prestigekonsumption
], seja desculpado e, se alguém age
heroicamente contra o tempo, uma campanha de difamação terá que surgir. Você
conhece o caso Niekisch
6
na Alemanha? Algo semelhante está acontecendo lá.
Estou muito contente com seu plano de vir a Budapeste. A partir de 1º de julho
provavelmente estarei aqui por um período mais longo, mas seria bom se você me
avisasse quando pretende vir em tempo hábil. Você deve ter em conta que uma carta
leva cerca de uma semana para chegar à Áustria e outra semana para retornar da
Áustria. Meus alunos estão tentando publicar seu ensaio em uma revista daqui, em
húngaro. As coisas parecem bem, por enquanto. Se uma decisão positiva for tomada,
você terá um honorário maior para cobrir seus custos aqui.
Com os melhores cumprimentos e na esperança de vê-lo novamente,
Georg Lukács.
21 de junho de 1964
Günther Anders, atualmente na pensão Augustus,
Laigueglia (Savona)
Caro Sr. Lukács,
É uma alegria ouvir que minha análise do conformismo, ou melhor, do
congruísmo
7
agora está sendo lida também por húngaros, e que existe até a
6
Ernst Niekisch (1889-1967); professor de formação, inicialmente membro do Partido Social-Democrata
da Alemanha (SPD), depois ativista no Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (USPD),
protagonista do chamado bolchevismo nacional. Após a resistência de 1933, foi condenado à prisão
perpétua em 1939, e desde a libertação viveu em Berlim Ocidental. Entre 1948 e 1954 esteve como
professor titular de Sociologia na Universidade Humboldt, em Berlim Oriental. Seus últimos anos de
vida estão repletos de esforços infrutíferos para ser reconhecido na República Federal como uma vítima
do fascismo (cf. MOHLER, Armin.
Die Konservative Revolution in Deutschland 1918-1932
. Dritte, um
einen Ergänzungsband erweiterte Auflage. Dannstadt, 1989, p. 465).
7
Nas palavras de Anders: “[...] o conformista ótimo não é apenas conformista, mas congruísta. E isso
György Lukács & Günther Anders
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possibilidade de publicar o texto em ngaro. Muito obrigado por ajudar nisso. Claro,
este artigo é apenas um P.S., ele foi criado como um posfácio para entradas do diário
filosófico sobre os cosmonautas, das quais apenas uma parte foi publicada até agora.
(Também na
Merkur
).
8
Alguns dias atrás, você deve ter recebido uma cópia curta de uma carta minha.
que presumo que você recebe a
Forvm
regularmente, você terá entendido ao que a
carta se referia: fui chamado pelo editor-chefe desta revista, um escritor
megalomaníaco e politicamente perigoso chamado Torberg, com os insultos mais
rudes e incompetentes minha carta foi a reação a isso. Por vinte anos, Torberg se
limitou a importunar Thomas Mann e Brecht; agora, tendo visto a futilidade de seus
insultos em relação a esses dois grandes homens, ele mudou de alvo e agora me honra
com seu ódio.
Sim, eu conheço um pouco o caso Niekisch, Drexel
9
me enviou seu livro sobre o
assunto. Mas, no momento, estou tão ocupado defendendo Eatherly de acusações
caluniosas que não posso lidar com mais nada. Visto que como indivíduos nunca
vivemos à altura da infâmia que nos cerca, escolhas precisam ser feitas.
Claro, se eu vir a possibilidade de uma viagem a Budapeste, eu o informarei o
mais rápido possível. Porque uma viagem para Budapeste que não fosse também uma
viagem para Lukács não seria uma viagem a Budapeste para mim.
Com os melhores cumprimentos e meus melhores votos,
Seu, Günther Anders.
significa que ele não apenas se conforma com o conteúdo a ele destinado e entregue, mas que, em
última análise, o conteúdo de sua vida anímica coincide com esse conteúdo” (cf. ANDERS, Günther.
Die
Antiquiertheit des Menschen
. Bd. II. Munique: Beck, 1992, p. 149, tradução nossa) [N. T.].
8
“‘Helden und Ignoranten. Tagebuchblätter während des sowjetischen Weltraumfluges [Heróis e
ignorantes: páginas de diário durante o voo espacial soviético], in:
Merkur
, n. 181, 1963, pp. 223-
238; também publicado em
Der Blick vom Mond. Reflexionen über Weltraumflüge
. Munique, 1970.
9
Joseph Drexel (1896[-1976]) esteve em contato com Ernst Niekisch desde 1925, trabalhou para sua
revista
Widerstand
, publicou um serviço de informação ilegal e, em 1939, foi condenado a quatro anos
de prisão. Após a guerra, foi coeditor do
Nürnberger Nachrichten
(a partir de 1948). Lukács refere-se
ao livro
Der Fall Niekisch. Eine Dokumentation
. Stuttgart; Conia, 1964. (Cf. KOSCH, Wilhelm.
Biographisches Staats-Handbuch. Lexikon der Politik, Presse und Publizistik
. Bd. 1. Berna; Munique,
1963, p. 258).
Lukács-Anders: uma correspondência
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Carta de Günther Anders a Hans Deutsch,
10
18 de junho de 64
Günther Anders, atualmente na pensão Augustus,
Laigueglia (Savona)
Caro Sr. Professor Deutsch,
Você provavelmente admitique o que aconteceu na
Forvm
não é apenas um
lapso, mas um escândalo. Tenho o seguinte a dizer sobre as seis páginas
11
do Sr.
Professor Torberg:
Torberg publicou um texto meu sem pedir autorização a mim, o autor. Como você
sabe, eu nunca a teria dado a ele.
Ele o publicou de forma degradante, ou seja, feito em pedaços.
E isso, embora eu tenha, em consideração a você, recusado sua oferta generosa
de publicar meu artigo, apesar das repetidas solicitações. Na presença de sua família,
expliquei-lhe: “Obviamente, não esqueça as dificuldades que isso lhe causaria”.
E isso, embora você tivesse me garantido à época que alertaria o Sr. Professor
Torberg e que poderia atestar que depois de sua conversa com ele algo como o
primeiro ataque a mim não voltaria a ocorrer na
Forvm
. Para minha grande tristeza,
não posso mais acreditar em suas garantias.
Não quero ir além das imprecisões factuais [
sachlichen
] que abundam do texto
do Sr. Professor Torberg; ou do fato de que ele está jubiloso porque Eatherly não
jogou a bomba (o que nem Eatherly nem eu alegamos, pelo contrário: em sua
correspondência comigo ele enfatiza expressamente que não). Mas quando alguém se
atreve a argumentar que em minha correspondência com Eatherly, que hoje é
considerada um testemunho de nosso período histórico, não algo que “cheira
mal”, mas que esse cheiro “cai do céu”; ou quando alguém fala sobre borrar as calças
em relação a mim; ou quando alguém se refere a mim, um filósofo com mais de
sessenta anos não completamente desconhecido, como um moleque, então não
posso deixar tudo isso passar despercebido e sou forçado a partir para o contra-
10
Dr. Hans Deutsch (nascido em 1906), jurista e editor austríaco, emigrou em 1938 para Tel Aviv.
Tornou-se posteriormente proprietário da
Forvm
.
11
No número 124, de abril de 1964, da
Forvm
, em que Torberg escreve sobre duas peças de teatro,
ele novamente ataca Anders. No final do artigo com o significativo título Das Unbehagen in der
Gesinnung [O desconforto na disposição], a fim de se mostrar um defensor da política externa
americana, considera a bomba atômica o único dissuasor adequado contra os esforços expansionistas
ideológico-imperialistas de uma ditadura totalitária (cf. p. 212).
György Lukács & Günther Anders
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ataque. Qualquer pessoa respeitosa entenderia isso. Então você também entende.
Da mesma forma, você compreenderá que provavelmente terei de remeter esse
assunto ao meu advogado. Este passo pode ser evitado por meio de sua
intervenção pessoal. Apenas fazendo uma declaração detalhada e inequívoca na
Forvm
; uma explicação que deveria realmente aparecer como um grande artigo
dedicado apenas a este tópico na próxima edição da
Forvm
; uma declaração na qual
você inequivocamente descreve o relato do Sr. Professor Torberg (de que você
“gostaria de se livrar” de mim) acerca do seu relacionamento comigo pelo que ele é; e
na qual você confirma que, ao contrário, decepcionado com o filme de Leiser,
12
você
repetidamente me incitou a fazer um filme melhor com o material. Que você me pediu
para fazer isso na presença do meu advogado na época, o professor Peter, e que
existem memorandos a respeito; que você ficava me pedindo, inclusive em nosso
último encontro em maio (quando lhe entreguei o roteiro do Janouch), para poder
realocar minha produção; e que sempre tive que recusar essa oferta, que estou
contratualmente obrigado a duas outras editoras.
Peço-lhe que seja claro ao descrever sua posição, Sr. Deutsch. Você permitiu que
um autor, cuja contribuição você aceitou de bom grado, fosse insultado em sua revista
da maneira mais ignóbil e insípida. Se eu pudesse ter previsto essa possibilidade
isso, porém, teria sido ultrajante para você eu teria rompido todas as relações com
você e teria entregado o manuscrito de Janouch a outro editor.
Posso imaginar que você está terrivelmente envergonhado diante de mim e eu
não queria estar na sua pele. Eu sinto muito, mas o Sr. Professor Torberg é o único
culpado por isso. O único consolo é que, afinal, sua intervenção pode resolver a
situação embaraçosa. E eu recomendo que você faça isso.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
12
Trata-se do documentário
Wähle das Leben
[Decisão da vida] (1963), dirigido por Erwin Leiser, que
aborda o bombardeio de Hiroshima [N. T.].
Lukács-Anders: uma correspondência
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Budapeste, 5 de julho de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado por suas cartas de 18 e 21 de junho. Obviamente, faremos o possível
para publicar seu ensaio em ngaro. Claro, não posso prometer sucesso incondicional
porque nossa situação aqui ainda é bastante precária. Minha aluna, Sra. Agnes Heller,
que vem tratando desse assunto, também luta pessoalmente pela honra do piloto de
Hiroshima. Ela escreveu um artigo sobre ele que, por enquanto, está vagando de
revista em revista.
Quanto à
Forvm
, só recebo os números em que aparecem artigos meus. Mas sua
resposta é totalmente suficiente para me esclarecer sobre o assunto. A causa em si
possui um caráter de princípio. Os conformistas não-conformistas odeiam
instintivamente todas as pessoas que não fraseologicamente [
phrasenhaft
], mas
realmente se rebelam contra o estranhamento e a manipulação. É por isso que o caso
do piloto é uma questão tão importante para a moralidade [
Moralität
] em nossos dias
e estou muito feliz que você esteja travando essa batalha incansável.
Compreendo muito bem que, nessas circunstâncias, você não tem tempo a perder
no caso Niekisch. É uma pena, porém, que você não tenha pelo menos um pequeno
artigo de jornal a respeito, porque esse caso não é menos característico de nosso
tempo que o do piloto.
Espero que possamos nos encontrar em um futuro próximo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
13 de julho de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Muito obrigado por sua carta de 5 de julho. Eu estava certo de que você recebia
os números da
Forvm
regularmente. Visto que não é esse o caso, estou lhe enviando
uma cópia do artigo miserável de Torberg. Eu gostaria de dizer que nunca ofereci meu
artigo contra Torberg para a
Forvm
, portanto, o escândalo começou antes da
impressão do meu texto. Em certo sentido, é claro que é uma honra ser atacado por
György Lukács & Günther Anders
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Torberg dessa forma, porque a cada década ele tem um inimigo especial que para ele
se torna uma
idée fixe
negativa: na última década foi Brecht, na penúltima Thomas
Mann.
Faça o favor de comunicar meus calorosos agradecimentos à Sra. Heller por
trabalhar no caso Eatherly como minha aliada. Em breve poderei enviar a ela uma cópia
do meu artigo contra Huie, Die Entlarvung des Entlarvers,
13
ou seria ainda melhor se
eu pudesse ir logo a Budapeste e levar a cópia diretamente para ela.
Eu ainda tenho que terminar este script. Em seguida, notifico você para saber se
é possível visitá-lo. Já estou ansioso por esta viagem para vê-lo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 8 de agosto de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado pela carta de 13 de julho e por me enviar o material. O artigo de
Torberg é realmente um escândalo literário e sua indignação a respeito é perfeitamente
justificada. Eu só conhecia sua oposição a Brecht, já sua oposição a Thomas Mann me
era desconhecida.
A Sra. Heller ficou contente com sua carta, ainda mais com a perspectiva de
conhecê-lo pessoalmente em Budapeste. Também estou contente pela perspectiva de
um novo encontro, bem como por sua polêmica a respeito do piloto de Hiroshima.
Espero que você possa lidar com isso em breve.
Você leu o romance
A grande viagem
, do escritor espanhol Semprun, que
escreve em francês? Acho que é uma das novas publicações mais importantes.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
13
Entlarvung des Entlarvens[O desmascaramento do desmascarador], in:
Die Zeit
, 28 de agosto de
1964. Este ensaio é uma réplica ao livro de William Bradford Huie,
The Hiroshima Pilot
, no qual o piloto
do bombardeio, Eatherly, é retratado como um fanfarrão frustrado.
Lukács-Anders: uma correspondência
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17 de agosto de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Você não tem ideia do grande prazer que me deu com suas últimas linhas. A
posição de poder de Torberg aqui é tão grande que, com raras exceções, nenhum dos
meus colegas realmente teve a coragem de expressar sua indignação pelo escandaloso
ataque a mim a propósito, Torberg atacou Thomas Mann por muito mais tempo e
com muito mais ódio do que fez com Brecht; e Mann me disse, quando esteve em
Viena pela última vez, que ele evitaria passar por aqui se fosse exposto à infâmia de
Torberg novamente em conferências de imprensa.
Infelizmente, minha luta por Eatherly me força a mil atividades nada filosóficas
de detetive; tenho muitas dúvidas se algum dia chegarei à conclusão do segundo
volume de minha
Antiquiertheit
.
Sim, claro que meu plano de o visitar o mais rápido possível ainda está de pé; e
ficarei feliz em conhecer a Sra. Heller.
Não conheço o livro de Semprun ainda. Foi publicado em alemão, francês ou
inglês?
Obrigado mais uma vez pela sua indignação solidária,
Seu, Günther Anders.
22 de agosto de 1964
Caro Sr. Anders!
Obrigado por sua carta de 17 de agosto. Eu não pude evitas ler suas observações
sobre os temores em relação ao Sr. Torberg com um sorriso no rosto. Nos anos 1930,
eu não tinha medo de atacar Fadeiev ou Yermilov, assim como nos anos 1940 e 1950
não tinha medo de Rákosi ou Révai. O que tenho a temer do Sr. Torberg?
Espero que em breve você termine sua defesa do piloto e volte ao trabalho
teórico. O livro de Semprun foi publicado em alemão em edição da Rowohlt.
Espero vê-lo em Budapeste em um futuro não muito distante. Enviarei seus
cumprimentos à Sra. Heller.
György Lukács & Günther Anders
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Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
1º de outubro de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Eu tenho que me desculpar com você, porque eu não escrevo há muito tempo; e
ainda não consegui iniciar a viagem a Budapeste, esperada meses. Sou
simplesmente um prisioneiro do caso Eatherly-Huie, meu trabalho consiste apenas em
uma atividade de defesa o que é tanto mais urgente e difícil na medida em que Huie
está na Europa no momento e, aparentemente com bastante fascinação, encoraja
jornalistas de segunda classe a entrevistá-lo, escrever artigos sobre ele etc. Receio que
poderei retomar meus planos novamente quando essa onda de tumulto tiver
diminuído; e espero sinceramente que isso aconteça em breve e que não tenha de
suspender por muito tempo minha expectativa de uma conversa com você.
Acabei de ler em um jornal que Kindermann
14
falou sobre você na Akademie.
15
Estou muito surpreso, porque K. foi um dos piores nazistas e aaqui se tenta, às
vezes com sucesso o que é uma grande conquista para Viena afastá-lo de certas
iniciativas culturais.
Com os melhores votos,
Seu, Günther Anders.
5 de outubro de 1964
Caro Sr. Anders!
Muito obrigado pela sua amável carta de 1º de outubro. Lamento muito que
14
Heinz Kindermann (1894-1985), germanista e estudioso do teatro, nomeado em 1936 para a
Universidade de Münster, e em 1943 para a recém-fundada cadeira de estudos teatrais em Viena,
demitido depois de 1945 e reintegrado ao seu cargo em 1954. A partir de 1933, Kindermann foi um
dos protagonistas de um estudo literário popular, cujas categorias foram derivadas de ideias da
comunidade nacional e tipologias raciais, sua obra é a mais extensa entre todos os germanistas do
Terceiro Reich (cf. KILLY, Walther (org.).
Literaturlexikon. Autoren und Werke deutscher Sprache
. Bd. 6.
Munique, 1990, p. 323ss.).
15
Trata-se da Akademie der bildenden Künste, de Viena [N. T.].
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 327
esteja tão envolvido com o caso do piloto. Infelizmente, isso é inevitável quando se é,
como você, uma das poucas pessoas que hoje luta por uma boa causa.
Esperançosamente, você encerrará a campanha em breve.
Eu ficaria feliz com isso, porque então poderíamos ter discussões reais. Devo
dizer-lhe, nas poucas palavras que uma carta prescreve, que discordo de algumas de
suas brochuras sobre Eichmann.
16
É correto entender a manipulabilidade
[
Manipuliertheit
] como um recurso econômico fundamental de nossa época, mas o
regime de Hitler era algo muito especial dentro desta unidade, e esse aspecto especial
não aparece com precisão suficiente em suas polêmicas. Mas temos que discutir isso
verbalmente.
Fiquei sabendo da visita de Kindermann pela sua carta, acompanho muito pouco
os acontecimentos. É uma contradição estranha no que se chama agora de
liberalização. Estou muito familiarizado com o papel de Kindermann durante a era
Hitler. Mas eu sei que muitas vezes é mais fácil perdoar do que aderir consistentemente
aos princípios do marxismo. Esta é, de fato, uma contradição mais cômica, mas mais
real.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
10 de outubro de 1964
Günther Anders, Viena / Mauer, Dreiständeg. 40
Caro Sr. Lukács,
Muito obrigado por suas linhas gentis. Você es absolutamente certo, o
formulei as especificidades do nacional-socialismo neste texto. Na verdade, eu queria
destacar a repetibilidade do que aconteceu. E martelar esse pensamento na geração
mais jovem porque a carta não é endereçada a uma única pessoa, mas a uma geração.
Você usa a palavra cômico para caracterizar o caso Kindermann. Francamente,
dificilmente me sinto capaz de apenas ver o cômico da questão. Acho simplesmente
insuportável que este homem seja agora homenageado em Viena por ocasião do seu
16
Wir Eichmannsöhne. Offener Brief an Klaus Eichmann
. Munique,1964.
György Lukács & Günther Anders
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70º aniversário em uma festa oficial da universidade no final, eu até vejo isso como
uma desonra , porque a celebração mostra quão pouco a sério se leva os textos
nazistas que K. produziu quando foi oportuno.
O caso Eatherly-Huie continua a crescer, os jornais competem para publicar
excrementos de rumores completamente sem sentido enquanto ao fundo permanece
a nuvem de cogumelo de Hiroshima, que parece não ter chegado à consciência de
nenhum desses escribas.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 31 de outubro de 1964
Caro Sr. Anders!
Agradeço de coração a carta de 10 de outubro. Estou contente por estarmos
unidos na questão fundamental do problema específico do fascismo. Trazer tudo de
volta à moderna técnica manipuladora e fazer uma conclusão geral unitária disso é tão
sedutor quanto perigoso. Isso levaria ao fatalismo. E você realmente não quer parecer
fatalista.
um mal-entendido no caso Kindermann. Achei que tivesse acontecido aqui
sem que eu percebesse. É por isso que achei o assunto no contexto doméstico tão
cômico. Se a cena for Viena, então sua indignação é inteiramente justificada.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
22 de novembro de 1967
Caro Sr. Anders!
Obrigado por gentilmente me enviar seu livro,
Die Schrift an der Wand
.
17
Como estou muito ocupado completando minha
Ontologia do ser social
, não
consegui terminar de lê-lo. Mas gostei extraordinariamente do que pude apreender
17
Die Schrift an der Wand. Tagebücher 1941 bis 1966
. Munique,1967.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 329
dessas páginas até agora, sobretudo a análise da existência [
Existenz
] na emigração e
no repatriamento subsequente. Em geral, sou da opino de que o abordado
pertence às questões mais importantes do conhecimento da realidade social: a saber,
a investigação exata do que eu chamaria de ontologia da vida cotidiana. Esse é um
complexo de questões que a filosofia, a sociologia etc. parecem ignorar em nossos
dias, e a maior parte da literatura contemporânea está tão presa a um naturalismo
artístico que não se pode aprender quase nada sobre essa questão. Aqui, o contraste
com a velha grande literatura (pense em Balzac ou Stendhal, Tolstói ou Tchekhov) é
talvez mais notável. E eu acredito que você nunca será capaz de entender os
pensamentos e sentimentos das pessoas em seu nível mais alto, ou seja, na melhor
poesia e literatura e claro também na filosofia, se você não compreender e analisar a
ontologia da vida cotidiana, que é diferente em cada período. Essas tendências
estavam presentes em seus escritos anteriores; os novos momentos que mencionei em
seu livro apenas fortaleceram minha aprovação de tais tendências de apresentação
[
Darstellungtendenzen
].
Peço desculpas pela unilateralidade dessas observações, mas foi exatamente
esse problema que particularmente me deteve ao ler seu livro.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
5 de dezembro de 1967
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro Sr. Lukács,
Acabo de voltar de Copenhague, onde nós, os juízes do Tribunal Internacional
de Crimes de Guerra,
18
acusamos os Estados Unidos de genocídio por causa das
operações de extermínio no Vietnã do Sul e do Norte. Sua carta estava no topo da
montanha de cartas que me recebeu quando cheguei em casa. Foi um bom retorno à
18
Anders participou do Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, convocado para investigar a guerra
travada pelos Estados Unidos no Vietnã e determinar a natureza da guerra (RUSSELL, Bertrand.
“Ansprache anläßlich des ersten Tribunals der Mitglieder des Vietnam-Tribunals, 13. November 1966”,
citado a partir de: RUSSELL, Bertrand.
Autobiographie. 1944-1967
. Frankfurt, 1971, p. 333). A
participação de Anders no tribunal está documentada no escrito: Nürnberg und Vietnam. Synoptisches
Mosaik. Voltaire Flugschrift 6. Bernward Vesper (org.). Berlim, 1967.
György Lukács & Günther Anders
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casa ser recebido com tais palavras de consentimento.
Você está absolutamente certo: o que você chama de “ontologia da vida
cotidiana” é uma das tarefas mais importantes para mim. O fato de você enfatizar este
lado do meu trabalho não se deve apenas ao fato de ter lido minhas anotações no
diário sob a perspectiva de sua
Ontologia do ser social
, mas também porque este
tópico está em primeiro plano para mim.
Suas linhas me deixaram ainda mais satisfeito, pois subsequentemente tive a
sensação de que minha análise de Döblin
19
poderia ter ido contra a corrente. Mas por
isso escolhi este ensaio, porque me pareceu estar intimamente relacionado com o
problema do realismo, que é tão importante para você; ainda que os artefatos
examinados por mim fossem de natureza quase surrealista.
Espero muito poder enviar a você um livreto sobre o Vietnã
20
em breve. O título
é:
Visit beautiful Vietnam
um título que tirei diretamente de um folheto publicitário
no Vietnã do Sul. Será tão desagradável de ler quanto qualquer um dos meus escritos
mas provavelmente não é minha culpa.
Mais uma vez, muito obrigado e desejo-lhe boa saúde e muita energia para o
seu trabalho!
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 21 de dezembro de 1967
Caro Sr. Anders!
Obrigado por sua carta de 5 de dezembro. Estou muito satisfeito por termos a
mesma opinião sobre a questão do significado da ontologia da vida cotidiana. É por
isso que suas preocupações acerca de seu ensaio sobre Döblin não são mais válidas.
Considero o estudo da ontologia da vida cotidiana muito importante também para os
problemas estéticos. E é justamente sob esse aspecto que seu ensaio mostra os
problemas do realismo estético em Döblin.
19
“‘Der verwüstete Mensch’. Über Welt- und Sprachlosigkeit in Döblins
Berlin Alexanderplatz
(1931)”
[O homem devastado: sobre a ausência de mundo e de palavras em
Berlin Alexanderplatz
, de Döblin
(1931)], in: BENSELER, Frank (org.).
Festschrift zum 80. Geburtstag von Georg Lukács
. Neuwied; Berlim,
1965, pp. 420-442.
20
“Visit beautiful Vietnam”. ABC der Aggressionen heute.
Colônia, 1968.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 331
Estou aguardando seu livro sobre o Vietnã com grande interesse. Acho que a
única diferença entre nossos pontos de vista é que você é muito mais cético e
pessimista do que eu. Portanto, para mim é sempre um prazer constatar que seu
ceticismo nunca o impede de tomar uma posição enérgica e prática em prol de uma
boa causa.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
29 de dezembro de 1967
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro Sr. Lukács,
As suas últimas linhas deixaram-me extremamente feliz, fiquei especialmente feliz
com a sua última frase, na qual diz que o meu ceticismo não me impede de defender
uma boa causa. Na verdade, essa sua frase é quase idêntica àquela que ditei, anos
atrás, para os alunos não-conformistas da assim chamada Universidade Livre de Berlim,
e que dizia: “Se eu estou desesperado, o que posso fazer?”
Em alguns dias, uma primeira impressão parcial
21
de meu livro sobre o Vietnã
aparecerá em uma revista alemã. Eu tomarei a liberdade de lhe enviar uma cópia.
Talvez o livro também pudesse ser publicado na Hungria. (?)
Durante anos, pretendi ir a Budapeste de carro, a fim de conferir uma realidade
[
Wirklichkeit
] mais densa ao nosso contato, até então unicamente escrito. Se isso não
aconteceu a hoje é simplesmente porque as exigências práticas e políticas me
mantêm tão requisitado que tive de adiar os planos privados. Mas eu realmente espero
que o projeto possa finalmente ser realizado em 68.
Desejo-lhe saúde e força de trabalho para este ano novo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
21
“Vietnam und kein Ende” [Vietnã e sem fim], in:
Das Argument
, n. 42, 1967, pp. 1-21; “Der
amerikanische Krieg in Vietnam oder Philosophisches Wörterbuch Heute I” [A guerra americana no
Vietnã ou Dicionário filosófico contemporâneo I], in:
Das Argument
, n. 45, 1967, pp. 349-397.
György Lukács & Günther Anders
332 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - mar. 2022
6 de janeiro de 1968
Caro Sr. Anders!
Obrigado pela sua carta de 29 de dezembro. No nível humano, gostei muito da
sua atitude interior em relação ao desespero. Mas acredito que é preciso pensar além
dos afetos como esperança ou desespero. (O fato de ele não fazer isso e querer
transformar um afeto em um princípio objetivo é um dos limites intelectuais de Ernst
Bloch.) Acredito que objetivamente se trata do problema da perspectiva próxima e
distante. Pode-se muito bem ser muito pessimista sobre o presente e o futuro imediato
sem perder o horizonte mais amplo da perspectiva final. Você não precisa
necessariamente ser um marxista para fazer isso. Lembre-se de que Stendhal tinha
uma posição muito semelhante sobre o presente e o futuro.
Estou muito contente em poder conhecer seu livro sobre o Vietnã. E mais ainda
por você ter a intenção de vir a Budapeste mais cedo ou mais tarde. Seria muito bom,
e vopoderia conhecer aqui alguns jovens que, com seus discursos, reforçassem seu
otimismo latente.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
Budapeste, 30 de novembro de 1970
Caro Anders!
A esta carta, anexo o texto do chamado
22
que eu, em defesa de Angela Davis,
ameaçada de morte, enviei a numerosos intelectuais. Acho supérfluo enfatizar o que
significam, para uma pessoa de esquerda, o processo preparatório e o previsível
julgamento caso o protesto não force a demagogia reacionária a recuar. Peço-lhe que
se junte à campanha com seu nome e reputação, e também convide intelectuais
respeitados que você conhece em seu país a aderir. Escrevi o texto de uma forma tão
22
prestes a morrer, Lukács decidiu iniciar uma campanha internacional em defesa da professora de
filosofia negra e comunista, Angela Davis, que havia sido demitida da Universidade da Califórnia e
figurava na lista dos dez mais procurados pelo FBI, acusada de assassinato e sequestro. Após sua
prisão, comitês pela libertação de Angela Davis se formaram do dia para a noite. Lukács comparou o
caso Davis aos casos Dreyfus e Sacco e Vanzetti; ele enviou cartas a numerosos intelectuais na França,
Alemanha, Itália e Inglaterra solicitando apoio, encontrando, no entanto, apoio limitado (cf., para uma
visão geral, KADARKAY, Arpad.
Georg Lukács. Life, Thought, And Politics
. Cambridge, 1991, pp. 467ss.).
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 333
geral que assiná-lo não significa que você está aderindo a um determinado programa
político. Penso que é natural, no entanto, que cada um possa apresentar a sua própria
proposta de alteração e também que cada um tenha o direito de protestar
individualmente, embora gostaria de salientar que a apresentação em conjunto tem
um maior efeito. Por favor, envie-me um telegrama se quiser participar da campanha,
informando os nomes das pessoas que o comunicaram sobre sua decisão de participar.
Peço também que persuada a imprensa de seu país, se possível, a publicar o panfleto
de protesto. Em seguida, enviarei os nomes de todos aqueles que aderiram à
campanha aos referidos órgãos de imprensa.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
P.S.: Você poderia me ajudar passando o endereço de Havemann, caso o
conheça?
9 de dezembro de 1970
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro Georg Lukács,
Obrigado pelo pedido. lhe disse por telegrama que pode ter o meu nome à
sua disposição. Imediatamente tentei entrar em contato com várias personalidades,
mas até agora consegui encontrar uma: o Prof. Friedrich Heer, do Burgtheater de
Viena, que imediatamente disponibilizou seu nome. Com algumas personalidades,
tenho dúvidas se devo perguntar a elas, pois certas coisas no cenário político mudaram
aqui. Chamei imediatamente a
Forvm
, não só para ganhar Nenning como signatário,
mas também sua revista, para fins de publicação do texto. Ainda não consegui falar
com Nenning pessoalmente, mas espero um telefonema dele hoje ou amanhã. Em todo
caso, seria bom ter uma lista dos que já assinaram, porque em ocasiões semelhantes
a experiência é que, como reação inicial, normalmente digam: “Quem já assinou?”.
Você me informa que ainda podem ser sugeridas pequenas mudanças no texto.
Tenho uma sugestão a fazer. Parece-me que a palavra medo, que aparece na
terceira linha, tem um tom psicológico um tanto privado; eu falaria de profunda
preocupação” em vez de “medo”. Mas esta proposta não é imperiosa.
Para voltar a um dos pontos mencionados acima: me parece que o texto
György Lukács & Günther Anders
334 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - mar. 2022
poderá ser publicado quando estiver finalizado talvez haja sugestões de outras
fontes e quando um número mínimo de assinaturas for atingido.
Claro, fico pensando a quem devo perguntar aqui em Viena, não sou austríaco
nativo nem “adquirido”, então tenho que mobilizar a ajuda de amigos para isso. Quase
não há homens internacionalmente famosos aqui, como critério para a seleção usarei
o fato de que as pessoas a serem consultadas também têm um nome fora das fronteiras
de nosso pequeno país.
Obrigado por tomar a iniciativa dessa campanha, com os melhores votos e
cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
P.S.: Acabei de telefonar para Nenning, da
Forvm
. Ele também disponibiliza seu
nome. Ele também concordou em publicar seu texto, evidentemente seu argumento
foi o mesmo que o meu somente após receber uma lista de nomes e assinaturas.
Além disso, ele, que tem muito mais contatos pessoais do que eu, organizará outros
nomes de signatários.
29 de dezembro de 1970
Caro amigo Anders!
No final desta semana, através da mediação dos representantes locais dos
principais jornais mundiais, espero poder enviar ao exterior a carta de protesto em
relação à queso de Angela Davis. No entanto, se quisermos continuar a campanha,
a partir de Budapest só podemos fazê-lo de uma maneira complicada; desde um país
ocidental, isso poderia ser feito muito mais rapidamente. Enviarei mais tarde, portanto,
todo o material, com o pedido de que seja divulgado no Ocidente, tenho a convicção
de que, no interesse da causa, você assumirá esse encargo. Vou encaminhar todo
material que vier a mim para você.
Agradeço antecipadamente,
com saudações cordiais,
Seu, Georg Lukács.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 335
2 de janeiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg, 1/5
Caro amigo Lukács,
Em primeiro lugar, meus melhores votos de Ano Novo!
Suas linhas gentis e a lista de nomes acabam de chegar com as primeiras
correspondências do ano novo. Muito obrigado. Claro, vejo com horror que por engano
meu nome não aparece na lista. Eu me sinto um pouco desconfortável. Acrescentarei
meu nome nas cópias que enviarei para a publicação. É claro que, para realmente dar
andamento ao assunto, preciso de algumas cópias da declaração, cuja redação
suponho ser diferente do original, porque acho que minha proposta de alteração, que
você aceitou, não foi a única.
Aliás, na lista o que me deixa um pouco preocupado está o nome de uma
pessoa que nunca foi perguntada e que felizmente agora como acabei de descobrir
por telefone consentiu retrospectivamente com o uso de seu nome.
Em minha última mensagem expressa para você, eu o havia dado o endereço que
você pediu na DDR; mas o nome não aparece na lista.
Para que tudo dê certo, entrego imediatamente a lista completa dos signatários
para Nenning, que possui uma cópia do texto original. Mas eu gostaria de avançar
mais apenas quando tiver recebido a lista final e as palavras finais de você. Por favor,
envie-me essas peças o mais rápido possível.
Com saudações cordiais,
Seu, Günther Anders.
2 de janeiro de 1971
Günther Anders 1090 Viena, Lackiererg 1/5
Neues Forvm
Aos cuidados do Sr. Dr. Günther Nenning
Caro Günther Nenning,
Desejo-lhe um bom 1971!
Acabo de receber de Lukács a lista daqueles que assinaram seu chamado. Como
György Lukács & Günther Anders
336 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - mar. 2022
você deve se lembrar, enviei a você o texto do chamado anteriormente. Agora você
pode publicar o texto com os nomes dos signatários na próxima edição.
Lukács me pediu para divulgar o texto o mais amplamente possível na Europa.
Você poderia fazer a gentileza de citar alguns órgãos que você acha que publicariam
a declaração?
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
06 de janeiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Sua carta me deixou um tanto perplexo. O fato de seu nome o constar nas
listas é um escandaloso acidente. Por favor, esqueça esse descuido o mais rápido
possível. Ao mesmo tempo, enviaremos a você a lista de assinaturas, desta vez sem
erros. Ainda não é a lista completa, esperamos acréscimos, principalmente da Ilia. A
propósito: Não consegui descobrir de quem você recebeu a confirmação por telefone.
Tanto quanto me lembro, não incluímos um nome que não tenha sido confirmado
pessoalmente (por carta ou telégrafo).
Obrigado novamente pela ajuda eficaz e urgente. Desejo-lhe um feliz ano novo!
Seu, Georg Lukács.
P.S.: o recebi uma resposta de Havemann até agora, então o nome não aparece
na lista.
8 de janeiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Agora estou enviando as novas adesões à lista. Os nomes são os seguintes:
Ayer, Alfred
23
(Inglaterra), Fischer, Annie (Hungria), Hegedüs, Andras (Hungria),
Kovács, András (Hungria), Risi, Nelo (Ilia). enviei a lista mais completa para o
23
No texto datilografado ainda constava o nome de Alfred Ayer, que posteriormente foi riscado a o.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 337
representante da imprensa local.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
9 de janeiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado pela sua carta e pela lista acrescida.
Eu imediatamente remeti uma cópia dessa lista para a
Forvm
; e, à
Forvm
, que
por sua vez (sem minha iniciativa) recolheu nomes, pedi que me enviasse seus novos
nomes para que eu possa encaminhá-los a você.
Foi apenas por meio de suas amáveis palavras de desculpas que me lembrei que,
por acidente, meu nome estava faltando em sua lista anterior, o que tinha esquecido,
é claro. Mas, como eu disse, deslembreinovamente. Por outro lado, gostaria de
chamar a atenção para dois erros na nova lista; 1. Elisabeth Freundlich não mora na
República Federal da Alemanha, mas aqui em Viena e 2. a pessoa que segue este
nome deve ser Gollwitzer e não Gollowitzer.
Eu vou manter você informado. Por favor, me mantenha atualizado também. Em
primeiro lugar, gostaria de saber por que é que não há um único francês ou britânico
na lista.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 22 de janeiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Agora estou enviando a você a lista de nomes acrescida e, espero, sem falhas.
Essa lista também não está completa: espero mais nomes dos italianos. Mas o que é
muito importante, recebi um sim incondicional por telégrafo de Havemann.
Quanto à sua pergunta: dos intelectuais de esquerda franceses, enviei cartas e
telegramas a Sartre, Semprun, Lefebvre, Aragon, aos editores das
Lettres Françaises
e
György Lukács & Günther Anders
338 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - mar. 2022
a Duclos. Não obtive resposta de parte alguma. Peço que tente novamente, você pode
obter respostas positivas. Até agora, o chamado com os nomes dos signatários
apareceu no
Le Monde
.
Na Inglaterra, eu só tinha uma pista: Alfred Ayer, que se recusou a entrar. Então,
escrevi uma carta para meu ex-aluno, István száros, que agora leciona na
Universidade de Brighton, mas até hoje não recebi uma resposta dele. Eu peço que
você faça mais tentativas aí também.
Obrigado novamente por sua ajuda até agora. Esperançosamente, nossos
esforços não serão malsucedidos.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
P.S.: Anexo uma cópia que recebi de Berlinguer, através do movimento italiano,
sobre o assunto.
28 de janeiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado por me enviar a nova lista. Na primeira inspeção, percebi que o
Hochhuth havia sido atribuído a um domicílio errado. Hochhuth mora na Basiléia,
embora seja cidadão da República Federal. Estou melhorando essas pequenezas na
lista que vou enviar, fico feliz que a coisa com Havemann deu certo.
Ficaria muito grato se pudesse considerar esta lista como a definitiva. Porque eu
deixaria a redação nervosa se continuasse enviando novas listas.
No que diz respeito à França, estou muito certo de queuma campanha sendo
feita nesse país. Eu poderia escrever para Sartre, mas mais correspondência atrasaria
muito a publicação da lista novamente.
Estou convencido de que você encontrará a revista
Blätter r deutsche und
internationale Politik
em uma sala de revistas da universidade. O 171 contém de
longe a cobertura mais competente do caso Angela Davis feita por meu amigo, Martin
Hall, cujo relatório sobre a América você, sim, conhecerá.
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 339
Obrigado pela cópia da carta de Berlinguer.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
1º de fevereiro de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Em minha última carta, escrevi que espero mais nomes da Itália. Nesse ínterim
fiquei sabendo que a carta sobre os movimentos italianos com a lista de participantes
estava mal endereçada, mas não consigo mais entrar em contato com seu remetente,
Nelo Risi, porque ele estava indo para a Etiópia. Peço-lhe então que se dirija a Elsa
Morante a esse respeito (Via dell’oca 27, Roma), ela pode certamente nos ajudar.
Ainda estou esperando uma carta da Inglaterra: meu ex-aluno, István száros,
me disse que estava tentando iniciar uma campanha entre os intelectuais ingleses.
Isso, creio eu, encerrará a primeira fase da nossa campanha, os próximos passos
dependerão do andamento do processo. Por favor, mantenha-me atualizado, eu
também irei mantê-lo informado sobre todos os desenvolvimentos.
Com os melhores votos,
Seu, Georg Lukács.
7 de fevereiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado por sua carta. Por enquanto, enviei a lista à
Forvm
, ao
Stimme
der Gemeinde
e ao
Blättern für deutsche und internationale Politik
. Fiquei sabendo
que as duas primeiras revistas vão publicar o chamado na próxima edição, no que diz
respeito à terceira revista, acho que a publicação pode ser dada como certa. As
publicações futuras podem certamente conter outros signatários.
Não entendi bem por que eu escreveria para Elsa Morante, que não conheço e
que não me conhece não seria mais promissor se você mesmo fizesse isso. Mas se
você acha que é mais prático que eu faça isso, eu o farei.
György Lukács & Günther Anders
340 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - mar. 2022
Na minha opinião, novas etapas ainda não devem ser preparadas, pois
dependerão do julgamento contra Angela Davis, e esse julgamento ainda não
começou. Receio que se interviermos muito cedo, quando nada é previsível nem é
necessário pedir algo específico, nossa pólvora se esgotará. Então, primeiro eu faria
uma pausa.
Claro, vou mantê-lo atualizado e ficarei ao seu lado caso algo aconteça em breve,
com meus melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
Budapeste, 23 de fevereiro 1971
Caro amigo Günther Anders!
Perdoe-me por não escrever tanto tempo, mas estava esperando para falar
sobre os últimos desenvolvimentos do caso Davis. O camarada Aptheker me informou
que o custo do processo ainda pode ultrapassar US$ 100.000 é por isso que sugeri
esta nova campanha.
Estou encaminhando agora o texto do próximo chamado à imprensa mundial.
Como você pode entrar em contato com Nenning indiretamente, gostaria de pedir-lhe
que forneça o texto do chamado para as colunas da
Neues Forvm
.
Aliás, você ouviu alguma novidade de Morante sobre os movimentos italianos?
Agradeço antecipadamente por seus esforços. Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
P.S.: Infelizmente não consigo encontrar a revista mencionada aqui. Peço-lhe, se
não for difícil, que me envie uma cópia.
27 de fevereiro de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo,
Muito obrigado por sua carta e pelo depósito: o segundo chamado relacionado
Angela Davis. Em anexo envio-lhe o artigo que mencionei na minha última carta
extraído da revista de esquerda
Blätter r deutsche und internationale Politik
ficaria
Lukács-Anders: uma correspondência
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 317-342 - mar. 2022 | 341
muito grato por comentários ocasionais.
Estou um tanto hesitante quanto à sua nova campanha. Angela Davis tem cinco
dos melhores advogados da América, e o financiamento da defesa e os custos legais
são amplamente aceitos e assegurados pelo povo americano. Temo que a mulher
possa ser prejudicada se um financiamento estrangeiro for acrescido. É por isso que
estou relutante em recorrer à
Neues Forvm
para a publicação do chamado. Por favor,
não entenda mal a minha recusa. Não nos diferenciamos no objetivo, mas sim na tática
para atingir o objetivo. Se meu argumento não soar convincente para você, é claro que
você ainda tem a opção de enviar pessoalmente seu texto para Günther Nenning (a
propósito, espero que seu primeiro chamado e os nomes dos signatários sejam
publicados na próxima edição da
Neues Forvm
).
Eu ficaria muito triste se essa diferença de tática fosse prejudicial para o nosso
relacionamento. Mas eu realmente não consigo imaginar isso.
Com os mais calorosos cumprimentos,
como sempre, seu, Günther Anders.
Budapeste, 17 de março de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Muito obrigado pela sua carta e pelo artigo (já o envio de volta em anexo).
Compreendo perfeitamente suas preocupações a respeito da minha nova
campanha. Concordo plenamente com você que não diferimos quanto ao objetivo, mas
apenas quanto à tática usada para atingir o objetivo. Se me dirigir pessoalmente a
Günther Nenning, significa que as consultas indiretas sobre este assunto com o
camarada Aptheker e com os advogados de Davis me convenceram de que esta nova
campanha é essencial para atingir nosso objetivo. Aliás, na minha [opinião], tais
diferenças táticas são inerentes ao movimento político.
Obrigado novamente pelo artigo.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Georg Lukács.
György Lukács & Günther Anders
342 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 317-342 - mar. 2022
31 de março de 1971
Günther Anders, 1090 Viena, Lackiererg. 1/5
Caro amigo Georg Lukács,
Muito obrigado por sua carta e por devolver o artigo sobre Angela. Fico muito
feliz que você demonstre tanta compreensão pela minha concepção, diferente da sua,
acerca da técnica da campanha a favor de Angela.
Acabei de receber uma carta da filha de Aptheker pedindo-me para ajudar a
financiar a publicação de seu chamado no
New York Times
. Eu a encaminhei a Günther
Nenning: ela deveria pedir a ele que publicasse em sua revista um chamado para a
arrecadação do dinheiro.
Com os melhores cumprimentos,
Seu, Günther Anders.
27 de abril de 1971
Caro amigo Günther Anders!
Muito obrigado pelas informações sobre a correspondência com a filha de
Aptheker. A propósito, gostaria de informar que está em andamento a publicação
do meu segundo chamado na
Neues Forvm
;
24
ele aparecerá na próxima edição.
Muito obrigado por sua amável ajuda.
Com os melhores cumprimentos,
Georg Lukács.
Como citar:
LUKÁCS, György; ANDERS, Günther. Lukács-Anders: uma correspondência. Trad.
Carolina Peters e Murilo Leite.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 317-342, mar.
2022.
24
Os chamados redigidos por Lukács foram publicados em:
Forvm
v. XVIII, n. 207, 208,1971 e
Forvm
v. XVIII, n. 210/I/II, 1971, p. 22. Cf. DAVIS, Angela. Kapitel X. In:
Freiheit - Für Wen? Ghetto, Gericht,
Gefängnis, Tod. Stimmen des Widerstands
. Neuwied; Darmstadt: Sammlung Luchterhand, 1972.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
Lukács sobre Goethe
Artigos de Berlin 1931-32*
György Lukács
APRESENTAÇÃO
Ronaldo Vielmi Fortes
O conjunto de artigos aqui traduzidos, inéditos em português, reúne estudos de
Lukács acerca da obra de Goethe escritos em um momento bastante significativo da
história universal. Trata-se do período que antecede a Segunda Guerra Mundial,
marcado pela ascensão do nazismo na Alemanha. Esse período trágico da história
alemã coincide com o jubileu de Goethe, momento em que na Alemanha se prestavam
várias homenagens ao grande escritor, e diversos jornais dedicaram cadernos e
matérias destacando a importância de sua obra. Os eventos comemorativos realizados
põem em evidência as interpretações tendenciosas da obra goethiana, que, em linhas
gerais o aproximam da apologia de um suposto espírito autêntico germânico, servindo
de base inclusive para tomá-lo como um dos precursores do nacional-socialismo. Em
meio à essa atmosfera social e cultural, Lukács se posiciona criticamente, realizando
importantes apontamentos acerca do modo como a obra de Goethe repercute na
aurora drástica desse período. Ao realizar a crítica das reinterpretações e
consequentes deformações da letra de Goethe, Lukács estabelece análises
significativas sobre o pensamento e a obra do escritor alemão, tratando de temas
importantes tanto da literatura quanto da filosofia.
Os textos são escritos no contexto da imigração de Lukács da União Soviética
para Berlin, no ano de 1931, onde permaneceu por 2 anos. Em 1933 ele deixa a
Alemanha por ocasião da ascensão ao poder pelos nazistas. Nos anos de sua
permanência Lukács tornou-se vice-presidente do grupo berlinense da
Associação dos
* Tradução Ronaldo Vielmi Fortes. Revisão técnica Ester Vaisman.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.651
György Lukács
344 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
Escritores Alemães
, participa também como membro da
União dos Escritos Proletários
Revolucionários
. Esse período é marcado por uma fase bastante produtiva de sua
atividade crítica literária, redige vários artigos (cerca de 29) em que trata de temas de
grande relevância da atividade literária, além de realizar a análise de diversos
escritores alemães e russos
1
.
Posteriormente ao ano de 1933, quando regressou à URSS ele prosseguiu em
seus estudos e escreveu o conjunto de artigos mais conhecidos sobre Goethe
publicados sobre a forma de livros, são eles: “Goethe e seu tempo”
2
(conjunto de
artigos escritos entre os anos de 1934 e 36) e os Estudos sobre Fausto”
3
(1940). Os
artigos aqui presentes, apesar de serem os primeiros escritos a propósito de Goethe,
demonstram uma apropriação analítica aprofundada do pensamento do autor
alemão. São artigos caracteristicamente de combate, em que Lukács enfrenta de
maneira direta uma ampla série de interpretações sobre a herança literária de Goethe.
Conforme se poderá observar, ele debate e refuta proeminentes figuras de seu tempo,
sejam elas jornalistas ou críticos literários.
