Verinotio  
NOVA FASE  
28  
número 1  
2022.2/2023.1  
EDIÇÃO ESPECIAL  
30 anos de  
O futuro ausente  
Grupo de Pesquisa Marxologia: Filosofia e Estudos Confluentes/CNPq  
Curso de Serviço Social (Universidade Federal Fluminense - UFF - Rio das Ostras)  
REVISTA VERINOTIO  
NOVA FASE  
30 ANOS DE  
O FUTURO AUSENTE  
Edição Especial  
2022-2023  
VERINOTIO - REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS  
ISSN 1981-061X v. 28 n. 1 - Edição Especial, 2022/2023  
As opiniões emitidas em artigos ou notas assinadas são de responsabilidade  
exclusiva dos respectivos autores.  
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL DA  
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE  
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Milano Bicocca, Itália; Dr. Mario Duayer, in memoriam; Dr. Mauro Castelo Branco  
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Dr. Ricardo Lara, UFSC, Brasil; Dr. Ricardo Prestes Pazello, UFPR, Brasil; Dr.  
Ronaldo Rosas Reis, UFF, Brasil; Dr. Vinícius Gomes Casalino, PUC-Campinas,  
Brasil.  
SUMÁRIO  
Editorial ................................................................................................................................ VII  
Vitor Bartoletti Sartori  
30 anos de O futuro ausente  
O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no  
tratamento da política ..................................................................................................................... 3  
Vitor Bartoletti Sartori  
Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade: a análise do caso  
brasileiro .......................................................................................................................................... 86  
Ester Vaisman, Vânia Noeli Ferreira de Assunção  
Problemas selecionados em determinação social do pensamento .................................. 123  
Elcemir Paço Cunha  
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”: explorando origens e  
consequências ..............................................................................................................................147  
Alexandre Aranha Arbia  
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx ...................................................... 183  
Ana Selva Albinati  
A crítica ontológica de Marx, 180 anos .................................................................................. 199  
Leonardo Gomes de Deus, Guilherme de Oliveira e Silva  
A crítica marxiana da política: seguindo as trilhas abertas pelo autor de  
O futuro ausente …………...…………..………………………………………………... 223  
Felipe Ramos Musetti  
Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro  
ao segundo humanismo renascentista: uma continuidade do debate iniciado por J.  
Chasin n’O futuro ausente ........................................................................................................ 266  
Claudinei Cássio de Rezende  
J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade …………………………..…. 282  
Sabina Maura Silva  
A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais:  
ontonegatividade da política e a ontologia do ser social ……………………..………. 300  
Ronaldo Vielmi Fortes  
Traduções  
Nueva literatura en Rusia (1927) ............................................................................................. 333  
Walter Benjamin  
Artigos  
Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter Benjamin (1927) .................................. 342  
Érica Brasca, Tomás Sufotinsky  
Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica ............................ 354  
Emiliano Orlante  
Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”: convergências entre a  
filosofia da vida da fase imperialista e a teoria decolonial do conhecimento de W.  
Mignolo ......................................................................................................................................... 369  
Lara Nora Portugal Penna  
DOI 10.36638/1981-061X.2020.28.1.677  
Editorial  
Vitor Bartoletti Sartori  
Publicamos o atual número no momento em que a esquerda brasileira comemora  
o início do terceiro mandato de Lula. Do ponto de vista da maioria daqueles que  
apoiaram a candidatura, qualquer tom crítico quanto ao presente poderia parecer  
“fazer o jogo da direita”; a primeira coisa a se dizer é: não nos enquadramos entre  
esses setores. Este número duplo da Verinotio (relativo ao segundo semestre de 2022  
e ao primeiro de 2023) é uma denúncia da miséria intelectual em que nos encontramos  
hoje. E, assim, essa publicação que sai ao mesmo tempo em que o primeiro livro das  
Edições Verinotio, O futuro ausente, de J. Chasin parte da convicção que a capitulação  
diante do presente está no cerceamento da crítica e em fechar os olhos diante da  
ausência de perspectivas e de posicionamentos teoricamente fundamentados.  
É necessário dizer de modo explícito: as chamadas esquerdas foram essenciais  
para a derrota eleitoral – e destacamos o “eleitoral” – do projeto de extrema-direita  
de Bolsonaro, dos militares etc. Isso não é pouco, certamente. Sem o protagonismo  
daqueles à esquerda, a vitória bolsonarista seria certa. Nesse sentido, tem-se um  
respiro.  
O respiro diante de uma situação sufocante, porém, traz também a urgente  
necessidade de preparação para o que se segue e que ainda precisa ser compreendido  
com cuidado. Ou seja, o alívio imediato não pode se confundir com o caminho para  
que se rompa com a miséria material e intelectual que marca o Brasil e o mundo atuais.  
A embriaguez com a vitória eleitoral corre sempre o risco de encobrir a derrota social  
a que a perspectiva do trabalho vem sendo submetidas diuturnamente há muito tempo.  
Nesse sentido, a atitude mais perigosa no momento é acreditar que, agora, as coisas  
se colocam nos eixos, depois de um desvio meramente circunstancial. Tal ilusão pode  
ser muito perigosa. Acreditamos que este número duplo da revista também é um alerta  
sobre isso, e sobre o modo insuficiente, por vezes descuidado, pelo qual pensamos  
(nós todos inclusos, evidentemente) o modo de produção capitalista em sua figura  
contemporânea.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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nova fase  
Editorial  
Os textos da presente Verinotio estão divididos em três sessões: 1) dossiê sobre  
O futuro ausente, de J. Chasin; 2) Tradução de um texto de Walter Benjamin sobre a  
literatura soviética posterior à Revolução Russa de 1917; 3) Artigos de tema livre. Os  
textos falam por si mesmos, de modo que não cabe resumi-los ou explaná-los nesse  
espaço. Porém, há de se destacar alguns pontos mais gerais sobre a nossa orientação  
editorial.  
O primeiro deles é a necessidade de publicação dos clássicos do marxismo, como  
Walter Benjamin. Mesmo que a revista não se alinhe diretamente com a teorização  
benjaminiana, é necessário reconhecer a qualidade do autor, sua seriedade e o  
comprometimento de seus textos com a escavação da realidade do capitalismo. Ou  
seja, o clubismo, o “Fla-Flu”, inerente a grande parte da academia nacional e  
internacional, não pode ter espaço quando se trata de tentar manter o primor na  
qualidade editorial.  
Segundo ponto: a discussão e o embate de qualidade precisam ser estimulados.  
Os dois textos de tema livre que publicamos tratam de debates estéticos, os quais  
poderiam ser julgados muito distantes das classes trabalhadoras; e, novamente, é  
preciso pontuar: não compartilhamos de quaisquer ímpetos imediatistas quanto à  
função social das formações ideais. Somos partidários dos debates de qualidade sobre  
os grandes problemas que marcam os rumos do gênero humano, como aqueles  
colocados na arte.  
Por fim, deve-se dizer que, no dossiê que aqui publicamos, o presente número  
traz debates que partem das teorizações de J. Chasin. Trata-se de um autor que muitas  
vezes é criticado sem qualquer conhecimento sobre sua obra. Não raro, confunde-se,  
por exemplo, determinação ontonegativa da politicidade com o abandono da política,  
com o abstencionismo e com uma espécie de consciência infeliz (mesmo que os  
detratores do autor, não raro, nem sequer saibam alguma coisa sobre essa figura  
mencionada). Sobre isso, acreditamos que qualquer pessoa que se disponha a ler esse  
número e o livro O futuro ausente perceberá que tais posicionamentos carecem  
completamente de fundamento.  
Os textos aqui reunidos mostram como as determinações do pensamento  
chasiniano estão, em seus fundamentos, no próprio Marx. E mais: não só nas obras  
dos anos 1843-44, para as quais os marxistas althusserianos torcem o nariz, mas  
também em textos como os Grundrisse, A guerra civil na França e O capital, dentre  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. VII-X - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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Editorial  
outros. Que seja possível discordar disso, não achamos impossível. Porém, para fazer  
isso, é necessário confrontar as citações marxianas, o estudo do pensamento de Marx  
e os desenvolvimentos que foram propiciados pela pessoa e pela obra de Chasin, bem  
como por aqueles que o seguiram.  
Até agora, no entanto, a tática adotada diante do filósofo paulista e de suas  
teorizações foi quase unânime: trata-se de uma conjunção de ataque a um espantalho  
dolosa e vergonhosamente construído e da guerra do silêncio, que, não raro, passa  
longe de ser inocente. Ou seja, para dizer o mínimo: o rechaço da posição chasiniana  
não foi realizado com honestidade intelectual e com o crivo do debate público de  
qualidade.  
Dentre outras coisas, acreditamos que esse debate que precisa ser resgatado; a  
regeneração (para que se use uma expressão de Marx, que quase nunca é lembrada)  
dos embates de qualidade na esquerda é uma necessidade do presente. Sem ela, na  
melhor das hipóteses, gira-se em falso, enquanto a direita e extrema-direita ganham  
fôlego, ocupam espaços e tomam a dianteira na formação de uma consciência de  
massa. Se o velho mouro disse que é necessária a formação de uma consciência  
comunista de massa, é preciso que reconheçamos que estamos muito longe disso.  
Certamente, isso ocorre devido à configuração do capitalismo atual, que ainda precisa  
ser compreendido devidamente. Porém, dentro dessa configuração, estão também as  
posições desenvolvidas à esquerda. Até agora, elas vêm sendo parte do problema, de  
modo que Chasin foi duro: trata-se da pseudoesquerda, da esquerda morta. Talvez  
seja preciso digerir essa enorme derrota sem nunca recair em abstencionismo para  
que possamos avançar.  
Para que isso seja possível, há de se destacar, também, como os textos aqui  
trazidos deixam claro: há desenvolvimentos originais do autor de Marx: estatuto  
ontológico e resolução metodológica que precisam ser debatidos. Seria possível trazer  
vários exemplos, mas o momento atual de nosso país faz com que mencionemos a  
teorização chasiniana sobre a miséria brasileira. Ela tem especificidades que fazem  
com que precise ser estudada a fundo; também é uma exclamação contra a adoção  
acrítica de modelos prontos para se tratar da realidade e da particularidade nacional  
do capitalismo brasileiro.  
Por isso, acreditamos que a leitura do presente volume duplo, bem como de O  
futuro ausente, pode ser uma modesta contribuição diante da situação em que se  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. VII-X - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| IX  
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Editorial  
encontra o Brasil. Debates teóricos de qualidade, estudo da obra do próprio Marx,  
bem como dos clássicos, compreensão do ser-propriamente-assim do capitalismo  
contemporâneo, nacional e internacional, são o mínimo para que possamos avançar.  
Caso fiquemos repetindo as cantilenas do passado e torcendo para que finalmente  
tenham efeito, não nos diferenciaremos muito de religiosos, na melhor das hipóteses,  
heréticos. Também não teremos moral alguma para criticar aqueles que procuram  
retomar de modo acrítico ídolos do passado e momentos do passado. É preciso atacar  
a tentativa de resgatar a ditadura militar de 1964, bem como os militares: é óbvio.  
Porém, fazer isso com uma espécie de oscilação entre a esperança e o medo, oscilação  
essa que se nutre da nostalgia quanto aos momentos supostamente áureos da  
esquerda do século XX é, no mínimo, ilusório. Não queremos simplesmente jogar um  
balde de água fria naqueles que estão esperançosos quanto ao presente; intentamos  
o mínimo que se pode exigir da esquerda: autocrítica, debate de qualidade,  
compreensão fundamentada sobre o passado e sobre o presente e, por fim, um  
posicionamento firme contra o sistema capitalista de produção. Tomar os anos de  
2002 a 2016 como um modelo é a antítese direta disso. Tentar simplesmente resgatar  
os bons tempos do marxismo do século XX também não é solução. Para que se possa  
refletir sobre um futuro ausente, sobre a crítica da política e a necessidade da luta pela  
emancipação humana, oferecemos ao público o presente número, bem como o texto  
de J. Chasin.  
Belo Horizonte, março de 2023  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. VII-X - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.672  
O futuro ausente no presente: o pastiche do  
politicismo e a unilateralidade no tratamento da  
política  
The lack of future: the pastiche of the politicism  
and the unilaterality on politics  
Vitor Bartoletti Sartori*  
Resumo: analisaremos O futuro ausente, de J.  
Chasin. Intentamos demonstrar a atualidade  
desse texto em um momento em que, na melhor  
das hipóteses, aquilo criticado pelo autor é visto  
como solução pela autoproclamada esquerda.  
Para tanto, analisaremos a correlação colocada  
entre ontologia e política na atualidade.  
Posteriormente, mostraremos que Chasin analisa  
o melhor da concepção ontopositiva da política  
com o fim de explicar a gênese e a estrutura do  
pensamento político, bem como da própria  
política. Por fim, pretendemos deixar claro que O  
futuro ausente é um importante ponto de partida  
para a crítica ao presente, embora não seja  
suficiente para tanto. Caso se leve a sério os  
apontamentos do filósofo paulista, há ainda um  
longo caminho a ser percorrido.  
Abstract: we will analyze The lack of future, by  
J. Chasin. We intend to demonstrate the  
relevance of this text at a time when, at best,  
what is criticized by the author is seen as a  
solution by the self-proclaimed left. To do so,  
we will analyze the correlation between  
ontology and politics today. Later, we will show  
that Chasin analyzes the best of the  
ontopositive conception of politics to explain  
the genesis and structure of political thought, as  
well as politics itself. Finally, we intend to make  
it clear that The lack future is an important  
starting point for the critique of the present,  
although it is not sufficient. If the São Paulo  
philosopher are taken seriously, there is still a  
long way to go.  
Keywords: Chasin; Marx; critique of politics;  
ontonegative determination of politicity; The  
absent future.  
Palavras-chave: Chasin; Marx; crítica da política;  
determinação ontonegativa da politicidade; O  
futuro ausente.  
O futuro ausente como nosso contemporâneo  
O futuro ausente, certamente, é nosso contemporâneo. E, pode-se mesmo dizer:  
isso perfaz uma infelicidade, mesmo que já anunciada há tempos. Em primeiro lugar,  
isso diz respeito à atualidade com a qual aparece o diagnóstico de J. Chasin segundo  
o qual, sua época “não é o fim dos tempos, mas é o tempo das crises” (CHASIN, 2012,  
p. 60).  
Longe de se ter a realização de um cosmopolitismo pungente e marcado pela  
* Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Mestre  
em história social pela PUC-SP e doutor em teoria e filosofia do direito pela USP. E-  
mail:vitorbsartori@gmail.com.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, 30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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Vitor Bartoletti Sartori  
paz, como previram os apologetas liberais do início dos anos 1990, temos diante de  
nós algo muito distinto: as crises e as guerras que, em verdade, já davam a tônica  
do desenvolvimento societal do capital na época em que o texto foi escrito são  
corriqueiras e, talvez, possa-se até mesmo dizer, algo que vem se apresentando com  
certa tendência de permanência até então. Trata-se da “radicalidade alcançada pelo  
drama imanente aos tempos do capital” (CHASIN, 2012, p. 60). Hoje, em nível mundial,  
isso é visível.  
Deve-se ressaltar que tal diagnóstico, bem como o acerto dele, refuta claramente  
as modernidades reflexivas de autores como Ulrich Beck ou (de modo mais cínico)  
Anthony Giddens. A impotência prática da União Europeia, ou de qualquer aliança  
como a ONU ou a Otan diante das crises, e das guerras, também explicita a  
impossibilidade da alguma espécie constelação pós-nacional, como a prevista por  
Jürgen Habermas.  
O posicionamento chasiniano, porém, não traz consigo qualquer catastrofismo,  
como aquele que defende uma espécie de “colapso da modernização” à Kurz ou  
mesmo o que ocorre em certas leituras de Mészáros sobre a “crise estrutural do  
capital”. Para nosso autor, o futuro está ausente; ele não é uma configuração do  
apocalipse, “não é o fim dos tempos, mas é o tempo das crises” (CHASIN, 2012, p.  
60). De certo modo, tanto os diagnósticos mais cosmopolitas e, de certo modo,  
próximos do liberalismo (Beck e Giddens, em nossos exemplos), quanto aqueles do  
“pós-marxismo” de Kurz, ou que, como o autor de Para além do capital, enxergam uma  
espécie de crise terminal (mesmo que de longo ou longuíssimo prazo “se tivermos  
sorte”) acabam trazendo algo próximo de certezas que não necessariamente eram  
possíveis na época, ou mesmo hoje.  
Talvez, e esse é um ponto importante para a análise marxista, olhando  
retrospectivamente, seja preciso se questionar se a coruja de Minerva já levantou voo;  
colocando em outros termos: as contradições do sistema capitalista de produção, em  
sua figura atual, já foram suficientemente explicitadas? Os agentes sociais capazes de  
subverter a ordem do capital já estão presentes de modo claro? Tais aspectos são  
importantes pois meramente repetir o que foi dito por Marx não resolve as  
contradições de uma época. Se é verdade que o autor de O capital pode ajudar muito  
nessa tarefa, igualmente certo é que é preciso voltar-se à compreensão do capitalismo  
contemporâneo.  
Verinotio  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 3-85 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
nova fase  
O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
Isso é algo que precisa ser respondido antes de qualquer posicionamento firme  
sobre os limites do desenvolvimento do capital. Deixar as portas abertas para esse  
questionamento foi um dos méritos de Chasin. Ele ressaltou a necessidade da  
“emergência de um agente social interessado em subverter muito mais do que as  
simples mazelas da falsa esquerda” (CHASIN, 2001, p. 26). E, assim, trouxe a aversão  
a qualquer dogmatismo, ao mesmo tempo em que sempre destacou a importância de  
se voltar a Marx.  
É preciso destacar isto: em um momento em que o marxismo vulgar ainda trazia  
o proletariado moderno como uma espécie de mito, Chasin questiona sobre o agente  
social interessado. E, se hoje são comuns reformulações sobre o tema, é preciso que  
se destaque os méritos do autor de Rota e prospectiva sobre o assunto. Ele não cai  
no otimismo de alguém como Gorz, também não procura respostas prontas em  
categorias demasiadamente amplas, plásticas e que têm uma configuração um tanto  
quanto esquiva, como “classe-que-vive-do-trabalho” ou “precariado”. E, com isso, O  
futuro ausente tem a coragem de questionar não só sobre o surgimento de um agente  
social interessado, mas também se, ao fim, a coruja de Minerva já levantou voo real e  
efetivamente.  
Algo que deveria ser óbvio para um marxista nem sempre é: o desenvolvimento  
das forças produtivas, bem como das relações de produção nem sempre tem uma  
conformação que explicita claramente as oposições de uma época. Engels mostrou  
como que, com os socialistas utópicos, isso aconteceu; Lukács acreditou que sua época  
trazia certa revolta contra a manipulação que seria análoga ao que acontecera  
anteriormente com os ludistas em um cenário em que a subsunção ao capital atingia  
os serviços, bem como o tempo livre das classes trabalhadoras. Ou seja, para o autor  
húngaro, as contradições de sua época não estavam claras aos marxistas, assim como  
não estiveram aos ludistas. E, em nosso ponto de vista, é preciso ter muita coragem  
para fazer uma afirmativa desse calibre. Chasin, dentre outros méritos, traz esse  
questionamento para seu tempo, explicitando, inclusive, que a configuração do  
proletariado moderno ao menos como trazida ao marxismo vulgar passava longe  
de ser hábil a trazer o revolucionamento das relações de produção. Assim, nosso autor  
trata da política tendo em conta aquilo que aparece como uma aporia de seu tempo.  
E isso é feito com a mente aberta à compreensão da real tessitura do presente, que  
não teria sido realmente desvendado destacamos nós , tal qual ocorreu na época  
de Lukács. O entendimento dessa situação, condição necessária para qualquer  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 3-85 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 5  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
transformação substantiva da realidade, é que reivindica o filósofo paulista. Isso  
deveria ser o mínimo para um marxista, aliás.  
Porém, de acordo com o autor que aqui tratamos, não é isso que ocorre.  
Outra questão importante: o autor de O futuro ausente sempre foi alguém que  
analisou a especificidade nacional e a conjuntura nacional e internacional. Com isso,  
suas análises foram realizadas com sólidas bases teóricas e com um profundo senso  
de realidade. Tal ímpeto, acreditamos, é mais que necessário hoje. Talvez, ele seja  
essencial para que possa haver um posicionamento firme contrário à imposição da  
reprodução ampliada do capital, e para a compreensão da real tessitura dessa, em  
seus meandros, especificidades e modo de reprodução nacional e internacional. Com  
isso, seu senso teórico sempre esteve relacionado à busca pela atividade capaz de  
revolucionar e subverter a sociedade capitalista, que precisa ser entendida em sua  
peculiaridade epocal.  
Ainda sobre esse ponto, é preciso destacar que ele está intimamente relacionado  
com o anterior. A compreensão do processo de autovalorização do valor é uma  
condição para a superação do modo de produção capitalista. E, se a coruja de Minerva  
não levantou voo realmente, há ainda um trabalho (preparatório) importante nesse  
campo. Não que não existam esforços importantes nesse sentido. Porém, é preciso se  
questionar se algum texto que busca o entendimento do capitalismo contemporâneo  
possui pretensões amplas e totalizantes como aqueles de Rosa Luxemburgo,  
Hilferding, Baran, Sweezy e, mais recentemente, Mandel. Trata-se de autores que  
trazem um diagnóstico cuidadoso de suas épocas. E, quanto a isso, é preciso delinear:  
o tratamento sobre aspectos de nossa época existe, claro. Existem certamente  
abordagens sobre a financeirização, sobre a precarização das garantias e dos direitos  
da classe trabalhadora, sobre certa mudança geográfica do desenvolvimento do  
capital, sobre a taxa de lucro, sobre a produção destrutiva etc. Porém, será que  
dispomos de uma análise cuidadosa e totalizante como aquelas dos autores  
mencionados acima sobre o capitalismo em sua fase atual? Se é verdade o que diz  
Chasin, talvez não dispuséssemos em sua época. E, salvo engano, ainda não temos  
ainda. E isso talvez possa ser explicado, inclusive, pelo não desenvolvimento e  
conformação de um agente social interessado na transformação substantiva e  
qualitativa das relações sociais de produção do capitalismo contemporâneo. Não  
podemos entrar aqui nessa querela, que renderia importantes debates. Porém,  
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nova fase  
O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
precisamos destacar: um dos méritos do texto chasiniano é colocar tais questões  
incômodas, que precisam ser pensadas de modo rigoroso e coletivo, para que o  
exercício teórico mantenha seu ímpeto prático.  
Retomemos, assim, à atualidade do texto: ao se voltar os olhos para a política, é  
claro que algo como as supostas terceiras vias (seja no perfil dos Walessa, seja com  
Tony Blair e cia.), muito propagadas na época em que Chasin escreve seu texto,  
acabaram por se mostrar como retumbantes fracassos, como, aliás, não poderia deixar  
de ser. A tão festejada (à época) globalização, por sua vez, sequer é mais mencionada  
como algo que tenha qualquer potencialidade minimamente progressista. Ela quase  
que desaparece do repertório das ciências sociais, que não tardam a trazer novos  
termos, não raro, tão questionáveis quanto esse. Ao se ter em conta as soluções  
políticas para um futuro ausente, porém, deve-se lembrar: formas econômicas e  
políticas subsumidas ao capital e que se apresentem enquanto alternativas não faltam.  
Elas possuem até mesmo certa funcionalidade na reprodução ampliada do modo de  
produção capitalista, mas não deixam de ser vistos como alternativas reais. À esquerda,  
com base em uma pseudoesquerda (CHASIN, 2001), basta pensar na esperança que  
certa “esquerda” nutre pelo governo português, ou mesmo pelo “capitalismo andino”  
da Bolívia ou pelo “socialismo do século XXI” presente na Venezuela. Se nos voltarmos  
à direita, a posição defensiva diante do avanço da extrema-direita (como Macron na  
França) e a própria extrema-direita não deixam de reativar as esperanças de muitos.  
Tais situações não podem deixar de ser consideradas caso pretenda-se entender como  
que, mesmo com as crises de todos os gêneros, continua muito difícil convencer de  
que, em verdade, é necessária a transformação radical (a supressão) do próprio modo  
produção. E isso tem ligação com o que falamos anteriormente: precisamos pensar se  
a coruja de Minerva levantou voo e se está presente efetivamente um agente social  
interessado na compreensão e na supressão das determinações essenciais do modo  
de produção capitalista em sua face atual.  
E há certamente um elemento teórico que se coloca nestes meandros. A  
teorização sobre a atividade política diuturna, não raro, ainda parte das mesmas bases  
que eram moda intelectual na época de J. Chasin. O nível teórico, porém, ainda é pior  
do que na época do autor e é preciso lembrar que, de acordo com Ad Hominem: rota  
e prospectiva, “o império do baixo nível é o reino da contrarrevolução. Não se faz  
respeitar pelos adversários, não se impõe aos inimigos e simplesmente ilude a  
militância despreparada” (CHASIN, 2001, p. 49). A impotência das vertentes políticas  
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Vitor Bartoletti Sartori  
é tanto maior quanto mais voluntarista é e quanto mais adstringe a teoria para inflamar  
a militância. Essa última, aliás, é numericamente ínfima perto do que se tinha na época  
em que O futuro ausente foi escrito. No campo mais propriamente da teoria, mesmo  
que se trate de pastiches de seus similares do passado, no Brasil, por exemplo, o  
chamado neodesenvolvimentismo em verdade, a implementação de programas  
sociais aprovados, inclusive, pelo FMI e pelos agentes financeiros internacionais, bem  
como a aposta no agronegócio e na exportação de commodities, como bem mostrou  
Cláudio Katz (2016) , vigente no lulismo, parece nos trazer certa nostalgia daquilo  
que supostamente poderia supostamente ter sido e não foi. Trata-se de uma conjunção  
fraca entre as sombras de certo nacionalismo e certo estatismo do passado, que são  
temperados com uma pitada de social-liberalismo. Esse último, aliás, era característico  
dos adversários políticos de Lula à época, como FHC (cf. CHASIN, 2001). E, hoje, na  
melhor das hipóteses, Lula procura fazer um papel social-liberal.  
Aos olhos da “esquerda”, retrospectivamente, com artifícios fenomenológicos  
que fariam inveja ao mais obstinado fenomenólogo, parece ser possível colocar entre  
parênteses todos os elementos da miséria brasileira e as mazelas perpetuadas,  
reafirmadas e reforçadas durante os governos petistas. Assim, de certo modo, diante  
da afirmação da barbárie bolsonarista, tornamo-nos todos idealistas, quer se queira,  
quer não. O artifício tão criticado por Lukács em sua crítica à fenomenologia acaba por  
fazer parte da consciência de esquerda que nos ronda e se afirma para que haja  
esperança depois do que se passou nos últimos 4 anos e que veio se desenvolvendo  
em meio à autocracia burguesa institucionalizada. O nominalismo e o voluntarismo da  
pseudoesquerda, criticados por Chasin em Rota e prospectiva, são vistos quase que  
como uma obrigação militante.  
Na prática, aquilo que se vislumbra no futuro é tão carente de perspectivas que  
se acaba por fechar os olhos diante daquilo que, para um marxista, deveria constituir  
as maiores obviedades. Qualquer “esquerda” – mesmo que de esquerda não tenha  
mais nada e mesmo que se associe com todas as alas da direita não autocrática é  
melhor do que o desenvolvimento explícito do bonapartismo, da autocracia burguesa  
bolsonarista.  
Mas não há como deixar de perceber que tal programa que busca a qualquer  
custo a institucionalização jurídica da autocracia e não traz uma posição frontalmente  
contrária ao capitalismo traz consigo a fórmula para o fracasso e para o esvaziamento  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
da esquerda, que parece estar morta, e quer mostrar seu atestado de óbito ao  
mercado.  
Esses últimos anos foram tão brutais que o tom com que usual e cotidianamente  
se fala dos anos dos governos petistas uma vertente da autocracia burguesa  
institucionalizada não deixa de ser romântico. E mais: como verdadeiros  
proudhonistas, e levados pela situação extrema do Brasil hoje, por vezes, procuramos,  
como pseudoesquerda que nos tornamos, separar o “lado bom” do “lado mau” daquilo  
que vivenciamos no passado recente. Diante as regressões pungentes do  
bolsonarismo vertente que clara e explicitamente busca uma forma de autocracia  
burguesa bonapartista , a esperança de que se retome o caminho da política  
democrática e do estado democrático de direito (sic!) nos invade. Nesse sentido, as  
esperanças em Walessa, em Blair, na globalização etc. não parecem tão ingênuas assim  
se olharmos por esse ângulo. A miséria de nosso presente é ainda pior. E ela marca  
mesmo aqueles que pretendem ser seguidores dos ensinamentos de Marx, que, tal  
como na época de Chasin, tendem a trazer uma concepção absolutamente unilateral  
sobre a política, ou seja, justamente sobre o tema tratado em O futuro ausente. E, que  
fique claro: não basta entoar a crítica chasiniana à política para que escapemos dessa  
miséria. Isso pode até mesmo conformar um passo, mas as determinações que se  
impõem são objetivas e perfazem um futuro anunciado anteriormente no texto  
chasiniano e que, para ser compreendido, precisa tanto de mais estofo teórico do que  
dispomos no momento quanto da “emergência de um agente social interessado em  
subverter muito mais do que as simples mazelas da falsa esquerda” (CHASIN, 2001,  
p. 26). Como não poderia deixar de ser, trata-se de algo que diz respeito à  
conformação concreta da própria realidade e, assim, não prescinde de uma crítica a  
essa realidade social mesma, para que se use a dicção de Chasin, de uma crítica  
ontológica.  
Que derrotar o bolsonarismo, bem como qualquer tentativa de bonapartismo, é  
necessário, conforma uma obviedade. No entanto, as possibilidades disponíveis para  
isso até agora, e que envolvem a nostalgia pelo que supostamente poderia ter sido e  
não foi, não trazem grandes possibilidades, em verdade. Por enquanto, encaminham-  
nos, na melhor das hipóteses, para ilusões há muito refutadas pela realidade brasileira.  
Sobre a relação entre PT e FHC, disse Chasin anteriormente: “a diferença entre  
FHC e o PT: politicismo com alianças X politicismo sem alianças” (CHASIN, 2001, p.  
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36). Não vamos aprofundar aqui a relação entre os partidos na época de O futuro  
ausente. Também não podemos explicitar a crítica chasiniana ao politicismo de ambos  
os partidos. Porém, a afirmativa acima não deixa de ser cômica hoje... os compromissos  
e as negociações são hoje, como foram nos anos recentes o ponto de partida da  
política petista, e, em especial, lulista. Nesse campo, também entra o clamor petista –  
na época em que o filósofo paulista escrevia por uma política ética (CHASIN, 2001).  
Aquilo que Chasin já havia visto como uma espécie de oxímoro hoje ainda permanece,  
mas somente como simulacro. Tanto à esquerda quanto à direita, critica-se a  
corrupção. E o tom moralista e vazio de tal crítica só espanta aqueles que não  
compreendem minimamente a estruturação de um capitalismo de via colonial, que  
oscila entre autocracia burguesa institucionalizada e bonapartismo. Ou seja, a situação  
hoje é ainda pior. E mais: se a ética na política era o clamor daqueles que defendiam  
a democracia (termo que mesmo na época já estava bastante esvaziado), hoje,  
democracia vira sinônimo de estado democrático de direito, ou seja, da defesa da  
institucionalização jurídica vigente, seja ela qual for. Assim, o clamor democrático e  
político de hoje é ainda mais manipulatório que à época.  
E, sobre a negociação, a política e a impossibilidade de uma política ética, diz  
nosso autor algo bastante importante para nosso tema:  
A negociação é a grandeza e a miséria da política. Grandeza por  
reconhecer contraditórios e postular a via racional de sua resolução.  
Miséria, porque a natureza de suas resoluções é sempre a prática da  
conciliação, não podendo nunca levar a contradição até o fim e nessa  
rota solucioná-la, mas apenas a contorna, de modo que ela retorna  
mais adiante. A negociação é algo como uma protelação, por  
impotência resolutiva, à espera de uma solução futura, que a  
ultrapassa e não depende dela. (CHASIN, 2001, p. 39)  
A protelação é o máximo que conseguimos esperar, ao que parece. O  
reconhecimento dos elementos contraditórios, que é o mérito da política (como, aliás,  
mostra Chasin ao tratar de Maquiavel e da relação entre contradição e contraposição),  
leva à tentativa à longo prazo impossível de conciliação. A via racional de resolução,  
assim, deságua na necessária irresolução da contradição na atividade adstringida e  
forçada a oscilar entre polos igualmente impotentes. A negociação, bem como os  
conchavos, assim, aparece como o dia-a-dia e vida da política. A solução futura é  
esperada, assim, não como um ato racional, mas como um ato irracional de fé. A  
postulação da via racional para a resolução das contradições sociais, no caso, leva  
justamente a uma razão atrofiada e, no limite, ao irracionalismo. A aposta política no  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
compromisso, tal qual a revolta moral quanto aos compromissos políticos e éticos são  
duas faces de Jano. Elas podem trazer diferenças entre si, certamente. Porém, suas  
bases são comuns e conformam uma aposta na política como campo resolutivo dos  
conflitos e contradições sociais inerentes ao sistema capitalista de produção, todos  
eles, tomados como pressuposto insuprimível.  
O desenrolar prático dessa trama, hoje, leva-nos a certas mudanças em relação  
à época em que O futuro ausente é escrito: as novidades, aliás, não são nada  
animadoras, como a conversão antigo tucano a “camarada Alckmin”. Se formos ser  
muito bondosos extremamente, em verdade tem-se a reafirmação das teorizações  
da velha analítica paulista e da nova esquerda, já criticadas por Chasin. E, assim, parece  
que a solução está em lutar contra a “dependência”, e contra os “populismos de  
direita”, com suas soluções “autoritárias”. O programa econômico para isso, aliás,  
precisaria ser incerto (as eleições sempre vêm em primeiro lugar!); sequer parece ser  
possível propor um pastiche do desenvolvimentismo (ou mesmo do  
“neodesenvolvimentismo” de outrora). No entanto, não há dúvidas que, na melhor das  
hipóteses, um programa econômico da autoproclamada esquerda estaria baseado em  
uma espécie de marginalismo econômico, mesmo que (com sorte!!), para que se use  
um eufemismo, “heterodoxo”. Sejamos claros: 2002 não foi 1989, assim como 2022  
não é; mas a esperança de hoje, por incrível que pareça, depois de tudo que já  
passamos, continua a mesma: queremos, como pseudoesquerda idealista que nos  
tornamos, o governo Lula que viria da eleição de 1989. A tentativa de se retomar uma  
espécie de fundação perdida da república é clara entre nós; se em Maquiavel isso ainda  
podia fazer sentido, como demonstrou Chasin em O futuro ausente, agora, isso não  
passa da miséria da “esquerda”, que se comporta como um cadáver insepulto e não  
traz consigo quaisquer tendências afirmativas, mesmo que diuturnamente diga o  
contrário.  
Trata-se de uma “esquerda” que parece ter se convertido à teoria dos atos de  
fala de Austin, por mais que possa eventualmente propagar o contrário. Tal elemento,  
de certo nominalismo, já havia sido criticado por Chasin em Rota e prospectiva. Hoje,  
porém, a questão se coloca de tal modo que, não raro, a pseudoesquerda efetivamente  
adota Austin, bem com outros autores da filosofia da linguagem, como referencial. A  
ironia chasiniana, bem como o caráter jocoso de sua crítica não são mais possíveis  
nesse caso.  
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Aliás, diante desse cenário em que se tem um pastiche de uma “esquerda” que  
já era, de certo modo, um pastiche da década de 1950 (CHASIN, 2001), nada mais  
lógico que uma boa dose de voluntarismo e de esperança para tapar a ausência de  
uma teorização sólida. Sem a apreensão dos limites da política, envolta em  
negociações das mais atrozes, e sem uma teorização e uma abordagem da economia  
que ultrapasse os modelos vigentes ainda na época em que O futuro ausente foi  
escrito, oscila-se entre o medo e a esperança; a vontade política parece ser o essencial.  
Caso ela não prospere, tanto pior para os fatos (fatos esses que parecem não ser  
compreendidos). Na próxima vez, basta afirmá-la com mais ênfase, vontade e torcer  
para que as coisas sigam seu curso supostamente natural. Certo sentimento de que  
basta retomar as coisas ao normal é vigente na medida mesma em que a normalidade  
de um país que nasce e se desenvolve com uma via colonial de entificação do  
capitalismo não pode ser a mesma do suposto Ocidente democrático. Em uma  
formação social marcada pela autocracia burguesa, dizer que a democracia é algo  
natural é um sintoma de despreparo para enfrentar as contradições sociais, no mínimo.  
Dizemos tudo isso para esclarecer que Chasin escreveu seu texto em um  
momento em que a chamada redemocratização trazia uma onda de otimismo (e  
esperança) quase que generalizadas. É verdade, porém, que isso acontecia enquanto  
nosso autor não deixou de destacar que “a institucionalização da autocracia burguesa  
é a expressão jurídica do politicismo, enquanto o bonapartismo é sua expressão  
explicitamente armada” (CHASIN, 2000, p. 27). Ou seja, havia otimismo mesmo que  
isso se desse sem uma base concreta digna de tanto. A institucionalização da  
autocracia burguesa trazia a manutenção da miséria brasileira. Hoje, no entanto, o  
fracasso da Nova República, ou seja, da autocracia burguesa institucionalizada que  
sucedeu o bonapartismo dos militares, é um fato: em verdade, as viúvas da ditadura –  
como jocosamente chamávamos aqueles nostálgicos pela barbárie posterior ao golpe  
de primeiro de abril não podem mais ser referidas simplesmente em tom de chacota.  
Elas ainda estão no poder, e a reafirmação da “revolução democrática de 1964” (sic!)  
é feita às claras. E o pior é que não se trata somente de posicionamentos de militares  
de pijama e dotados de comprimidos azuis à vontade.  
Em verdade, isso, de certo modo, é alimentado pela própria (autoproclamada)  
“esquerda”, que não cessa de repetir fórmulas da época, com certo saudosismo: a  
reafirmação diuturna, e em forma de pastiche, do quadrúpede teórico (CHASIN, 2001)  
nos programas políticos à esquerda procura resgatar justamente a leitura política que  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
foi desenvolvida às vésperas do fim do regime militar. E, é preciso que se diga: tal  
leitura não avançou um milímetro. Em verdade, se formos olhar com algum cuidado,  
notamos que ela recuou significativamente. E, assim, o futuro não só se mostrou como  
ausente, mas expressa-se como farsa, em grande parte, consciente de sua falsidade.  
Resta somente a ritualística e a crença no poder das palavras de ordem vazias de  
outrora.  
Tem-se, em verdade, certa nostalgia quanto a uma derrota menos vergonhosa.  
Aliás, as derrotas enormes e significativas da classe trabalhadora brasileira nas  
últimas décadas fazem com que os espaços antes ocupados por organizações  
populares sejam tomados pela direita. Essa última posa cada vez mais raivosa.  
Enquanto isso, a “esquerda” finge que perdeu esses espaços por uma simples  
contingência, advinda de alguma conspiração nacional e internacional; com isso, com  
muito custo, parece ser possível manter certa dignidade. A “esquerda” mantém certa  
pose repetindo formulações que já foram criticadas por Chasin de modo duro e que  
não foram revisitadas de modo crítico em hipótese alguma. Fazer isso, batendo no  
peito, e bradando palavras de ordem que parecem ter uma força mágica, é o que  
parece restar diante da ausência de compreensão da própria realidade. A direita, por  
outro lado, avança dizendo exatamente ao que veio e proclamando com todas as letras  
que a solução está na autocracia bonapartista.  
Não se trata somente de pose. Não se pode ignorar que isso tem certa  
repercussão popular; tanto é assim que chegamos aonde chegamos. Diante de uma  
esquerda que procura parecer republicana em meio às orgias do capital, a radicalidade  
aparece somente à direita, mesmo que de um modo que há pouco tempo seria  
inimaginavelmente.  
A extrema-direita diz com todas as letras para que veio e entoa barbaridades  
que parecem ser novidades, ou ao menos tem certo tom de radicalidade, diante da  
mentira da redemocratização, ou seja, do caráter supostamente popular da autocracia  
burguesa institucionalizada. A capilaridade de posições, não só reacionárias, mas  
bárbaras, é a expressão da falência da autoproclamada Nova República, ou seja, da  
normalidade da autocracia burguesa institucionalizada. Fica claro que uma “esquerda”  
sem programa e sem uma teoria adequadas à compreensão da especificidade do  
capitalismo brasileiro não pode trazer qualquer práxis alinhada com um futuro que não  
seja, novamente, na melhor das hipóteses, a repetição mais ou menos farsesca e cínica  
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do passado. A direita assume sua posição reativa, reacionária e contrarrevolucionária.  
Ela vai em direção a seus traços mais característicos depois que o impulso civilizatório  
do capital se foi. E qual é a posição da “esquerda” diante desse mesmo cenário? A  
nostalgia pelo que supostamente poderia ter acontecido caso a suposta  
redemocratização seguisse o rumo desejado por ela mesma.  
O politicismo de tal posicionamento é assustador; a surpresa que certa  
“esquerda” teve diante da eleição de Collor de Mello derivou justamente da  
incompreensão do que se passava. A eleição de Jair Bolsonaro trouxe a surpresa e o  
mesmo moralismo vazios para aqueles que não avançaram um milímetro diante das  
antigas concepções e análises.  
Não podemos aprofundar aqui esse assunto. Mas é premente reafirmar que, no  
melhor dos casos, as teorizações vigentes na época em que J. Chasin escreve seu texto  
ainda são aquelas que aparecem hoje como solução. A grande esperança parece estar  
em que a realidade finalmente deixe de teimar em não se adequar a elas, ou ao  
simulacro putrefato delas. Nesse sentido, talvez sejamos a perfeita expressão do futuro  
ausente denunciado pelo autor. O cenário em que ele escreveu, no entanto, ainda  
trazia consigo certa reminiscência da oposição entre Oriente e Ocidente; a memória da  
recém extinta União Soviética ainda pairava no ar. O éthos coletivista do suposto  
socialismo soviético, de um lado, ainda era um objeto de crítica programática na nova  
esquerda e, doutro, ainda era defendido de modo mais ou menos aguerrido, seja em  
parcelas dos partidos comunistas, seja por meio das mais diversas variações de um  
marxismo vulgar, extremamente esquemático, mas popularizado entre parte  
suficientemente significativa da militância. Nas palavras de J. Chasin, tinha-se a  
seguinte situação diante do cenário pós-União Soviética:  
Bastam duas pinceladas para esboçar o colosso dos impasses atuais:  
o Ocidente universalizado e rebrilhante em sua pujança sem  
contraste reitera de forma ampliada sua miséria estrutural, física e  
de espírito, enquanto o extinto Oriente finda em convulsões  
sangrentas por consumar suas inviabilidades originárias. (CHASIN,  
2012, p. 60)  
O Ocidente aparecia sem adversários à altura, mas em meio à referida memória.  
O Oriente havia sido extinto, de modo a explicitar suas inviabilidades. Tal oposição,  
entre Ocidente e Oriente, depende da derrota de uma revolução mundial, consolidada  
no pós-II Guerra, na negociação de zonas de influência, e na consolidação da guerra  
fria.  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
O baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas, bem como do  
isolamento que sucedeu a Revolução Russa dentre outros fatores também não  
podem ser ignorados em hipótese alguma. De qualquer modo, o que se apresenta na  
época em que Chasin escreve O futuro ausente é a impossibilidade de qualquer  
nostalgia quanto ao modelo soviético, bem como a reiteração de todos os problemas  
inerentes à sociabilidade capitalista. Ou seja, a falsa alternativa colocada no Oriente  
cai por terra, e isso não leva a qualquer ganho civilizatório no desenvolvimento do  
capitalismo. Pelo contrário, esse acaba por se afirmar de modo mais brutal. Nesse  
contexto, qualquer afirmação no sentido do pacifismo parece, na melhor das hipóteses,  
como um posicionamento irônico.  
Aliás, talvez vivamos tempos em que a ironia é algo muito difícil, tamanho o  
absurdo do desastre conformado hoje na sociabilidade do capital. Àqueles que se  
deparam com o futuro sem a compreensão das condições reais que se impõem no  
capitalismo contemporâneo estão munidos da crença de que a defesa aguerrida da  
política (realizada com muita boa vontade e militância, claro) pode resolver os conflitos  
sociais inerentes à reprodução ampliada do capital resta, de um lado, a esperança,  
doutro, o medo. E ambos esses afetos, como já alertou Spinoza, e reiterou György  
Lukács, partem muito mais da ausência de compreensão das determinações objetivas  
do presente que da apreensão reta das potencialidades realmente presentes na  
sociedade atual. Com isso, fórmulas criticadas por Chasin na época ligadas,  
sobretudo, ao que o autor chamou de politicismo não tardam a ser repetidas, sempre,  
com muita vontade e, cada vez mais, com esperança.  
Somos o futuro que, não só já repetiu os erros do passado, como acredita que  
os jargões dos partidos políticos, bem como de certa militância, não se realizam por  
um mero desvio de rota. E, no que diz respeito ao Oriente e ao Ocidente, as coisas  
não são melhores.  
Se, na época de Chasin, o Oriente havia sido extinto, nada mais natural ao nosso  
tempo que tentar revivê-lo como pastiche. De um lado, o ganho de poderio econômico  
da China é visto pelo autoproclamado Ocidente como uma ameaça à democracia. A  
rivalização diante da União Europeia e dos Estados Unidos parecem trazer uma ameaça  
“autoritária” à autoproclamada civilização ocidental (e talvez estejamos na época em  
que o significado de algumas expressões seja tão distinto daquele que elas possuíam  
que seja somente isso que resta a alguns: autoproclamar-se). A oposição ao poderio  
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estadunidense parece reacender a chama daqueles que ainda mantiveram em suas  
memórias o suposto socialismo soviético. O procedimento, no entanto, não poderia  
ser mais pueril: a China, com seu socialista de mercado (sic!), e sua produção gritante  
de mais-valor, toma o lugar da União Soviética como algo a ser defendido acriticamente  
colocando muitas coisas entre parênteses, diga-se de passagem. De repente, o  
extinto Oriente ressurge das cinzas e traz uma visão anti-imperialista. Aliás, as coisas  
só melhoram: quando a Rússia reaparece no cenário, com a invasão à Ucrânia, tem-se  
mais um ingrediente a ser reaproveitado.  
As questionáveis ações do extinto Pacto de Varsóvia reaparecem na memória e,  
com isso, tem-se a Otan, representando a chamada civilização ocidental. E isso tudo  
se passa na medida em que a figura cômica de Zelensky é elevada àquela de um  
grande estadista. Suas credenciais democráticas passam longe de ser as melhores, seja  
lá qual for o critério adotado diante do Batalhão Azov e da conivência com grupos  
neonazistas. No entanto, a democracia ocidental o tem como represente ao passo que  
o Oriente parece resistir ao avanço das bases militares da Otan com uma guerra de  
libertação levada à cabo por Putin. Esse último aparece como uma espécie de Stálin  
pós-União Soviética. Que não se tenha nenhuma posição, mesmo que verbal, socialista  
parece ser somente um detalhe, que, como vem sendo recorrente, parece precisar ser  
colocado entre parênteses.  
O momento em que nos deparamos com o texto de Chasin, portanto, talvez seja  
justamente aquele que melhor ilustra o acerto de suas críticas às posições de sua  
época.  
No entanto, caso fiquemos somente com aquilo que apresentamos até o  
momento, permanecemos em um nível superficial. Isso ocorre porque mencionamos  
certo Zeitgeist de nossa época e explicitamos tanto uma versão liberal quanto o  
catastrofismo não são alternativas; porém, a fundamentação propriamente teórica dos  
posicionamentos políticos criticados pelo autor de Marx: estatuto ontológico e  
resolução metodológica não foram por nós abordados. A necessidade de se  
compreender não só a degeneração clara do pensamento político, mas aquilo que há  
de melhor nele também é visível no texto chasiniano. Ou seja, afirmamos que o  
contexto da época de Chasin, tal qual o nosso, precisa de uma crítica radical, que passe  
também pela política, pela vontade política e que leve à apreensão das reais  
determinações do presente. Porém, é necessário não só reafirmar aquilo que o autor  
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paulista chamou de determinação ontonegativa da politicidade. Trata-se também de  
mostrar que uma compreensão ontopositiva da política passou, em determinados  
momentos principalmente na Antiguidade e no Renascimento por momentos  
riquíssimos. Que esses momentos não possam ser dissociados das suas determinações  
materiais, deveria ser uma obviedade para qualquer um que conheça minimamente o  
pensamento de Marx, porém, diante do cenário que apresentamos acima, é sempre  
bom reafirmar esse ponto. Por isso, deve-se passar para análise chasiniana daquilo  
que talvez conforme o melhor do pensamento político ocidental. Em um momento em  
que, no marxismo, há certo pastiche do stalinismo sendo divulgado, isso pode ser  
essencial.  
Sobre a “esquerda”, a ontologia, a história e a política  
Não é segredo que as grandes preocupações do stalinismo, e do marxismo vulgar  
em geral, bem como de grande parte dos autoproclamados marxistas não esteja  
na compreensão e na crítica de categorias da filosofia. Claro que há exceções a isso,  
em solo nacional, a analítica paulista, por exemplo, sempre buscou ler Marx na esteira  
das preocupações da filosofia (cf. CHASIN, 2001). Olhando o panorama mundial,  
também temos exemplos importantes; pensadores como Althusser, por exemplo, em  
parte na esteira da problemática estruturalista não deixaram de traçar uma crítica ao  
Sujeito (o que fica claro, sobretudo, em seus posicionamentos sobre Lacan, bem como  
sobre a interpelação, em seus aparelhos ideológicos de estado). Ou seja, no marxismo,  
há certamente aqueles que enxergam no estudo da filosofia algo importante. E mais:  
em verdade, isso se dá, de modo mais ou menos mediado, ao se problematizar com  
abordagens que pretenderam desenvolver uma ontologia, como a de Martin  
Heidegger, como ocorre com os teóricos da chamada Escola de Frankfurt e dá-se em  
um tom distinto (talvez, surpreendente) no próprio Althusser, como veremos. Ao se  
olhar para a teorização chasiniana, porém, é preciso que se atente para o fato de que  
há toda uma atenção ao desenvolvimento das categorias filosóficas, bem como de suas  
relações com as teorizações sobre a política. Em O futuro ausente, isso é visível. E, ao  
tratar da ontologia, nada é mais estranho a J. Chasin que algum flerte com Heidegger  
ou com qualquer outra ontologia sistemática; o autor paulista não buscou desenvolver  
uma ontologia marxista. Ele tratou do estatuto ontológico do pensamento de Marx, do  
fato de o autor de O capital não formular um método a priori e de ele tratar do próprio  
ser da realidade.  
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Para que analisemos nosso tema com mais cuidado, porém, é bom ver, mesmo  
que rapidamente, como que esse tema aparece nos autores que mencionamos para  
que, depois, possamos explicitar como que há hoje uma relação muito próxima entre  
a influência de ontologias como a heideggeriana e a elaboração teórica sobre a política.  
Ou seja, é preciso que notemos que O futuro ausente estava rumando absolutamente  
contra a corrente.  
Ao olhar para os marxistas que procuram uma análise filosófica, primeiramente,  
é preciso destacar que teóricos como Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin, não  
deixaram de transparecer a preocupação com as categorias filosóficas, e de modo  
enfático. Isso ocorre, inclusive, ao se ter em mente a tematização da ontologia. Adorno  
e Horkheimer têm verdadeiro repúdio a qualquer ontologia, que enxergam como uma  
abordagem essencialmente a-histórica (hoje, autores como Postone seguem o mesmo  
caminho). No caso da ontologia fundamental de Heidegger, inclusive, de acordo com  
os autores da Dialética do esclarecimento, haveria uma espécie de jargão, um jargão  
da autenticidade. Ou seja, a conformação da posição desses dois pensadores na  
filosofia do século XX passa por uma crítica ao que acreditam ser a ontologia em seu  
tempo. No caso de Marcuse, também se tem algo peculiar: deve-se ressaltar que o  
autor realiza seu doutoramento tratando da categoria do trabalho sob a supervisão  
do próprio Heidegger. Posteriormente, o autor da Ideologia da sociedade industrial  
tematiza na abordagem mais contrária à tecnologia entre os frankfurtianos a  
técnica, com claro ímpeto de debate (e embate) com o autor de Ser e tempo. Aliás, em  
vão, o autor busca que seu antigo mestre se desculpe publicamente sobre seu apoio  
ao nazismo. Ou seja, quer se queira, quer não, tais autores acabam por se colocar no  
debate sobre a ontologia, em especial, a heideggeriana, a qual tomam como modelo  
de ontologia do século XX.  
Benjamin, por sua vez, fugindo justamente da perseguição nacional-socialista,  
entrega suas Teses sobre o conceito de história a ninguém menos que a Hannah  
Arendt, cujo apreço por Heidegger, e aversão ao marxismo, são conhecidos. Também  
vale destacar que o autor que morreu em 1940 também polemiza com um autor que  
traz uma correlação explícita entre ontologia, teologia e política, Carl Schmitt. Ou seja,  
ao olharmos para os autores da “teoria crítica”, notamos que a conformação dos  
embates filosóficos no marxismo do século XX passou pela tematização das categorias  
heideggerianas, bem como pelo contato com aqueles que tinham o filósofo da  
ontologia fundamental em alta conta, como a já referida Arendt e o mencionado  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
Schmitt.  
Assim, mesmo ao se considerar somente a tradição marxista conformada na  
Escola de Frankfurt, pode-se dizer que trazer explicitamente o debate e torno da  
ontologia, e de sua relação com a política, como faz J. Chasin, não é descabido. Ao  
contrário. E mais: é preciso ver que o autor de Marx: estatuto ontológico e resolução  
metodológica não busca uma ontologia alternativa a Heidegger, por exemplo, mas  
uma crítica às abordagens gnosiológicas que preponderam na filosofia, inclusive, ao  
se olhar para o marxismo.  
Tem-se tal aspecto desenvolvido em O futuro ausente em uma chave distinta  
daquela que é mais explícita nos autores recém mencionados, portanto: Benjamin  
critica a noção de progresso presente na II Internacional, por vezes, aproximando-o do  
iluminismo e da filosofia da história hegeliana; Adorno e Horkheimer trazem uma crítica  
à própria razão (embora destaquem a aporia segundo a qual somente a mais razão  
poderia superar tal situação); Horkheimer, em específico, ainda trata da tradição  
política burguesa nos termos de uma filosofia da história, ao tratar das Origens da  
filosofia burguesa da história. Marcuse, por sua vez, procura a relação entre Razão e  
revolução voltando-se a Hegel e ao modo pelo qual a relação entre estado e sociedade  
delineia-se em sua filosofia da história. Ou seja, ao passo que o autor do Estatuto  
ontológico com uma crítica a toda e qualquer filosofia da história tematiza  
ontologia, isso não ocorre em meio aos autores da chamada teoria crítica. Tais  
circunstâncias são importantes para nós. Elas explicitam que a conformação das  
filosofias, e dos posicionamentos políticos dos autores da teoria crítica, precisam ser  
compreendidos tendo em mente seus posicionamentos sobre a ontologia e sobre a  
filosofia da história, em especial, de Hegel.  
A abordagem de Adorno, Benjamin, Horkheimer e Marcuse e aquelas de seus  
seguidores , portanto, precisa passar por essas temáticas. Também ao se olhar a  
partir dessa posição, mostra-se que os posicionamentos dos marxistas sobre temas  
filosóficos complexos, como aquele da ontologia tão destacada na obra de Chasin –  
não são descabidos, ou algo que configure uma moda filosófica de determinado  
momento. Pode-se mesmo dizer que o tratamento do pensamento de Marx em Chasin  
e nos autores da Escola de Frankfurt é bastante distinto: se eles, em grande parte,  
assumem as categorias hegelianas como ponto de partida, o autor paulista vai buscar  
na formação do pensamento propriamente marxiano a diferença específica de Marx  
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frente Hegel e, em meio a essa pesquisa vem a descobrir que a crítica marxiana ao  
idealismo não é aquela de um duplo giro copernicano, como quer Adorno, por  
exemplo. Antes, há um questionamento da sistematicidade da filosofia, que envolve  
uma crítica profunda aos pontos de partida de quaisquer teorias do conhecimento.  
Daí, a necessidade de se tematizar a determinação ontoprática do pensamento e do  
conhecimento, como faz o autor em seu Estatuto.  
Ao se olhar para outros importantes expoentes do marxismo do século XX, tal  
aspecto que abordamos ao tratar dos pensadores da Escola de Frankfurt também é  
perceptível. Autores como, por exemplo, Henri Lefebvre, que, não raro, pretenderam  
dialogar com categorias de autores como Nietzsche e Heidegger. Eles tiveram grande  
destaque e influência. No caso de Lefebvre, inclusive, o autor remeteu à noção de  
morada do ser, bem como à compreensão heideggeriana da categoria Ding, que levaria  
a uma teorização sobre o habitar. E esta teorização tem uma importância considerável  
na abordagem do autor sobre a cidade, o valor de uso e o processo de urbanização.  
Pode-se mesmo dizer que parte do entendimento lefebvriano sobre a espacialidade  
decorre de seu debate com Heidegger. Há de se destacar que isso deixe claro que não  
há como não debater a filosofia marxista sem conhecer a discussão sobre a ontologia  
(aspecto destacado, sobretudo, por Lukács, que não deixou de criticar fortemente o  
autor de Ser e tempo sob diversos aspectos). Lefebvre também passa pela tematização  
do cotidiano, assunto muito importante tanto para as ontologias de Heidegger como  
de Lukács. Ele também não deixa de trazer Hegel como um ponto central na  
compreensão do marxismo em nossa opinião sem que se tenha o devido cuidado  
ao analisar o próprio processo formativo do pensamento marxiano (aspecto estudado  
com bastante afinco por Chasin).  
Assim, é preciso pontuar que foram raros os desenvolvimentos substanciais no  
sentido do embate sobre a ontologia até agora. Exceção feita a Lukács, geralmente, a  
problematização do tema foi feita de modo esparso, e que, em verdade, precisa de  
estudos posteriores para que seja devidamente explicitada. E mais: percebe-se que os  
autores mencionados acima, ao passarem por temáticas filosóficas, acabam se  
voltando a outros autores que não Marx (mesmo que, no caso de Hegel, trata-se de  
um gigante). Eles não têm como preocupação central a leitura rigorosa da obra de  
Marx na medida em que não analisam o próprio processo formativo do pensamento  
marxiano; não raro, supõem certa continuidade entre Marx e Hegel e acabam por deixar  
de lado elementos centrais da concepção do autor de O capital sobre o estatuto das  
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categorias. Nesse sentido, alguns, como Perry Anderson, chegaram a dizer que o  
chamado marxismo ocidental, no qual se situariam os autores que mencionamos acima  
não discutiremos o termo ou o acerto do autor inglês em seu diagnóstico se  
caracterizaria justamente pela tentativa de complementar Marx com outros autores da  
filosofia (cf. ANDERSON, 2002). Aqui, precisamos destacar: quando Chasin trata da  
relação entre ontologia e política, é o tratamento marxiano aquele de uma ontologia  
estatutária, segundo o Estatuto ontológico e resolução metodológica que o filósofo  
paulista retoma e procura explicitar.  
Ou seja, ele não desenvolve propriamente uma ontologia sistemática para se  
contrapor às ontologias do século XX, como aquela de Heidegger. Também não se  
busca completar ou complementar Marx com outros autores da filosofia. Antes, Chasin  
traz à tona a apreensão do próprio real, sem qualquer método ou esquema por mais  
sofisticado que possa ser estabelecido a priori. Quanto J. Chasin trata da política,  
portanto, não está em sua mente a filosofia hegeliana e sua grandeza, como, em  
grande parte, ocorre com famosos intérpretes de Marx, como Ruy Fausto e outros,  
hoje, influenciados pelas chamadas novas leituras de Marx. Antes, tem-se a apreensão  
do desenvolvimento real da política em meio ao processo social de conformação da  
história. Nesse sentido específico, percebe-se que a leitura cuidadosa, e imanente, da  
obra marxiana traz a Chasin o entendimento segundo o qual não há uma epstemologia  
anterior à apreensão da própria objetividade. O pensamento, dessa maneira, não pode  
ser sistematizado ou analisado separadamente de sua determinação ontoprática,  
mesmo que isso ocorra com referência a categorias interessantíssimas e importantes,  
por exemplo, da filosofia hegeliana ou das ontologias do século XX. A análise com a  
qual nos deparamos em O futuro ausente se coloca na esteira deste projeto, o de  
compreender as determinações reais da política e do pensamento político. Também  
por isso, acreditamos, trata-se de um texto essencial.  
Ainda para que fiquemos na tradição marxista, não se pode deixar de mencionar  
uma linhagem que vem sendo, até hoje, muito influente. É preciso, mesmo que  
rapidamente, voltar-se a um autor marxista Louis Althusser cuja teoria, e o debate  
no qual se colocou, trouxe consequências fortíssimas para o debate político  
contemporâneo.  
E, sobre esse autor, é importante ressaltar, antes de qualquer coisa, que seu  
procedimento diante do real é o exato oposto àquele de Chasin na medida em que a  
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teoria do conhecimento é um ponto de partida althusseriano. Não aprofundaremos tal  
aspecto. Porém, veremos alguns pontos sobre o posicionamento de Althusser, que  
acabam por redundar em certa relação sui generis entre a compreensão da política e  
da ontologia, mais precisamente, da ontologia heideggeriana e sobre o caráter  
proveitoso dessa última.  
Tal caminho precisa ser destacado e abre espaço para teorizações atuais, como  
as de Badiou, Bourdieu, Negri, Mouffe, entre outros. Ou seja, de certo modo, o caminho  
aberto pela abordagem de Althusser profundamente epistemologizante, mas, ao  
mesmo tempo, decorrente de certa afinidade com a obra heideggeriana é nosso  
contemporâneo.  
Baseado na epistemologia de Gaston Bachelard, o autor francês desenvolve uma  
vertente do marxismo, também, fortemente marcada pela problemática da filosofia da  
ciência, bastante cara ao seu orientador de doutorado. Nessa esteira, ele procura  
marcar sua posição no panorama filosófico. O autor critica o que acredita ser um  
“hegelianismo vergonhoso” (1979) supostamente presentes em autores como Lukács,  
Lefebvre, bem como nos mencionados autores da Escola de Frankfurt. Na esteira de  
Bachelard, busca criticar qualquer herança hegeliana ou feuerbachiana em Marx para  
afirmar um novo ponto de partida no debate filosófico e político (uma nova  
problemática, para que se use a dicção do autor). Diante das discussões sobre os  
Manuscritos econômicos filosóficos, e, em especial, sobre a categoria do  
estranhamento, o autor francês desenvolve aquilo que chama de anti-humanismo  
teórico (cf. ALTHUSSER, 1999, 2002). Ele tem por central a crítica à influência  
feuerbachiana em Marx, supostamente presente no tratamento do trabalho estranhado  
e do estranhamento. Assim, pretende extirpar do marxismo os elementos do que  
chama de humanismo. Para fazê-lo, seria preciso separar um Marx marcado pela  
“problemática humanista do estranhamento” de um “Marx maduro”. Prima facie,  
porém, é difícil saber exatamente a base daquilo que Althusser chama de “humanismo”.  
É preciso, pois, ver como o autor delineia tal aspecto.  
O autor francês afirma que “uma ‘censura epistemológica’ intervém, sem nenhum  
equívoco, na obra de Marx” (ALTHUSSER, 1979a, p. 23). Com isso, ele acredita estar  
se livrando daquilo que haveria de “ideológico” no “jovem Marx”; tratar-se-ia de nada  
menos do que abrir espaço para a ciência autêntica. Ou seja, tal qual ocorre em Chasin,  
Althusser pretende dar destaque à leitura atenta das obras do próprio Marx. Porém, o  
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ponto de partida do autor francês é a antítese direta daquela do brasileiro. Longe de  
procurar o processo pelo qual se tem a formação do pensamento propriamente  
marxiano, Althusser estabelece cisões a partir de distintas “problemáticas”, o que é  
realizado com profunda influência da filosofia da ciência de Gaston Bachelard. Em  
conjunto com Alain Badiou hoje em posição muito diversa que aquela do marxismo,  
como, aliás, é comum àqueles que foram próximos de Althusser o autor de Pour  
Marx chega a dizer que:  
A ‘filosofia’ de Marx apresenta a característica única na história da  
filosofia, de romper com o passado ideológico e de estabelecer a  
filosofia sobre bases novas, que lhe conferem uma forma de  
objetividade e rigor teórico somente compatíveis com uma ciência.  
(ALTHUSSER; BADIOU, 1986, p. 49)  
Ou seja, não se pode acusar Althusser de ser alheio ao debate filosófico, nem  
mesmo de não ter se voltado ao texto do próprio Marx. Por vezes, inclusive, o autor  
se coloca de modo bastante perspicaz sobre uma considerável gama de assuntos; sua  
influência continua forte, também, por causa disso. Porém, o direcionamento da  
teorização althusseriana (ou, como ele gostava de se referir, de sua “prática teórica”),  
de modo aparentemente paradoxal, vai de uma problemática epistemológica ao elogio  
do posicionamento heideggeriano presente na famosa Carta sobre o humanismo.  
Ou seja, aquele que busca extirpar do marxismo, compreendido como uma  
ciência, os textos do “jovem Marx”, acaba por trazer ao campo do que chamou de  
“materialismo de encontro” (em que Marx supostamente se situaria) ninguém menos  
que Heidegger. O autor é claro quando diz que “de Heidegger, só li a Carta a Jean  
Baufret sobre o humanismo, que não deixou de influenciar minhas teses sobre o anti-  
humanismo teórico de Marx” (ALTHUSSER, 1993, p. 158). As críticas heideggerianas  
ao humanismo têm por alvo Jean-Paul Sartre, que afirmava que o existencialismo seria  
um humanismo. Posteriormente, o mesmo Sartre procura conciliar suas posições –  
marcadas pela noção de Geworfenheit (derrelição) heideggeriana com aquelas do  
marxismo; o autor da Carta sobre o humanismo, assim, vem a posicionar-se no debate  
francês, em que se tornava profundamente influente na época. Nota-se, assim: até  
mesmo um dos mais célebres marxistas franceses se vê influenciado pela ontologia  
heideggeriana.  
O caminho de Althusser, assim, é muito distinto do chasiniano. Se o autor  
brasileiro estuda as obras da década de 1840 de Marx, Althusser é influenciado por  
certas posições heideggerianas bem como pela filosofia da ciência e pela  
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epistemologia de sua época. E isso nos é central, ao olharmos à ontologia. Isso se dá  
pois, de certo modo, a descrição do impessoal [das Man], que leva à angústia e à  
abertura ao acontecimento [Ereignis] descrição de Heidegger, criticada por Lukács  
(2020) – encontra ecos no “materialismo de encontro” de Althusser, e na definição de  
comunismo do autor, mesmo que o autor, em O futuro dura muito tempo, afirme não  
ter lido Ser e tempo.  
Em seu livro autobiográfico, o autor de A favor de Marx, após ter passado por  
experiências traumáticas em razão da morte de sua mulher, diz o seguinte:  
Agora parece-me que sei, de fonte segura, que não há vida sem  
despesa, nem risco, nem portanto surpresa, e que a surpresa e a  
despesa (gratuita, e não mercantil: é a única definição possível de  
comunismo) não só fazem parte de toda a vida, mas são a própria vida  
em sua verdade última, em seu Ereignis, seu surgimento, seu  
acontecimento, como disse Heidegger tão bem. (ALTHUSSER, 1993,  
p. 99)  
O elogio a Heidegger é explícito. E, assim, tem-se não somente certa influência  
da posição “anti-humanista” do autor de Ser e tempo. Categorias centrais à  
tematização heideggeriana da época vêm a ser vistas como algo bastante proveitoso.  
Isso ocorre, inclusive, ao se ter em conta que a definição de comunismo de Althusser  
que não podemos tratar aqui acaba se relacionando diretamente à noção de  
acontecimento.  
Toda uma tematização althusseriana passa a ser influenciada por uma linhagem  
de “materialismo de encontro”, característica de autores como de Spinoza, Lucrécio,  
Epicuro e “autores ainda como Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Marx, Heidegger e  
Derrida” (ALTHUSSER, 2005, p. 9). A relação entre filosofia e política, assim, passa a  
ter em Heidegger autor também fundamental para Foucault e para o pós-  
estruturalismo uma referência importante. Tratar-se-ia de uma forma de materialismo  
sui generis de modo que diz o autor que “por comodidade, continuaremos a falar de  
materialismo do encontro”; no que ele continua: “porém, é necessário saber que  
Heidegger está nele incluído e que este materialismo do encontro escapa aos critérios  
clássicos de qualquer materialismo, e que precisamos, mesmo assim, de uma palavra  
para designar a coisa” (ALTHUSSER, 2005, p. 12). Althusser não só adere à descrição  
heideggeriana do “acontecimento”, ele toma autores que terão por central tal  
tematização como aqueles que se colocam na mesma linhagem que Marx. Assim, os  
temas do “materialismo de encontro”, em verdade, são aqueles que “aparecem de  
Nietzsche a Deleuze e Derrida, ao empirismo inglês (Deleuze) ou a Heidegger (com  
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ajuda de Derrida)”, e isso seria central pois eles “tornaram-se a partir de hoje familiares  
e fecundos para qualquer compreensão não só da filosofia, mas de todos seus  
pretendidos ‘objetos’” (ALTHUSSER, 2005, p. 25).  
Traçamos esse caminho para deixar claro que a influência heideggeriana e,  
portanto, os debates em torno da ontologia acabam por estar presentes naqueles  
autores que são essenciais para a compreensão da filosofia a partir do marxismo.  
Porém, não se trata só de enxergar isso. Em verdade, a porta aberta por Althusser será  
muito influente em abordagens sobre a política e a globalização como as de Hardt e  
Negri, que acabam explicitamente dialogando com Spinoza, Deleuze e com algumas  
categorias heideggerianas, como aquele do acontecimento. Ou seja, teorizações que  
antes não estavam presentes em posicionamentos à “esquerda” acabam por ser bem-  
vindas, inclusive, com certo diálogo com as posições marxistas, como as de Althusser.  
Foucault, explicitamente influenciado pela crítica heideggeriana ao Sujeito, é  
alguém que também dá base a grande parte dessas teorizações à esquerda. E mais:  
há uma importante relação do desenvolvimento de sua teoria com os posicionamentos  
de Althusser. Primeiramente, isso se dá porque o autor da Microfísica do poder  
questiona muito a distinção althusseriana entre “aparelhos repressivos” e “aparelhos  
ideológicos de estado”. Ou seja, em oposição aos debates da filosofia marxista, e com  
influência da ontologia heideggeriana (principalmente como recebida na França no  
momento posterior à II Guerra), desenvolve-se certa posição que se torna um ponto  
de partida importante para autores contemporâneos que abordam a política. Foucault,  
em seu A sociedade punitiva, também traz uma contraposição a Marx e a Althusser,  
tematizando a pena, a punição, o cárcere. Tal episódio francês do marxismo, portanto,  
acaba sendo decisivo para os rumos do tratamento contemporâneo da política. E, de  
nossa parte, não podemos deixar de apontar que isso se dá em antítese direta ao  
tratamento chasiniano do marxismo.  
Note-se que há meandros na passagem de uma abordagem marxista como a de  
Althusser até autores contemporâneos, como Negri e Hardt. Porém, percebe-se que  
esse caminho também é aberto por certa influência da ontologia heideggeriana. Os  
debates sobre a ontologia nos levam também a autores como Foucault, muito  
influentes em certa “esquerda”. Ou seja, longe de ser um disparate tematizar sobre a  
ontologia e a política em conjunto, tem-se uma necessidade, ao menos caso se adote  
a posição que procura colocar-se no sentido da defesa da emancipação humana e da  
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supressão da relação-capital.  
A tematização sobre a política está presente nesses autores que mencionamos,  
certamente. Porém, é preciso reconhecer que autores contemporâneos como Agamben  
e Mouffe (hoje, muito influentes) ainda bebem em pensadores que trazem a correlação  
entre ontologia e política de modo mais direto. Agamben, por exemplo, passa por  
Foucault, por Heidegger, chama Benjamin para o ajudar (com uma leitura, no mínimo,  
peculiar). Porém, quando se trata de trazer à tona uma teorização sobre a política, ele  
invoca Carl Schmitt. Mouffe, por sua vez, traz em seu favor certa problematização  
tipicamente gramsciana aquela da hegemonia e vem a se contrapor a Marx com  
base, não só em Schmitt e na distinção schimittiana entre a política e o político; ela  
remete diretamente a Heidegger e estabelece uma ligação entre política e ontologia  
da seguinte maneira:  
Se quisermos expressar essa distinção [entre político e política] de  
maneira filosófica, poderíamos dizer, recorrendo ao repertório  
heideggeriano, que a política refere-se ao nível “ôntico”, enquanto o  
político tem a ver com nível “ontológico”. (MOUFFE, 2015, p. 8)  
A distinção entre o político e a política sumamente negada por Chasin –  
aparece respaldada pela oposição heideggeriana entre o ontológico e o ôntico.  
Tal oposição trazida pelo autor de Ser e tempo, e que foi vista por Lukács como  
um verdadeiro monstro filosófico, não só atravessa a fundamentação filosófica de  
muitos daqueles que trazem posições políticas hoje. Em verdade, há uma derivação  
direta do político a partir da noção de ontologia. Tal dimensão do político vem a ser  
entendida como uma espécie de condição humana imutável, como em Mouffe:  
“entendo por ‘o político’ a dimensão de antagonismo que considero como constitutiva  
das sociedades humanas” (MOUFFE, 2015, p. 8). Política e ontologia, assim, trariam  
uma correlação similar àquela trazida na teologia entre criador e criatura; Lukács, por  
exemplo, destacou tal aspecto ao tratar da correlação entre ontológico e ôntico, da  
famosa “diferença ontológica” heideggeriana. Aqui, acreditamos que é possível falar o  
mesmo sobre a ligação entre o político e a política, até mesmo porque, diz Mouffe o  
seguinte: “entendo por ‘política’ o conjunto de práticas e instituições por meio das  
quais uma ordem é criada, organizando a coexistência humana no contexto conflituoso  
produzido pelo político” (MOUFFE, 2015, p. 8). A dependência da política frente ao  
político é clara, assim como ocorre, em Heidegger, na relação entre ôntico e ontológico.  
Ou seja, ao se tratar da política, não só se tem certa correlação com a ontologia; há  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
uma derivação direta das categorias fundamentais de algumas filosofias políticas a  
partir da ontologia.  
As referências ao autor de Ser e tempo, porém, são seletivas. O autor alemão  
tem uma posição segundo a qual o “esquecimento do ser” – que autores como Hannah  
Arendt relacionarão ao “esquecimento da política” – coloca-se já depois dos pré-  
socráticos e atinge um patamar elevado na modernidade. Heidegger, portanto, volta-  
se para trás, com aquilo que chamou de “passo-de-volta”; Mouffe, porém, louva os  
novos tempos colocados nos momentos posteriores à queda da União Soviética e  
procura novas possibilidades políticas com sua tematização do político. Ou seja, seu  
éthos é oposto àquele do filósofo alemão. Ela procura tratar da política (e do político)  
sem qualquer busca por algo “originário”. E, assim, ao contrário do que se dá com o  
tratamento heideggeriano da “ditadura da opinião pública” e do “impessoal” vem a  
louvar o elemento popular e democrático. Ao contrário de Heidegger, portanto, ela  
não tem qualquer nostalgia quanto à antiguidade. Defende as possibilidades da  
democracia moderna e pensa a política em meio às potencialidades que estariam mais  
claras justamente depois da derrota da União Soviética.  
Tal qual autores que procuram pensar a república a partir da ciência política,  
Mouffe e outros procura olhar para a democracia moderna. Que o aparato  
categorial que usa para isso traga consigo a posição oposta, parece não importar. O  
essencial se colocaria na defesa da oposição entre a política e o político. Para a autora  
que mencionamos acima, em analogia com o que ocorre com a ontologia fundamental  
de Heidegger, seria preciso pensar o político com todo o cuidado; em verdade, isso  
seria o decisivo. Tratar-se-ia de nada menos que algo fundamental à democracia:  
Sustento que é a falta de compreensão do “político” em sua dimensão  
ontológica que está na origem da atual incapacidade de pensar de  
forma política. (...) Estou convencida de que o que está em jogo na  
discussão acerca da natureza do “político” é o próprio futuro da  
democracia. (MOUFFE, 2015, p. 8)  
Heidegger passa de autor profundamente criticado por Lukács e pelos  
frankfurtianos a uma grande e explícita influência. E é preciso destacar: isso teve como  
elemento mediador o próprio marxismo althusseriano, como mencionamos.  
Porém, aqui não é o local para se tratar disso. Para nossos fins, deve-se deixar  
claro que a posição heideggeriana passa a ser decisiva no tratamento da política em  
diversos autores contemporâneos como Agamben, e a própria Mouffe. Isso ocorre  
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porque a “dimensão ontológica” seria aquela do conflito (segundo Mouffe, diferente  
do antagonismo e da contradição) sem o qual seria impossível pensar a democracia.  
Essa última, por sua vez, teria seu próprio futuro como algo dependente do político.  
E, assim, novamente, percebe-se que longe de ser um preciosismo filosófico tratar da  
ontologia, tem-se tal tema como algo que, quer se queira, quer não, paira no ar.  
A relação entre ontologia e política, nesse caso, aparece como algo explícito e o  
modo como autores como Mouffe marcam posição decorrem, por vezes diretamente,  
de seu posicionamento sobre a “ontologia fundamental”. A abordagem heideggeriana,  
de forte inspiração kierkegaardiana segundo Lukács, de início, coloca-se no próprio  
seio do marxismo althusseriano; hoje, porém, ela afirma-se diretamente em diversas  
concepções da filosofia política atual. E, com isso, a ligação entre ontologia e política  
precisa ser esclarecida com cuidado, como pretende fazer Chasin em sua obra.  
Sobre o tema, ainda é interessante notar que as tonalidades religiosas da  
ontologia heideggeriana não deixaram de ser destacadas pelo mesmo Lukács,  
sobretudo, em A destruição da razão. Dizemos isso porque um autor que vem a ser  
influente de modo bastante claro nas abordagens não marxistas que destacamos acima  
procurou justamente desenvolver uma teologia política, Carl Schmitt. Ele é mencionado  
inúmeras vezes como fundamento teórico por autores como Mouffe, Agamben, entre  
outros. Esse último, inclusive, não tarda a procurar ler pensadores como Benjamin por  
meio de Schmitt, tentando desenvolver também uma teologia política, que, por sua  
vez, voltar-se-ia ao tempo presente. E tal teorização vem fazendo muito sucesso em  
certa autoproclamada “esquerda”. Ou seja, a crítica à religião – segundo Marx,  
“pressuposto de toda a crítica” – acaba por dar lugar a uma teologia política. E, diante  
da não tematização explícita da ontologia, elementos essenciais da ontologia  
heideggeriana afirmam-se, mesmo que de modo meandrado, em meio aos  
posicionamentos políticos daqueles colocados à esquerda.  
Isso ocorre, mesmo que seja não seja um detalhe a posição de certa nostalgia  
presente em Heidegger em oposição à tematização contemporânea da política, que  
procura fincar o pé no presente para buscar avançar. Como mencionado, mesmo que  
de modo substancialmente distinto, isso ocorre também na ciência política que procura  
resgatar certa tradição republicana inclusive em Maquiavel para pensar o presente.  
Ou seja, paira no ar o posicionamento que vê a política como algo de atualidade  
gritante e que é fundamentalmente ligada às virtudes democráticas e republicanas. E  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
isso ocorre recorrendo-se, inclusive, a elementos importantes da teorização de um  
autor que não deixou de criticar a “ditadura da opinião pública” em Ser e tempo. Trata-  
se claramente de uma abordagem seletiva da teorização heideggeriana. Pode-se  
mesmo dizer que ela, em diversos sentidos, é pouco cuidadosa. Porém, o sentido geral  
é aquele oposto ao presente em Heidegger, o do elogio da república e da democracia  
contemporânea.  
A tematização do político, porém, nem sempre trouxe essa configuração. Em  
verdade, não deixou de se colocar com uma crítica fortíssima à política moderna e com  
o resgate de categorias supostamente presentes originariamente na tradição greco-  
romana.  
No que é preciso afirmar que um dos grandes teóricos do “político” é Carl  
Schmitt, que vem sendo retomado pelos autores mencionados acima, e por outros.  
Para ele, aliás, “o conceito de estado pressupõe o conceito de político” (SCHMITT,  
2009, p. 1). E, com isso, seria preciso tratar das dimensões fundamentais do político  
em oposição à política como conformada diuturnamente. Aliás, em oposição a esse  
elemento diuturno, Schmitt vem justamente a se voltar ao elemento extraordinário –  
em uma tonalidade que não deixa de lembrar a tematização heideggeriana do  
acontecimento, diga-se de passagem. Ao trazer à tona o político, diz o autor que “a  
contraposição política é a contraposição mais intensa e extrema, e toda dicotomia  
concreta é tão mais política quanto mais ela se aproxima do ponto extremo, o  
agrupamento do tipo amigo-inimigo” (SCHMITT, 2009, p. 31). Em oposição a tal ponto  
extremo, ter-se-ia a era das “neutralizações e despolitizações” em que o elemento  
técnico (também criticado por Heidegger, Spengler e outros pensadores da extrema-  
direita em solo alemão); ter-se-ia uma situação em que “a religião da crença nos  
milagres e no além logo se transforma, e sem membro intermediário, em uma religião  
do milagre técnico, das realizações humanas e do domínio da natureza.” Assim,  
segundo o autor, “uma religiosidade mágica transmuta-se em uma tecnicidade  
igualmente mágica” (SCHMITT, 2009, p. 31). O tratamento do político, no autor de O  
conceito de político, traz consigo esse diagnóstico, que não deixa de trazer uma  
conotação de certa tecnofobia, tal qual em Heidegger. E, assim, novamente, ontologia  
(ahistórica e sistemática) e política acabam por se ligar intimamente.  
E mais, a religião, como tal, não seria o problema para Schmitt. Isso ocorreria até  
mesmo porque ela teria sido secularizada e continuado ativa na política. O político,  
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Vitor Bartoletti Sartori  
assim, precisaria ser tratado em correlação com uma espécie de teologia política.  
Somente assim se remeteria para além de um pensamento superficial sobre a política.  
Schmitt posiciona-se em um momento em que o desenvolvimento das forças  
produtivas, aos seus olhos, parece não trazer qualquer avanço. Aliás, para que sejamos  
justos com ele, não se poderia falar sequer na aprovação de algo como o  
desenvolvimento progressivo de acordo com a malha categorial schmittiana. Não por  
acaso, as remissões do autor à Roma são muitas e são essenciais ao desenvolvimento  
de seu pensamento político, que tem como um grande tema as ditaduras (e não a  
república) romanas. A época moderna tudo mais mantido constante seria aquela  
de uma despolitização e de uma neutralização técnica. Falar em algo como  
desenvolvimento de forças produtivas de modo a trazer qualquer aprovação seria  
respaldar tal situação. Em O conceito de político, a despolitização, inclusive, aparece  
por meio da tentativa de colocar as determinações econômicas em primeiro plano. A  
afirmação do político vai contra isso:  
A ideia de um progresso, de melhorias, e aperfeiçoamento, em termos  
modernos: de uma racionalização, tornou-se dominante no século  
XVIII e, precisamente em uma época de crença moral-humanitária.  
Portanto, progresso significava, sobretudo, progresso no  
esclarecimento, progresso em formação, autodomínio e educação,  
aperfeiçoamento moral. Em um tempo de pensamento econômico ou  
técnico, o progresso é imaginado tácita e naturalmente como  
progresso econômico ou técnico, e o progresso mora-humanitário  
surge enquanto ainda interessa, como produto do progresso  
econômico. Quando uma área se converte na área central, os  
problemas das outras áreas passam a ser resolvidos a partir daí, sendo  
considerados tão-somente como problemas de segunda categoria,  
cuja solução se dá por si mesma quando apenas resolvidos os  
problemas da área central. (SCHMITT, 2009, p. 93)  
A crítica de Schmitt ao progresso traz consigo uma posição contrária ao  
esclarecimento e contra a “crença moral-humanitária”, na esteira da crítica de qualquer  
humanismo, diga-se de passagem. Há também uma forte resistência ao  
desenvolvimento econômico (que o autor não tarda a ver como sinônimo de técnico)  
de modo que o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, das capacidades  
humanas em seu sentido mais amplo acaba por não confluir com a defesa do político.  
Isso não deixa de remeter às análises de Chasin sobre a base social da emergência e  
consolidação da politicidade; porém, destacaremos esse aspecto mais à frente. Esse  
desenvolvimento, de acordo com Schmitt, faria com que o político não aparecesse  
como tal, a partir da relação amigo-inimigo, sendo preciso reafirmá-lo de modo  
decidido. Para fazer isso, inclusive, seria preciso proceder remetendo a categorias  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
vigentes na Antiguidade e, em especial, na Antiguidade romana. Como é comum entre  
aqueles que se colocam no campo da filosofia política, e que distinguem entre a  
política e o político, o autor alemão traz para seu campo certa visão sobre a  
antiguidade, criticando as condições modernas e que taxa de liberais.  
Uma visada unilateral sobre a própria política aparece aqui, portanto. A remissão  
à Antiguidade traz consigo certo posicionamento, no limite, antimoderno. E, com isso,  
o modo como se configura a política desde o Renascimento (como mostra Chasin em  
sua leitura sobre Maquiavel), de um lado, voltando-se à Antiguidade, doutro, à  
centralização do estado, de início, em uma configuração absolutista, é eclipsado por  
uma unilateralidade pungente. E isso é visível ao se ter em conta outro elemento, a  
oposição entre legalidade e legitimidade. Schmitt vem a trazer a crítica à “mera”  
legalidade, que não necessariamente expressaria a legitimidade. Essa última, aliás, em  
determinado momento da carreira do autor de O conceito de político, e expressando  
a dimensão do político, e não só do estado, apareceu incorporada no Füher. Esse  
último, como todo o soberano, seria aquele que decidiria em meio ao estado de  
exceção. No que, novamente é preciso destacar: aqueles que se baseiam em Schmitt,  
como Agamben, Mouffe e muitos outros na filosofia política, na melhor das hipóteses,  
fazem uma leitura bastante seletiva.  
Uma posição reacionária e organicamente ligada à teoria do autor alemão é  
colocada entre parênteses e segue-se com a teoria do autor sobre a relação entre a  
política e o político como se nada tivesse acontecido. Com essas bases filosóficas,  
certamente, o futuro é ausente e a apologia do político se perpetua.  
Assim, se é verdade que as posições de Agamben e Mouffe, de um lado, e de  
Schmitt, doutro, são opostas até certo ponto, não se pode dizer o mesmo quanto a  
certa fundamentação ligada a uma concepção positiva sobre a política. Os autores  
contemporâneos não são críticos da modernidade ou possuem certa nostalgia quanto  
á antiguidade, tal qual ocorre no autor alemão. Mas, em todos esses casos, tem-se a  
política como o elemento social da filosofia. E, com isso, em verdade, não se trata só  
de uma concepção positiva, mas de um posicionamento em que só a política é que  
pode ter a dignidade daquilo a ser estudado e que tem a capacidade de ser resolutiva.  
Trata-se de um politicismo marcante e bastante evidente, portanto.  
Aliás, outra autora que é muito influente hoje Arendt não tarda a atribuir  
grande parte dos problemas modernos ao “esquecimento da política”. E, assim, vemos  
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que tendências muito fortes na filosofia política, bem como no campo das esquerdas,  
adotam uma visão positiva sobre política como ponto central de apoio. Em verdade,  
talvez seja em Arendt que os elementos que destacamos aparecem de modo mais  
claro.  
No caso da referida autora, a tematização sobre a política se dá em oposição  
àquilo que ela chamou de “elementos totalitários do marxismo” e que foi desenvolvido  
em diálogo com os cursos de Heidegger (sim, novamente) sobre Aristóteles a partir  
de uma teorização sobre A condição humana. Ao tentar resgatar do esquecimento a  
noção aristotélica de práxis, a autora traz sua teorização sobre a “ação”, que se  
colocaria essencialmente no campo político e em oposição à dimensão “social”, que  
teria se desenvolvido na modernidade quando o “trabalho” e o “labor” tivessem  
chegado à esfera pública. Aqui, a busca por uma condição humana fundamental (que  
pode ser pensada nos termos de uma ontologia a-histórica) redunda na defesa da  
política. Essa última, por sua vez, apareceria de modo originário na sociedade grega,  
em que as relações do homem com a natureza ficariam no âmbito da oikos. Ter-se-ia  
também a modificação da natureza como algo que não seria agressivo e se  
assemelharia muito mais ao trabalho artesanal. E, assim, também em diálogo com a  
tematização heideggeriana sobre a poiesis, Hannah Arendt acaba por trazer uma  
defesa da política em oposição ao “social”.  
Cabe destacar também que ela tem aversão à noção de revolução social.  
Sua teorização sobre a política não só parte da influência da ontologia de  
Heidegger. Com essa base, tem-se explicitamente uma oposição a Marx e ao marxismo,  
que apareciam com força. Isso ocorre em várias obras, como a mencionada A condição  
humana. Porém, ganha destaque nas teorizações da autora acerca da revolução, que,  
aliás, não deixaram de seduzir autores como Agamben, mas também alguns marxistas.  
Em Sobre a revolução, a autora equaciona sua teorização sobre a ação, que  
sempre teria um elemento de “milagre”, com o “novo começo”, supostamente presente  
em Agostinho. Tem-se, assim, os elementos principais da revolução. E aqui é preciso  
destacar a peculiaridade desse tratamento, que faz com que ele pareça aprazível para  
a esquerda: Hannah Arendt traz um elogio à revolução. Porém, é preciso destacar o  
modo como isso ocorre. De um lado, o novo começo que é destacado pela autora  
remete ao passado, mais precisamente ao conceito de fundação presente (também  
supostamente) em Maquiavel e, de modo mediado, em Roma. Ou seja, a autora volta-  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
se ao passado e traz tanto certa grecofilia ao falar da ação quanto uma apologia da  
república romana. A revolução, portanto, não é o resultado do ímpeto de transformar  
conscientemente as condições de vida (isso seria basear esse “acontecimento” no  
trabalho); ela também não traz a chegada do povo trabalhador à esfera pública (isso  
significaria ter por central o labor).  
Antes, a revolução digna de ser defendida seria o resultado de um ato político  
que, somente por uma infeliz circunstância, teria sido realizado junto com um ímpeto  
“social”.  
Mencionamos a teorização da autora somente para deixar claro que a correlação  
que ela estabelece entre a ontologia (no caso, heideggeriana) com a política traz  
consequências decisivas. É sintomático também que a autora tenha que colocar entre  
parênteses a determinação social dos acontecimentos políticos que trata: na  
antiguidade, a escravidão; na modernidade em que elogia a Revolução Americana e  
os “pais fundadores” em oposição à Revolução Francesa e o “povo raivoso” – as  
condições produtivas que trazem o capitalismo americano em confluência com a  
escravidão moderna. O fato de autores muito influentes na esquerda tomarem Arendt  
como referência diz muito sobre que tipo de futuro nos espera se não houver uma  
mudança de rumos. O futuro ausente, de J. Chasin, é um lembrete, e um alerta sobre  
isso. E, assim, caso se queira levar a sério a compreensão da política, não há como  
ficar restrito àquilo que vem sendo escrito sobre o assunto, ora mais ora menos, com  
base em uma ontologia ahistórica e tendo por elemento decisivo um elogio ora mais  
ora menos nostálgico da política.  
A emergência da política diante da dissolução das equações societárias  
comunais e da consolidação da comunidade antiga  
Diante do senso acrítico e eclético que permeia a visão de mundo posterior à  
derrocada da União Soviética, Chasin afirma a historicidade da política e, portanto, a  
impossibilidade de confundi-la com a sociabilidade. Assim, afasta-se tanto do senso  
comum da direita quanto daquele da autoproclamada esquerda.  
Ao contrário do que ocorre com os autores da filosofia e da teoria política, e na  
esteira do que é teorizado por Marx durante toda a sua obra, o autor de O futuro  
ausente diferencia a sociabilidade da politicidade. O homem pode ser compreendido  
como um ser social, mas o atributo político tem limites temporais e sociais que  
precisam ser enfatizados e entendidos. No entanto, nada mais alheio a Chasin que  
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tratar como simples erro subjetivo ou mera má-fé uma compreensão ontopositiva da  
politicidade. E, também por isso, seu texto tanto reafirma a necessidade da crítica da  
política quanto traz consigo uma compreensão sobre a importância que essa esfera  
típica das sociedades marcadas pela existência das classes sociais, da família patriarcal,  
do direito e do estado. Ou seja, não basta criticar aqueles que hoje trazem a política  
resolutiva das contradições e das oposições sociais. É preciso mostrar que tal tipo de  
formação ideal que, como ideologia, tem uma função ativa tem uma base material  
e histórica precisas, e que remetem à compreensão de algumas determinações da  
política, que precisam ser explanadas.  
O primeiro atributo da política que precisa ser destacado é sua historicidade, que  
remete à diferença específica da política diante de outras esferas, como a arte, por  
exemplo. A questão pode parecer se voltar contra certa concepção pós-estruturalista,  
que, na esteira da estetização da política (também comum no irracionalismo fascista),  
apagou as linhas que demarcam o estético e o político. Porém, não é disso somente  
que se trata.  
Basta pensar na tese, trazida por Coutinho para o Brasil, sobre a “democracia  
como valor universal”. Ali, o autor brasileiro pontua corretamente que Marx destaca o  
fascínio que a arte grega ainda nos causa e traz à tona a universalidade da arte grega.  
Porém, disso, o autor dá um salto: da universalidade da arte grega, vai-se à  
possiblidade de se trazer a democracia e ainda mais como valor como algo  
universal. Não podemos aprofundar esse embate; porém, é preciso apontar que é mais  
do que necessário apontar a especificidade da arte de um lado, e da política doutro.  
Isso ocorre até mesmo porque há certamente certo fascínio que os gregos exercem no  
homem moderno; porém, isso se dá, de acordo com J. Chasin, em correlação com as  
relações econômicas gregas e com a imaturidade da sociabilidade grega. Assim, há  
certa universalidade nas formações estéticas que decorrem das grandes obras gregas;  
porém, a sociabilidade grega, e as formas políticas que dela decorrem, são marcadas  
por determinações muito específicas.  
Veja-se Chasin sobre o encanto que os gregos ainda exercem sobre nós, bem  
como sobre o modo que interpretação da sociedade grega marcou o Renascimento:  
Para que o encanto não seja pueril, há que entender que aquilo que  
nos gregos nos fascina e que, antes, fascinou o espírito do  
Renascimento não está em contradição com a natureza primitiva da  
sociedade em que floresceu, mas indissoluvelmente interligado à  
imaturidade de sua tecelagem societária. (CHASIN, 2012, p. 61)  
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O encanto exercido pelos gregos é um fato, e não pode ser negado. Aliás, como  
vimos, não são raros aqueles que remetem aos gregos para tentar teorizar sobre as  
supostas virtudes da politicidade, ainda hoje. Porém, é preciso enxergar o modo pelo  
qual, ao mesmo tempo, a sociabilidade grega nos fascina e é socialmente determinada.  
Chasin destaca justamente que as condições para que a sociabilidade grega  
ainda nos marque, tal qual as razões de ela ter influenciado profundamente o  
Renascimento, estão em sua natureza primitiva, bem como em sua imaturidade.  
Remetendo à Introdução de 1857, de Marx, o autor paulista procura mostrar como  
nossa infância, de certo modo, também está nos gregos. E, ao trazer tal aspecto, já  
fica vedada uma hipótese que parece permear o pensamento político moderno de  
tempos em tempos: não há como simplesmente tomar a infância como critério da  
maturidade. Não há como se ter qualquer romantismo ou nostalgia quanto à  
sociabilidade grega ou a política e a arte gregas.  
Para que possamos nos expressar de modo mais próximo a Marx: uma chave  
para a anatomia do macaco está na anatomia do homem, que é mais madura e  
evoluída. Sejamos claros: Chasin escapa de dois erros correlatos. De um lado, ele sabe  
que não há como ignorar o encanto que os gregos exercem; doutro, fica claro que tal  
encanto depende justamente da imaturidade da tecelagem societária vigente à época.  
Não há como tomar o macaco como a chave da anatomia do homem; também é  
impossível tomar a anatomia do homem acriticamente como a única chave que explica  
a anatomia do macaco.  
E, ao tratar da política e daqueles que tomam como ponto de partida uma  
determinação ontopositiva da politicidade tal aspecto pode ser decisivo.  
Primeiramente, porque nota-se, em geral, a total ausência de questionamento sobre o  
caráter histórico e limitado da política. Em segundo lugar, tem-se que desatacar tal  
aspecto pois, de modo geral, a filosofia política, bem como a ciência política, acaba  
por cair em um dos erros correlatos que mencionamos. Chasin, dessa maneira, é  
forçado a voltar à própria gênese da política e do pensamento político. Para isso,  
precisa passar pela própria dissolução das comunidades primitivas, que é tema tanto  
da arte grega quanto de sofisticadas concepções políticas sobre a moderna sociedade  
civil-burguesa (basta pensar em Hegel, Höderlin e Schelling, por exemplo, como bem  
apontou György Lukács em seu estudo sobre Hegel).  
Para poder tratar com cuidado da política grega, portanto, Chasin está ciente  
Verinotio  
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desses debates. Porém, não pode adotar seus pontos de partida acriticamente, sendo  
preciso tratar da própria dissolução das formações sociais de tipo comunal, que são  
objeto do pensamento grego e que marcam tanto a arte grega como autores como o  
jovem Hegel.  
Em O futuro ausente, há um destaque especial para a correlação existente entre  
a individualidade, a comunidade e a emergência da política. Como aponta o autor:  
Nas equações societárias de tipo comunal, a existência objetiva do  
indivíduo como proprietário das condições materiais de trabalho é um  
pressuposto real, antecede e não deriva do trabalho, do mesmo modo  
que ele é proprietário sob condições que o vinculam ao agregado  
social, que fazem dele um elo da cadeia comunitária, sendo que esta  
mesma, por sua vez, aparece igualmente como pressuposto efetivo,  
como condição da produção de cada um dos indivíduos que existem  
sob forma subjetiva determinada. (CHASIN, 2012, p. 62)  
Há de se notar que as equações societárias comunais trazem os indivíduos como  
proprietários de suas condições materiais de trabalho. Isso precisa ser destacado não  
só quanto a esse conteúdo específico, mas pelo modo pelo qual isso ocorre: o  
pressuposto real da sociabilidade que se desenvolve sob as condições mencionadas  
ampara-se na propriedade coletiva, que caracteriza essa sociedade. Essa propriedade,  
aliás, não deriva do trabalho. Para que sejamos claros, não se tem uma “centralidade  
do trabalho” em comunidades ainda não marcadas pela emergência da política. Os  
indivíduos são elos da cadeia comunitária e não se tem ainda a produção e a esfera  
pública autonomizadas.  
A própria cadeia comunitária aparece como um pressuposto ao lado da  
propriedade das condições materiais de produção. E, assim, as individualidades estão  
completamente ligadas em uma unidade com o gênero humano. Chasin é claro sobre  
isso:  
Portanto, em semelhantes conglomerados humanos, indivíduo e  
gênero são imediata e transparentemente inseparáveis e suas relações  
traduzem essa unidade fundamental, tornando desconhecida e  
impensável qualquer tipo de cissura que contraponha ou, menos  
ainda, torne excludentes entre si as figuras de sua polaridade.  
(CHASIN, 2012, p. 62)  
Ao mesmo tempo em que indivíduo e gênero não se opõem, não há como se ter  
qualquer nostalgia quanto aos conglomerados mencionados. Isso ocorre,  
primeiramente, devido à forma pela qual se dá a inseparabilidade mencionada: há uma  
unidade imediata.  
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Depois, há de se destacar que o pressuposto para o desenvolvimento das  
capacidades humanas que começa a aparecer na arte grega, por exemplo, mesmo  
que de modo seminal está justamente no rompimento dessa unidade. As figuras do  
indivíduo e do gênero não são excludentes ou contrapostas, certamente. E esse é o  
ponto de partida para o desenvolvimento da política grega, que pretende manter tal  
aspecto. Porém, não há como deixar de destacar que isso trazia consigo cidadãos  
isonômicos somente na medida em que em que se tem, tanto um baixo grau de  
desenvolvimento de forças produtivas, quanto a escravidão, que dá a tônica das  
condições materiais de produção que vêm a se desenvolver na produção grega que  
supera as equações comunitárias do tipo comunal. A política grega, portanto, traz  
consigo tanto a imaturidade da produção comunal (embora mais desenvolvida  
comparativamente à última, certamente) quanto certa problematização, marcada por  
uma irresolução congênita, da contraposição entre indivíduo e gênero. O modo político  
de problematização assim supõe.  
Chasin, assim, trata tanto da existência objetiva de indivíduos que são  
proprietários de suas condições materiais de produção quanto da necessidade do  
rompimento da unidade que caracteriza tal forma produtiva. O trabalho, na figura da  
escravidão primeiramente, vem a autonomizar-se somente com dissolução da unidade  
imediata entre indivíduo e gênero humano. Isso, ao mesmo tempo, traz um avanço:  
rompe-se com o imediatismo de uma produção que não deriva do trabalho, mas da  
propriedade coletiva colocada como um pressuposto real. A ligação imediata do  
indivíduo com a comunidade, posteriormente, rompe-se e se tem uma separação  
importante para O futuro ausente: trata-se do desenvolvimento de uma forma opositiva  
de sociabilidade, que dá espaço à emergência da política. Há de se notar, portanto,  
que o surgimento da política depende de certas determinações colocadas no plano da  
produção. E, de modo mais geral, ela traz consigo a dissolução das equações  
societárias do tipo comunal.  
A política grega depende de tal elemento, como não poderia deixar de ser. E,  
assim, as equações comunais trazem consigo tanto elementos positivos quanto  
negativos, que como é evidente para aqueles educados no pensamento de Marx –  
não podem ser separados em qualquer crítica imanente. Ainda sobre essas equações,  
Chasin não deixa de destacar que a unidade entre indivíduo e gênero, bem como entre  
as condições materiais de produção e as individualidades, e com formação de suas  
subjetividades, precisam ser entendidas sem quaisquer romantismo ou nostalgia. Ao  
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se considerar os aspectos positivos, eliminados com a política como mediação social:  
Por outro lado eis a dimensão negativa, tão inerente a tais formações  
quanto seu aspecto mais positivo, da qual também é inseparável:  
todas as formas em que a comunidade pressupõe sujeitos em  
determinada unidade objetiva com as condições da atividade  
produtiva, ou, reciprocamente, na quais uma específica existência  
subjetiva faz com que a própria comunidade seja pressuposta como  
condição de produção, todas elas, diz Marx, “correspondem  
necessariamente e por princípio a um desenvolvimento limitado das  
forças produtivas”. (CHASIN, 2012, p. 62)  
Não deixa de ser surpreendente que tenha sido preciso assim como ainda é  
hoje em dia lembrar a marxistas que é necessário considerar o desenvolvimento das  
forças produtivas como algo essencial. Com esse desenvolvimento, vem mesmo que  
de modo profundamente contraditório o incremento das capacidades humanas; que  
esse incremento traga consigo a oposição entre indivíduo e gênero, sociedade e  
estado, condições materiais de produção e o trabalho é necessário se destacar sempre.  
Sempre há uma indissociabilidade entre a produção social e a as formas políticas que  
se desenvolvem. E Chasin, em O futuro ausente, está justamente explicitando tal  
aspecto.  
A unidade objetiva dos indivíduos com suas condições de produção, vigente na  
equação societária comunal, depende do desenvolvimento limitado das forças  
produtivas. A base objetiva da unidade entre indivíduo e gênero, bem como entre as  
subjetividades e a própria comunidade, está no escasso avanço das capacidades  
sociais dos homens. A própria comunidade é pressuposta como condição de produção,  
nessas equações societais, na medida em que a manutenção mesma da forma  
comunitária de produção é um retrocesso, e não um avanço. E, de acordo com J.  
Chasin, as condições objetivas que marcam a emergência da política como mediação  
social estão na dissolução dessa condição. A política, portanto, é desde o início, uma  
marca de sociedades presas a estágios produtivos em que há entraves seríssimos ao  
desenvolvimento das forças produtivas.  
O próprio fascínio da arte grega diante da dissolução das equações societárias  
comunais traz consigo tais elementos profundamente contraditórios. Ao mesmo tempo  
em que há certa nostalgia quanto a uma condição perdida, há uma tentativa de  
resolução dos grandes problemas sociais por meio daquilo que pressupõe tal  
dissolução e a mantém, a política. Essa última é lançada ao centro da sociedade grega  
somente ao passo que se tem a produção escravista, bem como a oposição –  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
objetivamente trazida pelo processo de dissolução das comunidades antigas entre  
o destino dos indivíduos e o gênero.  
Ao analisar a emergência da política como mediação socialmente necessária,  
portanto, não se tem o político contra a política. Antes, nota-se que o processo de  
desenvolvimento das forças produtivas relaciona-se intimamente, não só com  
mudanças nas relações de produção, mas também nas próprias formas políticas. Assim,  
há de se compreender a correlação existente, em cada momento histórico, entre  
determinadas formas de sociabilidade e a conformação objetiva das formas políticas.  
A política na Grécia e na Roma antigas: o baixo desenvolvimento das forças  
produtivas como ponto de partida e de chegada  
A dissolução das equações societais do tipo comunal são o pressuposto do  
desenvolvimento “normal” da infância mencionada por Marx; isso, porém, não significa  
que não existam outros tipos comunais de sociedade. Chasin trata do desenvolvimento  
grego tanto por ser aquele considerado clássico quanto porque dele derivam várias  
formas de se pensar a política, particularmente, na filosofia e na ética em especial. Ou  
seja, O futuro ausente não só é um texto inconcluso: ele também não pretende ser  
exaustivo de modo algum. Traz apontamentos sobre a política, sobre sua gênese e  
desenvolvimento, tanto no que toca a sua determinação social quando ao se passar  
pela sua teorização. Mas não se pode trazer qualquer resposta global e singular a  
partir do texto, que pode ser um excelente ponto de partida, mas, hoje, não pode ser  
o ponto de chegada para nós.  
J. Chasin não tematiza no texto só para que fiquemos em equações sociais  
tratadas por Marx da comuna germana, da comuna agrária russa ou da comuna  
existente na Irlanda. O autor brasileiro, assim, não está trazendo uma história ou uma  
teoria completa da política no texto que aqui tratamos. Permanecendo em um grau  
elevado de abstração, assim, vem a explicitar a forma típica pela qual a política se  
entifica na moderna sociedade civil-burguesa, tanto em termos práticos quanto no que  
diz respeito à teoria. Com isso, após passar pela dissolução da das formas comunais  
gregas, ele destaca como que Grécia e Roma trazem formas políticas que trazem certo  
encanto, mas decorrem de um baixíssimo grau de desenvolvimento de forças  
produtivas. A partir disso, procura demonstrar que a teorização grega e todo o  
entusiasmo que dela decorre tem como base real tal imaturidade da forma societal,  
bem como uma produção minguada e limitada.  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 3-85 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 39  
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Isso certamente não é pouco. E é preciso deixar claro: vai além de quase todas  
as teorizações autoproclamadas marxistas, que, na maioria das vezes, sequer buscam  
abordar, por exemplo, a especificidade da política diante de outras esferas do ser  
social.  
Ao tratar da diferença específica da política, o autor passa por sua gênese, como  
mencionamos. Porém, ele ainda precisa explicitar as determinações sociais que fazem  
com que a política possa adquirir importância decisiva, por exemplo, na sociedade  
antiga.  
Um aspecto insistentemente trazido à tona no que toca o assunto diz respeito  
às limitações de uma sociabilidade que pretenda apoiar-se (sem nunca poder real e  
efetivamente fazê-lo) na política. Ao se olhar para a sociedade antiga, percebe-se que  
se trata de formações sociais baseadas na escassez e que trazem consigo a escravidão  
como condição. A fragilidade, bem como as limitações gregas, é que engendram a  
política.  
Foi a fragilidade da comunidade antiga que fez brotar pela primeira  
vez a política em seu perfil mais atraente, não como produto de suas  
melhores qualidades, mas precisamente da pequenez de suas  
energias societárias ou da extensão restrita de suas grandezas  
intrínsecas. Encarar, em suma, que a política como fato e idealização  
é a filha bastarda da infância grega, ou seja, que comunidade real,  
porém incipiente ou atrófica, e bastardia política formam o  
indissolúvel cinturão de ferro da civilização antiga. (CHASIN, 2012, p.  
64)  
A forma mais atraente da política grega ainda necessita da reminiscência da  
comunidade real existente nas equações sociais de tipo comunal. E, assim, pode-se  
dizer que política, desde seu nascimento, traz certa idealização de uma época  
precedente.  
Mesmo que não se possa acriticamente generalizar esse apontamento chasiniano,  
não deixa de ser interessante lembrar que, de acordo com Marx, a Revolução Francesa  
de 1789 procurou usar as vestes da república romana, tal qual em 1848, mesmo que  
de modo cômico, por vezes, tentou-se usar as vestes da própria Revolução Francesa.  
O que vale destacar aqui é que o perfil mais atraente da política, em sua gênese, trouxe  
certa idealização das equações sociais do tipo comunal; a comunidade antiga traz isso  
em seu bojo. Ou seja, a política traz certo desenvolvimento desigual em relação às  
formas ideológicas pelas quais os indivíduos tomam consciência das contradições  
sociais da sociedade. Tal caráter faz com que, mesmo na situação mais atraente, aquela  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
da comunidade antiga, a política, ao fim, esteja baseada no melhor dos casos em  
certa ausência de consciência sobre o ser-propriamente-assim da sociedade. A política,  
em seu perfil mais atraente, é um fruto da infância normal da humanidade, e falar em  
infância significa falar em imaturidade; Chasin, assim, diz que a política é uma filha  
bastarda da infância grega. Como fato, ela deriva da dissolução das equações sociais  
do tipo comunitário; como idealização, ela parte das ilusões acerca da possibilidade  
da retomada daquilo cuja dissolução é uma necessidade e que conforma a comunidade  
antiga.  
A formulação de O futuro ausente é aquela segundo a qual a comunidade real e  
a bastardia política são uma espécie de cinturão de ferro da civilização antiga. Ou seja,  
as idealizações políticas e as limitações da comunidade antiga não podem ser  
dissociadas.  
Querer separar esses dois elementos seria profundamente equivocado. E, assim,  
se é comum certa idealização da política grega, isso só se dá com certa separação  
entre esses aspectos indissolvíveis do “cinturão”. E mais, toma-se a limitação, ligada à  
pequenez das energias societárias, bem como a restrita extensão das grandezas  
intrínsecas a tal forma social, como um mero detalhe e contingência. Não por acaso,  
aquilo que podemos chamar de certo proudhonismo teórico é comum ao tratar da  
política grega, buscando-se separar o “lado bom” do “lado mau”. A unilateralidade de  
tal procedimento pode ser muito bem analisada a partir do texto de J. Chasin, que  
figura como ponto de partida importante na crítica imanente às formações ideais  
eivadas pelo politicismo e, portanto, unilaterais. Parte substancial das posições  
politicistas acabam trazendo certa posição grecofílica (basta pensar na mencionada  
Arendt, ou em Strauss) e isso só pode ser elaborado teoricamente ao se retomar o  
pensamento e a prática gregas colocando entre parênteses aquilo que acompanha a  
política antiga, em especial, na democracia grega.  
Há, desse modo, segundo o filósofo paulista, uma ligação intrínseca entre a  
emergência de algo “externo” à própria comunidade, certo estranhamento diante dela,  
e uma sociabilidade restrita, limitada e atrófica. O elogio à política antiga acaba por  
ser uma espécie de apologia a uma potência estranhada do ser social. De acordo com  
o autor de O futuro ausente, a política, mesmo em sua forma baseada na infância  
normal e em seu perfil mais atraente, expressa tanto as virtudes intrínsecas quanto os  
vícios da sociabilidade grega e romana. O fato de o grau de idealização da política ser  
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maior no caso grego que no romano não pode ser tratado agora com cuidado; no  
entanto, ao analisar a posição chasiniana sobre Maquiavel, veremos como isso tem  
profundas influências na conformação da política moderna. Aqui, porém, é preciso  
destacar somente: a política aparece como resultado de sérias limitações das formas  
comunitárias que são engendradas posteriormente à dissolução das equações  
societais de tipo comunal.  
Deve-se dizer também que essas formas são, ao mesmo tempo, algo impossível  
de ser retomado objetivamente e algo que anima a idealização presente na política. A  
oposição entre sociabilidade e politicidade traz essa duplicidade consigo. E, com isso,  
a idealização passa a conviver com o caráter prático da política. Assim, ela, ao mesmo  
tempo, é efetiva e não pode apreender o ser-propriamente-assim da sociedade.  
A política traz consigo limites e limitações, certamente. Porém, não basta  
constatar isso. É preciso explicar essa determinação da política a partir da conformação  
objetiva da própria sociabilidade que lhe dá base. Algo importante nesse sentido pode  
ser olhar como Chasin equaciona as limitações comunitárias antigas com os horizontes  
estreitos da sociabilidade antiga, bem como, portanto, da política antiga:  
Uma comunidade, enquanto condição de possibilidade da exercitação  
vital dos indivíduos, que seja restrita, parca e estreita no potencial que  
subscreve a todos que a integram, por isso mesmo rigorosamente  
referenciada ao metro como idealidade máxima, o que redunda em  
horizontes conformistas, estanques e estrangulados de convivência e  
interatividade, não contém, nem poderia conter, puras e exclusivas  
forças ou energias inerentes à sociabilidade propriamente dita para  
ordenar e manter, sem mais, a organização comunitária. Pelos seus  
próprios limites ou insuficiências necessita de algo “externo”, para  
além dela, ou melhor uma força extra que a confirme e complete  
e com isso a viabilize enquanto aparato dinâmico de sustentação do  
ordenamento social. Força extra que, obviamente, não tem de onde  
provir a não ser do próprio tecido comunitário. (CHASIN, 2012, p. 63)  
São as limitações do tecido comunitário antigo que dão ensejo e exigem a  
política. O fato de que as comunidades grega e romana trazem consigo um parco  
desenvolvimento de suas próprias energias, bem como das forças produtivas, exige  
algo que se coloque como externo à própria comunidade. O estado e a política são  
um fruto dessa situação.  
Chasin, portanto, está explicitando o solo social da política; ele mostra como que  
não há, de modo algum, como fazer uma história autônoma dela. Sua história remete  
ao processo unitário de conformação do ser social da sociedade antiga. E o autor de  
O futuro ausente constata que o surgimento de uma potência “externa” depende da  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
fragilidade das interações comunitárias, calcadas na produção escravista e no baixo  
grau de produtividade do trabalho; nessa situação, “toda a potência humano-societária  
aí se resume à força coagulante das relações comunitárias” (CHASIN, 2012, p. 63);  
assim, não há qualquer abundância, ou energias extras para que se possa incrementar  
as capacidades humanas. De acordo com Chasin, isso leva a uma situação em que uma  
comunidade restrita e estreita, como a antiga, exige algo que se coloque acima dela.  
A política emerge das fraquezas da comunidade antiga, e não daquilo que é  
intrinsicamente rico nela.  
Por mais que no seio da comunidade antiga floresçam teorizações  
sofisticadíssimas, como aquelas da ética aristotélica que tem na noção de medida  
um elemento importante isto não poderia levar ao avanço das capacidades humanas.  
Ao contrário. O próprio ideal de medida, de acordo com Chasin, não deixa de  
pressupor horizontes conformistas, bem como uma imaturidade da forma de  
sociabilidade desenvolvida. A infância da humanidade, mesmo que possa fornecer  
muito entusiasmo, não pode oferecer quaisquer parâmetros (ironicamente, podemos  
dizer que não pode oferecer “a medida”) para a atividade comunitária. A política antiga  
e a idealização inerente a essa trazem consigo uma organização comunitária que não  
consegue, por suas próprias forças sociais, manter-se. Dessa incapacidade que surge  
a força do poder político.  
Trata-se da fragilidade do tipo de sociabilidade que se desenvolve na  
Antiguidade. De seus deméritos, e não de seus méritos, emerge a política como  
mediação social.  
Pode-se dizer que a força extra que dá apoio político para o ordenamento social  
decorre, ao mesmo tempo, das limitações mencionadas e da ainda maior restrição às  
potencialidades colocadas no seio da própria sociabilidade. Aliás, de acordo com O  
futuro ausente, não é doutro local senão da própria sociabilidade agora marcada por  
uma potência estranhada que a política surge e se mantém. Tem-se a usurpação de  
potências sociais e a formação de algo “externo” e que conforma uma força extra. E,  
nesse sentido, Chasin não deixa de apontar que o elogio da política antiga não poderia  
significar senão a aceitação de uma exercitação vital dos indivíduos que fosse parca e  
estreita.  
Trata-se do elogio de uma “satisfação limitada”, como disse o autor de O capital.  
A partir de Marx, diz Chasin que a medida da ética grega, a política antiga, o  
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mencionado estranhamento, bem como as lições destacadas são inseparáveis:  
Em suma, o que agora se destaca, e ainda com palavras de Marx, é  
que “o mundo antigo representa uma satisfação limitada” do homem.  
Um universo reduzido de formas acabadas e contornos definidos, de  
sendas estreitas e curtos horizontes, que nunca saem do campo visual  
dos agentes e delimitam suas equações teleológicas. Toda a potência  
humano-societária aí se resume à força coagulante das relações  
comunitárias, toda ela transpassada por uma lógica adstringente que  
enerva densa malha de resguardos estabilizadores, reiterando e  
multiplicando fronteiras. Donde provém a decisiva inclinação grega  
pela medida, ou mais precisamente pela idealizada justa medida.  
Marca da sabedoria helênica, a ideia de medida traduz antes de tudo  
a presença e a consideração permanente dos limites da comunidade  
e dos indivíduos. E é só pela autolimitação, singular e universal, que  
a autonomia e a autarquia gregas, tanto dos indivíduos como das  
comunidades, podem vir a ser prática e pensamento. Sob essa matriz,  
a civilização helênica é o justo império racional dos limites e das  
limitações, tal como não pode deixar de ser a feliz normalidade da  
infância. (CHASIN, 2012, p. 63)  
A limitação da comunidade antiga é tal que as equações teleológicas dos  
indivíduos se colocam como algo intrinsicamente estreito. Os horizontes curtos, assim,  
podem até mesmo nos causar fascínio; mas o fazem justamente devido ao fato de que  
tomam o universo como algo definido e acabado (ao contrário do que a própria prática  
comprova com a emergência do capitalismo em que aquilo que é sólido desmancha-  
se no ar, para que se fale com o Manifesto). A historicidade das relações sociais, bem  
como a processualidade do ser aparecem eclipsados; as fronteiras insuprimíveis  
acabam por caracterizar a antiguidade, bem como as visões de mundo que decorrem  
da sociabilidade antiga. A idealização política da comunidade antiga, portanto, não é  
só um disparate hoje. Ela acaba trazendo consigo, na melhor das hipóteses, um elogio  
ao atraso.  
Ao se tratar da política vigente na sociedade antiga, é preciso destacar: aquilo  
que Chasin chama de força coagulante das relações comunitárias dá a tônica da  
potência social, que se vê adstringida. A política, mesmo em sua forma mais atraente,  
é marcada pelas limitações na sociabilidade que mencionamos; e mais, de acordo com  
O futuro ausente, ela se mostra como tanto mais pronunciada quanto menos  
sustentáveis são as formas sociais nas quais se baseiam. A autolimitação, a medida, a  
temperança etc. fazem parte da ética de uma sociabilidade marcada pelo caráter  
limitado das potências humano-societárias. A autarquia antiga principalmente a  
grega, de acordo com Chasin também decorre desse cenário, de modo que, por mais  
normal que seja a idealização da antiguidade nas teorizações sobre a política, tem-se  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
uma verdadeira impossibilidade de trazer quaisquer ideais gregos (ou romanos) à  
moderna sociedade capitalista.  
Na moderna sociedade civil-burguesa, impera o elevadíssimo grau de  
desenvolvimento das forças produtivas, o rompimento de barreiras sociais e de  
fronteiras, a impossibilidade de se traçar limites precisos e muito mais. Ou seja, sob  
esse aspecto, pode-se dizer: a sociabilidade burguesa é a antítese direta da grega.  
Aquilo que começa a se tornar claro no Renascimento a importância da atividade  
humana na conformação das condições objetivas que dão ensejo às potencialidades  
humanas está longe de ser uma realidade na sociabilidade antiga. A política antiga,  
assim, é tanto marcada pela imaturidade da produção quanto pelo caráter tacanho dos  
pores teleológicos individuais.  
A satisfação do homem, nessas condições, só pode ser limitada. Aliás, os  
horizontes políticos e comunitários são tão estreitos que se busca estabilização e uma  
tentativa de equilíbrio, representados filosoficamente no ideal de justa medida. Ela,  
bem como a temperança caracteriza a ética grega, reafirmam a necessidade de limites,  
limitações. A normalidade da infância, de acordo com J. Chasin, assim supõe.  
O equilíbrio precário da sociabilidade antiga é a base da política que aí emerge.  
E, pelo que dissemos, só é possível que essa situação seja perpetuada, de um lado,  
mantendo-se as restrições e o caráter tacanho da produção escravista e, doutro, com  
uma força extra que seja usurpada do próprio seio da comunidade, transmutando  
potências sociais e poder político. O baixo grau de desenvolvimento social, as limitadas  
capacidades humanas, bem como “um universo reduzido de formas acabadas e  
contornos definidos, de sendas estreitas e curtos horizontes” são o ponto de partida  
e o ponto de chegada da comunidade e da política antigas. E, também por isso, há  
certa insustentabilidade na sociabilidade antiga, que é acompanhada do caráter  
pronunciado das formas políticas.  
Por seus limites, debilidades e incipiências intrínsecas, a comunidade  
antiga (o exemplo grego é a melhor iluminura) não é socialmente  
autoestável, é incapaz de se sustentar e regular exclusivamente a  
partir e em função de suas puras e específicas energias sociais. Esta  
incapacidade ou limite social engendra a partir de si mesma, em  
proveito  
e
em vista da estabilidade comunitária, uma  
dessubstanciação social como força extrassocial uma desnaturação  
e metamorfose de potência social em força política. (CHASIN, 2012,  
p. 63)  
A insustentabilidade da comunidade antiga fica explícita ao passo que ela é  
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incapaz de se manter a partir das suas próprias energias sociais. Tem-se, desse modo,  
o que Chasin chama de dessubstanciação social, que engendra uma força extrassocial  
colocada na política. Assim, conforma-se a transformação de parte considerável das  
potências sociais em forças políticas, de modo que o caráter político da comunidade  
antiga decorre de sua imaturidade, bem como de seus limites tacanhos. Tem-se, nas  
palavras de Chasin, a situação em que “inversamente proporcional às forças  
socioprodutivas, tanto mais destacado é o papel do poder político quanto mais débil  
for a capacidade de autorresolução social de uma formação humano-societária.”  
(CHASIN, 2012, p. 64) Seguindo os apontamentos do livro I de O capital, o autor  
brasileiro explicita que o papel principal na comunidade antiga acaba por ser cumprido  
pela política. Chasin explica as razões sociais que levam ao caráter pronunciado da  
esfera política antiga. Ou seja, ele explicita como que aquela sociedade que até hoje é  
tomada como medida por parte considerável daqueles que teorizam a política traz  
consigo problemas insuperáveis.  
Em verdade, as limitações da sociedade antiga acabam por ser colocadas entre  
parênteses pelos filósofos políticos contemporâneos, os quais, ao contrário do que se  
dá em Chasin, são incapazes de apreender a historicidade da política. O modo pelo  
qual o filósofo paulista trata do tema deixa claro, não só que sociabilidade e  
politicidade são distintas. Tem-se também que há uma gênese, bem como uma base  
material para que a política possa aparecer como algo de grande relevo social. As  
limitações da produção antiga, bem como a insustentabilidade da sociabilidade  
calcada na escravidão e com um baixo grau de desenvolvimento das forças produtivas,  
levam ao elogio a uma força externa. O poder político antigo é a expressão da  
debilidade e do caráter tacanho das potências sociais engendradas a partir da  
produção escravista. A infância normal da humanidade traz consigo limitações  
impostas ética, espacial, classista e politicamente. A limitação de gênero (masculino-  
feminino) também é evidente. E, como J. Chasin demonstra, não se trata de uma  
simples contingência. Tem-se algo que diz respeito ao ser-propriamente-assim da  
comunidade antiga, de modo que, a rigor, é impossível resgatar ou fazes renascer a  
política antiga. Caso se tente realizar isso de modo ingênuo, tem-se, na melhor das  
hipóteses, um proudhonismo mais ou menos tosco e de mau gosto.  
Maquiavel, o Renascimento, a liberdade autolimitada e o centauro  
Pelo que vemos, as determinações objetivas que dão base à sociedade, bem  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
como à política grega, nem sempre são apreendidas de modo reto pelos autores de  
uma época. Hoje, depois de muito tempo, e após se ter passado por diversos percalços  
da história do capitalismo, no entanto, só pode ser ingenuidade (ou má-fé) procurar  
voltar-se à política antiga sem considerar as limitações da comunidade antiga. Mas  
isso nem sempre ocorreu dessa maneira, ou mesmo de modo cristalino. O  
Renascimento expressa tal fato de modo bastante claro, trazendo, ao mesmo tempo,  
tendências afirmativas práticas e certa tendência a se voltar à antiguidade como  
modelo e norte. Ou seja, o momento mercantilista do capitalismo aparece como algo  
de transicional o qual tenta pôr em prática o mito político da nova Athenas ao passo  
abre espaço para o absolutismo. A maneira pela qual a política aparece nos  
Renascimento, tanto prática quanto teoricamente, expressa essa situação, em que certo  
elemento transicional (ligado à emergência da sociedade capitalista) é visível e precisa  
ser destacado em O futuro ausente, de J. Chasin.  
Chasin trata da política renascentista ao passar por essas determinações, bem  
como ao enfatizar aquilo que há de mais elevado no pensamento político renascentista,  
a obra de Nicolau Maquiavel. Ao tratar das concepções ontopositivas da política,  
portanto, o autor brasileiro volta-se àquilo de mais rico e marcante, como o autor de  
O príncipe.  
Isso ocorre de modo que não se trata de criticar somente as leituras seletivas e  
imputativas dos epígonos contemporâneos; antes, com o autor de O futuro ausente,  
há de mostrar como que aquilo de melhor no pensamento político traz consigo marcas  
de épocas das mais interessantes, como a Antiguidade e o Renascimento, e o caráter  
tacanho da politicidade. Tal caráter, por sua vez, faz-se visível, sobretudo, quando as  
potencialidades civilizatórias do capitalismo e da politicidade se esgotam. E, assim, um  
primeiro aspecto a se destacar é que o filósofo paulista trata de Maquiavel ao passo  
que muitos recorrem a ele em nossa época, e o fazem de modo profundamente seletivo  
e unilateral. Porém, o texto chasiniano não dá simplesmente respostas e marca  
posições diante de leituras equivocadas; ao analisar os próprios textos de Maquiavel,  
ele busca explicitar a sua gênese, estrutura e função, realizando aquilo que chamou de  
análise imanente.  
Acreditamos que, com isso, o autor de Estatuto ontológico foge de modismos e  
procura explicitar as determinações do próprio pensamento maquiaveliano. Não há  
qualquer proudhonismo, que separa do “lado bom” do “lado mau”, bastante comum  
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em certas hermenêuticas da imputação.  
Em O futuro ausente, ao se referir às determinações sociais do Renascimento,  
Chasin fala do “centro de enervações constituído pela malha afirmativa do ético-  
político-jurídico.” (CHASIN, 2012, p. 67) O autor de O príncipe, também um estudioso  
da república romana, de acordo com o filósofo brasileiro, expressa tais tendências  
afirmativas que mencionamos de modo claro. E, com isso, é preciso destacar que o  
solo social no qual se situa o pensamento renascentista é substancialmente distinto  
do antigo, portanto. Isso ocorre, não só ao passo que campos como a ética, a política  
e o direito passam longe de se confundir e explicitam suas diferenças específicas; tem-  
se também uma situação de domínio da natureza muito mais proeminente e a abertura  
para a atividade e a transformação humano-societárias antes inimagináveis. A  
afirmação das potencialidades humanas coloca-se em um patamar muito mais  
avançado, de modo que a imanência do pensamento renascentista transparece,  
também, no campo político.  
