DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.472
Henrique Coelho
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Roberto Schwarz e György Lukács: uma aproximação dialética
Henrique Coelho
1
Resumo:
O texto visa a mostrar, a partir das análises do Roberto Schwarz e György
Lukács, como a análise de lastro marxista autêntico é divergente da leitura
meramente sociológica, procurando superar a dualidade “esteticismo x
sociologismo”, dois reducionismos antidialéticos. Em outros termos, trata-se
de expor, dentro de nossos limites, como o autor brasileiro, ao buscar a inflexão
realista de algumas obras, não deixa de debater problemas da especificidade
estética, portanto, sem que a vida social explique absolutamente a arte, mas ao
mesmo tempo, seja seu substrato indispensável. Para tanto, faremos uma
primeira reflexão sobre o decurso em que György Lukács, referência
importante para Schwarz, deslinda a arte através, primeiramente, de posições
idealistas e, logo após, a partir da emergência e redescoberta gradual da
ontologia marxiana e da valorização do realismo crítico.
Palavras-chave: dialética; forma estética; objetividade social; Lukács;
Schwarz.
Roberto Schwarz and Gyorgy Lukacs: a dialectic approach
Abstract:
The text aims to show, from the analyzes of Roberto Schwarz and Gyorgy
Lukacs, how the analysis of authentic Marxist ballast is divergent from the
merely sociological reading, seeking to overcome the duality "aestheticism x
sociologism", two anti-dialectical reductions. In other words, it is a matter of
exposing, within our limits, how the Brazilian author in seeking the realistic
inflection of some works does not stop debating problems of aesthetic
specificity, therefore, without the social life explaining art absolutely, but at the
same time, is its indispensable substrate. To do so, we will make a first
reflection on the Lukacsian course (Gyorgy Lukacs) where the Marxist author,
an important reference for Schwarz, breaks the art through, firstly, Idealist
positions and then afterwards emergence and gradual rediscovery of Marxian
ontology and appreciation of critical realism.
Keywords: dialectic; aesthetic form; social objectivity; Lukács; Schwarz.
1
Sociólogo (UFMG), doutorando em Estudos Organizacionais, Trabalho e Sociedade,
Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). E-mail: rickcoelholda@hotmail.com. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli
Ferreira de Assunção.
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I
O tema da autonomia da arte deve ser colocado e travejado pela querela
acerca de sua inflexão absoluta ou sua inflexão relativa. Nesse sentido,
seguindo a dicção e o decurso teórico lukacsiano, podemos observar esta dupla
natureza de teorias. Em primeiro momento, a que apreendeu a arte de maneira
absoluta e hermética mesmo que não se empenhe, necessariamente, nas
inflexões causais do gênio” ou do “desinteresse” (SILVA, 2008) –, como
também, mais adiante, em sua maturação teórica marxista, a inflexão que
captura as determinações reflexivas entre a arte e as demais esferas da vida
social. No último caso – referente à autonomia relativa –, não fica suspensa a
especificidade da arte, quer dizer, sua gica específica enquanto práxis e esfera
social, mas impressa a demarcação ontológica da totalidade e da articulação
(interrelação peculiar às entificações sociais), lineamento marxiano de
primeira ordem filosófica.
Acerca do jovem Lukács, Arlenice Almeida da Silva diz que:
Se para os antigos a reflexão sobre a arte estava fundada, grosso
modo, na pesquisa do bem e da verdade, em Lukács a estética é
pensada nos quadros teóricos da modernidade, isto é, a partir de
questões formais referentes à constituição interna da própria obra
de arte, e na autonomia que a obra reivindica para si. Nestes estudos,
em sua maioria fragmentados e redigidos na forma de ensaios,
Lukács estabelece um diálogo não só com o cerne do idealismo
alemão e com o romantismo (Kant, Fichte, Schelling, F. Schlegel,
Novalis, Hegel), mas também com a fenomenologia de Husserl e o
existencialismo de Kierkegaard, sem falar da presença latente de
Nietzsche. (SILVA, 2008, p. 1)
Ou seja, tem-se uma primeira posição lukacsiana que não toma uma
bem equacionada posição marxista. O travessão idealista (seja influenciado
pelas filosofias da vida, seja, logo depois, influenciado por Hegel) dura, com
grande acentuação, até os marcos de seu último livro travejado pela lente
hegeliana, História e consciência de classe (1923). É possível, ainda, ver certa
influência mais à frente, no que tange ao suposto vínculo lógico Hegel-Marx,
como em Introdução a uma estética marxista (1957) e na própria Estética
(1963), porém, aqui o materialismo já está mais demarcado (CHASIN, 2009).