É interessante notar que o conjunto das elaborações do período culminam no
mais polêmico livro escrito por Lukács,
A destruição da razão
. Interessante observar
que nos artigos aqui traduzidos, é percetível, pelo menos em germe, teses
posteriormente desenvolvidas sobre a demarcação do predomínio do pensamento
irracionalista no período pré-guerra e pós-guerra. Mas não apenas esse elemento se
faz presente. Trata-se de demonstrar a
gênese
e
função social
de todo pensamento,
ou seja, as tendências sociais e políticas de certo período implicam a determinação
social do pensamento, os desvios (ingênuos ou conscientemente mal-intencionados)
tem raízes sociais concretas, não se tratando de modo algum de simples incapacidades
ou limites meramente subjetivos de comentadores e intérpretes. A interpretação
desvirtuada de Goethe se deve, segundo Lukács, à atmosfera do período em questão,
e essa não se limita à simples versões nazistas de um Goethe nacionalista. A edificação
do perfil do escritor como precursor do fascismo tem sua origem nas formas
predominantes do pensamento alemão do período fundadas na ideologia imperialista
1
[NT] Todos os artigos publicados no período encontram-se reunidos no livro: Alfred Klein, Georg
Lukács;
Georg Lukács in Berlin
. Literaturtheorie und Literaturpolitik der Jahre 1930-32; Berlin: Aufbau
Verlag, 1990.
2
LUKÁCS, György;
Goethe e seu tempo
; trad. Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes (Ensaio 5); São
Paulo: Boitempo; 2021.
3
No prelo, pela Boitempo.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 345
burguesa pré-guerra. Segundo Lukács, pode-se localizar a origem de tais descaminhos
em teóricos “liberais” como Simmel ou Gundolf”, autores esses que desempenham
um papel importante (muitas vezes não reconhecido) na construção da imagem fascista
de Goethe”.
Defender Goethe contra seus detratores e deformadores não significa, no
entanto, colocar-se ao lado de seus apologistas, ainda que dentre esses últimos se
encontre uma figura marxista de relevância como Franz Mehring. Lukács não pode
concordar com a posição expressa por este segundo a qual, a revolução implicaria o
encontro definitivo do proletariado com Goethe**. A rigor, sem desconsiderar a
importância do poeta alemão, não se pode ficar incólume e negligenciar a posição de
classe de Goethe, que faz com que ele expresse em sua obra sempre uma posição
crítica da situação de seu tempo do ponto de vista privilegiado do indivíduo,
escamoteando desse modo, análises que deveriam levar em conta não a
unilateralidade da da vida privada do indivíduo burguês”, mas o tratamento “de todas
as questões do ser social [...] do ponto de vista da vida pública, geral e política da
classe; portanto, do ponto de vista da burguesia e não dos citoyens”.
Nesse sentido, outro aspecto relevante destes artigos que os diferenciam dos
escritos posteriores, reside no fato de que eles não se limitam à crítica dos desvios
das interpretações de Goethe. Outra dimensão importante comparece em tais escritos,
em particular no artigo
Goethe e a Dialética
. O leitor mais familiarizado com as
elaborações de Lukács acerca de Goethe, poderá observar o tom crítico dirigido contra
o próprio escritor alemão. Por meio de uma análise rigorosa e profunda nosso autor
percorre diversos momentos da obra goethiana, desde suas obras literárias até seus
textos científicos, estéticos etc., demonstrando a grandeza e os limites de seu
pensamento. Nesse artigo se encontra a análise comparativa entre a concepção
dialética hegeliana e a refutação, por parte de Goethe, da dialética. Esse tratamento
do problema em Goethe é provavelmente a grande novidade das análises de Lukács,
e salvo melhor juízo não se apresenta em suas obras posteriores. As insuficiências
** Cabe aqui lembrar das considerações de Lukács acerca de Mehring presentes em seu livro
Pensamento
Vivido
[São Paulo: Ad Hominen; Viçosa: Editora da UFV, 1999; p. 87-8) em que destaca as tendências
do crítico marxista em tomar a obra de Marx como insubsistente no que tange ao tema da estética,
propondo a tarefa de suprir as insuficiências a partir de Kant. Lukács sempre considerou que “o
marxismo não é uma teoria econômico-social, junto à qual lugar também para outras coisas, mas
uma visão universal do mundo. Logo, devia haver uma estética marxista própria, que o marxismo não
tomava nem de Kant nem de nenhum outro” [idem, ibidem].
György Lukács
346 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
e limites do pensamento de Goethe possuem nesse texto maior proeminência. A
análise ali presente demonstra como a concepção de mundo, da natureza, da religião,
da sociedade em geral terminam por determinar e trazer limites decisivos para as
configurações de suas obras estéticas, sem que isso seja um empecilho para
desdobramentos de grande valor humano e para a percepção das grandes questões
humanas de seu tempo. Não que Lukács tenha mudado posteriormente sua posição a
respeito dos apontamentos críticos elaborados nesse período, mas em suas
considerações posteriores acerca de Goethe, o tom crítico mais direto e áspero já não
se faz presente de maneira tão clara e direta.
Decerto, para os nossos dias, o teor das análises lukacsianas oferecem ainda
grandes préstimos. Em primeiro lugar, por destacar a natureza da determinação social
do pensamento nas interpretações de Goethe, aspecto que nos instrui sobre a
necessidade de sempre analisar toda obra (todo comentador, intérprete) a partir do
tripé analítico: demonstrar a gênese e função social de um pensamento, mas sem
descurar a análise imanente dos textos e pensamentos analisados. O tratamento das
razões sociais das distorções da obra de Goethe é um registro histórico de forte
relevância para a compreensão dos desdobramentos posteriores que vieram a se fazer
presentes tanto na crítica literárias como no pensamento filosófico. Em segundo lugar,
o teor das análises do pensamento de Goethe, seja de suas obras literárias, seja de
seu pensamento em geral, são ainda elementos analíticos que muito auxiliam a
compreender a importância de Goethe para a literatura universal, na medida em que
demonstra sua grandeza e relevância na apreensão dos problemas mais cruciais da
humanidade em um período decisivo da história humana, marcado pela transição da
sociedade feudal e o advento da forma cabal da sociabilidade capitalista. As formas
das individuações desse período são retratadas por Goethe por meio de uma riqueza
de detalhes e percepções, que fazem de sua obra uma remissão necessária para a
apreensão das grandes questões das individualidades em meio a sociabilidade do
capital.
Lukács sobre Goethe
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Der faschisierte Goethe
O Goethe fascistizado
Assim como a burguesia alemã ingressou
na fase fascista, a lenda Goethe burguesa
também entrou em nova fase de seu
desenvolvimento. Isso não significa, é
claro, que a conexão com o passado, ou
mesmo a continuidade com ele, foi
rompida. Muito ao contrário. Assim como
o próprio fascismo “brota” da democracia
de Weimar e reestrutura seus elementos
do modo que lhe corresponde, a ideologia
fascista brota organicamente da ideologia
pré-guerra da burguesia imperialista
alemã, apesar de toda a polêmica ruidosa
contra o liberalismo”. Com isso não
referimos apenas para permanecer no
campo da história literária os
historiadores reacionários e críticos do
período pré-guerra, como Adolf Bartels ou
H. St. Chamberlain, que são rotulados de
autoridades fascistas. Não, teóricos
“liberais” como Simmel ou Gundolf
também desempenham um papel
importante (muitas vezes não
reconhecido) na construção da imagem
fascista de Goethe.
Die Goethe-Legende der deutschen
Bourgeoisie tritt mit dem faschistischen
Abschnitt ihrer Entwicklung ebenfalls in
einen neuen Abschnitt. Das bedeutet
freilich nicht, daß der Zusammenhang mit
der Vergangenheit, ja selbst die
Kontinuität mit ihr zerrissen wäre. Ganz im
Gegenteil. So wie der Faschismus selbst
aus der Weimarer Demokratie
„herauswächst“, ihre Elemente
entsprechend umbaut, so wächst die
faschistische Ideologie, trotz aller
lärmenden Polemik gegen den
„Liberalismus“, aus der Vorkriegsideologie
der imperialistischen deutschen
Bourgeoisie organisch heraus. Wir meinen
damit keineswegs bloß um auf dem
Gebiet der Literaturgeschichte zu bleiben -
, daß reaktionäre Historiker und Kritiker
der Vorkriegszeit wie Adolf Bartels oder H.
St. Chamberlain zu faschistischen
Autoritäten gestempelt werden. Nein, auch
„liberale“ Theoretiker wie Simmel oder
Gundolf spielen (oft
uneingestandenerweise) eine große Rolle
in der Konstruktion des faschistischen
Goethe-Bildes.
Se enfatizamos desde o início, que Goethe
é de fato interpretado na literatura do
jubileu de acordo com as necessidades do
Wenn wir gleich eingangs hervorheben,
daß Goethe in der Jubiläumsliteratur den
Bedürfnissen des Faschismus
György Lukács
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fascismo, isso não significa de forma
alguma que toda a literatura alemã sobre
Goethe em nossos dias tenha um caráter
nazista uniforme. A mesma unidade (e as
mesmas contradições) que de outra forma
se manifestam econômica, política e
ideologicamente entre as várias frações da
burguesia também entram em jogo na
interpretação, na assimilação e falsificação
de Goethe. E muitas tendências
fundamentais desse ajustamento foram
ideologicamente elaboradas na literatura
sobre Goethe do pré-guerra.
entsprechend zurechtinterpretiert wird, so
bedeutet dies keineswegs, daß nunmehr
die ganze deutsche Goethe-Literatur
unserer Tage ein einheitliches
Nazigepräge hätte. Dieselbe Einheit (und
dieselben Gegensätze), die sich sonst
ökonomisch, politisch und ideologisch
zwischen den verschiedenen Fraktionen
der Bourgeoisie zeigen, kommen auch in
der Auslegung, in dem Zurechtstutzen und
Verfälschen Goethes zur Geltung. Und
viele grundlegenden Tendenzen dieses
Zurechtstutzens sind bereits in der
Goethe-Literatur der Vorkriegszeit
ideologisch vorgearbeitet.
Isso fica mais claro na ênfase da
religiosidade de Goethe. A forma de
manifestação original da lenda alemã de
Goethe, o Goethe "olímpico" também foi a
do "grande pagão". A atitude
fundamentalmente negativa de Goethe em
relação ao cristianismo era muito
conhecida: as correntes materialistas da
própria burguesia, ainda que de forma
vulgarizada, eram fortes demais para que
a falsificação também tivesse início nesse
terreno. O comportamento hostil de
Goethe para com o Cristianismo, seu
panteísmo foi lamentado, criticado,
rejeitado, mas não negado, mas não
reinterpretado no sentido contrário. Os
mencionados Simmel, Gundolf e outros
construíram a ponte para a visão de hoje.
Dies kommt am klarsten in dem
Hervorheben der Religiosität Goethes zum
Vorschein. Die ursprüngliche
Erscheinungsform der deutschen Goethe-
Legende, der „Olympier“ Goethe war
zugleich der „große Heide“. Goethes im
Grunde ablehnende Haltung zum
Christentum war zu bekannt, die
materialistischen Strömungen in der
Bourgeoisie selbst, wenn auch in
vulgarisierter Form, waren zu stark, als
daß die Umfälschung auch auf diesem
Gebiet hätte einsetzen können. Goethes
feindliches Verhalten zum Christentum,
sein Pantheismus wurde bedauett,
bekrittelt, abgelehnt, jedoch nicht
abgeleugnet, nicht ins Gegenteil
umgedeutet. Die bereits erwähnten
Lukács sobre Goethe
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O próprio panteísmo de Goethe contém
muitos elementos de um compromisso
ideológico; permite sobretudo uma
exploração estética (conclusão de
Fausto
4)
e também moral (
Afinidades Eletivas
5) dos
elementos do Cristianismo. Essa meia-
medida agora permitia - com a ajuda de
Nietzsche, Bergson e outros pensadores
reacionários - converter o panteísmo
goethiano em uma "religião não
dogmática" para os "instruídos". Mas
mesmo isso não é suficiente para as
necessidades de hoje; foi um trabalho
preparatório útil, de fato indispensável,
mas apenas um trabalho preparatório.
Hoje se tornou necessário um
compromisso mais decisivo (de Goethe)
com a religião.
Simmel, Gundolf und andere haben die
Brücke zur heutigen Auffassung
geschlagen. Goethes Pantheismus selbst
enthält manche, viele Elemente eines
ideologischen Kompromisses; er gestattet
vor allem ein ästhetisches (Schluß von
Faust) sowie moralisches
(Wahlverwandtschaften) Ausnutzen der
Elemente des Christentums. Diese Halbheit
gestattete nun - mit Hilfe von Nietzsche,
Bergson und anderer reaktionärer Denker
-, den Goetheschen Pantheismus in, eine
„undogmatische Religion“ für die
„Gebildeten“ umzubauen. Für die heutigen
Bedürfnisse reicht aber auch dies nicht
aus; es ist zwar eine nützliche, ja
unentbehrliche Vorarbeit gewesen, aber
nur Vorarbeit. Heute ist ein
entschiedeneres Bekenntnis (Goethes) zur
Religion notwendig.
Dada a estreita interrelação entre
economia e religião, não é surpreendente
que o
Berliner Börsenzeitung
6 apresente
um tom tão decisivo.
Bei dem innigen Wechselverhältnis
zwischen Wirtschaft und Religion ist es
nicht verwunderlich, daß die „Berliner
Börsenzeitung“ einen derart
entschiedenen Ton anschlägt.
O grande sábio mundial de Weimar já sentiu o
pulso da nossa vida, a vida que temos que
viver... Segundo Goethe, não existe cultura
sem religião; pois teria que negar a última
Der große Weimarer Weltweise hat schon den
Pulsschlag unseres Lebens, des Lebens, das
wir leben müssen, empfunden ... Eine
religionslose Kultur gibt es nach Goethe nicht;
4
[NT] GOETHE, Johann Wolfgang von;
Fausto
; trad. Jenny Klabin Segall; São Paulo: Editora 34, 2011.
5
[NT] GOETHE;
Afinidades eletivas
; trad, Tercio Redondo; São Paulo: Peguin, 2014.
6
[NT] O
Berliner Börsen-Zeitung
, também conhecido como BBZ, foi um jornal diário publicado duas
vezes por semana como edição de manhã e à noite em Berlim, de 1855 a 1944, durante um período
de 89 anos, cobrindo cinco guerras e quatro formas de governo. Segundo a filiação partidária do seu
fundador, o
Berliner Börsen-Zeitung
foi chamado o jornal do Partido Alemão do Progresso (DFP).
Também se atribuía ao jornal "ao partido liberal nacional e, em particular, à
Hurra-Richtung
.
György Lukács
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fonte original de onde veio e, portanto,
perecer... (Unterhaltungsbeilage7, 20 de
março de 1932.)
denn sie müßte den letzten Urquell, dem sie
entstammt, verleugnen und daher versicgen...
(Unterhaltungsbeilage, 20. März 1932.)
O
Zentrumsblätter
não considera a
questão da religião em Goethe algo tão
simples. Seus jornalistas são mais
experientes em questões de religião, pois
não têm a piedade pungente e simples de
nosso homem da bolsa de valores. Com o
suor de seu rosto, eles se esforçam para
reconciliar a visão de mundo de Goethe
com o cristianismo. O padre Muckermann8
até admite abertamente:
Die Zentrumsblätter sehen die Frage der
Religion bei Goethe nicht so einfach. Ihre
Publizisten sind in den Fragen der Religion
routinierter, sie haben nicht die ergreifend
schlichte Gläubigkeit unseres
Börsenmannes. Sie bemühen sich daher im
Schweiße ihres Angesichtes ab, Goethes
Weltanschauung mit dem Christentum zu
versöhnen. Pater Muckermann gibt sogar
offen zu:
Portanto, do cristianismo não temos a menor
razão e nem mesmo os pressupostos internos
para organizar as celebrações de Goethe,
como se se tratasse de um poeta que esteve em
solo cristão ou que quisesse nele ficar de pé.”
(Germania, Suplemento, 22 de março de
1932.)
Wir haben also vom Christentum aus nicht
den geringsten Grund und gar nicht die
inneren Voraussetzungen, Goethe-Feiern zu
veranstalten, so als ob es sich um einen
Dichter handele, der auf christlichem Boden
gestanden hätte oder überhaupt hätte stehen
wollen. (Germania, Beilage, 22. März 1932.)
Mas: "Quem se empenha em se esforçar...",
também é concedida a graça. O camarada
e colega de Muckermann, Prof. Günther
Müller9 encontrou a palavra redentora.
Ele afirma que “Goethe era de natureza
fortemente religiosa”. E no período de
maturidade, após superar o período
Sturm
Aber: „Wer immer strebend sich
bemüht...“, dem wird auch die Gnade
zuteil. Muckermanns Mitstreiter und
Kollege Prof. Dr. Günther Müller findet
schon das erlösende Wort. Er stellt fest,
„daß Goethe eine stark religiöse Natur
gewesen ist“. Und in der Reifezeit, nach
7
[NT] em tradução livre: “suplemento de entretenimento”; ao que tudo indica seção do jornal
supracitado
8
[NT] Friedrich Johannes Muckermann (1883-1946) jornalista e jesuíta. Consagrou-se como um dos
opositores católicos mais decididos contra o nacional-socialismo e foi um crítico literário de destaque
na Alemanha católica nas décadas de 1920 e 1930. Destacou-se também como um proeminente crítico
também do stalinismo.
9
[NT] Günther Müller (1861-1931). Estudou filologia e filosofia em Würzburg, Munique, Leipzig e
Göttingen, Converteu-se à Igreja católica em 1920. No período de 1926 a 1939, foi responsável pela
edição da
Literaturwissenschaftliche Jahrbuch der Görres-Gesellschaft
e notabilizou-se como um dos
representantes da formação dos estudos literários católicos. Sua obra é marcada pelo profundo
interesse nos escritos literários e científicos de Goethe.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 351
und Drang
, ele identifica no conhecimento
e no sentimento de Goethe a respeito da
natureza algo que pode ser “entendido de
modo muito cristão”.
der Überwindung der Sturm-und-Drang-
Periode findet er gerade in Goethes
Naturerkenntnis und Naturgefühl vieles,
was man „sehr wohl christlich verstehen“
kann.
E há, sem dúvida, uma relação notável com
certas áreas do tomismo na visão de Goethe
sobre o ser natural e seu cumprimento da lei
divina ... (ibid.).
Und zweifellos liegt in Goethes Blick auf das
naturhafte Sein und seine Erfülltheit vom
göttlichen Gesetz eine bemerkenswerte
Verwandtschaft mit gewissen Bereichen des
Thomismus... (ebenda).
E o professor Oskar Walzel10 corre em seu
auxílio declarando que a concepção de
Heine de "Wolfgang-Apollo, que lutou
contra o judaísmo e o cristianismo em
nome do direito do ser natural do homem"
é errada. O papel de “libertador” de
Goethe é completamente outro. "A
desconfiança de tudo o que é natural no
homem ainda é peculiar ao século XVIII em
seu ápice" (?! Diderot?! Rousseau?! - G.L.).
Goethe nos libertou disso, ou seja, do
século XVIII. (Suplemento do
Kölnische
Volkszeitung
11, 20 de março de 1932.)
Und Professor Oskar Walzel eilt ihm zu
Hilfe, indem er Heines Auffassung vom
„Wolfgang-Apollo, der gegen Judentum
und Christentum wieder das Recht des
Naturhaften im Menschen erstritten habe“,
für falsch erklärt. Goethes „Befreier“-Rolle
ist eine ganz andere. „Mißtrauen gegen
alles Naturhafte im Menschen ist dem 18.
Jahrhundert noch auf seinen Höhen eigen“
(?!Diderot?! Rousseau?! - G.L.). Davon -
also vom 18. Jahrhundert - hat uns Goethe
befreit. (Beilage der „Kölnischen
Volkszeitung“, 20. März 1932.
Deus, o imperador e a pátria pertencem
um ao outro por toda a eternidade.
Portanto, eles também devem pertencer
ao Goethe atual”. As formas de aparência
superficiais são diferentes, mas a essência
Gott, Kaiser und Vaterland gehören in alle
Ewigkeit zusammen. Sie müssen also auch
bei dem „aktuellen“ Goethe
zusammengehören. Die oberflächlichen
Erscheinungsformen sind verschieden, das
10
[NT] Oskar Franz Walzel (1864-1944) pesquisador literário austríaco-alemão, professor de literatura
alemã moderna em Berna, Dresden e Bonn. Foi um dos historiadores mais influentes da literatura alemã
do início do século XX. No ano de 1933 recebeu a nomeação de professor emérito, no entanto em
1936, o reitor da Universidade de Bonn retirou a
venia legendi
de Walzel em função de sua "filiação
judaica". Sua morte ocorreu em 1944 sob circunstâncias pouco claras durante um bombardeio. A sua
esposa, também judia, foi deportada para Theresienstadt no mesmo ano e foi assassinada.
11
[NT] Fundado em 1868 por Josef Bachem, em Colônia (1860), Seu fundador procurou estabelecer
um jornal diário de orientação católica ao lado do liberal
Kölnische Zeitung
da casa de DuMont. O jornal
só foi realmente bem sucedido sob o nome de
Kölnische Volkszeitung
a partir de 1868.
György Lukács
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é a mesma. Hanns Johst12 termina seu
discurso comemorativo sobre Goethe
(
Völkischer Beobachter
13, 22 de março de
1932) com a glorificação de Goethe como
súdito.
Wesen ist das gleiche. Hanns Johst endet
seine Festrede auf Goethe (Völkischer
Beobachter, 22. März 1932) mit der
Verherrlichung Goethes als Untertan.
Durante esse tempo ... Goethe se admite como
monarquista: era tão difícil para um intelectual
de então como é hoje. Mas Goethe viu com os
seus próprios olhos. Neles se refletia a vida do
senhor e príncipe a quem servia, e ele via a
imagem de um homem que não passava de um
servo de seu estado, um súdito de seu povo. O
que todas as teorias do pensamento
sociológico e filosófico em todas as escolas de
todo o mundo, tornam a humanidade feliz se
aplicam a ele, a quem os sentidos e suas visões
nunca enganam? A política, que ganha seu
direito de existir por meio da persuasão das
eventuais maiorias e, assim, renuncia a seu
ímpeto pessoal, a sua independência
aristocrática, não pode parecer importante
para ele [!}. Portanto, politicamente falando,
Goethe é um súdito.
In dieser Zeit... bekennt sich Goethe als: Das
war für einen Geistigen damals ebenso
schwierig wie heute. Aber Goethe dachte mit
seinen eigenen beiden Augen. In ihnen
spiegelte sich das Leben des Herrn und
Fürsten, dem er diente, und er sah da das Bild
eines Mannes, der selber nichts war als ein
Diener seines Staates, Untertan seines Volkes.
Was konnten ihm da alle
menschheitbeglückenden Theorien
soziologischer und philosophischer
Gedanklichkeit sämtlicher Schulen aller Welt
gelten, ihm, den die Sinne und ihre Gesichte
nie trügten? Die Politik, die ihre
Existenzberechtigung durch Überredungen
schließlicher Majoritäten gewinnt und damit
ihren persönlichen Impetus, ihre
aristokratische Selbständigkeit aufgibt, kann
ihm nicht wichtig erschienen [!}. Goethe ist
also, politisch gesprochen, Untertan.
Como um súdito consequente, Goethe
tornou-se consequentemente um
funcionário público. “Para ele, a política
não é um assunto para todos como a
alfaiataria ou a confecção de sapatos”
(ibid.). E Alfred Rosenberg14 confirma (ibid)
que Goethe também era um defensor
filosoficamente convicto do Estado
Als konsequenter Untertan ist Goethe
konsequent zum Beamten geworden.
„Politik ist ihm ebensowenig
Jedermannssache wie Schnei derei oder
Schusterei“ (ebenda). Und Alfred
Rosenberg bestätigt (ebenda), daß Goethe
auch philosophisch überzeugter Anhänger
des nationalsozialistischen Ständestaates
12
[NT] Hanns Johst (1890-1978) foi um poeta e dramaturgo alemão vinculado à filosofia nazista, foi
membro das organizações de escritores oficialmente aprovadas pelo Terceiro Reich.
13
[NT] O
Völkischer Beobachter
foi o órgão do partido da NSDAP, de dezembro de 1920 a 30 de abril
de 1945. Em nítida distinção aos jornais burgueses, o VB descreveu-se a si próprio como um "órgãoó
rgde combate" e estava programaticamente mais interessado na agitação do que na informação.
14
[NT] Alfred Ernst Rosenberg (1893-1946) político e escritor alemão, foi o principal teórico do
nacional-socialismo, cujas ideias centrais foram expressas na obra
O Mito do século XX
(Der Mythus des
zwanzigsten Jahrhunderts, 1930). Foi conselheiro de Adolf Hitler e ministro encarregado dos territórios
da Europa Oriental, em 1941. Foi responsável pela deportação e extermínio de milhares de pessoas,
principalmente judeus. Foi condenado pelo Tribunal de Nuremberg, que o sentenciou ao enforcamento
por crimes de guerra.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 353
corporativo nacional-socialista. Ele toma
seu ponto de partida no místico medieval
Meister Eckhart (a quem -
independentemente de seu
comportamento real em relação às lutas de
classes de seu tempo - o professor
vienense Othmar Spann15 o colocou
muito tempo na galeria ancestral do
fascismo), e chega à conclusão de que a
“liberdade da alma”, na qual “toda a
existência de Goethe estava enraizada”, já
se concretizou para todos em sua classe.
gewesen ist. Nimmt er doch seinen
Ausgangspunkt vom mittelalterlichen
Mystiker Meister Eckhart (den
unbekümmert um sein tatsächliches
Verhalten zu den Klassenkämpfen seiner
Zeit - der Wiener Professor Othmar Spann
bereits vor langer Zeit in der Ahnengalerie
des Faschismus eingereiht hat), kommt er
doch zur Schlußfolgerung, daß die
„Freiheit der Seele“, worin „Goethes
ganzes Dasein wurzelte“, für jeden in
seinem Stand zur Verwirklichung gelangt.
É por isso que mesmo o homem mais simples
pode ser 'completo'” se ele “se mover dentro
dos limites de suas habilidades e aptidões“.
Darum kann auch der geringste Mensch
‚komplett‘“ sein, wenn er sich „innerhalb der
Grenzen seiner Fähigkeiten und Fertigkeiten
bewegt“.
Assim a glorificação de Goethe pela
burguesia liberal pré-guerra, o misticismo
cético de Simmel sobre o "tornar-se
simbólico" de cada atividade humana, a
glorificação de Max Weber das "demandas
do dia" como regra de vida, floresceu
alegremente no estado corporativo
fascista.
Womit die Goethe-Verherrlichung der
liberalen Vorkriegsbourgeoisie, Simmels
skeptische Mystik über das „Symbolisch-
Werden“ einer jeden menschlichen
Tätigkeit, die Max Webersche
Verherrlichung der „Forderung des Tages“
als Lebensregel, glücklich in den
faschistischen Ständestaat
hinübergewachsen ist.
Assim, por essa ponte, Goethe é
transferido para o campo do fascismo.
Mesmo na interpretação de Goethe antes
da guerra, essa ponte foi construída sobre
a ignorância ou falsificação dos
So wird Goethe über diese Brücke ins
Lager des Faschismus überführt. Diese
Brücke ist schon in der Goethe-Auslegung
der Vorkriegszeit auf Unkenntnis oder
Verfälschung der geschichtlichen
15
[NT] Othmar Spann (1878-1950) economista, sociólogo e filósofo de nacionalidade austríaca. Spann
foi um dos pioneiros intelectuais do austrofascismo.
György Lukács
354 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
fundamentos históricos da existência e
eficácia de Goethe. Se esses fundamentos
forem removidos, as contradições na obra
de Goethe, a coexistência do “colossal” e
do “mesquinho”, “filisteu”, também podem
ser facilmente removidas. Então, o
mesquinho-filisteu pode ser celebrado no
Goethe “atemporal” e exagerado no
modelo da germanidade de hoje. Essa
abordagem completamente a-histórica -
uma "noite em que todos os gatos são
pardos"16, como diz Hegel - os
pesquisadores burgueses e jornalistas
quase invariavelmente sucumbem a ela.
Desse modo, o Fr. Hielscher17 construiu
um “modelo da nação” de Goethe,
reunindo Friedrich II, Napoleão, Hegel e
Goethe em uma “unidade”. Nessa lenda,
Napoleão "sonha" "o sonho do império
medieval, o sonho dos reis alemães mais
uma vez" (segundo o qual o traço comum
entre Frederico II e Napoleão é que, devido
à diferença em suas bases de classe, eles
quiseram e fizeram coisas diferentes, mas
nenhum deles poderia pensar em “sonhar
este sonho”), Hegel “assume a herança de
Frederico, o Grande”, e Goethe e Hegel
reconhecem “um no outro o amigo e
camarada da mesma luta”.
Grundlagen der Existenz und der
Wirksamkeit Goethes aufgebaut. Wenn
nämlich diese Grundlagen entfernt worden
sind, können die Widersprüche im
Lebenswerk Goethes, das
Nebeneinanderbestehen des „Kolossalen“
und des „Kleinlichen“, „Philisterhaften“,
ebenfalls leicht entfernt werden. Dann
kann im „zeitlosen“ Goethe gerade das
Kleinlich-Philisterhafte gefeiert und zum
Vorbild des heutigen Deutschtums
aufgebauscht werden. Dieser völlig
unhistorischen Betrachtungsweise einer
„Nacht, in der alle Kühe schwarz sind“, wie
Hegel sagt - verfallen die bürgerlichen
Forscher und Publizisten fast
ausnahmslos. So konstruiert Fr. Hielscher
aus Goethe ein Vorbild der Nation“,
indem er Friedrich IL, Napoleon, Hegel und
Goethe in eine „Einheit“ bringt. In dieser
Legende „träumt“ Napoleon den Traum
des mittelalterlichen Kaisertums, den
Traum der deutschen Könige noch einmal“
(wobei also das Gemeinsame zwischen
Friedrich IL. und Napoleon darin besteht,
daß sie zwar infolge der Verschiedenheit
ihrer Klassengrundlagen durchaus
Verschiedenes gewollt und getan haben,
jedoch keinem von beiden es einfallen
konnte, diesen „Traum zu träumen“), Hegel
16
[NT] HEGEL.
Fenomenologia do espírito
; trad. Paulo Menezes; Petrópolis: Editora Vozes, 1992; p. 29.
17
[NT] Friedrich Hielscher (1902-1990) intelectual alemão ligado ao movimento conservador
revolucionário durante a República de Weimar e participou da resistência alemã no período nazista.
Fundou o movimento esotérico ou neopagão, o
Unabhängige Freikirche
(UFK, "Igreja Livre
Independente"), que dirigiu desde 1933 até a sua morte.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 355
Diz Hielscher em resumo:
„tritt das Erbe Friedrich des Großen an“,
und Goethe und Hegel erkennen „jeder im
anderen den Freund und Kameraden
desselben Kampfes“.
Então leva [...] a um caminho direto de Goethe
via Nietzsche (novamente vemos o caminho
Simmel-Gundolf para a visão atual de
Goethe!) para o que é nossa função hoje: a
união de interioridade e poder.
(Lokalanzeiger, 20 de março de 1932)
„So führt“, sagt Hielscher zusammenfassend,
„ein unmittelbarer Weg von Goethe über
Nietzsche (wieder sehen wir den Simmel-
Gundolfschen Weg zur heutigen Auffassung
Goethes!) zu dem, was heute unseres Amtes
ist: die Vereinigung von Innerlichkeit und
Macht“ (Lokalanzeiger, 20. März 1932).
fomos despertados desse lindo sonho
pelo fato de que a Goethe não ocorreu
nem em sonho - apesar da amizade
pessoal e do respeito pessoal por Hegel -
concordar com a dialética hegeliana. Ele
rejeita com palavras áridas a transição da
quantidade para a qualidade, as
interseções das relações de proporção.
Chama a concepção de Hegel de
"monstruosa", "querendo destruir a
realidade eterna da natureza por meio de
uma piada sofista" (carta a T. J. Seebeck.
Koncept. Steinsche Briefsammlung VI, 283
e seguintes). Claro, se a dialética for
removida de Hegel, se Goethe for o
precursor de Nietzsche, se Friedrich II e
Napoleão sonharem o mesmo sonho -
tudo é possível nesta noite de construções
abstratas a-históricas.
Aus diesem schönen Traum werden wir nur
dadurch geweckt, daß es Goethe nicht im
Traum einfiel trotz persönlicher
Freundschaft mit und persönlicher
Hochachtung für Hegel mit Hegels
Dialektik übereinzustimmen. Er lehnt den
Übergang von Quantität in Qualität, die
Knotenlinie der Maßverhältnisse mit
dürren Worten ab. Er nennt Hegels
Auffassung „monströs“, „die ewige Realität
der Natur durch einen schlechten
sophistischen Spaß vernichten zu wollen“
(Brief an T. J. Seebeck. Koncept. Steinsche
Briefsammlung VI, 283 ff.). Freilich, wenn
aus Hegel die Dialektik entfernt wird, wenn
Goethe der Vorläufer Nietzsches ist, wenn
Friedrich II. und Napoleon denselben
Traum träumen - so ist in dieser Nacht der
unhistorischen abstrakten Konstruktionen
alles möglich.
Mas mesmo nessa noite, quando na
verdade todos os gatos são pardos e
todos os professores vestem camisa
Aber selbst in dieser Nacht, wo wirklich
alle Kühe schwarz sind und alle
Professoren braune Hemden tragen,
György Lukács
356 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
marrom, certas dificuldades para a
ciência e para o jornalismo burgueses
preparar Goethe para os propósitos
(fascistas) de hoje. Com o professor Max
Wundt18 e o professor Hans Freyer19, essas
dificuldades são expressas abertamente.
Freyer, um dos mais brilhantes e
certamente o mais erudito dos professores
universitários próximos ao fascismo,
admite abertamente que o
desenvolvimento burguês no século XIX (e
de hoje) não tem quase nada a ver com
Goethe. Mas, uma vez que ele não é capaz
nem deseja descobrir a base social para
isso, ele simplesmente termina seu ensaio
com frases embaraçosas segundo a qual
Goethe não é uma "possessão
corporificada" ou uma "bandeira" para o
povo alemão (ou seja, para a burguesia), é
apenas um "espírito flutuante", "som de
sino onipresente sobre as engrenagens do
dia" (DAZ20, 20 de março de 1932). Muito
semelhante à “esquerda” de Willy Haas21
entstehen gewisse Schwierigkeiten für die
bürgerliche Wissenschaft und Publizität,
Goethe für die heutigen (faschistischen)
Zwecke zurechtzumachen. Bei Professor
Max Wundt und Professor Hans Freyer
kommen diese Schwierigkeiten offen zum
Ausdruck. Freyer, einer der klügsten und
sicherlich der gebildetsten unter den dem
Faschismus nahestehenden
Universitätsprofessoren, gesteht offen ein,
daß die bürgerliche Entwicklung im 19.
Jahrhundert (und auch heute) mit Goethe
so gut wie nichts zu tun hat. Da er aber die
soziale Grundlage dafür aufzudecken
weder fähig noch gewillt ist, schließt er
seinen Aufsatz mit den
Verlegenheitsphrasen, daß Goethe für das
deutsche Volk (d. h, für die Bourgeoisie)
kein „verkörperter Besitzt“, keine „Fahne“
ist, bloß „umherschwebender Geist“,
„allgegenwärtiger Glockenton über dem
Getriebe des Tages“ (DAZ, 20. März
1932.) Sehr ähnlich auch der linke“ Willy
18
[NT] Max Wundt (1879-1963) foi um filósofo alemão antissemita e nacional-socialista.
19
[NT] Hans Freyer (1887-1969) sociólogo e académico alemão. Como simpatizante do movimento
favorável a Hitler, combateu e derrotou seu oponente o sociólogo Ferdinand Tönnies assumindo a
presidência da Sociedade Sociológica Ale(DGS). Em 1933 assinou o juramento de fidelidade dos
professores alemães a Adolf Hitler e ao Estado nacional-socialista.
20
[NT]
Deutsche Allgemeine Zeitung
(DAZ) jornal diário alemão publicado em Berlim entre 1861 e
1945. Até o ano de 1918, o jornal chamava-se
Norddeutsche Allgemeine Zeitung
. Embora Wilhelm
Liebknecht, um dos fundadores do SPD e colaborador próximo de Karl Marx e Friedrich Engels, tenha
sido membro do conselho editorial fundador em 1861, o jornal rapidamente se tornou um porta-
estandarte conservador da imprensa alemã (
Bismarcks Hauspostille
). No final da Primeira Guerra
Mundial, o nome foi alterado para
Deutsche Allgemeine Zeitung
, com a intenção de formar um
equivalente conservador e democrático do jornal britânico
The Times
na Alemanha e dar ao Reich uma
imagem mais democrática.
21
[NT] Willy Haas (6 de Julho de 1891 - 4 de Setembro de 1973) editor, crítico de cinema e jornalista
alemão. Escreveu para 19 filmes entre 1922 e 1933, e foi membro do júri do 8º Festival Internacional
de Cinema de Berlim. Depois da I Guerra Mundial, Haas foi para Berlim, onde fez trabalho editorial e
também trabalhou como jornalista e crítico de cinema. Juntamente com Ernst Rowohlt, fundou o
semanário
Die literarische Welt
em 1925.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 357
em
Die Literarische Welt
22 (4 de março de
1932). Essa admissão de completa
perplexidade é muito característica da
melhor parte da intelectualidade fascista.
Max Wundt torna seu trabalho muito mais
fácil. Ele simplesmente escolhe tudo o que
é retrógrado nas visões econômicas e
sociais de Goethe, em particular a
glorificação do artesanato em contraste
com a incipiente indústria de grande
escala,
Hermann e Dorothea
23 como a
"canção de louvor à vida real dos alemães"
para fazer de Goethe um arauto do
caminho fascista para a barbárie.
Haas in „Die Literarische Welt“ (4. März
1932). Dieses Eingeständnis der völli- gen
Ratlosigkeit ist sehr bezeichnend für den
besseren Teil der faschistischen
Intelligenz. Wesentlich leichter macht sich
Max Wundt seine Aufgabe. Er greift einfach
alles Rückständige aus Goethes
ökonomischen und gesellschaftlichen
Anschauungen heraus, insbesondere die
Verherrlichung des Handwerks im
Gegensatz zu der beginnenden
Großindustrie, Hermann und Dorothea“
als „Hohelied eines bodenständigen
deutschen Lebens“, um aus Goethe einen
Herold des faschistischen Weges in die
Barbarei zu machen.
Hoje sabemos o que o espírito ocidental
significa para nós e quão perniciosos foram
seus efeitos sobre a germanidade. Uma nova
onda de espírito atingiu a Alemanha com a
Revolução Francesa, e não os piores alemães
que a princípio receberam a nova mensagem
com entusiasmo, sem perceber seus perigos
para nós. Goethe, por outro lado, desde cedo
só se sentia em oposição a este mundo. (Neue
Preußische [Kreuz-] Zeitung24, 20. März
1932.)
Wir wissen heute, was der westlerische Geist
für uns bedeutet und wie verderblich seine
Wirkungen auf das Deutschtum gewesen sind.
Von der französischen Revolution her schlug
eine neue Welle des Geistes nach Deutschland
hinein, und nicht die schlechtesten Deutschen
nahmen die neue Botschaft zuerst mit
Begeisterung auf, ohne ihre Gefahren für uns
zu erkennen. Goethe dagegen hat sich von
früh an nur in Gegensatz zu dieser Welt
gefühlt. (Neue Preußische [Kreuz-Zeitung,
20. März 1932.)
Que Goethe não tenha entendido e tenha
Daß Goethe zwar die französische
22
[NT]
Die literarische Welt
. Unabhängiges Organ für das deutsche Schrifttum (Órgão Independente para
a Literatura Alemã) periódico publicado na República de Weimar, de edição semanal, fundado por Ernst
Rowohlt e Willy Haas em Berlim, em 1925. A revista apareceu em 1925 e foi interrompida em 1933,
por intervenção dos nazistas. Em 1934, no decurso do que os governantes nazis chamavam
"Gleichschaltung", seu nome mudou para
Das deutsche Wort
. Desde 1998,
Literarische Welt
tem sido
publicado como suplemento do jornal diário Die Welt.
23
[NT] GOETHE; Herman e Dorotéia; São Paulo: Flama Editorial, 1944.
24
[NT] O
Kreuzzeitung
foi um jornal diário nacional publicado entre 1848 e 1939 no Reino da Prússia
e mais tarde no Reich alemão. De início tinha a Cruz de Ferro impressa em seu título, e, na época,
chamava-se
Neue Preußische Zeitung
. Em 1911 foi rebatizado de
Neue Preußische
(Kreuz)Zeitung e a
partir de 1929
Neue Preußische Kreuz-Zeitung
. De 1932 a 1939 o título oficial foi simplesmente
Kreuzzeitung
.
György Lukács
358 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
rejeitado a Revolução Francesa, mas
sempre por causa de Napoleão, da
Inglaterra, em uma palavra pela então
progressista civilização burguesa
“ocidental”; que ele tenha assumido a
posição de que seu desenvolvimento
juvenil havia sido essencialmente
determinado por Voltaire, Diderot,
Rousseau etc., que mesmo na velhice,
desconsiderando a literatura alemã
"prática" e reacionária, ele tenha se
interessado apaixonadamente pela
literatura ocidental, por Balzac, Stendhal e
Merimee, por Byron e Scott e por Hugo e
Beranger, não incomoda nem um pouco
nosso "douto" professor em sua distorção
histórica fascista. Nem mesmo, se um
colega reacionário como o professor Max
J. Wolff25 tenha que admitir abertamente o
atraso das visões econômicas de Goethe.
(
Der Tag
26. Wirtschaftszeitung, 22 de
março de 1932.)
Revolution nicht verstanden und
abgelehnt hatte, aber stets für Napoleon,
für England, mit einem Wort für die damals
fortschrittliche „westlerische“ bürgerliche
Zivilisation. Stellung nahm, daß seine
Jugendentwicklung von Voltaire, Diderot,
Rousseau usw. wesentlich bestimmt war,
daß er sich auch im höchsten Lebensalter
bei Mißachtung der „bodenständigen“ und
reaktionären deutschen Literatur
brennend für die Literatur des Westens, für
Balzac, Stendhal und Merimee, für Byron
und Scott und für Hugo und Beranger
interessierte, stört unseren „gelehrten“
Professor in seiner faschistischen
Geschichtsklitterung nicht im geringsten.
:Auch nicht, daß selbst ein so reaktionärer
Kollege wie Professor Max J. Wolff offen
die Rückständigkeit der ökonomischen
Anschauungen Goethes zugeben muß.
(Der Tag Wirtschaftszeitung, 22. rz
1932.)
Como era de se esperar, a chamada
imprensa de esquerda não mostra
resistência perceptível a essa onda de
“fasticização” de Goethe. Como ela deveria
se mostrar de uma maneira diferente no
campo da política literária do que no
campo político geral? E especialmente no
Dieser Welle der „Faschisierung“ Goethes
gegenüber zeigt wie zu erwarten ist
die sogenannte linke Presse keinen
irgendwie bemerkbaren: Widerstand. Wie
sollte sie sich auch auf literatur politischem
Gebiete in anderem Lichte zeigen als auf
allgemein politischem Gebiete? Und
25
[NT] Max Joseph Wolff (1868-1941) advogado, escritor e tradutor alemão.
26
[NT]
Der Tag
foi um jornal diário ilustrado publicado em Berlim, fundado por August Scherl Verlag,
cuja existência compreendeu o período de 1900 a 1934.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 359
caso de Goethe, onde, como indicado
acima, seus próprios “clássicos” do
período pré-guerra forneceram as
ferramentas intelectuais para a fasticização
de Goethe? (Max Wundt também conecta
Goethe com a "filosofia de vida", ou seja,
com Dilthey / Simmel. Suplemento do
Deutsche Zeitung
, 22 de março de 1932.)
Em tais circunstâncias, não é de todo
surpreendente, mas muito pelo contrário
bastante natural, que o
Berliner
Tageblatt
27 publique do fascista declarado
[Giovane] Gentile, ao lado de Masatyk, um
artigo duro (22 de março). É certo que a
visão de "esquerda" sobre Goethe
permanece muito mais sob o encanto das
autoridades do pré-guerra: ao fazê-lo, no
entanto, eles expressaram os mesmos
pensamentos de uma forma mais indecisa
e desinteressante daquela que
encontramos entre os fascistas declarados.
Assim, os aspectos “ocidental” e
“pacifista” de Goethe são enfatizados
(Thomas Mann, Gerhart Hauptmann), e
Goethe é feito o padroeiro da
“democracia” de Weimar. “Portanto, a
palavra 'Goethe' deve ser uma espécie de
paz de deus para os alemães”, escreve o
Frankfurter Zeitung
(22 de março),
vergonhosamente (ou naturalmente) sem
mencionar que a “paz de deus” hoje
insbesondere im Falle Goethe, wo, wie
angedeutet, ihre eigenen „Klassiker“ aus
der Vorkriegszeit das geistige Rüstzeug
zur Faschisierung Goethes geliefert haben.
(Auch der bereits erwähnte Max Wundt
bringt Goethe mit der „Lebensphilo
sophie“, also mit Dilthey/Simmel in
Zusammenhang. Beilage zur „Deutschen
Zeitung“, 22. März 1932.) Unter solchen
Umständen ist es gar nicht überraschend,
sondern im Gegenteil ganz natürlich, daß
das „Berliner Tageblatt“ ausgerechnet den
offenen Faschisten Gentile neben Masatyk
zum Festartikler macht. (22. März.) Freilich
bleibt die „linke“ Goethe-Auffassung viel
stärker im Banne der Vorkriegsautoritäten:
damit drückten sie aber nur
unentschiedener und uninteressanter
dieselben Gedanken aus, die wir bei den
offenen Faschisten angetroffen haben.
Freilich wird das „Westliche“, das
„Pazifistische“ an Goethe hervorgehoben
(Thomas Mann, Gerhart Hauptmann),
Goethe wird zum Schutzpatron der
Weimarer „Demokratie“ erhoben. So
müßte das Wort ‚Goethe‘ für Deutsche eine
Art Gottesfriede sein“, schreibt die
„Frankfurter Zeitung“ (22. März), wobei sie
schamhaft (oder als Selbstverständlichkeit)
verschweigt, daß der „Gottesfriede“ heute
Notverordnung und Versammlungsverbot
27
[NT]
Berliner Tageblatt
jornal alemão publicado em Berlim entre 1872 e 1939. Juntamente com o
Frankfurter Zeitung
, tornou-se um dos jornais alemães liberais mais importantes do seu tempo.
György Lukács
360 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
significa decreto de emergência e
proibição de reunião. Portanto, Hermann
Wendel28 glorifica Goethe (casualmente
falando, com referência a Karl Grün29, que
é caracterizado por Engels neste caderno)
como o progenitor espiritual de
Bernstein30
bedeutet. So verherrlicht Hermann Wendel
(beiläufig gesagt, unter Berufung auf den
von Engels in diesem Heft
charakterisierten Karl Grün) Goethe als
geistigen Stammvater Bernsteins
Para Goethe, a etapa mais essencial do
progresso foi a suplantação da barbárie pela
civilização. A revolução e os atos de violência
não se encaixavam em sua visão de mundo,
tendo como centro a lei do desenvolvimento
orgânico; sua essência foi contrariada não
pela revolução, mas também pela guerra,
contradizendo tudo o que era apertado,
flagrante e odioso”. (Vorwärts, 22 de março)
Die wesentlichste Stufe des Fortschritts war
für Goethe die Überwindung der Barbarei
durch die Gesittung. In sein Weltbild mit dem
Gesetz der organischen Entwicklung als
Mittelpunkt paßte Umsturz und Gewalttat
nicht hinein; seinem Wesen widersprach nicht
nur die Revolution, sondern auch der Krieg,
widersprach alles Verkrampftc, Grelle und
Gehässige.“ (Vorwärts, 22. März) -
e professa Goethe em nome de seu
partido:
und bekennt sich im Namen seiner Partei
so zu Goethe:
Mas não apenas nos sentimos ligados a ele por
meio de nossa crença na validade da lei do
desenvolvimento, mas também honramos sua
memória por meio da luta diária por uma
ordem social em que o livre desdobramento da
personalidade que ele proclamou e a elevação
da humanidade a grande governante do
destino humano, se torna possível.
Wir aber fühlen uns ihm nicht nur durch den
Glauben an die Gültigkeit des
Entwicklungsgesetzes verbunden, sondern
ehren auch sein Gedächtnis durch den
yytäglichen Kampf für eine gescllschaftliche
Ordnung, in der die von ihm verkündete freie
Entfaltung der Persönlichkeit sowie die
Erhebung der Humanität zur großen Reglerin
des Menschengeschicks erst möglich wird.
Assim, a literatura da imprensa burguesa
So bietet die Goethe-Literatur der
28
[NT] Carl Max Ludwig Hermann Wendel (1884-1936) político, historiador, jornalista e escritor alemão.
Editou o folhetim do
Volksstimme
de Frankfurt de 1908 a 1913. Em 1933 emigrou para França e
trabalhou como membro do órgão social-democrata do exílio
Neuer Vorwärts
. Publicou diversos escritos
sobre o movimento operário e várias obras histórico-políticas e etnográficas sobre os eslavos do Sul.