Maquiavel trata da malha afirmativa ética, política e jurídica passando pelo  
“processo político de entificação das senhorias e principados” (CHASIN, 2012, p. 67),  
algo que é feito buscando exemplos na Antiguidade romana (em que a tematização da  
fundação dos estados é mais recorrente que na Grécia) ao mesmo tempo que ele sabe  
que não há simplesmente como retomar o passado antigo na aurora da modernidade.  
Ao tratar dos senhorios e dos principados, a tematização de Maquiavel passa  
pela necessidade de unificação e centralização do poder, algo inimaginável no mundo  
antigo. Nesse sentido, a tematização da política passa por ilusões, certamente. Porém,  
de acordo com Chasin, também é marcada por um profundo realismo e imanência. A  
história de Florença, principalmente, vem a ganhar uma importância de destaque para  
o autor. Desse modo, o dinamismo dela, bem como das novas relações sociais que  
emergem, marcam o pensamento político de Maquiavel e precisam ser apreendidas  
como a base real sobre a qual se desenvolve a política renascentista (em especial  
aquela dos Médici) e a teorização maquiaveliana sobre a política e sua natureza, como  
veremos, humana e bestial.  
Desse modo, o autor trata da política ao analisar o “itinerário de estatização que  
desembocará no figurino do poder absoluto, antítese da idealidade referencial da pólis,  
da commune romana ou da quimera comunitária dos primórdios do Renascimento”  
(CHASIN, 2012, p. 67). A atividade política abordada pelo autor de O príncipe, desta  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
maneira, coloca-se em meio a esse elemento transicional que traz o Renascimento  
como um elo mediador para a consolidação da sociedade capitalista e do estado  
absoluto. E é necessário destacar tal determinação porque tal aspecto transicional faz  
com que as limitações do presente que é tratado por Maquiavel sejam tanto aquelas  
do passado quanto as do futuro. A potência da política maquiaveliana depende disso.  
Por mais que o tratamento do autor de O príncipe sobre a política não deixe de  
remeter à Antiguidade, o cenário claramente é o nascente mundo moderno, marcado  
pelo comércio e o pelo poder político que se afirma, tendencialmente, no âmbito do  
que viria a se configurar no estado-nação. Com isso, o pensamento político  
maquiaveliano já é nosso contemporâneo. Ele traz elementos essenciais da política, e  
das ilusões que marcam o poder político e o modo pelo qual se relacionam politicidade  
e sociabilidade.  
Segundo J. Chasin, isso faz do pensamento político de Maquiavel algo que  
inaugura o pensamento político moderno, ao mesmo tempo em que volta os olhos ao  
passado antigo. Nas palavras do filósofo, “Maquiavel é, simultaneamente, um pensador  
da república e do absolutismo, ou, em termos mais precisos, o último grande pensador  
da república antiga e o primeiro do absolutismo moderno” (CHASIN, 2012, p. 80). E  
quando se analisa o pensador fiorentino seria essencial ter isso em mente, já que seus  
posicionamentos exercem uma função concreta justamente em tal momento  
transicional, sendo fruto, também, da incompletude do capitalismo da época do  
mercantilismo.  
E, sobre esse ponto, há algo importante a destacar: tal qual ocorreu com a  
política antiga, parte das forças coaguladas na atividade ligada ao poder político é  
retirada do passado. Porém, uma peculiaridade importante é trazida aqui por J. Chasin:  
não há em Maquiavel qualquer ilusão sobre a possibilidade de se retomar uma  
conformação similar à antiga. Isso ocorre, inclusive, à medida que a malha afirmativa  
renascentista tem como suporte o mercantilismo e certa unidade prática entre a política  
e os negócios, que gera um equilíbrio tênue. Esse último, aliás, segundo o filósofo  
paulista, vem a marcar a política renascentista e aquilo que figura como sua expressão  
mais sofistica, o pensamento de Maquiavel. Segundo O futuro ausente, essa situação  
expressa-se no domínio dos Médicis e, no nível teórico, na tematização do autor de O  
príncipe sobre o poder político dessa família. Pode-se dizer, portanto, que  
modernidade econômica e política renascentista são faces do mesmo fenômeno  
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histórico, marcado por um equilíbrio de difícil sustentabilidade e que demanda uma  
atividade política singular, a qual, por sua vez, é abordada justamente no pensamento  
de Nicolau Maquiavel. Assim, Diz Chasin:  
Toda essa moderna feição econômica foi exercitada simultaneamente  
à prática e dominação políticas, que também celebrizaram os Médicis.  
E ambas eram desenvolvidas com traços propósitos e meios que  
põem em evidência uma inspiração comum e formas similares de  
efetivação. Diante do espírito e da prática que caracterizavam esses  
dois planos de atuação pela riqueza e pelo poder aos quais  
meticulosamente os Médicis se dedicaram, é imediato e tranquilo  
reconhecer a manifestação de uma mesma ordem de pensar e fazer,  
de um esforço pela entificação da mundanidade que, em seus  
momentos ideais e reais, operando sobre âmbitos específicos, tece e  
revela a integração de uma unidade peculiar. (CHASIN, 2012, p. 74)  
Se na Antiguidade a produção escravista ficava fora do espaço público, isso não  
ocorre mais. Maquiavel, ao contrário de autores contemporâneos e que têm por central  
o político, como Hannah Arendt e outros, não traz qualquer nostalgia diante dessa  
esfera pública antiga. A unidade necessária entre a política e a economia aparece no  
domínio dos Médici, de modo que haveria, inclusive, formas similares de efetivação de  
uma e doutra. Ou seja, Maquiavel é grandioso porque apreende certas determinações  
de seu tempo com precisão. Isso ocorre mesmo que tal leitura seja feita, como veremos,  
com grande grau de ilusão quanto à política e suas capacidades; a necessidade de se  
manter uma sociabilidade tacanha e limitada como base do governo misto também é  
algo visível no autor. Assim, como grande autor, tem-se um posicionamento que não  
esconde as adversidades e o caráter dificilmente conciliável das contraposições do  
presente.  
Ao contrário dos epígonos da defesa da política, Maquiavel assume as condições  
sociais de seu tempo como um ponto de partida de modo consciente e sem qualquer  
tom apologético. De acordo com O futuro ausente, riqueza e poder aparecem lado a  
lado em meio à imanência da atividade humana que se explicita no Renascimento. Isso  
se dá de tal maneira que a unidade entre os negócios dos Médici e poder político vêm  
à tona de modo a trazer à tona o caráter afirmativo da atividade humana, rompendo-  
se com as limitações claras que se colocavam tanto na produção antiga quanto no  
mundo medieval. A produção já marcada por certa subsunção formal ao capital, mas  
não pela subsunção real, para que se use a distinção de Marx traz consigo o ímpeto  
expansivo que caracteriza a compra e venda de mercadorias, e a necessidade de  
unidade política. No entanto, isso se passa sem que estejam claros os aviltamentos  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
que marcam a divisão do trabalho capitalista de modo inelutável e que não tardariam  
a começar a se impor.  
A visão de Maquiavel sobre a política, bem como a própria política dos Médici,  
como mostra Chasin, depende desse cenário. Inclusive, certo caráter artesanal da  
produção ainda se mantém até certo ponto; mas o mercador se impunha frente ao  
artesão, de modo que há uma situação bastante singular nas relações econômicas da  
época: justamente o caráter não completo da implementação do modo capitalista de  
produção dá base ao que se desenvolve de modo mais elevado no Renascimento.  
Trata-se de uma época já marcada pelo caráter afirmativo da atividade humana, mas  
que não pode ter consciência sobre as consequências reais do modo pelo qual tal  
caráter conforma-se.  
O próprio sistema produtivo mais utilizado, o trabalho domiciliar,  
colocava o mercador em posição dominante em face do artesão (o  
executor), de maneira que o estímulo econômico e os capitais  
provinham da esfera da troca, que dominava a produção. (CHASIN,  
2012, p. 81)  
O mercantilismo trazia uma situação muito distinta daquela da produção antiga,  
baseada na escravidão; e, desse modo, o desenvolvimento de capacidades humanas  
advindo do incremento das forças produtivas começa a se tornar, cada vez mais, uma  
realidade. O equilíbrio das relações econômicas marcadas por uma esfera da  
circulação robusta, e por uma produção ainda limitada é muito tênue, porém.  
Os imperativos reprodutivos que marcam o sistema capitalista de produção já  
impulsionam a atividade à imanência da vida e do mundo; porém, o domínio da troca  
sobre a produção, mencionado por Chasin, viria a se esfacelar tão logo o capitalismo  
se colocasse sob os próprios pés com a superação do artesanato, e mesmo da  
manufatura pela grande indústria. Ou seja, por mais espetaculares que fosse o ímpeto  
ativo que surge com o Renascimento, por mais que ele esteja presente na tematização  
robusta de Maquiavel sobre a política, o resultado econômico de tal ímpeto só poderia  
se afirmar real e efetivamente em um momento posterior, aquele do capitalismo  
industrial. Em verdade, isso leva: de um lado, à consolidação da burguesia e do sistema  
capitalista, com todo aviltamento que ele gera nas personalidades dos homens; doutro,  
ao poder absolutista e na afirmação do estado nacional. O equilíbrio político instável  
que o autor de O príncipe tematiza, bem como o modo pelo qual isso se dá nas  
relações econômicas, são algo que se mostrou como passageiro e como socialmente  
inviável.  
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Podemos mesmo dizer que tal inviabilidade é a base da política renascentista. E  
o processo que Maquiavel analisa, ao fim, redunda na consolidação necessária do  
absolutismo, que abre as portas para formas econômicas que tornam impossível a  
configuração sociopolítica vigente no Renascimento. Nas palavras de Chasin:  
Numa palavra, a expansão mercantil demandava governos capazes de  
ampliar seu campo de ação para muito além dos perímetros  
municipais e do teor e âmbito que tipificavam a administração  
anterior. Necessitavam, em suma, de um governo forte, tanto para  
efeito interno quanto externo, donde a inclinação para o absolutismo  
rei, príncipe ou senhor , à custa de todos os freios e limitações que  
haviam cercado a monarquia medieval. Para essa nova categoria  
social, era factível fortalecer e articular com o monarca, e não procurar  
o então impossível domínio dos dispositivos parlamentares,  
controlados pela nobreza, de modo que não lhe custava nada  
sacrificar as formas de representação à monarquia. (CHASIN, 2012, p.  
81)  
Os freios e as limitações que marcavam a monarquia medieval ainda são parte  
da teorização de Maquiavel sobre a política renascentista, que depende de um  
equilíbrio muito tênue, que o autor não deixará de tomar como necessário. A  
consolidação do poder central, bem como a expansão econômica baseada na  
economia mercantil são parte importante do que teoriza o autor de O príncipe sobre  
a política; ao mesmo tempo, as limitações da época, que são reconhecidas pelo autor,  
aparecem como contraposições constitutivas da política mesma. Como diz Chasin,  
sobre a composição social tratada por Maquiavel, “os segmentos sociais convivem em  
contraposição vigiada, que os limita e restringe.” No que continua o filósofo paulista:  
“as paixões devem vir à tona, mas para se dissiparem pela via segura e defensiva da  
normatividade institucionalizada” (CHASIN, 2012, p. 94). Para que tal situação pudesse  
ser mantida, seria necessária a emergência de algo que se contrapusesse aos  
dispositivos parlamentares (aqui entendidos no seu sentido mais amplo, e não no  
sentido contemporâneo ligado a uma concepção representativa de democracia), que  
seriam controlados pela nobreza. A violência seria inevitável; uma questão importante  
seria saber que tipo de violência levaria a algum lugar.  
Sobre o assunto, diz-se e O futuro ausente: “que o absolutismo de reis ou  
príncipes pudesse ser arbitrário e opressor não resta dúvida, mas era melhor do que  
qualquer coisa que a violência da nobreza feudal ou a fragilidade e os limites da  
cidade-república, aliás, pequena exceção, podiam oferecer” (CHASIN, 2012, p. 81).  
Maquiavel, dessa maneira, estaria colocado entre alternativas concretas típicas de um  
momento transacional na história. As determinações reais de sua época, porém, não  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
permitiam que sua concepção de história (e de política) trouxesse à tona qualquer  
capacidade de suprimir as contradições engendradas socialmente. Ou seja, a potência  
da política e, no limite, sua capacidade de moldar as relações sociais , tal qual  
ocorreu no caso da política antiga, advém das limitações da época do Renascimento.  
E, desse modo, de acordo com J. Chasin, as contradições sociais da época aparecem a  
Maquiavel de modo ainda obscuro.  
Em verdade, o autor de O príncipe vem a reconhecer o elemento antagônico da  
política, bem como as contraposições que se colocam nela. Ele traz um elemento  
realista e grandioso ao explicitar que a contraposição e o choque são inerentes à  
política. Isso expressa uma determinação importante da politicidade: sua base, bem  
como seu desenvolvimento, está na contraposição dos interesses dos indivíduos e dos  
segmentos sociais. E, em uma época marcada pela transição de um momento a outro  
da história, parece que é possível partir do caráter ativo daquele “centro de enervações  
constituído pela malha afirmativa do ético-político-jurídico” (CHASIN, 2012, p. 67).  
Porém, tal aparência traz consigo também a busca por um equilíbrio que é, ao fim,  
dissolvido por esse mesmo ímpeto ativo, o qual é um princípio do pensamento de  
Maquiavel. Ou seja, a política renascentista é tanto o resultado do ímpeto ativo do  
Renascimento quanto o sintoma da incapacidade, a ela inerente, de pensar-se como  
algo determinado socialmente. Veja-se: como se nota em O futuro ausente, o autor de  
O príncipe traz consigo uma apreensão reta da cotidianidade da política da sua época;  
porém, aquilo subjacente à forma aparencial da política não pode ser compreendido  
por Maquiavel. Ele reconhece o elemento antagônico da política; mas não compreende  
esse elemento na forma de uma contradição e, portanto, de algo que possa ser  
suprimido a partir das próprias potências gestadas nessa contradição mesma. O  
caráter ativo da política acaba se afirmando ao trazer a subordinação à sociabilidade  
vigente; porém, pretende-se determiná-la.  
Sua posição sobre a política, assim, expressa tais limitações. Seu realismo, ao  
mesmo tempo, vem com grandes ilusões. De certo modo, as contraposições são  
reconhecidas pelo autor de O príncipe, mas são tomadas como insuprimíveis. Como  
diz J. Chasin sobre o assunto: “interessa salientar é que, seja qual for o choque ou  
contraposição social que analise, sua rota tem por objetivo conservar o choque ou  
contraposição”, no que continua, “pois, é destes que emana a possibilidade de regular  
positivamente a convivência dos homens” (CHASIN, 2012, p. 95). A convivência do  
homem é tomada, ao fim, como inerentemente política e, com isso, no limite, toma-se  
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a própria natureza humana como algo com enorme grau de imutabilidade. Isso, que  
caracteriza a concepção ontopositiva da política, aparece em Maquiavel ao passo que  
“de fato, para Maquiavel, a desumanidade do homem está no próprio homem, cuja  
identidade perene é a maldade natural” (CHASIN, 2012, p. 97). De acordo com O  
futuro ausente, algo que vem a acompanhar o pensamento político renascentista –  
representado aqui em seu maior expoente é certa naturalização das relações sociais  
de uma época; uma concepção de natureza que emerge dessa situação acaba sendo  
estática, de maneira que é traçada uma relação entre o caráter insuperável das  
contradições sociais, a necessidade da política e certa natureza humana desumana. No  
limite, deriva disso certa “maldade natural”, tomada por base pela concepção positiva  
de política de Maquiavel.  
A grandeza, o realismo e as enormes limitações de Maquiavel são indissociáveis.  
O caráter prático de seu pensamento expressa tal elemento, inclusive. Isso ocorre,  
não tanto por uma posição imoral ou amoral, que não está presente no autor, de  
acordo com Chasin – “é superficial atribuir a Maquiavel o puro diapasão da indiferença  
moral” (CHASIN, 2012, p. 83). Antes, o autor apreendia algo que caracteriza a política  
em seu ser-propriamente-assim. A partir do estudo da política de sua época, o autor  
deixa de lado as ilusões que marcam o pensamento anterior; e, assim, certamente a  
moral joga um papel importante no seu pensamento até mesmo na medida em que o  
equilíbrio entre os agentes contrapostos aparece como uma necessidade ao autor.  
Porém, do ponto de vista prático, tem-se clareza sobre aquilo que é preciso se fazer  
para que a situação de equilíbrio instável que é tomada como algo natural seja  
mantida. O realismo do autor explicita-se ao admitir não só a violência como parte  
inerente à política, mas certo caráter animalesco, que redunda na impossibilidade de  
se distinguir vícios e virtudes na atividade política.  
Como diz Chasin, “desaparecia no terreno da atividade política a demarcação  
entre vício e virtude, suas figuras se embaralhavam, mudando constantemente de  
posição, numa metamorfose em que a limpidez se converte em sujidade, e a sujidade  
em limpidez” (CHASIN, 2012, p. 89). Isso traz consigo um pensamento sutil sobre a  
política, e o reconhecimento da natureza da atividade que é analisada de modo  
rigoroso. Diante de consequências desagradáveis de seu pensamento, o autor de O  
príncipe mantém suas posições e reafirma explicitando as mencionadas  
consequências justamente aquilo que pode parecer extremamente desagradável. No  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
que continua o filósofo paulista em O futuro ausente: “jamais antes ocorrera esta  
equivalência, isto é, a reflexão anterior nunca fora compelida a tal reconhecimento,  
mesmo porque não o poderia ter sido, uma vez que faceava ainda a pseudopolítica,  
movimentada em torno do estado-ilusório” (CHASIN, 2012, p. 89). O significado do  
pensamento maquiaveliano, pois, é enorme. Ele expressa a emergência do pensamento  
político moderno ao passo que assume como constitutivos da política atributos como  
uma maldade inerente, o caráter insuperável das contraposições sociais, bem como a  
desumanidade de parte da atividade política. Trata-se, nesse sentido, de uma  
verdadeira perda de ilusões. E, assim, como diz Chasin, “a mutação que se expressa  
nos escritos de Maquiavel é precisamente a passagem ao estado-verdadeiro, efetivado  
pela política-real” (CHASIN, 2012, p. 89). Trata-se, é verdade, da eternização da  
política, de uma posição segundo a qual não resta à humanidade outra alternativa que  
aceitar a monstruosidade como parte necessária da história social e política.  
Em O futuro ausente, Chasin explicita tal aspecto trazendo a imagem do centauro:  
Jamais alguém, antes de Maquiavel, ousara dizer coisas semelhantes.  
Ninguém anteriormente duvidara de que a prática política, tal como  
de fato se processa, estivesse replena de crimes, traições e  
perversidades. Porém, que o mestre de príncipes e o próprio príncipe,  
como expressão e manifestação de máxima sabedoria política,  
devessem ser mezzo bestia e mezzo uomo não só era inaudito,  
como traduzia, o que é muito mais importante, uma mutação  
fundamental. Antes, crimes, traições e perversidades eram vícios a  
serem vituperados e expungidos; agora, passavam a integrar o  
necessário modus faciendi da exercitação do poder. Ou seja, a crudeltà  
bene usate era elevada à dignidade de meio legítimo da atuação  
governamental. (CHASIN, 2012, p. 89)  
Meio besta, meio homem. Tal imagem, do centauro, é usada por Maquiavel  
explicitamente. Com isso, deixa-se de distinguir o vício e a virtude em determinados  
momentos; mas isso não significa que o equilíbrio a ser mantido politicamente não  
envolva uma dose considerável de moralidade, até mesmo porque há humanidade e  
desumanidade por lá. Que Maquiavel tenha sido o primeiro a explicitar essa marca da  
política, de acordo com Chasin, traz uma mutação fundamental. A perda das ilusões  
quanto a uma nova Athenas significa, ao mesmo tempo, assumir a crueldade, e a  
bestialidade, como atributos, por vezes, necessários à sabedoria política. E, nesse  
sentido, a posição maquiaveliana é muito distinta daquela vigente sobre a comunidade  
antiga.  
Ali, as ilusões ainda eram parte dos lugares comuns da teorização política. As  
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limitações da sociabilidade antiga tinham por trás de si a escravidão e a isonomia entre  
os cidadãos da pólis enquanto na aurora da sociedade capitalista, tratada por  
Maquiavel, há uma unidade entre poder política e negócios mercantis. O realismo do  
autor tanto faz com que ele apreenda elementos essenciais do ser-propriamente-assim  
da política quanto busque, na prática, justificá-los. Parte essencial de sua teorização,  
assim, passa pela moral. Há a necessidade de justificar a política como necessária e  
como algo essencial à manutenção de um equilíbrio instável e, em verdade,  
insustentável. Sendo coerente com seu ímpeto ativo e prático, o autor de O príncipe  
não se esquiva das consequências de seu pensamento; e mais: ele pensa sua  
teorização com algo que deva ser colocado em prática.  
A teorização de Maquiavel traz um círculo entre natureza humana, aceitação das  
contraposições como algo insuperável, a justificação da política e a moral. Em verdade,  
explicita-se claramente a dissociação entre a problematização do mundo ético, da  
eticidade. Com isso, as relações relativas à conformação concreta das famílias, das  
classes e segmentos de classes, bem como do estado são tomadas tanto como ponto  
de partida como ponto de chegada. As contradições que marcam a época do  
Renascimento são tomadas como meras contraposições, constitutivas não só da  
política, mas da sociabilidade como tais. Tem-se, assim, uma fundamentação  
sofisticada para a determinação ontopositiva da politicidade e, com isso, como se diz  
em O futuro ausente, “redunda, pois, que Maquiavel é capaz de reconhecer contrários,  
mas não contraditórios. Opostos supostamente beneficiados no choque que os trava,  
sem que qualquer um deles possa ou deva sobrepujar o outro” (CHASIN, 2012, p. 95).  
A incompreensão sobre o caráter contraditório das relações sociais leva à eternização  
delas e, com isso, da própria política que atua no sentido de que um grupo, segmento  
ou classe possa realmente sobrepujar outro. Aquilo que aparece, em verdade, como  
inevitável no desenvolvimento histórico ao se olhar para a política, é tomado como  
algo a se evitar politicamente.  
E a maneira como isso poderia se dar traz as determinações que mencionamos  
antes, as quais levam à necessidade de Maquiavel de justificar moralmente a política:  
O que cabe e convém apontar, na esfera da problemática moral, que  
sempre envolve a leitura dos escritos de Maquiavel, é que este,  
exatamente por seu vigoroso realismo, esbarra praticamente, sem a  
tematizar, na verdadeira questão ética: como justificar atos  
necessários, eticamente impossíveis de serem justificados? Esta  
pergunta, cuja visibilidade antes de tudo se manifesta na esfera da  
politicidade, não apenas situa rigorosamente o problema da eticidade,  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
mas aponta, em seus devidos termos, para a natureza e os limites da  
política e a sua excludência em relação ao mundo ético. (CHASIN,  
2012, p. 84)  
O realismo possível na época do autor é aquele que supõe relações  
historicamente situadas como algo cuja essência não pode ser transformada. A  
justificação moral da política leva à desconsideração da historicidade da tessitura da  
sociedade e, portanto, do problema da eticidade. A moral, portanto, faz parte da  
política mesmo em Maquiavel.  
Em verdade, ela é um elemento decisivo de seu pensamento. Sem a justificativa  
moral da política, os limites da prática política não podem ser entendidos na teorização  
do autor. A natureza e os limites da política não levam somente à bestialidade, mas  
também à humanidade. E, assim, também a prática e a compreensão maquiaveliana  
dessa prática trazem consigo como essenciais as limitações, bem como a necessidade  
de se manter um equilíbrio instável e, em verdade, insustentável. O vigoroso realismo  
do autor o leva, como não poderia deixar de ser, a se conformar nos limites de seu  
tempo. Suas posições, no entanto, dão início à tematização propriamente moderna da  
política.  
A peculiaridade de seu pensamento está em que há nele um profundo realismo,  
um vigor sem igual, ao mesmo tempo em que ele depende da imaturidade do  
capitalismo de sua época, que se coloca em meio ao mercantilismo em que não deixa  
explícito o caráter essencialmente contraditório da própria realidade social, bem como  
da eticidade e do mundo ético mesmos. Com isso, mesmo em um autor vigoroso, a  
política passa longe de resolver as contradições sociais. Ela as supõe. Há certa  
eternização delas, bem como da própria natureza humana, da maldade, e do caráter  
contraposto dos segmentos sociais.  
Maquiavel transita da admissão realista dos confrontos sociais à pura  
integração almejada das partes em litígio, desintegrando algo deste,  
numa sutil metamorfose discursiva. Em outros termos, indo  
diretamente ao ponto: um dos grandes méritos de Maquiavel foi ter  
constatado e admitido a existência do fenômeno social que, bem mais  
adiante, recebeu o nome técnico de contradição, porém, sob a forma  
reduzida e dessubstanciada do que também posteriormente foi  
chamado de conflito. (CHASIN, 2012, p. 93)  
As limitações da própria política aparecem na teoria do autor. Sua teorização  
sobre os confrontos sociais é, em verdade, fundamental para sua posição política.  
Também aqui, há uma determinação da sociabilidade, no caso, de uma  
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compreensão específica sobre a sociabilidade, sobre a politicidade. A incompreensão  
da natureza contraditória dos confrontos, bem como do caráter conflituoso deles –  
incompreensão essa socialmente determinada pela imaturidade das relações sociais  
renascentistas delimita a política maquiaveliana. Ela visa preservar o confronto sem  
que, para isso, leve-se a qualquer termo as contradições entre os segmentos sociais.  
Aliás, é necessário perceber que a dessubstanciação que Maquiavel impõe à  
política (trazendo as contraposições sem perceber de seu caráter contraditório e  
conflituoso), não o leva a pensar a política na oposição entre indivíduos isolados e  
atomizados. Sob a sociabilidade renascentista, o autor não tem uma concepção  
atomista que, posteriormente, a partir de Hobbes (e nos teóricos do direito natural  
como um todo) se tornará lugar comum e ponto de chegada. E, também aqui, a  
concepção de mundo de Maquiavel, como aponta Chasin, é resultante tanto dos  
avanços do Renascimento (e do mercantilismo) quanto da imaturidade do capitalismo  
que emerge nesse momento.  
Trata-se da admissão da contraposição, e do reconhecimento do caráter  
antagônico dos interesses dos grupos sociais. A liberdade, assim, é concebida como  
algo que se exerce contra um outro. Esse outro, porém, são os congregados sociais:  
Em suma, a liberdade maquiaveliana coabita o gênero da liberdade  
pobremente vivida e determinada contra, e não com o outro; todavia,  
dela se distingue pelo número dos opostos: enquanto na plenitude  
societária do capital essa forma de liberdade contrapõe, ideal e  
aparencialmente, indivíduos isolados, Maquiavel considera e raciocina  
com congregados sociais em oposição. (CHASIN, 2012, p. 96)  
A situação já moderna, mas ainda não marcada pela divisão do trabalho e pela  
atomização dos indivíduos que caracterizará a subsunção real ao capital, é o  
fundamento da concepção de política do autor. Se ele pensa em termos distintos do  
individualismo possessivo, isso não se dá por se colocar para além da sociedade  
marcada pelo domínio do capital. Em verdade, a imaturidade da sociabilidade  
renascentista é que aparece com toda a força aqui. O número de opostos que se  
colocam na política maquiaveliana decorre de sua incapacidade socialmente  
determinada de apreender tanto a real natureza das classes sociais quanto o  
processo de subsunção dos indivíduos aos imperativos produtivos, que ficam claro  
somente mais tarde, quando a oposição entre o moderno proletariado e a burguesia  
vêm à tona com toda a força. Também aqui, as marcas da concepção de política  
decorrem de uma situação de imaturidade, de um ainda não.  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
Tomar a concepção de Maquiavel por objeto sem estar ciente dessas  
determinações significa realizar uma análise, no mínimo, parcial e seletiva. No que é  
preciso que continuemos com a análise de O futuro ausente sobre o tema.  
A individualidade moderna é apreendida pelo autor florentino, mas as  
determinações dessa não podem ser-lhe claras. Como diz Chasin, “a reflexão  
maquiaveliana flagra a individualidade isolada em seu nascedouro; deixada só”, de  
modo que as contradições econômicas ainda não são plenamente visíveis como tais.  
No que se continua em O futuro ausente dizendo que tal individualidade, quando  
conforma-se diante de outros indivíduos, é “posta contra estes em competição, só  
pode refluir à animalidade. Este foi o panorama inaugural da modernidade em todas  
as sociedades” (CHASIN, 2012, p. 97). Maquiavel, portanto, busca evitar o confronto  
direto da animalidade dos indivíduos a partir do equilíbrio entre os grupos. Ele pensa  
certa maldade inata como algo inerente à sociabilidade humana, e aos próprios  
indivíduos. Na política, porém, como um centauro, a humanidade e a animalidade  
precisariam trazer o equilíbrio entre os congregados sociais em oposição. E, assim, a  
posição (moral) de Maquiavel é ligada à defesa do governo misto, que expressa  
justamente a lógica da contradição não resolvida:  
Depreende-se da forma do governo misto e do conteúdo que lhe  
corresponde a lógica da contradição não resolvida que, na acepção  
maquiaveliana, a liberdade é confinada a ser não mais do que o  
equilíbrio resultante da contraposição entre agentes societários  
mutuamente restringidos. (CHASIN, 2012, p. 95)  
Diante da incapacidade de a sociabilidade lidar com suas questões a partir de  
suas forças próprias, tem-se a necessidade da política. No caso de Maquiavel, de  
acordo com Chasin, isso traz consigo um realismo pungente, que reconhece as  
contraposições sociais que são essenciais à política. Ao mesmo tempo, porém, e em  
ligação com as determinações de seu tempo, a apreensão do conflito e da contradição  
como inerentes à politicidade e ao momento em que ela se impõe não pode se dar no  
autor de O príncipe.  
Podemos, assim, dizer sobre Maquiavel que ele pensa em termos essencialmente  
políticos por precisar aceitar as limitações da sociabilidade de sua época. A defesa do  
governo misto por sua parte, assim, é uma consequência de sua concepção sobre a  
sociedade e sobre a sociabilidade como tal. A liberdade, dessa maneira, é pensada  
como limitada e limitadora, como fadada a movimentar-se em meio a um equilíbrio  
tênue. Ele precisa da política, mesmo que essa possa manifestar-se, por vezes, de  
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modo bestial.  
No que diz Chasin sobre a convivência política em Maquiavel:  
O governo misto é, naturalmente, a formação ideal que encerra e  
revela esse aspecto crucial do pensamento de Maquiavel. (...) Isto nada  
mais significa, fundamentalmente, do que sustentar que, na condição  
de detentor exclusivo do poder, um vetor societário qualquer é  
incapaz de autorregulagem, donde a transgressão perversora que o  
leva à perdição. Em outros termos, que põem em evidência uma  
denotação essencial: o particular não pode ser jamais o molde ou a  
medida da universalidade do estado. O que torna imperativa a  
coparticipação dos demais vetores, cuja presença simultânea  
engendra e universaliza, pela pressão de uns sobre os outros, as  
medidas da convivência. (CHASIN, 2012, p. 92)  
O resultado prático da concepção maquiaveliana de política está em sua defesa  
do governo misto. Segundo Chasin, a lógica da contradição não resolvida decorre, em  
verdade, da incapacidade de autorregulação da sociabilidade renascentista.  
A defesa da política tem essas bases no autor e o levam a considerar o poder  
exclusivo como algo que não pode ser defendido. A perversão, bem como a perdição,  
seria inerente à própria limitação, tomada como fundamento por Maquiavel. A medida,  
também importante ao se passar pela política e pelo pensamento políticos gregos,  
aparece aqui novamente. Porém, ela não pode se explicitar por meio da mediania ou  
da defesa de uma individualidade não suficientemente autonomizada. A única solução  
estraria na coparticipação de diversos vetores, já que a universalização de um deles  
significaria essencialmente a imposição unilateral de determinada posição. A política,  
dessa maneira, expressaria justamente as limitações da sociabilidade daquele  
momento, que seria marcada por um momento transicional ao capitalismo colocado  
sobre os próprios pés.  
De acordo com Chasin, há, em Maquiavel, a admissão realista dos confrontos  
sociais, mas esses não são tomados como contradições sociais passíveis de supressão.  
O litígio passa a ser pensado como algo que deveria deixar de lado o conflito  
direto, tendo-se a necessidade de uma liberdade que só poderia ser autolimitação. As  
capacidades afirmativas, pungentes na sociedade renascentista, assim, aparecem de  
forma adstringida na política e essa última, por sua vez, passa a ser a medida da  
sociabilidade. E mais do que isso: parte da limitação autoimposta traz consigo a  
admissão da necessidade da bestialidade. Maquiavel acaba reconhecendo a  
contradição social e as oposições a ela inerentes como base da política; o  
tratamento do autor de O príncipe, no entanto, não pode reconhecer a contradição  
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como tal, mas somente sua forma dessubstanciada, que redunda na defesa do governo  
misto e da liberdade autolimitada.  
Chasin, assim, certamente traz que Maquiavel tem certa concepção de república  
(que não deixa de remeter a Roma antiga); porém, as limitações da república  
maquiaveliana são claras e ela convive tanto com certo elemento oportunista –  
incorporado pelo próprio autor de O príncipe quanto com uma liberdade marcada  
pela limitação e pela defesa do caráter autolimitado das individualidades. Assim, tem-  
se tanto um indivíduo que não é aquele átomo da economia política quanto alguém  
que traz consigo, não só um senso de oportunidade (a famigerada Virtú), mas um  
oportunismo dos mais crassos. Trata-se de determinações de reflexão presentes no  
pensamento político maquiaveliano; tentar separá-las é, no mínimo, unilateral e  
profundamente seletivo.  
Trata-se de algo marcado, de acordo com Chasin, “pela incapacidade radical de  
auto-ordenamento (ao nível mesmo de sobrevivência elementar) da forma de  
sociabilidade então emergente” (CHASIN, 2012, p. 89). É preciso destacar: também  
aqui, a política é pensada como resolutiva ao passo que se admite como ponto de  
partida limitações na sociabilidade. Há um elogio às limitações da sociabilidade  
emergente, a qual, como já mencionado, coloca-se, em verdade, em um momento  
transicional.  
E, desse modo, de acordo com O futuro ausente, a concepção de república de  
Maquiavel somente poderia se conformar da seguinte maneira:  
Em suma, dos contrapostos nasce a virtude, mas simultaneamente a  
adstringência e os limites, nada se perde, mas tudo é constrangido.  
Em realidade, a virtude tem a face do constrangimento, e o virtuoso  
(no singular e no plural), o ar pesado da coabitação forçada. Numa  
hipérbole pode ser dito que este é o perfil do paraíso republicano de  
Maquiavel. A todos é reservado um espaço, mas ele é estreito demais  
para o corpo inteiro: algo sempre tem de ser encolhido ou ficar  
perigosamente exposto. (CHASIN, 2012, p. 95)  
A virtude, analisada por Maquiavel sobretudo em O príncipe, é, em verdade, o  
fruto das limitações e da adstringência da sociabilidade nascente. Ela passa por um  
senso de oportunidade que é, ao mesmo tempo, realista ao admitir as contraposições  
como sua base, e oportunista ao mover-se em meio às contradições sociais as  
naturalizando como simples contraposições. Essas últimas, em verdade, são tomadas  
como inerentes à própria sociabilidade humana. Trata-se de uma circunstância que  
Chasin descreve como aquela do “ar pesado da coabitação forçada” (CHASIN, 2012,  
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p. 95). Esta seria, em verdade, uma fundamentação ineliminável da concepção de  
república de Maquiavel.  
Consciente da impossibilidade da república aos moldes romanos nos tempos  
modernos do capitalismo emergente, só resta ao autor de modo bastante realista –  
tomar como ponto de partida a liberdade autolimitada. O governo misto seria, assim,  
aquele em que todos têm lugar de certo modo, mas o espaço é demasiadamente  
estreito, e assim precisaria continuar. Nas palavras de Chasin, tem-se uma situação de  
difícil equilíbrio, em que “algo sempre tem de ser encolhido ou ficar perigosamente  
exposto” (CHASIN, 2012, p. 95). Virtude e fortuna, portanto, são necessários à teoria  
maquiaveliana ao passo que a política é o reino da contradição não resolvida e  
necessita da autoconstrição.  
O impulso ativo da república de Maquiavel, portanto, não haveria como ser  
aquele do povo livre, até mesmo porque a liberdade é tomada como autolimitação.  
Mas há algo mais, que é destacado por Chasin: a conformação da política diuturna não  
poderia vir propriamente de baixo; antes, ela precisaria partir de legisladores: “o  
legislador, portanto, é o arquiteto do estado e da sociedade, aí contidas todas as  
instituições políticas, econômicas, morais e religiosas” (CHASIN, 2012, p. 87). A  
sociedade, como tal, não poderia ser modificada significativamente, sendo suas  
contradições algo a que a política precisa se adequar. E, assim, não se trataria tanto  
de modificar a sociabilidade vigente para que se tivesse uma esfera pública distinta.  
Antes, a conformação política com tudo que isso implica da esfera pública precisaria  
ser o ponto de partida, com todos os vícios que fariam com que a moralidade e a  
bestialidade fossem faces do mesmo fenômeno.  
Como diz o filósofo paulista, “ainda mais: uma vez corrompida, a sociedade não  
é capaz de se reformar por si mesma; a empreitada demanda um legislador capaz de  
restaurar os bons princípios estabelecidos por seu fundador” (CHASIN, 2012, p. 88).  
A política, por meio do legislador, precisaria trazer, no limite, uma espécie de  
restauração. E, com isso, o éthos ativo do renascimento acaba por redundar em algo  
dúplice.  
Ao mesmo tempo em que os homens se colocam como artífices do estado, o  
modo pelo qual isso se dá leva-os a se submeter a uma sociabilidade tacanha e  
adstringida. O ímpeto ativo leva à submissão diante da potência estranhada colocada  
na política. É o legislador do governo misto que detém a capacidade de recriar aquilo  
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perdido.  
Ao fim, ao legislar aparece algo que “é em essência fundar o estado, ou seja,  
plasmar os ordenamentos da convivência civilizada”. No que complementa Chasin:  
“trata-se de um ato inaugural de poder que cria a sociabilidade, ou de uma ‘reforma  
fundamental’ que equivale a sua recriação” (CHASIN, 2012, p. 87).  
Já em Maquiavel, portanto, a submissão a formas adstringidas e limitadas de  
sociabilidade convive com a ilusão sobre a política. Ao mesmo tempo em que ela  
decorre dos limites mencionados, ela pensa a si como uma espécie de demiurgo, que  
cria a sociabilidade. A inversão entre sociabilidade e politicidade, desse modo, é  
explícita.  
A posição politicista está mesmo naqueles mais capazes de analisar a política a  
partir da perspectiva do próprio poder político, como Maquiavel. Nele, porém, as  
limitações da sociedade renascentista são pungentes, assim como haviam sido no caso  
da política grega. Hoje, quando se rende homenagens à política, a situação é muito  
distinta.  
Isso ocorre tanto porque as contradições que o autor de O príncipe não  
conseguia apreender em sua essência já se mostraram de modo cristalino quanto  
porque as limitações da sociabilidade do capitalismo em sua faceta mercantilista já  
foram, há muito, ultrapassadas. Ou seja, não há como comparar o grau de sofisticação  
e de honestidade de Maquiavel diante daqueles que, modernamente, pretendem segui-  
lo de modo mais ou menos seletivo. De acordo com Chasin, a obra maquiaveliana “é  
o próprio ponto de partida dos referenciais que ainda hoje atuam e dominam” (CHASIN,  
2012, p. 81). Porém, como não poderia deixar de ser, isso se dá de modo  
extremamente unilateral.  
Aceitar o cinismo do autor florentino, bem como a determinação social de seu  
pensamento, é algo difícil, tanto no século XXI quanto “ao final do século XX, quando  
a panaceia politicista invade e imobiliza a consciência e a prática de toda gente”  
(CHASIN, 2012, p. 81). Resta não analisada também “a determinação da natureza da  
politicidade, questão sempre tão estreita e dogmaticamente enfrentada” (CHASIN,  
2012, p. 81). E, desse modo, há de se reconhecer Maquiavel, e a natureza da  
politicidade, percebendo-se como a política, mesmo em suas formulações mais ricas,  
parte do elogio às limitações da sociabilidade vigente em determinado momento. As  
forças sociais que foram separadas na política só podem se manter como tais, com  
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algo externo, ao passo que há pobreza, limitação a adstringência na sociabilidade. A  
política só pode pretender dominar e determinar a sociabilidade na medida em que é  
dominada por essa, de modo claro.  
Do impulso civilizatório da política absolutista ao politicismo: a ruptura com as  
tendências afirmativas do homem e a maldade natural com ponto de partida  
De acordo com a teorização chasiniana sobre Maquiavel, tem-se o último teórico  
da república romana e o primeiro do estado absolutista. Assim, ao fim, o que vem a  
ser afirmado pelo autor de O príncipe é a concepção moderna de política, a qual traz  
consigo o absolutismo e o mercantilismo que se afirmam. Ou seja, trata-se de uma  
prática e de uma teorização que se colocam em um momento transicional, e que trazem  
consigo tanto a bestialidade que caracteriza o estado quanto o elemento moral e  
voltado a certa memória daquilo que se perde. Ambos esses elementos são  
constitutivos da política renascentista, analisada por Maquiavel a partir do domínio do  
poder político dos Médici. Os aspectos mais brutais e bestiais da política  
explicitados pelo autor são indissociáveis de seu profundo realismo; o apelo moral,  
presente, por exemplo, no modo pelo qual trata do governo misto e das  
individualidades que se desenvolvem não se separa do oportunismo do autor. A  
síntese marcada pela lógica da contradição não resolvida da política renascentista  
aparece, desse modo, de maneira bastante pungente no autor.  
Com isso, determinações importantes da política vêm à tona de modo claro. A  
sua base em uma sociabilidade limitada e limitante, a caracterização de uma liberdade  
autolimitadora, o estranhamento das potências societárias, certo olhar ilusório que se  
volta ao passado, a pretensão de se colocar como uma potência demiúrgica, a  
inevitável dependência diante das contradições presentes no tecido societário, a  
conjugação da bestialidade com a moralidade, a afirmação da maldade dos indivíduos  
e do homem, tudo isso marca a obra maquiaveliana em uma unidade orgânica presente  
em seu opus.  
A maneira pela qual o autor florentino coloca-se diante da realidade traz todas  
essas características de modo vivo e em ato. Com isso, a verdade da política  
renascentista, em toda a sua grandiosidade, está colocada na afirmação da  
modernidade do absolutismo que prepara o terreno para que o capitalismo se coloque  
sobre os próprios pés.  
De acordo com Chasin, portanto, o absolutismo não é algo alheio à política  
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moderna, mas uma parte essencial do caráter afirmativo da sociabilidade que é  
transmutada em politicidade no Renascimento. A unidade formada entre, de um lado,  
o incremento das forças produtivas e, portanto, das capacidades humanas, e doutro a  
violência estatal, não pode ser cindida neste contexto. Aquilo que se afirma no  
processo de soerguimento e consolidação do capitalismo são tanto as brutalidades  
quanto aquilo que é trazido com elas, inclusive, certa função civilizatória do  
absolutismo. As tendências afirmativas do Renascimento assim supõem, e o tratamento  
maquiaveliano da política expressa essa dualidade de modo bastante orgânico e  
pungente.  
Por outro lado, se formos nos voltar ao presente, de acordo com o filósofo  
paulista, a temática aparece de outra maneira. Em O futuro ausente, diz-se justamente  
que os defensores contemporâneos da política tendem a dissociar o indissociável  
quando se trata de olhar para Maquiavel. Tal qual ocorre ao se olhar a Antiguidade,  
as leituras são, no mínimo, seletivas. E, assim, a afirmação da política é parte essencial  
do modo dúplice pelo qual a emergência da sociedade capitalista com todos os seus  
elementos vêm a se dar. E, por mais que se tente dissociar essas determinações, isso  
não é possível.  
Por mais desconfortável que seja, especialmente para as vertentes do  
politicismo, reconhecer a modernidade do absolutismo, em seu tempo,  
e sua derivada função civilizatória, não pode haver transigência com  
qualquer forma de obscurecimento destes significados reais e  
delineadores da época. (CHASIN, 2012, p. 82)  
Uma tendência essencial do pensamento politicista contemporâneo é procurar  
dissociar o indissociável, oscilando entre certa nostalgia de tempos perdidos e a  
afirmação acrítica do presente. As determinações concretas da política, assim, são  
apreendidas de modo unilateral. Em geral, aquilo que se mostra como desconfortável  
é deixado de lado por aqueles que afirmam acriticamente o presente; já os que adotam  
a posição mais passadista podem até perceberem-se de aspectos desconfortáveis, mas  
acabam atribuindo-os a certa perda inerente à modernidade. Se Maquiavel havia  
trazido à tona elementos da política aceitando-os com todas as suas consequências,  
isso não ocorre nos pensadores contemporâneos. Eles acabam sequer trazendo o  
absolutismo como um momento importante da afirmação moderna da política; aquilo  
que acaba por moldar a própria politicidade moderna é deixada de lado. De acordo  
com Chasin, por outro lado:  
O tratamento do absolutismo culminou em talhe filosófico, [....], com  
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Thomas Hobbes, de sorte que Maquiavel (1469-1527), Bodin (1529-  
1596) e Hobbes (1588-1679) constituem a grande tríade dos  
fundadores do pensamento político moderno. (CHASIN, 2012, p. 82)  
O pensamento político moderno traz o absolutismo tanto em seus elementos  
brutais quanto nos civilizatórios como ponto de partida. A modernidade do  
absolutismo é bastante clara a Chasin. E, assim, há uma importante tendência  
afirmativa no renascimento; no entanto, a base social dessa tendência é justamente o  
insuficiente desenvolvimento da sociabilidade, as limitações e a insustentabilidade da  
condição social que dá fundamento ao equilíbrio instável e salvaguardado pela política.  
A afirmação resoluta do absolutismo rompe com tal situação e abre espaço para o  
desenvolvimento das forças produtivas que coloca o capitalismo para além de sua  
figura mercantilista.  
Que a política tenha que ser brutal e que o político deva ser oportunista para  
que isso possa ocorrer, é algo que já está presente no pensamento de Maquiavel; de  
acordo com O futuro ausente, não é possível retirar certo oportunismo do próprio  
autor de O príncipe. Nesse sentido, o autor florentino admite aquilo que ninguém antes  
dele teve coragem. E, assim, para que as tendências afirmativas do Renascimento sejam  
preservadas em seu pensamento, o talhe da política de sua época é afirmado. O autor,  
ao contrário daqueles que pretendem segui-lo hoje, traz consigo essa síntese do  
caráter afirmativo da atividade tipicamente renascentista com as determinações da  
política, o que significa incorporar tanto a brutalidade quanto o talhe afirmativo do  
pensamento renascentista.  
O preço para que isso possa se dar é a ausência de consciência do próprio  
Maquiavel acerca daquilo para o qual ele prepara terreno. Longe de o autor ser um  
entusiasta do desenvolvimento histórico à diante e do incremento das forças  
produtivas, ele traz uma concepção de história cíclica. Ou seja, a afirmação da política  
se coloca de modo inversamente proporcional à confiança nas potências da  
sociabilidade. E, assim, ao mesmo tempo, o centauro trazido pelo autor de O príncipe  
tem um papel fundante e só pode restaurar aquilo que teria sido perdido. A política –  
que à primeira vista aparece como grandiosa , ao fim, tem uma função, real e  
efetivamente, tacanha. O máximo que ele pode é trazer certo equilíbrio entre grupos  
se colocar entre a bestialidade e a humanidade do homem. A concepção maquiaveliana  
traz consigo certa natureza má dos homens e certa mesquinhez dos indivíduos e dos  
grupos e, com isso, a política só poderia equilibrar tais elementos, nunca se sobrepor  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
a eles. Dessa maneira, a grande tarefa política acaba sendo a de restaurar equilíbrios  
instáveis e, em verdade, insustentáveis.  
As tendências afirmativas presentes na política, com isso, acabam sendo aquelas  
de uma sociabilidade adstringida e que vêm trazer um elogio da liberdade  
autolimitada.  
Ao falar de Maquiavel, mas já remetendo a Hobbes, diz Chasin que:  
Portanto, há que repetir um grifo anterior, a atividade da sociedade  
política, mesmo em sua integridade jurídica, não pode nunca ser mais  
do que rude ferramenta que, em seus melhores momentos, interpõe-  
se entre a bestialidade e a humanidade, dando sempre por resultado  
a versão superficial ou ilusória desta, e a preservação irremediável da  
natureza daquela, seja reproduzindo a “comunidade” do choque  
(sociedade civil), seja reiterando o indivíduo isolado e perverso.  
(CHASIN, 2012, p. 97)  
Mesmo os melhores momentos da política que trata Chasin ao analisar as  
concepções ontopositivas sobre a política são aqueles que se interpõem sem qualquer  
resolução. Na verdade, como vimos, trata-se de um elemento mediador e reconciliador  
de fatores opostos e que são tomados como inerentes à sociabilidade como tal.  
A política, em Maquiavel, assim, por mais grandiosa que aparente ser, acaba por  
pressupor as autolimitações e a insustentabilidade da sociabilidade que lhe dá base.  
Colocar-se entre a humanidade a bestialidade significa aceitar ambas como  
contrapostos necessários. Já no caso de Hobbes, aqueles elementos organicamente  
ligados na concepção maquiaveliana começam a se dissociar. Tem-se, de um lado, a  
oposição entre sociedade política e sociedade civil e doutro, a pressuposição de uma  
espécie de estado de natureza. Os elementos trazidos por Maquiavel em uma unidade  
acabam por ser dissociados artificialmente a partir de uma concepção mecanicista e  
atomista que se vê obrigada a recorrer às teorizações do direito natural. Traz-se, assim,  
de um lado, uma versão superficial ou ilusória da humanidade e, doutro, uma  
concepção de natureza a ela contraposta. A oposição entre indivíduo isolado e a  
comunidade ilusória tratada por Marx em Sobre a questão judaica aparece pela  
primeira vez no pensamento hobbesiano.  
A unidade presente no cinismo e no oportunismo de Maquiavel começa a se  
romper e o pensamento político moderno começa a tomar uma face que ultrapassa o  
Renascimento, o mercantilismo e o equilíbrio tênue dos principados fiorentinos.  
Hobbes já expressa de modo mais evidente o processo da assim chamada acumulação  
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originária do capital. E, com isso, o indivíduo que aparece na teoria hobbesiana já é  
aquele que marcará a política moderna de modo claro, o indivíduo isolado e  
atomizado. Nas palavras de Chasin, trata-se da “compatibilização do homem aviltado  
com a desmoralização da política” (CHASIN, 2012, p. 102). A individuação já não  
aparece, como em Maquiavel, com um olhar voltado ao passado, mas em sua expressão  
mais claramente capitalista.  
O racionalismo de Hobbes, assim, evidencia uma das facetas do pensamento de  
Maquiavel e da política moderna. O autor florentino não tinha conseguido apreender  
tal aspecto de modo claro; se ele trata do egoísmo e do oportunismo, mas não pode  
entender o indivíduo ao modo tipicamente moderno, isso se deve ao caráter  
transicional da sociedade que trata. Há certamente elementos comuns a Hobbes e  
Maquiavel, porém, também é preciso passar pelas diferenças específicas entre seus  
pensamentos.  
Nesse sentido, diz-se em O futuro ausente sobre o autor de O Leviatã:  
Em suma, o esquema racionalista de Hobbes é a compatibilização e  
assimilação do homem aviltado com a desmoralização da política;  
enquanto tal é momento de grande importância na emergência real e  
temática da individuação, sob o processo altamente contraditório que  
o preside. Como no pensamento maquiaveliano, em contraste com o  
passado, há a desvalorização do homem em benefício da afirmação  
ilimitada da política. (CHASIN, 2012, p. 102)  
O pensamento hobbesiano expressa tanto o avanço do desenvolvimento das  
forças produtivas quanto a emergência do processo de individuação em sua expressão  
que avança com a emergência do capitalismo. Assim, o processo contraditório em que  
se afirma o indivíduo aviltado é o mesmo em que a individuação se conforma real e  
efetivamente. O avanço trazido pelo absolutismo, portanto, é inegável, segundo  
Chasin.  
A função civilizatória que ele traz, com isso, é evidente. Porém, perde-se também  
as tendências afirmativas que pretendiam se conciliar com uma posição moral frente à  
política. A partir de então, o homem moral e a sua natureza aparecem de modo  
absolutamente contraposto; do centauro de Maquiavel, passa-se ao Leviatã, de  
Hobbes.  
As diferenças entre os dois pensamentos, assim, são acentuadas. Porém, como  
mostra-se em O futuro ausente, tem-se o elogio da politicidade em oposição à  
sociabilidade em ambos os autores. E mais: isso só pode ocorrer ao passo que o  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
próprio homem é desvalorizado. Aquilo que aparece de modo bastante meandrado no  
autor de O príncipe, vem de modo evidente em Hobbes. O processo contraditório de  
afirmação da individuação vem a ser o mesmo pelo qual o aviltamento do indivíduo  
redunda na desvalorização do homem. Daí se ter a afirmação da política como a outra  
face da desvalorização do homem. Mesmo que os ganhos da afirmação do absolutismo  
que trazem também aquilo de mais bestial sejam objetivos, a subjetividade de  
homens como Hobbes e Maquiavel, que apostam na política contra a sociabilidade  
limitada, traz uma concepção de homem que, não só é tacanha: remete a uma espécie  
de maldade natural.  
No autor de O príncipe, isso aparece na medida mesma do elogio da politicidade:  
Embora o tema da maldade natural do homem não seja uma  
originalidade maquiaveliana, a radicalidade com que é versado e a  
necessidade de sua conexão com o primado da política não tem  
precedentes. De outra parte, sobre a determinação ontopositiva da  
politicidade, à qual o pensamento de Maquiavel está naturalmente  
afiliado, constituindo mesmo seu expoente máximo à época do  
advento do estado verdadeiro, quase nada é preciso dizer, tal a  
evidência de que se reveste no caso, não só maximizando a  
importância universal do poder político, como o estatuindo na única  
e efetiva condição de possibilidade da existência civilizada. (CHASIN,  
2012, p. 98)  
A radicalidade da tematização da maldade natural dos homens aparece  
justamente com a necessidade do primado da política. Dessa maneira, não se tem só  
as limitações e autolimitações societárias como ponto de partida e de chegada no  
pensamento maquiaveliano; a naturalização da maldade é algo que precisa  
acompanhar sua teorização.  
Maquiavel, de acordo com Chasin, coloca-se como o expoente máximo da  
determinação ontopositiva da politicidade. Talvez, possamos dizer que isso se dá  
porque a clareza e o modo explícito pelo qual as determinações da política aparecem  
no autor de O príncipe são únicos. Ele assume cada uma das determinações essenciais  
da política sem que se esquive de quaisquer aspectos desagradáveis ou  
inconfessáveis. Tem-se uma visão sobre o que Chasin chamou de estado verdadeiro,  
que emerge no Renascimento e consolida-se em sua primeira forma no estado  
absolutista. Aqui, “há a desvalorização do homem em benefício da afirmação ilimitada  
da política” (CHASIN, 2012, p. 102). Com isso, uma concepção de maldade inata  
emerge ligada à própria afirmação da politicidade.  
Isso ocorre, de acordo com O futuro ausente, “não só maximizando a importância  
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universal do poder político, como o estatuindo na única e efetiva condição de  
possibilidade da existência civilizada” (CHASIN, 2012, p. 98). E, com isso, passa a  
haver uma ligação inquebrantável na concepção moderna de política entre a maldade  
humana e a necessidade da política. Sobre o assunto, diz Chasin que, “com efeito, a  
visão desencantada do homem, a malvadez como identidade da alma humana é uma  
instauração da modernidade”, no que ele continua dizendo: “e em seus albores  
Maquiavel foi seu grande arauto, para cujas mazelas sua voz consequente, através da  
consistência de uma fórmula matrizante, anunciou também a terapêutica sem cura do  
poder político” (CHASIN, 2012, p. 99). A política, assim, não é só um fruto da  
contradição social não resolvida, ela também traz consigo justamente uma espécie de  
“terapêutica sem cura”. E, assim, mesmo em Maquiavel, a política passa longe de ser  
resolutiva. Em verdade, ela supõe todos os males a começar, certa visão da natureza  
humana sobre os quais atua.  
A formulação presente em O futuro ausente sobre tal condição é a seguinte:  
Em conclusão, o que importa deixar patente é que os dois complexos  
ontológicos política e natureza humana polarizados  
qualitativamente e impermeáveis um ao outro, aparecem, no entanto,  
funcionalmente indissociáveis, e numa relação inversamente  
proporcional que desfavorece radicalmente o homem, o qual,  
negativamente determinado, converte-se na pedra angular que  
suporta ou torna possível, no extremo oposto, a alta qualificação da  
política. (CHASIN, 2012, p. 98)  
Para Chasin, política e natureza humana aparecem em correlação íntima, de modo  
que, em verdade, há uma relação inversamente proporcional entre uma e outra: tanto  
menos é valorizado o homem, mais a política aparece em alta conta. A determinação  
da maldade inata, assim, torna-se uma espécie de suporte para a política, o que tem  
início já em Maquiavel, mas se amplifica em autores como Hobbes. E, deste modo, a  
terapêutica sem cura da política é afirmada de modo pungente ao mesmo tempo em  
que a sociabilidade e a natureza humanas são empobrecidas de modo aviltante. A  
visão sobre uma sociabilidade inerentemente estranhada e sem possibilidade de  
manter-se por suas próprias forças impõe-se. A fundamentação teórica da política,  
desse modo, passa a ser um posicionamento que supõe as limitações e autolimitações  
de certa forma de sociedade.  
Pelo que dissemos, principalmente em Maquiavel, mas também em Hobbes, tais  
elementos aparecem de modo indissociável. Trata-se de grandes autores, que trazem  
em suas concepções de mundo uma visão ontopositiva da política. Chasin, aliás, trata  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
dos momentos em que a politicidade se mostra em seus talhes mais ricos, como já  
dissemos. E, desse modo, ele não está a analisar a teorização de autores que não  
tenham mesmo que de modo meandrado tendências afirmativas se explicitando  
em seus pensamentos. Ele analisa os gigantes doutras épocas e mostra como que o  
elogio que eles tecem à política é socialmente determinado. Também se nota o modo  
pelo qual o filósofo paulista faz uma análise detida, mostrando como que tais autores  
expressam elementos dúplices que não podem ser dissociados. No entanto, segundo  
O futuro ausente, não é sempre que, na atualidade, tem-se tal tipo de análise. Em  
verdade, tem-se posicionamentos unilaterais.  
Ao tratar das leituras que são feitas sobre Maquiavel, nosso autor explica que é  
gritante como há interpretações profundamente seletivas. Com isso, perde-se,  
inclusive, o modo pelo qual as tendências afirmativas do Renascimento manifestam-se  
no autor florentino. Aliás, de acordo com Chasin, isso é sintomático de uma época em  
que essas próprias tendências afirmativas são, na melhor das hipóteses, deixadas de  
lado.  
De acordo com J. Chasin, sua época (que é a nossa) está marcada por uma:  
Ruptura sintomática que opera, com unilateralidade extrema, em  
relação ao núcleo das tendências afirmativas do homem, práticas e  
reflexivas, que se estruturou a partir do Renascimento e foi  
reenfatizado pelo Iluminismo, vindo a constituir o eixo dinâmico em  
torno do qual girou em todos os planos, desde então, inclusive como  
plataforma de impulsão superadora, o melhor dos esforços pela  
hominização. (CHASIN, 2012, p. 60)  
O pensamento do próprio Maquiavel e de Hobbes trariam, ao mesmo tempo,  
limitações profundas e uma tendência afirmativa. O Renascimento e, posteriormente,  
o Iluminismo estariam marcados por essa duplicidade. De um lado, tem-se por base a  
sociedade burguesa em consolidação e os impulsos progressistas dessa, doutro, o  
modo pelo qual tal sociabilidade é profundamente limitada. Há, desse modo, uma  
unidade complexa em grandes pesadores da política como Maquiavel e Hobbes, por  
exemplo.  
O cenário que Chasin escreve, porém, é completamente outro. Mesmo que  
autores como os mencionados sejam supostamente tomados por base, o que se dá,  
em verdade, são leituras unilaterais. E isso, como não poderia deixar de ser, não se  
deve somente a leituras equivocadas. Tem-se uma base social distinta: os elementos  
mais avançados da sociabilidade burguesa são abandonados e, em seu lugar, resta um  
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pastiche das teorias desses autores, e de outros. O impulso pela hominização, bem  
como a plataforma de impulsão superadora que marcaram tanto o Iluminismo quanto  
o Renascimento acabam por ser uma parte do passado. A tematização da natureza  
humana mantém-se forte, mas de modo a se reafirmar a todo momento o aviltamento  
da personalidade dos indivíduos.  
Com isso, tal qual anteriormente, “há a desvalorização do homem em benefício  
da afirmação ilimitada da política” (CHASIN, 2012, p. 102). Porém, isso se passa sem  
qualquer afirmação das “tendências afirmativas do homem, práticas e reflexivas”  
(CHASIN, 2012, p. 60). Ou seja, trata-se do pior dos mundos. Aquilo que não podia  
ser dissociado nos grandes autores da política moderna, como Maquiavel e Hobbes,  
aparece dessa maneira agora. E com um agravante: antes havia uma unidade  
contraditória que trazia mesmo que de modo profundamente contraditório –  
avanços. Agora, por outro lado, oscila-se entre, de um lado, aceitar a sociabilidade  
presente acriticamente tomando a política em sua forma mais mesquinha e, doutro,  
idealizar a política doutro momento geralmente aquela da Antiguidade em  
detrimento da política moderna do dia a dia. Os autores que tratam da política com  
uma concepção ontopositiva, portanto, procuram separar aquilo que é inseparável no  
pensamento dos autores clássicos. Fazem isso, porém, porque as tendências  
afirmativas que marcavam o pensamento e a atividade desses pensadores não  
estão mais presentes. Ou seja, de acordo com Chasin, aquilo que acompanhou a defesa  
honesta da política por autores renascentistas e iluministas as tendências afirmativas  
sai de cena. E chega-se a um momento em que o pensamento político não pode ser  
mais que a sombra daquilo que já foi, por mais que ainda se afirme.  
O politicismo contemporâneo, com isso, é extremamente unilateral. Em verdade,  
é, no limite, apologético. Ele procura primeiramente reafirmar aquilo de mais aviltante  
e vil na sociabilidade humana. Os esforços vão no sentido de uma ruptura com as  
melhores tendências do passado; opera-se um elogio aos aspectos mais limitados e  
limitantes da sociabilidade capitalista para que, então, seja possível defender e  
justificar a política.  
Nota-se que não se trata, como em Hobbes ou Maquiavel, de autores que  
defendem uma concepção ontopositiva da politicidade em um momento  
essencialmente transicional. Com os autores de O príncipe e de O Leviatã, a afirmação  
da política redunda no estado absolutista, e na defesa da superação de elementos da  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
sociabilidade feudal. Ou seja, trata-se de enxergar na práxis e na teoria de tais autores  
tanto a modernidade do absolutismo quanto seu caráter progressista à época. Em  
outras palavras: a defesa do absolutista trouxe consigo um impulso civilizatório ao  
passo que o politicismo atual defende a manutenção da sociabilidade vigente, por mais  
aviltante que ela se mostre.  
Maquiavel eterniza a sociabilidade de sua época e isso também pode ser dito  
sobre Hobbes. Porém, é preciso perceber que os autores fazem isso devido às  
limitações de suas épocas, sobre as quais não são e nem podem ser plenamente  
conscientes. Aqueles que partem dos dois autores mencionados hoje, por outro lado,  
estão plenamente conscientes da configuração já consolidada (e decadente) do  
capitalismo. Não se tem, portanto, uma defesa de uma nova e superior sociabilidade  
emergente. Antes, ocorre o contrário. E, assim, não se trata mais de uma concepção  
adstringida devido ao caráter limitado e limitante da sociabilidade da época; o  
incremento das forças produtivas é pungente hoje. O desenvolvimento das  
capacidades humanas também. Porém, igualmente forte vem sendo a tendência à  
defesa da impossibilidade de liberar tais potencialidades.  
No politicismo, tais potências sociais são caladas e a base social de uma  
sociabilidade aviltante é mantida. Segundo Chasin, as bases do próprio entendimento  
político, estão na impossibilidade de autorregulação. E, assim, hoje, a situação parece  
ser bastante dúbia: o incremento das forças produtivas é gigantesco e, desse modo,  
as limitações que deram base à politicidade grega e renascentista já estão há muito  
superadas. Porém, tal qual ocorre na época do Renascimento, parece não haver  
qualquer vetor societário que seja efetivamente capaz de autorregulação econômica e  
social. A esfera pública parece somente ser pensável em termos políticos, de modo  
que uma mudança substancial na sociabilidade vigente acaba por ser vista como uma  
impossibilidade; ao menos nas condições presentes, o proletariado moderno (em seu  
sentido mais amplo) bem como as diversas classes trabalhadoras sequer conseguem  
organizar suas próprias agremiações políticas tamanha a miséria intelectual da  
esquerda e de tal monta é a derrota (ainda não compreendida plenamente) que marcou  
em nível mundial desde que O futuro ausente foi escrito. É preciso, por isso, colocar a  
questão incômoda que J. Chasin colocou, sobre o agente social interessado. O texto é,  
dentre outras coisas, o aviso de que, tudo mais constante, a derrota seria acachapante.  
E ela vem sendo. Em verdade, não parece que estamos avançando prática e  
teoricamente no debate sobre as determinações da politicidade. O silêncio que vem  
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sendo imposto ao pensamento de Chasin, aliás, é sintomático sobre isso e vem se  
impondo diuturnamente a nós.  
Na melhor das hipóteses, debate-se sua tese sobre a determinação ontonegativa  
da politicidade de modo profundamente unilateral. Tudo se passa como se o apelo do  
filósofo paulista fosse no sentido do abandono da luta política e da aceitação tácita  
das determinações do presente. E obviamente não é o que acontece em suas  
teorizações, as quais falam sempre da necessidade de uma prática que tenha em conta  
as limitações da política para que, assim, possa remeter, por meio de uma espécie de  
metapolítica, para além dela. O futuro ausente é uma magistral tentativa inacabada  
de compreensão das determinações da própria política. Essas determinações trazem  
limitações inerentes à própria politicidade, limitações essas que advém do próprio  
processo histórico de constituição e desenvolvimento da política. Não se trata,  
portanto, somente de uma “interpretação” de J. Chasin sobre a obra de Marx. E, caso  
se queira debater o tema de modo minimente sério, é preciso buscar realizar um  
trabalho à altura daquilo que se fez buscando, ao mesmo tempo, uma crítica à política  
e o resgate da emancipação humana. Tais determinações, cada vez mais, parecem ser  
indissociáveis.  
O futuro ainda ausente: a defesa acrítica da politicidade e a necessidade de  
continuidade no trabalho de J. Chasin  
Chasin não está tematizando a ontologia e a política para mostrar erudição.  
Embora seu texto seja erudito, ele pretende passar com cuidado pela gênese e pelo  
desenvolvimento da própria esfera da política em seu ser-propriamente-assim. Ou seja,  
trata-se de buscar compreender os limites e as possibilidades que se colocam em cada  
esfera do ser social, ao enxergar a política, inclusive, em seus melhores momentos,  
como aqueles que marcam a Antiguidade e o Renascimento. Há um esforço no sentido  
de se mostrar que o ser da política precisa ser compreendido historicamente e que o  
pensamento político traz consigo uma determinação social que não pode ser deixada  
de lado. O futuro ausente realiza uma análise imanente de grandes momentos do  
pensamento político. Tal análise, no entanto, volta-se ao presente e tem em mente a  
maneira como tal tema, de tamanha importância, é negligenciado. Isso é importante  
para o autor paulista até mesmo porque, em um cenário de profunda miséria  
intelectual, “o lema, ontem e hoje, tem de ser a recriação da esquerda pautada em  
sólidas bases teóricas” (CHASIN, 2001, p. 28).  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
O futuro ausente é um exercício magistral para que possamos ter acesso a bases  
teóricas sólidas. Na época que foi escrito, no entanto, seja no baixo clero acadêmico,  
por meio da apropriação de cacoetes e de “indivíduos moralmente falidos” (CHASIN,  
2001, p. 26) ou em meio “politicismo da correlação de forças” (CHASIN, 2001, p. 35),  
que se colocou na prática via Fernando Henrique Cardoso, o apreço por uma teoria  
que tentasse escavar as determinações da política estava fora de cena. Com isso, a  
esfera econômica é limitada a um dos fatores a serem considerados e não é  
compreendida real e efetivamente. Ela acaba por ser tomada como um dado natural,  
que tem como contraparte, o apelo à vontade política. Trata-se de algo que tem uma  
das suas raízes na “sabida e reiterada falta de produção teórica de qualidade nos  
círculos da esquerda organizada”, que, segundo Chasin, constitui-se como “defeito  
capital cujas raízes tinham assento, sem falar nos constrangimentos extrateóricos, no  
desconhecimento do pensamento marxiano e nas suas versões aleatórias e disformes”  
(CHASIN, 2001, p. 6). O futuro ausente, portanto, coloca-se também no sentido do  
desenvolvimento de um projeto marxista que contra o marxismo vulgar e no sentido  
oposto do marxismo da analítica paulista pudesse colocar-se no sentido da “recriação  
da esquerda pautada em sólidas bases teóricas” (CHASIN, 2001, p. 28) e que tivesse  
como horizonte a emancipação humana.  
No cenário desolador mas não apocalíptico que se mostra a J. Chasin, isso  
seria essencial. Hoje, a questão é ainda pior. Na época em que é escrito o texto  
chasiniano, “o instante exibia também a derradeira falência da esquerda tradicional e  
a inconsistência dos credos e propósitos da então chamada nova esquerda” (CHASIN,  
2001, p. 6). Agora, porém, aqueles que buscam contestar o presente, muitas vezes,  
como ocorre nos já mencionados Mouffe e Agambem, sequer defendem qualquer  
esquerda. Acreditam que a oposição entre esquerda e direita é ultrapassada; com isso,  
nem mesmo verbalmente, colocam-se a favor de qualquer projeto emancipatório.  
Antes, tem-se o contrário: suas teorias, como aquelas de pensadoras como Hannah  
Arendt, nascem da repulsa a qualquer forma de revolução social. Não conhecem nada  
do marxismo e nem pretendem fazê-lo, mas sempre vão criticar um espantalho teórico  
que, na melhor das hipóteses, beira o marxismo vulgar. O projeto de “recriação da  
esquerda pautada em sólidas bases teóricas” (CHASIN, 2001, p. 28), assim, seria, no  
limite, inadmissível à própria esquerda. Primeiramente, porque não se colocam como  
“esquerda”, depois, porque há uma, cada vez mais evidente, aversão a qualquer  
teorização de mais fôlego.  
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O futuro ausente pretende se voltar contra o automatismo imposto no cotidiano  
da reprodução ampliada do capital. Sua crítica à política (já presente em Marx, mas  
fortalecida pelo estudo chasiniano da gênese e do desenvolvimento da politicidade) é  
um requisito necessário para a crítica às relações de produção capitalistas. Para que  
digamos de modo mais claro: não há como se fazer a crítica à economia política sem  
se voltar contra os procedimentos especulativos do idealismo e sem a crítica à política.  
Nas sociedades em que vige o modo de produção capitalista, o politicismo aparece de  
modo quase que natural. E, assim, a crítica da política é essencial porque, de acordo  
com Chasin:  
O politicismo é intrínseco à ordem do capital: a ordem econômica é  
natural, a ordem política é o que resta para o homem configurar, e  
esta é decisiva, molda a convivência e realiza a justiça. A economia é  
[vista como] uma espécie de pano de fundo por si amorfo, ou melhor,  
uma plataforma virtual com várias possibilidades, que será decidida  
pela política - correlação de forças constitutiva de alianças. (CHASIN,  
2001, pp. 34-35)  
A tematização presente em O futuro ausente, portanto, é aquela de alguém se  
volta às melhores concepções sobre a política do passado. Isso se dá para que se veja  
a grandeza de homens como Maquiavel e Hobbes, certamente. Também se tem as  
determinações da política emergindo de modo orgânico nesses autores. Porém, a  
comparação dos autores do Renascimento e do Iluminismo, por exemplo, com aqueles  
que acreditam no tempo de Chasin, mas também hoje terem ultrapassado tais  
tradições mostra elementos muito importantes do presente. Não se trata somente da  
já mencionada “ruptura sintomática que opera, com unilateralidade extrema, em  
relação ao núcleo das tendências afirmativas do homem, práticas e reflexivas” (CHASIN,  
2012, p. 60) vigentes anteriormente. Tem-se um verdadeiro elogio à irracionalidade  
do capital, que é tomada como uma espécie de segunda natureza. E é preciso  
mencionar: mesmo no plano dos diversos marxismos, isso se dá ao passo que a política  
passa a ser pensada como algo decidido a partir da simples correlação de forças. Tudo  
se passa como se as formas e as figuras econômicas tratadas por Marx em O capital,  
mas que precisam ser estudadas hoje de modo cuidadoso fornecessem uma espécie  
de cardápio no meio do qual a política pudesse se conduzir.  
Mesmo em meio ao marxismo, trata-se de um politicismo atroz. Na figura do  
marxismo vulgar, isso era marcante: “o marxismo vulgar, politicista e praticista, situa-  
se nas franjas putrefatas da lógica do passado: o mito nacional-estatista, proletário e  
sindical” (CHASIN, 2001, p. 30). A poesia do marxismo vulgar se é que tal falatório  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
pode ser chamado de poesia só pode ser tirada do passado e denota uma total  
incompreensão da realidade. Sobre esse aspecto, e o desenvolvimento da “esquerda”  
de seu tempo, diz Chasin que “a falta de cultura marxista é massacrante” (CHASIN,  
2001, p. 45). O “diálogo” com essas tendências, assim, era inviável, assim como hoje  
ainda é. Na época de O futuro ausente, as coisas se apresentavam da seguinte maneira:  
O marxismo vulgar no Brasil, hoje, é misticamente nominalista, pratica  
a crença primitiva nos atos de fala, age como se o uso de certas  
palavras tivesse a magia de promover adventos reais. Hoje, reduzido  
ao ritualismo verbal, o uso das palavras é feito ao modo das  
invocações, uma vez que tudo pode ser realizado, na medida em que  
Deus queira e haja vontade humana. O marxismo vulgar, por seu  
politicismo e nominalismo, é obrigatoriamente antiontológico, ou seja,  
subjetivista e voluntarista, [donde considera que a] política é remédio  
para o egoísmo natural do homem. (CHASIN, 2001, p. 26)  
Curiosamente, nada mais longe do marxismo vulgar da época de Chasin que o  
materialismo. Em verdade, o nominalismo que domina tal vertente acaba por ser, não  
só idealista, mas marcado por certo elemento mágico. Também aqui se nota que a  
força das palavras, ou dos “atos de fala” (para que se siga a dicção de Austin) acaba  
por aproximar na prática tal marxismo de vertentes das mais caricatas do pós-  
estruturalismo.  
A posição antiontológica, subjetivista e voluntarista que domina o marxismo  
vulgar da época que é escrito O futuro ausente, porém, ainda vai mais longe, trazendo  
o politicismo em sua forma mais atroz. Ou seja, tem-se um marxismo que oscila entre  
o determinismo econômico e o politicismo e que, não consegue fazer mais do que um  
ritualismo verbal. A mágica, e o caráter invocador, de tal posição representa claramente  
uma ruptura com as tendências afirmativas do homem, práticas e reflexivas. E, desse  
modo, tem-se um revolucionarismo verbal; como diz Chasin, “é a contrarrevolução em  
nome e na simulação (consciente ou inconsciente, não importa) da revolução” (CHASIN,  
2001, p. 27). Trata-se de uma espécie de marxismo de simulacro, em que a lógica do  
passado domina o presente com uma postura antiontológica que supostamente  
compreende as contradições da própria realidade. Conjugado com o baixo clero  
acadêmico, tal marxismo não capta as coisas em sua lógica específica; ele “não é a  
gravitação em torno da reprodução conceitual das coisas em sua complexidade e  
mutabilidade, mas a gravitação sobre o oco de suas ambições mesquinhas” (CHASIN,  
2001, p. 27). Tal é a munição da “esquerda” – que Chasin não deixa de chamar de  
pseudoesquerda da época em que o texto que aqui tratamos foi escrito.  
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Assim, segundo o autor, “a ‘esquerda’ faz um pastiche de si mesma ao ser incapaz  
de encarar e encarnar a tragédia, apesar da realidade desta” (CHASIN, 2001, p. 44).  
Hoje, porém, tal qual em outros pontos, a questão é ainda pior. O caráter mágico  
e irracionalista dos atos de fala explicitamente é base de diversos autores  
supostamente críticos. Do giro linguístico que marca a teoria de Habermas depois da  
Teoria do agir comunicativo até hoje, passando pela abordagem dos mais diversos  
temas importantes, como raça, gênero, patriarcado, colonialismo, tem-se não só a  
economia como mero fator, ou uma oscilação entre o economicismo e o politicismo.  
Tem-se muitas vezes a aversão a qualquer análise econômica séria. O marxismo vulgar  
e a nova esquerda ainda acreditavam erroneamente que compreendiam as relações  
econômicas de sua época. A esquerda representada em autores como Agamben,  
Mouffe e outros sequer passa por qualquer análise econômica. Se o marxismo vulgar  
acabava em uma espécie de reboquismo quanto ao sindicalismo e ao  
desenvolvimentismo, hoje, em grande parte das vezes, nem sequer se pretende  
elaborar um programa econômico. O subjetivismo e o voluntarismo acabam sendo  
ainda mais pronunciados e o elogio à política ainda mais unilateral. O caráter  
performático e performativo para que continuemos a usar as expressões de Austin –  
ainda são mais salientes e hipertrofiados que antes.  
Com Chasin, pode-se trazer, ao fim, uma ligação entre politicismo e irracionalismo  
ou uma concepção atrófica a adstringida de razão: “o ato político não é um ato  
racional, mas um ato de razão de baixa qualidade, de razão atrófica. O ato político  
enquanto racionalização é uma corruptela da racionalidade” (CHASIN, 2001, p. 37). A  
política, assim, acaba por acatar à racionalidade do próprio capital.  
Tanto antes, como hoje, ao invés de se ter uma crítica à ordem do capital, tem-  
se a aceitação dessa, no melhor dos casos, como campo de possibilidades. E, com isso,  
um irmão gêmeo do politicismo é a incompreensão sobre as determinações  
econômicas do sistema capitalista de produção. Chasin mostra em O futuro ausente  
como que é impossível pensar a política dessa maneira; primeiramente, o filósofo  
paulista explicita a determinação social da política em seus momentos mais icônicos.  
Como demonstramos acima, isso traça as limitações da sociabilidade que dá base à  
politicidade. E, com isso, acaba por haver uma valorização tanto maior da política  
quanto mais aviltante é a concepção de sociabilidade e de natureza humana tomada  
por base. Uma esquerda que é incapaz de criticar a política, portanto, vê-se como  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
caudatária do movimento do capital.  
O tom como isso se dá muda da época em que Chasin escreve seu texto para  
hoje, certamente. Mas, no essencial, há continuidades, que dificultam a “recriação da  
esquerda pautada em sólidas bases teóricas” (CHASIN, 2001, p. 28). Em verdade, se  
a esquerda de ontem acabava por adotar certo pluralismo avesso à noção de verdade  
objetiva e de ciência, hoje, ao fim, acaba por haver, no limite, certa aversão à própria  
teoria.  
Com isso, a crítica acaba sendo vazia e, ao fim, a ordem econômica é tomada  
como algo natural. O que é preciso deixar claro é que tal aspecto, que torna a política  
como algo resolutivo, é tomado de modo muito mais unilateral na sociedade capitalista  
plenamente desenvolvida: as possibilidades que emergem com o desenvolvimento das  
forças produtivas parecem poder ser efetivadas em meio à própria ordem do capital.  
O politicismo, assim, aparece como a contraface da incompreensão das contradições  
econômicas da sociedade capitalista. Essas últimas não só são tomadas como algo  
amorfo; acabam sendo naturalizadas. Sobre elas, poderia, inclusive, por meio da  
vontade política, edificar-se a justiça! O vazio da “justiça social” toma o lugar da crítica  
da política e da economia política. Ao invés do entendimento profundo sobre a lógica  
da coisa, da reprodução das coisas em sua mutabilidade e complexidade, o  
nominalismo. Assim, não se tem mais a discussão teórica, que pode redundar na  
elaboração de táticas para se modificar substancialmente à realidade. Hoje parece, no  
limite, que falar de “realidade objetiva” é algo obtuso ao campo da filosofia. E é preciso  
dizer que a esquerda atual dos atos de fala, sob esse aspecto específico, está em muito  
mais continuidade com o marxismo vulgar do que acredita, sendo o politicismo comum  
a ambos.  
O combate a essa posição fez Chasin se voltar, não só à reafirmação da  
determinação ontonegativa da politicidade, que havia sido trazida à tona por Marx  
(autor incompreendido tanto pela pseudoesquerda da época em que é escrito O futuro  
ausente quanto pela enorme maioria da autoproclamada esquerda do presente). O  
autor paulista, no entanto, não realiza somente um estudo de fôlego sobre a formação  
do pensamento marxiano. Ele voltou-se ao estudo da gênese, do desenvolvimento e  
da estrutura do melhor do pensamento político. Assim, retoma a política antiga e  
renascentista e explicita aquilo que se apresenta como base social da política e do  
pensamento político nessas épocas. Ou seja, o texto que aqui tratamos não é uma  
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defesa da crítica marxiana à política; ele mostra quais são as determinações da própria  
politicidade e o modo pelo qual ela se autonomiza da sociabilidade e, posteriormente,  
passa a se contrapor objetivamente a ela.  
Há de se notar, inclusive, que Chasin não traz um diálogo explícito com o  
marxismo de sua época no texto que analisamos. Isso se dá, primeiramente, pelo seu  
objeto: a gênese e o desenvolvimento da política e do pensamento políticos. Porém, é  
preciso se perceber que o cenário nacional da época do texto é marcado, não só pelo  
marxismo vulgar, que mencionamos acima. Tem-se uma versão muito mais sofisticada  
do marxismo, que é crítica à esquerda tradicional dos PC, e que se configura naquilo  
que o autor paulista chama de analítica paulista, como se mostra em Rota e  
prospectiva.  
Ou seja, somente o embate necessário com aqueles que estudaram Marx no  
Brasil já levariam o autor a um outro texto. E, se considerarmos o desenvolvimento de  
expoentes desse movimento, como Giannotti, por exemplo, seria preciso passar pela  
sua apreensão posterior dos textos de Wittgenstein e Heidegger, por exemplo. Ou  
seja, os rumos da tradição marxista mais forte no Brasil na época e, talvez, até hoje,  
por si sós, já justificam a pertinência dos estudos que procuram a compreensão  
explícita da relação entre a política e a ontologia, como aqueles presentes no  
inacabado O futuro ausente.  
Se formos ser rigorosos, a tematização sobre a política presente no marxismo da  
época de Chasin não consegue chegar à riqueza de determinações que é trazida na  
análise do pensamento maquiaveliano. O autor de O príncipe, mesmo tentando  
justificar o injustificável, acaba por realizar uma análise que passa longe de ser  
unilateral ao tratar da política. Por outro lado, ao se reduzir a economia a mero fator,  
a política ganha uma carga variável, mas, por isso mesmo, determinante. Para que  
digamos com Rota e prospectiva, “na medida em que deixa de ser a economia a esfera  
matrizadora da sociabilidade, e é convertida em fator, não se sabe mais com precisão  
qual é o peso determinativo desse fator, e a política passa a ser a última instância”  
(CHASIN, 2001, p. 35). O caráter demiúrgico atribuído por toda forma de politicismo  
à política está presente; porém, a consciência sobre aquilo que acompanha a  
politicidade presente em Maquiavel de modo oportunista e cínico deixa o campo  
da argumentação e se coloca, de modo hipócrita, na prática. Pode-se acusar Maquiavel  
de muitas coisas; não de hipócrita. E a aceitação do capital como campo de  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
possibilidades leva a uma esquerda marcada pela hipocrisia.  
E, com isso, os próprios marxistas, mesmo em suas figuras mais elaboradas na  
época de Chasin, como no caso da analítica paulista, acabam sendo prisioneiros do  
politicismo engendrado pelo capital. Para que sejamos claros: mesmo que o marxismo  
brasileiro conseguisse se colocar para além dos muros da universidade, suas  
potencialidades não seriam compatíveis com qualquer resgate da emancipação  
humana; antes, ter-se-ia certo eclipse. A ordem do capital seria o pressuposto da  
atividade sensível.  
Aliás, curiosamente, pode-se dizer que isso aconteceu de modo bastante  
proeminente, com as influências de certa intelectualidade tanto no desenvolvimento  
do PT quanto do PSDB durante as décadas de 1990 e de 2000. A tradição marxista  
mencionada certamente representa “a ruptura com o marxismo de baixa elaboração”  
(CHASIN, 2001, p. 6). Porém, suas posições diante da política relacionadas a certo  
politicismo, de acordo com Chasin, como dito –, no plano da teoria, representam “uma  
modalidade epistêmica de aproximação e apropriação seletiva da obra marxiana de  
maturidade” (CHASIN, 2001, p. 7). E, assim, há uma ligação íntima entre o modo pelo  
qual se lê a obra de Marx e a ausência da tematização da crítica da política. As  
abordagens epistêmicas, aliás, com certa influência posterior dos teóricos da Escola  
de Frankfurt e, em especial, de certa leitura da Dialética do esclarecimento, não raro,  
acabaram por entoar certo canto contrário à ciência. E, desse modo, a própria defesa  
das tendências afirmativas mencionadas por J. Chasin, acaba por perder representantes  
dentro do marxismo mesmo. Ou seja, na época em que O futuro ausente é escrito, em  
grande parte, encontrar aliados era um programa difícil, embora, sempre, necessário.  
Aquilo que Chasin chamou de marxismo adstringido da analítica paulista acabava  
não trazendo qualquer posicionamento proveitoso sobre a política e, com isso, acaba-  
se por aceitar o movimento do capital de modo acrítico. Isso se daria, de acordo com  
o filósofo paulista, mesmo em “dissidentes” – certamente mais conscientes dos  
problemas da vigência do modo de produção capitalista como Paulo Arantes e  
Roberto Schwarz. Aliás, vale dizer que hoje, na melhor das hipóteses, tais autores  
acabam sendo as melhores referências nacionais quando se trata de uma análise séria  
do Brasil contemporâneo. Ou seja, é preciso dizer: a crítica de Chasin é certeira em  
sua época. Porém, aqueles que buscaram se influenciar pelo seu pensamento (dentre  
eles quem escreve essas palavras) não foram capazes de dar continuidade à unidade  
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existente na obra do autor do Estatuto ontológico entre compreensão da obra de Marx,  
análise da especificidade do capitalismo brasileiro, crítica às ideologias e apreensão  
das determinações da política. Ou seja, talvez aquilo que exista de melhor na crítica  
marxista atual parta justamente de bases que foram profundamente criticadas por J.  
Chasin.  
E, assim, é mais do que necessário retomar a obra do autor, buscando  
compreendê-la e, posteriormente, continuá-la, também, para a “recriação da esquerda  
pautada em sólidas bases teóricas” (CHASIN, 2001, p. 28). Há muito a ser feito,  
muitíssimo.  
Sem isso, acaba-se por oscilar entre uma aceitação acrítica da ordem do capital  
e uma crítica moralista. Tais determinações, aliás, como vimos acima, marcam o próprio  
desenvolvimento da política, embora sejam exacerbadas no modo de produção  
capitalista que se coloca sobre os próprios pés. Chasin trata da política em O futuro  
ausente justamente tendo em conta tal cenário. A posição elaborada junto com a  
Ensaio, com muito esforço, acabara por posicionar-se da seguinte maneira diante da  
analítica paulista e do marxismo vulgar, respectivamente: “sofrer o silêncio aristocrático  
do extremo superior e a desqualificação desabrida na extremidade oposta” (CHASIN,  
2001, p. 6). E, assim, a contraparte necessária ao projeto presente do texto que aqui  
tratamos é aquele da retomada da obra de Marx por meio de “um Movimento de Ideias,  
voltado à produção e difusão teóricas e direcionado à redescoberta da obra de Marx,  
bem como à tematização da problemática brasileira” (CHASIN, 2001, p. 6). Isso se dá  
em um cenário em que se desenvolve uma aversão à ciência e em que, como já  
dissemos, os próprios expoentes do marxismo mais renomado (como Althusser) abrem  
espaço para teorias como as de Heidegger. Há de se dizer, inclusive, que a crítica à  
ciência, a retomada de Heidegger, bem como pelos frankfurtianos, e por certa  
apropriação seletiva de Marx, não deixam de marcar o pós-estruturalismo e as  
pseudoesquerdas de hoje. Ou seja, a ausência da tematização explícita sobre a  
ontologia, bem como leituras seletivas da obra marxiana, redunda em certo tratamento  
da política que é, de um modo ou doutro, unilateral.  
Contra essas unilateralidades que se põe O futuro ausente. No que é preciso  
dizer que o estudo chasiniano é seminal e cuidadoso. Porém, é visivelmente  
incompleto.  
Ou seja, é necessário servir-se dele para novas incursões na compreensão da  
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O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a unilateralidade no tratamento da política  
política e de seu desenvolvimento. E é preciso dizer: a grandeza de tal tarefa é absurda  
e ainda não foi sequer analisada com cuidado por muitos que conhecem a obra do  
autor. Hoje, não é exagero dizer que é necessário um trabalho coletivo para que os  
projetos de J. Chasin, como aquele do texto que tratamos, bem como o de Rota e  
prospectiva de um projeto marxista, sejam possíveis. Ou seja, ainda há muito a fazer.  
Um primeiro passo, porém, pode ser dado ao se ler as obras do próprio autor paulista.  
Infelizmente, elas ainda são ignoradas em grande parte ou são tratadas de modo  
claramente vulgar. Trata-se da “guerra do silêncio” que procura “reduzir à  
insignificância pelo silêncio” (CHASIN, 2001, p. 30), que vem sendo praticada  
diuturnamente. Um estudo detido do texto do autor, bem como uma retomada de  
Marx, nesse sentido, é mais urgente que nunca. O cenário que vivemos é ainda mais  
desolador que aquele de J. Chasin, de modo que a tentativa de se engendrar um  
movimento de ideias, bem como a prática a ele correspondente pode ser essencial.  
Para se reverter o cenário em que as tendências afirmativas do homem, práticas e  
reflexivas foram perdidas, a necessária crítica ao capital não prescinde da compreensão  
das determinações cuidadosa da política, bem como de sua crítica.  
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Como citar:  
SARTORI, Vitor Bartoletti. O futuro ausente no presente: o pastiche do politicismo e a  
unilateralidade no tratamento da política. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 3-  
85, Edição Especial, 2022/2023.  
Verinotio  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 3-85 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 85  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.662  
Da crítica ao politicismo à determinação  
ontonegativa da politicidade: a análise do caso  
brasileiro  
From the critique of politicism to the politicity ontonegative  
determination: the analysis of the Brazilian case  
Ester Vaisman*  
Vânia Noeli Ferreira de Assunção**  
Resumo: Este artigo tem por propósito expor as  
análises realizadas pelo filósofo J. Chasin em  
relação ao tema da política no âmbito da  
formação social brasileira, cuja determinação  
central, nos seus termos, é ter-se constituído pela  
via colonial. Intentamos, inicialmente, mostrar a  
interrelação entre as pesquisas chasinianas sobre  
o pensamento de K. Marx especialmente a crítica  
Abstract: The purpose of this article is to expose  
the analyzes carried out by the philosopher J.  
Chasin about the theme of politics in the context  
of the Brazilian social formation, whose central  
determination, in his terms, is to have been  
constituted through the colonial way. Initially,  
we intend to show the interrelationship between  
Chasin's research on K. Marx's thought,  
à
política (consubstanciada na expressão  
especially  
the  
critique  
of  
politics  
determinação ontonegativa da politicidade), e  
suas descobertas sobre a sociabilidade nacional.  
No interior dessa relação de potencialização  
recíproca, destacamos o debate chasiniano sobre  
o politicismo, modo de proceder típico da  
burguesia atrófica brasileira, para o qual esta  
conseguiu arrastar, em momentos decisivos,  
muitos agrupamentos e individualidades que se  
arvoram de esquerda.  
(consubstantiated  
in the  
expression  
ontonegative determination of politicity), and  
his findings on national sociability. Within this  
relationship of reciprocal potentialization, we  
highlight Chasin's debate on politics, a typical  
way of proceeding of the Brazilian atrophic  
bourgeoisie, to which it managed to drag, in  
decisive moments, many groupings and  
individuals that claimed to be on the left.  
Palavras-chave: Politicidade; via colonial de  
objetivação do capitalismo; J. Chasin;  
politicismo.  
Keywords: politicity; colonial way of capitalism  
objectifying; J. Chasin; politics.  
Em 2022 completaram-se 85 anos do nascimento do filósofo paulistano J.  
Chasin (1937-1998), autor de uma produção intelectual marcada pelo rigor em  
diversos territórios de pesquisa. Nosso objetivo neste texto será restrito à  
recomposição do tratamento chasiniano acerca do complexo da politicidade na via  
colonial, cujo traço mais significativo é o politicismo.  
*
Professora Titular aposentada do Departamento de Filosofia da UFMG e coeditora da Verinotio –  
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. E-mail: evaisman@fafich.ufmg.br.  
**  
Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF Rio das Ostras) e coeditora da Verinotio –  
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. E-mail: vanianoeli@uol.com.br.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, 30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade  
As atenções de Chasin sempre estiveram voltadas, desde a época de estudante  
no curso de filosofia da FFLCH-USP, à busca da decifração e caracterização da  
formação social brasileira. Não por acaso, ainda estudante, vinculou-se à Editora  
Brasiliense (e à Revista Brasiliense, que circulou de 1955 a 1964, em que teve a  
oportunidade de escrever artigos relevantes1), dirigida por Elias Chaves Neto e Caio  
Prado Júnior.  
O tema da política, por sua vez, esteve presente no pensamento chasiniano  
desde cedo, aparecendo já nos seus primeiros textos, e continuou sendo tematizado  
em todos os seus trabalhos escritos para debater a formação social brasileira. Parte  
significativa destes voltava-se à análise de conjunturas específicas, não raro, processos  
eleitorais marcantes no interior de modificações econômico-sociais mais ou menos  
amplas, que incluíam por vezes comentários sobre os postulantes aos cargos e sobre  
os partidos em pugna. É possível, assim, reconstruir parte da história brasileira do  
século XX a partir das análises chasinianas, pelo recorte da temática política –  
ressaltando-se a não autonomização deste campo da sociabilidade, que ele sempre  
apanhava a partir da esfera da produção da vida e da totalidade social.  
Não há espaço aqui, entretanto, para tal reconstrução, por mais que ela seja  
importante e necessária. Nosso objetivo será mais restrito, já que buscaremos tratar  
da questão política na via colonial sob o seu mais significativo traço, o politicismo.  
Acerca dele Chasin se delongou fartamente nos seus textos sobre o Brasil, a partir das  
conquistas teóricas efetivadas nas pesquisas sobre o pensamento marxiano, e  
pensando-o sobre o fundamento da ontonegatividade da política e da inerência do  
politicismo à lógica do capital sobretudo no seu feitio contemporâneo. Nos textos aqui  
trabalhados, ele se esforçou por deslindar a forma específica pela qual o politicismo  
se incorporou à sociabilidade nacional, já que é elemento constitutivo central da forma  
de ser da burguesia atrófica e, ainda, porque esta conseguiu enredar no politicismo  
também os representantes político-ideológicos da classe representante da lógica do  
trabalho.  
Consideramos, porém, fundamental começar demonstrando a citada  
interdeterminação entre as pesquisas chasinianas acerca do pensamento de Marx e  
1
Publicados no apenso arqueológico de A miséria brasileira, são eles: Jânio, do parto à sepultura;  
Algumas considerações a respeito do movimento estudantil brasileiro; Luta ideológica objetivo central  
do movimento estudantil; e Contribuição para a análise da vanguarda política no campo. Cf. CHASIN, J.  
A miséria brasileira 1964-1994: do golpe militar à crise social. Santo André: Estudos e Edições Ad  
Hominem, 2000.  
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Ester Vaisman; Vânia Noeli Ferreira de Assunção  
suas análises sobre a politicidade na sociabilidade brasileira. Iniciaremos, portanto, a  
partir dessa discussão.  
I Da redescoberta de Marx à determinação da via colonial: a ontonegatividade  
da política e seu corolário, o politicismo  
Já em sua tese de doutorado (defendida em 1977), intitulada O integralismo  
de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo híper-tardio2, Chasin não  
apenas se debruçou sobre o conjunto da obra do líder integralista, mas procurou, do  
mesmo modo, explicar a gênese e a função social da ideologia em foco3, por meio do  
delineamento das características fundamentais da formação social brasileira,  
notadamente aquela que dizia respeito às demandas, condições e perspectivas de  
determinados agentes sociais à época da eclosão do movimento. Ciente de que sua  
tese seria envolvida por densa polêmica, procurou, como lhe era característico,  
examinar todos os artigos, livros, discursos e palestras de Plínio Salgado, por meio da  
análise imanente, evidenciando, assim, rigorosamente suas características peculiares e  
apontando as diferenças com o discurso nazifascista surgido na Europa no mesmo  
período4.  
Na apresentação desse livro sobre Plínio Salgado, o autor revelava que o debate  
ali efetuado não dizia respeito apenas ao seu objeto imediato, o ideário do líder  
integralista. De fato, esclarecia,  
o propósito de bem examinar um objeto específico acabou remetendo,  
com naturalidade e sem alternativa, ao todo da questão brasileira, e  
não há porque, esgrimindo com falsas humildades, encobrir com tela  
de malha negra o fato de que este trabalho, acima talvez de tudo, nos  
seus eventuais acertos e enganos, cria um problema para a reflexão  
2 Publicada como livro menos de um ano depois. Cf. CHASIN, J. O integralismo de Plínio Salgado: forma  
de regressividade no capitalismo híper-tardio. São Paulo: Lech, 1978. (As citações aqui feitas serão a  
partir da segunda edição: São Paulo: Ad Hominem, 1999.)  
3
No livro A destruição da razão, logo nas páginas introdutórias, Lukács argumenta em torno da  
necessidade do tripé metodológico para a devida análise do fenômeno ideológico. Cf. LUKÁCS, G. A  
destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020, pp-11-12. No livro citado de Chasin, a referência  
a tal dispositivo metodológico, proposto pelo filósofo húngaro, encontra-se nos seguintes termos  
“Numa formulação sintética, pode-se dizer que Lukács oferece-nos o conjunto de sua concepção  
metodológica ao estabelecer que a abordagem de um fenômeno ideológico implica a determinação de  
sua gênese e de sua função social. Porém, isto não basta, há que necessariamente acrescentar àqueles  
dois pontos a crítica imanente, ‘um fator legítimo e até mesmo indispensável na exposição e no  
desmascaramento das tendências...’.” CHASIN, O integralismo..., op. cit., p. 59.  
4
Sendo impossível, no presente artigo, resgatar a pletora de questões que Chasin intentou solucionar  
nesse campo, restringimo-nos aos traços mais gerais de seu contributo para o desvendamento do  
caráter do desenvolvimento capitalista em nosso país, identificando-o como uma objetivação particular  
a via colonial , bem como as razões que tornaram possível a disseminação, nesse contexto, de  
posições politicistas.  
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Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade  
do caso brasileiro5.  
Chasin expunha, desta forma, ter se visto em face do imperativo de analisar a  
própria formação social brasileira, no mister de entender o pensamento integralista  
pliniano por meio da análise imanente e, ao mesmo tempo, indicar sua gênese e função  
sociais. É forçoso reconhecer, no entanto, que o empenho em deslindar o discurso  
integralista somente foi passível de ser realizado a partir da articulação de duas frentes  
de pesquisa, uma das quais incluía como é fácil constatar nas páginas do referido  
livro estudos minuciosos da obra de Marx e de Lukács.  
Por via de consequência, o que pode ser verificado, tomando-se como base os  
textos de Chasin a partir dos anos 1970, é a potencialização recíproca de dois âmbitos  
da pesquisa que ele passou a levar a cabo de modo consistente: de um lado, a  
aproximação rigorosa da realidade brasileira em um primeiro momento, a partir dos  
desafios postos pela investigação da ideologia integralista, na figura de seu líder, e  
mais adiante sobre a controvertida atuação das oposições ao regime ditatorial e, de  
outro, a lida incansável junto à obra de Marx. Assim, pode-se afirmar que a labuta  
direta com problemas que se colocavam na ordem do dia, ao longo dos anos 1970 e  
1980, propiciou ao filósofo paulistano o impulso necessário para pensar a linha de  
atuação da oposição à autocracia bonapartista em vigor (isso após ter se debruçado  
sobre o fenômeno integralista), bem como, em função dos resultados obtidos, alargar  
o seu campo de visão a respeito da gravidade e disseminação de posturas politicistas.  
Desse modo, as pesquisas teóricas realizadas, em especial sobre o pensamento  
marxiano, propiciaram uma série aquisições que vieram a assumir em sua pena  
desdobramentos originais. Como veremos a seguir, tais desdobramentos lançaram  
uma nova luz sobre questões vitais, tanto no campo do marxismo quanto na apreciação  
da realidade brasileira. Ademais, é mérito de Chasin a ampliação de certos princípios  
ontometodológicos que revalorizam a pesquisa textual, ao conceder ao texto  
dimensões que haviam sido obnubiladas por aquilo que ele mesmo denominou de  
“hermenêuticas da imputação”6. Longe de aderir às correntes em voga no mundo  
acadêmico (e mesmo fora dele) que identificam “leitura” a “interpretação”, entendida  
pura e simplesmente como “atribuição de sentido pelo pesquisador/intérprete”, de  
forma a conceber como equivalentes as diferentes “operações hermenêuticas”, Chasin  
5 CHASIN, O integralismo..., op. cit., pp. 29-30.  
6 Cf. CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 25.  
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denunciou o afastamento do problema da verdade do âmbito investigativo, “seja como  
questão sem solução, seja como falso problema”7.  
Desse modo, a partir das conquistas teóricas aludidas acima, torna-se plausível  
afirmar que Chasin elaborou contribuição decisiva para aquilo que Lukács denominou,  
com muita acuidade de “renascimento do marxismo”. Entretanto, ao citarmos o filósofo  
húngaro, valendo-nos de uma expressão muito utilizada em sua obra postumamente  
publicada, não significa que haja uma identificação plena entre o projeto lukácsiano,  
consignado em seus escritos tardios, e aquele ao qual Chasin se dedicou. Ao contrário,  
diferentemente da posição de Lukács, que afirmava a existência de uma ontologia no  
pensamento de Marx, o filósofo paulistano, no intento de agarrar o cerne de sua  
herança teórico-prática, sustentava existir em Marx um “estatuto ontológico”, ao invés  
de uma ontologia no sentido tradicional do termo. Ou seja, ao afirmar a existência de  
um estatuto ontológico, Chasin formulou a sua própria visão desse intrincado  
complexo. De forma direta, como convém às vezes, pode-se dizer que  
estatuto é a ordem do reconhecimento ou reprodução teórica da  
realidade, natureza e constituição das coisas por si, por seus  
complexos categoriais mais gerais e decisivos, independentemente,  
em qualquer plano, de se tornarem objeto da prática e da reflexão8.  
Desse modo, reconhecer a importância da questão ontológica em Marx, de  
acordo com Chasin, não significa a afirmação da existência de “um sistema de verdades  
absolutas e abstratas, mas antes de tudo [um estatuto teórico, cuja fisionomia é traçada  
por um feixe de lineamentos categoriais, enquanto formas de existência do ser social”9.  
Por essa razão, mesmo reconhecendo os méritos de Lukács, sobretudo tendo em vista  
os descaminhos do marxismo, o autor em tela não pôde aderir totalmente à obra do  
filósofo húngaro publicada postumamente, por mais que haja um certo número de  
afinidades e influências recebidas10.  
Depois desse necessário volteio, em que foi caracterizado sinteticamente o  
modo como Chasin faceou a questão ontológica em Marx, torna-se mais fácil  
compreender a relação entre a crítica ao politicismo realizada pelo filósofo paulistano,  
desde a década de 1970 até o momento de seu falecimento, e a concepção  
ontonegativa da politicidade estampada, sobretudo, mas não só, no livro Marx:  
7 VAISMAN, E.; ALVES, A. J. L. Apresentação. In: CHASIN, Marx: estatuto ontológico..., op. cit., p. 7.  
8 Ib., p. 9.  
9 Ib., p. 10.  
10 As diferenças entre a abordagem lukácsiana e a de Chasin não poderão ser abordadas nos limites do  
presente artigo, ficando para outra oportunidade sua devida análise.  
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Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade  
estatuto ontológico e resolução metodológica. Ou, em termos sintéticos: Chasin  
percorreu rigorosamente, no livro ora referido, o “caminho analítico da politicidade”,  
no qual “é exercitado o posicionamento ontológico frente à questão do estatuto da  
política”11.  
Passemos à determinação do politicismo pela explanação de seus caracteres  
mais significativos, pelo apontamento de sua origem e de sua finalidade na via colonial,  
tal como expressos nas análises chasinianas. Como exposto no artigo A “politicização”  
da totalidade12, politicizar é entender o complexo de complexos que é a sociabilidade  
pelo âmbito exclusivo do político, desconsiderando as inter-relações e  
interdeterminações (e seus pesos específicos) presentes na totalidade do real. Analisar  
o real sob a distorcida lente do politicismo implica visualizar, analisar e abordar  
praticamente o todo contraditório, articulado e complexo que conforma a sociabilidade  
pelo viés de uma das esferas desta, a política13.  
O procedimento politicista se inicia pelo seccionamento entre política e  
economia, ou seja, pelo desacoplamento de campos do real inseparáveis e conexos.  
Como se fora pouca coisa, após isolar as esferas da política e da economia, ainda  
transforma esta última num epifenômeno ou numa derivação da primeira, cujas  
determinações estariam restritas ao universo das regras institucionais que, ademais,  
é supervalorizado. Com isto (como Chasin acrescentou no texto ¿Hasta cuando?, de  
198214), o politicismo nega o caráter fundante, ontologicamente matrizador, do  
econômico, esfera ineliminável, prioritária e determinante da sociabilidade, derribando  
as pilastras do metabolismo social. Em suma, o politicismo é um entendimento (e  
também uma prática) que “desmancha o complexo de especificidades, de que se faz e  
refaz permanentemente o todo social, e dilui cada uma das ‘partes’ (diversas do  
político) em pseudopolítica”15. De maneira que ignora e despreza a especificidade  
dos demais elementos que compõem o real e hiperacentua apenas um deles, o político.  
11 VAISMAN; ALVES, Apresentação, op. cit. p. 18.  
12  
CHASIN, J. A “politicização” da totalidade: oposição e discurso econômico. In: ______. A miséria  
brasileira, op. cit., pp. 7-36. Este texto, de 1977, é marcante na trajetória chasiniana, inaugurando um  
debate que se manterá vivo (e em constante aprimoramento) durante toda a sua vida teórica.  
13 Há, ademais, as versões mais vulgarizadas do politicismo, que estreitam ainda mais os horizontes ao  
se limitarem ao aspecto político-institucional, o que leva ao extremo a banalização de tais procedimentos  
equívocos.  
14  
CHASIN, J. ¿Hasta cuando? A propósito das eleições de novembro. In: ______. A miséria brasileira,  
op. cit., pp. 121-42. Escrito originalmente como editorial para a Revista Nova Escrita Ensaio, n. 10,  
trata-se de outro texto marcante no tratamento do tema que aqui nos ocupa.  
15 Ib., p. 123.  
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Frise-se enfaticamente que politicizar é algo bastante diverso da ponderação  
acerca da inerência da política às grandes questões sociais no âmbito das sociedades  
classistas, dado que são questões públicas. Não se trata, portanto, de situar o debate  
no campo da res publica, mas de reduzir as questões sociais à política, que assim  
substitui a totalidade (sobrepondo-se inclusive à esfera que determina a própria  
política). Também se distingue do politizar, ato que subentende partir do todo e  
analisar vieses, posições e propostas a partir de uma visão global e que respeite a  
anatomia da sociedade civil. Na direção oposta, o politicismo despolitiza, “na exata  
medida em que desliga o político da raiz que o engendra e reproduz; numa palavra,  
na exata medida em que o desqualifica enquanto político real, enquanto dimensão de  
um todo, que só pelo todo possui especificidade, e do qual não faz sentido dizer que  
guarda autonomia”16. A afirmação de que a autonomia é apenas relativa não diminui a  
falta de sentido da segmentação dos dois campos, a não ser que queira tão somente  
anotar a não-mecanicidade da relação, ou seja, “sua determinação enquanto vínculo  
essencial, irremovível sob pena de desfiguração, que se objetiva num andamento  
constituinte profusamente mediado”17.  
Trata-se, operando uma comparação mais adequada, como fez Chasin no texto  
escrito a propósito das eleições de 1982, mais propriamente de um fenômeno  
semelhante ao economicismo18, que simplifica e reduz inapropriadamente as relações  
de determinação entre as esferas da atuação humana e por isso não chega a  
compreender nem mesmo o campo que é formalmente estufado. Uma análise  
politicista desentende a globalidade da realidade humana, incluindo aí a própria  
política, pois esta, artificialmente inflada e arbitrariamente privilegiada, é tomada numa  
dimensão e importância que não tem no plano real. Este fica, por sua vez, esvaziado,  
desenraizado e sem concretude, transformado numa “calda indiferenciada” que é dada  
e tomada como a política, mas que é a própria negação desta, por ser uma hipertrofia  
do político. Por tudo isso Chasin qualificava o politicismo como uma falsificação teórica  
e prática, de vez que,  
convertendo a totalidade estruturada e ordenada do real complexo  
repleto de mediações num bloco de matéria homogênea, além da  
falsificação intelectual praticada, o politicismo configura para a prática  
um objeto irreal, pois este resulta de bárbara amputação do ente  
concreto, que sofre a perda de suas dimensões sociais, ideológicas e  
16 CHASIN, A “politicização” da totalidade, op. cit., pp. 8-9.  
17 Ib.  
18 CHASIN, ¿Hasta cuando?, op. cit., p. 123.  
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especialmente de suas relações e fundamentos econômicos19.  
Uma política arrimada no politicismo tem como decorrência a perda de potência  
e eficácia da atuação política, campo tomado como autônomo, donde, perde  
sustentação real, cede ao voluntarismo e se condena à impotência. A autonomização  
e hiperacentuação do político levam, por conseguinte, ao esfacelamento de sua  
concretude e, pois, de sua força e capacidade de atuação, já que a ação é levada a  
cabo numa realidade que, falsificada pelo politicismo, não é efetiva, não considera as  
propriedades objetivas do objeto sobre o qual incorrem os atos.  
Chasin chamava a atenção para a gênese liberal deste procedimento desde  
1977. No artigo A “politicização” da totalidade: oposição e discurso econômico o autor  
criticou a oposição ao regime bonapartista então vigente no país pelo fato de estar  
subsumida à perspectiva governista e atuar de forma politicista, enquanto o sistema  
sabia muito bem resguardar de críticas teóricas e práticas sua espinha dorsal, a  
economia, sendo vitorioso em situar o debate exclusivamente no âmbito político-  
jurídico. Trata-se de um texto marcante na trajetória chasiniana, inaugurando um  
debate que se manterá vivo (e em constante aprimoramento) durante toda a sua vida  
teórica.  
Outro texto crucial para entender a questão do politicismo é ¿Hasta cuando?,  
escrito em 1982, em que Chasin retomou e desdobrou a análise do politicismo,  
salientando sua raiz liberal e, mais importante, mostrando que a burguesia brasileira  
é intrinsecamente politicista. Ele acrescentava então que o liberalismo atribui a  
economia à esfera da vida privada, tida como o ambiente dos interesses egoístas  
desbragados e conflituosos; o politicismo, exacerbando tal princípio, vincula a política,  
dilatada de maneira formal e artificial, ao universo da coisa pública, aquele dos debates  
e decisões relativas a toda a sociedade, do bem viver coletivo, da resolução dos  
conflitos. Donde, a hipervalorização do político e o relativo ou completo desprezo pelo  
econômico, ou pelo menos sua naturalização. Colado à realidade, demonstrou como  
esta burguesia procedeu no trânsito do bonapartismo à autorreforma do início dos  
anos 1980, comparando-o ao processo semelhante ocorrido em 1946. Sua análise  
concluiu que o politicismo teve importante papel para tornar a transição dos anos  
1980 uma autorreforma segura para o sistema, configurando-se num momento  
histórico mais estreito se comparado às possibilidades de meados dos anos 1940.  
19 Ib.  
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Este artigo é bastante significativo para o tratamento do tema: o filósofo em pauta  
pareceu ter entendido como definitiva sua forma de exposição, de vez que o citava  
textualmente em vários artigos sobre o Brasil escritos posteriormente, sempre que  
achava necessário retomar o assunto.  
Importante anotar que em 1984 Chasin publicou outro texto, intitulado  
Democracia política e emancipação humana, que dialogava diretamente com sua  
discussão sobre o Brasil20, ao tempo que expunha suas conquistas teóricas no tocante  
ao que chamava, então, de “definição negativa da política”. Assim, neste artigo já resta  
demonstrado o amplo saldo resultante das pesquisas que ele iniciara ainda no  
autoexílio em Moçambique21 sobre o pensamento marxiano, do aprofundamento dos  
estudos sobre ontologia e do papel que a política ocupa no interior da sociabilidade.  
Bem assim, o texto era uma herança direta das análises concretas da década de 1970  
sobre o regime bonapartista no Brasil e suas oposições.  
Na Nota do editor publicada na Revista Ensaio nº 14, de 1985, intitulada A  
esquerda e a nova república22, Chasin tratou novamente do politicismo e das  
(im)possibilidades democráticas no país, e aqui ele avança na determinação da  
incompletude de classe do capital, comparando-se as categorias sociais forjadas no  
Brasil com aquelas dos países clássicos e de via prussiana. Outra novidade importante  
do artigo é a determinação da atrofia do capital brasileiro, que ele mencionara (com  
esses termos) apenas de passagem no texto anterior; aqui ele a abraçava plenamente,  
como elemento importante da argumentação, para não mais abandoná-la. Voltava,  
ainda, à crítica dura do politicismo, aditando-lhe as do participacionismo (degeneração  
da participação) e do distributivismo, postura que ignorava a determinação do âmbito  
da produção sobre as demais esferas da economia e pleiteava soluções atinentes à  
circulação e ao consumo. Para isso, mais uma vez amparou-se em escritos de Marx,  
notadamente nos Grundrisse.23  
Nesse passo, já é possível indicar o caminho percorrido por Chasin em seus  
20  
O texto, escrito para apresentação no I Encontro Nacional de Filosofia da Anpof, inicia-se inclusive  
com a frase “Nada mais audível, no atual panorama brasileiro, do que o coro formado pela democracia”.  
Cf. CHASIN, J. Revista Ensaios Ad Hominem, n. 1 t. III: A determinação ontonegativa da politicidade.  
Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, pp. 91-100.  
21  
Para mais informações sobre a vida de Chasin, cf. a Biografia publicada na nova edição de O futuro  
ausente.  
22 CHASIN, J. A esquerda e a Nova República. In: ______. A miséria brasileira, op. cit., pp. 151-64.  
23  
Trata-se do escrito pertencente à Introdução dos Manuscritos de 1857-58, intitulado Produção,  
consumo, distribuição, troca (circulação). MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. pp.  
30-44.  
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Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade  
aspectos iniciais, ou seja, em um primeiro momento, amparado sobre as formulações  
de Marx a respeito dos vínculos entre o modo de produzir a vida e os âmbitos político-  
jurídicos e ideológicos, apresentados e configurados em vários momentos da obra do  
filósofo alemão, o autor em tela, sem cair em formulações deterministas ou  
mecanicistas, explorou analiticamente, em vários de seus artigos, as posturas  
politicistas de agentes sociais diversos. Em síntese, a partir de acontecimentos  
privilegiados que pontuaram a realidade nacional, isto é, manifestações concretas do  
fenômeno politicista, nosso teórico denunciou a ausência de proposições (sobretudo  
da oposição ao regime bonapartista) que levassem em consideração o peso  
fundamental do âmbito da produção da vida material na emergência e na respectiva  
solução de problemas atinentes ao complexo humano-societário como um todo.  
Já em um segundo momento em que, como dissemos, Chasin aprofundou seus  
estudos dos escritos de Marx, ele passou a identificar o estatuto teórico-prático no  
qual o pensamento marxiano deita suas raízes. Por essa via, o filósofo paulistano  
revelou que a politicidade nunca foi tratada de forma autônoma por Marx, ou seja, ela  
era examinada sempre no interior do processo de elucidação das formas de  
sociabilidade, isto é, a partir da determinação dada pela organização da interatividade  
humana nos contornos de modos opositivos de sociedade, da qual a política é a forma  
de expressão. Assim, a politicidade não se constituiu como tema autônomo e, muito  
menos, o problema principal. O interesse de Marx sempre foi, pelo menos a partir de  
meados de 1843, o desvendamento da anatomia da sociedade civil, o qual, todavia,  
foi e tem sido mal compreendido e entendido simplesmente como economicismo.  
Em outros termos ainda, Marx se orientou sempre pela busca do esclarecimento  
dos processos constitutivos da mundanidade humana. De sua parte, desde o momento  
em que constatou que a pedra de toque da reflexão marxiana diz respeito à  
problemática da autoconstrução humana, tanto no que se refere à individualidade  
quanto à concretização do mundo histórico-social, Chasin passou a extrair e configurar  
o que denominou de determinação ontonegativa da politicidade. Esta se apresenta  
como uma das descobertas filosóficas mais importantes e originais do projeto de  
retorno a Marx proposto por Chasin, tal como entendida a partir dessa trilha de  
investigação.  
Entre as questões cujas devidas respostas só poderiam ser encontradas por  
meio do estudo da obra marxiana estão: os motivos e as explicações para os dilemas  
e entraves que marcaram o cotidiano daqueles anos; as marchas e contramarchas das  
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tendências em pugna; os desfechos relativos à transição “pelo alto”; os processos  
eleitorais em curso; as políticas econômicas defendidas e adotadas, exitosas ou não;  
e, sobretudo, os entraves e controvérsias para uma efetiva presença das massas  
trabalhadoras no cenário político-social, bem como as farsas e tragédias que envolvem  
tal conjunto problemático.  
O fato é que o amparo que nosso autor encontrou na obra de Marx não  
significou um refúgio cômodo de ordem acadêmica entre os livros da biblioteca, nem  
muito menos um dar de costas ao que fervilhava na realidade do dia a dia, muito ao  
contrário. Impulsionado pelos dilemas que pontuaram o fim do século passado, tanto  
no Brasil quanto mundo afora, dedicou-se a redescobrir Marx, cujo legado passava por  
péssimos momentos, em decorrência do predomínio do viés gnosiológico e/ou  
politicista na análise dos escritos do filósofo alemão ou, no pior dos casos, de sua  
degradação pelo marxismo vulgar.  
Em síntese, a devida compreensão dos eventos que marcaram a cena brasileira  
e mundial das décadas finais do século XX demandou a leitura e trabalho direto junto  
aos textos de Marx, a partir dos quais surgiram descobertas fundamentais, entre elas,  
o caráter da politicidade e, principalmente, do reconhecimento da existência na obra  
de Marx de um estatuto de ordem ontológica. Portanto, esse caminho até Marx  
conheceu mão dupla, pois é inegável que, no mister de descortinar o devido  
esclarecimento dos acontecimentos do dia, tendo como base o pensamento de Marx,  
Chasin acabou por descobrir nos escritos do filósofo alemão aspectos que até então  
não haviam sido propriamente esclarecidos por seus intérpretes.  
O primeiro passo que ensejou tais descobertas se deu quando Chasin e seus  
orientandos e colaboradores se debruçaram sobre os artigos da Gazeta Renana, a tese  
doutoral marxiana e, principalmente os manuscritos de Kreuznach. Nesses últimos, ao  
empreender o desvendamento crítico dos pressupostos teóricos do sistema hegeliano,  
Marx se deparou com o lócus propício para o desenvolvimento de sua investigação: a  
sociedade civil, ou seja, a sociabilidade, o âmbito onde se desenrola a produção da  
vida efetiva. Ademais, a partir dessa descoberta, Marx pôde compreender o motivo  
que levou a posição especulativa a uma inversão das determinabilidades. Portanto, a  
partir desse momento, a sociabilidade passou a ser reconhecida como fundamento do  
ser dos homens, e a politicidade, momento acessório e incidental do processo de  
autoconstrução humana, tanto no polo do gênero quanto no do indivíduo.  
A concepção ontonegativa da politicidade refere-se ao fato de que esta deixa  
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de ser concebida como fundamento responsável pela articulação e organização da  
sociabilidade, pressuposto básico da determinação ontopositiva, que compreende a  
politicidade na condição de possibilidade da própria existência social, ou seja, sem a  
armação política seria, de acordo com essa abordagem, impraticável vicejar a vida  
social, ao passo que na primeira essa condição é preenchida pelo “modo de  
cooperação”24, como base insuprimível das formas específicas de sociabilidade. Na  
sociabilidade do capital, por exemplo, que se caracteriza pela excludência e indiferença  
recíproca entre os indivíduos, o âmbito da politicidade surge como sucedâneo da  
natureza genérica própria ao ser social, visto se encontrar cindida e estranhada, em  
decorrência do modo estranhado como se realiza a própria interatividade.  
Não é o caso, contudo, de retomarmos aqui todos os momentos em que a  
problemática em tela transparece nos textos chasinianos. No atual número da revista  
Verinotio há vários artigos que tomam a questão como tema e reconstituem os traços  
fundamentais da contribuição deixada por ele. No presente caso, restringimo-nos a  
sublinhar que a identificação da concepção ontonegativa da politicidade nunca foi o  
ponto de partida, um parti pris, que teria enformado a sua visão nas primeiras análises  
sobre o politicismo, mas sim um resultado, uma conquista passível de ser constatada  
a partir da análise da sequência dos seus escritos ao longo dos anos.  
Assim, a título de exemplificação dos passos trilhados pelo autor, nas tentativas  
de aproximação teórica do problema, podem ser citadas as seguintes expressões  
cunhadas por ele: “definição negativa da política”, “concepção negativa da  
politicidade” e, finalmente, “determinação ontonegativa da politicidade”.  
Evidentemente, não se trata de mera variação denominativa, mas de expressões que  
refletem aquisições teóricas gradativas que foram formuladas a partir da constatação  
do caráter negativo das tarefas e procedimentos políticos constitutivos de uma  
autêntica perspectiva de esquerda25, até à compreensão efetiva da sua natureza  
ontonegativa, ou seja, à compreensão que “a política não é um atributo necessário do  
ser social, mas contingente no seu processo de autoentificação”26.  
A configuração mais acabada desse percurso se encontra no livro já citado Marx:  
24  
CHASIN, J. Abertura Ad hominem: rota e prospectiva de um projeto marxista. Revista Ensaios Ad  
Hominem, n. 1, t. I Marxismo. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 1999, p. 58.  
25 A análise de Marx sobre a Comuna de Paris (incluídos os materiais preparatórios) foi de fundamental  
importância para a aclaração do sentido das tais “tarefas negativas”. Cf. MARX, K. A guerra civil na  
França. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.  
26 CHASIN, J. Abertura: Ad hominem rota e prospectiva de um projeto marxista, op. cit p. 28.  
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estatuto ontológico e resolução metodológica. Chasin, contrariando a tese consagrada  
do “tríplice amálgama”, modo que se tornou usual, entre os intérpretes de Marx, para  
explicar as origens do seu pensamento, afirmava que a instauração do pensamento  
marxiano se deu a partir da crítica ontológica dos três eventos teóricos da máxima  
importância em seu tempo. Não por acaso a primeira crítica se voltou “sobre a matéria  
política”, o que permitiu “a conquista precoce de uma dimensão fundamental ao  
pensamento marxiano”27. Segundo Chasin ainda,  
tratando-se de uma configuração de natureza ontológica, o propósito  
dessa teoria é identificar o caráter da política, esclarecer sua origem e  
configurar sua peculiaridade na constelação dos predicados do ser  
social. Donde, é ontonegativa precisamente porque exclui o atributo  
da política da essência do ser social, só o admitindo como extrínseco  
e contingente ao mesmo, isto é, na condição de historicamente  
circunstancial28.  
O tratamento ontológico da questão permitiu ao autor assentar as bases  
teóricas necessárias para legitimar a postura crítica que desenvolvia com desvelo  
desde a década de 1970, quando constatou a inépcia da oposição tanto a consentida  
quanto a clandestina ao bonapartismo vigente no país, em grande medida, derivada  
da ótica politicista adotada. Tal posição se deu em detrimento das questões que  
afetavam a cotidianidade, sobretudo da classe trabalhadora, cujas necessidades  
básicas eram reprimidas pelo arrocho salarial, sem mencionar, é óbvio, as medidas  
repressivas sobre a organização sindical e partidária. Os artigos Conquistar a  
democracia pela base29 e As máquinas param, germina a democracia!30 (1980), são  
testemunhos eloquentes da dedicação do autor às questões que estavam presentes  
na ordem do dia, nas quais o politicismo era a moeda de troca.  
Se é, portanto, correto afirmar que o politicismo nunca deixou de ser um dos  
alvos prediletos da crítica chasiniana, sobretudo no contexto das análises voltadas à  
realidade brasileira, também é verdade que a sua abordagem ganhou uma nova  
dimensão e profundidade no momento em que a busca se voltou à decifração do status  
que a categoria da politicidade possui frente à própria categoria da sociabilidade e,  
sobretudo, quando sua atenção se dirigiu para a dimensão ontoprática da  
mundanidade humana. Em outros termos, com a publicação do Estatuto se chega à  
27 CHASIN, Marx: estatuto ontológico, op. cit., p. 63.  
28 Ib.  
29 CHASIN, J. Conquistar a democracia pela base. In: ______. A miséria brasileira, op. cit., pp. 59-78.  
30  
CHASIN, J. As máquinas param, germina a democracia! In: ______. A miséria brasileira, op. cit., pp.  
79-108.  
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Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade  
explicitação do arrimo categorial que sustenta o pensamento marxiano, no qual a  
categoria da politicidade emerge como atributo contingente e não necessário, e de  
forma ainda mais ressaltada quando o foco da análise passa a ser a problemática  
crucial da emancipação humana.  
Já nesse estágio do desenvolvimento intelectual do autor o tema do politicismo  
apareceu com destaque, inclusive em subtítulos, também no texto que escrevia quando  
faleceu repentinamente (Ad hominem: rota e prospectiva de um projeto marxista, de  
1999), artigo denso e que trata de diversos aspectos da realidade internacional e  
nacional, bem como de sua reflexão. Sobre todo o seu percurso anterior de pesquisas,  
Chasin apontava aqui os fundamentos do politicismo e seu distanciamento, por  
exemplo, em relação ao estatuto ontológico marxiano. Afirmava que o politicismo é  
uma reação ao economicismo, que critica o mecanicismo deste sem, no entanto, partir  
de uma adequada tematização da sociabilidade e de seus processos. Jogando fora o  
bebê junto com a água suja do banho, rejeita com o economicismo a primordialidade  
exercida pela esfera produtiva, qual seja, aquela responsável pela produção material  
dos meios necessários à existência humana, e reduz o campo econômico a um “fator”  
cuja determinação é mais ou menos imponderável. Daí que a prioridade ontológica e  
o caráter matrizador da sociabilidade sejam atribuídos à política, promovendo-se um  
desnaturamento ontológico da atividade humana vital. Neste artigo, vemos claramente  
como o movimento de retroalimentação possibilita a Chasin fazer a crítica ao  
politicismo valendo-se do modo marxiano de proceder na sua analítica. Pôde, dessa  
maneira, explicitar de forma mais bem acabada e com determinações mais precisas –  
embora o texto não tenha recebido a sua sempre cuidadosa redação final, que o  
habilitaria à publicação os equívocos que já apontava no politicismo desde os  
primórdios dos seus escritos, agora cotejando-os com os procedimentos marxianos.  