Na fase anterior, de tino idealista, depreende-se da arte um “automovimento”
(referência ao seu hermetismo enquanto objeto e práxis), seja como faculdade
estética a priori, seja como essência metafísica autoposta.
Neste momento, para o autor, há, como emblema da “modernidade”
(expressão que será menos usada quando o marxismo passa a predominar em
sua teoria; expressão típica das filosofias da subjetividade), uma “ruptura”
(SILVA, 2008) desagregadora e fundamental entre indivíduo/arte e mundo.
Por mundo, pelo viés anticapitalista romântico (“modernidade”) adstrito à
época, entende-se a referência às entificações cotidianas reificadas, o
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esvaziamento das relações humanas e a dominação “coisal” (dos objetos dos
homens sobre os homens). Nesta contextura, a arte apareceria como forma
universal posta pela faculdade estética da individualidade, momento
concernente à sua elevação-suspensão (fugaz), destaca-se, em total
rompimento e incomunicabilidade com a vida cotidiana reificada. Assim,
nestas condições de análise da obra de arte, afirma Arlenice Almeida da Silva
(2006), uma ruptura insuperável entre indivíduo e mundo. Segundo nos
explica a autora, também não se trata, para o jovem Lukács, de analisar a
questão estética a partir do psicologismo, isto é, das qualidades intrínsecas à
subjetividade do autor. Parte-se, antes de tudo, da própria obra de arte
entificada, objetivada, “puro artefato”, manifestação (SILVA, 2008).
Para Hegel, a modernidade também impedia uma integração entre
individualidade e sociedade. Isso, no entanto, era apreendido de forma
positiva, uma vez que a perda dessa totalidade e a integração interioridade-
objetividade se dava ao passo que 1) a totalidade estava garantida pela
realização do Espírito no estado; 2) o Espírito já se encontra na consciência de
si mesmo, quer dizer, em seu paroxismo na própria subjetividade, denegando
a necessidade de um ão do sujeito na vida exterior (COTRIM, 2009). Não se
fazia demandante, dessa forma, a integração ética exemplar à Antiguidade,
onde a individualidade grega se perfazia integrada à comunidade, isto é,
inexistência de antagonismo entre subjetividade e estrutura social, integração
ética que possibilitava a realização plena da plasmação estética, uma vez que a
forma artística refletia a forma social em sua integração e totalidade indivíduo-
sociedade (COTRIM, 2009). No caso da “modernidade”, termo típico das
reflexões do “anticapitalismo romântico”, apresenta-se uma perda da
totalidade dada a desintegração entre individualidade e sociedade, cisão que
separa uma subjetividade elevada, um espírito alcandorado, mas em perdição,
uma vez que a estrutura social apresenta-se como deletéria, decrépita e
corrompida para ação dessa alma. Para o jovem Lukács, em termos dessa
mesma concepção, não haveria, como em Hegel, uma instituição para
assegurar a totalidade perdida (estado). A própria subjetividade se encontraria
em conflito irresoluto com a objetividade social, reino do inautêntico. Destarte,
se para Hegel o lirismo é uma positividade, uma vez que é uma subjetividade
refletindo o “espírito consciente de si mesmo” na ambiência da própria
subjetividade fechada em si absolutamente, o jovem Lukács verá o lirismo
(como se dará no romance) como uma “irmandade da solidão”, isto é,
subjetividades que comunicam sua falta de sentido no mundo (COTRIM,
2009).