29
[NT] Karl Grün (1817-1887), foi um jornalista, filósofo, teórico político e socialista alemão. Foi uma
figura de grande relevo nos movimentos políticos radicais que anteriores às Revoluções de 1848, nas
quais também veio a participar. Manteve relações com personalidade do socialismo de grande
envergadura, tais como Heinrich Heine, Ludwig Feuerbach, Pierre-Joseph Proudhon, Karl Marx, Mikhail
Bakunin e outros.
30
[NT] Eduard Bernstein (1850-1932) político e teórico político alemão. Consagrou-se como o primeiro
revisionista da teoria marxista se constituiu como um dos principais teóricos da social-democracia.
Membro do Partido Social-Democrata (SPD), e o fundador do socialismo evolutivo e do revisionismo,
Bernstein tinha realizado estreita associação de Karl Marx e Friedrich Engels, mas mostrou-se crítico do
pensamento marxista. Bernstein refutou elementos significativos do pensamento marxista que, segundo
ele, estavam fundados na metafísica hegeliana, rejeitando principalmente a perspectiva da dialética
hegeliana.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 361
sobre Goethe não oferece nada,
absolutamente nada para entender o que
Goethe realmente foi e como seu impacto
realmente ocorreu. Por outro lado, o
estudo desta literatura como reflexo do
fascínio geral da Alemanha, como forma
fenomênica literária da frente única de
Rosenberg aWendel (especialmente ao
reconhecer as diferenciações), desperta
muito interesse. O nível científico é muito
mais baixo do que por ocasião do jubileu
de Hegel; as verdadeiras forças motrizes
que determinam essa ideologia, a
fasticização de Goethe, são expressas com
a mesma clareza com que o foram na
fasticização de Hegel.
bürgerlichen Presse nichts, aber gar nichts
zur Erkenntnis dazu, was Goethe wirklich
gewesen ist und wie seine Wirkung
wirklich vor sich ging. Dagegen bringt das
Studium dieser Literatur als
Widerspiegelung der allgemeinen
Faschisierung Deutschlands, als
literarische Erscheinungsform der
Einheitsfront von Rosenberg bis Wendel
(gerade bei Erkenntnis der
Verschiedenheiten) sehr viel Interessantes.
Das wissenschaftliche Niveau istnoch
vieltiefer als bei Gelegenheit des Hegel-
Jubiläums; die wirklichen treibenden
Kräfte, die diese Ideologie, die
Faschisierung Goethes, bestimmen,
kommen aber ebenso klar zum Ausdruck,
wie sie bei der Faschisierung Hegels zum
Ausdruck kamen.
Die Linkskurve, Sonderheft 1932
György Lukács
362 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
Goethe und die Dialektik
Goethe e a dialética
Parte-se do determinante: isto e
aquilo são necessários, mas não
compreendemos a unidade destes
momentos; isto remete a Deus.
Portanto, Deus é, por assim dizer, a
sarjeta em que convergem todas as
contradições.31
Es wird vom Bestimmten
ausgegangen: dies und jenes ist
notwendig, aber wir begreifen die
Einheit dieser Momente nicht; diese
fällt in Gott. Gott ist also gleichsam
die Gosse, worin alle die
Widersprüche zusammenlaufen.
Hegel über Leibniz
I
A luta pela formação da dialética é o
problema teórico central da época clássica
da filosofia e da literatura alemãs, a época
de Lessing a Hegel. A filosofia e a literatura
alemãs se apoiam no desenvolvimento
anglo-francês dos séculos XVII e XVIII,
herdando de suas realizações,
desenvolvendo seus problemas na direção
da dialética - a dialética idealista. Enquanto
o principal ramo do desenvolvimento anglo-
francês da filosofia materialista, partindo de
Locke, via Holbach - Helvetius de volta à
Inglaterra, levou ao "utilitarismo" de
Bentham, uma "restauração vitoriosa e
completa" da metafísica e filosofia do século
XVII surgiu na Alemanha por Descartes,
Der Kampf um die Ausbildung der Dialektik
ist das theoretische Zentralproblem der
klassischen Epoche der deutschen
Philosophie und Literatur, der Epoche von
Lessing bis Hegel. Die deutsche Philosophie
und Literatur steht dabei auf den Schultern
der englischfranzösischen Entwicklung des
17. und 18. Jahrhunderts, tritt das Erbe
ihrer Errungenschaften an, entwickelt ihre
Probleme in der Richtung auf Dialektik -
idealistische Dialektik weiter. Während
der Hauptzweig der englisch-französischen
Entwicklung der materialistischen
Philosophie, von Locke ausgehend, über
Holbach - Helvetius wieder nach England,
zum „Utilitarismus“ Benthams führta,
31
[NT]
Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie III
; Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1971,
P. 256.
a Vgl. darüber das glänzende Kapitel: „Kritische Schlacht gegen den französischen Materialismus“ in
„Heilige Familie“, III. Band der Gesamtausgabe, 300 ff. und das bis jetzt leider nur in der ganz
schlechten Ausgabe von J. P. Meyer veröffentlichte - Kapitel über „Exploitationstheorie“ aus der
„Deutschen Ideologie“, II, 428 ff. Cf. Sobre isto o brilhante capítulo: "Batalha crítica contra o materialismo
francês" em "Sagrada Família", III. volume da edição completa, 300 ss. [ed. Bras. MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich; A sagrada família; São Paulo: Boitempo, 2003; p. 137 ss.] e o capítulo sobre "Teoria da
Exploração" da "Ideologia Alemã", II, 428 ss. [MARX, Karl; ENGELS, Friedrich;
A ideologia alemã
; São
Paulo: Boitempo, 2007; “Moral, intercâmbio e teoria da exploração”; p. 394ss.] - infelizmente até agora
apenas publicado na edição muito ruim de J. P. Meyer.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 363
Malebranche, Spinoza e Leibniz. O aspecto
filosoficamente significativo desse
desenvolvimento é a formação dos germes
dialéticos, sugestões e abordagens da
filosofia mais antiga até o auge da dialética
idealista que a obra de Hegel representa.
Por um lado, esse desenvolvimento se
distancia cada vez mais dos elementos
materialistas que herda, embora, como
veremos, essa distância não seja tão clara e
completa para muitos representantes
importantes do desenvolvimento alemão,
como a história da filosofia burguesa
costuma apresentar. Por outro lado,
desenvolveu, reconhecidamente de forma
idealista (e, portanto, abstrata e distorcida),
o lado ativo” da filosofia, que o antigo
materialismo “intuitivo” negligenciava, e
teve de negligenciar.
entstand in Deutschland eine „siegreiche
und gehaltvolle Restauration“ der
Metaphysik des 17. Jahrhunderts, der
Philosophie von Descartes, Malebranche,
Spinoza und Leibnizb. Das philosophisch
Bedeutsame dieser Entwicklung ist die
Herausbildung der dialektischen Keime,
Andeutungen, Ansätze der älteren
Philosophie bis zu jenem Gipfelpunkt der
idealistischen Dialektik, die das Lebenswerk
Hegels vorstellt. Diese Entwicklung entfernt
sich einerseits immer stärker von den
materialistischen Elementen, die sie als Erbe
übernimmt, obwohl, wie wir sehen werden,
diese Entfernung bei vielen bedeutenden
Vertretern der deutschen Entwicklung
keineswegs so eindeutig und
hundertprozentig ist, wie dies die
bürgerliche Philosophiegeschichte
darzustellen pflegt. Andererseits bildete sie,
freilich in idealistischer (und darum
abstrakter und verzerrter) Form, die „tätige
Seite“ der Philosophie aus, die der alte
„anschauende“ Materialismus
vernachlässigt hat, vernachlässigen mußte.
Se quisermos determinar a posição de
Goethe nesse desenvolvimento, mesmo que
apenas sugestivamente, temos que
considerar duas coisas. Primeiro, o atraso
econômico geral da Alemanha em
comparação com a Inglaterra e a França,
Wenn wir nun Goethes Stellung in dieser
Entwicklung, wenn auch nur andeutend,
bestimmen wollen, so müssen wir zweierlei
berücksichtigen. Erstens die allgemeine
ökonomische Zurückgebliebenheit
Deutschlands im Vergleich zu England und
b
Heilige Familie
, III, 301 [ed. Bras.
A sagrada família
; p. 137].
György Lukács
364 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
que teve como consequência necessária o
atraso político correspondente. Esse atraso
não impediu, como escreve Engels (carta a
C. Schmidt, 27 de outubro de 1890), “que
países economicamente atrasados possam
tocar o primeiro violino da filosofia”, caso
da Alemanha no período de que estamos
tratando. Essa situação peculiar, causada
pelo desenvolvimento desigual, se reflete
de forma contraditória nos efeitos do atraso
econômico e político, bem como nas
consequências filosóficas que foram
extraídas do desenvolvimento internacional
do período (Revolução Francesa, Napoleão,
desenvolvimento industrial na Inglaterra,
conquistas das ciências da natureza etc.).
Em segundo lugar, o problema particular
das questões filosóficas centrais, que esse
desenvolvimento herdou e trabalhou de
acordo com as necessidades específicas de
cada classe.
Frankreich, die eine entsprechende
politische Zurückgebliebenheit zur
notwendigen Folge hatte. Diese
Zurückgebliebenheit verhinderte nicht, wie
Engels (Brief an C. Schmidt, 27. Oktober
1890) schreibt, daß ökonomisch
zurückgebliebene nder in der Philosophie
doch die erste Violine spielen können“, so
Deutschland in der von uns behandelten
Periode. Diese eigenartige Lage, verursacht
durch die ungleichmäßige Entwicklung,
spiegelt sich widerspruchsvoll sowohl in
den Einwirkungen der ökonomisch
politischen Rückständigkeit wie in den
Konsequenzen, die philosophisch aus der
internationalen Entwicklung der Periode
(französische Revolution, Napoleon,
industrielle Entwicklung in England,
Errungenschaften in der Naturwissenschaft
usw.) gezogen wurden. Zweitens die
besondere Problemlage der
philosophischen Zentralfragen, die diese
Entwicklung als Erbe übernahm und den
eigenen, klassenmäßig bestimmten
Bedürfnissen entsprechend bearbeitete.
Temos que nos limitar às questões centrais
e, portanto, somos forçados a apresentar a
situação muito diversa (e ainda pouco
pesquisada) de uma maneira muito
simplificada. A filosofia alemã da época - e
com ela Goethe - encontrou duas tentativas
fundamentalmente opostas de resolver o
problema dialético central, a questão da
Wir müssen uns hier auf die Zentralfragen
beschränken und sind demgemäß
gezwungen, die sehr vielseitige (und noch
wenig erforschte) Situation stark vereinfacht
darzustellen. Die deutsche Philosophie
dieser Zeit - und mit ihr Goethe - fand zwei
im Grunde entgegengesetzte, in vielen
konkreten Fällen jedoch ineinander
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 365
contradição, mas em muitos casos
concretos fundindo-se uma na outra. O
primeiro tipo desta tentativa de solução foi
a antinomia. As contradições na natureza e
na sociedade tornaram-se tão flagrantes
que se tornou cada vez mais impossível
para os pensadores honestos e
razoavelmente consistentes não se
aperceberem delas. Consequências
filosóficas nem sempre foram retiradas
disso. Poderia muito bem ocorrer, como
aconteceu, por exemplo, na filosofia clássica
da Inglaterra, em que fatos antinômicos
foram trabalhados com uma energia
implacável sem tirar conclusões apropriadas
da sua incompatibilidade. Mas também era
possível resolver essas contradições com
clareza, elevá-las a um nível filosófico de
abstração e ver o limite do conhecimento
humano nas antinomias não resolvidas e
que eram entendidas como insolúveis; a
“Crítica da Razão Pura” de Kant é
particularmente típica dessa tentativa de
solução, em que o caráter agnóstico das
contradições que são fixadas como
insolúveis (liberdade-necessidade etc.)
emerge de maneira particularmente clara.
Para além desse lado agnóstico, é
particularmente característico desse tipo de
solução que essa concepção de realidade
seja incapaz de lidar - filosoficamente - com
übergehende Lösungsversuche des
zentralen dialektischen Problems, der Frage
des Widerspruchs, vor. Der erste Typus
dieses Lösungsversuchs war der der
Antinomie. Die Widersprüche traten in Natur
und Gesellschaft so kraß hervor, daß es
ehrlichen und einigermaßen konsequenten
Denkern immer unmöglicher wurde, sie
nicht festzustellen. Daraus mußten nicht
immer philosophische Konsequenzen
gezogen werden. Es konnte sehr wohl
geschehen, wie es z. B. in der klassischen
Philosophie Englands geschah, daß die
antinomischen Tatbestände mit
rücksichtsloser Energie herausgearbeitet
wurden, ohne aus ihrer Unvereinbarkeit
entsprechende Folgerungen zu ziehenc. Es
war aber auch möglich, diese Widersprüche
klar herauszuarbeiten, auf eine
philosophische Höhe der Abstraktion zu
erheben und in den ungelösten und als
unlösbar aufgefaßten Antinomien die
Grenze der menschlichen Erkenntnis zu
erblicken; Kants „Kritik der reinen Vernunft“
ist besonders typisch für diesen
Lösungsversuch, wobei hier der
agnostizistische Charakter der als unlösbar
fixierten Widersprüche (Freiheit
Notwendigkeit usw.) besonders klar
hervortritt. Neben dieser agnostizistischen
Seite ist für diesen Typus der Lösungen
c Em Ricardo, diz Marx, "o novo e significativo desenvolve-se em meio ao 'estrume' das contradições",
Theories of Surplus Value,
III, 94 [ed. bras. MARX, Karl; Teorias da mais-valia, III, Rio de Janeiro, DIFEL,
1980, p. 1139].
György Lukács
366 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
o devir, com a história mesmo quando o
caráter histórico é descoberto e
vigorosamente enfatizado nas legalidades
singulares da natureza ou da história
(astronomia de Kant). O segundo tipo tenta
de alguma forma alcançar a unidade das
contradições. Mas esse avanço,
especialmente com os representantes
consistentes dessa direção, conduz para o
transcendente, para o além. Ou seja, eles
reconhecem o problema dialético como
solucionável. Admite-se a união dos
opostos e a exigência de apresentar essa
união, essa unidade, essa coincidência de
contradições como problema, mesmo como
um problema central da filosofia A unidade
das contradições é, no entanto - de forma
mística -, transferida para o além, para Deus.
J. G. Hamann32, que exerceu influência
decisiva sobre Goethe na juventude, foi
talvez o representante mais significativo
dessa tendência na Alemanha da época, e
foi precisamente com ele que as antigas
tradições dessa tendência se expressaram
com clareza. O próprio Goethe estava
preparado para esse problema pelo fato de
- após seu regresso a Frankfurt da
Universidade de Leipzig - ter lidado em
detalhe com a filosofia natural da
besonders charakteristisch, daß diese
Auffassung der Wirklichkeit das Werden, die
Geschichte philosophisch nicht zu
bewältigen vermag, selbst dann nicht, wenn
in Einzelgesetzmäßigkeiten in Natur oder
Geschichte der historische Charakter
entdeckt und energisch hervorgehoben wird
(Kants Astronomie). Der zweite Typus
versucht, in irgendeiner Weise zu der Einheit
der Widersprüche vorzustoßen. Dieser
Vorstoß geht aber, gerade bei den
folgerichtigen Vertretern dieser Richtung,
ins Transzendente, ins Jenseitige. Das heißt,
es wird von ihnen das dialektische Problem
als lösbar anerkannt. Das
Zusammengehören der Gegensätze und die
Forderung, diese Zusammengehörigkeit,
diese Einheit, dieses Zusammenfallen der
Widersprüche als Problem, ja als zentrales
Problem der Philosophie zu stellen, wird
zugegeben. Die Einheit der Widersprüche
wird jedoch - in mystischer Weise - ins
Jenseits, in Gott verlegt. J. G. Hamann, der
auf Goethe in seiner Jugend einen
entscheidenden Einfluß ausübte, war
vielleicht der prägnanteste Vertreter dieser
Richtung im damaligen Deutschland, wobei
gerade bei ihm auch die alten Traditionen
32
[NT] Johann Georg Hamann (1730-1788) filósofo e escritor alemão. Foi profundamente marcado por
uma vivência religiosa em 1758, que o levou à defesa de uma posição fundamentalista dentro do
cristianismo. A partir desta época, Hamann adota o socrático não saber, contrapondo a ele o fundamento
na Fé. Crítico radical do Racionalismo e do Iluminismo, dedicou sua carreira literária à defesa de uma fé
cristã genuína, ainda que não fosse católico. Ele é considerado um precursor do
Sturm und Drang
.
Goethe se referiu a ele como uma das mentes mais brilhantes de seu tempo. (fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Johann_Georg_Hamann)
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 367
Renascença, especialmente com seus ramos
místicos (Paracelso, etc.).
dieser Tendenzd klar zum Ausdruck kamen.
Goethe selbst war zu dieser
Problemstellung auch dadurch vorbereitet,
daß er nach seiner Rückkehr nach
Frankfurt von der Leipziger Universität
sich eingehend mit der Naturphilosophie
der Renaissance, insbesondere mit deren
mystischen Abzweigungen (Paracelsus
usw.), befaßte.
Seria simplificar demais o problema se
descrevêssemos a primeira tendência,
fortemente representada no materialismo
francês (embora reconhecidamente não com
suas consequências germânicas), como
progressista e a segunda como reacionária.
Na Alemanha, em particular, elementos
progressistas e reacionários se misturam em
ambas as direções, e uma interação
ininterrupta entre as duas tendências. Isso é
mais evidente na questão idealismo contra
materialismo. Como foi enfatizado, a
principal corrente de desenvolvimento em
direção à dialética vai na direção idealista,
ou seja, de afastamento do materialismo. A
vacilante posição agnóstica de Kant sobre a
questão da coisa- em -si torna-se um claro
idealismo subjetivo em Fichte, na mais
íntima conexão com a tentativa de converter
precisamente a doutrina das antinomias em
uma doutrina da unidade das contradições,
Es wäre eine zu große Vereinfachung des
Problems, wenn wir die erste Tendenz, die
im französischen Materialismus (wenn auch
freilich nicht mit ihren deutschen
Konsequenzen) stark vertreten war, als
progressiv, die zweite als reaktionär
bezeichnen würden. Insbesondere in
Deutschland mischen sich sowohl
progressive und reaktionäre Elemente in
beiden Richtungen, und es findet eine
ununterbrochene Wechselwirkung zwischen
beiden Tendenzen statt. Dies kommt in der
Frage Idealismus gegen Materialismus am
deutlichsten zum Vorschein. Wie bereits
hervorgehoben wurde, geht der Hauptstrom
der Entwicklung auf die Dialektik zu in
idealistischer Richtung, und zwar in der
Richtung vom Materialismus weg. Die
schwankend-agnostizistische
Stellungnahme von Kant in der Frage des
Dinges an sich schlägt bei Fichte in einen
d
A filosofia natural da Renascença
, sobretudo Giordano Bruno, que nisto, Hamann o sabia, regressou
a Nicolau de Cusa
György Lukács
368 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
ou seja, em uma dialética. Por outro lado, a
tendência transcendente-dialética, com
todo o “cumprimento piedoso” de suas
últimas consequências na luta contra o
agnosticismo, o idealismo subjetivo etc., é
forçada - pelo menos parcial e
provisoriamente - a se aproximar de certas
afirmações materialistas. Assim, por
exemplo, Hamann combate a separação
idealista de Mendelssohn de "razões para a
verdade" e "razões para o movimento", bem
como a separação de Kant entre razão e
sensibilidadee. Em geral, o retorno a um
empirismo - em alguns lugares - é
característico de toda essa direção. A
dificuldade de traçar limites nítidos é
acentuada pelo fato de que - como
consequência do atraso da Alemanha - a
luta filosófica não ocorre claramente entre
materialismo e idealismo, mas tais
problemas são trazidos à tona, em que uma
contraposição frontal muito clara é muito
difícil de início. O problema mais
significativo - também o mais característico
do próprio Goethe - desse tipo é o
panteísmo. A questão da unidade de Deus
e da natureza adotada por Spinoza pode ser
tanto um caminho para o materialismo
quanto um caminho para longe dele. Por
exemplo, o Lessing tardio foi sem dúvida o
primeiro, especialmente quando se opôs
ferozmente à concepção idealista da
klaren subjektiven Idealismus um, im
engsten Zusammenhang mit dem Versuch,
gerade die Lehre von den Antinomien in
eine Lehre von der Einheit der
Widersprüche, in eine Dialektik,
umzuwandeln. Andererseits ist die
transzendent-dialektische Tendenz, bei aller
„Gotterfülltheit“ ihrer letzten Konsequenzen
im Kampfe gegen Agnostizismus,
subjektiven Idealismus usw., gezwungen,
sich wenigstens teilweise und
vorübergehend gewissen
materialistischen Feststellungen
anzunähern. So bekämpft z. B. Hamann das
Mendelssohnsche idealistische Trennen von
„Wahrheitsgründen“ und
„Bewegungsgründen“, ebenso die Kantsche
Trennung von Verstand und Sinnlichkeit.
Überhaupt ist ein Zurückgehen auf einen -
stellenweise - materialistisch gefärbten
Empirismus für diese ganze Richtung
kennzeichnend. Die Schwierigkeit hierbei,
scharfe Grenzen zu ziehen, wird noch
dadurch gesteigert, daß - infolge der
Zurückgebliebenheit Deutschlands - der
philosophische Kampf sich nicht klar
zwischen Materialismus und Idealismus
abspielt, sondern solche Probleme in den
Mittelpunkt gerückt werden, bei denen eine
ganz klare Frontstellung von vornherein
sehr erschwert ist. Das bezeichnendste
und auch für Goethe selbst
e cf. Rezension Hegels über Hamanns Werke, XVII, 83-85.
Lukács sobre Goethe
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prioridade da consciência sobre o ser. “É um
dos preconceitos humanos”, diz Lessingf,
“que consideremos os pensamentos como
os primeiros e mais nobres e queiramos
derivar tudo deles; uma vez que tudo,
incluindo as ideias, depende de princípios
superiores”. No entanto, verifica-se
imediatamente de modo muito
característico - que este “princípio superior”
é mais elevado do que o pensamento, a
extensão e o movimento (portanto, a
matéria). Em Schelling, pode-se observar o
caminho oposto.
charakteristischste Problem dieser Art ist
der Partheismus. Die von Spinoza
übernommene Fragestellung von der
Einheit von Gott und Natur kann ebenso ein
Weg zum Materialismus wie ein Weg vom
Materialismus weg sein. Beim späten
Lessing war es z. B. ohne Zweifel der
erstere, insbesondere, wo er sich aufs
heftigste gegen die idealistische Konzeption
der Priorität des Bewußtseins dem Sein
gegenüber wehrt. „Es gehört“, sagt Lessing,
„zu den menschlichen Vorurteilen, daß wir
den Gedanken als das Erste und
Vornehmste betrachten und aus ihm alles
herleiten wollen; da doch alles, die
Vorstellungen mit einbegriffen, von höheren
Prinzipien abhängt.“ Allerdings stellt sich
sogleich - sehr charakteristischerweise
heraus, daß dieses „höhere Prinzip“ höher
ist als sowohl Gedanke wie Ausdehnung,
Bewegung (also Materie). Bei Schelling kann
man einen umgekehrten Weg beobachten.
2
A posição de Goethe é aqui a de uma
característica posição intermediária -
registrada com mais ou menos flutuações.
Ele sempre se distingue do idealismo
filosófico com bastante determinação. Essa
distinção é sempre expressa
Für Goethes Stellung ist hier eine - mit mehr
oder weniger Schwankungen festgehaltene
- Zwischenstellung charakteristisch. Er
grenzt sich stets mit ziemlicher
Entschiedenheit vom philosophischen
Idealismus ab. Diese Abgrenzung wird von
f Jacobis Spinozabüchlein, Ausgabe Fr. Mautner, München, 1912, S. 70.
György Lukács
370 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
acentuadamente por ele,
independentemente de amizade pessoal e
da cooperação objetiva. É assim, sempre
contra F. H. Jacobi; assim também contra
Schiller. Goethe resume, por exemplo, a
diferença entre o seu método criativo e o de
Schiller da seguinte forma: “Há uma grande
diferença se o poeta busca o particular em
relação ao geral, ou olha o particular em
relação ao geral. Desse tipo de alegoria
surge onde o particular conta apenas como
um exemplo, como um exemplo do geral;
esta última, entretanto, é na verdade a
natureza da poesia ... ”(Provérbios em
Prosa, IV Seção) Em Goethe, no entanto,
essa demarcação, essa falta de vontade de
seguir o caminho da dialética através do
idealismo não significa de forma alguma
uma posição decididamente materialista.
Embora sua relação com a filosofia
materialista dos séculos XVII e XVIII seja
muito mais próxima do que ele próprio a
descreve de forma muito distorcida em
"Dichtung und Wahrheit" (
Poesia e
Verdade33
), ele nunca foi além de uma
posição intermediária entre o materialismo
e o idealismo. Depois de descobrir seu
ihm unbekümmert um persönliche
Freundschaft und sachliche
Zusammenarbeit stets scharf
ausgesprochen. So stets gegen F. H. Jacobi;
so auch gegen Schiller. Goethe faßt z. B. den
Unterschied zwischen deiner und Schillers
schöpferischer Methode so zusammen: „Es
ist ein großer Unterschied, ob der Dichter
zum Allgemeinen das Besondere sucht,
oder im Besonderen das Allgemeine schaut.
Aus jener Art entsteht Allegorie, wo das
Besondere nur als Beispiel, als Exempel des
Allgemeinen gilt; die letztere aber ist
eigentlich die Natur der Poesie ...“ (Sprüche
in Prosa, IV, Abt.) Aber diese Abgrenzung,
dieser Unwille, den Weg zur Dialektik durch
den Idealismus hindurch zu gehen, bedeutet
bei Goethe keineswegs eine entschieden
materialistische Stellungnahme. Zwar sind
seine Beziehungen zur materialistischen
Philosophie des 17. bis 18. Jahrhunderts
viel enger, als er es selbst in „Dichtung und
Wahrheit“ in sehr entstellter Weise
schildertg, er ist aber niemals weiter als bis
zu einer Zwischenstellung zwischen
Materialismus und Idealismus gekommen.
So schreibt er, nach Entdeckung seines
„Natur-Aufsatzes aus den achtziger Jahren
an den Kanzler Müller: „Weil aber die
Materie nie ohne Geist, der Geist nie ohne
33
[NT] GOETHE;
Memórias: poesia e verdade
; trad. Leonel Valandro; Brasília: Editora Universidade de
Brasilia, 1986.
g Cf. sobre este tema no ensaio de Hubert Röck em „Archiv für Geschichte der Philosophie“, neue
Folge, XXX.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 371
ensaio “Natureza”34 da década de 1780, ele
escreve para o Chanceler Müller: “Mas
porque a matéria nunca existe sem espírito,
e o espírito nunca existe e pode ser eficaz
sem matéria, a matéria também pode
aumentar, assim como o espírito insiste em
atrair e repelir...” (24 de maio de 1828.)
Que esta seja uma posição intermediária
pode ser demonstrado pelo fato de Goethe
repetidamente delimitar nitidamente essa
visão do materialismo. Em seu “Campanha
na França”35 (seção: Pempelfort, novembro
de 1792) ele chama sua visão de mundo de
“hilozoísmo” e diz sobre ela: “torna-me
insensível, mesmo implacável, a essa forma
de pensar que se estabelece como um
credo, uma matéria morta, seja qual for a
forma como é levantada e estimulada".
Materie existiert und wirksam sein kann, so
vermag auch die Materie sich zu steigern, so
wie sich’s der Geist nicht nehmen läßt,
anzuziehen und abzustoßen .. .“ (24. Mai
1828.) Daß es sich dabei um eine
Zwischenstellung handelt, zeigt sich darin,
daß Goethe gerade diese Anschauung
wiederholt ganz scharf vom Materialismus
abgrenzt. In seiner „Campagne in
Frankreich“ (Abschnitt: Pempelfort,
November 1792) nennt er seine
Weltanschauung „Hylozoismus“ und sagt
von ihr: sie „macht mich unempfindlich, ja
unleidsam gegen jene Denkweise, die eine
tote, auf welche Art es auch sei, auf- und
angeregte Materie als Glaubensbekenntnis
aufstellte“,
Para Goethe, trata-se de encontrar um
caminho entre o materialismo e o idealismo
que lhe permita formular dialeticamente os
resultados do desenvolvimento histórico, na
medida em que as necessidades imediatas
da investigação o exijam, ou seja, libertar-
se das amarras do materialismo mecânico,
sem por isso ter de se alinhar com as
Es handelt sich hierbei für Goethe darum,
zwischen Materialismus und Idealismus
einen Weg zu finden, der ihm gestattet,
seine entwicklungsgeschichtlichen
Resultate, so weit es die unmittelbaren
Forschungsbedürfnisse bedürfen,
dialektisch zu formulieren, also sich von den
Fesseln des mechanischen Materialismus zu
34
[NT] “A natureza”. In: GOETHE;
Ensaios científicos
; trad, Jacira Cardoso; São Paulo: Barany Editora, Ad
Verbum Editorial, 2012. O Fragmento sobre a
Natureza
é um ensaio aforístico de Johann Wolfgang
von Goethe, escrito por volta de 1780 e publicado pela primeira vez no
Tiefurter Journal
em 1781. No
entanto, a autoria de Goethe foi posta em dúvida; o próprio Goethe, como confessou numa carta ao
Chanceler Müller em 1828, não tinha a certeza da sua autoria, mas confirmou que o conteúdo
correspondia às suas opiniões na altura. Tanto quanto sabemos hoje, o ensaio não foi realmente escrito
por Goethe, mas pelo jovem teólogo suiço Georg Christoph Tobler, e foi escrito entre 1781 e 1783; foi
inserido no 32º número do "
Tiefurter Journal
" e apareceu pela primeira vez em 1784.” Fonte:
<https://anthrowiki.at/Bibliothek:Goethe/Naturwissenschaft/Die_Natur>.
35
[NT] GOETHE;
A campanha na França e outros relatos de viagem
; trad. Mario Luiz Frungillo; São Paulo:
Editora UNESP, 2001.
György Lukács
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construções ousadas e muitas vezes
extravagantes do idealismo. No entanto,
essa necessidade cotidiana de seu trabalho
científico está intimamente relacionada com
suas necessidades poéticas e ideológicas.
Em termos poéticos, Goethe segue uma
linha realista, com flutuações ocasionais.
Por isso quer manter à distância as
exigências do idealismo poético (Schiller,
Romantismo). Por outro lado, ele se
distingue muito nitidamente do realismo
fotográfico escrupuloso de seus
contemporâneos, que apenas refletem a
estreiteza e o atraso da vida burguesa na
Alemanha (Iffland36), mas sem o realismo
ousado da burguesia francesa e inglesa -
especialmente com o avanço da idade a
não ser com interesses benevolentes
(Diderot, Balzac etc.). Goethe tenta assumir
uma posição intermediária semelhante à de
um cientista natural. Ou seja, a sua prática
baseia-se resolutamente na descoberta de
leis da evolução (ossos intermediários no
homem e nos animais como precursor do
darwinismo etc.), as suas simpatias estão
sempre do lado da penetração gradual do
tratamento dialético da ciência natural
(Geoffroy de St.- Hilaire, do lado da
superação do mecanismo (contra Lineu37,
befreien, ohne deshalb die kühnen und oft
verstiegenen Konstruktionen des Idealismus
mitmachen zu müssen. Dieses
Tagesbedürfnis seiner wissenschaftlichen
Arbeit steht jedoch mit seinen dichterischen
und weltanschaulichen Bedürfnissen in
engem Zusammenhang. Dichterisch vertritt
Goethe mit zeitweiligen Schwankungen -
eine realistische Linie. Er will also die
Anforderungen des dichterischen
Idealismus (Schiller, Romantik) sich vom
Leibe halten. Andererseits grenzt er sich
sehr scharf vom kriecherischen,
photographischen Realismus seiner
Zeitgenossen, die bloß die Enge und
Zurückgebliebenheit des bürgerlichen
Lebens in Deutschland widerspiegeln
(Iffland) ab, ohne aber den kühnen
Realismus der französischen und englischen
Bourgeoisie insbesondere mit
vorrückendem Alter anders als mit
wohlwollendem Interesse zu verfolgen
(Diderot, Balzac usw.). Eine ähnliche
Zwischenstellung versucht nun Goethe auch
als Naturforscher emzunehmen. D. h., seine
Praxis geht entschieden auf die Entdeckung
von Entwicklungsgesetzen aus
(Zwischenknochen bei Mensch und Tier als
Vorstufe des Darwinismus usw.), seine
36
[NT] August Wilhelm Iffland (1759-1814) ator e dramaturgo alemão.
37
Carl von Linné, (1707-1778) [Carlos Lineu] naturalista sueco que lançou as bases do sistema moderno
de nomenclatura binominal. Considerando que o conhecimento científico exige que se nomeie coisas,
ele listou, nomeou e classificou sistematicamente a maioria das espécies vivas conhecidas no seu tempo,
com base nas suas observações e nas da sua rede de correspondentes. A hierarquia de classificações
que ele apresentou tornou-se a nomenclatura padrão no século XIX1.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 373
contra Cuvier). Ele não cai assim no erro dos
dialéticos idealistas que, com exceção de
Hegel, menosprezam, sem qualquer crítica e
de maneira a-histórica, os seus
predecessores mecanicistas (Schelling: "Eu
desprezo Locke").
Sympathien stehen stets auf der Seite des
allmählichen Eindringens der dialektischen
Behandlung der Naturwissenschaft
(Geoffroy de St.-Hilaire), auf der Seite der
Überwindung des Mechanismus (gegen
Linne, gegen Cuvier), Er verfällt dabei nicht
in den Fehler der idealistischen Dialektiker,
die, mit Ausnahme von Hegel, auf ihre
mechanistischen Vorgänger unkritisch und
unhistorisch herabsehen (Schelling: „Ich
verachte Locke.“).
Mas com tudo isso ele não foi capaz de
“superar” dialeticamente o mecanicismo em
sua maneira de ver as coisas. Em vez disso,
ele o considerava como uma forma de ver
as coisas que existiam ao lado das suas,
embora limitadas, mas, no entanto - dentro
de certos limites - justificadas. A sua
metodologia visa, portanto, afirmar a
igualdade da própria visão com a visão
mecânica, segundo a qual, na maioria das
vezes, considera que estes são dois tipos
"eternamente humanos" que podem se
complementar e ajudar a evitar erros. "Uma
vez que ambas as formas de pensar são
originais e se enfrentarão para sempre, sem
se unir ou aniquilar, então tome cuidado
com toda controvérsia e apresente suas
convicções de maneira clara e nua." (Sobre
as ciências naturais).
Aber er war bei alledem nicht imstande, den
Mechanismus in seiner Betrachtungsweise
dialektisch „aufzuheben“. Er betrachtete ihn
vielmehr als eine neben der seinen
bestehende, zwar beschränkte, aber
trotzdem - innerhalb bestimmter Grenzen
berechtigte Betrachtungsweise. Seine
Methodologie geht also darauf aus, die
Gleichberechtigung der eigenen Auffassung
neben der mechanischen durchzusetzen,
wobei er zumeist die Anschauung vertrat, es
handle sich um zwei ewig menschliche“
Typen, die einander gegenseitig ergänzen
können und im Vermeiden von Fehlern
behilflich sein können. „Da nun beide
Vorstellungsweisen ursprünglich sind und
sich einander ewig gegenüberstehen
werden, ohne sich zu vereinigen oder
aufzuheben, so hüte man sich ja vor aller
Controverse und stelle seine
Überzeugungen klar und nackt hin.“ (Über
Naturwissenschaft.)
György Lukács
374 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
Essa maneira de ver as coisas passa por um
longo desenvolvimento com Goethe. De
início, mostra-se puramente empírico,
rejeitando com certo orgulho qualquer
generalização filosófica. Numa carta a
Schiller (6 de janeiro de 1798) Goethe fala
ainda do "estado filosófico da natureza" em
que se encontra e quer encontrar a si
próprio. Acima de tudo, porém, esta é sua
posição defensiva, tanto contra o idealismo
de Kant-Fichte quanto contra o
materialismo declarado. Pois assim que a
filosofia alemã - com a "Crítica do Juízo" e,
acima de tudo, com a filosofia natural do
jovem Schelling - encontra um fundamento
apropriado para o compromisso ideológico
de Goethe, sua posição muda de forma
muito acentuada. Afinal de contas, Hegel
escreveu a Schelling sobre a teoria das
cores de Goethe em 1807 (23 de maio): “...
por ódio ao pensamento pelo qual outros
estragam a coisa, adere inteiramente ao
empírico, em vez de ir além disso para o
outro lado, ao conceito, que virá a brilhar
através dele.” Este empirismo de Goethe é,
contudo, como ele mesmo diz, "um
empirismo sutil que se torna idêntico ao
objeto e, por conseguinte, torna-se numa
verdadeira teoria... O melhor seria:
compreender que todo o fatual já é 'teoria'"
(Provérbios em Prosa, IV. Seção). O caráter
dialético desse “empirismo sutil” é evidente.
Mas é apenas um avanço na direção da
dialética, que se detém na metade do
Diese Anschauungsweise macht bei Goethe
selbstredend eine lange Entwicklung durch.
Anfangs zeigt sie sich rein empiristisch,
weist mit einem gewissen Stolz jede
philosophische Verallgemeinerung zurück.
Noch in einem Brief an Schiller (6. Januar
1798) spricht Goethe von dem
„philosophischen Naturzustande“, in dem er
sich befindet und befinden will. Dies ist aber
vor allem seine Abwehrstellung, sowohl
gegen den Idealismus von Kant Fichte
wie gegen den ausgesprochenen
Materialismus. Denn sobald die deutsche
Philosophie mit der Kritik der
Urteilskraft“ und vor allem mit der
Naturphilosophie des jungen Schelling
eine für das Goethesche weltanschauliche
Kompromiß angemessene Fundierung
findet, verschiebt sich seine Stellungnahme
sehr stark. Immerhin schreibt Hegel noch
1807 (23. Mai) an Schelling über Goethes
Farbenlehre: ». .. er hält sich aus Haß gegen
den Gedanken, durch den die anderen die
Sache verderben, ganz ans Empirische, statt
über jenen hinaus zu der anderen Seite von
diesem, zum Begriffe zu übergehen, welche
etwa nur zum Durchschimmern kommen
wird.“ Dieser Empirismus Goethes ist aber,
wie er selbst sagt, „eine zarte Empirie, die
sich mit dem Gegenstand identisch macht
und dadurch zur eigentlichen Theorie wird...
Das Höchste wäre: zu begreifen, daß alles
Faktische schon 'Theorie“ (Sprüche in Prosa,
IV. Abt.). Der dialektische Charakter dieser
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 375
caminho. Esse deter-se no meio do caminho
está firmemente ancorado na natureza de
Goethe. O seu “empirismo”, ainda que seja
uma visão de mundo enquadrada num
panteísmo, tem para ele uma função
semelhante - desde o século XVII - ao
agnosticismo, ao “materialismo
envergonhado” (como diz Engels): para
retirar tudo o que é necessário para o
trabalho de investigação imediata do
materialismo, das tendências dialéticas
emergentes, para manter Deus e a teologia
longe deste campo - mas também aqui, sem
deixar chegar a uma luta ideológica aberta.
A
Crítica do Juízo
oferece uma abordagem
completamente diferente para este tipo de
compromisso em relação à
Crítica da Razão
.
Seu conceito de "razão intuitiva", concebido
com muito cuidado por Kant como uma
"ideia reguladora", como um modo de
conhecimento que é negado ao homem, dá
uma perspectiva sobre a união dos polos
antinômicos sem realmente -los em uma
inter-relação viva e ao mesmo tempo, sem
dissolver sua unidade em um misticismo
abertamente admitido. É um agnosticismo
"sutil".
„zarten Empirie“ ist offensichtlich. Sie ist
aber doch nur ein Vorstoß in der Richtung
auf Dialektik, der auf dem halben Wege
stehenbleibt. Dieses Stehenbleiben auf dem
halben Wege ist sehr tief in Goethes Wesen
verankert. Sein „Empirismus“, auch wenn er
in einen Pantheismus weltanschaulich
eingerahmt ist, hat bei ihm eine ähnliche
Funktion, wie seit dem 17. Jahrhundert
der Agnostizismus, der „verschämte
Materialismus“ (wie Engels sagt): alles, was
für die unmittelbare Forschungsarbeit
notwendig, ist aus dem Materialismus, aus
den aufkommenden dialektischen
Tendenzen auszuschöpfen, Gott und die
Theologie von diesem Gebiete fernzuhalten
aber auch hier, ohne es auf einen offenen
weltanschaulichen Kampf ankommen zu
lassen. Die „Kritik der Urteilskraft“ bietet
nun für diese Art von Kompromiß ganz
andere Handhabe als die Vernunftkritik. Ihr
Begriff der „anschauenden Vernunft“, bei
Kant sehr vorsichtig als „regulative Idee“, als
Erkenntnisweise, die dem Menschen versagt
ist, gefaßt, gibt eine Perspektive auf die
Zusammengehörigkeit der antinomischen
Pole, ohne sie wirklich in lebendigem
Wechselverhältnis zu erblicken und
zugleich, ohne ihre Einheit in offen
eingestandene Mystik aufzulösen. Es ist ein
„zarter“ Agnostizismus.
György Lukács
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3
Não é de admirar que Goethe tenha sido
reforçado na formulação filosófica das suas
tendências científicas por este mesmo livro
("Influência da nova filosofia", "juízo
intuitivo38"). Especialmente quando
Schelling transferiu essa forma de conhecer
com a "intuição intelectual" para o centro do
debate filosófico. Goethe, que estava mais
próximo de qualquer pensador
contemporâneo do que Schelling, foi
capaz de retornar ao seu ponto de partida
original: deixar a unidade dos opostos, que
é apreendida através da "intuição
intelectual", crescer organicamente a partir
da sua investigação singular, apreendê-la
como a essência da natureza, formular a
unidade dos fenômenos naturais como
movimento, como "metamorfose" e
substancializar filosoficamente o horizonte
místico-agnóstico da sua visão global. Não
é possível referir aqui em detalhes o
"pensamento juvenil sincero" de Schelling
(Marx para Feuerbach, 26 de outubro [3] de
1843), nem documentar a simpatia e a
concordância múltipla de Goethe em relação
a ele. Limito-me a salientar que até mesmo
surgiu o plano de um poema conjunto sobre
a natureza (carta de Goethe a Knebel, 1799,
Caroline a Schelling, 1800, etc). No entanto,
o decisivo para nós é que a relação acerca
Es ist kein Wunder, daß Goethe gerade
durch dieses Buch in der philosophischen
Formulierung seiner
naturwissenschaftlichen Tendenzen
bestärkt wurde („Einwirkung der neuen
Philosophie“, „Anschauende Urteilskraft“).
Insbesondere als Schelling diese
Erkenntnisweise mit der „intellektuellen
Anschauung“ in den Mittelpunkt der
philosophischen Debatte rückte. Goethe,
der keinem zeitgenössischen Denker näher
stand als gerade Schelling, ist es dadurch
erst möglich geworden, zu seinem
ursprünglichen Ausgangspunkt
zurückzukehren: die Einheit der
Gegensätze, die durch die „intellektuelle
Anschauung“ erfaßt wird, aus seinen
Einzelforschungen organisch
herauswachsen zu lassen, sie als Wesen der
Natur zu fassen, die Einheit der
Naturerscheinungen als Bewegung, als
„Metamorphose“, zu formulieren, den
mystisch-agnostizistischen Horizont seiner
Gesamtanschauung philosophisch zu
begründen. Es ist hier nicht möglich, über
den „aufrichtigen Jugendgedanken
Schellings“ (Marx an Feuerbach, 26. [3.]
Oktober 1843) ausführlich zu sprechen,
ebensowenig wie die Sympathie und die
vielfache Übereinstimmung Goethes mit ihm
38
[NT] O juízo intuitivo constitui a base essencial do método de investigação científica de Goethe, com
o qual desenvolveu a sua
Teoria das Cores
e
Metamorfose
.
Lukács sobre Goethe
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da concepção dos problemas dialéticos é
óbvia demais. O ponto central permanece: o
reconhecimento das contradições como
base da estrutura da realidade e a
descoberta de um ponto em que estas
contradições são superadas. A continuação
da “Crítica do juízo” por parte do jovem
Schelling, a concepção da - mística -
“intuição intelectual”, como um órgão com
o qual se percebe sua unidade, tem três
consequências importantes. Primeiro, a
superação dos opostos significa “encontrar”
uma esfera onde os opostos, as
contradições, se extinguem; a unidade dos
opostos é sua identidade absoluta. Em
segundo lugar, essa esfera da unidade dos
opostos está separada das contradições
encontradas na realidade por um abismo
que só pode ser superado por meio de um
salto, por meio da "intuição intelectual"
mística; a unidade reside como a base
(mística) por trás das contradições que
aparecem, mas não é mediada por elas: o
mundo das contradições e o mundo da
unidade ainda são dura e,
irreconciliavelmente opostos um ao outro,
as contradições se solidificam em
polaridades e a unidade torna-se mística.
Em terceiro lugar - para ter provas
empiricamente demonstráveis para esse
“órgão” místico de apreensão da unidade -
dokumentarisch zu belegen. Ich verweise
bloß darauf, daß sogar der Plan eines
gemeinsamen Gedichts über die Natur
aufgetaucht ist (Goethes Brief an Knebel,
1799, Caroline an Schelling, 1800 usw.).
Denn das r uns Entscheidende, die
Verwandtschaft in der Auffassung der
dialektischen Probleme, ist zu augenfällig.
Der zentrale Punkt bleibt dabei:
Anerkennung der Widersprüche als
Grundlage des Aufbaus der Wirklichkeit und
Auffinden eines Punktes, wo diese
Widersprüche aufgehoben werden. Die
Weiterführung der Kritik der Urteilskraft“
seitens des jungen Schelling, die Auffassung
der mystischen „intellektuellen
Anschauung“ als Organ, mit dessen Hilfe
ihre Einheit erblickt wird, hat drei: wichtige
Folgerungen. Erstens bedeutet die
Aufhebung der Gegensätze das „Auffinden“
einer Sphäre, wo die Gegensätze, die
Widersprüche, ausgelöscht sind; die Einheit
der Gegensätze ist ihre absolute Identitäth.
Zweitens ist diese Sphäre der Einheit der
Gegensätze von den in der Wirklichkeit
vorgefundenen Widersprüchen durch eine
Kluft getrennt, die nur durch einen Sprung,
durch die mystische, „intellektuelle
Anschauung“ genommen werden kann; die
Einheit liegt zwar als (mystischer) Grund den
erscheinenden Widersprüchen zugrunde, ist
h Vgl. z. B. Schelling: System des transzendentalen Idealismus. Werk I, III, 600, über Freiheit -
Notwendigkeit.
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a arte recebe a função de demonstrar a
realidade da “intuição intelectual”.
aber mit ihnen nicht vermittelt: die Welt der
Widersprüche und die Welt der Einheit
stehen einander noch immer schroff und
unvereinbar gegenüber, die Widersprüche
erstarren zu Polaritäten, und die Einheit
wird eine mystische. Drittens um für
dieses mystische „Organ“ der Erfassung der
Einheit doch einen empirisch aufweisbaren
Beweis zu haben erhält die Kunst die
Funktion, die Realität der „intellektuellen
Anschauung“ nachzuweiseni.
É claro que seria um grande exagero
simplesmente designar Goethe como
schellingiano em função de sua
concordância com Schelling nessas
importantes questões metodológicas. Não.