Veja-se, a título de exemplo, o seguinte excerto:  
O politicismo transgride os lineamentos ontológicos marxianos em  
dois pontos fundamentais: 1) reduz o complexo fundante a fator,  
empobrece e estreita sua manifestação, irradiação e responsabilidade  
pelo conjunto da formação; 2) desordena a lógica determinativa, não  
mais se tem a linha consistente de determinação, as relações  
determinativas passam a ser voláteis, arbitrárias ou fortuitas,  
tendendo sempre a predominar, em última análise, a determinação da  
política como determinação decisiva.31  
31 Ib., pp. 38-9.  
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Neste seu último texto Chasin também retornou ao tema da história do  
politicismo, apontando seu atrelamento ao nascimento da política na pré-história da  
humanidade, quer dizer, naquela parte de sua história em que esta se viu às voltas  
com questões relativas à sobrevivência, aos problemas materiais; a propriedade  
privada e as desigualdades sociais daí advindas fraturam irremediavelmente a  
sociedade, impedindo que se dedique autonomamente à resolução dos seus próprios  
problemas. Esta sociabilidade cindida e imperfeita está, na prática, impedida de se  
autodeterminar, surgindo daí o estado e a política como forças sociais usurpadas e  
voltadas contra a própria sociedade. O politicismo germina diretamente da prática do  
político e de sua “pretensão ilusória de autodeterminação como necessidade  
decorrente da sociabilidade imperfeita, substância ainda não realizada enquanto tal,  
ou seja, ainda incapaz de autonomia como complexo estruturado”, do fato, em suma,  
de que a política é a “autodeterminação na forma da alienação”32. O entendimento  
político toma a sociabilidade como uma mera forma de organização, como algo  
insubstancial, contrapondo direta e dicotomicamente indivíduo e sociedade, como se  
fossem distintos e por vezes excludentes, quando, na verdade, são duas faces do  
mesmo ser social.  
Neste texto nosso teórico expõe explicitamente a intrinsecidade do politicismo  
à ordem do capital, que toma sua base econômica como natural, imutável, algo como  
um cenário pronto e acabado sobre o qual se daria a atividade humana. Os seres  
humanos seriam ativos efetivamente apenas no tocante à ordem política, esta sim vista  
como crucial, responsável por conformar a coexistência e realizar a justiça,  
direcionando ou corrigindo o campo econômico a partir da negociação e correlação  
de forças. Trata-se, por via de consequência, de componente essencial da lógica do  
capital.  
Se o politicismo é inerente ao capital, é preciso chamar a atenção para o fato  
de que alcançou o auge no século XX, alavancado por diversos processos. Seu  
impulsionamento se deu após a maturação dos resultados da Revolução de 1917, que  
acabou ocorrendo inobstante a inexistência de condições objetivas e cuja vitória se  
acreditou que poderia advir da atuação persistente dos valorosos militantes. Emergiu,  
pois, em grande medida, devido à inviabilidade das transições intentadas no Leste  
europeu, e nesse mister foi inicialmente empenhado em nome de Marx. Em seguida,  
32 Ib., p. 38.  
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voltou-se contra o próprio Marx, dados os descaminhos que levaram à falsidade da  
construção soviética, ou seja, a partir da criação de uma sociabilidade sob a regência  
de um capital coletivo/não-social no Leste Europeu, na qual o mais-valor era extraído  
politicamente, e a classe trabalhadora, explorada em seu próprio nome. Dessa forma,  
a usina do falso se ampliou do Ocidente ao Oriente, a fim de sustentar, por exemplo,  
o stalinismo, a ideologia da falência do socialismo33. Assim, afirmava Chasin, o  
politicismo foi crescendo até que submeteu todos os personagens políticos atuantes  
teórica ou praticamente naquele momento. Tornava-se, então, importante descobrir  
suas categorias e variantes específicas, bem como a sua gênese, as condições  
históricas de que emanava, que pareciam dar razão ao capital e favoreciam a “fantasia  
conformista que se impôs no presente”34.  
Por fim, frise-se que não há, por parte do autor, uma ênfase demasiada sobre  
um traço o politicismo tomado isoladamente ou qualquer espécie de abordagem  
reducionista. Como veremos mais à frente, a prática politicista é identificada como tal  
a partir dos quadros concretos, no interior dos quais ela se manifesta e, na sequência,  
devidamente compreendida com apoio nos elementos constitutivos das demandas e  
perspectivas de classe que as norteiam, cuja explicitação ocorre diante de impasses  
de toda ordem postos pela realidade. Longe de se constituir numa análise abstrata  
que opera a partir de “tipos” previamente estabelecidos em um gradiente qualquer,  
Chasin se valeu de referenciais concretos, buscando alcançar o caráter objetivo do  
fenômeno e, desse modo, reproduzi-lo sob a forma de conceito, rejeitando captá-lo  
acriticamente apenas como um fenômeno político, o que significaria autonomizá-lo e,  
portanto, privá-lo de explicação. Em suma, embora o objeto de análise seja o  
politicismo, isso não significa que ele deveria ser abordado ao modo politicista.  
Seguindo as pegadas de Marx, Chasin se recusava a utilizar sistemas de  
classificação a priori, pois tal emprego seria, na melhor das hipóteses, um arrolamento  
de características comuns a vários tipos de prática, e não a distinção concreta existente  
entre elas. Nesse sentido é que buscamos fazer, nas próximas linhas, da forma mais  
profunda possível nos limites de um artigo desse porte, a reconstrução dos escritos  
chasinianos, de modo a esclarecer devidamente o procedimento adotado por ele,  
33 Cf. CHASIN, J. Excertos sobre revolução, individuação e emancipação humana. Verinotio Revista on-  
line de Filosofia  
e
Ciências Humanas, v. 23 n. 1, 2017. Disponível em:  
<https://verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/article/view/301>, acessado em 15 dez. 2022.  
34 CHASIN, Ad Hominem: rota e prospectiva, op. cit., pp. 38-9.  
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sempre com o intuito de demonstrar como a categoria da politicidade esteve presente  
nas suas análises sobre a realidade brasileira.  
II - Incompletude de classes e politicismo na via colonial de objetivação do  
capitalismo  
Chasin chamou o caminho particular de objetivação do capitalismo percorrido  
pelo Brasil de via colonial. Nos seus aspectos mais gerais, tratou-se da instituição da  
economia e da sociedade burguesas na ausência de um processo revolucionário.  
Marcada pela grande propriedade rural, de origem colonial, efetivou um processo de  
industrialização hipertardio, subordinado aos interesses hegemônicos das burguesias  
dos países centrais, que teve no estado um esteio fundamental e que nunca se  
completou totalmente, conformando um capital atrófico, incompleto e incompletável.  
Sem revolução burguesa, consubstanciou-se uma dissociação entre evolução nacional  
e progresso social, de forma que a sociedade se modernizou sem que sua classe  
dominante desempenhasse o papel de representante universal dos interesses. Tal  
“modernização” se deu por meio de reformas instituídas pelo alto e pela consequente  
exclusão das classes sociais subordinadas. Voltada integralmente à satisfação dos  
próprios interesses mesquinhos, subserviente aos interesses externos, a burguesia  
dominou as classes subordinadas selvagem ou autocraticamente, conforme os riscos  
existentes nas circunstâncias dadas, e tratou de excluí-las dos processos sociais  
significativos, sejam eles econômicos, sociais, políticos ou culturais. Daí a importância  
do debate em torno do tema da democracia.  
Uma análise concreta da história brasileira patenteia que sua burguesia  
dominante sempre demonstrou ojeriza pela democracia. E, ressalte-se, não se tratava  
de mera escolha: sendo geneticamente incapaz de constituir um capitalismo  
autônomo, despojada de condições de realizar um projeto para o país, e acovardada  
diante de demandas populares, punha-se desde logo contra os interesses das massas,  
dentre os quais despontava a reordenação da produção em direção ao atendimento  
de suas necessidades, isto é, o fim da política econômica baseada na superexploração  
do trabalho e a inclusão das massas no mercado de consumo de bens populares.  
É, portanto, a realidade efetiva de uma dominação material limitada,  
subordinada, determinada desde o exterior, incompleta e incompletável, que explica a  
baixa intensidade do impulso democrático das frações burguesas de via colonial e sua  
alta aderência às formas de dominação autocráticas. Da exclusão econômico-social se  
conduz à exclusão da política, pelo monopólio do poder, por um cabo de alta tensão.  
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Impedida de romper os fios da sua subserviência ao(s) capital(is) externos, a burguesia  
autóctone era obrigada a governar autocraticamente, em permanente conflito aberto  
com as classes sociais abaixo dela, ao tempo que de boa vontade conciliava ou mesmo  
se subordinava com os vetores sociais iguais ou superiores a ela própria. De tal forma  
que, se se leva em conta que estado de direito e democracia não são idênticos, a  
democracia é notável no Brasil pela sua ausência, mesmo nos limites liberais, durante  
a quase totalidade de sua história. Uma contradição nos termos durante o período  
monárquico-escravagista; uma “real ditadura das oligarquias rurais”35, ocultada sob a  
fachada liberal-democrática da “política dos governadores”, nos primeiros 40 anos da  
república; natimorta em face da ascensão do bonapartismo de Vargas ainda nos anos  
1930; acochada, ao fim do Estado Novo, por um militar na presidência que reprimiu  
fortemente a sociedade em geral e os comunistas em particular, no espírito da guerra  
fria; bastante incipiente, frágil, assustadiça e fugaz no curto período entre o segundo  
governo Vargas e o golpe de 1964. Período curtíssimo e instável que viu vários de  
seus presidentes passarem por suicídio, tentativas de golpe e contragolpes, renúncia,  
golpes brancos e, finalmente, destituição à força, com a imersão do país na longa noite  
bonapartista de 1964.  
Incompatibilizada com a democracia liberal, à qual de resto não tinha nenhum  
apreço, restou à burguesia íncola impor sua dominação de forma autocrática, que  
quando muito consegue dar ares civilizatórios a seu conservantismo, de forma que  
exerceu seu domínio apelando ao bonapartismo ou, no máximo, à institucionalização  
de sua dominação autocrática, negação da própria democracia36. Dito de outra forma:  
a soberania do capital atrófico oscila pendularmente entre o bonapartismo a  
“truculência de classe manifesta”, claramente violenta, expressão armada do  
politicismo, forma de dominação de que a burguesia se vale “em tempos de guerra” –  
e a “imposição de classe velada ou semivelada”, quer dizer, a autocracia  
institucionalizada, expressão jurídica do politicismo, forma de dominação possível “em  
tempos de paz”). Ambos, bonapartismo e autocracia institucionalizada, eram “formas  
(no plural) de poder político de uma mesma forma de capital, de um mesmo modo de  
ser capitalista, que o politicismo sintetiza” e sua alternância era a outra face da  
35 CHASIN, Conquistar a democracia pela base, op. cit., p. 60.  
36  
CHASIN, J. A esquerda e a Nova República. In: ______. A miséria brasileira, op. cit., p. 153; ______.  
¿Hasta cuando?, op. cit., p. 132.  
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sucessão contínua de momentos de paz e de guerra na luta de classes 37.  
As classes dominantes brasileiras, sufocadas pelos estreitos espaços de atuação  
possibilitados pela via colonial, encontraram uma forma de se manter em segurança  
diante de críticas e pressões transformadoras: o politicismo. Em seu recurso a este, os  
representantes do conservantismo civilizado promoviam a dissociação entre estrutura  
econômico-social e instituição política; daí, invertendo a determinação real, atribuíam  
a esta última a sobredeterminação em relação à primeira e, levando o procedimento  
ao extremo, resumiam a totalidade da existência social ao político, que também era o  
parâmetro.  
O politicismo ingênito manifestação, no plano político, de sua incompletude  
geral de classe da burguesia brasileira era devido à sua irrealização econômica, de  
vez que não foi capaz de realizar integralmente suas tarefas históricas, nem mesmo as  
econômicas. Assim, Chasin trazia à tona a determinação material do caráter politicista  
e politicizante da burguesia brasileira, deixando claro que não se tratava de uma  
questão moral ou mesmo de uma escolha racional. Era sua forma de ser e ir sendo no  
processo de objetivação pela via colonial, no qual ela própria foi se constituindo  
enquanto classe, nos embates internos com outras frações dominantes e com as  
classes dominadas e na articulação subordinada com os capitais estrangeiros. Estas as  
raízes histórico-estruturais que a enformam e enquadram suas possibilidades e  
delimitam seus horizontes.  
De fato, desde os primeiros discursos dos presidentes-ditadores, aventava-se a  
possibilidade de aprimoramentos, institucionalizações e aberturas no campo político –  
reservado ao governo o apanágio de decidir quando e com que modelagem,  
evidentemente. Nenhum debate do tipo ocorreu no tocante ao tema econômico,  
problemática básica da chamada questão nacional. Assim, mesmo quando se discutiu  
com maior ou menor ênfase e amplitude a possibilidade de novos arranjos políticos,  
“a questão econômica ficou resguardada, inatingível e preservada no perfil que o poder  
lhe conferiu. Foi a vitória maior, compreensivelmente a mais acarinhada, do  
situacionismo. Foi a derrota maior da oposição, sintomaticamente a que menos a  
sensibilizou.”38  
Limitadas suas possibilidades históricas, impossibilitada de atuar  
37 Ib., pp. 127-8.  
38 Ib.  
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revolucionariamente, a burguesia brasileira encontrou no politicismo uma alternativa e  
uma proteção. De fato, no contexto do qual foi produto, o politicismo tinha o papel de  
resguardar antecipadamente o estreito campo de atuação seguro para a burguesia,  
demarcando as perspectivas tacanhas no interior das quais as disputas poderiam se  
dar primordialmente, o campo político e, ainda, a esfera na qual estas não seriam  
nunca aceitas: a econômica, justamente aquela que poderia provocar mudanças mais  
substanciais e ameaçar sua dominação. Mas, lembre-se, se os debates no âmbito  
político apareciam como alternativa às transformações de porte estrutural, as formas  
de dominação não poderiam ser escolhidas a bel-prazer pelas classes soberanas: já  
vimos que da estreiteza econômica advém uma estreiteza política.  
Em suma, recorrer ao politicismo era manter resguardada a questão central para  
a dominação burguesa, qual seja, a econômica, cujo debate enquanto assunto público  
era denegado. Era, pois, proteger preventivamente as acanhadas possibilidades  
econômicas e políticas dos proprietários: dado que “efetivamente subtrai o  
questionamento e a contestação à sua fórmula econômica e aparentemente expõe o  
político a debate e a ‘aperfeiçoamento’”, “atua como freio antecipado, que busca  
desarmar previamente qualquer tentativa de rompimento deste espaço estrangulado  
e amesquinhado”39. Frise-se: o politicismo era mais que um recurso ideológico, era  
uma consequência necessária da dominação de classe da burguesia cujo horizonte  
máximo é o liberalismo conservador expressado no conservantismo civilizado. Tanto  
este quanto o bonapartismo com que se revezava eram formas diferentes do mesmo  
poder autocrático, os quais tinham o politicismo como essência.  
Debatendo com os que preconizavam a democracia como um valor universal,  
Chasin se contrapunha a esta noção geral que, ainda que verdadeira, não só não  
captava a possibilidade efetiva da democracia e sua forma particular em cada formação  
social como deixava intocada, pela generalidade, a questão de como resolver o grave  
problema concreto de saber quais são os agentes, fatores e situações que impulsionam  
a democracia em cada realidade específica, que poderiam ser diferentes daqueles dos  
países clássicos, bem como quem são seus inimigos. De acordo com o filósofo  
paulistano, nos países de via colonial, estava cada vez mais evidenciado que “até  
mesmo os mais formais dos valores da democracia política são devidos  
fundamentalmente, quando em forma minimamente real e estável, à perspectiva e à  
39 Ib.  
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ação do trabalho”40. Sem a resposta a tais indagações, “corre-se o risco de reduzir a  
luta pela democracia, pelo recurso sempre arbitrário da dilatação das ‘autonomias  
relativas’, a um pobre ato de vontade, e a resvalar do pretendido caráter estratégico  
para uma estiolada taticidade politicista”41.  
Vejamos as consequências para a classe representante da perspectiva do  
trabalho. Um capital incompleto e incompletável e uma burguesia que não realiza suas  
tarefas são determinantes para a conformação dos trabalhadores e da sua  
representação teórico-político-ideológica, isto é, a esquerda, que se vê diante de  
desafios ainda maiores. De fato, em países como França e Inglaterra, a burguesia  
esteve à testa de uma revolução que varreu o “historicamente velho” e instituiu um  
novo sistema social à sua imagem e semelhança, formado pela economia capitalista e  
pela sociedade burguesa. As massas participaram ativamente de tal processo  
revolucionário, de maneira que puderam introduzir algumas de suas demandas  
específicas, acolhidas pela burguesia em ascensão no rol dos interesses universais.  
Quando o avanço das lutas de classes opôs visceralmente as duas principais categorias  
representantes do novo sistema e a burguesia renegou as revoluções, a classe  
trabalhadora emergiu social e política, prática e teoricamente, em solo já  
revolucionado. Quer dizer, a burguesia havia cumprido suas tarefas históricas, que na  
ocasião tinham caráter progressista, e foi neste mundo já revolucionado que a  
perspectiva do trabalho se emancipou e contra o qual passou a pelejar. Dito em poucas  
palavras, nos países clássicos os agentes e representantes da perspectiva do trabalho  
entabularam uma crítica prática e teórica do mundo constituído a partir da atuação  
dos proprietários, e “a revolução do trabalho nasce como o melhor dos produtos da  
revolução do capital. Os trabalhadores retomam e elevam as bandeiras decaídas das  
mãos dos proprietários”, sua própria obra “começa por onde aquela termina”42.  
Já os países de via colonial desconheceram processos revolucionários e,  
portanto, “a crítica prática e teórica dos trabalhadores (...) não principiou por onde os  
proprietários haviam concluído”, porque “não podiam terminar nunca”43. Isso significa  
que as tarefas da classe trabalhadora são muito mais complexas e abrangentes,  
porque, nesse cenário, o que foi outrora revolucionário aparece como ainda  
40 CHASIN, As máquinas param..., op. cit., p. 104.  
41 Ib.  
42 CHASIN, A esquerda e a Nova República, op. cit., p. 158.  
43 Ib., p. 159.  
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revolucionário, mas na verdade já foi ultrapassado historicamente e não pode ser  
repetido nos mesmos moldes, de forma que os problemas exigem soluções novas e  
inovadoras. A incompletude do capital atrófico reflete-se, assim, na própria  
constituição, na configuração e nas possibilidades que se apresentam aos  
trabalhadores, cujos limites e possibilidades são historicamente determinados (nunca  
mecanicamente, enfatize-se). Da mesma maneira, é exigido dos representantes da  
perspectiva do trabalho ainda mais capacidade de criticar (teórica e praticamente) o  
mundo existente, dada a sua não contemporaneidade  
Desnorteada diante de tal cenário, a esquerda tradicional brasileira pôs-se num  
dilema falacioso: ou seria preciso e possível! que ela completasse as tarefas  
burguesas históricas, por meio da realização, ainda que tardia, de uma revolução  
democrático-burguesa; ou ela deveria se dedicar à realização da própria revolução  
proletária, que, no entanto, era então apenas uma possibilidade abstrata num país  
atrasado e subalterno e, sobretudo, desprovido de movimentos impulsionados para  
essa direção. No primeiro caso, desentendeu seu tempo, seu lócus social e seu papel  
histórico e, seduzida pelo canto do cisne de um “sistema capitalista internacional  
formado pela justaposição de parcelas similares”, passou a pleitear um projeto de  
capitalismo nacional que “supunha, em última análise, a reprodução do padrão integral  
do capital desenvolvido, autonomizado pela ruptura com o capital metropolitano, de  
modo que seria alcançado o traçado clássico do sistema do capital, abstraídas  
distinções quantitativas”44.  
Em poucas palavras, a esquerda se dividia entre o falso dilema de ou completar  
as tarefas burguesas, que não eram e jamais poderiam ser as da perspectiva do  
trabalho, ou integralizar as tarefas próprias dos trabalhadores, a revolução socialista,  
para a qual faltavam as condições tanto subjetivas quanto objetivas e neste debate  
gastou grande parte de sua capacidade teórica. Cindida em torno dessas  
possibilidades inalcançáveis e sem atinar para as características da realidade nacional,  
a esquerda, em todas as suas correntes políticas, jamais se interrogou sobre a questão  
decisiva das condições de possibilidade da democracia no país. Mas a situação  
piorava, porque, ao longo do tempo, a quimera da revolução socialista transformou-  
se em mera declaração voluntarista-humanista-fraternal, ao tempo que a intenção de  
44 CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise na esquerda. In: ______. A miséria brasileira, op. cit., p. 214-  
5.  
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efetivar uma revolução democrático-burguesa se rebaixou cada vez mais até se tornar  
apenas reboquismo servil da burguesia supostamente nacional. Desta forma, a  
esquerda foi encapsulada pelo politicismo e subsumida teórica e ideologicamente,  
cortejando os ideários neoliberais internacionais e pautando-se pelas análises e pelas  
propostas do conservantismo civilizado.  
De fato, segundo Chasin, desde o golpe de 1964 portanto, depois dos  
debates sobre os caminhos da formação nacional realizados no início daquela década  
, a oposição entendeu a totalidade do real de forma politicizadora, reduzindo a esta  
instância todas as demais e propondo discussões apenas de acordo com tal  
reducionismo. Com isso, demonstrava que as concepções que embasavam os seus  
diagnósticos e direcionam a sua prática estavam sendo pautadas pela perspectiva do  
sistema. Esta atinava muito bem para as diferenças entre o discurso econômico e o  
discurso político, e por isso abraçava a tática de propor, de forma despolitizada,  
controlada e não ameaçadora, o debate público, a crítica e a busca de aperfeiçoamento  
ou reformulação sobre o âmbito político, ao tempo que remetia o econômico para o  
exílio das minúcias e tecnicismos dos iniciados tudo isso enquanto punha em prática  
um projeto de caráter totalizante. Tratava-se, ressalvava Chasin, de uma das maiores  
e mais sutis vitórias do regime escolher o campo de debates, pois, “esquivando-se à  
controvérsia sobre a questão econômica, a situação torna vitoriosa a sua política, ao  
passo que a oposição, brandindo dominantemente o ‘político’, colhe a derrota em  
todas as ‘instâncias’”45. O filósofo paulistano aduzia que, para multiplicar os ciclos de  
seu circuito de segurança, o regime ainda podia recorrer a todo o instrumental da  
excepcionalidade, ou seja, ao bonapartismo explícito, com a sístole se sucedendo à  
diástole num ciclo infinito.  
A situação das esquerdas no Brasil era, portanto, bastante crítica durante boa  
parte da vigência do bonapartismo com exceções apenas a individualidades isoladas.  
Chasin reconhecia que, na longa trajetória, da esquerda no país, “à qual não se nega  
valor de resistência e até momentos de pesado sacrifício, mas essencialmente tecida  
de equívocos”, houve “mártires e sacrificados, ofendidos e humilhados”, mas salientava  
a necessidade de ultrapassar a mitificação e, sem negar sua abnegação e dedicação,  
mostrar que foram verdadeiros “heróis no equívoco e vítimas de todas as regressões”,  
45 CHASIN, A “politicização” da totalidade, op. cit., pp. 7-8.  
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Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade  
aos quais a maior e mais digna homenagem “é a coragem de recomeçar”46.  
Obviamente, tal esquerda reboquista, etapista, determinista e estatista não  
ficou isenta a muitas e, em certa medida, corretas críticas. Foi como oposição a ela,  
que contribuiu para a desorientação dos trabalhadores no enfrentamento ao golpe e  
à ditadura que este inaugurou, que no final dos anos 1970 surgiu uma “nova  
esquerda”, assumidamente não marxista, produto das greves operárias do ABC  
paulista. Entretanto, aquilo que poderia ser um renascimento da esquerda terminou  
atestando a sua morte. Vejamos como isto se deu.  
Antes de o dito “milagre” ter se inviabilizado consigo mesmo, durante todo o  
intervalo entre 1968 e 1973, as diversas frações das classes dominantes, tanto as  
nacionais quanto as estrangeiras, dedicaram-se a cuidar dos negócios, tiveram lucros  
exorbitantes e em momento nenhum expuseram críticas ao bonapartismo vigente, pelo  
contrário, julgavam que a gestão bonapartista do estado era natural e necessária ao  
país naquele momento. Assim, no auge do período repressivo, as classes dominantes  
avaliavam apenas o quanto o regime ditatorial lhes prestava bons serviços. Afinal, os  
generais e a tecnocracia apareciam como entidades neutras, acima das classes e suas  
contradições, quando, na verdade, impunham pela repressão um sistema altamente  
danoso para a economia nacional e para os trabalhadores em particular.  
Extinto o curto pavio do ciclo econômico alcunhado de “milagre”, ao tempo que  
se buscava criar um novo período de crescimento, apelou-se a uma unificação das  
classes e frações de classes por meio da declaração de sacralidade do novíssimo  
mandamento: “aperfeiçoai as instituições!”, e aqui cumpriu papel primordial e inovador  
o recurso ao ingente e muito útil politicismo. Assim, em consonância com seus  
propósitos alegados desde o início, a ditadura julgou conveniente trocar politicamente  
de pele, “encaminhar o desenho de outra forma de sustentar a mesma dominação”,  
efetivando uma passagem politicista do bonapartismo à autocracia institucionalizada47.  
Em suma, enquanto, sob os mais diversos argumentos, o que era essencial na  
política econômica sempre foi tido e afirmado como hermeticamente fechado, as  
classes dominantes declaradamente afirmaram a abertura do regime político-  
institucional para “aperfeiçoamento”. Em face dos maus augúrios para os seus ganhos,  
decorrentes do fim de um ciclo e da angústia pela inexistência de um novo, frações  
46 CHASIN, ¿Hasta cuando?, op. cit., p. 132; A esquerda e a Nova República, op. cit., p. 160.  
47 CHASIN, ¿Hasta cuando?, op. cit., p. 127.  
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burguesas passaram a fazer críticas ao sistema e a buscar saídas para a crise. O  
descontentamento, então, foi escorregando aos poucos dos centros de poder e se  
esparramou pela imprensa e pelas ruas, tingindo diversas categorias com o roxo  
vibrante do seu meio-luto.  
Foi então que, por entre as fissuras no apoio ao sistema, imiscuíram-se os  
movimentos dos trabalhadores categoria social essencial para a conquista da  
democracia no país 48. A reaparição dos trabalhadores em pleno palco central dos  
acontecimentos, após um longo período de repressão e recuo, aportava perspectivas  
efetivas de mudanças substanciosas. Afinal, se era impossível a construção  
democrática pela atuação das categorias sociais que personificavam o capital atrófico,  
não o era pela movimentação das que encarnavam a perspectiva do trabalho, que,  
diferentemente das primeiras, tinham a potencialidade universal de integralização. Dito  
de modo mais sintético, a irresolubilidade crônica do capital atrófico deixaria  
entreabertas possibilidades de transformação levadas a cabo pela lógica do trabalho.  
As manifestações operárias foram ganhando densidade e volume, a ponto de  
ameaçarem o processo de transição tal como pensado pelo sistema. De forma  
espontânea (embora não espontaneísta), as massas trabalhadoras introduziram seus  
argumentos concretos no debate sobre a democracia que então se realizava e, com  
isso, ameaçaram sua direção, ao negar o politicismo e abrir caminho para uma  
verdadeira nova política, centrada no historicamente novo. Para as massas  
trabalhadoras, romper com o politicismo era, além de uma possibilidade concreta, um  
interesse vital.  
Assim, muito além da questão numérica, a ação dos trabalhadores apresentava  
(mesmo se consideradas suas limitações e oscilações) uma acentuada mudança  
qualitativa no tocante à luta contra o bonapartismo e pela conquista da democracia: a  
instituição de um verdadeiro movimento democrático de massas, o qual trazia “consigo  
uma dimensão decisiva, historicamente nova: atua diretamente sobre a organização  
material de toda a estrutura social”49. Os trabalhadores em movimento não descuravam  
da conquista das liberdades políticas, mesmo as mais simples, porém estavam  
conscientes, primeiro, de que estas só seriam levadas efetivamente a cabo a partir da  
48  
Não temos, neste texto, a intenção de reproduzir a análise de Chasin sobre as greves de 1978-80,  
senão de apenas anotar o que é essencial para o entendimento do tema recortado, a politicidade.  
Remetemos os interessados aos textos do próprio autor, especialmente: CHASIN, As máquinas param...,  
op. cit., pp. 79-108.  
49 CHASIN, As máquinas param..., op. cit., p. 98.  
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sua própria atuação50; segundo, que “têm de estar articuladas a matrizes mais  
substantivas: em primeiro lugar, às condições de salário e trabalho sob as quais cada  
trabalhador e os trabalhadores em seu conjunto, na imediaticidade, são compelidos a  
51  
produzir e reproduzir sua existência material” . Naquele período, as massas  
trabalhadoras estiveram na vanguarda em relação a suas agremiações partidárias,  
esquerda tradicional incluída.  
As massas não poderiam, contudo, contar apenas com as próprias forças, pois,  
de moto próprio, “não têm como determinar os processos e conferir, ao conjunto do  
movimento, a direção implícita aos conteúdos que desenvolvem espontaneamente em  
certas iniciativas”52. Se o movimento concreto das massas trabalhadoras ameaçava  
quebrar o espinhaço da ditadura, dificultando sua mobilidade e sua própria existência,  
era necessário ir além e elaborar um programa econômico da sua perspectiva. Dada a  
incompatibilidade entre um regime com base no arrocho salarial e uma democracia,  
mesmo a mais formal e estreita, cabia calçar a luta pela democracia com a elaboração  
e efetivação de um programa econômico orientado à eliminação pela raiz do arrocho  
portanto, dedicado a destruir as bases da superexploração do trabalho atual e futura  
, tarefa que seria da esquerda, representante teórica da perspectiva do trabalho. A  
necessidade de um programa econômico da perspectiva das maiorias estava dada e  
era explicitada pela reemergência das lutas dos trabalhadores, centrada nos operários,  
de forma que desconsiderar tal questão naquele momento equivalia a não alimentar o  
movimento dos trabalhadores com a seiva que lhe era vital e, com isso, deixar fenecer  
por inanição o processo de conquista da democracia. Trespassada pela visceral luta  
contra o arrocho, de caráter universal em solo nacional, a plataforma econômica  
alternativa contemplaria também outras demandas universalizantes, como a anistia, a  
convocação de uma Assembleia Constituinte e demais prerrogativas democráticas –  
mas, agora, demonstrado o terreno social no qual estão radicadas53. As pretensões  
democráticas dos trabalhadores abarcariam democracia econômica, social, cultural –  
ou seja, a totalidade concreta da existência da sociedade54.  
A história, porém, foi outra. Por um lado, vendo a possibilidade de ser posto  
em xeque, o bonapartismo, mesmo combalido pela falência do “milagre”, resistiu e  
50 Ib., p. 105.  
51 CHASIN, ¿Hasta cuando?, op. cit., p. 132.  
52 Ib., p. 125.  
53 CHASIN, As máquinas param..., op. cit., p. 106.  
54 CHASIN, Conquistar a democracia pela base, op. cit., p. 77.  
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defendeu com garras e presas sua política econômica, tomando diversas medidas que  
deixavam límpidos os motivos pelos quais se dispunha a despir as fantasias  
distensionistas e trajar novamente o fardão e o coturno habituais. Chasin apontava  
que as prédicas pelo “aperfeiçoamento democrático” e a repressão concretamente  
executada eram duas ações complementares da mudança de regime sem alteração da  
política econômica, de forma a ensejar um novo ciclo de acumulação sobre as mesmas  
bases.  
Por outro lado, às manifestações das massas, de conteúdo essencialmente  
econômico e de caráter totalizante, não foi agregado um programa econômico feito da  
perspectiva dos trabalhadores, pelo contrário, até mesmo a necessidade deste foi  
afastada pela “nova esquerda”. As lutas dos trabalhadores foram entravadas, de forma  
covarde e oportunista, em nome do abrandamento das tensões e, depois de  
domesticadas e desfibradas, as movimentações foram redirecionadas para a campanha  
eleitoral de 1982. Em seguida, as enormes manifestações, que ilustravam os anseios  
populares por mudanças, foram dirigidas ao campo institucional pela campanha pelas  
eleições presidenciais diretas, logo solucionada pelo alto (via Colégio Eleitoral). A  
esquerda foi, desta forma, incapaz de congregar a faceta político-parlamentar e a  
potência político-social daquelas mobilizações, quer dizer, não conseguiu fecundar  
com os interesses sociais e econômicos das massas os processos político-institucionais  
necessários para gênese e a consolidação de uma verdadeira democracia.  
Assim, a “nova esquerda” também sucumbiu ao politicismo, desvirtuando e  
desviando os conflitos sociais para o espaço seguro para o sistema, o político, quando  
as lutas sociais deveriam determinar a ação parlamentar, conferindo-lhe conteúdo e  
direção. Pega pela arapuca politicista, agindo voluntariamente ou não em  
adequação aos interesses do sistema, concordando com o perfil que lhe foi dado pela  
ditadura em processo de autorreforma, sua atuação era mais maléfica que benéfica  
para o movimento de massas, o qual confundia, desarmava e desmobilizava55. Tornou-  
se, assim, agente ou cúmplice da perda da oportunidade histórica de ruptura com as  
mazelas da via colonial e do seu politicismo subjacente. A esquerda se valeu, então,  
das massas para a prática de uma “oposição pelo alto”.  
Chasin mostrava as semelhanças que havia entre a esquerda tradicional e a  
chamada “nova esquerda”, mesmo sendo esta uma crítica da primeira. Tais  
55 CHASIN, ¿Hasta cuando?, op. cit., p. 134.  
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semelhanças se deviam ao fato de terem no liberalismo uma ascendência comum, além  
de dividirem a crença na possibilidade de arrematar o mal-ajambrado capitalismo  
atrófico. A esquerda tradicional era caudatária porque se batia pela completude do  
capital incompleto e incompletável; a “nova esquerda” era participacionista porque  
propugnava a efetivação da soberania política clássica impossível no Brasil,  
empenhava-se por uma democracia liberal ininstaurável56. O participacionismo era a  
marca distintiva da nova esquerda, como o reboquismo caracterizara a esquerda  
tradicional.  
O sorvedouro politicista e voluntarista em que foi absorvida enredava a  
oposição numa contradição: inobstante suas alardeadas intenções democráticas, a  
equação econômica intocada e silenciada as impediam; e toda real efetivação  
democrática recusaria a linha econômica existente (repetindo, aliás, de forma particular,  
uma contradição inerente ao próprio capitalismo). As massas estavam em busca de  
mudanças efetivas nas suas condições de vida (no sentido mais amplo), algo que não  
era possível oferecer num processo de solução pelo alto e, por via de consequência, a  
eficácia da “pregação institucionalizadora” politicista da oposição à ditadura em  
autorreforma teria vida curta57.  
Sumarizando, durante todo o processo de autorreforma do bonapartismo, o  
sistema contou com a atuação decisiva das oposições na condução de uma “transição  
lerda, longa e limitada” para um regime autocrático institucionalizado. Todo este  
percurso foi marcado pela inversão que substituiu e rebaixou a perspectiva material  
dos trabalhadores pela perspectiva formal das oposições. Tal processo resultou na  
manipulação das consciências e no trânsito para outra forma do mesmo governo do  
capital (atrófico). Segundo Chasin, havia aí um enfraquecimento, uma subsunção das  
oposições ao sistema e das massas às oposições, de caráter fundamentalmente  
ideológico, mas que acabava tendo repercussões políticas. Daí que o sistema tenha  
tido sucesso em manter os processos sob controle e estar um passo à frente das  
oposições. Em 1982 Chasin cravava que as oposições também tinham no politicismo  
a “faixa de segurança onde se movem em terreno próprio” 58.  
No seu texto de 1989, Chasin explicitou outro equívoco fundamental da “nova  
esquerda” nas movimentações grevistas de final dos anos 1970: ela a criticava por  
56 Cf. CHASIN, A esquerda e a Nova República, op. cit., pp. 161-2.  
57 Cf. Ib., p. 154.  
58 CHASIN, ¿Hasta cuando?, op. cit., p. 125.  
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confundir movimento sindical com movimento operário, olvidando a diferença entre as  
legítimas e necessárias lutas corporativas de setores profissionais e as movimentações  
de classe com vistas à profunda transformação da sociabilidade. Desta forma, o que  
fez o Partido dos Trabalhadores, o mais lídimo representante da “nova esquerda”, sob  
o pretexto de atender às necessidades políticas do movimento dos trabalhadores, foi  
politicizar a prática sindical, deixando de aditar à sua lógica a política que supera a  
política, e assim permanecendo no interior do entendimento político. Com isso, acabou  
tomando o movimento operário simplesmente como “o movimento sindical operando  
politicamente, mas sem a mediação das determinações sociais”. Sob a condução da  
“nova esquerda”, o movimento operário foi levado a atuar não partindo da contradição  
essencial entre as classes tal como dadas na sociabilidade capitalista, mas da noção  
de agente sindical transposta para o mundo da política. Desta forma, se aquele denso  
movimento sindical que deu origem ao PT conseguiu trazer à tona as lutas econômicas  
de setores importantes da classe trabalhadora, esta legenda, deles originada, não  
alcançou repor na ordem do dia a perspectiva legitimamente de esquerda59. Tal  
procedimento se coaduna com suas prédicas e atuação em prol da democracia  
participativa, no qual “a democracia se revela como participacionismo negociador60,  
e sua posição de sigla situada na esquerda do capital.  
Chasin também se destacava por não incorrer em simplismos nem em  
demagogias condescendentes com relação aos vetores sociais subordinados. Afinal,  
na tarefa de apropriar-se do real, não cabe edulcorá-la, relativizando debilidades,  
minimizando equívocos, desprezando, enfim, as determinações que delimitam o  
quadro de possibilidades objetivas. Nesse sentido, ele deixava claro o que deveria ser  
uma obviedade, mas acaba chocando muita gente: a classe trabalhadora não escapou  
incólume das condições históricas condicionadoras do capital atrófico, bastante menos  
generosas que as existentes em solo clássico. Assim, se desde os anos 1980 ele  
criticava os que acreditavam no espontaneísmo da classe trabalhadora, em 1989 ele  
censurava duramente aqueles que fizeram “uma antiga aposta historicamente  
desmentida no brotar espontâneo do propósito de transformação radical entre os  
trabalhadores”. Tal visão facilitava ao militantismo (muitas vezes, avesso à teoria) a  
“confortável sensação de partilhar da verdade, sempre e quando e isto basta –  
59 CHASIN, A sucessão na crise..., op. cit., p. 258.  
60 Ib.  
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houver perfilamento com a movimentação dos obreiros”61, de forma que simplesmente  
estar ao lado dos trabalhadores fosse plena garantia prévia de acerto e radicalidade  
revolucionária. À utopia espontaneísta é imanente uma visão mágica do trabalhador,  
tido e havido como repositório de todas as virtudes e toda a sabedoria.  
Para o pensador, um verdadeiro partido do trabalho “não é o partido dos  
trabalhadores tomados estes no complexo imediato e negativo de sua ‘condição  
operária’”, pois que ele “não prefigura seus objetivos pela miséria material e espiritual  
dos trabalhadores em sua existência concreta de humanidade aviltada”62. Antes ao  
contrário: é a “afirmação universal do homem expressa na potência de uma nova  
ordenação da vida societária”, é o “instrumento de mediação política da atividade  
social conscientemente transformadora, que assume a potência regencial da lógica do  
trabalho e a este como protoforma de toda prática social”63.  
Essa aguda criticidade chasiniana encontrou o ápice no seu texto inacabado Ad  
Hominem: rota e prospectiva de um projeto marxista, em que expôs de forma cabal  
uma crítica aos que essencializam ou mistificam o proletariado, quando em Marx a  
revolução não significa a invocação de uma categoria social específica, mas da própria  
perspectiva do trabalho (cujo representante mais avançado, na época do filósofo  
alemão, era o operariado industrial). Nesse verdadeiro culto, esquece-se da  
historicidade da classe social, e, atualmente, das mudanças substanciais trazidas pelas  
inovações tecnológicas. A figura do proletário, típica do período de Marx, despareceu  
e, sobretudo, a perspectiva do trabalho foi derrotada ao longo do século XX, algo que  
exige ser dito e pensado. Ademais, a figura tradicional do trabalhador tem sido  
substituída pelo agente tecnológico de ponta, a classe trabalhadora premida pelo  
desemprego, em refluxo defensivo e desmoralizada societária, sindical e  
historicamente devido às práticas de cunho stalinista.  
Segundo o raciocínio chasiniano, é necessário investigar o novo patamar de  
sociabilidade para identificar a(s) categoria(s) social(is) que encarne(m) de forma mais  
avançada a lógica onímoda do trabalho, bem como perscrutar sua possibilidade de  
efetivar a revolução social do futuro. Ademais, o século XX confundiu o meio com o  
objetivo, tomou a afirmação de uma classe social como o objetivo da revolução, e não  
como um instrumento desta, cujo escopo é uma sociedade sem classes, ou seja, a  
61 Ib., p. 259.  
62 Ib., pp. 259-60.  
63 Ib., p. 259.  
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emancipação humana. A revolução social do futuro, possibilidade objetiva engendrada  
pela lógica onímoda do trabalho, é infinitamente mais importante que qualquer  
categoria social; longe de ser a (re)afirmação de uma classe, é afirmação universal do  
ser humano64.  
No tocante ao tema da democracia no período seguinte à autorreforma da  
ditadura bonapartista, em 1989, Chasin reafirmava que a transição em direção a uma  
autocracia institucionalizada não mexera na estrutura econômico-produtiva da  
ditadura, da qual advinham terríveis problemas sociais, e por conseguinte também  
mantivera a autocracia enquanto sua forma de dominação fundamental, da qual não  
estava descartada a influência militar nem mesmo institucionalmente (veja-se a  
dubiedade do art. 142). Partira-se, como já mencionado, da noção de que apenas  
depois de garantidas as instituições formais é que se podia cuidar das questões  
cotidianas, relativas à sociedade e à economia, tendo como base o entendimento  
politicista militante que partia de e tinha como perspectiva a institucionalidade como  
expressão máxima das forças sociais, expressadas estas no conteúdo e na forma do  
direito e do estado.  
Ora, tal entendimento já havia, naquela fase histórica, demonstrado sua  
falsidade, resultando na decepção das massas com a democracia. Para as classes  
dominantes, era, pois, forçoso persuadi-las da efetividade das promessas  
democráticas; os miseráveis foram, então, induzidos pelo apelo à demagogia e às  
técnicas da razão manipulatória que levaram um aventureiro travestido de demiurgo à  
presidência da república nas eleições de 1989. Não se tratava de um movimento  
surpreendente ou inédito, mas do mais “autêntico movimento da dominação do capital  
atrófico” que, “compelido pela sua lógica à integração subordinada, na malha  
econômica do capital superproduzido, tem literalmente que embair os excluídos”65. A  
presença constante de aventureiros na história política nacional era um dos sinais de  
que o sistema partidário estava em descompasso com as necessidades e anseios das  
maiorias, deixando aberto o campo à sua “bárbara exploração espiritual”, o que vinha  
se somar à repressão sempre à mão e aos inúmeros equívocos teóricos e práticos das  
oposições, problemas que subjazem aos equívocos das próprias massas desvalidas66.  
Chasin ia na direção inversa das análises feitas por politólogos e líderes partidários  
64 CHASIN, Ad Hominem: rota e prospectiva..., op. cit., pp. 68 ss.  
65 CHASIN, A sucessão na crise..., op. cit., p. 226.  
66 Ib.  
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que tomavam individualidades e situações como excepcionalidades, com o que  
buscavam fazer crer que a “verdadeira política” havia sido deturpada pelos  
oportunistas, ocultando a possibilidade de os representantes políticos “normais”  
poderem se tornar patológicos e o fato de que a política tem na desigualdade e no  
fato de ser administradora da dominação social seu pecado original.  
Ao final da vida, mas sem que tenha tido oportunidade de desenvolver mais  
adequadamente a reflexão, o filósofo em pauta salientava que a globalização expusera  
mais explicitamente o papel ao estado, que agora era cada vez mais claramente agente  
do capital. Este, uma vez posto de forma incontrastada desde o desaparecimento  
dos países pós-revolucionários do Leste europeu e congêneres , tem dispensado a  
política, evidenciando-se o predomínio do âmbito da economia em relação a esta  
última, como demonstra o declínio dos estados nacionais ocorrido pelo menos  
parcialmente no período final do século XX. No interior desta, a própria via colonial –  
o caminho específico que o país seguiu para a instituição do capitalismo encontrou  
seu fim, configurando-se num marco de uma nova era para o país, na qual as  
possibilidades futuras latejam, pejadas de contradições. Trata-se de um tema cuja  
pesquisa é urgente e que demanda esforços coletivos, para que escape às avaliações  
tópicas, subjetivistas ou conservadoras.  
A propósito das eleições de 1989, Chasin analisava ainda uma vez as renitentes  
debilidades e equívocos da esquerda análise que concluía dizendo que esta havia  
morrido. Retomou a discussão sobre as principais teorias que embasavam a atuação  
da esquerda no pós-ditadura, de forma mais detalhada e em profundidade, com  
especial atenção às teorias da sociologia e filosofia paulistas, por ele denominadas de  
analítica paulista67. Conforme nosso pensador, uma das conquistas marxianas  
67  
Para ficarmos com um exemplo, citemos a crítica chasiniana a Fernando Henrique Cardoso, um dos  
grandes nomes dessa corrente, feita no texto Rota e prospectiva, de 1999. De acordo com nosso autor,  
FHC, em sua busca por descartar o reducionismo economicista, acabava incorrendo em um reducionismo  
inverso, de vez que – tratando os “planos” econômico e social como divorciados entre si, bem como  
vendo a economia e a política como “fatores” – elevava a política ao papel determinante. Dito de outro  
modo, FHC fazia a “separação de faces ontológicas indissociáveis”, o “que permite, operativamente, o  
encadeamento de uma ordenação aleatória ou de suficiente indeterminabilidade para que o político  
possa, na armação discursiva, aparecer como determinação de última instância, ou seja, decisiva em  
qualquer ordem explicativa, do que redunda o politicismo". A dura e basilar crítica chasiniana dizia  
respeito, portanto, ao fato de Cardoso e cia. envidarem a separação entre a atividade sensível dos  
homens o trabalho e a atividade suprassensível, excessivamente ressaltada, resultando do processo  
uma desvinculação ontológica de fenômenos reais, uma desobjetivação, “uma reenfatização teórica da  
subjetividade e de um suposto caráter arbitrário ou aleatório da lógica dos processos reais”. Tratava-  
se, não menos que isso, do próprio caroço do politicismo, em torno do qual FHC desenvolvia sua teoria  
e sua prática política no caso particular desta, o politicismo era limitado pela importância da correlação  
de forças para o sociólogo na presidência. Cf. CHASIN, Ad Hominem: rota e prospectiva..., op. cit., p. 17.  
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liminarmente ignoradas pela analítica paulista foram as críticas ontológicas  
instauradoras de seu pensamento próprio, incluída a crítica da politicidade, o que levou  
os teóricos dessa linha a erigirem um marxismo adstringido que desconsiderava a  
questão da emancipação humana cujo epicentro está na trama social. Por  
conseguinte, a analítica paulista também foi incapaz de compreender os limites da  
política e da emancipação advinda da revolução política, comparativamente à  
revolução social e à emancipação humana que ela inaugura. As consequências desse  
marxismo adstringido manifestam-se de forma mais evidente no tratamento do caso  
brasileiro, com suas tramas concretas e suas demandas práticas. Como tais teorias  
foram amplamente abraçadas por grandes parcelas que se pretendiam de esquerda, a  
resultante foi uma atuação canhestra e equivocada.  
Para Chasin, só há prática política radical quando ela é metapolítica, ou seja,  
quando ela atua para desfazer o político, transformando a sociabilidade que está em  
sua base. A prática metapolítica é a única radical e com sentido no tempo atual, dado  
que apenas ela conseguiria efetivar uma prática política defensiva possível diante  
dos desafios da conjuntura e da transição para a globalização e, conjugadamente,  
franquear o caminho para uma revolução social, que tivesse como horizonte a  
propriedade e a produção sociais. O filósofo paulistano era bastante enfático: se na  
época de Marx a crítica prática e teórica da economia política havia sido a condição de  
possibilidade para uma nova cientificidade, na atualidade, toda análise rigorosa da  
sociabilidade exigia a reiteração da superação da política que o filósofo alemão já  
havia efetuado. Só a partir da superação da política se poderia pôr a questão  
imperativa da revolução social.  
A crítica radical é idêntica, portanto, à crítica da política, a qual inclui, no Brasil,  
o governo, o poder político constituído, mas também as próprias oposições. Radical é  
a tomada de posição contra a política a metapolítica que destrói as ilusões nas  
soluções político-administrativas dos grandes dilemas sociais e que escapa à  
corrupção inerente à politicidade. Para tal, a esquerda deveria se tornar uma oposição  
proponente, perspectivando o futuro, que articulasse políticas defensivas com outras,  
mais globais, que as enformariam, todas devidamente orientadas por uma teoria  
correta e pela metapolítica. Esta radicalidade começa por fazer a crítica da esquerda  
nesse pouco mais de século e meio de sua existência e, no processo, repõe a questão  
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da revolução social68. O fundamento para tal crítica dado que a raiz, para o homem,  
é o próprio homem é a individualidade atual, da qual se parte para atingir uma crítica  
revolucionária “que revoluciona os próprios indivíduos”69.  
Considerações finais  
Já arrematamos conclusões e análises no processo mesmo de exposição do  
nosso objeto de pesquisa. Aqui, cabem apenas brevíssimas palavras, para arrematar o  
tema.  
Como expusemos, a incansável dedicação à redescoberta de Marx, após os  
descaminhos e as desvirtuações sofridos pelo pensamento deste autor no dramático  
século XX, foi uma das tarefas a que Chasin se devotou, com especial atenção à  
recuperação do estatuto ontológico da obra marxiana. Em particular, envidou esforços  
para trazer a lume a ontonegatividade da política, descoberta exposta nas obras do  
teórico alemão desde 1843 cujo entendimento é basilar para a compreensão das  
tarefas da revolução política e aquelas da revolução social, que vão mais além desta,  
rumo à emancipação humana. Dentre os temas que mais demandaram a atenção do  
pensador brasileiro, salienta-se ainda o esforço para compreender a sociabilidade  
atual, particularmente a brasileira, só alcançada com a adequada apreensão desta no  
interior da universalidade do capitalismo.  
Na atuação de Chasin, não se tratou nunca de tarefas estanques, pelo contrário,  
elas sempre estiveram intrinsecamente relacionadas: baste dizer que o embasamento  
teórico em Marx possibilitou diversas conquistas na compreensão da entificação  
nacional, como esperamos ter deixado comprovado. A mútua potencialização entre as  
pesquisas sobre o período de formação do pensamento marxiano e a análise de  
situações concretas (o caso brasileiro) não é, aliás, exclusiva de Chasin, mas representa  
o percurso do próprio Marx. Afinal, este se encaminhou para seu pensamento próprio,  
não por acaso, pela crítica da política e da filosofia especulativa alemãs e pela  
discussão que esta fazia da política e do estado, do que lhe provieram fundamentos  
para que efetivasse a terceira crítica, aquela a que se dedicou até o fim da vida, a da  
economia política, isto é, da sociabilidade capitalista.  
As pesquisas chasinianas sobre o Brasil, desta forma, evidenciam a importância  
das descobertas que ele realizava em outro campo fundamental de seus estudos: os  
68 Ib.  
69 CHASIN, Ad Hominem: rota e prospectiva..., op. cit., p. 58.  
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Ester Vaisman; Vânia Noeli Ferreira de Assunção  
lineamentos ontológicos marxianos, particularmente no que tange à politicidade. Era  
com base em tais achados que Chasin voltava os olhos à realidade nacional, não para  
ali “aplicar” as mesmas tematizações que Marx fizera em seu tempo e lugar, mas para  
nelas encontrar o elã adequado para a busca constante e incansável da especificidade  
dos caracteres da formação brasileira. Assim, ao tempo que avaliava em detalhes o  
Brasil (no mundo) de sua época, perscrutava também as análises marxianas acerca da  
questão da ontologia e da politicidade e inspirava-se nelas para pensar a realidade  
nacional, de forma a destacar dessemelhanças sem perder as ligações com o universal  
concreto de que esta era uma forma particularizada.  
No tocante à politicidade, como mostrou Chasin, no mister de desvendar a  
origem, o caráter da política e as formas específicas que assume entre os atributos do  
homem em sociedade, Marx chegou a uma percepção que contradita a concepção  
ontopositiva da política, segundo a qual a politicidade é característico intrínseco ao  
ser social e seu distintivo, sua peculiaridade, a expressão máxime de sua racionalidade.  
Marx mostrou que a política é “força social pervertida e usurpada, socialmente ativada  
como estranhamento por debilidades e carências intrínsecas às formas sociais  
contraditórias, pois ainda insuficientemente desenvolvidas e, por consequência,  
incapazes de autorregulação puramente social”70, e a emancipação é a reintegração  
dessas forças sociais pela sociedade. Assim, o filósofo alemão criticava a política pela  
sua própria essência e suas premissas, ou seja, não pretendia uma perfectibilização da  
política e do estado, mas criticava ontologicamente a própria política.  
No que diz respeito à formação social brasileira, Chasin pôde perceber que  
trilhou pela via colonial, que faceou no seu debate com o pensamento integralista.  
Ressalte-se que esta análise chasiniana é absolutamente inovadora e só possível a  
partir de dois fatores conjugados: a intimidade com as conquistas teóricas marxianas  
e a preocupação em apreender adequadamente os caracteres peculiares da entificação  
nacional. Um e outro elementos, de forma isolada, já poderiam resultar em análises  
substanciosas, mas o brilhantismo que Chasin alcançou adveio justamente de sua  
capacidade de, valendo-se de Marx como um referencial basilar, captar a especificidade  
da realidade particular sobre a qual se debruçava no que seguia também o modo de  
proceder marxiano.  
Nos textos aqui trabalhados, mostramos que o autor em tela se esforçou por  
70 CHASIN, Marx: estatuto ontológico..., op. cit., p. 58.  
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Da crítica ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade  
deslindar a politicidade na formação brasileira e a maneira específica pela qual o  
politicismo se incorporou à sociabilidade nacional, já que é elemento constitutivo  
central da forma de ser da burguesia atrófica e, ainda, porque esta conseguiu enredar  
no politicismo também os representantes político-ideológicos da classe representante  
da lógica do trabalho. O que está em pauta no procedimento politicista é a  
autonomização e hiperacentuação do “político” por meio de seu isolamento do  
conjunto social e, sobretudo, do âmbito econômico, o que gerou, no caso brasileiro  
àquela época, reivindicações de ordem puramente institucional em relação às franquias  
democráticas. Tal procedimento reducionista tem como consequência “a diluição, o  
desossamento do todo, a sua liquefação em propostas abstratamente situadas apenas  
no universo das regras institucionais. É a autonomização e prevalência politicológica  
do ‘político’ em detrimento da anatomia do social, isto é, do alicerce econômico”71.  
É muito importante salientar, contra as muitas estripulias da imputação, que  
(des)entendem a crítica ao politicismo (e, mais amplamente, da politicidade), que não  
se trata, aqui, de qualquer sorte de loa ao abstencionismo político. Exemplifique-se  
com a questão das disputas eleitorais, acerca das quais foram escritos muitos dos  
textos chasinianos. Nestes, ele afiançou e reiterou inúmeras vezes a importância de  
eleições. De acordo com ele, “qualquer processo eleitoral, excluídas situações  
excepcionais e falsas teorias é importante”, eventualmente mais importante por  
possibilitar contato, esclarecimento e organização populares do que pelas escolhas  
possíveis – “De todo modo, importante72. Tal relevância ganhava ares ainda mais  
significativos em face de determinadas circunstâncias, como o caráter de  
excepcionalidade das escolhas eleitorais para cargos executivos relevantes após a  
longa noite bonapartista. Nestes casos, o processo eleitoral poderia ser convertido em  
evento determinante no interior dos embates contra a ditadura.  
Longe de ser uma recusa ou indiferença à participação política, a determinação  
ontonegativa da politicidade é, pois, a denúncia da corrupção íntima da política, de  
seu caráter contingente, sua irresolubilidade, sua estreiteza, seu voluntarismo. Por  
conseguinte, uma revolução radical toma o curso em direção ao social, essência do  
homem e de sua práxis, sua propriedade par excellence. A revolução social demanda  
uma prática metapolítica, medidas e projetos que avancem para além do político e  
71 Ib.  
72 CHASIN, ¿Hasta cuando?, op. cit., p. 122.  
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Ester Vaisman; Vânia Noeli Ferreira de Assunção  
transformem o próprio metabolismo social, construindo o próprio fim da política e da  
sociedade regida pelo capital que lhe é subjacente.  
Como citar:  
VAISMAN, Ester; ASSUNÇÃO, Vânia Noeli Ferreira de. Da crítica ao politicismo à  
determinação ontonegativa da politicidade: a análise do caso brasileiro. Verinotio,  
Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 82-122, Edição Especial, 2022/2023.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.663  
Problemas selecionados em determinação social  
do pensamento  
Selected problems in social determination of thought  
Elcemir Paço Cunha*  
Resumo: O artigo objetiva discutir alguns  
problemas avançados em determinação social do  
pensamento a partir das contribuições deixadas  
por J. Chasin tendo em vista a profícua  
Abstract: The article aims to discuss some  
advanced problems on social determination of  
thought based on the contributions left by J.  
Chasin in view of the fruitful grounding in Marx  
and Lukács. These selected problems are  
presented assuming as a common thread the  
possibilities of scientific research of ideological  
objects.  
fundamentação em Marx  
e
Lukács. Tais  
problemas selecionados são apresentados  
assumindo como fio condutor as possibilidades  
da pesquisa científica de objetos ideológicos.  
Palavras-chave: Determinação social do  
pensamento; formação ideal; ideologia.  
Keywords: Social determination of thought;  
ideal formation; ideology.  
Introdução  
A ocasião, de celebrada republicação de J. Chasin pela prestigiada Verinotio, traz  
consigo a oportunidade de revisitar alguns aspectos das contribuições à determinação  
social do pensamento realizadas pelo autor, entremeadas à ascendência a Marx e a  
Lukács.  
Trata-se de algo sempre marcante entre as preocupações do filósofo brasileiro,  
desde sua dissertação crítica a Mannheim, datada dos primeiros anos de 1960, até os  
estágios últimos de seu itinerário intelectual na década de 1990. No caminho, o  
trabalho de fôlego sintetizado em O integralismo de Plínio Salgado, de 1977, deixou  
elementos fundamentais ao estudo do pensamento político tomado analiticamente por  
“objeto ideológico”.  
Ficou patentemente registrado o valor do prolongado diálogo com Lukács  
iniciado antes, na dissertação, principalmente aquele moldado, a partir de A destruição  
da razão, sobre o “tríptico metodológico lukácsiano” constituído pela análise imanente  
*
Doutor em administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Programa  
de Pós-Graduação em Administração na Universidade Federal de Juiz de Fora PPGAdm/UFJF. Pós-  
doutorando em Economia no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional Cedeplar/UFMG.  
E-mail: paco.cunha@ufjf.br.  
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Elcemir Paço Cunha  
das doutrinas e pelas análises de gênese e da função social das “ideologias”. Trata-se  
de um aparato metodológico geral, não sistemático e, portanto, dependente das  
propriedades concretas do pensamento investigado e, por isso mesmo, decorrente  
diretamente da própria natureza geral dos “objetos ideológicos”, mais  
“desmaterializados” do que fatores superestruturais a exemplo da política e do direito.  
O diálogo foi criticamente esticado no notório posfácio, de 1995, intitulado Marx:  
estatuto ontológico e resolução metodológica, devidamente republicado como livro  
separado em 2009. Esse diálogo crítico foi virtuosamente lapidado pelos fundamentos  
diretamente remetidos a Marx, culminando nos lineamentos da fundamentação  
ontoprática do conhecimento, do devido lastreamento marxiano da determinação  
social do pensamento desprovido dos determinismos da moda e, igualmente  
embasada, da presença histórica do objeto (sua maturação objetiva).  
Tudo isso é conhecido, pelo menos por parte de grupos especializados.  
Uma vez enriquecido por esse itinerário, o estudo dos objetos ideológicos se  
mostra como uma suficientemente desenvolvida alternativa às tendências marcantes  
no século XX com respeito à investigação das “ideologias”, como o relativismo  
bastante acentuado nas variantes de sociologia do conhecimento das clássicas  
frequentemente visitadas às arqueologias do saber/poder hodiernamente repetidas à  
exaustão, passando pelas recorrentes alegações das crises paradigmáticas , como as  
meras relações entre ideias por aclamadas “afinidades eletivas” ou como as armadilhas  
do racionalismo constantes, dadas as exigências do epistemologismo, na autonomia  
do pensamento como “consciência pura”, supostamente sem qualquer  
condicionamento externo.  
No gradiente que se estende, então, da blindagem do pensamento em relação  
às suas condições objetivas de possibilidade ao completo contágio do pensamento  
pelos condicionantes sócio-políticos que levam as posições intelectuais, em última  
instância, ao ceticismo radical e ao relativismo, seu irmão xifópago, e, portanto, à  
impotência do pensamento diante da necessidade de reta apreensão da realidade, os  
pressupostos objetivos que se mostram a partir da determinação social do pensamento  
são mais consequentes diante da facticidade. Isso porque admitem de partida a não  
autonomia do pensamento diante de suas condições objetivas simultaneamente ao  
reconhecimento, fundado na práxis autoconstitutiva da humanidade, de que a  
capacidade de reproduzir, no pensamento, a lógica movente das coisas, é uma  
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resultante de fatores históricos. Na síntese de Chasin (2009, p. 121), a objetividade  
do conhecimento é um produto contingente de tempos e lugares, uma vez que a  
“conjunção cognitiva ideal depende do encontro entre um sujeito plasmado em  
posição adequada à objetivação científica, ou seja, portador de ótica social em  
condição subjetiva de isenção, e de um objeto desenvolvido, isto é, perfilado na  
energeia de seu complexo categorial estruturalmente arrematado”.  
Certamente que as ideias circulantes e herdadas são um desses fatores históricos  
condicionantes, que atuam sobre as “individualidades cognoscitivas”, no diapasão de  
Chasin (2009, p. 121). Lukács (2020, p. 352) também destacou a influência das ideias  
daqueles “pensadores do passado imediato ou remoto” as quais são retomadas por  
gerações seguintes de intelectuais dadas as não raras continuidades envolvidas no  
plano das formas de consciência. Entretanto, deixamos destacados aqui aqueles  
fatores designados anteriormente, igualmente fundamentais na linha de contribuição  
de Marx, Lukács e Chasin: condições de isenção subjetiva exigidas ao agente  
perscrutador, agente posicionado em sua classe social, em meio às inflexões societais,  
ao recrudescimento ou mitigação do antagonismo e o grau de maturação do objeto  
perscrutado.  
A posição de vantagem do estudo dos objetos ideológicos pela via da  
determinação social do pensamento segundo tais parâmetros, portanto, não demanda  
retoques. Outrossim, faz exigência de continuidade da escalada ao cume escarpado. A  
certa altura da subida, os estudantes são continuamente desafiados porquanto as  
questões mais comuns e introdutórias necessariamente cedem lugar aos problemas  
avançados. É preciso selecioná-los para tratá-los. Entre aqueles que figurariam  
certamente como de preocupação de todos os interessados na investigação dos  
objetos ideológicos, estão os diretamente referentes ao aludido “tríptico  
metodológico”. Deixando para melhor oportunidade a análise imanente – bem como  
os problemas do estudo teórico-histórico do grau de correção das formações ideais  
que escapa ao referido tríptico , ficam selecionados alguns e não todos os aspectos  
da análise de gênese e de função. Vejamos tal seleção mais de perto.  
Missão social e eficácia dos objetos ideológicos como função  
Na história do pensamento marxista, certa linha mais fraca de tendência recusou  
a identificação direta entre ideologia e falsidade. Essa tendência compareceu em germe  
em muitos momentos, como em Marx, Engels, Lênin, Gramsci etc. Parece ter  
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encontrado em Lukács (2010; 2012; 2013), no entanto, um ponto alto de  
desenvolvimento por via da posição central, clara e declarada de que as formações  
ideais não nascem como ideologias. Elas são socialmente processadas e, em  
circunstâncias habilitadoras, consequentemente convertidas em ideologias.  
Como sustentou Lukács, o critério epistemológico (do grau de correção das  
ideias, se falsas ou verdadeiras), por mais importante que seja para o estudo teórico-  
histórico das formas de consciência científicas sobretudo, não é satisfatório para  
discernir o que é ideologia. Dado o acento sobre a práxis, uma formação ideal adquire  
caráter de ideologia não por sua correção ou distorção, mas pela potência de seus  
efeitos sobre a realidade social, principalmente por sua potência em modificar e  
direcionar as condutas humanas. Já teria escrito Marx (2005, p. 151), não sem razão,  
que “a teoria também se torna força material quando se apodera das massas”. Ele não  
deixou de anotar, em outro lugar, a possibilidade de uma formação ideal promover  
direcionamentos sobre a vida econômica da sociedade. Ao comentar, por exemplo,  
sobre a economia política de Smith, Marx sugeriu que as ideias do referido escocês  
foram, ao mesmo tempo, “um produto da energia real e do movimento da propriedade  
privada (...), como produto da indústria moderna” nas condições históricas de sua  
gênese no período manufatureiro, e elemento que “acelera e enaltece a energia e o  
movimento dessa indústria, transformando-a numa força da consciência” (MARX, 1974,  
p. 9). Há, nessas passagens, um reconhecimento do lado ativo da economia política  
como forma de consciência. Não apenas como produto, mas igualmente como força  
atuante na expansão do modo de produção capitalista.  
Muitos outros exemplos desse lado ativo podem ser encontrados de modo  
espaçado no vasto material deixado por Marx, desde o papel de economistas no  
debate público a respeito das greves até a influência da economia vulgar sobre os  
agentes práticos (PAÇO CUNHA, 2022a). Uma amostra direta aqui é muito benéfica.  
Em consideração crítica contra Storch, Marx escreveu que “se não se concebe a própria  
produção material na forma histórica específica, é impossível entender o que é  
característico na produção intelectual correspondente e a interação entre ambas”  
(MARX, 1980, p. 267). O destaque fica com a reciprocidade entre os fatores  
relacionados, isto é, a produção intelectual é produto correspondente, mas produto  
ativo, interativo sobre as suas condições objetivas de possibilidade. Assim, o critério  
prático, que decorre precisamente do lado ativo, é mais adequado do que o  
epistemológico uma vez que o grau de correção das ideias não condiciona  
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necessariamente sua potência social.  
É verdade, entretanto, que um leitor isento deve necessariamente reconhecer que  
Marx acentuou muito mais o procedimento explicativo das formações ideais ao jogar  
luz sobre a gênese (o enraizamento nas condições histórico-concretas) e sobre a  
missão social do que a investigação daquele lado ativo. Com respeito o pensamento  
econômico, por exemplo, o acento foi maior em reconhecer os economistas como  
“representantes científicos” da economia burguesa, em uma acepção de produto, de  
porta-vozes dos agentes práticos.  
Não é sem propósito insistir nesse aspecto. Por volta de 1847, Marx sublinhou  
que “quanto mais se evidencia esse caráter antagônico, mais os economistas, os  
representantes científicos da produção burguesa, embaralham-se em sua própria  
teoria e formam diferentes escolas” (MARX, 1985, p. 117). Um rápido comparativo  
entre as escolas clássica e vulgar é bastante instrutivo à guisa de exemplo. Marx  
diferenciou mais detidamente a tendência vulgar no tratamento histórico do  
pensamento econômico em O capital e em Teorias da mais-valia conjuntamente às  
deficiências da própria economia política clássica. Esta teve gênese em condições  
históricas habilitadoras às questões de natureza científica em razão da passagem da  
luta entre capital e trabalho ao segundo plano e da necessidade de verdade diante do  
combate aos resquícios e entraves da feudalidade. Procurava-se demonstrar a  
superioridade do modo de produção capitalista. Essa era sua missão social. Não por  
acaso, Marx (2013, p. 85) registrou que, em geral, a economia política entendia a  
“ordem capitalista como a forma última e absoluta da produção social, em vez de um  
estágio historicamente transitório de desenvolvimento”. Por seu turno, a economia  
vulgar desenvolveu-se em circunstância adversa, com deflagração aberta da luta de  
classes e em contexto de uma simples apologia direta ao capital. A economia política,  
na qualidade de forma de consciência científica, perdia, assim, seu impulso inicial de  
verdade, passando a uma configuração vulgar e apologética do capitalismo,  
principalmente após 1848. “Não se tratava mais”, escreveu nosso autor de Trier, “de  
saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou  
prejudicial” (MARX, 2013, p. 86). Tal processo de desdobramento do pensamento  
econômico o levou a ter que lidar e descrever contradições do modo de produção  
vigente. Essa forma de pensamento passou a ser confrontado, escreveu Marx, “por sua  
própria contradição simultaneamente com o desenvolvimento das contradições reais  
da vida econômica da sociedade”. Com efeito, a “economia vulgar se torna, de maneira  
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consciente, mais apologética e procura, à força de charlas, exorcizar as ideias que  
encerram as contradições” (MARX, 1980, p. 1539).  
Enquanto o enraizamento do pensamento econômico é muito claramente  
demarcado, ficamos com déficit demonstrativo quanto ao grau de eficácia das missões  
sociais evocadas, por um lado, no propósito clássico de apresentar o modo de  
produção capitalista como “forma última e absoluta da produção social” e não como  
um “estágio historicamente transitório” e, por outro, na finalidade vulgar de “exorcizar  
as ideias que encerram as contradições”. Tendemos, por óbvio, a considerar que tais  
formações ideais foram e são amplamente mobilizadas por grupos humanos com  
propósitos conservadores quando não reacionários. Certamente são ideias que  
circulam e que têm efeitos nas condutas humanas desde o século XIX. Marx tinha total  
clareza, como demonstrado antes, acerca das reciprocidades entre produção material  
e produção intelectual correspondente. Mas não foi alvo em seus escritos econômicos  
destrinchar essa circulação e seus efeitos em pormenores investigativos, por mais  
importante que seja, pois sua tarefa científica com tais escritos, como sabemos, era  
outra.  
Mas isso não torna a questão menos importante, passível de ser ignorada. Tanto  
que Lukács procurou retomar o lado ativo, o critério prático antes aludido. E essa  
posição se encontra claramente estabelecida no filósofo magiar. Sinteticamente, vemos  
isso no esforço do filósofo em estabelecer os fatores básicos de uma dialética objetiva  
a ser capturada e demonstrada por estudos concretos: a práxis do cotidiano da vida  
serve decididamente, seguindo Lukács (2013, p. 481), de “mediação” entre a estrutura  
econômica e a superestrutura ideológica. As ideologias nascem da práxis cotidiana  
que opera sobre aquela base. Tais ideologias, uma vez formadas e desenvolvidas,  
deságuam no mesmo cotidiano do qual tiveram arranque, potencialmente  
direcionando, modificando, retardando etc., tendências da práxis num tempo e lugar  
que, por sua vez, guarda sempre potência de alteração e conservação dos fatores da  
estrutura econômica a qual, de resto, possui lógica própria e é relativamente  
indiferente à consciência que os agentes portam em relação a ela.  
De maneira mais geral do que o filósofo magiar pôde fazer, Chasin (2009)  
também expressou o acento sobre a práxis ao estabelecer que é a prática social que  
converte a objetividade em subjetividade e vice-versa. Isso joga luz sobre um aspecto  
decisivo da facticidade: as formações ideais decorrem, em tempos e lugares diferentes,  
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da práxis sobre a objetividade natural/social. As formações ideais são produtos,  
subjetivações realizadas por meio da prática social e, nessa qualidade, são apenas  
potência, dependendo, pois, da prática social para verter essa potência em efetividade,  
isto é, uma objetivação das formações ideais por meio da práxis. As formações ideais  
precisam, portanto, de grupos humanos que, assenhorando-se de tais ideias, colocam-  
nas em funcionamento em meio às inflexões societais e aos conflitos fundamentais. E  
o critério delimitador da ideologia é precisamente essa efetividade, essa eficácia sobre  
o terreno social (há também a questão da duração em termos de profundidade de tais  
efeitos, como destacou Vaisman, 2010).  
Assim, é possível distinguir as formações ideais ou formas de consciência como  
respostas erigidas diante de tais inflexões e conflitos, de um lado, e, de outro, a  
conversão de tais ideias em ideologias com eficácia quando, por mediação da práxis  
social de grupos humanos, deságuam na vida social procurando dirigir as condutas  
humanas diante das inflexões e conflitos deflagrados. A conversão, entretanto, não  
retira da ideologia seu caráter também de resposta a tais conflitos por sua própria  
propriedade, antes de tudo, como formação ideal.  
Por decorrência, e esse é o ponto nefrálgico do problema avançado em destaque,  
o estudo dos objetos ideológicos termina por revelar seu duplo caráter como função  
ainda que o acento argumentativo, pelo menos, recaia mais sobre a eficácia, no caso  
de A destruição da razão, e mais sobre a formação ideal, no caso de O integralismo  
de Plínio Salgado. Entretanto, esse duplo caráter não foi integralmente sublinhado por  
Lukács ou Chasin. Nos materiais a questão tendeu a ficar subentendida.  
Lukács (2020), ao tratar da ideologia como função em termos de eficácia  
frequentemente aludiu, corretamente, ao propósito ou finalidade das ideologias sob  
análise (o irracionalismo, no caso). Nas análises, muitas vezes o isolamento do  
propósito era o bastante para o tratamento como ideologia na argumentação do autor.  
Nesse sentido, o acento recaiu sobre a missão social das ideologias. Algo semelhante  
vemos no caso da designada “ideologia da terceira via” em que o filósofo magiar  
sublinhou o propósito de evitar que se extraísse da crise a conclusão de que os  
problemas postos decorreriam dos aspectos estruturais do modo de produção  
capitalista (LUKÁCS, 1979). A função, nesse caso, se destaca pela missão social ou  
propósito, sua finalidade explícita ou não, em que as questões de eficácia ficaram, na  
análise, subordinadas a segundo plano embora seja precisamente o central (critério  
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prático) para a determinação da ideologia no quadro geral do argumento dado pelo  
filósofo.  
No material do filósofo brasileiro essa questão fica ainda mais patente.  
Comparada à ideologia da terceira via ou ao irracionalismo, não é possível dizer que  
o integralismo, tomado por objeto ideológico, tenha alcançado algum grau relevante  
de eficácia nas condições da particularidade brasileira. A missão social, em sua gênese  
na regressividade nacional, seria, como demonstrou brilhantemente o filósofo, retardar  
o processo de acumulação do capital, orientando a seta da história para condições  
ruralistas anteriores em termos econômicos, políticos e filosóficos. Mas essa missão  
social foi suplantada pela tendência histórica objetiva de forja de um capitalismo, ainda  
que precariamente desenvolvido num tipo de integração subordinada ao mercado  
mundial, nas condições atróficas brasileiras de então. Mas o fato de tomar apenas o  
aspecto como formação ideal, sem eficácia, não impediu Chasin de considerar o  
integralismo como ideologia inclusive, inadvertidamente, igualando de certa maneira  
ideologia e falsidade em dado momento da obra (CHASIN, 1978, p. 28).  
A questão não ficou inteiramente resolvida uma vez que o aspecto da missão  
social e da eficácia terminaram embaralhadas em graus variados no tratamento dado  
pelos autores em tela. Não é, obviamente, um aspecto de fraqueza das elaborações,  
mas índice de sua complexidade interna. Na linha de desenvolvimento dessa  
complexidade, o problema avançado sob consideração pode ser dissolvido pelas  
próprias lições deixadas pelos autores.  
Parece-nos ser chave, nessa direção, diferenciar base econômica, superestrutura  
ideológica e formas sociais de consciência uma vez que o “modo de produção da vida  
material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual” (MARX,  
1974, p. 136). É importante destacar a heterogeneidade entre tais processos  
condicionados (“processo em geral da vida social, político e espiritual”). Ao isolar o  
processo espiritual, isto é, as formas sociais de consciência, podemos guardar então  
ideologia como designação para aquelas formações ideais que são ativadas por grupos  
humanos os quais, em termos práticos, retiram-nas do campo da possibilidade para o  
da efetividade diante das inflexões, crises e conflitos.  
É igualmente central sublinhar que toda formação ideal como resposta às  
condições de sua gênese apresenta, em graus específicos, uma missão social, uma  
finalidade, mas nem toda missão social apresenta eficácia objetiva como ideologia.  
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Problemas selecionados em determinação social do pensamento  
Igualmente, toda ideologia, no presente caso do processo espiritual analiticamente  
isolado, é também formação ideal com potência de eficácia que, no entanto, depende  
da práxis de grupos humanos para a conversão desse potencial em efetividade.  
São questões importantes explicitadas por Lukács e Chasin. Mas essas questões  
abrem outras potencialmente relevantes.  
Registramos, nessa última direção, que a eficácia de uma formação ideal como  
ideologia pode contrariar sua própria missão social original como resposta, insinuando  
que os grupos humanos não apenas tomam certas formações ideais, mas também as  
transformam em sentido diferente como serve de prova o marxismo como ideologia,  
originariamente proletária, sob a égide posterior do taticismo stalinista. Cabe dizer,  
em adição, que nem sempre as finalidades das formações ideais estão inteiramente  
claras aos agentes envolvidos a depender, também, do tipo de tais doutrinas (se  
política, filosófica, econômica etc.) uma vez que o pensamento econômico enquanto  
forma de consciência científica, por exemplo, que tem por material a produção da  
riqueza, como Marx registrou várias vezes, difere do pensamento filosófico ocupado  
com as grandes questões gerais da humanidade, como destacou Lukács. Haveria,  
portanto, uma especificidade do pensamento econômico como ideologia. O quanto  
essas diferenciações das “subnaturezas” das formações ideais comparadas implicam,  
por decorrência, possíveis modos diferenciados de efetivação como ideologias, é  
matéria a ser seriamente considerada, incluindo potenciais consequências para o  
“tríptico metodológico”.  
Há outras questões assemelhadas e que não devem ser deixadas de lado. Em um  
grupo de ideólogos, por exemplo, os quais formam, em conjunto, um objeto ideológico  
sob investigação, podem habitar discrepâncias de propósitos. Além disso, não é de  
menor importância a possibilidade segundo a qual os propósitos enunciados pelos  
mais destacados ideólogos divirjam da missão social efetivamente acionada e que  
anima ou animou certa formação ideal. Igualmente relevante é sublinhar que, como  
Lukács (2020, p. 182) demonstrou, a própria missão/função social pode sofrer  
alterações continuamente ao longo de estágios diferentes.  
Em suma, são questões que não devem ser ignoradas na tarefa de investigar os  
objetos ideológicos. De conjunto, a apreensão de que a função envolve tanto a missão  
social quanto a eficácia amplia, e não reduz, as possibilidades investigativas em  
determinação social do pensamento. Amplia não apenas tais possibilidades, mas  
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também as exigências.  
Aquém da eficácia, as minudências  
A diferenciação entre formas de consciência, de um lado, e formas de consciência  
vertidas em ideologias, de outro, auxilia na constatação de que as possibilidades dos  
estudos sobre objetos ideológicos são mais amplas do que inicialmente pode ser  
entrevisto. Isso porque, à primeira vista, o acento sobre a eficácia na determinação das  
ideologias, repitamos, como aspecto do condicionado “processo espiritual”, poderia  
sugerir que a preocupação científica estaria direcionada apenas para aquelas formas  
de consciência mobilizadas de fato por amplas expressões de classe.  
Entretanto, é perfeitamente admissível o estudo de objetos ideológicos que não  
obtiveram eficácia como ideologia. O próprio caso do integralismo no Brasil é um  
exemplo disso.  
Inicialmente, destaca-se a operação metodológica realizada por Chasin sobre o  
assunto. Diante do “tríptico metodológico lukácsiano”, o filósofo brasileiro adotou a  
resolução de “concretar efetiva análise imanente do discurso pliniano, deixando em  
graus mais abstratos as determinações relativas ao chão social em que aquele se pôs,  
e que no tríptico metodológico lukácsiano são designadas como análises de gênese e  
função social das ideologias” (CHASIN, 1978, p. 23). O operatório da análise respeita,  
como foi fartamente demonstrado pelo filósofo, a trama própria do objeto ideológico  
investigado, implicando, o que é aqui decisivo, a “necessidade de repetidas  
observações, cuidados, rastreamentos e precisas elaborações de minudências” (p. 24).  
Os fatores do “tríptico metodológico”, portanto, podem ser considerados  
separadamente. O que autoriza essa resolução é o próprio interesse de investigação  
porquanto ligado a problemáticas específicas segundo exigências do próprio campo  
científico. Expliquemos. O exemplo disso é o próprio material sobre o integralismo de  
P. Salgado. Ali a questão não parece ser de fato a eficácia (e duração) do integralismo  
na realidade brasileira. O material, é importante dizer, coleciona mais elementos da  
gênese do integralismo com base na regressividade das condições nacionais, do seu  
atraso, do que da funcionalidade objetiva dessa pretensa formação ideal que, como já  
indicamos, não parece ter sido vertida em ideologia no sentido da eficácia da missão  
social erigida de frear o processo de acumulação de capital no país e de retroceder  
segundo a utopia ruralista esboçada.  
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A resolução quanto à concreção da análise imanente correspondeu, nos termos  
do filósofo brasileiro, à problemática quanto à natureza específica do integralismo  
como formação ideal. Como “fragmento da consciência social no Brasil, o integralismo  
continuava indecifrado, oculto em convencional e abstrata definição como fascismo”,  
escreveu nosso autor. Diante dessa problemática, tratava-se então de “determinar sua  
efetiva natureza, especificá-la na especificidade brasileira” (CHASIN, 1978, p. 23). Tal  
era a necessidade científica que se impunha, e se impõe renovadamente, pela  
insistente identificação pura e direta, ainda corrente em muitos círculos intelectuais,  
entre integralismo e fascismo com base em certas características estéticas e discursivas  
superficiais. Aqui vale, portanto, o interesse no estabelecimento da verdade da coisa.  
A análise imanente levada adiante por nosso autor permitiu demonstrar o  
integralismo, em sua natureza específica, como expressão do atraso brasileiro, como  
fenômeno característico dessa particularidade regressiva. A utopia ruralista pliniana  
pretendeu inutilmente estancar o processo de acumulação de capital, orientando a seta  
da história para tendências mítico-reacionárias no plano político, econômico e  
filosófico de um “homem integral”, visceralmente ligado ao campo e sob tutela de um  
estado forte. O fascismo, como ideologia de mobilização para a guerra, distintamente,  
congregou regressividades que, no entanto, conviveram com a missão social,  
eficazmente realizada em seu tempo histórico, de continuidade do processo de  
acumulação daqueles países de formação tardia do capitalismo (Alemanha, Itália,  
Japão). Tratou-se de superar os obstáculos à acumulação do capital por via do  
expansionismo beligerante. O processo de objetivação do capitalismo hipertardio no  
Brasil por via colonial possibilitou uma configuração diferente, anti-industrialista, de  
negação reacionária do capitalismo, uma espécie de “romantismo dos trópicos”, a  
despeito de certas identidades quanto ao uso de símbolos, agremiações etc., e sem  
condições de acesso à negociação bélica imperialista já em sua segunda edição  
mundial.  
Essa conquista da análise imanente sobrevive à predileção por superficialidades  
com vasta penetração entre intelectuais no Brasil. Ao cabo, registra a possibilidade  
metodológica de considerar elementos do “tríptico metodológico” à luz das  
necessidades investigativas as quais são impostas ao interesse científico, isto é,  
configuram exigências ao conhecimento e não preferências subjetivas. Assim, a análise  
imanente, diante da tarefa de determinar a natureza de uma formação ideal, tem lugar  
sem os demais elementos metodológicos do tríptico a depender de problemáticas  
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específicas envolvidas. A mesma coisa se aplica às análises de gênese e de função.  
Uma vez mais, trata-se de uma ampliação das possibilidades investigativas.  
Da causalidade à preparação ideológica como campo investigativo  
Uma das dificuldades mais prementes no estudo da determinação social do  
pensamento está diretamente ligada ao estabelecimento das conexões entre  
determinada forma de consciência e seus efeitos objetivos uma vez vertida em  
ideologia. É um problema, na verdade, de grande parte do trabalho científico: o nexo  
causal. Talvez isso ajude a explicar o maior acento anteriormente destacado sobre o  
enraizamento histórico-social das formas de consciência do que sobre a eficácia das  
ideologias.  
Isso porque, em geral, parece que estudar a gênese, o aspecto condicionado do  
“processo espiritual”, apresenta menores obstáculos do que o movimento de deságue  
das formações ideais como ideologia naquele cotidiano que medeia, em termos  
práticos, tais formações e a estrutura econômica. Não é trivial estabelecer histórico-  
concretamente as reciprocidades envolvidas. A identificação anterior acerca do duplo  
caráter da função enquanto missão social e eficácia favoreceu essa constatação e,  
agora, nos coloca no plano dos nexos objetivos, das causalidades e reciprocidades  
indispensáveis ao próprio movimento de uma dialética a ser descoberta, trazida ao  
primeiríssimo plano em termos de conteúdos, detalhes, conexões. Aquele exemplo  
anterior de Marx é emblemático: as ideias de Smith como produto da manufatura e, ao  
mesmo tempo, como força de sua expansão. Como estabelecer o nexo expresso no  
segundo movimento?  
Um analista isento de A destruição da razão é levado a constatar essa dificuldade  
quanto à relação entre a potência do irracionalismo como ideologia do período  
imperialista e o nazifascismo alemão emanado da boca de Hitler e seus asseclas e  
confirmado em suas práticas vis, desumanizantes, bárbaras e horrendas. Há nesse nexo  
uma série de aspectos importantes.  
O primeiro deles é o post festum. Não configura qualquer novidade o lugar dessa  
questão para a análise científica das “formas da vida humana”, como escreveu Marx. A  
análise, segundo ele, “percorre um caminho contrário ao do desenvolvimento real”  
uma vez que ela “começa post festum e, por conseguinte, com os resultados prontos  
do processo de desenvolvimento” (MARX, 2013, p. 150). Em tais resultados prontos  
tendencialmente não está à mostra o processo histórico desdobrado. Em outros  
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termos, nas formas acabadas costumeiramente apagam-se os eventos, as contradições,  
o vai-e-vem, o acaso etc.  
Para o estudo do aspecto ativo da funcionalidade das ideologias, isto é, seu  
deságue e efeito na realidade social, essa questão precisa ser rigorosamente  
considerada. Como exemplo, Lukács nos deu o nazifascismo alemão. O estudo levado  
a cabo pelo filósofo magiar começou depois dos eventos que permitiram identificar  
aquilo pelo que se designa por nazifascismo como tal. Não significa que antes da coisa  
acabada, pronta, não se pudesse capturar e expressar tendências. Mas, como sabemos,  
são múltiplas as tendências e forças “contrarrestantes” no movimento histórico  
frequentemente efetivado “aos trancos e barrancos e ziguezagues” (ENGELS, 2010, p.  
475). Assim, a análise científica encontra condições mais adequadas com o objeto  
integralmente desenvolvido. Ou, como Chasin (2009) designou, a presença histórica  
do objeto, sua maturação objetiva.  
Diante do nazifascismo como objeto acabado, Lukács procurou traçar as linhas  
principais do irracionalismo alemão na transição entre os séculos XIX e XX como o  
fator ideológico de primeira ordem na explicação dos eventos que culminaram no  
nazifascismo naquele país. Aqui se encontra um “complexo de complexidades”, por  
assim dizer, que merecem consideração. Sobretudo por remeter diretamente ao  
problema do nexo objetivo entre a ideologia e seus efeitos, isto é, ao problema das  
causalidades objetivas, não imputadas pela subjetividade do analista.  
Quando o assunto são fatores superestruturais, tais como a política e o direito,  
a captura dos nexos e reciprocidades parece acomodar obstáculos de qualidade  
específica. Entre os muitos exemplos possíveis, cabe o destaque, em termos gerais,  
aos efeitos contraditórios das legislações sociais nos diversos países, sobretudo  
ocidentais, nas tarefas envolvidas simultaneamente na frenagem racional diante do  
impulso voraz e destrutivo do capital, parafraseando Marx (2013), na acomodação dos  
conflitos sociais, no desenvolvimento da própria classe de trabalhadores. No Brasil,  
em particular, a legislação trabalhista teve notórios efeitos sobre a organização,  
reivindicação e mesmo a forja daquela classe trabalhadora a partir dos anos de 1930.  
Além disso, essa legislação obteve efeitos profundos na mobilização dessa classe,  
alcançando o contexto de muitas décadas adiante. Embora persistam desafios da  
demonstração empírica da funcionalidade desse aspecto superestrutural, seu grau de  
materialidade serve como plataforma mais firme.  
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A natureza dos condicionados processos espirituais, por notório caráter mais  
abstrato e menos materializado, coloca obstáculos maiores ao estabelecimento de  
nexos. Ainda assim, aqui, como em qualquer outra parte, vale o peso dos casos  
concretos no quesito de tais nexos.  
O caso de A destruição da razão é ilustrativo. O conjunto dos ideólogos  
considerados por Lukács são aproximados principalmente de posições de intersecção  
entre a filosofia e a sociologia. Apesar das diferenças, havia no essencial elemento de  
identidade que, diante das condições históricas de crise, admitiu uma espécie de  
apologia indireta ao modo de produção capitalista. A missão social do irracionalismo  
como apologética indireta é capturada na comparação com a apologética direta:  
Enquanto que a apologética direta está empenhada em apagar as  
contradições do sistema capitalista, em refutá-las de maneira sofística,  
em fazê-las desaparecer, a apologética indireta irá partir justamente  
dessas contradições, reconhecendo sua existência factual, a  
impossibilidade de sua negação enquanto fato, mas dando-lhes uma  
interpretação que apesar disso tudo as torna vantajosas para a  
existência do capitalismo. Enquanto a apologética direta está  
empenhada em apresentar o capitalismo como a melhor das ordens,  
como o cume destacado e definitivo do desenvolvimento humano, a  
apologética indireta destaca, de modo grosseiro, os lados negativos  
e os horrores do capitalismo; mas não os declara como características  
do capitalismo, mas da vida humana, da existência em geral. Disso  
deriva, então, necessariamente, que uma luta contra esses horrores  
apareça de antemão não apenas como vã, mas como algo sem sentido,  
pois significaria a autossuperação da essência humana (LUKÁCS,  
2020, pp. 181-182).  
Tratou-se do anticapitalismo romântico surgido nesse ambiente de crise, como  
sugeriu o filósofo magiar, “procurando evitar que as tensões e explosões decorrentes  
disso se voltem contra o capitalismo” (LUKÁCS, 2020, p. 562).  
E como essa missão social foi efetivada? Por meio de um conjunto de mediações,  
respondeu Lukács, sem, contudo, grande envergadura em termos de demonstração  
por parte de nosso autor. Antes de considerar os motivos disso já aludidos por  
ensejo das dificuldades no estabelecimento de nexos , é decisivo destacar tais  
mediações indicadas no desdobramento da ideologia em tela:  
(...)a visão de mundo alemã do período imperialista avançou (...) de  
Nietzsche a Spengler e depois, no período de Weimar, de Spengler ao  
fascismo. Se remontarmos essa preparação ideológica da filosofia  
alemã até Schopenhauer e Nietzsche, poder-se-ia contestar que se  
tratava de doutrinas esotéricas difundidas apenas em círculos muito  
restritos. Acreditamos, porém, que não se pode subestimar o efeito  
indireto, subterrâneo das ideologias reacionárias ao novo modismo  
(...). Esse efeito não se limitava à influência exercida indiretamente  
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pelos livros dos filósofos, embora não se possa ignorar que as edições  
das obras de Schopenhauer e de Nietzsche alcançavam certamente  
muitas dezenas de milhares. Mas as universidades, as conferências, os  
jornais e outros meios de difusão faziam com que essas ideologias se  
estendessem às vastas massas, com certeza de modo vulgarizado,  
mas com isso seu conteúdo reacionário, seu íntimo irracionalismo e  
seu pessimismo, que se encontram em tais doutrinas, foram antes  
intensificados do que enfraquecidos, já que, assim, as teses centrais  
acabaram por predominar sobre as possíveis restrições e  
ponderações. As massas foram fortemente envenenadas por tais  
ideologias sem que jamais tenham colocado os olhos sobre a fonte  
direta do envenenamento. A barbarização nietzschiana dos instintos,  
sua filosofia da vida, seu “pessimismo heroico” etc. são produtos  
necessários do período imperialista, e o aceleramento desse processo  
provocado por Nietzsche pôde surtir efeito em milhares e milhares de  
pessoas que sequer conheciam o seu nome (LUKÁCS, 2020, p. 77).  
A ideologia circulou por meio dos livros publicados, das universidades, das  
conferências, dos jornais etc., e alcançaram os salões e cafés. A vulgarização ganhou  
contornos mais toscos pela mediação política. Como escreveu Lukács (2020, p. 78),  
“Hitler e Rosenberg levaram para as ruas tudo que foi dito sobre o pessimismo  
irracionalista desde Nietzsche e Dilthey até Heidegger e Jaspers em confortáveis  
poltronas de couro, em salões intelectuais e cafés”. A política atendeu, completou  
Lukács (2020, p. 627) mais adiante, às demandas dos “círculos mais reacionários dos  
Junkers e dos grandes capitalistas alemães”, uma vez que “retirou dos salões e levou  
para as ruas a ideologia reacionária mais extremista, modernizada sob medida para os  
novos tempos”. Por via da política, então, tal ideologia obteve condições de sedução  
e mobilização das massas. Teve, enfim, eficácia. Assim, há um tipo de nexo entre (1)  
os objetos ideológicos outrora produtos da economia imperialista que (2) circularam  
pelas mediações (universidades, conferências, jornais etc.), (3) atingindo os salões e os  
cafés e (4) alcançando as ruas e o cotidiano de modo massivo.  
Admitamos que esse nexo se equilibra com dificuldades probantes, cabendo  
inclusive investigação complementar para aprofundar esse movimento de deságue do  
irracionalismo na vida cotidiana e, daí, ao embaraço desumanizante do nazifascismo.  
A folga na amarração, que todo leitor rigoroso não pode ignorar, tem esse componente  
autêntico, demandando avanço na pesquisa histórica da funcionalidade da ideologia  
em tela. Trata-se de aprofundar a hipótese lançada sobre o papel das universidades,  
conferências, jornais etc.  
Mas, o que é mais importante, também tem um componente falso quando se  
poderia imaginar a possibilidade de obter uma causalidade linear. Assim como não  
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existe uma linha mecânica entre estrutura econômica, cotidiano e superestrutura  
ideológica, não existe também no movimento contrário. Para Lukács era muito clara a  
preparação ideológica, em seus termos, desempenhada por tal filosofia irracionalista,  
quer dizer, o papel desempenhado pela ideologia em questão na preparação do  
terreno, no fornecimento de matéria-prima ideal, por assim dizer, como um fator  
indispensável de articulação das condições subjetivas aos processos que levaram à  
visão nacional-socialista e, pois, ao nazifascismo alemão.  
O holocausto teria ocorrido sem a presença do irracionalismo alemão? Lukács  
responderia que seria muitíssimo improvável uma vez que lhe faltaria as condições  
subjetivas fornecidas como recurso. Mas ao mesmo tempo não foi o irracionalismo a  
causa do nazifascismo, que fique bem claro, uma vez que este encontrou sua raison  
d'etre em condicionantes objetivos do período imperialista, isto é, emergiu como  
resposta prática às necessidades de expansão dos capitais nacionais por via da  
mobilização de guerra de países de objetivação capitalista tardia e, portanto,  
constrangidos por uma dada repartição consolidada de mercados consumidores e  
fornecedores, principalmente por parte das economias estadunidense, francesa e  
inglesa. Mas, a compreensão de conjunto não dispensa, de modo algum, o papel da  
preparação ideológica, sobretudo para o caso Alemão que guarda especificidades  
nesse aspecto das condições subjetivas se comparado ao japonês, por exemplo, este  
constituindo-se um caso a ser investigado em razão da própria ausência de uma  
filosofia irracionalista na preparação ideológica.  
A hipótese lukácsiana relacionada às mediações que levaram ao deságue no  
cotidiano não parece ter recebido tanta investida por parte de seu propositor quanto  
a análise imanente realizada sobre o conjunto dos autores da filosofia irracionalista.  
Chasin (1978) se aproximou muito mais disso, como já anotado, deixando mais em  
abstrato as análises de gênese e de função quando o assunto foi a natureza específica  
do integralismo no Brasil. Abre-se sala para investigações aprofundadas, sobretudo  
no caso alemão, por se tratar de uma ideologia com eficácia a princípio, de fato,  
realizada. Tais investigações adicionais exigem, obviamente, uma coleção de  
evidências rigorosamente colhidas e apresentadas que permitam demonstrar tais  
nexos ainda que sejam de outra qualidade, sem necessariamente haver causalidades  
lineares. Tais evidências colecionadas devem romper, adicionalmente, com o limite  
meramente circunstancial, indicando a preparação ideológica para o caso concreto  
alemão. Igualmente, a recomendação tem validade para outros casos associados ou  
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não.  
Da localização clássica à classicidade movente e múltipla das ideologias  
Em seus estudos sobre o “modo de produção capitalista e suas correspondentes  
relações de produção e de circulação”, Marx (2013, p. 78) considerou explicitamente  
que, àquele tempo, sua “localização clássica é, até o momento, a Inglaterra”. Essa seria,  
explicou ele, a “razão pela qual ela serve de ilustração principal à minha exposição  
teórica”. Estamos diante de uma questão já aludida outras vezes, a partir das  
considerações de Chasin (2009), sobre a presença histórica do objeto, isto é, a forma  
mais desenvolvida do modo de produção permitiria seu estudo mais apurado  
precisamente por ser a forma historicamente mais acabada até dado momento,  
grifemos, seguindo Marx acima. A importância da matéria justifica a ênfase:  
Nenhum período da sociedade moderna é tão propício ao estudo da  
acumulação capitalista quanto o dos últimos 20 anos. (...). De todos  
os países, porém, é novamente a Inglaterra que oferece o exemplo  
clássico, e isso porque ela ocupa o primeiro lugar no mercado  
mundial, porque somente aqui o modo de produção capitalista se  
desenvolveu em sua plenitude e, finalmente, porque  
o
estabelecimento do reino milenar do livre-câmbio, a partir de 1846,  
privou a economia vulgar de seu último refúgio. (MARX, 2013, p. 723)  
Vê-se que o caso clássico é a reunião de condições e fatores que refletem o mais  
alto desenvolvimento do modo de produção capitalista.  
Por seu lado, o irracionalismo analiticamente considerado por Lukács (2020, p.  
20) encontrou seu “caso clássico na Alemanha”, onde esboçou traços específicos e  
grandes repercussões mundiais.  
Se a classicidade do modo de produção capitalista foi garantida, na década de  
1860, por uma reunião daquela qualidade de desenvolvimento mais avançado de  
diferentes fatores, a classicidade do irracionalismo foi condicionada, ao contrário, pelo  
atraso do contexto histórico alemão, pela “miséria alemã” frequentemente retratada  
por Marx ao longo de todo o seu itinerário intelectual. Tendo o condicionado processo  
espiritual em nossa mira, já na juventude Marx chegou a considerar que  
Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do direito -  
este pensamento extravagante e abstrato acerca do estado moderno,  
cuja realidade permanece no além (mesmo se este além fica apenas  
do outro lado do Reno) (...). Em política, os alemães pensaram o que  
as outras nações fizeram. A Alemanha foi a sua consciência teórica. A  
abstração e a presunção da sua filosofia seguiam lado a lado com o  
caráter unilateral e atrofiado da sua realidade (MARX, 2005, p. 151).  
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Apesar desses lineamentos de Marx sugerirem a Alemanha como caso clássico  
do idealismo especulativo precisamente por suas condições regredidas, atrofiadas, não  
é uma posição tão explícita quando o foi para o caso da classicidade do modo de  
produção capitalista na Inglaterra à luz de O capital.  
Essa é uma constatação que todo estudioso isento se vê obrigado a fazer. Mesmo  
a busca de Lukács por fundamentação nas observações de Engels (2010, p. 475;  
1959, p. 348), a respeito do método lógico e histórico executado por Marx em  
Contribuição à crítica da economia política, teve que necessariamente remeter à análise  
do modo de produção em sua “plena maturidade, sua forma clássica” e não,  
explicitamente, à classicidade das formações ideais.  
A questão em tela é o reconhecimento de uma derivação do caso clássico do  
desenvolvimento do modo de produção capitalista para a designação da classicidade  
da ideologia tal como operada pelo filósofo magiar. Essa derivação não traz consigo  
qualquer invalidação ou obstrução. Ao contrário, abre para questões relevantes à  
análise de gênese das formações ideais e as decorrentes problemáticas para a  
classicidade das ideologias sem, porém, produzir uma identidade necessária entre  
gênese e caso clássico. Esse último aspecto esteve bem claro a Lukács quando indicou  
que o fascismo teve gênese na Itália, mas encontrou maior desenvolvimento na  
Alemanha.  
Uma dessas questões a serem consideradas, ainda que já aludida, é o duplo  
aspecto qualitativo da classicidade. De um lado, a consideração da reunião dos  
principais fatores objetivos habilitadores da determinação do caso clássico em sentido  
avançado e, de outro lado, em sentido regredido. Os estudos de gênese tanto do  
irracionalismo alemão quanto do integralismo no Brasil, por exemplo, extraíram as  
explicações para tais formações ideais (vertidas em ideologia ou não, não importa) a  
partir das condições atróficas e hipertróficas da objetivação do capitalismo em cada  
uma das particularidades envolvidas respectivamente. As chamadas via prussiana e via  
colonial, cada qual com suas especificidades a despeito de semelhanças,  
corresponderam precisamente às objetivações capitalistas tardias, em meio ao atraso,  
e sem os processos transformadores testemunhados na Inglaterra e na França, por  
exemplo, considerados como via clássica de tal objetivação.  
Não é pouca coisa, entretanto, sublinhar que a correspondência entre uma  
formação ideal e a regressividade objetiva das condições materiais em uma  
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particularidade decorre, nos casos aludidos, da investigação de objetos ideológicos  
específicos. A derivação da classicidade da ideologia tendo por eixo o caso clássico  
do modo de produção garante, por coerência, a possibilidade da análise de formações  
ideais correspondentes às condições objetivas mais avançadas. Do contrário, induziria  
à percepção, de resto equivocada, segundo a qual os objetos ideológicos  
necessariamente são colocados invariantemente como doutrinas adversárias, a serem  
combatidas, denunciadas. Essa é uma consideração relevante.  
Outra questão fundamental vai além da suposição de que a classicidade é apenas  
o arranque, coisa congelada e sem movimento. A despeito do fato de que o caso  
clássico do irracionalismo se materializou na Alemanha, particularidade histórica na  
qual foram esboçados os traços específicos, o irracionalismo é um “fenômeno  
internacional” tanto “na sua luta contra o conceito burguês de progresso, quanto  
também na luta contra o socialismo” (LUKÁCS, 2020, p. 20). Tratou-se de uma  
tendência identificável antes da primeira grande guerra, atingindo “formas altamente  
desenvolvidas em quase todos os países que ocupam as principais posições no  
período imperialista” (p. 21). Entretanto, em cada particularidade desdobraram-se  
modos diversos de sua ocorrência, sempre sob dependência das condições históricas  
concretas. Existem, portanto, traços específicos de cada ocorrência, dado o “processo  
de desenvolvimento desigual do imperialismo” (p. 21), mas também os traçados de  
identidades em consequência da circunstância de que em todos esses centros  
constituíram-se elementos comuns dessa mesma economia imperialista. Por isso vale  
o registro de que “necessidades ideológicas semelhantes, determinadas como tais pela  
economia imperialista, produzem, em condições sociais concretas distintas, variantes  
bem diferentes e até mesmo, se observadas superficialmente, contraditórias entre si”  
(p. 21). Assim, vemos o processo de difusão do irracionalismo desde o caso clássico  
alemão, atingindo, por exemplo, o intuicionismo na França (Bergson) e o pragmatismo  
nos Estados Unidos (James).  
Indo além dessa difusão, a lição preventiva de Marx sobre a classicidade do modo  
de produção na Inglaterra é perfeitamente aplicável à classicidade das formações  
ideais. Na medida em que a “localização clássica” desse modo de produção foi “até o  
momento, a Inglaterra” da década de 1860, deslocando-se adiante para os Estados  
Unidos no século XX, é coerente considerar, por extensão e como possibilidade, o  
caráter movente da classicidade das formações ideais.  
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Para isso, entretanto, não temos à disposição exemplos deixados pelos mestres.  
Devemos recorrer, para esse fim, à uma breve hipótese de trabalho sobre a ideologia  
do desenvolvimentismo a partir da inicial coleção de materiais. Seu núcleo guarda a  
missão social com tonalidade nacionalista de simultaneamente acelerar o processo de  
acumulação do capital e aplacar o conflito classista, sobretudo nas particularidades  
históricas de condições objetivas regredidas. Assim, é possível sublinhar sua gênese  
entre os protecionistas alemães, na figura emblemática de Friedrich List. A hipótese, a  
partir de certas evidências colecionadas, diz respeito à localização clássica da ideologia  
desenvolvimentista na Alemanha do período bismarckiano, porquanto estariam  
reunidos, dadas as bases sociais específicas, muitos aspectos bastante desenvolvidos  
tais como o industrialismo, legislações sociais, apelo nacionalista antirrevolucionário,  
sob as vestes de um prussianismo-burocrático refratário a qualquer socialização  
democrática (LUKÁCS, 2019). Tudo isso correspondente ao atraso alemão.  
Há muitas evidências históricas de que essa ideologia obteve eficácia se  
considerado o rápido avanço econômico, pelo menos, da Alemanha frente aos países  
mais avançados, como registram as mais diversas fontes históricas. Essa ideologia  
ramificou-se, no século XX, primeiro aos países do leste europeu até a Rússia e, depois,  
aos países latino-americanos. Naqueles, a ideologia teve curta duração uma vez que o  
caminho revolucionário foi trilhado e com os desfechos registrados na história. Mas na  
América Latina, sobretudo na Argentina e no Brasil, a ideologia obteve condições  
muito mais favoráveis de florescimento e efetividade diante da premente  
industrialização muito tardia em meio a conturbado processo de acomodação, pelo  
alto, do conflito social, em condições bélicas das quais não se pôde extrair alternativas  
expansionistas a tais países subordinados. Todas as condições retardatárias  
encontravam-se reunidas, com a diferença de que o colonialismo escravagista impunha  
particularidades importantes que não devem ser ignoradas. O desenvolvimentismo  
encontrou na via colonial de objetivação do capitalismo, como tal, uma trilha não  
expansionista e não revolucionária. Nesse último aspecto, tratou-se de acomodação  
do poder “pelo alto” entre agrarismo e industrialização fechada à participação popular.  
Encontrou por essa via certas condições para a mobilização de uma ideologia  
correspondente ao atraso, porém, modernizante dentro dos horizontes burgueses e  
com considerável protagonismo estatal. É notória a influência que essa ideologia  
obteve nesses países, sobretudo no desenho de políticas econômicas e sociais de  
ampla duração (inclusive sob as vestes mais recentes de um chamado  
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neodesenvolvimentismo, o que comprova quão longeva é essa ideologia e seus efeitos  
nas condições nacionais de integração subordinada ao mercado mundial).  
Portanto, a hipótese aventada é aquela segundo a qual a classicidade da  
ideologia em questão foi concretamente deslocada da Alemanha para a América Latina,  
com destaque ao Brasil. Essa possibilidade de deslocamento não deve ser ignorada  
na análise de gênese e da classicidade das formações ideais, levando-se em conta,  
como dissemos antes, a não exigência de identidade congelada entre gênese e caso  
clássico. Antes de tudo, a realidade objetiva é movimento, processo de lógica própria,  
como ensinou Marx, e, como tal, deve ser a fonte da palavra final.  
Vale o exemplo negativo do integralismo à hipótese do deslocamento. Podemos  
admitir que tal formação ideal, que jamais chegou a ser efetivamente vertida em  
ideologia (com eficácia e duração), teve gênese como fenômeno típico do processo de  
objetivação capitalista pela via colonial. Foi, como dissemos, resultante das  
regressividades nacionais. Estiveram reunidas as condições propícias àquela formação  
ideal, de talhe ruralista, expressando uma “crítica regressiva do liberalismo” (CHASIN,  
1978, p. 551). Não apenas foram condições propícias para a gênese, mas também  
para a designação de sua classicidade. Aqui, nesse caso, gênese e caso clássico  
parecem se identificar e não há, até o momento, evidências de deslocamento do  
integralismo para outros países, mesmo porque, como tudo indica, permaneceu como  
ideologia apenas em potência.  
Mas, como em qualquer caso, vale sempre o concreto e não uma teoria geral das  
ideologias. Essa lição é retirada da constatação de outra questão relevante para a  
análise de gênese a partir do estudo do irracionalismo alemão. Vimos que sua  
localização clássica foi a Alemanha. Difundiu-se em seguida, tornando-se “fenômeno  
internacional” ainda que não homogeneamente na medida do desenvolvimento  
desigual das economias imperialistas de então. Há evidências, entretanto, de que  
certas formações ideológicas de relevo eclodiram como fenômeno internacional de  
nascença.  
Tudo indica ser o caso, por exemplo, da economia política clássica. Marx (2013,  
p. 438) escreveu que ela teria surgido “como ciência própria no período da  
manufatura”, isto é, como específica forma de consciência científica. Considerou que  
sua gênese teve arranque na Inglaterra, com William Petty, e na França, com  
Boisguilebert” (MARX, 1961, p. 37; 2010, p. 292. Cf. também MARX, 2011, p. 27).  
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Em nota acrescentou que um trabalho comparativo sobre os escritos e personalidades  
de Petty e Boisguillebert, além de destacar os antagonismos sociais da Inglaterra e da  
França no final do século XVII e início do século XVIII, poderia ser a exposição genética  
do contraste nacional entre a economia política inglesa e francesa” (MARX, 1961, p.  
37-38). Salvaguardadas as diferenças, as condições gerais do período em ambos os  
países forneceram o “terreno vivo da economia política” (MARX, 2013, p. 84) e  
possibilitou o desenvolvimento daquela formação ideal.  
Devemos recorrer a outro exemplo complementar sintético. Há alguma discussão  
quanto à pureza do chamado “neoliberalismo” praticado pelas economias centrais  
desde o final da década de 1970 por haver evidências de hibridismo prático entre  
keynesianismo-escola austríaca-escola de Chicago na condução das políticas  
econômicas. Esse hibridismo decorreu do fato da renovação do liberalismo nos anos  
de 1930 que garantiu uma comunidade de princípios fundamentais acerca da  
conservação do capitalismo ainda que contrariamente à afetação de seus ideólogos  
mais destacados , mas com divergências, de superfície, quanto ao método de  
administração política do capital (PAÇO CUNHA, 2022b). Nesses termos, o  
“neoliberalismo” acomodou constitutivamente variantes renovadas do liberalismo  
diante da ortodoxia liberal e da alternativa socialista, divergindo sobre como produzir  
as melhores condições de expansão permanente do capital sob a administração ad  
infinitum das contradições envolvidas. Uma dessas variantes foi composta pela  
formação ideal que ganhou contornos mais acabados na experiência da Mont Pelèrin  
Society, inicialmente sob direção do professor Hayek, e depois efetivamente como  
elemento no hibridismo prático aludido. A análise de sua gênese sugere uma  
plataforma transnacional, no entanto, e não uma localização singular. Há evidências de  
uma articulação transatlântica para o seu desenvolvimento (MIROWSKI; PLEHWE, 2009,  
REINHOUDT; AUDIER, 2018).  
Com esses dois exemplos (da economia política clássica e do “neoliberalismo”)  
queremos sugerir que a classicidade das formações ideais e das ideologias pode não  
ter uma localização única, em “um só país”, mas múltipla, isto é, internacional de  
partida.  
Uma vez mais, a não identidade necessária entre gênese e caso clássico, o  
deslocamento da classicidade e a possibilidade da multiplicidade envolvida, ampliam  
as chances de investigação em determinação social do pensamento por ensejo das  
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Problemas selecionados em determinação social do pensamento  
vastas contribuições indicadas.  
*
* *  
Depois das considerações realizadas e tendo observado alguns aspectos  
centrais, é imperativo registrar que a seleção aqui apresentada dos problemas em  
determinação social do pensamento não é exaustiva. Tampouco o é aquele tratamento  
dado a eles. O propósito foi sugerir problemas avançados no caminho ao cume  
escarpado. As melhores chances começam com identificação de alguns deles.  
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REINHOUDT, J.; AUDIER, S. The Walter Lippmann Colloquium. Springer International  
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Elcemir Paço Cunha  
Publishing, 2018. https://doi.org/10.1007/978-3-319-65885-8  
VAISMAN, E. A ideologia e sua determinação ontológica. Verinotio Revista on-line de  
Filosofia e Ciências Humanas, n. 12, ano VI, 2010. Disponível em  
<https://bit.ly/3g2VgKP>  
Como citar:  
PAÇO CUNHA, Elcemir. Problemas selecionados em determinação social do  
pensamento. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 123-146, Edição Especial,  
2022/2023.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2020.28.1.665  
J. Chasin e a crítica do tríplice amálgama:  
explorando origens e consequências  
J. Chasin and the critique of the “triple amalgam”:  
exploring origins and consequences  
Alexandre Aranha Arbia*  
Resumo: Explorando a crítica do “tríplice  
amálgama” que J. Chasin desenvolve em Marx:  
estatuto ontológico e resolução metodológica,  
texto de 1995, este artigo procura retomar, em  
um procedimento expansivo, os textos indicados  
pelo marxista brasileiro, a fim de verificar a  
gênese teórica de sua posição crítica. Para tanto,  
revisita os textos de Kaustky, Lênin e, sobretudo  
Engels, demonstrando que, na busca por precisar  
o estatuto da cientificidade marxiana, Chasin  
fornece as pistas para encontrarmos não apenas  
a originalidade de Marx, mas a autenticidade do  
próprio filósofo de Barmen. Neste percurso, não  
apenas o problema do método, como ainda a  
reanálise da política, o lugar da determinação  
econômica e a definição da ideologia encerram o  
quadrado engelsiano.  
Abstract: Exploring the critique of the “triple  
amalgam” that J. Chasin develops in Marx:  
ontological statute  
and  
methodological  
resolution, text from 1995, this article seeks to  
resume, in an expansive procedure, the texts  
indicated by the Brazilian Marxist, in order to  
verify the theoretical genesis of its critical  
position. To do so, it revisits the texts of  
Kaustky, Lenin and, above all, Engels,  
demonstrating that, in the quest to clarify the  
status of Marxian scientificity, Chasin provides  
the clues to find not only the originality of Marx,  
but the authenticity of the philosopher of  
Barmen. In this path, not only the problem of  
method, but also the reanalysis of politics, the  
place of economic determination and the  
definition of ideology enclose the Engelsian  
square.  
Palavras-chave: J. Chasin; Marxismo; Friedrich  
Engels; método marxista; política; Karl Marx.  
Keywords: J. Chasin; Marxism; Friedrich Engels;  
Marxist method; policy; Karl Marx.  
Não há dúvidas de que J. Chasin foi um dos mais originais marxistas brasileiros.  
Suas proposições, nem sempre de fácil assimilação, crivadas de polêmicas, quase  
sempre virulentas nas críticas, estranhamente não tiveram a mesma repercussão de  
sua força argumentativa. De qualquer modo, a classe trabalhadora de um país que  
patina em sua miséria genética, no hibridismo de suas formas sociais excrescentes, nas  
ideologias pequeno-burguesas que tomam permanentemente de assalto os interesses  
* Doutor em serviço social pela UFRJ, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Serviço  
Social da UFJF. E-mail: alexandre.arbia@ufjf.br.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, 30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Alexandre Aranha Arbia  
do trabalho, não pode se dar ao luxo de não examinar rigorosamente cada um dos  
grandes nomes do pensamento brasileiro, especialmente quando, no seio do  
marxismo, esses nomes apontam, sem ecletismos ou irracionalismos, para formas  
absolutamente inéditas de interpretação (do pensamento e da realidade). Este é o caso  
de J. Chasin.  
Neste artigo, proponho-me a examinar mais de perto algumas afirmações do  
autor, procedendo a uma “abertura” de suas indicações que, muitas vezes de modo  
ensaístico, terminam por apresentar demonstrações demasiado condensadas. Parece-  
me certeira afirmação de que J. Chasin deixou um programa de estudos a ser  
esquadrinhado, para ratificação ou retificação. Um programa que, em todas as suas  
polêmicas da questão do método à ontonegatividade da politicidade, da recusa das  
interpretações comuns sobre à realidade brasileira à crítica da esquerda, da revisitação  
à história do pensamento ocidental à justa recolocação de Marx, da crítica do  
socialismo de acumulação aos entraves do presente e do futuro (ou da ausência dele)  
, traz como fio condutor a mesma preocupação do velho mestre alemão: os caminhos  
para a emancipação humana. Afinal, em última instância, é disso que se trata toda a  
obra de Marx: a questão da emancipação humana.  
Não é possível, em um artigo, condensar resultados de um estudo que, em  
verdade, deve ser expandido e não sintetizado. Assim, neste breve trabalho, não tenho  
por objetivo ficar “seguindo o fio” da obra geral de J. Chasin, escavando onde essa ou  
aquela questão aparece pela primeira vez e o modo como vai se desenvolvendo no  
pensamento do autor ao longo dos anos. Este, talvez, o expediente mais apropriado e  
coerente com o seu legado, e adequado ao leitor que se interessa por seu  
pensamento1. Meu objetivo aqui será o de expandir a trilha já aberta nos textos do  
autor brasileiro ainda que na apertada síntese de um artigo revisitando a crítica do  
“tríplice amálgama”, para compreendê-la em seus fundamentos.  
1- Na rota de Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica  
Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica (CHASIN, 2009) (doravante,  
EORM) traz para primeiro plano duas questões que, de certo modo, ocupam boa parte  
1
Ademais, outros intelectuais já o fizeram, seja apresentando o legado do autor, seja desenvolvendo  
pesquisas a partir do desdobramento de suas ideias. Basta lembrar aqui Ester Vaisman, Antônio Rago,  
Vera Cotrim, Ivan Cotrim, Sabina Maura da Silva, Ana Selva Albinati, Antônio Lopes Alves, Ronaldo Vielmi  
Fortes, Mônica Hallak Costa, Vânia Assunção, Vitor Sartori, Claudinei Cássio de Rezende, Lúcia Sartório,  
Elcemir Paço Cunha, dentre outros.  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 147-182 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
das energias de Chasin. A raison d’être do texto já está impressa no título: uma busca  
pela virada, de caráter ontológico, que a cientificidade marxiana imprime nas ciências  
sociais. Já a segunda, consequência inextricável da primeira, ocupa boa parte das  
energias de Chasin desde, pelo menos, o fim dos anos 1970: a questão da  
ontonegatividade da politicidade.  
A questão da ontonegatividade da politicidade, na elaboração de Chasin, não é  
gratuita ou despropositada; também não se trata de artilharia conjuntural para abater  
desafetos teóricos e políticos. O problema do lugar da política, na elaboração marxiana,  
surge para Chasin “naturalmente”, em seu processo de seguir cronológica e  
imanentemente a evolução do pensamento marxiano. E, justamente nessa perseguição  
febril pelo autêntico desenvolvimento de Marx, livre de imputações ao gosto do  
observador, que Chasin se depara com uma crítica do pensamento político hegeliano.  
Mas, se não há ineditismo na constatação da crítica de Marx à politicidade em  
Hegel (ao contrário, essa verificação pode ser considerada até mesmo trivial), o mesmo  
não se pode dizer em relação ao peso que dita crítica adquire na leitura do autor  
brasileiro. Para Chasin, não se trata de simples acidente de percurso, caminho fortuito  
para o abandono do hegelianismo, determinação temporal e dialógica que impinge a  
Marx o combate contra o hegelianismo de esquerda, ao qual se filiara em determinado  
período. Pelo contrário, essa ruptura enquadra-se na reformulação mais profunda de  
caráter ontológico que Marx impõe como clivagem na filosofia2.  
No caso de Chasin, há sinais bastante claros da consolidação de seu  
entendimento do problema já nos textos que aparecem em fins dos anos 1970, mais  
precisamente em dois escritos de 1977: Sobre o conceito de totalitarismo (CHASIN,  
1977), publicado no v. 1 da Temas de Ciências Humanas, e A “politicização” da  
totalidade: oposição e discurso econômico (CHASIN, 1977a), publicado no mesmo ano,  
no v. 2 da mesma revista.  
Portanto, da distensão à institucionalização da autocracia burguesa, dos fins de  
1970 ao longo de toda a década de 1980, J. Chasin vem “pensando com Marx” a  
miséria brasileira, os (des)caminhos de seu capital atrófico, o perfil e o projeto de suas  
2 Em oportunidade anterior, empreendi também essa viagem em busca das posições de Marx a respeito  
da política. Salvo melhor juízo, não existe, ao longo de toda a sua trajetória, uma reformulação de sua  
avaliação crítico-negativa da politicidade. A síntese dessas conclusões pode ser encontrada em Arbia  
(2021).  
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Alexandre Aranha Arbia  
classes e as alternativas (ou ausência delas); insere-se no combate teórico e político;  
sem dissociá-los, mas também sem confundi-los. E é justamente em 1995, em um  
posfácio aportado à obra de Francisco Teixeira (Pensando com Marx: uma leitura  
crítico-comentada de O capital TEIXEIRA, 1995), que o autor apresenta de modo  
mais sistemático ainda que ensaístico, sua elaboração.  
Por sua extensão e originalidade, o posfácio de 1995, intitulado Marx: estatuto  
ontológico e resolução metodológica (CHASIN, 1995), posteriormente republicado  
como obra autônoma sob o mesmo título (CHASIN, 2009), revela um esforço teórico  
de demonstrar a originalidade específica do pensamento marxiano. Sem tentar  
esconder a decisiva influência de Lukács ainda que Chasin se dedique a uma crítica  
do marxista magiar, no quarto final da obra , Chasin, ao longo de uma apertada  
síntese de aproximadamente 100 páginas (nas quais se concentra o núcleo-duro de  
sua exposição), apresenta, a despeito de possíveis críticas ou louvores, uma leitura  
inegavelmente original da obra marxiana. Interessa aqui percorrer as indicações da  
primeira parte mais precisamente, do capítulo de abertura às quais me aterei. O  
capítulo sobre A resolução metodológica(CHASIN, 2009, pp. 89 ss), cuja  
interpretação absolutamente inédita da Introdução de 1857 (MARX, 2011) merece um  
estudo à parte, não será objeto de avaliação neste artigo.  
Em EORM, Chasin empreende uma leitura imanente e contextual da obra de Marx,  
mas sem gastar o mesmo espaço para demonstrações exaustivas, como a que nos  
acostumou em O integralismo de Plínio Salgado, por exemplo (CHASIN, 1999). Na tese  
doutoral, o esforço em acompanhar o modus operandi de Lukács em A destruição da  
razão (LUKÁCS, 2020), conferia à análise da ideologia uma justa exposição probante.  
Aqui, em EORM, o caráter enxuto do texto confere solidez na unidade argumentativa,  
mas, em alguns momentos, perda na extensão demonstrativa.  
Todavia, é interessante, no que diz respeito à estilística, sua pontualidade e  
precisão. Já de início, destaca-se seu óbvio expediente: Chasin lê Marx  
cronologicamente. E, por meio dessa leitura “cronológica”, consegue estabelecer, sem  
elaborar uma biografia estrita do autor tratado, a gênese e o desenvolvimento de seu  
universo categorial, em estreita conexão com os dilemas de sua vida e sua época.  
Chasin elabora, em seu texto enxuto, um inventário do ideário marxiano, tal como nos  
processos de liofilização, que, ao expelirem a água, conservam as propriedades  
essenciais.  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
Assim, antes de entrar propriamente na Gênese e crítica ontológica(CHASIN,  
2009, p. 39 ss), o marxista brasileiro apresenta, de certo modo, justificativas ou as  
razões para a retomada de Marx por Marx. E é nesse prólogo que Chasin, bem ao seu  
inconfundível estilo, dá boas-vindas ao leitor com uma constelação de polêmicas, que  
se multiplicam ao longo do livro.  
2- A crítica do “amálgama originário”.  
O coração da originalidade de EORM não está explícito no capítulo inicial; ele  
só será encontrado à abertura do terceiro. Todavia, é ele quem orienta a crítica do  
tríplice amálgama. Por essa razão, não haverá qualquer precipitação em evidenciá-lo  
logo de saída, seguindo as trilhas do próprio texto de “Apresentação(VAISMAN;  
ALVES, 2009):  
Se por método se entende uma arrumação operativa, a priori, da  
subjetividade, consubstanciada por um conjunto normativo de  
procedimentos, ditos científicos, com os quais o investigador deve levar a  
cabo seu trabalho, então, não há método em Marx. Em adjacência, se todo  
método pressupõe um fundamento gnosiológico, ou seja, uma teoria  
autônoma das faculdades humanas cognitivas, preliminarmente estabelecida,  
que sustente ao menos parcialmente a possibilidade do conhecimento, ou,  
então, se envolve e tem por compreendido um modus operandi universal da  
racionalidade, não há, igualmente, um problema do conhecimento na reflexão  
marxiana. E essa inexistência de método e gnosiologia não representa uma  
lacuna (...). Isso equivale a admitir que a suposta falta seja antes uma  
afirmação teórico-estrutural, do que uma debilidade por origem histórica  
insuficientemente digerida. (CHASIN, 2009, pp. 89-90)  
Na citação, o problema central está posto por Chasin sem maiores rodeios:  
qualquer empreitada que busque apreender epistemologicamente a contribuição de  
Marx deixará de reconhecer justamente aquilo que ela tem de fundamental: uma  
posição ontológica3. A questão, para Chasin, é que a admissão desta última, em sua  
profundidade e extensão (em sua radicalidade), termina por obliterar a primeira. Em  
poucas palavras, a inexistência de um tratado sobre o “método”, em Marx, não significa  
3 M. Duayer, cujas posições, neste âmbito, apresentam algum grau de diferença em relação as de Chasin,  
considerou noutro lugar: “a crítica ontológica (...) visa a refutar os pressupostos estruturais da tradição  
criticada. Em consequência, tem de ser crítica que refigura o mundo, que põe e pressupõe outra  
ontologia. É justamente nesse sentido que a crítica de Marx é crítica ontológica no caso, crítica da  
sociedade capitalista, da formação socioeconômica posta pelo capital. Figura o mundo social de maneira  
radicalmente distinta não só das formas de consciência do cotidiano dessa sociedade, mas também de  
suas formas de consciência científicas. Tanto umas quanto outras são empiricamente plausíveis, uma  
vez que têm circulação social, interpretam o mundo para os sujeitos e, nessa medida, orientam suas  
práticas. Razão pela qual sempre se trata de reconhecer a realidade ou objetividade social das ideias  
criticadas. Como circulam socialmente, são ideias razoáveis e, por isso, o exame crítico não pode se  
circunscrever a sua estrutura lógica: deve explicar como e por que ideias insubsistentes orientam a  
prática dos sujeitos” (DUAYER, 2016, p. 35).  
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Alexandre Aranha Arbia  
qualquer lacuna na produção do filósofo alemão, não é casual e nem fortuita; pelo  
contrário, indica uma posição.  
E já aqui, dado o pressuposto, deparamo-nos com o fato de que os defensores  
inaugurais do “tríplice amálgama” buscaram, de certo modo, corporificar em bases  
epistemológicas o materialismo histórico-dialético como a doutrina original de Marx.  
Nessa busca, lançar mão do ambiente teórico (e histórico) no qual estava imerso o  
pensador alemão terminou servindo mais para baralhar que para pôr a questão em  
nos termos. Em uma síntese: a posição de Chasin, crítica das proposições de Kautsky  
e Lênin4 sobre o “método”, enforma uma busca pelos fundamentos do pensamento de  
Marx a partir dos próprios escritos marxianos, e não pelo enxerto de construtos  
exógenos e distintos que, na magistral síntese reflexiva do filósofo alemão, teriam  
alcançado uma unidade antes incompreensível aos próprios desenvolvedores dessas  
teorizações parciais.  