A arte, para este jovem Lukács, atua, neste momento, como apanágio de
um mundo em que subjetividade e objetividade estão rompidas, propondo-se
à busca de uma totalidade perdida. A arte, entretanto, remontando à nuança
pessimista, pode ser uma falsa panaceia, que alça o mundo sem sentido,
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aborda a perda da totalidade, sem, contudo, poder dar uma resolução objetiva
ao problema, quer dizer, posta-se como uma lírica do impossível que denota as
“fragmentariedades do mundo” (LUKÁCS apud COTRIM, 2009). No mundo
em que a vida empírica está apartada da essencialidade, configuração objetiva
da “modernidade”, a epopeia tem de dar lugar ao romance, de modo tal que o
romance aparece como uma atitude estética desesperada e de fracasso em
busca da essência e totalidade perdida, dada a cisão pungente entre
individualidade e objetividade (COTRIM, 2009).
Segundo este jovem Lukács, eivado pelo idealismo (do subjetivo,
primeiramente, ao objetivo, por fim), o herói do romance (assim como o
artista) segue em uma “busca infeliz”, porquanto em sua alma, em sua
interioridade, poderia mover-se para a essência, contudo, essa essência mesma
se escapa, é inalcançável, configurando a busca do indivíduo problemático
(COTRIM, 2009), da alma inquieta, diante da assustadora pletora do
inautêntico que está objetivada na exterioridade moderna, isto é, um
insurgente – fracassado contra a mendacidade e perfidez da efetividade. Ao
passo que evidencia a problemática do mundo, é dação de tom e corolário da
sua própria problemática, que, diante da puerilidade e ardil da
exterioridade, resta-lhe o autoisolamento da “busca infeliz”. Trata-se de uma
desintegração pujante da ética, da integração entre individualidade e
comunidade que plasmariam uma totalidade em harmonia, em plenitude
canora. O tom pessimista está posto em sua nuança clara, já que o herói dá-se
como fracassado, como quem procura e não acha, o ser ausente de
comunidade, uma vez que é perene e instada a “inessencialidade” insuperável
da vida. No prumo dessa busca, atinge um mero “vislumbre”, como parca
aproximação da totalidade e integração, pseudorrealização, já que cativo de
seu solipsismo forçado, dada a hostilidade do mundo moderno. Permanece no
romance, segundo o jovem húngaro, a “intenção ética”, uma espécie de
evocação da comunidade perdida, acompanhada de certo desolamento e
insubordinação.
O imanentismo da obra de arte deságua na incomunicabilidade tanto
com o autor quanto com o receptor, ainda que o produtor, ao ser seu portador
e via, esteja em estado de “suspensão fugaz” em relação à vida cotidiana. A arte
não serve, portanto, para o jovem Lukács, para reconciliar indivíduo e mundo,
não tem esse poder. Vejamos, desta forma, que há para ele uma divisão
rigorosa entre subjetividade e objetividade, tendo na segunda (a objetividade
enquanto “modernidade”) o reino da perdição e embrutecimento contra o qual
as personalidades se defrontam. Neste instante, a dialética materialista entre
objetividade e subjetividade não é sequer suspeitada, assim como as
determinações reflexivas entre as esferas sociais.
Para o jovem Lukács, portanto, uma dissonância na produção
estética, que entre indivíduo e mundo um terreno do incomunicável: arte
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que fica à deriva, torna-se um “mal-entendido”, no sentido e diapasão de seu
hermetismo contra o mundo. Nesse sentido, segundo Silva (2008), para o
jovem húngaro, a forma estética produz “signos inadequados”, ou seja, sem
relação com os possíveis impulsos advindos da realidade vivida. Assim, “A
dissonância é a compreensão da realidade na perspectiva do non sense
afirmado na forma” (SILVA, 2008, p. 4). Quanto ao problema histórico,
vejamos a resolução dada:
A obra de arte manifesta esse caráter paradoxal, é ao mesmo tempo
temporal e atemporal, uma duplicidade que é o resultado de uma
produção circunscrita e enraizada em um tempo e a um espaço, mas
portadora de validez e efeitos universais. Ela possui ao mesmo
tempo um caráter histórico e artístico, mas também há algo de
irracional em sua manifestação, um “mal-entendido” que lhe é
constituinte; a arte fala e constitui-se, em suma, a partir de uma
distância, de um “Hiatus” [Abstand]. A obra é temporal segundo sua
gênese e atemporal pelo efeito que produz no sujeito receptor; um
efeito independente do transcorrer do tempo. (SILVA, 2008, p. 4)
Ademais:
A relação entre historicidade e atemporalidade na obra de arte é o
tema que marcará toda a produção do jovem Lukács, bem como boa
parte de seus escritos de maturidade, e é, por outro lado, o que
singulariza sua reflexão diante da estética dita, grosso modo,
romântica. Para Lukács, Schelling percebeu com profundidade,
mais do que todos os românticos, que “toda obra é a eternização de
um momento histórico determinado” “que a obra sai do tempo e
para ele retorna”: “ela arranca um instante do fluxo temporal, lhe
conferindo a perenidade do tempo” (SILVA, 2008, p. 220). Mas,
enquanto os românticos ainda permanecem ligados a uma teoria
platônica da arte, Lukács procura tirar outras consequências do
procedimento formal da obra, de sua incontornável materialidade.