Ele representa - com base nessas
concordâncias, que se baseiam em suas
velhas tendências - aqui uma nuance muito
particular. Esse matiz diferente se deve ao
fato de que ele transforma ideologicamente
o misticismo afirmativo de Schelling, que faz
afirmações positivas sobre a natureza do
universo, em um agnosticismo místico. A
unidade mística dos opostos permanece um
horizonte místico de sua visão de mundo,
que por um lado lhe permite não seguir o
método de construção de Schelling, para
ficar mais perto do empirismoj; ele,
Es wäre freilich eine starke Übertreibung,
Goethe infolge seiner Übereinstimmung mit
Schelling in diesen wichtigen
methodologischen Fragen einfach als
Schellingianer zu bezeichnen. Nein. Er
vertritt - auf Grundlage dieser
Übereinstimmungen, die auf seinen alten
Tendenzen beruhen - hier eine ganz
besondere Nuance. Diese abweichende
Schattierung beruht darauf, daß er
weltanschaulich den Schellingschen
affirmativen, über das Wesen des
Universums positive Aussagen machenden
Mystizismus in einen mystischen
Agnostizismus verwandelt. Die mystische
Einheit der Gegensätze bleibt ein mystischer
Horizont seiner Weltanschauung, die ihm
einerseits gestattet, die Schellingsche
i Schelling a. a. O., 625. Vgl. dazu zahllose Aussprüche Goethes, z. B. Das Schöne i-t eine Manifestation
geheimer Naturgesetze, die uns ohne diese Erscheinung ewig wären verborgen gewesen“, Sprüche in
Prosa, III. Abt.
j O fenómeno originário como o último, como limite do nosso conhecimento positivo: Se me acalmo
perante o fenômeno primordial, é também apenas resignação; mas permanece uma grande diferença
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portanto, ocupa uma posição intermediária
entre a “Crítica do Juízo” e a filosofia de
identidade de Schelling. Por outro lado,
essa posição intermediária permite-lhe ao
mesmo tempo não participar do
desenvolvimento cada vez mais reacionário
da filosofia de Schelling, ou seja, manter
suas abordagens materialistas e dialéticas,
ainda que apenas como abordagens, bem
como manterk sua posição panteísta
“conciliatória” frente a religião. O que
Engels diz sobre Goethe é bastante correto:
“Goethe não gostava de lidar com 'Deus'; a
palavra o incomoda, ele se sente em casa
no humano..." (Werke II, 428), mas a
resultante "emancipação da arte dos
grilhões da religião" não foi alcançada
sem uma luta aberta contra a religião, mas
até com tolerância em relação a ela, na
medida em que ela não interfira em sua área
. Essa linha é contínua em Goethe. - Na
época dos estudos mais zelosos de
Spinoza, ele o chama de o filósofo “mais
cristão” (para F.] J. [! H.] Jacobi, 9 de junho
de 1785). Assim, no final da vida, ele
demarca os territórios da seguinte forma
"Como poeta e artista sou um politeísta,
mas como naturalista sou um panteísta.... Se
eu precisar de um Deus para a minha
Methode der Konstruktion nicht
mitzumachen, der Empirie näher zu bleiben;
er nimmt also eine Zwischenstellung
zwischen der „Kritik der Urteilskraft“ und
Schellings Identitätsphilosophie ein.
Andererseits gestattet diese
Zwischenstellung ihm zugleich, sowohl die
immer reaktionärer werdende Entwicklung
der Schellingschen Philosophie nicht
mitzumachen, also ihre materialistischen
und dialektischen Ansätze, wenn auch nur
als Ansätze, zu bewahren, wie seine
pantheistische Stellungnahme auch
weiterhin gegen die Religion
„versöhnlerisch“ zu halten. Es ist zwar ganz
richtig, was Engels über Goethe ausführt:
„Goethe hatte nicht gern mit ‚Gott‘ zu tun;
das Wort macht ihn unbehaglich, er fühlte
sich nur im Menschlichen heimisch ...“
(Werke II, 428), aber die daraus folgende
„Emanzipation der Kunst aus den Fesseln
der Religion“ vollzog er doch nicht nur ohne
oflenen Kampf gegen die Religion, sondern
sogar mit Duldsamkeit ihr gegenüber,
soweit sie sich nicht in seinen Bereich
mischt. Diese Linie ist bei Goethe
durchgehend. -So nennt er zur Zeit der
eifrigsten Spinoza-Studien Spinoza den
„allerchristlichsten“ Philosophen (an F. ]J.
entre resignar-me nos limites da humanidade e resignar-me dentro de uma hipotética limitação do meu
indivíduo limitado (Sprüche in Prosa, IV. Abt.); O homem deve persistir na crença de que o
incompreensível é compreensível; caso contrário, não perguntaria“ (ibidem).
k Refiro-me ao poema „Epikuräisches Glaubensbekenntnisde Heinz Widerporst para o jovem
Schelling, Werke I, IV, 546.Ronaldo: tem certeza que essa nota está bem localizada no texto?
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personalidade como ser humano moral,
então isso também está previsto" (para
Jacobi, 6. janeiro 1813). E essa tolerância
não é um simples “compromisso com o
exterior”, mas uma consequência lógica do
agnosticismo, que está em seu “império
sutil” com um horizonte panteísta místico.
Basta ler a seguinte confissão de de
Fausto, que certamente expressa as
convicções mais profundas de Goethe, com
a réplica muito característica de Gretchen,
em que a ironia indubitavelmente oculta
nesta resposta de forma alguma nega nossa
afirmação:
[!H.] Jacobi, 9. Juni 1785). So grenzt er im
späten Alter die Gebiete folgendermaßen
ab: „Als Dichter und Künstler bin ich
Polytheist, Pantheist hingegen als
Naturforscher... Bedarf ich eines Gottes für
meine Persönlichkeit als sittlicher Mensch,
so ist dafür auch gesorgt“ (an Jacobi, 6.
Januar 1813). Und diese Duldsamkeit ist
kein einfaches „Kompromiß nach außen“,
sondern eine logische Folge des
Agnostizismus, der in seiner „zarten
Empire mit mystisch pantheistischem
Horizont steckt. Man lese bloß das folgende
Glaubensbekenntnis Fausts, das sicherlich
die tiefsten Überzeugungen von Goethe
ausdrückt, mit der sehr charakteristischen
Replik Gretchens, wobei die in dieser Replik
unzweifelhaft verborgene Ironie unsere
Feststellung keineswegs aufhebt:
Margarida:
Não crês em Deus?
Fausto:
Benzinho meu que lábios
Podem dizer: “Eu creio em Deus?”
Pergunta-o a sacerdotes, sábios,
E em réplica ouvirás dos seus
Escárnios, só, do indagador.
Margarida:
Não crês, então?
Fausto:
Compreende bem, meu doce coração!
Quem o pode nomear?
Quem professar:
„Eu creio nele?“
Quem conceber
E ousar dizer:
“Não creio nele”?
Margarete:
Glaubst du an Gott?
Faust:
Mein Liebchen, wer darf sagen:
Ich glaub an Gott?
Magst Priester oder Weise fragen,
Und Ihre Autwort scheint nur Spott
Über den Frager zu sein.
Margarete:
So glaubst du nicht?
Faust:
Mißhör mich nicht, du holdes Angesicht.
Wer darf ihn nennen?
Und wer bekennen:
Ich glaub ihn.
Wer empfinden
Und sich unterwinden
Zu sagen: Ich glaub ihn nicht?
Lukács sobre Goethe
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Ele, do todo o abrangedor,
O universal sustentador,
Não abrange e não sustém ele
A ti, a mim, como a si próprio?
Lá no alto não se arqueia o céu?
Não jaz a terra aqui embaixo, firme?
E em brilho suave não se elevam
Perenes astros para o alto?
Não fita o meu olhar o teu,
E não penetra tudo
Ao coração e ao juízo teu,
E obra invisível, em mistério eterno,
Visivelmente ao lado teu?
Disso enche o coração, até ao extremo.
E quando transbordar de um êxtase supremo,
Então nomeio-o como queiras,
Ventura! Amor! Coração! Deus!
Não tenho nome para tal!
O sentido é tudo;
Nome é vapor e som,
Nublando ardor celeste.
Margarida:
Tudo isso há de ser belo e bom;
Diz nosso padre quase que o disseste,
Tão só de modo algo diverso.39
Der Allumfasser,
Der Allerhalter,
Faßt und erhält er nicht
Dich, mich, sich selbst?
Wölbt sich der Himmel nicht da droben?
Liegt die Erde nicht hier unten fest?
Und steigen freundlich blickend
Ewige Sterne nicht herauf?
Schau ich nicht Aug’ in Auge dir,
Und drängt nicht alles
Nach Haupt und Herzen dir,
Und webt im ewigen Geheimnis
Unsichtbar sichtbar neben dir?
Erfüll’ davon dein Herz, so groß es ist,
Und wenn du ganz in dem Gefühle selig bist,
Nenn’ es dann, wie du willst,
Nenn’s Glück! Herz! Liebe! Gott!
Ich habe keinen Namen
Dafür! Gefühl ist alles;
Name ist Schall und Rauch,
Umnebelnd Himmelsglut.
Margarete:
Das ist alles recht schön und gut;
Ungefähr sagt das der Pfarrer auch,
Nur mit ein bißchen anderen Worten.
4
Essa posição de Goethe determina seu
posicionamento sobre a forma mais
desenvolvida do método dialético, sobre a
filosofia de Hegel. Goethe e Hegel foram
pessoalmente próximos um do outro ao
longo de suas vidas e se valorizaram muito
reciprocamente. E essa amizade também
Diese Position Goethes bestimmt seine
Stellungnahme zur entwikkeltsten Form der
dialektischen Methode, zur Philosophie
Hegels. Goethe und Hegel standen einander
zeitlebens persönlich nahe und schätzten
einander gegenseitig sehr hoch ein. Und
diese Freundschaft hatte auch eine
39
[NT] GOETHE;
Fausto: uma tragédia
, primeira parte, tradução de Jenny Klabin Segall; São Paulo:
Editora 34, 2016; p. 381-2.
György Lukács
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teve uma - aliás nunca expressa - base na
declaração muito semelhante sobre os
grandes acontecimentos internacionais de
seu tempo: o período de Napoleão e sua
derrubada. Ambos viam na França
napoleônica o estado e o ideal social que
correspondiam à sua posição de classe (a
grande burguesia como líder de um
movimento totalmente burguês); ambos
rejeitaram friamente a "guerra pela
liberdade" alemã com levante patriótico;
ambos eram basicamente negativos às
ideologias de restauração do Romantismo -
embora não sem que ambos tivessem se
apropriado muito do Romantismo em seu
pensamento etc. No entanto, por trás dessa
postura básica afim, há também uma visível
diferença acentuada. Goethe rejeitou
veementemente a Revolução Francesa;
como resultado, Napoleão tornou-se, aos
seus olhos, apenas o conquistador, mas não
o herdeiro da Revolução Francesa; sua
imagem adquiriu assim algo de “irracional”,
“demoníaco”, como dizia Goethe para
Hegel; por outro lado, a Revolução Francesa
pertenceu necessariamente à estrutura
gradual da filosofia da história e foi, por
conseguinte, um momento necessário de
desenvolvimento para todo o sistema de
Hegel; com a ressalva, é claro, de que para
o Hegel maduro, a Revolução Francesa
cumpriu esse papel como um passado (que
na Alemanha não pode se tornar o
presente).
übrigens nie ausgesprochene Grundlage
in der sehr ähnlichen Stellungnahme zu den
großen internationalen Ereignissen ihrer
Zeit: zur Periode Napoleons und seines
Sturzes. Beide sahen im napoleonischen
Frankreich das staatliche und
gesellschaftliche Ideal, das ihrer
Klassenposition (der Großbourgeoisie als
Führerin einer gesamtbürgerlichen
Bewegung) entsprach; beide lehnten den
deutschen „Freiheitskrieg“ mit seinem
patriotischen Aufschwung kühl ab; beide
standen im Grunde ablehnend zu den
Restaurationsideologien der Romantik -
allerdings nicht ohne daß sie beide viel aus
der Romantik ihrem Denken angeeignet
hätten usw. Jedoch hinter dieser
verwandten Grundhaltung ist zugleich eine
scharfe Differenz sichtbar. Goethe lehnte die
französische Revolution leidenschaftlich ab;
dadurch wurde Napoleon in seinen Augen
bloß zum Überwinder, nicht aber zum Erben
der französischen Revolution; sein Bild
erhielt damit etwas „Irrationales“,
„Dämonisches“, wie Goethe zu sagen
pflegte. Bei Hegel hingegen gehörte die
französische Revolution notwendig in den
Stufenbau der Geschichtsphilosophie hinein
und war dementsprechend r das ganze
System Hegels ein notwendiges Moment
der Entwicklung; freilich mit der
Beschränkung, daß für den reifen Hegel die
französische Revolution als Vergangenes
(das in Deutschland nicht zur Gegenwart
Lukács sobre Goethe
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werden kann) diese Rolle erhielt.
Afinal , a revolução tornou-se assim parte
da dialética hegeliana. Aqui, claro, se
pode afirmar e não provar que tanto o
progresso da dialética de Hegel em
comparação com todas as suas
antecessoras, a nova versão da unidade de
contradições como princípio móvel da
realidade (obviamente idealista: como o
"automovimento do conceito"), sua
implementação em categorias transitórias
decisivas (quantidade e qualidade,
concepção das determinações de reflexão,
linha nodal das relações de medida, etc.),
bem como seus limites idealistas, que são
ao mesmo tempo limites para a
implementação consistente da dialética,
estão intimamente relacionados a esta
concepção da revolução. Mas o mero
estabelecimento do fato é suficiente para
esclarecer a diferença entre a concepção de
dialética de Hegel e todas as anteriores,
incluindo a de Goethe. Cabe apenas
mostrar, com a ajuda de alguns exemplos,
como essa diferença foi expressa em Goethe
e que consequências teve para a sua visão
global.
Immerhin wurde damit die Revolution zum
Bestandteil der Hegelschen Dialektik. Hier
kann freilich nur behauptet und nicht belegt
werden, daß sowohl der Fortschritt der
Hegelschen Dialektik im Vergleich zu allen
ihrer Vorgänger, die neue Fassung der
Einheit der Widersprüche als bewegendes
Prinzip der Wirklichkeit (freilich idealistisch:
als „Selbstbewegung des Begriffs“), ihre
Durchführung in entscheidenden
Übergangskategorien (Quantität und
Qualität, Auffassung der
Reflexionsbestimmungen, Knotenlinie der
Maßverhältnisse usw.), wie auch seine
idealistischen Schranken, die zugleich
Schranken der konsequenten Durchführung
der Dialektik sind, aufs engste mit dieser
Auffassung der Revolution
zusammenhängen. Aber die bloße
Feststellung der Tatsache genügt, um die
Differenz der Hegelschen Auffassung der
Dialektik von allen früheren Goethes mit
inbegriffen klarzulegen. Es kommt nur
noch darauf an, an der Hand einiger
Beispiele zu zeigen, wie diese Differenz bei
Goethe zum Ausdruck kam und welche
Folgen sie für seine Gesamtanschauung
hatte.
A amizade bem fundada em termos de
identidade de classe entre Goethe e Hegel,
a diplomacia mútua em suas declarações,
torna isso um tanto difícil, mas não
Die klassenmäßig wohlfundierte
Freundschaft zwischen Goethe und Hegel,
ihre gegenseitige Diplomatie in ihren
Äußerungen macht dies etwas schwierig,
György Lukács
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impossível. Após a publicação da Lógica de
Hegel, temos uma declaração pessoal de
Goethe sobre um novo ponto muito
essencial em seu método, a transformação
da quantidade em qualidade. "Suponho que
não é possível dizer nada mais monstruoso.
Querer destruir a realidade eterna da
natureza por uma sofística piada de mau
gosto parece-me indigno de um homem
razoável". (Briefkonzept an Seebeck, 28.
November 1812.) Pelo que a sua
indignação aparentemente, como se pode
ver pela citação referida, enfatizava a
transformação violenta, a submersão de
uma figura por outra, em vez da
"metamorfose" puramente evolutiva. Bem
na mesma linha, é que ele, no Berlin
Naturforschende Versammlung
(provavelmente sob a influência de Hegel ou
dos seus estudantes), escreveu um belo
verso, genuinamente dialético: "Pois tudo
deve decair em nada se quiser persistir em
ser", em letras douradas, escreveu
imediatamente um contra-poema: "Nenhum
ser pode se dissolver no nada", a fim de
refutar a sua própria "estupidez". (Conversa
com Eckermann, 12 de fevereiro de
182940). É claro que uma diferença
decisiva aqui. E Hegel, mesmo que
aparentemente não conhecesse a dura
rejeição de Goethe, resultado de seu
aber nicht unmöglich. Nach
Veröffentlichung der Hegelschen Logik
besitzen wir eine intime Äußerung Goethes
über einen sehr wesentlichen neuen Punkt
seiner Methode, des Umschlagens der
Quantität in Qualität. Es ist wohl nicht
möglich etwas Monströseres zu sagen. Die
ewige Realität der Natur durch einen
schlechten sophistischen Sp vernichten
zu wollen, scheint mir eines vernünftigen
Mannes unwürdig.“ (Briefkonzept an
Seebeck, 28. November 1812.) Wobei seine
Empörung offenbar, wie aus dem von ihm
angeführten Zitat ersichtlich ist, das
gewaltsame Umschlagen, das Untergehen
der einen Gestalt durch die andere, an Stelle
der rein evolutionären „Metamorphose“
hervortief. Ganz in derselben Richtung liegt,
daß er, als die Berliner Naturforschende
Versammlung (wahrscheinlich unter dem
Einfluß Hegels oder seiner Schüler) seine
schönen, echt dialektischen Verse: Denn
alles muß in Nichts zerfallen, wenn es im
Sein beharren will“, in goldenen Buchstaben
ausgestellt hat, sogleich ein Gegengedicht:
„Kein Wesen kann zu Nichts zerfallen“
schrieb, um seine eigene „Dummheit“ zu
widerlegen. (Gespräch mit Eckermann, 12.
Februar 1829.). Daß es sich hier um eine
entscheidende Differenz handelt, ist klar.
Und Hegel hat, wenn ihm auch offenbar
40
[NT] ECKERMANN, Johann;
Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida -1823-1832
; São
Paulo: Editora UNESP, 2016; p. 306.
Lukács sobre Goethe
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comportamento diplomático, enfatizou
muito cuidadosa e diplomaticamente o
ponto crucial de sua diferença, a insistência
de Goethe sobre o fenômeno originário,
causada pela incapacidade de captar a
unidade viva das contradições inerentes aos
objetos imanentes e não místico-
agnósticos, isto é, transcendentes. Assim
ele escreve sobre o fenômeno originário “A
metamorfose das plantas de Goethe deu
origem a um pensamento racional sobre a
natureza das plantas ao arrancar a ideia do
foco sobre meros detalhes para reconhecer
a unidade da vida. A identidade dos órgãos
é predominante na categoria de
metamorfose; a diferença definitiva e a
função peculiar dos membros, pelos quais o
processo de vida é definido, são o outro
lado necessário para essa unidade
substancial” (
Enciclopédia
, parágrafo 345,
adendo). E em uma carta minuciosa
endereçada a Goethe (24 de fevereiro de
1821), ele tenta muito cuidadosamente
interpretar os fenômenos originários como
meras formas de transição para a
compreensão dialética do contexto geral.
“Nesse crepúsculo (ou seja, o fenômeno
originário), espiritual e compreensível pela
sua simplicidade, visível ou tangível pela
sua sensibilidade, os dois mundos se
cumprimentam: o pensamento dialético e a
“existência aparente”.
infolge von Goethes Diplomatie dessen
schroffe Ablehnung nicht bekannt wurde,
sehr vorsichtig und diplomatisch den
springenden Punkt ihrer Differenz, das
Stehenbleiben Goethes beim Urphänomen,
verursacht durch die Unfähigkeit, die
lebendige, den Gegenständen
innewohnende Einheit der Widersprüche
immanent und nicht mystisch-
agnostizistisch, transzendent zu fassen,
hervorgehoben. So schreibt er über das
Urphänomen: „Goethes Metamorphose der
Pflanzen hat den Anfang eines vernünftigen
Gedankens über die Natur der Pflanzen
gemacht, indem sie die Vorstellung aus der
Bemühung um bloße Einzelheiten zum
Erkennen der Einheit des Lebens gerissen
hat. Die Identität der Organe ist in der
Kategorie der Metamorphose überwiegend;
die bestimmte Differenz und die
eigentümliche Funktion der Glieder,
wodurch der Lebensprozeß gesetzt ist, ist
aber die andere notwendige Seite zu jener
substanziellen Einheit.“ (Enzyklopädie,
Paragraph 345, Zusatz.) Und in einem
ausführlichen Brief an Goethe (24. Februar
1821) versucht er sehr vorsichtig die
Urphänomene als bloße Übergangsformen
zur dialektischen Erfassung des
Gesamtzusammenhanges zu deuten. „In
diesem Zwielichte (nämlich des
Urphänomens), geistig und begreiflich
durch seine Einfachheit, sichtbar oder
greiflich durch seine Sinnlichkeit, begrüßen
György Lukács
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einander die beiden Welten“: das
dialektische Denken und „das erscheinende
Dasein“l.
Essa diferença entre Goethe e Hegel se faz
presente em toda a estrutura dos
respectivos sistemas e métodos. A
consequência disso é que Goethe ignorou
descuidadamente a inovação mais
importante da dialética (a segunda parte da
lógica da essência), embora seria
justamente ali que ele poderia ter
encontrado a chave para a solução filosófica
de muitas questões que o ocuparam ao
longo de sua vida e às quais ele nunca foi
realmente capaz de responder. (Coisa-em-
si, coisa e atributo, “interno” e “externo”
etc.) Mas a rejeição da transição “repentina”
da quantidade para a qualidade bloqueou o
caminho de Goethe para compreender a
dialética do abstrato e do concreto, a
dialética da aparência e da essência etc.
Para Goethe, quantidade e qualidade
permaneceram “os dois polos da existência
aparente”, que não podem ser mediados
dialeticamente entre si. É por isso que, para
Goethe, a física e a matemática também
devem permanecer separadas uma da outra.
"A primeira deve persistir em uma
independência resoluta e procurar penetrar
na natureza e na vida sagrada com todos os
Diese Differenz zwischen Goethe und Hegel
setzt sich im ganzen Aufbau beider Systeme
und Methoden durch. Sie hat zur Folge, daß
Goethe gerade an der bedeutendsten
Neuerung in der Dialektik (an dem zweiten
Teil der Logik des Wesens) achtlos
vorbeiging, obwohl er gerade dort den
Schlüssel zur philosophischen Lösung vieler
Fragen, die ihn sein ganzes Leben lang
beschäftigten und die er nie wirklich zu
beantworten imstande war, hätte finden
können. (Ding an sich, Ding und
Eigenschaft, „Inneres“ und „Äußeres“ usw.)
Aber schon die Ablehnung des „plötzlichen“
Übergangs von Quantität in Qualität
versperrte Goethe den Weg dazu, die
Dialektik des Abstrakten und Konkreten, die
Dialektik von Erscheinung und Wesen usw.
zu begreifen. Quantität und Qualität blieben
für Goethe „die zwei Pole des
erscheinenden Daseins“, die miteinander
nicht dialektisch vermittelt werden können.
Darum müssen für Goethe auch Physik und
Mathematik voneinander getrennt bleiben.
„Jene muß in einer entschiedenen Unab--
hängigkeit bestehen und mit allen
liebenden, verehrenden, frommen Kräften in
l É tão característico da posição intermédia de Goethe que o idealista subjetivo, Schiller, julgou assim o
mesmo fenômeno originário: "Isso não é experiência, isso é uma ideia" (nomeadamente no sentido
kantiano), os
Anais de Goeth
e 1794.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 387
poderes amorosos, adoradores e piedosos,
sem se preocupar muito com o que a
matemática faz e executa de sua parte".
(Provérbios em Prosa, IV. Seção). Ao mesmo
tempo, portanto, que Hegel empreende a
tentativa de conceber a matemática como
um elemento da dialética geral, Goethe
permanece, com esta separação precisa,
com o banimento da matemática da
pesquisa natural concreta, na melhor das
hipóteses, portanto, com o reconhecimento
da matemática ao lado da ciência natural,
independente dela, como um dos dois
ramos do conhecimento.
die Natur und das heilige Leben
einzudringen suchen, ganz unbekümmert,
was die Mathematik von ihrer Seite tut und
leistet.“ (Sprüche in Prosa, IV. Abt.) Zur
selben Zeit also, wo Hegel den Versuch
unternimmt, die Mathematik als Bestandteil
der Gesamtdialektik aufzufassen, bleibt
Goethe: bei’ dieser genauen Trennung, bei
der Verbannung der Mathematik aus der
konkreten Naturforschung, bestenfalls also
bei der Anerkennung der Mathematik zeben
der Naturwissenschaft, unabhängig von ihr,
als eines der zwei Zweige der Erkenntnis
stehen.m
As críticas de Hegel em essência afiadas e
precisas, por mais diplomáticas que sejam,
tocam assim no cerne da dialética de
Goethe: Goethe reconhece a contradição
nos fenômenos (e consequentemente
também no pensamento), mas como, por
razões de classe, ele queria reconhecer
unilateral e exclusivamente a evolução, a
transição gradual, sem saltos e não violenta
de um fenômeno para outro, ele teve que se
fechar em relação aos aspectos novos e
pioneiros da dialética de Hegeln.
Die, wenn auch noch so diplomatisch
ausgedrückte; aber dem Wesen nach
scharfe und treffende Kritik Hegels berührt
also den Kernpunkt der Goetheschen
Dialektik: Goethe erkennt den Widerspruch
in den Erscheinungen (und demzufolge auch
im Denken) an, da er aber, aus
klassenmäßigen Gründen, einseitig und
ausschließend nur die Evolution, den
allmählichen, sprunglosen, gewaltlosen
Übergang der einen Erscheinung in die:
andere anerkennen wollte, mußte er sich
m "Sobre a Matemática e o seu Abuso" (1826). Esta opinião de Goethe é exatamente paralela à sua
opinião sobre Lineu e Cuvier e está intimamente relacionada com ela; em ambos os casos é uma questão
da sua incapacidade de incluir as "determinações de reflexão" na sua dialética. Neste sentido ele difere
muito do Romantismo reacionário, que, na sua luta contra o materialismo mecânico, caiu num misticismo
selvagem. No entanto, os elementos místicos também estão presentes em Goethe, e a forma como se
salva das piores consequências é precisamente com base em uma posição fundamentalmente
inconsistente.
n O hegeliano de direita Goeschel observa corretamente que a rejeição do vulcanismo em geologia por
Goethe está intimamente relacionada com a sua rejeição da revolução na história. (Hegel e seu tempo,
p. 18-19).
György Lukács
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gerade vor dem Neuen und
Bahnbrechenden in Hegels Dialektik
verschließen.
A consequência disso, entretanto, é que
quando ele estabelece conexões dialéticas
singulares na natureza, ele se limita aos
fenômenos originários e rejeita o
reconhecimento da conexão geral ou se
perde no misticismo em sua formulação
conceitual. Damos apenas um exemplo
característico:
Das hat aber dann zur Folge, daß er, bei der
Feststellung von einzelnen dialektischen
Zusammenhängen in der Natur, bei den
Urphänomenen stehenbleibt und für den
Gesamtzusammenhang entweder die
Erkennbarkeit ablehnt oder sich bei seiner
gedanklichen Fassung in Mystik verliert. Wir
führen nur cin charakteristisches Beispiel an:
Todos os efeitos, sejam eles de que tipo forem,
que observamos na experiência, estão ligados
da maneira contínua, fundem-se uns aos outros,
ondulam do primeiro ao último. Que eles devem
ser separados uns dos outros, opostos uns dos
outros, misturados uns com os outros, é
inevitável, ... mas um conflito sem limites deve,
portanto, surgir nas ciências. O pedantismo
rígido e discriminatório e o misticismo
escabroso trazem o mesmo mal-estar. Mas essas
atividades, desde as mais medíocres até as mais
elevadas, desde o tijolo que cai do telhado até o
clarão luminoso de inspiração que amanhece
em voe que você comunica, são amarradas
juntas. Tentamos dizer isto. Por acaso
Mecanicamente
Fisicamente
Quimicamente
Orgânicamente
Mentalmente
Eticamente
Religiosamente
Genialmente.
(Suplementos à teoria das cores, 31)
Alle Wirkungen, von welcher Art sie seicn, die
wir, in der Erfahrung bemerken, hängen auf die
stetigste Weise zusammen, gehen ineinander
über, sie undulieren von der ersten bis zur
letzten. Daß man sie voneinander trennt, sie
einander entgegensetzt, sie untereinander
vermengt, ist unvermeidlich, :. doch mußte
daher in den Wissenschaften ein grenzenloser
Widerstreit entstehen. Starre scheidende
Pedanterie und verflößender Mystizismus
bringen beide gleiches Unheil. Aber jene
Tätigkeiten, von der gemeinsten bis zur
höchsten, vom Ziegelstein, der dem Dache
entstürzt, bis zum leuchtenden Geistesblitz, der
dir. aufgeht und den du mitteilst, reihen sich
aneinander. Wir versuchen es auszusprechen.
Zufällig
Mechanisch
Physisch
Chemisch
Organisch
Psychisch
Ethisch
Religiös
Genial.
(Nachträge zur Farbenlehre, 31)
Isso é, em suas conclusões, misticismo
romântico. É muito significativo que o
desenvolvimento da sequência de etapas de
Goethe, ao se tratar do homem, evite todos
Das ist in seinen Schlußfolgerungen
romantischer Mystizismus. Es ist dabei sehr
bezeichnend, daß Goethes Entwicklung der
Stufenfolge, sobald sie zum Menschen
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 389
os contextos históricos e leve em
consideração apenas o homem singular.
Esse é um limite fundamental de Goethe,
aquele que mais fortemente influenciou
tanto sua poesia quanto seu pensamento
(incluindo seu pensamento sobre a
natureza, como vimos). Ele, o observador
atento das conexões dialéticas na natureza,
nos homens singulares, na convivência
privada dos homens singulares, também na
base social de seu ser privado, fechou-se ao
longo de sua vida ao conhecimento da
dialética da história, da sociedade como um
todo. Aceitou a história e a sociedade como
dadas, mistificou - "cientificamente" - um
"eterno devir", uma evolução delas, também
mistificou como “demoníaco” o destino
singular, ali onde uma compreensão das
conexões sociais em seu movimento teria
sido necessária etc. (Sobre ele mesmo,
Napoleão, Byron etc., em Eckermann, ver em
Poesia e Verdade
.) Apesar de toda a sua
universalidade, a economia foi um livro com
sete selos41 para ele, e mesmo que
ocasionalmente identificasse a penetração
do capitalismo na agricultura (por exemplo,
em
Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister
42), tudo isso é possível caso se
encaixe em seu quadro evolucionista geral:
kommt, allen geschichtlichen
Zusammenhängen aus dem Wege geht und
nur den Einzelmenschen in Betracht zieht.
Dies ist eine grundlegende Schranke
Goethes, die sowohl seine Dichtung wie sein
Denken (auch sein Denken über die Natur,
wie wir gesehen haben) aufs stärkste
beeinflußte. Er, der scharfäugige
Beobachter dialektischer Zusammenhänge
in der Natur, im Einzelmenschen, im
privaten Zusammenleben von
Einzelmenschen, auch in der
gesellschaftlichen Grundlage ihres privaten
Seins, verschloß sich zeit seines Lebens vor
der Erkenntnis der Dialektik der Geschichte,
der Gesellschaft in ihrer Gesamtheit. Er
nahm Gesellschaft und Geschichte als
gegeben hin, mystifizierte
„naturwissenschaftlich“ ein ewiges
Werden“, eine Evolution in sie hinein,
mystifizierte auch das Einzelschicksal,
sobald zu einem Verständnis die Erkenntnis
gesellschaftlicher Zusammenhänge in ihrer
Bewegung notwendig gewesen wäre, als
„dämonisch“ usw. (Über sich selbst,
Napoleon, Byron usw., bei Eckermann, in
„Dichtung und Wahrheit.) Bei all seiner
Universalität war ihm die Ökonomie ein
Buch mit sieben Siegeln, und wenn er auch
41
[NR] Livro com sete selos é referido na bíblia no (À direita de Deus, João viu um livro selado com sete
selos escrito por dentro e por fora (Apoc. 5:1). Ninguém podia abrir, nem ler e nem olhar para aquele
livro (Apoc. 5:2-4). O único que podia abrir o livro era o Leão da tribo de Judá, que representa Jesus
Cristo (Apoc. 5-7).
42
[NT] GOETHE;
Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister
; trad. Nicolino Simone Neto; São Paulo:
Editora Ensaio, 1994.
György Lukács
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não ameace romper o amálgama pacífico
entre a nobreza e a burguesia. A dialética
de Hegel foi baseada em uma - embora
distorcida de maneira idealista - elaboração
intelectual da Revolução Francesa e da
revolução industrial na Inglaterra (Adam
Smith, Ricardo). Goethe não concordou com
esse desenvolvimento. É por isso que ele
teve que rejeitar suas reflexões intelectuais.
ab und zu das Eindringen des Kapitalismus
in die Landwirtschaft (z. B. in Wilhelm
Meisters Lehrjahren) gut geschildert, so ist
all dies nur so weit möglich, als es seinen
evolutionistischen Gesamtrahmen: die
friedliche Verschmelzung von Adel und
Bourgeoisie nicht zu sprengen droht.
Hegels Dialektik fußte auf einer - wenn auch
idealistisch verzerrten gedanklichen
Durcharbeitung der französischen
Revolution und der industriellen Revolution
in England (Adam Smith, Ricardo). Diese
Entwicklung hat Goethe nicht mitgemacht.
Darum mußte er auch ihre gedanklichen
Spiegelbilder ablehnen.
Der Marxist, 5/1932
Der Aufsatz wurde erstveröffentlicht in: Der Marxist, Blätter der Marxistischen
Abenschule, II. Jahrgang Heft 5, Sommer 1932, S. 13-24, OCR-scan red. trend
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 391
Was ist uns heute Goethe?
O que é Goethe para nós hoje?
Para a classe burguesa, esta pergunta não
é difícil de responder mesmo hoje: ele é a
pessoa exemplar por excelência. Às
vésperas da revolução de 48, Grün43, o
frívolo “verdadeiro socialista”, celebrava
Goethe como a imagem ideal, como o
conquistador de todas as revoluções, como
um precursor dos tempos, que estava um
século à frente de seus contemporâneos,
que havia resolvido todos os problemas
de desenvolvimento social, tanto intelectual
quanto poeticamente, antes ainda que
tivessem emergido concretamente na
realidade histórica. Com isso, Grün apenas
repetiu as frases dos glorificadores
anteriores de Goethe. No entanto, embora
superficial e desajeitadamente, ele repetiu
os motivos intelectuais essenciais que,
através de Simmel, Gundolf e outros
espíritos proeminentes do período
imperialista na Alemanha, se tornaram
propriedade intelectual comum da
intelectualidade burguesa, na verdade, de
toda a classe burguesa. Começando com o
Grünschen Sudelei
, Engels caracterizou
brilhantemente toda essa tendência. Grün
elogia todo o filistinismo de Goethe como
humano, faz do frankfurtiano e do
funcionário público Goethe um 'homem de
Für die bürgerliche Klasse ist diese Frage
auch heute nicht schwer zu beantworten: er
ist der vorbildliche Mensch schlechthin. Der
seichte „wahre Sozialist“ Grün hat, am
Vorabend der achtundvierziger Revolution,
Goethe als Idealbild, als Überwinder jeder
Revolution, als Vorwegnehmer der Zeit
gefeiert, der seinen Zeitgenossen um ein
Jahrhundert voraus war, der alle Probleme
der gesellschaftlichen Entwicklung
gedanklich wie dichterisch früher gelöst
habe, bevor sie in der geschichtlichen
Wirklichkeit konkret hervorgetreten wären.
Grün hat damit nur die Phrasen der früheren
Goethe-Verherrlicher nachgeplappert. Er
hat aber, wenn auch flach und ungeschickt,
die wesentlichen gedanklichen Motive
vorgeplappert, die dann durch Simmel,
Gundolf und andere führende Geister der
imperialistischen Periode in Deutschland
zum geistigen Gemeingut der bürgerlichen
Intelligenz, ja der ganzen bürgerlichen
Klasse geworden sind. Engels hat, von der
Grünschen Sudelei ausgehend, diese ganze
Richtung glänzend charakterisiert. „Grün
preist alle Philistereien Goethes als
menschlich, er macht den Frankfurter und
Beamten Goethe zum ‚wahren Menschen‘,
während er alles Kolossale und Geniale
43
[NT] Ver nota 26.
György Lukács
392 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
verdade', enquanto ignora ou até cospe em
tudo que é colossal e engenhoso. De tal
forma que esse livro fornece a prova mais
brilhante de que o homem = o pequeno-
burguês alemão” (carta a Marx, 15 de
janeiro de 1847). Muito embora os
glorificadores posteriores de Goethe
superem Grün em suas declarações
individuais, essa característica básica, a
idealização dos lados mesquinhos e filisteus
da aparência geral de Goethe, também
constitui seu traço essencial. Só depois que
o "homem" perdeu gradual e
completamente todos os elementos da
revolução burguesa que ele teve em
Feuerbach no curso do desenvolvimento da
classe burguesa, eles puderam ter essa
característica muito mais facilmente do que
Grün, que escreveu em um período
preparatório da revolução burguesa e
realizou o achatamento burguês de
Feuerbach por intermédio de Goethe. Se,
por exemplo, Gundolf pode transformar
Goethe em um precursor ideológico de
Nietzsche e Bergson, ele o faz de forma
mais desinibida, mais artística”, “mais
profunda” do que o velho Grün, embora o
cerne da visão de classe permaneça
semelhante, embora, porém, o todo de
interpretar Goethe não mude de forma
decisiva. Pois o fato de que agora, do ponto
de vista da burguesia em declínio da época
imperialista, grandes traços individuais de
Goethe são agora reinterpretados como
übergeht oder gar bespuckt. Dergestalt,
daß dieses Buch den glänzendsten Beweis
liefert, daß der Mensch = der deutsche
Kleinbürger“ (Brief an Marx, 15. Jänner
1847). Mögen die späteren Verherrlicher
Goethes Grün in ihren Einzelausführungen
weit übertreffen, dieser Grundzug, die
Idealisierung der kleinlichen, philisterhaften
Seiten von Goethes Gesamterscheinung
bildet auch ihren Wesenszug. Nur haben
sie’s, nachdem „der Mensch“ im Laufe der
Entwicklung der rgerlichen Klasse alle
Elemente der bürgerlichen Revolution, die
er bei Feuerbach hatte, allmählich
vollständig verlor, viel leichter als Grün, der
in einer Vorbereitungsperiode der
bürgerlichen Revolution schrieb und die
spießbürgerliche Verflachung Feuerbachs
durch das Medium Goethe vollzog. Wenn
etwa Gundolf aus Goethe einen
weltanschaulichen Vorläufer Nietzsches und
Bergsons macht, so kann er dies
ungehemmter, „künstlerischer“, „tiefer“
machen als der alte Grün, obwohl der Kern
des Klassenstandpunktes ähnlich bleibt,
obwohl deshalb die Methode der
Interpretation Goethes sich nicht
entscheidend ändert. Denn die Tatsache,
daß nunmehr vom Standpunkt der
niedergehenden Bourgeoisie der
imperialistischen Epoche auch einzelne
große Züge Goethes ins Philisterhafte
umgedeutet werden, daß der Gundolfsche
Philister großartige ästhetisch-
Lukács sobre Goethe
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filisteus, que o filisteu Gundolf assuma
grandes ares estético-filosóficos, etc., não
pode mudar fundamentalmente a essência
da questão
philosophische Allüren annimmt usw., kann
am Wesen der Sache nichts Grundlegendes
ändern.
Para o proletariado, a questão Goethe é
muito menos simples. Pois aqui se trata de
trabalhar concretamente as características
colossais com a ajuda da dialética
materialista e, ao mesmo tempo, desvendar
sua conexão com o filisteu, suas raízes
comuns no ser social de Goethe. Não basta
expor as falsificações de Goethe pelos
literatos burgueses, para combater o
aspecto filisteu de Goethe. Isso resultaria no
máximo em uma comparação proudhoniana
e não dialética de seus lados “bom” e
“mau”. É igualmente insuficiente - como fez
Mehring - considerar a glorificação da
burguesia por Goethe como um tipo de
ferrugem da qual sua estátua poderia ser
limpa. Mehring foge da questão dialética
verdadeira quando encerra um ensaio
fortemente polêmico escrito contra os
apologistas burgueses de Goethe como
segue: “Mas podemos ver o dia aproximar-
se cada vez mais, quando as nuvens terão
desaparecido, o que hoje o deixa (o sol
de Goethe - G. L.) brilhar com uma luz fraca.
O dia em que o povo alemão se libertar
econômica e politicamente será o jubileu de
Goethe, porque a arte passará a ser
propriedade comum de todo o povo.”
(
Goethe e o presente
, 1899, Wk. I, 99). Pois
Für das Proletariat liegt die Frage Goethe
viel weniger einfach. Denn hier handelt es
sich darum, die kolossalen Züge mit Hilfe
der materialistischen Dialektik konkret
herauszuarbeiten und zugleich ihren
Zusammenhang mit dem Philisterhaften,
ihre gemeinsame Wurzel im
gesellschaftlichen Sein Goethes
aufzudecken. Es genügt nicht, die Goethe-
Fälschungen der bürgerlichen Literaten zu
entlarven, das Philisterhafte an Goethe zu
bekämpfen. Damit käme man höchstens zu
einer proudhonistischen und nicht zu einer
dialektischen Gegenüberstellung seiner
„guten“ und „schlechten“ Seiten. Es genügt
ebensowenig wie Mehring es tat die
Goethe- Verherrlichung der Bourgeoisie als
eine Art Rost aufzufassen, von dem sein
Standbild gereinigt werden könnte. Mehring
weicht vor der eigentlichen dialektischen
Fragestellung aus, wenn er einen scharf
polemischen Aufsatz gegen die
bürgerlichen Goethe-Apologeten so
schließt: „Wohl aber sehen wir den Tag
näher und näher heranrücken, wo die
Wolken verschwunden sein werden, die sie
(die Sonne Goethes - G. L.) heute nur mit
gedämpftem Lichte strahlen lassen. Der
Tag, an dem das deutsche Volk sich
György Lukács
394 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
é imediatamente claro que o legado de
Goethe que o proletariado revolucionário
está disposto a assumir não inclui todo
Goethe em nenhuma circunstância. E é
precisamente a experiência na questão do
legado filosófico no caso de Hegel que a
inversão materialista não é simplesmente
uma reversão de sinais, uma “remoção” dos
“componentes” idealistas enquanto mantém
o “método” inalterado, mas um real re-
arranjamento crítico dialético-materialista,
uma elaboração crítica, tanto do método
quanto dos resultados, tanto o conteúdo
quanto da forma.
ökonomisch und politisch befreit hat, wird
Goethes Jubeltag werden, weil an ihm die
Kunst ein Gemeingut des ganzen Volkes
werden wird“ (Goethe und die Gegenwart,
1899, Wk. I, 99). Denn es ist ohne weiteres
klar, daß das Goethe-Erbe, das das
revolutionäre Proletariat anzutreten gewillt
ist, unter keinen Umständen den ganzen
Goethe umfaßt. Und gerade die Erfahrungen
in der Frage des philosophischen Erbes im
Falle Hegel zeigt deutlich, daß die
materialistische Umstülpung nicht einfach
eine Umkehrung der Vorzeichen, eine
„Entfernung“ der idealistischen
„Bestandteile“ bei unveränderter
Beibehaltung der „Methode“ ist, sondern
eine wirkliche, dialektisch-materialistische,
kritische Umknetung, Durcharbeitung,
sowohl der Methode wie der Resultate,
sowohl des Inhalts wie der Form.
A questão é relativamente mais simples
para Hegel do que para Goethe. Em
primeiro lugar, porque as questões da
filosofia foram esclarecidas com muito mais
clareza do que as dos poetas por meio das
discussões muito conhecidas, mas
apenas agora trabalhados, a partir dos
escritos publicados de Marx, Engels e Lenin,
inclusive os recentemente publicados. Em
segundo lugar, porque a posição de Hegel
nas grandes lutas de classes histórico-
mundiais de seu tempo é muito mais clara e
mais decisiva do que a de Goethe. Trabalhar
Dabei steht die Frage bei Hegel
verhältnismäßig einfacher als bei Goethe.
Erstens, weil die Fragen der Philosophie
durch die längst bekannten, aber jetzt neu
durchgearbeiteten, sowie durch die neu
veröffentlichten Schriften von Marx, Engels
und Lenin, durch die bisherigen
Diskussionen viel geklärter sind, als die der
Dichter. Zweitens, weil die Stellungnahme
Hegels zu den großen weltgeschichtlichen
Klassenkämpfen seiner Zeit viel klarer und
entschiedener ist als die Goethes. Das
Herausarbeiten der dialektischen
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 395
o entrelaçamento dialético dos elementos
progressivos e regressivos de sua visão de
mundo é, portanto, uma tarefa mais fácil em
Hegel do que em Goethe.
Verflochtenheit der fortschrittlichen und
rückschrittlichen Elemente seiner
Weltanschauung ist also bei Hegel eine
leichtere Aufgabe als bei Goethe.
Situação de classe de Goethe
Goethes Klassenlage
Externamente, é claro, a posição de classe
de Goethe é clara. Ele vem - pelos padrões
da época - da classe média alta da cidade
imperial independente de Frankfurt.
Consequentemente, ele passou sua
juventude sem preocupações materiais, mas
em permanente dependência material da
casa de seus pais; o que não é isento de
consequências ideológicas. Mais tarde, ele
viveu uma vida próspera, mas sem fortuna
própria, com o salário de funcionário
público; méritos literários apenas
desempenham um papel importante nos
últimos anos de vida. Mesmo esse contexto
externo de vida mostra que Goethe nunca
pertenceu aos escritores da Alemanha
daquela época que, para evitar qualquer
compromisso com o absolutismo do
pequeno Estado, empreenderam uma vida
literária incerta e livre. (Por exemplo,
Lessing.) Por outro lado, a sua adaptação a
este sistema não é de forma alguma simples
e direta. É preciso ter cuidado para não
superestimar o caráter revolucionário de
seus escritos de juventude. Até Napoleão
Äußerlich freilich ist die Klassenlage
Goethes eindeutig. Er stammt nach
damaligen Maßstäben - aus dem
Großbürgertum der freien Reichsstadt
Frankfurt. Er verlebt seine Jugend
dementsprechend ohne materielle Sorgen,
aber in dauernder materieller Abhängigkeit
von seinem Elternhaus; was auch
ideologisch nicht ohne Folgen bleibt. Er lebt
später wohlhabend, aber ohne eigenes
Vermögen, von seinem Beamtengehalt; die
literarischen Verdienste spielen erst in
späteren Lebensjahren eine wichtige Rolle.
Schon dieser äußerliche Lebensrahmen
zeigt, daß Goethe niemals zu jenen
Schriftstellern des damaligen Deutschlands
gehött hat, die, um jedem Kompromiß mit
dem Kleinstaatabsolutismus zu entgehen,
ein unsicheres freies Literatenleben auf sich
nahmen. (Z. B. Lessing.) Anderseits ist sein
Sichabfinden mit diesem System
keineswegs einfach und geradlinig. Man
muß sich hüten, den revolutionären
Charakter seiner Jugendschriften zu
überschätzen. Schon Napoleon sah, daß der
György Lukács
396 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
viu que o conflito entre o Werther burguês
e a sociedade aristocrática era um
ingrediente inorgânico nas obras; o próprio
Goethe, em
Poesia e verdade
(Livro XVII),
caracteriza as obras do período juvenil da
seguinte forma: “Eu ocupava nessa época
uma posição muito favorável em relação às
classes superiores. Se bem que no
Werther
44 sejam reprimidos com
impaciência os dissabores que uma pessoa
experimenta no limite de duas categorias
determinados, isso me era perdoado em
consideração dos outros interesses da obra,
pois cada qual percebia que ali não se tinha
em vista nenhuma ão imediata. Mas o
Götz von Berlichingen45
, me colocava muito
bem em face das classes altas”46. É de se
notar também que na edição de 1773 desta
última obra, todas as passagens da versão
original que aludiam à opressão e
exploração dos camponeses foram
eliminadas.
Konflikt zwischen dem bürgerlichen Werther
und der adeligen Gesellschaft eine
unorganische Zutat im Werke ist; Goethe
selbst charakterisiert in „Dichtung und
Wahrheit“ (17. Buch) die Werke der
Jugendzeit folgendermaßen: „In dieser Zeit
war meine Stellung gegen die oberen
Stände sehr günstig. Wenn auch im
Werther
die Unannehmlichkeiten an der Grenze
zweier bestimmter Verhältnisse mit
Ungeduld ausgesprochen sind, so ließ man
das in Betracht der übrigen
Leidenschaftlichkeiten des Buches gelten,
indem jedermann wohl fühlte, daß es hier
auf keine unmittelbare Wirkung abgesehen
sei. Durch den
Götz von Berlichingen
aber
war ich gegen die oberen Stände sehr gut
gestellt... .“ Wozu noch zu bemerken ist, daß
aus der Ausgabe des letzteren Werkes
(1773) alle Stellen der ursprünglichen
Fassung, wo auf die Unterdrückung und
Ausbeutung der Bauern angespielt war,
gestrichen wurden.
Mas, com todas as limitações e
compromissos indicados aqui, Goethe foi
continuador das tradições revolucionárias
do desenvolvimento anglo-francês do
século XVIII. No entanto, as próprias
manifestações de Goethe, especialmente em
Aber mit allen hier angedeuteten
Beschränkungen und Kompromissen war
Goethe doch ein Fortsetzer der
revolutionären Traditionen der englisch-
französischen Entwicklung des ı8.
Jahrhunderts. Allerdings geben die eigenen
44
[NT] GOETHE;
Os sofrimentos do jovem Werther
; trad. Marcelo Backes; Porto Alegre: L&PM Editores,
2001.