2.1- Kautsky e o erro inaugural  
No caso de Kautsky, a questão está centrada no texto de 1908 (As três fontes  
do marxismo – KAUTSKY, s/d). Cf. Chasin (2009, p. 31), do “naturalismo positivista”  
de Kautsky aflora a ideia de modo bastante imediato e empobrecido de que Marx  
haveria promovido uma “síntese das ciências naturais e das ciências psicológicas”  
(apud CHASIN, 2009, p. 31), que a dialética ensejaria uma espécie de “evolução  
catastrófica”, a qual, encontrada na natureza e na história, explicaria, por fim, a própria  
necessidade da luta entre classes. Em arremate, Kautsky localiza na fusão dos três  
alicerces do pensamento moderno a economia política inglesa, a filosofia alemã e o  
pensamento político francês o ineditismo da produção de Marx. Na síntese de Chasin  
(2009, p. 34):  
Segundo Kautsky, cada um dos três pensamentos que integram o amálgama  
é uma formação parcial, quando no interior da malha nacional de  
positividades e negatividades que o origina. Enquanto produtos isolados (...)  
são carentes uns dos outros, como que destinados a um ménage à trois que  
os libertaria da hipertrofia originária. De fato, só perdem unilateralidade  
graças às suas mútuas junções, pretendidamente operadas por Marx, cujo  
mérito intelectual, altamente enfatizado, então não passaria da habilidade  
para aglutinar ideias e procedimento preexistentes.  
Em resumo: a perspicácia de Marx, para Kautsky, estaria em compilar e aglutinar  
construtos teóricos que se encontravam geográfica e epistemicamente separados. Mas  
4 ... E, por consequência lógica, de Engels, como veremos em detalhes.  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
vejamos a coisa de perto.  
Em As três fontes..., Kautsky enuncia, logo na abertura de sua tese, duas  
compreensões articuladas: a de que o “método [de Marx] será mais frutuoso do que  
qualquer outro” (KAUTSKY, s/d/, p. 10) e a de que “encontramos aí [neste método],  
antes de tudo, a síntese do pensamento inglês, francês e alemão, a do movimento  
operário e do socialismo e, por fim, a da teoria e da prática” (KAUTSKY, s/d, p. 11). O  
que se segue no argumento é a defesa de uma ultrapassagem, pelo método de Marx,  
da cisão entre “ciências naturais e ciências psicológicas” (sociais), de significativa  
influência positivista5.  
A crítica que Kautsky estabelece ao materialismo canhestro (crítica de clara  
influência temática engelsiana) caminha na direção de que faltava à empiria à  
compreensão articuladora da dialética. E mais, seguindo as trilhas de Engels, ainda  
que em uma exposição extremamente mais pobre, Kautsky volta a revolver a questão  
da unidade entre os seres; e, assim como Engels, o faz pela dialética e não pela história.  
As leis “inexoráveis” da dialética ressurgem, em seus escritos, a partir de afirmações  
extremamente problemáticas: “por mais distinta que possa parecer a sociedade do  
resto da Natureza, nesta, como naquela, encontramos a evolução dialética, quer dizer:  
o movimento provocado por uma luta de oposições que surge espontânea e  
continuamente do próprio meio” (KAUTSKY, s/d, p. 17). E prossegue, atribuindo a Marx  
a “anulação” do “abismo entre ciências naturais e psicológicas”: “a evolução social foi  
assim situada no quadro da evolução natural; o espírito humano, mesmo nas suas  
manifestações mais elevadas e mais complicadas, nas suas manifestações sociais, era  
explicado como sendo uma parte da Natureza” (KAUTSKY, s/d, p. 17).  
Na tentativa de comprovar sua tese, qual seja, imputar a Marx uma superação  
da cisão entre sociedade e natureza pela dialética materialista, Kautsky, exatamente  
como demonstra Chasin (2009, p. 31), chegará ao absurdo de constatar que “para  
Marx (...) a luta de classes não era mais do que uma forma da lei geral da evolução da  
Natureza, que de modo nenhum tem um caráter pacífico” (KAUTSKY, s/d, p. 23 –  
itálicos meus). O autor alemão prossegue o argumento sinonimizando “transformação  
dialética” e “catástrofe”. Para Kautsky, a “catástrofe”, na Natureza e na sociedade,  
como lei geral válida para todos os tipos de seres, é a demonstração inequívoca da  
5
Impossível não lembrar de Auguste Comte e sua hierarquização das ciências, ao observar o modo  
como Kautsky compreende suas evoluções em relação à “concretização”. Cf. Kautsky (s/d, p. 14).  
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universalidade da dialética.  
Enunciada, no primeiro bloco, sua (peculiar) compreensão da dialética marxista,  
Kautsky passa a considerar os desenvolvimentos de Marx e de Engels para alcançar  
finalmente, no terceiro capítulo, sua tese do amálgama. Os termos empregados no  
resumo de Chasin comparecem, no texto do autor alemão, numa sequência que  
procura dar conta do desenvolvimento material e ideológico da Inglaterra (KAUTSKY,  
s/d, pp. 32-34); França (KAUTSKY, s/d, pp. 35-39) e Alemanha KAUTSKY, s/d, pp. 39-  
43). Kautsky, que abre o capítulo defendendo que  
três nações representavam, no século XIX, a civilização moderna. Só  
quem tinha assimilado o espírito de todas as três e assim armado com  
todas as aquisições do seu século podia produzir o imenso trabalho  
que Marx forneceu. A síntese do pensamento destas três nações, onde  
cada um perdeu o seu aspecto unilateral, constitui o ponto de partida  
da contribuição histórica de Marx e de Engels (KAUTSKY, s/d, pp. 31-  
32 itálicos meus).  
... encerra-o explicando como foi forjado o amálgama:  
[Marx e Engels] reconheceram que a economia e a política, o trabalho  
de detalhe de organização e o ardor revolucionário se condicionavam  
uns aos outros, que o trabalho de detalhe é estéril sem o objetivo  
essencial que lhe serve simultaneamente de estimulante e de razão;  
que este objetivo é impreciso sem o trabalho prévio de detalhe, o qual  
fornece a capacidade de luta necessária para o atingir. Eles  
reconhecem igualmente que um tal objetivo não pode nascer da  
simples necessidade revolucionária; que deve ser desembaraçado das  
ilusões e do inebriamento pela aplicação conscienciosa dos métodos  
de investigação científica e que deve estar na unissonância do  
conjunto do saber da humanidade. Eles reconheceram, além disso,  
que a economia é o fundamento da evolução social e que ela  
compreende as leis que regem necessariamente esta evolução.  
A Inglaterra forneceu-lhes a maior parte da documentação econômica  
que utilizaram e a filosofia alemã o melhor método para deduzir  
daquela o objetivo da evolução social contemporânea; a Revolução  
Francesa demonstrou-lhes de maneira mais clara a necessidade de se  
conquistar o domínio e, nomeadamente, o poder político, para se  
atingir o objetivo.  
Foi assim que criaram o socialismo científico moderno, pela fusão de  
tudo o que o pensamento inglês, o pensamento francês e o  
pensamento alemão tinham de grande e de fértil (KAUTSKY, s/d, pp.  
43-44 itálicos meus).  
O fragmento é longo, mas imprescindível aqui. É interessante observar como,  
daqui, a questão do “socialismo científico” desliza com grande agilidade para a de  
ciência como “ponto de vista” (de classe). O problema científico abandona a exigência  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
de reprodução fiel da realidade objetiva para recair no campo do “agir interessado”6.  
Ora, mas há enorme diferença entre o fato de a perspectiva científica do proletariado  
ser a única capaz de reproduzir intelectivamente a realidade tal como é (em detrimento  
das ciências burguesas, que procuram fragmentar, opacitar e/ou hipostasiar a  
realidade, baralhando a compreensão) e a instrumentalização do conhecimento para a  
mobilização e a ação políticas. A conclusão enviesada é do próprio Kautsky: o  
socialismo “não é outra coisa senão a ciência da sociedade, encarada do ponto de  
vista do proletariado” (KAUTSKY, s/d, p. 48).  
Chasin acerta, portanto, quando identifica que a leitura epistemológica  
produzida por Kautsky, cujo resultado é a defesa do “tríplice amálgama”, termina por  
diminuir a originalidade de Marx, ao reinseri-lo, contra sua vontade, de volta no debate  
gnosioepistêmico. E aqui evidencio, adicionalmente, que a apreensão da dialética como  
recurso heurístico, metodológico, trouxe consigo, no bojo do conjunto de problemas  
(e o fragmento de Kautsky o demonstra), uma reorientação na própria teoria da ação  
(política).  
Os argumentos de Kautsky não são totalmente ainda que em grande medida  
criações inusitadas, frutos apenas de um “pitoresco” entendimento do “marxismo”;  
pelo contrário, eles levam ao paroxismo afirmações do próprio Engels, como veremos  
a seguir. É muito difícil, para aqueles que conhecem os últimos escritos de Engels a  
respeito do método dialético, não identificar um diálogo, na letra de Kautsky, ainda  
que simplificado em demasia, com elementos-chave apresentados pelo filósofo de  
Barmen. E, para Chasin, Lênin segue a linha, ainda que dentro de sua inquestionável  
inteligência.  
2.2- A respeito do prosseguimento dado por Lênin  
As duras condições objetivas em que Lênin realizou suas elaborações são muito  
conhecidas. Imersas ainda no desconhecimento público geral de boa parte dos escritos  
de Marx, a qualidade de suas realizações já lhe garante uma inquestionável posição  
de terceiro grande pilar do pensamento marxista. Justamente por isso, poucos autores  
tenham adquirido tamanha autoridade, foram tão difundidos, debatidos, assimilados  
e, por óbvio, produziram tantas consequências. Não erra, portanto, Chasin, quando  
elege o opúsculo As três fontes e as três partes do marxismo (LÊNIN, 1983) para  
6 Sobre o agir interessado, ineliminável de qualquer forma de ação humana, cf. Lukács (2012, p. 295).  
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estabelecer a crítica.  
Chasin não coloca Lênin no mesmo patamar de Kautsky, mas não o poupa:  
Lenin reempunha o centro temático do amálgama; sem dúvida, com  
uma diferença muito ponderável: a algaravia naturalista de Kautsky  
desaparece, bem como o feitio desconjuntado de sua argumentação.  
Todavia, a tese é idêntica e, porque bem espanada, ressoa ainda mais  
categoricamente, também pela inclusão de arrimos filosóficos  
tomados ao Anti-Dühring e ao Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia  
clássica alemã (CHASIN, 2009, p. 35).  
Para aqueles que conhecem este escrito de Lênin, sabem que razão assiste a  
Chasin. Lá encontramos:  
A doutrina de Marx é todo-poderosa, porque é justa. É harmoniosa e  
completa; dá aos homens uma concepção coerente do mundo,  
inconciliável com toda a superstição, com toda a reação, com toda a  
defesa da opressão burguesa. É a sucessora legítima de tudo quanto  
a humanidade criou de melhor no século XIX: a filosofia alemã, a  
economia política inglesa e o socialismo francês. É nestas fontes, nas  
três partes constitutivas do marxismo, que vamos rapidamente falar.  
(LÊNIN, 1983, p. 72 itálicos do original)  
Para além dos elementos elencados por Chasin, dentre eles, com destaque para  
o fato de que Marx “enriqueceu as aquisições da filosofia clássica alemã, sobretudo do  
sistema de Hegel” (LÊNIN, 1983, p. 73), extraindo como “a principal destas aquisições  
(...) a dialética” (LÊNIN, 1983, p. 73), destaco aqui o débito explícito que a  
interpretação de Lênin possui com o último Engels (conforme também atestado acima,  
no excerto de Chasin). Afirma com clareza o revolucionário russo que  
Marx e Engels defenderam resolutamente o materialismo filosófico, e  
mostraram muitas vezes o que havia de profundamente errôneo em  
todos os desvios a esta doutrina fundamental. Os seus pontos de vista  
estão expostos com o máximo de clareza e pormenor nas obras de  
Engels: Ludwig Feuerbach e Anti-Dühring, que como o Manifesto do  
Partido Comunista são os livros de cabeceira de todo o operário  
consciente. (LÊNIN, 1983, p. 73 itálicos meus)  
Lênin, aqui, empresta sua autoridade para chancelar duas posições, na melhor  
das hipóteses, questionáveis: a) de que as conclusões de Marx a respeito da dialética  
(e, por tabela, de tudo o que envolve sua relação com o espólio de Hegel, com a  
esquerda hegeliana e a avaliação de Feuerbach) está contida no Anti-Dühring (Lênin  
não o afirma, mas numa leitura apressada é bastante fácil, por este expediente, fazer  
passar Marx por Engels7); b) estabelecer a dialética, tal como exposta pelo último  
7 Há muitos escritos sobre as tentativas de cancelar as ideias próprias de Engels, tornando-o um mero  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
Engels, como pórtico de entrada ao conhecimento científico do marxismo para o  
movimento operário. Em ambos os casos, a admitirmos que Lênin tenha sido bem  
sucedido, tendo-se em consideração o sucesso editorial de Anti-Dühring, ainda  
durante a vida de Engels, poderíamos arriscar que o movimento operário do século  
XX, sobretudo pós-1917, é severamente tributário mais, inclusive, do que é  
costumeiramente admitido das posições do último Engels.  
Mas isso não é tudo, e Lênin arremata:  
Aprofundando e desenvolvendo o materialismo filosófico, Marx fê-lo  
chegar ao seu fim lógico, e estendeu-o do conhecimento do  
conhecimento da natureza ao conhecimento da sociedade humana. O  
materialismo histórico de Marx foi a maior conquista do pensamento  
científico. (LÊNIN, 1983, pp. 73-74 itálicos meus; negritos do  
original)  
A influência de Engels (e de Kautsky) é, aqui, inegável e este pequeno texto  
dispensa mais demonstrações.  
No texto (biografia de Marx) que escreveu em 1913, para o Dicionário Granat,  
Lênin não deixa dúvidas a respeito da convicção da correção de sua posição:  
O marxismo é o sistema das ideias e da doutrina de Marx. Marx  
continuou e completou as três principais correntes de ideias do século  
XIX, que pertencem aos três países mais avançados da humanidade: a  
filosofia clássica alemã, a economia política clássica inglesa e o  
socialismo francês. (LÊNIN, 1983a, p. 15)  
Também aqui são abundantes as referências ao Anti-Dühring e ao Feuerbach,  
de Engels. Também aqui, Lênin procura aproximar, demonstrativamente, Engels de  
Marx, ao grifar que, em relação ao Anti-Dühring, Marx havia “lido o manuscrito” (LÊNIN,  
1983a, p. 16) e, em relação a Feuerbach..., que Engels só enviara o manuscrito para  
publicação “depois de ter relido uma vez mais o velho manuscrito de 1844-1845  
sobre Hegel, escrito em colaboração com Marx” (LÊNIN, 1983a, p. 17).  
Finalmente, no capítulo sobre a dialética, a referência é a Engels e a  
reintrodução de Marx no problema gnosioepistêmico é textual:  
Foi este aspecto revolucionário da filosofia de Hegel que Marx adotou  
e desenvolveu. O materialismo dialético “nada tem a ver com uma  
filosofia planando acima das outras ciências”. A parte da antiga  
filosofia que subsiste é “a doutrina do pensamento e das suas leis a  
lógica formal e a dialética”. Ora, na concepção de Marx, como na de  
repetidor (porta-voz) de Marx. A respeito da originalidade do velho alemão, cf. Paço Cunha (2014,  
2014a), Sartori (2015), dentre outros. Para uma biografia de Engels, cf. Mayer (2020).  
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Hegel, a dialética compreende o que hoje se chama teoria do  
conhecimento ou gnosiologia, que deve igualmente considerar o seu  
objeto do ponto de vista histórico, estudando e generalizando a  
origem e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem da  
ignorância ao conhecimento. (LÊNIN, 1983a, pp. 20-21 itálico do  
original)  
De fato, não é preciso ir muito além para constatar, sem qualquer emoção, que  
Lênin passa ao largo da ideia de uma superação ontológica, por Marx, de todos os  
construtos teóricos contra os quais se confrontou: sua leitura da obra marxiana, neste  
caso, mantém-se claramente na linha de uma interpretação, sobretudo, epistemológica,  
de confronto no interior da história da filosofia.  
Todavia, é necessário anotar que a questão é mais sofisticada em Lênin que em  
Kautsky, e o revolucionário russo, em que pesem diferenças, está bem mais próximo  
da riqueza do pensamento de Engels que seu antecessor. No caso de Lênin, o  
problema gnosiológico já havia sido abordado mais detidamente antes, em 1908, em  
Materialismo e empiriocriticismo (LÊNIN, 1975). Lá, sabemos, a polêmica contra Ernst  
Mach e seus discípulos colocava Lênin, materialista, em oposição ao neokantismo  
vulgar. Em sua introdução, aludindo à obra de George Berkeley8, Lênin reconhece uma  
síntese precisa entre as duas filosofias conflitantes. E nessa síntese, está explicitado  
um dos eixos fundamentais de seu entendimento do materialismo:  
Las dos líneas fundamentales de las concepciones filosóficas quedan  
aquí consignadas con la franqueza, la claridad y la precisión que  
distingue a los filósofos clásicos de los inventores de “nuevos”  
sistemas en nuestro tiempo. El materialismo: reconocimiento de los  
“objetos en sí” o fuera de la mente; las ideas e las sensaciones son  
copias o reflejos de estos objetos. La doctrina opuesta (el idealismo):  
los objetos no existen “fuera de la mente”; los objetos son  
“combinaciones de sensaciones”. (LÊNIN, 1975, p. 16 itálicos meus)  
E a questão do reflexo é inequivocamente reafirmada logo à abertura do  
primeiro capítulo, quando, em oposição ao empiriocriticismo, ancora firmemente sua  
posição nas aquisições de Engels. O fragmento é longo, mas me parece suficiente para  
afirmar que, em Materialismo e empiriocriticismo, apreendendo com profundidade a  
posição de Engels, Lênin vincula-se a ela, repondo o problema do conhecer na relação  
entre objetividade e método e não em um plano meramente epistemológico (mas  
também não em um plano exclusivamente imanente). Afirma:  
El materialista Federico Engels colaborador bastante conocido de  
8 Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, de 1710.  
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Marx y fundador del marxismo habla invariablemente y sin excepción  
en sus obras de las cosas y de sus imágenes o reflejos mentales  
(Gedanken-Abbilder), y es de por sí claro que estas imágenes mentales  
no surgen de otra manera más que de las sensaciones. Parecerá que  
esta concepción fundamental de la “filosofía del marxismo” debiera  
ser conocida por todos los que hablan de ella, y sobre todo por los  
que intervienen en la prensa en nombre de esta filosofía. Pero en vista  
de la extrema confusión creada por nuestros machistas, habrá que  
repetir cosas de todos conocidas. Tomemos el primer párrafo del Anti-  
Dühring y leamos: “… los objetos y sus imágenes mentales…”. O el  
primer párrafo de la sección filosófica: “¿De onde saca el pensamiento  
esos principios? [se refiere a los principios fundamentales de todo  
conocimiento]. ¿Los saca de sí mismo? No… Las formas del ser no las  
puede el pensamiento extraer y deducir jamás de sí mismo, sino  
únicamente del mundo exterior… Los principios no son el punto de  
partida de la investigación [como resulta según Dühring, que pretende  
ser un materialista, pero que no sabe aplicar consecuentemente el  
materialismo], sino sus resultados finales; estos principios no se  
aplican a la naturaleza y a la historia humana, sino que son  
abstracciones de ellas; no son la naturaleza y la humanidad las que se  
rigen por los principios, sino que los principios son verdaderos  
precisamente en tanto concuerdan con la naturaleza y con la historia.  
En esto consiste la única concepción materialista del asunto, ya la  
opuesta, da de Dühring, es la idealista, que invierte por completo las  
cosas asentándolas sobre la cabeza y construye el mundo real  
arrancando de la idea” […]. Todo el que lea con un poco de atención  
el Anti-Dühring y Ludwig Feuerbach encontrará a docenas los  
ejemplos en que habla Engels de las cosas y sus imágenes en el  
cerebro del hombre, en nuestra consciencia, em el pensamiento etc.  
(LÊNIN, 1975, p. 28)  
Este longo fragmento me parece suficiente para demonstrar que o caráter  
dúplice da dialética está, antes, em Engels que em Lênin, o qual acompanha de muito  
perto o entendimento do filósofo de Barmen a respeito do problema. De todo modo,  
e em resumo, haja vista o fato de que não podemos explorar mais tais questões no  
revolucionário russo, pode-se afirmar que em Lênin subsiste a dupla ideia da dialética:  
como objetividade e como método. Lênin não sucumbe ao epistemologismo simplista  
ao perceber a relação entre (o primado da) objetividade e pensamento, mas tampouco  
abandona a ideia do método como bússola da viagem científica marxista. Devemos,  
portanto, rastrear a questão em sua gênese, revisitando Engels.  
2.3- Uma visita ao último Engels.  
Em EORM, Chasin faz referências pontuais a Engels, sobretudo quando aproxima  
as compreensões sobre dialética de Lênin e daquele. Não é possível identificar as  
razões da ausência de um tratamento mais dedicado da questão, em Engels, por  
Chasin, uma vez que, como se sabe, embora o filósofo alemão não possa ser  
responsabilizado pelas interpretações posteriores, o que foi feito da dialética por seus  
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sucessores remete a uma interlocução explícita com suas últimas produções. O mais  
provável é que Chasin tenha optado por centrar a crítica no problema do “amálgama  
originário” e como Engels jamais se referiu à questão nesses termos, sendo uma  
inovação introduzida pelos “marxistas” posteriores, tal fato justificaria apenas uma  
referência en passant, mantendo-se a concentração no principal.  
De todo modo, as referências a Engels lá estão, como vimos acima. E para que  
não haja dúvidas, Chasin explicita:  
Em suma, para Engels e Lênin, a dialética integra, sabidamente, mais  
de uma face, já que compreende – a “ideia fundamental” do  
movimento das coisas naturais e sociais, bem como o próprio  
pensamento por isso mesmo, quando falam em aplicar a dialética “a  
cada domínio submetido à investigação”, explicitam de modo enfático  
um aspecto de grande peso de suas convicções, e, por conseguinte,  
uma dimensão fundamental que entendem por dialética a existência  
suposta de um método universal de investigação, devido na íntegra  
ou em partes modificadas, não importa, a Hegel. (CHASIN, 2009, p.  
36 itálicos do original)  
Tal citação nos exige, pois, uma rápida visita aos últimos escritos mais  
importantes do grande partner teórico de Marx.  
De princípio, não é mais admissível que tomemos Engels por Marx. É fato que  
estabeleceram intenso diálogo, que existem mútuas influências em suas elaborações e  
que, talvez em toda a história da filosofia, nenhuma colaboração entre dois autores  
tenha sido tão profunda e harmônica em termos ideais e pessoais. Todavia, isso não  
pode obscurecer, para nós, a verdade simples e fatual de que se tratam de dois autores  
distintos, intelectuais autônomos e profícuos e que, em alguma medida, apresentam  
também suas diferenças. E, é claro, não há nenhuma heresia nessa constatação. Para  
meu propósito, ficarei concentrado nos textos do último Engels, nominalmente: Anti-  
Dühring (1878), A dialética da natureza (1883), Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia  
clássica alemã (1886) e no Prefácioa As lutas de classes na França (1895).  
2.3.1- A concepção de dialética no Anti-Dühring (1878) e em A dialética da natureza  
(1883)  
É uma característica das elaborações do último Engels o combate duro ao senso  
comum presente nas análises dos homens ditos “de ciência”; a elas, o autor buscou  
opor o verdadeiro conhecimento científico, fazendo questão de revolver quase sempre  
todo o seu enciclopédico conhecimento, seja da filosofia, das ciências sociais e das  
ciências naturais. Engels apontava, no pensamento por ele denominado pensamento  
“metafísico” (calcado na lógica formal) uma pobreza intrínseca incapaz de compreender  
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o caráter relacional das leis objetivas, reduzindo todas as contradições a aspectos  
primários de “sim” e “não”. Donde o combate bastante pronunciado de sua dupla  
expressão (na forma cotidiana vulgar e na forma mistificada da especulação). Pode-se  
demarcar aqui, sem muito receio de erro, as origens da obsessão, na II e III  
Internacionais, pelo combate virulento ao idealismo (ao fim e ao cabo, o próprio Lênin  
parece-me decisivamente influenciado por essa questão, sobretudo em 1908).  
Encontra-se em Engels um processo de reconhecimento e dissociação entre  
“dialética” e “Hegel”. Engels consegue ser peremptoriamente dialético e  
peremptoriamente crítico de Hegel (cf. SARTORI, 2015, p. 125). Sua crítica a Hegel  
está essencialmente concentrada em dois pontos: 1) a dialética hegeliana apresentaria  
uma contradição insolúvel ao fechar-se (toda a realidade) em um sistema; 2) e, na  
mesma via, haveria em Hegel uma generalização indevida, que buscava abarcar toda  
a ciência da natureza e da história. Mas a própria posição de Engels não está livre de  
aparentes paradoxos. Em sua busca por dissociar a ideia de método e sistema,  
separando a virtude do vício, Engels termina por proferir afirmações nebulosas e  
encriptadas, gerando interpretações que passaram a largo de suas pretensões  
originais.  
Crítico da ideia de “sistema”, Engels é, por outro lado, textualmente insistente  
na convicção da existência das “leis fundamentais do pensamento dialético”; de prime  
abord, destaco que o procedimento contrasta com a imanência da leitura marxiana em  
relação aos objetos investigados. Suas referências explícitas à “aplicação do método  
dialético” terminam por contrastá-lo, neste quesito, a Marx. Contra Dühring, sua  
posição é clara: a dialética da realidade só pode ser corretamente compreendida por  
um método igualmente dialético.  
Essa espécie de leitmotiv temático está presente como elemento estruturante  
em suas últimas obras. Não apenas é o eixo que sustenta suas críticas a E. Dühring,  
(1878), como abre seu volume sobre A dialética da natureza (1883). No Ludwig  
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886), embora menos pronunciada que  
nas obras anteriores, a questão lá está. Neste último, a ela vem fazer companhia uma  
(re)valorização da política que toma ares de revisão no Prefáciode 1895. Não passa  
despercebido, portanto, o fato de que, no mesmo momento em que Engels está  
profundamente convicto a respeito do caráter dúplice da dialética (enquanto  
movimento e enquanto método; enquanto imanência e enquanto episteme) ele  
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reavalie, em conjunto, sua própria concepção da política (e, estendendo por conta  
própria, a de Marx).  
Engels denuncia, com a competência que lhe é clássica, a ignorância de Dühring,  
que, do alto de sua lógica formal, procura excluir a contradição da realidade. A  
concepção de Dühring é empobrecida; nela comparece uma confusão entre  
contradição e contrassenso (ENGELS, 2015, p. 151), concluindo pela impossibilidade  
de existência real da primeira. Para comprovar o erro de Dühring, Engels lança mão  
de exemplos amplos e transita de uns a outros, no mais das vezes, sem expor os  
caminhos mediadores. Não só estende a lei do movimento (contradição)9 da  
matemática à natureza e desta a sociedade, como ainda toma, por um trânsito bastante  
direto, a lei da transformação da quantidade em qualidade em seres absolutamente  
distintos:  
Citamos ali um dos exemplos mais conhecidos o da mudança dos  
estados de agregação da água que, sob condições normais de pressão  
atmosférica, a 0ºC passa do estado líquido para o sólido e a 100ºC  
passa do estado líquido para o gasoso e que, portanto, nesses dois  
pontos de mutação, a mudança meramente quantitativa da  
temperatura acarreta um estado qualitativamente modificado da água.  
Poderíamos ter citado, como prova dessa lei, mais algumas centenas  
de fatos como esses extraídos tanto da natureza como da sociedade  
humana. (ENGELS, 2015, p. 157)  
E Engels, nas páginas imediatamente seguintes, nas demonstrações por meio  
de exemplos, chega ao ponto de transitar, com espantosa imediatez, do universo da  
química ao exército de Napoleão (cf. ENGELS, 2014, pp. 158-159).  
Alcança-se, assim, a polemíssima questão da “negação da negação”. Explorando  
9
“Se o simples movimento mecânico de um lugar para o outro já contém em si uma contradição, isso  
é ainda mais verdadeiro em relação às formas mais elevadas de movimento da matéria e, de modo bem  
especial, a vida orgânica e sua evolução. Vimos anteriormente que a vida consiste sobretudo no fato de  
que instante, um ser é ele mesmo e, ainda assim, outro. Portanto, a vida também é uma contradição  
presente nas próprias coisas e processos que continuamente se põem e se resolvem; e, assim que cessa  
a contradição cessa a vida e instaura-se a morte. Vimos igualmente que, no campo do pensamento,  
tampouco podemos escapar às contradições e que, por exemplo, a contradição entre a capacidade  
interiormente ilimitada do conhecimento humano e sua existência real se resolve apenas na forma de  
seres humanos exteriormente limitados e limitadamente cognoscentes no processo infinito da sucessão  
das gerações, que, ao menos para nós, é praticamente sem fim” (ENGELS, 2015, p. 152). Para além da  
extensão da contradição, como lei unitária em todos os tipos de seres o que a tornará lei absoluta –  
Engels parece reinserir hegelianamente a teleologia na história. O que significaria, exatamente, a  
afirmação de que “a vida também é uma contradição presente nas próprias coisas e processos que  
continuamente se põem e se resolvem; e, assim que cessa a contradição cessa a vida e instaura-se a  
morte”? A que tipo de “resolução” Engels se refere? Não é possível pensar em “resolução” quando se  
trata de relações de causa e efeito; resolução tem de pressupor, de algum modo, intencionalidade,  
teleologia.  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
o último capítulo do Livro I d’O capital, Engels resgata a sucessão histórica de  
desenvolvimento de modos de produção. Neste argumento, o autor mensura a posição  
de Marx, concluindo:  
Ao caracterizar o processo como negação da negação, Marx nem  
pensa em querer prová-lo, por essa via, como um processo  
historicamente necessário. Pelo contrário: depois de ter provado  
historicamente que o processo, de fato, sucedeu em parte e em parte  
ainda terá de suceder, ele o caracteriza como um processo que se  
efetua conforme uma determinada lei da dialética. (ENGELS, 2015, p.  
164)  
Isso logo após ter considerado, também de modo muito preciso e acertado,  
contra Dühring, que “o processo é histórico, e o fato de ele ser ao mesmo tempo  
dialético não é culpa de Marx” (ENGELS, 2015, p. 164). Está clara, aqui e em outras  
passagens, a dúplice existência da dialética, por parte de Engels: na realidade e no  
método. Neste aspecto, Engels possui uma compreensão para bem ou para mal, não  
importa distinta à de Marx, mantendo preocupações epistemológicas muito claras.  
Tanto que conclui:  
A lógica formal é, antes de tudo, um método pra encontrar novos  
resultados, para avançar do conhecido para o desconhecido, e a  
mesma coisa, só que num sentido mais eminente, é a dialética, que,  
ademais, por romper o horizonte estreito da lógica formal, contém o  
embrião de uma concepção de mundo mais abrangente. (ENGELS,  
2015, p. 165)  
Da duplicidade da dialética, segue-se o argumento de que a negação da  
negação” é “um procedimento muito simples, que se realiza em toda parte e  
cotidianamente” (ENGELS, 2015, p. 165). Engels então recorre ao famoso exemplo do  
grão de cevada10, das borboletas e da geologia em síntese, vai ilustrar seu argumento  
com demonstrações a partir da dialética da natureza. Seu argumento de que “na  
história não é diferente” (ENGELS, 2015, p. 167) pode dar margem a uma  
interpretação analógica, mesmo a contragosto do próprio autor. Na exemplificação da  
lei no desenvolvimento filosófico do materialismo (ENGELS, 2015, p. 168), mesmo sua  
concepção da Aufhebung11 está mais próxima de Hegel que de Marx. E sua conclusão  
de 1878, finalmente, é inequívoca e marcante, a ponto de permanecer sólida, pelo  
menos, no quinquênio seguinte à sua elaboração. Finaliza Engels:  
Então, o que é a negação da negação? Uma lei sumamente universal  
10 A respeito, cf. Lukács (2010, pp. 167 ss.).  
11 “A filosofia foi, portanto, ‘suprassumida’, isto é, ‘tanto superada como preservada’ – superada em sua  
forma, preservada em seu conteúdo real” (ENGELS, 2015, p. 168).  
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e, por isso mesmo, de alcance extremamente amplo e de suma  
importância referente à evolução da natureza, da história e do  
pensamento; uma lei que, como vimos, vigora no mundo animal e  
vegetal, na geologia, na matemática, na história, na filosofia e à qual  
o próprio sr. Dühring, sem o saber, tem de render-se a seu modo,  
apesar de toda renitência e resistência. (ENGELS, 2015, p. 170 –  
itálicos meus)  
Sabemos que Marx jamais se referiu a exceção da história a leis universais  
da dialética. Mais que isso, a admissão apriorística de uma lei inexorável, válida para  
todos os seres e em todas as épocas, põe em xeque a própria transmutabilidade do  
ser. E Engels, de modo autônomo e original em relação a Marx, dá passos decisivos  
em relação à existência de leis universais (da dialética):  
Se digo que todos esses processos são negação da negação, estou  
sintetizando todos eles nessa lei do movimento e, justamente por isso,  
desconsidero a peculiaridade de cada processo específico. E a  
dialética nada mais é que a ciência das leis universais do movimento  
e da evolução da natureza, da sociedade humana e do pensamento.  
(ENGELS, 2015, pp. 170-171)  
Há uma relação difícil, aqui, entre lógica e história. Ainda que critique Hegel,  
Engels procura redimensionar o problema da dialética da natureza. Seu objetivo é,  
certamente, colocar as coisas em termos materialistas; todavia, o que se vê em muitas  
passagens é uma transmigração direta (sem mediações) entre os fenômenos naturais  
e sociais, tomados pelas chamadas “leis gerais”. É neste ponto que Engels parece  
deslocar-se do campo da práxis para o campo da lógica. Todo esse arrazoado, muito  
devido, talvez, ao modo expositivo de Engels – mais “sistemático” que o de Marx (cf.  
SARTORI, 2015) produz dificuldades interpretativas ainda maiores do que quando  
Engels realiza a defesa da ciência da história, ao mesmo tempo em que secciona, no  
trato do problema, a questão da “lógica” (formal e dialética) por um lado e “ciência  
positiva da natureza e da história”, por outro. No resumo de Sartori (2015, p. 127):  
A ciência da história’ mencionada antes trazia consigo a imanência da dialética,  
considerada o próprio movimento do real e, agora, a questão parece emergir de modo  
um tanto quanto distinto, rompendo-se (...) a unidade entre ‘método’ e realidade  
efetiva”.  
A tensão permanece em 1883 e Engels demonstra não nutrir qualquer dúvida  
em relação às leis da dialética. O prefácio de A dialética da natureza (ENGELS, 1976)  
traz momentos de inspiração singular, que, numa leitura atenta, terminam por  
comprovar a unidade ontológica entre ser natural e social. Engels reconhece essa  
unidade, mas prefere explorá-la a partir do marco lógico que estabeleceu previamente.  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
Suas ilustrações a respeito do desenvolvimento do cosmos até o desenvolvimento da  
vida e do homem são inspiradoras e foram consideradas por Lukács no  
desenvolvimento de sua Ontologia...; à diferença que o marxista magiar termina por  
reformular, em bases totalmente novas e ampliadas, um problema corretamente  
percebido, mas desenvolvido de modo ambíguo por Engels.  
Novamente aqui, a exemplo do que vimos no Anti-Dühring, Engels transmigra  
com demasiada fluidez entre as ciências naturais e sociais. Após linhas exemplares e  
inspiradas a respeito do desenvolvimento da matéria, do cosmos e da vida, deparamo-  
nos de súbito com a constatação de que  
Nos países industriais mais avançados, o homem dominou as forças  
naturais, submetendo-as ao seu serviço. Dessa maneira, se conseguiu  
multiplicar infinitamente a produção de modo que um menino, hoje  
em dia, produz mais que cem adultos antes. Qual a consequência daí  
decorrente? Crescente excesso de trabalho e crescente miséria das  
massas; e a cada ano um grande krach (craque ou crise). (ENGELS,  
1976, p. 26)  
É de se estranhar a forma sintética e súbita dos saltos. E, sem dúvida, esse  
modo expositivo produziu controvérsias entre seus intérpretes. Basta que pensemos  
no destino da dialética a partir de Bernstein, que, como antigo discípulo de Dühring,  
a considerava um absurdo; do próprio Engels (aqui, seguido de perto por Lênin), que  
vislumbrava sua duplicidade objetiva e epistemológica; e, por fim, do marxismo  
ocidental, que atestava sua aplicação ao domínio social, mas não ao domínio natural.  
Mas, afinal, qual o significado da dialética da natureza em Engels? Talvez  
pudéssemos considera-la uma primeira tentativa de unificação ontológica de natureza  
e sociedade, uma compreensão correta, construída sobre bases temerárias. Tais bases  
que geraram inúmeros desdobramentos posteriores, muitos dos quais, com toda  
certeza, incompatíveis com a grandeza e genialidade de Engels foram sinteticamente  
listadas à abertura do livro, no início do primeiro capítulo:  
As leis da dialética são, por conseguinte, extraídas da história da  
Natureza, assim como da história da sociedade humana (...). Reduzem-  
se elas, principalmente, a três:  
1) A lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa;  
2) A lei da interpenetração dos contrários;  
3) A lei da negação da negação. (ENGELS, 1976, p. 34)  
O que se assiste, a partir daí, é uma elaboração extremamente culta, que  
explicita o enciclopédico conhecimento de Engels a respeito das ciências naturais de  
seu tempo. Em muitos casos, diga-se de passagem, Engels consegue, com sucesso,  
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demonstrar como tais leis “universais” se manifestam nos seres inorgânicos e  
orgânicos e como vêm sendo descobertas pelas ciências naturais.  
No entanto, esse relativo sucesso não esconde os problemas, que, concluo,  
concentram-se em três pontos-chave: 1) Engels transmigra de modo extremamente  
direto (imediato) entre leis da natureza e da sociedade (tendo por eixo comum uma  
dialética lógica universal); 2) Engels reinsere a lógica no lugar da imanência (no  
caso engelsiano, a lógica passa a determinar a verificação empírica e explicar seus  
resultados; lado outro, levada a orientação de cariz epistemológico ao paroxismo por  
seus continuadores, a lógica terminará, finalmente, por servir de fecho coerente à  
explicação, justamente nos pontos onde se ignoram os fatos; em poucas palavras: a  
lógica é chamada a suprir exatamente as lacunas fatuais. Veremos em breve,  
notadamente no Prefáciode 1895, elementos que virão a permitir dita extrapolação);  
3) há, por certo, limitações da própria fase de desenvolvimento das ciências naturais  
no período (final do séc. XIX); ou seja, muitas das explanações de Engels,  
profundamente científicas na conjuntura da elaboração de A dialética da natureza, hoje  
encontram-se superadas nas próprias ciências naturais.  
A aproximação que Engels realiza entre natureza e sociedade, pelas leis da  
dialética, somadas ao modo como (re)avalia (e combate) Hegel, marcadas pelo  
profundo materialismo que orienta suas concepções, não resolvem, em uma leitura  
rápida, questões que se impõe na leitura de suas últimas obras. Quais sejam: em se  
tratando da dialética, estamos frentes a uma realidade apriorística ou Engels  
empreendeu uma generalização lógica? A dialética é objetiva ou metodológica? (ao  
menos neste aspecto, parece-me claro que, para Engels, encontra-se em ambos os  
momentos: na própria realidade e como método. No primeiro caso, sua posição é  
idêntica à de Marx; já no segundo, distancia-se do partner teórico, que empreende,  
como defendeu Chasin [2009, pp. 89 ss.], uma leitura imanente da realidade objetiva,  
a partir do que o autor brasileiro definiu como “teoria das abstrações”; já Engels, por  
seu turno, defende a adoção de uma posição metodológica dialética para a captura da  
dialética objetiva essa posição está clara no texto de 1878 e foi certamente ela que  
impulsionou as discussões posteriores, amplamente difundidas, a respeito do método).  
Seguindo o bloco de questões, não há também como negar a arbitrariedade  
dos exemplos e o modo como estabelecem analogia, muitas vezes de cunho  
homogeneizante, entre realidades tão distintas. E, por fim, sobre as controvérsias a  
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respeito da existência (ou não) de uma dialética na natureza, prefiro abster-me, tendo  
em vista minha ignorância nesta seara.  
Logo, é difícil não concordar com Lukács, a respeito da existência de uma  
tensão entre ontologia e lógica, nos escritos do filósofo de Barmen (LUKÁCS, 2010, p.  
155). De todo modo, duas considerações de Lukács me parecem importantes e  
consoantes ao problema também levantado por Chasin (menos em Engels, é verdade,  
e mais em seus continuadores):  
Na descrição de Engels e mais ainda naquelas que se seguiram,  
parecia tratar-se da existência, sobretudo de um método dialético  
unitário que poderia ser aplicado com a mesma justeza na natureza e  
na sociedade. Segundo a autêntica concepção de Marx, trata-se, em  
contrapartida, de um processo em última análise, mas só em última  
análise histórico unitário, que se mostra já na natureza inorgânica  
como processo irreversível da transformação, de complexos maiores  
(como sistemas solares e “unidades” maiores ainda) passando pelo  
desenvolvimento histórico de cada planeta até os átomos processuais  
e seus componentes, em que não existem fronteiras constatáveis para  
“cima” ou para “baixo”. (LUKÁCS, 2010, pp. 263-264)  
E conclui, muitas páginas a frente:  
A determinação ontológica marxiana da história como característica  
fundamental de todo o ser é uma teoria universal, válida tanto na  
sociedade como na natureza. Mas isso não significa, de modo nenhum,  
a visão amplamente difundida nas últimas décadas, especialmente  
entre os comunistas, de que a concepção total de Marx seja uma teoria  
filosófica abstratamente geral (em sentido antigo), cujos princípios  
gerais, válidos para todo o ser, agora também fossem “aplicados” à  
história e sociedade (no sentido mais estreito e burguês). Com essa  
“aplicação” surge pretensamente a teoria do “materialismo histórico”.  
Assim Stalin tomou posição em sua descrição desses complexos de  
problemas no conhecido capítulo IV da História do partido. Ele afirma:  
“O materialismo histórico é a ampliação dos princípios do  
materialismo dialético para a pesquisa da vida social, a aplicação dos  
princípios do materialismo dialético às manifestações da vida em  
sociedade, à pesquisa da história da sociedade.  
Quanto ao próprio Marx, até onde sei, ele não empregou a expressão  
“materialismo dialético”; naturalmente, fala com frequência em  
métodos dialéticos, e a expressão “materialismo histórico”, que  
aparece com especial frequência em Engels, sempre se relaciona com  
a totalidade da teoria, e nunca significa uma “aplicação” específica ao  
“domínio” da história como esfera particular. Para Marx, que via na  
história o princípio universal de movimento de todo ser, a expressão  
“aplicação” já seria uma contradição com seus próprios princípios  
fundamentais. (LUKÁCS, 2010, pp. 330-331 itálicos do original)  
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2.3.2- Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886): da interpretação  
original da dialética à reavaliação da política no Prefáciode 1895  
Escrito em 1886, a convite de Kautsky e Bernstein, em Ludwig Feuerbach e o  
fim da filosofia clássica alemã (ENGELS, 2020), Engels aproveita a oportunidade de  
comentar a tese de Karl Starcke para revistar os manuscritos de 1945/46 (Ideologia  
alemã), fazendo ainda um balanço de sua relação (e da de Marx) com as ideias de  
Feuerbach. Engels também se vale da oportunidade para apresentar uma crítica ao  
neokantismo ascendente. O fato de ter produzido o texto a convite dos dois marxistas,  
pode ter exercido alguma influência na inflexão analítica sobre a política que se  
apresenta na última parte (assim como produziu, no Prefáciode 1895, a demanda  
do Partido Social-Democrata Alemão; prova disso são os trechos escritos por Engels  
sumariamente censurados pelo partido). Todavia, em Feuerbach... nada permite essa  
conclusão liminar, a qual demanda uma investigação mais detida.  
Na primeira parte, Engels realiza um formidável balanço sobre a tensão interna  
do pensamento de Hegel (sistema X método), como ainda situa os debates entre os  
velhos e jovens hegelianos a partir dessa clivagem fundamental. Na segunda parte,  
retoma discussões a respeito do materialismo, explicitando suas insuficiências até o  
séc. XIX, como consequência das próprias limitações das pesquisas no âmbito das  
ciências naturais. Afinal, mesmo os movimentos mais gerais da matéria eram  
relativamente desconhecidos neste campo. Na terceira parte, a abordagem é sobre os  
limites do próprio Feuerbach, creditados ao seu próprio tempo (limitações das ciências  
naturais) e ao seu isolamento (o modo como produziu sua filosofia), mas também  
vinculados a sua própria debilidade em superar o idealismo. Para Engels, Feuerbach  
conserva traços idealistas em sua crítica à religião, na mediada em que não pretende  
“abolir” a religião, mas superá-la por uma religião “humanista”. Os já conhecidos  
problemas de Feuerbach, indicados por Marx (em Ad Feuerbach), também são  
resgatados pelo filósofo.  
Todavia, é a quarta seção que nos interessa mais diretamente. Na última e mais  
controversa parte da monografia, Engels retoma alguns temas como as leis universais  
da dialética (que comparecem com menos destaque do que nos textos anteriores),  
reorienta sua compreensão da política, reafirma a questão da determinação econômica  
em última instância e, por fim, trata da ideologia. Vejamos brevemente tais questões,  
com maior destaque para as duas primeiras.  
No que diz respeito às leis universais da dialética, retomadas de modo sutil,  
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resta claro que a questão não sofreu reformulações. Não há, todavia, uma insistência  
incisiva no tema, o que pode estar relacionado ao fato de Engels já haver-lhe dedicado  
tratamento prolongado em textos anteriores. De qualquer modo, aqui não há guinada  
em sua interpretação neste âmbito. Seu entendimento mais explícito é que a superação  
científica da filosofia (metafísica) da natureza é justamente a demonstração científica  
da dialética da natureza. Engels não abandona a ideia de uma ciência una, capaz de  
reconhecer as leis universais do movimento:  
O que vale para a natureza, que também é reconhecido por meio disso  
como um processo de desenvolvimento histórico, vale também para a  
história da sociedade em todos os seus ramos e para a totalidade de  
todas as ciências que se ocupam de coisas humanas (e divinas). (...)  
Na natureza (...) há somente agenciamentos cegos, desprovidos de  
consciência, que geram efeitos uns sobre os outros e em cuja  
interação recíproca a lei universal tona-se válida. (...) Em contrapartida,  
na história da sociedade, os agentes estão nitidamente dotados de  
consciência, são homens que se propõem a agir com reflexão ou  
paixão, em determinadas finalidades; nada acontece sem propósito  
consciente, sem uma finalidade que seja fruto da vontade. Mas essa  
diferença, por mais importante que seja para a investigação histórica,  
não altera em nada o fato de que o curso da história é regido por leis  
universais. (ENGELS, 2020, pp. 99-101)  
Algo estranha na afirmação, pela tensão entre práxis e leis férreas universais. E  
não se está falando de leis, tais como as apresentadas por Marx em O capital, por  
exemplo. Vimos, antes, tratar-se de leis universais que, de algum modo, estão postas,  
elas mesmas, sobre a própria história e que condicionam seres tão distintos como as  
matérias inorgânicas, orgânicas e o próprio desenvolvimento da consciência leis  
absolutas. Por outro lado, Engels é um homem de ciência, um racionalista radical. E é  
nesse espírito que defende a superação cientifica da filosofia. No entanto, é preciso  
determinar muito claramente aqui, que Engels está tomando a filosofia pela  
“especulação”, ou seja, na estrita linha em que ele e Marx haviam estabelecido Hegel  
como o próprio fim da filosofia. Há absoluta coerência neste aspecto da crítica  
engelsiana, quando compreendida no quadro de sua afirmação. Todavia, suas palavras  
terminaram extrapoladas, vindo a desaguar, não por sua responsabilidade, em um  
cientificismo canhestro no marxismo vulgar.  
Engels também procurou equacionar o lugar do fundamento econômico na  
determinação do conjunto macrossocietário. Em uma rápida passagem onde aborda a  
questão das classes, explicita uma questão aparentemente óbvia, cujo destino foi uma  
vulgarização terrível. O desenvolvimento histórico das classes, trazido em Feuerbach...  
(cf. ENGELS, 2020, p. 109), encontra um encadeamento absolutamente clássico e  
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culmina na afirmação de que “a origem e o desenvolvimento de duas grandes classes  
eram aqui claras e palpáveis a partir de causas puramente econômicas” (cf. ENGELS,  
2020, p. 109); disso, segue-se que “na luta entre burguesia e proletariado, o que  
estava em disputa, em primeiro lugar, eram interesses econômicos, para cuja efetivação  
o poder político devia servir de mero meio” (cf. ENGELS, 2020, p. 109). Ora, toda luta  
e toda formação ideal encontra, em última instância (Engels deixou apenas de frisar  
com veemência “em última instância, mas apenas em última instância!”), uma carência  
humana, como determinação material. Isso, todavia, não é mesmo que ratificar que  
todo e qualquer fenômeno social tenha de encontrar explicações necessariamente  
econômicas. Claro, o problema foi ainda mais embaralhado pelo trânsito fluido de  
Engels entre natureza e sociedade, nos inúmeros exemplos que traz sobre as leis da  
dialética, em diversos momentos de sua obra. A relação exposta por Engels entre “leis  
da dialética” e o fato de que “de acordo com a concepção materialista, o fator decisivo  
na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata”  
(ENGELS apud SARTORI, 2015 p. 129) abriu as portas para que o marxismo vulgar  
tomasse a determinação econômica com uma radicalidade literal e esquemática: toda  
e qualquer análise deveria desaguar, assim, em uma determinação econômica, ainda  
que por atalhos. O marxismo oficial tornou-se sinônimo de economicismo. É evidente  
que esse expediente é completamente alheio às pretensões do próprio Engels e,  
inclusive, não é encontrado nos escritos do autor12.  
Em continuidade, ao menos em Feuerbach..., Engels apresenta ainda uma  
definição mais refinada de ideologia, que terminou unilateralizada. Ao mesmo tempo  
em que, por um lado, a considera como expressão ideal que impulsiona os homens  
para ações práticas, termina por abarcar, também, a concepção de “falsa consciência”,  
sobretudo pelo modo como expõe, sequencialmente, direito, filosofia e religião. Senão,  
12 Pelo contrário, em suas explanações sobre a ideologia, considera Engels (2020, p. 117): “O estado,  
porém, uma vez que se torna um poder autônomo diante da sociedade, logo em seguida produz uma  
ideologia ulterior. Nos políticos de profissão, nos teóricos do direito do estado e nos juristas do direito  
privado, perde-se, sobretudo, a própria conexão com os fatos econômicos. Porque em cada caso  
individual os fatos econômicos têm de tomar a forma de motivos jurídicos para serem sancionados na  
forma da lei (...). Ideologias ainda mais superiores, isto é, ainda mais afastadas do fundamento  
econômico, material, tomam a forma da filosofia e da religião. Aqui, a conexão das representações com  
as suas condições materiais de existência torna-se sempre mais complexa, sempre mais obscurecida por  
elos intermediários. Mas ela existe” (itálicos meus). Bem observado, Engels reafirma a determinação  
econômica, mas não propõe atalhos para alcançá-la. Todavia, devemos reconhecer que a ampla  
publicação das obras de Marx e Engels, hoje, torna mais fácil identificar essas nuances e o sentido –  
nos escritos do autor.  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
vejamos. Em sua primeira abordagem, define:  
O único caminho que pode nos colocar no rastro das leis que dominam  
a história, tanto em geral como em períodos e regiões singulares, é  
averiguar, como fundamentos conscientes de movimento, as causas  
motrizes que aqui se refletem clara ou obscuramente, imediatamente  
ou na forma ideológica, por vezes sacralizada na cabeça das massas  
e de seus condutores, os chamados grandes homens. Tudo o que põe  
os homens em movimento tem de passar por sua cabeça; mas que  
configuração toma nessa cabeça depende muito das circunstâncias.  
(ENGELS, 2020, pp. 105-107 itálicos meus)  
Seu argumento percorre, assim, da política (na revisão que estabelece e da qual  
falarei em breve) ao estado13, do direito à filosofia e da filosofia à religião. Este  
encadeamento é importante, pois ele será simplificado posteriormente e essa primeira  
acepção será abandonada por seus continuadores. Sua crítica do direito, da filosofia e  
da religião, como ideologias, produz, assim adicionalmente, a admissão de que a  
ideologia pode nem sempre refletir fidedignamente à realidade, mas que deve manter  
sua característica ativa:  
Toda ideologia, porém, desde que ela exista, desenvolve-se em  
conexão com o material da representação dado, dá a ele uma forma  
ulterior; caso contrário, ela não seria ideologia, isto é, desenvolvendo-  
se independentemente, submetida apenas às suas próprias leis. O fato  
de as condições materiais da vida dos homens, em cuja cabeça esse  
processo de pensamento avança, determinarem definitivamente o  
curso desse processo, permanece necessariamente inconsciente para  
esses homens, afinal, caso contrário, toda ideologia chegaria ao fim.  
(ENGELS, 2020, p. 119 itálicos meus)  
Vê-se como, aqui, tratando da ideologia a partir da crítica da religião, o  
fenômeno adquire uma clara conotação de falsa consciência. Mais precisamente, a  
intepretação da abordagem engelsiana da religião produziu no marxismo posterior  
uma concepção “sociológica” do fenômeno, passível de eliminação, sem que se  
problematizassem seus condicionantes mais profundos nas relações humanas (como,  
por exemplo, em Marx [2010]). Pôde, dessa forma, o marxismo vulgar produzir um  
encadeamento ao mesmo tempo simplório e pernicioso: à filosofia (enquanto  
idealismo) combate-se com o marxismo (ou seu materialismo dialético); à ideologia  
(como falsa consciência) contrapõe-se à ciência dialética; por fim, contra a religião, o  
materialismo.  
13  
“No estado, apresenta-se para nós a primeira potência ideológica sobre o homem. A sociedade cria  
para si um órgão para a salvaguarda de seus interesses comuns diante de ataques internos e externos”  
(ENGELS, 2020, p. 115).  
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Finalmente, alcançamos a revisão política. Em Feuerbach..., Engels apresenta  
uma posição absolutamente divergente da de Marx. Afirma literalmente:  
Na história moderna, pelo menos, está assim demonstrado que todas  
as lutas políticas são lutas de classes, e que todas são lutas por  
emancipação das classes, apesar de sua forma necessariamente  
política afinal, toda luta de classes é uma luta política , e que giram,  
no fim, em torno da emancipação econômica. (ENGELS, 2020, p. 111  
itálicos do original)  
Para terminar, páginas à frente, afirmando que “a luta da classe oprimida contra  
a classe dominante torna-se necessariamente uma luta política; uma luta, antes de  
tudo, contra a dominação política desta classe” (ENGELS, 2020, p. 115 – itálicos  
meus). É verdade que encontramos em Marx algo parecido; mas “parecido” não é  
“idêntico” e as palavras não podem nos confundir. Apenas para ficarmos com um  
exemplo, em A miséria da filosofia, seguindo as etapas históricas de consolidação da  
organização dos trabalhadores, afirma Marx:  
As condições econômicas, inicialmente, transformam a massa do país  
em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma  
situação comum, interesses comuns. Essa massa, pois, é já, face ao  
capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, de que  
assinalamos algumas fases, essa massa se reúne, se constitui em  
classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses  
de classe. Mas a luta entre as classes é uma luta política. (MARX, 2009,  
p. 190)  
Encerrasse aqui, teríamos em A miséria da filosofia, de 1847, não apenas uma  
revisão marxiana do problema da política, três anos após seu mais virulento ataque  
contra a mesma, mas ainda uma oscilação, do próprio Marx, em relação ao problema,  
que poderia apontar certa fragilidade resolutiva anterior. Mas Marx avança, de forma  
clara:  
A classe laboriosa substituirá, no curso do seu desenvolvimento, a  
antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e  
seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito,  
já que o poder político é o resumo oficial do antagonismo da  
sociedade civil.  
Entretanto, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma  
luta de classe contra outra, luta que, levada à sua expressão mais alta,  
é uma revolução social. Ademais, é de provocar espanto que uma  
sociedade fundada na oposição de classes, conduza à contradição  
brutal, a um choque corpo a corpo como derradeira solução?  
Não se diga que o movimento social exclui o movimento político. Não  
há, jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo, social.  
(MARX, 2009, p. 191-192 negritos do original; itálicos meus)  
As últimas linhas, lidas a partir do elo tônico correto, convergem perfeitamente  
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com as posições contra A. Ruge, nas Glosas marginais ao artigo O rei da Prússia e a  
reforma social, de um prussiano”, de 1844. Aqui, a questão parece sobremaneira clara:  
a política só faz sentido como metapolítica14 (CHASIN, 2000).  
Mas no caso de Engels, ao menos o modo como expõe em Feuerbach..., permitiu  
uma redução de toda a questão à luta política. Vimos, há pouco, que uma má  
interpretação de sua posição levou por uma busca, à fórceps, de todo fundamento  
explicativo da ideologia na esfera econômica; agora, também tomando-se a afirmação  
sem o devido cuidado, podemos concluir que toda a luta de classes, que ao fim e ao  
cabo gira em torno da emancipação econômica (ENGELS, 2020, p. 111), encontra sua  
expressão na luta política (ENGELS, 2020, p. 115).  
Para não se dizer que forço o traço, convido o leitor a apreciar as conclusões  
extraídas de Feuerbach... com aquelas expostas no Prefáciode 1895. Defendi, em  
outra oportunidade (ARBIA, 2017), de modo en passant, que a espécie de mea-culpa  
realizada por Engels em 1895 é uma consequência de sua concepção dialética  
própria15. Noutros termos, na oportunidade afirmei que “o modo como Engels  
compreende e incorpora a dialética rebate diretamente em suas conclusões sobre a  
política” (ARBIA, 2017, p. 431). Também naquela oportunidade, advoguei pela  
consideração do momento histórico em que Engels escrevia: decisivo, para o nosso  
caso, o fato de que, naquele interregno, “de 1890 a 1895, Engels acompanha o  
crescimento exponencial da luta dos trabalhadores pela redução da jornada de  
trabalho para oito horas diárias” (PAÇO CUNHA, 2014, p. 157) e ainda que “o  
deslocamento da intensificação das lutas da França para a Alemanha, onde a social-  
democraciaascendia a passos largos e formava um só grande exército de socialistas’”  
(PAÇO CUNHA, 2014, p. 157). Também consoante com outro texto de Paço Cunha  
(2014a, p. 159), considerei que, passando a largo do “indiferentismo político”, “Engels  
encaminha[va], no prefácio, para uma leitura que [via] na luta parlamentar uma  
substituição ou um caminho (historicamente) mais adequado às velhas táticas de  
barricada’, empregadas na França, na Guerra Civil de 1871” (ARBIA, 2017, p. 432).  
14  
“É necessário não deixar que se confunda metapolítica com desmobilização, recusa à participação  
política ou até mesmo à adesão partidária. (...) Metapolítica como natureza de uma forma de atuação  
política que visa a superar, revolucionariamente, a política e a base social que a engendra. Nesse sentido,  
radical como raiz, e a raiz do homem é o homem” (CHASIN, 2000, p. 54).  
15  
Para uma análise também detalhada a esse respeito, com algumas nuances diferenciais, cf. Paço  
Cunha (2014a).  
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Engels também, mesmo com sua revisão a respeito da adoção tática da política,  
jamais aderiu a uma apologia acrítica do estado. A questão, todavia, é que na virada  
da análise, Engels passa a focalizar ao arrepio das posições de Marx – “a luta política  
como única forma possível de luta para o momento dado, como ainda por sua tomada  
como o modo mais desenvolvido e adequado” (ARBIA, 2017, p. 432). Ou, noutros  
termos, em vez de uma alternativa, a luta política (neste caso, em específico, está  
explicitamente pronunciada a questão do sufrágio no texto de 1895) converte-se,  
naquele período, em substituta da luta direta.  
E é por meio desta posição que Engels corrige a si e ao companheiro teórico:  
“a história não deu razão nem a nós [a ele e a Marx], desmascarando nossa visão de  
então como uma ilusão” (ENGELS, 2012, p. 14), e complementa: “hoje as formas de  
luta de 1848 são antiquadas em todos os aspectos” (ENGELS, 2012, p. 14 itálicos  
meus). Se a admissão engelsiana dos equívocos (seus e, por extensão, de Marx) nas  
análises pretéritas da política não permitem simplesmente acusa-lo de politicismo,  
deixa transparecer, por outro lado, haver bem mais do que uma simples concepção  
linear-evolutiva das táticas: o filósofo de Barmen parece de fato convencido a respeito  
do arcaísmo, “em todos os aspectos” (ENGELS, 2012, p. 14), das formas de luta de  
1848.  
Finalmente, o Prefáciotermina por apresentar uma compreensão da natureza  
do estado e da política relativamente contraditória. Acentuando positivamente, afirma:  
Esse uso bem-sucedido do direito de voto universal efetivou um modo  
de luta bem novo do proletariado e ele foi rapidamente aprimorado.  
O proletariado descobriu que as instituições do estado, nas quais se  
organiza o domínio da burguesia, admitem ainda outros manuseios  
com os quais a classe trabalhadora pode combatê-las. Ele participou  
das eleições para as assembleias estaduais, para os conselhos  
comunais, para as cortes profissionais, disputando com a burguesia  
cada posto em cuja ocupação uma parcela suficiente do proletariado  
tinha direito à manifestação. E assim ocorreu que a burguesia e o  
governo passaram a temer mais a ação legal que a ilegal do partido  
dos trabalhadores, a temer mais os sucessos da eleição que os da  
rebelião. (ENGELS, 2012, p. 22 itálicos meus)  
Esta concepção é de difícil coadunação com a conclusão de que o estado, “em  
todos os períodos típicos, é sem exceção o estado da classe dominante e, de qualquer  
modo, uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada” (ENGELS,  
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2012a, p. 221), expressa uma década antes (1884)16.  
Vista a reinterpretação em suas próprias linhas, permanece o ponto: onde o  
entendimento engelsiano da dialética poderia impactar diretamente em sua concepção  
da política? É difícil, também, responder a essa pergunta de um modo definitivo.  
Todavia, basta que acompanhemos as primeiras cinco páginas do Prefáciopara  
percebermos que Engels expõe novamente, de modo sutil, mas efetivo, sua  
compreensão metodológica: a ideia da “aplicação” da teoria, tanto no Manifesto  
comunista quanto nas análises sobre as lutas de classes na França (ENGELS, 2012, p.  
9); o expediente “derivacionista” do método materialista, a fim de demonstrar que os  
fatos políticos são “efeitos advindos de causas em última instância econômica”  
(ENGELS, 2012, p. 9; 10). Assim, o que percebemos é que, justamente na fase de sua  
vida em que é chamado a esclarecer publicamente o entendimento sobre a dialética,  
Engels traz a público, em conjunto, uma reavaliação da política que, por uma leitura  
mais atenta, não apresenta contradição com o expediente de enquadrar os fatos pelo  
método. Observemos.  
Argumentando a respeito das dificuldades em se avaliar a história  
contemporânea ou seja, os fatos no momento de seu acontecimento , pondera  
Engels:  
Na apreciação de acontecimentos e séries de acontecimentos a partir  
da história atual, nunca teremos condições de retroceder até a última  
causa econômica. (...) A visão panorâmica clara sobre a história  
econômica de determinado período nunca será simultânea, só  
podendo ser obtida a posteriori, após a compilação e verificação do  
material. (...) Por isso, tendo em vista a história contemporânea em  
curso, seremos muitas vezes forçados a tratar como constante, ou  
seja, como dado e inalterável para todo o período, este que é o fator  
mais decisivo, a saber, a situação econômica que se encontra no início  
do período em questão; ou então seremos forçados a levar em  
consideração somente as modificações dessa situação oriundas dos  
próprios acontecimentos que se encontram abertamente diante de  
nós e que, por conseguinte, estão expostos à luz do dia. Por isso,  
nesse ponto, o método materialista com muita frequência terá de  
restringir a derivar os conflitos políticos de embates de interesses das  
classes sociais e frações de classes resultantes do movimento  
econômico, as quais podem ser encontradas na realidade, e a provar  
que os partidos políticos individuais são a expressão política mais ou  
menos adequada dessas mesmas classes e frações de classe. (ENGELS,  
16  
Não examinei aqui em detalhes, como o leitor certamente constatou, A origem da família, da  
propriedade privada e do estado, de 1884. Pretendo, em outra oportunidade, retomar de modo mais  
detido, apenas a questão do estado no último Engels.  
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2012, p. 10 itálicos meus)  
O lugar da economia, aqui, é inegavelmente metodológico: ela ocupa um espaço  
previamente orientado pelo sistema teórico, de determinação, em última instância, de  
todo e qualquer fenômeno. Como afirmei acima, pode-se observar em elaborações  
desse tipo elementos que, posteriormente mal interpretados e distorcidos, servirão de  
justificativa para um expediente amplamente empregado pelo marxismo vulgar: a  
dedução lógica. Bem postado o método, para os fatos ignorados, a lógica fornece a  
argamassa no acabamento da explicação. Liberada a lógica para imiscuir-se nos  
resultados do reflexo/ espelhamento, torna-se extremamente simples, para o marxismo  
vulgar, enredar por atalhos tática e teoria.  
Logo, do que se observa até aqui, não temos razão para crer que, no que diz  
respeito especificamente à política, Engels abandonaria a ideia de aplicação do método  
que organiza os quadrantes da economia e da política para empreender  
exclusivamente uma análise imanente. Mais a mais, como vimos, o método pressupõe  
três leis insuperáveis: transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; a lei da  
interpenetração dos contrários e a lei da negação da negação e não há razão para não  
supor que o próprio desenvolvimento do proletariado e de sua capacidade de  
intervenção política estão ligados com grande dose de elementos probatórios a  
uma interpretação da ascensão do movimento de massas e sua atuação, na esfera  
institucional, como uma expressão da “negação da negação” – embora, para que se  
faça justiça, Engels, neste texto, não retome nenhuma referência explícita às leis da  
dialética e tampouco se refira à questão nestes termos.  
Mas há algo além das implicações inerentes à dialética engelsiana. As posições  
de Engels começaram a sofrer interferência ainda em vida do autor. Quando  
observamos o Prefácio, encontramos intervenções efetivas da diretoria berlinense do  
Partido Social-Democrata Alemão, como a censura explícita à sua conclusão de que  
ainda era factível “analisar as chances de alguma luta de rua no futuro” (ENGELS, 2012,  
p. 24 itálicos meus). Tal trecho foi simplesmente suprimido do manuscrito17. Esse  
17 E não foi o único. Há outra supressão que caminha no mesmo sentido: “porventura, isso significa que  
no futuro a luta de rua não terá mais nenhuma importância? De modo algum. Isso significa que, desde  
1848, as condições se tornaram bem menos favoráveis para os combatentes civis e bem mais favoráveis  
para os militares. Uma luta de rua no futuro só poderá ser vitoriosa se essa situação desfavorável for  
compensada por outros momentos. Por isso, no início de uma grande revolução ela ocorrerá mais  
raramente do que em seu decurso e terá de ser empreendida com efetivos bem maiores. Mas, nesse  
caso, estes decerto preferirão o ataque aberto à tática passiva das barricadas” (ENGELS, 2012, p. 26).  
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fator, em meio a outros, oblitera de plano qualquer intenção de incluir Engels, sem  
mais, no revisionismo que se seguiu na II Internacional, dada a complexidade (e muitas  
vezes, ambiguidade) de suas exposições. Todavia, em resumo, como concluí, noutra  
oportunidade:  
Os trechos suprimidos, à luz das conclusões do prefácio em seu  
conjunto, revelam um encadeamento linear-evolutivo das táticas, da  
menos a mais adequada, conforme a própria evolução histórica da  
organização proletária e das contradições da sociedade burguesa. Há,  
pois, uma articulação mais espessa que uma simples crença politicista,  
dimanada diretamente do modo como Engels incorpora a dialética, e  
que, em retorno, não deixa de surtir efeitos importantes em sua  
prescrição das táticas. Os trechos suprimidos, também muito à  
conveniência do Partido Social-Democrata Alemão, mostram certa  
oscilação de Engels quanto às táticas, mas não alteram a tônica do  
prefácio que aponta, em última conclusão e de forma inequívoca, para  
a superioridade da luta institucional, ao menos no que se refere ao  
período histórico considerado. (ARBIA, 2017, p. 436)  
Em síntese: Engels foi a grande inteligência, após o desaparecimento de Marx,  
a articular e difundir amplamente os aspectos do pensamento de ambos. Esclarecendo  
afirmações, editando obras inacabadas de Marx, tomando posição em combates  
políticos, imiscuindo-se, como era de hábito dos dois companheiros, no front do  
debate de ideias de sua época... Engels digladiou contra as vulgarizações do  
pensamento de Marx, encurralou detratores, divulgou, de modo sistemático, o  
pensamento “marxista” no seio do movimento operário (é amplamente sabido o  
significado do Anti-Dühring para a conquista da hegemonia do marxismo no interior  
do movimento de trabalhadores). Posso incorrer no risco calculado de afirmar que as  
proposições de Engels pautaram o debate marxista, pelo menos, até a metade do  
século XX, ainda que o autor não tenha qualquer reponsabilidade sobre as  
interpretações aportadas. Bem separadas as suas contribuições, a originalidade de  
Engels sobressai como um autêntico e virtuoso segundo violino, cuja beleza melódica  
pode ser apreciada também se voltarmos nossa atenção exclusivamente para ele.  
De seu espólio, para bem ou para mal, este conjunto de textos de que tratei,  
intensamente apropriado pelo movimento operário já a partir da II Internacional,  
terminou por encerrar um bloco compreensivo para o marxismo (não necessariamente  
para Engels) que passa pela crítica do senso comum (e da metafísica idealista, como  
sua expressão cientificamente envernizada), pela elevação da dialética com método  
aplicável, pela unidade (dialética, e não pela história, como em Marx) entre leis da  
natureza e da sociedade e, finalmente, pela constituição de uma Weltanschauung  
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proletária, uma cientificidade específica, instrumentalizada para a luta política o palco  
par excellence da luta de classes.  
Notas finais: uma síntese aberta e uma nota  
O que encontramos, portanto, ao final desta exposição é que quatro blocos  
temáticos que permeiam o marxismo do século XX deitam raízes diretamente nas  
elaborações do último Engels (ainda que, parte delas, como uma extrema simplificação  
de suas proposições originais): a ideia de método dialético, a reconsideração a respeito  
da ação política, a determinação econômica em última instância e uma tônica  
essencialmente negativa da ideologia. Nesses quatro grandes pilares, mas não apenas,  
podemos localizar posições autorais de Engels que, ainda que muitas vezes  
convergentes, são distintas das de Marx.  
Chasin não investiu a fundo na discussão das elaborações de Engels em EORM  
(CHASIN, 2009). No primeiro capítulo, o filósofo alemão é citado de relance, em sua  
conexão com Lênin, dada a preocupação primeira em demarcar a ideia do “amálgama  
originário” – que, reitere-se, não está presente em Engels. Vejo duas razões para tal:  
mantendo a coerência com os objetivos do trabalho, Chasin aponta para a gênese de  
um problema que se tornou lugar comum no marxismo18 a leitura terceirizada de  
Marx, responsável por instalar a boataria, a vulgarização e a licença poética na  
interpretação de sua obra ao longo do séc. XX. Em segundo lugar, Chasin está menos  
preocupado em reconstruir a história do erro e mais em indicar o caminho do acerto.  
Noutros termos, a urgência da tarefa impõe, desde logo, “remover o entulho” sobre a  
obra de Marx, deixando que fale por si mesma; neste sentido, Engels exigiria um  
tratamento detalhado para demonstrar sua especificidade autoral, e o desvio do  
caminho principal inviabilizaria o manuscrito.  
A escolha de Chasin não impede, ao contrário, incita, a aprofundar seus  
apontamentos para verificar, de fato, sua precisão. Sua exposição, portanto, é uma  
síntese aberta. Por essa razão, optei por esmiuçar, neste trabalho, uma de suas  
primeiras teses, qual seja, a de que a ideia do “tríplice amálgama” contribuiu muito  
18  
A elaboração original, de tão comum, acabou se perdendo ao longo da história do marxismo. Ao  
resgatar sua origem (na deturpação de Kautsky mas, principalmente, na chancela da autoridade de  
Lênin), Chasin, de certo modo, contribui para esclarecer a força de seu alcance. A deturpação posterior  
alcançou o ponto de encontrarmos em G. Novack, por exemplo, à altura de 1963, a seguinte afirmação:  
“Marx e Engels disseram que sua doutrina é produto de uma reconstrução crítica da filosofia clássica  
alemã, do socialismo francês e da economia política inglesa” (NOVACK, 2006, p. 84 itálico meu).  
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J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”  
mais para ocultar que propriamente para esclarecer a obra de Marx. Ao investigar um  
pouco mais a fundo sua sugestão, deparamo-nos com o fato de que, antes mesmo da  
elaboração do “tríplice amálgama”, que inaugurou uma nova era interpretativa no  
marxismo, as próprias diferenças entre Engels e Marx não podem ser ignoradas, sob  
pena de apagamento e diminuição da própria originalidade de Engels. Marx e Engels  
estabeleceram a mais profícua e longa parceria da história do pensamento; poucas  
vezes se viu, na história da filosofia, tamanha consonância de ideias em dois autores;  
todavia, não se pode perder de vista esse fato elementar: estamos tratando de dois  
autores; e não de apenas um.  
Um rastreamento mais dedicado, a partir das indicações aqui oferecidas (e por  
outros estudiosos que também se dedicam a analisar os escritos de Engels), poderá  
estabelecer conexões mais precisas e detalhadas dos elementos aqui elencados com  
as elaborações marxistas fundamentais ao longo do século XX. Esta uma tarefa,  
portanto, para trabalhos distintos deste.  
Chasin, em verdade, não é o primeiro a apontar a diferença entre Marx e Engels:  
vem na esteira de seu mestre Lukács de quem também se distingue (como se pode  
observar no final do mesmo EORM). No caso de Chasin, uma leitura ainda mais radical  
que a do marxista magiar termina por opor ontologia e epistemologia/ gnosiologia no  
pensamento de Marx. Se Chasin está ou não correto, somente o estudo aprofundado  
e, sobretudo, desapaixonado de suas contribuições poderá dizer.  
Por derradeiro, cumpre-me uma nota. Afinal, uma crítica do “tríplice amálgama”  
terá algo ver, no fim das contas, com a emancipação humana? Assim como em Marx,  
é o problema da emancipação humana que orienta, como fio mais profundo, as  
pesquisas de J. Chasin. Logo, sua posição a respeito do “estatuto ontológico e da  
resolução metodológica” de Marx não é, de modo algum, uma preocupação com o  
simples bom procedercientífico. Sua preocupação com a cientificidade em seu fazer  
objetivo e correto tem repercussões práticas bastante claras. Seu resgate da obra de  
Marx, em sua fidelidade ao autor é, antes de tudo, o resgate de um de seus elementos  
mais decisivos: a anatomia da constituição (histórica) do homem e das possibilidades  
de superação das barreiras que obstaculizam autoconstrução de sua humanidade.  
Na “resolução metodológica” marxiana, a Weltanschauung do trabalho é,  
sobretudo, uma explicitação rigorosa e imante dos fatos tal como são em si mesmos.  
O caráter ontoprático do conhecimento sua função social está dado pela imposição  
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de responder às necessidades humano-societárias, portanto genéricas. Logo, a  
explicitação rigorosamente racional e científica do mundo é herdada pela perspectiva  
do trabalho, não para sua simples instrumentalização política pragmática; pelo  
contrário, trata-se do imperativo de compreensão mais profunda dos fenômenos,  
possibilitando sua desmitificação, a qual termina por permitir uma (teoria da) ação  
coerente e adequada; noutros termos, o conhecimento objetivo do mundo abre  
caminho para uma atuação objetiva no mundo, potenciando a capacidade de  
transformá-lo praticamente. Chasin consegue (re)conectar, em curto espaço, o  
problema do conhecimento e da prática na superação das estruturas que estranham o  
homem. Mas, como sabemos, a superação dos estranhamentos pressupõe, justamente,  
uma revolução social como afirmação universal do homem.  
A retomada do problema da emancipação humana, por Chasin, está  
indissociavelmente ligada à cientificidade marxiana não é possível aderir a uma sem  
a outra. E emancipação humana e política estabelecem uma relação onde a primeira é,  
justamente, uma Aufhebung no sentido de Marx, não de Hegel da segunda. O que  
faz com que a crítica da política de Marx seja de natureza ontológica e não de uma  
simples superação teórica marginal de um elemento do sistema hegeliano.  
Referências bibliográficas  
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Alexandre Aranha Arbia  
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Como citar:  
ARBIA, Alexandre Aranha. J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama”: explorando  
origens e consequências. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 147-182, Edição  
Especial, 2022/2023.  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 147-182 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.666  
J. Chasin: a ontonegatividade  
da politicidade em Marx1  
J. Chasin: the ontonegativity of politicality in Marx  
Ana Selva Castelo Branco Albinati*  
Resumo: O propósito desse artigo é apresentar o  
trabalho realizado por J. Chasin na elucidação de  
um aspecto central do pensamento de Marx, que  
é a crítica à política. Não se trata só da conhecida  
questão do fim do estado, uma vez que essa se  
coloca no interior de uma determinação mais  
ampla que é a da necessidade, da origem e do  
significado da política, reflexão desenvolvida por  
Marx, que conduz à consequente negação da  
Abstract: The purpose of this article is to  
present the work of J. Chasin in the elucidation  
of a central aspect of Marx's thought, which is  
the critique of politics. It is not just about the  
well-known question of the end of the State,  
since this is placed within  
a
broader  
determination that is the need, origin and  
meaning of politics, a reflection developed by  
Marx, which leads to the consequent denial of  
the politicality as an attribute inherent to social  
existence, an aspect that Chasin seeks to  
explain in the author's work and which is  
fundamental for the rescue of the deep meaning  
of the Marxian proposition, that is, the  
possibility of human emancipation, freed from  
the illusions on which the traditional politics  
conception is based.  
politicidade enquanto atributo inerente  
à
existência social, aspecto que Chasin procura  
explicitar na obra do autor e que é fundamental  
para o resgate do sentido profundo da  
proposição marxiana, qual seja, a possibilidade  
da emancipação humana, desentranhada das  
ilusões sobre as quais se sustenta a concepção  
tradicional da política.  
Palavras-chave: Marx; ontonegatividade da  
politicidade; emancipação humana.  
Keywords: Marx; ontonegativity of politicality;  
human emancipation.  
Introdução  
O propósito desse artigo é apresentar em traços gerais o trabalho realizado por  
J. Chasin na elucidação de um aspecto central do pensamento de Marx, que é a crítica  
à política. Crítica no sentido compreendido por Marx como determinação da função e  
dos limites de uma dada entificação histórico-social. O significado do esforço de Chasin  
está em que ele nos remete à fundamentação ontológica de tal crítica, tratando-a com  
o rigor e o alcance devidos à dimensão e originalidade com que Marx a propõe. A  
compreensão da relação entre a atividade política e a existência social, entre o ser  
1 Versão revista e ampliada do artigo originalmente publicado na Verinotio Revista on line de Filosofia  
e Ciências Humanas Edição Especial, 2008, pp. 47-61.  
* Doutora em filosofia pela UFMG e professora do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade  
Católica de Minas Gerais. E-mail: anaselvaalbinati@gmail.com.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
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Ana Selva Castelo Branco Albinati  
social e o estado, possibilitada pelos estudos de Chasin permite, aos leitores de Marx,  
o resgate do sentido profundo de sua proposição filosófica, qual seja, a possibilidade  
da emancipação humana, desentranhada dos equívocos e ilusões sobre os quais se  
sustenta a concepção tradicional do sentido e da razão de ser da política.  
A tradição ocidental nos legou, a partir dos gregos, uma concepção da política  
como ciência superior, atividade pautada pelo conhecimento racional que visa o bem  
comum. Tal atividade seria fundada sobre o que seriam os elementos da natureza  
humana que estão envolvidos diretamente na vida em comunidade: a racionalidade e  
a liberdade na determinação de valores, normas e instituições que garantam a vida em  
comunidade.  
Nessa perspectiva, temos o reconhecimento de uma positividade na ação política,  
referida à destinação da política e à suposição de sua qualificação intrínseca para esta  
destinação. Em outros termos, a política é tida como a esfera privilegiada da expressão  
da liberdade e da isonomia humanas, como esfera racional de conformação das  
relações sociais a partir do estabelecimento racional de critérios para uma vida justa.  
A esfera política seria, assim concebida, o elemento por excelência do humano. Essa  
concepção da política permanece ainda hoje como o horizonte ao qual devem se voltar  
as práticas políticas, e resiste a despeito do exercício sempre faltoso em relação ao  
seu conceito. Em outros termos, se as práticas políticas são imperfeitas, isso não é  
suficiente para abalar a confiança na politicidade, entendida como atributo inerente ao  
ser social, e isso parece constituir o núcleo da filosofia política da antiguidade aos  
nossos tempos.  
Mesmo um autor como Maquiavel a quem devemos o grande questionamento  
do sentido da política e do papel do estado na origem da modernidade , ainda se  
inscreve no interior dessa perspectiva, diferenciando-se, no entanto, ao apresentar a  
essência da atividade política em um momento no qual a relação entre o indivíduo e a  
comunidade já se apresentava muito mais cindida e complexa. A questão central para  
Maquiavel era a preservação da unidade de um povo, que ele via ameaçada quando  
do desmoronamento da ordem feudal e das instituições pré-modernas. A corrupção  
decorrente dessa transformação, que corresponde ao declínio da comunidade e ao  
surgimento do indivíduo, leva à necessidade, na percepção de Maquiavel, de uma  
recriação do estado como “demiurgo da sociabilidade”. Como observa Chasin:  
Sua enérgica denúncia e rejeição, sistematicamente reiteradas, do  
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J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx  
presente corrompido, assim como a concepção resolutiva dos choques  
e confrontos que adota, comprovam que não é do realismo com que  
reconhece a desagregação moderna que extrai o polo norteador da  
parte concludente de sua reflexão, mas de uma luz que vem do  
passado, para se transfigurar em suas mãos num claro-escuro  
revelador. (CHASIN, 2000, p. 225)  
O significativo da inflexão realizada por Maquiavel em relação à política é que  
ele desvela o modo de ser da política, agora mais claramente exposto, no que se refere  
à sua relação intrínseca com a forma da sociabilidade. A política é uma intervenção,  
assegurada pelo monopólio do poder e da violência legitimada, sobre as contradições  
da sociedade, sobre as fissuras internas à existência social, de forma a mantê-las sob  
controle.  
Ainda segundo Chasin,  
um dos grandes méritos de Maquiavel foi ter constatado e admitido a  
existência do fenômeno social que, bem mais adiante, recebeu o nome  
técnico de contradição, porém, sob a forma reduzida e  
dessubstanciada do que também posteriormente foi chamado de  
conflito (2000, p. 227).  
Vale dizer que a grandeza de Maquiavel de reconhecer a desunião e a desordem  
como elementos da vida em sociedade, rompendo com a mística da harmonia social,  
recua na medida em que essas não são compreendidas como contradições postas  
historicamente, mas como conflitos diante dos quais não pode haver superação,  
remetidos a uma antropologia naturalista que lhes dá subsistência ad eternum. A  
percepção de uma ordem social pautada sobre contradições, e o remetimento destas  
ao estatuto de conflitos, originários e eternos, próprios da natureza humana,  
possibilitam a Maquiavel a leitura da política como artifício de assegurar a ordem frente  
a seus elementos negadores. Para tanto, a razão política se descola da razão ética,  
baseada na homologia com a harmonia da physis, e ganha os contornos de uma arte  
de estabilizar as contradições. O caráter irresolutivo da política, em relação às questões  
sociais, se manifesta integralmente na reflexão de Maquiavel, assumindo, no entanto,  
uma fundamentação naturalista, de forma que a leitura da realidade empírica de seu  
tempo se ancora sobre uma antropologia do egoísmo como dado irrecusável das  
relações humanas.  
O desenvolvimento filosófico de tal fundamentação se dará em Hobbes, cujo  
pensamento consagra a necessidade do estado como condição sine qua non da  
sobrevivência dos indivíduos e a ideia do estado de natureza como ameaça constante  
que ronda os indivíduos fora do domínio da sujeição ao estado.  
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Hobbes apreende com muita perspicácia o traço característico da modernidade,  
o abandono das hierarquias de uma sociabilidade estamental e o surgimento de novas  
condições que assentam a sociabilidade do capital, quais sejam, o reconhecimento da  
igualdade e da liberdade universal dos homens. É essa igualdade que funda a  
preocupação hobbesiana, razão de conflitos a serem sanados pela vida civil sob o  
controle de um estado forte.  
A questão que perpassa a filosofia política moderna diz respeito à legitimidade  
do poder do estado. Em outras palavras, temos que, a partir de uma constatação da  
necessidade de regulação das contradições sociais, o estado é entendido como esfera  
que dispõe do monopólio do uso legítimo da força para intervir internamente nas  
questões sociais, bem como para garantir a segurança frente às outras nações, como  
afirmará Max Weber. De forma bastante simplificada, a existência do estado se justifica  
pelo reconhecimento das dificuldades de se viver em sociedade. A positividade da  
atividade política está em atuar como uma arte de conformação de conflitos. Portanto  
não há um rompimento na tradição que legitima e considera insuperável a esfera  
política, ainda que essa passe a ser considerada como o lugar do possível, ou em  
outras palavras, o lugar da não-resolução. Mais que isso, a reflexão política  
contemporânea coloca como definitiva a não-resolução das questões sociais, o que  
alicerça a compreensão da política como o campo do possível, compreensão que  
consagrará a crença na “vontade política”.  
O que fica, no entanto, oculto nessa formulação é a razão de ser e o caráter das  
contradições sociais que, em sua incompreensão, são tomadas como parte da condição  
humano-social, entronizando assim, a politicidade como elemento essencial da  
existência social. Negligenciando a relação entre o processo de individuação e a  
autoconstituição do gênero humano, atravessada e conduzida pela particularidade da  
existência social, tal perspectiva pretende estabelecer uma condição humana como  
ponto de partida para a compreensão das contradições sociais e eternizar a esfera  
política como possibilidade única de minimizar as questões sociais.  
A análise de Chasin a respeito desse aspecto central do pensamento de Marx é  
fundamental para a compreensão e crítica do politicismo que viceja, sob diversas  
roupagens, na atualidade.  
A trajetória de Marx rumo à determinação ontonegativa da politicidade  
Esse aspecto fundamental do pensamento de Marx foi exaustivamente trabalhado  
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J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx  
por José Chasin, que procurou trazer à tona a radicalidade da proposição marxiana  
através do termo “ontonegatividade da politicidade”.  
Não se trata só da conhecida questão do fim do estado, uma vez que esta se  
coloca no interior de uma determinação mais ampla e profunda que é a do significado  
da política, e da negação da politicidade enquanto atributo inerente à existência social.  
Em poucas palavras, a atividade política não se assenta sobre uma dimensão  
constitutiva da vida social, nem representa a vocação universalista de uma dada  
essência humana. Em outras palavras, ela não é imprescindível nem como elemento  
superior da relação humano-social, nem como mal necessário.  
A politicidade indica, ao contrário, uma insuficiência da sociabilidade, e não o  
seu corolário. A atividade política, enquanto meio para a regulação social, expressa  
não um mérito, mas um déficit social. Se até então as contradições sociais eram  
compreendidas como conflitos inerentes à condição humano-social, Marx procurará  
compreendê-las em sua gênese, retirando-lhes assim o caráter de necessidade e  
eternidade, para o qual a melhor resposta seria a política. O estado surge como  
resposta às contradições entre interesses privados e interesses coletivos que são, por  
sua vez, oriundos da divisão do trabalho que separa os indivíduos em redutos  
específicos que os impedem de compartilhar de uma forma concreta a universalidade  
do gênero. A questão de que o estado venha a representar um dado conjunto de  
valores e interesses particulares como sendo universal se acrescenta a essa  
compreensão primeira.  
Trata-se para Marx de fazer a crítica da forma da sociabilidade sobre a qual se  
erige a necessidade do estado. Esta trajetória se inicia com a Crítica da filosofia do  
direito de Hegel, texto de 1843, no qual o autor concentra-se sobre os parágrafos da  
obra de Hegel, Princípios da filosofia do direito, que tratam do estado. O texto de Marx  
se compõe de camadas de críticas e considerações a respeito da relação entre  
sociedade e estado, tal como colocada por Hegel, que se assentam sobre uma crítica  
de caráter ontológico, qual seja, a identificação da inversão ontológica que Hegel  
realiza entre o sujeito e o predicado. Isso equivale a dizer que Hegel toma a Ideia  
como sujeito e a realidade como predicado desta Ideia, como já havia sido denunciado  
por Feuerbach.  
Segundo Marx, Hegel "deduziria" a relação entre estado e sociedade civil a partir  
de uma lógica que lhe é imposta de fora. Assim sendo, em Hegel, "a lógica não serve  
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à demonstração do estado, mas o estado serve à demonstração da lógica" (MARX,  
2005, p. 39). O fenômeno político passa a ser uma aplicação da lógica hegeliana, na  
qual a ideia que se desdobra no Espírito objetivo, nas esferas da família e da sociedade  
se recupera, agora plena de determinações, no estado. Sendo a ideia o sujeito, temos,  
segundo Marx, que em Hegel:  
A realidade empírica é tomada tal como é; ela é também enunciada  
como racional; porém ela não é racional devido à sua própria razão,  
mas sim porque o fato empírico, em sua existência empírica, possui  
um outro significado diferente dele mesmo. O fato, saído da existência  
empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico.  
(2005, p. 31)  
Assim, a crítica ao edifício lógico de Hegel, que tem na filosofia do espírito  
objetivo o estado como ápice, é feita por Marx no sentido de indicar neste  
procedimento a inversão da relação entre ser e ideia, e a mistificação que dela se  
deriva. A crítica ao procedimento especulativo se enlaça à crítica do próprio estado,  
que já se inicia neste texto, vindo culminar numa compreensão absolutamente peculiar  
ao pensamento marxiano do significado da política.  
Se a princípio, trata-se não da recusa do estado enquanto instância de  
universalidade, mas da recusa do procedimento especulativo que qualificaria qualquer  
estado existente como racional e, nessa medida, insere-se a defesa da democracia em  
contraposição ao reconhecimento da monarquia constitucional como expressão  
legítima do estado moderno por Hegel, encontra-se, no entanto, elementos nesse texto  
que já propiciam a ruptura com a determinação da política e do estado como instâncias  
da racionalidade concreta.  
Temos, em Hegel, que o grande mérito do estado moderno é a manutenção das  
particularidades na vida civil e a conciliação de seus interesses na vida política. O passo  
decisivo que Marx dá neste texto é a tematização das razões que levaram  
historicamente a este distanciamento entre interesse privado e interesse público.  
Enquanto o que Hegel identifica como mérito da modernidade, o distanciamento entre  
as esferas civil e política e a conciliação via estado moderno como expressão da ideia  
da liberdade, Marx identifica como produto do desenvolvimento histórico, apontando  
a sua significação contraditória, e a conciliação, a princípio, possível apenas na forma  
democrática.  
Marx contrapõe a democracia à monarquia, atribuindo à primeira forma de  
governo a capacidade de conciliação verdadeira entre os interesses particulares e os  
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J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx  
interesses universais do gênero humano. A relação entre vida civil e vida política se  
torna clara quando Marx afirma:  
Na monarquia, o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de  
existência, a constituição política; na democracia, a constituição  
mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como  
autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da  
constituição; na democracia a constituição do povo. A democracia é o  
enigma resolvido de todas as constituições. Aqui a constituição, não  
apenas em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo  
a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e  
posta como a obra própria deste último. (2005, p. 50)  
A sociedade civil aparece neste texto, mesmo que ainda não em seu contorno  
definitivo, como o polo determinante das relações políticas e jurídicas, em oposição à  
colocação hegeliana do estado como fundamento e síntese das esferas da família e da  
sociedade. Esta reconfiguração da relação sociedade-estado possibilitará a Marx uma  
abordagem radicalmente distinta da de Hegel da política e do estado.  
Na análise marxiana, o estado moderno estaria divorciado da sociedade civil.  
Esse divórcio se traduziria efetivamente na cisão entre o cidadão do estado e o  
indivíduo enquanto membro da sociedade, em sua vida privada. Marx dirá que o  
indivíduo privado não se reconhece na determinação universal abstrata, e o cidadão  
não se traduz na sua realidade empírica. estado e sociedade são então esferas  
antitéticas, na medida em que a primeira é apenas a expressão formal da determinação  
humana, porém vazia de conteúdo e a segunda é a esfera da fragmentação, da vida  
material que não encontra uma vinculação com sua expressão mais genérica. Por isso,  
a conciliação que se pretende via estado não passa de uma conciliação formal.  
Na Crítica à filosofia do direito de Hegel, a superação desta fragmentação se  
daria através da democracia. A continuidade dessa temática nos textos subsequentes,  
no entanto, indica que a própria democracia seria o caso limite desta conciliação via  
estado.  
O ponto ao qual Marx chega é uma reconsideração radicalmente distinta da  
relação entre estado e sociedade, que se coloca na contraposição à consideração  
tradicional acerca da política. A partir da Crítica de 43, o seu foco se desloca para a  
compreensão do movimento da sociedade civil, como base do entendimento da  
relação estado-sociedade.  
De acordo com a análise histórica oferecida pelo autor, a separação entre os  
interesses sociais e os interesses políticos teve sua origem a partir do final da Idade  
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Média. Esta progressiva abstração do estado seria o movimento de descolamento da  
imediatidade do social, decorrente das mudanças estruturais ocorridas na passagem  
da sociedade feudal à sociedade moderna. Na sociedade feudal, identifica-se a  
presença explícita dos interesses privados na esfera política, a constituição política  
traduz de forma imediata a vida civil, marcada por toda sorte de privilégios. Marx  
refere-se a essa situação dizendo que “na Idade Média a vida do povo e a vida política  
são idênticas. O homem é o princípio real do estado, mas o homem não livre”, ou ainda  
caracteriza a Idade Média como “a democracia da não liberdade” (2005, p. 52).  
No movimento histórico de autonomização do político, ocorre exatamente a  
perda dessa referência imediata ao conteúdo social em favor de uma concepção  
representativa e universalista. O estado moderno se caracteriza, segundo Marx, por  
uma relação de exterioridade em relação à vida civil, resguardando a universalidade  
que faltava aos “estados de unidade substancial”, nos quais a tradução da vida civil se  
pautava pela manutenção da desigualdade e dos privilégios privados na esfera política.  
Essa universalidade formalizada na modernidade, no entanto, se relaciona com a  
fragmentação da vida civil moderna de forma semelhante ao que se verifica no  
fenômeno religioso. A constituição política moderna é “o céu de sua universalidade  
em contraposição à existência terrena de sua realidade” (MARX, 2005, p. 51). Questão  
que ele desenvolve em Sobre a questão judaica ao dizer que:  
O estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por  
nascimento, posição social, educação e profissão, ao decretar que o  
nascimento, a posição social, a educação e a profissão são distinções  
não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais distinções, que todo o  
membro do povo é igual parceiro na soberania popular, e ao tratar do  
ponto de vista do estado todos os elementos que compõem a vida  
real da nação. No entanto, o estado permite que a propriedade  
privada, a educação e a profissão atuem à sua maneira, a saber, como  
propriedade privada, como educação e profissão, e manifestem a sua  
natureza particular. Longe de abolir estas diferenças efetivas, ele só  
existe na medida em que as pressupõe; apreende-se como estado  
político e revela a sua universalidade apenas em oposição a tais  
elementos. (MARX, 1989, p. 44)  
O estado se mostra como uma esfera de pseudoconciliação, de universalidade  
apenas formal, independente da forma política. Não se trata mais do regime político,  
mas da essência do estado que seria marcada por uma tentativa sempre insuficiente  
de reparação da cisão fundamental advinda da sociedade civil, e que nunca pode ser  
resolvida na esfera política. Marx procura demonstrar a insustentabilidade da tentativa  
de Hegel de unificar os interesses privados da sociedade com o interesse universal do  
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J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx  
estado:  
Hegel não chamou a coisa de que aqui se trata por seu nome  
conhecido. É a controvérsia entre constituição representativa e  
constituição estamental. A constituição representativa é um enorme  
progresso, pois ela é a expressão aberta, não-falseada, consequente,  
da condição política moderna. Ela é a contradição declarada. (MARX,  
2005, p. 93)  
É a fragmentação vivida pelos indivíduos privados que sustenta a universalidade  
idealizada no estado e na figura do cidadão. Marx percebe na política a mesma relação  
“espiritual” que se estabelece entre o céu e a terra, entre o reino da idealidade e o  
campo de batalha dos interesses conflitantes, e daí a sua consideração na Introdução”  
à Crítica da filosofia do direito de Hegel, do estado como sendo a forma profana de  
alienação, nos mesmos moldes que a religião seria a sua forma sagrada. O estado  
proclama uma igualdade e uma universalidade em contraposição à efetiva realidade  
da vida social. De acordo com Marx, esse estado de coisas começa a se revelar não  
como um “acidente” na relação do estado com a sociedade, para o qual, por exemplo,  
a democracia poderia ser o corretivo, mas como a relação real e possível entre a esfera  
política e a esfera social na sociedade moderna.  
Ao contrário da concepção clássica de política, na qual a virtude do estado  
consiste em ser, ao menos potencialmente, o depositário dos princípios universais que  
tornariam todos os homens iguais nos seus direitos e deveres, Marx sustenta que o  
estado se origina exatamente das insuficiências de uma sociedade em realizar em si  
mesma, de forma concreta, estes ideais universalistas, ou seja, de garantir em sua  
dinâmica a igualdade de condições sociais.  
J. Chasin se dedica à recomposição e análise desta trajetória de Marx, em vários  
de seus textos. Na trilha aberta por Marx, Chasin dirá então de uma ontonegatividade  
do estado, cuja presença indica o “caráter antissocial” da vida civil. Essa determinação  
tem caráter ontológico já que se refere à natureza do estado, ao seu “ser-  
precisamente-assim”.  
Mas se é assim, a questão a se enfrentar não é mais a do aperfeiçoamento do  
estado e da política, mas sim a da compreensão do ser social que leva à necessidade  
da política. O reconhecimento do texto crítico de 1843 como sendo o texto de  
transição que marca a ruptura com a tradição idealista se justifica na medida em que  
Marx traz à tona, a partir daí, a existência social como o elemento primário a ser  
considerado em sua relação com o estado, contrariamente à proposição hegeliana.  
Verinotio  
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Como bem analisa Enderle:  
O esforço de Marx em Kreuznach rendera-lhe a preciosa noção de  
"autodeterminação da sociedade civil". Subsistia, no entanto, uma  
grave insuficiência: a contradição entre estado e sociedade civil  
permanecia nos quadros de um problema de ordem política, uma  
deficiência localizada no terreno da "vontade". Imediatamente após a  
Crítica, nos Anais Franco-alemães, Marx tratará de superar essa  
posição. A gênese da alienação política será detectada no seio da  
sociedade civil, nas relações materiais fundadas na propriedade  
privada. Consequentemente, não se tratará mais de buscar uma  
resolução política para além da esfera do estado abstrato, mas sim  
uma resolução social para além da esfera abstrata da política. Na  
Crítica, Marx encontrou seu objeto. Faltava desvendar sua "anatomia”.  
(2005, p. 26)  
Ou seja, a partir de um certo momento do texto de Marx, o estado deixa de ser  
uma presença espiritual, pairando sobre a sociedade civil, e esta "espiritualidade  
universal" passa a ser entendido como uma necessidade vinculada aos interesses  
materiais da sociedade civil. De acordo com Chasin,  
em contraste radical com a concepção do estado como demiurgo  
racional da sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que  
transpassa a tese doutoral e os artigos da GR, irrompe e domina  
agora, para não mais ceder lugar, a sociedade civil” – o campo da  
interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do  
metabolismo social como demiurgo real que alinha o estado e as  
relações jurídicas (CHASIN, 1995, p. 362).  
A partir dessa consideração, Marx distingue entre o que seja a "emancipação  
política" e a "emancipação humana", distinção que aponta para os limites da primeira,  
enquanto forma parcial da liberdade, uma vez que  
O estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica do  
homem em oposição à sua vida material. Onde o estado político  
atingiu o pleno desenvolvimento, o homem leva, não só em  
pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla  
existência celeste e terrestre. Vive na comunidade política, em cujo  
seio é considerado com ser comunitário, e na sociedade civil, onde  
age como simples indivíduo privado, tratando os outros homens como  
meios, degradando-se a si mesmo em puro meio e tornando-se  
joguete de poderes estranhos. (MARX, 1989, p. 45)  
Resgatadas essas passagens de Marx, podemos compreender melhor o termo  
cunhado por Chasin de uma "determinação ontonegativa da politicidade", que aponta  
no sentido de que a política não é um atributo intrínseco ao ser humano, mas sim que  
ela é gerada como um subproduto de uma sociabilidade “antissocial”.  
Para Marx, cobrar do estado uma efetivação de seu conteúdo universal é cobrar  
a sua extinção, uma vez que ele se sustenta sobre a contradição entre o público e o  
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privado, contradição esta gestada a partir da divisão do trabalho. Desta forma pode-  
se entender o porquê da impotência administrativa do estado frente às mazelas sociais.  
No artigo Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”,  
escrito em 44, Marx, ao polemizar com Arnold Ruge a respeito do sentido da revolta  
dos tecelões da Silésia, introduz uma segunda distinção entre revolução política e  
revolução social, que aprofunda a distinção entre emancipação política e emancipação  
humana. Esclarecendo com mais rigor a gênese do estado, ele dirá que o estado  
descansa na contradição entre a vida pública e a vida privada, na  
contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Daí  
que a administração deva limitar-se a uma atividade formal e negativa,  
pois sua ação termina ali onde começa a vida civil e seu trabalho. Mais  
ainda, frente às consequências que derivam do caráter antissocial  
desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta  
indústria, deste mútuo saque dos diversos círculos civis, é a  
impotência a lei natural da administração. Com efeito, este  
desgarramento, esta vileza, esta escravidão da vida civil constitui o  
fundamento natural em que se baseia o estado moderno, do mesmo  
modo que a sociedade civil da escravidão constituía o fundamento  
sobre o qual descansava o estado antigo (MARX, 1987, p. 513).  
Uma vez que o estado moderno se sustenta sobre a sociabilidade marcada pelos  
interesses particulares antagônicos, não se pode esperar dele uma erradicação destas  
mazelas, mas tão somente a eternização delas de maneira administrada, através de  
medidas paliativas. Dessa forma é que Marx argumenta que, mesmo nos países mais  
desenvolvidos politicamente, permanecem essas mazelas sociais. Assim, os bolsões de  
miséria identificados em todos os países modernos são tidos como elementos  
constituintes, para os quais o estado só pode propor a assistência social conjugada  
com a penalidade jurídica.  
Portanto, trata-se de diferenciar o que seja emancipação política, com o seu  
correlato, o estado moderno e a sociedade civil, e o que seja emancipação humana, o  
rompimento da lógica política, com o advento de uma sociabilidade que permita um  
mais pleno desenvolvimento das potencialidades do ser social. Continuando em sua  
argumentação, Marx acrescenta que  
quanto mais poderoso for o estado e mais político seja portanto o  
país, menos se inclinará a buscar no princípio do estado, e portanto,  
na atual organização da sociedade, cuja expressão ativa consciente de  
si e oficial é o estado, o fundamento dos males sociais e a  
compreender seu princípio geral. O entendimento político o é  
precisamente porque pensa dentro dos limites da política. E quanto  
mais vivo e sagaz seja, mais incapacitado se achará para compreender  
os males sociais (1987, p. 514).  
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O aspecto a se ressaltar neste trecho é a determinação das limitações originárias  
do estado, o que determina a impotência não de uma facção ou outra que esteja na  
administração, mas do estado enquanto tal. Se assim for, nenhuma revolução política,  
por melhor intencionada que seja e, portanto, mais vontade política demonstre em  
efetivar uma boa administração, será suficiente para levar a cabo as transformações  
sociais necessárias para dirimir as questões da miséria. A esperança de que a questão  
social possa ser resolvida através da política se baseia, de acordo com Marx, em uma  
incompreensão dos limites da política. E aqui Marx toca numa questão que é muito  
cara aos tempos atuais: a cidadania e a correlata fé na "vontade política".  
Com Marx, nós nos colocamos num terreno absolutamente outro, no qual estas  
noções teriam que ser reavaliadas inteiramente. Não se trata de extrair daqui que Marx  
tenha rechaçado a política, que ele tenha tomado como equivalentes quaisquer  
proposição e ação políticas, ou mesmo tomado como indiferentes quaisquer governos  
ou regimes políticos. Do que se trata é de esclarecer a essência da politicidade, de  
compreender a esfera política em sua gênese, em sua relação com a forma da  
sociabilidade, e em seus limites efetivos, derivados de sua condição ontológica. Ao  
fazê-lo, coloca-se em questão a crença na política baseada na noção de uma "vontade  
política", exatamente porque, como dirá Marx, a crença na onipotência da vontade  
como fundamento da política desvia o foco da questão fundamental, que é a das  
insuficiências da existência social. É por isso que ele afirma que "se o estado moderno  
quisesse acabar com a impotência de sua administração, teria que acabar com a atual  
vida privada. E se quisesse acabar com a vida privada, teria que destruir-se a si mesmo,  
pois o estado só existe por oposição a ela" (1987, p. 514).  
A compreensão da sociedade civil em sua totalidade e sistematicidade passa a  
ser o objeto de Marx, uma vez compreendida a precedência desta sobre o estado e as  
formas jurídicas, de tal forma que a questão se desloca, a partir de Marx, do campo da  
política para o terreno da vida social concreta. Esse aspecto do pensamento de Marx  
é central para a recomposição de sua proposição, segundo Chasin, na medida em que:  
O ser e o destino do homem, que abstrata e, muitas vezes,  
mesquinhamente atravessa a história recente da filosofia, não é para  
Marx meramente aquilo que a pobreza de uso acabou por conferir ao  
termo humanismo; não é um glacê sobre o oco, mas a questão prático-  
teórica por excelência, o problema permanente e constante, que não  
desaparece nem pode ser suprimido. (2000, p. 120)  
Ou seja, a questão central que alinha toda a perspectiva marxiana é a da  
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J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx  
emancipação humana, que, no entanto, não pode ser reduzida simplesmente a um  
apelo ético ou a uma esperança colocada num horizonte a jamais ser alcançado. Trata-  
se de enfrentar a questão em seu terreno legítimo, o da forma da sociabilidade,  
buscando ali a gênese das contradições, das contrafações, dos impedimentos, dos  
limites, para que desta inteligibilidade, se possa perscrutar alguma alternativa objetiva  
de superação.  
Sabemos o quanto o termo “humanismo” foi questionado ao longo do século XX.  
Assumi-lo como elemento central da filosofia marxiana não se torna, em vista disso,  
uma tarefa fácil. Daí a preocupação de Chasin em discernir o caráter do humanismo  
em Marx. Uma outra questão à qual ele não poderia deixar de responder, correlata a  
esta, diz respeito à persistência ou não de tal temática, a relação entre emancipação  
humana e humana política, no conjunto dos textos de maturidade de Marx. Atento às  
críticas que poderiam surgir em relação à sustentação de uma determinação  
ontonegativa da politicidade em Marx, Chasin cuidou de analisar em textos de sua fase  
de maturidade, a presença e o desenvolvimento dessa questão, de tal forma a poder  
sustentar que tal temática não constitui um mero arroubo de juventude do autor. De  
acordo com a sua análise, se a questão da emancipação humana atravessa a obra de  
Marx como o ponto de convergência de todos os seus esforços, a questão específica  
da relação entre estado e sociedade se encontra presente, sobretudo, na trilogia. A  
guerra civil na França, As lutas de classe em França e O 18 Brumário, recebendo nessas  
obras um desenvolvimento coerente ao que Marx já tratara nos textos anteriores.  
Ao examinar o material preparatório para a elaboração de A guerra civil na  
França, texto de 1871, Chasin chama a atenção para passagens nas quais Marx retoma  
essa temática, aprofundando-a:  
Tanto quanto o aparelho de estado e o parlamentarismo não  
constituem a verdadeira vida das classes dominantes, não sendo mais  
do que os organismos gerais de sua dominação, as garantias políticas,  
as formas e as expressões da velha ordem das coisas, igualmente, a  
Comuna não é o movimento social da classe operária e, por  
consequência, o movimento regenerador de toda a humanidade, mas  
somente o meio orgânico de sua ação. (Apud CHASIN, 2000, p. 95)  
Vê-se nessa passagem que o poder político, ainda que em sua forma  
reconhecidamente superior, como analisa Marx em relação à Comuna, não constitui um  
fim em si mesmo, mas, ao contrário, apenas deve atuar como meio que cria “o ambiente  
racional no qual a luta de classes pode atravessar suas diferentes fases do modo mais  
racional e mais humano” (MARX apud CHASIN, 2000, p. 95).  
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Com o que Chasin conclui que “em suma, à política só cabem as tarefas negativas  
ou preparatórias; a obra de ‘regeneração’, de que fala Marx, fica a cargo inteiramente  
da revolução social” (2000, p. 96).  
Outras passagens deste teor podem ser encontradas nos textos de análise  
política do Marx maduro, nas quais ele se refere ao estado como uma “excrescência  
parasitária sobre a sociedade civil, fingindo ser sua contrapartida ideal” ou ainda como  
“o poder governamental centralizado e organizado, que, usurpador, se pretende  
senhor, e não servidor da sociedade” (MARX apud CHASIN, 2000, p. 159).  
A ação política, orientada para a emancipação humana, não pode, portanto, se  
pautar por uma eternização ou aperfeiçoamento do poder político, mas pela sua  
superação. É a isso que Chasin se refere ao dizer de uma metapolítica, uma política  
que se coloque como fim o fim da necessidade da política, enquanto instância que se  
assenta sobre as deficiências societárias.  
Analisando os pontos essenciais da proposição marxiana, Chasin sintetiza:  
1.  
a emancipação política ou parcial é um avanço irrecusável, mas  
não é o ponto de chegada da construção da liberdade; resume-se à  
liberdade possível na (des)ordem humano-societária do capital; sua  
realidade é o homem fragmentado, impotente como cidadão e  
emasculado como ser humano, diluído em abstração na primeira  
metade e reduzido à naturalidade na segunda;  
2.  
a emancipação universal ou humana não é mais da lógica das  
liberdades restritas, condicionadas pela malha de determinações  
externas ao homem, mesmo que por ele próprio construídas, mas a  
constituição da mundanidade humana a partir da lógica inerente ao  
humano, ou seja, do ser social, cuja natureza própria ou “segredo  
ontológico” é a autoconstituição;  
3.  
a emancipação humana ou revolução social do homem  
compreende:  
a.  
a reintegração pelo homem real da figura do cidadão,  
ou seja, a reincorporação e o desenvolvimento da capacidade  
de ser racional e justo, mera aspiração piedosa na esfera da  
política, tornando a ética possível, porque imanente ao ser que  
se autoedifica, de modo que ele não mais aliene de si força  
humano-societária, degenerada e transfigurada em força  
política, assim tornando impossível, além de inútil, o  
aparecimento desta, o que derruba as barreiras atuais para a  
retomada da autoconstrução do homem;  
b.  
o reconhecimento e a organização racional e  
humanamente orientada das próprias forças individuais como  
forças sociais, de tal sorte que a individualidade, isolada e  
confundida com o ser mudo da natureza, quebre a finitude do  
ser orgânico e se alce à universalidade do seu gênero. (2000,  
pp. 151-2)  
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Trata-se de uma completa contraposição à concepção tradicional da política, na  
medida em que a formulação marxiana é uma reiteração da autoconstrução humana,  
cujo télos não se encontra na expressão política de uma universalidade formal, mas  
aponta para uma forma de sociabilidade que alinhe a unidade indivíduo-gênero em  
sua vida concreta.  
Isso equivale a dizer de uma desnaturação da política como elemento intrínseco  
à vida social, e em termos concretos, exigiria a superação da sociabilidade do capital  
e o estabelecimento de uma outra forma de existência social, na qual a questão seja a  
administração das diferenças, a superação das contradições, mas não mais a  
contradição não-resolvida, o que significa a manutenção “estável” dos antagonismos  
sociais.  
A questão desenvolvida por Chasin, a partir de Marx, diz respeito ao  
entendimento do surgimento do estado moderno como universalidade ilusória, e se  
refere à alternativa colocada frente ao futuro: o aperfeiçoamento do poder político ou  
a perspectiva de sua superação. Ao primeiro, correspondem as medidas paliativas do  
controle do poder do estado, através do apelo à ética, da ênfase na ideia de cidadania,  
da vigilância às formas de corrupção e, na mais avançada das proposições, no  
investimento em uma democracia mais abrangente, que contemple as diferenças e  
integre as minorias. Na melhor das hipóteses, trata-se de um esforço de  
aprimoramento do estado, assentado sobre a incompreensão de seu lugar num  
sistema-mundo cada vez mais refém dos ciclos de acumulação do capital.  
À segunda, corresponde uma visão que recusa a naturalização da condição  
humana e a naturalização das relações sociais tais como se apresentam a partir da  
modernidade, bem como a eternização da sociabilidade do capital, insistindo em fazer  
cintilar no horizonte a distância entre a emancipação política e a emancipação humana.  
Se tal possibilidade não está presente no futuro próximo, futuro ausente no qual o  
tempo do capital parece se eternizar para além de sua vigência histórica, gestando  
formas monstruosas de sociabilidade, é hora de manter viva, quando nada, a sua  
formulação, para não nos afundarmos no terreno pantanoso da colocação de questões  
equivocadas e respostas insuficientes próprias do politicismo.  
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Ad Hominem, São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, v. 1, t. III, pp. 5- 78, 2000.  
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Como citar:  
ALBINATI, Ana Selva Castelo Branco. J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em  
Marx. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 183-198, Edição Especial,  
2022/2023.  
Verinotio  
198 |  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2020.28.1.667  
A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
The Marxian ontological critique, 180th anniversary  
Leonardo Gomes de Deus*  
Guilherme de Oliveira e Silva**  
Resumo: O artigo reexamina a leitura que Marx  
efetuou, em 1843, do pensamento de Hegel.  
Depois, são discutidas leituras contemporâneas  
do texto, além das próprias notas que o autor  
tomou durante o período. Defende-se a tese de  
que o texto de Kreuznach é instaurador na  
trajetória do autor.  
Abstract: The article addresses Marx's critical  
reading of Hegel's thought in 1843. We discuss  
contemporary approaches of the text, in  
addition to the notes that the author took  
during the period. We try to demonstrate how  
the Critique of Kreuznach is essential in the  
making of the author's own thought.  
Palavras-chave: Karl Marx; Hegel; ontologia;  
história do pensamento econômico; teoria  
econômica.  
Keywords: Karl Marx; Hegel; ontology; history of  
economic thought; economic theory.  
Introdução  
Publicado pela primeira vez em 1995, o Marx: estatuto ontológico e resolução  
metodológica marcou uma verdadeira revolução na leitura e recepção da obra  
marxiana entre nós. Seria necessária mais de década para que ficasse claro que a  
pesquisa feita por Chasin, precocemente interrompida, era, na verdade, uma tendência  
mundial. Somente quando o mundo civilizado começou a dizer coisas similares, o  
reconhecimento nacional aconteceu, sintoma vistoso do vira-latismo mental que  
domina nossa vida acadêmica. Na primeira década deste século, leitores brasileiros  
descobriram aspectos até então ignorados ou menosprezados da obra marxiana,  
processo impulsionado pelas importantes traduções publicadas, especialmente pela  
Editora Boitempo, fortemente ligadas ao legado de J. Chasin.  
Entre 1995 e 2005, a leitura da obra marxiana atravessava uma grave crise no  
*
Mestre em filosofia e doutor em economia pela UFMG. Professor do Cedeplar/Face/UFMG. E-mail:  
**Mestre em filosofia na Faje, doutorando em filosofia na Fafich/UFMG. E-mail:  
gui020oliveira@gmail.com.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Leonardo Gomes de Deus; Guilherme de Oliveira e Silva  
Brasil. Por um lado, o movimento dos trabalhadores se encontrava esmagado entre a  
caminhada do PT em direção à social-democracia e o triunfo do mercado livre no  
mundo. Por outro lado, a preponderância acadêmica da chamada analítica paulista”  
estava em seu auge. Em 2000, saudado pela Folha de S. Paulo como o primeiro (e,  
portanto, único) filósofo brasileiro, Giannotti publicou o seu já esquecido Certa herança  
marxista, cuja conclusão é melancólica, tal qual seu desenvolvimento disléxico:  
Mas, se a contradição não segue mais os cânones da lógica  
especulativa, por certo deixa de dotar-se daquele poder de superação,  
como se a história fosse o desdobramento do Espírito Absoluto. Ao  
cair nesse deslize, Marx impregna todo seu projeto político daquele  
misticismo lógico que denunciara na teoria hegeliana do estado.  
(GIANNOTTI, 2000, p. 308)  
Perdido no cipoal da “gramática das relações sociais de trabalho” de Wittgenstein, o  
autor promoveu, sub-repticiamente, uma identificação entre os problemas e  
procedimentos enfrentados por Marx e Hegel, como se o fetichismo fosse apenas uma  
substituição do Conceito especulativo. Depois de dedicar uma linha ao problema no  
livro de 1966, em 2000, ele foi apressadamente tratado, certamente, uma resposta  
ao livro de Chasin. Mais grave ainda, no campo da economia política, o autor se  
prendeu aos debates teóricos dos tempos de Sraffa, ignorante das contribuições  
formuladas a partir da década de 1990, em suma, um livro anacrônico que tentava  
apenas reiterar a autoridade decadente da “analítica paulista”. Ele se perguntava:  
Qual é, porém, o alcance dessa questão básica relativa ao estatuto  
ontológico dos fenômenos socioeconômicos contemporâneos? Se  
continuam a ser pensados como segunda natureza, como leis  
objetivas a serem captadas por modelos elaborados por ciências  
positivas, permanece latente a pergunta pelo sentido dessa  
naturalização. (...) O reforço do fetiche do capital e a impossibilidade  
de transformar valor-trabalho em preços não estão na raiz das torções  
radicais por que passam os conceitos da teoria econômica a partir do  
final do século XIX? (GIANNOTTI, 2000, pp. 309-310)  
Concluiu, espantosamente, que o triunfo da “economia vulgar” se teria convertido  
numa força produtiva considerável, graças à atuação de instituições econômicas, as  
tais “instituições pensantes” que levariam o Brasil, pelas mãos do PSDB e do Cebrap,  
ao desenvolvimento global (GIANNOTTI, 2000,p. 312). Com toda justiça, essa leitura  
não prosperou e desapareceu juntamente com seu autor, o filósofo brasileiro. Que  
descansem em paz. Sua importância e seus limites merecem um estudo à parte. Para  
uma leitura rigorosa desse autor, recomendamos o trabalho da profa. Vera Cotrim, de  
2015, finalmente, um acerto de contas preliminar com essas questões, todas elas,  
naturalmente, ainda a carecer de um descarte definitivo, que promoveremos  
Verinotio  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 199-222 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
nova fase  
A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
oportunamente.  
Este artigo, por sua vez, reexamina as relações de Marx com o pensamento  
hegeliano, notadamente a Crítica da filosofia do direito de Hegel, escrita na lua de mel  
mais produtiva da história do pensamento humano. Desde 1995, muito se produziu a  
respeito desse texto, sob orientação e inspiração de Chasin e, aqui, não cabe reiterar  
o que já se disse, embora seja necessário enfatizar a novidade dessa perspectiva.  
Busca-se, principalmente, inventariar as publicações que se seguiram, além de, no  
arremate do argumento, propor o que ainda se pode pesquisar com imensa  
originalidade a respeito do ano miraculoso de 1843.  
Além desta introdução o texto se divide em três seções, além da conclusão. A  
primeira revisita a própria crítica de Marx a Hegel, a segunda discute algumas leituras  
importantes e a terceira apresenta alguns elementos para futuras aproximações em  
relação ao processo de redação da Crítica de 43.  
Dedicamos esse texto à memória do Rei Pelé.  
Do mundo pervertido de Hegel ao estatuto ontológico  
Desde sua publicação em 1927, na MEGA de Riazanov, a Crítica da filosofia do  
direito de Hegel sempre foi lida, em geral, como um prenúncio das rupturas futuras,  
ou seja, dos futuros desenvolvimentos metodológicos do materialismo, especialmente,  
a partir da leitura althusseriana, quando o texto de 1843 se tornou, por décadas, obra  
de imaturidade juvenil, sem qualquer relevância própria, mera aplicação de A essência  
do cristianismo de Feuerbach à crítica de Hegel, muito embora, já em 1843, Marx  
criticasse Feuerbach por se voltar muito à natureza e pouco à política e ao estado,  
como atesta a carta a Ruge de 13 de março daquele ano (MEGA2 III.1, p. 45). Muita  
da confusão se deveu aos próprios testemunhos de Marx, constantes do prefácio de  
1859 e do posfácio de 1872, com todos os abusos que a vulgata estalinista produziu  
a partir deles. No caso do texto de 1872, os problemas exegéticos são evidentes. Marx  
disse, então:  
Meu método dialético em seus fundamentos, não é apenas diferente  
do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. (...) A mistificação  
que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que  
ele tenha sido o primeiro a expor de modo amplo e consciente, suas  
formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para  
baio. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro  
do invólucro místico. Em sua forma mistificada, a dialética esteve em  
moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. (MARX,  
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2013, p. 91)  
Só leitores apressados, mesmo que sejam gigantes, como Lênin ou Pe. Vaz,  
tomariam esse trecho sob a perspectiva de que Karl Marx teria realizado,  
simplesmente, um sirshásana metodológico em torno da lógica hegeliana, que sua  
obra seria a inversão do maravilhoso método de Hegel. Na verdade, quando se fala,  
aqui, da racionalidade invertida, quer-se tratar de outra coisa, o que foi desconsiderado  
pelos intérpretes. A crítica de 1843 marca uma instauração, ainda que inicial, de um  
pensamento original. Mesmo a ideia de uma negação/conservação, a tão decantada  
“suprassunção”, torna-se limitadora aqui, já que os próprios elementos que seriam  
conservados são totalmente reconfigurados. Vejamos como isso se dá textualmente.  
Muito já se escreveu sobre essas páginas e, portanto, cabe apenas reiterar alguns  
pontos1.  
Infelizmente, as primeiras páginas do manuscrito se perderam, mas sabemos  
sobre o que versaram, em tese, graças ao índice que Marx redigiu, no verão de 1843,  
depois da redação do texto (MEGA2 I.2, p. 138). Havia três pontos que interessavam  
ao autor, quando abandonou a redação: 1) A duplicação do desenvolvimento  
sistemático; 2) O misticismo lógico; 3) a Ideia como sujeito(os sujeitos reais se  
tornam meros nomes). No começo do manuscrito, Marx parece ter uma agenda, ainda  
por ser devidamente pesquisada em detalhes, como se mostrará mais adiante: a crítica  
do mundo pervertido de Hegel, em que a divisão entre, de um lado sociedade civil e  
família e, de outro, o estado, aparece como uma divisão conceitual da própria Ideia do  
estado. Nas palavras de Marx: “O importante é que Hegel, por toda parte, faz da Ideia  
o sujeito e do sujeito propriamente dito, assim como da ‘disposição política’, faz o  
predicado.” (MARX, 2005, p. 32) O corolário dessa crítica aparece, no final do  
manuscrito, quando Marx avalia a fracassada tentativa hegeliana de superar a  
separação entre estado e sociedade civil por meio do poder legislativo, segundo Marx,  
“exemplo significativo de como Hegel, quase deliberadamente abandona a coisa no  
interior de sua própria particularidade e lhe imputa, em sua forma limitada, um sentido  
oposto a essa limitação.” (MARX, 2005, p. 137). Nas glosas ao parágrafo 270, Marx  
afirma:  
O trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize  
nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas  
1 Para uma nova e arejada leitura imanente do texto, cf. Palu (2019).  
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existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento  
filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não  
serve à demonstração do estado, mas o estado serve à demonstração  
da lógica. (MARX, 2005, p. 39, grifo nosso)  
Por toda parte, a tematização hegeliana perverte a realidade do ser, sua diferença  
específica, e o converte em mero nome da Ideia abstrata, embora todos os volteios  
dessa Ideia não sejam mais do que a “empiria ordinária”. Esse é o “misticismo lógico,  
panteísta” de Hegel: “O fato, saído da existência empírica, não é apreendido como tal,  
mas como resultado místico. O real torna-se fenômeno; porém, a Ideia não tem outro  
conteúdo a não ser esse fenômeno.” (MARX, 2005, p. 31) Na seção dedicada ao poder  
monárquico hegeliano, a natureza da crítica marxiana se revela claramente, Hegel parte  
de um predicado, de um objeto autonomizado e o separa de seu sujeito real,  
convertido assim em resultado da universalidade abstrata, da substância mística,  
enquanto o procedimento correto seria “partir do sujeito real e considerar sua  
objetivação”. Hegel não parte do “ente real, do ὑποκείμενον, mas da ideia mística:  
“Hegel não considera o universal como a essência efetiva do realmente finito, isto é,  
do existente, do determinado, ou, ainda, não considera o ente real como o verdadeiro  
sujeito do infinito.” (MARX, 2005, p. 44). O fato de essa passagem ter sido sempre  
lida como uma questão puramente metodológica, como uma inversão dialética, como  
o prenúncio de um materialismo dialético, em nada invalida seu caráter e sua  
importância. Não há apenas uma inversão em relação à dialética hegeliana, mas seu  
descarte e a instauração de uma crítica de novo talhe. Nas palavras de Chasin:  
Essa reflexibilidade fundante do mundo sobre a ideação promove a  
crítica de natureza ontológica, organiza a subjetividade teórica e assim  
faculta operar respaldado em critérios objetivos de verdade, uma vez  
que, sob tal influxo da objetividade, o ser é chamado a parametrar o  
conhecer, ou, dito a partir do sujeito: sob a consistente modalidade  
do rigor ontológico, a consciência ativa procura exercer os atos  
cognitivos na deliberada subsunção, criticamente modulada, aos  
complexos efetivos, às coisas reais e ideais da mundanidade. É o  
trânsito da especulação à reflexão, a transmigração do âmbito  
rarefeito e adstringente, porque genérico, de uma razão tautológica,  
pois autossustentada e nisso se esgota a impostação imperial da  
mesma, para a potência múltipla de uma racionalidade flexionante,  
que pulsa e ondula, se expande ou se diferencia no esforço de  
reproduzir seus alvos, empenho que ao mesmo tempo entifica e  
reentifica a ela própria, no contato dinâmico com as coisasdo  
mundo. Racionalidade, não mais como simples rotação sobre si  
mesma de uma faculdade abstrata em sua autonomia e rígida em sua  
conaturalidade absoluta, porém, como produto efetivo da relação,  
reciprocamente determinante, entre a força abstrativa da consciência  
e o multiverso sobre o qual incide a atividade, sensível e ideal, dos  
sujeitos concretos. (CHASIN, 2009, p. 58)  
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O primeiro passo instaurador da crítica ontológica marxiana, portanto, é o  
descarte da especulação, não meramente como a colocação de um universo teórico de  
ponta à cabeça, ou a seleção de alguns de seus elementos. A crítica da especulação e  
das ideias em geral, por isso, só se pode completar quando seja feita precisamente a  
crítica do próprio ser, ou seja, uma crítica de natureza ontológica. Essa a razão pela  
qual a crítica da especulação emerge, na Crítica de 43, da análise que Marx efetua, a  
partir de Hegel, do próprio funcionamento do estado e da sociedade civil modernos.  
Nesse caso, o resultado é bastante conhecido e repercutirá nos textos posteriores a  
1843, como o próprio Marx atestou no prefácio de 1859.  
Como se disse acima, um dos elementos da crítica à especulação hegeliana é  
precisamente a conversão do existente, da empiria, na racionalidade universal, ou por  
outra, na manifestação da Ideia transcendente. O corolário dessa constatação é exame  
crítico do monarquismo hegeliano, que considera o monarca a encarnação da Ideia de  
estado. Aqui e, nas seções seguintes, que examinam o poder governamental e o poder  
legislativo hegelianos, Marx não só destrói o edifício da Filosofia do direito, mas tenta  
desenvolver sua própria tematização política. Nas entrelinhas dessa agenda prática,  
emergem as dúvidas e questões que só serão respondidas nos textos imediatamente  
posteriores, que não caberá examinar aqui.  