Não só toda obra suscita um mundo novo, abrindo um campo vasto
de possibilidades, como ativa um campo de negatividade, o “mal-
entendido” na relação do eu com o mundo. (SILVA, 2008, p. 5)
A “face de Janus” da arte seria sua ambiguidade, nascer dentro de um
tempo histórico, mas não ser sua expressão, mas uma forma que se afirma na
sua materialidade e imanência, distante, travejada pela “opacidade”, que não
explicita a realidade vivida; daí o caráter paradoxal dessa práxis social (SILVA,
2008). Nesse sentido, a obra não é singularismo, expressão psicologizada e
psicologizante do produtor, do artista em-si-mesmado, nem mesmo é reflexo
mecânico da objetividade, mas o único “escape” da vida cotidiana dilacerada
pela reificação da “modernidade”, restando ao artista o solipsismo, arte como
“mal-entendido” e deslocamento da realidade.
É preciso assentar, porém, que o trato hegeliano é posterior a 1910,
quando a inflexão ao autor alemão e, por isso, ao idealismo objetivo, começam
a despontar. Tal destino se completará em A teoria do romance (1915-6),
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marco objetivado da transição entre o idealismo subjetivo ao idealismo
objetivo, como o próprio autor húngaro infere. Prevalecerá aqui uma
concepção sujeito-objeto de tipo hegeliano, preservando também suas
categorias estéticas, embora Lukács também se diferencie do autor alemão
clássico, como vimos (COTRIM, 2009).
Como admite Silva, até A alma e as formas (1911) a síntese de um
estruturalismo com traços fenomenológicos husserlianos (também, do
existencialismo de Kierkegaard e do tragicismo de Nietzsche), além de uma
influência do kantismo na tônica da execução de uma teoria do
conhecimento”, portanto, da querela central acerca do entendimento. Em A
alma e as formas,
o que possibilita o surgimento de uma nova rica é o isolamento, o
afastamento da “cultura espiritual” de sua época, provocado pela
reação diante de “um tempo que não é favorável à poesia”; é a
impossibilidade de uma “cultura pública”, de “uma alma e uma voz
nacionais”, no sentido antigo, ou seja, a solidão do “homem
arrancado de todos os laços sociais”, mas que não cessa de desejar
alguma forma de pertencimento (SILVA, 2009, p. 100).
Nesse sentido, concebidas exterioridade e interioridade como
transpassadas pela distância e incomunicabilidade, é que nascerá a nova lírica.
Nesse tempo de uma “busca infeliz”, o salto para a interioridade aparece como
destino inerente e pejorativo, distanciamento da vida. O novo lirismo, do início
do século XX, que “dissimula seus tons confessionais”, ou seja, interioridade
como retorno a um âmago angustiado e, fundamentalmente, sem “comunhão
com o leitor”, sem desejo de exteriorização da vida (SILVA, 2009). Esse lirismo
moderno, longe de angariar posição como cântico coletivo (como lirismo
antigo que poderia ser uma expressão simbólica nacional), é solitário enigma
possibilitado pela “cultura da época”, o esvaziamento dos laços sociais. O novo
lirismo é a forma significativa de almas significativas abaladas. Assim, não
mais “uma experiência vivida a ser cantada” (SILVA, 2009). A nova poesia
lírica é, assim, integração entre “silêncio e narrativa”, o murmúrio da
individualidade desolada posto em forma artística (SILVA, 2009). Em outras
palavras, “denúncia da realidade aniquilada”, ainda que de maneira oblíqua e
não direta.