45
[NT] GOETHE;
Götz von Berlichingen da Mão de Ferro
; trad. Felipe Vale da Silva; São Paulo: Aetia
Editorial, 2020.
46
[NT] GOETHE; Memórias: poesia e verdade... op. cit.; p. 535.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 397
Poesia e Verdade,
dão uma imagem
completamente distorcida. Se compararmos
a descrição de Voltaire e seus
contemporâneos em
Poesia e Verdade
com
representações anteriores (correspondência
com Schiller, comentários sobre
O sobrinho
de Rameau
etc.) ou mesmo com declarações
orais posteriores (Eickermann), surge um
forte contraste. Na realidade, Goethe é
muito mais dependente de Voltaire e seus
sucessores do que ele admite
"oficialmente". Uma prova ainda mais clara,
porém, é sua prática. Em um excelente
ensaio sobre a correspondência de Goethe
com Charlotte von Stein (Goethe am
Scheidewege, 1909, Wk. I, 99 f.), Mehring
descobriu a ruptura decisiva em sua vida.
Goethe foi a Weimar a fim de erradicar pelo
menos os piores resquícios do feudalismo
através da sua influência pessoal sobre o
Duque, a fim de realizar os objetivos
revolucionários burgueses, pelo menos
nesta área limitada. Claro: nunca de uma
forma revolucionária; mas Voltaire estava
completamente distante disso. Mehring
mostra como Goethe falhou miseravelmente
em seus esforços de reforma, como ele
fugiu para a Itália por essa razão - não por
causa de Frau von Stein e, como a partir
daí, a resignação se tornou a principal
característica de seu ser.
Darstellungen Goethes, insbesondere in
„Dichtung und Wahrheit“, ein ganz
entstelltes Bild. Vergleicht man etwa die
Schilderung Voltaires und seiner
Zeitgenossen in „Dichtung und Wahrheit“
mit früheren Darstellungen (Briefwechsel
mit Schiller, Anmerkungen zu „Rameaus
Neffe“ usw.) oder selbst mit späteren
mündlichen Äußerungen (Eickermann), so
zeigt sich ein schroffer Gegensatz. Goethe
ist in Wirklichkeit viel abhängiger von
Voltaire und seinen Nachfolgern, als er es
„offiziell“ zugibt. Ein noch deutlicherer
Beweis ist aber seine Praxis. Mehring hat in
einem ausgezeichneten Aufsatz über
Goethes Briefwechsel mit Charlotte von
Stein (Goethe am Scheidewege, 1909, Wk.
I, 99 f.) den entscheidenden Bruch in seinem
Leben aufgedeckt. Goethe ging nach
Weimar, um dort durch seinen persönlichen
Einfluß auf den Herzog wenigstens die
ärgsten Überreste des Feudalismus
auszumerzen, um wenigstens auf diesem
beschränkten Gebiet die bürgerlich-
revolutionären Ziele zu verwirklichen.
Freilich: niemals auf revolutionärem Wege;
der lag aber auch Voltaire vollständig fern.
Mehring zeigt nun, wie kläglich Goethe mit
seinen Reformbestrebungen gescheitert,
wie er deshalb und nicht wegen Frau von
Stein - nach Italien geflüchtet ist, wie von
nun an die Resignation zum Grundzug
seines Wesens wurde.
György Lukács
398 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
No entanto, tanto esse colapso quanto suas
consequências para Goethe estão
intimamente relacionados a certas
características básicas de seu ser, que
existiam no período pré-Weimar, ainda que
não totalmente desenvolvidas. Queremos
indicar brevemente os dois motivos básicos,
em que fica imediatamente claro que eles
estão ideologicamente unidos e que ambos
são consequências necessárias de seu ser
social. Em primeiro lugar, Goethe pertence
aos "entusiastas da natureza" (Marx),
àqueles representantes da ideologia
revolucionária burguesa que, do século XVI
a Feuerbach, levantaram os problemas da
revolução do pensamento do lado natural.
Em segundo lugar, Goethe coloca todas as
questões do ser social a partir da vida
privada do indivíduo burguês e não do
ponto de vista da vida pública, geral e
política da classe; portanto, do ponto de
vista da burguesia e não dos cidadãos. (Este
esquema pode ser visto claramente em
Werther
; em
Egmont
47
,
n’
Os anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
, em
Afinidades eletivas
é ainda mais evidente,
sobretudo de forma mais consciente.)
Allerdings stehen sowohl dieser
Zusammenbruch wie seine Folgen für
Goethe in engstem Zusammenhang mit
gewissen Grundzügen seines Wesens, die
bereits in der vorweimarischen Periode,
wenn auch nicht voll entfaltet, vorlagen. Wir
wollen hier die beiden grundlegenden
Motive kurz andeuten, wobei es zugleich
ohne weiteres klar wird, daß sie
weltanschaulich zusammengehören und
beide notwendige Folgen seines
gesellschaftlichen Seins sind. Erstens gehört
Goethe zu den „Naturenthusiasten“ (Marx),
zu jenen Vertretern der bürgerlich-
revolutionären Ideologie, die vom 16.
Jahrhundert bis zu Feuerbach die Probleme
der Umwälzung des Denkens von der
Naturseite aufrollten. Zweitens stellt Goethe
alle Fragen des gesellschaftlichen Seins vom
Privatleben des bütgerlichen Individuums
und nicht vom Standpunkt des öffentlichen,
allgemeinen, politischen Lebens der Klasse;
also vom Standpunkt des bourgeois und
nicht des citoyens. (Dieses Schema ist schon
im „Werther“ klar ersichtlich, in „Egmont“,
„Wilhelm Meisters Lehrjahre“,
„Wahlverwandtschaften“ tritt es noch
deutlicher, vor allem bewußter zutage.)
Se considerarmos primeiro este segundo
motivo, deve ficar claro que a questão de
Goethe é uma continuação em linha direta
Wenn wir zuerst dieses zweite Motiv
betrachten, so muß es auffallen, daß
Goethes Fragestellung eine geradlinige
47
[NT] GOETHE;
Egmont
; São Paulo: Melhoramentos, 1949.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 399
das tradições da literatura revolucionária
burguesa. A classe burguesa desenvolveu-
se no quadro de um feudalismo moribundo
(como o "terceiro estado"); ela costumava
ter sua própria economia, seu próprio ser
social e, consequentemente, sua própria
vida cotidiana peculiar, sua própria
moralidade, etc., antes de poder afirmar-se
politicamente, de fato, muitas vezes
reivindicou esta validade política de forma
clara e aberta. Assim, é típico dos
primórdios da literatura burguesa, que em
seus poemas, ela confronte de modo
polêmico esse ser social com o modo de
vida da classe dominante. É claro que o faz
de tal modo que se opõe ao ser de sua
própria classe como o “humano geral”,
como o “natural”, o particular, o antinatural,
o artificial etc. na vida da classe dominante.
É por isso que essa configuração determina
a representação da vida privada. É claro,
entretanto, que tais descrições da vida
privada faziam parte das lutas de classes da
época. É certo que alguns grandes
escritores surgiram de forma acusadora ou
satírica dessas representações realistas dos
problemas da vida privada burguesa, para
se tornarem grandes críticos da sociedade
como um todo nessa época de transição (Le
Sage, Swift, Lessing, etc.); é certo que
também existem alguns escritores que
levantaram a questão do lado político geral,
do lado do citoyen. No entanto, eles são
conduzidos para um método idealista
Fortsetzung der Traditionen der bürgerlich-
revolutionären Literatur ist. Die bürgerliche
Klasse entwickelte sich im Rahmen des
absterbenden Feudalismus (als „dritter
Stand“), sie hatte früher eine eigene
Ökonomie, ein eigenes gesellschaftliches
Sein, und demzufolge ein eigenartiges
Alltagsleben, eine eigene Moral usw., bevor
sie sich politisch durchzusetzen vermochte,
ja häufig auch nur diese politische Geltung
klar und offen beansprucht tte.
Dementsprechend ist es für die Anfänge der
bürgerlichen Literatur typisch, daß sie
dieses gesellschaftliche Sein in ihren
Dichtungen der Lebensweise der
herrschenden Klasse polemisch
gegenüberstellt. Sie tut es selbstredend in
der Weise, daß sie ihr eigenes Klassensein
als das „allgemein Menschliche“, als das
„Natürliche“, dem Partikularen,
Unnatürlichen, Gekünstelten usw. am Leben
der herrschenden Klasse entgegensetzt.
Darum bestimmt diese Gestaltung die
Darstellung des privaten Lebens. Es ist aber
klar, daß solche Schilderungen des
Privatlebens einen Teil der damaligen
Klassenkämpfe gebildet haben. Freilich
erhebt sich eine Reihe von großen
Schriftstellern anklagend oder satirisch aus
diesen realistischen Darstellungen der
Probleme des bürgerlich-privaten Lebens zu
großen Kritikern der ganzen Gesellschaft
dieser Übergangsepoche (Le Sage, Swift,
Lessing usw.); freilich gibt es auch
György Lukács
400 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
devido a sua situação social (Milton). Mas
essa colocação da vida privada em primeiro
plano, nada tem a ver com as questões
tematicamente semelhantes da burguesia
em declínio. Aqui, “o mesmo” tipo de
questionamento é uma fuga dos
problemas reais da luta de classes. No
entanto, também aqui o desenvolvimento é
desigual: no século XVIII havia escritores
burgueses que tinham elementos deste
último motivo. (Sterne, um favorito
particular de Goethe, que já declarou - com
a aprovação de Goethe -: "Nossa parte nos
negócios públicos é sobretudo filisteísmo.")
vereinzelte Schriftsteller, die die Frage von
der allgemein-politischen Seite, der citoyen-
Seite stellen. Diese werden aber durch ihre
gesellschaftliche Lage zu einer
idealistischen Methode getrieben (Milton).
Aber dieses In-den- Vordergrund-Stellen
des privaten Lebens hat nichts mit der
thematisch ähnlichen Fragestellung der
niedergehenden Bourgeoisie zu tun. Hier ist
„dieselbe“ Art der Fragestellung bereits ein
Ausweichen vor den wirklichen Problemen
des Klassenkampfs. Allerdings geht auch
hier die Entwicklung ungleichmäßig vor
sich: schon im 18. Jahrhundert gibt es
bürgerliche Schriftsteller, bei denen
Elemente dieses letzteren Motivs vorhanden
sind. (Sterne, ein besonderer Liebling
Goethes, der bereits - von Goethe
zustimmend angeführt - erklärt hat: „Unser
Anteil an öffentlichen Angelegenheiten ist
meist nur Philisterei.“)
Sociedade e Estado
Gesellschaft und Staat
É aqui que se encontram os dois motivos
em sua essência, aos quais nos referimos
anteriormente. O programa de Goethe é ver
a sociedade e os acontecimentos históricos
"de cima", com o olhar frio e objetivo,
"desprovido de interesses", do cientista
natural (“Spinozista”). Esse “apartidarismo”
é tanto uma mera ilusão, que não apenas
não se prova por um momento quando se
considera a sociedade, como ilumina
Hier begegnen sich jene beiden Motive
seines Wesens, auf die wir früher
hingewiesen haben. Goethe hat das
Programm, dic Gesellschaft, die
geschichtlichen Ereignisse „von oben“, mit
dem kühlobjektiven, „von Interessen nicht
getrübten“ Auge des Naturforschers
(„spinozistisch“) zu betrachten. Diese
„Überparteilichkeit“ ist so sehr bloße
Illusion, daß sie nicht nur in der Betrachtung
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 401
retrospectivamente os limites de sua
dialética no conhecimento da natureza.
Mesmo o reacionário hegeliano de direita
Goeschel viu claramente que a rejeição de
Goethe ao vulcanismo na geologia tem a
mesma fonte que sua aversão a qualquer
transformação revolucionária da sociedade;
e inúmeros enunciados de Goethe, assim
como toda sua poesia, mostram que ele
reconhecia o princípio do movimento
apenas nos indivíduos e em seu destino
pessoal e o aplicava como base de seu
método criativo, mas que sempre
considerou o estado, a sociedade, as
instituições sociais, etc., como poderes
imutáveis do destino. Obviamente, foi difícil
para os contemporâneos da Revolução
Francesa, de Napoleão, da Santa Aliança e,
finalmente, da Revolução de Julho fechar os
olhos para o fato da transformação dessas
estruturas. Aqui, porém, a “visão da
natureza” “apartidária”, “olímpica” se torna
um dever filisteu. “Natural” é a
transformação gradual, passo a passo. A
revolução é um mal; desordem, caos. Não
que Goethe fosse radicalmente hostil ao
conteúdo social da Revolução Francesa. Sua
admiração por Napoleão, pelo herdeiro e
seguidor da revolução, é obviamente
determinada em termos de conteúdo de
classe e não um entusiasmo literário pelo
gênio “demoníaco”, como os apologistas o
retratam. (Pode-se então compreender por
que o velho Goethe tinha um interesse tão
der Gesellschaft sich keinen Moment lang
bewährt, sondern rückwirkend die Grenzen
seiner Dialektik auch in der Naturerkenntnis
beleuchtet. Schon der reaktionäre rechte
Hegelianer Goeschel hat klar gesehen, daß
Goethes Ablehnung des Vulkanismus in der
Geologie dieselbe Quelle hat wie seine
Abneigung gegen jede revolutionäre
Umgestaltung der Gesellschaft; und
unzählige Äußerungen Goethes sowie seine
gesamte Dichtung zeigen, daß er das
Prinzip der Bewegung nur in den
Einzelpersonen und in ihrem persönlichen
Schicksal erkannt und als Grundlage seiner
schöpferischen Methode angewendet hat,
daß er sich aber Staat, Gesellschaft,
gesellschaftliche Institutionen usw. stets als
unwandelbare Schicksalsmächte vorstellte.
Es war freilich für den Zeitgenossen der
Französischen Revolution, Napoleons, der
Heiligen Alliance und schließlich der
Julirevolution schwer, vor der Tatsache der
Wandlung dieser Gebilde die Augen zu
schließen. Hier aber schlägt die
„überparteiische“, „olympische“
„Naturbetrachtung“ in ein philisterhaftes
Sollen um. „Naturhaft“ ist die allmähliche,
schrittweise Umwandlung. Die Revolution
ist ein Übel; Unordnung, Chaos. Nicht, als ob
Goethe dem sozialen Inhalt der
Französischen Revolution gegenüber
radikal feindlich gewesen wäre. Seine
Verehrung für Napoleon, für den Erben und
Volistrecker der Revolution, ist selbstredend
György Lukács
402 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
vivo por Byron, Manzoni, Stendhal, Balzac,
Victor Hugo, Beranger, etc., enquanto ele se
opunha friamente ao romantismo -
reacionário - alemão.) Essa veneração de
Napoleão e a rejeição da guerra de
libertação contra Napoleão surgiram da
mesma fonte que os esforços de reforma do
primeiro período de Weimar. Mas aqui como
ali, Goethe não penetra até as raízes; nem
tanto quanto teria sido possível no estágio
de desenvolvimento da burguesia alemã
com os meios de pensamento da época.
Não foi além de Voltaire, por exemplo:
reformas, transformação burguesa do
Estado e da sociedade; mas “de cima”, sem
que “a multidão” tenha nada a ver com isso.
A concepção dessas reformas também não
é apreendida a partir do ponto central, da
economia. Goethe reconheceu,
especialmente na velhice, a importância
técnica e revolucionária do capitalismo
(Canal de Suez, Canal do Panamá, fim de
"Fausto" II), e não desconhecia inteiramente
as implicações sociopolíticas deste
desenvolvimento técnico ("Os caminhos-de-
ferro criam a unidade alemã"; Eckermann,
23 de outubro de 182848). Mas a economia
do capitalismo, o significado da economia
como a “anatomia” da sociedade burguesa,
era um livro com sete selos para ele.
Embora tenha lido Necker49 quando era um
inhaltlich-klassenmäßig bedingt und nicht
ein literatenhaftes Schwärmen für das
„dämonische“ Genie, wie es die Apologeten
darstellen. (Die dann ebensowenig
verstehen können, warum der alte Goethe
für Byron, Manzoni, Stendhal, Balzac, Victor
Hugo, Beranger usw. ein so lebhaftes
Interesse hatte, während er der deutschen
reaktionären Romantik kühl
ablehnend gegenüberstand.) Diese
Napoleon-Verehrung sowie die Ablehnung
des Freiheitskriegs gegen Napoleon stammt
eben aus derselben Quelle wie die
Reformbestrebungen der ersten Weimarer
Periode. Aber hier wie dort dringt Goethe
nicht bis zu den Wurzeln; nicht einmal so
weit, wie es auf der damaligen
Entwicklungsstufe des deutschen
Bürgertums, mit seinen damaligen
Denkmitteln möglich gewesen wäre. Er ist
bier nicht weiter gekommen als etwa
Voltaire: Reformien, bürgerliche
Umgestaltung von Staat und Gesellschaft;
aber von oben“, ohne daß „die Menge“
damit aktiv zu tun haben dürfte. Dabei ist
die Konzeption dieser Reformen auch nicht
aus dem Mittelpunkt, aus der Ökonomie
erfaßt. Goethe erkannte zwar, insbesondere
im Alter, die technisch-umwälzende
Bedeutung des Kapitalismus (Suezkanal,
Panamakanal, Schluß von „Faust“ II), ja’er
48
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit.
; p. 657.
49
[NT] Jacques Necker (1732-1804) foi um banqueiro suíço e estadista que serviu como ministro das
finanças de Luís XVI.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 403
ministro (carta para Charlotte von Stein, 8
de abril [! 8 de setembro (e 11 de
setembro)] 1785), mas mais tarde - em
nítido contraste com Hegel - o
desenvolvimento da economia na Inglaterra
passou-lhe despercebido. É por isso que a
inclusão dos problemas econômicos (a
agricultura capitalista nos
Anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
etc.) não
pode tirar de suas obras a rigidez estática
do contexto social. Quanto mais poderosos
eram os acontecimentos mundiais que se
lhe associam, mais acentuado era o
contraste entre os destinos puramente
privados retratados em primeiro plano e o
contexto social figurado. (Revolução
Francesa em
Hermann e Dorothea
).
war auch über die gesellschaftlich-politische
Tragweite dieser technischen Entwicklung
nicht ganz im unklaren („Eisenbahnen
schaffen die deutsche Einheit“; Eckermann,
23. Oktober 1828). Aber die Ökonomie des
Kapitalismus, die Bedeutung der Ökonomie
als „Anatomie“ der bürgerlichen
Gesellschaft war für ihn ein Buch mit sieben
Siegeln. Zwar hat er in seiner Ministerzeit
Necker gelesen (an Charlotte von Stein, 8.
April [! 8. (und II.) September] 1785), aber
später ging in schroffem Gegensatz zu
Hegel - die Entwicklung der Ökonomie in
England unbemerkt an ihm vorbei. Darum
kann das Hineinspielen ökonomischer
Probleme (kapitalistische Landwirtschaft in
„Wilhelm Meisters Lehrjahre“ usw.) seinen
Werken das statisch Starre des
gesellschaftlichen Hintergrun des nicht
nehmen. Je mächtiger die hineinspielenden
Weltereignisse sind, desto schroffer kommt
gerade dieser Kontrast zwischen den
bewegt dargestellten rein privaten
Schicksalen im Vordergrund und dem
stehend gedachten gesellschaftlichen
Hintergrund zur Geltung. (Französische
Revolution in „Hermann und Dorothea“.)
Método criativo
Schöpferische Methode
A mesma ambiguidade, cuja raiz
reconhecemos no ser social de Goethe, se
mostra em seu método criativo. Sua
principal característica é um realismo sadio.
Dieselbe Zwiespältigkeit, deren Wurzel wir
im gesellschaftlichen Sein Goethes erkannt
haben, zeigt sich in seiner schöpferischen
Methode. Ihr Grundzug ist ein gesunder
György Lukács
404 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
Goethe sempre quer partir do exterior, da
realidade objetiva e figurar tudo o que é
“interior” como sua consequência, seu
reflexo. Ele diz: O clássico é sadio, o
romântico é doente. Ovídio permaneceu
classicamente até no exílio: ele não busca o
seu infortúnio em si mesmo, mas no
distanciamento da capital do mundo... O
universal e o particular coincidem; o
particular é o universal, aparecendo em
diferentes condições... portanto, também o
mais particular que acontece, aparece
sempre como imagem e semelhança do
mais universal...” (Provérbios em prosa). Por
consequência, “o poeta”, explica Goethe
(Eckermann, 11 de junho de 1825), “deve
abordar o particular e, quando este for algo
sadio, expressará através dele o
universal”50. A aplicação desses princípios é
onde reside a grandeza poética de Goethe.
Aqui ele herda a poesia realista-
revolucionária da burguesia em ascensão,
pela qual seu método criativo se beneficia
do fato de que ele experimenta e participa
daquela transição significativa em que a
dialética ocasional e inconsciente dos
antigos materialistas (Diderot: "O sobrinho
de Rameau") começa a transformar-se em
dialética consciente. A posição de Goethe
nesse processo de desenvolvimento não é
de modo algum clara e simples. Por um
lado, ele se recusa a seguir a transição na
Realismus. Goethe will stets von der
äußeren, von der objektiven Wirklichkeit
ausgehen und alles „Innere“ als deren
Folge, deren Reflex gestalten. So sagt er:
„Klassisch ist das Gesunde, romantisch das
Kranke. Ovid blieb klassisch auch im Exil: er
sucht sein Unglück nicht in sich, sondern in
seiner Entfernung von der Hauptstadt der
Welt... Das Allgemeine und Besondere fallen
zusammen; das Besondere ist das
Allgemeine, unter verschiedenen
Bedingungen erscheinend.... deswegen
auch das Besonderste, das sich ereignet,
immer als Bild und Gleichnis des
Allgemeinsten auftritt...“ (Sprüche in Prosa).
„Der Poet“, führt Goethe darum ganz
konsequent aus (Eckermann, 11 Juni 1825),
„soll das Besondere ergreifen und wird,
wenn dieses nur etwas Gesundes ist, darin
ein Allgemeines darstellen.“ In der
Durchführung dieser Prinzipien liegt die
dichterische Größe Goethes. Er tritt hier das
Erbe der realistisch-revolutionären Dichtung
der aufstrebenden Bourgeoisie an, wobei es
seiner schöpferischen Methode zugute
kommt, daß er jenen bedeutsamen
Übergang erlebt und mitmacht, wo die
gelegentliche und unbewußte Dialektik der
alten Materiali.sten (Diderot: „Rameaus
Neffe“) in bewußte Dialektik umzuschlagen
beginnt. Goethes Stellung in diesem
Entwicklungsprozeß ist aber keineswegs
50
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit
.; p. 164.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 405
direção do idealismo (ao contrário de
Schiller, também ao romantismo), por outro
lado, ele não está em condições de figurar
de modo consistente o movimento dialético
do conteúdo que tem em mente com meios
realistas. Na medida em que sua situação de
classe analisada acima, e sua visão de
mundo que emergiu dela permitem, isto é,
na configuração de homens privados
individuais em conexão com seu ambiente
imediato, na configuração da atmosfera
especial de um meio, na configuração de
humores, sentimentos, vivências em
conexão com as causas que as despertam
diretamente, ele vai muitas vezes muito
além da literatura dos séculos XVII e XVIII
no aperfeiçoamento dialético do realismo
poético. Sim, ele até consegue figurar de
forma realista as tendências subjetivistas
que, em Rousseau, Sterne, etc., já haviam se
tornado idealistas, devolvendo-as aos
fundamentos do seu ser.
eindeutig und einfach. Einerseits lehnt er es
ab, auf diesem Wege das Umschwenken in
die Richtung des Idealismus mitzumachen
(Gegensatz zu Schiller, auch zur Romantik),
anderseits ist er nicht imstande, die
dialektische Bewegtheit des Inhalts, der ihm
vorschwebt, konsequent mit realistischen
Mitteln zu gestalten. Soweit seine oben
analysierte Klassenlage und seine daraus
erwachsene Weltanschauung es ihm
gestatten, also in der Gestaltung der
einzelnen privaten Menschen im
Zusammenhang mit ihrer unmittelbaren
Umgebung, in der Gestaltung der
besonderen Atmosphäre eines Milieus, in
der Gestaltung von Stimmungen, Gefühlen,
Erlebnissen im Zusammenhang mit den sie
unmittelbar erregenden Ursachen geht er in
der dialektischen Vervollkommnung des
dichterischen Realismus oft weit über die
Literatur des 17. bis 18. Jahrhunderts
hinaus. Ja, es gelingt ihm sogar, jene bei
Rousseau, Sterne usw. bereits ins
Idealistische umschlagenden,
subjektivistischen Tendenzen wieder auf
ihre Seinsgrundlagen gestaltend
zurückzuführen, realistisch darzustellen.
Este realismo é de grande liberdade e
generosidade em relação aos princípios da
configuração. Precisamente porque Goethe
"jamais olhou [olhei] para a natureza com
objetivos políticos" (Eckermann, 18 de
Dieser Realismus ist von einer großen
Freiheit und Großzügigkeit in den
Gestaltungsprinzipien. Gerade weil Goethe
„niemals die Natur politischer Zwecke
wegen betrachtet“ hat (Eckermann, ı8.
Jänner 1827), sondern aus seinen
György Lukács
406 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
janeiro de 1827)51, mas a partir de seus
estudos da natureza, de seus esforços
pictóricos etc., possuía um tesouro
sistematizado e livremente controlado de
conhecimento da realidade objetiva, podia
mover-se aqui muito livremente no material,
retratando o movimento, o auto-movimento
do material ao mesmo tempo essencial e
significativamente como auto-movimento.
Em sua crítica a Grün, Engels também
aponta que o homem goethiano é um
homem de carne e osso real e não uma
abstração feeuerbachiana. Ele, ao mesmo
tempo, aponta as “Elegias Romanas” como
exemplo deste tipo de configuração de
Goethe. Os exemplos poderiam ser muito
multiplicados, principalmente na poesia de
Goethe. Ainda seria necessário mostrar que
existem poucos poetas na literatura mundial
capazes de apresentar personagens vivos
com meios tão econômicos e retumbantes
como Goethe frequentemente conseguia
fazer (Gretchen em Fausto, Klärchen em
Egmont, etc.). No entanto, esse grande
método criativo sempre falha quando
Goethe é tematicamente forçado a abordar
conteúdos em relação aos quais sua
dialética e seu realismo falham por razões
ideológicas. Esse é o caso de quase todos
os seus poemas maiores. O próprio fato de
o movimento da matéria afetar apenas o
indivíduo e não se relacionar com o todo
Naturstudien, malerischen Bestrebungen
usw. einen systematisierten und frei
beherrschten Schatz von Kenntnissen der
objektiven Wirklichkeit besaß, konnte er
sich hier ganz frei im Stoffe bewegen, die
Bewegung, die Selbstbewegung des Stoffs
zugleich wesentlich und sinnfällig als
Selbstbewegung abbilden. Engels weist in
seiner Grün-Kritik mit darauf hin, daß der
Goethesche Mensch ein Mensch von
wirklichem Fleisch und Blut und nicht eine
Feuerbachsche Abstraktion sei. Er weist
auch gleichzeitig auf die „Römischen
Elegien“ als ein Beispiel dieser
Gestaltungsart Goethes hin. Die Beispiele
ließen sich, insbesondere aus der Lyrik
Goethes, stark vermehren. Es müßte dabei
noch gezeigt werden, daß es wenige
Dichter der Weltliteratur gibt, die fähig
waren, mit so sparsamen und dennoch
durchschlagenden Mitteln lebensvolle
Gestalten hinzustellen, wie dies Goethe oft
gelungen ist (Gretchen im „Faust“, Klärchen
im „Egmont“ usw.). Diese großartige
schöpferische Methode muß jedoch stets
versagen, wenn Goethe thematisch
gezwungen ist, an Inhalte heranzutreten,
denen gegenüber seine Dialektik und sein
Realismus aus weltanschaulichen Gründen
versagen. Dies ist aber fast in allen seinen
größeren Dichtungen der Fall. Schon die
Tatsache, daß die Bewegtheit des Stoffs sich
51
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit
.; p. 216.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 407
(social) enfraquece o realismo da
configuração também no indivíduo, e muitas
vezes acaba por lhe conferir um caráter
silencioso e embotado, que é o lado poético
da sua "resignação" ideológica. Assim,
surge a situação peculiar em que Goethe
descreve a atmosfera sensível e espiritual
de uma época, de uma classe social, em
todos os seus pormenores de uma forma
cativante e generosa, todavia não retrata a
sua totalidade, mas sim a faz figurar
obliqua, unilateral e estaticamente (Götz
von Berlichingen, Wilhelm Meister, etc.).
Nesse aspecto, Goethe está entre os
grandes realistas dos séculos XVIII e XIX
(Defoe, Fielding, Balzac). No entanto, essa
contradição interna muitas vezes também
afeta a configuração dos detalhes. Pois a
dialética do indivíduo, que Goethe observou
e figurou com maestria, se deixada ao seu
próprio movimento dialético, levaria a
consequências que Goethe não teria
tolerado em termos ideológicos - ou às
vezes apenas publicamente. Em tais casos,
um mecanismo de correção se instala: o
movimento dos personagens é
artificialmente adaptado à rigidez
comprometedora e não dialética do quadro
social geral e, portanto, torna-se rígido,
convencional e falso. (A parte final de
“Afinidades Eletivas”, também muito em
“Hermann e Dorothea”, Wilhelm Meister”
etc.) E esse é o caso mais favorável. Porque
Goethe frequentemente “consegue”, desde
nur im einzelnen auswirkt und sich nicht auf
das (gesellschaftliche) Ganze bezieht,
schwächt den Realismus der Gestaltung,
auch im einzelnen, ab, gibt ihr oft einen
abgedämpft- abgestumpften Charakter, der
die dichterische Seite seiner
weltanschaulichen „Resignation“ ist. Es
entsteht also die eigentümliche Lage, daß
Goethe die sinnliche wie geistige
Atmosphäre einer Zeit, einer
Gesellschaftsschicht in allen Einzelheiten
packend und großzügig schildert, ihre
Gesamtheit aber überhaupt nicht oder
schief, einseitig, statisch gestaltet (Götz von
Berlichingen, Wilhelm Meister usw.). In
dieser Hinsicht steht Goethe tief unter den
großen Realisten des 18. und 19.
Jahrhunderts (Defoe, Fielding, Balzac).
Dieser innere Gegensatz spielt jedoch oft
auch in die Gestaltung der Einzelheiten
hinüber. Denn die von Goethe meisterhaft
beobachtete und gestaltete Dialektik des
einzelnen würde, der eigenen dialektischen
Selbstbewegung überlassen, zu
Konsequenzen führen, die für Goethe
weltanschaulich oder zuweilen: bloß
öffentlich nicht tragbar gewesen wären.
In solchen Fällen setzt nun ein Mechanismus
des Zurechtrückens ein: die Bewegung der
Gestalten wird künstlich der
kompromißlerisch-undialektischen Starrheit
des allgemein-gesellschaftlichen Rahmens
angepaßt und damit starr, konventionell,
unwahr gemacht. (Ausgang der
György Lukács
408 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
o início, ajustar a configuração a essa
finalidade ideológica, e a uniformidade da
configuração é adquirida com o predomínio
de uma rigidez geral. (“Filha natural”,
também em partes do “Tasso”.) Por vezes,
essa contradição se manifesta no fato de
que o horizonte da configuração se dissolve
em uma névoa simbólico-mística e toda a
obra se espedaça em partes heterogêneas.
(“Os anos de transformação de Wilhelm
Meister”.) Assim, o método criativo de
Goethe apresenta a mesma contradição de
sua visão de mundo. E aqui como ali seu
efeito no campo burguês está ligado aos
lados débeis, filisteus, comprometedores de
seu ser contraditório ou, na melhor das
hipóteses, à mistura de características
filisteias e grandiosas. Para o proletariado,
é importante encontrar, ao mesmo tempo, a
ligação e a distinção corretas com críticas
severas e processar a grandeza que em
Goethe de forma materialista e dialética.
„Wahlverwandtschaften“, auch vieles in
„Hermann und Dorothea“, „Wilhelm
Meister“ usw.) Und dies ist noch der
günstigere Fall. Denn oft „gelingt“ es
Goethe, die Gestaltung von vornherein auf
dieses weltanschauliche Ziel einzustellen
und die Einheitlichkeit der Gestaltung ist mit
dem Vorherrschen einer allgemeinen
Starrheit erkauft. („Natürliche Tochter“,
teilweise auch „Tasso“.) Zuweilen äußert
sich dieser Gegensatz darin, daß der
Horizont der Gestaltung sich in einen
symbolisch-mystischen Dunst auflöst und
das ganze Werk in heterogene Teile
zerflattert. („Wilhelm Meisters
Wanderjahre“.) So zeigt sich in Goethes
schöpferischer Methode derselbe
Gegensatz wie in seiner Weltanschauung.
Und hier wie dort knüpft seine Wirkung im
bürgerlichen Lager an die schwächlichen,
philisterhaften, kompromißlerischen Seiten
seines widerspruchsvollen Wesens an oder
bestenfalls an die Vermischung der
philisterhaften und großartigen Züge. Für
das Proletariat kommt es darauf an, mit
scharfer Kritik den richtigen
Zusammenhang und zugleich die richtige
Scheidung zu finden und das Große an
Goethe materialistisch- dialektisch zu
verarbeiten.
Linksfront, 5 und 6/1932
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Goethes Weltanschauung
Visão de mundo de Goethe
52
A situação de classe
Die Klassenlage
Em Goethe essa situação é muito clara. Ele
vem - pelos padrões da época - da classe
média alta da cidade imperial independente
de Frankfurt. Consequentemente, ele
passou sua juventude sem preocupações
materiais, mas em permanente dependência
material da casa de seus pais; o que não é
isento de consequências ideológicas. Mais
tarde, ele viveu uma vida próspera, mas sem
fortuna própria, com o salário de
funcionário público; méritos literários
apenas desempenham um papel importante
nos últimos anos de vida. Mesmo esse
contexto externo de vida mostra que
Goethe nunca pertenceu aos escritores da
Alemanha daquela época que, para evitar
qualquer compromisso com o absolutismo
do pequeno Estado, empreenderam uma
vida literária incerta e livre. (Por exemplo,
Lessing.) Por outro lado, a sua adaptação a
este sistema não é de forma alguma simples
e direta. É preciso ter cuidado para não
superestimar o caráter revolucionário de
seus escritos de juventude. Até Napoleão
Goethes ist ganz eindeutig. Er stammt
nach damaligem Maßstabe aus dem
Großbürgertum der Freien Reichsstadt
Frankfurt. Er verlebt seine Jugend
dementsprechend ohne materielle Sorgen,
aber in dauernder materieller Abhängigkeit
von seinem Elternhause, was auch
ideologisch nicht ohne Folgen bleibt. Er lebt
später wohlhabend, aber ohne eigenes
Vermögen von seinem Beamtengehalt; die
literarischen Verdienste spielen erst in
späteren Lebensjahren eine wichtige Rolle,
Schon dieser äußerliche Lebensrahmen
zeigt, daß Goethe niemals zu jenen
Schriftstellern des damaligen Deutschlands
gehört hat, die, um jedem Kompromiß mit
dem Kleinstaatabsolutismus zu entgehen,
ein unsicheres freies Literatenleben auf sich
nahmen (Lessing). Andererseits ist sein
Sichabfinden mit diesem System
keineswegs einfach und gradlinig. Man muß
sich hüten, den revolutionären Charakter
seiner Jugendschriften zu überschätzen.
Schon Napoleon sah, daß der Konflikt
52
[NT] Esse artigo é uma adaptação com variações do artigo
O que é Goethe para nós hoje?
Apresenta
a mesma redação com a supressão de algumas passagens. Apenas as seções Pesquisa natural e
dialética” e “Panteísmo e religião, embora tenham conteúdos muito semelhantes àqueles
desenvolvimentos anteriores, receberam uma redação diferente.
György Lukács
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viu que o conflito entre o Werther burguês
e a sociedade aristocrática era um
ingrediente inorgânico nas obras; o próprio
Goethe, em
Poesia e verdade
(Livro XVII),
caracteriza as obras do período juvenil da
seguinte forma: “Eu ocupava nessa época
uma posição muito favorável em relação às
classes superiores. Se bem que no
Werther
53 sejam reprimidos com
impaciência os dissabores que uma pessoa
experimenta no limite de duas categorias
determinados, isso me era perdoado em
consideração dos outros interesses da obra,
pois cada qual percebia que ali não se tinha
em vista nenhuma ão imediata. Mas o
Götz von Berlichingen54
, me colocava muito
bem em face das classes altas”55. É de se
notar também que na edição de 1773 desta
última obra, todas as passagens da versão
original que aludiam à opressão e
exploração dos camponeses foram
eliminadas.
zwischen dem bürgerlichen Werther und der
adeligen Gesellschaft eine unorganische
Zutat im Werke ist, Goethe selbst
charakterisiert in „Dichtung und Wahrheit“
(17. Buch) die Werke der Jugendzeit
folgendermaßen. „In der Zeit war meine
Stellung gegen die oberen Stände sehr
günstig. Wenn auch im Werther die
Unannehmlichkeiten an der Grenze zweier
bestimmter Verhältnisse mit Ungeduld
ausgesprochen sind, so ließ man das in
Betracht der übrigen Leidenschaftlichkeiten
des Buches gelten, indem jedermann wohl
fühlte, daß es hier auf keine unmittelbare
Wirkung abgesehen ist. Durch den Götz von
Berlichingen aber war ich gegen die oberen
Stände sehr gut gestellt...“ Wozu noch zu
bemerken ist, d aus der Ausgabe des
letzteren Werkes (1773) alle Stellen der
ursprünglichen Fassung, wo auf die
Unterdrückung und Ausbeutung der Bauern
angespielt war, gestrichen wurden.
Mas, com todas as limitações e
compromissos indicados aqui, Goethe foi
continuador das tradições revolucionárias
do desenvolvimento anglo-francês do
século XVIII. No entanto, as próprias
manifestações de Goethe, especialmente em
Poesia e Verdade,
dão uma imagem
Aber mit allen hier angedeuteten
Beschränkungen und Kompromissen war
Goethe doch ein Fortsetzer der
revolutionären Traditionen der englisch-
französischen Entwicklung des 18.
Jahrhunderts. Allerdings geben die eigenen
Darstellungen Goethes, insbesondere in
53
[NT] GOETHE;
Os sofrimentos do jovem Werther
; trad. Marcelo Backes; Porto Alegre: L&PM Editores,
2001.
54
[NT] GOETHE;
Götz von Berlichingen da Mão de Ferro
; trad. Felipe Vale da Silva; São Paulo: Aetia
Editorial, 2020.
55
[NT] GOETHE; Memórias: poesia e verdade... op. cit.; p. 535.
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completamente distorcida. Na realidade,
Goethe é muito mais dependente de
Voltaire e seus sucessores do que ele
admite "oficialmente". Uma prova ainda
mais clara, porém, é sua prática. Em um
excelente ensaio sobre a correspondência
de Goethe com Charlotte von Stein (Goethe
am Scheidewege, 1909, Wk. I, 99 f.),
Mehring descobriu a ruptura decisiva em
sua vida. Goethe foi a Weimar a fim de
erradicar pelo menos os piores resquícios
do feudalismo através da sua influência
pessoal sobre o Duque, a fim de realizar os
objetivos revolucionários burgueses, pelo
menos nesta área limitada. Claro: nunca de
uma forma revolucionária; mas Voltaire
estava completamente distante disso.
Mehring mostra como Goethe falhou
miseravelmente em seus esforços de
reforma, como ele fugiu para a Itália por
essa razão - não por causa de Frau von
Stein e, como a partir daí, a resignação se
tornou a principal característica de seu ser.
„Dichtung und Wahrheit“ ein ganz
entstelltes Bild. Goethe ist in Wirklichkeit
viel abhängiger von Voltaire und seinen
Nachfolgern, als er es offiziell“ zugibt. Ein
noch deutlicherer Beweis ist aber seine
Praxis. Mehring hat in einem
ausgezeichneten Aufsatz über Goethes
Briefwechsel mit Charlotte von Stein
(Goethe am Scheidewege, 1909, W. I, 99 ff.)
den entscheidenden Bruch in seinem Leben
aufgedeckt. Goethe ging nach Weimar, um
dort wenigstens die ärgsten Überreste des
Feudalismus durch seinen persönlichen
Einfluß auf den Herzog auszumerzen, um
wenigstens auf diesem beschränkten Gebiet
die bürgerlich revolutionären Ziele zu
verwirklichen. Freilich: niemals auf
revolutionärem Wege; der lag aber auch
Voltaire vollständig fern. Mehring zeigt nun,
wie kläglich Goethe mit seinen
Reformbestrebungen gescheitert, wie er
deshalb - und nicht wegen Frau von Stein
nach Italien geflüchtet ist, wie von nun an
die Resignation zum Grundzug seines
Wesens wurde.
As duas tendências fundamentais de Goethe
Die zwei grundlegenden Tendenzen
Goethes
No entanto, tanto esse colapso quanto suas
consequências para Goethe estão
intimamente relacionados a certas
características básicas de seu ser, que
existiam no período pré-Weimar, ainda que
Allerdings stehen sowohl dieser
Zusammenbruch, wie seine Folgen für
Goethe im engsten Zusammenhang mit
gewissen Grundzügen seines Wesens, die
bereits in der vorweimarischen Periode,
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não totalmente desenvolvidas. Queremos
indicar brevemente os dois motivos básicos,
em que fica imediatamente claro que eles
estão ideologicamente unidos e que ambos
são consequências necessárias de seu ser
social. Em primeiro lugar, Goethe pertence
aos "entusiastas da natureza" (Marx),
àqueles representantes da ideologia
revolucionária burguesa que, do século XVI
a Feuerbach, levantaram os problemas da
revolução do pensamento do lado natural.
Em segundo lugar, Goethe coloca todas as
questões do ser social a partir da vida
privada do indivíduo burguês e não do
ponto de vista da vida pública, geral e
política da classe; portanto, do ponto de
vista da burguesia e não dos cidadãos. (Este
esquema pode ser visto claramente em
Werther
; em
Egmont
56
,
n’
Os anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
, em
Afinidades eletivas
é ainda mais evidente,
sobretudo de forma mais consciente.)
wenn auch nicht voll entfaltet, vorlagen. Wir
wollen hier die beiden grundlegenden
Motive kurz andeuten, wobei es zugleich
ohne weiteres klar wird, daß sie
weltanschaulich zusammengehören und
beide notwendige Folgen seines
gesellschaftlichen Seins sind. Erstens gehört
Goethe zu den „Naturenthusiasten“ (Marx),
das heißt zu jenen Vertretern der
bürgerlich-revolutionären Ideologie, die
vom 16. Jahrhundert bis zu Feuerbach die
Probleme der Umwälzung des Denkens von
der Naturseite aufrollten. Zweitens stellt
Goethe alle Fragen des gesellschaftlichen
Seins vom Privatleben des bürgerlichen
Individuums und nicht vom Standpunkt des
öffentlichen, allgemein, politischen Lebens
der Klasse; also vom Standpunkt des
Bourgeois und nicht des „citoyens“. (Dieses
Schema ist schon im „Werther“ klar
ersichtlich, in „Egmont“, „Wilhelm Meisters
Lehrjahre“, „Wahlverwandtschaften“ tritt es
noch deutlicher, vor allem bewußter
zutage.)
S Se considerarmos primeiro este segundo
motivo, deve ficar claro que a questão de
Goethe é uma continuação em linha direta
das tradições da literatura revolucionária
burguesa. A classe burguesa desenvolveu-
se no quadro de um feudalismo moribundo
(como o "terceiro estado"); ela costumava
Wenn wir zuerst diese zweiten Motive
betrachten, so muß es auffallen, daß
Goethes Fragestellung eine gradlinige
Fortsetzung der Traditionen der bürgerlich-
revolutionären Literatur ist. Die bürgerliche
Klasse entwickelte sich im Rahmen des
absterbenden Feudalismus (als „dritter
56
[NT] GOETHE;
Egmont
; São Paulo: Melhoramentos, 1949.
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ter sua própria economia, seu próprio ser
social e, consequentemente, sua própria
vida cotidiana peculiar, sua própria
moralidade, etc., antes de poder afirmar-se
politicamente, de fato, muitas vezes
reivindicou esta validade política de forma
clara e aberta. Assim, é típico dos
primórdios da literatura burguesa, que em
seus poemas, ela confronte de modo
polêmico esse ser social com o modo de
vida da classe dominante. É claro que o faz
de tal modo que se opõe ao ser de sua
própria classe como o “humano geral”,
como o “natural”, o particular, o antinatural,
o artificial etc. na vida da classe dominante.
É por isso que essa configuração determina
a representação da vida privada. É claro,
entretanto, que tais descrições da vida
privada faziam parte das lutas de classes da
época. É certo que alguns grandes
escritores surgiram de forma acusadora ou
satírica dessas representações realistas dos
problemas da vida privada burguesa, para
se tornarem grandes críticos da sociedade
como um todo nessa época de transição (Le
Sage, Swift, Lessing, etc.); é certo que
também existem alguns escritores que
levantaram a questão do lado político geral,
do lado do citoyen. No entanto, eles são
conduzidos para um método idealista
devido a sua situação social (Milton). Mas
essa colocação da vida privada em primeiro
plano, nada tem a ver com as questões
tematicamente semelhantes da burguesia
Stand“), sie hatte früher eine eigene
Ökonomie, ein eigenes gesellschaftliches
Sein und demzufolge ein eigenartiges
Alltagsleben, eine eigene Moral usw., bevor
sie sich politisch durchzusetzen vermochte,
ja häufig auch nur diese politische Geltung
klar und offen beansprucht tte.
Dementsprechend ist es für die Anfänge der
bürgerlichen Literatur typisch, daß sic
dieses gesellschaftliche Sein in ihren
Dichtungen der Lebensweise der
herrschenden Klasse polemisch
gegenüberstellt. Sie tut es selbstredend in
der Weise, daß sie ihr eigenes Klassensein
als das „allgemein Menschliche“, als das
„Natürliche“ dem Partikularen,
Unnatürlichen, Gekünstelten usw. am Leben
der herrschenden Klasse entgegensetzt.
Darum herrscht in diesen Gestaltungen die
Darstellung des privaten Lebens vor. Es ist
aber klar, daß eine solche Schilderung des
Privatlebens ein Teil der damaligen
Klassenkämpfe gewesen ist. Freilich erhebt
sich eine Reihe von großen Schriftstellern
anklagend oder satyrisch aus diesen
realistischen Darstellungen der Probleme
des bürgerlich-privaten Lebens zu großen
Kritikern der ganzen Gesellschaft dieser
Übergangsepoche. (Le Sage, Swift, Lessing
usw.) Freilich gibt es auch vereinzelte
Schriftsteller, die die Frage von der
allgemein-politischen Seite, der Citoyen-
Seite stellen. Diese werden aber durch ihre
gesellschaftliche Lage zu einer
György Lukács
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em declínio. Aqui, “o mesmo” tipo de
questionamento é uma fuga dos
problemas reais da luta de classes. No
entanto, também aqui o desenvolvimento é
desigual: no século XVIII havia escritores
burgueses que tinham elementos deste
último motivo. (Sterne, um favorito
particular de Goethe, que já declarou - com
a aprovação de Goethe -: "Nossa parte nos
negócios públicos é sobretudo filisteísmo.")
idealistischen Methode getrieben (Milton).
Aber dieses In-den- Vordergrund-Stellen
des privaten Lebens hat nichts mit der
thematisch ähnlichen Fragestellung der
niedergehenden Bourgeoisie zu tun. Hier ist
„dieselbe“ Art der Fragestellung bereits ein
Ausweichen vor dem wirklichen Problem
des Klassenkampfes. Allerdings geht auch
hier die Entwicklung ungleichmäßig vor
sich: schon im 18. Jahrhundert gibt es
bürgerliche Schriftsteller, bei denen
Elemente dieser letzteren Motive vorhanden
sind. (Sterne, ein besonderer Liebling
Goethes, der bereits - von Goethe
zustimmend angeführt erklärt hat: „unser
Anteil an öffentlichen Angelegenheiten ist
meist nur Philisterei“.)
Pesquisa natural e dialética
Naturforschung und Dialektik
Antes de examinarmos mais de perto a
posição de Goethe sobre esse
desenvolvimento, é aconselhável apontar
brevemente o sentido criativo ideológico e
poético de seu “entusiasmo pela natureza”.
É bem sabido que o estudo das ciências
naturais desempenhou um papel decisivo
em toda a sua vida, que seu trabalho sobre
a história do desenvolvimento foi um
precursor do darwinismo. Aqui precisamos
mostrar apenas algumas características
específicas dessas tendências em Goethe.
Acima de tudo, que ele não foi um
estudante e continuador da orientação
Bevor wir nun Goethes Stellung zu dieser
Entwicklung näher betrachten, ist es ratsam,
kurz auf die weltanschauliche und
dichterische schöpferische Bedeutung
seines „Naturenthusiasmus“ hinzuweisen.