Importa apontar que o pensamento hegeliano, a despeito de todos os seus  
problemas indicados acima, é considerado por Marx como a expressão filosófica de  
questões políticas postas pela própria modernidade, a saber, a cisão entre estado e  
sociedade civil, entre o cidadão abstrato e titular de direitos e o membro concreto da  
sociedade civil efetiva. Para além da inversão hegeliana entre os polos determinativos  
de estado universal e sociedade concreta, Marx considera também a questão de sua  
cisão irreconciliável, a alienação política, que Hegel, com seu absurdo sistema de  
mediações, não logrou conciliar. Uma questão a respeito que foi raramente tratada é  
a posição marxiana diante desse quadro, na economia de seu texto. Se no início ele  
fala da verdadeira democracia e, ao final, faz uma defesa do sufrágio universal como  
remédios para os dilemas da representação no estado moderno, entre um e outro  
ponto do argumento parece se instaurar uma dúvida em seu desenvolvimento, possível  
razão para o abandono da redação e, sobretudo e muito principalmente, para a  
mudança de posição, imediatamente presente em Sobre a questão judaica e Crítica  
da filosofia do direito de Hegel Introdução, sem mencionar o início subsequente da  
crítica da economia política, já em Paris, ou seja, da busca da anatomia da sociedade  
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civil.  
Assim, no primeiro momento, quando trata do poder monárquico, Marx afirma  
que “Hegel tem razão, quando diz: o estado político é a constituição; quer dizer, o  
estado material não é político” (MARX, 2005, p. 51). Ele se vale da perspectiva de  
Feuerbach (o padrinhodos escritos do período, na feliz expressão de Reichelt) para  
afirmar que a constituição política foi reduzida, na modernidade, à “esfera religiosa, à  
religião da vida do povo, o céu de sua universalidade em contraposição à existência  
terrena de sua realidade” (MARX, 2005, p. 51, grifos de Marx). Ele conclui, parágrafos  
adiante: “A abstração do estado como tal pertence somente aos tempos modernos  
porque a abstração da vida privada pertence somente aos tempos modernos. A  
abstração do estado político é um produto moderno.” (MARX, 2005, p. 52, grifos de  
Marx) Por outro lado, na modernidade, ao menos no século XIX, o estado aparece  
como forma universal e, ao mesmo tempo, concreta, é um “universal real, ou seja, não  
é uma determinidade em contraste com os outros conteúdos” (MARX, 2005, p. 51).  
Além disso, a democracia é segundo Marx, princípio material e formal  
simultaneamente, nela, o estado se torna um conteúdo particular, material, ao lado dos  
demais conteúdos da vida do povo. Ou seja:  
Na democracia, o estado, como particular é apenas particular, como  
universal é o universal real, ou seja, não é uma determinidade em  
contraste com os outros conteúdos. Os franceses modernos  
concluíram, daí, que na verdadeira democracia o estado político  
desaparece. O que está coreto, considerando-se que o estado político,  
como constituição, deixa de valer pelo todo. (MARX, 2005, p. 51, grifo  
de Marx)  
O desaparecimento do estado, aqui, está longe, conforme se verá, da ideia de  
que ele seria absorvido pela sociedade civil. Bem ao contrário, a verdadeira democracia  
é precisamente, no início da Crítica de 43, a radicalização do pensamento  
revolucionário francês mais avançado. Em contraste com o mundo antigo e medieval,  
em que a política e a constituição dão a forma da vida social, aqui o estado aparece  
como um conteúdo ao lado dos demais da vida social e material do povo. Seu  
desaparecimento significa meramente sua desidratação, diminuição face à pujança da  
vida social moderna, ela mesma abstrata. Uma desastrosa interpretação dessa  
passagem será analisada na próxima seção.  
Se Marx se contenta com essa defesa de uma democracia verdadeira, no final do  
manuscrito, ele volta ao tema quando analisa o poder legislativo, a representação e o  
sistema de mediações hegeliano, desta feita, com um elemento novo. Ao analisar a  
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participação da sociedade civil no estado abstrato, duas sutis mudanças de perspectiva  
se insinuam. Em primeiro lugar, o ponto culminante do sistema representativo de Hegel  
é a nobreza hereditária, baseada no instituto do morgadio. Para Marx, a obra  
hegeliana, ainda como expressão filosófica da modernidade, aparece como defesa  
rasteira da propriedade privada, não por causa dos volteios da dialética hegeliana,  
mas em razão do próprio estado moderno, em que “a independência política é um  
acidente da propriedade privada, não a substância do estado político” (MARX, 2005,  
p. 122). O estado político aparece como o “espelho da verdade” dos momentos da  
vida social, nas palavras de Marx, como seu “ser genérico”. Em segundo lugar,  
enquanto no início do manuscrito a verdadeira democracia seria o desaparecimento  
do estado porque ele se tornara uma parte da vida material da sociedade civil, agora  
a “vida genérica” dessa sociedade civil se converte em seu contrário, o estado se  
converte no universal concreto porque existe a “propriedade privada independente”,  
isto é, a sociedade civil é o reino da alienação, razão pela qual esse momento  
preponderante deve ser investigado em sua anatomia, como nosso autor tratará de  
fazer nos meses (e décadas) seguintes.  
Apesar disso, Marx ainda empreende uma última e vazia defesa da cidadania nas  
linhas finais de seu manuscrito, antes de abandoná-lo. A defesa do sufrágio universal  
emerge não como a dissolução do estado apenas, mas também da sociedade civil,  
conforme diz Marx:  
É somente na eleição ilimitada, tanto ativa quanto passiva, que a  
sociedade civil se eleva realmente à abstração de si mesma, à  
existência política como sua verdadeira existência universal, essencial.  
Mas o acabamento dessa abstração e imediatamente a superação da  
abstração. Quando a sociedade civil pôs sua existência política  
realmente como sua verdadeira existência, pôs concomitantemente  
com inessencial sua existência social, m sua diferença com sua  
existência política; e com uma das partes separadas cai a outra, o seu  
contrário. A reforma eleitoral é, portanto, no interior do estado político  
abstrato, a exigência de sua dissolução, mas igualmente da dissolução  
da sociedade civil. (MARX, 2005, p. 135, grifos de Marx)  
Se a verdadeira democracia era o desaparecimento do estado como constituição  
política da sociedade, aqui, o sufrágio universal é a superação da própria abstração da  
sociedade civil em oposição à política. Marx pretende, com isso, a unidade formal e  
material da vida social. Não se perguntou ainda, no momento em que escreveria  
somente mais dez páginas manuscritas, a natureza dessa sociedade civil, até o  
momento descrita de maneira bastante edulcorada. Seja como for, a partir desse  
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momento, não mais importa a forma política, o arranjo institucional, mas a crua  
realidade da vida baseada na propriedade privada, sua legalidade imanente e não sua  
lógica transcendente, mesmo que a própria categoria da “propriedade privada” sofra  
reconfigurações cruciais nas décadas seguintes, notadamente com a imediata ruptura  
com a crítica idealista e utópica de Proudhon. Isso só foi possível, como ponto de  
partida, em razão da correta dúvida desenvolvida em Kreuznach, o exercício da crítica  
que toma o ser como parâmetro da investigação frente às ideias preponderantes de  
uma época. Não por acaso, essa crítica, no momento de sua instauração, termina com  
o brado indignado: “O Jerum!” (MARX, 2005, p. 141). Ironicamente, no curso do  
manuscrito, Marx menciona a profissão de sapateiro como contraponto social e efetivo  
à vida abstrata do cidadão universal que participa do estado. Se, em 1868, esse  
mesmo brado seria imortalizado no canto barulhento de Hans Sachs, em Marx a  
expressão tem um sentido diametralmente oposto. Enquanto em Wagner o espírito  
alemão descia à Terra e superaria a miséria alemã pela via do capitalismo belicoso (e  
inspirado por Schopenhauer), para Marx, bem ao contrário, a única possibilidade de  
superação desse atraso e de sua máxima expressão ideal, a filosofia hegeliana, seria a  
completa dissolução da própria indigência da sociedade de mercado, que ele trataria  
de investigar em Paris. Naturalmente, ele acreditava que essa investigação seria  
rapidamente concluída, ilusão que os quarenta anos seguintes tratariam de desfazer,  
Paris, Manchester, Bruxelas etc. até o parque de Highgate, depois de duas revoluções  
exterminadas.  
Três leituras importantes: a antiga, a nova, a errada  
Muitos autores importantes acessaram com alguma correção e certo rigor esse  
material, os escritos de Cornu, Mario Rossi, Galvano della Volpe, Celso Frederico, por  
exemplo, merecem ser sempre exaltados. Uma revisão dessa literatura não é cabível  
neste artigo. No entanto, em linha com o que se apresentou acima, é justo e necessário  
apontar duas leituras importantes, uma antiga, outra nova, com muitos acertos e, em  
contrapartida, a leitura mais errada que se fez da Crítica de 43. No primeiro caso,  
temos Lukács e Reichelt, separados por mais de meio século, unidos por um idioma,  
no segundo, o obtuso Abensour, ao menos em seu obtuso livro dedicado ao  
manuscrito marxiano em tela. A partir daqui, naquilo que se refere a Lukács e  
Abensour, sem maiores acréscimos ou reparos, fazemos remissão ao nosso livro de  
2014. Naturalmente, a avaliação de Reichelt seguirá por um caminho novo.  
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Leonardo Gomes de Deus; Guilherme de Oliveira e Silva  
Publicado como livro em 1965, dez anos depois da edição na forma de artigo,  
O jovem Marx lukácsiano abriu uma nova clareira na recepção do texto em tela, assim  
como na avaliação do conjunto de textos até os Manuscritos de 1844. Para o pensador  
húngaro, na Crítica de 43, Marx não se contentou em se apropriar de certos temas e  
aspectos das obras de Hegel e Feuerbach, mas os desenvolveu numa perspectiva  
superior, ou seja, o texto marxiano possui um caráter instaurador. Diz Lukács:  
Os escritos da primavera e do verão de 1843 não representam mais  
apenas um desenvolvimento radical, mas uma crítica de princípio, que  
aponta para uma inversão da filosofia hegeliana do direito e, como  
Marx o diz claramente em algumas passagens, da filosofia hegeliana  
em geral. Desse modo, o objetivo inicial é certamente retomado em  
amplas observações sobre as teses de Hegel, mas a nova formulação  
vai bem além disso. (LUKÁCS, 2009, p. 142)  
Essa a maior virtude do texto lukácsiano, ao contrário de autores como Althusser,  
foi perceber a novidade e a ruptura com Hegel e com o idealismo já em 1843. Mesmo  
a influência feuerbachiana no período mereceria ser pensada com prudência, já que o  
materialismo de Feuerbach se apresentava limitado e ingênuo aos olhos de Marx,  
conforme expressou na carta a Ruge citada acima, também mencionada por Lukács. A  
instauração materialista da Crítica de 43 representa, por isso, a ruptura com todo o  
idealismo, criticado por Marx como sustentáculo ideológico do reacionarismo  
prussiano. Certamente, nesse quesito, o texto lukácsiano de 1955 ecoava seu A  
destruição da razão, publicado no ano anterior.  
Apesar dessa grande virtude, a obra lukácsiana ainda está circunscrita, em razão  
do momento em que foi escrita, a uma perspectiva puramente metodológica: o texto  
de Marx seria a instauração de um novo materialismo, não só como reação ao idealismo  
reacionário, mas também em relação ao materialismo feuerbachiano. Além disso,  
Lukács avalia o texto de 1843 como a conter os elementos iniciais do método dialético  
de Marx. O que lhe permite fazer tal asserção é a análise da longa discussão que Marx  
empreende sobre o sistema de mediações de Hegel, efetuada pelos estamentos da  
câmara baixa do poder legislativo. De fato, Marx demonstra o absurdo desse sistema,  
ao contrário do que supõe Lukács, no entanto, não está a buscar um caminho para a  
resolução de contradições reais por meio de um método dialético, contraposto ao  
método hegeliano, o que poderia indicar o embrião da futura luta de classes. Como  
mostramos em nosso livro, Marx seguiu aqui a tematização feuerbachiana, o oposto  
da dialética, conforme se lê no texto marxiano: “Extremos reais não podem ser  
mediados um pelo outro, precisamente porque são extremos reais. Mas eles também  
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não precisam de qualquer mediação, pois eles são seres opostos. Não têm nada em  
comum entre si não demandam um ao outro, não se completam.” (Marx, 2005, p. 105)  
A questão profunda, uma vez mais, é a subsunção da realidade, de uma contradição  
real entre dois seres opostos, à pura lógica especulativa, inexiste, portanto, uma  
questão metodológica para a resolução dialética de oposições reais. Como se  
mencionou acima, a obra hegeliana é a expressão acabada da cisão entre estado e  
sociedade civil e, poucas páginas depois, Marx abandonaria o manuscrito justamente  
porque a solução do problema não se encontrava nos quadrantes da política,  
tampouco de uma metodologia dialética. Embora aponte o caráter instaurador,  
portanto, Lukács acaba por detectar os elementos iniciais de um materialismo dialético  
que teria contribuído “no aperfeiçoamento global da dialética materialista até O capital,  
até os Cadernos ilosóficos de Lênin etc.” (LUKÁCS, 2009, p. 149). Comete, em suma  
um erro exegético muito comum quando nos aproximamos dos textos de juventude,  
ou seja, lermos esse material à luz do que o pensamento marxiano se tornaria na obra  
de maturidade, desidratando sua originalidade e importância em si mesmo.  
53 anos depois, coube a Helmut Reichelt reavaliar as relações entre Marx e Hegel  
sob nova perspectiva, a reiterar muitas das questões aqui tratadas. Como se sabe, esse  
autor chegou ao Brasil de maneira tardia e ainda incompleta; seu livro de 1968, Sobre  
a estrutura lógica do conceito de capital em Karl Marx, só foi publicado em 2013,  
quando já fazia cinco anos que seu Nova leitura de Marx causara importantes  
discussões no mundo alemão. Com efeito, sobretudo entre os intérpretes originários  
da Alemanha Federal, a influência de Althusser, até aquele momento e ainda hoje,  
converteu-se em preponderante, isto é, a recepção dos textos de juventude, em geral,  
encontra-se em grande medida sob a influência avassaladora do autor francês. Reichelt  
é um dos poucos autores a destoar nesse coro dos contentes.  
O objetivo de seu livro de 2008 é promover uma nova discussão metodológica  
a partir dos problemas exegéticos que emergiram, já na década de 1960, com a  
publicação de diversos textos distintos do cânone até então em vigor, isto é, as  
dificuldades que surgiram com a difusão dos Grundrisse e das diversas edições de O  
capital. Segundo Reichelt, uma nova rodada de discussões se impôs, “em que o  
problema de constituição das categorias econômicas e seu significado para a teoria  
social como um todo se converteram em tema central” (REICHELT, 2013, p. 11). A  
própria leitura empreendida, dentre outros, por Backhaus e o próprio Reichelt, sofreu  
consideráveis mudanças ao longo das décadas seguintes. Todo o problema, mal  
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resumindo, consistiu na formação de um sistema conceitual e teórico desprovido de  
objetividade, mas que possuísse, ainda assim, validade. Como a teoria social pode ser  
capaz de se constituir em sistema para compreender uma realidade peculiar como o  
conceito de capital, ele mesmo um valor que se valoriza de maneira abstrata, dado o  
duplo caráter do trabalho que explora:  
Isso também muda a "nova leitura de Marx"; se originalmente se  
buscava uma reconstrução do método, então a construção da  
objetividade tornou-se o tema central e o método ainda precisava ser  
trabalhado; pois, com a especificação de um conceito de validade, as  
categorias tiveram de ser desenvolvidas como formas válidas e não  
podiam mais ser apreendidas em termos reais. (REICHELT, 2013, p.  
13)  
Contrariando o Lukács do “marxismo ortodoxo”, Reichelt considera ser  
impossível abandonar as teses marxianas sem rejeitar o próprio marxismo, bem ao  
contrário, a construção de uma teoria crítica sistemática necessitaria da construção do  
próprio sistema válido, que contemplasse a unidade social e a objetividade. Não caberá  
aqui, naturalmente, a completa exposição do argumento de Reichelt, na expectativa de  
que não se passem outros 50 anos para a tradução de sua obra. Importa, no entanto,  
para nossos propósitos, ponderar como esse autor considera a crítica a Hegel o  
momento fundante da perspectiva marxiana sobre aquilo que Reichelt denomina de  
“mundo invertido” do capital, cujo desvelamento assumiria, a partir de 1843,  
centralidade na reflexão marxiana. A despeito de todos os problemas e discussões que  
suscita, o livro de 2008 merece ser trazido à colação aqui porque promove uma leitura  
bastante rigorosa do texto de 1843 e o situa, dentro do itinerário marxiano, em seu  
estatuto próprio, tal qual Chasin fizera 13 anos antes.  
Vários pontos importantes discutidos neste artigo aparecem no texto de Reichelt.  
Em primeiro lugar, as inversões entre subjetividade e objetividade, entre sujeito e  
predicado, entre ser e Ideia, promovidas por Hegel, seu misticismo lógico. Esse “mundo  
invertido” hegeliano expressa, no entanto, uma realidade invertida, qual seja, a cisão  
entre o cidadão e o indivíduo efetivo da sociedade. Por influência de Feuerbach, o  
“padrinho” da Crítica de 43, mas indo além de seus limites, “Marx apenas constata  
que, com a difusão e o desenvolvimento da propriedade privada, surge também esta  
forma de estado político, distinta da sociedade burguesa” (REICHELT, 2013, p. 392).  
A própria existência do indivíduo, portanto, é invertida, a levar uma vida no céu  
abstrato da política e outra na materialidade terrena da vida social. Em segundo lugar,  
ao contrário de Feuerbach, já aqui Marx o ultrapassa porque não “absolutiza o  
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A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
individualismo burguês, mas antes busca pensar essa forma da individuação como  
relacionada ao desenvolvimento prático da propriedade privada” (REICHELT, 2013, p.  
398). Reichelt considera o problema formulado por completo já em Kreuznach, o que  
nos parece temerário, quando afirma, por exemplo, depois de expor o texto por  
completo, que tanto a sociedade civil quanto o estado político são formas estranhadas  
da vida do povo. Mostramos como o estranhamento social aparece apenas de forma  
indicativa ao final do texto. De todo modo, Reichelt teve o mérito de reiterar o  
problema exato colocado pelo texto de Kreuznach. Além disso, esse autor  
compreendeu corretamente o desenvolvimento imediatamente posterior constante dos  
textos Sobre a questão judaica e Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel,  
pouco importanto aqui a consideração da ideologia como falsa consciência (REICHELT,  
2013, p. 404).  
Ter apontado o significado desse itinerário para a formação da crítica marxiana,  
esse é um grande mérito de Reichelt, pouco considerado entre nós. Perceber, diante  
da enorme dominância da visão althusseriana, que a crítica marxiana se instaura no  
confronto com Hegel, tem sido desconsiderado sistematicamente, mesmo diante das  
sobejas evidências fornecidas pelos esforços de leitura imanente. Para Reichelt, “o  
conceito marxiano de crítica e seu duplo sentido estão aqui prefigurados” (REICHELT,  
2013, p. 417). E arremata, sobre esse sentido duplo:  
Crítica não consiste apenas em crítica das formas de consciência e  
teorias científicas, mas crítica é sobretudo crítica da própria realidade  
desde que a inversão real se possa decifrar como a unidade invertida  
de uma unidade social, que se efetiva na medida em que as pessoas  
se libertam da forma invertida. (REICHELT, 2013, p. 417)  
Seria exigir demais considerar essa avaliação como de talhe ontológico, que a crítica  
a Hegel marca a instauração da crítica ontológica de Marx. O contexto de Reichelt, com  
todos os seus acertos, não nos permitiria ir tão longe. O espantoso, no entanto, é  
como uma obra dessa passa despercebida entre nós, enquanto outras recebem  
tamanha atenção. É o caso de Miguel Abensour, que, tão logo publicou seu já  
esquecido A democracia contra o estado, em 1997, uma tradução foi imediatamente  
providenciada entre nós. Não creditemos esse fato às dificuldades relativamente  
maiores de tradução de um livro alemão em relação a um texto diminuto em francês,  
assunto para uma futura história da vida acadêmica nacional em tempos de crise. Como  
se disse acima, para a avaliação de Abensour, reproduzimos, literalmente, nosso livro  
de 2014, pp. 109 a 114.  
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Leonardo Gomes de Deus; Guilherme de Oliveira e Silva  
Abensour pretende retomar a obra marxiana e a Crítica de 43 em especial, com  
o propósito de enunciar “à custa de novos esforços, a questão e o imperativo da  
emancipação” (ABENSOUR, 1998, p. 15). A emancipação à qual ele se refere é a  
emancipação política, que teria sido pensada por Marx na Crítica e que teria ficado  
latente em sua obra durante o período do “materialismo histórico”, quando o político  
teria sido pensado como “fenômeno derivável e, de alguma forma, secundário” (ibid.,  
p. 29), para ressurgir em alguns momentos, como em A guerra civil na França. Após a  
redação das Glosas de 43, segundo Abensour, teria havido uma “tendência à ocultação  
do político, sob a forma de uma naturalização, de uma inserção do político em uma  
teoria dialética da totalidade social” (ABENSOUR, 1998, p. 31), o que marcaria uma  
certa ambiguidade na obra marxiana, oscilando entre a denegação do político e o  
pensamento democrático. Para fazer essa divisão no pensamento marxiano, Abensour,  
necessariamente, atribui um caráter definitivo à Crítica de 43, omitindo que essa obra  
representa um momento transitório no pensamento marxiano. Nas obras escritas  
imediatamente após, Marx tratou de realizar um acerto de contas com a posição que  
adotara em Kreuznach, algo que não é referido por Abensour. De qualquer forma, sua  
incompreensão em relação ao pensamento marxiano em geral não será exposta, dado  
o objeto deste trabalho. Ela já foi devidamente explicitada por Rubens Enderle em seu  
trabalho Ontologia e política. Caberá determinar, aqui, apenas a forma como a Crítica  
de 43 é apresentada por Abensour.  
Para ele, essa obra está inscrita naquilo que denomina “momento maquiaveliano”,  
que “consiste em afirmar a natureza política do homem e atribuir, como finalidade da  
política, não mais a defesa dos direitos, mas a execução dessa ‘politicidade’ primeira,  
na forma de uma participação ativa, enquanto cidadão, na coisa pública” (ABENSOUR,  
1998, p. 24). Para demonstrar essa tese, Abensour formula sua hipótese de leitura,  
que consiste em negar validade ao depoimento marxiano constante do Prefácio de  
1859. Ele diz:  
Se o intérprete, ao invés de procurar confirmar o resultado, como faz  
Marx, aceita refazer o caminho de Marx em direção ao resultado, sem  
visar a nenhum fechamento, isto é, tomando o caminho que não leva  
necessariamente ao resultado, proclamado em 1859, não se tornaria  
ele, então, sensível a uma outra dimensão do texto de 1843,  
esquecida ou rejeitada pelo Marx de 1859? O intérprete, pela  
prioridade que atribuísse, na crítica de 1843, ao processo do  
pensamento, não perceberia uma dimensão propriamente filosófica,  
sob a forma de um contínuo questionamento do político. Posição do  
intérprete que implica evidentemente uma leitura particular de Marx,  
longe das ortodoxias existentes ou de qualquer projeto de controle,  
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leitura que aceita deixar-se conduzir pelas perguntas de Marx, sem  
por isso fechá-las com uma resposta, leitura que joga  
preferencialmente com as contradições, com as tensões que  
atravessam o texto e com as implicações laterais, para entregar-se a  
um trabalho de abertura. (ABENSOUR, 1998, p. 29)  
Ainda que Marx tenha determinado, nas Glosas de 43, que as esferas da família  
e da sociedade civil são “o propriamente ativo”, Abensour afirma que “não basta que  
um caminho esteja aberto para ser necessariamente utilizado” (ABENSOUR, 1998, p.  
62). Assim, a autointerpretação de 1859 teria ido além do que foi o próprio texto de  
1843. No Prefácio”, Marx teria formulado uma “crítica essencialmente epistemológica”  
da política, contrária ao próprio teor das Glosas. Para Abensour, pode-se ler o texto  
de 1843, igualmente, “no seu movimento e na sua contemporaneidade”. Ele esclarece  
sua leitura:  
Não se trata de relacionar o universo político e suas formas com  
instâncias da totalidade social, que permitiram explicar,  
sociologicamente, o político. Dizer que o ponto de gravidade do  
estado reside fora dele mesmo indica, aliás, que é preciso relacionar  
o estado com esse movimento que o excede, que o coloca fora de seu  
eixo; relacioná-lo a essa sobre-significação que o atravessa e cujo  
sujeito real não é outro senão a vida ativa do dêmos. Em outras  
palavras, o povo real detém o segredo da sobre-significação que  
obseda o estado moderno. Em outras palavras, o foco de sentido do  
estado moderno, o que sob a forma de um horizonte implícito dá  
sentido ao estado político (e ao mesmo tempo o relativiza), é a vida  
plural, maciça, polimorfa do dêmos. (ABENSOUR, 1998, p. 66)  
Pode-se ver, nessa passagem, que Abensour nega validade não apenas ao  
depoimento de 1859, mas ao próprio texto de 1843. Ele estabelece distinções  
conceituais arbitrárias, sem qualquer rigor ou embasamento no texto. O demos, para  
ele, é algo diferente da sociedade civil, da existência material dos indivíduos. Com isso,  
perde-se a afirmação categórica da sociedade civil como o sujeito da politicidade,  
como se Marx estivesse buscando um estatuto específico para a política fora da  
sociedade civil, como se pretendesse salvar a política da “totalidade social”. Abensour  
afirma:  
É por isso que fixar a atenção na família, na sociedade civil burguesa,  
erigindo-as em patamares determinantes, implicaria deter  
arbitrariamente a análise de Marx, resultaria em interromper o  
movimento de regressão radical, que o leva à procura de um sujeito  
autenticamente originário, à procura do que ele próprio chama de raiz.  
(...) Seguindo esse caminho em direção ao originário, podemos, na  
verdade, ressaltar que, se Marx desvia primeiramente a atenção do  
estado, para orientá-lo em direção à sociedade civil e à família, longe  
de deter-se nesse estágio, ele continua sua análise, até poder  
relacionar sociedade civil, família que, nessa perspectiva, aparecem  
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como derivadas com um sujeito, foco de atividade originário, o  
dêmos ou mais, exatamente, o dêmos total. (ABENSOUR, 1998, p. 65).  
Partindo desse pressuposto, Abensour pode então explicar a formulação da  
verdadeira democracia e o desaparecimento do estado político, inscrevendo-os no  
momento maquiaveliano: a autonomização e a delimitação do momento político em  
relação às demais esferas. A verdadeira democracia seria a afirmação da  
transcendência da politicidade em relação à vida social, à vida do dêmos total, o que  
é afirmado nesta passagem:  
Existe, com efeito, para Marx, como que uma sublimidade do momento  
político. A elevação é própria da esfera política: em relação às outras  
esferas, ela representa um além. Ao político é, pois, legítimo  
reconhecer os caracteres da transcendência: uma situação para além  
das outras esferas, uma diferença de nível e uma solução de  
continuidade em relação às outras esferas, valorizada por Marx,  
quando acentua o caráter luminoso, o caráter extático do momento  
político. A vida política é a vida aérea, a região etérea da sociedade  
civil burguesa.No político e pelo político, o homem entra no  
elemento da razão universal e faz a experiência, enquanto povo, da  
unidade do homem com o homem. O estado político, a esfera  
constitucional, desdobra-se como o elemento onde se efetua a  
epifania do povo, ali onde o povo se objetiva enquanto ser genérico,  
enquanto ser universal, ser livre e não limitado, ali onde o povo  
aparece, para ele mesmo, como ser absoluto, um ser divino.  
(ABENSOUR, 1998, p. 97).  
Essa passagem exemplifica muito bem o procedimento de Abensour, que cita fora  
de contexto diversas frases de Marx. Nesse caso, a frase sobre a abstração da vida  
política, formulada como uma crítica, aparece aqui como um atributo positivo conferido  
por Marx à política moderna.  
Além disso, conquanto represente a afirmação da política, a tematização marxiana  
da verdadeira democracia só pode ser compreendida como redução não apenas do  
estado, como pretende Abensour, mas da própria politicidade, como apropriação, pela  
sociedade civil, dessa esfera que, na modernidade, encontra-se alienada. Cabe citar,  
uma vez mais, a formulação marxiana acerca da forma de representação que  
vislumbrava, para além do sistema representativo, para além da “vida aérea” da  
política: “A sociedade civil é sociedade política real.” Nesse caso, “toda atividade social  
determinada representa, como atividade genérica, apenas o gênero, quer dizer,  
representa uma determinação de meu próprio ser, assim como cada homem é o  
representante do outro.” Cada homem “não é representante por meio de algo diferente  
do que ele representa, mas por meio daquilo que ele é e faz(MARX, 2005, p. 133).  
É a partir dessa formulação que se pode compreender a verdadeira democracia, que  
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constitui a autodeterminação da sociedade civil a partir de sua existência material.  
Diante disso, a “leitura” de Abensour soa verdadeiramente absurda, quando ele afirma:  
“Somente o ‘desligamento’, no nível da sociedade civil burguesa, permite a experiência  
de uma ligação genérica, pela entrada na esfera política.” (ABENSOUR, 1998, p. 80).  
A determinação marxiana da política como a vida genérica alienada da sociedade civil  
é interpretada por Abensour como algo positivo: “Chegamos, assim, ao paradoxo de  
que o homem faz a experiência do ser genérico, na medida em que se desvie do seu  
estar-aí social e que se afirme em seu ser de cidadão, ou antes, em seu dever-ser de  
cidadão.” (ABENSOUR, 1998, p. 81) Dá-se, com isso, a total inversão do texto  
marxiano. Na interpretação de Abensour, a prospecção marxiana da autodeterminação  
da sociedade civil se transforma justamente na indeterminação da sociedade. É o que  
Abensour afirma nesta passagem, quando é discutido o possível desaparecimento do  
conflito no interior da verdadeira democracia:  
O princípio de junção ao qual Marx visa, pensado em certos  
momentos, parece, a partir do sistema nervoso ou de um sistema de  
circulação, deve ser situado ao lado do agir. Mesmo se esse princípio  
não parece sair do âmbito do sistema, ele não participa menos do  
mistério da vida do povo, de sua indeterminação energia teórica e  
energia prática, ao mesmo tempo não participa menos da infinidade,  
da abertura, da plasticidade, da fluidez do querer. (ABENSOUR, 1998,  
p. 103).  
E, mais adiante, ele consigna:  
Pensar a verdade da democracia como o advento do dêmos total ou  
enquanto totalidade valendo como solução ao enigma de todas as  
constituições, não seria esquecer a tese aristotélica, segundo a qual  
as coisas políticas se caracterizam por uma tal indeterminação, que a  
própria ideia de solução é enfraquecida e a ideia de um face a face  
com a politéia realizada, ou ainda a ideia moderna de um Eschaton  
são consideradas inconcebíveis. (ABENSOUR, 1998, p. 105).  
Para Abensour, a politicidade se pauta pela “indeterminação”, pela “fluidez do  
querer” e, com isso, pode-se afirmar, ele se distancia por completo de Marx, situado,  
por sua vez, fora desse gradiente.  
Somente com um tratamento arbitrário do texto, baseado em uma hipótese de  
leitura que não lhe faz a devida justiça, Abensour pode, então, concluir que o momento  
maquiaveliano seria abandonado, a partir de 1844, decretando a vitória da vertente  
“epistemológica”. Com isso, ele diz, “a crítica da política, em vez de manter-se na via  
da inteligência do político, orientou-se para o substrato econômico, por intermédio da  
sociedade civil” (ABENSOUR, 1998, p. 113). Enfim, Abensour não escapa da  
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advertência que fez no início de sua obra:  
Podemos certamente temer, quando observamos a forma restauradora  
que assume atualmente a volta da filosofia política na França, que esse  
retorno a Marx, à margem do marxismo, termina em uma neutralização  
de seu pensamento, em sua integração no corpus acadêmico,  
doravante desligado do laço constitutivo da revolta e do messianismo.  
(ABENSOUR, 1998, p. 114)  
Essa neutralização decorre do fato de Abensour e tantos outros pretenderem  
compreender a obra de Marx como se ela fosse uma “obra de pensamento”, ou seja,  
“uma obra orientada por uma intenção de conhecimento e para a qual a linguagem é  
essencial” (ABENSOUR, 1998, p. 21).  
O imortal Machado de Assis pediria perdão a sua leitora depois dessa peroração.  
Ela se faz necessária, entretanto, porque a leitura de Abensour, em todas as dimensões  
é o sintoma da doença científica de nosso tempo, especialmente no que se refere à  
obra marxiana. Em geral, os intérpretes consideram a obra marxiana e qualquer  
pensamento como passível de múltiplas interpretações, ao gosto do leitor, diante de  
seus dilemas subjetivos e contingentes, enfim a perda completa de objetividade da  
reflexão humana. Contra esse disparate, fruto ele mesmo do mundo pervertido do  
capital, o esforço de leitura imanente e resgate da obra marxiana representam não  
apenas um ato de lucidez, mas de resistência.  
A “agenda Kreuznach”: o quanto ainda falta pesquisar sobre 1843  
Quando foi retomado o projeto MEGA, ainda na década de 1950, uma das  
emendas mais importantes em relação ao projeto original de Riazanov foi certamente  
a proposta de uma quarta seção, além das três originais (textos, materiais de O capital  
e correspondência), destinada às anotações, excertos, notas marginais e comentários  
de leituras (cf. DLUBECK, 1992, p. 55). No caso dos materiais destinados a O capital,  
o acerto dessa decisão está sobejamente comprovado, já que as notas de conjuntura  
econômica, os cadernos sobre crises têm fornecido relevantes informações sobre a  
própria obra econômica de Marx. Em relação aos textos filosóficos e escritos  
jornalísticos e políticos, infelizmente, a pesquisa tem andado lentamente, a despeito  
de tudo que já foi publicado.  
Publicados em 1981, os Cadernos de Kreuznach não podem ser considerados  
sob a mesma perspectiva de outros cadernos de notas, em outros momentos da vida  
de Marx. O editor alemão oferece um argumento muito singelo: em Kreuznach, nosso  
autor tomou notas daquilo que encontrou na própria cidade, já que não há evidências  
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de que esses livros fizeram parte de sua biblioteca, nem antes, nem depois de sua  
produtiva lua de mel (MARX, 1981, p. 607). De todo modo, alguns elementos são  
dignos de nota. Com 328 páginas manuscritas, os cinco cadernos de Kreuznach  
cobrem, em sua maioria, livros de história de países e regiões, França, Inglaterra,  
Veneza, Alemanha e Estados Unidos. Dentre os autores estudados, por breves notas,  
destacam-se Maquiavel, Montesquieu, Rousseau, além de Chateaubriand, John Russel,  
Henry Peter Brougham, Pierre Daru. Seria exagero considerar que essas notas eram  
mero exercício frívolo diante de uma biblioteca limitada. Sem exaurir o tema aqui,  
algumas notas são deveras valiosas e guardam a mais absoluta relação com o outro  
trabalho desenvolvido em Kreuznach. Enunciaremos apenas alguns exemplos, como  
motivação para futuros esforços ainda por empreender.  
Todo o primeiro caderno é dedicado à história francesa, bem como as primeiras  
páginas do segundo. Nesse caderno, além de uma curta nota sobre os privilégios da  
República de Veneza, Marx preenche 15 páginas de citações sobre Rousseau,  
publicadas pela primeira vez em russo, em 1969. Antes disso, chamam a atenção suas  
notas do livro de K. F. E. Ludwig, História dos últimos 50 anos, publicado entre 1832  
e 1837. Interessa a Marx, sobretudo, a situação da França nos anos iniciais da  
Revolução, quando da Assembleia Nacional. Ele acrescenta na abertura dos excertos  
ao livro:  
Representação da propriedade na Assemblée Constituante, noite de  
São Bartolomeu da propriedade, contradição da Assembléia Nacional  
consigo mesma em relação à propriedade privada, o máximo, os  
jacobinos contra a soberania do povo, os monarquistas por ela, o  
governo revolucionário, a França perante a revolução. (MARX, 1981,  
p. 84)  
A noite em questão seria a de 4 de agosto de 1789, quando foram abolidos os  
privilégios feudais, de corporações, clero, além de várias prestações pessoais. Nas  
palavras de Ludwig, anotadas por Marx (na verdade, uma citação de outro autor,  
Mignet):  
Aquela noite mudou a forma do reino; igualava todos os franceses;  
todos podiam chegar até os cargos mais altos, adquirir propriedades  
e fazer negócios; por fim, aquela noite foi uma revolução tão  
importante quanto o levante de 14 de julho, do qual foi consequência.  
Tornou o povo senhor da sociedade, como a anterior o havia feito  
senhores do governo, e preparou a nova constituição derrubando a  
antiga de baixo para cima. (MARX, 1981, p. 85)  
Por outro lado, no entanto, para satisfazer credores do estado, foi aprovado o confisco  
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de bens da Igreja. Marx observa: “Aqui uma grande contradição, em que a propriedade  
privada, como inviolável por um lado, é sacrificada por outro lado.” (MARX, 1981, p.  
85) Dispiciendo notar, uma vez mais como Marx pensa a política em toda a sua  
radicalidade. Essa citação poderia figurar no final da Crítica de 43.  
Como fez até o final da vida, quando concluía um caderno de notas ou mesmo  
um esboço, Marx anota, também no final do segundo caderno de Kreuznach, um índice  
temático. Dentre os temas que elenca, um dois mais importantes é “a propriedade e  
suas consequências”, o mais extenso. Em verdade, do que se depreende do índice,  
dois temas são caros a Marx então, a questão da representação democrática e, por  
outro lado, a relação sempre problemática entre a propriedade, os interesses privados  
e essa mesma representaçao (cf. o índice, MARX, 1981, p. 116).  
Nessa tônica, as anotações sobre Rousseau também poderiam ser utilizadas na  
redação da própria crítica a Hegel. Marx anota: “Essas cláusulas [do contrato social] se  
reduzem todas a uma só, a saber, a alienação de cada associado, com todos os seus  
direitos, a toda a comunidade.” (MARX, 1981, p. 91) E adiante: “Face aos associados,  
eles tomam coletivamente o nome de povo e se denominam em particular cidadãos,  
como participantes da autoridade soberana, e sujeitos como submissos às leis do  
estado.” (MARX, 1981, p. 92) Depois de glosar a questão sobre ocupação do solo,  
Marx afirma que, sobre igualdade, Rousseau faz uma “nota curiosa”, e cita: “Sob os  
maus governos, essa igualdade é apenas aparente e ilusória: ela só serve para manter  
o pobre na miséria e o rico em sua usurpação. De fato, as leis são sempre úteis àqueles  
que possuem e nocivas àqueles que nada possuem” (MARX, 1981, p. 93). Em seguida,  
Marx toma notas pormenorizadas sobre a questão da vontade geral, especialmente a  
questão da representação. As notas se encerram com a questão da corrupção da  
democracia. Entre suas próprias palavras e as de Rousseau, o autor observa:  
Como o principal obstáculo à democracia, Rousseau cita o fato de que  
o povo transforma as “vues génerales” em “objets particuliers”,  
corrompe-se na qualidade de legisladores pela influência dos intérêts  
privés dans les affaires publiques. (MARX, 1981, p. 100)  
E, finalmente, nas últimas linhas, Marx seleciona a passagem clássica de que, “a lei, em  
sendo apenas a declaração da vontade geral, é claro que, no poder legislativo, o povo  
não pode ser representado; mas ele pode e deve sê-lo no poder executivo, que não é  
senão a força aplicada à lei” (MARX, 1981, 101). Não é preciso muito esforço para  
percebermos como, até aqui, Marx flerta por completo com o radicalismo  
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revolucionário francês, a democracia direta, com ecos na crítica a Hegel.  
Nas notas imediatamente subsequentes, entretanto, o dilema que se instaurara  
na Crítica de 43, aparece novamente, devidamente enfatizado no índice. Ao glosar o  
livro de Jacques-Charles Bailleul, Examen critique de l’ouvrage posthume de Mme. La  
Baronne de Stäel, ayant pour tritre: “considérations sur les principaux événements de  
la Révolution Française”, em duas páginas, nosso autor aborda a questão da relação  
entre estado e propriedade privada. Marx resume o problema com título próprio: “da  
propriedade como condição da capacidade de representação”. Essa página de seus  
excertos guarda estrita relação com sua reflexão sobre o “desaparecimento do estado”,  
descrito anteriormente. Se no feudalismo a propriedade “era tudo”, se sua organização  
“constituía a ordem social”, todos os direitos estavam ligados a ela (MARX, 1981, p.  
103). A Revolução Francesa teria conferido ao homem tudo que, antes, a ordem  
conferia à propriedade, que deixa de ser uma condição, um elemento, para se converter  
apenas numa circunstância. Marx conclui a citação dessa maneira:  
Assim, não se teria direito porque se possui, mas por aquilo que se  
possui; e, de acordo com o que se possui, a pessoa é julgada ter  
inteligência, educação e moralidade necessárias para usufruir de  
certos direitos, para preencher certas unções políticas: dessa maneira,  
a propriedade é um título, a prova para aqueles que não possuem  
outra. (MARX, 1981, p. 103)  
Se esse dilema se apresenta dessa maneira no segundo caderno de Kreuznach,  
como arremate do argumento, cabe apenas indicar que, no quarto caderno, a pesquisa  
parece muito mais direcionada. Ou por outra, parece assumir outra direção, já que  
muitas das anotações serão aproveitadas na redação do texto Sobre a questão judaica,  
sob muitos aspectos resolutivo em relação a tantas questões que emergiram da estadia  
na estância termal. Trouxemos essas breves notas sobre notas apenas para mostrar  
que as pesquisas sobre o período crucial de 1843 merece e sempre merecerá esforços  
concentrados de pesquisa, em diversas direções. De todo modo, apontar sempre a  
importância desse momento, em si mesmo e sem considerações prospectivas ou sem  
procurar por elementos de uma filosofia marxiana futura, isso já constitui um ponto de  
partida mais que importante.  
Considerações finais  
O saudoso Mario Duayer, em uma de suas intervenções públicas, formulou uma  
questão aos “economistas” então presentes (as aspas são dele, com o devido  
desprezo): se e quando o capitalismo desaparecer, desaparece também O capital? Ou  
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seja, o pensamento de Marx seria apenas uma teoria econômica dentre tantas outras?  
Ele mesmo respondia que o pensamento de Marx não era teoria, não era um método  
acabado, enfim, era muito mais do que isso, uma visão de mundo e uma aproximação  
espiritual mais que importante da vida humana sobre a terra. Com efeito, Marx nunca  
escreveu um tratado acabado, um sistema, uma teoria econômica tampouco. Mesmo  
O capital só apresenta uma perspectiva sobre o desenvolvimento de um país avançado  
na sociabilidade capitalista.  
Isso se reflete em alguns dos autores que examinamos aqui. Ressaltamos a leitura  
acertada, em muitos pontos, de Reichelt, mas ele mesmo afirma, no texto ora  
apresentado, que, caso Marx tivesse produzido uma reflexão completa sobre o sistema  
hegeliano, possivelmente, teria corrigido sua leitura (REICHELT, 2008, p. 387). Não  
poderíamos discordar mais: o objetivo de Marx não era o sistema, a grande filosofia,  
a lógica, nem, depois, a teoria completa do capitalismo ou de qualquer outra formação  
social. Quando Marx promove a crítica à filosofia de Hegel, ele discute os elementos  
fundamentais e essenciais, em suma, estatui a legalidade de um país então periférico  
que o tinha expulsado em todos os níveis e, por outro lado, que engoliria a Europa  
nos anos seguintes, com Bismarck, Nietzsche e Wagner, enfim, o triunfo de  
Schopenhauer e da destruição da razão, não mencionemos Freud ou Johann Strauss  
aqui.  
Não por acaso, numa nota de seus cadernos de Paris, já em 1844, Marx concede  
que à filosofia hegeliana, em seu todo, algumas de suas verdades, ela é incontestável,  
perfeita, pois:  
1) Consciência de si em vez do homem. Sujeito. Objeto.  
2) As diferenças das coisas são importantes porque a substância é  
concebida como autodiferenciação, ou, porque a autodiferenciação, a  
diferenciação é concebida como atividade do entendimento, como  
essencial. Assim, no interior da especulação, Hegel forneceu distinções  
que realmente tocaram no assunto. (MARX, 1998, p. 11)  
Essas passagens, assim como a leitura de Marx, constante dos Manuscritos de 1844,  
sobre a Fenomenologia de Hegel, mostram a nós, só agora, como as preocupações de  
nosso autor se encontravam numa dimensão que ainda merece ser estudada, como  
tem sido neste século. Nunca foi uma mera crítica ao maior filósofo de seu tempo, o  
especulativo Hegel, nunca se trataria, meses depois, de uma crítica e de um descarte  
da política, como não seria nunca o caso de uma crítica da economia nas décadas  
seguintes. Não, sempre se tratou da emancipação humana, nas palavras de Marx, no  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 199-222 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
nova fase  
A crítica ontológica de Marx, 180 anos  
fim de sua vida, em uma entrevista, sempre citada, poucas vezes compreendida.  
No entanto, já em 1843, e talvez antes, Marx tinha plena certeza sobre a natureza  
do pensamento hegeliano e sobre suas consequências, o mundo pervertido que se  
constituiu em sistema, mas que, para se legitimar, ideologicamente, tinha de defender  
o governo miserável da família real prussiana sobre o mundo miserável alemão. Por  
isso não havia conciliação, por isso, a única saída, nessa perspectiva miserável, seria a  
abolição da miséria, quem não tem nada a perder, pode ter algo ou tudo a ganhar.  
Quando Chasin proclamou e aceitou, em 1978, os desafios da leitura imanente  
entre nós, não acreditamos que desejaria estabelecer um novo padrão, ou, como dizem  
os palmeirenses, uma nova dimensão acadêmica. Os esforços da leitura imanente eram,  
certamente, muito piores do que aqueles da zona de conforto de agora, com o tanto  
que sabemos. No entanto, embora o pensamento de Marx esteja sempre estabelecido  
em sua cientificidade e nas certezas rasteiras daqueles que agora tudo sabem, os  
desafios estão postos e continuam a aumentar, mal rompe a manhã.  
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Horizonte: Editora UFMG, 1998.  
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1846. 2000. Dissertação (Mestrado) apresentada à Faculdade de Filosofia e  
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nova fase  
Leonardo Gomes de Deus; Guilherme de Oliveira e Silva  
_____. O capital v. I. São Paulo: Boitempo, 2013.  
PALU, M. A. Estado, democracia e gênero humano: a Crítica de 1843 e a fundação do  
pensamento marxiano. 2019. Dissertação (Mestrado) apresentada à Faculdade de  
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.  
REICHELT, H. Neue Marx-Lektüre: zur Kritik sozialwissenschaflicher Logik. 2. ed.  
Freiburg: ça ira, 2013.  
Como citar:  
DEUS, Leonardo Gomes de; SILVA, Guilherme de Oliveira e. A crítica ontológica de  
Marx, 180 anos. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 199-222, Edição Especial,  
2022/2023.  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 199-222 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.668  
A crítica marxiana da política: seguindo as trilhas  
abertas pelo autor de O futuro ausente  
The Marxian critique of politics: following the trails opened by the author  
of The absent future  
Felipe Ramos Musetti*  
Resumo:  
O
presente  
artigo  
pretende  
Abstract: This article intends to honor the text  
The absent future: towards the critique of  
politics and the rescue of human emancipation,  
by J. Chasin, by rescuing and developing his  
analyzes of Marxian work, focusing on the  
critique of politics. It starts with the research  
path opened by Chasin, recorded mainly in the  
works Marx: ontological statutes and  
methodological resolution and Marx: the  
ontonegative determination of politicity, and  
shows, through the immanent analysis of the  
marxian work, how the recognition of the  
ontonegative determination of politicity remains  
central to Marx's criticism in his mature work,  
improved by the analysis that the German  
philosopher develops on the value form.  
homenagear o texto O futuro ausente: para a  
crítica da política e o resgate da emancipação  
humana, de J. Chasin, resgatando  
desenvolvendo suas análises da obra marxiana,  
no que se refere à crítica da política. Parte-se do  
caminho de pesquisa aberto por Chasin,  
registrados sobretudo em Marx: estatuto  
ontológico e resolução metodológica e Marx: a  
determinação ontonegativa da politicidade,  
procurando mostrar, por meio da análise  
e
imanente da obra marxiana, como  
o
reconhecimento da determinação ontonegativa  
da politicidade permanece central para a crítica  
de Marx em sua obra madura, aprimorada pela  
análise que o filósofo alemão desenvolve sobre a  
forma valor.  
Keywords: Marx; Chasin; State; politics; human  
emancipation.  
Palavras-chave: Marx; Chasin; estado; política;  
emancipação humana.  
Redigido em 1993, o texto intitulado O futuro ausente: para a crítica da  
política e o resgate da emancipação humana, de J. Chasin, jamais foi concluído,  
lamentavelmente. Sua versão incompleta, publicada após a morte do autor, fornece  
indícios dos caminhos analíticos que seriam percorridos, mas registram, também, a  
distância significativa existente entre a amplitude do problema delineado na seção que  
inaugura as reflexões chasinianas, de um lado, e a análise que o autor foi capaz de,  
efetivamente, desenvolver em vida, de outro. Pode-se intuir que Chasin pretendia  
avançar sua investigação em um projeto amplo e significativamente ambicioso,  
sobretudo quando se considera que a análise efetivamente publicada que se inicia  
com reflexão acerca do primeiro humanismo renascentista, faz um volteio que examina  
*
Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail:  
felipermusetti@gmail.com.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Felipe Ramos Musetti  
a política na Antiguidade clássica, para, em seguida, avançar pelo desenvolvimento do  
pensamento político moderno é impulsionada, como se constata na leitura dos  
primeiros parágrafos, pela constatação de uma crise sem precedentes da sociabilidade  
do capital ao final do século XX, a qual se caracteriza, justamente, pelo abandono dos  
referenciais positivos acerca do homem que, não sem contradição, foram  
desenvolvidos no período de formação da sociedade burguesa. Considerado que o  
texto se encerra, abruptamente, na análise do pensamento de Thomas Hobbes, apenas  
se pode lamentar que a morte prematura de Chasin tenha privado o intérprete de  
passos analíticos promissores e decisivos, que, certamente, o autor desenvolveria com  
o rigor característico de suas reflexões.  
O subtítulo indica certa continuidade entre as reflexões inacabadas de O futuro  
ausente e as obras anteriores do autor voltadas para a explicitação da crítica marxiana  
à política (cf. CHASIN, 2009; 2000). Contudo, a argumentação de O futuro ausente  
contrasta com os textos anteriores de Chasin sobre o tema, à medida que, ao invés de  
realçar o que o filósofo brasileiro denominou, a partir de suas análises da obra de  
Marx, de determinação ontonegativa da politicidade1, enfoca no desenvolvimento das  
concepções que apreendem a política como determinação ontopositiva, procurando  
compreender as razões pelas quais, contraditoriamente, a política aparece para o  
pensamento moderno como a instância mais elevada de realização da universalidade  
humana2.  
O presente artigo não pretende continuar a reflexão que Chasin legou  
inacabada trabalho necessário, mas que transcende os objetivos deste espaço ,  
tampouco abordar aspectos da argumentação que se extrai da parte textual que o  
autor efetivamente redigiu. Significativamente mais modesto, intenta-se prestar as  
1 Chasin cunha a expressão determinação ontonegativa da politicidade para demarcar a especificidade  
e radicalidade do tratamento marxiano à política, o qual “exclui o atributo da política da essência do  
ser social, só o admitindo como extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de  
historicamente circunstancial; numa expressão mais enfática, enquanto predicado típico do ser social,  
apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-história. E no interior da intrincada  
trajetória dessa pré-história que a politicidade adquire sua fisionomia plena e perfeita, sob a forma de  
poder político centralizado, ou seja, do estado moderno (CHASIN, 2009, p. 64).  
2
Em Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, Chasin se refere ao “âmbito secularmente  
predominante da determinação ontopositiva da política, para a qual o atributo da politicidade não só  
integra o que há de mais fundamental do ser humano-societário e intrínseco a ele mas tende a ser  
considerado como sua propriedade por excelência, a mais elevada, espiritualmente, ou a mais  
indispensável, pragmaticamente; tanto que conduz a indissolubilidade entre política e sociedade, a  
ponto de tomar quase impossível, até mesmo para a simples imaginação, um formato social que  
independa de qualquer forma de poder político.  
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A crítica marxiana da política  
devidas homenagens ao texto chasiniano pelo resgate e desenvolvimento de suas  
análises sobre a obra marxiana, sobremaneira no que se refere à crítica da política.  
Para tanto, parte-se dos caminhos analíticos abertos por Chasin em suas análises da  
obra de Marx, procurando acompanhar como a crítica da política se desdobra ao longo  
de todo o itinerário de desenvolvimento do pensamento marxiano, desde o seu  
período formativo até as obras que marcam a maturação de sua crítica econômica.  
Procurar-se-á demonstrar que Marx mantém, ao longo de todo o seu itinerário de  
pesquisa, o reconhecimento da determinação ontonegativa da politicidade,  
enfatizando a necessidade prática, posta historicamente pelo advento da sociedade  
burguesa, de superar o estado e a política pelo movimento revolucionário voltado para  
a conquista da emancipação humana3.  
Os principais contornos da crítica da política na formação do pensamento  
marxiano  
No interior do processo de formação do pensamento marxiano, o  
desenvolvimento da crítica à política tem início com a ruptura de Marx com a filosofia  
hegeliana, cujos primeiros lineamentos aparecem expostos em Crítica da filosofia do  
direito de Hegel, redigida em 1843. Nos Manuscritos de Kreuznach4, Marx expõe, pela  
primeira vez em seu itinerário intelectual, o reconhecimento da política como  
determinação negativa, em evidente contraste com sua própria posição anterior,  
registrada nos artigos da Gazeta Renana, para qual a solução das mazelas sociais  
remeteria à necessidade do aperfeiçoamento da política e do estado como instâncias  
racionais de regulação dos conflitos sociais. Em Crítica da filosofia do direito de Hegel,  
bem como nos textos redigidos no período subsequente, salta aos olhos o caráter  
distinto da abordagem marxiana: estado e política passam a ser reconhecidos como  
instâncias alienadas produzidas pela cisão entre indivíduo e comunidade, cuja  
maturação é atingida com o advento da sociedade moderna estruturada pelo livre  
movimento da propriedade privada. Em outras palavras, estado e política são  
deslocados da condição de instâncias resolutivas para serem reconhecidos como  
complementos necessários aos conflitos emergentes do seio da sociedade civil, de  
3
O presente artigo condensa parte da reflexão desenvolvida em tese de doutorado em Filosofia,  
dedicada ao desenvolvimento da crítica da política nos principais textos do período formativo do  
pensamento marxiano e seus desdobramentos na obra madura do autor (cf. MUSETTI, 2022). Link de  
acesso: <https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/26084/1/Felipe%20Ramos%20Musetti.pdf>.  
4 Jamais publicada durante a vida de Marx, a Crítica da filosofia do direito de Hegel também é conhecida  
como Manuscritos de Kreuznach, em referência à cidade onde foi escrita.  
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modo que a superação de tais conflitos passa a exigir o movimento mais amplo da  
emancipação humana, a qual, em contraste com o processo de emancipação política  
que marcou o advento da sociedade moderna, pressupõe a superação do estado e da  
política enquanto tais5.  
O acerto de contas com a filosofia hegeliana realizado em 1843 atesta,  
todavia, uma ruptura mais profunda, que não se restringe apenas à crítica da política  
apreendida isoladamente, mas, ao contrário, consubstancia os primeiros passos de  
elaboração de uma abordagem mais ampla, que, orientada pelo rechaço radical à  
filosofia especulativa, deve ser capaz de apreender, de modo imanente, as conexões  
entre diferentes formas de sociabilidade e seus complexos específicos, como a política,  
a filosofia, a arte etc. É mérito de Chasin reconhecer a especificidade, bem como a  
amplitude das consequências resultantes de tal rechaço marxiano ao pensamento de  
Hegel, em 1843. Segundo ele, a letra da Crítica da filosofia do direito de Hegel atesta  
uma viragem ontológica” que marca a inflexão intelectual a partir da qualMarx  
passa a elaborar seu próprio pensamento(CHASIN, 2009, p. 57). Ainda segundo  
Chasin:  
ao enfocar e superar, tão substancial e rapidamente, a esfera política,  
a rota de Marx faz transparecer que o núcleo propulsor de seus  
esforços articulava interesses teóricos e práticos que se estendiam à  
globalidade do complexo humano-societário, implicando a demanda  
por uma planta intelectual bem mais ampla, para além das fronteiras  
de uma estrita teoria política, se esse tipo de abordagem sempre fosse  
incapaz de dar corpo à completa e resolutiva intelecção da  
mundanidade emergente em seu tempo, como acabara de verificar  
que ocorreria, pela revisão do melhor dos seus exemplares, em  
qualquer formulação do gênero (CHASIN, 2009, p. 67).  
O ponto a ser registrado, nesse passo, é a conexão íntima entre a crítica da  
política e o problema da autoprodução humana na formulação do pensamento próprio  
de Marx. À medida que identifica o estado e política como produtos da sociedade civil,  
reconhecida como lócus de atuação dos sujeitos reais, o pensamento marxiano  
principia a edificação de uma nova posição ontológica, para a qual a adequada  
compreensão das determinações políticas, bem como das formas de consciência,  
pressupõe reconhecê-las em suas conexões com as condições materiais da existência  
5 Referindo-se à radicalidade da crítica marxiana à política, instaurada a partir de Crítica da filosofia do  
direito de Hegel, Chasin argumenta que o reconhecimento da determinação ontonegativa da politicidade  
consiste no marco exponencial que separa, totalmente, o Marx juvenil, adepto da filosofia da  
autoconsciência, do Marx marxiano que principia em 1843(CHASIN, 2009, p. 63).  
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A crítica marxiana da política  
humana, entendidas como o complexo prático relacional que estrutura determinada  
formação social. Tal constatação, somada a uma importante contribuição de Friedrich  
Engels6, impulsionam a intensificação dos estudos de Marx sobre economia política,  
como revelam as palavras do próprio autor na célebre passagem do Prefáciode  
1859:  
Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as  
relações jurídicas, bem como as formas de estado, não podem ser  
explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do  
espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas  
condições materiais de existência, em suas totalidades, condições  
estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século 18,  
compreendia sob o nome de sociedade civil. Cheguei também à  
conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser  
procurada na Economia Política. (MARX, 2008, p. 47)  
Note-se que, referindo-se ao seu próprio processo formativo, Marx assinala,  
explicitamente, que o seu primeiro acerto de contas com a filosofia hegeliana do qual  
se extraem os primeiros contornos de sua crítica à política atestaram a  
indissociabilidade entre estado, política, formas de consciência etc., de um lado, e a  
totalidade das condições materiais de existência, identificadas às relações materiais da  
vida [materiellen Lebensverhältnissen], de outro. Para a crítica ontológica de Marx, a  
pretensão de se investigar o estado e as formas políticas por si mesmos, como  
instâncias autossuficientes e isoladas das práticas sociais que as engendram como  
produtos de relações específicas, pressupõe negligenciar certas determinações  
constitutivas da política, as quais ela própria procura afastar de sua jurisdição, ao  
estabelecer-se como universalidade abstrata contraposta ao atomismo da sociedade  
civil. Em outras palavras, a crítica à filosofia hegeliana conduz o pensamento marxiano  
ao reconhecimento do estado e da política como formas abstratas, cuja relativa  
autonomia se explica no modo contraditório pelo qual procuram apagar as suas  
próprias bases de sustentação nas relações de propriedade, para se afirmarem como  
instâncias universais e independentes. Nesse sentido, longe de resolver em si os  
conflitos originados dos entrechoques entre interesses particulares no âmbito da  
sociedade civil, o estado político está assentado em tais conflitos, bem como sua  
existência os pressupõe.  
6
Marx ressalta o impacto do texto Esboço de uma crítica da economia política, de Engels, no seu  
itinerário de buscar a anatomia da sociedade civil pela crítica da economia política (cf. MARX, 2008, pp.  
48-49).  
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Felipe Ramos Musetti  
Ademais, observe-se como a virada radical do pensamento marxiano a partir  
de 1843 se caracteriza pela imbricação entre as críticas ontológicas da política e da  
filosofia especulativa, uma vez determinadas as condições materiais da existência como  
a base real, existente por si, no interior da qual são produzidas tanto as formas  
políticas quanto as formas de consciência. Em outras palavras, anote-se que a crítica  
marxiana à filosofia do direito de Hegel atinge, simultaneamente, a própria realidade  
efetiva do estado e da política em sua relação contraditória com sua base de  
sustentação na propriedade privada , bem como a filosofia hegeliana, apreendida  
como forma de consciência que expressa, no pensamento, a inversão real que estado  
e política produzem ao apagarem seus nexos com a sociedade civil. Ambos estado  
político e filosofia hegeliana são apreendidos por Marx como expressões específicas  
da contradição constitutiva da sociedade civil-burguesa, entendida como o campo de  
interatividade dos sujeitos reais, como forma específica do metabolismo social.  
A preocupação marxiana em apreender a política e as formas de consciência  
no interior do complexo de relações materiais estruturantes da sociedade civil-  
burguesa se faz presente nos textos políticos redigidos no período de 1843-18447.  
Tais textos evidenciam, ademais, como a argumentação de Marx associa a formação  
do estado em sua forma perfeita, moderna, com a differentia specifica da sociedade  
civil-burguesa frente aos modos de sociabilidade que a antecederam. Em Crítica da  
filosofia do direito de Hegel, Marx, dando apenas os primeiros passos em direção à  
formulação de seu pensamento próprio, não deixa de ressaltar que o estado político,  
perfeito e acabado, corresponde ao completamento da separação entre vida pública e  
vida privada efetivado no processo de formação da moderna sociedade burguesa,  
referindo-se às formas estatais anteriores como a grega como estados incompletos,  
imaturos (cf. MARX, 2006, pp. 51-53; 89-98). Redigido alguns meses depois, a letra  
de Sobre a questão judaica salienta que o estado ganha sua verdadeira forma  
definitivano processo de dissolução da feudalidade que libertou a propriedade  
privada dos últimos entraves políticos que cerceavam seu livre movimento,  
consolidando a separação entre vida pública e vida privada. De acordo com o autor, a  
realização plena do estado é inseparável da emancipação da sociedade burguesa em  
7 Destacam-se os textos Sobre a questão judaica (MARX, 2010), Crítica da filosofia do direito de Hegel  
- Introdução(MARX, 2006b) e Glosas críticas ao artigo O rei da Prússia e a reforma social. De um  
prussiano(MARX, 2010b).  
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A crítica marxiana da política  
relação à política:  
a
realização plena do idealismo do estado representou  
concomitantemente a realização plena do materialismo da sociedade  
burguesa. O ato de sacudir de si o jugo político representou  
concomitantemente sacudir de si as amarras que prendiam o espírito  
egoísta da sociedade burguesa. A emancipação política representou  
concomitantemente a emancipação da sociedade burguesa em relação  
à política, até em relação à aparência de um teor universal.  
A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no homem, só  
que no tipo de homem que realmente constituía esse fundamento, no  
homem egoísta.  
Esse homem, o membro da sociedade burguesa, passa a ser a base,  
o pressuposto do estado político (MARX, 2010, p. 52).  
A letra de Sobre a questão judaica se refere ao progresso contraditório  
representado pela emancipação política conquistada pela sociedade burguesa, ao  
mesmo tempo em que destaca os seus limites estruturais. Por um lado, à medida que  
constituiu o estado político como assunto universal, isto é, como estado real” –  
dissolvendo o conjunto de estamentos, corporações, guildas, privilégios, que eram  
outras tantas expressões da separação entre o povo e seu sistema comunitário(MARX,  
2010, p. 52) , a emancipação política representa um grande progresso; por outro  
lado, ela consagra a cisão do homem nas figuras do bourgeois (o homem concreto,  
real, proprietário privado e membro da sociedade civil-burguesa) e do citoyen (o  
homem abstrato, apartado de suas determinações concretas e que participa de uma  
comunidade imaginária, irreal)8. Em poucas palavras, os limites da emancipação política  
se revelam à medida que conforma o estado político pleno, o qual constitui, por sua  
essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material(MARX, 2010, p.  
40)9. Para Marx, a cisão do homem em público e privado (...) não constitui um estágio,  
8
No volume II de Para uma ontologia do ser social, Lukács se refere ao processo de emancipação  
política do seguinte modo: aqui só precisamos ressaltar que a nova situação socialmente objetiva (com  
todas as ilusões e todos os equívocos do pensamento que dela se originam espontaneamente) é que,  
pela primeira vez, dispõe ser humano e sociedade em relações puramente sociais e que, por essa razão,  
ela é uma consequência necessária do surgimento e da predominância do capitalismo e, pelas mesmas  
razões, chega a ser realizada só pela grande Revolução Francesa. A nova relação simplifica as formações  
anteriores mais complicadas, naturalmenteemaranhadas, sendo que, ao mesmo tempo, ela aparece,  
contudo, na nova estrutura da consciência dos homens de maneira duplicada: como a dualidade de  
citoyen [cidadão] e homme (bourgeois) [homem (burguês)] dentro de cada membro da nova sociedade.  
9
Marx aduz que onde o estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma  
vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva  
uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente  
comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais  
pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes  
estranhos a ele(MARX, 2010, p. 40).  
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Felipe Ramos Musetti  
e sim a realização plena da emancipação política(MARX, 2010, p. 42), sendo a  
dimensão privada o momento predominante, à medida que, no funcionamento da  
sociedade burguesa, o citoyen é declarado como serviçal do homem egoísta, de tal  
modo que a esfera em que o homem se comporta como ente comunitário é  
inferiorizada em relação àquela em que ele se comporta como ente parcial(MARX,  
2010, p. 42).  
Compreende-se, pois, que, ainda nos primeiros passos da formação de seu  
pensamento original, Marx observa que o estado moderno se constitui como realização  
plena do poder estatal, à medida que se assenta na radicalização da separação entre  
vida pública e vida privada, que define a especificidade da sociedade burguesa. Na  
condição de forma acabada do poder estatal, o estado moderno, assentado sobre a  
propriedade privada desenvolvida, cria as possibilidades para um novo tipo de  
desenvolvimento do homem a emancipação humana10 , ao mesmo tempo em que  
ilumina a imperfeição das formas anteriores, caracterizadas pela incompletude do  
processo de cisão entre as dimensões pública e privada. Em A ideologia alemã, a  
relação entre o completamento do processo formativo do poder estatal, de um lado, e  
a diferença específica da sociedade burguesa como ponto máximo da separação entre  
indivíduo e comunidade, de outro, continua no centro da crítica marxiana da política.  
De acordo com Marx, a formação do estado moderno associa-se à edificação da  
propriedade privada pura, que se despiu de toda aparência de comunidade e suprimiu  
toda influência do estado sobre o desenvolvimento da propriedade(MARX; ENGELS,  
2009, p. 75). A crítica marxiana insiste que a essa propriedade privada moderna  
corresponde o estado moderno, o qual, por meio da emancipação da propriedade  
em relação à comunidade, (...) se tornou uma existência particular ao lado e fora da  
sociedade civil(MARX; ENGELS, 2009, p. 75).  
Anote-se, a maturação do processo de desenvolvimento da propriedade  
privada a formação da propriedade privada pura, emancipada da comunidade –  
10  
Como se verá mais adiante, Marx opõe à parcialidade da emancipação política o caráter abrangente  
da emancipação humana. Se a emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro  
da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral, a  
emancipação humana se realiza quando o homem individual realrecupera para si o cidadão abstrato”  
e se torna ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho  
individual, nas suas relações individuais. Em suma, quando o homem tiver reconhecido e organizado  
suas 'forces propres' [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si  
mesmo a força social na forma da força política(MARX, 2010, p. 54).  
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nova fase  
A crítica marxiana da política  
permite ao estado assumir uma existência particular ao lado e fora da sociedade civil,  
para constituir-se como comunidade ilusória[illusorische Gemeinschaft] assentada  
sobre a plena separação entre interesses particulares e interesse geral. Não obstante,  
importa registrar que é a realização plena da separação entre indivíduo e comunidade  
que permite a investigação de sua gênese, no interior da qual se apreende as formas  
incompletas do poder estatal, bem como seu enraizamento na contradição do interesse  
particular com o interesse coletivo. À medida que avança em seus estudos de economia  
política, Marx aprofunda sua crítica da política, identificando a gênese do estado no  
desenvolvimento da propriedade privada, desde suas formas mais embrionárias –  
como entre os povos antigos, nos quais, conforme os termos d'A ideologia alemã, a  
propriedade tribal aparece como propriedade do estado” –, até a forma moderna,  
acabada, perfeita, definida pela emancipação da propriedade privada frente ao estado.  
Para Marx, é precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse  
coletivo que o interesse coletivo assume, como estado, uma forma autônoma, separada  
dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade  
ilusória(MARX; ENGELS, 2009, p. 37). Em suma, a forma moderna do poder estatal  
revela-o como produto de formas limitadas de intercâmbio, nas quais o interesse  
coletivo, constituído real e efetivamente pelo necessário caráter social da interatividade  
humana, assume a forma de uma comunidade ilusória(MUSETTI, 2022, p. 158), cuja  
função é garantir e manter a separação que a sustenta. Com efeito, para Marx, o estado  
e a política, em qualquer uma de suas formas, correspondem à comunidade aparente,  
em que se associaram até agora os indivíduose que sempre se autonomizou em  
relação a eles, jamais deixando de ser uma comunidade totalmente ilusória(MARX;  
ENGELS, 2009, p. 64) produzida pela incapacidade de se constituir uma mediação  
adequada entre interesse particular e interesse coletivo. Nesse sentido, a assertiva  
marxiana, segundo a qual todas as lutas no interior do estado (...) não são mais do  
que formas ilusórias em geral, a forma ilusória da comunidade nas quais são  
travadas as lutas reais entre as diferentes classes(MARX; ENGELS, 2009, p. 37).  
Considerada a determinação negativa do estado e da política, apreendidos  
como poderes estranhados produzidos pelas formas sociais marcadas pela cisão (mais  
ou menos embrionária) entre indivíduo e comunidade, bem como pelos conflitos que  
decorrem de tal separação, frise-se que, para Marx, a differentia specifica do estado  
moderno, na condição de forma maturada do poder estatal enquanto tal, é  
determinada pela particularidade da sociedade civil-burguesa como ponto de  
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Felipe Ramos Musetti  
culminação da alienação do trabalho, com a consequente emancipação da propriedade  
privada frente à comunidade. Investigando a gênese da sociedade burguesa, Marx  
observa como o processo de autoprodução humana, alavancado pela atividade  
sensível, se desenvolve, contraditoriamente, através de relações de alienação. Para a  
crítica marxiana, a análise da anatomia da sociedade civil-burguesa revela o mundo  
sensível tal como ele existe até agoracomo produção, como atividade humana,  
contínuo trabalhar e criar sensíveis(MARX; ENGELS, 2009, p. 31). Contudo, se a  
história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma  
delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a elas transmitidas  
pelas gerações anteriores, vale realçar, seguindo a argumentação marxiana, que, no  
decorrer do desenvolvimento histórico, ocorre uma inevitável autonomização das  
relações sociais(MARX; ENGELS, 2009, p. 64), à medida que, frente às limitações  
próprias às formações sociais que antecedem a grande indústria, as forças produtivas  
apenas podem se desenvolver por meio da divisão do trabalho, entendida como  
divisão involuntária das atividades, de tal modo que a própria ação do homem torna-  
se um poder que lhe é estranho e que a ele é contraposto, um poder que subjuga o  
homem em vez de por este ser dominado(MARX; ENGELS, 2009, p. 37). A sociedade  
burguesa se apresenta como ponto de culminação do processo de separação entre o  
ser humano autoprodutor e seus poderes sociais: em nenhum período anterior as  
forças produtivas assumiram essa forma indiferente para o intercâmbio dos indivíduos  
na qualidade de indivíduos, porque seu próprio intercâmbio era ainda limitado(MARX;  
ENGELS, 2009, p. 72).  
Destarte, a diferença específica da sociedade burguesa consiste, justamente,  
na sua condição de ponto de chegada do processo no qual, por meio da atividade  
sensível, os homens produzem os seus meios de vida e desenvolvem suas capacidades,  
todavia de modo contraditório, por meio do aprofundamento da alienação do trabalho.  
Ao completar a separação entre indivíduo e comunidade com a consequente  
agudização da contradição entre interesses privados e interesse geral , a sociedade  
burguesa produz o estado como forma autônoma, separada dos reais interesses  
singulares e gerais(MARX; ENGELS, 2009, p. 37), que funciona como meio pelo qual  
a classe burguesa atribui a seu interesse médio uma forma geral(MARX; ENGELS,  
2009, p. 75). Desse modo, sem desconsiderar a autonomia do estado frente à  
sociedade civil-burguesa sua condição de poder estranhado e incontrolável, acima  
das classes e dos indivíduos , Marx não deixa de salientar que ele não é nada mais  
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A crítica marxiana da política  
do que a forma de organização que os burgueses se dão necessariamente, tanto no  
exterior como no interior, para a garantia recíproca de sua propriedade e de seus  
interesses(MARX; ENGELS, 2009, p. 75). A especificidade do estado moderno reside  
na dupla função que o poder estatal desempenha na sociabilidade estruturada pela  
grande indústria: de um lado, comunidade universal abstrata, autônoma frente à  
sociedade civil-burguesa, a qual imprime forma política ao conjunto de instituições  
coletivas e acolhe os indivíduos pela figura caricata do citoyen; de outro lado, poder  
impessoal que funciona para preservar o interesse médio da classe burguesa contra  
perturbações que ameaçam a propriedade privada, sobre a qual se assenta.  
A crítica da política na obra madura de Marx  
Como se vê, a crítica econômica de Marx, à medida que se desenvolve ao  
longo do período formativo de seu pensamento11, aprofunda e desdobra a crítica da  
política, sobretudo quando considerada a relação entre estado moderno como forma  
acabada do poder estatal em geral, de um lado, e a especificidade da sociedade  
burguesa como última forma antagônica da produção, de outro. Mesmo considerando  
a imaturidade da crítica econômica de Marx no período entre 1843 e 1847, é  
imperioso constatar a complementariedade entre as críticas econômica e política,  
sobretudo no que se refere ao enraizamento do estado na propriedade privada,  
enfatizado em A ideologia alemã12. Para a crítica marxiana, estado moderno enquanto  
forma acabada do poder estatal enquanto tal e capital formam um círculo vicioso de  
dimensões complementares que se retroalimentam, não sendo possível a superação  
de um sem a dissolução do outro.  
Entretanto, se, no período de formação do pensamento marxiano, o  
11  
Seguindo trilha aberta pelas pesquisas de Chasin, considera-se que o processo de formação do  
pensamento marxiano compreende o período de 1843-1847 (cf. CHASIN, 2009; MUSETTI, 2022). Tal  
periodização se fundamenta nos relatos do próprio Marx, que, no “Prefácio” de 1859, relata que “os  
pontos decisivos” de sua “maneira de ver foram, pela primeira vez, expostos cientificamente, ainda que  
sob forma de polêmica”, no trabalho “aparecido em 1847, e dirigido contra Proudhon: Miséria da  
filosofia” (MARX, 2008, p. 49).  
12  
Convém insistir que tal conexão se enraíza na virada ontológica de 1843, quando Marx, iniciando a  
formulação de seu pensamento próprio, identifica a sociedade civil como complexo real, existente por  
si, no interior do qual são produzidas as formas de consciência. Chasin ressalta “a feição precisa do  
passo inicial da caminhada” iniciada em 1843: “em contraste radical com a concepção do estado como  
demiurgo racional da sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que transpassa a tese doutoral e  
os artigos da Gazeta Renana, irrompe e domina agora, para não mais ceder lugar, a ‘sociedade civil’ –  
o campo de interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do metabolismo social como  
demiurgo real que alinha o estado e as relações jurídicas. Inverte-se, portanto, a relação determinativa:  
os complexos reais envolvidos aparecem diametralmente reposicionados um em face do outro” (CHASIN,  
2009, pp. 57-58).  
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enquadramento da questão já está definido em seus lineamentos mais gerais, observa-  
se, nos Grundrisse, como as conexões entre crítica da política e a crítica da economia  
política são desdobradas e aprofundadas, à medida que o autor desenvolve suas  
reflexões em torno da forma valor. Mais especificamente, importa atentar para o  
aprimoramento da reflexão marxiana em torno da especificidade da conexão social  
estabelecida pela sociedade burguesa distinta de todas as formações sociais  
anteriores e suas repercussões para a configuração da especificidade do estado  
moderno entendido como forma acabada do poder estatal enquanto tal , assentado  
na máxima separação entre indivíduo e comunidade. Observa-se como a crítica  
econômica madura de Marx confirma a principal conclusão atingida no período  
formativo: estado e política, em qualquer uma de suas formas históricas, constituem-  
se como predicados negativos do ser humano autoprodutor, produzidos no interior  
de formações sociais limitadas, marcadas pela clivagem entre interesses particulares e  
interesse geral.  
Logo no início da conhecida Introdução de 1857, Marx critica a economia  
política clássica em seu procedimento de tomar como ponto de partida o indivíduo  
isolado as robinsonadas do século XVIII, rejeitadas por generalizar as  
determinações específicas da sociedade burguesa para a totalidade da história  
humana, de modo a apreender a individualidade moderna não como um resultado  
histórico, mas como ponto de partida da história(MARX, 2011b, p. 40). Por  
conseguinte, a economia política perde a diferença essencial da sociedade burguesa  
como primeira forma social na qual o indivíduo aparece desprendido dos laços  
naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um  
conglomerado humano determinado e limitado(MARX, 2011b, p. 39). De acordo com  
Marx, quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o  
indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um todo maior”  
(MARX, 2011b, p. 40). Ainda segundo o filósofo alemão, somente no século XVIII,  
com a ‘sociedade burguesa’, as diversas formas de conexão social confrontam os  
indivíduos como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior”  
(MARX, 2011b, p. 40). A formação do indivíduo moderno associa-se, desse modo, à  
diferença específica da sociabilidade do capital frente a todas as formas anteriores,  
pois a época que produz esse ponto de vista, o ponto de vista do indivíduo isolado,  
é justamente a época das relações sociais (universais desde esse ponto de vista) mais  
desenvolvidas até o presente(MARX, 2011b, p. 40).  
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A crítica marxiana da política  
Anote-se, a crítica marxiana da economia política, tal como exposta nos  
Grundrisse, atenta para a especificidade da relação entre indivíduo e comunidade na  
sociedade capitalista, entendida como forma de intercâmbio correspondente às  
relações sociais (universais) mais desenvolvidas. Marx define a diferença específica da  
sociedade burguesa como forma social na qual a produção de todo indivíduo singular  
é dependente da produção de todos os outros; bem como a transformação de seu  
produto em meios de vida para si próprio torna-se dependente do consumo de todos  
os outros(MARX, 2011b, p. 104). Em outras palavras, diferentemente de todas as  
formas sociais que a antecederam, caracterizadas pela predominância de relações de  
dependência pessoalna produção, a sociedade da livre concorrênciaestabelece,  
pela primeira vez na história, a dependência recíprocauniversal entre os indivíduos,  
que se expressa na permanente necessidade da troca e no valor de troca como  
mediador geral(MARX, 2011b, p. 104). Com efeito, de acordo com Marx, a  
dissolução de todos os produtos e atividades em valores de troca pressupõe a  
dissolução de todas as relações fixas (históricas) de dependência pessoal na produção,  
bem como a dependência multilateral dos produtores entre si(MARX, 2011b, p. 104).  
Importa registrar que a especificidade da sociedade burguesa se define pela  
superação de um limite presente em todas as formas sociais precedentes. De acordo  
com Marx, em contraste com a produção capitalista, as formas anteriores pressupõem  
a unidade natural do trabalho com seus pressupostos objetivos, de tal modo que o  
trabalhador se relaciona às condições objetivas de seu trabalho como sua  
propriedade(MARX, 2011b, p. 388). Nas múltiplas formas com as quais se efetivaram  
historicamente, as relações de produção que antecedem o capitalismo se assentam  
sobre duas condições extintas pela sociedade moderna: de um lado, a apropriação  
da condição natural do trabalho, da terra tanto como instrumento original do  
trabalho, laboratório, quanto depósito das matérias-primas não pelo trabalho, mas  
como pressuposto do trabalho, uma vez que a principal condição objetiva do  
trabalho não aparece, ela própria, como produto do trabalho, mas está dada como  
natureza(MARX, 2011b, p. 397); de outro lado, tal unidade natural entre trabalho e  
as condições objetivas de sua realização é imediatamente mediada pela existência  
originada natural e espontaneamente, mais ou menos historicamente desenvolvida e  
modificada, do indivíduo como membro de uma comunidade(MARX, 2011b, p. 397).  
De modo geral, em todas as formas que precederam a capitalista, a propriedade de  
terra e a agricultura constituem a base da ordem econômica e, por conseguinte, (...) a  
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produção de valores de uso é a finalidade econômica. Mais especificamente, o  
objetivo da produção é, em todos os casos, a reprodução do indivíduo nas relações  
determinadas com sua comunidade e nas quais ele constitui a base da comunidade”  
(MARX, 2011b, p. 397). Ainda nos termos de Marx:  
Em todas essas formas, o fundamento do desenvolvimento é a  
reprodução das relações pressupostas do indivíduo singular à sua  
comunidade relações originadas mais ou menos naturalmente, ou  
mesmo historicamente, mas tornadas tradicionais , e uma existência  
objetiva, determinada, predeterminada para o indivíduo, no  
comportamento seja com as condições do trabalho, seja com seus  
companheiros de trabalho, companheiros de tribo etc. ,  
desenvolvimento que, por conseguinte, é por princípio limitado, mas  
que, superado o limite, representa decadência e desaparecimento.  
(MARX, 2011b, p. 399)  
Importa salientar, no que se refere às formações sociais que antecederam a  
produção capitalista, que, se, por um lado, o ser humano” – e não a riqueza – “aparece  
sempre como a finalidade da produção, por estreita que seja sua determinação  
nacional, religiosa ou política, por outro lado, não se pode pensar (...) em um  
desenvolvimento livre e pleno nem do indivíduo nem da sociedade, uma vez que esse  
desenvolvimento está em contradição com a relação original(MARX, 2011b, p. 399).  
A reprodução das formas sociais que antecederam a produção capitalista,  
condicionadas pelo desenvolvimento incipiente das forças produtivas, se voltam para  
a manutenção dos pressupostos limitados sobre os quais se estruturam, dados natural-  
espontaneamente. Nesse preciso sentido, a sociedade burguesa é radicalmente  
distinta. Conforme observa Marx, o capital põe a própria produção de riqueza como  
pressuposto de sua reprodução e, consequentemente, o desenvolvimento universal  
das forças produtivas, a contínua revolução de seus pressupostos existentes(MARX,  
2011b, p. 446). Desse modo, ultrapassa o limite natural-espontâneo que determina  
as formações sociais anteriores, substituindo as relações de dependência pessoal,  
características do período em que a produção humana se desenvolve de maneira  
limitada e em pontos isolados(MARX, 2011b, p. 106), pela universalização de  
relações de dependência coisal”, que definem a forma de sociabilidade na qual a  
conexão socialentre os indivíduos é mediada pelo valor.  
O caráter coisaldas relações de dependência que ultrapassam as relações  
de dependência pessoal associa-se à dimensão contraditória do salto promovido pela  
sociedade burguesa, que, por um lado, estabelece uma conexão universal entre os  
indivíduos, mas, por outro, a troca universal de atividades e produtos, que deveio  
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condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca, aparece para eles  
mesmos como algo estranho, autônomo, como uma coisa(MARX, 2011b, p. 105).  
Mais especificamente, a própria necessidade de primeiro transformar o produto ou a  
atividade dos indivíduos na forma de valor de troca, no dinheiro, e o fato de que só  
nessa forma coisal adquirem e comprovam seu poder social [gesellschaftliche Macht],  
revela que a produção dos indivíduos na sociedade capitalista não é imediatamente  
social, uma vez que não resulta da associação [association] que reparte o trabalho  
entre si” –, mas, ao contrário, indica que os indivíduos estão subsumidos à produção  
social que existe fora deles como uma fatalidade(MARX, 2011b, p. 106). Ademais,  
as relações de dependência coisal instauradas pelo modo de produção capitalista  
pressupõe a plena separação entre indivíduo e comunidade, que se autonomiza no  
dinheiro como produto social. Nos termos de Marx, uma vez que trabalho assalariado,  
por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca  
desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação, tem-se que o dinheiro é, ao  
mesmo tempo, imediatamente a comunidade real, uma vez que é a substância universal  
da existência para todos e o produto coletivo de todos. Porém, a crítica marxiana  
adverte que a comunidade no dinheiro (...) é pura abstração, pura coisa exterior e  
contingente para o singular e, simultaneamente, puro meio de sua satisfação como  
singular isolado, radicalmente distinta da comunidade antiga, a qual pressupõe uma  
relação completamente distinta do indivíduo para si(MARX, 2011b, p. 169).  
No que se refere à conexão socialdos indivíduos, o caráter contraditório do  
salto promovido pela sociedade burguesa reside, nesse sentido, na universalização  
das relações de produção pela plena separação entre trabalho e as condições objetivas  
de sua realização, razão pela qual, no valor de troca, a conexão social entre as pessoas  
é transformada em um comportamento social entre coisas; o poder [Vermögen]  
pessoal, em poder coisificado(MARX, 2011b, p. 105). Com efeito, Marx argumenta  
que a forma coisificada da conexão universal dos indivíduos criada pela sociedade  
burguesa não é uma supressão das 'relações de dependência', dado que são apenas  
a sua resolução em uma forma universal; é, ao contrário, a elaboração do fundamento  
universal das relações pessoais de dependência(MARX, 2011b, p. 111). Em outros  
termos, a universalização da conexão social dos indivíduos é atingida,  
contraditoriamente, pelo processo que produz tal conexão como poder autônomo que  
se contrapõe aos indivíduos, razão pela qual a ultrapassagem dos limites das formas  
anteriores ocorre pela radicalização da dependência pessoalem dependência  
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coisal. Nos termos de Marx, a relação de dependência coisal nada mais é do que as  
relações sociais autônomas contrapostas a indivíduos aparentemente independentes,  
i.e., suas relações de produção recíprocas deles próprios autonomizadas. Como  
resultado, na sociabilidade regida por relações de dependência coisal, tais relações  
aparecem de maneira tal que os indivíduos são agora dominados por abstrações, ao  
passo que antes dependiam uns dos outros (MARX, 2011b, pp. 111-112).  
Na crítica marxiana da economia política, o desenvolvimento do valor como  
poder social autônomo que, embora produzido pelos indivíduos em suas relações  
de dependência multilateral entre si, constitui-se como objetividade fantasmagórica”  
separada dos produtores, a qual passa a reger o processo de produção à revelia de  
suas vontades permanece no centro da argumentação. O processo no qual o valor  
assume uma existência materialseparada associa-se à radicalização do  
estranhamento na sociedade estruturada pela troca generalizada de mercadorias, bem  
como à plena autonomização do poder social frente aos próprios produtores. A  
especificidade definidora da forma mais extrema do estranhamento, à medida que  
radicaliza a autonomização da conexão social entre os indivíduos, edifica, por  
conseguinte, a inversão constitutiva da sociedade capitalista, no interior da qual as  
relações sociais tal como aparecem no plano da superfície como realização livre”  
dos interesses privados são apenas expressões do caráter coisal assumido pelo nexo  
social mediado pelo valor, que oculta seu fundamento na separação entre trabalho e  
condições objetivas de sua realização. Em outras palavras, o caráter contraditório da  
sociedade burguesa se enraíza na estrutura fundamental de seu modo de produzir,  
caracterizado pela máxima oposição entre indivíduo e sociedade, resultante da  
dissolução dos limites naturais-espontâneos das formas anteriores: de um lado, como  
proprietários privados, os indivíduos produzem de modo independente uns dos  
outros, como se fossem completamente indiferentes entre si, mas, de outro lado,  
permanecem conectados pela dependência recíproca e multilateral que se expressa no  
valor de troca, haja vista que apenas o engajamento na troca generalizada permite a  
satisfação mútua das várias necessidades dos produtores independentes. O resultado  
de tal contradição é a autonomização do valor como relação social independente que  
impõe sua lógica às próprias relações que o produzem, o que acarreta na dominação  
dos indivíduos por abstrações, em radical contraste com as formas anteriores. Em  
suma, na sociedade capitalista, a participação dos indivíduos na produção social não  
se efetiva como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação a relações que  
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existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos  
indiferentes entre si(MARX, 2011b, p. 105).  
Os aportes marxianos sobre a marca distintiva do estado e da política  
modernos se inserem, justamente, na análise da diferença específica da conexão social  
estabelecida pela sociedade capitalista frente às formações sociais anteriores, bem  
como suas repercussões para a formação do valor como poder autonomizado que  
submete os indivíduos a sua própria lógica. De acordo com a argumentação de Marx,  
a determinação da política moderna como comunidade universal abstrata plenamente  
apartada da sociedade civil-burguesa se explica pela necessária equalização formal  
dos indivíduos enquanto trocadores, de modo a produzir uma conexão social  
radicalmente distinta das precedentes. O núcleo da questão encontra-se, uma vez mais,  
no caráter universal da conexão entre os indivíduos produzida pela mediação do valor,  
que, todavia, constitui tal conexão como nexos exteriores aos mesmos indivíduos.  
Insiste-se, as relações de dependência coisal instauradas pelo capital transforma  
radicalmente a relação do indivíduo com a comunidade, a qual deixa de ser algo local  
e determinado que se impõe como determinação absoluta das formas de produção  
e apropriação , para se constituir como esfera que abrange a totalidade dos  
indivíduos, ainda que na forma de uma conexão completamente exterior, tornada  
simples meio e não mais o fim da atividade produtiva. Notando como o processo de  
equalização característico da sociedade capitalista se conecta com o processo de  
emancipação política, Marx aduz, como se viu, que somente no século XVIII, com a  
‘sociedade burguesa’, as diversas formas de conexão social confrontam os indivíduos  
como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior(MARX,  
2011b, p. 40).  
Convém observar mais detidamente a argumentação marxiana. De acordo com  
o autor, como a mercadoria ou o trabalho estão determinados tão somente como  
valor de troca e a relação pela qual as diferentes mercadorias se relacionam entre si  
[se apresenta] como troca desses valores de troca, a sociabilidade capitalista  
pressupõe a equiparaçãodos indivíduos, os quais se determinam socialmente  
simplesmente como trocadores. Para Marx, importa destacar que a determinação  
formal dos indivíduos como trocadores, a qual exclui toda e qualquer diferença  
concreta existente entre eles, decorre da própria determinação econômicaque define  
o modo de produção capitalista e, por conseguinte, se constitui a despeito das  
vontades individuais, pelo tipo específico de interatividade prática instaurado pelo  
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nova fase  
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movimento do capital, responsável por conferir determinada função social aos sujeitos  
reais atuantes no interior de determinada estrutura sociometabólica. Desvendando as  
relações práticas que dão sustentação às categorias fundamentais da política moderna,  
Marx observa como, na sociedade capitalista, cada indivíduo tem a mesma relação  
social com o outro que o outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por  
isso, a relação da igualdade. É impossível detectar qualquer diferença ou mesmo  
antagonismo entre eles, nem sequer uma dissimilaridade(MARX, 2011b, pp. 184-  
185).  
Seguindo nas considerações de Marx, no que diz respeito ao conteúdo  
determinado exterior ao ato da troca” – as particularidades individuaisde cada  
trocador, a particularidade natural da mercadoria que é trocada, a necessidade  
natural particular dos trocadoresetc. , convém sublinhar que ele se encontra fora  
da determinação econômica, de tal modo que, longe de ameaçar a igualdade social  
dos indivíduos, faz de sua diferença natural o fundamento de sua igualdade social”  
(MARX, 2011b, pp. 185-186). Para a crítica marxiana, importa mostrar que o modo  
de produção capitalista impõe aos indivíduos um tipo específico de interatividade  
prática, o qual não anula ou suprime as determinações concretas constituintes da  
particularidade de cada indivíduo ou mercadoria, mas subordina-as à relação de troca.  
Trata-se de considerar a forma social dos sujeitos e produtos postos em relação por  
força da estrutura econômica na qual estão inseridos, no interior da qual a diversidade  
da necessidade de cada indivíduo e de sua produção fornece unicamente a  
oportunidade para a troca e para a sua igualação social na mesma. Com efeito, a  
diversidade natural é o pressuposto de sua igualdade social no ato da troca e dessa  
conexão em que se relacionam como agentes produtivos(MARX, 2011b, p. 186).  
Ademais, considerando que essa diversidade natural dos indivíduos e das próprias  
mercadoriasfornece unicamente o motivo para a integração desses indivíduos, para  
a sua relação social como trocadores, relação em que são pressupostos e se afirmam  
como iguais, à determinação da igualdade soma-se a da liberdade(MARX, 2011b,  
pp. 186-187).  
Para os propósitos do presente artigo, importante demarcar como a análise  
marxiana da igualdade e da liberdade registrada nos Grundrisse sofistica a  
argumentação desenvolvida em Sobre a questão judaica, segundo a qual o estado  
político, produzido pelo completamento da separação entre vida pública e vida  
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A crítica marxiana da política  
privada, acolhe o indivíduo na sua caricatura abstrata do citoyen13. Atestando  
aprimoramentos importantes oriundos do aprofundamento da crítica econômica  
marxiana, o texto dos Grundrisse revela que a determinação formal da cidadania, que  
iguala na comunidade política individualidades muito diferentes entre si, resulta da  
equiparação necessária à troca generalizada de mercadorias como meio incontornável  
pelo qual o indivíduo participa do produto social. Com efeito, registre-se como a  
análise marxiana da forma valor ilumina como, no modo de produção capitalista, as  
individualidades participam da comunidade como trocadores, sendo as demais  
determinações concretas da vida privada irrelevantes para a vida pública. Na condição  
de encarnação da forma comunitária exigida pelo capital, o estado moderno  
reconhece apenas as determinações do indivíduo correspondentes à sua função social  
específica na sociedade capitalista, razão pela qual reproduz, em âmbito jurídico-  
político,(MUSETTI, 2022, p. 309) a igualdade e a liberdade formais exigida pela troca  
generalizada de valores. Fixe-se, pois, que a análise marxiana da relação de  
complementariedade entre, de um lado, a estrutura fundamental do modo de produção  
capitalista o movimento de autovalorização do valor, enraizado na troca entre capital  
e trabalho e, de outro, a equiparação formal dos indivíduos como trocadores,  
complementa e desenvolve a crítica à figura do cidadão, de modo a precisar o  
conteúdo social subjacente às categorias da politicidade moderna(MUSETTI, 2022,  
p. 310). Para Marx, igualdade e liberdade (...) não apenas são respeitadas na troca  
baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva real,  
de toda igualdade e liberdade(MARX, 2011b, p. 188).  
O ponto a ser sublinhado é que o próprio movimento que estrutura o modo  
de produção do capital, em sua imanência, que enseja a necessidade do estado  
moderno em sua diferença específica frente as formas estatais anteriores. A igualdade  
e a liberdade políticas são constituídas como exigência da autovalorização do valor, a  
qual, contraditoriamente, efetiva a desigualdade e a ausência de liberdade das  
individualidades cindidas em diferentes classes sociais. Destarte, o modo de produção  
13  
Em Sobre a questão judaica, Marx desenvolve profícua análise sobre os direitos do homem  
proclamados pela revolução política, observando que a aplicação prática do direito humano à liberdade  
equivale ao direito humano à propriedade privada, assim como a igualdade nada mais é que a  
igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada homem é visto uniformemente como mônada que  
repousa em si mesma. O filósofo alemão salienta que a cidadania, a comunidade política, é rebaixada  
pelos emancipadores à condição de mero meio para a conservação desses assim chamados direitos  
humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como serviçal do homme egoísta, do homem como  
bourgeois(MARX, 2010, p. 49-50).  
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que tem o valor como mediador geralproduz uma forma de sociabilidade na qual o  
interesse coletivo aparece como motivo do ato [de troca] como um todo, (...) mas não  
é motivo enquanto tal, ao contrário, atua, por assim dizer, por detrás dos interesses  
particulares refletidos em si mesmos, do interesse singular contraposto ao do outro”  
(MARX, 2011b, p. 187). Insiste-se, a troca generalizada de mercadorias pressupõe a  
plena separação entre interesses particulares e interesse comunitário, a qual reduz o  
segundo a mero meio para a efetivação do primeiro. Nos termos de Marx, no sistema  
do capital, o interesse universal é justamente a universalidade dos interesses  
egoístas, pois os trocadores agem reconhecendo que o interesse comum consiste  
precisamente na troca do interesse egoísta em sua bilateralidade, multilateralidade e  
autonomização(MARX, 2011b, p. 188). Desse modo, nota-se como são as relações  
nucleares que estruturam a sociabilidade do capital que exigem a edificação do poder  
estatal e da comunidade universal abstrata correspondente, como complemento  
necessário que viabiliza a troca generalizada de mercadorias. A crítica marxiana não  
deixa de salientar, todavia, que o círculo vicioso que amarra estado moderno e capital  
como dimensões complementares entre si não está livre da tensão resultante do  
chancelamento formal da liberdade e igualdade políticas, de um lado, e a efetivação  
da desigualdade e ausência de liberdade produzidas, na prática, pelo movimento de  
autovalorização do valor, de outro.  
Registre-se, o desenvolvimento da crítica econômica madura de Marx  
aprofunda sua crítica da política, mantendo inalterado seus principais alicerces. O  
centro nervoso da questão permanece sendo a relação entre, de um lado, o  
desenvolvimento efetivo do modo de produção capitalista como ponto de culminação  
do processo contraditório pelo qual a autoprodução humana se desenvolve pelo  
aprofundamento de relações alienadas e, de outro lado, a consolidação da forma  
maturada do estado e da política, os quais correspondem ao grau máximo da alienação  
entre indivíduo e comunidade. Em tal alienação radical, estruturante da sociedade  
burguesa, repousa o caráter contraditório da emancipação política, que, por um lado,  
é considerada um progresso (à medida que supera os limites naturais e espontâneos  
das formas anteriores e põe a relação do indivíduo com a comunidade em termos  
puramente sociais, ainda que de forma invertida), mas, por outro lado, é reconhecida  
como limitada, pois enraizada na radicalização do estranhamento, na plena cisão entre  
vida pública e vida privada, a qual enseja a autonomização da política como  
universalidade abstrata contraposta aos indivíduos. Não por acaso, Marx, em Sobre a  
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questão judaica, afirmou que a emancipação política não chega a ser a forma definitiva  
da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação  
humana dentro da ordem mundial vigente até aqui(MARX, 2010, p. 41).  
O ponto a ser salientado, nesse passo, é que a contradição inerente à política  
moderna corresponde à contraditoriedade do salto promovido pela sociedade  
burguesa no processo da autoprodução humana. Como ponto de culminação de um  
processo de separação entre trabalho e condições objetivas de sua realização, a  
sociedade burguesa se constitui como ponto de transição no itinerário da  
autoprodução humana: de um lado, ponto de chegada de um longo processo de  
dissolução dos vínculos naturais-espontâneos que conectam, imediatamente, o  
trabalho à terra; de outro lado, ponto de partida para um metabolismo social universal  
estruturado pela associação livre dos produtores, que supera o limite socialmente  
posto pelo trabalho estranhado e promove a recuperação da universalidade das forças  
produtivas desenvolvidas. Atentando para as possibilidades objetivas criadas no seio  
do modo de produção capitalista, Marx assinala a tendência universal do capital que  
o diferencia de todos os estágios de produção precedentes. Segundo ele:  
Embora limitado por sua própria natureza, o capital se empenha para  
[o] desenvolvimento universal das forças produtivas e, desse modo,  
devém o pressuposto de um novo modo de produção, fundado não  
no desenvolvimento das forças produtivas para reproduzir e, no  
máximo, ampliar um estado determinado, mas onde o próprio  
desenvolvimento das forças produtivas livre, desobstruído,  
progressivo e universal constitui o pressuposto da sociedade e, por  
isso, de sua reprodução; onde o único pressuposto é a superação do  
ponto de partida. Tal tendência que o capital possui, mas que ao  
mesmo tempo o contradiz como modo de produção limitado e, por  
isso, o impele à sua própria dissolução diferencia o capital de todos  
os modos de produção precedentes e, ao mesmo tempo, contém em  
si o fato de que o capital é posto como simples ponto de transição.  
(MARX, 2011b, pp. 445-446, grifos meus)  
Vale insistir nesse ponto, decisivo para a crítica ontológica marxiana: ao  
completar a separação entre trabalho e seus pressupostos objetivos, a sociedade  
burguesa se edifica como a forma mais extrema do estranhamento, assentada na  
relação do capital com o trabalho assalariado. A radicalidade da separação  
constitutiva da sociabilidade do capital permite reconhecê-la como um ponto de  
passagem necessário, à medida que encerra em si, ainda de forma invertida, de  
cabeça para baixo, a dissolução de todos os pressupostos limitados da produção, de  
tal modo que a inversão não altera o fato de que o capital cria e produz os  
imprescindíveis pressupostos da produção e, em consequência, as condições materiais  
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plenas para o desenvolvimento total, universal, das forças produtivas do indivíduo”  
(MARX, 2011b, p. 425). Insiste-se, à diferença de todas as relações de produção  
precedentes, no capital, o seu próprio pressuposto o valor é posto como produto,  
e não como pressuposto superior, pairando sobre a produção(MARX, 2011b, p. 446).  
Com efeito, o limite do capitalnão é natural-espontâneo (embora apareça como  
natural-espontâneo no contexto de autonomização do valor), mas social, enraizado no  
caráter contraditório das relações de produção, pelo qual o desenvolvimento e o  
aprimoramento das forças produtivas, da riqueza universal etc., do conhecimento etc.,  
aparece de tal forma que o próprio indivíduo que trabalha se aliena [entäussert]e se  
relaciona às condições elaboradas a partir dele não como suas próprias condições,  
mas como condições de uma riqueza alheia e de sua própria pobreza(MARX, 2011b,  
p. 446).  
No que se refere à crítica da política, observe-se como a forma maturada do  
estado corresponde à especificidade da dominação impessoal instaurada pelas  
relações de dependência coisal características do modo de produção do capital, na  
exata medida em que se assentam no movimento autônomo do valor, o qual pressupõe  
a completa separação entre indivíduo e comunidade. A relação nuclear de tal  
dominação impessoal é, justamente, a troca entre capital e trabalho, a qual, no plano  
político, se apresenta como troca de equivalentes efetivada por cidadãos formalmente  
livres e iguais, de modo a esconder o trabalho excedente não pago pelo capital14. De  
modo a sintetizar os principais movimentos da argumentação marxiana sobre o estado  
e a política moderna, recorda-se que  
a análise madura da forma valor, somada aos aportes registrados pelo  
jovem Marx, fornece as categorias que conformam a ossatura do  
estado moderno. Como encarnação da comunidade abstrata  
pressuposta no processo de autovalorização do capital, o estado  
moderno expressa, no plano político, o domínio impessoal do capital  
sobre o trabalho, apresentando-o na sua forma fetichizada, como  
troca livre entre cidadãos iguais. Sua principal função consiste,  
justamente, em fornecer a estrutura jurídico-política necessária para  
garantir a troca entre trabalho e capital, cuja lógica própria exige a  
igualação dos sujeitos da produção como trocadores de mercadorias  
indiferentes entre si, determinação formal que, politicamente, se  
14 Em O capital, Marx ressalta “a importância decisiva da transformação do valor e do preço da força de  
trabalho na forma-salário ou em valor e preço do próprio trabalho”. Segundo o filósofo alemão, “sobre  
essa forma de manifestação, que torna invisível a relação efetiva e mostra precisamente o oposto dessa  
relação, repousam todas as noções jurídicas, tanto do trabalhador como do capitalista, todas as  
mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices  
apologéticas da economia vulgar” (MARX, 2013, p. 610).  
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expressa na equiparação entre proprietários e não proprietários das  
condições objetivas do trabalho os meios de produção na figura  
do cidadão. Nesse sentido, o estado moderno difere radicalmente das  
variadas formas estatais que antecedem a produção capitalista, nas  
quais as relações de dependência pessoal instituem formas de  
dominação direta, que, por sua vez, repercutem no caráter  
explicitamente coercitivo do estado frente aos produtores diretos.  
Mais precisamente, à medida que corresponde à última forma  
antagônica da produção, o estado moderno constitui a forma  
completa e acabada do poder estatal, que, como resultado da  
completa dissolução dos vínculos naturais-espontâneos que uniam  
imediatamente indivíduo e comunidade, se separa da sociedade civil  
como comunidade abstrata universal (MUSETTI, 2022, p. 314).  
Ademais, anota-se que a radicalidade da alienação do trabalho na sua relação  
com o capital, ao mesmo tempo em que determina o limite do modo de produção  
capitalista na consequente autonomização dos poderes sociais, faz aparecer em sua  
pureza, despida das determinações naturais-espontâneas, a relação do trabalho, da  
atividade produtivaem geral, com as suas próprias condições e com seu próprio  
produto” (MARX, 2011b, p. 425). Nesse sentido, o próprio modo de produção do  
capital fornece, no plano da objetividade, o arsenal categorial para se pensar a  
multiplicidade as formas anteriores como modos específicos da relação entre trabalho  
e suas condições objetivas de realização, bem como explicita a relação estrutural de  
complementariedade entre a forma estatal e a propriedade privada. Em outras  
palavras, ao pôr, historicamente, a relação do trabalho com suas condições objetivas  
de realização em termos puramente sociais, a maturação do modo de produção  
capitalista abre caminho para a investigação que reconhece na relação direta entre os  
proprietários das condições de produção e os produtores diretoso segredo mais  
profundo, a base oculta de todo o arcabouço social(MARX, 2017, p. 852), revelando,  
por conseguinte, que estado e política não se explicam por si mesmos, uma vez que  
são produzidos em resposta à necessidades específicas originadas nas relações de  
produção. Desse modo, assim como a sociedade burguesa, na condição de última  
forma antagônica da produção (que explicita, consequentemente, a relação da  
atividade produtiva em geral com seu meio), fornece uma chave para a compreensão  
das formações sociais anteriores15, o estado moderno, como forma acabada do poder  
15  
Em passagem célebre dos Grundrisse, Marx argumenta que a sociedade burguesa é a mais  
desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que  
expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a  
organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos  
escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não  
superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. A anatomia  
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estatal, fornece uma chave para a compreensão das formas imperfeitas anteriores,  
revelando, ainda, que estado e política, em qualquer uma de suas formas históricas,  
são produtos alienados de formas de sociabilidade limitadas, nas quais impera a  
contradição entre interesses particulares e interesse comum.  
Em seção dedicada às formas que antecederam a produção capitalista, a  
crítica marxiana apresenta exemplo profícuo do modo pelo qual a anatomia da  
sociedade civil-burguesa, na condição de forma mais desenvolvida da produção,  
fornece uma chave para a compreensão das formas anteriores, apreendidas como  
momentos específicos do amplo e contraditório processo da autoprodução humana.  
Reitera-se, a crítica marxiana toma como ponto de partida a sociedade burguesa  
desenvolvida e, através da cooperação entre a análise das categorias que conformam  
a estrutura do modo de produção do capital e a análise da gênese histórica da  
separação entre indivíduo e comunidade (pressuposta no movimento de  
autovalorização do valor), distingue os elementos que definem a particularidade  
concreta de cada forma social examinada das determinações comuns às múltiplas  
formas de apropriação social que se desenvolvem no processo da autoprodução  
humana. Marx jamais deixa de considerar que o modo de produção da vida material  
condiciona o processo de vida social, política e intelectual(MARX, 2008, p. 47), de  
modo que, conforme observação registrada nos Grundrisse, em todas as formas de  
sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que  
estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas  
relações(MARX, 2011b, p. 59). O filósofo alemão adverte, sem embargo, que a  
unidade do ser humano vivo e ativo com as condições naturais, inorgânicas, do seu  
metabolismo com a natureza e, em consequência, a sua apropriação da naturezanão  
é resultado de um processo histórico, de modo que o que carece de explicação é,  
justamente, a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana e  
essa existência ativa, uma separação que só está posta por completo na relação entre  
trabalho assalariado e capital(MARX, 2011b, p. 401).  
Ao iniciar sua incursão sobre as formas que precederam a produção  
do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores  
nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é  
conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Mas de  
modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade  
burguesa em todas as formas de sociedade(MARX, 2011b, p. 58). Para uma explicação mais detalhada  
da argumentação marxiana nesse excerto, cf. Musetti (2022, p. 206).  
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capitalista, Marx insiste que a especificidade da sociabilidade do capital se define na  
exata medida em que supera limite que, em maior ou menor grau, se faz presente em  
todas as formações sociais anteriores. Tal limite, vale reiterar, se constitui pela unidade  
imediata do trabalho com suas condições objetivas, bem como do indivíduo com a  
comunidade. Para o tema do presente artigo, importa salientar que, ao investigar a  
gênese da separação constitutiva do mundo burguês entre trabalho e condições  
objetivas de sua realização , a crítica marxiana mostra que o surgimento do estado  
corresponde à passagem da comunidade natural correspondente às primeiras formas  
da comunidade, nas quais não há qualquer perturbação na unidade imediata entre  
trabalho e terra para uma segunda forma de propriedade, na qual a união imediata  
entre indivíduo e comunidade é reposta de modo qualitativamente distinto16.  
Diante de uma variedade múltipla de formações sociais que precederam a  
produção capitalista, Marx procura agrupá-las, em termos bastante gerais, em três  
tipos diferentes de propriedade: a primeira forma da comunidade natural, a segunda  
forma de propriedade correspondente à Antiguidade clássica e a terceira forma  
correspondente à propriedade germânica. De modo a salientar apenas o essencial para  
a argumentação deste artigo, registre-se que a comunidade natural, apreendida como  
forma originária do metabolismo entre homem e natureza à medida que se estrutura  
pela ausência de qualquer cisão, socialmente constituída, na relação entre indivíduo e  
comunidade , prescinde do estado e da política. Conforme salienta Marx, o ser  
humano só se individualiza pelo processo histórico. Ele aparece originalmente como  
um ser genérico, ser tribal, animal gregário ainda que de forma alguma como um  
ζῷον πολιτικόν em sentido político(MARX, 2011b, p. 407). Ainda de acordo com o  
filósofo alemão, no âmbito da comunidade natural, a propriedade significa (...)  
pertencer a uma tribo (comunidade) (...) e, por mediação do comportamento dessa  
comunidade em relação ao território, à terra como seu corpo inorgânico(MARX,  
2011b, p. 403). A ausência de qualquer separação entre interesses particulares e  
interesses comunitários torna desnecessária a função do ager publicus, produzida no  
contexto do desenvolvimento histórico posterior.  
Sem desconsiderar as variadas e muito diversas formas pelas quais a  
16 Para uma análise mais detalhada da incursão marxiana sobre as formas que antecederam a produção  
capitalista, bem como suas repercussões para a crítica da política, cf. Musetti (2022, pp. 278-325).  
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comunidade natural pode se estruturar17, importa anotar que, para Marx, mesmo a  
forma mais elementar e inicial da propriedade que, originalmente nada mais significa  
que o comportamento do ser humanos em relação às suas condições naturais de  
produção como pertencentes a ele, como suas, como condições pressupostas com a  
sua própria existência(MARX, 2011b, p. 403) pressupõe uma relação de  
apropriação ativa com as condições dadas, a qual, por conseguinte, impulsiona para a  
alteração das condições originárias (MARX, 2011b, p. 404). Sublinhando que qualquer  
forma de sociabilidade pressupõe uma configuração específica das categorias da  
produção humana, Marx observa que mesmo onde só há o que achar e descobrir, isto  
logo exige esforço, trabalho como na caça, na pesca, no pastoreio e produção (i.e.,  
desenvolvimento) de certas capacidades do lado do sujeito” (MARX, 2011b, p. 404),  
de tal modo que, além de produzir o necessário para a reprodução e reposição dos  
pressupostos originários da comunidade, também produzem, contraditoriamente,  
novas necessidades que remetem para além da comunidade natural. Com efeito:  
uma vez que a unidade entre a forma do sistema comunitário e a  
propriedade sobre a natureza a ele relacionadatem, como se viu,  
sua realidade viva em um modo de produção determinado(MARX,  
2011b, p. 406), ainda que, no âmbito da comunidade natural, a  
apropriação comunitária seja primordialmente voltada para a  
reposição dos pressupostos dados naturalmente, é a própria  
produção social que impulsiona as comunidades para além dos seus  
limites originais, criando redes mais complexas de relações de  
produção que, ao mesmo tempo em que desenvolvem forças  
produtivas, dissolvem os liames naturais que unem indivíduo à terra e  
às condições de trabalho (MUSETTI, 2022, p. 287).  
O ponto a ser registrado, nesse passo, é que já no interior do  
desenvolvimento processual da primeira forma de propriedade, surge in statu nascendi  
uma divisão do trabalho, que resulta em formas embrionárias da separação dos  
indivíduos frente à comunidade(MUSETTI, 2022, p. 286). Tal processo impulsiona o  
metabolismo social e cria as condições para a segunda forma da propriedade  
correspondente à Antiguidade clássica, que difere da comunidade natural à medida  
que se constitui como produto de uma vida histórica mais movimentada[, das]  
vicissitudes e da modificação das tribos primitivas(MARX, 2011b, p. 390). Se a  
17  
A leitura atenda dos Grundrisse revela que Marx jamais perde de vista os múltiplos modos de  
complexificação da comunidade natural em diferentes povos, de modo que seria grave equívoco  
desconsiderar o elevado nível de abstração na reflexão marxiana sobre a primeira forma de  
propriedade. Grife-se que são os elementos comuns de diversos modos de apropriação distintos entre  
si que permitem agrupá-los como pertencentes à comunidade natural (cf. MUSETTI, 2022, pp. 281-283)  
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passagem da primeira para a segunda forma de propriedade não supera a unidade  
natural-espontânea entre indivíduo e comunidade e, por conseguinte, também tem  
a comunidade como primeiro pressupostoda produção , tal unidade é reposta de  
modo qualitativamente distinto, pois a comunidade, embora permaneça como  
pressuposto, não se constitui mais como substância da qual os indivíduos são simples  
acidentes ou da qual eles constituem componente puramente naturais(MARX, 2011b,  
p. 390). Em contraste com a comunidade natural, a segunda forma não presume a  
terra como base, mas a cidade como sede e já constituída das pessoas do campo. (...)  
O campo aparece como território da cidade; e não o povoado, como simples apêndice  
do campo(MARX, 2011b, p. 390). Com efeito, a Antiguidade clássica corresponde a  
um modo de produção mais complexo, que se assenta sobre uma estrutura social na  
qual os pressupostos naturais originários se embricam com pressupostos criados pelo  
próprio trabalho. Como consequência, produz-se mediações sociais no  
desenvolvimento contraditório da relação entre indivíduo e comunidade.  
O marco distintivo da segunda forma de propriedade, segundo Marx, consiste  
no desenvolvimento da dimensão privada do trabalho e da apropriação, de tal modo  
que a valorização da propriedade do indivíduo singularpassa a depender menos do  
trabalho comum, quebrando o caráter puramente natural da tribo. Com efeito, o  
deslocamento da sede natural da comunidade na tribo para o solo estranhoda  
cidade pressupõe condições de trabalho essencialmente novas, bem como maior  
desenvolvimento da energia do indivíduo singular, de tal modo que o seu caráter  
comunitárioaparece como unidade negativa voltada para o exterior e tem de  
aparecer desse modo , tanto mais estão dadas as condições para que o indivíduo  
singular devenha proprietário privado de terras do lote particular, cujo cultivo cabe  
a ele e sua família(MARX, 2011b, p. 391). Como se observa, Marx procura descrever  
a contraditoriedade do processo no qual o desenvolvimento das capacidades humanas  
de apropriação da natureza ocorre pari passu com a dissolução dos laços naturais-  
espontâneos entre indivíduo e comunidade. No interior de tal processo contraditório,  
criam-se as condições para a forma de sociabilidade da Antiguidade clássica, bem  
como para o surgimento do estado e da política, que encarnam a existência econômica  
autônomada comunidade:  
A comunidade como estado é, por um lado, a relação recíproca  
desses proprietários privados livres e iguais, seu vínculo contra o  
exterior e, [por outro,] ao mesmo tempo, é sua garantia. Nesse caso,  
o sistema comunitário baseia-se no fato de que seus membros  
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consistem de proprietários de terra que trabalham, camponeses  
parceleiros, bem como no fato de que a autonomia destes últimos  
consiste na sua relação recíproca como membros da comunidade, na  
proteção do ager publicus para as necessidades comunitárias e a  
glória comunitária etc. Ser membro da comunidade continua sendo  
aqui pressuposto para a apropriação de terras, mas, como membro da  
comunidade, o indivíduo singular é proprietário privado. Ele se  
relaciona com sua propriedade privada como terra, mas ao mesmo  
tempo como seu ser na qualidade de membro da comunidade, e a sua  
manutenção enquanto tal é também a manutenção da comunidade e  
vice-versa etc. Como a comunidade, não obstante aqui já produto  
histórico, não só de fato, mas já reconhecida enquanto tal, e, por isso  
mesmo, originada, é aqui o pressuposto da propriedade da terra i.e.,  
da relação do sujeito trabalhador com os pressupostos naturais do  
seu trabalho como pertencentes a ele , esse pertencimento, no  
entanto, é mediado pelo seu ser como membro do estado, pelo ser  
do estado em consequência, por um pressuposto que é encarado  
como divino etc. (MARX, 2011b, p. 391)  
Observe-se que Marx, apreendendo as formas estatais em conexão com as  
relações materiais que as engendram, assinala que, na Antiguidade clássica, o estado  
que, por estarem ausentes as condições objetivas para o seu florescimento, inexistia  
na comunidade natural surge como resultado de uma complexificação do  
metabolismo social, enraizada na primeira separação entre propriedade comunitária”  
e propriedade privada. Tal complexificação produz uma estrutura social na qual, de  
um lado, a individualidade deixa de se confundir, imediatamente, com a existência  
comunitária pois o trabalho pessoal passa a pôr as condições e elementos objetivos  
da personalidade do indivíduo(MARX, 2011b, p. 392) de modo relativamente  
autônomo frente à comunidade , bem como a própria comunidade não pode mais  
aparecer na forma natural, como no caso da primeira forma de propriedade, mas  
como comunidade ela própria já produzida, originada, secundária, produzida pelo  
trabalhador(MARX, 2011b, p. 410); de outro lado, indivíduos proprietários e  
comunidade política ainda se relacionam dentro dos limites impostos pelas ligações  
naturais-espontâneas entre trabalho e meios de produção, as quais, embora  
complexificadas, persistem como pressuposto da forma de apropriação. Com efeito,  
ainda que a segunda forma de propriedade corresponda a um maior desenvolvimento  
das forças produtivas em relação à comunidade natural, a incompletude do  
desenvolvimento social seja do indivíduo, seja da comunidade enseja a encarnação  
da comunidade no estado, como complexo de relações que se autonomizam e se  
apresentam como pressuposto encarado como divino. Importa demarcar que, nas  
análises marxianas das formas que antecederam a produção capitalista, a necessidade  
do estado e da comunidade política se enraíza na limitação da forma de apropriação,  
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como resultado de um impasse histórico: de um lado, o processo dissolutor da unidade  
imediata entre indivíduo e comunidade, que possibilita a constituição de ambos como  
construtos sociais; de outro lado, a incompletude de tal processo repercute na  
incapacidade de se restabelecer a unidade entre indivíduo e comunidade em termos  
puramente sociais. Em suma, a gênese do estado e da política revela-os como  
complexos específicos que não são inerentes ao metabolismo social humano, mas que  
se edificam como comunidade alienada, separada, própria de formas de apropriação  
limitadas, cuja função é garantir, como poder estranho, o vínculo comunitário que os  
indivíduos ainda não podem estabelecer por si mesmos. A esse respeito, são  
esclarecedores os termos de Chasin em O futuro ausente, para os quais:  
por seus limites, debilidades e incipiências intrínsecas, a comunidade  
antiga (o exemplo grego é a melhor iluminura) não é socialmente  
autoestável, é incapaz de se sustentar e regular exclusivamente a  
partir e em função de suas puras e específicas energias sociais. Esta  
incapacidade ou limite social engendra, a partir de si mesmo, em  
proveito  
e
em vista da estabilidade comunitária, uma  
dessubstanciação social como força extrassocial uma desnaturação  
e metamorfose de potência social em força política. Ou seja, esta é  
uma forma social que se entifica pelo desgarramento do tecido  
societário, dilaceração naturalmente determinada pela impotência  
deste, e que, enquanto poder, se desenvolve tomando distância  
(varável de acordo com os modos de produção) da planta humano-  
societária que o engendra (mesmo na democracia direta) e a ela se  
sobrepõe, como condição mesma para o exercício de sua função  
própria regular e sustentar a regulação. Força social usurpada e  
presentificada como figura político-jurídica que forma com a  
sociedade stricto sensu um indissolúvel cinturão de ferro, cujos  
segmentos ou elos não subsistem em separado (CHASIN, 2000, pp.  
169-170).  
O ponto central a ser demarcado é a determinação do estado e da política  
como entificações específicas gestadas em meio ao desenvolvimento da propriedade  
privada, o qual promove a separação entre interesses privados e interesses  
comunitários. Nesse contexto, a função primordial da comunidade política é manter e  
gerir a relação social limitada que a produziu. Desse modo, explica-se a inexistência  
do poder estatal nas formas originárias da comunidade natural, uma vez que nelas a  
apropriação individual não se distingue, objetivamente, da apropriação comunitária.  
Sem desconsiderar o nível mais elevado de sofisticação da análise marxiana frente à  
crítica econômica desenvolvida no período formativo, não se pode deixar de notar a  
confluência entre a análise marxiana sobre o surgimento do estado na Antiguidade  
clássica contida nos Grundrisse e os aportes registrados em A ideologia alemã, na qual  
salienta-se o vínculo estrutural entre o desenvolvimento da propriedade privada e o  
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surgimento do poder estatal como produto da alienação entre indivíduo e comunidade.  
Ademais, em A ideologia alemã, Marx anota a conexão entre a propriedade estatal ou  
comunal da Antiguidadee o desenvolvimento da escravidão, ecoando as  
considerações presentes em A sagrada família, segundo as quais o estado antigo  
tinha como fundamento natural a escravidão(MARX; ENGELS, 2011, p. 132).  
Seguindo na análise marxiana das formas que antecederam a produção  
capitalista, tem-se que a dissolução da segunda forma de propriedade, que enseja a  
emergência do estado e da comunidade política, dá lugar à terceira forma, a  
propriedade germânica. De modo a sintetizar o essencial da argumentação de Marx,  
aponta-se que, em contraste com a segunda forma de propriedade, entre os  
germanos, onde os chefes de família individuais se fixam nas matas, separados uns  
dos outros por longas distâncias, a comunidade só existe, desde logo externamente  
considerada, pela reunião periódica dos membros da comunidade. O elemento  
distintivo da propriedade germânica se define na medida em que a comunidade  
aparece (...) como reunião [Vereinigung], não como associação [Verein], como  
unificação [Einigung] constituída por sujeitos autônomos, os proprietários de terra, e  
não como unidade [Einheit](MARX, 2011b, p. 395). Com efeito, diferentemente da  
forma de propriedade da Antiguidade clássica, a forma germânica de apropriação é  
caracterizada pelo isolamento dos produtores em suas propriedades privadas,  
constituídas como unidades independentes, tornando o vínculo comunitário  
meramente acidental e esporádico. Marx considera sintomático que a comunidade  
germânica não se concentra na cidade, uma vez que, no caso da Antiguidade clássica,  
com a reunião na cidade, a comunidade enquanto tal possui uma existência  
econômica, de modo que a simples existência da cidade enquanto tal é diferente da  
simples pluralidade de casas independentes. O todo não consiste aqui de suas partes.  
É um tipo de organismo autônomo. Em outras palavras, a simples concentração na  
cidade, no caso da Antiguidade clássica, faz com que a comunidade enquanto tal  
tenha uma existência externa, distinta da existência do indivíduo singular(MARX,  
2011b, p. 395). No caso da forma germânica, haja vista que os proprietários privados  
se encontram isolados e autossuficientes, a comunidade não existe de fato como  
estado, sistema estatal, como entre os antigos, porque ela não existe como cidade”  
(MARX, 2011b, p. 395).  
Conforme a argumentação de Marx, embora aprofunde a separação entre  
indivíduo e comunidade (e, nesse sentido, apresente condições distintas da unidade  
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originária característica da comunidade natural), na forma germânica a comunidade  
não existe de fato como estado, sistema estatal, como entre os antigos, porque ela  
não existe como cidade(MARX, 2011b, p. 395). Com efeito, observa-se que, mesmo  
constatando a correspondência entre a formação do poder estatal e o processo de  
separação que culmina na sociedade burguesa, a crítica marxiana atenta para o  
desenvolvimento não linear do estado e da política, anotando como condição objetiva  
para o seu surgimento a existência efetiva da comunidade como um organismo  
autônomoapartado dos indivíduos proprietários. Ainda de acordo com a crítica  
marxiana, para que a comunidade tivesse existência efetiva, os proprietários de terra  
livres precisavam se reunir em assembleia, ou apresentar condições similares a de  
Roma, nas quais a comunidade existe à parte das assembleias, na existência da  
própria cidade e dos funcionários públicos que a servem etc.(MARX, 2011b, p. 395).  
Registre-se, sendo o fundamento da comunidade na forma germânica a habitação  
familiar isolada, autônoma, constata-se que, o homem do campo não é cidadão do  
estado, i.e., não é habitante da cidade(MARX, 2011b, p. 396). De acordo com Marx,  
é verdade que também entre os germanos há o ager publicus, a terra comunitária ou  
a terra do povo, à diferença da propriedade do indivíduo(MARX, 2011b, p. 395),  
porém, contrastando com a segunda forma de propriedade, esse ager publicus não  
aparece, como, por exemplo, entre os romanos, como a existência econômica particular  
do estado ao lado dos proprietários privados, pois aparece antes somente como  
complemento da propriedade individual e figura como propriedade somente na  
medida em que é defendido contra tribos inimigas como propriedade comunitária de  
uma tribo em particular(MARX, 2011b, p. 395).  
Para a crítica marxiana da política, a análise das formas que antecederam a  
produção capitalista importa à medida que explicita as condições objetivas que  
ensejam a edificação do estado e da política. No caso das três formas de propriedade  
analisadas por Marx, constata-se que, enquanto a ausência de estado na comunidade  
natural se explica pela unidade imediata, dada natural-espontaneamente, entre  
indivíduo e comunidade, na propriedade germânica, tal ausência é elucidada quando  
se considera o isolamento dos proprietários privados, que produzem sem estabelecer  
qualquer vínculo comunitário efetivo entre si. Desse modo, a ausência do estado na  
comunidade natural e na forma germânica, bem como seu surgimento na Antiguidade  
clássica, revelam que a comunidade política pressupõe, além do desenvolvimento da  
propriedade privada com o correlato processo de dissolução dos elos comunitários  
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dados natural-espontaneamente , relações de produção que ensejam a existência da  
comunidade como organismo autônomo, efetivamente separado das individualidades.  
Além disso, explicitam a gênese histórica do estado e da política como processo não  
linear, no interior do qual, a depender da especificidade do modo de produção, são  
gestadas as condições de seu surgimento.  
O ponto a ser salientado, não obstante, é a confirmação, pela crítica econômica  
madura de Marx, de algumas determinações estruturantes da crítica da política tal  
como desenvolvida desde o período formativo: i) estado e política não são  
determinações intrínsecas do ser humano social, mas são ensejados pelas debilidades  
e limites da forma de apropriação que, marcada pela clivagem entre interesses  
particulares e interesse geral, ensejam a encarnação da comunidade em um organismo  
autônomo, externo à vida dos indivíduos; ii) na condição de predicado negativo do ser  
humano social, estado e política não são instâncias resolutivas, pois desempenham  
função de manter e gerir os conflitos que os produzem e nos quais se assentam; iii) a  
comunidade política tem como base real a separação entre indivíduo e comunidade,  
promovida à medida que se desenvolve a contradição entre apropriação privada e  
apropriação comunitária, a qual enseja a existência da comunidade como entidade  
separada e externa frente aos interesses privados, razão pela qual seu surgimento está  
intimamente relacionado à emergência da cidade como centro organizador da vida  
comunitária. Confirma-se, desse modo, o reconhecimento da determinação  
ontonegativa da politicidade, pois constata-se que estado e política, em qualquer uma  
de suas formas, correspondem a uma limitação do tecido societário que é incapaz de  
se estabelecer como comunidade real.  