II
Em contraste com o desenvolvido até aqui, em Meu caminho para Marx
(1933), vemos a autoconstatação definidora de um engate teórico que revela a
preza pela “leitura imanente” (CHASIN, 2009) da obra de Karl Marx,
modificando o padrão de investigação de György Lukács. Se a matriz idealista
(existencialista, fenomenológica, kantiana-hegeliana etc.) prevaleceu nas
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visadas passadas, será na segunda metade da década de XX a incipiente
jornada ao Marx como fulcro teórico principal, inclusive, para a nova
apreensão do estético. Matriz que precisa ser baliza e parametração para todo
pensador, segundo este Lukács de 1933, que tenha como escopo a elucidação
radical do complexo categórico da realidade efetiva. Marx, em seu composto
filosófico e científico, aparecerá como “pedra de toque”, momento de crivo
avançado sobre a representação da realidade. É nesse sentido que Lukács
escreve sobre a necessidade da explicitação de cada pensador em relação ao
conteúdo social da obra marxiana, quer dizer, afirmação de “seu lugar nela e
seu próprio posicionamento em relação a ela”, uma vez que tal obra anatomiza
os próprios conflitos da história humana. o obstante a seriedade de cada
intelectual, para Lukács, tornam-se consequentes a seriedade e profundidade
teóricas que se posicionam frente às lutas histórico-sociais, tendo por
caminho, por conseguinte, o tracejamento ontológico-científico de Karl Marx,
rompante intelectivo, obra imanentemente colada ao desvelamento profundo
da sociabilidade (do conjunto dos complexos sociais, entre eles, a arte) e de
suas contradições.
A relação com Marx é a verdadeira pedra de toque para todo
intelectual que leva a sério a elucidação da sua própria concepção de
mundo, o desenvolvimento social, em particular a situação atual, o
seu próprio lugar nela e o seu próprio posicionamento em relação a
ela. A seriedade, o escrúpulo e a profundidade com que ele se dedica
a esta problemática nos indica em que medida ele quer, consciente
ou inconscientemente, esquivar-se de um claro posicionamento com
relação às lutas da história atual. Os esboços biográficos que tratam
da relação com Marx, da luta espiritual com o marxismo, dão-nos,
por vezes, um quadro que, enquanto contribuição à história da luta
social dos intelectuais no período imperialista, possui um interesse
geral, mesmo quando, como no meu caso, a biografia em si não
tenha nenhuma pretensão de interessar ao público. (LUKÁCS, 1983,
p. 1)
Segundo o autor, revendo criticamente sua posição de classe
[Standpunkt] anterior:
A tese neokantiana da “imanência da consciência” ajustava-se
perfeitamente à minha posição de classe na época; não a submetia a
qualquer exame crítico, mas a aceitava passivamente como ponto de
partida de toda e qualquer colocação do problema gnosiológico.
(LUKÁCS, 1983, p. 1)
A propositura de Lukács, bastante modificada e com autocrítica
retrospectiva, traz outro ponto importante para entendermos a
fundamentação marxiana por vezes deturpada nas várias formas do marxismo
vulgar. A ausente distinção entre os materialismos dialético e não dialético é a
síntese confusa que substanciou (não só, mas também) a gama teórica
formante da irrealização revolucionária do século XX: teoria marxista levada à
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vulgarização ideológica positivista e/ou economicista, fundamentação
falseada, que não atina para a realidade do ser-em-si, dando as costas ao
materialismo humanista enquanto lineamento ontológico fundamental de
Marx. Sem isto, o entendimento da determinação recíproca entre a esfera da
subjetividade e a da objetividade (aqui, um corte fundamental com o Lukács
anterior), a totalidade e a articulação das esferas sociais, fica impedido,
imputando um esquema formalista como centro gravitacional da
processualidade social. Nesse sentido, trata-se da complexa recuperação do
humanismo do materialismo marxista (e de suas outras componentes
ontológicas), isto é, a práxis social como peça fundamental da virada marxiana,
em oposição ao “destronamento do homem” ocasionado pelo materialismo
mecanicista/empirista/intuitivo, reposicionado sob o manto pseudomarxiano,
em especial, pelo positivismo marxista dos fins do século XIX (II
Internacional).