Daß das naturwissenschaftliche Studium in
seinem ganzen Leben eine
ausschlaggebende Rolle spielte, daß seine
entwicklungsgeschichtlichen Arbeiten
Vorläufer des Darwinismus sind, ist
allgemein bekannt. Hier müssen nur einige
spezifische Züge dieser Tendenzen bei
Goethe aufgezeigt werden. Vor allem, daß
er kein Schüler und Fortsetzer der auch
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então progressiva das ciências naturais da
física matemática e dos primórdios da
química. Embora ele tenha se familiarizado
com as visões filosóficas da natureza dos
franceses e ingleses desde cedo, os pontos
de partida de sua pesquisa natural, que
também foram decisivos mais tarde, vêm da
filosofia natural - pietisticamente mediada -
da Renascença (Paracelso, etc.). Influências
de Hamann57, Lavater58 (fisiognomia) etc.
reforçaram essas tendências, e o tipo de sua
pesquisa na teoria da cor o colocou em
oposição aberta a Newton e ao método
matemático. Certo traço retrógrado está
assim impresso em seus esforços relativos à
filosofia da natureza desde o início. Por
outro lado, em todas essas tendências
um núcleo importante da luta entre a visão
dialética da natureza e a meramente
mecanicista. (Metamorfose das plantas -
contra Lineu59; metamorfose dos animais -
contra Cuvier, para Geoflroy de Saint-
Hilaire.) Ele, portanto, pertence à cadeia de
precursores das tentativas dialéticas de
examinar a natureza na Alemanha, que se
estende de Herder a Hegel.
damals fortschrittlichen Richtung der
Naturwissenschaft der mathematischen
Physik und der Anfänge der Chemie
gewesen ist. Obwohl er mit den
naturphilosophischen Ansichten der
Franzosen und Engländer früh bekannt
wurde, stammen die für später auch
entscheidenden Ausgangspunkte seines
Naturforschens aus der pietistisch
vermittelten - Naturphilosophie der
Renaissance (Paracelsus usw.). Einflüsse von
Hamann, Lavater (Physiognomik) usw.
verstärkten diese Tendenzen, und die Art
seiner Forschung in der Farbenlehre bringt
ihn in einen offenen Gegensatz zu Newton
und zu der mathematischen Methode. Damit
ist seinen naturphilosophischen
Bestrebungen von vornherein ein
bestimmter rückschrittlicher Zug
aufgeprägt. Andererseits steckt aber in allen
diesen Tendenzen ein bedeutsamer Kern
des Kampfes der dialektischen
Betrachtungsweise der Natur gegen die
bloß mechanistische. (Metamorphose der
Pflanzen - gegen Linne; Metamorphose der
Tiere gegen Cuvier, für Geoflroy de Saint-
Hilaire.) Er gehört also in jene Vorläuferkette
der dialektischen Betrachtungsversuche der
Natur in Deutschland, die von Herder bis zu
57
[NT] Ver nota 29.
58
[NT] Johann Kaspar Lavater (1741-1801), pastor, filósofo, poeta e teólogo. Foi um adepto do
magnetismo animal na Suíça. Considerado o fundador da fisiognomonia (arte de conhecer a
personalidade das pessoas através dos traços fisionômicos).
59
Vide nota 33.
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Hegel reicht.
Goethe chega a uma teoria da evolução que
deveria refletir o fluxo das coisas, pensar
sua rigidez dissolvida no movimento, sem
poder contudo penetrar até a dialética real.
Ele rejeita veementemente a mudança
dialética da quantidade para a qualidade em
Hegel. Quer sempre resolver as
contradições, cujo caráter fundamental ele
reconhece, (“Tudo é igual, tudo é desigual,
tudo útil e prejudicial, falante e mudo,
racional e irracional”,
Provérbios em prosa
)
de modo harmônico e não, como Hegel, o
movimento enquanto o princípio dinâmico
do desenvolvimento.
Goethe kommt zu einer Entwicklungslehre,
die den Fluß der Dinge widerspiegeln, ihre
Starrheit in Bewegung aufgelöst denken
soll, ohne dabei bis zur wirklichen Dialektik
vordringen zu können. Den dialektischen
Umschlag der Quantitätin Qualität bei Hegel
lehnt er schroff ab. Er will die Widersprüche,
deren grundlegenden Charakter er erkennt
(‚Alles ist gleich, alles ist ungleich, alles
nützlich und schädlich, sprechend und
stumm, vernünftig und unvernünftig“,
Sprüche in Prosa
) stets in Harmonie
auflösen und nicht wie Hegel in ihnen das
bewegende Prinzip der Entwicklung
erblicken.
Estado e sociedade
Staat und Gesellschaft
É aqui que se encontram os dois motivos
em sua essência, aos quais nos referimos
anteriormente. O programa de Goethe é ver
a sociedade e os acontecimentos históricos
"de cima", com o olhar frio e objetivo,
"desprovido de interesses", do cientista
natural (“Spinozista”). Esse “apartidarismo”
é tanto uma mera ilusão, que não apenas
não se prova por um momento quando se
considera a sociedade, como ilumina
retrospectivamente os limites de sua
dialética no conhecimento da natureza.
Mesmo o reacionário hegeliano de direita
Goeschel viu claramente que a rejeição de
Hier treffen sich nun jene beiden Motive
seines Wesens, auf die wir früher
hingewiesen haben. Goethe hat das
Programm, die Gesellschaft, die
geschichtlichen Ereignisse „von oben“, mit
dem kühl objektiven, von Interessen nicht
getrübten“ Auge des Naturforschers
(„spinozistisch“) zu betrachten. Diese
„Überparteilichkeit“ ist so sehr bloße
Illusion, daß sie sich nicht nur in der
Betrachtung der Gesellschaft keinen
Moment lang bewährt, sondern rückwirkend
die Grenzen seiner Dialektik auch in der
Naturerkenntnis beleuchtet. Schon der
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Goethe ao vulcanismo na geologia tem a
mesma fonte que sua aversão a qualquer
transformação revolucionária da sociedade;
e inúmeros enunciados de Goethe, assim
como toda sua poesia, mostram que ele
reconhecia o princípio do movimento
apenas nos indivíduos e em seu destino
pessoal e o aplicava como base de seu
método criativo, mas que sempre
considerou o estado, a sociedade, as
instituições sociais, etc., como poderes
imutáveis do destino. Obviamente, foi difícil
para os contemporâneos da Revolução
Francesa, de Napoleão, da Santa Aliança e,
finalmente, da Revolução de Julho fechar os
olhos para o fato da transformação dessas
estruturas. Aqui, porém, a “visão da
natureza” “apartidária”, “olímpica” se torna
um dever filisteu. “Natural” é a
transformação gradual, passo a passo. A
revolução é um mal; desordem, caos. Não
que Goethe fosse radicalmente hostil ao
conteúdo social da Revolução Francesa. Sua
admiração por Napoleão, pelo herdeiro e
seguidor da revolução, é obviamente
determinada em termos de conteúdo de
classe e não um entusiasmo literário pelo
gênio “demoníaco”, como os apologistas o
retratam.
reaktionäre rechte Hegelianer Goeschel hat
klar gesehen, daß Goethes Ablehnung des
Vulkanismus in der Geologie dieselbe
Quelle hat wie seine Abneigung gegen jede
revolutionäre Umgestaltung der
Gesellschaft. Und unzählige Äußerungen
Goethes sowie seine gesamte Dichtung
zeigen, daß er das Prinzip der Bewegung
nur in den Einzelpersonen und in ihrem
persönlichen Schicksal erkannt und als
Grundlage seiner schöpferischen Methode
angewendet hat, daß er sich aber Staat,
Gesellschaft, gesellschaftliche Institutionen
usw. stets als wesentlich unwandelbare
Schicksalsmächte vorstellte. Es war freilich
für den Zeitgenossen der Französischen
Revolution, Napoleons, der Heiligen Alliance
und schließlich der Julirevolution schwer,
vor der Tatsache der Wandlung dieser
Gebilde die Augen zu schließen. Hier aber
schlägt die „überparteiische“, olympische
Naturbetrachtung“ in ein philisterhaftes
Sollen um. „Naturhaft“ ist die allmähliche
schrittweise Umwandlung. Die Revolution
ist ein Übel; Unordnung, Chaos. Nicht, als ob
Goethe dem sozialen Inhalt der
Französischen Revolution gegenüber
radikal feindlich gewesen wäre. Seine
Verehrung für Napoleon, für den Erben und
Vollstrecker der Revolution ist
selbstverständlich inhaltlich klassenmäßig
bedingt und nicht ein literatenhaftes
Schwärmen für das „dämonische Genie“, wie
es die Apologeten darstellen.
György Lukács
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Essa veneração de Napoleão e a rejeição da
guerra de libertação contra Napoleão
surgiram da mesma fonte que os esforços
de reforma do primeiro período de Weimar.
Mas aqui como ali, Goethe não penetra até
as raízes; nem tanto quanto teria sido
possível no estágio de desenvolvimento da
burguesia alemã com os meios de
pensamento da época.
Diese Napoleonverehrung sowie die
Ablehnung des Freiheitskrieges gegen
Napoleon stammt aus derselben Quelle wie
die Reformbestrebungen der ersten
Weimarer Periode. Aber hier wie dort dringt
Goethe nicht bis zu den Wurzeln; nicht
einmal so weit, wie es auf der damaligen
Entwicklungsstufe des deutschen
Bürgertums mit seinen damaligen
Denkmitteln möglich gewesen wäre.
Não foi além de Voltaire, por exemplo:
reformas, transformação burguesa do
Estado e da sociedade; mas “de cima”, sem
que “a multidão” tenha nada a ver com isso.
A concepção dessas reformas também não
é apreendida a partir do ponto central, da
economia. Goethe reconheceu,
especialmente na velhice, a importância
técnica e revolucionária do capitalismo
(Canal de Suez, Canal do Panamá, fim de
"Fausto" II), e não desconhecia inteiramente
as implicações sociopolíticas deste
desenvolvimento técnico ("Os caminhos-de-
ferro criam a unidade alemã"; Eckermann,
23 de outubro de 182860). Mas a economia
do capitalismo, o significado da economia
como a “anatomia” da sociedade burguesa,
era um livro com sete selos para ele.
Embora tenha lido Necker61 quando era um
ministro (carta para Charlotte von Stein, 8
Er ist hier nicht weiter gekommen als etwa
Voltaire: Reformen, bürgerliche
Umgestaltung von Staat und Gesellschaft;
aber von oben“, ohne daß „die Menge“
damit aktiv zu tun haben dürfte. Dabei ist
die Konzeption dieser Reformen auch nicht
aus dem Mittelpunkt, aus der Ökonomie
erfaßt. Goethe erkannte zwar, insbesondere
im Alter, die technisch-umwälzende
Bedeutung des Kapitalismus (Suez-Kanal,
Panama-Kanal, Schluß von Faust II), ja er
war auch über die geselischaftlich politische
Tragweite dieser technischen Entwicklung
nicht ganz im unklaren (Eisenbahnen
schaffen die deutsche Einheit, Eckermann,
23. Oktober, 1828). Aber die Ökonomie des
Kapitalismus, die Bedeutung der Ökonomie
als „Anatomie“ der bürgerlichen
Gesellschaft war für ihn ein Buch mit sieben
Siegeln. Zwar hat er in seiner Ministerzeit
60
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit.
; p. 657.
61
[NT] Jacques Necker (1732-1804) foi um banqueiro suíço e estadista que serviu como ministro das
finanças de Luís XVI.
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de abril [! 8 de setembro (e 11 de
setembro)] 1785), mas mais tarde - em
nítido contraste com Hegel - o
desenvolvimento da economia na Inglaterra
passou-lhe despercebido. É por isso que a
inclusão dos problemas econômicos (a
agricultura capitalista nos
Anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister
etc.) não
pode tirar de suas obras a rigidez estática
do contexto social. Quanto mais poderosos
eram os acontecimentos mundiais que se
lhe associam, mais acentuado era o
contraste entre os destinos puramente
privados retratados em primeiro plano e o
contexto social figurado. (Revolução
Francesa em
Hermann e Dorothea
).
Necker gelesen (an Charlotte von Stein, 8.
[und] ıı. [September] 1785), aber später
ging in schroffem Gegensatz zu Hegel
die Entwicklung der Ökonomie in England
unbemerkt an ihm vorbei. Darum kann das
Hineinspielen ökonomischer Probleme
(kapitalistische Landwirtschaft in „Wilhelm
Meisters Lehrjahre“ usw.) seinen Werken
das statisch Starre des gesellschaftlichen
Hintergrundes nicht nehmen. Je mächtiger
die hineinspielenden Weltereignisse sind,
desto schroffer kommt gerade dieser
Kontrast zwischen den bewegt
dargestellten rein privaten Schicksalen im
Vordergrund und dem stehend gedachten
gesellschaftlichen Hintergrund zur Geltung
(Französische Revolution in „Hermann und
Dorothea“).
Panteísmo e religião
Pantheismus und Religion
Com isso voltamos ao ponto de partida, aos
fundamentos de classe do ser goethiano.
Esse contraste expressa ideológica e
poeticamente aquela tendência básica de
Goethe de que via o desenvolvimento na
linha da "modernização" e gradual
capitalização da Alemanha feudal-
absolutista de sua época de mãos dadas
com a ascensão e "florescimento" da
burguesia na corte. A forma “natural”,
“orgânica” de desenvolvimento do Estado e
da sociedade acaba por ser uma tendência
ideológica decorrente dessa posição de
Damit sind wir zum Ausgangspunkt, zur
Klassengrundlage des Goetheschen Seins
zurückgekehrt. Dieser Kontrast drückt
weltanschaulich und dichterisch jene
Grundtendenz Goethes aus, daß er die
Entwicklung in der Linie der
„Modernisierung“ und allmählichen
Durchkapitalisierung des feudal-
absolutistischen Deutschlands seiner Zeit
Hand in Hand mit dem Aufstieg, der „Blüte“
des Bürgertums in den Hofadel erblickt hat.
Die „naturhafte“, „organische“
Entwicklungsform von Staat und
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classe. Na verdade, verifica-se que essa
tendência foi transposta muito menos do
método científico natural de Goethe para
sua maneira de ver a sociedade, o Estado e
a história do que, inversamente, originou-se
dessa última e se tornou dominante no
primeiro; o que, é claro, não exclui
interações, uma vez que ambos derivam do
mesmo ser social. Essa conexão também se
mostra claramente na síntese filosófica da
visão de mundo de Goethe: [que] do seu
panteísmo ao "indiferentismo", leva à
tolerância das mais diversas ideologias
religiosas. Goethe sempre ao seu
spinozismo uma virada tal que Deus o
desaparece na unidade de Deus e da
natureza: seu panteísmo não é um “ateísmo
polido”, mas sim um compromisso
diplomático entre religião e pesquisa
natural imparcial. Com Goethe, isso cria uma
forma peculiar de compromisso ideológico
típico entre a burguesia e a religião. A
liberdade de pesquisa natural, que é
indispensável para o desenvolvimento das
forças produtivas, é reforçada sem
prejudicar as influências ideológicas da
Igreja e da religião sobre as massas. Com
Goethe, esse compromisso assume a forma
pela qual “com as múltiplas direções do
meu ser, não poderia ter apenas uma forma
de pensar: como poeta e artista sou um
politeísta, mas como cientista natural sou
panteísta... Se eu precisar de um deus para
a minha personalidade como homem moral,
Gesellschaft erweist sich also als eine aus
dieser Klassenlage entspringende
ideologische Tendenz. Ja es zeigt sich, daß
diese Tendenz viel weniger aus der
naturwissenschaftlichen Methode Goethes
in seine Betrachtungsweise von
Gesellschaft, Staat und Geschichte
hineingetragen wurde, als vielmehr
umgekehrt, aus dieser entstammend, in
jener herrschend geworden ist; was
selbstredend Wechselwirkungen nicht
ausschließt, da beide aus dem gleichen
gesellschaftlichen Sein herrühren. Dieser
Zusammenhang zeigt sich auch ganz klar in
der philosophischen Zusammenfassung von
Goethes Weltanschauung: [der] in seinem
Pantheismus zum „Indifferentismus“, d. h.
zur Duldung der verschiedensten religiösen
Ideologien führt. Goethe gibt seinem
Spinozismus immer eine solche Wendung,
daß in der Einheit von Gott und Natur Gott
nicht verschwindet: sein Pantheismus ist
kein „höflicher Atheismus“, vielmehr ein
diplomatisches Kompromiß zwischen
Religion und unbefangener Naturforschung.
Damit entsteht bei Goethe eine eigenartige
Form des typischideologischen
Kompromisses der Bourgeoisie mit der
Religion. Es wird die für die Entwicklung der
Produktivkräfte unentbehrliche Freiheit der
Naturforschung erzwungen, ohne dabei die
ideologischen Einflüsse von Kirche und
Religion auf die Massen zu beeinträchtigen.
Bei Goethe nimmt dieses Kompromiß die
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 421
isso também está cuidado” (carta a FH
Jacobi, 6. ı. 1813). Ele quer ter as mãos
completamente livres dos laços religiosos
na ciência e na arte, sem entrar em conflito
aberto com a religião, com as estruturas da
sociedade civil que ele apoia
ideologicamente (casamento, etc.). Engels,
portanto, tem razão ao dizer: “Goethe não
gostava de lidar com 'Deus', a palavra o
incomodava, ele se sentia em casa no
'humano', e essa humanidade, essa
emancipação da arte dos grilhões da
religião é o que constitui a grandeza de
Goethe” (Die Lage Englands, Werke II, 428.)
Mas Goethe é, como Engels mostra mais
tarde na crítica ao livro de Grün sobre
Goethe, de natureza ambivalente: “ora
colossal, ora mesquinho”, e cria por meio
esta ambiguidade, em sua rejeição da
religião, forneceu uma base ideológica para
a burguesia ale do capitalismo em
declínio: negar a religião de uma forma "não
vinculativa" e, ao mesmo tempo, deixá-la
ingressar de uma forma "estética",
"espiritual", "mítica", "simbólica "etc. Como
uma espécie de religião, esse panteísmo
realmente se torna a religião de uma parte
da "Alemanha educada", de acordo com a
necessidade; até mesmo Heine, que viu
claramente esse perigo no panteísmo
goetheano, sucumbiu a ele mais de uma
vez.
Form auf, er könne „bei den mannigfaltigen
Richtungen meines Wesens nicht an einer
Denkweise genug haben: als Dichter und
Künstler bin ich Po- Iytheist, Pantheist
hingegen als Naturforscher... bedarf ich
eines Gottes für meine Persönlichkeit als
sittlicher Mensch, so ist dafür auch gesorgt“
(Brief an F. H. Jacobi, 6. ı. 1813). Er will also
für sich in Wissenschaft und Kunst
vollkommen freie Hand von religiösen
Bindungen haben, ohne deshalb in einen
offenen Konflikt mit der Religion, mit den
von ihr ideologisch unterstützten Gebilden
der bürgerlichen Gesellschaft (Ehe usw.) zu
geraten. Engels sagt daher mit vollem
Recht: „Goethe hatte nicht gern mit ‚Gott‘ zu
tun, das Wort machte ihn unbehaglich, er
fühlte sich nur im Menschlichen heimisch,
und diese Menschlichkeit, diese
Emanzipation der Kunst von den Fesseln
der Religion macht eben Goethes Größe
aus.“ (Die Lage Englands, Werke II, 428.)
Aber Goethe ist, wie es Engels später, in der
Kritik des Grünschen Goethe- Buches
nachweist, von zwiespältiger Natur: „bald
kolossal, bald kleinlich“, und schafft durch
diese Zwiespältigkeit in seiner Ablehnung
der Religion eine ideologische Grundlage
für die deutsche Bourgeoisie des
niedergehenden Kapitalismus: die Religion
in einer „unverbindlichen“ Form zu
verneinen und zugleich in einer
„ästhetischen“, „seelischen“, „mythischen“,
„symbolischen“ usw. Form wieder
György Lukács
422 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
hereinzulassen. So wird dieser Pantheismus
als eine Art Religion je nach Bedarf wirklich
zur Religion eines Teiles des „gebildeten
Deutschlands“, selbst Heine, der diese
Gefahr im Goctheschen Pantheismus klar
erblickt hat, ist ihr mehr als einmal erlegen.
Método criativo
Schöpferische Methode
A mesma ambiguidade, cuja raiz
reconhecemos no ser social de Goethe, se
mostra em seu método criativo. Sua
principal característica é um realismo sadio.
Goethe sempre quer partir do exterior, da
realidade objetiva e figurar tudo o que é
“interior” como sua consequência, seu
reflexo. Ele diz: O clássico é sadio, o
romântico é doente. Ovídio permaneceu
classicamente até no exílio: ele não busca o
seu infortúnio em si mesmo, mas no
distanciamento da capital do mundo... O
universal e o particular coincidem; o
particular é o universal, aparecendo em
diferentes condições... portanto, também o
mais particular que acontece, aparece
sempre como imagem e semelhança do
mais universal...” (Provérbios em prosa). Por
consequência, “o poeta”, explica Goethe
(Eckermann, 11 de junho de 1825), “deve
abordar o particular e, quando este for algo
sadio, expressará através dele o
universal”62.
Dieselbe Zwiespältigkeit, deren Wurzel wir
im gesellschaftlichen Sein Goethes erkannt
haben, zeigt sich in seiner schöpferischen
Methode, Ihr Grundzug ist ein gesunder
Realismus. Goethe will stets von der
äußeren, von der objektiven Wirklichkeit
ausgehen und alles „Innere“ als dessen
Folge, dessen Reflex gestalten. So sagt
Goethe: „Das Allgemeine und Besondere
fallen zusammen: Das Besondere ist das
Allgemeine unter verschiedenen
Bedingungen erscheinend,.... deswegen
auch das Besonderste, das sich creignet,
immer als Bild und Gleichnis des
Allgemeinsten auftritt... .“ (Sprüche in
Prosa). „Der Poet“, führt Goethe darum ganz
konsequent aus (Eckermann, ıı. ı. [! 6.]
1825), „soll das Besondere ergreifen, und
wird, wenn dieses nur etwas Gesundes ist,
darin ein Allgemeines darstellen.“
62
[NT] ECKERMANN;
Conversações... op. cit
.; p. 164.
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 423
A aplicação desses princípios é onde reside
a grandeza poética de Goethe. Aqui ele
herda a poesia realista-revolucionária da
burguesia em ascensão. A posição de
Goethe nesse processo de desenvolvimento
não é de modo algum clara e simples. Por
um lado, ele se recusa a seguir a transição
na direção do idealismo (ao contrário de
Schiller, também ao romantismo), por outro
lado, ele não está em condições de figurar
de modo consistente o movimento dialético
do conteúdo que tem em mente com meios
realistas.
In der Durchführung dieser Prinzipien liegt
die dichterische Größe Goethes. Er tritt hier
das Erbe der realistisch-revolutionären
Dichtung der aufstrebenden Bourgeoisie an.
Goethes Stellung in diesem
Entwicklungsprozeß ist aber keineswegs
eindeutig und einfach. Einerseits lehnt er es
ab, auf dem Weg der Dialektik das
Umschwenken in die Richtung des
Idealismus mitzumachen (Gegensatz zu
Schiller, auch zur Romantik). Andererseits ist
er nicht imstande, die dialektische
Bewegtheit des Inhalts, der ihm vorschwebt,
konsequent mit realistischen Mitteln zu
gestalten.
Este realismo é de grande liberdade e
generosidade nos princípios da
configuração. Em sua crítica a Grün, Engels
também aponta que o homem goethiano é
um homem de carne e osso real e não uma
abstração feeuerbachiana. No entanto, esse
grande método criativo sempre falha
quando Goethe é tematicamente forçado a
abordar conteúdos em relação aos quais
sua dialética e seu realismo falham por
razões ideológicas. Goethe descreve a
atmosfera sensível e espiritual de uma
época, de uma classe social, em todos os
seus pormenores de uma forma cativante e
generosa, todavia não retrata a sua
totalidade, mas sim a faz figurar obliqua,
unilateral e estaticamente (Götz von
Berlichingen, Wilhelm Meister, etc.). Nesse
Dieser Realismus ist frei und großzügig in
den Gestaltungsprinzipien. Engels weist in
seiner Grün-Kritik mit Recht darauf hin, daß
der Goethesche Mensch ein Mensch von
wirklichem Fleisch und Blut und nicht eine
Feuerbachsche Abstraktion sei. Diese
großartige schöpferische Methode muß
jedoch stets versagen, wenn Goethe
thematisch gezwungen ist, an Inhalte
heranzutreten, denen gegenüber seine
Dialektik und sein Realismus aus
weltanschaulichen Gründen versagen. Die
sinnliche wie geistige Atmosphäre einer
Zeit, einer Gesellschaftsschicht schildert
Goethe oft in allen Einzelheiten packend
und großzügig, ihre Gesamtheit gestaltet er
aber überhaupt nicht oder schief, einseitig,
statisch (Götz von Berlichingen, Wilhelm
György Lukács
424 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
aspecto, Goethe está entre os grandes
realistas dos séculos XVIII e XIX (Defoe,
Fielding, Balzac).
Meister usw.). In dieser Hinsicht steht
Goethe tief unter den großen Realisten des
18. und 19. Jahrhunderts (Defoe, Fielding,
Balzac).
Assim, o método criativo de Goethe
apresenta a mesma contradição de sua
visão de mundo. E aqui como ali seu efeito
no campo burguês está ligado aos lados
débeis, filisteus, comprometedores de seu
ser contraditório ou, na melhor das
hipóteses, à mistura de características
filisteias e grandiosas. Para o proletariado,
é importante encontrar, ao mesmo tempo, a
ligação e a distinção corretas com críticas
severas e processar a grandeza que em
Goethe de forma materialista e dialética.
So zeigt sich in Goethes schöpferischen
Methoden derselbe Gegensatz wie in seiner
Weltanschauung. Und hier wie dort knüpft
seine Wirkung im bürgerlichen Lager an die
schwächlichen, philisterhaften,
kompromißlerischen Seiten seines
widerspruchsvollen Wesens an oder
bestenfalls an die Vermischung der
philisterhaften und großartigen Züge. Für
das Proletariat kommt es darauf an, mit
scharfer Kritik den richtigen
Zusammenhang und zugleich die richtige
Scheidung zu finden und das Große an
Goethe, materialistisch dialektisch zu
verarbeiten.
Illustrierte Neue Welt, 2/1932
Goethes Weltanschauung. In: KLEIN: Berlin; Weimar: Aufbau, 1990. pp. 433-441.
Publicado originalmente em Illustrierte Neue Welt, 2/1932. [1932c]
Lukács sobre Goethe
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Goethe und die Gegenwart
Einige grundsätzliche Bemerkungen zu den Goethe-Vorträgen der deutschen Sender
Goethe e o presente
Algumas observações básicas sobre as palestras sobre Goethe nas emissoras alemãs
Nesse ano, as portas das estações de rádio
estarão amplamente abertas aos papas e
aos filisteus de Goethe. Com isso, os
programas de rádio de todas as estações
alemãs receberão este ano a sua espinha
dorsal espiritual, por mais fraca que seja.
Uma torrente de discursos cairá sobre os
ouvintes, a única saída é desligá-los.
In diesem Jahr werden den Goethe-Päpsten
und den Goethe-Philistern die Tore der
Funkhäuser weit geöffnet. Mit Goethe
werden die Rundfunkprogramme aller
deutschen Sender in diesem Jahr ihr, wenn
auch noch so schwaches, geistiges Rückgrat
erhalten. Ein Strom von Reden wird sich
über die Hörer ergießen, denen als Ausweg
nur noch das Abstellen bleibt.
O que é que os ouvintes que trabalham
sabem sobre Goethe? Ouviram-no uma vez
na escola e de uma forma tão aborrecida
que muito que o esqueceram. O que é
Goethe para nós, um grande poeta que foi
também um ministro! - temos outras
preocupações, será a resposta da maioria
dos ouvintes trabalhadores. Goethe tornou-
se e permaneceu parte integrante da
educação da classe dominante. Também
este ano, a rádio fingirá que todo o
trabalhador ouvinte leva o seu Goethe no
bolso do seu colete, e apenas espera que
um papa no assunto lhe apresente o exame
mais preciso da moralidade e da virtude na
vida de Goethe, que nunca foram violadas.
Was wissen die werktätigen Hörer von
Goethe? Irgendwann hat man das einmal in
der Schule gehört und zudem in einer so
langweiligen Art, daß man es längst
vergessen hat. Ein großer Dichter, der
gleichzeitig Minister war! wir haben
andere Sorgen, was geht uns Goethe an,
wird die Antwort der meisten Arbeiterhörer
sein. Goethe ist ein fester Bestandteil der
Bildung der herrschenden Klasse geworden
und geblieben. Und auch in diesem Jahr
wird .der Rundfunk so tun, als wenn jeder
Arbeiterhörer seinen Goethe in der
Westentasche trägt und nur darauf wartet,
daß ihm ein Goethe-Papst eine genaueste
Untersuchung einer nie verletzten Moral
und Tugend in Goethes Leben vorsetzt.
György Lukács
426 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
Mesmo assim, é importante tratar mais de
perto e de maneira crítica essas palestras
sobre Goethe no rádio como manifestações
de um espírito profundamente reacionário,
e isso será feito brevemente aqui. Como no
caso de Hegel, a “opinião pública” burguesa
tentará compilar uma imagem
uniformemente reacionária a partir dos
lados retrógrados da personalidade
contraditória de Goethe e usá-la como um
modelo para o presente. Sua tarefa é muito
mais fácil desta vez. Porque a
reinterpretação de Goethe como o santo
padroeiro do filisteísmo reacionário tem
uma velha tradição na Alemanha. Hoje
apenas precisa ser moldado de acordo com
as necessidades fascistas atuais, mas
também não é necessário levar a
reinterpretação tão longe para transformar
Goethe, assim como Hegel, em um fascista
ativo. A tarefa que Goethe sempre assumiu
nas lutas intelectuais da burguesia alemã
também pode ser cumprida hoje: ele serve
de modelo para toda a pequena burguesia
que não se preocupa com política” ou
“interesses gerais”, mas que procura e
encontra no “desdobramento da
personalidade” um campo de atividade que
seja “superior” ao dessas “lutas inferiores”.
Ao mesmo tempo, no entanto, tal atividade
deve se conciliar com as “demandas do dia”.
Ou seja, a "personalidade" polida de Goethe
adapta-se a qualquer ordem social (claro
que apenas a capitalista), com a condição
Aber dennoch ist es wichtig, sich mit diesen
Goethe-Vorträgen des Rundfunks als
Erscheinungen eines zutiefst reaktionären
Geistes näher und kritisch zu befassen, und
das soll hier kurz geschehen. Die
bürgerliche „öffentliche Meinung“ wird,
ebenso wie bei Hegel, versuchen, aus den
rückständigen Seiten der
widerspruchsvollen Persönlichkeit Goethes
ein einheitlich reaktionäres Bild
zusammenzustellen und es als Vorbild der
Gegenwart entgegenzuhalten. Ihre Aufgabe
ist diesmal viel leichter. Denn die
Umdeutung Goethes zum Schutzpatron des
reaktionären Philistertums hat in
Deutschland eine alte Tradition. Sie m
heute bloß den aktuell-faschistischen
Bedürfnissen entsprechend weitergebildet
werden, es ist aber auch nicht notwendig,
die Umdeutung so weit zu treiben, um aus
Goethe einen aktiven Faschisten, wie aus
Hegel, zu machen. Die Aufgabe, die Goethe
in den geistigen Kämpfen der deutschen
Bourgeoisie stets einnahm, läßt sich auch
heute erfüllen: er dient als Muster für alle
Kleinbürger, die sich nicht um „Politik“, nicht
um „allgemeine Interessen“ kümmern,
sondern in der „Entfaltung der
Persönlichkeit“ ein Tätigkeitsfeld suchen
und finden, das „höher“ steht als diese
„niedrigen Kämpfe“. Zugleich soll aber eine
solche Tätigkeit mit den „Forderungen des
Tages“ versöhnen. Das heißt, die von
Goethe erzogene „Persönlichkeit“ paßt sich
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 427
de que ele erga um reino de sua própria
personalidade “livre”, “atemporal” “atrás”,
“acima” dessa passividade pública.
einer beliebigen Gesellschaftsordnung
(freilich nur einer kapitalistischen) an, mit
dem Vorbehalt, daß er „hinter“, „über“
dieser öffentlichen Passivität sich ein Reich
der eigenen „freien“, „zeitlosen“
Persönlichkeit errichtet.
Este modelo goethiano surge - como
sempre quando a burguesia toma os
modelos de seu período revolucionário -
enfatizando os traços retrógrados e
comprometedores de uma figura como os
únicos essenciais, tudo o mais, tanto o traço
progressista e revolucionário quanto as
causas sociais do compromisso, deve ser
omitido. Ambos também ocorrem no caso
de Goethe. O fator mais importante é a
ocultação do compromisso e suas causas.
Porque os elementos progressistas da visão
de mundo de Goethe residem - em parte -
em áreas que também são aceitáveis para a
burguesia alemã de hoje.
Dieses Goethesche Vorbild entsteht wie
stets, wenn die Bourgeoisie ihre Vorbilder
aus ihrer revolutionären Periode holt -
dadurch, daß die rückständigen,
kompromißlerischen Züge einer Gestalt als
die allein wesentlichen hervorgehoben, alles
andere, sowohl das Fortschrittliche und
Revolutionäre wie die gesellschaftlichen
Ursachen des Kompromisses, weggelassen
werden. Auch bei Goethe geschieht beides.
Dabei ist das Verschweigen des
Kompromisses und seiner Ursachen das
wichtigere Moment. Denn die
fortschrittlichen Elemente von Goethes
Weltanschauung liegen - teilweise auf
Gebieten, die auch für die heutige deutsche
Bourgeoisie tragbar sind.
A falsificação da imagem de Goethe consiste
principalmente no fato de que a
ambiguidade de sua posição nas lutas de
classes de seu tempo é obscurecida. A
ambiguidade que, como enfatiza Marx,
consiste no fato de que ele às vezes fugia
hostilmente” da realidade alemã de seu
tempo, “se rebela”, “derrama sobre ela sua
zombaria amarga”, mas logo se torna
“amigo” dela, “se lança nela”, sim ele a
Die Verfälschung von Goethes Bild besteht
also vor allem darin, daß die Zwiespältigkeit
seiner Stellung in den Klassenkämpfen
seiner Zeit verwischt wird. Die
Zwiespältigkeit, die, wie es Marx
hervorhebt, darin besteht, daß er bald vor
der deutschen Wirklichkeit seiner Zeit
„feindselig flieht“, „gegen sie rebelliert“,
seinen „bitteren Spott über sie ausgießt“,
bald aber sich mit ihr „befreundet“, sich „in
György Lukács
428 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
“celebra” e a “defende”. Como
consequência dessa dicotomia, Goethe
torna-se, segundo a caracterização de Marx,
“ora colossal, ora mesquinho, ora
desafiador, gênio zombeteiro, que despreza
o mundo, ora mais atencioso, frugal, filisteu
estreito”. E na medida em que o princípio
de discórdia é afastado da vida de Goethe,
todo o seu desenvolvimento é falsificado. A
catástrofe decisiva na vida de Goethe é que
ele tentou, nos primeiros anos de Weimar,
realizar pelo menos parte das demandas
econômicas e sociais da classe burguesa
daquela época, ainda que "de cima",
falhando vergonhosamente nessa
empreitada. E agora também a tentativa
ansiosa para se manter longe de combates
desse tipo desaparece da imagem burguesa
de Goethe. Não é mencionado que o Goethe
"olímpico" do período tardio era um homem
resignado que - com vários graus de
sucesso - se esforçou para separar sua vida
privada e, nesse âmbito, manter e
desenvolver os ideais da burguesia
progressista. A debilidade da classe
burguesa da época quebrou em dois o
desenvolvimento do maior poeta alemão.
Se, no entanto, essa ruptura não for apenas
encoberta, mas idealizada como modelo,
pode surgir daí uma tendência reacionária -
não importa se defendida por professores
ligados à tradição ou por figuras literárias
anarquistas. O proletariado revolucionário
quer aprender dialeticamente com o legado
sie schickt“, ja sie „feiert“ und „verteidigt“.
Infolge dieses Zwiespalts wird Goethe, nach
der Charakteristik von Marx, „bald kolossal,
bald kleinlich, bald trotziges, spottendes,
weltverachtendes Genie, bald
rücksichtsvoller, genügsamer, enger
Philister“. Und indem das Prinzip des
Zwiespalts aus Goethes Leben
wegretouschiert wird, wird seine ganze
Entwicklung verfälscht. Die entscheidende
Katastrophe in Goethes Leben, daß er in
den ersten Weimarer Jahren versucht hat,
wenigstens einen Teil der ökonomischen
und sozialen Forderungen der bürgerlichen
Klasse dieser Zeit, wenn auch „von oben“ zu
verwirklichen, daß er mit diesem Bestreben
schmählich gescheitert ist und von nun an
ängstlich bemüht war, sich von Kämpfen
dieser Art fernzuhalten, verschwindet aus
dem Goethe-Bild der Bourgeoisie. Sie
verschweigt, daß der olympische“ Goethe
der Spätzeit ein Resignierter gewesen ist,
der mit sehr wechselndem Erfolg -
bemüht war, sein Privatleben für sich
abzugrenzen und in diesem Privatleben die
Ideale der progressiven Bürgerlichkeit
aufrechtzuerhalten und weiterzuentwickeln.
Die Schwäche der bürgerlichen Klasse
dieser Zeit hat die Entwicklung des größten
deutschen Dichters entzweigebrochen. Wird
aber dieser Bruch nicht nur verkleistert,
sondern sogar zur Vorbildlichkeit idealisiert,
so kann daraus nur eine reaktionäre
Tendenz entstehen ganz einerlei, ob sie
Lukács sobre Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021 | 429
da época progressista de desenvolvimentos
anteriores. Rejeita categoricamente o ponto
de vista de Mehring, como se Goethe,
falsificado pela burguesia, esperasse uma
restauração, uma “ressurreição” na
sociedade socialista. A restauração de
Goethe significa uma restauração das
contradições em sua posição de classe, as
declarações e soluções contraditórias que
resultaram para ele.
von traditionsgebundenen Professoren oder
anarchistelnden Literaten vertreten wird.
Das revolutionäre Proletariat will aus dem
Erbe der fortschrittlichen Epoche früherer
Entwicklungen dialektisch lernen. Es lehnt
dabei den Standpunkt Mehrings, als ob den
von der Bourgeoisie verfälschten Goethe in
der sozialistischen Gesellschaft eine
Wiederherstellung, eine „Auferstehung“
erwarten würde, kategorisch ab. Die
Wiederherstellung Goethes bedeutet eine
Wiederherstellung der Widersprüche seiner
Klassenlage, der widerspruchsvollen
Stellungnahmen und Lösungen, die sich
daraus für ihn ergeben haben.
Nesta base - mas somente nesta base -
Goethe é uma parte muito importante do
legado que o proletariado revolucionário
deve absorver para construir sua cultura
socialista. Mas se trata de uma absorção
dialético-crítico: um exame materialista e
crítico da herança, uma eliminação
implacável de tudo que é obsoleto ou
reacionário, uma absorção crítica e um
desenvolvimento adicional dos elementos
progressivos da obra da vida de Goethe. A
extensão e o conteúdo desse legado ainda
não podem ser avaliados hoje - quando
ainda não fizemos o primeiro trabalho
preparatório. Mas a rejeição mais implacável
da propaganda radiofônica reacionária de
Goethe não deve nos levar à idealização
realizada por Mehring ou à rejeição cega
Auf dieser Grundlage aber nur auf dieser
Grundlage - ist Goethe ein sehr wichtiges
Stück jenes Erbes, das das revolutionäre
Proletariat antreten, für sich verarbeiten
muß, um seine sozialistische Kultur
aufzubauen. Dies ist aber ein dialektisch-
kritisches Verarbeiten: eine materialistische
Sichtung und Kritik des Erbes, ein
unnachsichtiges Ausscheiden alles
Veralteten oder Reaktionären, ein kritisches
Verarbeiten und Weiterbilden der
fortschrittlichen Elemente von Goethes
Lebenswerk. Umfang und Inhalt dieses
Erbes läßt sich heute wo von uns nicht
einmal die ersten Vorarbeiten gemacht
worden sind noch nicht abschätzen. Aber
die rücksichtsloseste Ablehnung der
reaktionären Goethe-Propaganda im
György Lukács
430 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 343-431 - jul./dez. 2021
desse legado.
Rundfunk darf uns weder zu einer
Mehringschen Idealisierung noch zu einem
blinden Verwerfen dieses Erbes verleiten.
Arbeiter-Sender, 2/1932
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Entrevista de István Mészáros a Giorgio Riolo*
Esta entrevista, a cuja transcrição reproduzimos com alguns cortes, foi realizada
em dezembro de 1997 em Milão, por ocasião de um congresso internacional
organizado pela Associazione Culturale Punto Rosso
1
para o qual havia sido convidado
István Mészáros. Nessa entrevista se faz referência a
Para além do capital
, livro que o
discípulo de Lukács havia publicado recentemente, um portentoso trabalho que pode
ser considerado a suma da sua atividade de pensador e de militante.
Giorgio Riolo
2
Lukács foi definido como “o homem bom”, mas eu pergunto: que relação você
entre sua concepção de mundo e sua concepção da função, responsabilidade e caráter
do intelectual e, sobretudo, o seu modo de se pôr em relação aos outros? Diz-se
frequentemente, de fato, que enquanto Bloch
3
, homem de grande cultura e
inteligência, possuía uma elevada consideração de si mesmo e era muito presunçoso,
Lukács impressionava a todos que dele se aproximassem por sua extraordinária
modéstia. Este é um aspecto importante, segundo penso, e faz parte de uma
concepção elevada da cultura. Não é uma posição aristocrática, mas é, ao contrário,
fundamentalmente democrática. Interessa-nos saber de você alguma coisa a mais
sobre a sua personalidade, sobre seu tipo humano, de preferência através de alguns
episódios significativos da sua vida.
* Tradução de Carlos Eduardo O. Berriel. Revisão técnica de Ronaldo Vielmi Fortes. Publicada
originalmente em: https://www.giorgioriolo.it/immagini/lettura/intervistaaMeszarossuLukacs.pdf
1
Congresso (VVAA.
Globalizzazione e transizione
, Edizioni Punto Rosso 1998).
2
Giorgio Riolo é presidente da Associazione Culturale Punto Rosso. Ensinou história e filosofia em
escolas públicas e privadas italianas e publicou artigos e ensaios em uma variedade de periódicos.
Atualmente, dirige a Universidade Popular Livre, onde também leciona vários cursos de filosofia, história
do marxismo e literatura. É diretor da Edizioni Punto Rosso, uma editora especializada em livros
políticos.
3
BLOCH, Ernst (1885-1977), filósofo alemão. [As notas biográficas foram preparadas por I. Eörsi, em
1982, para o livro
Pensamento vivido
e acrescentadas nesta entrevista pelos editores.]
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.649
István Mészáros & Giorgio Riolo
432 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 431-453 - mar. 2022
Mészáros: Para este propósito, é necessário levar em consideração tanto a
literatura quanto a relação entre política e poesia e entre política e trabalho intelectual
na Hungria naquele período. O grande exemplo para Lukács era o poeta Endre Ady
4
,
uma pessoa que ele muito admirava e que era a personificação desse espírito
democrático, inclusive no campo revolucionário. Ady era um homem que, na sua luta
contra o poder constituído, contra aquilo que definia como o “pântano húngaro”, havia
sempre refutado os compromissos. Era necessário, pois, ainda que o criticando do
ponto de vista intelectual, valorizar a sua paixão política e o seu alto senso moral.
Lukács, que possuía uma imensa admiração por Ady, como consta desde seus
escritos juvenis, desejava encontrá-lo, e certa vez um pintor seu amigo, que havia
retratado Ady, tentou, para agradá-lo, promover um encontro entre os dois. Naquela
ocasião, porém, Ady estava provavelmente muito bêbado para se dar conta de quem
estava diante de si e Lukács, por sua vez, timidíssimo, havia se retirado em um canto.
Portanto, nada aconteceu.
Lukács fez, entretanto, amizade com os famosos músicos Bartók
5
e Kodály
6
, os
quais, como ele próprio, foram também grandes rebeldes, muito íntegros e de natureza
nobre, bem distantes de qualquer compromisso com o existente.
Quanto à tradição filosófica húngara, é necessário admitir que esta era bastante
insignificante, porque jamais chegou a se exprimir como escola, como corrente etc. Um
ou outro poeta iluminado, refletindo sobre os problemas da época e sobre as
contradições da sociedade, escreveu, além de obras poéticas, também alguns ensaios.
Na obra do próprio Ady, existem sete, oito volumes de ensaios voltados para temas
políticos e de crítica literária. Também Sándor Petöfi
7
, ilustre poeta do renascimento
húngaro, era um notável pensador, embora tenha morrido no campo de batalha antes
dos 30 anos de idade.
4
ADY, Endre (1877-1919), o mais importante poeta lírico húngaro do início deste século.
5
BARTÓK, Béla (1881-1945), compositor húngaro mundialmente conhecido. De 1907 a 1934 foi
professor de piano na Escola Superior de Música de Budapeste. Emigrou para os Estados Unidos em
1940.
6
KODÁLY, Zoltán (1882-1967), compositor, sendo, junto com Bartók, o representante mais importante
da moderna música húngara. Como pesquisador da música popular, coletou antigas canções populares
húngaras, que mais tarde foram publicadas em vários volumes pela Academia de Ciência. Kodály
também era professor de música e foi graças a ele que, na Hungria, as aulas de música nas escolas se
tornaram parte importante da educação. Foi professor na Escola Superior de Música da Hungria.
7
PETÖFI, Sándor (1823-1849), poeta húngaro, importante figura da Revolução de 1848. Em 1844
tornou-se redator e, a partir de 1845, viveu como escritor
free lance
. Morreu em combate na Transilvânia
como major do exército revolucionário húngaro.
Entrevista de István Mészáros a Giorgio Riolo
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 431-453 - mar. 2022 | 433
citei Ady, estimado como poeta e pensador. Recordarei também o fino
intelecto de Attila József
8
, um dos pensadores húngaros mais estimados desse
período, que se distinguia por um elevado senso moral. Falei dele no meu livro
Para
além do capital
. Ele conectava os problemas da sociedade com as questões pessoais.
Lukács foi o primeiro a compreender a poesia de József, um gigante da literatura
mundial do século XX. O poeta, muito jovem ainda, nos anos 20, foi se encontrar com
Lukács em Viena e este último o encorajou no caminho escolhido e lhe apontou o valor
dos seus ensaios críticos.
József era um socialista politicamente ativo, mas em um certo momento foi
injustamente expulso do partido. Este fato representou para ele uma tragédia
irreparável e foi uma das causas que determinaram o seu suicídio em 1937, aos 32
anos de idade. Talvez József pudesse estar vivo ainda hoje, se não tivesse escolhido
esse fim. József havia compreendido muito bem o perigo mortal que o nazifascismo
representava para o mundo e assistir a essa precipitação na direção de um desastre
total, sem que nenhuma força fosse capaz de se opor, contribuiu muito para o seu
gesto trágico.
Lukács era um bom crítico literário e possuía também uma sensibilidade estética
tão refinada que lhe possibilitava um olhar mais amplo, de fazer conexões mais
profundas. Os seus trabalhos mais interessantes estão, de fato, nas relações entre arte,
filosofia e história. Essa capacidade lhe permitiu valorizar, desde muito jovem, além
das grandes obras de József, também as obras de outros poetas e escritores. Não
escapava a Lukács nem mesmo o aspecto problemático da obra de József, pois na
juventude conhecia a sua visão do mundo e a sua rebelião. zsef, quando foi expulso
da Universidade de Szeged, lançou um desafio poético que terminava com a proposta:
“Eu ensinarei a todo o povo e não à classe média”. Como estudante universitário teria
se tornado, de fato, professor das classes médias. Também nele a rebelião era
inseparável da moralidade.
No que tange a Lukács, a sua inspiração principal, desde muito jovem, foi a de
escrever um tratado de ética. Este projeto esteve presente durante toda a sua vida,
acompanhando-o inclusive na tarda idade, mas sempre houve alguma coisa que
8
JÓZSEF, Attila (1905-1937), juntamente com Ady, foi o mais importante poeta lírico húngaro do
século XX. Foi membro do PC ilegal. Suicidou-se.
István Mészáros & Giorgio Riolo
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impediu a sua realização. Estou convencido, porém, de que, mesmo que vivesse até os
150 anos, o teria conseguido escrevê-la como pretendia. A ontologia, efetivamente,
que deveria ser apenas uma introdução à ética, foi na realidade uma premissa
realmente longa, com cerca de 3.000 páginas. Os escritos de ética que nos chegaram,
como notas e apontamentos são, entretanto, de fato, de escassa substantividade.