Sublinhadas as principais determinações da crítica marxiana da política,  
recorda-se que seu principal escopo é a compreensão da especificidade da forma  
maturada, correspondente ao círculo vicioso que compreende a relação de  
complementariedade entre estado moderno e modo de produção capitalista. Tal  
especificidade se define, convém reiterar, na dissolução completa do limite  
predominante, em maior ou menor grau, em todas as formações sociais que  
precederam a produção capitalista: a unidade imediata entre trabalho e suas condições  
objetivas de realização, bem como entre indivíduo e comunidade. O caráter  
contraditório do modo de produção do capital se define, todavia, à medida que a  
superação do limite das formações anteriores ocorre pela radicalização do processo  
de separação entre trabalho e terra, bem como entre indivíduo e comunidade, o que  
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acarreta na substituição das relações de dependência pessoal por relações de  
dependência coisal, determinadas pelo movimento autônomo do valor que impõe sua  
própria lógica à produção social, a despeito das vontades dos indivíduos. Nesse  
sentido, argumentou-se que a superação do limite se realiza como sua explicitação  
máxima, sua transformação de limite natural-espontâneo para limite posto socialmente  
como natural-espontâneo(MUSETTI, 2022, p. 303).  
No que se refere à especificidade do estado moderno, ressalta-se que, em O  
capital, Marx aduz que os antigos organismos sociais de produção são  
extraordinariamente mais simples e transparentes do que o organismo burguês, à  
medida que são condicionados por um baixo grau de desenvolvimento das forças  
produtivas do trabalho, bem como pelas relações correspondentemente limitadas  
dos homens no interior de seu processo material de produção da vida, ou seja, pelas  
relações limitadas dos homens entre si e com a natureza. Ainda nos termos marxianos,  
os modos de produção que antecedem o capitalista se enraízam ou na imaturidade  
do homem individual, que ainda não rompeu o cordão umbilical que o prende a outrem  
por um vínculo natural de gênero [Gattungszusammenhangs], ou em relações diretas  
de dominação e servidão(MARX, 2013, p. 154). Ao dissolver todos os elos naturais-  
espontâneos das formas de apropriação anteriores, o capital produz uma nova forma  
de dominação, impessoal e abstrata, que se expressa no fato de os indivíduos serem  
compelidos à troca de valores pela estrutura econômica, a qual apresenta tal troca  
generalizada de mercadorias como forma natural de participação no produto social.  
De acordo com Marx, a subordinação do trabalho ao capital não é imposta pela  
violência física direta, como trabalho forçado, servil, escravo, mas pelo dado de que  
as condições da produção são propriedade alheia, existindo elas próprias como  
associação objetiva, que é o mesmo que acumulação e concentração das condições de  
produção(MARX, 2011b, p. 490). Tal relação de dominação impessoal confere ao  
estado moderno, na condição de comunidade política ensejada pela máxima separação  
entre indivíduo e comunidade, uma diferença frente a todas as formas estatais que o  
antecederam, pois, sua função passa a ser a manutenção das relações de dependência  
coisal, de modo a garantir a viabilidade do movimento do capital em seu domínio  
impessoal sobre o trabalho.  
Observe-se, como comunidade abstrata universalizada pelo modo de  
produção capitalista, o estado moderno iguala as individualidades na condição de  
trocadores, de modo a assegurar a forma especificamente capitalista de extração do  
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mais-trabalho, uma vez que a troca entre capital e trabalho, assentada sobre relação  
estritamente econômica a cisão entre proprietários e não proprietários dos meios de  
produção, resultante da completa separação entre trabalho e meios de trabalho ,  
dispensa a coerção direta. Com efeito, a relação de complementariedade entre estado  
moderno enquanto forma acabada do estado enquanto tal e sociedade burguesa  
como última forma antagônica da produção, tem como pressuposto a superação  
contraditória do limite presente nas formações anteriores, que cria as condições  
objetivas para o surgimento do estado na forma mais radicalizada possível. Destarte,  
o estado político moderno encarna a comunidade que, enquanto dinheiro, ganha  
existência efetiva plenamente autonomizada frente à propriedade privada, à qual se  
subordina, enquanto mero meio para realização dos interesses individuais privados”  
(MUSETTI, 2022, p. 308). Constituindo a forma perfeita do estado enquanto tal, a  
forma moderna do poder estatal mantém e gerencia a especificidade da contradição  
que o constitui a separação entre trabalho e meios de produção , apresentando-se  
como administração neutra que organiza, racionalmente, os conflitos resultantes das  
relações de produção, apreendendo os indivíduos como cidadãos iguais e livres. Nesse  
sentido, o estado contribui com a forma fetichizada pela qual o modo de produção  
capitalista se apresenta aos agentes da produção, apagando o caráter social e histórico  
da especificidade das relações práticas que lhe servem de fundamento, de modo a  
absolutizar as relações de produção burguesas como naturais.  
Assim, elucidadas as determinações basilares que constituem o estado  
moderno como comunidade abstrata que garante a troca entre capital e trabalho,  
anota-se, para finalizar esta seção, a permanência, na reflexão madura de Marx sobre  
a política, da dupla dimensão do poder estatal na sua forma moderna, ressaltada,  
anteriormente, em A ideologia alemã: no desempenho de sua função primordial a  
manutenção das relações de produção enraizadas na troca entre capital e trabalho, o  
estado moderno, de um lado, assume a forma de uma administração neutra autônoma  
frente aos interesses particulares das classes sociais, apresentando como natural as  
leis econômicas que compelem os indivíduos à troca de mercadorias; de outro lado,  
opera como poder indireto da classe burguesa contra o trabalho assalariado, à medida  
que produz as leis e instituições responsáveis por assegurar a contínua exploração do  
trabalho pelo capital. Ambas as dimensões administração neutra e poder coercitivo  
convivem simultaneamente à medida que o estado moderno, enquanto forma  
maturada do estado, não se assenta sobre uma estrutura econômica na qual  
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predominam relações de dominação direta, como nas formas que antecederam a  
produção capitalista, mas na coerção mudacaracterística da forma mais extrema do  
estranhamento. Convém advertir, não obstante, que tal dupla dimensão do estado  
moderno na sua condição de poder político à serviço da dominação impessoal do  
capital sobre o trabalho expressa uma tensão interna à política moderna, enraizada  
na especificidade do salto contraditório promovido pelo capital no processo da  
autoprodução humana, o qual resultou na plena autonomização dos poderes sociais.  
Mais especificamente, aponta-se que, relacionando-se contraditoriamente com sua  
base de sustentação, o estado moderno, de um lado, chancela a igualdade e liberdade  
no plano da formalidade política, enquanto, de outro lado, para o capital, a liberdade  
e a igualdade se efetivam como desigualdade e ausência de liberdade(MARX,  
2011b, p. 191), de tal modo que o movimento de autovalorização do valor produz  
perturbações imanentesao modo de produção capitalista, por vezes pondo em  
xeque a neutralidade da administração estatal. Marx não deixa de analisar, ao longo  
de sua obra, diversos momentos nos quais o capital necessita e exige a intervenção  
coercitiva do estado moderno para assegurar a troca entre capital e trabalho,  
explicitando, nesses casos, o seu caráter de poder de classe18. Ademais, considerando  
que o estado moderno, na condição de forma pura do poder estatal, separa-se  
completamente da sociedade civil-burguesa e paira sobre os interesses privados,  
tendo como função primordial servir ao impulso do capital por extração de mais-valia,  
sua superação torna-se imprescindível para dar continuidade ao processo da  
autoprodução humana, possibilitada pelo próprio modo de produção capitalista. Como  
se verá na próxima seção, enquanto poder que expressa, no plano político, a  
dominação impessoal do capital sobre o trabalho, o estado moderno, tal como o  
próprio capital, é incontrolável, de modo que seu desmonte se torna condição  
imprescindível para o avanço do processo revolucionário que visa a emancipação  
humana.  
A superação da política pela emancipação humana  
Enfatizou-se a radicalidade da crítica marxiana da política, que, tomando como  
18  
Em tese de doutorado, tal questão foi desenvolvida com mais fôlego, de modo a observar como a  
dimensão neutra da administração estatal corresponde aos momentos de desenvolvimento do capital  
nos quais a luta de classes não está agudizada. Já no momento em que a o modo de produção capitalista  
necessita de uma ação coercitiva direta contra o trabalhador assalariado para garantir sua reprodução,  
o estado explicita a sua dimensão como poder de classe (cf. MUSETTI, 2022, pp. 326-476).  
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ponto de partida a forma maturada do estado e da política modernos como  
complexos específicos que resultam da completa separação entre indivíduo e  
comunidade pressuposta no movimento de autovalorização do valor , investiga a  
gênese do estado e da política enquanto tais, reconhecendo-os, em qualquer uma de  
suas formas, como predicados negativos do ser humano social, produzido por  
formações sociais limitadas, marcadas pela contradição entre interesses particulares e  
interesse geral e que ensejam a encarnação da comunidade como organismo  
autônomo contraposto aos indivíduos. Não por acaso, em A guerra civil na França,  
redigido após a publicação de O capital, em 1871, Marx reitera sua posição segundo  
a qual o poder estatal é força extrassocial usurpadora das energias sociais, referindo-  
se a ele como enorme parasita governamentalque constringe o corpo social como  
uma jiboia(MARX, 2011c, p. 170).  
O itinerário de desenvolvimento da crítica marxiana da política se inicia,  
conforme se argumentou, na Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843,  
desdobrando-se pelos textos redigidos no período subsequente, para adquirir seus  
últimos contornos com a maturação da crítica econômica de Marx, a qual define, com  
precisão, a conexão entre o movimento autônomo de autovalorização do valor que  
estrutura o modo de produção capitalista, de um lado, e o completamento do processo  
de dissolução dos vínculos naturais-espontâneos entre trabalho e condições objetivas  
de sua realização, bem como entre indivíduo e comunidade, de outro. No período  
formativo do pensamento marxiano, o filósofo alemão enfatizou os limites da revolução  
política que completou o desenvolvimento do poder estatal, identificando-a como  
revolução parcial (...) que deixa de pé os pilares do edifício, pois determinada classe  
empreende, a partir da sua situação particular, uma emancipação geral da situação”  
(MARX, 2006b, p. 154). Sendo a forma definitiva da emancipação humana dentro da  
ordem mundial vigente até aqui, a emancipação política se esgota com a edificação  
da sociedade burguesa, porém cria as possibilidades para a emancipação humana  
autêntica, na qual o homem reconhece e organiza suas forces propres[forças  
próprias] como forças sociais e, em consequência, não separa mais de si mesmo a  
força social na forma da força política (MARX, 2010, p. 54).  
Em A ideologia alemã, após realçar o caráter contraditório do desenvolvimento  
da grande indústria, Marx afirma que a sociedade burguesa produz as condições para  
os indivíduos apropriarem-se da totalidade das forças produtivas(MARX; ENGELS,  
2009, p. 73) desenvolvidas, a qual fica, todavia, condicionada pelo processo  
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revolucionário que, distinguindo-se de todos os movimentos anteriores, é capaz de  
revolucionar os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio  
precedentes, bem como de abordar conscientemente todos os pressupostos naturais  
como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter  
natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados(MARX; ENGELS, 2009,  
p. 67). Com efeito, na estrutura argumentativa da crítica marxiana, apenas quando se  
completa a separação entre indivíduo e comunidade, torna-se possível a transformação  
social na qual os indivíduos voltam a subsumiras forças reificadas a si mesmos,  
superando os sucedâneos da comunidade existentes até aqui” – diversos modos de  
comunidade aparente, que sempre se autonomizaram em relação aos indivíduos na  
forma do estado para edificar a comunidade real, na qual os indivíduos obtém  
simultaneamente sua liberdade na e por meio da associação(MARX; ENGELS, 2009,  
p. 64). Em suma, a grande indústria possibilita a revolução que faz das condições  
existentes as condições da associação(MARX; ENGELS, 2009, p. 67), permitindo, pela  
primeira vez na história da autoprodução humana, a recuperação do poder social  
desenvolvido como potência estranha, política.  
Viu-se como os principais contornos da crítica marxiana da política  
desenvolvida no período formativo são reiterados na obra madura, quando Marx  
aprimora sua crítica econômica pela análise da forma valor. Ademais, convém salientar  
que, apreendendo a sociedade burguesa como necessário ponto de transição no  
itinerário da autoprodução humana à medida que promove o desenvolvimento  
universal das forças produtivas, todavia de modo invertido , Marx anota como a  
radicalização da separação constitutiva do modo de produção capitalista cria as  
condições objetivas para a edificação de um novo metabolismo social universal, que  
prescinde do estado e da política, uma vez que se estrutura pela associação livre dos  
indivíduos. Após analisar o caráter contraditório do salto promovido pela sociedade  
burguesa como última forma antagônica da produção, Marx argumenta que:  
Todavia, essa própria forma contraditória é evanescente e produz as  
condições reais de sua própria superação [Aufhebung]. O resultado é:  
tendencialmente e δυνάμει, o desenvolvimento universal das forças  
produtivas da riqueza em geral como base, bem como a  
universalidade do intercâmbio e, portanto, do mercado mundial, como  
base. A base como possibilidade do desenvolvimento universal dos  
indivíduos, e o efetivo desenvolvimento dos indivíduos a partir dessa  
base como contínua superação de seu limite, que é reconhecido como  
limite, e não passa por limite sagrado. A universalidade do indivíduo  
não como universalidade pensada ou imaginária, mas como  
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universalidade de suas relações reais e ideais. Por esse motivo,  
também a compreensão de sua própria história como um processo e  
o conhecimento da natureza (existente também como poder prático  
sobre ela) como seu corpo real. O próprio processo de  
desenvolvimento posto e reconhecido como pressuposto de si  
mesmo. No entanto, para isso é necessário, sobretudo, que o pleno  
desenvolvimento das forças produtivas tenha se tornado condição de  
produção; e não que condições de produção determinadas sejam  
postas como limite para o desenvolvimento das forças produtivas.  
(MARX, 2011b, p. 447)  
Desse modo, a sociedade burguesa, reconhecida como necessário ponto de  
transição, não apenas permite a apreensão do passado como momento específico da  
história universal do homem [Weltgeschichte], mas produz as condições objetivas para  
um futuro tornado possível, o qual, tendo como pressuposto de sua realização a  
universalidade da independência pessoal fundada sobre uma dependência coisal”  
(criada pelo próprio capital), se assenta na livre individualidade fundada sobre o  
desenvolvimento universal dos indivíduose na subordinação de sua produtividade  
coletiva, social, como seu poder social(MARX, 2011b, p. 106). Não por outra razão,  
Marx jamais deixa de enfatizar que o capital, enquanto potência econômica da  
sociedade burguesa que tudo domina, deve constituir tanto o ponto de partida  
quanto o ponto de chegada(MARX, 2011b, p. 60) da crítica ontológica, observando  
que sua correta observação e dedução, como relações elas próprias que devieram  
históricas, levam sempre a primeiras equações (...) que apontam para um passado  
situado detrás desse sistema(MARX, 2011b, p. 378), bem como a pontos nos quais  
se delineia a superação da presente configuração das relações de produção e, assim,  
o movimento nascente, a prefiguração do futuro(MARX, 2011b, p. 378).  
Registre-se, na estrutura categorial do modo de produção capitalista,  
convivem a plena autonomização dos poderes sociais constituída pela sociabilidade  
do capital, com a consequente substituição das relações de dominação pessoal por  
relações de dominação indiretas, mediadas pelo valor, de um lado, e a criação, pela  
primeira vez na história, de uma conexão universal dos indivíduos entre si, que gera  
as possibilidades para um metabolismo social que promova a recuperação dos poderes  
sociais autonomizados no desenvolvimento das forças produtivas, de outro. O  
progresso representado pela sociedade burguesa no processo da autoprodução  
humana reside no fato de que a dependência recíproca tem de ser elaborada de início  
em sua pureza, antes que uma comunidade social efetiva possa ser pensada(MARX,  
2011b, p. 216). Uma vez que os indivíduos não podem subordinar suas próprias  
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A crítica marxiana da política  
conexões sociais antes de tê-las criado, Marx salienta que, embora coisificada, a  
conexão social universal produzida pelo capital é certamente preferível à sua  
desconexão, ou a uma conexão local baseada unicamente na estreiteza da  
consanguinidade natural ou nas [relações] de dominação e servidão(predominante  
nas formas anteriores). O erro da economia política clássica (e do pensamento político  
moderno em geral) consiste em conceber tal conexão puramente coisificada como a  
conexão natural e espontânea, inseparável da natureza da individualidade (...) e a ela  
imanente(MARX, 2011b, p. 110). Ao atribuir caráter natural-espontâneo à conexão  
universal coisificada, a economia política clássica absolutiza a inversão constitutiva da  
sociedade burguesa e identifica a essência do modo de produção capitalista no seu  
modo de aparecer, perdendo de vista a grande novidade do capital: diferentemente  
do limite natural-espontâneo das formas anteriores, o limite do capital é posto  
socialmente, ainda que, contraditoriamente, se apresente como natural-espontâneo.  
Para a crítica econômica marxiana, a conexão é um produto dos indivíduos,  
isto é, um produto históricoque faz parte de uma determinada fase de seu  
desenvolvimento. Escapa à economia política que a condição estranhada  
[Fremdartigkeit]característica da sociedade capitalista, bem como a autonomia da  
conexão social que ainda existe frente aos indivíduos, revelam somente que estes  
estão ainda no processo de criação das condições de sua vida social, em lugar de  
terem começado a vida social a partir dessas condições. Em outros termos, uma vez  
que os indivíduos universalmente desenvolvidos” – isto é, indivíduos capazes de  
estabelecer suas relações sociais como relações próprias e comunitárias, submetidas  
ao seu próprio controle comunitário” – não podem ser um produto da natureza, mas  
da história, deve-se considerar que é a produção sobre a base dos valores de troca,  
a qual produz a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros,  
que produz, igualmente, a universalidade e multilateralidade de suas relações e  
habilidades(MARX, 2011b, p. 110), tornando-se pressuposto para superar o  
processo de separação na sua radicalidade máxima. Com efeito, a novidade da conexão  
coisificada do capital é que, em contraste com as formas anteriores, ela põe todas as  
relações como relações postas pela sociedade, não como relações determinadas pela  
natureza(MARX, 2011b, p. 216). Se, nas as formas em que domina a propriedade  
da terra a relação natural ainda é predominante, na sociabilidade em que domina o  
capital, predomina o elemento social, historicamente criado(MARX, 2011b, p. 60).  
Em A guerra civil na França, Marx retoma, sinteticamente, o processo histórico  
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Felipe Ramos Musetti  
da gênese do estado moderno, salientando sua importância para varrer os últimos  
entulhos feudais. Atento ao círculo vicioso que compreende a relação de  
complementariedade entre estado e capital, o filósofo alemão observa, não obstante,  
que, à medida que a sociedade burguesa se desenvolve, o estado se torna uma  
incubadora de enormes dívidas nacionais e de impostos escorchantes(MARX, 2011c,  
pp. 54-55). Ademais, Marx observa como o caráter progressista da emancipação  
política permanece restrito ao período de formação da sociedade burguesa, tal como  
se desenvolve no seio da sociabilidade feudal, argumentando que o caráter político”  
do estado mudou juntamente com as mudanças econômicas ocorridas na sociedade.  
Mais especificamente, Marx enfatiza que  
No mesmo passo em que o progresso da moderna indústria  
desenvolvia, ampliava e intensificava o antagonismo de classe entre o  
capital e o trabalho, o poder do estado foi assumindo cada vez mais  
o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força  
pública organizada para a escravização social, de uma máquina do  
despotismo de classe (MARX, 2011c, p. 55).  
Redigido em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, a obra A  
guerra civil na França, voltada para a análise da Comuna de Paris, reitera o  
reconhecimento da determinação ontonegativa da politicidade, bem como a  
necessidade de se avançar no processo da autoprodução do gênero humano pela  
superação do capital e pela conquista da emancipação humana. Conforme adverte a  
letra marxiana, no processo de revolução social que visa a superação do capital, a  
classe operária não pode simplesmente se apossar da máquina do estado tal como ela  
se apresenta e dela servir-se para seus próprios fins(MARX, 2011c, p. 54). Ao  
contrário, o grande feito da Comuna de Paris reside, justamente, na prática  
metapolítica efetivada pelos communards, pois a Comuna visava à destruição  
preliminar da velha maquinaria governamental (...) e sua substituição por um  
verdadeiro autogoverno que (...) era o governo da classe trabalhadora (MARX, 2011c,  
p. 172). Não sendo o caso de discorrer detalhadamente sobre a análise marxiana da  
Comuna de Paris19, importa anotar, rapidamente e à título de conclusão, a radicalidade  
da crítica marxiana à politicidade, mantida ao longo de toda a sua obra e evidenciada  
na argumentação d'A guerra civil na França, segundo a qual a revolução social dá os  
seus primeiros passos ao desmontar a maquinaria estatal e substituí-la pela forma  
19 Para uma análise mais extensa d'A guerra civil na França e sua importância para a crítica marxiana da  
política, cf. Musetti (2022, pp. 397-476).  
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A crítica marxiana da política  
política da emancipação do trabalho:  
A Comuna a reabsorção, pela sociedade, pelas próprias massas  
populares, do poder estatal como suas próprias forças vitais em vez  
de forças que a controlam e subjugam, constituindo sua própria força  
em vez da força organizada de sua supressão , a forma política de  
sua emancipação social, no lugar da força artificial (apropriada por  
seus opressores) (sua própria força oposta a elas e organizadas contra  
elas) da sociedade erguida por seus inimigos para sua opressão,  
(MARX, 2011c, p. 129)  
Para Marx, a Comuna não se confunde com o movimento social da classe  
trabalhadoraou com o movimento de uma regeneração geral do gênero humano,  
mas consiste nos meios organizados de açãodo proletariado, que não elimina a  
luta de classes” – e, por isso, permanece sendo uma forma política , mas fornece o  
meio racional em que essa luta de classe pode percorrer suas diferentes fases da  
maneira mais racional e humana possível(MARX, 2011c, p. 131), pois desmonta o  
poder estatal e o substitui pelo autogoverno dos produtores. Com efeito, A guerra civil  
na França complementa a crítica marxiana da política à medida que desvenda os meios  
concretos pelos quais, partindo da sociedade burguesa e suas contradições, a classe  
trabalhadora pode levar adiante sua luta contra o capital e a política. Esclarece,  
ademais, que, assim como o próprio modo de produção capitalista, a política não pode  
ser abolida com um só golpe, exigindo, ao contrário, um longo processo de transição  
que elimina a diferença de classes e, com ela, a contradição entre interesses  
particulares e interesse geral que enseja a comunidade ilusória. Todavia, no que se  
refere ao estado, sua dissolução e substituição pelo autogoverno dos produtores  
desponta, para Marx, como condição de possibilidade para que se possa caminhar em  
direção à emancipação humana20. Uma vez desmontado o estado em seus principais  
órgãos, o governo da classe trabalhadora” – a forma política da emancipação social  
– “é proclamado como uma guerra do trabalho contra os monopolistas dos meios do  
trabalho, contra o capital(MARX, 2011c, p. 140). Se, durante a guerra do trabalho  
contra o capital, é necessária a forma política da emancipação social, uma vez vencida,  
20 Em A guerra civil na França, Marx aduz que a Comuna foi uma revolução não contra essa ou aquela  
forma de poder estatal, seja ela legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução  
contra o estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção, pelo povo e para o  
povo, de sua própria vida social. Não foi uma revolução feita para transferi-lo de uma fração das classes  
dominantes para outra, mas para destruir essa horrenda maquinaria da dominação de classe ela mesma.  
Não foi uma dessas lutas insignificantes entre as formas executiva e parlamentar da dominação de  
classe, mas uma revolta contra ambas essas formas, integrando uma à outra, e da qual a forma  
parlamentar era apenas um apêndice defeituoso do Executivo (MARX, 2011c, p. 127).  
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realiza-se o que a crítica marxiana anuncia em Sobre a questão judaica: o ser humano  
passa a reconhecer e organizar suas próprias forças sociais como suas próprias forças  
e não como força social separada na forma de força política.  
Referências bibliográficas:  
CHASIN, J. O futuro ausente: para a crítica da política e o resgate da emancipação  
humana. Revista Ensaios Ad Hominem, n. 1, t. III Política. Santo André: Ad  
Hominem, 2000, pp. 162-243.  
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_____. Ad Hominem: rota e prospectiva de um projeto marxista. Revista Ensaios Ad  
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_____. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
2009.  
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo  
de Deus. São Paulo: Boitempo, 2006.  
_____. Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução. In: Crítica da filosofia do  
direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo,  
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_____. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São  
Paulo: Expressão Popular, 2008.  
_____. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo,  
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_____. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010.  
______. Glosas críticas ao artigo O rei da Prússia e a reforma social. De um  
prussiano’”. In: Lutas de classes na Alemanha. Trad. Nélio Schneider. São Paulo:  
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_____. Grundrisse. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011b.  
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_____. O capital: crítica da economia política. Livro I o processo de produção do  
capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.  
_____. O capital: crítica da economia política. Livro III o processo global da produção  
capitalista. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Crítica da mais recente filosofia  
alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão  
em seus diferentes profetas. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini  
Martorano. São Paulo: Boitempo, 2009.  
_____. A sagrada família. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2011.  
MUSETTI, Felipe Ramos. Marx contra o capital e o estado: crítica radical e práxis  
metapolítica. 2022. Tese (Doutorado em Filosofia) Pontifícia Universidade Católica  
de São Paulo, São Paulo, 2022.  
VAISMAN, Ester. Dossiê Marx: itinerário de um grupo de pesquisa. Revista Ensaios Ad  
Hominem, n. 1, t. IV Dossiê Marx. Santo André: Ad Hominem, 2001, pp. I-XXIX.  
Verinotio  
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A crítica marxiana da política  
Como citar:  
MUSETTI, Felipe Ramos. A crítica marxiana da política: seguindo as trilhas abertas pelo  
autor de O futuro ausente. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 223-265,  
Edição Especial, 2022/2023.  
Verinotio  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 223-265 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 265  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.669  
Da observação da natureza como apreensão do  
conhecimento na passagem do primeiro ao  
segundo humanismo renascentista:  
uma continuidade do debate iniciado  
por J. Chasin n’O futuro ausente  
On observation of nature as apprehension of knowledge in the transition  
from the first to the second Renaissance humanism: a continuation of the  
debate started by J. Chasin on The absent future.  
Claudinei Cássio de Rezende*  
Resumo: Num ensaio inacabado de J. Chasin,  
intitulado O futuro ausente, o filósofo busca  
traçar a noção de politicidade do mundo Antigo  
ao mundo contemporâneo embora interrompa  
seu material em Hobbes. Uma das questões  
suscitas por Chasin envolve a discussão sobre o  
apreço da natureza objetiva em contrapartida a  
uma forma idealizada da vida contemplativa,  
portanto, da filosofia moral do trecento ao  
quattrocento renascentistas. Tendo como ponto  
de partida a elaboração de Chasin, este artigo  
avança sobre a história das polêmicas médica e  
astrológicas que tomaram forma no universo  
renascentista. Se, por um lado, Ernst Cassirer  
elabora uma tese sobre a originalidade de  
Nicolau de Cusa, por outro, deixa passar um  
aspecto primordial quando contrapõe sua  
filosofia à de Pico: o embate sobre a polêmica  
astrológica nasce no bojo da discussão do livre-  
arbítrio, portanto, da tentativa de impugnação da  
astrologia divinatória por considerá-la uma  
teleologia da natureza que se contrapunha  
teleologia teológica. Não obstante a inexistência  
de uma ruptura epistemológica proposta por  
Abstract: In an unfinished essay by J. Chasin,  
entitled O futuro ausente, the philosopher seeks  
to trace the notion of politicality from the  
Ancient world to the contemporary world –  
although it interrupted in the work of Hobbes.  
One of the questions raised by Chasin involves  
the discussion about the appreciation of  
objective nature in contrast to an idealized form  
of contemplative life, therefore from the  
philosophy of morals from the 14th to the 15th  
century. Taking Chasin's elaboration as a  
starting point, this article advances the history  
of medical and astrological controversies in the  
Renaissance universe. If Ernst Cassirer  
elaborates a thesis on the originality of Nicholas  
of Cusa, he misses a primordial aspect when he  
opposes his philosophy to that of Pico: the clash  
over the astrological controversy arises in the  
midst of the discussion of free will, therefore, of  
the attempt to challenge of divinatory astrology  
for considering it a teleology of nature that was  
opposed to theological teleology. Despite the  
inexistence of an epistemological rupture  
proposed by Cassirer, the development of  
Renaissance philosophy attested to the  
contradictory struggle for the empirical  
observation of reality.  
Cassirer,  
o
desenvolvimento da filosofia  
renascentista atestou a luta contraditória pela  
observação empírica da realidade.  
*
Doutor em ciências sociais pela Unesp. Professor de história na Cogeae-PUC-SP e de arte clássica no  
Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
Palavras-chave: J. Chasin (1937-1998);  
Renascimento; filosofia da natureza; Ernst  
Cassirer (1874-1945); Nicolau de Cusa (1401-  
1464); Giovanni Pico della Mirandola (1463-  
1494).  
Keywords: J. Chasin (1937-1998); Renaissance;  
philosophy of nature; Ernst Cassirer (1874-  
1945); Nicolau de Cusa (1401-1464); Giovanni  
Pico della Mirandola (1463-1494).  
Sed, opere consummato, desiderabat artifex esse  
aliquem qui tanti operis rationem perpenderet,  
pulchritudinem  
amaret,  
magnitudinem  
admirateur.1  
Pico, Oratio de hominis dignititade (12).  
A dinâmica do conteúdo e o título do ensaio inacabado de J. Chasin (2000), a  
saber, O futuro ausente: para a crítica da política e o resgate da emancipação humana,  
revelam tanto a aflição à qual estávamos e ainda estamos submetidos, como uma  
tentativa de o autor expor uma propositura voltada à resolução dos impasses da  
organização social. Lamentamos o fato de um filósofo da envergadura intelectual de  
Chasin ter abandonado seu texto inacabado, em 1993, na reflexão da trajetória  
humano-societária até a substância do absolutismo teórico de Hobbes, porque tudo  
indicava que o autor chegaria aos nossos tempos. O modo pelo qual ele apresentava  
a ideia de que estávamos diante de um desafio sem precedentes, mas com virtuais  
resoluções coletivas, era um esforço de encontrar novos caminhos para a problemática  
da politicidade, apesar do aparentemente desesperançoso título do ensaio. Novos  
caminhos, afinal de contas, Chasin inaugura o escrito com uma epígrafe de Francis  
Bacon, segundo o qual não é expediente ordinário aventar universos inéditos, já que  
as coisas novas são sempre compreendidas por analogias com as antigas.  
No universo reflexivo chasiniano se destaca o que o filósofo chamou de a aurora  
feroz da politicidade moderna, que se plasma no primeiro humanismo renascentista,  
cuja base intelectual estava envolvida na idealização jurídica como protoforma da mais  
elevada manifestação do espírito humano em contraposição à cosmovisão teológico  
feudal. Esse primeiro humanismo do trecento, segundo o que aventa Chasin (2000, p.  
172), emerge como um humanismo civil e cívico, o que significa que decorre do  
universo mundano relacionado à vida coletiva entre os cidadãos e em relação ao  
estado. Este é o motivo pelo qual a cosmovisão das gerações de meados do trecento  
até fins do quattrocento alude a uma cisão deliberada entre o mundo do espírito  
1
Mas, uma vez concluída a obra, o artífice desejou que houvesse alguém capaz de compreender o  
significado de uma obra tão grande, que pudesse amar sua beleza e admirar sua imensidão.”  
Verinotio  
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nova fase  
Claudinei Cássio de Rezende  
humano e o mundo da natureza, razão que incita a polêmica dos cultores do direito  
contra a medicina coetânea, na altura tomada como arquétipo das ciências da natureza.  
É a partir desta reflexão encetada por Chasin que pretendemos estabelecer breve  
diálogo.  
Tal qual Dante (1265-1321), Francesco Petrarca (1304-1374), a quem Chasin  
(2000) atribui o matrizamento originário desta polêmica, é um humanista renascentista  
que dirige um culto ao universo do classicismo como pensamento mais dinâmico em  
relação ao medievo. Tal humanismo tem como característica a unidade entre a  
Antiguidade Clássica e a teologia católica por meio da poesia. Conferindo a Platão e a  
Cícero a estrutura da sua nova posição filosófica de mundo, Petrarca busca a superação  
das cosmovisões averroísta e escolástica dominantes desde a Alta Idade Média. Um  
direcionamento primígeno tão deliberado em sentido da ruptura por parte do poeta  
aretino confirma uma mobilização do indivíduo para uma vida interior, ou seja,  
contemplativa, de tal maneira que a sua obra De vita solitaria alude ao mundo religioso  
interior como o campo da liberdade. Não obstante, a inquietação promovida pelo  
próprio poeta sobre o impulso da ascese e a sua quebra pelos interesses mundanos  
já revelam que a problemática da liberdade passa indelevelmente pela relação do  
sentido de alienação do mundo percebido entre o campo do mundo das ideais e a  
realidade imanente objetiva. O nascimento da poesia romanesca de Petrarca também  
é uma prova de que os tempos do trecento indicam o fecundo início de uma transição  
para um campo da individuação mais acentuada, na qual a realidade da vida cotidiana  
começa a aparecer no conjunto poético outrora apenas idealizado. Na  
supramencionada polêmica petrarquiana, que está substanciada no seu material menos  
conhecido de 1355, o Invectivarum contra Medicum quendam libri IV, o poeta acusa  
a medicina de vacuidade e inconsistência doutrinária, justamente pelo seu modus  
operandi mecânico, exaltando o contraste com o mundo poético especulativo, tido  
como de valor humano mais elevado, o que não significa outra coisa senão o  
desinteresse pela ordem física da natureza e a suposta superioridade da filosofia  
moral. Questão que é apresentada por Chasin (2000).  
No evolver paulatino do último quarto do trecento, Coluccio Salutatti (1331-  
1406) amplia a disputa contra os médicos. Em De nobilitate legum et medicinae, o  
literato sustenta igualmente a superioridade da sabedoria humana em face dos estudos  
da natureza, aponta Chasin (2000, p. 174). Raciocina de modo a conceber as leis como  
representantes da esfera moral e social, e, justamente por isso, fala sobre um universal;  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
enquanto a medicina trata do particular sempre. Chasin percebe que a figura de  
Coluccio Salutatti é moldada pelo cinzel da politicidade ainda em transformação no  
nascimento da individualidade moderna. Todos os literati incluindo aqui os advindos  
do primeiro quattrocento tomam como ponto de partida que a natureza é  
desimportante porquanto o campo universal do espírito pertence à contemplação  
teológica. A característica humanista de Bartolomeo Sacchi (1421-1481) consiste na  
propositura da solidariedade e do benfazejo, afinal de contas, o agir virtuoso é o ponto  
de chegada ao paraíso não é em sem motivos que a disputa religiosa em torno da  
contrarreforma no século seguinte reitera o humanismo católico trentino contra a  
predestinação religiosa, tida pelos católicos como um absurdo, como se Deus  
escolhesse arbitrária e secretamente seus abençoados. Não obstante, Matteo Palmieri  
(1406-1475) em Della vita civie, adiciona o componente do benfazejo em relação à  
pátria e ao coletivo social. O desenvolvimento deste humanismo já revela uma vertente  
da politicidade moderna em busca do coletivo, com base no estoicismo de Marco Túlio,  
na qual há a reivindicação de uma ligação entre o indivíduo e a comunidade.  
Na elaboração teoria de Chasin (2000, p. 176) encontramos a tese da  
emergência do indivíduo, guardadas as devidas discrepâncias, presentes na  
formulação de Jacob Burckhardt (2009), segundo o qual o Renascimento marca a  
emergência da individualidade, questão atestada pela era das biografias e das  
autobiografias. Há que se abrir parênteses neste ponto, ainda que a problemática, tão  
ampla e tão profunda, não nos autoriza uma redução desta monta. Na elaboração  
crítica a Burckhardt, Peter Burke (2009, p. 31) tende a imputar ao historiador suíço a  
ideia de que em sua teorização os indivíduos medievais não eram dotados de  
individualidade, de sorte que, se coadunássemos a tese burckhardtiana, afirmaríamos  
que o homem medieval não via a si próprio como um indivíduo, tendo de si uma  
consciência enquanto uma das formas do coletivo. Questões desta natureza seriam  
invalidadas, segundo o historiador britânico, com a existência de autobiografias  
datadas do século 12, como a de Abelardo, por exemplo. Nesta altura vale a menção  
de que Georg Misch (2018) escreveu uma História da autobiografia para discutir  
exemplos que invalidariam a teoria de Burckhardt sobre a individualidade. Se Georg  
Misch conseguiu ou não invalidar o argumento do Burckhardt é uma questão menor  
do que o fato de que ele passou de 1907 a 1962 escrevendo uma obra cujo tema  
central era a resposta a uma questão formulada por Burckhardt. A solução do enigma  
de Misch foi muito bem sintetizada pelo historiador húngaro Arnold Hauser (1995, p.  
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Claudinei Cássio de Rezende  
339). A afirmação de Hauser caminha numa crítica à Burckhardt, e vale notar a  
deficiência de se produzir um trabalho inteiro sobre a cultura italiana acreditando  
poder dissociar o fenômeno cultural do seu aspecto estrutural eminentemente  
econômico, como fez o historiador suíço, vangloriando-se desta imiscibilidade  
ilusoriamente possível entre cultura e vida econômica da sociedade. Não obstante a  
crítica de fundamento, Hauser aponta que a tese burckhardtiana não pode ser rejeitada  
in totum, sem que haja uma mediação profunda sobre o processo da individualidade  
forjada no nascimento da sociabilidade burguesa, esta que coloca os indivíduos em  
ampla concorrência pela sua subsistência quando comparada à situação estagnada da  
servidão consuetudinária. Mas Hauser vai além nesta questão, levando a um ponto  
sumário culminante: se personalidades fortes já existiam na Idade Média, pensar e agir  
individualmente é uma coisa; estar consciente da própria individualidade, afirmá-la e  
deliberadamente intensificá-la é outra coisa. Às reduções bastante esquemáticas, Ernst  
Cassirer (2001, pp. 9-10) chama a atenção à luz de Ernst Walser: a oposição entre o  
homem medieval e o homem renascentista ameaça a se desfazer e se volatizar à  
medida que se verifica a materialidade objetiva, ou seja, quanto mais avança a pesquisa  
biográfica isolada dos literati. Quando se estuda de modo indutivo o pensamento de  
figuras como Coluccio Salutatti ou Poggio Bracciolini (1380-1459), não encontramos  
discussões sobre individualismo, ceticismo ou paganismo. Parênteses fechados,  
voltemos à elaboração chasiniana (CHASIN, 2000, p. 176): a relação entre  
contemplação e vida ativa nesse final do quattrocento pode significar essa emergência  
do indivíduo, conspicuidade que não mais deixará a cena histórica. Seria essa  
emergência da individualidade também fator importante para a resolução da questão  
sobre a polêmica da natureza nos primeiros renascentistas? Pois a questão perpassa  
não só o âmbito das individualidades, como também sua resolução repousa sobre a  
questão piquiana de livre arbítrio e alternativas decisórias dos indivíduos, como  
veremos mais adiante.  
Se, por um lado, as formulações dos primeiros humanistas colocavam as ciências  
da natureza, destacadamente a polêmica médica, como inferiores por estarem  
imbuídas da mecânica das coisas, enquanto as ciências do espírito, a saber, o mundo  
moral, estava em altitude superior; por outro lado, Poggio Bracciolini já pôde inverter  
o raciocínio dos proto-humanistas e articular a sentença de que a medicina tem o seu  
fundamento na realidade material, ou seja, na própria natureza, e que esta é sempre  
idêntica, enquanto as ciências do espírito são contingentes, seguindo método  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
demonstrativo e adequado à realidade histórica. Isso não significa outra coisa senão a  
remoção da ideia de universalidade da questão moral, o que atesta a percepção de  
uma politicidade mais concreta e atinada à realidade.  
A passagem de um humanismo a outro, ao segundo e efetivo humanismo do  
Renascimento, conforme nos indica Chasin (2000), não é mero transcurso de câmbio  
de uma formação ideal para outra, por simples graça de virtudes, mas uma ruptura  
cabal entre as duas ordenações de pensamento. Segundo o que nos indica o filósofo  
paulista, “trata-se, dito do modo mais genérico possível, da passagem da especulação  
ético-jurídico-política sobre a vida ativa para a reflexão do homem ativo que se  
reconhece na e age sobre a natureza” (CHASIN, 2000, p. 177). Cessa-se uma  
propositura de aspecto mais lendário acerca do mundo ático; inicia-se uma nova  
substância do humanismo, guardando certa continuidade em torno das questões  
teológicas do livre-arbítrio, não obstante, a sua transformação é operada justamente  
pela politicidade em formação das senhorias e principados, que redundará no  
absolutismo, “antítese da idealidade referencial da pólis, da commune romana ou da  
quimera comunitária dos primórdios do Renascimento” (CHASIN, 2000, p. 177).  
Demonstrando como a tese de Burckhardt (2009) se assenta numa visão quase  
anedótica da política florentina do Renascimento, Chasin condiciona à situação da vida  
prática e econômica da sociedade a explicação do movimento do primeiro humanismo,  
ainda bastante vinculado a uma idealização da vida transcendental, para o segundo  
humanismo, já fundamentado na observação da natureza.  
A ruptura observada por Chasin do transcurso do humanismo do século XIV para  
o XV foi também percebida por Eugenio Garin (1937 e 1996). Como texto inacabado,  
Chasin se debruça sobre a natureza da política florentina, mas não desenvolve a  
discussão dos gramáticos para além do que já fora mencionado. Por isso, reiterando  
a discussão encetada por Chasin, avanço em alguns pontos sobre como essa transição  
simbolizou o abandono da especulação medieval em direção da constituição de uma  
interpretação moderna da ciência mas não sem carregar em seu bojo as contradições  
da manutenção teológica de cosmos.  
O humanismo filológico florentino do segundo quattrocento se consubstanciou  
na figura do gramático Angelo Poliziano (1454-1494). Seu ponto alto está da exegese  
dos materiais litúrgicos e jurídicos o que Erasmo (1466-1536), de algum modo, faz  
com Valla (1407-1457) ulteriormente. Em vez de um ataque aberto a Aristóteles como  
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recomposição do ideário neoplatônico que se almejava operar na República Florentina  
dos Medici, o que se viu em Poliziano foi uma análise racional e histórica dos seus  
escritos. A exemplaridade do mestre destes humanistas, Marsilio Ficino (1433-1499),  
atesta esse novo modus operandi voltado ao âmbito naturalista: Ficino, tradutor da  
obra de Plotino, foi além de grande literato, concentrando-se nos estudos da física, da  
perspectiva, da luz e da visão. Condicionado ao desenvolvimento econômico de  
Florença, os literati passam a respaldar e arbitrar as comissões artísticas. E é nessa  
conjuntura que em torno do círculo de Ficino se concentram todos os comitentes do  
que seria chamado de classicismo da Alta Renascença. Não obstante a importância  
temática desta situação histórica, quero chamar a atenção a um aspecto muito  
idiossincrático da interpretação da observação materialista da natureza coisa que  
simboliza o abandono dos cânones pictóricos em direção da mimetização pictórica da  
natureza. Obviamente que o reflexo disso na nova individualidade demonstra que aqui  
também o Renascimento teve um ponto de virada: Agnes Heller (1982, p. 126) está  
bastante certa ao dizer, em seu trabalho O homem do renascimento, que naquela  
época a arte se separou da techné e do entretenimento puro e simples, e o artista  
(antes nunca chamado nesses termos) começa a considerar a arte enquanto tal como  
seu objetivo, em vez de considerar como um simples produto secundário da atividade  
religiosa, ou mero artefato decorativo sob comissão com função puramente prática. O  
mundo começa a aparecer como um mundo feito de indivíduos e personalidades  
individuais. Nunca anteriormente havia sido possível hierarquizar as personalidades  
artísticas de acordo com um critério técnico e um juízo do belo no século seguinte,  
em 1557, atestando a decorrência acumulativa da individuação, Ludovico Dolce  
(c.1510-1568) estabelecerá a discussão sobre a quem cabe o debate sobre o belo  
estético, nascendo o que costumeiramente chamamos de crítica de arte. Uma  
passagem da Theologia platonica de Ficino, em sua quarta parte, fala sobre a natureza,  
e, por consequência, da observação da realidade material na determinação do  
pensamento:  
se a arte humana não é senão imitação da natureza, se a arte do  
homem fabrica as suas obras por motivos precisos (per certas operim  
rationes), de modo análogo procede a natureza: e com uma arte tanto  
mais viva e sábia quanto mais vivas age por meio de motivos vivos (si  
ars vivas rationes habet) (...), quanto mais vivos não deverão ser os  
motivos da natureza geradora dos viventes e produtora das formas?  
(...) E o que é a arte humana senão uma natureza que plasma a matéria  
de fora? E a natureza, o que é senão uma arte que intimamente  
modela a matéria, como se o modelador da madeira estivesse na  
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própria madeira? Mas se a arte humana, ainda que de fora, adere e se  
imiscui na obra que vai produzindo, a ponto de realizar a síntese entre  
a obra e a ideia (ut certa opera consummet certis ideis), quão melhor  
não fará a natureza! Esta não toca com instrumentos alheios a  
superfície da matéria, como faz a mente do geômetra quando inscreve  
as suas figuras sobre o terreno, mas é como uma mente geométrica  
que intimamente forma uma matéria fantástica (FICINO apud GARIN,  
1996, p. 96).  
Ao passo que existe o impulso denodado pela fatualidade empírica, o indivíduo  
do Renascimento tem como concepção de mundo além da inextrincável junção da  
filosofia com a ciência natural um credo filosófico. Grife-se com todo destaque a  
expressão credo. Esse aspecto em particular, vislumbrado agora na filosofia de Ficino,  
mostra que a filosofia da natureza e a ciência da natureza não eram diferenciadas da  
experiência da natureza (HELLER, 1982, p. 301). Isso significa que em poucos  
momentos da história humana estavam tão conectadas a filosofia da natureza e a  
concepção teológica. Por isso é tarefa inócua procurar no Renascimento uma arte pura  
de pintura de paisagens, ou uma poesia bucólica ou meramente descritiva da natureza.  
A experiência da paisagem só adquire autonomia na representação artística quando a  
filosofia e a ciência deixaram de desempenhar um papel nela, cindindo-se em campos  
distintos.  
Ernst Cassirer (2001, p. 80) ao discutir a obra de Nicolau de Cusa (1401-1464)  
sugere uma contradição entre a ubiquidade da tese deste que seria, segundo ele, um  
dos mais fundamentais filósofos do quattrocento e a sua parca aparição entre os  
gramáticos latinos da mesma geração e das seguintes. Há que se mencionar o fato de  
Giordano Bruno (1548-1600) ter mencionado que os dois maiores mentores que  
possibilitaram seu desenvolvimento intelectual foram Nicolau Copernico (1473-1543)  
e Nicolau de Cusa. Mas entre Bruno e Nicolau de Cusa existe um vão histórico de pelo  
menos um século e meio. Teria Nicolau de Cusa passado as gerações do quattrocento  
na obscuridade? Ao observar os sistemas filosóficos mais significativos, ao que tudo  
indica Nicolau de Cusa parece intocado; nem mesmo em Pietro Pomponazzi (1462-  
1525) ou nos pensadores da consagrada Escola de Pádua, bem como nos círculos  
platônicos de Ficino, o nome de Nikolaus von Kues é mencionado. Uma possibilidade  
hipotética sobre essa ausência talvez esteja na maneira como a partir do século XV o  
mundo não só italiano mas continental europeu passa a formar um contingente de  
homens letrados que não se vinculam diretamente à escola erudita dos literati.  
Leonardo da Vinci (1452-1519) seria um bom exemplo desta maneira de proceder, e  
teria de Nicolau de Cusa a sua basilar interpretação cosmológica, segundo Cassirer  
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(2001) interpretação diversa tem Eugenio Garin (1996). No que diz respeito a essa  
relação de Nicolau de Cusa e Leonardo, há um aspecto que parece bastante relevante:  
ao tríptico cusano, De sapientia, De mente, De staticis experimentis, o seu autor deu  
o aposto O idiota, porque o leigo, o inculto, geralmente é o personagem que na sua  
obra aventa as questões mais dinâmicas cujas resoluções perpassam essa dimensão  
do indivíduo iletrado. Em certa medida, essa é uma questão que assombra a vida de  
Leonardo. Quando preterido por Lorenzo, Leonardo parte a Milão, onde se fixa; de  
Ficino e da escola neoplatônica leva muito pouco em sua bagagem Garin (1996)  
sustenta, a despeito de Cassirer (2001), que a base dos estudos leonardescos está  
nos florentinos da escola neoplatônica, como Ficino, Poliziano e Cristoforo Landino  
(1424-1498) , mas de Nicolau de Cusa, segundo Cassirer (2001) apreende não só  
uma visão filosófica de mundo como um novo proceder metodológico, o que significa  
uma nova direção de pesquisa. Ainda que devidamente sustentada algumas reflexões  
de Leonardo nas obras dos neoplatônicos de Ficino, sufragadas em passagens literais  
demonstradas por Garin (1996), é sabido que Leonardo não pertenceu aos círculos da  
escola em torno do Medici, e uma vez fora da sua zona de influência, teria se voltado  
à materialidade da natureza, característica vislumbrada nos seus estudos anatômicos  
e nas obras de engenharia hidráulica. Essa verificação garante a Cassirer a afirmação  
de que Nicolau de Cusa “não é o representante de um determinado sistema filosófico;  
ele é, muito mais, o representante de um novo tipo de estudo, de uma nova direção  
da pesquisa” (CASSIRER, 2001, p. 86). Segundo o Cassirer, então, o impacto de uma  
ruptura tão importante representa a substituição de um estudo teológico e de um  
sustento filosófico na Antiguidade para a nova direção prática, a tendência geral a se  
ater a tarefas técnico-artísticas concretas, para as quais se monta uma teorização  
somente depois de ter matizado o objeto materialmente. Leon Battista Alberti (1404-  
1472) incorpora essa tendência e, em seus escritos matemáticos, demonstra estar  
ligado à interpretação cusana de mundo. Ainda que ligada às questões místicas em  
sua base, a busca da interpretação da natureza por Nicolau de Cusa é uma fuga  
deliberada da escolástica e do silogismo aristotélico, em busca de uma racionalidade  
matemática e que, paradoxalmente, busca a fundamentação do conhecimento de Deus.  
Mas se é verdade que aqui se assenta a explicação religiosa de mundo, é também  
verdade que “aqui se processou a ruptura para o campo aberto e livre da ciência  
objetiva” (CASSIRER, 2001, p. 91). A implicação de tal ruptura indica que a ciência do  
Renascimento envolve a ideia de técnica. Ao que parece, Cassirer superestima o  
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sentido do rompimento, apresentando uma verdadeira ruptura de ordem  
epistemológica. Apesar disso, não é sem razão que no Codice atlântico de Leonardo,  
tal qual em seu Tratado da pintura (DA VINCI, 2019), temos uma rejeição da cópia dos  
modelos, sejam os modelos filosóficos eruditos latinos, afinal, Leonardo ressentia-se  
pelo fato de o acusarem per non avere lettere; sejam os cânones pictóricos, que, na  
sua época, seu passo em direção a uma pintura mais naturalista acontece tanto pelo  
ingresso sistemático do óleo por Antonello da Messina (1430-1479) (VASARI, 2011),  
como por sua reflexão ulteriormente teorizada de que a pintura se degenera se copia  
modelos existentes em vez de mimetizar a própria natureza (Hauser, 1995; Garin,  
1996). Essa situação revela uma nova direção em busca da realidade objetiva no  
campo da interpretação cosmológica e, especialmente, na execução técnica por meio  
da observação e da experiência concreta. Supostamente alicerçado em Nicolau de  
Cusa, de acordo com Cassirer (2001), Leonardo elabora um novo saber-fazer, e, talvez,  
por isso, a filosofia cusana parece seguir inócua entre os literati. Importa-nos aqui,  
reiterando Ernst Cassirer, que quando “Nicolau de Cusa expõe e defende sua  
concepção básica de saber, quando explica que toda a ciência não é outra coisa senão  
o desenvolvimento e a explicação” de tudo que está contido no mundo objetivo, ele  
está voltando materialmente aos âmbitos “do saber técnico e da criação técnica”  
(CASSIRER, 2001, p. 97), implicando uma noção bastante empirista da observação da  
natureza. Muito posteriormente, também Galileu se envereda nesta direção quando se  
considera defensor do direito da experiência, enfatizando que o espírito não pode criar  
o conhecimento autêntico senão por si mesmo. Em suma, segundo o filósofo polonês,  
à medida que a nova ciência da natureza toma como ponto epistemológico de saída a  
apreensão do objeto material, ao desvincular da Escolástica, esta autonomiza-se sem  
precisar romper os laços que a uniam à filosofia Antiga (CASSIRER, 2001, p. 99).  
Ainda segundo Cassirer (2001), engana-se aquele que atribui ao Renascimento  
um desenvolvimento paulatino em direção do abandono da teologia medieval. O que  
se vê, em vez de caminho paulatino e retilíneo, é uma ruptura drástica no século 15,  
e que se erige fora da Itália, em Nicolau de Cusa, na percepção da nova ciência. Duas  
tendências percorriam o desenvolvimento deste século: de um lado, a manutenção da  
Escolástica medieval, não exatamente uma continuidade do aristotelismo, mas uma  
visão sui generis e medieval de uma teologia que teria partido de premissas silogísticas  
aristotélicas; de outro, a cultura clássico-humanista. Não obstante, para Cassirer  
(2001), se toda a filosofia do quattrocento esteve envolvida nessa dualidade, vale  
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notar que a visão “reacionária” em direção ao medievalismo vai ganhando forças e  
acaba por ameaçar a filosofia humanista. Esta, por sua vez, transforma-se em armadura  
defensiva das forças seculares, de sorte que a filosofia “não pode cumprir essa tarefa  
sem colocar em risco novamente os primeiros passos trilhados por Nicolau de Cusa  
rumo a uma metodologia autônoma e específica sem voltar a converter-se mais e mais  
em ‘teologia’” (CASSIRER, 2001, p. 103). Não foi sem motivos que a obra de Ficino  
esteve em torno de uma theologia platonica e a de Giovanni Pico della Mirandola  
(1463-1494), uma reflexão sobre a criação. O próprio discurso piquiano, Oratio de  
hominis dignititade (Pico, 2021), discorre sobre o agir virtuoso mas não sem, antes  
disso, transcorrer o âmbito teológico. Ao que tudo indica, Cassirer (2001) vislumbra  
na trajetória do Renascimento o que para ele é o ponto central da história: o problema  
da gnosiologia. Talvez por isso reivindique o fato de Nicolau de Cusa ter passado  
incólume entre os italianos da sua geração como uma falha do pensamento latino.  
Contudo, uma observação da dinâmica intelectual piquiana demonstra outros aspectos  
um pouco negligenciados pelo filósofo polonês.  
Para se compreender historicamente a questão do último quattrocento vale a  
retomada da polêmica astrológica realizada por Pico. A princípio é forçoso se colocar  
na discussão histórica da própria polêmica. Nas Disputationes adversus astrologiam  
divinatricem de Pico, a polêmica não é perpetrada contra um sistema ligado à tradição  
aristotélica-ptolomaica de mundo, nem mesmo contra uma consideração do cosmos  
que encontra sua base teórica na distinção qualitativa entre os mundos terrestre e  
celeste. Ao observar a ruptura piquiana devemos levantar a questão astrológica no seu  
significado coetâneo, que não era uma visão física do universo, mas uma  
antropomorfização do universo cosmológico, o que implicava uma ideia de  
comportamentos e emoções humanos no mundo astronômico. Essa situação  
corresponde a atribuição de teleologia ao universo cósmico, o que Paolo Rossi (1992,  
p. 38) acertadamente denomina um amálgama híbrido entre ciência e religião. Vistos  
por olhos pós-copernicanos, as Disputationes de Pico são inconsistentes ou  
superficiais. Entretanto, ao colocarmos a presença histórica do objeto no holofote,  
veremos que o ponto de partida de Pico é o mesmo da sua geração sobre a astrologia,  
que Cassirer (2001) chama de centralidade da liberdade do homem; mas Pico  
extrapola esse ponto quando coloca em relevo os equívocos que pertencem à  
astrologia, e nos remete ao fundamento da metodologia moderna: a astrologia é um  
tipo de saber que nunca consegue se configurar como saber rigoroso, mas que tentou  
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assim se consolidar. Voltando ao itinerário da disputa médica que tomou conta a  
discussão de Chasin, vale notar uma passagem de Pico:  
De um lado, a astronomia, arte segura e nobre, plena de dignidade  
por seus méritos, que mede a grandeza e o movimento das estrelas  
com um método matemático; a medicina, liberada da teoria dos dias  
críticos e da influência dos signos zodiacais, reconduzida ao método  
de Hipócrates que procura “no exame das urinas” e não nos astros,  
no “pulsar das veias” e não no movimento das esferas os sinais do  
futuro desenvolvimento da doença; a meteorologia; a doutrina das  
marés, que exclui o recurso a uma força oculta ligada ao movimento  
e à luz da lua; de outro lado, toda uma série de superstições, de cultos  
e de cerimônias, nascidos junto a povos “de índole pouco apta ao  
saber”, “inexperientes de raciocínios físicos” e “rústicos de engenho”  
como os caldeus e os egípcios, “que não puderam abster-se de  
imputar aos astros as próprias culpas e as próprias penas, derivando  
deles tantos os males da alma como do corpo”. (PICO apud ROSSI,  
1992, pp. 38-39)  
Pico tem consciência que a astrologia parte de um saber pouco criterioso pelo  
qual existe uma promessa que simboliza tanto o porvir, o destino do conjunto social,  
como promessas, e que isso estimula a curiosidade popular. Mas ao perceber que a  
astrologia parte desta situação pouco criteriosa, Pico vê a imputação da realidade  
cotidiana a um significado cósmico, num cosmos repleto de sentimentos e simbologias  
peculiarmente humanos e não naturais (aqui tratado como cisão aquilo que é  
tipicamente natural, de um lado, e humano, de outro). Segundo o renascentista em  
questão, a astrologia, portanto, não só não é capaz de dar coisas úteis à humanidade,  
como contamina a reflexão séria sobre a vida. Esse juízo piquiano é reiterado  
posteriormente por Francis Bacon (1561-1626), para quem a astrologia deve ser  
condenada por não ser um saber refutável, uma mística que despreza evidências que  
lhe são desfavoráveis. Bacon coloca a questão da refutabilidade e da metodologia no  
itinerário científico. Se observarmos o fundamento sobre a questão astrológica de  
Johannes Kepler (1571-1630), vemos que ele próprio se refere diretamente a Pico.  
A polêmica astrológica que foi levantada por Cassirer (2001) em 1927 articula  
um cisma bastante evidente entre epistemologia e magia, mas não nos parece que  
essa situação esteja sufragada na história ou pelo menos não tão evidente como ele  
a apresenta. A observação de Eugenio Garin em duas obras, a primeira, sobre Pico  
(Garin, 1937) e, a segunda (Garin, 1976), sobre a própria polêmica astrológica do  
trecento ao cinquecento, remete a discussão a um estatuto mais complexo. A própria  
polêmica astrológica seria, então, resultado de uma longa jornada reflexiva que teria  
em Pico um ponto alto (GARIN, 1976, p. 23). Ainda assim, Pico e Savonarola (1452-  
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1498) estavam animados por uma questão de páthos moral, e combatem o télos  
astrológico (ou o destino estelar) em nome do livre arbítrio que não pode estar sujeito  
à natureza, mas a Deus; e nesta batalha, não se alinham com os novos humanistas,  
mas contra esses humanistas. Daí que Cassirer (2001), ao dizer que as obras  
combatem em nome da razão científica, não percebe que Pomponazzi e Pico, em De  
incontationibus e Disputationes, respectivamente, estão dialogando fortemente contra  
parcela da escola humanista e, acima de tudo, entre si. A implicância disso é a anulação  
da esquemática ideia de ruptura que uma revolução epistemológica teria perpetrado  
ao longo do Renascimento, em vez de um caminho repleto de contradições sinuosas.  
O próprio Kepler, que não acreditava na validade dos prognósticos astrológicos,  
sustentava abertamente a existência da alma do Sol (GARIN, 1976, p. 28), e Galileu  
denotava hilozoísmo em suas afirmações astronômicas. A história pode sufragar, no  
lugar das rupturas drásticas, um caminho contraditório e acumulativo humano-  
genérico em direção daquilo que conhecemos como ciência moderna. A tese da ruptura  
epistemológica drástica é uma invenção contemporânea tal qual a de que o humanismo  
se opunha às questões religiosas, em vez de ser o que realmente era, a saber, uma  
doutrina do catolicismo.  
O que se processa é uma invalidação da ciência astrológica ainda dentro da  
cosmovisão teológica. O humanismo tentou traçar uma linha divisória entre a  
astronomia como ciência de rigor, que é capaz de medir movimentação de corpos  
celestes, de um lado, e astrologia como combinação de uma concepção de mundo, de  
culto astrais e de técnicas proféticas, de outro. Nesse sentido, pensando com Eugenio  
Garin (1976), a polêmica astrológica é um grande laboratório para se compreender o  
homem do Renascimento em seu complexo contraditório do humanismo. Num mesmo  
local se observa a mais rica e avançada teorização de caráter científico, com ousadas  
experimentações, e explicações religiosas e um tanto ingênuas de mundo, com ecos  
em crenças primitivas. Por isso mesmo é refutável a tese apresentada como um lugar  
comum, de uma ruptura entre astrologia e astronomia no Renascimento. Ernst Cassirer  
(2001, pp. 105-111) atribui à adesão de Pico a Savonarola, ao final da sua vida, o  
obscurantismo que pôde fazer parte da sua filosofia. Mas nada pode ser tão falso  
quanto isso, afinal, a livre iniciativa humana, tese aprofundada para combater a  
influência da natureza contra a influência de Deus no destino dos homens, foi  
elaborada por Pico muito antes do seu contato com Girolamo Savonarola (GARIN,  
1976, p. 45). Se já está tudo escrito nos céus, qual é o sentido da obra do Homem?  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
Esta seria a pergunta guia de Pico inclusive, o argumento fundamental ulterior do  
embate católico contrarreformista, quando ocorre a predestinação calvinista no interior  
do cristianismo. Daí uma espécie de tensão existente entre a instância humanista, que  
opõe a obra livre do homem ao determinismo natural, e a concepção de um renascer  
inscrito num caráter cíclico que parece subordinar qualquer acontecimento da história  
humana aos movimentos celestes, portanto, de uma história natural-teleológica. Daí  
também o esforço para assegurar a iniciativa do homem através de um trabalho de  
distinção e de escavação, que no interior da astrologia separa tudo o que seja uma  
concepção naturalista, da possibilidade de decisões e de escolhas individuais.  
A este ponto ninguém melhor que Eugenio Garin (1976, pp. 97-99),  
novamente, para verificar as contradições em torno de Ficino, Pico e Savonarola. A  
discussão católica em torno da magia é a baliza para a impugnação da astrologia por  
parte de Pico e de Savonarola. A despeito do contato mais íntimo ao final da vida de  
Pico com as interpretações de Savonarola, não se pode esquecer que desde o  
princípio, o elemento que norteia a questão astrológica de Pico está em torno da sua  
concepção da liberdade humana inconciliável com os pressupostos da astrologia  
divinatória. Em vez de uma observável ruptura de fundo, com consciência  
epistemológica, o que se tinha naquela época em Pico era um primeiro ingresso de  
uma análise da natureza por meio de uma busca metodológica explicativa do mundo.  
Mas esse ingresso na análise da natureza tinha como princípio a tentativa de impugnar  
uma teleologia da natureza, ou seja, uma natureza que decide sobre os rumos do  
mundo humano.  
Garin lembra, com razão, que sobre a influência da Lua sobre as marés, Pico  
conclui com grande firmeza:  
nada nos impede de admitir na Lua, além do movimento e da luz, um  
novo poder por meio do qual se mova o mar, desde que, examinando  
todas as diferenças das marés, evidentemente, se possa encontrar  
uma claríssima causa, ou no movimento do astro que sobe e que  
desce, ou no crescimento e diminuição da luz (PICO apud GARIN,  
1976, pp. 99-100).  
Nesta situação, a validade da comprovação empírica é o intento de aceitar as  
causas naturais, e tudo o que não se pode atribuir a causas naturais do movimento do  
astro é rejeitado. Pico, quando observamos a polêmica médica levantada pelo diálogo  
de O futuro ausente, de Chasin (2000), dá um passo além neste ponto, justamente por  
não vincular o mundo ideal a uma esfera superior àquela da realidade imanente, de  
Verinotio  
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nova fase  
Claudinei Cássio de Rezende  
sorte a se declarar positivamente em direção do progresso médico [artis opera semper  
esse feliciora, quae cum naturae progressione concordant] (PICO apud GARIN, 1976,  
p. 100). Pico percebe os astros como causas físicas, alinhado ao aristotelismo. Mas  
estas causas não se relacionam com fenômenos particulares do mundo terreno. A essa  
característica analítica piquiana se juntam a polêmica antiocultista, a defesa da  
liberdade humana de qualquer afirmação do destino, a análise crítico-histórica das  
teorias astrológicas como disfarce de cultos astrais e de concepções gerais do mundo  
a ele ligadas, e, por fim, a defesa do cristianismo. A novidade histórica aqui reside no  
fato de Pico distinguir o elemento racional do elemento mítico, escavando em mais  
campos do saber empírico, isolando aspectos e procedimentos propriamente  
científicos de intrusões de gêneros distintos, como intuições místicas, resto de crenças  
antigas, superstições. Foi por essa razão que o décimo segundo livro das  
Disputationes de Pico está totalmente debruçado sobre a reconstrução da história da  
astrologia como progressiva influência de crenças religiosas de povos mais arcaicos,  
como caldeus e egípcios, o que, para Pico, não ocorreu fortuitamente. O centro da sua  
crítica está justamente em observar que a astrologia não faz observação física dos  
astros para relacioná-los com uma causalidade, de maneira a não ter como provar  
quais elementos são resultados causais de quais fenômenos astrológicos, o que, por  
si só, atesta a causa pouco criteriosa da investigação astrológica divinatória. É na busca  
de uma defesa de um cristianismo que o humanismo de Pico se debate contra a  
astrologia, justamente pelo fato de esta se concretizar como um saber fantasioso  
acerca de uma natureza teleológica. Note-se que isso não implica uma racionalidade  
totalmente moderna de mundo, mas uma anulação de uma natureza teleológica no  
interior do discurso do livre-arbítrio que, por sua vez, está preso a uma teleologia  
teológica.  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
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Como citar:  
REZENDE, Claudinei Cássio de. Da observação da natureza como apreensão do  
conhecimento na passagem do primeiro ao segundo humanismo renascentista: uma  
continuidade do debate iniciado por J. Chasin n’O futuro ausente. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 28, n. 1, pp. 266-281, Edição Especial, 2022/2023.  
Verinotio  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 266-281 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 281  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.670  
J. Chasin e a determinação ontonegativa da  
politicidade1  
J. Chasin and the ontonegative determination of politicity  
Sabina Maura Silva*  
Resumo: O presente texto tem por objetivo expor  
a tematização de J. Chasin acerca da natureza da  
política em Karl Marx. Segundo Chasin, a crítica  
marxiana à política tem caráter ontológico,  
permitindo conhecer o significado maior do  
ideário marxiano: a distinção necessária entre  
revolução política e emancipação humana. Tema  
de fundo que permeia diretamente os propósitos  
marxianos de revolver e transformar a anatomia  
da sociedade civil na direção da emancipação  
humana. Em outras palavras, segundo Chasin, a  
problemática nodal do pensamento marxiano é a  
emancipação humana, tema, ele mesmo,  
decorrente imediato da própria determinação  
marxiana da individualidade humana: ser ativo e  
Abstract: This text aims to expose J. Chasin's  
thematization about the nature of politics in Karl  
Marx. According to Chasin, the Marxian critique  
of politics has an ontological character, allowing  
to know the greater meaning of Marxian ideas:  
the necessary distinction between political  
revolution and emancipation human. Theme that  
directly permeates the Marxian purposes of  
revolving and transforming the anatomy of civil  
society in the direction of human emancipation.  
In other words, according to Chasin, the core  
issue of Marxian thought is human  
emancipation, a theme, itself, an immediate  
result of the Marxian determination of human  
individuality: being active and social, self-  
builder of oneself and one's worldliness, even if  
in a way contradictory and odd. Chasin  
determines, in this way, that it is in the root  
condition that the ontological critique of politics  
is set and worked by Marx, so that the lack of  
understanding of the real meaning of the  
critique of the categorical complex of politicity  
power, politics and the state reduces , when  
not impeding, real access to the <arxian text.  
social, autoconstrutor de si  
e
de sua  
mundanidade, ainda que de modo contraditório  
e estranhado. Chasin determina, desse modo,  
que é na condição de raiz que a crítica ontológica  
à política se põe e é trabalhada por Marx, de  
sorte que a não compreensão do sentido real da  
crítica ao complexo categorial da politicidade o  
poder, a política e o estado reduz, quando não  
obstaculiza, o real acesso ao texto marxiano.  
Palavras-chave: Chasin; Marx; crítica da política;  
determinação ontonegativa da politicidade;  
emancipação humana.  
Keywords: Chasin; Marx; critique of politics;  
ontonegative determination of politicity; human  
emancipation.  
1
Versão revista e ampliada do texto intitulado J. Chasin: para a crítica da razão política, publicado em  
Revista Ensaios Ad Hominem, n. 1, t, III Política (Estudos e Edições Ad Hominem, São Paulo, 2000) e  
republicado sob o título A crítica da razão política revisitada em Verinotio - Revista on-line de Filosofia  
e Ciências Humanas, v. 15, ano 15, pp.1-12, 2013. Disponível em <http://www.verinotio.org>. Revisado  
por Vânia Noeli Ferreira de Assunção.  
*
Doutora em educação. Docente do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet -  
MG). E-mail: sabinamaura@cefetmg.br.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
Introdução  
O presente texto tem por objetivo expor a tematização de J. Chasin acerca da  
natureza da política em Karl Marx. Segundo Chasin, a crítica marxiana à política tem  
caráter ontológico, permitindo conhecer o significado maior do ideário marxiano: a  
distinção necessária entre revolução política e emancipação humana. Tema de fundo  
que permeia diretamente os propósitos marxianos de revolver e transformar a  
anatomia da sociedade civil na direção da emancipação humana. É justamente a partir  
desse núcleo que se põem a crítica à política e a prospectiva da revolução social “como  
necessidade permanente e infinita” (CHASIN, 2000, p. 51), na medida em que  
permanente e infinito é o processo de individuação social. Em outras palavras, na  
consideração chasiniana, a problemática nodal do pensamento marxiano é a  
emancipação humana, tema central, ele mesmo decorrente imediato da própria  
determinação marxiana da individualidade humana: ser ativo e social, autoconstrutor  
de si e de sua mundanidade, ainda que de modo contraditório e estranhado.  
Chasin determina, desse modo, que é na condição de raiz que a crítica ontológica  
à política se põe e é trabalhada por Marx desde os antigos Anais Franco-Alemães, de  
1844, até os “Materiais preparatórios para A guerra civil na França”, de 1871. De  
sorte que a não compreensão do sentido real da crítica ao complexo categorial da  
politicidade o poder, a política e o estado em Marx reduz, quando não obstaculiza,  
o real acesso ao texto marxiano. Ademais, Chasin adverte para o caráter originalíssimo  
da determinação marxiana da natureza e da finalidade da política, isto é, como  
momento necessário do desenvolvimento de sociabilidades contraditórias, centradas  
na particularidade histórica da propriedade privada.  
Ao analisar textos marxianos importantíssimos como Sobre a questão judaica e  
as Glosas críticas ao artigo O rei da Prússia e a reforma social, redigidos  
respectivamente em 1843 e 1844, Chasin evidencia que Marx é levado a compreender  
a “força política como força social pervertida e usurpada, socialmente ativada como  
estranhamento por debilidades e carências intrínsecas às formações sociais  
contraditórias, pois ainda insuficientemente desenvolvidas e, por consequência,  
incapazes de autorregulação puramente social” (CHASIN, 2009, p. 65).  
No entanto, a análise de Chasin não para por aí. Tendo como base de sua  
argumentação os próprios textos de Marx, ele denuncia a natureza da própria  
politicidade e mostra como esta é incapaz de promover o caminho que conduza à  
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Sabina Maura Silva  
efetiva emancipação humana. Assim, em Ad Hominem: rota e prospectiva de um  
projeto marxista, Chasin afirma que “a sociabilidade imperfeita, substância ainda não  
realizada enquanto tal, ou seja, ainda incapaz de autonomia como complexo  
estruturado, conduz à política, ou seja, a política como autodeterminação na forma de  
alienação” (CHASIN, 2000, p. 34).  
De modo que o longo e rigoroso trabalho de escavação da obra de Marx,  
culminou, entre outras descobertas teóricas efetuadas por Chasin, na explicitação da  
natureza da política sua determinação ontonegativa , bem como na indicação de  
seus limites e na prospectiva de sua superação.  
I - A determinação ontonegativa da politicidade  
Dois aspectos fundamentais que norteiam a obra de Chasin devem ser relevados,  
a fim de que se alcance a devida compreensão do que aqui se trata.  
O primeiro diz respeito ao seu núcleo movente: a busca do deciframento da  
realidade, cujo pressuposto é o reconhecimento do real como síntese objetiva de  
múltiplas determinações e, por condição de possibilidade, o desvendamento de cada  
uma de suas esferas constitutivas e da correlação entre elas para, a partir daí,  
identificar os indicadores e possibilidades objetivos de sua transformação.  
O segundo se refere ao “retorno a Marx”, ou seja, à leitura dos textos marxianos  
por eles mesmos. Isto significa que Chasin não cede ao procedimento que caracterizou  
o padrão seguido por boa parte dos intérpretes marxistas e não marxistas, que tratam  
a obra de Marx a partir de vetores extrínsecos, sejam de caráter epistêmico, sejam  
politicistas, e tampouco adere à moda das interpretações, das “hermenêuticas da  
imputação”, como ele mesmo refere. Assim, o que explicita o cunho singular de seu  
trabalho é o fato de Chasin penetrar na obra marxiana tendo como preocupação  
precípua desvendá-la, no exato sentido de estabelecer as categorias e articulações que  
a compõem. Partindo do princípio marxiano de que criticar é buscar a decifração de  
algo visando ao seu esclarecimento, a fim de capturá-lo em seu significado próprio  
(CHASIN, 2009, pp. 69-74) e exercitando o que considera ser o “autêntico  
procedimento de rigor”, que requer “a subsunção ativa aos escritos investigados”  
(CHASIN, 2009, p. 40), aplica-o em sua investigação nos textos de Marx, o que lhe  
possibilita trazer à luz o centro irradiador do pensamento deste autor: a delucidação  
dos processos constitutivos da mundanidade humana. É, pois, a partir da apreensão  
de que a pedra de toque da reflexão de Marx refere-se à problemática da  
Verinotio  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
autoconstrução humana que Chasin identifica o lugar que as questões da  
individualidade e da efetivação do mundo histórico-social ocupam no interior do  
complexo teórico marxiano, extraindo e configurando, no que diz respeito à  
politicidade, o que denomina como sua determinação ontonegativa.  
Muito embora se possa apresentar esses dois aspectos de forma separada, é  
importante chamar a atenção para o fato de que ambos acabam por se constituir em  
momentos de uma unidade teórico-prática, em que a compreensão da realidade passa  
a exigir a leitura atenta da obra de Marx, a qual se põe como o instrumento teórico  
essencial para a devida crítica do real. Assim, penetração da realidade e escavação do  
texto marxiano se revelam como postas por nexos da própria necessidade interna ao  
processo de intelecção levado a efeito por Chasin. De modo que a compreensão do  
real não significou descrevê-lo fenomenologicamente, tampouco empírico-  
logicamente, e nem a escavação da obra marxiana significa um puro exercício de  
curiosidade acadêmica. Enfim, o que Chasin visa, e para o que encontra arrimo em  
Marx, é à delucidação da gênese e necessidade de cada uma das múltiplas  
determinações que compõem a realidade humano-societária.  
Em face disso, deve ficar claro que a identificação da determinação ontonegativa  
da politicidade não é um ponto de partida, mas uma conquista, passível de ser  
percebida a partir mesmo da observação cronológica dos textos redigidos sobre esse  
objeto. Assim, gradativas aquisições teóricas ascenderam da percepção do caráter  
negativo das tarefas e dos procedimentos políticos à compreensão da própria natureza  
ontonegativa da politicidade, ou seja, à compreensão de que a “política não é um  
atributo necessário do ser social, mas contingente no seu processo de autoentificação”  
(CHASIN, 2000, p. 54).  
A configuração mais acabada deste percurso encontra-se explicitada no texto  
Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, publicado em 1995, pela Editora  
Ensaio. Nesse, analisando a consagrada tese de que o pensamento de Marx se originou  
de um “tríplice amálgama”, síntese dos aspectos positivos da economia política  
inglesa, da ciência política francesa e da filosofia especulativa alemã, Chasin observa  
que  
a lida constante e decisiva de Marx em torno dos ramos de ponta  
da produção teórica de sua época não implica a química da retenção  
e ligatura das melhores porções dos mesmos no amanho da própria  
obra. Desde logo, do amálgama não há qualquer vestígio textual, nem  
é minimamente passível de sustentação, uma vez que mera  
Verinotio  
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Sabina Maura Silva  
inviabilidade teórica em face do novo padrão reflexivo, marcante e  
altamente consistente, do conjunto da reflexão marxiana instaurada a  
partir de meados de 1843 e estendida até os últimos escritos  
(CHASIN, 2009, p. 39).  
Refutando a tese do “amálgama originário”, a investigação de Chasin revela que  
a instauração do pensamento marxiano propriamente dito se dá a partir da crítica  
ontológica a estes três ramos da máxima produção espiritual de seu tempo. Aponta  
que a primeira crítica incide precisamente “sobre a matéria política”, proporcionando  
“a conquista precoce de uma dimensão fundamental ao pensamento marxiano”  
(CHASIN, 2009, p. 63) a já referida determinação ontonegativa da politicidade e  
que esta “é o marco exponencial que separa, totalmente, o Marx juvenil (...) do Marx  
marxiano que principia em [18]43” (CHASIN, 2009, p. 63).  
Segundo Chasin,  
tratando-se de uma configuração de natureza ontológica, o propósito  
essencial dessa teoria é identificar o caráter da política, esclarecer sua  
origem e configurar sua peculiaridade na constelação dos predicados  
do ser social. Donde é ontonegativa, precisamente, porque exclui o  
atributo da política da essência do ser social, só o admitindo como  
extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de  
historicamente circunstancial; numa expressão mais enfática, enquanto  
predicado típico do ser social, apenas e justamente, na particularidade  
do longo curso de sua pré-história (CHASIN, 2009, p. 63).  
De modo que a política é uma contingência histórica vigente na particularidade  
do longo período em que os indivíduos estão impedidos de reger, eles próprios, suas  
existências.  
Tal determinação, esclarece Chasin, contrapõe-se à determinação ontopositiva  
da politicidade, partilhada secularmente, inclusive pelo Marx não-marxiano época em  
que elabora sua tese doutoral e os artigos da Gazeta Renana , que  
identifica na política e no estado a própria realização do humano e de  
sua racionalidade. Vertente para a qual estado e liberdade ou  
universalidade, civilização ou hominização se manifestam em  
determinações recíprocas, de tal forma que a politicidade é tomada  
como predicado intrínseco ao ser social, e nessa condição enquanto  
atributo da sociabilidade reiterada, sob modos diversos, que de uma  
ou de outra maneira a conduziram à plenitude da estatização  
verdadeira na modernidade. Politicidade como qualidade perene,  
positivamente indissociável da autêntica entificação humana, portanto,  
constitutiva do gênero, de sorte que orgânica e essencial em todas as  
suas atualizações (CHASIN, 2009, p. 49).  
Nota-se que ambas as determinações giram em torno da questão dos atributos  
específicos do ser social. Nesse sentido, para que a distinção entre elas fique bem  
Verinotio  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
demarcada, convém que se a apresente. E, em função de a determinação ontonegativa  
da politicidade constituir, aqui, o tema central, é pertinente iniciar pela determinação  
marxiana do ser social, da qual decorre.  
Para Marx, o humano é uma forma específica de ser. Dada sua especificidade  
ontológica, é necessariamente levado a forjar suas condições de existência, ou seja, a  
produzir e reproduzir seus meios de vida, instituindo, com isso, a mundanidade própria  
a si. Isso significa que o mundo humano, ou seja, o modo de existência dos indivíduos,  
é criação objetiva dos próprios indivíduos. Produto da atividade apropriadora de  
mundo, posto por via da interatividade social dos indivíduos, Chasin ressalta, citando  
um trecho de A ideologia alemã: “a prioridade nas formações sociais é, pois, ‘um  
sistema de laços materiais entre os homens, determinado pelas necessidades e o modo  
de produção (...) mesmo sem que exista ainda qualquer absurdo político ou religioso  
que contribua também para unir os homens’” (CHASIN, 2000, p. 54).  
De modo que a ontonegatividade se refere ao fato de que a instância da  
politicidade o poder, a política, o estado não é fundadora, ou garantidora, da  
sociabilidade, pressuposto basilar à determinação ontopositiva. Tal não se dá e não  
pode se dar porque a sociabilidade é uma das determinações específicas do ser  
humano, sua substância constitutiva, enfim, a especificidade decisiva para a efetivação  
das individualidades. Em outros termos, a politicidade, nessa acepção, aparece como  
resultante do modo de produção e reprodução dos meios de existência dos indivíduos,  
o qual é a instância determinante da sociabilidade. Em face do que, aponta Chasin, o  
“‘modo de cooperação’ compõe a base insuprimível das formas de sociabilidade –  
matriz da totalidade da existência social” (CHASIN, 2000, p. 54). Diversamente, na  
acepção positiva, a politicidade emerge como condição de possibilidade da  
sociabilidade, constituindo uma necessidade a partir do próprio modo de ser dos  
indivíduos.  
Dois aspectos importantes devem ser ressaltados, no que tange à concepção  
ontopositiva da politicidade. O primeiro é que, embora não seja tomada como a  
substância entificadora dos indivíduos, é a esfera da sociabilidade que constitui  
propriamente o ponto de partida dessa determinação.  
Como demonstram as análises de Chasin constantes nos textos O futuro ausente  
e Sobre o conceito de totalitarismo, a filosofia política moderna expressa idealmente,  
desde o seu nascimento, a ordem do capital, que efetivamente pulveriza e contrapõe  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 1, pp. 282-299 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 287  
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Sabina Maura Silva  
os indivíduos, de modo que o espaço político emerge, assim, com a instância  
controladora dos choques de interesses societários antagônicos.  
Analisando os pensamentos de Maquiavel e Hobbes, Chasin aponta que, sendo  
o primeiro a constatar o fenômeno social da contradição, Maquiavel teve como  
perspectiva sua jugulação, visando ao “equilíbrio dos seus elementos divergentes”  
(CHASIN, 2000, p. 230). E, apesar de ter “como inspiração de fundo a lógica  
comunitária” (CHASIN, 2000, p. 230), essa aparece  
alterada radicalmente nos efeitos, dada a corporificação específica que  
assume. Ocorre, de fato, uma inversão: deixa de haver o homem da  
interatividade que humaniza, que instaura o humano, para se  
manifestar a ‘comunidade’ do choque regulado, mantida pela tensão  
permanente, mesmo porque já não se trata da comunidade regida pela  
cooperação, mas pela competição ou livre concorrência em que o  
princípio comunitário não é mais do que remanescência nostálgica; e  
nela o conferente da humanidade não é mais o próprio homem ativo,  
mas a exterioridade da normatização do choque o império absurdo  
do conflito perene, em que a lei é a cadeia que imobiliza as  
contradições (CHASIN, 2000, p. 230).  
Assim, para Maquiavel,  
o Paraíso republicano (...) é a comunidade atrófica do conflito regulado  
que encerra (...) todo humanus possível. Paraíso para o qual a  
desunião é o suposto positivo e insuperável, ou seja, condição de  
possibilidade do umanare pela exterioridade da lei, e não já por  
mediação atualizadora da potência inerente à interatividade dos  
homens, como ocorria (não importa em que limites) na comunidade  
antiga. Por simples decorrência, dado que anterior à humanização, a  
desunião é, pois, a arena conflitada da desumanidade e o indivíduo –  
o átomo substancial desta, uma vez que, provindo de fora, o humano  
é extrínseco ao homem. Portanto, antes da coerção legal, o homem é  
pura naturalidade não-humana e o humanus, aquisição posterior,  
simplesmente uma regulação do desumano. Ou seja, entre os dois  
momentos não ocorre qualquer mudança qualitativa, a natureza  
humana não se altera e enquanto tal é tematizada por Maquiavel como  
egoísmo universal (CHASIN, 2000, p. 232).  
No que se refere a Hobbes:  
A progressão e o adensamento da sociedade mercantil, indutores do  
processo racionalizante, conduz à visão do estado enquanto isento de  
mistérios originários. À pletora das individualidades isoladas que só  
se encontram e vinculam pela mediação das trocas toda a  
sociabilidade e todo estatismo acabam por se equiparar a um resumo  
de conexões voluntariamente contratadas pelos agentes singulares.  
(CHASIN, 2000, p. 238)  
O segundo aspecto concerne ao fato de que a fé na política tem como  
contrapartida a descrença no humano e, como “a autonomização e o isolamento  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 282-299 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
modernos (...) compreendem (...), no centro do processo, a ruptura com o homem”  
(CHASIN, 2000, p. 235), a filosofia política moderna se ergue sobre uma determinação  
negativa do homem. Por isso é que, para Maquiavel, “a desumanidade do homem está  
no próprio homem, cuja identidade perene é a maldade natural” (CHASIN, 2000, p.  
233) e, para Hobbes,  
dado que os indivíduos humanos são concebidos como intrínseca e  
invariavelmente movidos pelo egoísmo, que avilta e desintegra as  
relações individuais, o estado e a força que respaldam o direito têm  
de ser reconhecidos como único poder capaz de manter a sociedade  
unida, derivando as obrigações morais da lei e do governo CHASIN,  
2000, p. 238).  
Chasin mostra, todavia, que esta visão negativa do humano nada mais é que o  
acatamento da manifestação estranhada da individualidade, no sistema do capital,  
como essencialidade humana. De sorte que  
a reflexão maquiaveliana flagra a individualidade isolada em seu  
nascedouro; deixada só, sem outros interesses e motivações do que  
as estimuladas pelo seu próprio egoísmo, apartada dos outros e posta  
contra estes em competição, só pode refluir à animalidade (CHASIN,  
2000, p. 234).  
Por seu turno:  
É cristalino que Hobbes simplesmente universaliza o que é próprio à  
conduta humana no quadro do estado de escassez perfilado no modo  
de produção capitalista, em que as individualidades estão  
radicalmente apartadas das condições objetivas do trabalho. (...) No  
entanto, como intérprete de sua era é simplesmente extraordinário:  
sob a lógica da produção capitalista, a cotidianidade é a guerra aberta  
de todos contra todos pela simples sobrevivência. E tudo que pode  
ser feito, aliás, que tem imperativamente de ser feito, é gerar e fazer  
intervir a força extrassocietária que garanta a estabilidade mínima do  
universo de convivência e cooperação, ainda que coagida (CHASIN,  
2000, pp. 240-1).  
Maquiavel e Hobbes exemplificam, contudo, de modo claro o que se revela como  
o ônus inerente à determinação ontopositiva da politicidade. Na medida em que essa  
rebaixa ou abstrai a esfera da interatividade, só se sustenta à custa da desnaturação  
do homem. Em outros termos, o humano só pode ser considerado “extrínseco ao  
homem” (CHASIN, 2000, p. 232).  
Outro exemplo dessa desnaturação, produzida no desenvolvimento da filosofia  
moderna, é referida por Chasin no texto Sobre o conceito de totalitarismo.  
Primeiramente, ressalte-se a importante refutação chasiniana à oposição liberalismo  
versus totalitarismo, em função do desvelamento da base comum que engendra tanto  
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Sabina Maura Silva  
o estado liberal quanto o chamado estado totalitário – “a economia de mercado,  
concebida como o lugar natural das relações entre os indivíduos igualmente  
considerados em geral, em outras palavras, o sistema capitalista de produção e sua  
ideologia” (CHASIN, 2000, p. 82). Mas o que aqui interessa imediatamente frisar é o  
tratamento que a questão do poder político recebe sob o prisma liberal.  
A doutrina liberal, cujo ponto de partida é, também, o isolamento e a competição  
entre os indivíduos, abstraindo toda e qualquer mediação social, concebe que “o  
indivíduo, na intangibilidade da sua personalidade humana é que funda a existência,  
os limites e a finalidade do estado legítimo” (CHASIN, 2000, p. 81), o qual deve zelar  
pela “defesa da liberdade, da igualdade e da segurança de todos os cidadãos”  
(NEUMANN apud CHASIN, 2000, p. 81) que, como iguais, têm os mesmos direitos  
perante a lei. De modo que a função do estado é evitar a hegemonia de determinados  
indivíduos sobre os outros. Assim, mostra Chasin, “para a análise liberal, a questão  
do estado se resume à problemática da legalidade” (CHASIN, 2000, p. 81), fundando-  
se na premissa de que  
no estado liberal todos têm, ou pelo ou menos tendem a ter, algum  
poder. Em outros termos, que o poder é, aí, difuso, disseminado em  
geral. Difusão, aliás, que é tomada como o único antídoto ao mal que  
o poder é intrinsecamente, seja ele qual for. O poder, assim, é um mal  
em geral, ao qual só se pode contrapor sua própria fragmentação  
(difusão) (CHASIN, 2000, p. 83).  
O que se evidencia, portanto, é que, embora não nutra ilusões quanto ao seu  
caráter exterior e coercitivo, na filosofia política produzida na sociabilidade do capital,  
expressão máxima da determinação ontopositiva da politicidade, “há a desvalorização  
do homem em benefício da afirmação ilimitada da política” (CHASIN, 2000, p. 243).  
Assim, o que se explicita pela exposição é que, dentro do padrão reflexivo  
tradicional, a política aparece como meio humanizador, diferentemente da  
determinação ontonegativa, na qual a própria interatividade é o princípio de  
humanização, apesar e por meio de suas contradições. Nesse sentido, ela própria  
engendra, por seus produtos, as condições de possibilidade de superação de suas  
próprias contradições. Ainda que não as elimine, uma vez que estranhamentos sempre  
existirão, pois “em cada época e em todos os momentos de uma época histórica dada,  
certo tipo de estranhamento em especial constitui o entrave fundamental a ser  
objetivamente aniquilado: hoje, a propriedade privada dos bens de produção e o  
estado” (CHASIN, 2000, p. 62).  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
II - Propriedade privada dos meios de produção e politicidade  
A análise de Chasin acerca da natureza da politicidade no pensamento de Marx  
põe em relevo o vínculo entre esfera material e esfera política, abordando, a relação  
intrínseca entre politicidade e forças produtivas. No já referido texto O futuro ausente,  
a partir do exame de duas configurações históricas distintas da sociabilidade, explicita  
de modo cabal, aspectos inelimináveis da própria natureza da política: sua função  
peculiar de meio de conservação do modo de produção da existência social, seu  
caráter restritivo em relação ao processo de autoconstituição da individualidade  
humano-societária e, não obstante isso, sua feição irresolutiva, ou seja, sua impotência  
em deter a dinâmica própria da base que a engendra.  
A distinção fundamental entre a politicidade antiga e a politicidade moderna  
situa-se na base produtiva de ambas as formas de sociabilidade. Embora se trate de  
momentos específicos, extensiva e intensivamente, do desenvolvimento contraditório  
da capacidade apropriadora de mundo dos indivíduos, deve-se evidenciar que este  
desenvolvimento se deu sob a égide da propriedade privada dos meios de produção.  
De modo que sociabilidades baseadas na propriedade privada dos meios de  
produção e na consequente cisão entre proprietários e não-proprietários dos meios  
de produção têm sua configuração histórica marcada por um envolver que se dá, pois,  
a partir de antagonismos entre dominantes e dominados. Donde a necessidade de  
engendramento de relações políticas e jurídicas formas de estado, direito que  
reflitam, legitimem e garantam a vigência destes modos de interatividade. Assim, as  
formas históricas da politicidade têm em comum, no quadro de suas especificidades  
próprias, o fato de reproduzirem as contradições do modo de produção da vida, sendo  
o estado político, dentro dos limites daquele, o instrumento através do qual os  
interesses privados se impõem como interesse geral. É nesse sentido que Chasin afirma  
que, em relação à autoconstrução humana, a política é “autodeterminação na forma da  
alienação” (CHASIN, 2000, p. 20), na medida em que, como diz Marx, “essa  
propriedade privada material (...) é a expressão material e sensível da vida humana  
alienada” (MARX, 1987, p. 174).  
Chasin mostra que a distinção entre a forma antiga e a forma moderna da  
politicidade é precisamente o grau de desenvolvimento das forças produtivas, que  
determina a relação entre os indivíduos e os meios de sua atividade, e a mediação que  
a política opera entre estes dois polos.  
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Na Antiguidade, bem como em todas as formações sociais pré-capitalistas, os  
indivíduos se encontram unidos às suas condições de atividade e a relação de pertença  
à comunidade se dá de modo efetivo, uma vez que a atividade produtiva tem como  
fim “a reprodução dos indivíduos” (CHASIN, 2000, p. 166), para o que a comunidade  
se põe  
como pressuposto efetivo, como condição da produção de cada um  
dos indivíduos que existem sob forma subjetiva determinada.  
Portanto, em semelhantes conglomerados humanos, indivíduo e  
gênero são imediata e transparentemente inseparáveis e suas relações  
traduzem essa unidade fundamental, tornando desconhecida e  
impensável qualquer tipo de cissura que contraponha ou, menos  
ainda, torne excludentes entre si as figuras de sua polaridade (CHASIN,  
2000, p. 167).  
Isso se dá, contudo, em função de forças produtivas limitadas, razão pela qual  
“é inconcebível o livre desenvolvimento do indivíduo ou da sociedade, porque tal  
evolução é contraditória com a matriz do relacionamento original”, cujo “fundamento  
do evolver é a reprodução inalterada das relações entre indivíduo e gênero,  
compreendidas e aceitas como dadas e fixas na tradição” (CHASIN, 2000, pp. 166-7).  
Nesse sentido, prossegue, “são exatamente esses limites da comunidade (...)  
que geram a necessidade e os espaços próprios para a emergência da figura do estado  
e de seu modo próprio de exercitação a política, atividade correlata ao poder, por  
sua conquista e conservação, ou pela contraposição dos que ainda não o detêm”  
(CHASIN, 2000, p. 169), pois,  
por seus limites, debilidades e incipiências intrínsecas, a comunidade  
antiga (o exemplo grego é a melhor iluminura) não é socialmente  
autoestável, é incapaz de se sustentar e regular exclusivamente a  
partir e em função de suas puras e específicas energias sociais. Esta  
incapacidade ou limite social engendra, a partir de si mesma, em  
proveito  
e
em vista da estabilidade comunitária, uma  
dessubstanciação social como força extrassocial uma desnaturação  
e metamorfose de potência social em força política (CHASIN, 2000, p.  
169).  
Emergindo da fraqueza societária, o que caracteriza a politicidade antiga é o  
fato de esse tipo específico de politicidade estar imediatamente colado à vida social.  
Em outros termos, a comunidade é propriamente a comunidade política, de modo que  
essa força extra ou extrassocial, enquanto poder político, é ainda, por  
princípio e factualmente, um poder político “irreal, ilusório ou fictício”,  
tão incipiente quanto o estado germinal que lhe corresponde, e que  
ainda não é um verdadeiro estado, que nesta qualidade se prolonga,  
ressalvadas especificidades de monta, até a era do capital, quando se  
manifesta na plena maturidade de estado político centralizado  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
(CHASIN, 2000, p. 169).  
Assim, “o engendramento da politicidade por declinação social é no caso grego  
(...) o início do longo itinerário histórico que culminou no ‘estado político, na  
constituição’ em oposição ao ‘estado material não-político’” (CHASIN, 2000, p. 170).  
Itinerário que se entifica como o próprio processo de expansão das forças produtivas  
e constituição de uma nova forma de sociabilidade, a sociabilidade do capital.  
Ou seja, a força política  
é uma força social que se entifica pelo desgarramento do tecido  
societário, dilaceração naturalmente determinada pela impotência  
deste, e que, enquanto poder, se desenvolve tomando distância  
(variável de acordo com os modos de produção) da planta humano-  
societária que o engendra (mesmo na democracia direta) e a ela se  
sobrepõe, como condição mesmo para o exercício de sua função  
própria regular e sustentar a regulação. Força social usurpada e  
presentificada como figura político-jurídica que forma com a  
sociedade stricto sensu um indissolúvel cinturão de ferro, cujos  
segmentos ou elos não subsistem em separado (CHASIN, 2000, p.  
170).  
O distanciamento que a esfera do poder toma em relação à sua base originária,  
que especifica a politicidade moderna, dá-se em função do processo de distanciamento  
tanto dos indivíduos quanto dos meios objetivos de sua atividade em relação à própria  
comunidade.  
Resultado do desenvolvimento das forças produtivas, a sociabilidade moderna  
se apresenta como a realização máxima, até o momento, das potencialidades  
produtivas humanas. Esta nova forma societária é o “resultado de todo um itinerário  
histórico que destruiu os liames que uniam de maneira indissolúvel indivíduos e  
comunidade, indivíduos e condições de existência” (ALVES, 2001, p. 259). A libertação  
dos indivíduos e das condições de atividade da esfera da vida comunitária promove  
verdadeira reconversão ontológica, tanto dos indivíduos quanto das  
condições de produção humana, no decurso da qual ocorre uma  
radical transformação na forma de ser de ambos. Os indivíduos não  
se definem mais por sua pertença imediata e direta ao conjunto  
societário, por sua subsunção aos nexos comunais, mas serão  
tomados agora por entes por princípio livres de quaisquer liames ou  
coações outros além daqueles determinados pela sua existência de  
indivíduos livres. No caso do trabalhador, a coação não mais reside  
na atividade forçada, mas na sua pura situação de não-proprietário.  
No que tange às condições de produção, terreno, instrumentos,  
dinheiro, estas se tornam coisas independentes dos indivíduos,  
tomam uma forma autônoma dos mesmos. Dupla alteração que terá  
amplas e decisivas consequências tanto para o modo de ser dos  
indivíduos e de sua atividade quanto para as relações que aqueles  
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mantêm para com esta (ALVES, 2001, pp. 259-62).  
De modo que a atividade produtiva não visa mais, como outrora, à subsistência  
da comunidade; essa passa a ser o meio a partir do qual aquela se realiza. Por outro  
lado, a interrelação dos indivíduos se torna, doravante, determinada pela troca. Assim,  
dá-se a subordinação do valor de uso, móvel da produção pré-capitalista, ao valor de  
troca, que passa a viger como essência da sociabilidade. Os indivíduos, por seu turno,  
encontram-se “determinados, antes de tudo, como sujeitos da troca. Nesta  
determinidade fornecida e reproduzida pela forma de sua atividade e de seu  
intercâmbio, os indivíduos se afiguram reciprocamente como meros portadores,  
possuidores, detentores de valor” (ALVES, 2001, pp. 270-1).  
Qual a função da política neste processo? Da mesma maneira que na  
Antiguidade, em que, subordinada ao modo da atividade, aparecia como meio de  
domínio sobre a forma societária, no caso específico como contenção das forças  
produtivas, na aurora da modernidade a política aparece como o meio que torna  
possível a posição da nova forma de sociabilidade que se desenvolve a partir da  
expansão daquelas. Em outros termos, a política aparece como meio dissolutor de uma  
dada forma de sociabilidade e se põe como instrumento de afirmação das novas forças  
produtivas.  
No que concerne ao seu caráter, na sociabilidade do capital, caracterizada pela  
excludência e indiferença recíprocas entre os indivíduos, a esfera da politicidade  
aparece como sucedâneo da natureza genérica própria ao ser social, que se encontra  
cindida e estranhada, dado o modo estranhado como se dá a própria interatividade. É  
em face disso que Marx, em Sobre a questão judaica, conforme refere Chasin (2000,  
p. 147) no texto Marx: a determinação ontonegativa da politicidade, aponta a natureza  
abstrata da comunidade política e da figura que nela tomam os indivíduos o cidadão.  
Tal natureza se aclara quando se revela “a contradição entre o estado e os seus  
pressupostos gerais” (MARX, 1989, p. 42), como se lê em Sobre a questão judaica. A  
contradição se põe no fato de que o estado se apresenta como o fórum da  
universalidade, o lócus em que todos os membros da sociedade são iguais e  
copartícipes da comunidade política. Nesse sentido, faz abstração de todas as  
distinções e particularidades que separam os indivíduos na esfera não política, ou seja,  
na sociedade civil. No entanto, o estado abole as diferenças apenas no plano político,  
deixando que elas continuem a existir no plano civil. De modo que “unicamente por  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
cima dos elementos particulares é que o estado se constitui como universalidade”  
(MARX, 1989, p. 45). Em função do que “o estado político perfeito é por natureza a  
vida genérica do homem, em oposição à sua vida material” (MARX, 1989, p. 45).  
Eliminando de sua esfera todas as relações conflitantes oriundas da sociedade  
civil, esfera da sociabilidade em que os indivíduos se confrontam como produtores,  
como agentes privados, no estado político perfeito os indivíduos encontram-se  
cindidos entre cidadãos membros da comunidade política e homens membros  
da sociedade civil, indivíduos privados. Logo, os indivíduos levam uma dupla vida,  
como ser comunitário e como ser privado. O ser privado, que é o indivíduo real e ativo,  
inserido nos problemas e contradições postos pelo modo de produção, aparece, sob  
o entendimento político, como um “ser carente de verdade”, em contraposição ao  
cidadão, membro da comunidade política.  
O estado, no entanto, legitima o homem privado, do qual é meio e, na mesma  
medida em que o estado é servo da sociedade civil, o cidadão é servo do homem  
privado. Neste sentido, os direitos do homem e do cidadão consagram o direito de  
cada indivíduo a ser independente do outro, o direito a ver e ter no outro um limite.  
Enfim, elevam ao status de direito a pulverização efetiva dos indivíduos, existente na  
sociedade civil. De maneira que, enquanto cidadão, cada indivíduo privado é  
considerado igual para exercer seu egoísmo, para fazer valer seus interesses  
particulares.  
Daí Marx apontar que o “patamar político” é inferior ao “patamar da altura  
humana” e pôr a política como fase transitória para a emancipação humana, dado que  
é uma emancipação parcial, meio para a “emancipação humana geral”, enfim, para a  
emancipação radical (CHASIN, 2000, p. 141). É em face disto, também, que Chasin  
enfatiza a urgente necessidade de superação da política e do estado, no roteiro da  
efetiva autoconstituição do homem livre, facultada pela legítima interatividade  
humano-societária.  
III - Determinação ontonegativa da politicidade e a crítica à democracia  
A crítica chasiniana à democracia se desenvolveu com o paulatino desvelamento  
da ontonegatividade da política na obra de Marx, sendo um corolário dessa  
determinação. De fato, a crítica teve início na época da ditadura militar no Brasil,  
evidente no texto Sobre o conceito de totalitarismo, em que Chasin revela a  
irrazoabilidade do conceito, útil apenas para afirmação e defesa da democracia liberal,  
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o que, em outros termos, equivale à legitimação do capitalismo. Durante o processo  
de redemocratização do país, que coincidiu com o aprofundamento de seus estudos  
sobre a obra de Marx, Chasin intensificou sua crítica. Quando a cantilena em torno da  
democracia passou a ser entoada por toda a esquerda brasileira, Chasin ousou destoar  
do coro dos contentes, por recusar na reflexão política “pontos de partida que são  
impulsionados pela ideia de aprimoramento da dominação” (CHASIN, 2000, p. 101).  
Toda sua reflexão se pautou precisamente pela busca da superação da dominação e  
da política, o que é reiterado, quando afirma, categórico, que “nenhum poder político  
é ou pode ser inerentemente legítimo, pois é sempre uma forma de dominação, ou  
seja, de negação da liberdade, da autonomia de uma parte dos homens” (CHASIN,  
2000, p. 38).  
Esta crítica se fez necessária, principalmente a partir dos anos 1980, em razão  
da fé cega depositada pela esquerda brasileira na democracia, vista como panaceia  
para todos os males sociais do Brasil e do mundo. Chasin, durante os anos 1980 e  
1990, constatou, decepcionado, que a democracia e a cidadania se tornaram o único  
horizonte projetado pela esquerda, o que está sumulado quando verifica que a  
esquerda, na atualidade, é dotada de “crescente incapacidade de compreensão de  
processos reais, e a fortiori, de iluminar o futuro, imediato e remoto” (CHASIN, 2000,  
p. 45). Em verdade, para Chasin, a ênfase na democracia, em nosso tempo, representa  
justamente o momento histórico em que o capital estende sua utilidade histórica e, ao  
mesmo tempo, a perspectiva do trabalho se revela incapaz de superá-lo. Já em 1984,  
no texto Democracia política e emancipação humana, afirma que a fé incondicional na  
democracia constitui o abandono da emancipação humana tal qual propugnada por  
Marx, o que equivale a reforçar o “círculo vicioso dos pressupostos recíprocos do  
capital e do estado” (CHASIN, 2000, p. 93). Círculo vicioso que, para Marx, deveria  
justamente ser rompido, superando-se a própria política, conforme ficou caracterizado.  
Do mesmo modo, em 1989, no texto A morte da esquerda e o neoliberalismo, Chasin  
constata que, enquanto nas derrotas antigas, “mesmo episodicamente vencida, a lógica  
onímoda do trabalho se afirmou e rasgou perspectivas, nas mais recentes é o  
esgotamento de todo um itinerário que se manifesta, envolvendo caminhos e  
instrumentos” (CHASIN, 2000, p. 117). Houve, em suma, a adoção de um discurso  
político pela esquerda equivalente ao seu atestado de óbito, confirmado e reiterado  
pela sua postura não-marxista.  
Interessante notar que, no momento em que se discutia a redemocratização,  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
Chasin vê na democracia da perspectiva do trabalho a única capaz de efetivar no Brasil,  
de forma estável, as instituições democráticas, argumentando que, em países de  
objetivação do sistema do capital como o nosso, ou seja, de via colonial, é impossível  
a vigência “de uma democracia de feitio tradicional, a democracia liberal dos  
proprietários” (CHASIN, 2000, p. 99). Naquela época, para Chasin, a democracia da  
perspectiva do trabalho teria por função romper e mesmo desorganizar “certos  
aspectos da organização do capitalismo, sem que implique de imediato a superação  
do modo de produção capital” (CHASIN, 2000, p. 100). Tal propositura tem fortes  
vínculos com o pensamento de Marx, quando busca determinar o caráter da Comuna  
de Paris. Marx afirma, então, que a única função do estado é tornar as contradições  
sociais abertas, para que sejam resolvidas (CHASIN, 2000, pp. 103; 110). Essa seria,  
para Chasin, a função de uma democracia do trabalho, ou seja, um meio que tornaria  
os conflitos mais transparentes, levando-os à resolução (CHASIN, 2000, p. 111).  
A proposta da democracia da perspectiva do trabalho, ao longo dos debates em  
torno da constituinte e da democracia, nos anos 1980, foi sendo enriquecida e  
detalhada. No texto Poder, política e representação (três supostos e uma hipótese  
constituinte), Chasin baseia-se na divisão entre capital fixo e variável para fundamentá-  
la. Diz ele que o capital variável, ou seja, a propriedade da força de trabalho, e não a  
propriedade dos meios de produção, deve ser o critério para a representação política.  
Tal proposta se contrapõe a todas as tematizações dos democratas, de esquerda ou  
de direita, que acabam por sustentar a democracia dos proprietários, tendo como base  
a propriedade privada. De fato, diz Chasin, “tomando a instituição parlamentar como  
o lócus privilegiado da representação e, portanto, do poder político, não há como não  
admitir que o parlamento num estado liberal-democrático não seja senão um  
parlamento do capital, e que nenhum aprofundamento da democracia liberal possa  
alterar essa matriz” (CHASIN, 2000, p. 107).  
A representação baseada na força de trabalho teria, para Chasin, implicações na  
própria constituinte, que então se instalava: como a propriedade da força de trabalho  
é “mais geral e mais essencial para a individualidade, decorre que o princípio de  
legitimidade do trabalho é superior a qualquer outro para instaurar o ato constitutivo”  
(CHASIN, 2000, p. 113). Afinal, para ele, constituição democrática é contradição  
desmascarada(CHASIN, 2000, p. 112). Ao contrário dos sonhos românticos de uma  
constituição eterna, Chasin determina com precisão a fase social em que ela seria  
necessária:  
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uma constituição, em sua durabilidade relativa, tem antes de explicitar  
problemas do que, através do consenso, velar dificuldades essenciais;  
quer [a sua tematização] consignar que a constituição não escapa de  
duas possibilidades: ou é mediação, por menor que seja, da  
emancipação, ou é negação da soberania do povo e a pílula dourada  
do conformismo (CHASIN, 2000, p. 114).  
Radicalmente alterada com a efetivação da globalização (CHASIN, 2000, p. 74),  
a propositura da democracia da perspectiva do trabalho constituiu, em verdade, uma  
profunda crítica da esquerda que, nos últimos anos da ditadura e durante a  
redemocratização, partia da “suposição de que primeiro se conquista a democracia, e  
depois se cuida da vida” (CHASIN, 2000, p. 100). Para Chasin, ao contrário, era  
imprescindível fundir “luta econômica com luta política” (CHASIN, 2000, p. 100). A  
metapolítica consignada na sua proposta de democracia dos trabalhadores  
representava precisamente a forma de transformar a própria organização do capital.  
Hoje, por ironia, a esquerda brada o discurso, tornado vazio pelas circunstâncias  
históricas, do programa econômico alternativo como necessário para a conquista da  
cidadania. Tese que, há muito, o próprio Chasin tratou de reconfigurar.  
Ao contrário dos limites estreitos da democracia a emancipação humana, “em  
seu processo de efetivação, restitui à ‘sociedade civil’ o poder que lhe fora ‘usurpado’  
pela sociedade política (CHASIN, 2000, p. 92).  
Emancipação é, pois, reunificação e reintegração de posse, social e  
individual, de uma força que estivera alienada. A força de se produzir  
e reproduzir, na individuação e na livre associação comunitária, pela  
única forma que o homem conhece e da qual é capaz a sua própria  
atividade.  
Emancipação, portanto, não é algum ideal prefixado a realizar, mas  
simplesmente auto-organização e desenvolvimento universal do  
trabalho, enquanto atividade livre e essencial da própria individuação.  
(CHASIN, 2000, p. 92).  
É importante salientar que Chasin aponta a possibilidade de reconfiguração da  
sociabilidade para além da sociedade política em função do que constitui propriamente  
o “roteiro da autoconstituição do homem”, isto é, sua potência apropriadora de mundo.  
De sorte que a possibilidade de ultrapassagem da política não se põe como um voto  
piedoso, mas a partir da apreensão de que, “diante da revolução tecnológica, ou seja,  
do desenvolvimento da potência do trabalho humano, a propriedade privada dos  
meios de produção, o estado e a política aparecem como anacronismos insuportáveis,  
mastodontes historicamente vencidos que entulham as vias do desenvolvimento  
histórico-societário” (CHASIN, 2000, p. 72).  
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J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade  
Ademais, Chasin reconhece com coragem e sem nenhum preconceito teórico a  
nova constituição societária de nossos dias, ao afirmar que:  
O mundo e as formas de existência que se desenham à nossa frente  
estão para além dos paradigmas do burguês e do proletário, aquele  
inteiramente superado enquanto utilidade histórica hoje é evidente,  
irreversivelmente, que o conhecimento impulsiona mais a produção  
do que o lucro, que o saber tomou o lugar da propriedade como fator  
decisivo e dinâmico da produção e reprodução da base material da  
vida, (CHASIN, 2000, p. 72)  
Em outros termos, ainda mais incisivos,  
a força motriz do espírito empreendedor, gestada pelo interesse ou  
egoísmo pessoal, que foi o ardil responsável pela mais fantástica  
produção de riqueza (e pobreza) dos últimos 600 anos da história  
humana, mostra, por fim, sua estreiteza e mesquinhez, a finitude de  
seu alcance, diante da amplitude sem fronteiras das possibilidades de  
realização do saber, um empreendimento por natureza  
supraindividual e cooperativo, ou seja, intrinsecamente social, cujo  
lucro inerente é a irradiação universal de benefícios (CHASIN, 2000,  
p. 72).  
Enfim, que fique claro que a política é forma de dominação e que a fé na política  
implica a renúncia à livre individuação humana; algo plenamente configurado no exame  
das diversas formas de sociabilidade. Se a politicidade apareceu como “ilusão” na  
Grécia, infância da propriedade privada, e se afirmou como “ilusão necessária” na  
modernidade, amadurecimento e consolidação da propriedade privada na emergência  
do capital, no presente ela se impõe como “fantasia conformista” quando o capital já  
perdeu sua validade histórica. Logo, atualmente, “o dilema é (...) a afirmação do homem  
social ou a afirmação do capital” (CHASIN, 2000, p. 63).  
Referências bibliográficas  
ALVES, Antônio J. L. A individualidade nos Grundrisse. Revista Ensaios Ad Hominem,  
n. 1, t. IV Dossiê Marx. Santo André: Estudos e Edições Ad Hominem, 2001.  
CHASIN, J. Ad Hominem: rota e prospectiva de um projeto marxista. Revista Ensaios  
Ad Hominem, n. 1, t. III Política. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.  
______. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
2009.  
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 1987.  
_____. Sobre a questão judaica. In: Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa:  
Edições 70, 1989.  
Como citar:  
SILVA, Sabina Maura. J. Chasin e a determinação ontonegativa da politicidade.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 282-299, Edição Especial, 2022/2023.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 1, pp. 282-299 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 299  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.671  
A natureza e a posição da política no quadro das  
atividades histórico-sociais: ontonegatividade da  
política e a ontologia do ser social  
The nature and position of politics in the in the framework of social-  
historical activities: ontonegativity of politics and the ontology  
of social being  
Ronaldo Vielmi Fortes*  
Resumo: O presente artigo tem por objetivo  
demonstrar a fundamentação da tese da  
ontonegatividade da política, desvelada pelo  
filósofo brasileiro J. Chasin, no pensamento de  
Marx, a partir da análise da ontologia do ser  
social. Com base na determinação do ser do  
homem, demonstra-se que a política não é um  
atributo inerente a essa forma do ser.  
Abstract: This article aims to demonstrate the  
foundation of the thesis of the ontonegativity of  
politics, unveiled by the Brazilian philosopher J.  
Chasin, in Marx's thought, based on the analysis  
of the ontology of social being. Based on the  
determination of the being of man, it is shown  
that politics is not an attribute inherent to this  
form of being.  
Palavras-chave: Chasin; Marx; crítica da política;  
determinação ontonegativa da politicidade;  
ontologia do ser social.  
Keywords: Chasin; Marx; critique of politics;  
ontonegative determination of politicity;  
ontology of social being.  
Ontonegatividade da política: motivações para a não receptividade da tese  
Este texto não poderia iniciar sem uma constatação decisiva: o mal-estar e  
desassossego provocado tão logo anunciada a tese da ontonegatividade da política  
no pensamento de Marx, por parte do filósofo brasileiro J. Chasin. Seja por  
incompreensão, má vontade, ou um simples “dar de ombroscomo expressão de  
desprezo e desconsideração pela tese, grande parte da reação que se assistiu pode  
ser atribuída à própria relevância e centralidade para utilizar um termo da moda –  
da política como dimensão essencial da sociabilidade, concepção essa muito comum  
em nossos dias seja no âmbito do pensamento filosófico, sociológico e das ciências  
políticas. Em termos gerais, o universo dessa incompreensão prima por considerar  
equivocadamente a tese da ontonegatividade da política como uma refutação dessa  
instância social, como negação que rechaça sua importância e decisibilidade no âmbito  
da dinâmica da sociedade. Para ser mais claro, julgam a tese da ontonegatividade  
* Doutor em filosofia. Docente da Faculdade de Serviço Social - UFJF. E-mail: vielmi.ronaldo@ufjf.br.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
como negação da atividade política, como refutação ingênua e pueril dos confrontos  
sociais mediados pela ação política entre as classes.  
A dificuldade em reconhecer e compreender considerações tão diretas e claras  
não é motivada por incapacidade cognitiva ou simples teimosia pessoal, condiz muito  
mais com a atmosfera dos tempos, em que a política é elevada à condição de atributo  
fundamental da dinâmica humano-societária. Em suma, a rejeição consiste  
precisamente no fato de que a política é tomada como atributo central do homem e  
da sociabilidade humana. Chama a atenção o fato de tal desaprovação ser quase um  
consenso entre as assim chamadas posições de esquerda e direita. Ambas mesmo em  
suas divergências teóricas e em seus antagonismos programáticos possuem como  
denominador comum o centro argumentativo cujo fundamento encontra na política um  
atributo central do homem.  
Em termos comparativos a posição de Marx em suas elaborações ainda juvenis –  
em que ainda se encontrava vinculado a uma concepção positiva da politicidade não  
destoa das proposições comuns em torno da política prevalente em nossos dias. Elas  
nos auxiliam a identificar as bases da fundamentação politicista atual no que diz  
respeito ao papel da política como dimensão preponderante da prática social. Ao  
analisar a posição do Marx pré-marxiano1, J. Chasin demonstra que se tratava de uma  
vertente que identifica[va] na política e no estado a própria realização  
do humano e de sua racionalidade. Vertente para a qual estado e  
liberdade ou universalidade, civilização ou hominização se manifestam  
em determinações recíprocas, de tal forma que a politicidade é tomada  
como predicado intrínseco ao ser social e, nessa condição enquanto  
atributo eterno da sociabilidade - reiterada sob modos diversos que,  
de uma ou de outra maneira, a conduziram a plenitude da estatização  
verdadeira na modernidade. Politicidade como qualidade perene,  
positivamente indissociável da autêntica entificação humana, portanto,  
constitutiva do gênero de sorte que orgânica e essencial em todas as  
suas atualizações (CHASIN, 1995, p. 354).  
Aqui o elemento principal que explicita as bases do pensamento político hoje  
predominante é anunciado de maneira direta: a política é determinada como  
“predicado intrínseco ao ser social”, atributo inerente e eterno, “indissociável da  
autêntica edificação humana”. Os exemplos de autores que atestam tal constatação,  
1 Valemo-nos aqui da tese do próprio Chasin, que localiza a ruptura de Marx com a concepção positiva  
da politicidade nos anos de 1843. Anteriormente a esse período, Marx nutria uma posição que poderia  
ser descrita como a de um pensador afiliado a uma concepção do democratismo radical. Para os  
argumentos demonstrativos, remetemos os leitores para as reflexões do autor brasileiro, presentes em  
seu Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica.  
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comporiam um rol enorme e extenso, dos mais diversos matizes; em contrapartida,  
raros seriam aqueles que ousariam afirmar o inverso2.  
O fundamento da positividade da política, em particular da política da  
modernidade e de parte do pensamento contemporâneo, assenta-se em grande  
medida sobre a ideia do indivíduo como centro da compreensão dos processos sociais,  
definida a partir da determinação burguesa da individualidade, que se assenta sobre  
a afirmação da irredutibilidade da vontade do indivíduo isolado como átomo decisivo  
da dinâmica societária. Mesmo sem desconhecer o caráter factual do indivíduo imerso  
na sociedade tais proposições terminam por considerar a ação propriamente política  
como a liberdade da vontade que se constitui em sua autenticidade quando age sem  
as imposições da necessidade. Desse modo, legam a segundo plano os aspectos das  
determinações concretas da própria vida, na medida em que tomam a liberdade como  
algo que se põe de maneira autêntica para além das condicionantes postas pela  
necessidade da vida material. Em suma, a política é entendida como ação que visa  
assegurar a existência de um espaço para o aparecimento da liberdade inerente à ação  
humana isenta das condicionantes postas pelas necessidades sociais e naturais tese  
que pode ser identificada, por exemplo no pensamento de Hannah Arendt.  
A contrapartida, posição também em grande medida prevalente em nossos dias,  
pode ser vislumbrada nas concepções pós-modernas, em que a individualidade é  
compreendida como apartada da sociabilidade. É sempre o indivíduo em face da  
sociedade, em constante busca pela autenticidade da vida, pela plena afirmação da  
liberdade como contraposição aos processos de subjetivação impetrados pelas  
estruturas de poder e assujeitamento das individualidades. Não é o caso aqui de se  
debruçar sobre a diversidades das posições acerca da política, cabe apenas destacar  
linhas gerais para enfatizar a especificidade do pensamento marxiano em face da  
politicidade.  
A crítica da politicidade: a política não é um atributo inerente ao ser social  
Tais formulações aparecem como o exato oposto às determinações do  
pensamento do Marx “maduro”, segundo a qual só há individualidade dentro do campo  
social, ou em termos similares, trata-se sempre da individuação em sociedade. Em  
2 O artigo de Vitor Sartori, O futuro ausente no presente, que compõe este volume, traz apontamentos  
críticos a diversos autores da contemporaneidade que assumem tal posicionamento em relação à  
política. Indicamos aos leitores interessados no tema a leitura do texto.  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
defesa dessa tese, bastaria lembrar as palavras do próprio pensador alemão em A  
sagrada família, em que se volta contra a concepção dos modernos acerca do estado  
e das formas da individualidade correspondentes à sociabilidade civil-burguesa –  
refutada na ocasião em menção direta ao círculo de intelectuais ligados a Bruno Bauer.  
O indivíduo egoísta da sociedade burguesa pode, em sua  
representação insensível e em sua abstração sem vida, enfunar-se até  
converter-se em átomo, quer dizer, em um ente bem-aventurado,  
carente de relações e de necessidades, que se basta a si mesmo e é  
dotado de plenitude absoluta. Mas a desditada realidade sensível faz  
pouco caso de sua representação; cada um de seus sentidos o obriga  
a acreditar no sentido do mundo e dos indivíduos fora dele, e inclusive  
seu estômago profano faz com que ele recorde diariamente que o  
mundo fora dele não é um mundo vazio, mas sim aquilo que ele na  
verdade preenche. Cada uma de suas atividades essenciais se  
converte em necessidade, em imperativo, que incita o seu egoísmo a  
buscar outras coisas e outros homens, fora de si mesmo. Todavia,  
como a necessidade de um determinado indivíduo não tem, para um  
outro indivíduo egoísta que possui os meios de satisfazer essa  
necessidade, um sentido que possa ser compreendido por si mesmo,  
como a necessidade não tem, portanto, relação imediata com sua  
satisfação, cada indivíduo tem de criar necessariamente essa relação,  
convertendo-se também em mediador entre a necessidade alheia e os  
objetos dessa necessidade. Por conseguinte, a necessidade natural, as  
qualidades essencialmente humanas, por estranhas que possam  
parecer umas às outras, e o interesse mantêm a coesão entre os  
membros da sociedade burguesa; e a vida burguesa e não a vida  
política é o seu vínculo real. Não é, pois, o estado que mantém coesos  
os átomos da sociedade burguesa, mas eles são átomos apenas na  
representação, no céu de sua própria imaginação... na realidade, no  
entanto, eles são seres completa e enormemente diferentes dos  
átomos, ou seja, nenhuns egoístas divinos, mas apenas homens  
egoístas. Somente a superstição política ainda pode ser capaz de  
imaginar que nos dias de hoje a vida burguesa deve ser mantida em  
coesão pelo estado, quando na realidade o que ocorre é o contrário,  
ou seja, é o estado quem se acha mantido em coesão pela vida  
burguesa. (MARX; ENGELS, 2011, p. 139)  
Para Marx, não é o estado que une os indivíduos, mas o laço de sua vida civil. Se  
eles aparecem como átomos isolados, isso se deve às próprias condições postas pela  
sociabilidade vigente. Não há em Marx uma dedução do mundo e das relações sociais  
que põem como ponto de partida a individualidade isolada das formações sociais, pelo  
contrário, trata-se da determinação da individualidade social a partir do complexo da  
mundanidade. Nesse sentido, J. Chasin adverte:  
Na medida que a individualidade é intrinsecamente social, para ser  
entendida exige a compreensão do mundo em seus complexos, isto é,  
o indivíduo é um complexo de complexos, a expressão mais intensiva  
dos complexos de que é produzida e só se explica pelo conjunto dos  
complexos que lhe dão origem. (CHASIN. Glosas inéditas intituladas  
“Ontologia: afloramento introdutório”)  
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Deve-se compreender os indivíduos como processos de individuação formados  
historicamente, como constituições subjetivas forjadas por contextos sociais que  
fornecem o campo das possibilidades para a formação das personalidades. Essas são  
sempre processos de individuações em sociedade, só há indivíduos enquanto  
existência social determinada. A determinação histórica não é um condicionamento  
mecânico, mas a existência de condicionantes que oferecem as alternativas sociais  
concretas, perante as quais os indivíduos se posicionam negando ou afirmando os  
elementos da malha social. Enfim, em última instância, os indivíduos ao decidirem  
sobre as contradições e possibilidades, dão curso à suas próprias ações e  
comportamentos. O indivíduo é ativo em face às determinações sociais. Não se pode,  
portanto, negligenciar o caráter social dos processos de individuação humana. Pensar  
a individualidade humana sobre essas bases é propugnar a necessidade de pensar o  
conjunto das atividades humanas a partir de uma análise que remeta à consideração  
do sistema de mediações categorias próprias ao ser social.  
No interior do pensamento moderno e das filosofias tributárias a ele, a política é  
a mediania do enlaçamento social das individualidades, expressa pela necessidade do  
estado, sempre compreendido como meio necessário cuja função consiste na  
regulação das relações sociais. O engendramento do estado aparece como expressão  
da vontade e da razão dos átomos isolados que instauram a ordem social como  
maneira de gerir a vida em sociedade. O ponto de partida tem, nesse caso, por base  
a separação rígida entre o indivíduo e a sociedade. A generalização dessa  
compreensão faz com que política apareça determinada como a forma genérica e  
universal das relações sociais, em qualquer formação social até então existente. Desse  
modo, a compreensão da relação do indivíduo com o campo social, é do mesmo modo  
definida como condição natural do homem.  
Essa visão política, bem caracterizada por Marx na citação acima como mera  
superstição, atribui ao estado o papel central de manter coesa a sociedade. O estado  
é definido como o cerne das representações e ações políticas, é tomado como a  
construção que estabelece os laços sociais estabelecidos pelos indivíduos, seja sob a  
forma do contrato social, seja como realização racional do espírito absoluto como  
em Hegel. A crítica incisiva presente nos escritos de A sagrada família condiz com as  
palavras da famosa Introduçãode 1859, na qual Marx afirma ter chegado em seus  
estudos juvenis à compreensão de que  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações  
determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações  
de produção que correspondem a um determinado grau de  
desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas  
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a  
base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e  
política e a qual correspondem determinadas formas de consciência  
social. O modo de produção da vida material condiciona o  
desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é  
a consciência dos homens que determina o seu ser, é o seu ser social  
que, inversamente, determina sua consciência. (MARX, 1983, p. 24,  
grifos nossos)  
O campo da política é a esfera da sociedade civil, de onde ela emerge em função  
das contradições próprias da sociabilidade e tem o estado como expressão e instância  
institucional de mediação reguladora de conflitos. O estado não é o lócus de  
resolubilidade racional da interação dos indivíduos, uma vez que é determinado pela  
dinâmica contraditória da sociedade civil. Nas palavras do filósofo alemão: “não é  
estado que determina a sociedade civil, mas a sociedade civil que determina o estado”  
(MARX). Nessa medida, a política é o modus operandi social oriundo das contradições  
sociais, ela é a expressão da necessidade de equalização de conflitos e não atributo  
racional intrínseco ao ser social, cuja função seria mediar de maneira racional a forma  
da organização societária. A afirmação de Marx, como exata expressão do rompimento  
com suas concepções juvenis referida no início deste artigo, nega à política e ao estado  
a condição de realização [efetivada] do humanoe de racionalidade” intrínseca a  
seus processos interativos.  
A tese desenvolvida pelo filósofo brasileiro J. Chasin desdobra, a partir de  
elementos presentes na obra de Karl Marx, os traços mais evidentes da consideração  
crítica do pensador alemão em relação à política. Chasin traz para o debate do  
problema as formulações de Marx presentes em um artigo de 18443, em que o  
pensador alemão ao tecer considerações acerca das políticas de ação social inglesa e  
francesa de seu século demarca tanto a ineficácia prática da política quanto a  
incapacidade de compreensão do fenômeno do pauperismo característico da  
sociabilidade do capital:  
O entendimento político é entendimento político justamente porque  
pensa dentro dos limites da política. Quanto mais aguçado, quanto  
mais ativo ele for, tanto menos capaz será de compreender mazelas  
sociais. (...) O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral,  
ou seja, quando mais bemacabado for o entendimento político, tanto  
33 Trata-se das Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social, por um prussiano”.  
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Ronaldo Vielmi Fortes  
mais ele acredita na onipotência da vontade, tanto mais cego ele é  
para as limitações naturais e intelectuais da vontade, tornandose,  
portanto, tanto menos capaz de desvendar a fonte das mazelas  
sociais. (MARX, 2010, p. 41)  
Como pretensa racionalidade autossustentada fundada sobre o princípio da  
vontade, a política, circunscrita a esses limites, é incapaz de compreender as origens  
concretas das mazelas e conflitos sociais, cujas bases se assentam sobre  
irresolubilidades intrínsecas à sociabilidade do capital. As palavras diretas e incisivas  
de Marx quase sempre relativizadas pelos apologistas da politicidade revelam os  
limites da política no que tange às ações transformadoras da realidade social, assim  
como aos desvios a que a classe trabalhadora pode se ver submetida ao pautar suas  
ações com base no entendimento político:  
Quanto mais culto e universal for o entendimento político de um povo,  
tanto mais o proletariado ao menos no início do movimento –  
desperdiça suas forças em rebeliões insensatas, inúteis e sufocadas  
em sangue. Por pensar na forma da política, ele vislumbra a causa de  
todas as mazelas na vontade e todos os meios para solucionálas na  
violência e na derrubada de uma determinada forma de estado.  
(MARX, 2010, p. 48)  
Tais elaborações e críticas de Marx são analisadas de maneira pormenorizada  
por J. Chasin, de forma que, para os nossos propósitos, é suficiente aludir às suas  
conclusões (cf. CHASIN, 2000, pp. 129-165). Ao se debruçar sobre diversas etapas da  
obra de Marx que vão desde A crítica da filosofia do direito de Hegel (1843),  
passando por Sobre a questão judaica (1844), A guerra civil na França até os textos  
mais tardia de sua carreira intelectual , Chasin destaca:  
Tratando-se de uma configuração de natureza ontológica, o propósito  
essencial dessa teoria é identificar o caráter da política, esclarecer sua  
origem e configurar sua peculiaridade na constelação dos predicados  
do ser social. Donde, é ontonegativa, precisamente, porque exclui o  
atributo da política da essência do ser social, só o admitindo como  
extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de  
historicamente circunstancial; numa expressão mais enfática, enquanto  
predicado épico do ser social, apenas e justamente, na particularidade  
do longo curso de sua pré-história. (CHASIN, 2010, p. 64)  
Afirma-se assim, a ruptura com a ideia da politicidade como atributo essencial  
da malha humano-societária. A ênfase recai como veremos logo à frente na  
determinação da política como a resultante de insubsistências sociais postas por  
condições históricas específicas de dadas formas de sociabilidade. No caso das  
sociedades modernas e contemporâneas, sua gênese pode ser rastreada na  
composição contraditória da sociabilidade capitalista, que lega à política o caráter de  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
regulador social necessário para o equilíbrio de irresolubilidades congênitas a essa  
forma de organização societária. Nada mais oportuno para a entendimento dessas  
determinações a crítica de Marx endereçada a Bruno Bauer, presentes em Sobre a  
questão judaica, na qual o desvelamento da característica da política e do estado  
como manifestação das contradições da sociedade civil aparece mediante a  
explicitação do fundamento sobre a qual são erigidos os artigos da Declaração  
universal dos direitos do homem. O campo das possibilidades de formação dos  
indivíduos está dado pela cisão entre o homem egoísta, concretamente existente na  
sociedade civil, e a cidadania representada pela igualdade abstrata no estado. O  
fenômeno do individualismo, fruto da cisão entre o homem concretamente desigual e  
o cidadão abstratamente igual posta pela relação formal da lei do estado moderno (cf.  
MARX, 2010), é a expressão mais candente da irresolubilidade das mediações políticas  
dos conflitos inerentes a essa formação social. A forma da produção material é  
universalizada e alçada ao patamar de condition humaine, definida como traços  
essenciais do homem, cuja conclusão subsequente é a definição da sociabilidade do  
capital como decorrência natural e necessária da evolução humana.  
A análise da historicidade do ser social é, portanto, decisiva para a compreensão  
e para a crítica da política no quadro das atividades do homem. O caráter histórico  
ganha relevância na medida em que elimina qualquer ideia de definição de atributos  
perenes e imutáveis ao ser social. Nesse sentido, a política, também ela historicamente  
posta, não pode prescindir da investigação das formas particulares de suas efetivações,  
destacando a diferença específica de suas concreções históricas. As realizações  
humanas são acima de tudo formas de dinamismo social diversos e historicamente  
específicos, resultados da malha particular concernente ao meio societário do qual  
emergem.  
A forma das realizações da política deve ser considerada como processualidade  
dinâmica, de modo nenhum como formação abstrata, estática e perene. Ela é sempre  
uma força social ordenadora da formação econômico-social particular, terreno ela do  
qual ela emerge, atua, torna-se problemática e fenece, dando lugar a modos distintos  
de realização. As formas assumidas pelo estado na modernidade e na  
contemporaneidade, por exemplo, são obviamente distintas da antiguidade clássica. A  
longa trajetória histórica que culminou no estado moderno não é uma linha de  
evolução necessária, ou decorrência de um télos universal cuja linha evolutiva é dada  
pelas figuras particulares das formações políticas que decorrem nos períodos da  
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história da humanidade. Como bem adverte Marx, diferentemente da era moderna, na  
“Grécia a res publica é assunto privado real, o conteúdo real dos cidadãos, e onde o  
homem privado é escravo; o estado político como tal é o único e verdadeiro conteúdo  
de sua vida e de sua vontade” (MARX, 2005, p. 51).  
A apreensão desse desvelamento de fundo da politicidade exige ir além da  
constatação das formas historicamente entificadas. A análise deve necessariamente  
suplantar a mera esfera da determinação das diferenças empíricas para dirigir a  
reflexão à investigação da gênese das dinâmicas societárias. Vislumbrar tal  
determinação na trajetória humana do desdobramento e engendramento do ser social  
e de suas condições históricas torna-se, desse modo, fundamental para destacar as  
formas de suas concreções, suas realizações, limites ou mesmo irresolubilidades. No  
que tange, portanto, às formas da efetivação histórica das relações políticas, “sua  
caracterização concreta é necessária, isto é, tem de ser feita em relação a cada modo  
de produção em geral e em relação às formas particulares das formações sociais”  
(CHASIN, Glosas inéditas acerca da ontonegatividade da política). Porém, não como  
mera descrição das diferenças, mas como análise das determinidades sociais que  
fazem emergir a ação política como necessidade de equacionar as insubsistências  
intrínsecas da sociabilidade em questão.  
A esse propósito, as considerações de Lukács, em sua obra tardia Democracia  
ontem e hoje, ao tratar da “multiplicidade das formas da democracia” são bastante  
instrutivas. Ao diferenciar a democracia na antiguidade clássica em relação à sua forma  
na modernidade o autor destaca que o indivíduo na Grécia antiga, torna-se cidadão  
da pólis por “possuir um lote de terra”, por “pertencer a uma tribo”. Essas são as  
“condições socioeconômicas de sua existência, que convergem numa identidade etc.”,  
que conferem os princípios básicos de seu pertencimento a pólis, no entanto, não  
assume a forma da individualidade e da cidadania como a constituição do "único" no  
sentido moderno. Em termos suscintos, os laços do pertencimento à pólis eram ditados  
pela posse da terra, expressão de uma relação civil que se assenta sobre a base da  
propriedade da terra e por ser membro de uma tribo, igualmente possuidora. Citando  
diretamente Marx, Lukács demonstra como na feudalidade “os elementos da vida civil  
(como por exemplo, a posse ou a família, ou o modo de trabalho), estavam elevados a  
elementos da vida do estado, na forma da senhoralidade fundiária, do estado (Stand,  
estamento) e da corporação” (Marx apud LUKÁCS, 2008, p. 89). Em contrapartida,  
assevera Lukács “a Revolução Francesa eliminou pela raiz toda esta estrutura social;  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
com isso, pela primeira vez na história do mundo, estabeleceu a relação entre estado  
e sociedade civil em termos puramente sociais” (LUKÁCS, 2008, p. 89).  
Não é por simples formalidade que nos valemos aqui da menção ao pensador  
magiar. Embora Lukács seja o primeiro a destacar o caráter ontológico do pensamento  
de Marx, em relação ao tema da política ele esteve bem longe de estabelecer seu  
caráter ontonegativo. A despeito da importante contribuição no que tange ao  
problema das diferenças históricas da política nele tematizadas a partir das formas  
múltiplas da democracia Lukács não aprofundou seus estudos sobre os  
desdobramentos do problema em Marx, de maneira a analisar os elementos que o  
levassem a perceber a crítica da política no pensamento marxiano. Pelo contrário, a  
política, apesar de sua historicidade, aparece no pensamento de Lukács determinada  
como complexo ideal inerente ao ser do homem (cf. FORTES; VAISMAN, 2015).  
A política assume, portanto, características específicas em conformidade ao  
contexto histórico-social do qual constitui uma parte. Não obstante, esse argumento  
não é suficiente para negar à política a condição de tributo do ser social. Por mais que  
se reenfatize o argumento das diferenças das formas de realização da política, sempre  
se poderá contrapor afirmando sua essência independente dos modos distintos de  
suas configurações históricas. Estaríamos diante do argumento da afirmação da  
política em geral, da instância política como forma abstrata que se efetiva nas  
diferenciações históricas da trajetória humana tese de Lukács. Assim, a política  
sempre estaria presente, como predicado inerente ao corpus social, apesar das formas  
distintas de sua realização.  
O exemplo da antiguidade clássica, recolhido por Chasin nos mesmos rascunhos  
de Marx (Grundrisse) referidos por Lukács, destacam as formas concretas da incipiência  
e fragilidade da malha social que põem a necessidade da forma de regulação social  
caracteristicamente política. Diferentemente de Lukács, o autor brasileiro efetua uma  
análise mais pormenorizada, tomando em consideração não apenas a dimensão  
política da organização da pólis grega; ele recolhe também em Marx as considerações  
sobre os limites materiais da produção da vida que caracteriza esse período da história  
clássica. Não se trata de dizer que Lukács negligencia tais elementos, mas a ênfase  
conferida a determinados aspectos a democracia, a política mostra as bases de  
suas preocupações que o levam à apontamentos de ordem fundamentalmente distinta:  
os limites são enfatizados pelo modo como o pertencimento se efetiva nessas  
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sociedades, e não sobre a prevalência do estreito campo de possibilidades da  
reprodução econômica sobre os quais se assentavam essas sociedades.  
Obviamente o aspecto do enlace entre indivíduos e comunidade nesse período  
não passa desapercebido para Chasin, que a respeito dessa questão observa:  
nas equações societárias de tipo comunal, a existência objetiva do  
indivíduo como proprietário das condições materiais de trabalho é um  
pressuposto real, antecede e não deriva do trabalho, do mesmo modo  
que ele é proprietário sob condições que o vinculam ao agregado  
social, que fazem dele um elo da cadeia comunitária, sendo que esta  
mesma, por sua vez, aparece igualmente como pressuposto efetivo,  
como condição da produção de cada um dos indivíduos que existem  
sob forma subjetiva determinada. Portanto, em semelhantes  
conglomerados humanos, indivíduo e gênero são imediata e  
transparentemente inseparáveis e suas relações traduzem essa  
unidade fundamental, tornando desconhecida e impensável qualquer  
tipo de cisura que contraponha ou, menos ainda, torne excludentes  
entre si as figuras de sua polaridade. (CHASIN, 2023, p. 30)  
Precisamente nesse ponto transparece a dimensão negativa dessas formações  
sociais. Pois:  
em todas as suas modalidades, o fundamento do evolver é a  
reprodução inalterada das relações entre indivíduo e gênero,  
compreendidas e aceitas como dadas e fixas na tradição, o que perfaz  
os contornos de uma existência objetiva que é definitiva e  
predeterminada, tanto no relacionamento com as condições de  
trabalho, quanto no relacionamento do homem com seus parceiros de  
atividade em todas as formas da práxis social. (CHASIN, 2023, p. 31)  
Em outros termos, a perpetuação da sociabilidade nessas comunidades  
pressupõe à manutenção das relações entre os indivíduos e entre esses e a  
comunidade. O que requer modos de regulação social que contenham as  
individualidades e as alterações na base da reprodução material da vida. Ambas  
aparecem desse modo como desestabilizadoras da formação social em questão.  
Esse foi o caso da organização política ateniense. No esteio de Marx, Chasin  
demonstra que o berço da tão enaltecida democracia política na Grécia Antiga, foi a  
realização plena das individualidades em um tempo caracterizado ainda pelo baixo  
desenvolvimento das capacidades humanas. A questão levantada por Marx em notas  
de estudo destaca virtudes das realizações pregressas: “por que a infância da  
humanidade, ali onde revela-se de modo mais belo, não deveria exercer um eterno  
encanto como um estágio que não volta jamais?” (MARX, 2011, pp. 63-4). No entanto,  
apesar do fascínio,  
Vista no conjunto real de sua entificação e reiteração, a comunidade  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
antiga não manifesta apenas a dimensão fascinante das atividades  
individuais e gerais exercidas em cooperação no quadro de uma vida  
solidária, mas exibe no mesmo envoltório, e com a mesma ênfase, os  
contornos intrínsecos de sua fraqueza constitutiva. Trata-se, em  
verdade, de cooperação e solidariedade feitas de incipiência e  
debilidade, incapazes, eis o ponto crucial, de subsistirem  
exclusivamente por si próprias. (CHASIN, 2023, p. 34)  
A “infância da humanidade” grega é a constatação da máxima realização das  
individualidades em meio às tacanhas possibilidades materiais da existência  
características do mundo antigo. Na antiguidade grega  
a potência evolutiva é, pois, restrita e limitada desde o princípio,  
embora certas instituições e os indivíduos, como é o caso da polis  
grega, possam parecer grandes ou notáveis. Mas, é inconcebível o  
livre desenvolvimento do indivíduo ou da sociedade, porque tal  
evolução é contraditória com a matriz do relacionamento original. De  
sorte que a ultrapassagem dos limites gera transtornos, implica a  
decomposição do quadro, engendra sua decadência e a formação  
acaba por se desintegrar (CHASIN, 2023, p. 31).  
Os limites dessa forma da organização social, as bases sobre as quais ela ergue  
sua regulação societária, “ainda muito próximas e dependentes da natureza” pode  
fazer com que o “desenvolvimento das forças produtivas” dissolva “essas formas de  
sociabilidade”, ou seja, “sua própria dissolução” surge como o resultado do “progresso  
das forças produtivas humanas”.  
As condições materiais e sociais dessa organização social,  
pelos seus próprios limites ou insuficiências necessita de algo  
“externo”, para além dela, ou melhor – uma força externa que a  
confirme e complete e com isso a viabilize enquanto aparato dinâmico  
de sustentação do ordenamento social. Força extra que, obviamente,  
não tem de onde provir a não ser do próprio tecido comunitário  
(CHASIN, 2023, p. 34).  
Esse tecido comunitário emerge sob a forma transubstanciada da política, como  
consequência dos “limites, debilidades e incipiências intrínsecas”. A esfera da política  
surge, portanto, não como a expressão de virtude da organização societária, mas é a  
regulação social necessária que precisa conter as individualidades, bem como o  
desenvolvimento das forças sociais de produção, a fim de manter coesa a estrutura  
social em questão. E isso porque a comunidade antiga “é incapaz de sustentar a  
regular exclusivamente a partir e em função de suas puras e específicas energias  
sociais” (CHASIN, 2023, p. 34).  
De maneira conclusiva, Chasin, descreve a função que a política assume mediante  
as formas irresolúveis da contradição da sociedade grega:  
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por seus limites, debilidades e incipiências intrínsecas, a comunidade  
antiga (o exemplo grego é a melhor iluminura) não é socialmente  
autoestável, é incapaz de se sustentar e regular exclusivamente a  
partir e em função de suas puras e específicas energias sociais. Essa  
incapacidade ou limite social engendra, a partir de si mesmo, em  
proveito  
e
em vista da estabilidade comunitária, uma  
dessubstanciação social como força extra social, uma desnaturação  
e metamorfose de potência social em força política. Ou seja, esta é  
uma força social que se entifica pelo desgarramento do tecido  
societário, dilaceração naturalmente determinada pela impotência  
deste, e que, enquanto poder, se desenvolve tomando distância  
(variável de acordo com os modos de produção) da planta humano-  
societária que o engendra (mesmo na democracia direta) e a ela se  
sobrepõe, como condição mesmo para o exercício de sua função  
própria regular e sustentar a regulação. Força social usurpada e  
presentificada como figura político-jurídica que forma com a  
sociedade stricto sensu um indissolúvel cinturão de ferro, cujos  
segmentos ou elos não subsistem em separado (CHASIN, 2023, p.  
34).  
Portanto, a contingência histórica no que diz respeito ao âmbito da política no  
interior da esfera societária é outra ordem, isto é, não é a simples mudança histórica  
da forma. Se por um lado, a política atravessa vários momentos da história humana  
sob formas diversas aspectos que reforçaria a tese da política como atributo da  
essência do ser social é preciso, por outro lado, destacar que ela tem seu caráter  
contingencial vinculado às formas da insustentabilidade intrínseca à malha social. A  
política é histórica, tem feições cujas marcas do tempo imprimem suas características  
particulares, porém no que tange ao ser social, ela perdura enquanto perdurar as  
inviabilidades das forças sociais capazes de resolução própria de seus conflitos. Nessa  
medida, a política existe enquanto fenômeno específico de dadas condições, não como  
essência de uma forma do ser. Em suma, a política é uma categoria histórico-social em  
dois sentidos: na forma de sua realização peculiar aos contextos históricos específicas  
em que aparece, e enquanto, dinâmica mediadora das relações sociais, como  
expressão da insustentabilidade intrínseca das formas sociais. Esse último caso, dado  
a inviabilidades frequentes das formações sociais, confere a impressão da durabilidade  
da política como atributo próprio ao ser social, uma vez que na história das civilizações  
ela sempre apareceu como instância necessária das mediações e das regulações  
sociais4.  
4 O texto O futuro ausente é parte fundamental da demonstração das formas efetivas do fenômeno da  
política erguida sob a base das irresolubilidades societárias de diversas épocas. As análises de Chasin  
se estendem até o período exemplar do renascimento italiano. A obra de Maquiavel é o reflexo de seu  
tempo, e é a exata expressão das inviabilidades sociais do período. Infelizmente, o texto permaneceu  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
O trabalho analítico mais conclusivo não pode prescindir da análise das  
particularidades históricas da investigação da gênese das categorias , uma vez que  
as manifestações das contradições sociais, das quais a dimensão política é o resultado  
mais direto, não podem deixar de se apresentar por meio das configurações distintas.  
Oriunda das formações históricas, a prática política é mutável, pois responde às  
condições das resolubilidades específicas do momento histórico social em questão. A  
política em geral é, nesse sentido, uma abstração, pois para se pôr como atributo  
universal precisa negar as diferenças específicas de suas efetivações históricas; nesse  
sentido, a forma universal da prática política é fruto de abstrações fundadas na ação  
de negligenciar as formações concretas de suas realizações, bem como os processos  
societários que a põe como dimensão regulatória necessária de determinado contexto.  
A política, conforme os argumentos aludidos, é o efeito do desequilíbrio inerente a  
dadas formações sociais. É o sintoma da crise, o fenômeno oriundo das contradições,  
e não a forma própria das relações sociais. Nesse sentido sua historicidade não é a  
expressão de uma evolução intrínseca dos processos sociais, mas é sempre o modus  
operandi concreto que visa dirimir os dilemas sociais concretos de dado tempo.  
Conforme assevera Marx em A ideologia alemã, “não se pode esquecer que o direito,  
tal como a religião, não tem uma história própria” (MARX, 2007, p 76) e na página  
subsequente acrescenta, “não há história da política, do direito, da ciência etc., da arte,  
da religião etc.” (MARX, 2007, p 77)5. O que de fato pode ser estabelecido como geral  
é a ação social que busca equilibrar e regular as insuficiências congênitas da  
sociabilidade.  
A ontologia do ser social: crítica da política como crítica do mundo  
De modo algum a questão levantada por J. Chasin é um problema menor ou  
simples aspecto de talhe secundário sobre as reflexões acerca da política no  
pensamento de Marx; trata-se na realidade, de estabelecer como o pensador alemão  
determina os traços essenciais do ser social, como apreende o seu movimento de auto  
inacabado, porém apesar de sua inconclusão suas elaborações deixam um legado de tarefas necessárias  
de análise sobre os desdobramentos posteriores das formas da política nas sociedades modernas e  
contemporâneas.  
5
“A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciência a  
elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de autonomia que até então possuíam. Não têm  
história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio  
materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não  
é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX, 2007, p. 94).  
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engendramento, desvelando as categorias que de fato perfazem sua essência e os  
elementos que se colocam como contingências históricas. Para dizer com outras  
palavras, cabe discernir o que é próprio dessa forma do ser das consequências postas  
pela natureza contraditória dos desdobramentos sociais particulares historicamente  
existentes. Nesse sentido, vale ressaltar, a crítica da política não é o cerne estruturador  
ou clave única da reflexão de Marx, mas a decorrência de considerações mais amplas  
acerca dos atributos do ser social. O centro da problemática marxiana é o homem, o  
ser social nas determinações gerais de sua efetivação histórica. Pensar o decurso  
histórico da trajetória humana de autoprodução permite estabelecer distinguir os  
elementos contingentes dos elementos essenciais desta forma do ser.  
A elucidação da trajetória da constituição da autenticidade do pensamento de  
Marx, realizada por Chasin, destaca o enlace orgânico da crítica da política com a –  
quase simultânea crítica da especulação. O enfrentamento dos problemas concretos  
da realidade social de seu tempo, o levam percepção os limites dos aparatos  
conceituais e teóricos para enfrentar as questões mais prementes que apareciam diante  
dele. Marx, movido pela necessidade de “examinar problemas sociais concretos” não  
se deu por “satisfeito com os resultados” obtidos, uma vez que “tentou resolver  
questões relativas aos ‘chamados interesses materiais’, recorrendo ao aparato  
conceitual do estado racional” (CHASIN, 1995, p. 358). O problema apareceu para o  
pensador alemão como uma questão prática, o tempo gasto em seu gabinete estudo  
foi motivado pela insatisfação em relação aos limites do arcabouço teórico para a  
compreensão das relações e conflitos concretos da prática, e não como consequência  
de uma simples querela “escolástica” acerca dos fundamentos.  
O problema é levantado nas elaborações que o filósofo brasileiro estabelece em  
torno da formação da originalidade do pensamento marxiano, na qual se volta contra  
a tese de grande aceitação no marxismo, segundo a qual o primórdio do pensamento  
de Marx estaria no tríplice amálgama herdado da fusão multiforme entre o que haveria  
de melhor na filosofia clássica alemã, na economia-política inglesa e no pensamento  
político francês. É desnecessário percorrer aqui todas as vias argumentativas traçadas  
por Chasin na demonstração da inadequação da tese originariamente formulada por  
Kautsky, e seguida quase pelas mesmas letras por Lênin e na determinação decisiva,  
segundo a qual Marx estabelece as vias exatas de suas reflexões, não da herança  
dessas três instâncias do pensamento, mas mais precisamente da crítica a elas. Para  
isso, o leitor tem o próprio texto de Chasin, para avaliar o teor da análise realizada.  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
Para nossas considerações, o importante é destacar que a tríade crítica à política, à  
economia, e à especulação filosófica é fruto da uma unidade reflexiva, ou seja, são o  
resultado da inflexão relativa ao modo como Marx passa a determinar o homem e a  
sociabilidade humana, em seu decurso histórico de gênese e explicitação de sua  
peculiaridade ontológica.  
A crítica feuerbachiana à especulação em particular voltada à crítica do  
pensamento de Hegel teve papel decisivo nas elaborações iniciais de Marx. Em seus  
estudos dirigidos ao pensamento político de Hegel, Crítica à filosofia do direito de  
Hegel, fica evidente o duplo movimento crítico, à política e à especulação. Não se trata  
apenas da crítica que constata em Hegel que o “cerne racional” de sua filosofia  
encontra-se assentado sobre a cabeça6. A crítica da política, assim como a crítica da  
especulação, é acima de tudo resultado da inflexão ontológica realizada por Marx. Ao  
tomar posse da crítica feuerbachiana à especulação de Hegel, fica claro ao jovem  
filósofo a inversão entre sujeito e predicado, advindo desta determinação a percepção  
de que não é o estado que determinada a sociedade civil, mas a sociedade civil que  
determina o estado” – conforme já referido. Sobre a questão, conforme destaca Chasin,  
em Marx:  
Inverte-se, portanto, a relação determinativa: os complexos reais  
envolvidos aparecem diametralmente reposicionados um face ao  
outro. Mostram-se invertidos na ordem da determinação pela força e  
pesa da lógica imanente a seus próprios nexos, não em consequência  
formal e linear de algum pretencioso volteio especial nos arranjos  
metodológicos, isto é, não como resultante de uma simples e mera  
reorganização da subjetividade do pesquisador, mas por efeito de  
uma trama reflexiva muito mais complexa, que refunde o próprio  
caráter da análise, elevando o procedimento cognitivo à analítica do  
reconhecimento do ser-precisamente-assim”. (CHASIN, 1995, p. 362)  
A crítica da inversão que se dá no campo da determinidade da política não é  
apenas fruto da crítica à especulação, mas é a percepção da inversão da ordem de  
determinação da realidade, segundo a qual se compreende que não é a “consciência  
6
“A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido  
o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra  
de cabeça para baixo. E preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro  
místico.” [MARX, 2013, p. 91). Passagem frequentemente mal lida, tende a afirmação do método de  
Marx como a inversão da dialética hegeliana. Se lida sem os preconceitos imputados pelo gnosiologismo  
marxista pode-se perceber que Marx apenas afirma que o cerne racional do pensamento de Hegel  
encontra-se invertido e que para apreender o “cerne racional”, as leis gerais de movimento, de seu  
pensamento é preciso desvirar sua filosofia que contém determinações reais da realidade, e não  
proceder à inversão de sua dialética para obter assim o método científico correto.  
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dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina  
a sua consciência” (MARX, 1983, p. 24). Tal ruptura com o pensamento filosófico  
tradicional, conforme testemunha o próprio pensador alemão, é uma conquista de seus  
estudos juvenis, voltados à crítica da filosofia do direito de Hegel. Já em 1843, vê-se  
com clareza, a crítica especulação é a preocupação que se volta à analítica da própria  
coisa, não qual se refuta tomar a “condição” pelo “condicionado”, o “determinante”  
pelo “determinado”. Donde a conclusão arrebatadora na qual acusa: em Hegel, “o  
momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica”, pois “a lógica não  
serve à demonstração do estado, mas o estado serve à demonstração da lógica”  
(MARX, 2005, p. 38).  
Uma vez que a compreensão exige partir não da ideia, mas da realidade social,  
da sociedade civil, chega-se por análise à percepção de que “a anatomia da sociedade  
civil deve ser procurada na economia política” (MARX, 1983, p. 24), ou seja, no modo  
da produção da vida. A produção material da vida não é reduzida assim à condição de  
reles submundo da existência, como ocorre com frequência na história da filosofia, mas  
entendida como base concreta sobre a qual se erguem as construções efetivas das  
atividades sociais do homem, em seus mais diversificados matizes, desse as mais  
práticas até as mais espiritualizadas. Donde a terceira crítica, a crítica à economia  
política7, que conclui o movimento de inflexão que caracteriza de maneira efetiva a  
autenticidade do pensamento de Marx.  
A partir dessa inflexão de natureza fundamentalmente ontológica conforme J.  
Chasin Marx é remetido à análise da sociedade civil; nos Manuscritos econômico-  
filosóficas de 1844, por exemplo, a produção humana figura como o centro  
organizador do discurso. Suas investigações revelam as condições dos homens  
submetidos aos processos de alienação e estranhamento típicas da sociabilidade do  
capital, mas igualmente destacam o evolver humano, a trajetória dos desdobramentos  
humanos em sua dinâmica autoconstitutiva, tendo a relação com a natureza como  
ineliminável. A história humana é a história da relação humana com a natureza, sobre  
ela se assentam as relações sociais propriamente ditas. O desenvolvimento das  
capacidades humanas é sempre um processo que ocorre em determinação de  
7 Cumpre advertir: a crítica da economia política, precisamente por seu caráter ontológico, não é a crítica  
aos livros, embora essa dimensão também se apresente, é a crítica as bases sociais que enformam o  
modo de produção da vida, ou seja, à sociabilidade do capital.  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
reciprocidade com a natureza. Vale aqui dar voz ao próprio pensador alemão:  
A universalidade do homem aparece, na prática, precisamente na  
universalidade que faz da natureza seu corpo inorgânico inteiro, tanto  
na medida em que é 1) um meio de vida imediato, quanto na medida  
em que [2.] é a matéria, o objeto e a ferramenta de sua atividade vital.  
A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, a natureza na  
medida em que ela mesma não é o corpo humano. O homem vive da  
natureza; isto significa que a natureza é seu corpo, com o qual ele  
deve permanecer em um processo contínuo, a fim de poder viver na  
natureza. num processo contínuo, a fim de não perecer. O fato de a  
vida física e espiritual do homem ser dependente da natureza não  
significa que nada mais do que a natureza está relacionada a si  
mesmo, uma vez que o homem é uma parte da natureza. (MARX,  
1983, p. 368)  
A indústria aparece como a expressão mais evidente dessa relação do homem  
com o seu “corpo inorgânico”, daí a relevância das investigações e da crítica da  
economia política como instância decisiva para a determinação do modo da produção  
da vida do ser social.  
A indústria é a relação histórica real da natureza e, portanto, da ciência  
natural com o homem; Se, portanto, ela for concebida como uma  
revelação exotérica das capacidades essenciais do homem, a essência  
humana da natureza ou a essência natural do homem também será  
assim compreendida, portanto a ciência natural perderá sua  
orientação material abstrata ou antes idealista e se tornará a base da  
ciência humana, como já se tornou - embora de forma alienada - a  
base da vida humana real; qualquer outra base para a vida, qualquer  
outra base para a ciência, é uma mentira desde o início. A natureza  
que se torna na história humana - no ato do surgimento da sociedade  
humana - é a natureza real do homem, portanto a natureza como ela  
se torna através da indústria, mesmo que de forma alienada, é a  
verdadeira natureza antropológica. (MARX, 1982, p. 396)  
Conforme Marx reenfatiza alguns anos mais tarde em seus estudos sobre a  
Ideologia alemã, o ato da ruptura com o pensamento especulativo vem acompanhado  
da percepção segundo a qual “o mundo sensível”,  
não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre  
igual a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas  
da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto  
histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações,  
que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram  
sua indústria e seu comércio, modificaram sua ordem social de acordo  
com as necessidades alteradas (MARX, 2007, p. 30).  
O homem faz a sua própria história. No decurso histórico por meio de sua própria  
atividade social frente ao mundo natural e social ele cria e desdobra as condições  
de sua própria existência, desenvolvendo suas capacidades e estabelecendo as leis  
tendenciais sobre as quais se erguem as bases da sociabilidade de determinadas  
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épocas. Nessa exata medida, logo adiante no mesmo texto, Marx estabelece a relação  
da ordem econômica com as chamadas formas “ideais” da prática social, que para ele  
são de fato um complexo:  
a importante questão sobre a relação do homem com a natureza (...),  
da qual surgiram todas as “obras de insondável grandeza” sobre a  
“substância” e a “autoconsciência”, desfaz-se em si mesma na  
concepção de que a célebre “unidade do homem com a natureza”  
sempre se deu na indústria e apresenta-se de modo diferente em cada  
época de acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indústria;  
o mesmo vale no que diz respeito à “luta” do homem com a natureza,  
até o desenvolvimento de suas forças produtivas sobre uma base  
correspondente. A indústria e o comércio, a produção e o intercâmbio  
das necessidades vitais condicionam, por seu lado, a distribuição, a  
estrutura das diferentes classes sociais e são, por sua vez,  
condicionadas por elas no modo de seu funcionamento (MARX, 2007,  
p. 31).  
As críticas da política, da especulação, vêm acompanhadas da crítica da economia  
política. Apesar de ser possível traçar a cronologia dos caminhos percorridos por Marx  
até a constituição acabada da originalidade de seu pensamento, verifica-se que o tripé  
analítico das três críticas que vinha sendo constituído conduz por derivação e  
decorrência a investigações que se potencializam, são o resultado de uma inflexão  
frente às formas anteriores de consideração desses problemas. As três críticas –  
demonstra Chasin em Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica –  
constituem em seu conjunto a inflexão no campo da ontologia do ser social. Pela  
primeira vez, assiste-se à construção da ontologia do ser social que não refuta a  
categoria da história na análise dessa forma do ser. Aspecto este, ausente no  
pensamento de Feuerbach. O que nos permite traçar diferenças importantes entre o  
pensamento de ambos os filósofos. Marx é taxativo a esse respeito: “na medida em  
que Feuerbach é materialista, nele não se encontra a história, e na medida em que  
toma em consideração a história ele não é materialista” (MARX, 2007. p. 32).  
A esse respeito a percepção de Lukács quanto às bases inovadoras instauradas  
pelo pensamento marxiano são bastante elucidativas:  
Marx elaborou principalmente (...) a tese segundo a qual a categoria  
fundamental do ser social, e isto vale para todo ser, é que ele é  
histórico. Nos manuscritos parisienses, Marx diz que só há uma única  
ciência, isto é, a história, e até acrescenta: “um ser não objetivo é um  
não ser”. Ou seja, não pode existir uma coisa que não tenha  
qualidades categoriais. Existir, portanto, significa que algo existe  
numa objetividade de determinada forma, isto é, a objetividade de  
forma determinada constitui aquela categoria à qual o ser em questão  
pertence. Aqui a ontologia distingue-se nitidamente da velha filosofia.  
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nova fase  
A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
A velha filosofia esboçava um sistema de categorias, no interior da  
qual apareciam também as categorias históricas. No sistema de  
categorias do marxismo, cada coisa é, primariamente, algo dotado de  
uma qualidade, uma coisidade e um ser categorial. “Um ser não  
objetivo é um não-ser”. E dentro desse algo, a história é a história da  
transformação das categorias. As categorias são, portanto, partes  
integrantes da efetividade. Não pode existir absolutamente nada que  
não seja, de alguma forma, uma categoria. A esse respeito, o marxismo  
distingue-se em termos extremamente nítidos das visões de mundo  
precedentes: no marxismo o ser categorial da coisa constitui o ser da  
coisa, enquanto nas velhas filosofias o ser categorial era a categoria  
fundamental, no interior da qual se desenvolviam as categorias da  
realidade. Não é que a história se passe no interior do sistema das  
categorias, mas sim que a história é a transformação do sistema das  
categorias. (LUKÁCS, 1999, pp. 145-6)  
Os Manuscritos econômico-filosóficos, conforme atesta Lukács, são exemplares  
nesse sentido. Ao mesmo tempo em que Marx analisa o modo de produção capitalista  
em todas as suas consequências e determinações da máxima produção da riqueza  
material à alienação e estranhamento do homem , destaca simultaneamente o homem  
como um ser que se autoproduz. A história do ser social é a história da formação de  
seus atributos, de suas capacidades, e, é claro, das formas instituídas das  
sociabilidades erguidas ao longo do decurso histórico de seus desdobramentos. O  
ponto de partida de Marx são as individualidades humano-societárias vivas e ativas,  
cujo processo de constituição sempre ocorre em meio ao caráter relacional de toda  
objetividade.  
A este respeito a passagem a seguir é bastante ilustrativa, na medida em que  
destaca a formação do homem tanto em sua dimensão subjetiva quanto objetiva:  
não apenas os cinco sentidos, mas também os assim chamados  
sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), em uma  
palavra a sensibilidade humana, a humanidade dos sentidos só surge  
através da existência de seu objeto, através de natureza humanizada.  
A formação dos cinco sentidos é uma obra de toda a história universal  
precedente (MARX, 1983, p. 394).  
Os desvelamentos do tema apresentados por J. Chasin permitem elucidar de  
maneira precisa o movimento de determinação de reflexão entre subjetividade e  
objetividade no processo formativo do ser social. Aqui cabem as próprias palavras do  
autor, uma vez que é ele que traz à luz os aspectos decisivos das determinações de  
Marx:  
O destaque enérgico deve recair, pois, sobre a determinação de que  
a objetividade e subjetividade humanas são produtos da  
autoconstitutividade do homem, a partir e pela superação da sua  
naturalidade. O homem e seu mundo são produções de seu gênero –  
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a
interatividade universal  
e
mutante dos indivíduos em  
processualidade infinita, que tem por protoforma o trabalho a  
atividade especificamente humana, porque consciente e volta a um  
fim. Único ser que trabalho, através da sucessão e multiplicidade de  
seus fins básicos e imediatos, constitui igualmente a si mesmo, não  
importa quão radicalmente contraditória e, de fato, cruel, perversa e  
mutiladora seja a maior parte dessa trajetória sem fim. (CHASIN, 1995,  
p. 392)  
Indivíduo e gênero perfazem a bipolaridade do ser social, sempre em  
determinação de reciprocidade. O desenvolvimento das capacidades humanas é o  
resultado de toda a história, as forças essenciais engendradas expressão usada por  
Marx na obra em questão aparecem como potências do gênero, por meio delas os  
indivíduos formam a si mesmos. A contrapartida se dá pelo fato de uma vez se  
constituindo por meio das potências sociais obviamente em condições socialmente  
favoráveis as individualidades podem desenvolvê-las e elevá-las a patamares  
superiores, potencializando o próprio gênero. Desse modo, “por sua essência ativa as  
individualidades humano-societárias, autoras de sua afirmação e a de seu gênero, são  
como tais as efetivadoras de suas esferas próprias de objetividade e subjetividade  
(CHASIN, 1995, p. 393). Indivíduo e gênero constituem uma unidade em determinação  
reflexiva no interior de um complexo.  
Precisamente em função dessa unidade no interior do complexo, as condições  
sociais inibidoras da constituição das individualidades a partir das potências  
constituídas pelo gênero, podem se fazer presentes historicamente. Como é o caso da  
sociabilidade capitalista analisada por Marx, em que o processo de alienação e  
estranhamento aparece como determinantes decisivas da vida humana.  
Quanto a isso cabe acrescentar:  
A ind[ividualidade] hum[umana] não só aparece em contexto social,  
mas só pode aparecer nesse contexto, e sua essência é dada pelas  
formas da sociabilidade (Cf. Introd. 57). É a interatividade dos  
exemplares humanos que plasma o humano e a ind[ividualidade]  
hum[umana]. Em outros termos a potência do ser aberto só se realiza  
em sociedade. (CHASIN, Glosas inéditas intituladas “Ontologia:  
afloramento introdutório)  
Aberto nesse contexto, significa que “para o bem, ou para o mal”, o chão das  
possibilidades da individuação humana é dado sempre pelas condições sociais  
objetivas historicamente constituídas. Não há uma bondade natural do homem, assim  
como não há uma maldade constitutiva de sua natureza. As individuações são  
formações históricas que reagem ao mundo concreto, às condições efetivas de seu  
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mundo. Valem aqui as análises do próprio Marx no diagnóstico que traça sobre as  
individuações em meio a sociabilidade do capital. Nela o homem encontra-se apartado,  
alienado, do objeto de seu trabalho, de sua própria atividade, e nessa medida da  
natureza sobre a qual ele executa seu trabalho. Por via de consequências estranha seu  
próprio gênero (as potências humanas engendradoras de suas condições de vida e de  
sua sociabilidade), assim como estranha os outros indivíduos, uma vez que a interação  
entre eles sempre se dá por fatores extrínsecos à sua própria vontade e escolha, ou  
seja, ocorrem pelas condicionantes do mercado.  
É preciso ter clareza dessa dimensão do ser aberto, determinação que impede  
qualquer intenção de se restringir à ideia de uma antropologia filosófica como base  
fundante do pensamento de Marx. Fica-se longe, portanto, de pretender estabelecer  
os traços gerais do ser social, como atributos essenciais perenes, como propriedades  
imutáveis que estabelecem a essência desta forma do ser. Dizer “ser aberto” significa  
que a essência humana é histórica, fundada nos processos sociais que formam a base  
do modo de produção da vida. Nesse sentido o homem é um ser que edifica a si  
mesmo, construindo seu mundo e por meio dessa produção, cria tanto as categorias  
do complexo de sua subjetividade tanto quanto aqueles pertinentes aos complexos da  
objetividade social e natural. Quanto a isso, Chasin adverte:  
Em decorrência, a determinação da individualidade social (e não da  
individualidade "pura" - (Id. Alemã, 119.1) se dá no interior da  
determinação dos complexos da mundanidade. Para saber da  
realização ou atualização do ser aberto é preciso saber da infinitude  
do mundo, ou seja, da usina produtora do humano, pela mediação de  
suas formações concretas e específicas. (CHASIN, Glosas inéditas  
intituladas “Ontologia: afloramento introdutório”)  
Vêm assim estabelecidas de maneira clara a incompatibilidade entre proposições  
de cunho ontológico e as concepções tradicionais da assim chamada antropologia  
filosófica. Aqui convém insistir sobre esse ponto, uma vez que sobre a base da  
fundamentação de uma antropologia filosófica, vêm em grande medida assentadas a  
ideia da condição essencial do homem como fundamento primeiro da determinação  
do atributo da política e mesmo da necessidade do estado como categoria própria  
do ser social.  
Contra tais proposituras, desdobrando as determinações postas pela primeira  
vez por Marx, é preciso salientar:  
O ser não é, simplesmente, essência, porém existência que contém  
essência, e de forma recíproca: existência que se move por sua  
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essência, existência que cria essência; na entificação concreta os dois  
modos, em graus diversos e formas específicas, estão sempre  
entrelaçados.  
Ser não é uma essência que pode vir ou não a existir. Só é ser o que  
tem existência.  
A essência do ser social é o vir-a-ser, a possibilidade de existir  
diferentemente. (CHASIN, Glosas inéditas intituladas “Ontologia:  
afloramento introdutório)  
Contra as proposições ontológicas tradicionais, em que a história é refutada em  
virtude da necessidade argumentativa da perenidade do ser e da substância, em Marx  
há o desvelamento da historicidade do ser social, trata-se de pensar e explicitar a  
trajetória de seus desdobramentos no curso da dinâmica processual de sua  
autoconstrução.  
Dizer que o homem faz a própria história8 implica afirmar que na trajetória de  
seu autoengendramento, são constituídas as potências genéricas de seu ser, mas  
também os traços de prevalência histórica circunstanciada a determinados processos  
sociais. Motivo pelo qual, historicamente, em sociedades determinadas podem  
aparecer formas da dinâmica social que são consequências de aspectos contraditórios  
oriundos da própria realidade social. Nesse sentido, são contingências historicamente  
postas, de modo nenhum traços inerentes do ser social. Se assim o fosse estaríamos  
no interior da seara das formulações de uma suposta antropologia filosófica, que  
afirmaria a dimensão política como traço essencial do homem, independente do  
contexto histórico que se queira analisar.  
Desse modo, ainda que se possa afirmar a importância de Feuerbach na virada  
frente à especulatividade da filosofia clássica alemã, tal constatação não implica a  
adesão às teses de um suposto feuerbachianismo em seu pensamento de juventude,  
teses essas que tendem a atribuir às obras juvenis de Marx bases que ditam diretrizes  
que levam à construção de uma antropologia filosófica. De fato, o inverso a essa  
tendência presente sem dúvida na filosofia de Ludwig Feuerbach marca o  
pensamento marxiano, já nos primórdios de suas reflexões. A advertência de Chasin a  
esse respeito é bastante elucidativa:  
é impossível ao pensamento marxiano ser uma antropologia, pois a  
determinação da individualidade humana depende radicalmente da  
8
“Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois  
não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita”, diz Marx em O 18 Brumário de  
Luís Bonaparte (2011a, p.25).  
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determinação do complexo da sociabilidade, não é à toa que Marx  
afirma na VI Tese Ad Feuerbach que a essência humana é "o conjunto  
das relações sociais". Nestes parâmetros é própria e corretamente  
uma antiantropologia, enquanto disciplina filosófica, de orientação  
metafísica ou mítico-naturalista. (CHASIN, Glosas inéditas intituladas  
“Ontologia: afloramento introdutório”)  
Tomar as obras de juventude como base para a elaboração de uma antropologia  
filosófica serve de alento para os defensores da politicidade, uma vez conduz a outras  
incompreensões acerca da natureza do pensamento de Marx, particularmente em  
relação à crítica da política já presentes em seus escritos da década de 1840 (1843-  
48). Como adverte Chasin:  
É preciso recusar o diagnóstico de que as obras marxianas da primeira  
fase estão centradas numa antropologia porque isso faz com que a  
crítica à política nelas desenvolvida tenda a ser considerada como uma  
crítica humanista à política e não como a determinação ontológica de  
sua natureza. (CHASIN, Glosas inéditas intituladas “Ontologia:  
afloramento introdutório)  
O argumento de Chasin é contundente. Para tanto, o autor brasileiro demonstra  
a natureza fundamentalmente distinta das posições de Feuerbach concernentes à  
política. Nele a política aparece como chave da organização social humana, Feuerbach  
é um defensor intransigente e absoluto da máxima relevância da política e do estado”  
(CHASIN, 1995, p. 372). A ontopositividade da política se encontra em grande medida  
assentada sobre as bases de uma antropologia filosófica.  
No ponto em que chegamos, já temos argumentos suficientes para refutarmos  
os elementos apontados no início deste artigo como o ponto de partida do  
pensamento moderno e nos irracionalismos contemporâneos característicos da pós-  
modernidade. As considerações de Chasin nos auxiliam no desvelamento dessas bases,  
ao mesmo tempo em que apontam para o caráter resolutivo do pensamento marxiano:  
Donde o indivíduo isolado, ao qual é conferido a dimensão humana  
por uma essência metafísica ou uma dimensão mítico-natural não é  
centro, nem ponto de partida para a dedução do mundo, como se dá  
na antropologia filosófica ou nas teorias da desconstrução. O que  
pode confundir é que os homens concretos em seu processo infinito  
de realização é que constitui o objetivo final crítico-prático do  
pensamento marxiano. (CHASIN, Glosas inéditas intituladas  
“Ontologia: afloramento introdutório”)  
Em temos mais suscintos, em Marx “não deduz o mundo pela determinação da  
individualidade isolada, o que seria uma operação antropológica, mas determina a  
individualidade social pelo complexo da mundanidade”. Donde a conclusão enfática:  
“na filosofia marxiana, pois, a individualidade é estudada nos lineamentos ontológicos,  
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não podendo consistir, no pensamento marxiano, uma disciplina autônoma como a  
antropologia tradicional” (CHASIN, Glosas inéditas intituladas “Ontologia: afloramento  
introdutório)  
A necessária crítica da política mediante a perspectivação do futuro humano  
Os argumentos arrolados por Chasin, que conduzem à percepção da natureza  
ontológica mais profunda característica do pensamento de Marx, buscam estabelecer  
que “a política não é um atributo necessário do ser social, mas contingente no seu  
processo de autoentificação” (CHASIN, Glosas inéditas intituladas “Ontologia:  
afloramento introdutório). Contudo, não se trata de negar a política como elemento  
de fato existente nos complexos humano-societários, mas destacar que apenas sob a  
modalidade da contingência ela assume o caráter de base das condições concretas da  
existência social, de forma que “não pertence à essência do humano-societário”. Por  
via de consequências, a política deve ser compreendida como “predicado contingente  
das sociabilidades contraditórias e não desenvolvidas” (CHASIN, Glosas inéditas  
intituladas “Ontologia: afloramento introdutório).  
A questão ora levantada remete ao problema das categorias da modalidade tão  
persistentes nos temas mais tradicionais do pensamento filosófico. Trata-se de não  
tomar a contingência, a possibilidade e a necessidade como categorias excludentes.  
Nesse caso, a contingência não implica mera aparência ou simples acaso irrelevante  
nas tendências diretivas dos processos. Mesmo na condição de contingência a política  
aparece como elemento determinativo das efetivações e desdobramentos da malha  
entitativa histórica da forma do ser. Esta é, no entanto, consequência das contradições  
e inviabilidades societárias, não a causa ou atributo determinativo ineliminável do ser  
social. Em resumo, a política não tem em si mesma uma essência, não é um atributo,  
mas o resultado dos processos contraditórios da própria sociedade. Assume papel  
decisivo na medida em que aparece como expressão mais imediata da necessidade de  
equacionar e dirimir as contradições sociais, é o âmbito em que os conflitos e  
antagonismos sociais se expressam e são conduzidos a termo.  
A percepção da ontonegatividade não é a recusa da prática política, mas a  
afirmação da necessidade da ação política contra as condições sociais e históricas que  
tornam a política prática necessária. Aspecto muito evidente nas próprias elaborações  
marxianos de 1844, anteriormente referidas:  
A revolução como tal a derrubada do poder constituído e a  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
dissolução das relações antigas é um ato político. No entanto, sem  
revolução o socialismo não poderá se concretizar. Ele necessita desse  
ato político, já que necessita recorrer à destruição e à dissolução.  
Porém, quando tem início a sua atividade organizadora, quando se  
manifesta o seu próprio fim, quando se manifesta a sua alma, o  
socialismo se desfaz do seu invólucro político. (MARX, 2009, p. 52)  
Sobre tal passagem de Marx, Chasin se debruça para determinar o papel da  
política necessário para a transformação da sociabilidade que a põe como necessária:  
quando a contestação visa consciente e deliberadamente a  
emancipação, necessita transmigrar para outra esfera, tem de praticar  
uma política orientada para a superação da política, fazer uma política  
que desfaça a política, pois seu escopo é a reconversão e o resgate  
das energias sociais desnaturadas em vetores políticos (CHASIN,  
2009, p. 65).  
A crítica da política não é, vale insistir, simples insatisfação, desassossego, e  
mesmo desesperança, com o âmbito da política nos meandros sociais da cotidianidade.  
De fato, resulta da percepção prática de sua impotência como meio efetivo de  
resolubilidade de conflitos e contradições características da dinâmica social vigente  
historicamente. Para colocar a questão de maneira mais clara: não é mera crítica teórica  
unilateral constituída de maneira abstrata a partir de concepções conceituais, mas  
constatação proveniente da própria prática social, na qual o movimento analítico da  
dinâmica prática demarca com forte nitidez a ineficácia da vontade tomada como  
base unívoco das decisões postas no enfrentamento das malhas concretas postas  
pelas tendências objetivas prevalentes na sociabilidade.  
Através dos caminhos abertos pelo próprio Marx, que o projeto de Chasin da  
crítica da política se circunscreve em investigações programáticas de maior  
envergadura. Dizer que a política é atributo contingente, historicamente determinado,  
remete ao problema de fundo, cujo elemento decisivo é a indagação acerca do ser do  
homem. A crítica da política constitui nessa medida um capítulo necessário na  
determinação da ontologia do ser social. Conforme estabelece Chasin, “a questão  
decisiva é que essa problemática não é simplesmente 'técnica', pois envolve ou tem  
por centro o homem” (CHASIN, Glosas inéditas intituladas “Ontologia: afloramento  
introdutório).  
Uma vez que a natureza do problema é mal compreendida, como advertimos no  
início deste artigo, repetir as determinações acima é mais do que necessário: a questão  
da ontologia do ser social não é mera abstração filosófica, é a questão do ser e do  
destino do homem, o “de onde?” como prospectiva das construções futuras, ou seja  
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o seu “para onde?”. E no interior desse quadro de análise mais ampla, o problema da  
ontonegatividade da política é a advertência para os equívocos comuns no  
pensamento contemporâneo, cujas bases teóricas tomam a politicidade como o fator  
preponderante das diretrizes, tendências e meios de eficácia para a compreensão e  
ação sobre os conflitos e contradições da realidade social.  
A crítica da política significa de fato a demarcação de seus limites práticos de  
intervenção social. O próprio curso da construção da crítica marxiana à politicidade  
destaca não ser mera proposição filosófica, ou seja, simples refutações oriundas  
puramente do plano teórico. Conforme, já referimos, a insatisfação advém da própria  
preocupação com a prática social de seu tempo, com as “questões materiais” com que  
ele se deparou no curso de suas atividades jornalísticas. Nesse aspecto, a linha crítica  
deriva do enfrentamento das questões práticas, não é mera elocubração que se funda  
sobre bases de argumentações meramente teóricas.  
Se nos for permitido traçar linhas comparativas, a percepção da ontonegatividade  
por parte de Chasin, não é mera decorrência da exegese dos textos marxianos. Sua  
atividade política, toda a análise realizada ao longo de vários textos no qual trata  
vários detalhes da realidade brasileira, o levam às mesmas conclusões sobre os limites  
da vontade política, como elemento resolutivo das contradições da sociedade do país  
ou das condições de transformação da sociabilidade do capital globalmente existentes.  
Ao longo de sua carreira intelectual foram produzidos vários textos em que se analisa  
desde o surgimento do PT, a insurgência de Lula como líder sindical, as condições do  
país antes e durante a ditadura militar, culminando no artigo Ad hominem: rota e  
prospectiva e um projeto marxista. A percepção da insuficiência da compreensão  
política da realidade social, assim como de seus limites como princípio fundamental  
da prática revolucionária, é uma conquista não somente teórica, mas essencialmente  
prática. Não caberia aqui discorrer sobre essas questões, uma vez que estenderia  
nossa discussão para além dos propósitos estabelecidos em nosso artigo. Sobre a  
percepção prática e teórica da natureza ontonegativa da política, o artigo: Da crítica  
ao politicismo à determinação ontonegativa da politicidade, de Ester Vaisman e Vânia  
Noeli Ferreira de Assunção, constante deste volume, trata de forma pormenorizada a  
trajetória percorrida por J. Chasin.  
As determinações sobre os atributos próprios do ser social permitem a Chasin  
estabelecer a crítica do pensamento político e da prática política comuns na atualidade:  
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Por isso, não por acaso, mas contraditoriamente, o pensamento  
político tradicional ontopositivo é das formas mais abstratas da  
reflexão filosófica, pois, na ontopositividade a politicidade aparece, no  
seu equívoco fundamental, como predicado essencial. Isso explica a  
fragilidade do pensamento político em geral em sua longa história.  
(CHASIN, Manuscritos inéditos).  
O mais adequado para nossas considerações é apontar a dimensão programática  
do projeto crítico arquitetado por J. Chasin, no intuito de destacar que não se tratava  
de mera formalidade teórica ou acadêmica, mas pretendia enfrentar no plano prático  
e teórico, tendências que se punham na ordem do dia. A crítica da política condiz com  
a necessidade do estabelecimento de uma crítica radical à forma da sociabilidade  
capitalista e mesmo, à particularidade da realidade da sociedade brasileira. A esse  
propósito, a crítica endereçada à analítica paulista e às concepções de Fernando  
Henrique Cardoso então presidente são ilustrativas.  
FHC, no repúdio incisivo ao economicismo, não dispondo no entanto  
de critérios ontológicos, acaba substituindo a falaciosa ordem  
determinativa daquele por outra igualmente arbitrária. Ao primado  
unilateral e mecânico da economia reduzida a fator, própria do  
economicismo, que mutila a integridade e a dinâmica do todo, FHC  
não contrapõe de modo corretivo o reconhecimento do complexo da  
produção e reprodução da base material da existência humana, tal  
como marxianamente concebido, mas, conservando a noção de  
economia como fator, até mesmo por seu peso estrutural, postula uma  
nova ordem das determinações entre as instâncias do social, da  
política e da economia. Já pelo viés sociológico é induzido à cortante  
distinção entre o plano social e o econômico, sem precisar o que possa  
ser entendido por cada um deles na pretendida desconsideração  
metódica do outro, mas é esta separação de faces ontológicas  
indissociáveis que permite, operativamente, o encadeamento de uma  
ordenação aleatória ou de suficiente indeterminabilidade para que o  
político possa, na armação discursiva, aparecer como determinação de  
última instância, ou seja, decisiva em qualquer ordem explicativa, do  
que redunda o politicismo. De modo que o válido propósito de  
combater o economicismo acaba por ser um ato de desontologização  
dos ecos marxianos e a imediata adoção acrítica de uma nova  
"ontologia" social, dado que toda desontologização implica, sem  
alternativa, processo correlato de sentido inverso, ou seja, de  
ontologização, ainda que total e meramente subjacente e precária,  
involuntária e falsa, como só pode ocorrer nessas condições; é, de  
fato, uma efetuação desse gênero mesmo sob o argumento de que a  
elaboração não tenha qualquer propósito ontológico e até mesmo o  
recuse e execre, pois a intencionalidade do investigador não tem o  
poder de mudar a natureza de sua própria argumentação ou de seus  
resultados, pode no máximo desprezar ou não reconhecer dimensões  
indesejadas de seu trabalho, o que é muito diferente, por vezes talvez  
esperto, mas não correto ou inteligente.  
E na sequência, destacando ser esta tendência predominante no pensamento  
sociológico da analítica paulista, arremata conclusivamente contrapondo Marx ao  
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politicismo brasileiro:  
De modo direto e explícito, a analítica paulista transita do  
economicismo para o politicismo, desconhecendo ou enjeitando a  
formulação marxiana. Esta reconhece e sustenta a unidade  
indissolúvel da esfera socioeconômica, ou seja, a efetividade da  
produção material como atividade vital dos indivíduos sociais, ou seja,  
a inseparável interatividade dos produtores, a determinação recíproca  
entre homem, atividade e sociabilidade; o agente, sua capacidade ou  
predicado e o exercício real deste são formas e modos da atualização  
social. De sua parte FHC dissocia, ao separar o social do econômico,  
o agente ativo e sensível (o social) da própria atividade sensível (o  
econômico), o sujeito de seu próprio predicado, e só os religa pela  
mediação, tornada decisiva, da atividade extrassensível (a política). Em  
Marx as determinações vão do complexo unitário e fundante do  
socioeconômico, ou seja, da interatividade multilateral e contraditória  
da sociedade civil para a arena política, enquanto FHC postula uma  
vaga e arbitrária articulação sócio-política, de certo sabor  
contratualista, como vetor determinativo da economia. É uma  
desvinculação ontológica da atividade sensível dos homens,  
reenfatizando a atividade suprassensível, ou seja, há uma  
desobjetivação que proporciona uma reenfatização teórica da  
subjetividade e de um suposto caráter arbitrário ou aleatório da lógica  
dos processos reais (cerne e natureza do politicismo, que em FHC é  
circunscrito e limitado pela relevância da correlação de forças em sua  
prática política). (CHASIN, Glosas inéditas intituladas “Ontologia:  
afloramento introdutório”)  
A longa citação possui a vantagem de destacar em termos bem claros a inversão  
da ordem de determinidade, ao enfatizar como as concepções tributárias politicidade  
como atributo essencial do humano advogam pela preponderância do estado, da  
política, sobre o “complexo unitário e fundamento do socioeconômico”. Se foi possível  
traçar esse diagnóstico sobre o governo FCH, do mesmo modo é possível, por que  
não dizer mais do que necessária, estender a análise para os governos posteriores,  
particularmente na dita gestão de “esquerda”, ao longo dos governos petistas.  
Chasin não assistiu aos desdobramentos posteriores a FHC, porém em artigos  
que analisam a ascensão de Lula à condição de líder sindical e de liderança política,  
os traços do politicismo são claramente identificados. A título de exemplo, bastaria  
citar o artigo A sucessão na crise e a crise na esquerda em que o diagnóstico talvez  
fosse o caso de dizer o prognóstico quanto a prática política do então ainda jovem  
Partido dos Trabalhadores, é claro e incisivo, quanto aos limites das proposições  
politicistas que ancoravam o discurso e as ações orquestradas pelo partido.  
O PT é o encontro da combatividade sindical dos últimos da década  
de 70, que preencheu de maneira notável o vácuo escandaloso a que  
fora reduzido até mesmo o movimento corporativo dos assalariados  
(...) o renascimento firme e pujante da movimentação dos  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 300-332 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
nova fase  
A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
trabalhadores, veio, assim, a submergir na atmosfera politicista,  
quando buscou os caminhos da organização e das definições políticas.  
Por consequência, ao inverso do que se daria num rumo de esquerda,  
com seu desenvolvimento o PT simplesmente politicizou a prática  
sindical, não extraiu da lógica do trabalho a política que supera a  
política, isto é, ficou nos limites do entendimento político, não se alçou  
à política norteada pela razão social. (CHASIN, 1989, p. 89)  
A remissão a essas considerações críticas cumpre um papel meramente  
ilustrativo. Não se trata de avançar nos argumentos do autor, mas tão somente  
destacar a dimensão da análise das práticas politicistas comuns ao movimento da  
chamada esquerda brasileira.  
A crítica da política tem, portanto, o caráter programático cuja intenção é eliminar  
os desvios e deformações de um projeto emancipatório,  
Portanto, a revolução radical, isto e, social, desentranhada por Marx  
na intelecção da sociedade contemporânea, bem compreendido o  
fundamento de sua reflexão política - a determinação ontonegativa da  
politicidade não demanda ou propõe a mera prática política, nem a  
reconhece como sua atividade característica e decisiva, mas exige uma  
pratica metapolítica: conjunto de atos de efetivação que não apenas  
se desembarace de formas particularmente ilegítimas  
e
comprometidas de dominação política, para substitui-las por outras  
supostas como melhores, mas que vá se desfazendo, desde o  
princípio, de toda e qualquer politicidade, a medida que se eleva da  
aparência política a essência social das lutas históricas concretas, a  
proporção que promove a afloração e realiza seus objetivos humano-  
societários, os quais, em sua, têm naquela ultrapassagem,  
indissociável da simultânea superação da propriedade privada dos  
bens de produção, a condição de possibilidade de sua realização.  
(CHASIN, 2009, pp. 65-6)  
E logo à frente, conclui:  
A crítica marxiana da política, decifração da natureza da politicidade e  
de seus limites, e por consequência o desvendamento da estreiteza e  
insuficiência da prática política enquanto atividade humana racional e  
universal, donde o salto metapolítico ao encontro resolutivo da  
sociabilidade, essência do homem e de todas as formas da prática  
humana. (CHASIN, 2009, p. 66)  
Os rascunhos por nós aqui insistentemente referidos, permitem o arremate mais  
conclusivo sobre os limites da politicidade como prática social viável diante da questão  
decisiva das possibilidades efetivas da emancipação humana:  
Não há política radical, pois todo ato político é um meio, que não  
contém finalidade intrínseca, mas é o instrumento de um conteúdo, ou  
seja, de um objetivo externo. Exceção feita aos processos e atos  
políticos que, ao se realizarem, visam inclusive sua autodissolução,  
isto é, só é radical o ato metapolítico. Donde, a radicalidade é a  
identidade da metapolítica. (CHASIN, Manuscritos inéditos).  
Verinotio  
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nova fase  
Ronaldo Vielmi Fortes  
O problema da política é o problema humano, lidar com a questão da gênese da  
politicidade implica a investigação da ontologia do ser social, a análise da  
determinação do ser e do destino do homem, nesse sentido, caberia retomar a tão  
mencionada afirmação segundo a qual “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo,  
cabe transformá-lo”, e acrescentar: para transformá-lo é preciso compreendê-lo. A  
análise da gênese da politicidade, sua decifração, sua percepção no quadro das  
atividades sociais do homem, torna-se decisiva para evitar desvios, inibir descaminhos  
e deformações acerca do que pode de fato se colocar como uma prospectiva de futuro,  
como possiblidade autêntica da emancipação humana.  
*
* *  
Após tudo o que foi tratado nas páginas precedentes, que me seja permitido  
finalizar com certo tom de desabafo: a ironia, as refutações fáceis, os argumentos ad  
hominem no mau sentido do termo são tão somente a expressão da covardia, ou  
da incapacidade, para enfrentar questões de natureza bastante complexa. Manter-se  
na zona de conforto dos preceitos e preconceitos do lugar comum, significa a recusa  
cínica do necessário caráter de toda análise filosófica de rigor. A refutação de uma tese  
deve ser feita com argumentos que analisem os argumentos perfilados. O campo dos  
partidos e da militância são, por vezes, um dos mais significativos obstáculos para  
tanto. Por vezes, funcionam como obnubilações da consciência uma vez que seus  
princípios de compreensão da realidade encontram-se sucumbidos à métrica fácil e  
corriqueira das fraseologias eivadas de jargões e do pragmatismo político. A  
reprodução prática das bases politicistas próprias das insuficiências inerentes às  
contradições de nossa sociedade, só pode significar a perpetuação dessas mesmas  
práticas baseadas no princípio do voluntarismo como critério de resolução de conflitos  
sociais. Contra tais práticas as palavras de Lukács servem de alerta:  
Mas é que diante do inimigo [...]9 tudo parece permitido; cessa, nesse  
momento, toda a moralidade científica. Até mesmo pesquisadores que,  
em outros domínios, de modo escrupuloso arriscam-se a tomar uma  
9
Tomamos a liberdade de retirar o termo “inimigo de classe”, para deixar tão somente “inimigo”. O  
ponto a que chegaram as disputas no sectarismo típico das esquerdas de nossos dias permitem –  
acreditamos a adaptação da referência que Lukács faz à luta entre a classe trabalhadora e os  
representantes da apologia direta e indireta do capital. Tornou-se uma prática comum nas disputas  
políticas das mais diversas ordens, assim como assume uma constância lamentável também no âmbito  
acadêmico e das ciências sociais em geral.  
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A natureza e a posição da política no quadro das atividades histórico-sociais  
posição só depois de se apropriarem a fundo da matéria estudada,  
permitem-se aqui as afirmações mais levianas baseadas em outras  
tomadas de posição igualmente infundadas e sequer pensam em  
recorrer às fontes reais, nem mesmo para a comprovação dos fatos.  
(LUKÁCS, 2020; p. 273)  
A superação da sociabilidade do capital, implica a crítica radical. Com Marx,  
portanto, convém encerrar nossas considerações: “A teoria é capaz de se apoderar das  
massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna  
radical. Ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio  
homem” (MARX, 2005, p. 151). Por fim, só nos resta afirmar: a esfera da política deve  
ser considerada à luz da determinação da ontologia do ser social, somente assim se  
pode demonstrar sua gênese como instância social contingente da “pré-história da  
humanidade”.  
Referências bibliográficas  
CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise na esquerda. Revista Ensaio, n. 17/18. São  
Paulo: Editora Ensaio, 1989.  
_____. “Posfácio – Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica”. In: TEIXEIRA,  
F. J. S. Pensando com Marx. São Paulo: Editora Ensaio, 1995.  
_____. Especial J. Chasin: A determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios  
Ad Hominem, n. 1, t. III Política. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000.  
_____. Glosas inéditas intituladas “Ontologia: afloramento introdutório”, mimeo.  
_____. Manuscritos inéditos: Política a determinação ontopositiva e ontonegativa da  
politicidade, mimeo.  
FORTES, Ronaldo; VAISMAN, Ester. A politicidade no pensamento tardio de György  
Lukács. Revista Estudos Políticos, v. 5, n. 1, pp. 118-132, 2015.  
LUKÁCS, György. Gelebtes Denken: eine Autobiographie im Dialog. Frankfurt am Main:  
Ausgabe Suhkamp Verlag, 1981.  
_____. Pensamento vivido: autobiografia em diálogo. São Paulo/Viçosa: Estudos e  
Edições Ad Hominem/Editora da UFV, 1999.  
_____. Socialismo e democratização: ensaios políticos 1956-1971. Trad. Carlos Nelson  
Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.  
_____. Para uma ontologia do ser social v. 2. Trad. Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo  
Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.  
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Maria Helena Barreiro  
Alves. São Paulo: Martins Fontes, 1983.  
_____. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de  
Deus. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.  
_____. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial,  
2010.  
_____. O capital: crítica da economia política Livro I: o processo de produção do capital.  
Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia  
alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão  
em seus diferentes profetas (1845-1846). Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e  
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Ronaldo Vielmi Fortes  
Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.  
_____. Luta de classes na Alemanha. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,  
2010.  
_____. A sagrada família, ou A crítica da crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes.  
Trad., org. e notas Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2011.  
_____. O 18 brumário de Luís Bonaparte; trad. Nélio Schneider; São Paulo: Boitempo,  
2011a.  
Como citar:  
FORTES, Ronaldo Vielmi. A natureza e a posição da política no quadro das atividades  
histórico-sociais: ontonegatividade da política e a ontologia do ser social. Verinotio,  
Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 300-331, Edição Especial, 2022/2023.  
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ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 300-332 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.673  
Nueva literatura en Rusia (1927)  
Neue Dichtung in Russland  
Walter Benjamin  
Presentación  
Presentamos aquí una nueva traducción de “Neue Dichtung in Rußland” escrito  
por Walter Benjamin originalmente en 1927 para la revista i10, publicada en  
Ámsterdam por Arthur Lehning entre 1927 y 1929. Tomamos el texto del tomo II/2  
de la edición canónica de los escritos reunidos, Gesammelte Schriften, editados por  
Rolf Tiedemann y Hermann Schweppenhäuser, Suhrkamp, 1997 (pp. 755-762).  
Es el objetivo de esta traducción presentar un texto originalmente escrito a partir  
de notas e informaciones recopiladas en conversaciones e indagaciones hechas de  
manera oral durante una corta estadía en Moscú en las que Benjamin busca conocer  
el panorama de la literatura soviética de los años posteriores a la Revolución.  
Intentamos, entonces, reponer el tono de “apuntes” de las notas tomadas por alguien  
que no maneja prácticamente la lengua del lugar que visita y que, luego, dispone en  
un texto a ser publicado a la manera de un corresponsal.  
Asimismo, hemos agregado comentarios a pie de página a modo de referencias  
para brindar al lector datos de nombres, obras y grupos literarios mencionados.  
Dos breves comentarios sobre la traducción: decidimos traducir “Dichtung” –del  
título– por “literatura” en lugar de “poesía”, como indica habitualmente la primera  
acepción del término en los diccionarios, ya que, como se leerá, Benjamin se refiere al  
panorama literario ruso general, abarcando tanto poesía como teatro y novela.  
“Dichtung”, en primer término “poesía”, refiere también a la composición artística a  
partir de la palabra y, en última instancia, a la literatura en general. Por otra parte, con  
respecto a las obras que menciona el autor, estas aparecerán nombradas directamente  
en español cuando exista una versión ya traducida; cuando no la haya o no se  
encuentre una edición en lengua española, se pondrá el título en alemán, como las cita  
Benjamin, y se proveerá una traducción.  
Érica Brasca y Tomás Sufotinsky  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Walter Benjamin  
Nueva literatura en Rusia (1927)1  
Walter Benjamin  
Traducción de Tomás Sufotinsky, todas las notas son  
autoría de Érica Brasca y Tomás Sufotinsky.  
El hábito de explicar nuevas épocas y corrientes de escritura a partir de la  
situación literaria inmediatamente anterior proviene de la historia de los estudios  
literarios. La perdurabilidad científica y la utilidad de semejante procedimiento pueden  
ponerse en tela de juicio. Una cosa, sin embargo, es evidente: desprender la escritura  
que se está formando en Rusia de la literatura que han producido las generaciones de  
Dostoievski, Turgueniev, Tolstoi sería, cuanto menos, un desvío. El punto de partida  
dado de una caracterización son las  
relaciones culturales modificadas que  
sobrevinieron con la Revolución. La vieja burguesía, la nobleza no tienen más voz  
pública en Rusia. Las obras básicas en las que está documentada la posesión  
intelectual de estos estratos se encuentran hoy abruptamente aisladas como  
monumentos del pasado. El interés público pertenece a los poetas de 30 años o más  
jóvenes que vivieron la Revolución como combatientes o, al menos, se pusieron desde  
el inicio decididamente en el terreno de los nuevos hechos. Sin embargo, no debe  
esperarse que estos poetas hayan estado ya en condiciones de poner en grandes obras  
perdurables lo que tienen para decir. Incluso los teóricos del bolchevismo acentúan  
cuán poco puede compararse la situación del proletariado en Rusia tras la Revolución  
triunfal de 1918 con la de la burguesía en Francia en el año 1789. En ese momento,  
en enfrentamientos que duraron décadas, la clase triunfante se había asegurado el  
dominio del aparato intelectual antes de que recayera en ella el poder. La organización  
intelectual, la educación, estaba hacía tiempo entremezclada con el mundo de ideas  
del tiers état, y la lucha de emancipación intelectual se impuso antes que la  
emancipación política. En la Rusia actual las cosas son muy distintas. Primeramente,  
deben establecerse los fundamentos para una educación general para millones y  
millones de analfabetos. Es famoso el mandato de Lenin al ejército para el tercer frente  
el primer frente es en Rusia el político, el segundo es el económico y el tercero, el  
1
Walter Benjamin: “Neue Dichtung in Russland” (1927), en: Gesammelte Schriften, Tomo II/2, ed. de  
Rolf Tiedemann/Hermann Schweppenhäuser, Suhrkamp, Frankfurt, 1997, pp. 755762.  
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Nueva literatura en Rusia (1927)  
cultural, de acuerdo a este mandato al ejército para el tercer frente, para el año 1928  
el analfabetismo debe haber sido liquidado. En una palabra, los autores rusos ya deben  
contar hoy con un nuevo público, y con uno mucho más primitivo que el que  
conocieron las generaciones anteriores. Su tarea principal es acercarse a las masas.  
Refinamientos de la psicología, de las elecciones léxicas, de la formulación deben  
resbalarle por completo a este público. Lo que este necesita no son formulaciones sino  
informaciones, no variaciones sino repeticiones, no piezas virtuosas sino informes  
cautivantes. Ciertamente, no todas las fracciones o círculos literarios han adoptado  
estas radicales tesis. Sin embargo, estas tesis se corresponden con el punto de vista  
que proclama la organización más grande y, en cierto modo, la oficiosa: la VAPP2, la  
Asociación General de Escritores Proletarios de Rusia. Consecuentemente, la VAPP  
continúa proclamando que solo el escritor verdaderamente proletario, solo el prosélito  
del pensamiento de una dictadura de la clase de los trabajadores está a la altura de  
esta tarea. Con contundencia ha formulado Demian Biedni: y si tenemos tan solo tres  
mocosos, son, al menos, nuestros.  
Así los ultras. Ellos no representan el punto de vista del Partido. Pero las  
instancias decisivas en la vida literaria, la censura estatal, la opinión pública, no están,  
en la praxis, muy lejos de ellos. Si se añade que en Rusia el escritor libre está en estado  
de extinción, que el amplio promedio de quienes escriben está, de una u otra forma,  
unido al aparato estatal y está controlado por él como funcionario público o de alguna  
otra forma, se tiene así un mapa de coordenadas de la situación imperante.  
En este mapa de coordenadas marcaremos, en lo sucesivo, la curva de desarrollo  
de los últimos cinco años y, con ello, como sugiere la tendencia práctica e informativa  
de estas cortas exposiciones, daremos a conocer las obras principales de la literatura  
actual como punto de orientación, cuando sea posible, en sus traducciones.  
Situación en el estallido de la Revolución: los primeros esfuerzos en torno a la  
nueva literatura, así como al nuevo arte en general, se agrupan bajo la bandera del  
Proletkult3. Conduciendo: en primer lugar, Maiakovski. Ya bajo el zarismo, Vladimir  
2
La sigla VAPP significa Asociación Panrusa de Escritores Proletarios [Всероссийская ассоциация  
пролетарских писателей (ВАПП)]. La VAPP fue fundada en 1920 por Kuznitsa, un grupo literario de  
Moscú, y durante esa década creció y ganó adeptos. En 1925 se fundó la RAPP, una sección dentro de  
la VAPP que, a su vez, adquirió gran relevancia. En 1928, la VAPP pasó a llamarse RAPP.  
3 Proletkult[Пролеткульт], abreviatura de cultura proletaria, fue una organización literaria, artística,  
cultural y educativa que existió desde comienzos de 1917 hasta 1932, con presencia en varias ciudades.  
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Walter Benjamin  
Maiakovski no fue un poeta desconocido. Un excéntrico opositor, acaso similar a  
Marinetti en Italia. Intrépido innovador en asuntos formales, no niega completamente,  
por entonces, estar determinado por la decadencia romántica. Egocéntrico dandy, le  
gusta ponerse a sí mismo en el centro de sus poemas hímnicos, y ya entonces  
demostró aquel talento para lo teatral, que, alrededor de 1920, puso al servicio de la  
Revolución. “150.000.000”4 pone los logros formales del futurismo por primera vez  
al servicio de la propaganda política. La forma de hablar de la calle, el alboroto fonético  
y un fantasioso bandidaje celebran la nueva época del dominio de las masas. “Misterio  
bufo”5 marca el punto más alto de su éxito, una demostración con miles de  
participantes, aullidos de sirenas, música militar, orquesta estrepitosa a cielo abierto.  
Director de esta obra masiva fue Meyerhold. En segundo lugar: Vsevolod Meyerhold,  
trabajó asimismo bajo el zarismo como director de teatro. Fue el primero en poner el  
teatro al servicio de la Revolución. Por medio de algunas innovaciones audaces, buscó  
hallar una nueva honestidad, una negación al misticismo del proscenio, un contacto  
más amplio con la masa. Representa sin telón, sin candilejas, con decoraciones  
desplazables, que en el escenario abierto se manipulan de modo tal que se tenga  
visión del telar. Ama la excentricidad en sus obras, un impacto de circo, de varietés.  
“D. E.”6, dramatización de una novela de Ilia Ehrenburg, es a este respecto, su  
contribución más característica. En tercer lugar: Demian Biedni. Es el autor de los  
famosos poemas-afiche, llamamientos, cantos de odio del tiempo del comunismo  
heroico, de las luchas definitorias entre blancos y rojos. Algunos de sus manifiestos  
más famosos fueron vertidos al alemán por Johannes R. Becher7. En cuarto lugar,  
pertenecen al Proletkult, entre otros, los imaginistas y constructivistas. Los primeros  
cultivaban, de modo similar a los surrealistas ahora en Francia, una poesía de base  
4 150.000.000 es un extenso poema de Vladímir V. Maiakovski escrito entre 1919 y 1920. En el inicio  
de su trayectoria poética, Maiakovski integró la vanguardia futurista rusa en el grupo Guileia[Гилея].  
La poesía de este grupo fue objeto de estudio de los primeros formalistas rusos.  
5 La obra teatral Misterio bufo fue escrita en verso, por V. Maiakovski, a propósito del primer aniversario  
de la Revolución de Octubre y representada en Petrogrado. Consta de seis actos y un prólogo, bajo la  
dirección de su autor y de V. Meyerhold. Luego, en 1921, fue retrabajada y representada en Moscú y  
otras ciudades.  
6 La novela Трест Д. Е. История гибели Европы [El trust D. E. y la historia de la destrucción de Europa]  
de Iliá Ehrenburg fue publicada por primera vez en Berlín por la editorial Gelikon, en 1923. En base a  
esta novela, V. Meyerhold y M. Podgaetski escribieron la obra D. Е.. La novela fue traducida al alemán  
por Lia Calmann (Welt-Verlag, Berlín, 1925) como Trust D. E. Die Geschichte der Zerstörung Europas.  
7 Johannes R. Becher (1891-1958) fue un importante poeta del expresionismo en Alemania, afiliado al  
KPD (Partido Comunista Alemán) y posteriormente al SED (Partido Socialista Unificado de Alemania, de  
la RDA). Ya en la RDA fue Ministro de Cultura y presidente de la Asociación de Cultura. Es autor de la  
letra de Auferstanden aus Ruinen[Resucitados de las ruinas], el himno de la RDA.  
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Nueva literatura en Rusia (1927)  
asociativa, es decir, ofrecían una serie inconexa de imágenes como si se encontraran  
en sueños. Quien se quiera formar una idea de los constructivistas de una escuela  
que se empeña en llevar la simple palabra como tal al más elevado efectopuede  
acaso pensar en el poeta alemán August Stramm8.  
El Proletkult se mantuvo unido a fuerza de un primer impulso revolucionario. Con  
el correr del tiempo, sin embargo, disputas críticas sacaron a la luz las contradicciones  
de las distintas corrientes que se agrupaban en él. Y finalmente fue víctima de estas  
disputas. Pues se declaró: ¿qué quiere el Proletkult? ¿Quiere una literatura de  
proletarios o una literatura para proletarios? Sobre Maiakovski, sobre los  
constructivistas, los imaginistas, se dijo: ustedes quieren crear la nueva poesía para las  
masas. Quieren conquistar para la vida de la máquina, para la cotidianeidad de la  
fábrica, para el horizonte visual del soldado del ejército rojo, su derecho en la poesía.  
Pero no los comprenden en absoluto. ¿Dónde está el proletario, el hombre del pueblo  
que en su tiempo libre no preferiría recurrir a Turgueniev, Tolstoi, Gorki antes que a  
ustedes?... O de nuevo: si se quiere seriamente una literatura de proletarios, entonces  
debe plantearse primero la pregunta: ¿puede el proletariado, hoy en día, en la época  
de la guerra civil, en los tiempos de la más amarga lucha por la existencia, reservarse  
fuerzas para la escritura, para la poesía? Nunca antes han sido las épocas de grandes  
revoluciones políticas y aun sociopolíticasépocas de una escritura floreciente. El  
hombre que arrojó estas preguntas y estas afirmaciones insistente y brillantemente a  
la discusión fue Trotski, y su libro “Literatura y Revolución”, un reto al Proletkult en  
todas sus corrientes, fue desde 1923 hasta 1924 oficialista9.  
Durante años de luchas esta doctrina fue resistida por un grupo que se apartaba  
tanto del Proletkult, de las artes formalistas de Maiakovski y sus compañeros, como  
del derrotismo cultural de Trotski. Estos son los napostuvitas, el círculo que se  
8 August Stramm (1874-1915) fue un poeta y dramaturgo del expresionismo alemán. Dentro del gran  
abanico de voces y estilos de la poesía expresionista, es el mayor exponente de la experimentación con  
la lengua y la sintaxis poéticas. Murió en batalla en la I Guerra Mundial.  
9 Luego de la Revolución Rusa de 1917, las discusiones acerca de qué hacer con la herencia cultural y  
si es posible constituir una cultura proletaria enteramente nueva tuvieron lugar en debates más amplios  
en los que participaron diversos referentes culturales. Ya en 1914, Anatoli V. Lunacharski publicó  
artículos sobre la posibilidad de una literatura proletaria, en los que polemizaba con otros intelectuales.  
En 1923, Liev Trotski publicó una serie de escritos en los que plantea sus ideas estéticas y opiniones  
en torno a los problemas artísticos y literarios bajo el título Literatura y Revolución. (Véase: Trotsky,  
León Literatura y Revolución. Buenos Aires: ryr, 2015. Traducción de Alejandro Ariel González).  
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Walter Benjamin  
agrupaba en torno a la revista “Na postu”10 (“En el puesto”). Su programa coincide en  
su totalidad con el de la más arriba nombrada VAPP. Ellos son la verdadera tropa  
central de los ultras y dicen: “El dominio por parte del proletariado no es compatible  
con el dominio por parte de una ideología no proletaria y por consiguiente tampoco  
con una literatura no proletaria. El palabrerío según el cual es posible en la literatura  
una colaboración pacífica, una competencia pacífica entre las distintas corrientes  
literarias e ideológicas, no es más que una utopía reaccionaria… El bolchevismo  
sostuvo desde siempre y sostiene aún hoy el punto de vista de intransigencia  
ideológica e intolerancia, el punto de vista de claridad incondicional de las líneas  
ideológicas… Bajo las condiciones actuales, la bella literatura constituye la última  
arena en la que se libra la irreconciliable lucha de clases entre el proletariado y la  
burguesía por la hegemonía sobre las capas intermedias. Por eso, no basta con que  
meramente se admita la existencia de una literatura proletaria, sino que debe ser  
reconocido el principio de la hegemonía de esta literatura, el principio de la lucha  
sistemática de esta literatura por el triunfo total, por el devoramiento de todos los  
tipos y matices de la literatura burguesa y pequeñoburguesa”. Oficialmente esta  
disputa entre los ultras y el partido fue terminada en 1924 mediante un acuerdo  
bastante insustancial llevado a cabo bajo la dirección del polifacético y hábil Comisario  
de Instrucción Lunacharski. Sin embargo, en la realidad este conflicto aún dura.  
Hasta aquí, la política literaria. Antes de que nos volquemos a las características  
de las obras principales, sean mencionados algunos outsiders ninguno unido a las  
corrientes nombradasque en Europa tienen un nombre más o menos grande. Por  
mucho, el más significativo de ellos es el hace algunos años fallecido Valeri Briusov11.  
(En alemán se publicó la novela “El ángel de fuego” en editorial Hyperion.) Briusov es  
más grande como lírico. Es el creador del simbolismo ruso y es comparado en Rusia  
con George12. Es el único entre los grandes poetas de la vieja escuela que  
10 En el puesto [На посту] fue el órgano de difusión de la Asociación de Escritores Proletarios de Moscú  
(MAPP) [Московская ассоциация пролетарских писателей (МАПП)]. La MAPP, en 1924, se unió a la  
VAPP, conformando un sector radical dentro de la asociación.  
11  
Valeri Briusov (1873-1924) fue un escritor, traductor y crítico literario, unos de los principales  
teóricos y referentes del simbolismo ruso. Luego de la Revolución, Briusov participó activamente de las  
actividades literarias realizadas en Moscú, en el seno del Narkompros, el Comisariado de Instrucción  
Pública, dirigido por A. Lunacharski.  
12 Stefan George (1868-1933), seguramente el mayor exponente del simbolismo en la poesía alemana.  
Fundador de la revista Blättern für die Kunst [Hojas para el arte], fue luego el centro de un círculo  
poético, filosófico y estético, el “círculo de George”, que se volcó hacia un misticismo en torno a la figura  
de Maximin, un joven de catorce años adoptado por el poeta que muere al poco tiempo y es elevado a  
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Nueva literatura en Rusia (1927)  
inmediatamente se situó en el terreno de la Revolución sin por ello destacarse con  
poesía proletaria. Era en altísimo grado aristócrata. Tras su muerte, Rusia lo honró con  
la fundación del Instituto de Estudios Literarios “Imena Valeri Briusov”. En este Instituto  
se aprende: periodismo, dramaturgia, poesía lírica, novelística, crítica, polémica,  
edición. La teoría de un genio poético nato, capaz de un logro literario significativo  
por sí mismo, no es compatible con la teoría del materialismo histórico. Aparte de  
Briusov han de nombrarse: Aleksandr Blok y Serguei Esenin. Blok es famoso en  
Alemania por sus geniales pero altamente violentos intentos de trascender la mística  
religiosa con el rapto febril de los años del cambio de régimen y es en esto  
emparentado con la dudosa mentalidad de la intelectualidad alemana en los años  
1918/19. De allí proviene la fama que ni siquiera malos traductores alemanes le  
pudieron quitar. La figura de Serguei Esenin, sobre todo desde su voluntaria muerte,  
ocupa a la opinión pública de Rusia hasta hoy en día. Es un poeta campesino, buscó  
ahondar en la Revolución, pero cayó en los abismos de un nihilismo melancólico y  
terminó como un ídolo de la contrarrevolución romántica. Sobre él se expresa Bujarin  
en el “Pravda” de la siguiente manera: “Un poeta campesino de nuestra época de  
transición que cayó trágicamente, porque no se pudo adaptar. ¡Así no, queridos  
amigos! ¡Hay campesinos y campesinos! La poesía de Esenin es, de acuerdo a su  
esencia, aquel mísero muschik que a medias se ha transformado en un elegante  
mercader: este elegante mercader se ha postrado hoy, en botitas de charol, en camisa  
bordada con hilos de seda, ante la emperatriz a besar su pie, mañana lamerá con los  
labios una imagen de un santo, con ánimo ebrio pasado mañana untará con mostaza  
la nariz del camarero, para luego arrepentirse en el alma; él llora, con gusto querría  
abrazar un perro o incluso donar una suma de dinero a un convento a la memoria de  
su alma. Es capaz aun de colgarse en el ático por puro vacío interior del alma. La  
amada, conocida imagen realmente rusa” 13… Entre los emigrantes que hoy escriben  
cabría nombrar aún: Shmeliov, Bunin, Zaitsev14. (De Shmeliov se publicó la obra  
la categoría de dios del círculo. En más de una oportunidad Benjamin se ocupa de la importancia de  
George para su generación así como también del problema de la comunitariedad mistificada de su  
círculo en el contexto del avance del fascismo (cf. “Über Stefan George”, 1928, [GS II/2, 622-624] y  
“Rückblick auf Stefan George. Zu einer neuen Studie über den Dichter”, 1933, [GS III, 392-399]).  
13  
La cita corresponde a una nota escrita por Nikolai Bujarin, a propósito de Esenin, publicada a  
comienzos de 1927 en el periódico Pravda y luego como folleto, bajo el título Notas malvadas[Злые  
заметки].  
14 Iván Shmelióv, autor de El camarero (1911) [Человек из ресторана] y de El sol de los muertos (1923)  
[Солнце мёртвых], emigró a Francia en 1922. También residió allí, desde esos años hasta su muerte,  
Iván Bunin, quien recibió Premio Nobel de Literatura en 1933, y es autor de La aldea (1910) [Деревня],  
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Walter Benjamin  
principal “El sol de los muertos” y, recientemente, la amena novela psicológica “El  
camarero” en excelente traducción de Käte Rosenberg en editorial Fischer. Allí mismo  
se publicó de Bunin “El señor de San Francisco” y “El amor de Mitia”. El más  
significativo trabajo de Bunin, “La aldea”, no está traducido.)  
Ningún europeo puede juzgar en qué grado toda la enorme Rusia, un pueblo de  
150 millones de hombres, se ha llenado de materiales a través de las vicisitudes de  
los últimos diez años, y de qué materiales: destinos de cada mínima vida individual y  
de todos los colectivos, desde la familia hasta el ejército y el pueblo. La literatura rusa  
actual cumple la tarea fisiológica, se puede decir, de liberar el cuerpo del pueblo de  
esta sobrecarga de materiales, de vivencias, de fortunas. La escritura de Rusia en este  
momento es, vista desde aquí, un enorme proceso de excreción. La canonización de la  
tendencia tiene esta importancia no solo política, sino también higiénica, curativa, de  
que los hombres, que están llenos como una esponja de su propio sufrimiento, pueden  
estar en comunión entre sí solo en la línea de fuga de una tendencia, en la perspectiva  
del comunismo. A su vez, la vida ha creado una plétora de nuevos tipos, de nuevas  
situaciones que, ante todo, quieren ser registradas, descritas y valoradas. Hay una  
enorme literatura de memorias, Dios sabe que no ha de compararse con la escritura  
de nuestros políticos ni jefes del ejército. Existe una revista de la Kátorga15, en la que  
los desterrados siberianos, las víctimas de la prerrevolución, publican sus registros,  
recuerdos memorables como “Nacht über Rußland” [Noche sobre Rusia] (editorial  
Malik) de Vera Figner, un escrito con una fuerza dinámica de representación de la cual  
los nuevos poetas, si quieren, en fin, ser en absoluto leídos, deben mostrarse a la  
altura. Hay poetas y actores así. La Tscheka, la policía secreta revolucionaria, delimita  
un amplio círculo de material. Nombramos, ante todo, “Chocolate” (editorial Die Aktion)  
de Tarasov-Rodionov, novelas breves de Slonimski, Grigoriev entre otros (muchos de  
ellos en la instructiva antología “Zwischen Gestern und Morgen” [Entre ayer y mañana]  
editorial Taurus, Berlín). Está el besprisorni, el niño abandonado. Dos millones de niños  
de esta clase, sin patria, cubrieron Rusia en las migraciones durante la guerra civil. La  
poeta Lidia Seifullina ha hecho su particular estudio a partir de estos niños. (“Der  
El señor de San Francisco (1915) [Господин из Сан-Франциско] y El amor de Mitia (1925) [Митина  
любовь]. Borís K. Zaitsev, también emigró a Francia, donde publicó varias novelas, entre ellas Anna  
(1929) [Анна], y la biografía Vida de Turgueniev (1932) [Жизнь Тургенева].  
15  
La revista histórico-revolucionaria Kátorga y exilio [Каторга и ссылка] publicaba especialmente  
artículos, memorias, ensayos, crónicas de ex presos políticos, confinados y exiliados por el régimen  
zarista. Vera Figner fue una de sus colaboradoras.  
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Nueva literatura en Rusia (1927)  
Ausreißer” [El fugitivo], editorial Malik.) Luego, los destinos del colectivo. Aquí, aun  
limitándose a lo traducido, habría que citar una gran literatura. Lo más importante: Iuri  
Libendinski, “Una semana”; Ivanov16, “Farbige Winde” [Vientos coloridos], “El tren  
blindado N° 14-69”; Dybenko, “Die Rebellen” [Los rebeldes] (todo en Verlag für  
Literatur und Politik). Este año aparecerá en alemán también el más famoso de estos  
libros: Fedin, “Las ciudades y los años” (editorial Malik), de especial interés, ya que el  
héroe es un alemán. A la misma fila pertenecen los grandes periodistas rusos: la sin  
igual Larissa Reisner. Su libro “Oktober” [Octubre] (Neuer Deutscher Verlag [ed.])  
contiene, en el capítulo “Die Front” [El frente], la clásica representación de la guerra  
civil. Del importante publicista Sosnovski está en alemán “Taten und Menschen”  
[Hechos y hombres]. La última publicación, a la vez que la más importante, es  
“Cemento”, de Fiódor Gladkov. El libro (Verlag für Literatur und Politik) es el primer  
intento de representar en novela la Rusia del periodo de la construcción,  
sobreabundante en tipos de completa veracidad vital y difícilmente alcanzable en  
cuanto a la representación de la atmósfera que colma las reuniones del partido en el  
país. Solo una cosa se puede buscar en este libro menos que en la mayoría de los  
demás: composición en el sentido estricto de las novelas. La escritura actual de Rusia  
es precursora de una nueva historiografía mucho antes que de una belletrística. Pero  
es, ante todo, un hecho moral y una de las entradas al fenómeno moral de la Revolución  
Rusa en general.  
Como citar:  
BENJAMIN, Walter. Nueva literatura en Rusia (1927). Traducción de Tomás Sufotinsky,  
notas de Érica Brasca y Tomás Sufotinsky. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp.  
333-341, Edição Especial, 2022/2023.  
16 El escritor y periodista Vsevolod V. Ivanov (1895-1963) es autor, entre otras obras, de las novelas  
Vientos coloridos [Цветные ветра] publicada en 1922 y de El tren blindado 14-69 [Бронепоезд 14-  
69], del mismo año que, luego, fue llevada a pieza teatral. Ivanov, junto con M. Zoschenko, L. Lunts, M.  
Slonimski, entre otros, integró “Los hermanos Serapión”, grupo literario creado en 1921 en Petrogrado.  
El grupo tomó su nombre de un círculo amistoso-literario que apareció en una serie de relatos de E. T.  
A. Hoffmann [Serapionsbrüder].  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.674  
Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter  
Benjamin (1927)  
On Walter Benjamin's "New Literature in Russia" (1927)  
Érica Brasca*  
Tomás Sufotinsky**  
Resumo: El presente texto acompaña la  
traducción de los apuntes de Walter Benjamin  
sobre la literatura de la Rusia Soviética hacia  
finales de la década de 1920. En este sentido, se  
intentará reponer el contexto de producción de  
estos apuntes con el fin de proponer una lectura  
que recorra aquellos rasgos de la incipiente  
cultura soviética que suscitaron estas  
impresiones en el pensador alemán.  
Abstract: The following text supplements the  
translation of Walter Benjamin's notes on the  
literature of Soviet Russia towards the end of  
the 1920s. In this regard, an intent will be made  
to recount the context of production of these  
notes with the purpose of offering a reading  
that traces those aspects of the incipient Soviet  
culture that caused these impressions in the  
German intellectual.  
Palavras-chave: Benjamin; literatura rusa; Unión  
Soviética.  
Keywords: Benjamin; Russian literature; Soviet  
Union.  
Entre diciembre de 1926 y febrero de 1927, Walter Benjamin visitó Moscú.  
Como señala Gershom Scholem, su estancia en la capital soviética tenía tres motivos:  
el encuentro con la actriz letona Asia Latsis, con quien había entablado una cercana y  
compleja relación; la inquietud por figurarse una imagen más acabada de la sociedad  
soviética que le permitiera definir si se afiliaba o no al Partido Comunista Alemán (KPD),  
y la tarea de escribir algunos artículos sobre la vida cultural rusa (1983, p. 206).  
Asia Latsis había estudiado teatro y trabajaba con grupos de teatro  
infantil proletario. En 1924, ella se trasladó junto con su hija Daga a  
la isla de Capri, donde conoció a Benjamin, escena que Latsis narra en  
sus memorias:  
Una vez fui con Daga a la tienda a comprar almendras frescas y no podía  
recordar cómo se decía en italiano. Yo señalaba con el dedo, pero el dueño  
*
Profesora y Licenciada en Letras por la Universidad Nacional de Rosario. Actualmente cursa el  
Doctorado en Literatura y Estudios Críticos en el Instituto de Estudios Críticos en Humanidades (IECH)  
con una beca de CONICET. E-mail: e.brasca.3@gmail.com.  
**  
Profesor y Licenciado en Letras por la Universidad Nacional de Rosario. Actualmente cursa el  
Doctorado en Literatura y Estudios Críticos en el Instituto de Estudios Críticos en Humanidades (IECH)  
con la beca doctoral de CONICET y forma parte del pool de traductores del Historisch-Kritisches  
Wörterbuch des Marxismus. E-mail: tomas.sufotinsky@gmail.com.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
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Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter Benjamin (1927)  
de la tienda me ofrecía naranjas, limones. Un señor que estaba ahí al lado de  
repente dijo en alemán:  
Disculpe, ¿puedo ayudarle?  
Por favor.  
Y le explicó al vendedor mi petición.  
Compré varios paquetes y el desconocido no se alejaba. Tenía el cabello muy  
frondoso y oscuro, los gruesos cristales de sus anteojos de marco dorado  
brillaban en cada movimiento con los rayos del sol.  
Permítame presentarme. Doctor Walter Benjamin.  
Le dije mi nombre, y él se ofreció a llevar los paquetes a casa, pero de  
inmediato se cayeron de sus manos. Ambos nos reímos.  
Benjamin se veía elegante, llevaba costosos pantalones a rayas.  
“Seguramente de los burgueses más ricos”, decidí. Íbamos caminando y  
conversando animadamente. Resultó ser un literato, filósofo y traductor, que  
vino a Capri para terminar su tesis “El nacimiento de la tragedia alemana del  
siglo XVII” [Origen del Trauerspiel alemán]. (ЛАЦИС, 1984, p.83 [La  
traducción es nuestra])  
A partir de entonces, Benjamin la visitaba con frecuencia y fue forjando  
paulatinamente un vínculo con Latsis, signado por discusiones en torno al materialismo  
dialéctico. Latsis señala que en ese momento “Walter no estaba familiarizado con la  
estética materialista. Él sólo leía a D. Lukacs [Georg Lukacs]” (ЛАЦИС, 1984, p.86), y  
de allí que ella insistiera en que leer al filósofo húngaro no bastaba si no se imbuía en  
la práctica de transformación de la sociedad.  
Hacia 1926, Latsis se instaló en Moscú, con su hija y Bernhard Reich1, e invitó  
a Benjamin a visitar la ciudad. La visita se concretó durante un agitado invierno  
moscovita:  
¡Es como si hubiera volado a otro planeta!, decía Walter. Estaba  
emocionado por el ritmo frenético en el que vivía Moscú en esos años:  
se llevaban a cabo innumerables conferencias, debates, discusiones  
acaloradas y se realizaron espectáculos inusuales. Reich visitó con él  
una conferencia de escritores, donde habló Andrei Bieli. Bernhard le  
tradujo el discurso del orador, Walter estaba encantado. (ЛАЦИС,  
1984, p.118)  
Como señala Latsis, el clima polémico en ese momento en Moscú teñía todas  
las esferas de la vida. En efecto, en Rusia, durante la década de 1920, se llevaron a  
cabo transformaciones radicales en materia económica, política, social y cultural  
postuladas ya en las premisas de la Revolución Rusa de 1917. No obstante, luego del  
comunismo de guerra, se instauró una serie de medidas conocida como Nueva Política  
1 Bernhard Reich, la pareja de Latsis, fue director, crítico y teórico teatral, que trabajó en la URSS desde  
1925.  
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Érica Brasca; Tomás Sufotinsky  
Económica (NEP), iniciada en 1921 y que se extendió hasta la implementación del  
primer plan quinquenal, en 1928. Esas medidas político-económicas de la NEP  
atañeron, principalmente, al sector agrícola, pero propiciaron polémicas en todos los  
sectores sociales, ya que significaban una apertura al mercado que, para algunos, era  
incompatible con la construcción del socialismo. Durante el periodo de la NEP, los  
dirigentes bolcheviques se propusieron, en primer lugar, reconstruir el territorio y  
restablecer la economía, aspectos que, a causa de las guerras, se vieron  
profundamente devastados. En segundo lugar, debían fortalecer los logros  
revolucionarios y consolidar el nuevo Estado.  
En lo concerniente al campo cultural y educativo, la NEP implicó, también, una  
reactivación económica que conllevó la reapertura de editoriales y publicaciones  
periódicas. Asimismo, como señala Marc Slonim: “(…) la crítica y la investigación,  
principalmente guiadas por eruditos formalistas, se reiniciaron con gran intensidad; el  
número de libros publicados creció constantemente; la expansión de la lectura y la  
escritura amplió los públicos lectores” (SLONIM, 1962, p.186).  
No obstante, cabe añadir que la ampliación del público lector estuvo ligada a  
la campaña de alfabetización masiva impulsada por el Estado. Frente a los altos índices  
de analfabetismo en Rusia, en diciembre de 1919, el gobierno emitió el decreto “Sobre  
la eliminación del analfabetismo entre la población de la RSFSR”, en el que se declaraba  
la obligatoriedad de la enseñanza de la lectura y escritura. El programa, que estaba  
dirigido a ciudadanos de 8 a 50 años de edad, fijó el décimo aniversario de la  
Revolución de Octubre como fecha límite para la erradicación del analfabetismo  
(ВОЛОШИНА, 2017). La campaña de alfabetización estuvo acompañada por políticas  
educativas que abarcaron desde la reforma ortográfica del alfabeto cirílico ruso en  
1918 hasta la creación de escuelas, manuales de texto y propagandas de promoción  
del programa.  
En cuanto al arte, en general, esta década estuvo signada por la proliferación  
de asociaciones y grupos artísticos que se enfrentaban en debates en torno a cómo  
debía ser “el arte nuevo de la vida nueva”. A la vieja dicotomía de forma-contenido, se  
agregaba su relación con la tradición y con el nuevo público lector, así como también  
se desarrollaron debates sobre la técnica y nuevas materialidades. En particular, se  
destacaron las polémicas entre los grupos de vanguardia como por ejemplo el Frente  
de Izquierdas de las Artes (LEF), que nucleaba figuras como las de Vladímir Maiakovski,  
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Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter Benjamin (1927)  
Serguei Tretiakov, Aleksandr Rodchenko, entre otrasy los grupos de escritores  
proletarios.  
En su programa, LEF acusa a los escritores proletarios de creer que “el espíritu  
revolucionario se agotaba con un contenido de propaganda y en el campo de la forma  
siguieron siendo unos completos reaccionarios” mientras que ellos, los vanguardistas,  
pusieron sus habilidades al servicio del “trabajo artístico de agitación requerido por la  
revolución” (ЛЕФ №1, 1923, p.4 [Nuestra traducción]).  
Por su parte, los escritores proletarios tachaban a los vanguardistas de  
formalistas y les achacaban la producción de un arte poco comprensible para las masas  
recientemente alfabetizadas. No obstante, sus propuestas artísticas en ocasiones  
estaban más cercanas a los procedimientos vanguardistas y, en otros casos, más  
apegados a los tratamientos tradicionales de las obras clásicas.  
Los grupos de escritores y artistas proletarios estaban lejos de conformar un  
bloque unido y homogéneo. El recorrido del debate sobre la cultura proletaria se había  
iniciado entre los intelectuales rusos antes de que se consumara la Revolución. En  
1917 se creó la organización de cultura proletaria Proletkult, de la que surgió el grupo  
literario Kuznitsa. En oposición a Kuznitsa, se fundó el grupo Oktiabr, más alineado  
con las políticas partidarias comunistas. Al poco tiempo se unieron en la VAPP, la  
Asociación Panrusa de Escritores Proletarios, que contenía varias organizaciones,  
todas ellas disueltas por el decreto “Sobre la reestructuración de las organizaciones  
literarias y artísticas” emitido por el Comité Central del PCUS en abril de 1932, que  
luego devino en la implementación del realismo socialista como método del arte en la  
Unión Soviética.  
Ambas corrientes la de vanguardia y la proletariase habían originado en el  
contexto prerrevolucionario, por lo que, luego de los acontecimientos de 1917, las  
formulaciones entraron en tensión generando más tendencias y fracciones diversas.  
Sin embargo, hacia fines de la década de 1920 adquirió fuerza, especialmente entre  
los escritores proletarios, “la idea de un arte representativo, comunista por el  
contenido y realista en la forma, que reflejara los problemas del trabajo, la producción  
industrial y la competencia socialista” (SLONIM, 1962, p.194).  
Tras la muerte de Vladímir Lenin, en 1924, Aleksei Rikov tomó el cargo de  
Presidente del Consejo de Comisarios del Pueblo. Al interior del Partido se agudizaron  
las disputas, que alcanzaron el terreno del arte. Ejemplo de esto fueron las polémicas  
entre la línea de Liev Trotski y la de Nikolai Bujarin en el seno del Partido, que  
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Érica Brasca; Tomás Sufotinsky  
encontraron en el suicidio del poeta Serguei Esenin una arena de discusión acerca del  
ánimo de la juventud2. A propósito de la muerte de Esenin en diciembre de 1925,  
Trotski escribió “En memoria de Serguei Esenin” publicada en el periódico Pravda, el  
19 de enero de 1926. A comienzos de 1927 se publicó, primero en Pravda y luego  
como folleto, bajo el título “Notas malvadas”, la nota de Bujarin, de la que se extrae la  
cita a la que refiere Benjamin en “Nueva literatura en Rusia”.  
Durante su estancia en Moscú, el pensador alemán llevó un diario en el que  
detalla sus actividades, las compras de juguetes a causa de su “manía coleccionista”  
(BENJAMIN, 2019, p.65), sus visitas, sus percepciones de la ciudad y, especialmente,  
un registro de los encuentros y desencuentros con Asia Latsis, quien no solo es un  
personaje protagónico del Diario de Moscú sino que escribe para ella “Programa de  
un teatro infantil proletario” y es a quien está dedicado Calle de sentido único (1928).  
El Diario y el ensayo “Moscú”, a cuya escritura estaba previamente  
comprometido con Martin Buber para su publicación en la revista Die Kreatur3  
(SCHOLEM, 1983, p.206), fueron producciones de este viaje, junto a una serie de notas  
y artículos que escribió sobre la cultura soviética, en 1927, y que conforman un corpus  
al que pertenece “Nueva literatura en Rusia”. A este grupo de breves textos o  
“exposiciones” redactadas por Benjamin también pertenecen “La agrupación política  
de los escritores rusos”, “Sobre el estado del cine ruso” y “Disputa de Meyerhold”,  
entre otros4.  
El particular tono de la escritura de “Nueva literatura en Rusia” es el de quien  
hace anotaciones de lo que escucha en un cuaderno de viajes y luego intenta poner  
estas notas en orden. Y es que de anotaciones se tratan:  
El ensayo [“Moscú”] debió apoyarse –de manera similar a los impresos  
a continuación, Acerca de la situación del cine ruso y Nueva literatura  
en Rusiaesencialmente en informaciones orales que reunió Benjamin  
durante su estadía en Moscú del 6 de diciembre de 1926 al 1 de  
febrero de 1927. (GS. II, 1485 [La traducción es nuestra.])  
En “Nueva literatura en Rusia”, Benjamin se propone exponer la situación  
2 Sobre la preocupación acerca de Esenin y el “Eseninismo” véase el debate de la Academia Comunista,  
3
Apareció luego publicado en Denkbilder, grupo de textos seleccionados a partir de la edición de  
Adorno de los Escritos de Benjamin de 1955.  
4 Además de este conjunto de textos con “tema ruso” de estos años, cabe mencionar que Benjamin ya  
había escrito, en 1917, el ensayo “El idiota de Dostoievski”, publicado en 1921 en la revista  
Argonauten. Por otra parte, se supone que colaboraría con un artículo sobre Goethe para la Gran  
Enciclopedia Soviética (GES) que finalmente fue rechazado (Lunacharski, 1929).  
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Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter Benjamin (1927)  
literaria de la Unión Soviética al momento de su viaje. Se trata de un momento en el  
que se impone la necesidad del Estado de producir una nueva escritura acorde a un  
periodo de la Revolución en que hay que, a la vez que alfabetizar a millones de  
personas, generar un capital simbólico consecuente con la necesidad de crear una  
nueva identidad del pueblo ruso. Frente a este panorama es que Benjamin se plantea  
el problema literario acerca de si, como indica la tradición de los estudios literarios,  
puede comprenderse, para este caso, la nueva etapa a partir de las anteriores, o si es  
que esta nueva situación pide ser comprendida de otra manera, más novedosa y en  
consonancia con las necesidades urgentes de su contexto, que con la literatura que la  
precede (de obras “abruptamente aisladas como monumentos del pasado”). Se trata,  
en este sentido, de una cuestión de vanguardia, de ruptura con la tradición y propuesta  
de una novedad artística total. Por otra parte, se plantea el problema de si esta  
necesidad de una nueva literatura didáctica y catártica ha producido resultados  
literarios que surten el efecto buscado, frente o en oposicióna la tradición  
(Dostoievski, Turgueniev, Tolstoi, etc.), es decir, la destituyen de su sitio preferencial  
en la elección de los lectores.  
Con respecto a la posibilidad de una literatura didáctica, como mencionamos  
unas líneas más arriba, Benjamin se refiere a una literatura concebida en función de  
los nuevos lectores que deben ser alfabetizados (se trata de un “mandato” de Lenin)  
y que no precisan “refinamientos”, “formulaciones” ni “variaciones”, sino “repeticiones”  
e “informes cautivantes”. Se trata de una alfabetización no solo en términos educativos  
sino también políticos, ya que para el gobierno implicaba brindar la oportunidad de  
participar conscientemente en la vida política, y que integraran las tareas de  
transformación propuestas (ВОЛОШИНА, 2017). En este sentido, la alfabetización  
resultaba un medio en el camino de construcción del socialismo.  
Luego de repasar numerosos nombres del panorama literario de Rusia,  
Benjamin añade aún una función catártica de la literatura, necesaria para el  
procesamiento del enorme caudal de experiencias acumuladas en la última década:  
La literatura rusa actual cumple la tarea fisiológica, se puede decir, de  
liberar el cuerpo del pueblo de esta sobrecarga de materiales, de  
vivencias, de fortunas. La escritura de Rusia en este momento es, vista  
desde aquí, un enorme proceso de excreción. La canonización de la  
tendencia tiene esta importancia no solo política, sino también  
higiénica, curativa, de que los hombres, que están llenos como una  
esponja de su propio sufrimiento, pueden estar en comunión entre sí  
solo en la línea de fuga de una tendencia, en la perspectiva del  
comunismo.  
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Érica Brasca; Tomás Sufotinsky  
La analogía fisiológica acompaña a la interpretación de su lectura en términos  
de “catarsis”, si consideramos que el término  
tiene su origen en el gr. κάθαρσις, de καθαίρω (lavar, enjuagar;  
liberar, expiar). (…) El equivalente en lat. es purgatio (purificación,  
justificación; de purus emparentado con πῦς, fuegopuro, repelente,  
por así decirlo, de pus, pus), de ahí pues purgatorium (purgatorio) con  
el complementario purgamentum, gr. κάθαρμα, para lo que se purga  
mediante su expulsión.  
Asimismo continúa Peter Thomas en Historisch-kritisches Wörterbuch des  
Marxismus planteando que “al igual que para todas las ‘categorías importantes de la  
estética’, vale para la catarsis el hecho de que ‘su origen primario está en la vida, no  
en el arte, al que ha llegado desde aquélla’ (LUKÁCS, E II, 500)”. Es decir, desde la  
“línea de fuga de una tendencia, en la perspectiva del comunismo”, a la que refiere  
Benjamin en su texto, la literatura (o bien, el arte) tiene la tarea de purgar este cúmulo  
experiencial de Rusia como un “rito de integración social” (Thomas, HKWM [La  
traducción es nuestra.]).  
Es a partir del planteo de estas cuestiones literarias (y, por cierto, sin  
resolverlas) que Benjamin expone, según logra enterarse, el “mapa de coordenadas”  
de la nueva literatura rusa. Para configurar este panorama, debió recolectar relatos y  
opiniones de aquellas personas con quienes podía hablar en alemán en Moscú, a veces  
sin éxito, como describe en el Diario:  
Schick viene de una familia muy adinerada, estudió en Múnich, Berlín  
y París y sirvió en la Guardia rusa (…) Durante el té intenté sonsacarle  
información sobre la nueva literatura rusa. Fue un pedido en vano. No  
va más allá de Briusov (BENJAMIN, 2019, p.154).  
Finalmente, para trazar su mapa obtiene material de parte del escritor y  
dramaturgo húngaro, Béla Illés, que vivió en la Unión Soviética desde 1923: “Fue muy  
productivo, tal y como esperaba; me resultó muy interesante el bosquejo que me  
ofreció de los grupos literarios contemporáneos en Rusia en función de la orientación  
política de los distintos autores” (BENJAMIN, 2019, p.166).  
Llama la atención del lector, sin embargo, el hecho de que Benjamin se refiera  
a este carácter fisiológico de la literatura rusa, un medio para purgar el cúmulo  
experiencial de los últimos diez años (de 1917 a 1927), como algo que “Ningún  
europeo puede juzgar”. ¿Acaso en Europa, o particularmente en Alemania y el ámbito  
de habla alemana, no se había acopiado un cúmulo “de materiales, de vivencias, de  
fortunas” desde el fin de la Primera Guerra Mundial? Si no tan radical o intensamente  
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Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter Benjamin (1927)  
como en el caso de Rusia, se vivieron en Alemania en los últimos años, sin embargo,  
una serie de sucesos transformadores determinantes: la fundación, por primera vez en  
la historia, de una república democrática, atravesada desde sus comienzos por intentos  
de desestabilización y afectada por una gran crisis política y económica; la más  
importante experiencia de las izquierdas alemanas, el Levantamiento Espartaquista, en  
1919, que, a pesar de su derrota, reformuló el panorama de la izquierda y la  
reposicionó en el nuevo sistema parlamentario a partir de la creación del Partido  
Comunista Alemán (KPD). Entretanto, comenzaban a adquirir más fuerza los  
movimientos de ultraderecha. Esta polarización de fuerzas políticas, que pujaban tanto  
en las calles como en las elecciones por la representación parlamentaria, marcó  
fuertemente el medio literario e intelectual en general de esta década. El panorama se  
completa además, con un gran proceso inflacionario, una serie de huelgas y  
levantamientos obreros y una pérdida de confianza en la idea de una república que  
era vista como algo cada vez más inviable, “una república sin republicanos”.  
En cuanto a la literatura, para hacerse una idea acaso tanto a sí mismo como  
al “lector alemán”– de quién es quién en el panorama literario de la Unión Soviética,  
Benjamin necesita hacer una comparación con figuras de la literatura en lengua  
alemana ya consolidadas y, de algún modo, paradigmáticas: a los constructivistas los  
compara con August Stramm, muerto en batalla doce años antes, durante la Guerra,  
representante de la mayor experimentación con la lengua y la sintaxis poéticas en el  
expresionismo; y a Briusov, “creador del simbolismo ruso”, con Stefan George, quien  
estaba ya cursando los últimos años de su vida, representante del simbolismo y del  
art pour l’art. Sin embargo, toda la literatura perteneciente al periodo de la República  
de Weimar muestra el complejo entramado del panorama alemán y parece ser también  
sintomática de un cúmulo de vivencias acopiadas. Excediendo la literatura, la “cultura  
de Weimar”, abarca desde el teatro y la nueva escena del cabaret hasta la arquitectura  
de la escuela Bauhaus y a la fotografía de la Nueva Objetividad. Se trata de un  
momento denso, complejo y poco homogéneo en el que conviven manifestaciones  
ideológicas disímiles e incluso antitéticas. No obstante, una característica que pareciera  
atravesar a gran parte de la literatura es una crítica al pensamiento burgués, entendido  
en un sentido más bien amplio, asociada al uso de la ironía y hasta la burla directa, en  
las expresiones del ámbito del cabaret. Además, un buen número de obras de esta  
época posee, por ejemplo, pequeños héroes” o “antihéroes” –Pequeño hombre, ¿y  
ahora qué?, de Hans Falladaque evidencian, incluso, un descenso de la capa media  
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Érica Brasca; Tomás Sufotinsky  
de la sociedad burguesa: La muerte del pequeño burgués, de Franz Werfel. La poesía  
se vuelca, de la abstracción expresionista, muchas veces, a la concreción y la ironía, al  
poema satírico y político de cabaret (Tucholsky), o al netamente político (Brecht).  
A pesar de proponer que esta nueva literatura del periodo de Weimar no  
resuelve “los viejos problemas espirituales y teóricos” de la literatura alemana, Lukacs  
(1971) plantea que  
Las tendencias oficiales predominantes de la ‘nueva realidad  
concreta’5 () están determinadas tanto en el contenido como en el  
estilo por ese tipo de atmósfera depresiva. La fatiga y la incredulidad,  
el abandono de los esfuerzos por ejercer influencia en un mundo  
desprovisto de espíritu y de sentido pretenden refugiarse en la ironía  
para crear una imagen de superioridad espiritual (p.173).  
Incluso a semejanza de las palabras de Benjamin antes citadas, Lukacs refiere a  
un sector obrero de esta literatura, cuya producción “está determinada sobre todo por  
el ‘estilo informativo’ de la ‘nueva concreción de la realidad’” (p.173s. [Las cursivas  
son nuestras.]). Si bien Lukacs hace una estimación de la literatura de Weimar que no  
es, en general, valorativa, sí rescata una de las obras más importantes de esos años:  
La montaña mágica, de Thomas Mann (1924), una novela de época, situada en los  
momentos inmediatamente previos a la Primera Guerra, donde se pone a la luz las dos  
fuerzas en pugna durante esos años: “su contenido esencial es la lucha entre la  
ideología democrática y la fascista por adueñarse del alma de un alemán honesto y  
común. Por primera vez (…) aparece en la literatura alemana la ideología democrática  
en actitud combatiente” (p.172). La apreciación de Lukacs suena, si bien certera,  
seguramente reducida a los aspectos de su interés para la lectura que hace de la novela  
en función de su desarrollo teórico en torno al realismo. Consideramos que, además  
del aspecto mencionado por Lukacs, la obra efectúa una profunda reflexión acerca de  
la enfermedad, en sus aspectos más morales que biológicos y, por extensión, una  
elaboración de la “enfermedad” de la época (los años inmediatamente previos a la  
Primera Guerra); y, en conjunto con la apreciación lukacsiana y por efecto de  
distanciamiento temporal, también una acusación de las causas de las condiciones  
del momento.  
5
En el original dice Lukacs “Neue Sachlichkeit”: habitualmente traducido como “nueva objetividad”,  
término que surgió en el ámbito de las artes pictóricas y se extendió luego como denominación de todo  
el arte en general del periodo.  
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Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter Benjamin (1927)  
Además de estas expresiones literarias, cabe mencionar una proliferación de  
revistas y editoriales que atienden a las exigencias de la época, como es el caso de  
i106 donde Benjamin publica el texto que aquí presentamosque, si bien es publicada  
en Ámsterdam, tiene una extensa participación de escritores alemanes. Asimismo, la  
revista cultural judeo-alemana Die Kreatur, dirigida por Martin Buber entre 1926 y  
1928, conformó también la arena de discusiones estético-ideológicas del breve tiempo  
de su publicación. Y es necesario nombrar también la editorial, referida por Benjamin,  
Verlag für Literatur und Politik [Editorial para la literatura y política], fundada en 1924  
en Viena por miembros del Partido Comunista Austríaco con el fin de publicar textos  
conmemorativos de la muerte de Lenin. Posteriormente, el catálogo de la editorial se  
expandió abarcando desde traducciones de la literatura rusa contemporánea, hasta  
textos programáticos y teóricos de izquierda (Marx y Engels, Trotski, Bujarin, Stalin,  
etc.) pasando por publicaciones de Frida Rubiner, la corresponsal del periódico Rote  
Fahne [Bandera roja], fundado en Berlín por Rosa Luxemburg y Karl Liebknecht.  
Lo que sucintamente hemos mencionado, a lo que podemos añadir una  
profusión de novelas de guerra, el surgimiento de una literatura proletaria y el teatro  
brechtiano para la toma de conciencia de las masas obreras, entendemos, justifica  
pensar en la literatura del periodo de Weimar tanto la que entra dentro de la llamada  
Nueva Objetividad como la que no, tanto la reaccionaria como la progresistasi no  
como, en términos fisiológicos, una purga o una excreción, sí como un síntoma de esta  
acumulación “de materiales, de vivencias, de fortunas”.  
Unos párrafos más arriba nos referimos a lo llamativo de la frase de Benjamin  
acerca de la imposibilidad de los europeos para “juzgar” el estado actual de la  
literatura rusa en relación a las experiencias acumuladas en los últimos diez años;  
frente a ello, hemos considerado que, aun con todas las diferencias evidentes,  
particularmente en Alemania, el cúmulo de experiencias vividas en el mismo periodo  
podría corresponderse también con la proliferación de una literatura y un medio  
literario que surgen fuertemente motivados por el contexto y que funcionan como un  
escenario de discusión. Puede pensarse, finalmente, en una razón de esta fijación por  
la nueva literatura rusa, y es que, frente a la literatura alemana del periodo de Weimar,  
su visión se vuelve sobre un medio literario que ocupa un rol intelectual capital y  
6 Benjamin colaboró con artículos y reseñas en otros números de Internationale revue i 10.  
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Érica Brasca; Tomás Sufotinsky  
articulado o al menos en vías de articulaciónen un sistema sociopolítico más  
abarcador. En este sentido, esta literatura posrevolucionaria rusa, como hecho literario,  
pareciera significar, para Benjamin, la posibilidad de una experiencia transformadora  
de la Modernidad.  
Por último, debemos nuevamente enmarcar esta serie de exposiciones en la  
evaluación de su posible afiliación al Partido Comunista, sopesando los diversos  
aspectos positivos de formar parte de este aparato político e intelectual contenedor –  
en sus palabras el gran privilegio de poder proyectar los pensamientos propios en  
algo así como un campo de fuerzas previamente establecido” (BENJAMIN, 2019,  
p.117)– y la pérdida de “la independencia privada” que ello podría conllevar pues:  
en Rusia el escritor libre está en estado de extinción, () el amplio  
promedio de quienes escriben está, de una u otra forma, unido al  
aparato estatal y está controlado por él como funcionario público o  
de alguna otra forma.  
Referencias bibliográficas7  
BENJAMIN, W. Gesammlte Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1997.  
_____. Diario de Moscú. 1926-1927. Traducción de Paula Kuffer. Buenos Aires:  
Ediciones Godot, 2019.  
LUKÁCS, G. Nueva historia de la literatura alemana. Traducción de Aníbal Leal. Buenos  
Aires: La Pléyade, 1971.  
SCHOLEM, G. Walter Benjamin y su ángel. Catorce ensayos y artículos. Traducción de  
Ricardo Ibarlucía y Laura Carugati. México: FCE, 1983.  
SLONIM, M. La literatura rusa. Traducción de Emma Susana Speratti. México: FCE,  
1962.  
THOMAS, P. „Katharsis“. En: Berliner Institut für kritische Theorie. Historisch-kritisches  
Wörterbuch  
des  
Marxismus,  
2008.  
Disponible  
en:  
http://www.inkrit.de/e_inkritpedia/e_maincode/doku.php?id=k:katharsis  
АСЕЕВ Н. и др. «Программа. За что борется Лефжурнал Леф, 1. М.-П., 1923,  
март. [ASEEV, N. et al. “Programa. ¿Por qué lucha LEF?” en revista LEF, N°1. M-P,  
1923, marzo.]  
ВОЛОШИНА С. «Ликвидация безграмотности в СССР» Живая история, Москва, 25  
декабря 2017. [VOLOSHINA, S. «Eliminación del analfabetismo en la URSS» en  
Zhivaia istoria, Moscú, 25 de diciembre de 2017.] Disponible en:  
http://lhistory.ru/statyi/likvidaciya-bezgramotnosti-v-sssr  
ЛАЦИС А. Красная гвоздика: воспоминания. Рига: Лиесма, 1984. [LATSIS, A. Clavel  
rojo: memorias. Riga: Liesma, 1984.]  
ЛУНАЧАРСКИЙ А. В. «В редакцию БСЭ. Письмо 1. 29 марта 1929 г.» [LUNACHARSKI,  
A. V. “A la redacción de la GES. Carta 1. 29 de marzo de 1929”] Disponible en:  
7 Todos los enlaces fueron consultados el 11/11/2022.  
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Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter Benjamin (1927)  
НИКОЛЮКИН А. Н. (сост.) Литературная энциклопедия терминов и понятий.  
Москва: НПК «Интелвак», 2001. [NIKOLIUKIN, A. N. (comp.) Enciclopedia Literaria  
de términos y conceptos. Moscú: NPK «Intelvak», 2001.]  
Como citar:  
BRASCA, Érica; SUFOTINSKY, Tomás. Acerca de “Nueva literatura en Rusia” de Walter  
Benjamin (1927). Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 342-353, Edição  
Especial, 2022/2023.  
Verinotio  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 342-353 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 353  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.675  
Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka.  
Una confluencia asincrónica  
Lukács and Coutinho: readings about Kafka. An asynchronous confluence  
Emiliano Orlante*  
Resumo: Las valoraciones estéticas de György  
Lukács sobre Franz Kafka han generado tanto un  
interés genuino por su análisis como  
circunstanciales polémicas. En este sentido, el  
presente artículo indaga fundamentalmente las  
lecturas del filósofo húngaro y las del teórico  
brasileño Carlos Nelson Coutinho sobre la obra  
del artista praguense. A partir del análisis  
detallado de las apreciaciones estéticas de  
ambos teóricos, el trabajo se propone disipar las  
aparentes controversias y hallar puntos de  
encuentro teóricos en la ponderación artística del  
literato.  
Abstract: György Lukács's aesthetic appraisals  
of Franz Kafka have kindled a genuine interest  
in his analysis as well as circumstancial  
polemics. Considering such dual impact, this  
article explores the readings on the Czech artist'  
work developed by the Hungarian philosopher  
and by the Brazilian professor Carlos Nelson  
Coutinho. Through a detailed analysis of their  
aesthetic appraisals, this paper sets out to  
identify aspects in common between their  
pondering of the writer, against apparent  
controversies.  
Keywords: György Lukács; Carlos Nelson  
Coutinho; Franz Kafka; Critical Realism.  
Palavras-chave: György Lukács; Carlos Nelson  
Coutinho; Franz Kafka; realismo crítico.  
1. Kafka: selección de los materiales y la objetivación del hecho artístico  
En “¿Franz Kafka o Thomas Mann?”, Lukács señala que la literatura de Kafka, en  
términos formales, es afín al vanguardismo subjetivista de tendencia irracionalista y no  
al realismo crítico, al cual considera una expresión literaria que refleja el devenir  
histórico de la humanidad. Para comprender esta oposición teórica, es relevante  
distinguir con la mayor precisión posible estas dos tendencias artísticas, que el filósofo  
húngaro observa dentro del arte burgués.  