Ele conseguiu fazer apenas extratos de obras referentes à ética, de Aristóteles a
Agostinho, a Pascal, a Montaigne etc.
Mészáros: Certamente Lukács conhecia a literatura filosófica sobre ética, mas isso
não era suficiente para compor a sua obra, a
Ética
, como deveria ter sido. Era
impossível escrever, de qualquer forma, nas circunstâncias de então, um tratado de
ética, como escreveu no ensaio
O filósofo do tertium datur
, logo após ter deixado a
Hungria em 1957, pois, para poder enfrentar os problemas mais abstratos da ética,
seria necessário antes se empenhar em uma análise sistemática dos problemas da
política. Você pode imaginar se isso era possível de ser feito na Hungria naquele
período. Isso era impensável não apenas pelas evidentes circunstâncias externas, mas
inclusive por questões “internas”, isto é, pela interiorização, por parte de Lukács, do
tipo de desenvolvimento soviético. Essas foram as duas questões que obstaculizaram
a realização de seu grande projeto.
Ele começou a trabalhar em um esboço de ética nos tempos de Heidelberg,
quando estava em relação com Max Weber, mas mesmo então acabou escrevendo um
ensaio sobre estética, dado que sobre o tema tinha já muito trabalho preparatório.
No primeiro decênio do século, Lukács havia produzido muitos trabalhos
literários, tendo lido muitíssimo e adquirido um conhecimento enciclopédico da
literatura, seja húngara, seja mundial. Ainda no período de juventude, escreveu,
inclusive, diversos volumes de ensaios e uma importante história do drama moderno,
que foi publicada em 1910, muito antes de
A
teoria do romance
.
Lukács, entretanto, considerava esses trabalhos de menor importância, apenas
como um passo na direção da síntese ética. Ele continuava a se ocupar dos problemas
de ética de rias maneiras. A um certo ponto, todavia, também Max Weber o
aconselhou a se dedicar a outra coisa, dado que não conseguia levar adiante aquele
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Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 431-453 - mar. 2022 | 435
projeto.
Mais tarde publicou,
A teoria do romance
, que fazia parte de um complexo de
projetos e que obteve um grande sucesso, inclusive do ponto de vista das
Geisteswissenschaften
(ciências do espírito ou humanas). Muitos grandes estudiosos
da história da literatura e da arte consideram esse ensaio uma verdadeira obra-prima.
Entrementes explodiu a Guerra e em seguida a Revolução. Naquela ocasião, os
caminhos com Max Weber e Thomas Mann se separaram, dado que os dois grandes
intelectuais alemães eram então chauvinistas e ardorosos defensores da causa alemã.
Lukács, ao contrário, sendo húngaro, era fortemente cético e pensava que a Guerra só
poderia conduzir a novos desastres.
Para Lukács a questão da responsabilidade dos intelectuais era por demais
importante e ele sempre viveu de acordo com tal ideal. Durante a Guerra muitos
intelectuais, ao contrário, abdicaram disso, pelo menos temporariamente. Sabemos
bem, de fato, que Thomas Mann recuou de seu caminho, vindo a se tornar um dos
escritores de referência para Lukács. Completamente diferente se deu com relação a
Max Weber, o qual não apenas foi um apoiador da Guerra mas se revelou depois,
inclusive, um simpatizante do protofascismo.
Um historiador relatou, a este propósito, uma conversa ocorrida entre Ludendorff
e Weber, na qual este último descrevia o seu ideal de democracia como uma situação
na qual o povo vota e elege o seu representante, possivelmente um líder forte,
carismático, após o que o seu dever é o de se calar e de obedecer. Ludendorff
concordava amplamente com essa ideia de democracia.
Existe aqui uma bela diferença em relação à ideia democrática do Lukács de
então: uma democracia revolucionária baseada nas massas populares, a mesma
concepção de democracia que tinha na ocasião em que entrou no Partido Comunista
e quando, em seguida, identificou-se com a Revolução Russa. Ele via a possibilidade
de futuro com essa perspectiva. Na parte final de
A teoria do romance
aparece, de
fato, uma visão da Rússia dostoiévskiana, idealizada e purificante, e a Revolução Russa
era a realização desta visão.
A este respeito quero recordar como Bloch, em uma entrevista, afirmou que Lukács
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desposou a primeira mulher, a revolucionária Anna Grabenko
9
, porque estava
entusiasmado pela Rússia e pela alma russa.
Mészáros: Eu não levaria Bloch muito a sério, seja porque o matrimônio ocorreu
antes da Revolução, o que por si já exclui a hipótese, seja porque Gertrud Bortstieber
(segunda esposa de Lukács) me contou que Lukács era enamorado por ela desde muito
jovem e que lhe fazia a corte mesmo sendo ela três anos mais velha que ele, tanto que
ela se perguntava: mas o que eu faço com este fedelho?”.
Gertrud casou-se com um matemático maduro, que logo morreu de
tuberculose, deixando-a com dois filhos. Um deles teve uma história trágica
10
, quase
dostoiévskiana, porque foi preso na Rússia e deportado para a Sibéria, a que
sobreviveu por puro acaso. Não conseguindo mais, realmente, suportar aquela vida,
numa noite de inverno se deitou ao ar livre, na neve, para adormecer e não acordar
mais. Por sorte foi descoberto por um dos guardas do campo de concentrão, levado
para um lugar quente e ajudado a voltar a si. Havia algum clarão de humanidade
mesmo em meio àquela extrema desumanidade. Mais tarde, nos anos 50, Verkov, que
havia estudado engenharia, tornou-se economista e exerceu alguma influência sobre
o movimento estudantil na Alemanha. Morreu bem velho, no ano passado. Com
trajetória distinta, seu irmão Lajos, que era um físico prestigiado e um dos
colaboradores de Schrödinger, escapou do fascismo refugiando-se na Irlanda e na
Inglaterra.
Após a Guerra, os dois rapazes retornaram à Hungria. Lukács, entretanto,
retornou apenas um ano mais tarde, empenhando-se para localizar e facilitar o retorno
do filho Verkov. Desposou, portanto, Gertrud, que era viúva de seu primeiro marido.
Foi um matrimônio maravilhoso, pois com ela compartilhou 40 anos de vida e de
pensamento. A ela dedicou
História e consciência de classe
. Viveram em grande
pobreza, comendo apenas polenta e feijão. Lukács, naquele tempo, se refugiara em
9
O nome da primeira esposa de Lukács é, na verdade, Elena Andreyva Grabenko. Trata-se, aqui,
provavelmente, bem como na menção seguinte à mesma pessoa, de um erro de transcrição. [Nota dos
editores]
10
Trata-se de Ferenc Jánossy (1914), economista, filho da segunda mulher de Lukács, Gertrud
Borstieber. Viveu com Lukács na União Soviética, foi preso, ficou num campo de prisioneiros na Sibéria.
O nome citado logo adiante, Verkov, provavelmente é outro erro de transcrição.
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Viena porque estava condenado à morte pelo tribunal de Horthy
11
. Sabia-se que
existiam planos para raptá-lo. Diversas pessoas naquele período foram, de fato,
raptadas, levadas para a Hungria e enforcadas.
Sobre isso Lukács nos contou que, certo dia, o chefe da polícia de Viena, tendo
sabido de alguma maneira que ele possuía uma pistola, mandou chamá-lo e o avisou
que era proibida a posse de armas. Lukács explicou que carregava a pistola para não
ser raptado pela polícia de Horthy, ao que o policial exclamou: professor Lukács, o
senhor eu deixaria que possuísse até mesmo um canhão, mas lei é lei”. Lukács
respondeu que até lhe entregaria a arma, mas honestamente devia confessar que a
primeira coisa que faria saindo do edifício seria comprar outra. Esse era o homem. Essa
mesma pistola foi depois jogada no rio Spree, em Berlim, quando os nazistas
estavam no poder e matavam as pessoas. A decisão foi tomada depois de ser
submetido a uma inspeção por parte da polícia, que lhe revirou a biblioteca.
Em Viena ocorreu um encontro muito interessante com Karl Mannheim
12
, que era
um jovem que frequentava o grupo deles e tinha cerca de dez anos a menos que
Lukács. Contemporaneamente, chegaram outros dois ou três jovens e Lukács garantiu
um posto importante para eles quando, em 1919, tornou-se ministro da Cultura.
Mannheim recebeu assim a sua primeira cátedra universitária durante a República dos
Conselhos na Hungria.
Em 1925, quando Lukács estava em Viena, apareceu o trabalho mais famoso de
Mannheim, intitulado
Ideologia e utopia
. Lukács lhe disse: “Mannheim, você deveria se
envergonhar, tudo bem que tenha roubado os meus pensamentos, mas pelo menos
deveria ter encontrado as citações de Marx por conta própria”. E Mannheim respondeu:
sim, é verdade, mas eu preciso ler tantas porcarias dos meus colegas da universidade
que não tenho tempo para ler os clássicos”. Muito honesto. Lukács se lamentava de
não ter um gravador naquele momento.
Mannheim obteve com aquele livro a sua segunda cátedra universitária na
11
HORTHY, Miklós (1868-1957), político, contra-almirante. Em 1919, apoiado pela Entente, pôs em
combate tropas contrarrevolucionárias contra a República Húngara dos Conselhos, que subjugou
sangrentamente. Em 1920 foi regente. Em 1944, após o golpe de Pfeilkruezler, foi substituído. As
potências ocidentais o prenderam na Baviera como criminoso de guerra, mas não o entregaram ao
governo húngaro.
12
MANNHEIM, Karl (1893-1947), estudou em Budapeste, Freiburg, Berlim, Paris e Heidelberg. Foi aluno
de Max Weber, em 1926 foi livre docente em Heidelberg, e em 1930, professor em Frankfurt. Em 1933
emigrou para a Inglaterra, onde foi professor; em 1942 passou a lecionar no Institute of Education.
István Mészáros & Giorgio Riolo
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Alemanha, e Adorno, que foi ultrapassado no concurso por apenas um ponto, jamais
o perdoou. Foi uma espinha no seu coração pelo resto de sua vida. Mannheim obteve
ainda uma terceira cátedra na Inglaterra, e então foi parado após a ascensão dos
fascistas. Em suma, ele foi o único a obter uma primeira cátedra durante a ditatura do
proletariado, uma segunda na Alemanha ultraconservadora e uma terceira na Inglaterra
liberal.
Mannheim teve um percurso totalmente diverso do de Lukács, que possuía um
elevado senso moral, enquanto o primeiro era afeito aos compromissos; procurava
sempre manter boas relações com o poder, criava teorias falsas e era muito
anticomunista. Ele elaborou a teoria segundo a qual, quando o comunismo se
estabelece em um país, pelos 500 anos seguintes não se pode mais fazer nada, não
se pode mudar nada.
Karl Popper teve o mesmo tipo de atitude. Penso no seu trabalho
A sociedade
aberta e seus inimigos
. Lukács permaneceu, ao contrário, sempre fiel ao pensamento
comunista.
Quando Lukács aderiu ao Partido Comunista húngaro, para além das simpatias
anarcossindicalistas as quais ele mesmo admitiu, que tipo de relações mantinha com
os outros militantes do Partido?
Mészáros: No Partido Comunista húngaro havia duas facções, uma mais poderosa
e stalinista, sustentada por Béla Kun
13
, e a outra liderada por Landler
14
, que era
proveniente do movimento sindical. Lukács pertencia a esta ala, era o seu teórico.
Entre eles havia muitos conflitos. Foi uma história horrível quando a parte majoritária
do Partido, de Béla Kun e companhia, ordenou-lhe que fosse trabalhar como
clandestino na Hungria. Pode-se imaginar o medo que Lukács teve de ser preso e,
13
KUN, Béla (1886-1939), político comunista. Em 1919 foi líder da República Húngara dos Conselhos.
Ficou exilado em Viena, e a seguir, na União Soviética, onde desempenhou diferentes funções dentro
do Partido. Foi executado durante os grandes expurgos stalinistas.
14
LANDLER, Jenő (1875-1928), revolucionário húngaro. Primeiro, foi social-democrata de esquerda e
líder da União Húngara dos Ferroviários; em novembro de 1918 tornou-se membro do conselho
nacional; durante a República Húngara dos Conselhos foi comissário do povo do Interior, e, mais tarde,
chefe do exército vermelho húngaro. Após a queda da República dos Conselhos, emigrou, tornou-se
membro do PC húngaro. A partir de 1919 foi membro do Comitê Central e dirigiu o PC húngaro ilegal
na emigração, onde dirigiu a chamada fração Landler contra Kun.
Entrevista de István Mészáros a Giorgio Riolo
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naturalmente, também morto, dado que a sua fisionomia era facilmente reconhecível e
dificilmente alterável. Tratando-se, porém, de uma ordem do Partido, ele foi. Pouco
depois Landler, então em idade madura, morreu. O próprio Lukács me contava como
Landler arruinou a própria saúde, excedendo-se na comida e na bebida, frequentando
banhos turcos, onde perdia muito peso e depois bebia de uma vez quatro a cinco
canecas de cerveja. Lukács tornou-se, então, o chefe da facção Landler. o foi preso
na Hungria, contrariamente ao que auspiciavam os bélakunianos.
Continuou o seu trabalho político até 1929, quando publicou as
Teses de Blum
.
Este texto que, por muitos pontos, antecipava a estratégia da frente popular, foi
criticado e trucidado pelo Partido, sendo determinante para o fim da sua carreira
política. Daquele momento em diante, realmente, não teve mais nenhum papel político,
tendo sido empurrado para a margem de tal forma que precisou mediar, através da
literatura e da filosofia, tudo aquilo que desejava comunicar. Foi até mesmo expulso
do Comitê Central do Partido Comunista por ser declarado suspeito e, apesar de
muitos dos 120 membros do Comitê serem absolutas nulidades, não havia lugar para
um homem da inteligência, do empenho e da experiência de Lukács.
De 1949 em diante, continuaram os ataques à sua pessoa. Mais tarde, em 1956,
houve outra fase. Mas, antes disso, chegou amesmo a ser preso em 1941 e passou
alguns meses no cárcere na União Soviética. A sua libertação ocorreu não pela
mediação dos compatriotas, mas graças à intervenção dos mais ilustres intelectuais
alemães, os quais se dirigiram a Dimitrov o reprovando pelo escândalo de ter
aprisionado um intelectual de tal nível internacional. Dimitroff
15
o tirou da prisão,
inclusive porque havia uma afinidade de conteúdos entre o texto de Lukács
Teses de
Blum
e o discurso que ele Dimitroff havia pronunciado no decorrer do VIII
Congresso da Internacional Comunista, que aprovou a reviravolta tática da frente
popular contra o nazifascismo.
Gostaríamos de saber alguma coisa sobre os anos passados em Moscou e sobre o
estudo que Lukács fez sobre Marx naquela cidade.
15
DIMITROFF, Georgi (1882-1949), líder do movimento operário revolucionário búlgaro e internacional.
Foi preso em 1933 e acusado no processo do incêndio do parlamento alemão.
István Mészáros & Giorgio Riolo
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Mészáros: Lukács viveu em Moscou em dois períodos, sendo a primeira vez no
início dos anos 30, quando trabalhou no Instituto Marx-Engels-Lênin e conheceu o
pensamento juvenil de Marx. Depois, esteve em Berlim de 1931 a 1933. Retornou
uma segunda vez a Moscou para buscar refúgio, após a tomada do poder por Hitler.
Voltemos agora à sua relação com Bloch. Ele foi para a Hungria após a Guerra.
Parece que estava desnutrido e esfomeado e que buscava conhecer alguma moça
húngara rica para desposá-la. Isso me foi relatado por Mary, a irmã de Lukács. Não
posso, porém, garantir esses detalhes porque não os ouvi do próprio Lukács. Naquele
período, Lukács entrou no Partido Comunista, mas não por causa da sua relação com
Anna Grabenko, porque na realidade essa relação se rompeu logo, e muito
bruscamente, dado que elao lhe era muito fiel, mas ao contrário, possuía uma ideia
muito pessoal da liberação sexual.
Voltando à Hungria, durante a Guerra, Lukács obteve um emprego como censor
postal, graças a seu pai, homem de grande influência fiscal e monetária. Posso imaginar
com que atenção Lukács, sentado em um escritório, lia a correspondência. Penso que,
ao invés disso, lia Hegel por baixo da mesa. De todo modo, o emprego o salvou da
necessidade de pegar em armas; seguramente não saberia atirar.
Exatamente nos últimos anos da Guerra, quando era censor postal e morava em
Budapeste na luxuosa vila paterna, Bloch veio morar com eles. Bartók, pelo qual Lukács
também tinha uma enorme admiração, morou durante um certo período naquela vila.
Durante a convivência com Bloch ocorreram conflitos, porque Bloch jamais
aceitou a possibilidade de se identificar com o marxismo. Lukács, ao contrário, aderiu
ao marxismo sem reservas, modificando e criticando honestamente e com convicção a
sua posição precedente. Bloch tinha muito ressentimento para com Lukács por esta
atitude e inclusive o reprovava.
Quando Lukács, em 1918, entrou no Partido Comunista, era quase jejuno da
doutrina marxista, tendo lido pouquíssimo sobre o assunto. Na realidade, naquele
período, o seu percurso na direção do marxismo não era mediado pela leitura, pela
teoria, mas pela rebelião e pela expectativa da transformação graças à Revolução.
O próprio Lukács conta assim a sua entrada no Partido Comunista: uma noite,
Entrevista de István Mészáros a Giorgio Riolo
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bem tarde, chegou à sua casa um seu amigo filósofo, Béla Fogarasi
16
, todo comovido
e animado. Contava que o Partido Comunista tinha acabado de ser fundado por 15
pessoas. Estava em plena crise de consciência sobre o que deveria fazer. E Lukács lhe
respondeu: onde está a crise de consciência? Entremos imediatamente!”. Era preciso
fazê-lo. No dia seguinte se inscreveram, e ele foi um dos primeiros.
É compreensível que mais tarde, durante a revolta de 1956 e naquele período
eu vivia na sua casa , quando estava muito claro que era iminente uma intervenção
do exército russo, pela primeira e única vez na minha vida, o vi chorar. As lágrimas lhe
caíam dos olhos enquanto dizia: dediquei toda a minha vida ao Partido e agora
acontece esse desastre total, irrecuperável”. Mais tarde, após a meia-noite, recebeu o
telefonema do seu amigo Zoldan Sándor que lhe propunha se refugiar na embaixada
iugoslava e ele, com tristeza, aceitou. Zoldan Sándor era seu amigo íntimo de
muitíssimos anos e no qual ele confiava muito.
Mesmo sendo embaixador húngaro na Iugoslávia, ele tinha dificuldades porque
naqueles tempos, mesmo na ausência de prévias suspeitas, bastava que alguém
morasse em Belgrado para ser preso e enforcado (como aconteceu com Rajk
17
). Coisas
similares aconteciam em 1930 na União Soviética e depois, em 1949, também na
Hungria. Zoldan Sándor sobreviveu graças ao fato de que sua mulher era cunhada de
Revai
18
. Essa parentela, porém, não influiu sobre a sua relação com Lukács, dado que
não era apenas uma ligação intelectual, mas também afetiva.
A propósito da amizade com Sandor, vem-me à mente um outro episódio que
joga luz sobre o caráter e a moralidade de Lukács. Foi quando ele e Zoldan Sándor
estavam em um tipo particular de prisão na Romênia. Nesse lugar se faziam,
constantemente, pressões sobre as pessoas para que relatassem fatos que levassem à
16
FOGARASI, Béla (1891-1959), filósofo marxista húngaro. Importante comissário da cultura na
República dos Conselhos. De 1930 a 1945 foi professor na União Soviética; a partir de 1945, professor
de filosofia na Universidade de Budapeste; e, em 1953, reitor do Instituto Econômico de Budapeste.
17
RAJK, László (1909-1949) Em 1930 entrou para o PC húngaro, na guerra civil da Espanha foi
comissário político do batalhão húngaro das Brigadas Internacionais. Após fuga da prisão francesa foi,
a partir de 1941, líder do PC ilegal na Hungria. Em 1945 foi membro do Comitê Central e do Politburo;
de 1946 a 1949, ministro do Interior; e de 1948 a 1949, ministro do Exterior. Foi condenado à morte,
por "titoísmo", sendo reabilitado em 1956 e executado após um processo público.
18
RÉVAI,zsef (1898-1959), político, publicista, crítico literário e ideólogo comunista. Permaneceu no
exílio entre as duas guerras mundiais, vivendo por fim na União Soviética. Em 1945, voltou para a
Hungria e fez parte da cúpula dirigente do PC. Foi redator-chefe do órgão do partido
Szabad Nép
, de
1949 a 1953 ministro da Cultura.
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condenação de Imre Nagy
19
. Ele próprio, entre outros, encontrava-se na mesma prisão.
Quando tentaram exercer pressão sobre Lukács, ele respondeu de modo muito
honrado: soltem-me desta prisão e, uma vez livre, quando voltarmos a Budapeste,
relatarei todas as minhas diferenças com Imre Nagy. Mas contra o meu companheiro
de prisão não direi uma só palavra”. Esta foi a sua posição.
O seu amigo Sándor, porém, não se comportou da mesma maneira, pois falou
sob ameaças, tanto que Nagy foi condenado. O episódio me foi relatado por um dos
colaboradores mais próximos de Nagy, que vive ainda na Hungria, e que o tinha
nenhum interesse em contar mentiras ou enfeitar a posição de Lukács.
Depois que seu amigo fez esta confissão contra Nagy, a atitude de Lukács com
relação a ele mudou radicalmente. Sabida a notícia e sendo a hora do almoço, Lukács
e Gertrud entraram na sala de refeições, dirigiram-se à mesa que antes dividiam com
Sándor e sua mulher, pegaram os pratos e os talheres e foram se sentar em outra
mesa, onde comia uma pessoa sozinha. Era o colaborador de Nagy que mais tarde me
contou o episódio. Daquele momento em diante a amizade com Sándor acabou. O
episódio demostra como a moralidade não se compromete nem mesmo com as
amizades mais íntimas.
Havia uma profunda amizade inclusive com Bloch, mas por causa dos conflitos
políticos, filosóficos e intelectuais inevitavelmente se distanciaram, sem, porém, jamais
romperem definitivamente a amizade. Permaneceram numa relação cordial. Não
puderam manter a intimidade precedente porque para Lukács um tipo de amizade
assim, estreita, requeria igualmente uma afinidade de pensamento e de compromisso
político. Afinidade que não havia com Bloch, nem mesmo depois da Guerra.
Essa visão da missão e da função do intelectual em uma sociedade como esta,
burguesa e capitalista,
parece-lhe plausível hoje?
19
NAGY, Imre (1896-1958), político, expert em questões agrárias, uniu-se na Rússia, como prisioneiro
de guerra, ao Partido Comunista. De 1921 a 1928 trabalhou no Partido Comunista ilegal. De 1929 a
1944 esteve no exílio na União Soviética. De 1944 a 1953 foi ministro de diversos governos, e, por
pouco tempo, presidente da assembleia nacional e professor universitário. Em 1955, devido a "desvios
de direita", foi duramente criticado e expulso do Partido e reabilitado um ano depois. Em outubro de
1956, durante o levante popular húngaro, foi novamente primeiro-ministro e líder da revolução. Após
a derrota do levante pelos órgãos de segurança soviéticos, foi levado para a Ronia e executado em
junho de 1958.
Entrevista de István Mészáros a Giorgio Riolo
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Mészáros: Eu sou muito cético sobre essa questão, porque uma notável
diferença entre os dois períodos. Existia então uma burguesia em crise, que havia
perdido a confiança em si mesma e na sua própria força. O próprio Lukács, Bloch e
muitos outros intelectuais eram a evidente manifestação, não apenas dessa ausência
de estima, mas também de uma crise de consciência. Os melhores entre os intelectuais
burgueses que se orientaram na direção do socialismo, de fato, não demostraram
apenas uma simpatia, mas se identificaram completamente com a ideia. Hoje o discurso
é muito diferente porque a nossa burguesia é agressiva e arrogante. Falta a base social
dessa crise de consciência. Não existe a crise de consciência porque o a
consciência, e uma consciência que não existe não pode sofrer uma crise.
Hoje está disseminada a agressividade intrínseca do neoliberalismo. Pense onde
foram parar todos os intelectuais da burguesia após o 68 e você se daconta de que
todos estão identificados com o sistema de modo acrítico. Esse é, na minha opinião, o
discurso sobre a responsabilidade dos intelectuais burgueses, porque no fundo Lukács
estava se referindo sobretudo aos intelectuais burgueses, não ao intelectual advindo
da classe proletária. Os intelectuais são raros. Em húngaro temos uma expressão para
exprimir alguma coisa extremamente rara. Dizemos: “raro como o corvo branco”, e
agora estamos realmente em uma fase histórica do corvo branco.
Você disse que não existe mais a “consciência infeliz”, como a chamava Hegel.
Mészáros: Realmente, não mais a “consciência infeliz”. Ela poderia talvez
retornar em um momento de crise extrema, mas isso não se pode esperar, e se hoje
você fizesse esse discurso ririam na sua cara. Pense apenas em Lukács e Sartre, duas
figuras que faziam apelo à responsabilidade dos intelectuais, e verá que foram
colocados de lado porque o discurso não funciona mais.
Existe ainda uma última questão muito séria a ser considerada, aquela que trata
do conceito de importar a partir do externo, de fora para dentro, a consciência de
classe no movimento socialista. Isso constitui um grande problema. Vimos,
concretamente, o que significou nos últimos decênios importar a consciência de classe
do externo. Aconteceu alguma coisa extremamente problemática porque, uma vez o
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Partido tendo chegado ao poder, o externo não existiu mais, o partido de estado é
estado sem partido para os de cima.
No futuro será, então, necessário rearticular o movimento socialista de maneira
completamente diferente no que tange à dimensão intelectual do movimento. Se os
intelectuais no passado tiveram, de fato, um papel importante na transformação da
consciência da massa, da consciência do povo, a mesma coisa, penso, o ocorrerá no
futuro. Os intelectuais não obtiveram um grande sucesso “na ação prática em nenhum
lugar do mundo e, portanto, não se deverá repetir o caminho, mas é preciso recomeçar
do início.
Lukács costumava usar essa expressão: “quando o colete está mal abotoado,
para endireitá-lo é preciso desabotoar tudo e se não usamos o colete, isso vale
igualmente para a camisa ou para o paletó”. E agora estamos exatamente no estágio
no qual é preciso desabotoá-lo para poder abotoá-lo de modo adequado.
Ocorre-me pensar naquela outra famosa expressão de Lukács que diz mais ou menos
o seguinte: “pode acontecer de fazermos pequenas asneiras ao realizarmos grandes
coisas, como a construção do socialismo, mas não obteremos grandes resultados se
fizermos sempre, de qualquer forma, pequenas asneiras”. Há também aquela sua
famosa afirmação: o pior socialismo é sempre melhor que o melhor capitalismo”.
Bloch, por sua vez, capturou da história da Igreja a advertência
Corruptio optimi
pessima
20
. Parte daqui inclusive a ruptura radical da parte de Bloch quando foi
construído o muro de Berlim em 1961. Para Lukács, entretanto, vale sempre e de
qualquer maneira
Right or wrong, my party
. Então, aqui temos várias posições para
esclarecer.
A afirmação
Right or wrong, my party
é, entretanto, defensável e não rebaixa a
responsabilidade pessoal. A partir do momento em que aceito a responsabilidade
pessoal e luto para mudar as coisas, aceito inclusive sofrer, chegando mesmo ao
extremo. É, porém, terrível dizer que “o pior socialismo é melhor que o melhor
capitalismo”, porque o pior socialismo não é socialismo. É incompatível com o conceito
20
A corrupção do melhor é o pior.
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de socialismo.
Você, no entanto, ouviu certa vez Lukács falar de “socialismo asiático”, mas o
socialismo asiático significa barbárie asiática.
Mészáros: De fato, o socialismo asiático não é socialismo. O grande problema de
Lukács é exatamente este: interiorizar certas condições externas e torná-las próprias,
tal como aceitar a perspectiva do socialismo em um país. Lukács sempre foi fiel a
esse conceito.
É verdade que esse constituía também um modo de sobrevivência, e nós o
temos nenhum direito de dizer: “vá se matar”. Mas, falando em um contexto diferente,
tal como é o nosso, devemos ter uma outra posição e afirmar que o socialismo em um
só país era um desastre, era simplesmente a justificação da barbárie mais brutal.
Infelizmente, aquela realidade era aceita de modo não inteiramente inconsciente,
porque não se sabe o quanto as pessoas estavam informadas. Por exemplo, Lukács
sabia do desaparecimento de seu filho, que é um fato que o tocava muito de perto,
mas provavelmente não tinha nenhuma ideia da proporção gigantesca deste
acontecimento. Por outro lado, como intelectual e como estudioso de Marx, podia
muito bem compreender que aquele tipo de socialismo era uma contradição nos
termos. E se naquela fase histórica perseguições e medo condicionavam as pessoas
na mesma direção assumida por Lukács, quando ele escreveu o ensaio sobre a
democracia, esse contexto não mais existia. Isso demostra que Lukács havia
interiorizado aquela visão, aquela perspectiva.
Lukács sobreviveu a experiências tremendas, em pleno stalinismo, e coloquemos
que a aceitação da estratégia do socialismo em um país estava condicionada àquela
fase histórica. Um único exemplo: a situação era muito séria e, quando um dirigente
húngaro atacou Lukács nas páginas do
Pravda
, em 1951, ele confessou ter tido medo
de ser preso. Deu-se depois que haviam executado László Rajk e prendido muitas
pessoas. É compreensível que em tais circunstâncias fosse necessário ter cuidado com
o que se falava. Mais tarde, em 1968, Lukács não precisaria temer ser preso, porque
ninguém ousaria tocar naquele ancião de 83 anos, no ponto máximo da sua reputação
internacional. No entanto, ele manteve as suas posições de modo coerente e não
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criticou a fundo o sistema stalinista, isso é, não o criticou do ponto de vista ideológico,
mas apenas de modo genérico e sobre algumas questões metodológicas. Citei a esse
propósito, em
Para além do capital
, o seu discurso ao Partido no qual afirmava falar
do ponto de vista da ideologia, não se considerando nem no direito nem com a
competência para tratar das questões práticas e operativas da gestão do Partido. Eu
não considero justo aceitar essa separação, isso é, negar a responsabilidade do
intelectual e deixar o Partido fazer qualquer coisa, inclusive atos de grande sordidez,
limitando-se apenas à crítica das ideias.
Repito, porém, que foram 50 anos extremamente difíceis, vividos sob pressões
de vários gêneros, e aquela que no início era uma posão defensiva foi mais tarde
introjetada por Lukács e por outros intelectuais, tornando-se neles quase que uma
segunda natureza.
A confiança lukácsiana, para além de qualquer evidência e ultrapassando um
otimismo histórico e pessoal era fundada também sobre a visão hegeliana, no sentido
de que essa cadeia de “mediações
na trajetória do socialismo (e inclusive de
falsificações), de todo modo, não comprometia totalmente o resultado.
Mészáros: Eu também acho que de algum modo os problemas acabarão por se
resolver. Mas o é apenas isso, é que Lukács jamais reexaminou a sua concepção
quase mítica do Partido. Essa concepção pode ser aceita, e tudo bem, desde que se
aceite o Partido como a incorporação da consciência socialista e da ética do
proletariado (como Lukács sublinha em
História e consciência de classe
).
En passant
,
eu não aceito nem sequer essa posição, porque não creio que tais esquemas devam
ser adotados.
O que acontece, porém, se o Partido se comportar de modo muito diferente?
Onde está o ponto para além do qual o Partido pode ser criticado? Não existe. Se o
Partido esacima de tudo, seja do ponto de vista da consciência ou da ética, então
não existe a possibilidade de crítica. Essa, porém, não era a posição de Marx. Sublinhei
muitas vezes que Karl Marx falava do desenvolvimento da consciência comunista das
massas, pelas massas e nas massas. Não que um sujeito qualquer se apresente e lhe
diga o que você deve fazer. Este é o problema do futuro. Nesse sentido, afirmo que o
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discurso sobre os intelectuais deve ser revisto.
A situação desastrosa em que vivemos não pode ser resolvida nem por pequenos
grupos, nem por partidos integrados no quadro da área parlamentar, mas deve ser um
movimento de massa no sentido em que falava Marx. Ou seja, a consciência comunista
deve ser desenvolvida pelas massas e nas massas, e não apresentada por um grupo
qualquer, pequeno ou grande, como se deu. Esse é o limite da geração de Lukács (e
não apenas da sua). Por isso ele chorou quando viu que tudo havia entrado em
colapso.
Parece que mesmo depois de 1968, após a invasão da
Tchecoslováquia, Lukács
sustentou a confiança nas reformas, na autorreforma do socialismo real.
Mészáros: É verdade, e eu citei do seu chamado “testamento político” a atitude
respeitosa com que solicita que o Partido permita aos cidadãos decidir onde colocar
uma farmácia local. Mas que socialismo é aquele?! É terrível o fato de que o Partido
deva decidir sobre cada coisa, até mesmo sobre onde colocar uma farmácia local. Eu
penso que em um país socialista será necessário retomar esses poderes de decisão.
No escrito sobre democratização, porém, Lukács nos falava de um movimento de
massa que deveria democratizar a sociedade, e que as instâncias desse movimento
deveriam ser acolhidas pelo Partido
Mészáros: É verdade, mas quando Lukács precisava dar um exemplo a esse
respeito, falava de práticas do movimento sindical do Ocidente. Mas nada se resolve
partindo do movimento sindical no Ocidente e nem mesmo partindo da greve. Por
outro lado, Lukács não teria ousado falar de greve na Hungria, dado que a greve era
ilegal nos estados socialistas.
É necessário reapropriar-se do poder decisório porque, se não o reavermos, esse
sistema seguramente nos destruirá. Isso também será um problema do futuro. A
geração precedente não poderia jamais chegar a tal objetivo porque via um significado
naquele tipo de sistema. Por isso, na
Ontologia
, as referências ao poder decisório são
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adiadas para um futuro muito remoto, no qual as coisas são resolvidas em termos do
“espírito” (equivalente ao espírito hegeliano); nobre como aspiração, se você quiser,
mas nada foi dito sobre as mediações hodiernas, isto é, de qual alavanca é preciso
tomar o controle para avançar naquela direção.
A
Ontologia
contém, inclusive, referências contínuas e otimistas ao movimento
estudantil. Mas onde foi parar o movimento estudantil? É, na realidade, um movimento
muito limitado. Por outro lado, vomesmo disse outro dia que constitui uma bela
satisfação ter 50 estudantes interessados em participar de um congresso, de uma
conferência.
Naquele momento, pareceu no Ocidente que se liberavam forças vitais capazes de
arrastar o restante da sociedade, inclusive a classe operária. Essas esperanças eram
alimentadas pelo fato de que estavam envolvidas vastas massas da população. Os
limites do movimento e a sua carência de estratégia emergiram apenas em um
momento posterior.
Mészáros: Tudo, efetivamente, era organizado nas nuvens. Compreendo, de
qualquer forma, como Lukács na Hungria tenha recebido com grande entusiasmo a
crescente mobilização estudantil, apostando na possibilidade de organizar esse
movimento contra a manipulação, aspecto sistêmico do capitalismo do século XX. Para
mim, ao contrário, a manipulação é um problema menor. O problema maior me parece
estar na destrutividade complexiva do capital como sistema. Este aspecto,
naturalmente, era completamente ausente na visão de Lukács.
Essas considerações não constituem uma censura a uma pessoa, porque as
mesmas ideias eram compartilhadas por toda uma geração. Aquela impostação crítica,
por outro lado, visava a atingir também o desenvolvimento soviético, que de todo
modo representava para Lukács o horizonte. Mas, se o horizonte não é interpretado
de modo adequado, permanece uma fé cega em um futuro muito distante.
Esta era a posão que Bloch reprovava nele. Para chegar rapidamente à questão da
herança, pergunto se permanece válida a sua definição de Lukács como “filósofo do
tertium datur
”.
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Mészáros: Essa definição permanece válida porque define muito bem o ponto de
vista dele. Hoje, ao contrário, a situação é tal que muitas vezes precisamos refutar as
posições extremas e redefinir muitas coisas de um modo diferente. Os dois polos
opostos, realmente, incharam-se, e se encastelar em posições extremas poderia levar,
especialmente numa situação de crise, a um beco sem saída. Neste sentido, as
mediações (no sentido do
tertium
) são absolutamente vitais.
Em um certo ponto de
Para além do capital
citei uma passagem de Goethe na
qual ele descreve a casa paterna e conta como existia então uma lei que proibia
derrubar os edifícios, que deviam ser reconstruídos, estando preservado o teto.
Partindo, portanto, de cima para baixo, ao invés de baixo para cima.
Mesmo os extremismos muitas vezes gostariam de fazer tábula rasa, mas tábula
rasa quer dizer o fim da humanidade. É necessário recorrer, portanto, às mediações,
interligando, de um modo estratégico e exequível, o presente a um futuro realizável.
Para fazer isso é necessário, porém, o máximo senso da realidade e da concretude. É
um caminho realmente difícil. Nesse sentido, é válida a aspiração de Lukács de refutar
os extremos. Além do mais, ninguém podia nem mesmo falar sobre isso, dado que
esse caminho era claramente representado pelo stalinismo.
Devemos ainda falar da herança cultural de Lukács, pois nos parece importante
esclarecer os aspectos de seu pensamento que hoje nós podemos captar em sua
plenitude, pois existe a interessante metáfora do esquilo do Himalaia e do elefante das
planícies, referência que afeta de modo particular os escritores socialistas. [Entre
estes,] Acredita-se ser o maior entre os maiores da literatura universal porque se
possui uma ideologia presumida como mais avançada. O esquilo do Himalaia o pode
se considerar maior que o elefante das planícies apenas porque está em um lugar mais
alto.
Lukács possuía, de fato, uma intensa aspiração pela realização humana e pelo devir-
homem do homem, prefigurado pelos grandes momentos históricos de alguns setores
da sociedade e de algumas áreas do planeta. Refiro-me ao período do Renascimento,
mas, sobretudo, ao homem inteiro da filosofia clássica grega. Tal aspecto aparece
muito claramente na sua
Estética
. Então, hoje, com frequência se lê Goethe, Balzac ou
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Tolstói. O problema hoje é muito evidente, nessa época de completa fragmentação
dos indivíduos, de completa fragmentação da sua consciência.
Mészáros: Era realmente imposvel para Lukács abster-se de se referir a Goethe
e a outros grandes. Tomemos Thomas Mann. De Thomas Mann, que era mais
próximo da cultura atual, pode-se dizer que possuía uma visão crítica deste mundo,
da vida no capitalismo. É um discurso, portanto, um pouco diferente daquele de
Goethe, que estava mais distante da cultura contemporânea.
O socialismo hoje pressupõe uma nova atitude com relação à humanidade, no
sentido da realização das potencialidades humanas, posição completamente negada
nos nossos tempos. Ora, é preciso insistir por essa mudança. Por exemplo, se em
fevereiro [de 1998] ocorrerá a redução do tempo, pela lei das 35 horas de trabalho
semanal, é preciso compreender que não queremos apenas um tempo reduzido.
Queremos também um tempo completamente transformado, que seja um tempo
colocado à disposição, não um tempo ainda submetido à lucratividade do capital,
porque hoje, nas nossas condições, muito ao contrário, o tempo reduzido corre o risco
de ser submetido à lucratividade do capital. Não podemos escapar desse
estrangulamento sem tomar o controle do sistema no seu conjunto, isto é, sem sair da
relação com o capital.
Esse é o discurso sobre a realização das potencialidades humanas, ou sobre
aquilo que Marx chamava de a individualidade rica. Rica o porque tem os bolsos
cheios, mas porque pode realizar as suas potencialidades, usufruindo de uma relação
radicalmente mudada com o tempo de trabalho.
Tudo isso é explicado na
Ontologia
, que, portanto, deveria ser lida por um
número muito maior de pessoas. Compreender-se-ia, assim, a impostação geral e o
vasto horizonte de Lukács, mesmo se forem enfrentados os problemas da “mediação”,
que devemos resolver nós mesmos. Por outro lado, a “mediação” deve ter uma direção
a ser tomada, porque de outro modo não teria qualquer significado. Sem a mediação
estaremos na selva e não conseguiremos chegar a lugar nenhum.
O absurdo do pensamento popperiano consistia exatamente em condenar o
conjunto, como a
lis
. Torna-se uma blasfêmia o
little by little
. Mas que sentido tem
o
little by little
se não se dispõe de uma visão geral, se não se tem a direção, se não
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se conhecem os pontos de referência?
Nesse sentido, vem à nossa mente a distinção que Lukács faz na
Ontologia
entre o
momento ideal e a ideologia, ou toda a elaboração sobre o estranhamento. Por
exemplo, ele não enfrenta a mediação imediata, mas um quadro geral das
capacidades técnicas humanas, ou seja, do desenvolvimento científico ou das forças
produtivas e o desenvolvimento em sentido humano.
Pode-se dizer, portanto, para concluir, que a herança que Lukács nos deixa reside
essencialmente naqueles quatro ou cinco conceitos filosóficos gerais presentes na
Ontologia
. Não podemos herdar realmente, e estamos quase todos de acordo, o
dispositivo progressista geral da filosofia da história.
Mészáros: É necessário acrescentar que devemos aprender muito, inclusive com
o seu percurso pessoal, situando-o historicamente. Ou seja, é necessário ter
consciência das condições históricas particulares nas quais ele viveu. Teremos assim o
modo tanto de compreender as coisas de que falamos, quanto de assumir uma posição
mais crítica, inclusive com relação a nós mesmos. O conhecimento de seu percurso
pessoal nos ajuda, de fato, a reconhecer quais são as limitações às quais nós também
estamos submetidos, para poder superá-las o que nos ajudará a abandonar certas
posições acríticas que emergem da imediaticidade da situação e ultrapassá-la. Para
mim existe, portanto, um enorme significado para além da larga perspectiva e do
vasto horizonte dos quais se falava antes inclusive na sua experiência histórica, na
sua formação e transformação política, ideológica e filosófica.
A escola de Lukács, a chamada Escola de Budapeste, porém, está fechada.
Mészáros: Infelizmente, as escolas são sempre problemáticas, pois servem
exclusivamente para a autopromoção. Brecht, que detestava a Escola de Frankfurt,
contava essa história, muito reveladora, a esse respeito. Um grande especulador
mundial de cereais, sentindo-se próximo da morte, tem uma crise de consciência e
decide oferecer todo o seu dinheiro à Escola de Frankfurt, com a obrigação desta de
procurar as causas da miséria do mundo. O que significava fazer uma investigação
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sobre si mesmo! A Escola de Frankfurt, na verdade, possuía aspectos muito
problemáticos. Funcionava bem, por exemplo, para promover Horkheimer e Adorno,
mas Marcuse e Fromm foram marginalizados. Também, ao que parece, os escritos
produzidos nos anos 30 ficaram trancados à chave e ninguém podia ter acesso a eles.
Fale-nos de Lukács como professor.
Mészáros: Era muito brilhante e fazia com frequência piadas espirituosas e
elegantes. Procurava sempre aliviar uma situação pesada ou facilitar a compreensão
de um discurso árduo. Muitas vezes, durante os seminários, mostrava-se entusiasta da
intervenção de alguém e prosseguia aquele discurso demonstrando sua relevância e
desenvolvendo uma queso de grande interesse. Nós dizíamos que fazia o bezerro
nascer antes que tivesse sido concebido pela mãe.
Seguramente, Lukács estava atento às potencialidades intelectivas dos seus
alunos, não como forma de adulação, mas porque assim era o seu método de
ensinamento. Estava convencido, realmente, de que o pensamento se desenvolve e se
enriquece por interação entre estudante e professor. Ele conseguia ler em você as
respostas que você nem mesmo sabia ter, mas, pensando depois, poderia dizer que
no fundo era o seu próprio pensamento.
Como se deu seu encontro com Lukács?
Mészáros: Eu tinha 15 anos quando encontrei em uma livraria o livro de Lukács
dedicado à literatura húngara. Para mim aquele livro foi uma revelação, tanto que
decidi ler todas as outras obras do autor. Para comprar os seus livros, dado que eram
publicados por uma casa editora burguesa, sendo, portanto, muito caros, precisei
vender as minhas coisas mais preciosas, ainda que fossem muito modestas. Lido o
livro, decidi que esse era o homem com o qual queria trabalhar e estudar.
Fui, portanto, para a universidade e entrei no seu instituto exatamente no
momento em que ele se encontrava sob um ataque feroz e tinha todos contra si. Eu
era o único que publicamente o defendia e, por este motivo, tentaram me colocar para
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fora da faculdade. Antes me ordenaram deixar o instituto, mas eu me recusei. Então
organizaram uma reunião de estudantes, mas eles, por sorte, ficaram do meu lado.
Aconteceu então uma pequena luta de classes, e no final eu permaneci. Daquele
momento em diante a nossa relão foi muito estreita; eu podia visitá-lo a qualquer
momento, mesmo sem me anunciar ou tocar a campainha.
Lukács me fazia as mesmas recomendações que recebera de Simmel
21
: é preciso
levar adiante o próprio pensamento até o fim, até as últimas consequências, sem se
preocupar com nada. Quando se chega no muro se bate a cabeça e se veem estrelas,
e então compreendemos que chegamos ao limite. Foi um conselho muito importante
e se uma pessoa não o segue, mas começa a colocar uma estaca aqui e outra acolá
não chegará nunca a conclusões. Por isso, não importa quantas vezes se bate a cabeça
no muro, porque a cabeça é bastante dura e superará essas pancadas. Lukács o
considerava um conselho metodológico muito importante.
Poderíamos continuar longamente, mas, por ora, agradecemos e estamos muito felizes
não apenas pelo encontro
intelectual, mas também pela relação humana que pudemos
estabelecer.
Como citar:
MÉSZÁROS, István; RIOLO, Giorgio. Entrevista de István Mészáros a Giorgio Riolo. Trad.
Carlos Eduardo O. Berriel.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 2, pp. 431-453, mar.
2022.
21
SIMMEL, Georg (1859-1918), filósofo e sociólogo alemão.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe
Carolina Peters*
LUKÁCS, György.
Goethe e seu tempo.
Tradução de Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi
Fortes; revisão da tradução de José Paulo Netto e Ronaldo Vielmi Fortes;
apresentação de Miguel Vedda. São Paulo: Boitempo, 2021, 224p.
“Goethe tem um efeito suavizador sobre
mim um ‘Olímpico’ genuíno. Sinto tanta
afinidade com seu
Weltanschauung.
Infelizmente não possuo a laboriosidade férrea
de Goethe (para não falar em seu gênio). A
amplitude de interesses espirituais que este
homem tem! É inacreditável”, confessou Rosa
Luxemburgo (1983, p. 161) ao amado Leo
Jogiches, em outubro de 1905. Alguns anos
antes, como presente de aniversário, ela
recebera do jornalista socialdemocrata Bruno
Schönlank e de sua esposa uma luxuosa edição
em 14 volumes da obra goetheana, e, na
ocasião, lia sua tradução da autobiografia do
escultor renascentista Benvenuto Cellini.
Rosa Luxemburgo não foi de modo algum a
primeira nem a última revolucionária
impressionada pelo grande escritor alemão, sua
obra literária e sua visão de mundo. Basta
recordar que foi a partir do
Fausto
(e do
Timão
de Atenas
, de Shakespeare), não dos
economistas políticos, que Marx iniciou sua
apreensão da universalidade do dinheiro, cuja
quantidade possuída prevalece mesmo sobre as
eventuais qualidades inerentes ao indivíduo,
sobre a individualidade, portanto. “A
universalidade de seu
atributo
é a onipotência
de seu ser; ele vale, por isso, como ser
onipotente” (MARX, 2010, p. 157), escreve em
seus manuscritos parisienses, logo antes de
citar uma fala de Mefistófeles. Desde as
primeiras investigações acerca da economia
clássica inglesa até sua grande crítica da
economia política, exposta em
O capital
, esse
personagem o acompanha no desvelamento
das fantasmagorias modernas. A literatura
1
* Mestranda em Filosofia pela UFMG, graduada em Letras pela UFRJ. E-mail:
carolinapeters50@gmail.com.
1
Verdade seja dita, os ensaios aqui reunidos não são integralmente inéditos em português. Já no início
da década de 1990, a (infelizmente agora extinta) Editora Ensaio publicara como paratexto à sua
tradução de
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister
, assinada por Nicolino Simone Neto,
o texto
de Lukács sobre romance. Ambos, romance e ensaio, foram republicados, em 2006, pela Editora 34.
realista de Goethe (e, convém adendar, do
aludido Bardo, de Balzac etc.) o se presta,
nos escritos marxianos, à mera ilustração
exemplificadora dos fenômenos cientificamente
apreendidos, mas oferece um modo próprio de
conhecimento da realidade conhecimento dos
homens e mulheres de carne e osso em suas
relações sociais reais.
György Lukács, talvez mais do que qualquer
outro, soube reconhecer não apenas na
literatura, como em toda grande arte, essa lição
de coisas, e encontrou na vasta produção
artística, bem como na teoria estética de Johann
Wolfgang von Goethe um campo fecundo onde
cultivar a sua própria filosofia da arte, enraizada
no pensamento de Marx. Não é possível ignorar
que o autor assume um papel de destaque no
ambicioso projeto lukácsiano de redigir uma
estética
em três tomos (dos quais, como se
sabe, apenas o primeiro veio a lume), a tal
ponto que a ele é concedida a palavra final.
Contudo, para além das recorrentes menções a
Goethe, feitas em
A peculiaridade do estético
,
de 1963, convém destacar também sua
presença nos bastidores, por assim dizer, desse
empenho monumental. Referimo-nos aos tantos
ensaios de crítica literária dedicados por Lukács
ao autor alemão, e que vistos em retrospecto
ajudam a dar corpo às generalizações e
categorias que por vezes podem soar
demasiadamente abstratas aos leitores da obra.
Parte desses escritos chega finalmente ao
público de língua portuguesa com a publicação
de
Goethe e seu tempo
, pela editora Boitempo.
1
Lançado em agosto de 2021, este é o décimo
volume a integrar a Biblioteca Lukács, coleção
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.656
Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 454-460 - mar. 2022 | 455
coordenada por José Paulo Netto e Ronaldo
Vielmi Fortes, responsáveis também pela
revisão técnica da tradução realizada por Nélio
Schneider, com a colaboração do próprio
Fortes. A edição brasileira conta ainda com uma
excelente e generosa apresentação de Miguel
Vedda, que situa, no itinerário intelectual do
autor marxista, um “caminho para Goethe”,
sustentando que “as análises lukácsianas, nesta
e em outras ocasiões, são mais incisivas e
provocativas quanto mais consequente é sua
perspectiva historicista e quanto menos são
orientadas para a busca de princípios
universais” (VEDDA, 2021, p. 17), um
parâmetro cuja validade, por assim dizer, o
próprio filósofo húngaro soube reconhecer em
diversos momentos, como em sua crítica a
Schiller, ou mesmo em seus apontamentos a
respeito de Hegel.
Nesse sentido, o presente volume de
ensaios lukácsianos pode ser considerado
exemplar, uma vez que, aqui, a relação entre a
arte e seu presente histórico, almejada desde o
próprio título do livro, é estabelecida a partir da
análise imanente dos textos literários (e
filosóficos, no caso dos escritos estéticos de
Friedrich Schiller e das teorizões contidas na
correspondência deste com Goethe), tomados
em sua singularidade.
Escritos entre 1934 e 1936, mas publicados
em livro somente em 1947, os cinco ensaios
que compõem a coletânea ocupam-se de dois
dos principais romances goetheanos,
Os
sofrimentos do jovem Werther
e
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
; percorrem a
correspondência entre Goethe e Schiller;
estudam a teoria da literatura moderna
desenvolvida por este último; além de
oferecerem uma bela análise do romance lírico
de Friedrich Hölderlin,
Hipérion ou o eremita da
Grécia
. Para os estudiosos dos escritos
estéticos lukácsianos e entusiastas da literatura
alemã, ressalte-se uma feliz coincidência: todas
as obras em foco contam com traduções para o
português, brasileiras ou lusitanas, ainda que,
no caso das cartas trocadas entre Goethe e
Schiller, tenham sido editadas apenas
parcialmente em nosso país.
Nem a escolha dos objetos, nem a
organização do volume (cujo sumário não
reproduz a sequência cronológica de escrita
dos textos, mas certa progressão temática dos
problemas) o arbitrários, e revelam algo das
preocupações teóricas e dos procedimentos
críticos do autor. Ele mesmo explicita, em boa
medida, algumas dessas questões no prefácio,
assinado em 1947, ou seja, pouco mais de uma
década depois da redação dos últimos ensaios
ali coligidos e, para alguns contemporâneos
seus, um momento completamente outro
vejamos se também para o húngaro.
Nesse prefácio, Lukács apresenta a seguinte
tese, que serviu de motor para a escrita dos
ensaios e sua posterior edição em livro: [...] o
desenvolvimento cultural alemão foi resultante
de um embate entre progresso e reação; e, na
medida em que, na Alemanha, as tendências
reacionárias se tornaram preponderantes no
campo da cultura, o acerto de contas ideológico
tem de começar por elas (LUKÁCS, 2021, p.
35). Diante da ascensão do nazifascismo na
década de 1930, quando esses textos foram
originalmente concebidos, a afirmação quase
poderia ser tomada como evidente; o próprio
filósofo húngaro envidou grandes esforços
intelectuais nessa tarefa, não se debruçando
apenas sobre problemas de história e teoria da
literatura, como é o caso, aqui, do “resgate” de
Goethe do cânone nazista, ou da contestação
da apropriação de lderlin pelo subjetivismo
decadentista reacionário, mas se dedicou
igualmente a perscrutar a tradição filosófica
alemã. É deste período que datam os primeiros
estudos acerca da filosofia irracionalista,
versões do que viria a ser publicado, anos mais
tarde, em 1954, como
A destruição da razão
. A
segunda dessas versões foi sugestivamente
intitulada pela seguinte pergunta:
Como a
Alemanha se tornou o centro da ideologia
reacionária?
Com a vitória dos Aliados na
Segunda Guerra Mundial, entretanto, não
estaria a fatura liquidada?
Lukács foi um daqueles (poucos, deve-se
sublinhar) a responder resolutamente que não;
e a denúncia enérgica de que, apesar da
inegável derrota militar, a ameaça fascista
permanecia à espreita justificou a edição e
publicação sem alterações de conteúdo,
passados onze anos e uma guerra desde o
derradeiro ponto final dos cinco ensaios
reunidos sob o título
Goethe e seu tempo
, em
fins da década de 1940. Restava ainda por
travar, pois, uma batalha ideológica contra as
reminiscentes tendências reacionárias, batalha
que se dava em duas frentes: em um flanco, a
dissolução de mitos (muitas vezes acreditados
entre os próprios militantes antifascistas), como
aquele que erigia uma Muralha da China entre
o Classicismo alemão e a filosofia iluminista
(uma “lenda literária” viva ainda hoje, como
lembra Vedda em sua apresentação ao volume,
vitalidade que, certamente, muitos estudiosos
da literatura poderão também atestar por
experiência própria); no outro flanco, a
reivindicação de uma tradição cultural alemã
genuinamente progressista, datada do período
da Revolução Francesa, que teria em Goethe um
dos seus principais expoentes.
Ambos os aspectos estão expressos no
primeiro ensaio, dedicado a
Os sofrimentos do
jovem Werther
, em que é proposta uma leitura
inteiramente nova, para a época, do romance
Carolina Peters
456 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 454-460 - mar. 2022
epistolar do jovem Goethe e, por extensão, de
todo o movimento do
Sturm und Drang
.
Até então, desde o clássico livro da madame
de Staël sobre a Alemanha, difundira-se entre
os historiadores burgueses da literatura uma
versão segundo a qual o “Tempestade e
ímpeto” encontrava-se em oposição frontal à
Aufklärung
, estratégia que visava “rebaixar o
Iluminismo em favor das tendências
reacionárias posteriores do Romantismo”
(LUKÁCS, 2021, p. 44). O jovem Goethe e,
particularmente, seu
Werther
, tornavam-se
assim precursores da estética e, mais
importante, da
Weltanschauung
românticas. Na
contramão dessa corrente, que, alerta ele,
reverberou inclusive no interior da sociologia
vulgar pseudomarxista”, o marxista húngaro
busca demonstrar como a obra em questão, que
após a publicação original, em 1774, obteve
rapidamente enorme repercussão por toda a
Europa, representou em verdade um marco
indiscutível do papel intelectual proeminente
exercido pelo Iluminismo alemão.
Seu argumento realiza dois movimentos:
Primeiramente, Lukács toma certa distância e
enxerga o romance em um cenário mais amplo
da historiografia literária, colocando-o lado a
lado com suas “fontes, para apontar quão
inconsistente é a caracterização do jovem
Goethe como um protorromântico. Em seguida,
ele então se reaproxima do texto goetheano, a
fim de analisar em minúcia sua economia
interna, reconhecendo aí, na forma literária, um
conteúdo social próprio. Acompanhemos esses
passos um pouco mais de perto.
Incapazes de dissociar o
Werther
de seus
precursores evidentes a prosa literária de
Richardson, um típico iluminista burguês, e,
sobretudo, a de Rousseau , cumpriu aos
fabuladores dessa lenda literária (aos melhores
entre eles, pelo menos) transformar também
este último em ancestral do reacionarismo
romântico. A acusação que seus detratores
faziam pesar sobre Iluminismo, e que permitia
afastar o autor do
Emílio
da filosofia das luzes,
é bastante simplória: enquanto os iluministas
advogavam a valorização irrestrita do intelecto,
a literatura rousseauniana debruçava-se sobre a
vida sentimental humana. Assim, a produção
literária do
Sturm und Drang
, acompanhando a
senda aberta pioneiramente por Rousseau,
precederia o romantismo ao representar
justamente a revolta do sentimento, do caráter
e do impulso contra o famigerado racionalismo
iluminista.
A questão que interessa a Lukács no ensaio
não é tanto constatar a abstração pobre e
vazia” (LUKÁCS, 2021, p. 45) a que foi reduzido
e pensamento iluminista, mas, antes, interrogar
acerca do conteúdo ideológico e da função
social dessa falsificação. Qual o propósito de
uma tal caricatura, que releva as contradições
reais e as disputas existentes no interior mesmo
do Iluminismo?
Definido em oposição excludente a toda
sensibilidade, o “intelecto” forjado pela
reprimenda romântica é destituído de sua
verdadeira essência, qual seja, “uma crítica
implacável da religião, da filosofia
teologicamente contaminada, das instituições
do absolutismo feudal, dos mandamentos
religiosos da moral etc.” (LUKÁCS, 2021, p. 45),
crítica que outrora insuflou uma burguesia
ainda revolucionária, mas que no período de
sua decadência ideológica torna-se para ela
insuportável. Além disso, ao assumir como
ponto de partida uma falsa contradição entre
qualidades abstratamente tomadas (intelecto
versus
impulso), a posição dos românticos e
seus partidários encobertava as verdadeiras
contradições, decorrentes da gênese e
desenvolvimento do próprio capitalismo, que
opuseram por vezes Rousseau a outros
iluministas, como Voltaire ou Lessing, e
suscitaram a “novidade” em sua ficção um
plebeísmo por vezes obscuro e com alguns
traços reacionários, certamente, mas que acima
de tudo representou uma “elaboração
dialética”, embora ainda incipiente das
contradições da sociedade burguesa” (LUKÁCS,
2021, p. 47) após o triunfo de sua revolução.
É nesse sentido, dirá Lukács, que a criação
literária do jovem Goethe representa uma
continuação
da linha rousseauniana”, todavia,
assumindo aspectos marcadamente alemães,
pois a inovação formal levada a cabo em
Os
sofrimentos do jovem Werther
responde à
necessidade de conferir tratamento estético a
um conteúdo vital efetivo, engendrado pela
miséria alemã. Contra aqueles que pretendiam
reconhecer nos sofrimentos e desfecho extremo
do protagonista goetheano não mais que uma
tragédia da paixão amorosa infeliz, Lukács
demonstra, pela análise detida dos principais
momentos da trama (que se segue a essas
considerações preliminares acerca das
influências literárias e históricas da obra), como
no romance de amor está perfeitamente
figurada a “contradição inerente ao casamento
burguês: ele está baseado no amor individual,
com ele surge historicamente o amor individual
mas sua existência socioeconômica está em
contradição insolúvel com o amor individual”
(LUKÁCS, 2021, p. 57), conexão íntima entre os
destinos individuais das personagens e o curso
do desenvolvimento histórico que faz deste um
dos maiores romances de amor da literatura
mundial.
A imagem da sociedade burguesa, que no
Werther
aparece refletida na subjetividade
rebelde do herói, ganha maior objetividade em
sua forma expositiva nos romances posteriores
Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 454-460 - mar. 2022 | 457
de Goethe, notadamente em
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
, objeto do
segundo ensaio, com o qual se alcança “o ponto
culminante na história da arte narrativa”
(LUKÁCS, 2021, p. 80). Como no caso anterior,
também a sua publicação representa um marco
na história da literatura, cujo legado à
posteridade um estilo de figuração serena e
harmônica, embora decididamente marcante ,
longe de se reduzir a um traço estilístico,
concebido em perspectiva estritamente
formalista, repercute, do ponto de vista formal,
desenvolvimentos importantes do espírito e da
psique humanas no curso da história, de modo
que aqui, talvez ainda mais intensamente que
no ensaio anterior, está em questão a relação
entre forma artística e processo social.
O ponto de partida da análise lukácsiana é a
comparação entre a primeira versão do livro,
intitulada provisoriamente “A missão teatral de
Wilhelm Meister” e redigida entre 1777 e
1785, e a edição final, datada do intervalo de
1793 a 1795, “período em que a crise
revolucionária de transição entre os séculos
XVIII e XIX, que poderiam ser considerados
como duas eras distintas do desenvolvimento
do romance moderno, atingiu seu clímax na
França” (LUKÁCS, 2021, p. 61). A diferença
marcante entre o manuscrito preliminar e a
versão definitiva da obra, sublinha o crítico
húngaro, consiste em que a arte dramática e, de
modo geral, as artes como um todo deixam de
representar um espaço para a “libertação de
uma alma poética da estreiteza prosaica e
pobre do mundo burguês”, a partir do qual se
organiza todo o enredo, tornando-se
meios
para o desdobramento livre e pleno da
personalidade humana” (LUKÁCS, 2021, p. 62)
o grifo que enfatiza esse caráter mediado é
do próprio Lukács. Em outras palavras, o teatro
não é mais uma finalidade em si almejada, mas
um
ponto de passagem
importante, sem
sombra de vida, mas de todo modo
transitório na formação do jovem
protagonista, de sua personalidade. Seus anos
de aprendizado são, antes de mais nada, uma
educação do mundo que, apesar de contar com
a orientação de sucessivos tutores, se dá,
sobretudo, pela ação livre e espontânea no seio
da sociedade.
Uma tal concepção formativa tem
implicações éticas importantes, que situam
tacitamente o romance de Goethe no antípoda
da moral kantiana. A manifestação mais
evidente disso são as “Confissões de uma bela
alma”, incrustadas no centro do
Wilhelm
Meister
, mas não só. Tomada como “uma união
harmônica de consciência e espontaneidade, de
atividade mundana e vida interior
harmonicamente formada” (LUKÁCS, 2021, p.
70), a “bela alma” goetheana encontra em
Philine, a princípio uma personagem secundária
sem muita importância, mas que entre as duas
versões do livro sofre alterações bastante
significativas, outra encarnação ficcional.
Contrastando com a historiografia literária
burguesa, que sublinha em sua literatura a
“glorificação da nobreza”, Goethe figura a
jovem mulher, “em virtude de um profundo
realismo, com todos os traços da perspicácia,
da desenvoltura e da capacidade de adaptação
plebeias”, e é justamente na voz dela que faz
soar “o seu mais profundo sentimento vital”
(LUKÁCS, 2021, p. 66) sua interpretação
humanizada do
“amor dei intellectualis
spinoziano, que frequentaria tantos escritos
lukácsianos sobre ética: E se te quero bem, o
que podes fazer?”
Mais veladas ou explícitas, as polêmicas
abertas pelo
Wilhelm Meister
não se encerram
por , pois a contestação da falsa dicotomia
entre interioridade e atividade anuncia
igualmente o combate às tendências
subjetivistas românticas e sua postura apátrida
em relação à vida burguesa. Diante da prosa do
mundo capitalista, o apatridismo romântico-
poético pode ser sedutor, mas nunca fecundo,
como a trama desvela nos destinos malogrados
de personagens como a pequena Mignon ou o
velho harpista. Humanista, a luta de Goethe se
volta contra “toda dissolução da realidade em
sonhos, em representações ou ideais
meramente subjetivos” (LUKÁCS, 2021, p. 72),
típicos de períodos decadentes, buscando sua
poesia nas contradições imanentes à própria
vida, o na recusa e revolta cega contra o
mundo.
O compromisso de Goethe com seu tempo
presente, observado por Lukács em suas
análises literárias, nos leva inevitavelmente a
interrogar acerca do conteúdo efetivo do
Classicismo que compartilhou com outros
contemporâneos seus. No terceiro ensaio,
dedicado à volumosa correspondência mantida
por Goethe e Schiller, as considerações dos dois
escritores sobre a Antiguidade são trazidas à
baila, lado a lado com suas reflexões sobre as
respectivas obras e sobre a literatura e a arte,
de modo mais amplo.
Se a teoria e a crítica da literatura sempre
reconheceram a importância dos registros
mantidos pelos próprios artistas acerca de seus
processos criativos e sua produção, a relevância
dos autores em questão, que figuram entre os
nomes mais significativos de seu período
histórico, e a consistência de suas teorizações
estéticas fazem dessas cartas um documento
singular. Não obstante, é recomendável cautela
contra o preconceito muito difundido” na era
capitalista “de que os artistas podem dizer
algo correto sobre a arte” (LUKÁCS, 2021, p.
84), pois aquilo de verdadeiro que os grandes
Carolina Peters
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artistas apreendem nas considerações acerca
de seu próprio trabalho carece sempre de uma
investigação complementar, não podendo ser
imediatamente adotado pela filosofia da arte
como princípio geral da estética.
Neste estudo, redigido em 1934, aparecem
de relance algumas ideias que, posteriormente,
serão inqueridas a fundo nas análises do
Werther
e do
Wilhelm Meister
, ambas datadas
de 1936. Acompanhando os diferentes
momentos da correspondência, Lukács busca
provar que a inflexão na obra dos autores, que
leva do
Sturm und Drang
ao Classicismo, o
primeiro ápice do desenvolvimento artístico
pós-revolucionário da burguesia, não é
resultante de mudanças meramente formais
nem subjetivas, mas acompanha um
desdobramento na própria história alemã, ao
qual Goethe e Schiller não eram alheios
“ambos tinham o tempo todo consciência de
que a arte que eles almejavam era expressão
daquela grande época que se iniciara com a
Revolução Francesa” (LUKÁCS, 2021, p. 93).
Apenas em sua aparência a investigação das
leis da arte grega, presente nas cartas, se reduz
a uma busca formalista pela forma. Superando
as formulações valiosas de Lessing, seu recurso
à Antiguidade intenta contribuir com a
superação de problemas modernamente
enfrentados. O filósofo, entretanto, não deixa
de rejeitar uma equivalência ou relação
imediata entre suas posições políticas
individuais e aspirações estéticas. O exame da
comunicação epistolar, auxiliado pela crítica
literária, é capaz de revelar como Schiller,
embora em muitos momentos mais radical que
Goethe, produziu uma literatura menos
intensamente orientada à realidade e imbuída
de ideais democráticos.
A amizade entre os dois, que jamais
implicou acordos irrestritos, muito pelo
contrário, possibilitou encontrar nas profundas
divergências uma contradição fecunda para a
colaboração mútua, como ocorre na discussão
em torno do princípio alegórico, para Schiller,
e simbólico, para Goethe da composição
literária. Esse ponto de dissenso e outras
questões afins ganham especial interesse à luz
das considerações posteriores de Lukács acerca
da teoria da literatura moderna de Schiller,
particularmente de seus comentários sobre o
procedimento adotado pelo escritor para a
seleção da matéria dramática de suas peças
tópico que, aliás, ele retomaria na
Estética
. No
centro do ensaio dedicado aos escritos
schillerianos, porém, permanece a questão da
recuperação do mundo antigo pelos modernos
e o embate entre Romantismo e Classicismo,
uma oposição estética, mas também, como
defende Lukács, entre
Weltanschauungen
distintas.
Desde o princípio, anota nosso autor, o
desenvolvimento de uma teoria da literatura
moderna foi acompanhado pela teorização
acerca da Antiguidade, ainda que o ideal do
mundo clássico nunca tenha sido estável. A
necessidade de traçar um paralelo histórico
com as produções artísticas do passado para a
intelecção daquelas do presente se mantém
mesmo após alcançadas as condições objetivas
para uma estética propriamente moderna, isto
é, que não mais pressupusesse a arte antiga
como cânone e fosse capaz de encontrar nas
bases econômicas da sociedade burguesa,
tornadas evidentes, a gênese e fundamentação
das particularidades da literatura moderna. A
razão para isso é que, quando o capitalismo se
torna óbvio, “a ideologia burguesa já estava
ingressando no período da apologética: ela não
dispunha mais de suficiente desenvoltura e
intrepidez para investigar de modo
cientificamente imparcial as possibilidades
ideológicas e artísticas de sua literatura”
(LUKÁCS, 2021, p. 123).
Nesse contexto, Schiller mostra-se uma
figura do maior interesse, tanto pelo
discernimento com que vislumbra os riscos
impostos pela divisão capitalista do trabalho à
poesia o ensimesmamento contido na
doutrina de
l’art pour l’art
ou a submissão da
arte a finalidades práticas moralizantes
quanto pela debilidade, igualmente
significativa, das saídas que é capaz de propor.
Nos pontos mais frágeis, suas posições são por
vezes contrastadas às de Goethe e Hegel, mas
o fundamental repousa em confrontá-lo consigo
mesmo e identificar, na lógica interna de seu
texto, aqueles momentos em que a apreensão
correta dos fatos ameaça o quadro idealista de
seu pensamento. Grande exemplo disso é a
concepção de realismo presente em
A poesia
ingênua e sentimental
. Em suas observações,
“Schiller com clareza que seu critério
estilístico da poesia ingênua, a imitação do real,
evidentemente está presente em uma série de
escritores modernos e se encontra em oposição
aguda à concepção que ele próprio tinha do
tratamento poético moderno da realidade”
(LUKÁCS, 2021, pp. 152-53), agrupado sob a
alcunha de poesia sentimental. Mais do que
isso, ele “identifica o realismo em sentido
histórico amplo, no sentido de Homero e dos
poetas trágicos gregos, de Shakespeare,
Fielding e Goethe, com nada menos que o
princípio artístico último, contradizendo assim
o antagonismo extremo, por ele mesmo
estabelecido, entre a arte antiga, ingenuamente
ligada ao mundo objetivo, e a moderna, de
cunho subjetivo, sentimental. Seja como for, a
diferenciação schilleriana é “objetivamente mais
do que um simples esquema e, apesar de
distorcida pelo idealismo, contém em si uma
Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe
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determinação profunda do caráter específico da
poesia moderna” (LUKÁCS, 2021, p. 153), além
de intuir a contradição entre a sociedade
capitalista e grande arte ou, melhor dizendo, a
hostilidade do capitalismo à arte.
Atendo-nos às especificidades impostas, na
modernidade, à mimese do real, um dos
aspectos destacados por Lukács no ensaio
sobre Schiller é a (im)possibilidade da figuração
plena de heróis positivos. No plano de fundo
deste que pode parecer meramente um
problema de composição literária, está uma
contradição insolúvel porque presente na
própria realidade que afasta o realismo
burguês daquele da Grécia antiga: a “dualidade
irrevogável e [...] unidade contraditória de
citoyen
e
bourgeois
(LUKÁCS, 2021, p. 132),
e a preponderância deste, a pessoa privada,
sobre aquele, sua dimensão blica. No papel
de herói positivo, o burguês não pode mais que
conferir um lustre apologético à criação
literária, cumprindo que, para uma figuração
verdadeiramente realista, seja retratado “de
modo mais ou menos irônico, bem-humorado e
satírico”, traço bem conhecido entre nós,
brasileiros, que com a ajuda de um crítico
excepcional (leitor singular de Lukács, aliás)
aprendemos a desconfiar dos filosofemas
sedutores de tipos como Brás Cubas. Por sua
vez, quando escalado como protagonista
romanesco, o lado cidadão ou figura o ideal
positivo como tira, a exemplo do inigualável
Dom Quixote
, ou fracassa em alcançar uma
forma épica ao esboçar um romance do
citoyen
.
Eis a questão crucial do último ensaio do
livro o “estilo épico-lírico que surge desse
fracasso” (LUKÁCS, 2021, p. 186) , dedicado
a contestar as falsificações fascistas da obra de
Hölderlin, a partir da análise do
Hipérion
e da
comparação entre as posturas de Hölderlin e
outros dois contemporâneos seus, Hegel e
Schelling, diante do Termidor. O período aberto
com a execução de Robespierre em 1795
suscitou nos três à época, jovens estudantes
que haviam vivido “os grandes dias da
libertação revolucionária da França com um
júbilo embriagado” (LUKÁCS, 2021, p. 166)
reações diversas, não obstante, típicas da
reação alemã ao desenvolvimento francês.
Enquanto Schelling retraiu-se a um romantismo
reacionário, os outros dois seguiram caminhos
que, embora diametralmente opostos,
refletiram analogamente “o desenvolvimento
desigual da ideia revolucionária burguesa na
Alemanha de um modo contraditório (LUKÁCS,
2021, p.167). Hegel assumiu o compromisso
com a nova realidade, em que a luminosidade
da França napoleônica parecia aumentar as
humilhantes sombras da vida alemã, e
Hölderlin, por sua vez, manteve-se “fiel ao
antigo ideal revolucionário da democracia da
pólis que se renova e rompe com a realidade
em que não havia lugar sequer no pensamento
poético para esses ideais”, preservando na
literatura um lirismo que resiste à prosa do
mundo moderno e confere à sua obra um
caráter único e irrepetível por mais que
inclusive certa filosofia tenha buscado emulá-la,
não alcançando mais que versões aguadas e
de segunda mão, para nos valermos das
expressões de Adorno, que, concordemos com
o conteúdo de seus juízos ou não, sabia insultar
como ninguém.
Lukács advoga que a chave de interpretação
da obra literária de Hölderlin é a correta
compreensão de seu helenismo, algo
impossível sem ter em conta sua posição diante
dos desdobramentos da Revolução Francesa e
das contradições inerentes ao desenvolvimento
burguês. Longe da nostalgia romântica pela
Idade Média, o recurso hölderliniano à
Antiguidade grega “celebra o caráter público
democrático da vida” na
polis
; e mesmo que o
autor partilhe da crítica à divisão capitalista do
trabalho, tem em vista “que o elemento mais
essencial da degradação a ser combatido é a
perda da liberdade”, não a “ordem” e
“totalidade” do trabalho artesanal, de modo
que a discrepância entre os temas eleitos por
ele e pelo Romantismo “não é, portanto, apenas
uma diferença temática, mas uma diferença
política e de visão de mundo” (LUKÁCS, 2021,
p. 179). A verve lírica-elegíaca de seu romance
é uma resistência da faceta cidadão ao caráter
burguês da épica moderna, não um
subjetivismo decadentista. Não à toa, Hölderlin
é uma presença constante nos escritos
lukácsianos sobre Heidegger, e ainda que seu
nome não seja sequer aludido neste ensaio de
1934 (os alvos aqui o Wilhelm Dilthey, que
faz do poeta um precursor das filosofias de
Schopenhauer e Nietzsche, e Friedrich Gundolf,
um dos mais destacados literatos da República
de Weimar), restam evidentes as bases da
profunda divergência no modo como ambos os
filósofos interpretam o escritor.
Como em qualquer resenha, nosso intuito
aqui não é esgotar os argumentos do autor,
mas, evidenciando alguns elementos
significativos do texto, convidar à leitura do
livro em toda a sua sutileza e, se nos couber
uma última sugestão, sem a ânsia por extrair
generalizações categoriais ou juízos definitivos
que possam ser replicados a outros objetos
literários.
Referências:
LUKÁCS, György.
Goethe e seu tempo.
Trad.
Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes.
São Paulo: Boitempo, 2021.
LUXEMBURGO, Rosa.
Camarada e amante
:
Cartas de Rosa Luxemburgo a Leo Jogiches.
Carolina Peters
460 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 454-460 - mar. 2022
Trad. Norma de Abreu Telles. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1983.
MARX, Karl.
Manuscritos econômico-filosóficos.
Trad. Jesus Ranieri. o Paulo: Boitempo,
2010.
VEDDA, Miguel. Apresentação. In: LUKÁCS,
György.
Goethe e seu tempo.
Trad. Nélio
Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes. São
Paulo: Boitempo, 2021.
Como citar:
PETERS, Carolina. Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe.
Verinotio
, Rio das Ostras,
v. 27, n. 2, pp. 454-460, mar. 2022.
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Goethe: para além das aparências
Myreli Xavier*
VEDDA, Miguel.
Leer a Goethe
. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Quadrata, 2015.
192 p.
Leer a Goethe
, de Miguel Vedda, integra a
coleção
Llaves de lectura
, que, como o próprio
nome sugere, busca oferecer ao leitor
ferramentas que sejam úteis tanto para
aproximação inicial como para aprofundamento
em obras de grandes autores da literatura. A
sutileza do mote desta coleção não deve, no
entanto, induzir-nos a erro: trata-se
precisamente de portas de entrada e de chaves
no plural que se propõem a abrir as obras
de cada autor em múltiplas direções, conforme
assinalado pelo próprio editorial. Em
consonância com esse objetivo, no mero
dedicado a Goethe, o leitor não encontrará uma
chave de leitura unívoca que o colocará em
contato com um todo fechado e pleno de
sentido. Muito pelo contrário.
Ocorre, já no primeiro capítulo, um combate
devidamente fundamentado às leituras que
ofuscam as ambiguidades e se traduzem em
uma sistematização homogeneizante e inflada
de coerência tanto da vida como da obra do
escritor alemão, apresentando-o como uma
personalidade harmônica, dotada de unidade
orgânica, e cujas obras também possuiriam essa
suposta característica, refletindo, assim, um
trajeto trilhado de forma consciente, e sempre
ascendente, no desenvolvimento de um gênio
rumo ao aperfeiçoamento pessoal à
semelhança do modo com que os protagonistas
de obras como
Fausto
e
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
foram
vulgarmente recepcionados pelo grande
público da época.
Tais leituras simplificadoras e unilaterais,
que seguem, em larga medida, vigentes,
concentram-se apenas em alguns aspectos e
não vão além da superfície mais aparente,
colocando em risco a riqueza do legado
goethiano. Nesse sentido, a proposta de Vedda
é, em linhas gerais, justamente promover um
resgate da vida e da obra do autor de
Fausto,
*Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com financiamento
concedido pela Fapemig.
E-mail
: xavier.myreli@gmail.com.
e os motivos pelos quais ele é merecedor dessa
(laboriosa) empreitada vão sendo expostos
paulatinamente ao longo de seu livro.
Se, por um lado, são realmente
apresentadas ao leitor algumas chaves
interpretativas no sentido de esclarecer
alguns
Leitmotivs
, figuras recorrentes e
elementos mitológicos presentes nas obras de
Goethe, além de explanações sobre
acontecimentos históricos e biográficos , por
outro lado, essas leituras lançam luz justamente
sobre a heterogeneidade, as contradições e os
sinais da história acerca dos quais encontramos
vestígios na vida e na produção literária do
escritor alemão, mas que não foram expressos
ali de maneira direta, emotiva ou autobiográfica
fosse assim diriam respeito apenas a um
indivíduo singular, quando muito a um pequeno
grupo, e não integrariam o patrimônio cultural
da humanidade. É justamente na configuração
estética das “contradições vivas de seu tempo”
dos problemas atinentes a todos os homens,
quer tenham consciência deles ou não que se
encontra sua riqueza e fecundidade. Esses
aspectos, que hoje podemos acessar por meio
de seus escritos, articulam a importância de se
resgatar Goethe, conforme nos revela Vedda
(2015, p. 14-15) e também sinalizam a
importância do esforço empreendido pelo
catedrático argentino.
Como o próprio autor expõe logo na
abertura do primeiro capítulo, trata-se de uma
leitura própria solidamente fundamentada,
devemos acrescentar da obra do escritor
alemão, que não tem o propósito de oferecer
uma visão coerente e exaustiva a seu respeito.
Tal tarefa seria impossível, o apenas pelo
caráter predominantemente geral e introdutório
da proposta, mas também e principalmente
porque se trata, segundo suas próprias
palavras, de uma obra especialmente
inapropriada para um tratamento sistemático,
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.630
Goethe: para além das aparências
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 461-464 - mar. 2022 | 461
unitário e generalizador” (VEDDA, 2015, p.
11)
1
, nos moldes do que foi costumeiramente
conferido por vários intérpretes.
Leer a Goethe
inicia-se, portanto, com esse
laborioso esforço de desarticular leituras
homogeneizadoras, que contribuíram para
converter Goethe em um mito, uma lenda.
Desse modo, valendo-se do material produzido
por críticos e biógrafos relevantes, da
correspondência pessoal do escritor alemão,
bem como de sua vasta produção literária,
Vedda se dedica a demonstrar que quando se
efetua uma leitura honesta e objetiva do
conjunto, sem privilegiar apenas o que
impressiona e o que se harmoniza com
interesses e pontos de vista próprios ou pré-
estabelecidos, resulta clara a incorreção das
referidas interpretações. Por outro lado,
procura destacar também a proximidade dessas
interpretações unilaterais com posturas de
matizes variados: a pequeno-burguesa,
protestante e
middle-class,
que degrada os
escritos goethianos a “uma sorte de catecismo
moral simplificador e coerente”, supostamente
alinhados à moral da classe média; a estilização
idealista, que trata de “afirmar uma unidade
perfeita entre vida e obra e, por sua vez, entre
ambas e o desenvolvimento intelectual da
Alemanha” e, por último, porém próxima a esta
última, a canonização nacionalista, que converte
Goethe em herói nacional, pai da nação, líder
(
Führer
) “de uma aristocracia de espíritos”
estratégia ideológica fascista que perdura até
hoje.
Por vias diversas, Vedda observa que se
buscou uma unidade orgânica no interior das
obras de Goethe e também na própria vida do
autor para a qual sua autobiografia contribuiu,
em alguma medida que na realidade não
existiu. Encontramos, de fato, algumas
continuidades e elas são pontuadas pelo autor
da análise. Mas ele chama atenção para o fato
de que uma leitura fidedigna não pode se furtar
a reconhecer a existência no geral muito maior
e mais significativa das irregularidades e
dissonâncias, menosprezadas ou obscurecidas
por correntes de orientações distintas, ainda
que, em alguma medida, afins.
Tendo em vista os objetivos e limites de uma
resenha, não cabe reproduzir aqui todo o
trajeto por meio do qual o autor não leva a
cabo as referidas críticas como demonstra e
sustenta suas teses. Para conhecê-lo, exortamos
a leitura desse texto, no qual o leitor será
introduzido a um Goethe multifacetado, que
inovou praticamente em todos os gêneros
literários com os quais entrou em contato. Um
indivíduo que, a despeito do grande artista que
1
Todas as traduções são da autora da resenha.
foi, possuía uma personalidade vacilante, era
incerto de sua própria capacidade criadora,
insatisfeito com a recepção de suas obras e
buscava um ponto de solidez ao qual se agarrar
em meio ao caos: um homem que se
esforçado muito” e para o qual a escrita não se
realizava de forma fácil e espontânea.
Nosso principal objetivo aqui será apontar
alguns dos traços do Goethe de Miguel Vedda
que sobressaem nos três capítulos posteriores
à sua crítica inicial, que acabamos de esboçar.
Em termos de estrutura, pode-se dizer, em
linhas gerais, que cada um deles é dedicado
porém, não de forma rígida e hermética a um
período da vida do escritor alemão, começando
por sua juventude. Tendo em vista a
impossibilidade de abarcar, e muito menos de
sistematizar, toda a produção de Goethe,
Os
sofrimentos do jovem Werther
,
Torquato Tasso
e
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister
são as principais obras analisadas por Vedda.
Ainda que rios outros títulos sejam
incorporados à discussão e examinados, em
maior ou menor grau, com grande domínio e
propriedade, estas obras são representativas
de diferentes fases da produção literária do
escritor alemão e podemos dizer que
constituem uma espécie de fio condutor das
análises empreendidas pelo catedrático
argentino em cada um dos referidos capítulos.
O objetivo último é aquele ao qual fizemos
referência: resgatar o autor de
Fausto
das
banalizações e restituir laboriosamente a
complexa riqueza e multiplicidade de sua vida
e de sua obra, “que a pseudocultura pequeno-
burguesa insiste em lhe subtrair” (VEDDA,
2015, p. 182).
No capítulo dedicado aos anos de juventude
do escritor alemão, destacam-se a abordagem
e a caracterização do movimento
Sturm und
Drang
, no seio do qual Goethe começou a
escrever, além da influência do sentimentalismo
e de autores como Lessing e Herder.
Combatendo mais uma vez teses comumente
reproduzidas, Vedda se empenha em
demonstrar que, por mais importante e decisivo
que tenha sido o papel de Herder para a
formação do jovem escritor como de fato foi
, as raízes de sua visão de mundo e de sua
literatura encontram-se em um período anterior
ao do encontro com o mentor, quando se
dedicou ao estudo da “filosofia emanativa” ou
do
systema emanativum
.
Conforme esclarece o professor argentino,
esse sistema “propunha uma cosmovisão na
qual o valor dos elementos singulares depende
da função que eles possuem dentro da
totalidade. Central é a categoria da
Myreli Xavier
462 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 461-464 - mar. 2022
polaridade
(VEDDA, 2015, p. 53). Goethe, que
tinha grande antipatia pelas sistematizações e
pela ideia de sistema e que a despeito de
todas suas observações nesse sentido acabou
sendo vítima delas
2
, o assimilou essa
filosofia como um sistema fechado, mas sim
como um ponto a partir do qual elaborou uma
“cosmovisão pessoal”, que ele mesmo veio a
designar, mais tarde, como sua “religião
pessoal”.
Detemo-nos nesse episódio porque,
conforme defende Vedda, é nesse período que
começa a ser elaborada a ideia da polaridade
como traço essencialmente humano, e crucial
para a sua compreensão. Essa ideia
desempenhará um papel muito importante na
conformação das obras goethianas, e podemos
dizer que é uma das grandes responsáveis por
sua fecundidade. Ainda segundo o autor de
Leer a Goethe
, traços da assimilação pessoal
dos conteúdos da referida filosofia podem ser
vistos desde os seus escritos de juventude, nos
quais ocupa lugar de destaque justamente a
polaridade: forças luciferinas e ganimédicas,
concentração e expansão e sístole e diástole
como impulsos contrários que confluem para a
geração do pulso da vida. No entanto, isso é
configurado sem que se realize nem uma
depreciação e uma censura; nem uma
sobrevalorização de um único polo,
fundamentada em uma moral abstrata e
normativa. O que se almeja é o estabelecimento
de uma reconciliação, um “equilíbrio
superador”. Ambos os polos possuem “valor
relativo, porém inquestionável”, de modo que,
no interior das forças luciferinas, são
identificados traços como a concentração no
mundano, o impulso individualista, o
ensimesmamento, a tendência para a ação e a
faculdade criadora (por vezes representada
pelo fogo, elemento luciferino que aparece em
algumas obras); ao passo que no polo
ganimédico são reconhecidas, por exemplo, a
aspiração a uma fusão com a totalidade, a
elevação ao espiritual e a melancolia que, em si
mesma, é ambígua e pode ser tanto mórbida e
patológica, como divina e positiva. Uma
multiplicidade e uma variação caleidoscópica
destes e de outros traços aparecem
configuradas em vários personagens da
literatura goethiana e por vezes no interior
2
El modo más ingenioso de volverse tonto es a través de un sistema
: esta frase de Shaftesbury, que
en el verano 1774 copió Goethe en el cuaderno de un amigo, podría funcionar como epígrafe de su
producción literaria y científica; en ella encontramos una continua fascinación por la multiplicidad y
concreción naturales, y una crítica al reduccionismo. Esto hace que resulte especialmente absurdo el
empeño en volverse ingeniosamente tonto rastreando en el
Fausto
y el
Wilhelm Meister
una unidad
ausente. Pero, como vimos, el furor unificador no se circunscribió a la obra, sino que se extendió a la
propia vida del autor, en la que se pretendió ver también algún tipo de coherencia orgánica.(VEDDA,
2015, p. 19)
mesmo de alguns que, não raro, influenciam-
se mutuamente em um complexo
(des)equilíbrio.
Paralelamente às análises literárias, são
contemplados também acontecimentos
históricos e biográficos que impactaram a
formação e o desenvolvimento do escritor
alemão, acerca dos quais encontramos vestígios
em sua produção literária o período em
Weimar e a vida ativa, na qual se gestou o que
se conhece como o objetivismo em Goethe, o
convívio amistoso com Charlotte von Stein, a
relação amorosa, à época escandalosa, com
Christiane Vulpius, a amizade com Schiller, a
Revolução Francesa etc. rios desses
acontecimentos adentram o universo dos
personagens goethianos não como expressão
direta das vivências e sentimentos de seu autor,
mas sim de maneira muito mais diversificada,
sutil e complexa, de modo que as posições dos
protagonistas não são necessariamente as de
seu criador. Muitas delas ele, inclusive,
desaprova. Por isso, lê-lo nesta chave
constituiria não apenas uma banalização, mas
principalmente a esterilização de seu caráter de
memória do gênero humano.
O Goethe que Miguel Vedda introduz ao
leitor é um exímio observador da realidade de
seu tempo, com grande habilidade para o
distanciamento, a auto-observação e a
autoironia, aspectos por vezes ausentes em
alguns protagonistas, como Werther, que
chegou a ser diretamente identificado pelo
grande público da época com o próprio Goethe,
em uma “confusão entre ficção e realidade”
(VEDDA, 2015, p. 61-62). Goethe era alguém
com excepcional capacidade para reconhecer e
configurar a situação objetiva, para “abordar
um problema a partir de perspectivas
contrapostas, sem outorgar a nenhuma a
verdade definitiva” (VEDDA, 2015, p. 95). Um
homem versado em política e literatura que
destacou vestígios da Modernidade em seus
personagens, repartindo entre eles doses
equilibradas de razão e desrazão, de acerto e
de erro (VEDDA, 2015, p. 107).
Associada a isso encontra-se outra
característica importante do escritor alemão,
que sobressai ao longo da exposição de Vedda:
muito embora seja capaz de identificar
precocemente, podemos dizer alguns
Goethe: para além das aparências
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 461-464 - mar. 2022 | 463
malefícios e problemas nodais da Era Moderna,
submetendo-os a uma crítica precisa e acurada
(as instituições impessoais, que parecem ganhar
vida própria e que se tornam hostis aos
homens; a redução dos indivíduos às suas
funções; o individualismo; o excesso como
medida, a veloz marcha
velociférica
em que
caminhava a modernidade etc.), Goethe não é
um rontico que idealiza um retorno ao
passado. Apesar dos graves problemas, ele não
perde de vista a existência de progressos e de
potencialidades que não devem ser
abandonadas, nas quais repousa uma pequena
centelha de esperança, praticamente utópica,
de dias melhores. Ainda que, enquanto
observador agudo e preciso da modernidade
estivesse desencantado com a possibilidade
efetiva da atualização dessas potências naquele
momento, o escritor alemão que, como
destaca Vedda (2015, p. 184), não pensava de
forma deliberada e consciente em termos de
emancipação humana” – soube enxergar “tanto
seus aspectos bárbaros e bestiais como suas
débeis, porém reais potencialidades de
liberação”.
Extremamente hábil para o reconhecimento
e a configuração da realidade de seu tempo,
para perceber seu caráter extremamente
fragmentário oposto à unidade e harmonia do
período clássico e seu potencial tanto
negativo como positivo lembremo-nos da
ideia da polarizão que apontamos , o
escritor alemão não capitula diante dos
problemas de sua época. Não cai na melancolia
mórbida e no lamento romântico, infrutíferos
para a ação, mas também não é um defensor
cego da causa dos modernos, nem celebra
incondicionalmente o triunfo do indivíduo.
Tampouco se aproxima de uma postura filisteia,
de adequação sem reservas à barbárie que se
instaurava. A mediação e o equilíbrio evocado
entre diferentes polos, bem como a esperança
de alcançá-lo, não adquire, no entanto,
contornos definidos, de modo que uma solução
unívoca para os problemas não é objetivamente
apresentada. Conforme observa Vedda, a obra
é muito mais frutífera na colocação das
questões do que no fornecimento de respostas.
E isso não constitui necessariamente uma falta,
pois, de fato, “a literatura cumpre muito melhor
com seu propósito quando configura de
maneira complexa um problema do que quando
se propõe a avançar soluções” (VEDDA, 2015,
p. 178). Ainda, o fato de permanecer vaga
quanto a este aspecto serve também como
indício de uma recusa às soluções ingênuas e
simplificadoras que, perante a complexidade do
problema e da variedade de elementos
envolvidos, acreditam que a “resposta certa” é
aquela que busca preservar o que é “bom” e
eliminar o que é “ruim”, a fim de otimizar o
resultado à semelhança do otimismo filisteu
de Wagner, assistente de
Fausto
.
Antes de prosseguirmos, é preciso fazer
uma importante advertência: os traços do
Goethe descortinado por Miguel Vedda que
temos destacado até agora podem ter passado
a errônea impressão de que o catedrático
argentino estivesse tentando transformar o
autor de
Fausto
em um protomarxista,
restringindo a compreensão deste ao âmbito
dos debates estéticos travados nessa corrente.
Não se trata disso. Embora algumas afinidades
pontuais com o que posteriormente pensou
Marx sejam assinaladas no decorrer das
análises, Vedda reconhece igualmente a
existência de divergências que não podem ser
ignoradas. Aqui também é realizado o
referido esforço de uma apreensão fiel do
conjunto que não busca suprimir a diversidade
e os elementos que se mostrariam
inconvenientes caso se pretendesse realizar tal
conversão e identificação direta o que não é
o caso.
Passando, finalmente, ao período de
maturidade do escritor alemão, no qual se
encontram obras como
Os anos de aprendizado
de Wilhelm Meister
e o segundo
Fausto
,
encerraremos com alguns apontamentos sobre
o que ficou conhecido como
Altersstil
: o estilo
de velhice de Goethe. Esse é um período em
que se observam a concisão estilística, o
realismo, a propensão à ironia e a composição
de obras abertas. Ele é caracterizado, nas
palavras do autor da análise, por “sua
enigmática abstração, sua renúncia a toda
referencialidade direta, sua extrema distância
de qualquer expressão emocional imediata”
(VEDDA, 2015, p. 123).
Há, porém, ainda outro traço muito
importante desse período, para o qual
procuramos chamar a atenção no título desta
resenha. Se, por um lado, nosso título faz uma
referência indireta à crítica e à incorreção da
mitificação e aparente unidade orgânica entre a
vida e a obra do escritor alemão, por outro lado,
ele está relacionado sobretudo ao fato de que
um dos principais traços de seu estilo de velhice
é a propensão ao genérico e ao essencial,
expressos por Vedda (2015, p. 124) como a
“vontade de remeter aos princípios essenciais
do real, por trás das fantasmagóricas
aparências”.
Conforme apontado pelo professor
argentino, o interesse prioritário pelo genérico
possui, no caso de Goethe, uma afinidade com
a identificação de traços essencialmente
humanos como a “faculdade ética presente
como latência” apenas entre os seres humanos
e totalmente ausente na natureza, assim como
os ideais de justiça e felicidade. Esses traços
essenciais são representativos de “uma débil
Myreli Xavier
464 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 461-464 - mar. 2022
força salvadora” perante a fragmentação da Era
Moderna e encerram em si a esperança em uma
possibilidade remota, sem contornos
objetivamente definidos que não se
apresentava como algo imediatamente
realizável para o escritor alemão no potencial
de reconciliação do gênero humano com a
natureza e consigo mesmo
3
.
Uma marca importante de suas obras,
sobretudo daquelas da maturidade, é que
Goethe toca na essência; toca em problemas
nodais do processo de civilização e em
questões éticas importantíssimas.
Configurando-os com agudeza e precisão, ele
não lhes conferiu um tratamento dogmático, no
plano transcendental, mas sim no plano
histórico e social ao qual esses dilemas
pertencem e de onde efetivamente provêm ,
com a convicção de que é neste plano, ou seja,
no âmbito terrenal, que os preceitos éticos e as
convicções morais devem ser colocados à
prova, testadas e validadas (VEDDA, 2015, p.
183). Essa refiguração artística ímpar bem
como o tratamento social desses temas,
constituem, segundo o autor de
Leer a Goethe
,
a maior riqueza de seu legado e também o
motivo pelo qual ele passou a integrar a
memória do gênero humano. Por tudo isso é
que Miguel Vedda se dedicou à laboriosa e
necessária tarefa de resgatá-lo das
banalizações pequeno-burguesas, e que
recomendamos sua leitura atenta.
Como citar:
XAVIER, Myreli. Goethe: para além das aparências [resenha].
Verinotio
, Rio das Ostras,
v. 27, n. 2, pp. 461-464, mar. 2022.
3
Acabamos de destacar o fato de que Vedda considera incorreto e tendencioso estabelecer uma
identificação direta com as posteriores reflexões marxianas, neste caso, com aquelas sobre a essência
genérica do ser humano [
Gattungwesen
].