La génesis de esta problemática central dentro de la literatura burguesa puede  
situarse temporalmente, según Lukács, a mediados del siglo XIX. El sofocamiento de  
las revoluciones y revueltas populares en Europa trajo consigo, dentro del campo  
*
Profesor ordinario en la Universidad Nacional Arturo Jauretche. Investigador del Instituto de Filología  
y Literaturas Hispánicas “Dr. Amado Alonso”, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos  
Aires. Miembro del consejo de redacción de la revista Herramienta. E-mail: e_orlante@yahoo.com.ar.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica  
intelectual, la incursión y la revitalización de cosmovisiones irracionales, de tendencia  
mística y escéptica, donde la perspectiva de cambio que porta el socialismo es negada,  
minimizada o concebida como imposible de acontecer en términos prácticos en la  
realidad objetiva. Lukács afirma al respecto:  
Es un hecho que el nihilismo y el cinismo, la desesperación, la angustia  
y la desconfianza, el desprecio hacia los demás y hacia uno mismo y  
otros sentimientos análogos, surgen con cierta espontaneidad de la  
situación social de amplias capas de la intelectualidad en la actual  
sociedad capitalista. Muchas tendencias de gran influjo en la  
educación, a través de la escuela y de la vida, actúan también en igual  
sentido tratando de persuadirnos, por ejemplo, de que el pesimismo  
es un sentimiento más aristocrático y más digno de la élite que la  
vulgar creencia en el progreso de la humanidad; de que el individuo  
aislado precisamente por pertenecer a la éliteestá sometido  
impotente a la fatalidad de un devenir sin sentido y sin dirección; de  
que las voces de las masas –la “rebelión de las masas”– sólo pueden  
anunciar calamidades, etc. (LUKÁCS, 1984 A, p. 110).  
Este ideario, de fundamento irracionalista, ha generado una expresividad artística  
de vanguardia negadora del progreso humano, la cual se basa principalmente en las  
impresiones subjetivas del artista. Estas impresiones son dominadas por el sentimiento  
de angustia, indica Lukács, por lo que la inmediatez del sentir se antepone a la  
reflexividad que necesariamente debe intervenir en la consumación del hecho artístico.  
El problema, señala el filósofo húngaro, es que los vanguardistas y pensadores  
modernos creen ver en las expresiones subjetivas inmediatas la realidad objetiva. Lo  
que ciertamente provoca esta metodología de creación artística es una visión  
deformada de la realidad, ya que la ausencia formal del distanciamiento crítico al  
momento de plasmar la obra de arte es notoria en sus resultados estéticos. Desde esta  
perspectiva, el devenir humano se presenta de modo ahistórico, donde el sujeto se  
presenta sin pasado, presente ni futuro; y la nada asoma como única realidad  
trascendente de ese devenir humano.  
Por otro lado, los escritores del realismo crítico suprimen de su praxis la acción  
inmediata y operan con la distancia crítica, procedimiento fundamental y necesario  
para el trabajo artístico. El concepto lukacsiano denominado perspectiva engloba la  
distancia crítica necesaria y añade, a su vez, un componente ideológico subyacente,  
implícito a menudo inconscienteque el artista absorbe de su contexto y lo plasma  
en su creación sin rectificaciones subjetivas. En otras palabras, la perspectiva, elemento  
formal inexcusable para la configuración estética, funciona como principio de selección  
artística y como base ideológica para la plasmación literaria de dicha selección. Según  
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Emiliano Orlante  
Lukács (1984 A, p. 68), en el proceso creativo, entre la idea subjetiva y la consumación  
objetiva hay una brecha que “debe concebirse como elemento de un proceso de  
despliegue dialéctico de la subjetividad creadora, de acceso a la esencia de la realidad  
histórico-social (o bien como fracaso de ese trasunto y esa selección)”.  
En ese despliegue dialéctico, se pone en juego la personalidad del artista para  
que sus impresiones subjetivas puedan fundirse en la esencia de la realidad objetiva  
sin fisuras. En este sentido, el artista debe tener una personalidad empática con su  
contexto histórico-social para lograr la objetividad artística. Esta personalidad artística  
no es otra cosa que la receptividad que debe poseer el escritor ante los hechos que  
suceden en su contexto histórico-social. Expresado en otros términos, no significa que  
el artista deba tener un compromiso social, nada más alejado de ello. Lo que implica  
esta afirmación es que el artista reflexivo no clausura o niega parte de la realidad  
objetiva por la simple razón de que no se adecua a sus ideales o expectativas; o sea,  
el artista no puede negar por mero capricho las manifestaciones históricas de la  
humanidad.  
En este sentido, Lukács apela a una ética en el proceder artístico, la perspectiva  
es el método. Es decir, el arte es un acto creativo de suma responsabilidad para con  
el género humano, particularmente con su devenir histórico. Para el autor de Historia  
y conciencia de clase, el ser de la vida es un devenir histórico social que no puede ser  
ignorado a voluntad del escritor en la plasmación artística. El filósofo húngaro  
establece de manera contundente la diferencia metodológica entre el realismo crítico,  
de raigambre humanista, y el formalismo subjetivista:  
Mientras en la verdadera selección se elimina lo que no es esencial, ni  
social ni humanamente, para resaltar lo verdaderamente importante,  
el acto formalista de la selección en el vanguardismo conduce a una  
mutilación y un despedazamiento de la verdadera esencia del hombre  
(en Miller, por ejemplo, se extirpa todo lo que va más allá de la mera  
sexualidad). Esta pseudoselección significa una nivelación del hombre  
al rango más bajo, una exclusión de lo esencial humano” (LUKÁCS,  
1984 A, p. 97).  
A la luz de estas dos tendencias literarias formalmente contrapuestas, el análisis  
literario de la obra de Franz Kafka ha sido, al menos, controversial. La observación del  
filósofo nacido en Budapest es bastante crítica con respecto al trabajo del escritor  
checo. En Significación actual del realismo crítico (1958),1 señala positivamente que el  
1
1958 es el año de la edición alemana. Arpad Kadarkay (1991, p. 425), biógrafo de Lukács, señala  
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Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica  
autor praguense concibe los detalles de forma selectiva, es decir, procede de manera  
análoga a la de un escritor realista crítico. Sin embargo, la diferencia entre ellos se  
circunscribe únicamente a la forma de plasmar la obra literaria. Para el filósofo, Kafka  
dispone los detalles en forma alegórica, cuestión que hace quebrar la unidad literaria  
realista mediada, crítica.  
En su crítica del autor de El proceso, Lukács señala que la visión profética y la  
perplejidad de sus personajes no se deben a la concreta observación de un mundo  
que comienza incipientemente a desarrollarse hacia los modos concentrados y  
antidemocráticos del capitalismo tardío, sino, más bien, a la percepción in situ de la  
decadencia de la vieja monarquía de los Habsburgos. En esta línea de análisis, Miguel  
Vedda (2022, p. 285) señala con rigor la discrepancia formal del filósofo húngaro:  
[El] arraigo en la vieja Austria, por un lado, concede a los detalles de  
su narrativa un hic et nunc sensorial y concreto; por otro, la  
indefinición de la objetividad es configurada con la ingenuidad  
genuina de la mera intuición, del no saber fáctico. Esto coloca a Kafka  
por encima del formalismo de posteriores autores; pero esta  
superioridad no aparece en Lukács como una rotunda ventaja […].  
Con respecto a este último punto, Lukács observa semejanzas entre la literatura  
de Kafka y la corriente alegórica de la vanguardia formalista, como Camus. Cabe señalar  
que la vanguardia subjetivista, al configurar la obra de arte, explota formalmente los  
vínculos místicos e idealistas del género hasta identificarse con sus fundamentos  
irracionalistas y ahistóricos, basados en sus impresiones subjetivas. En otros términos,  
los materiales de la obra se ordenan en pos de una idea o concepción previa del artista;  
precisamente ese es el desgarramiento que Lukács destaca en la vanguardia  
irracionalista. En las representaciones alegóricas de esta vanguardia artística, el  
hombre aislado está arrojado a un mundo absurdo e incomprensible; el sujeto es  
presentado como víctima de un vacío existencial y de un inexplicable e inmodificable  
acontecer: una “nada trascendente” (LUKÁCS, 1984 A, p. 66).  
En este sentido, el filósofo húngaro observa en el carácter alegórico de la obra  
de arte vanguardista algo similar a lo que Aristóteles le adjudicaba, en su Poética, a la  
llamada anagnórisis por la invención del poeta. Un ejemplo de ello es la forma en que  
que los ensayos contenidos en Significación actual del realismo crítico se originaron a partir de una  
serie de lecturas que el filósofo dio por Europa entre abril y mayo de 1956. A su vez, asegura que el  
prefacio a la versión húngara fue redactado por Lukács en septiembre de ese mismo 1956, algunas  
semanas antes del levantamiento húngaro.  
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Emiliano Orlante  
se da a conocer Orestes en la tragedia Ifigenia en Táuride de Eurídipes. El filósofo  
clásico advierte que Orestes expresa lo que desea el poeta, en lugar de expresar lo  
que exige el argumento. Es por ello que, para él, tal procedimiento carece de carácter  
artístico; la fabricación del recurso de reconocimiento hace que la obra pierda su  
verosimilitud2 y quede fisurada por la evidente y desnaturalizada intervención poética.  
Para Aristóteles, la anagnórisis artística mejor lograda es aquella que, prescindiendo  
de toda suerte de artificios, surge de los incidentes mismos y que, en términos  
receptivos, produce una impactante conmoción, siempre conforme a la verosimilitud  
de los hechos. En esta línea, el filósofo griego, en su Poética, reflexiona con frecuencia  
sobre la labor artística en lo que concierne a la plasmación de la obra. Con respecto a  
ello, la idea fundamental de esta labor se condensa en las siguientes palabras: “() el  
poeta debe intervenir lo menos posible, ya que su carácter imitador artísticono  
depende de las intervenciones personales que lleva a cabo en el poema”  
(ARISTÓTELES, 2002, p. 108).  
A esta luz comparativa, el carácter alegórico de la obra vanguardista y la  
invención de la anagnórisis aristotélica comparten la desnaturalizada intervención del  
poeta, cuya consecuencia es la degradación del hecho artístico. La organización de la  
obra tras una idea preconcebida tal es el caso del vanguardismoy la anagnórisis  
fabricada por el poeta son recursos forzados que, a su vez, contribuyen con la fisura  
del desarrollo verosímil requerido por la obra de arte. Por esta razón, la alteración de  
la ley de probabilidad y necesidad es equivalente a la adulteración de lo esencialmente  
humano y del desarrollo histórico de la humanidad, que Lukács observa en la obra de  
arte burguesa.  
Por otra parte, el pensador brasileño Carlos Nelson Coutinho, a partir de un  
análisis metodológico estético-filosófico inaugurado por el propio Lukács, rescata al  
literato praguense del irracionalismo de vanguardia, con el cual el filósofo húngaro lo  
había identificado en un primer momento, revalidando su obra como la de un realista  
crítico. A propósito de esta ponderación artística, el investigador Hermenegildo Bastos,  
en su estudio “Lukács leitor de Proust e Kafka, segundo Carlos Nelson Coutinho”,  
2
Según Aristóteles, el carácter verosímil de la obra de arte se logra cuando el poeta no relata los  
sucesos acontecidos, sino aquellos que podrían haber sucedido conforme a la ley de la probabilidad o  
de la necesidad (ARISTÓTELES, 2002, p. 55). En otras palabras, la verosimilitud es la “ley de necesidad  
o probabilidad” que la propia obra, según su género, le exige al artista para no romper con la  
“credibilidad” propia de la trama. El hecho artístico, según su naturaleza genérica, exige un canon o  
conjunto de reglas que deben cumplirse para que pueda caracterizarse como una obra de arte.  
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Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica  
indica con precisión el procedimiento metodológico lukacsiano, que emplea Coutinho  
para considerar a Kafka un escritor realista:  
A discordância lukacsiana com Lukács está em que Coutinho acentua  
os aspectos que o próprio Lukács considera realistas em Kafka (os  
detalhes) e se vale da concepção lukacsiana sobre a novela (no seu  
contraste com o romance) para caracterizar a Kafka como novelista.  
Dessa forma “recupera” o realismo do escritor tcheco (BASTOS, 2018,  
p. 33).  
Asimismo, en esta reafirmación estética del autor de La metamorfosis, la  
discusión en torno al sentido alegórico de sus textos tiene un lugar preponderante.  
Para Coutinho (2005), el mundo representado en El extranjero de Albert Camus –  
exponente del vanguardismo subjetivistano posee características compartidas con la  
representación del mundo en los escritos de Kafka.  
En la novela del francés, el sinsentido de la existencia humana es el leitmotiv  
recurrente. La vida social, las propias valoraciones ético-sociales universalizadas por  
el progreso humano aparecen alienadas, absurdas, desprovistas de sentido práctico  
en la realidad objetiva de los hombres. Este sinsentido de la humanidad se configura  
en términos alegóricos, es decir, la idea filosófica del escritor, su visión sobre el mundo,  
se materializa en la forma de una narración, la cual, por ese modo idealista de  
objetivarse (la idea se representa y no al revés, la realidad es representada), aparece  
desgarrada como unidad artística. Es decir, debido a ese forzamiento metodológico al  
momento de cristalizar el hecho artístico, los materiales de la novela se ordenan en  
pos de una idea o concepción previa del artista; de ahí, el desgarro de su verosimilitud.  
De modo completamente diferente, se organizan los materiales en la  
producción artística de Kafka. Según Coutinho (2005, p. 138), el escritor praguense,  
como todo escritor de tradición realista, basa su representación artística del mundo en  
la premisa aristotélica de que el hombre es un ser social. De hecho, el teórico brasileño  
va más allá de Aristóteles y afirma que la literatura de Kafka expresa, en términos  
estéticos, la idea marxiana de que “No es la conciencia la que determina la vida, sino  
la vida la que determina la conciencia” (Marx, 1994, p. 157). Por ello, la derrota de los  
personajes protagónicos, el desmoronamiento de sus falsas creencias y el espejismo  
de su seguridad burocrática reflejan artísticamente los condicionamientos sociales que  
el capitalismo tardío monopolizado imprime sobre las conciencias de los personajes.  
2. Kafka como realista crítico  
Es necesario considerar que el primer momento de consideración artística de  
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Kafka, lo encuentra al propio Lukács librando la lucha de clases en el plano de las  
ideas. El desdén hacia el progreso y la posibilidad de cambio estaba instalado como  
la nueva expresión intelectual en los ámbitos académicos y culturales, y el filósofo  
había asumido la responsabilidad filosófica de confrontarla activamente. Su libro El  
asalto a la razón (publicado en 1954) da cuenta de las corrientes filosóficas de  
tendencia irracionalista que, desde mediados del siglo XIX, han contribuido consciente  
o inconscientemente con el desenlace fatal de la humanidad: la aparición y  
consolidación del nacional socialismo hitleriano. El mismo Lukács advierte sobre las  
implicancias de este conflicto social dentro de la esfera intelectual; en este sentido, se  
aparta de la noción burguesa de la narración de la historia de las ideas y señala la  
obligación ética de la filosofía de perspectiva histórica en involucrarse en el desarrollo  
de la humanidad hacia el bien común:  
La historia de la filosofía, lo mismo que la del arte y la de la literatura  
no es como creen los historiadores burguesessimplemente la  
historia de las ideas filosóficas o de las personalidades que las  
sustentan. Es el desarrollo de las fuerzas productivas, el desarrollo  
social, el desenvolvimiento de la lucha de clases, el que plantea los  
problemas a la filosofía y señala a esta los derroteros para su solución  
(LUKÁCS, 1984 B, p. 3).  
En este mismo período, escribe sus ensayos contenidos en Significación actual  
del realismo crítico. Si se examina con detenimiento, su consideración hacia Kafka es  
ambivalente. Por un lado, Lukács celebra y destaca el trabajo artístico del escritor  
praguense por su eficacia en el proceso de selección de los materiales de la realidad  
objetiva. Por otro, empero, percibe que esos materiales terminan plasmándose a partir  
de una realidad inmediata, meramente subjetiva. En este punto, Lukács interpreta una  
fuerte influencia de Schopenhauer y Nietzsche en la literatura kafkiana. Si bien esta  
última observación adversativa puede ser considerada concluyente, al mismo tiempo,  
echa luz sobre el momento de transición del filósofo hacia su revalorización final del  
autor de El proceso.  
En este sentido, su biógrafo Arpad Kadarkay encuentra, ya en este período, una  
tensión en las consideraciones de Lukács sobre Kafka. Asimismo, destaca, por fuera  
de la consideración antilukacsiana dominante en el ámbito académico, este período de  
producción filosófica como de extraordinaria agudeza en sus análisis, donde la verdad  
artística es el objeto de sus ensayos. En palabras del biógrafo:  
Sin embargo, Significación actual del realismo crítico también revela  
un cambio sutil y radical en la obra de Lukács. Por un lado, su lenguaje  
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Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica  
es más preciso e iluminador que en trabajos previos. Sus juicios ya no  
se reducen a una mera cuestión de dogma marxista. Ahora la verdad  
está completamente desnuda. Como critico crítico literario, Lukács  
está más preocupado por el contenido de verdad del arte que por su  
teología. No sólo le agrada discutir el realismo en un ‘lenguaje no  
esópico’, sino que muestra una gran admiración por Kafka. Por cierto,  
el drama de individuación de Kafka todavía se apoya, según la mirada  
de Lukács, en Schopenhauer y Nietzsche. No obstante, en la versión  
húngara de Significación actual del realismo crítico, Lukács afirma  
respecto de Kafka: Esta sensación de impotencia, elevada y exaltada  
al rango de toda una concepción del mundo (que en Kafka llega a  
convertir esa estremecedora visión angustiosa en algo inmanente al  
devenir del mundo, y a la total entrega del hombre a ese espanto  
inexplicable, impenetrable e ineludible), hace de su obra un símbolo  
de todo este arte moderno. Todas aquellas tendencias que, en otros  
escritores, se limitan a convertirse en una forma artística o filosófica,  
en Kafka se manifiestan en un asombro platónico elemental, lleno de  
temor pánico ante la realidad eternamente extraña y enemiga del  
hombre; y todo ello con una intensidad de asombro, perplejidad y  
conmoción, sin igual en la literatura (KADARKAY, 1991, p. 425).3  
Kadarkay halla, en la cita de Lukács relevada, algunas diferencias en la traducción  
inglesa de Significación actual del realismo crítico, con respecto a sus versiones  
originales húngara y alemana. Precisamente, en el ensayo “Los principios ideológicos  
del vanguardismo”, puede encontrarse el parágrafo señalado por Kadarkay, en el cual  
el filósofo exalta la labor artística de Kafka y manifiesta su admiración con la elocuente  
expresión: “[..] sin igual en la literatura”. Este párrafo celebratorio de su arte se  
encuentra apagado en la traducción inglesa; en ella, no se encuentran su relación con  
el “asombro platónico elemental” ni su estima sin parangón.  
En concordancia con este proceso de transición, Lukács comenta, en una carta  
dirigida a un joven Coutinho, fechada en Budapest el 26 de febrero de 1968, la tensión  
estética que le representaba juzgar el trabajo del artista praguense en la época de  
producción de Significación actual del realismo crítico. En palabras del autor de  
Historia y conciencia de clase:  
algumas novelas, como A metamorfose, têm um enorme significado  
na recente literatura e assinalam, muito marcadamente, o contraste  
com a literatura subsequente. Eu teria bem maiores objeções a fazer  
contra O processo do que contra a novelística. Infelizmente, por causa  
de condições muito desfavoráveis, concluí de modo muito apressado  
meu pequeno livro [Realismo crítico hoje], de modo que determinados  
pontos de vista não foram expressos nele de modo bastante claro.  
Refiro-me sobretudo ao fato de que existe em Kafka uma tensão que  
tem uma única analogia na era moderna, ou seja, com Swift. Se você  
3
Al no existir actualmente una traducción al español o al portugués, proveemos de una. Al mismo  
tiempo, indicamos que la cita de Lukács que Kadarkay releva fue extraída de LUKÁCS, 1984 A, p. 45.  
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comparar Swift com seus grandes contemporâneos, sobretudo Defoe,  
verá que este último descreveu de modo realista o seu tempo  
presente, ao passo que Swift tentou dar com base nas tendências  
reais de sua épocaum panorama crítico-utópico do desenvolvimento  
global e da essência mais profunda da sociedade capitalista. Uma  
tendência análoga está presente em Kafka, só que ele em função das  
condições sociais do período de sua atividadenão podia atingir uma  
síntese tão profunda e motivadamente pessimista como aquela de  
Swift (COUTINHO, 2005, p. 211-212).  
A su vez, puede observarse que su lectura de Kafka aún permanecía en un  
constante análisis, que tuvo que resolver apresuradamente por motivos editoriales. De  
hecho, pocos años después, en el segundo volumen de su estética (1963), Lukács  
colocaría el arte del literato praguense a la altura del realismo crítico de Swift y Chaplin,  
tal como lo comenta en la misiva a Coutinho. Es por ello que, a pesar de la urgida  
conclusión del estudio “¿Franz Kafka o Thomas Mann?”, los ensayos de Significación  
actual del realismo crítico dan cuenta del pensamiento dialéctico de Lukács en todo su  
esplendor, ya que contienen valoraciones positivas con respecto al proceso de  
selección de los materiales y comentarios críticos celebratorios de la maestría del  
artista. Estas valorizaciones positivas no hacen más que evidenciar abiertamente la  
discusión estética, librada en el propio entendimiento del filósofo húngaro, en torno al  
análisis del escritor.  
Asimismo, en este período de transición hacia la revalorización del escritor  
austro-húngaro, Kadarkay presupone que la detención clandestina de Lukács en el  
castillo Snagov, tras el sofocamiento soviético de la Revolución húngara de 1956, fue  
un factor inapelable de la realidad objetiva que contribuyó en el proceso hacia la  
definitiva consideración de Kafka como realista crítico. Más allá de la ocurrente  
expresión “Kafka was right after all” (KADARKAY, 1991, p. 435),4 murmurada por  
Lukács, tras cerrarse los pórticos de acero de la fortaleza, su estadía en Snagov implicó  
la vivencia del filósofo y de su compañera Gertrud dentro de un espacio donde su  
existencia dependía de un poder invisible y arbitrario, que, al mismo tiempo, se  
manifestaba cínicamente al alterar las relaciones del mundo objetivo. Kadarkay señala:  
El Castillo de Lukács era real y trajo la depredación e inversión de  
valores. Los invitados eran prisioneros; los guardias hacían de  
meseros; la razón era prostituida para dar respuestas “correctas”  
durante las interminables entrevistas; libertad significaba ser  
“acompañado” a Bucarest para comprar el enorme sobretodo que  
Lukács usaba en el parque mientras los cuervos lo sobrevolaban  
4 Traducción al español: “Después de todo, Kafka estaba en lo cierto”.  
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Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica  
(KADARKAY, 1991, p. 436).  
Ese mismo año, en Significación actual del realismo crítico, Lukács había escrito  
que los personajes de la novela de Kafka El castillo especialmente K.eran como  
moscas atrapadas que se movían en vano. Ahora, Snagov representaba algo similar  
para él, con el añadido de que su propia vida, la de su compañera y la de sus  
camaradas estaban constantemente amenazadas por los guardias armados del castillo  
rumano.  
En relación con este cambio de perspectiva de Lukács sobre el literato checo,  
Bastos, en su trabajo sobre Coutinho, releva la hipótesis de Löwy sobre el cambio  
valorativo del filósofo marxista:  
(...) Löwy assinala as mudanças ocorridas na leitura que Lukács fez de  
Kafka após o livro de 1957. Segundo Löwy essas mudanças devem  
ter sido influenciadas pela realização, em 1963 na cidade Checa de  
Liblice de um simpósio internacional sobre Kafka organizado por  
escritores e críticos literários comunistas. Lukács deve ter tido acesso  
a esse material publicado sob o título de Franz Kafka aus Prager Sicht  
em 1965, o que, entretanto, não pode ser comprovado (BASTOS,  
2018, p. 34).  
A su vez, Bastos (2018, p. 35-36) destaca que Lukács rechaza una polarización  
metafísicamente rigurosa entre realismo y vanguardismo y reconoce la frecuencia con  
la que se confunden sus límites, sin que eso presuponga un debilitamiento de la  
dicotomía esencial. En este sentido, el investigador brasileño define esta tensión  
dialéctica como un principio estético necesariamente histórico. Por ello, el cambio de  
perspectiva se encuentra en los propios fundamentos de la concepción filosófica de  
Lukács.  
En 1963, Lukács, en La peculiaridad de lo estético, ya explicita definitivamente  
su revalorización positiva del arte de Kafka. Allí, Lukács aprecia y distingue la forma  
en que el artista austro-húngaro objetiva los materiales en la plasmación de la obra.  
Ahora, la exaltación del terror interno del personaje kafkiano ante el caos del mundo  
no conduce a la cosificación del sinsentido, a la naturalización del absurdo, sino que  
la falta de expresividad y el accionar alienado del héroe producen indignación sobre  
el destino de la especie en el capitalismo tardío. En palabras del filósofo marxista:  
La orientación intimista es expresión de la recusación de concretas  
constelaciones o concretos hechos sociales, incluso cuando esa  
motivación se mistifica en la consciencia subjetiva como eterna  
relación humana entre la interioridad y el mundo externo. Y la  
verdadera intensidad artística de la expresión, la encarnación estética  
de una auténtica interioridad, requiere, aunque sea con una falsa  
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consciencia, esta relación con el mundo de la objetividad, y que esa  
relación, que desencadena la orientación hacia la interioridad, se haga  
vivenciable en la obra, de un modo u otro, aunque sea con un pathos  
de recusación. En esto tiene precisamente su fundamento la  
superioridad de Franz Kafka sobre otros autores contemporáneos de  
análogas aspiraciones. En todos estos casos, la interioridad, como  
fundamento de la subjetividad estética como tal, no tiene nada que  
ver con el pseudo-concepto de introversión, estéticamente tan  
confusionario (LUKÁCS, 1966, p. 343).5  
En este texto, el aspecto intimista de la literatura de Kafka ya no es analizado  
como una manifestación subjetivista, enajenada de la sociedad y, por ende, portador  
de una visión sesgada del mundo, propia de las tendencias irracionalistas. Todo lo  
contrario, Lukács observa que hay una vinculación con el mundo objetivo, aunque sea  
a través de “una falsa conciencia”.  
En este sentido, el filósofo marxista introduce la idea de “falsa conciencia” –  
presente en los héroes de las narraciones de Kafkapara dar cuenta del proceso de  
articulación artística del literato praguense. La “falsa conciencia” del héroe, a la que el  
filósofo alude, no es otra cosa que la mente evasiva de los personajes kafkianos, como  
Josef. K., Gregor Samsa, K., Georg Bendemann, Karl Rossmann. En este punto, puede  
trazarse una relación conceptual entre la idea de Lukács y el concepto de “fachada” o  
“yo mundano” del especialista en Kafka Walter Sokel.  
Según el crítico literario, los protagonistas de las narraciones se vinculan con el  
mundo objetivo a través de su “fachada” o “yo mundano”. Se trata de una construcción  
artificial de la personalidad del héroe que representa el ideal burgués de éxito social  
y que, en términos freudianos, compite con la figura de poder del padre y, en  
consecuencia, con otras figuras de poder dentro de la comunidad. Asimismo, según  
el crítico literario, el “yo mundano” reprime los anhelos escondidos de retornar a una  
inocencia infantil, los cuales, en su naturaleza, desean desembarazarse de la “fachada”  
del yo adulto. Sin embargo, la represión no puede sostenerse y la fuerza o tendencia  
verdadera erupciona, como “un retorno de lo reprimido”, contra la falsa conciencia del  
“yo mundano”, la cual culmina subvertida y hasta eliminada (SOKEL, 2002, p. 20),  
como acontece, por ejemplo, en La metamorfosis y en El proceso. De acuerdo con ello,  
Vedda (2022, p. 282) indica que  
El proceso no hay una ausencia plena de desarrollo, sino un nítido  
desarrollo descendente o, en términos más concretos, una regresión,  
5 El énfasis en la cita corresponde al autor del artículo.  
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Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica  
en virtud de la cual el personaje se convierte paulatinamente en cosa;  
y como un objeto inerte es tratado, precisamente, por sus verdugos  
al final de la novela.  
Por otro lado, por un sendero de análisis distinto, pero sin abandonar el método  
dialéctico marxista-lukacsiano, Coutinho llega a las mismas consideraciones que el  
filósofo nacido en Budapest, al considerar a Kafka como un realista crítico. Cabe  
destacar que el detallado ensayo del pensador brasileño, “Franz Kafka, crítico do  
mundo reificado” de 2005, tiene una versión primigenia, escrita en 1970 y publicada  
en 1976 en la revista Temas de Ciências Humanas n° 2, bajo el título “Kafka:  
pressupostos históricos e reposição estética”.  
Es menester indicar también que el joven Coutinho produce las ideas centrales  
de su trabajo con la intención de revalidar y rescatar la figura del escritor checo, que  
había quedado, en parte, vinculado al irracionalismo vanguardista en el ensayo de  
Lukács “¿Franz Kafka o Thomas Mann?”. Lo curioso es que Coutinho escribía contra  
las antiguas consideraciones de Lukács, ya que, para 1970, momento de la redacción  
de su trabajo, el filósofo húngaro ya había manifestado, hacía siete años, su  
revalorización de Kafka en el tomo dos de La peculiaridad de lo estético.  
Es comprensible y lógico suponer que, en los ’70, las demoras en la recepción  
de las obras eran naturales en los países periféricos, como los sudamericanos. No  
obstante, los análisis del pensador brasileño han contribuido con la detallada  
interpretación socio-histórico del contexto de producción de la literatura de Kafka. De  
hecho, le ha otorgado un sentido histórico al hermetismo del héroe kafkiano, a su  
desamparo y enajenación. Y desde ese enfoque, le ha consignado un rol fundamental  
en la literatura del siglo XX, al considerarlo un artista del realismo crítico.  
Coutinho describe con suma rigurosidad el ambiente sofocante de posguerra y,  
sobre todo, el proceso económico-social de transformación del capitalismo liberal al  
capitalismo monopólico, en el cual el héroe kafkiano se desenvuelve. El autor de  
“Marcel Proust e a evolução do romance” toma la idea adorniana, contenida en la frase:  
“Con su mirada descubre Kafka el monopolismo en los productos de desecho de la era  
liberal liquidada por aquel” (ADORNO, 1962, p. 275), y la desarrolla  
pormenorizadamente para ofrecer una lectura de la desesperación y alienación del  
protagonista.  
Asimismo, el teórico brasileño echa luz al formal hermetismo de la narrativa  
kafkiana con respecto a la historia, le otorga contexto a lo que Adorno (1962, p. 275)  
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describió como “un tabú sobre el concepto de esta [la historia]”. A partir de la  
interpretación histórica de las ensoñaciones literarias de Kafka, Coutinho le da un  
sentido concreto al confuso derrotero del protagonista. La incertidumbre y el horror,  
que se perciben en los ambientes oníricos de los relatos del literato, pueden  
entenderse con los prismáticos de la historia: la incipiente y vertiginosa transformación  
de los modos de producción de comienzos del siglo XX, que crecían a la par de las  
ideologías intolerantes, propicia las variables socio-históricas para que un personaje  
aturdido por su contexto en pleno cambio no pueda comprender esas nuevas formas  
de producción y lo conduzcan hacia una confusión y alienación constitutivas. A raíz de  
este trabajo con los materiales artísticos, Coutinho llega a la idea de que Kafka es un  
realista crítico en toda su magnitud, ya que ha podido decodificar la fragmentación  
humana y expresarla estéticamente en un lenguaje nuevo, en coincidencia con las  
nuevas tendencias de la época: el psicoanálisis, el cine mudo y las vanguardias  
artísticas.  
En esta línea de análisis, para el teórico marxista-lukacsiano, tampoco pasó  
inadvertido el leitmotiv de la narrativa kafkiana: la lucha del protagonista contra las  
figuras de poder. En este sentido, la confrontación del héroe con el padre y, luego, con  
los funcionarios fue interpretada en clave socio-histórica. En esta lucha, el individuo  
aislado no puede más que fracasar ante el implacable poder del padre, la burocracia y  
la ley; sin embargo, la tenacidad y la no claudicación del combate son características  
que enaltecen al héroe, pese a su inexorable derrota. En palabras de Coutinho (2005,  
p. 137):  
Embora reconhecendo, tal como o fazem os grandes realistas críticos,  
que o indivíduo isolado não pode triunfar na luta contra a alienação,  
Kafka não assume uma atitude fatalista e resignada diante do que  
chama de “lógica inabalável”. O seu “pessimismo da inteligência” se  
articula, como queria Gramsci, com um “otimismo da vontade”: da  
vontade de resistir e de protestar contra a injustiça que ele não deixa  
nenhuma dúvida a respeitoestá sendo praticada contra seu  
personagem.  
A la luz de estas observaciones, tanto el estudio de Lukács como el de Coutinho  
convergen, desde diversos derroteros, en la ponderación de la maestría artística de  
Franz Kafka. Por otro lado, esto demuestra, también, el acercamiento a la verdad  
histórica del método materialista dialéctico, al analizar con precisión un objeto de  
estudio determinado, en este caso, la narrativa kafkiana.  
Es primordial indicar que, ante el mutismo histórico de su obra, del cual Adorno  
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Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia asincrónica  
llamó la atención, la llave de acceso a la crítica realista está puesta en el análisis del  
protagonista. Lukács, Sokel y el propio Coutinho han reparado en él. Su incertidumbre,  
su extravío, la comprensión a medias de un mundo en constante y brutal cambio y su  
desamparo institucional han puesto en evidencia no solo el avasallante contexto, sino  
también la falsa conciencia del personaje con la cual se vincula con el mundo objetivo.  
Esta falsedad en la constitución de la personalidad del héroe evidencia su mistificación,  
sin embargo, al mismo tiempo, el héroe mantiene, en su tenacidad, una mínima luz de  
resistencia aunque no la llegue a comprender en su totalidadal confrontar con ese  
contexto desolador, que disuelve y arrasa voluntades.  
En este sentido la afirmación de Coutinho (2005, p. 139) “Entre o homem e a  
sociedade, no mundo de Kafka, não há uma relação de “terna indiferença” ou de  
“estranhamento” ontológico, como ocorre em Camus, mas uma luta de vida ou morte”  
está en la misma constelación teórica de las ideas del especialista en Kafka Sokel y,  
sobre todo, del filósofo húngaro. En su trayecto a la revalorización completa del artista  
praguense, Lukács puso énfasis en la vinculación del héroe kafkiano con el mundo a  
partir de su falsa conciencia. Y es a partir de esta construcción mistificada de la  
realidad, que hace el héroe en soledad, donde los análisis materialistas dialécticos  
confluyen para darle sentido artístico al desesperado y opresivo mundo de Kafka.  
En ese mundo hostil, el individuo lucha en soledad y tenazmente contra las  
figuras de poder. El personaje principal trata de imprimirle sentido a su devenir y de  
otorgarle una dirección: la confrontación. Ese pequeño haz de luz rebelde surge, se  
desarrolla e inexorablemente muere en el individuo aislado y alienado. En el fracaso  
del protagonista, se imprime la crítica realista de Kafka. La lucha por la igualdad y el  
progreso humanos solo puede ser exitosa en el colectivo; pero esa determinación en  
el héroe hubiera hecho de la literatura kafkiana una expresión más cercana a la  
agitación política que al arte crítico.  
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Verinotio  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 354-368 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 367  
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Como citar:  
ORLANTE, Emiliano. Lukács y Coutinho: lecturas sobre Kafka. Una confluencia  
asincrónica. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 354-368, Edição Especial,  
2022/2023.  
Verinotio  
368 |  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 354-368 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2020.v28.1.680  
Renovação do agnosticismo pela “epistemologia  
fronteiriça”: convergências entre a filosofia da vida  
da fase imperialista e a teoria decolonial do  
conhecimento de W. Mignolo  
The renewal of agnosticism by “border thinking”: some convergences between the  
vitalistic philosophy of the imperialist period and W. Mignolo's decolonial theory of  
knowledge  
Lara Nora Portugal Penna**  
Resumo: O artigo busca sustentar a tese de que  
W. Mignolo não consegue realizar seu principal  
objetivo: romper com padrões eurocêntricos na  
produção de conhecimento. Para atingir tal fim,  
o método empregado foi a análise imanente do  
livro “On Decoloniality” (2018). Foi proposto  
que o afastamento pretendido pelo autor não  
se efetiva, uma vez que sua teoria do  
conhecimento e solução epistemológica se  
configuram como uma renovação da filosofia da  
vida da fase imperialista. Com isso, Mignolo e  
sua “epistemologia de fronteiras” reproduzem  
os aspectos essenciais daquela tendência do  
pensamento burguês.  
Abstract: The article is aimed at supporting the  
thesis that W. Mignolo fails to achieve his main  
objective: breaking with Eurocentric standards  
in the production of knowledge. To achieve this  
end, the method employed was the immanent  
analysis of the book “On Decoloniality” (2018).  
It was proposed that the distance intended by  
the author does not materialize, since his theory  
of knowledge and epistemological solution are  
configured as a renewal of the philosophy of life  
of the imperialist phase. With this, Mignolo and  
his “epistemology of borders” reproduce the  
essential aspects of that tendency of bourgeois  
thought.  
Keywords: decolonial; border epistemology;  
philosophy of life; agnosticism; subjetivism.  
Palavras-chave: decolonial; epistemologia de  
fronteiras; filosofia da vida; agnosticismo;  
subjetivismo.  
Introdução  
O impacto recente do pensamento decolonial não pode ser subestimado em  
quase nenhum campo de produções acadêmicas. De fato, a recepção positiva dessa  
teoria é encontrada desde a filosofia (GARCIA, 2020), passando pela sociologia  
(CONNEL, 2012), pedagogia (PRADO, 2021), psicologia (ALVES, DELMONDEZ, 2015),  
até campos como a administração (LOUREDO, OLIVEIRA, 2022) e a economia  
(SANTOS, DARIDO, 2021). Para além da amplitude de áreas que receberam  
* Bacharel em Ciências Humanas e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),  
Juiz de Fora - MG, Brasil. E-mail: laranpenna@gmail.com.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Lara Nora Portugal Penna  
positivamente tal pensamento, é possível observar também que essa popularidade  
cresceu em anos recentes. Segundo o Google Acadêmico1, o termo “decolonial”  
apareceu em 3.200 artigos entre os anos de 2000 e 2010, e em 53.000 entre os  
anos de 2011 e 2023, sendo a maioria deles (45.900) publicados após 2017. A  
considerar alguns de seus principais autores, é observado um número de citações tão  
alto quanto 67.933 em Mignolo, 22.148 em Grosfoguel, 19.800 em Walsh e 47.015  
em Quijano.  
Os autores referidos acima são alguns dos membros do grupo  
“Modernidade/Colonialidade”, responsável pelo movimento que veio a ser conhecido  
como “giro decolonial”. Tal grupo, originando-se na América do Sul, expandiu-se para  
outros lugares com o objetivo de compreender a constituição e transformação da  
“retórica da modernidade” e, com isso, orientar trabalhos decoloniais, através de  
análises conceituais acadêmicas, que se esforçam em afastar-se da epistemologia  
ocidental, e se engajando em atividades não acadêmicas (MIGNOLO, 2018, p. 108)2.  
Para explicar a origem do movimento em questão, Ballestrin (2013) remonta a  
autores considerados como precursores essenciais das teorias pós-colonialistas, tais  
como Aimé Césaire, Albert Memmi, Franz Fanon, Edward Said, Partha Chatterjee,  
Dipesh Chakrabarty e Gayatri Spivak. Segundo o argumento da autora que parece  
ser aceito pela maioria daqueles que buscam remeter-se à origem do “giro decolonial”  
(QUINTERO et. al., 2019; DULCI; MALHEIROS, 2021) tais influências pós-coloniais  
foram decisivas para a formação do “giro decolonial” propriamente dito, através do  
grupo Modernidade/Colonialidade,  
Muito embora tenham ocorrido tais influências na origem do movimento,  
contudo, o grupo em tela rompeu, desde suas primeiras manifestações, com as teorias  
pós-colonialistas vigentes até então, valendo-se do argumento expresso,  
principalmente, por Walter Mignolo, “a voz mais crítica e radical do grupo”  
(BALLESTRIN, 2013), segundo o qual essas teorias não alcançaram o devido  
rompimento com padrões eurocêntricos (MIGNOLO, 1998).  
O giro decolonial emerge, então, da intenção de superar esse déficit e, assim,  
romper definitivamente com o que consideram padrões eurocêntricos na produção de  
1 Levantamento realizado em 15 de março de 2023.  
2 Todas as traduções referentes à obra On Decoloniality (2018) são da própria autora.  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
conhecimento. Mignolo oferece o argumento de que “o eurocentrismo não é um  
problema geográfico, mas epistemológico e estético (controle do conhecimento e das  
subjetividades)” (MIGNOLO, 2018, p. 125, tradução própria). Na mesma direção,  
Quijano afirma: “a repressão promovida pelo colonialismo europeu atingiu, sobretudo,  
os modos de saber, de produção do conhecimento” (QUIJANO, 2007, apud  
CHAMBERS, 2020, p. 4, tradução própria).  
Assim sendo, considerações epistemológicas estão no cerne da obra desses  
pensadores. Tomando como objeto de análise Walter Mignolo, o “principal expoente”  
(DOMINGUES, 2009) dessa teoria, nota-se que na obra do autor o debate  
epistemológico se constitui de um duplo movimento: recusa da epistemologia  
ocidental e proposta de uma epistemologia decolonial. Assim, por um lado, Mignolo  
critica a epistemologia enquanto constituinte da colonialidade do saber e do ser  
(MIGNOLO, 2018, p. 148) e parte fundamental da expansão do ocidente (MIGNOLO,  
2018, p. 137), vendo-a como um “fragmento da cosmologia ocidental” (MIGNOLO,  
2018, p. 136).  
Por outro, a proposição positiva do autor é, ainda, epistemológica: “a gnose  
liminar constrói-se em diálogo com a epistemologia a partir de saberes que foram  
subalternizados nos processos imperiais coloniais” (MIGNOLO, 2003, p. 34). O  
resultado disso seria uma epistemologia decolonial que partiria de uma “decolonização  
epistemológica enquanto decolonialidade” (MIGNOLO, 2018, p. 121). Dessa forma,  
praticar o “pensamento fronteiriço” (MIGNOLO, 2018, p. 125) ou “epistemologia  
fronteiriça” (MIGNOLO, 2017, p. 23) é a tarefa decolonial por excelência, que tem como  
foco “a epistemologia e o conhecimento, e não o Estado” (MIGNOLO, 2018, p. 121) –  
e nem as relações sociais de produção.  
Diante da importância das questões epistemológicas para esses autores, as  
críticas a eles endereçadas também tendem a reforçar esse destaque. É possível  
encontrar autores, como Freitas (2019) e Cusicanqui (2010), que buscam avaliar a  
coerência da proposição epistemológica de Mignolo, sobretudo por defender os  
espaços subalternizados como lócus do conhecimento enquanto ele próprio pertence  
e atua no universo acadêmico norte-americano.  
Há também autores a apontar que os pressupostos analíticos da crítica que levam  
à proposta de "epistemologia de fronteiras" são reducionistas e faltam em  
complexidade. Nessa linha de argumentação, Domingues (2009) problematiza as  
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concepções reducionistas acerca da modernidade em Mignolo, que tornariam absoluto  
o aspecto da dominação e desconsiderariam o da emancipação. Já Chambers (2020)  
evidencia a falta de rigor com a qual Mignolo e outros autores decoloniais envolvidos  
na tese da “colonialidade do saber” criticam a epistemologia ocidental.  
Outra linha crítica da teoria decolonial problematiza uma espécie de privilégio  
epistêmico fortemente associado a uma visão essencialista de grupos não-europeus,  
contida na ideia de epistemologia de fronteiras. Nesse sentido, argumentam que na  
base da crítica de Mignolo se encontra uma visão idílica de grupos subalternos, ao  
colocá-los em um lugar privilegiado na produção de conhecimento, a partir de um  
critério subjetivista segundo o qual esses povos produziriam “saberes emancipados”  
exatamente por terem vivenciado a exploração colonial. Tal argumento pode ser  
encontrado em Browitt (2014), Cheah (2006) e Orellana (2015).  
Apesar das críticas, indicadas sinteticamente acima, trazerem à tona elementos  
relevantes, elas não chegaram a avaliar em que medida Mignolo realiza seu objetivo  
mais essencial: romper com “padrões eurocêntricos” na produção do conhecimento.  
Isto é, salvo melhor juízo, não foi realizada, até o momento, uma tentativa de investigar  
se o autor consegue, de fato, se distanciar das teorias que pretende combater –  
especialmente no nível epistemológico, já que este é o ponto chave de sua propositura.  
A partir da constatação dessa lacuna, o presente artigo objetiva realizar uma  
crítica da epistemologia (no sentido amplo de teoria do conhecimento) de Walter  
Mignolo, buscando sustentar a tese de que esse afastamento pretendido entre a  
epistemologia do autor e a epistemologia ocidental/eurocêntrica” não se realiza, de  
fato. Esta tese se justifica por um exame prévio da obra do autor no qual foram  
identificados, em sua teoria do conhecimento, elementos muito característicos da  
filosofia hegemônica europeia3 na transição entre os séculos XIX e XX. É possível  
ressaltar na teoria do conhecimento do autor, sobretudo, fortes semelhanças com a da  
chamada “filosofia da vida” – uma tendência irracionalista no pensamento burguês que  
tem origem no período imperialista, sobretudo na Alemanha.  
3
Temos como pressuposto a recusa à ideia de Mignolo de que exista uma “epistemologia ocidental”  
no singular, o que elimina as disputas e conflitos existentes no pensamento ocidental ao longo de seu  
longo e complexo itinerário. Ao buscar demonstrar em que medida a teoria do conhecimento do autor  
decolonial e a de uma ideologia burguesa se assemelham, pretende-se, simplesmente, trazer à tona que  
o pensador argentino está longe de empreender um rompimento efetivo com o que ele próprio  
consideraria “padrões eurocêntricos”.  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
Neste ponto, uma observação é importante. O pensamento configurado na  
filosofia da vida irá influenciar inúmeros autores desde simultaneamente a sua  
elaboração inicial até os dias de hoje influência que frequentemente ocorre com  
muitas mediações, ou seja, não se trata de um processo linear, ao contrário. Assim,  
para que seja possível e efetiva uma comparação entre um autor tão contemporâneo  
quanto Mignolo e as tendências filosóficas a serem expostas aqui, é preciso sempre  
ter em mente o modo complexo com que se revestem as relações entre a proposta  
decolonial e tendências filosóficas que emergiram por mais paradoxal que possa  
parecer justamente no continente europeu em um determinado contexto de sua  
história. Com isso em mente, o presente artigo se propõe a ser uma primeira  
aproximação ao problema das influências atuantes no pensamento de Walter Mignolo.  
Por este motivo a análise se limita a abordar a relação do teórico em tela com a filosofia  
da vida clássica. Em outra oportunidade, será possível avançar em direção à apreensão  
de mediações mais contemporâneas.  
Com efeito, o restante do artigo estará dividido em cinco partes. Na primeira,  
serão indicadas as questões de método. Na segunda, será recuperada a análise de  
Lukács em A destruição da razão para apreender as características da filosofia da vida.  
Na terceira, será feita a exposição do pensamento de Mignolo, com foco na sua teoria  
do conhecimento. Na quarta, serão retomados os aspectos da filosofia da vida que  
permitirão elaborar as aproximações com o autor decolonial. Na quinta, serão  
apresentadas as conclusões.  
Sobre o procedimento de análise  
Para alcançar o objetivo pretendido o trabalho teve como base os ensinamentos  
de dois autores responsáveis por, entre outros méritos, evidenciar o caráter ontológico  
da obra marxiana Lukács (1979, 2010, 2012, 2013, 2020) e Chasin (1978, 2009).  
Estes autores nos legaram uma forma de analisar objetos ideológicos baseada em um  
tripé metodológico: análise imanente, análise da gênese e análise da função das  
formações ideais. O presente artigo se limita a empregar a primeira para servir ao  
propósito de investigar a natureza do pensamento de Mignolo. Este método constitui  
uma forma de abordagem que busca apreender o em-si do material analisado em suas  
fundamentais. Com isso, se buscou desvelar o problema por meio da submissão ativa  
da subjetividade à objetividade do texto, capturando suas conexões internas e  
estrutura própria. Segundo Chasin (2009),  
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tal análise (...) encara o texto a formação ideal em sua consistência  
autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o  
conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas  
afirmações, conexões e suficiências, como também as eventuais  
lacunas e incongruências que o perfaçam (CHASIN, 2009, p. 26).  
Dessa forma, a análise imanente também conduz a uma crítica imanente, uma  
crítica às dificuldades da “expressão objetivada do pensamento” (Lukács, 2020, p. 10)  
em questão. Para essa análise e crítica, o estudo teve como foco o livro mais recente  
de Mignolo: On decoloniality: concepts, analytics, práxis (2018) do qual é coautor,  
mas só os escritos da segunda parte, de sua autoria, serão considerados. O recorte  
temporal, isto é, seu livro mais recente se justifica pela suposição de que ele contenha  
suas concepções da maturidade, já que a pesquisa prévia revelou que a extensa obra  
do autor em questão passou por alguns reposicionamentos.  
A título de um exemplo relevante para o tema do trabalho, um desses casos é o  
abandono da concepção de “hermenêutica pluritópica”. Como mostra Alcoff (2017),  
conceito que foi empregado por Mignolo em obras mais antigas, para sugerir uma  
alternativa à epistemologia ocidental, a partir da ideia de que a hermenêutica “poderia  
ser curada de seu eurocentrismo e fornecer uma alternativa real aos padrões  
monográficos e imperiais de referência unificada” (ALCOFF, 2017, p. 46). A autora  
explica que essa concepção foi abandonada, pois Mignolo chegou, recentemente, à  
conclusão de que tanto a hermenêutica quanto a epistemologia precisam ser  
transcendidas, configurando para isso a noção de “pensamento de fronteira”. Contudo,  
de acordo com o objetivo do presente artigo, ao longo da exposição do pensamento  
de Mignolo, será possível problematizar em que medida esse afastamento se realizou.A  
teoria do conhecimento da filosofia da vida  
A filosofia da vida não se configura em uma escola de pensamento, mas, sim, em  
uma tendência filosófica considerada por Lukács a mais influente do período  
imperialista. Para compreender suas características, é necessário ter em mente o  
contexto filosófico do período em tela, especialmente no que diz respeito às questões  
relacionadas a teoria do conhecimento, que são o foco da presente análise.  
O argumento do autor húngaro é que a teoria do conhecimento da filosofia da  
vida não avança para além do idealismo subjetivo4, marcado pela “incognoscibilidade,  
4 O idealismo subjetivo tem como representantes importantes Kant, Fichte e Jacobi. Para esta corrente,  
“a concretude, que se apresenta como uma efetividade dada, é concebida em essência como produto  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
a não existência, a impensabilidade de uma realidade objetiva que independe da  
consciência” (LUKÁCS, 2020, p. 358). No entanto, este em sua forma clássica ainda  
realizava um debate com a realidade objetiva, mesmo que com o fim de afirmar sua  
incognoscibilidade. Vale lembrar, nesse sentido, as oscilações de Kant em relação ao  
materialismo sem jamais abandonar o idealismo. Já seus desdobramentos, como a  
própria filosofia da vida, são marcados pela intensificação do irracionalismo diante da  
coisa em-si. Isto é, há, para os pensadores reacionários, cada vez menos necessidade  
de considerar efetivamente a objetividade. Como será exposto, isso acarreta, por  
exemplo, no surgimento do problema das pseudo-objetividades míticas, explanado por  
Lukács.  
A despeito desse desdobramento contudo, as marcas essenciais da teoria do  
conhecimento da filosofia da vida permanecem: o agnosticismo e o subjetivismo,  
aspectos correlacionados dos quais se desdobram muitos outros, como o relativismo  
e o anticientificismo, a serem abordados.  
Considerando o contexto filosófico da época, é necessário lembrar que o  
idealismo subjetivo ocupa lugar central na teoria do conhecimento do período de  
decadência ideológica da burguesia. No período pré-imperialista, os debates em torno  
da teoria do conhecimento estavam na ordem do dia. Por meio da posição no debate,  
no plano desta teoria, entre a dialética idealista e o irracionalismo, por exemplo, se  
revelavam questões concretas de posicionamento filosófico sobre temas essenciais,  
como a concepção da história.  
No entanto, antes da decadência existiam muitas vertentes gnosiológicas  
disputando o lugar central, mas com a derrota do idealismo objetivo5, com o fim da  
universalidade do materialismo mecanicista etc., o idealismo subjetivo passa a uma  
hegemonia quase absoluta e, em consequência, a filosofia fica profundamente  
permeada por tendências relativistas e agnosticistas. Após a crise, principalmente, do  
sistema hegeliano, tais tendências passaram a predominar,  
como se a necessária renúncia à sistematização idealista significasse,  
da subjetividade cognoscente, enquanto o em-si deve permanecer para todo conhecimento um fantasma  
inalcançável ou um além sempre abstrato” (LUKÁCS, 2018, p. 54).  
5
O grande representante do idealismo objetivo é Hegel, mas pode-se mencionar também os esforços  
de sistematização inicial do jovem Schelling. Este idealismo, especialmente, o hegeliano “pretende  
reconhecer a realidade objetiva como independente da consciência humana e expressá-la  
filosoficamente numa forma dialeticamente racional” (LUKÁCS, 2011, p. 57), contudo, nesta concepção,  
a própria objetividade aparece como algo de “natureza espiritual, mental” (LUKÁCS, 2011, p. 58).  
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ao mesmo tempo, a renúncia à objetividade do conhecimento, às  
conexões reais dentro da realidade e à sua cognoscibilidade (LUKÁCS,  
2020, p. 281-2).  
Lukács esclarece que, antes do imperialismo, o idealismo subjetivo correspondia  
a uma razão social: permitia aos filósofos burgueses se utilizar do progresso das  
ciências em um sentido favorável aos capitalistas “ao mesmo tempo em que se furtam  
de tomar uma posição ideológica diante da nova imagem do mundo daí derivada”  
(LUKÁCS, 2020, p. 337). Contudo, no período imperialista essa necessidade ideológica  
da burguesia se altera já que passa a haver uma necessidade de se colocar contra o  
materialismo e, portanto, “a simples “abstenção” em questões ideológicas não é mais  
suficiente(LUKÁCS, 2020, p. 338).  
Surge, assim, no período imperialista, o que Lukács se refere como necessidade  
de visão de mundo, essencialmente distinta das ideologias do período ascensional da  
burguesia. Neste, as visões de mundo se configuravam como reflexos da realidade  
objetiva mesmo que tenham sofrido deformações causadas pelo idealismo. Naquele,  
as visões de mundo passam a se basear  
numa teoria do conhecimento agnóstica, na recusa de que a realidade  
objetiva seja cognoscível; por isso ela não pode ser outra coisa senão  
um mito: algo inventado subjetivamente, mas com pretensões de  
constituir uma objetividade insustentável do ponto de vista da teoria  
do conhecimento , uma objetividade que só pode se apoiar em  
fundamentos extremamente subjetivistas, na intuição etc., e que, por  
isso, só pode ser uma pseudo-objetividade (LUKÁCS, 2020, p. 339).  
A filosofia da vida entra em cena nesse contexto no qual a luta filosófica da  
burguesia deixa de se limitar a “expurgar da filosofia as questões relativas a uma visão  
de mundo” (LUKÁCS, 2020, p. 355). Essa nova ideologia satisfaz, justamente, a  
necessidade de construção de tal visão, desencadeada pela crise iminente no período  
imperialista, quando um período de estabilidade burguesa não estava mais no  
horizonte.  
Diante da iminência da crise, então, os intelectuais burgueses que virão a ser os  
precursores da filosofia da vida e que, dada a classe que pertenciam, “foram agraciados  
com uma cegueira “benéfica” para os sinais que anunciariam as mudanças e as crises  
sociais (...)” (LUKÁCS, 2020, p. 354) dão à mesma a forma de uma crise da cultura.  
Esse modo de pensar forneceu, assim, para a intelectualidade burguesa, “uma fuga do  
caráter socioeconômico da própria crise objetiva” e um “elemento da hostilidade ao  
progresso” (LUKÁCS, 2020, p. 354), o que veio a gerar as críticas ao capitalismo  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
denominadas por Lukács de românticas, no sentido de apontarem para alguns  
aspectos culturais que geram desde o “mal-estar” em relação às questões morais,  
sempre no plano individual, mas deixam intactos os fundamentos daquele modo de  
produção.  
Em termos de necessidade ideológica, a filosofia da vida parte da atualização do  
idealismo no agnosticismo moderno que é a marca do período:  
na medida em que a questão clássica fundamental da teoria do  
conhecimento a da relação entre ser e consciência vai sendo pouco  
a pouco desfigurada e submetida ao postulado estreito da oposição  
entre o entendimento (a razão equiparada ao entendimento e  
reduzida aos termos do entendimento) e a apreensão efetiva do ser,  
torna-se possível empreender uma crítica ao entendimento, à tentativa  
de ultrapassar os limites do entendimento, mantendo incólumes os  
fundamentos do idealismo subjetivo. A chave para todas as  
dificuldades pode ser encontrada no conceito de “vida”,  
especialmente quando, como é sempre o caso da filosofia da vida,  
esse é identificado com o de “vivência” (LUKÁCS, 2020, p. 358-9).  
A partir do conceito de “vida”, então, da perspectiva da teoria do conhecimento  
passa a ocorrer, na filosofia da vida, uma confusão entre objetividade e subjetividade.  
Isso porque a visão de mundo em questão exige uma  
imagem de mundo concreta e sistêmica da realidade, uma imagem da  
natureza, da história, do homem. Os objetos aqui postulados, do  
ponto de vista da teoria do conhecimento dominante, só podem ser  
criados pelo sujeito, mas, ao mesmo tempo, para que a necessidade  
de uma visão de mundo seja satisfeita, eles têm de surgir à nossa  
frente como objetos fundados na objetividade do ser. O lugar central  
que a “vida” assume no interior desse método filosófico – em especial  
naquelas formas específicas pelas quais a vida é sempre subjetivada  
como “vivência” e a “vivência” objetivada como vida – é o que  
possibilita essa confusão insustentável perante uma crítica  
gnosiológica efetiva entre subjetividade e objetividade (LUKÁCS,  
2020, p. 360).  
Segue-se que, de forma mais precisa, a filosofia da vida lança mão do conceito  
da vida em sua forma subjetivada, a chamada “vivência”. Esta  
e seu órgão, a intuição, o irracional como seu objeto “natural”, podiam,  
mediante um passe de mágica, fazer aparecer todos os elementos  
necessários a uma “visão de mundo” sem, de fato, de modo não  
declarado, precisar renunciar ao agnosticismo da filosofia subjetivo-  
idealista, à negação de uma realidade independente da consciência,  
imprescindível na defesa contra o materialismo (LUKÁCS, 2020, p.  
359).  
A partir disso passa a haver um “apelo à plenitude a vida, da vivência perante a  
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nova fase  
Lara Nora Portugal Penna  
pobreza do entendimento” (LUKÁCS, 2020, p. 359)6. Donde, no nível conceitual isso  
se expressa em uma contraposição entre vivência e entendimento, na qual há uma  
valoração que glorifica apenas o que tem origem no primeiro polo. Uma das  
consequências disso é que se forma um “pseudo-objetivismo, uma aparente superação  
da oposição entre idealismo e materialismo” (LUKÁCS, 2020, p. 359), o que não é  
uma característica específica da filosofia da vida, mas uma “aspiração filosófica geral  
do período imperialista” (LUKÁCS, 2020, p. 359). Assim, quando este período está  
prestes a se iniciar, surge essa terceira via filosófica que, no entanto, é apenas uma  
forma de renovar o idealismo, já que não sai do âmbito de estabelecer a “dependência  
gnosiológica do ser em relação à consciência, ou seja, o idealismo” (LUKÁCS, 2020, p.  
359-60).  
Os referidos problemas da pseudo-objetividade e da confusão entre objetividade  
e subjetividade são agravados, ainda, “no momento em que a ideia do mito é inserida  
na formação conceitual da filosofia”7 (LUKÁCS, 2020, p. 360). O mito desperta a ilusão  
acrítica de que  
pode representar um tipo particular de objetividade, a despeito de  
suas origens subjetivas, do caráter subjetivo de sua vigência (seu “ser”  
está ancorado na fé). O novo conceito central da filosofia, justamente  
em virtude da já mencionada confusão entre subjetividade e  
objetividade (vivência e vida), reforça essas ilusões, dando a elas certo  
acento contemporâneo: é como se justamente essa época estivesse  
sendo chamada a refundar o mundo privado de Deus, transformado  
num deserto pela razão, uma refundação que a partir da “vivência” e  
da “vida” e com as novas figuras de um novo mito, apontasse novas  
perspectivas e trouxesse um novo sentido. Em suma: a essência da  
filosofia da vida consiste em transformar o agnosticismo em  
misticismo, o idealismo subjetivo na pseudo-objetividade do mito.  
(LUKÁCS, 2020, P.360)  
Nessa filosofia, o lugar de destaque da “vivência” torna problemática ainda uma  
6 Acerca dessa característica, em outro momento Lukács esclarece que “s. A visão de mundo da filosofia  
da vida, com seu contraste entre o vivo, por um lado, e o morto, o petrificado, o mecânico, por outro,  
assume a tarefa de “aprofundar” todos os problemas reais na medida necessária para desviá-los dessas  
consequências sociais evidentes” (LUKÁCS, 2020, p. 261) – isto é, a necessidade de superação do  
modo de produção capitalista.  
7
Lukács explica, na sessão sobre Nietzsche, que este foi o responsável por tal inserção do mito na  
filosofia. Entre eles, o tema da corporalidade é essencial. Aquela “variante moderna do agnosticismo  
torna-se mística e criadora de mitos. É impossível subestimar aqui a influência decisiva de Nietzsche na  
evolução do conjunto do pensamento imperialista: poder-se-ia mesmo dizer que ele criou o arquétipo  
da mitificação. (...) insistiremos no papel que neles [nos mitos] desempenham o corpo e a carne.  
Nietzsche rompe efetivamente com a espiritualidade abstrata e a moral pequeno-burguesa da filosofia  
oficial. Sua teoria do conhecimento e sua moral afirmam e defendem os direitos do corpo, sem fazer  
nenhuma concessão ao materialismo filosófico. Ora, o aspecto filosófico de um corpo assim privado de  
toda matéria só pode ser mítico” (LUKÁCS, 1967, p. 48-9)  
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outra questão: “qualquer filosofia que repouse sobre a vivência terá de ser  
essencialmente intuitiva, e a intuição é uma faculdade que apenas os eleitos, os  
membros de uma nova aristocracia, supostamente possuem” (LUKÁCS, 2020, p. 362).  
Essa teoria do conhecimento então, é “por princípio aristocrática” (LUKÁCS, 2020, p.  
362).  
Por essa crítica ao viés intuitivista, o autor marxista não pretende defender um  
abandono completo da intuição, por um lado, e nem uma exaltação unilateral da razão,  
por outro. No entanto, na relação da intuição com o método científico, trata-se de  
reconhecer que ambas são importantes, cada uma a sua maneira, em que é sublinhado  
que a primeira não é legitimamente um órgão do conhecimento e nem parte  
constituinte deste método, uma vez que  
A uma consideração superficial pode parecer que a intuição seja mais  
concreta e produtiva do que o pensamento discursivo abstrato  
baseado em conceitos. No entanto, isso é apenas uma aparência, pois  
em termos psicológicos a intuição nada mais é do que a súbita  
passagem à consciência de um processo intelectual até então  
conduzido de modo parcialmente inconsciente. Objetivamente, ela  
nunca pode ser dissociada do processo do trabalho consciente, o qual,  
em sua maior parte, é consciente. E para o pensamento científico  
consciencioso é uma tarefa fundamental, em relação às conquistas da  
intuição, em primeiro lugar, averiguar tanto a sua consistência em  
termos de conteúdo teórico e, em segundo, enquadrá-las no sistema  
dos conceitos racionais, de modo que, depois, eles não possam mais  
ser diferenciados daqueles conceitos que foram obtidos por meio da  
faculdade dedutiva (consciente) e daquilo que fora obtido com a ajuda  
da intuição (no limiar da consciência, numa etapa anterior ao processo  
tornado consciente). Portanto, na realidade, a intuição, em seu devido  
lugar, como momento psicológico do processo de trabalho é, por um  
lado, o resultado complementar do pensamento conceitual e não seu  
oposto; por outro, os achados intuitivos de uma conexão não  
constituem nunca um critério de verdade (LUKÁCS, 2020, p. 371-2).  
Já no caso da filosofia da vida há uma teoria do conhecimento intuicionista que  
passa a refutar críticas “meramente conceituais”, às quais faltaria o elemento irracional.  
Com essa apreensão intuitiva da “realidade”, essa teoria do conhecimento justifica sua  
própria arbitrariedade, pois o que é apreendido dessa maneira necessariamente não é  
objetivo.  
A partir dessas visões, o conhecimento científico passa a ser equiparado a outros  
“saberes”, isto é, quaisquer conhecimentos que se baseiam em crenças e experiências  
subjetivas. Lukács nos lembra que tal tipo de visão consegue angariar influência  
apenas na medida em que há  
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um ambiente marcado pela corrosão da confiança na razão e no  
entendimento, pela destruição da fé no progresso, pela credulidade  
diante do irracionalismo, do mito e do misticismo. E é justamente na  
criação dessa atmosfera filosófica que reside a contribuição da  
filosofia da vida (LUKÁCS, 2020, p. 363)  
Uma importante consequência dessa postura diante da objetividade e do  
conhecimento objetivo é que predomina no imperialismo um forte relativismo,  
chamado por Lukács de ceticismo em sua versão moderna. Este não é como um  
ceticismo a exemplo do que, na Idade média, serviu para questionar a ordem social  
em um sentido progressivo, mas um ceticismo que ao depreciar o conhecimento  
objetivo, cria, mesmo que seus autores não tenham essa intenção consciente, um  
ambiente propício para “obscurantismo reacionário mais devastador, para a mística  
niilista da decadência imperialista” (LUKÁCS, 2020, p. 389). Ademais, ele é “a  
autodefesa da filosofia imperialista contra o materialismo dialético” (LUKÁCS, 2020, p.  
389-90).  
Esse relativismo se expressa, ainda, nas tipologias comuns ao período. Lukács  
explica que como esses autores adotam pressupostos teóricos e metodológicos com  
os quais é impossível apreender os nexos reais da história e, com isso, ao negar a sua  
legalidade e, acima de tudo, a possibilidade de demonstrar um progresso, eles tentam  
expressar tais nexos por meio de tipologias o que reflete perfeitamente o relativismo.  
Essa forma de expressão possui um duplo aspecto: possibilita uma “abstenção de  
juízo” que, na verdade, mascara uma tomada de posição contra o materialismo; e a  
construção de figuras, nessa tipologia, que “aparecem como o ator principal da  
história” (LUKÁCS, 2020, p. 381)  
Além disso, a teoria do conhecimento da filosofia da vida refletia a característica  
comum à época imperialista de cumprir a função de ser um meio, um instrumento para  
o combate à teoria marxista. Este combate, entretanto, se dá de forma vulgar, em um  
nível de debate extremamente precário, através do qual se procura combater um  
adversário, na realidade, incompreendido. A partir desta disputa, por um lado os  
autores se veem na posição de recusar a proposição prática contida no marxismo; por  
outro, não era mais sustentável ignorar as problemáticas geradas pelo capitalismo.  
Assim, nessa contraposição, a filosofia burguesa procura  
fazer regredir de modo irracionalista o progresso objetivo, cujo reflexo  
intelectual é a dialética e seus continuadores; e, de fato, se  
observarmos a essência e não a forma externa dessa contraposição,  
veremos que se trata agora de eliminar filosoficamente o materialismo  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
histórico e dialético (LUKÁCS, 2020, p. 358)  
Ao mesmo tempo, o resultado de não poder ignorar tais problemáticas é uma à  
apologética indireta do capitalismo, que se origina em Schopenhauer e Nietzsche: “a  
defesa do sistema capitalista por meio do reconhecimento e do realce de seus aspectos  
mais perversos, mas, ao mesmo tempo, porém transformando-os numa contradição  
cósmica” (LUKÁCS, 2020, p. 400). Por isso esses autores mesclam “um radicalismo  
puramente ideal com uma adaptação prática absoluta a circunstâncias injustificáveis”  
(LUKÁCS, 2020, p. 400-401).  
A teoria decolonial do conhecimento de Walter Mignolo  
Uma vez esclarecidos os aspectos centrais da teoria do conhecimento da filosofia  
da vida, cabe, agora, expor a teoria decolonial apresentada pelo autor argentino Walter  
Mignolo. Com essa exposição, os elementos mais marcantes da sua epistemologia  
começarão a ser ressaltados, o que servirá de base, na sessão seguinte, para uma  
elaboração mais precisa acerca da aproximação proposta entre as duas teorias do  
conhecimento trazidas à baila no presente artigo.  
Mignolo, na introdução a seus escritos em “On Decoloniality: concepts, analytics,  
práxis” (2018), elabora um esclarecimento que se tornará basilar ao longo de todo o  
texto, e particularmente útil para compreender sua teoria do conhecimento: o objetivo  
do livro é elucidar a “opção decolonial” no âmbito do pensamento e da prática, na  
versão específica dos autores que se guiam pelo aparato conceitual  
“modernidade/colonialidade/decolonialidade”; trata-se, então, da apresentação de  
uma vertente, e não da tentativa de representar toda a teoria. Isso porque, no  
pensamento de Mignolo,  
“representação” é uma palavra tóxica no vocabulário da modernidade  
e epistemologia moderna. Por quê? Porque representação pressupõe  
um mundo ou realidade constituídos que de alguma forma são  
representados e, então, diferentes escolas ou pessoas na vida  
cotidiana fornecem diferentes interpretações de algo que é objetivo e  
real. Se o decolonial é argumentado como uma opção, é porque a vida  
é vivida entre opções, e opções são construídas por pessoas e  
instituições de acordo com suas próprias suposições e interesses  
(MIGNOLO, 2018, p. 108-9)  
Nota-se que desde o início já se busca esclarecer o que põe essa teoria em  
movimento: um aparato conceitual com o qual se espera atingir um afastamento da  
epistemologia ocidental, e uma teoria do conhecimento guiada pela crítica à ideia de  
que o processo de conhecimento envolve uma representação de algo objetivamente  
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existente. A elucidação desses dois pontos será o cerne desta sessão. A seguir, será  
explicada a argumentação do autor argentino acerca da necessidade de afastamento  
da epistemologia ocidental que, segundo ele, é possibilitado pela tríade conceitual  
“modernidade/colonialidade/decolonialidade”. Paralelamente, essa explicação  
permitirá evidenciar os aspectos mais importantes da teoria do conhecimento do autor.  
Ao possível questionamento sobre as razões que levaram-no a expressar o  
conceito dessa maneira, ou seja, entre duas barras, Mignolo responde que a barra que  
une e separa os conceitos procura fazer menção à inseparabilidade dos processos em  
evidência, que, uma vez atravessados pelos mesmos “fluxos e energias” (MIGNOLO,  
2018, p. 139), não podem ser tratados de forma independente. Além disso, para ele,  
usar uma tríade conceitual já é um reflexo de pensar de forma decolonial, pois na  
epistemologia ocidental é comum que os conceitos constituam uma díade (MIGNOLO,  
2018, p. 109). Esse aparato significaria, assim, um exercício decolonial que permitiria  
o afastamento de uma epistemologia eurocêntrica construída, dentre outras coisas,  
através de díades e binarismos. Feita a ressalva sobre a conexão entre esses processos,  
cabe explicar como o autor compreende cada momento da tríade conceitual.  
O primeiro desses conceitos, a modernidade, é, para ele, essencialmente, uma  
ficção, uma invenção do Ocidente. Este argumento se relaciona a uma discussão sobre  
o papel que a ideia de modernidade já desempenhou no Ocidente, desde ser utilizada  
para justificar que certas formas de colonização ocorrem com o objetivo de tornar  
modernos povos que não o são, até para, relacionado a isso, tratar o período moderno  
como um ponto de chegada universal. Mignolo argumenta que, para o pensamento  
decolonial, entretanto,  
a moldagem da modernidade enquanto o desdobramento da história  
universal é encenada como se houvesse uma entidade ou período  
histórico separado do lado de fora e independente da narrativa que  
legitima ações e tomada de decisões para manter a marcha histórica,  
quando, em termos decoloniais, isso é uma ilusão criada pelo próprio  
conceito de modernidade (redundância necessária: modernidade é um  
conceito moderno). Os Astecas, é com frequência mencionado e  
condenado, sacrificavam corpos humanos para manter o Sol em  
andamento. A modernidade ocidental sacrifica (e é aceito) o que quer  
que seja necessário para manter a Civilização em andamento. As  
consequências da palavra (e das narrativas tecidas em torno dela)  
resultam na invenção de uma ontologia da história que se estende  
desde a origem da humanidade até os seus tempos e formas  
modernos (e pós-modernos) (MIGNOLO, 2018, p. 117).  
Com isso, o autor estende as considerações iniciadas ao abordar a representação  
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para o tratamento da modernidade: continua a argumentar a favor da inexistência de  
uma realidade independente da consciência. Nesse sentido, é importante para o  
pensamento do autor a ideia de uma ontologia da história inventada:  
Como a modernidade foi construída através de narrativas ficcionais  
nas quais a própria modernidade é o ator principal, a palavra nomeia  
um período histórico e um conjunto de normas que definem a  
organização socioeconômica assim como sujeitos e subjetividades  
particulares. Ficção se torna realidade (MIGNOLO, 2018, p. 118)  
Logo, argumenta-se que o que costuma ser utilizado como um referencial em  
termos de tempo histórico é uma narrativa ficcional que, apesar de sua irrealidade,  
exerce influência na organização socioeconômica e na conformação de subjetividades  
específicas através do “poder” próprio às narrativas. Além disto, outro elemento da  
modernidade seria uma retórica cujo objetivo é nos persuadir “através de promessas  
de progresso, crescimento, desenvolvimento e inovação dos objetos” (MIGNOLO,  
2018, p. 139). Então, para que a manipulação envolvida na construção da  
modernidade possa obter sucesso, entram em cena promessas enganadoras que  
ocultam tal manipulação nisto reside o entendimento do autor acerca do progresso  
em sua concepção burguesa. Este é, também, ao lado do desenvolvimento, da razão e  
da “conversão” (no sentido da colonização), uma narrativa (MIGNOLO, 2018, p. 171),  
uma espécie de “tática de discurso” da modernidade assim compreendida.  
Essa retórica cujo objetivo é nos persuadir é composta de três domínios  
conectados entre si. No primeiro, a ideia de representação “fundamenta seu poder na  
própria ideia de que signos representam algo existente” (MIGNOLO, 2018, p. 139). O  
autor relaciona essa crença [de que a representação se refira a algo objetivamente  
existente] ao argumento de que “aquele que tem o privilégio de nomear e implementar  
Sua nomenclatura é capaz de administrar o conhecimento, a compreensão e a  
subjetividade” (MIGNOLO, 2018, p. 139). No segundo, “um conjunto de discursos  
retóricos destinados a te persuadir de que o mundo é como o campo de representação  
te diz ser” (MIGNOLO, 2018, p. 139). Enfim, em terceiro, “o sistema de representação  
e a retórica transmitindo as promessas da modernidade apoiam um conjunto de  
designs globais cuja implementação garantiria bem-estar e felicidade para todos na  
Terra” (MIGNOLO, 2018, p. 139).  
Note-se que o ponto central do autor sempre se faz evidente: a crítica à  
representação é baseada na ideia de que o objeto a ser representado não existe de  
fato, mas é construído através de discursos. Neste ponto, poderia surgir o  
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questionamento sobre qual a justificação dada pelo teórico decolonial para tratar tais  
narrativas de forma coesa como “narrativas ocidentais”. Desconsiderando da existência  
de disputas no interior do que se poderia chamar de pensamento ocidental, a resposta  
do autor é que, em essência, as narrativas são coerentes entre si “uma vez que  
pertencem a mesma cosmologia” (MIGNOLO, 2018, p.139). O que permite, então,  
realizar a homogeneização entre diferentes correntes no assim chamado pensamento  
ocidental se constitui na a ideia de “cosmologia”, central para o pensamento de  
Mignolo. De acordo com ele, no interior da ideia de cosmologia ocidental estão  
inclusas desde a visão de mundo cristã até “narrativas seculares de ciência, progresso  
econômico, democracia política e, ultimamente, globalização” (MIGNOLO, 2018, p.  
139) a partir da fusão desses elementos se constrói a cosmologia em questão.  
Ademais, para o pensador argentino a cosmologia ocidental inventou não só  
períodos históricos como a modernidade, mas também categorias como “humano” e  
“natureza”, que, nesta lógica, só fariam sentido na cosmologia ocidental. A estrutura  
do argumento é a mesma já indicada: humano não representa uma entidade dada; foi  
uma invenção” (MIGNOLO, 2018, p. 157). Da mesma forma,  
Natureza não existe, ou existe como uma ficção ontológica. O que há  
é a implacável geração e regeneração de vida no sistema solar,  
processos dos quais emergiram uma espécie de organismos de vida  
e linguagem. (MIGNOLO, 2018, p. 158-9).  
Com isso o autor começa a explicitar de forma mais direta e conclusiva sua visão  
sobre o que admite existir em última instância, argumento que se completa algumas  
páginas adiante quando, ainda tendo em mente as narrativas, Mignolo desenvolve seu  
entendimento a respeito do caráter relativo daquilo que é considerado por ele como  
efetivamente existente:  
As narrativas sustentando o imaginário da modernidade nos fazem  
crer que a ontologia é representada pela epistemologia: nós sabemos  
simplesmente o que é e existe. Em termos decoloniais, o caminho é  
inverso: é a epistemologia que institui ontologias, que prescreve a  
ontologia do mundo. (...) A maior parte das culturas e civilizações no  
planeta vê relações enquanto no Oeste somos ensinados a ver  
entidades, coisas. Relações não poderiam ser chamadas ontológicas.  
Caso se queira preservar o vocabulário, então precisaria ser falado  
"relacionalogia" (discursos sobre a relacionalogia do universo vivo). O  
que há depende de como nós fomos programados para nomear o que  
conhecemos (MIGNOLO, 2018, p. 147-8).  
Portanto, ao mesmo tempo que desenvolve seu argumento relativista, reforça o  
caráter central que desempenha epistemologia para a sua teoria , Mignolo estende  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
suas considerações à nossa capacidade de apreender o real, seguindo a lógica do  
perspectivismo, referindo-se ao neurobiólogo chileno:  
A máxima de Humberto Maturana aqui adquire seu significado total:  
nós não vemos o que existe, nós vemos o que vemos. Por esta razão,  
a materialidade do mundo (sua ontologia) é moldada pela  
epistemologia (sentido do mundo projetado em narrativas e  
argumentos [logos] codificados, em cada cultura e/ou civilização,  
como conhecimento (epistemologia) (MIGNOLO, 2018, p. 196).  
Assim, as cosmologias e suas narrativas imprimem sentido a coisas, processos,  
objetos, que não possuem sentido intrínseco. Por essa atuação particular de cada  
cosmologia, entre elas não há relações; não se pode traduzir o sentido de uma ideia  
ou narrativa própria a uma cosmologia para encontrar correspondências exatas em  
outra. Inclusive, quando se tenta fazer isso, de forma que um “universo de sentido”  
(MIGNOLO, 2018, p. 196) busca interferir em outro, o autor argumenta que ocorre  
uma espécie de totalitarismo, o que lhe permite criticar teorias que almejam à  
totalidade e se baseiam em categorias universais. Elas seriam intrinsecamente  
“totalitárias”, já que algo como totalidade não pode existir em um “mundo” composto  
por uma multiplicidade de “histórias locais”:  
O problema com universais é que, visando a totalidade, eles se tornam  
totalitários. O que isso significa é que totalidades são totalitárias se  
elas obtêm sucesso em avassalar ou rejeitar reivindicações similares  
em outras cosmologias. Quando isso ocorreu no período histórico que  
aqui descrevemos como moderno/colonial, uma totalidade totalitária  
fornece uma moldura para a colonialidade do conhecimento  
(MIGNOLO, 2018, p. 164).  
Ele explora ainda mais essa crítica aos “universais”, mencionando um problema  
clássico da filosofia ocidental: “A questão é – em termos decoloniais se universais  
existem de fato ou se são apenas conceitos tomados como representações do que  
existe” (MIGNOLO, 2018, p. 172) – sua posição diante disso já foi explicitamente  
esclarecida com as críticas à representação. Adiante no argumento, ao continuar  
explicando como se dão essas “totalidades totalitárias” acima referidas, ele expõe a  
sua concepção de verdade propriamente dita:  
Para estabelecer uma totalidade - um conjunto de discursos que criam  
uma ontologia - você precisa desmascarar todas as outras  
cosmologias que têm uma reivindicação de totalidade. E para fazer  
isso, você precisa impor sua própria totalidade sobre todas as outras.  
É assim que a verdade sem parênteses anula a possibilidade de  
verdade em parênteses, isto é, viver em um modo pluriversal de  
existência, em vez de em um universal. Você precisa não apenas  
afirmar sua própria totalidade, mas também desvalorizar, demonizar  
e silenciar as coexistentes (MIGNOLO, 2018, p. 172).  
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A fim de relativizar a verdade, Mignolo adota então uma terminologia segundo a  
qual o máximo admitido é uma verdade entre parênteses, isto é, no caso do  
pensamento decolonial, o que cada cosmologia considera verdade.  
Com isso em mente, é possível passar para a explicação do segundo momento  
do aparato conceitual. Como indicado acima, a compreensão sobre modernidade não  
está completa sem o entendimento da sua ligação intrínseca com a colonialidade. Este  
é um conceito decolonial que visa evidenciar que a colonialidade não é uma  
consequência negativa da modernidade, mas, sim, uma dimensão constitutiva dela. Os  
conceitos de colonialidade e suas variações (do saber, do ser etc.)  
foram conceitos que vieram à existência no Terceiro Mundo. Melhor  
ainda, estes conceitos surgiram no momento cronológico do colapso  
da União Soviética e, com isso, a ideologia que dividia o mundo em  
Primeiro,  
Segundo  
e
Terceiro.  
Colonialidade  
e
modernidade/colonialidade são, portanto, placas de sinalização na  
mutação imaginária do Terceiro Mundo em Sul Global. Por isso, nossa  
perspectiva aqui é baseada nas memórias e experiências da Guerra  
Fria e do Terceiro Mundo, nos quais os conceitos decoloniais de  
modernidade  
e
modernidade/colonialidade estão embutidos  
(MIGNOLO, 2018, p. 111).  
Diante disso, para Mignolo um mérito do conceito “colonialidade” é não ter  
“surgido através de debates disciplinares ou interdisciplinares, mas das experiências  
vividas na América do Sul” (MIGNOLO, 2018, p. 112). O conceito é, ainda,  
intercambiável com outros, como o de “matriz colonial do poder”, abreviada por MCP,  
empregados de acordo com “o nível de detalhe” que se queira dar no momento  
(MIGNOLO, 2018, p. 141). A MCP se diferenciaria de conceitos como a “mais valia”,  
de Marx, ou “inconsciente”, de Freud, segundo Mignolo, por ter sido criado no  
“Terceiro Mundo”, e não nas “universidades do Norte” (MIGNOLO, 2018, p. 142).  
De forma sintética, estamos todos vivendo nessa “matriz colonial de poder”,  
conceito cujo autor recorre a uma analogia com o filme Matrix para elucidar, no sentido  
de que ambos apresentam uma “ilusão fabricada” como se fosse realidade. Há a  
ressalva, entretanto, de que no filme essa ilusão é fabricada por máquinas, e no caso  
vivido pelos seres humanos,  
os criadores das ilusões (modernidade), usando energia de corpos  
humanos (trabalho) bem como energia da biosfera (água, terra e  
oxigênio) e do cosmos (luz do sol e da lua), são seres-humanos dentro  
da matriz colonial de poder, crendo, ou fazendo crer, que existe uma  
instância exterior da matriz colonial da qual esta pode ser observada.  
Essa instância foi o Deus Cristão ou o Homem Secular, Observador  
Científico/Filosófico. Em termos decoloniais, não há exterior e,  
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portanto, o pensamento decolonial não pretende ser uma versão  
moderna (ou pós-moderna) do Deus ou do observador  
Científico/Filosófico (MIGNOLO, 2018, p. 114)  
Essa matriz é composta por domínios surgidos uma vez que não apenas a ficção  
“modernidade” foi inventada, mas também todos os âmbitos da vida humana são  
tratados como esferas constituídas através de discursos e narrativas assim o autor  
entende a economia, a política e a história, por exemplo.  
Pois o que são economia, política e história se não os decretos de  
certos tipos e esferas do conhecimento que molduram a práxis de  
viver (...)? É através de conversas (discursos e narrativas, orais ou  
escritas) que as atividades amorfas de um povo são distinguidas,  
narradas, teorizadas, criticadas, e transformadas em economia,  
política, história e assim por diante (MIGNOLO, 2018, p. 137).  
Tais domínios, ademais  
não existem independentemente, com etiquetas dizendo "Eu sou  
conhecimento", "Eu sou natureza", "Eu sou negro", "Eu sou  
heterossexual", "Eu sou gay", "Eu sou política", "Eu sou finanças", e  
assim por diante. Todos esses domínios foram inventados pela  
retórica (as narrativas) da modernidade. Eles passaram a existir  
através dos vários fluxos de enunciação (...). Todos os domínios são,  
portanto, interconectados pela lógica da colonialidade (...) enquanto  
permanecem escondidos ou disfarçados pela retórica da modernidade  
(...) (MIGNOLO, 2018, p. 150).  
Além de domínios, fazem parte da composição da MCP dois níveis, chamados de  
“nível do enunciado” e “nível da enunciação”, já que a explicação de Mignolo se dá em  
uma analogia com uma conversa. Sobre estes, é dito que  
O enunciado é o nível composto pelos domínios a serem  
administrados e controlados. Os domínios formam o nível  
ontologicamente constituídos pelo nível da enunciação. Eles não  
existem por eles mesmos, apesar de termos a impressão de que sim.  
Isto é, epistemologia configura (e nesse sentido, cria) a ontologia dos  
domínios. (...) Economia e política e, claro, natureza, são constituídas  
e configuradas pelo conhecimento e princípios e suposições sobre os  
quais o conhecimento é uma máquina de criação de mundos. Isto é, a  
epistemologia cria domínios ontológicos (MIGNOLO, 2018, p. 169).  
Com esse argumento, então, é abordado o papel do conhecimento, que será  
desenvolvido a partir deste ponto. Quanto à conexão entre esses domínios,  
argumentados enquanto esferas em relação, o autor diz que ela se dá justamente  
através de “fluxos de energia nas esferas conhecimento, subjetividades e interesses”  
(MIGNOLO, 2018, p. 169). Os mesmos fluxos que entrelaçam os níveis “permeiam os  
fluxos entre os domínios” (MIGNOLO, 2018, p. 169). Por isso,  
os domínios separados - economia, política, conhecimento e  
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subjetividade, racismo e sexismo, o domínio dos vivos (ou "natureza")  
- não podem ser compreendidos isoladamente, pois eles são todos  
interconectados. Os fluxos da enunciação para o enunciado garantem  
administração, transformação, e controle da MCP - os fluxos do  
enunciado para a enunciação, em troca, garantem benefícios e  
interesses próprios para todas as pessoas, instituições e línguas  
embutidas na enunciação (MIGNOLO, 2018, p. 169-70).  
Para além de tais fluxos e energias, portanto, o conhecimento é, mais  
diretamente, o responsável por tanto transformar esses mundos inventados em  
“realidades”, seguindo o entendimento do autor, quanto por conectar uma “esfera”  
com a outra. Nesse processo, é escondido  
o fato de que os mundos que a enunciação renderiza não são  
representações de mundos existentes, mas instituídos pelo "fazer" da  
enunciação. A enunciação é uma práxis que institui os domínios, sem  
distinguir os níveis e escondendo os fluxos. O aparato de enunciação  
moderno/colonial confunde descrição e explicação de mundos com os  
mundos descritos e explicados. Por essa razão, representação é um  
conceito crucial na retórica da modernidade: nos faz crer que exista  
um mundo exterior que possa ser descrito independente da  
enunciação que o descreve (MIGNOLO, 2018, p.150-1)  
Anteriormente foi explicado que o autor compreende o conhecimento como algo  
equivalente a discursos e narrativas inventados em cada cosmologia com o objetivo  
de “moldurar” a vida em esferas e, com isso, atribuir sentido e organizar “atividades  
amorfas” (MIGNOLO, 2018, p. 137). Neste processo,  
entidades e relações são concebidas, percebidas, sentidas e descritas.  
Neste sentido específico, existem tantas "ontologias"  
e
"relacionalogias" quantas "cosmologias" existirem. Epistemologias são  
sempre derivadas de cosmologias (MIGNOLO, 2018, p. 135).  
Assim, o conhecimento, com seus princípios e suposições (epistêmicos), é, para  
ele, literalmente, uma “máquina de criar mundo” (MIGNOLO, 2018, p.169). Por essa  
visão, o autor constantemente volta ao ponto de “ontologias serem invenções  
epistêmicas” e completa: “classificações são invenções, não representações”  
(MIGNOLO, 2018, p. 178). Essas classificações as que estão envolvidas em todo  
processo de conhecimento ocupam lugar importante na discussão porque com esse  
tema o autor não apenas continua as suas críticas à representação, mas também  
elabora como se dá a dominação epistêmica da matriz colonial do poder. O argumento  
é direcionado a isso pois romper com essa dominação, principalmente no  
conhecimento, – através de um “desligamento” – é o objetivo decolonial por  
excelência, como será abordado abaixo. Em suas palavras,  
o conhecimento é o domínio primordial da MCP. Economia é  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
conhecimento organizando e legitimando práxis. Capitalismo nomeia  
um tipo de conhecimento que justificou e justifica a subjugação de  
economias não capitalistas. Por isso, a tarefa decolonial mais básica e  
fundamental é no domínio do conhecimento, uma vez que é o  
conhecimento que assegura a unidade da MCP e que conforma  
subjetividades (MIGNOLO, 2018, p. 177)  
Para o autor, “a operação básica implementada para garantir domínio epistêmico  
foi a classificação social. Classificação social, em vez de classe social, é o momento  
epistêmico fundante da MCP” (MIGNOLO, 2018, p. 174). E, ainda: “quando se trata de  
organização cultural entre humanos, os meios mais eficazes de classificação são os  
discursos” (MIGNOLO, 2018, p. 180). Para atingir a dominação epistêmica, então, a  
lógica da colonialidade contou com a forma mais eficiente de classificação: os  
discursos.  
Tais discursos, empregados pela “lógica da colonialidade”, geram as diferenças  
coloniais, que se manifestam epistêmica e ontologicamente. Estas se referem,  
essencialmente, a classificações que, da perspectiva do opressor, justificam a  
subjugação de certos povos e/ou territórios, como “negros” e “índios” nos processos  
de colonização a partir do século XVI. Neste tipo de discurso reside o poder da  
“dominação epistêmica” realizada pelo pensamento europeu, que, em sua pretensão  
de universalidade, silenciou outros saberes. Nesse assunto, ele volta ao seu ponto  
central ao dizer que as diferenças coloniais “nos fazem crer que as diferenças  
configuradas entre o narrador, a narração e os eventos e entidades descritos e  
narrados existem fora da narrativa que descreve e conta as histórias” (MIGNOLO, 2018,  
p. 186).  
Em outras palavras, ele busca eliminar a distinção sujeito-objeto, bem como a  
realidade à que eles se referem, através de uma crítica complementar à referida  
anteriormente acerca da “totalidade totalitária” configurada pelo pensamento  
ocidental. Sobre esta, é dito que ela “possui duas trajetórias, e ambas têm a mesma  
origem: a distinção epistêmica entre sujeito cognoscente e objeto conhecido”  
(MIGNOLO, 2018, p. 200). Porém, ao mesmo tempo em que o autor argumenta a favor  
de uma superação dessa dicotomia, ele declara explicitamente que, em contrapartida,  
“a fim de pôr em dúvida a fundação moderna/colonial do controle do conhecimento,  
é necessário focar no conhecedor em vez de no conhecido” (MIGNOLO, 2018, p. 149).  
Nesse sentido, a perspectiva apresentada por ele defende que “decolonialmente, o  
Homem/Humano deve ser localizado no ato da enunciação em vez de na entidade que  
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é enunciada” (MIGNOLO, 2018, p. 159). O que está em jogo, então, evidentemente é  
uma concepção subjetivista.  
Com isso, passamos para o terceiro e último momento do aparato conceitual, e  
se torna necessário compreender a proposta decolonial, já que frente a tal processo  
de dominação teorizado por Mignolo, este aponta que a perspectiva decolonial precisa  
abordar “o saber e o conhecimento corporal e geopoliticamente (quem, onde, por quê,  
quando)”, o que gera uma realocação dos “universais ocidentais para sua emergência  
local e os restaura para seu escopo local” (MIGNOLO, 2018, p. 205). A proposta  
decolonial, então, está indissociavelmente ligada à ideia de romper o que é  
considerado a principal forma de dominação (a epistêmica, que tornou hegemônico o  
“modo ocidental” de conhecimento e subjugou outros). Por isso, para o autor,  
habitar a fronteira e sentir a diferença colonial epistêmica e ontológica  
acarretam as condições necessárias do habitar, pensar e fazer  
fronteiriços. Pensamento fronteiriço e epistemologia de fronteiras  
emergem entre sujeitos coloniais (como Mankanyezi) que percebem  
que seu conhecimento foi rejeitado e negado. Essa realização é o  
ponto de partida para se tornar sujeitos decoloniais (…) (MIGNOLO,  
2018, p. 207)  
Com o pensamento fronteiriço/epistemologia de fronteiras, o pensador  
decolonial se guia pela ideia de fronteira enquanto uma metáfora, no sentido de que  
existem sujeitos a viver na borda, no liminar entre a modernidade e a colonialidade.  
Enquanto método da teoria decolonial, busca “operar uma crítica decolonial às teorias  
do conhecimento, forjadas nos centros geopolíticos de poder (...)” (OLIVEIRA; GOMES,  
2021, p. 652). Além disso,  
Esta epistemologia, que emerge no espaço intersticial entre a  
tradição e a modernidade, busca ancoragens contextuais em histórias  
locais, em cosmovisões subalternizadas, concretizadas em uma corpo-  
política, geopoliticamente situada (OLIVEIRA; GOMES, 2021, p. 656).  
Os sujeitos que habitam essa fronteira carregam os traços de uma ambiguidade  
de  
separação/contato,  
isto  
é,  
por  
meio  
dessa  
característica  
da  
modernidade/colonialidade, “o sujeito olha para si com os olhos do “outro”, os olhos  
da metrópole colonial, mesmo fazendo parte da “exterioridade da fronteira. A fronteira,  
portanto, é o lócus da subalternidade (...)” (OLIVEIRA; GOMES, 2021, p. 653).  
Com este método, que busca ser uma epistemologia própria ao mesmo tempo  
em que critica a epistemologia por ser algo característico da cosmologia ocidental,  
Mignolo busca se afastar da epistemologia ocidental em um aspecto mais abrangente  
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do que o conceitual, apresentando uma forma de abordagem que, para ele, permite  
justamente esse duplo movimento: criticar as teorias do conhecimento dominantes ao  
mesmo tempo em que fornece um novo modo de análise o modo que parte dos  
sujeitos decoloniais, A partir dessa concepção de conhecimento, em outro trecho do  
livro analisado, o autor argentino completa:  
Após a Revolução Industrial, extrativismo concentrou-se nos recursos  
naturais necessários para alimentar as máquinas. E a partir da segunda  
metade do século XX até o presente, o extrativismo tem abastecido a  
assim chamada Quarta Revolução Industrial (Tecnológica). O que o  
extrativismo não pôde fazer foi "extrair" o conhecimento e a alma das  
pessoas. É por isso que, hoje, estamos testemunhando o poderoso  
ressurgimento de conhecimentos indígenas, filosofias da vida, e  
modos de ajudar o mundo a perceber o quão vicioso e diabólico é o  
conceito de natureza e seus representantes, recursos naturais, foi e  
continua a ser (MIGNOLO, 2018, p. 159).  
Por tudo isso, é possível compreender a forma de abordagem decolonial aos  
problemas do conhecimento. Ao trazer a questão geopolítica à tona, o autor procura  
focar no local de produção de um conhecimento (se é na Europa ou nos “países do  
Sul”, essencialmente) – já que o fato de um conhecimento ter surgido em um país  
latino-americano, por exemplo, já seria um mérito em direção a seu potencial  
emancipatório; por outro lado, se produzido na Europa, suas pretensões críticas seriam  
tratadas como meras “críticas internas”.  
No que diz respeito à questão corpórea, para defender esses “saberes  
silenciados”, Mignolo faz uma associação entre o conhecimento, a experiência subjetiva  
(vivência) e os “corpos” que “carregam” esse conhecimento. Como referido acima, a  
emergência do pensamento decolonial está restrita a esses sujeitos enquanto  
“condições necessárias do habitar, pensar e fazer fronteiriços” (MIGNOLO, 2018, p.  
207). Assim, a proposta decolonial “depende de conhecimentos que estão embutidos  
na práxis de viver8 que gerou tais conhecimentos” (MIGNOLO, 2018, p. 173). Tais  
conhecimentos são “incorporados” através da vivência, por pessoas que “carregam em  
seus próprios corpos” a experiência colonial (MIGNOLO, 2018, p. 168). Isso é posto  
8
Enquanto em obras mais antigas o autor se referia a vivência de forma mais explícita, como em “eu  
me interesso muito mais em refletir criticamente sobre a colonialidade e em pensar a partir da vivência  
dela (...)” (MIGNOLO, 2003, p. 38)”, no livro agora analisado o termo que dá o mesmo sentido é “práxis  
of living”. Sobre este, vale notar que o conceito “práxis” é empregado de forma a reduzi-lo de seu  
caráter objetivo. Isto é, ao afirmar que a práxis de viver gerou certos conhecimentos, não está em  
questão o mero reconhecimento do fato de que o conhecimento está intrinsecamente ligado a práxis  
dos homens, mas, sim, tendo em mente o conjunto da obra, trata-se de uma tentativa de encaixar essa  
ideia verdadeira em um contexto subjetivista.  
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em evidência na citação acima, pela qual nota-se explicitamente que as filosofias  
guiadas pelos ideais de vivência são exaltadas.  
A partir disso, o exercício decolonial é feito de forma interna à matriz colonial do  
poder, já que para Mignolo não existe um lugar “exterior” a ela (MIGNOLO, 2018, p.  
114). Tal exercício busca  
minar o mecanismo que a mantem em lugar [a matriz colonial de  
poder], requerendo obediência. Tal mecanismo é epistêmico e, então,  
liberação decolonial implica em desobediência epistêmica” (MIGNOLO,  
2018, p. 114)  
Isto é, como foi explicitado acima, o que articula esse poder, em última instância,  
são os mecanismos epistêmicos (eurocêntricos), que devem ser desobedecidos. A  
teorização mais específica dessa desobediência se dá da seguinte maneira:  
A decolonialidade emerge da necessidade de se desligar das  
narrativas e promessas da modernidade (...). Nesse sentido, a  
decolonialidade é tanto uma analítica da modernidade/colonialidade  
(sua constituição, transformação) quanto um conjunto de processos  
criativos levando a narrativas decoloniais legitimando modos  
decoloniais de fazer e viver (MIGNOLO, 2018, p. 145-6).  
Ou seja, em última instância trata-se de trocar uma narrativa por outra se  
desligar das narrativas modernas e se engajar nas narrativas decoloniais, conformando  
novos tipos de subjetividades. O termo “desligamento” é sempre utilizado pelo autor  
para se referir à tarefa decolonial, seguindo a seguinte lógica, que já começou a ser  
indicada: vivemos na matriz colonial de poder; não existe a possibilidade de se colocar  
para além dela; o que a articula, acima de tudo, é a “esfera do conhecimento”,  
dominada pelo “eurocentrismo epistêmico”; portanto, de forma interna a essa matriz,  
o exercício decolonial propõe um “desligamento” dos seus mecanismos (narrativas,  
discursos) que conformam “subjetividades colonizadas”9; e “subjetividades  
decoloniais” entram em cena a partir do momento em que se constroem narrativas  
decoloniais que enxergam as falsas promessas envolvidas na modernidade; com essas  
narrativas por base, na prática se organizam em suas “histórias locais”. Assim, o autor  
empreende um convite para as organizações em pequenos núcleos entre quem  
compartilha das mesmas narrativas locais; se “desligando” das “ideias” de  
universalidade, progresso, desenvolvimento etc.  
9
Sobre estas, ele faz associações bastante mecânicas como em: “o conhecimento da teoria política e  
economia política, e as correspondentes formações de subjetividade que esses conhecimentos  
acarretam” (MIGNOLO, 2018, p. 222)  
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Em síntese, a tarefa decolonial se dá em dois âmbitos: no teórico, o que a põe  
em movimento é a intenção de “se desligar” do que está dado no pensamento  
europeu. Para isso, o autor sugere mudanças conceituais, como empregar um aparato  
conceitual em tríade, em oposição aos binarismos conceituais identificados por ele no  
pensamento ocidental; mudanças no âmbito metodológico, com o desenvolvimento da  
ideia de epistemologia de fronteiras enquanto a proposição mais madura do autor –  
que sugere focar no sujeito cognoscente, ser empregada pelos sujeitos que expressam  
a diferença colonial etc.; e também mudanças no foco da análise: abordar o  
conhecimento nas frentes da localização, temporalidade, corporalidade etc., buscando  
desvelar as narrativas enganosas a que estamos submetidos.  
No nível prático, a sugestão é “se desligar” de projetos que propõem alternativas  
universalistas, pois nestes haveria um quê de “totalitarismo”; bem como “se desligar”  
de “falsas promessas” como progresso e desenvolvimento. Feito isso, e uma vez  
transformados em sujeitos decoloniais a partir dos exercícios de pensamento acima  
mencionados, sugere-se a organização em histórias locais, em núcleos de mesma  
cosmovisão, encontrando maneiras próprias de auto-organização guiadas pelo  
engajamento em narrativas decoloniais, internamente à “matriz colonial de poder”, isto  
é, sem ter a intenção de dar fim à tal estrutura.  
Com isso conclui-se a exposição acerca dos principais argumentos de Walter  
Mignolo no livro analisado, evidenciando os aspectos mais estruturantes de sua teoria  
do conhecimento. Feito isso, cabe, então, proceder a elaboração da aproximação  
sugerida na tese do presente artigo, considerando os posicionamentos do autor  
argentino em conexão com a filosofia da vida.  
Convergências entre a epistemologia de Walter Mignolo e a da filosofia da  
vida  
A exposição precedente procurou evidenciar, em primeiro lugar, que os escritos  
de Mignolo em “On Decoloniality” (2018) giram em torno de um ponto central: a  
recusa da existência de uma realidade objetiva e, consequentemente, a negação da  
possibilidade de um conhecimento objetivo e verdadeiro. Vimos, baseados em Lukács,  
que tal posicionamento é justamente a característica central do agnosticismo,  
tendência predominante na teoria do conhecimento da filosofia da vida, que reproduz  
as características de um tipo específico de idealismo subjetivo. Nesse sentido, a visão  
de mundo fornecida por Mignolo, além de ser essencialmente marcada pelo  
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agnosticismo, também o é pelo subjetivismo, aspecto intimamente correlacionado e,  
novamente, característico da filosofia da vida.  
A teoria do pensador decolonial enfatiza, acima de tudo, as críticas à  
representação, sempre no sentido de reforçar o argumento de que não existe uma  
realidade objetiva a ser representada; para ele os discursos e narrativas criam o sentido  
de “objetos”10 que, fora desses mesmos discursos e narrativas, não significam nada,  
não passam de “atividades amorfas”. Assim, os “domínios” referidos por Mignolo,  
como o conhecimento, a política etc., não passam de uma criação discursiva, de  
elementos de uma retórica cujo objetivo é fazer passar por realidade uma ficção.  
Tal posicionamento afastado da objetividade se liga indissociavelmente ao  
relativismo do autor, expresso nas tipologias subjetivistas. Mignolo procura decompor  
o que se entende por realidade em cosmologias, no interior das quais há domínios,  
que por sua vez contém níveis, baseando sua visão crítica e, consequentemente, sua  
proposta nessa abstração tipológica completamente descolada da materialidade. Além  
do mais, tais esferas não existem de fato, mas a retórica da modernidade nos quer  
fazer crer na sua existência.  
Na obra do autor, essa tipologia cumpre as duas funções abordadas por Lukács  
no livro já mencionado: a de combater o materialismo e a de colocar as “figuras” dessa  
tipologia no caso de Mignolo, as narrativas – como responsáveis por “manter a  
marcha histórica”. Na exposição da teoria decolonial em questão, trouxemos uma  
citação na qual é argumentado explicitamente esse papel em “(...) a narrativa que  
legitima ações e a tomada de decisão para manter a marcha da história” (MIGNOLO,  
2018, p. 117).  
Partindo dessa visão dos domínios, o pensador argentino busca argumentar que  
eles são fortemente conectados, mas o que o seu tratamento evidencia é que, na  
verdade, ele não apreende as conexões efetivas das “esferas” entre si. Lukács mostra  
que isso é o que faz, por exemplo, Simmel, com uma tipologia de decomposição “em  
mundos independentes e equivalentes” (LUKÁCS, 2020, p. 392). Nesse esforço  
infrutífero para argumentar que os domínios são interligados, ele se revela incapaz de  
apreender as conexões de forma real, já que apenas se refere a tais conexões enquanto  
“fluxos de energia” ou enquanto discursos configurados pelo conhecimento que  
10 Entre aspas porque Mignolo nega a ideia de que sejam objetos.  
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Renovação do agnosticismo pela “epistemologia fronteiriça”  
fornecem uma sustentação à MCP. Contudo o autor jamais consegue mostrar de forma  
efetiva através de que mediações o conhecimento hegemônico é capaz de sustentar  
formas de dominação a não ser em exemplos superficiais sobre a conformação de  
subjetividades.  
Com esse tratamento das “esferas” da vida, Mignolo as torna equivalentes entre  
si e criadas subjetivamente. A equivalência toma, principalmente, a forma de uma  
equiparação do saber científico a qualquer outra forma de “saber”. Tal procedimento  
somado ao ataque às noções de verdade e universalidade geram uma espécie de  
relativismo das equivalências, servindo de base para o anticientificismo no interior da  
“guerra contra a filosofia racionalista, orientada para as ciências da natureza e  
originada em Descartes” (LUKÁCS, 2020, p. 379) e que Lukács mostra ter sido  
inaugurada por Nietzsche e Dilthey. Isso a tal ponto que o artigo de Chambers (2020)  
é dedicado a mostrar como Mignolo se apropria de forma completamente distorcida  
de filósofos iluministas, especialmente do próprio Descartes.  
Uma vez caracterizado por tais atitudes perante a objetividade e o conhecimento  
objetivo, Mignolo recai no intuicionismo típico da filosofia da vida. Seu pensamento  
valoriza a intuição em detrimento à razão, entendida de forma estreita e deformada.  
Isso repercute, por exemplo, na tendência de refutar críticas que cheguem por vias  
“meramente conceituais”, como ocorre, também, na filosofia da vida. Ou então na  
glorificação de conceitos e concepções teóricas que não surgem de “meros debates”,  
ou no contexto das universidades (onde, aliás, ele próprio se situa).  
Como iniciamos a indicar, as experiências subjetivas ocupam o lugar central no  
conhecimento considerado legítimo pelo autor argentino, em que ele realiza um  
recorte na ideia de vivência: não é a experiência subjetiva de qualquer um que se  
baseia o conhecimento legítimo, mas a de apenas algumas pessoas, de alguns lugares  
muito específicos. Do que resulta uma teoria do conhecimento de caráter aristocrático,  
mas em um sentido diferente do que seria definido como aristocracia para a filosofia  
da vida clássica. Para esta última, “a intuição é uma faculdade que apenas os eleitos,  
os membros de uma nova aristocracia, supostamente possuem” (LUKÁCS, 2020, p.  
362), ou seja, reservavam o conhecimento legítimo a algum grupo, a partir da lógica  
que opera com base na intuição para desenvolver conhecimento não era algo dentro  
das possibilidades de qualquer um. Mignolo reproduz essa ideia, já que defende que  
o conhecimento está restrito a um grupo específico, como foi demonstrado. Ele cria,  
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assim, uma nova elite, mesmo que situe esse grupo nos povos subalternos, de  
determinadas localizações geográficas que passaram pela experiência colonial.  
O autor decolonial, portanto, traz à tona a questão da vivência somando a  
experiência subjetiva às três dimensões acima mencionadas: a geolocalização, a  
questão corpórea e as críticas a quem se propõe a abordar um assunto por uma “mera”  
apreensão conceitual, a partir do universo disciplinar acadêmico, de debates  
caracterizados por conflitos de interpretações etc. Sobre esses debates acadêmicos e  
os conceitos que assim surgem, Mignolo é categórico ao glorificar os conceitos  
decoloniais por terem origem lugares específicos, marcados por tipos específicos de  
experiências, que conformam subjetividades específicas a partir das quais o  
conhecimento “bom” emerge. Lembremos que ele usa também este argumento para  
diminuir alguns conceitos pelo local de origem, especialmente pela origem subjetiva  
do criador do conceito.  
Por isso começamos a indicar na sessão precedente que o que está em jogo para  
Mignolo não é a vida objetiva em si, mas concepções de vida, memórias de vida,  
experiências específicas etc., isto é, a vivência. Ao conferir esse grau de importância à  
vivência, o autor reproduz aquele problema muito característico da filosofia da vida,  
esclarecido por Lukács. Qual seja: na filosofia burguesa imperialista, é comum  
apresentar uma pseudo-objetividade, surgida a partir do momento em que, tendo por  
base uma confusão entre objetividade e subjetividade, é apresentada uma teoria que  
aparentemente supera o dilema entre idealismo e materialismo, mas, na verdade,  
renova o idealismo subjetivo de alguma maneira. Essa confusão, no caso da filosofia  
da vida, parte da centralidade do conceito de "vida" lado objetivo na sua forma  
subjetivada de "vivência", sendo ela a forma de resolver o dilema entre a necessidade  
de elaborar uma visão de mundo e não tocar nas bases do idealismo subjetivo.  
Isso porque, como mencionado, no período imperialista surge a necessidade de  
uma visão de mundo para, com base nela, tentar combater o marxismo, e, com isso,  
passou a ser necessário apresentar concepções teóricas sobre elementos objetivos,  
como a história e o homem; mas como não podiam abandonar as bases do idealismo  
subjetivo para lutar contra o materialismo, os filósofos lançaram mão desse uso do  
conceito de vida na forma subjetivada. Através disso, tentavam apresentar tais  
elementos objetivos em uma relação com a vida para dar um ar de objetividade, mas  
como faziam isso equiparando vida e vivência, bem como continuavam negando a  
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realidade independente da consciência e sua cognoscibilidade, o resultado era a  
“pseudo-objetividade”.  
É necessário também ressaltar que, por a filosofia da vida ser a tendência  
dominante na filosofia europeia do período imperialista, expressar semelhanças com a  
mesma implica, também, em convergências com características gerais do período.  
Nesse sentido, o combate vulgar isto é, sem compreender corretamente o  
“adversário” – à teoria, método e prática marxistas é outro fator de aproximação entre  
a filosofia hegemônica do período em questão e a teoria apresentada pelo pensador  
decolonial.  
No caso contemporâneo, o combate a nível teórico e metodológico se dá na  
tentativa de romper com a concepção de conhecimento que é legada da obra marxiana,  
de fundamentação ontoprática. Isso, no entanto, fica bem mais implícito no texto do  
que as chamativas tentativas de apagar a diferença entre Marx e filósofos burgueses  
europeus, por exemplo igualando conceitos marxianos a freudianos sob a falsificação  
de terem sido, ambos, produzidos em “universidades do Norte”.  
Relacionado a isso e, enfim, considerando o nível prático, frente à proposição  
contida no marxismo conceito de progresso que impulsiona para além do capitalismo  
Mignolo procura apresentar a proposta decolonial como superior. No encerramento  
do texto, o autor completou:  
A derrota do capitalismo foi planejada diversas vezes em nome do  
marxismo. E diversas vezes falhou porque o marxismo permaneceu  
dentro do quadro da MCP: se opôs ao conteúdo, mas não questionou  
os termos (suposições, princípios, regulações) do tipo de  
conhecimento sem o qual o capitalismo não existiria (MIGNOLO, 2018,  
p. 222)  
Assim, a proposta decolonial apresentada tem como pressuposto uma das  
oposições mais marcantes da teoria do autor a defesa das histórias locais e a crítica  
aos projetos globais , que implica na tentativa de igualar o comunismo a qualquer  
outro projeto ocidental, inclusive ao próprio capitalismo, na medida em que ambos  
seriam regidos por uma lógica universal “totalitária”.  
Nesta recusa do progresso tanto em sua concepção burguesa pois seria uma  
narrativa enganosa quanto em sua concepção marxista, Mignolo recorre a uma ideia  
de terceira via, com o que se ressalta outra semelhança com a filosofia reacionária  
imperialista. Podemos recorrer a outro texto de Lukács para lembrar que  
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À medida que a crise se prolonga, a concepção de um ‘terceiro  
caminho’ progride cada vez mais no plano social: é uma ideologia  
segundo a qual nem o capitalismo nem o socialismo correspondem às  
verdadeiras aspirações da humanidade. Essa concepção parece aceitar  
tacitamente o fato de que o sistema capitalista é teoricamente  
indefensável tal como existe, [mas indiretamente] não deixa de ser  
uma apologia do capitalismo. (...) Finalidade verdadeira dessa  
tendência é impedir o descontentamento engendrado pela crise, de  
se voltar contra as bases da sociedade capitalista (LUKÁCS, 1979, p.  
44-45)  
Mignolo, ao elaborar sua proposta, se guia abertamente pela ideia de “nem  
capitalismo, nem comunismo”, o que fica claro em um artigo no qual ele busca, entre  
outras coisas, explorar de que maneira a opção decolonial é, ao mesmo tempo, uma  
continuidade e uma ruptura com a descolonização na época da Guerra Fria:  
Este é o legado da Conferência de Bandung. Quem participou da  
conferência optou por desprender-se: nem capitalismo nem  
comunismo. Optaram por descolonizar. O processo é longo, mas  
continua. Fanon introduziu a versão teórica, Bandung, a política. A  
grandeza da Conferência de Bandung consistiu precisamente em ter  
mostrado que a descolonialidade é uma “terceira opção” que não  
resulta da combinação das existentes, mas consiste em desprender-se  
delas. Seu limite estriba em ter-se mantido no domínio do  
desprendimento político e econômico. Não se colocou a questão  
epistêmica. No entanto, as condições para colocá-las estavam aí dadas  
(MIGNOLO, 2017, p. 19).  
Contudo, sua proposta não admite a possibilidade de superação efetiva do  
capitalismo, apenas a construção de novas subjetividades enquanto o capitalismo  
segue seu curso. Portanto, está mais para uma “decolonização do capitalismo”. Isso se  
evidencia em declarações como “o pensamento e o fazer decolonial têm uma árdua  
tarefa de germinar coexistindo com forças avassaladoras” (MIGNOLO, 2018, p. 223)  
ou “a decolonialidade é uma opção entre opções modernas/coloniais coexistentes”  
(MIGNOLO, 2018, p. 224).  
Essa é uma das formas nas quais a apologia indireta do capitalismo aparece na  
obra do autor, ligada ao fato de que suas críticas ao capitalismo são críticas românticas,  
que tratam as problemáticas desse modo de produção como uma crise da cultura,  
ignorando o aspecto econômico. Em certa parte do texto, o autor decolonial aponta  
que algumas narrativas envolvidas na MCP estão em uma tentativa “de manter controle  
do significado epistêmico na esfera da cultura, paralelamente ao controle do  
significado e do poder na esfera da economia e na da política” (MIGNOLO, 2018, p.  
172). Ao mesmo tempo, ele passa todo o texto reforçando que o foco de suas críticas  
e objetivos de mudança é, justamente, esse âmbito dos significados epistêmicos.  
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Então, embora ele critique a ideia de “cultura”, especialmente na sua dicotomia com a  
natureza, enquanto uma criação do pensamento ocidental, de certa forma ele mesmo  
é consciente de que o que está em relevo, o tempo todo, é o aspecto cultural.  
Dessa maneira, sua apreensão da economia é muito problemática, já que o autor  
faz uso do relativismo de sua teoria do conhecimento para construir uma visão de  
mundo marcada pelo que Lukács denominou “clima anticapitalista”. Além disso, em  
Mignolo o realce de certos aspectos negativos do capitalismo aparece de forma  
mascarada, pois ele tenta restringir o escopo desse modo de produção à “esfera  
econômica” e, além disso, reduzi-lo a uma mera “forma de conhecimento” também  
inventada. Assim, as suas críticas nunca são direcionadas ao capitalismo. Ele distorce  
e oculta completamente o fato de que é o modo de produção capitalista o responsável  
por todos os problemas que ele levanta, e não uma “matriz colonial de poder”: que  
ele surge sob as bases da colonização; que, em última instância, em nome dele, e não  
das “ficções da modernidade”, horrores são cometidos; que o conhecimento  
hegemônico é capaz de sustentar opressões porque o faz seguindo as necessidades  
de reprodução do capital; que existem, sim, efeitos subjetivos muito negativos de se  
viver sob tal organização socioeconômica, mas que eles possuem uma base concreta.  
Em conclusão, a frase de Lukács que identifica nos pensadores abordados por  
ele uma mistura de “um radicalismo puramente ideal com uma adaptação prática  
absoluta a circunstâncias injustificáveis” (LUKÁCS, 2020, p. 400) se aplica totalmente  
ao autor decolonial. Como se espera ter ficado claro, a proposta decolonial de Mignolo  
é a expressão última do relativismo e subjetivismo que caracterizam seu pensamento  
o que está longe de ser uma interpretação injustamente imputada ao autor, mas algo  
que pode ser colhido da estrutura de seu argumento:  
Meu argumento é que dentro da MCP não há nada além de opções,  
opções no interior do imaginário da modernidade e opções no interior  
dos imaginários decoloniais. Portanto você escolhe uma opção em  
plena consciência do quadro, ou você é escolhido por uma das opções  
existentes que você toma, voluntariamente ou não, como a verdade,  
como a correta ou certa. A decolonialidade é uma opção articulada  
com a analítica decolonial da modernidade/colonialidade. (...) a partir  
do momento que você realiza que o que parece ser realidade,  
objetividade, e verdade não é nada além de uma opção dominante ou  
hegemônica, você já está pisando fora e habitando a opção decolonial  
ou outras opções libertadoras (MIGNOLO, 2018, p. 224)  
Ademais, mencionar a insuficiência da proposta decolonial não deve ser tarefa  
restrita à uma perspectiva marxista, mas a qualquer um que busque apreender a fundo  
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quais caminhos se abrem com a decolonialidade. Essa insuficiência é, antes de tudo,  
uma incoerência no argumento do próprio autor, que dedica seus escritos a mostrar  
quão absoluta é a força da “matriz colonial do poder”, para, no fim, não admitir sua  
superação efetiva e propor uma saída através de um simples “desligamento”. Expurga,  
pela porta, as contradições identificadas, ainda que na superfície, para contrabandeá-  
las pela janela.  
Considerações Finais  
A teoria do conhecimento de Walter Mignolo é, então, semelhante à da filosofia  
da vida em todos aqueles aspectos essenciais que constituem o seu núcleo: o  
agnosticismo, isto é, a recusa de que exista uma realidade objetiva e que ela seja  
cognoscível; a recusa, portanto, de um conhecimento objetivo; o relativismo; a  
confusão entre objetividade e subjetividade e o subjetivismo, sobretudo na forma da  
centralidade à vivência. Como se espera ter sido demonstrado, desses aspectos se  
desdobram outros e todos estão em íntima relação. Sobre tal teoria do conhecimento,  
o autor constrói sua visão de mundo e traça críticas. Com isso, o pensamento do autor  
decolonial constitui uma espécie de renovação do agnosticismo, com algumas  
características próprias.  
A principal particularidade de Mignolo reside na centralidade dada, em sua teoria,  
à determinados povos subalternos determinação guiada pelas experiências  
subjetivas conectadas à certas localizações. Com isso, o autor se distingue também, é  
claro, nos temas: à sua maneira problemática e limitada, abordou formas de opressão  
e tentou denunciar questões das quais precisamos nos libertar. Contudo, como  
demonstrou Lukács, para uma teoria subjetivista e idealista, até o ponto de partida em  
questões concretas não é o suficiente para evitar distorções.  
Para fins de investigação futura, pode-se sugerir algumas indicações no sentido  
da aproximação mais específica entre Mignolo e os autores que ditam a forma e o  
conteúdo iniciais da filosofia da vida Nietzsche11, Dilthey e Simmel. Por um lado, o  
autor decolonial é um desdobramento da filosofia da vida desses autores,  
11  
Mencionado, aqui, não enquanto um partidário da filosofia da vida até porque finaliza suas  
atividades intelectuais nas vésperas do período imperialista mas, sim, enquanto o principal  
responsável pelo que Lukács denomina “antecipações intelectuais” do que viria a se cristalizar na  
filosofia da vida, e, com a sua influência, responsável também pela criação de um ambiente filosófico  
propício para essa nova ideologia se disseminar.  
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desenvolvendo, por exemplo, o relativismo de Simmel em relação aos “saberes” e  
intensificando o irracionalismo e o anticientificismo de Dilthey. Em alguns pontos,  
Mignolo vai além até mesmo de Nietzsche12, já que este argumenta que tudo é  
representação, no sentido de que nada “é”, mas “se torna”. Para este, portanto, o  
mundo aparente é o verdadeiro, e o “absolutamente verdadeiro” não existe. Já Mignolo  
nega a própria ideia de representação, não admitindo que exista algo a ser  
representado. Para este, por sua vez, o mundo aparente seria a referida “ilusão  
fabricada”, e o verdadeiro também não existe13.  
Por outro, ao destacar o papel de povos subalternos, Mignolo se distancia dos  
referidos autores da filosofia burguesa. Contudo, em sua concepção subjetivista do  
conhecimento o pensador argentino toma como elemento central o tema da  
corporalidade, tratado de forma mística e abstrata. Como vimos, cabe a Nietzsche ter  
sido o primeiro a fazê-lo, isto é, expressar o subjetivismo do conhecimento na forma  
de mitos, dentre os quais o tema da corporalidade é essencial. O que o autor decolonial  
faz, então, é apenas deslocar a questão corpórea para tais grupos subalternos: os  
grupos subalternos a que ele se dirige carregam o saber em seus próprios corpos,  
sentem a opressão colonial em seus próprios corpos.  
Por tudo isso, a contradição que o presente trabalho buscou trazer à tona partiu  
da constatação de que a teoria decolonial de Walter Mignolo tem seu mote na intenção  
de transcender o que está dado na filosofia europeia. Romper com “padrões  
eurocêntricos” na produção de conhecimento é o objetivo do autor decolonial por  
excelência. Foi o motivo de seu rompimento com as teorias pós-colonialistas, é o que  
guia suas críticas a outros movimentos teóricos e é o que norteia a elaboração do seu  
método (“epistemologia de fronteiras”). Para esse afastamento, o autor propõe apenas  
algumas mudanças superficiais, visto no exemplo do uso de um aparato conceitual em  
tríade, ou na consideração positiva de um conhecimento produzido por um “sujeito  
decolonial”.  
Contudo, em muitos aspectos centrais, e, sobretudo, no nível epistemológico, o  
12  
Uma importante menção em relação a aproximações entre Mignolo e Nietzsche é que Nietzsche é  
diretamente reacionário, enquanto Mignolo procura apresentar o direcionamento da história como uma  
coisa “neutra”, e, com isso, sua proposta aparentemente não leva nem ao progresso, nem ao retrocesso,  
já que ele quer combater ambas as ideias. No entanto, como faz um grande esforço para associar a  
ideia de progresso a distintas formas de dominação, em essência ele também recai no reacionarismo.  
13  
Com tais apontamentos, não pretendemos esboçar nenhuma conclusão apressada, apenas sugerir  
pontos de identificação que merecem investigação futura.  
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autor se identifica não somente com a própria filosofia europeia, mas, especialmente,  
com um tipo de filosofia europeia nascida no período imperialista que, além de fundir  
hermenêutica e epistemologia, cumpriu a função de inibir a ação efetiva contra as  
contradições estruturantes do capitalismo. Vale lembrar que, nesse sentido, o autor  
expressa identificação com, para além de características específicas da epistemologia  
da filosofia da vida, marcas gerais da filosofia burguesa do imperialismo: apologia  
indireta do capitalismo através de críticas românticas e ideias de “terceira via”, o  
combate à teoria, método e prática marxistas a partir de críticas vulgares etc.  
Com isso, ele está longe de apresentar uma teoria que forneça um guia de ação,  
um meio de libertação efetiva das diversas opressões e que se coloque, de fato, ao  
lado dos povos subalternos. As limitações do autor, ademais, impedem que sua teoria  
forneça, ao menos, uma forma de explicação concreta acerca das problemáticas  
históricas e sociais às quais estamos submetidos, já que ele distorce e oculta a  
materialidade dos problemas. Então, apesar de suas intenções e das mencionadas  
distinções, o conteúdo filosófico do pensamento de Mignolo o coloca ao lado dos  
filósofos burgueses irracionalistas.  
Interessante é, também, notar que Mignolo busca se colocar como um dos  
responsáveis por levantar questões até então completamente ignoradas na história do  
pensamento, por razões que ele atribui ao próprio domínio da filosofia ocidental.  
Contudo, na realidade, pelos teóricos que ele enquadraria em tal filosofia, muitas de  
suas questões já são, há muito, colocadas. Para nos restringir ao quadro da filosofia  
da vida, Dilthey, por exemplo, inaugura a crítica à separação entre sujeito e objeto  
enquanto algo que não deve ser tratado como “transcendental”.  
Sugere-se que investigações futuras abordem, de forma rigorosa, as relações  
mais específicas entre os pensadores decoloniais, de modo geral, e a filosofia da vida,  
tanto em sua formulação inicial quanto nos desdobramentos posteriores, como  
Foucault14, já que o presente trabalho se limitou a investigar aspectos mais gerais  
relacionados à teoria do conhecimento. Além disso, uma análise mais completa  
precisará ser capaz de conectar a teoria decolonial a aspectos materiais do  
desenvolvimento histórico, abordando sua gênese e função detalhadamente a fim de  
demonstrar de que maneira a teoria em foco responde a problemas específicos  
14  
Ressaltando, inclusive, momentos nos quais a identificação é maior com os desdobramentos da  
filosofia da vida, como a filosofia francesa, do que com a filosofia da vida clássica.  
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colocados pelo momento histórico contemporâneo e pelo estágio atual da luta de  
classes. Da mesma forma, cabe investigar as necessidades sociais que tornam essa  
posição epistemológica necessária hoje. Com isso, poderão ser fornecidas mais  
explicações para a conclusão geral de se tratar de uma renovação do agnosticismo. A  
necessidade de expansão dos exames críticos acerca do pensamento decolonial se  
impõe, sobretudo dado o alcance e popularidade que tal teoria veio a ter.  
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Como citar:  
PENNA, Lara Nora Portugal. Renovação do agnosticismo pela “epistemologia  
fronteiriça”: convergências entre a filosofia da vida da fase imperialista e a teoria  
decolonial do conhecimento de W. Mignolo. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1,  
pp. 369-404, Edição Especial, 2022/2023.  
Verinotio  
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Publicamos o atual
em que a esquerda brasileira comemora o  
início do terceiro mandato de Lula. Do pon-  
to de vista da maioria daqueles que apoia-  
ram a candidatura, qualquer tom crítico  
quanto ao presente poderia parecer “fazer o  
jogo da direita”; a primeira coisa a se dizer  
é: não nos enquadramos entre esses seto-  
res. Este número da Verinotio é uma denún-  
cia da miséria intelectual em que nos en-  
contramos hoje. E, assim, essa publicação –  
que sai ao mesmo tempo em que o primeiro  
livro das Edições Verinotio, O futuro ausen-  
te, de J. Chasin – parte da convicção que a  
capitulação diante do presente está no cer-  
ceamento da crítica e em fechar os olhos di-  
ante da ausência de perspectivas e de posi-  
cionamentos