Adiante, no mesmo texto, o autor também nos trará outro apontamento
de profunda discussão teórica. Lukács questiona, dessa vez, o idealismo
subjetivo (que lhe serviu de base no tempo passado), indo ao ponto nodal da
discussão:
Na verdade, mantinha uma constante suspeita frente ao extremado
idealismo subjetivo (tanto o da escola neokantiana de Marburgo
quanto o da teoria de Mach), uma vez que o conseguia
compreender como era que o problema da realidade podia ser
definido, considerando-a simplesmente uma categoria imanente da
consciência. (LUKÁCS, (1983, p. 1)
Lukács trará, ainda na forma da autocrítica, o tropeço do ecletismo
como solução para uma radicalidade teórica. Sua mudança para a Alemanha,
no início década de 1910, período de ganho de proximidade com o idealismo
subjetivo – influência de origem alemã de autores como Max Weber e Simmel
–, conduziram-no a um entendimento da sociabilidade atravessado pela
filosofia irracionalista (que ocorria desde a década passada, mas agora,
misturada às posições hegelianas apresentadas por Ernst Bloch), trepidando o
conhecimento da totalidade objetiva social de Karl Marx em um sociologismo
sem concretude material. Durante largo tempo, Marx foi, para o jovem Lukács,
simples novelo científico que tangencia e alvorece os problemas da esfera
cultural como momento preponderante e fundante da ordem social, deixando
a esfera econômica marginalizada enquanto objeto da ciência sociológica. Por
fim, é dessa forma que o autor húngaro marxista assola seu irracionalismo e
idealismo anterior que lhe compuseram uma “sociologia da literatura”:
Mas, embora isso não me tenha conduzido a conclusões
materialistas, acabou levando-me muito mais a uma aproximação
com aquelas escolas filosóficas que queriam resolver este problema
de forma irracionalista e relativista e, até muitas vezes, mística
(Windelband-Rickert, Simmel, Dilthey). A influência de Simmel, de
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quem fui discípulo direto, deu-me ainda a possibilidade de “inserir”
numa tal concepção de mundo tudo o que havia assimilado de Marx
nesse período. A filosofia do dinheiro de Simmel e os escritos sobre
o protestantismo de Max Weber foram os meus modelos para uma
“sociologia da literatura”, na qual os elementos derivados de Marx
estavam mais uma vez presentes, mas tão diluídos e empalidecidos
que eram quase irreconhecíveis. Seguindo o exemplo de Simmel, eu,
de um lado, separava o quanto possível a “sociologia” do
fundamento econômico, concebido de modo bastante abstrato, e, de
outro lado, via na análise “sociológica” apenas o estágio inicial da
verdadeira e real pesquisa científica no campo da estética (História
da evolução do drama moderno, 1909; Metodologia da história
literária, 1910, ambas em húngaro). Os meus ensaios publicados
entre 1907 e 1911 oscilavam entre este método e um subjetivismo
místico. (LUKÁCS, 1983, p. 2)
Vemos, no Lukács marxista da década de 1930, o resultado tácito da
superação do ordenamento teórico tragicista e idealista anterior. Trata-se,
como muito se destaca em Narrar ou descrever?, de averiguar os componentes
da obra de arte tendo em conta sua comunicabilidade com o solo social, sua
tarefa mais ou menos desveladora das “texturas sociais” e, portanto,
ascendência da arte realista. A arte como “mal-entendido”, para o Lukács em
maturação marxista, só pode ser entendida como debilidade, de modo tal que
nenhum virtuosismo cnico (hermetismo/formalismo) pode sozinho perfazer
uma grande arte.
O tratamento autenticamente marxista da arte não a indica, dessa vez,
como “busca infeliz” de uma essência metafisicamente tomada e igualmente
perdida. O estatuto da grande arte aparece ligado à sua função, forma e
método, reflexo de um desvelamento crítico da urdidura social. A reviravolta
se vale, antes de tudo, da premissa de que os nexos e relações da sociabilidade
sejam inteligíveis e representáveis (em um conjunto variável de objetivações).
Dessa forma, não se trata nem de uma “busca infeliz” recheada de metafísica,
nem, ao certo, de uma descrição paisagística-naturalista da realidade, um
“realismo ingênuo” sem acepção da dialética movente dos fatos, isto é, uma
congregação inóspita de casualidades e acontecimentos acidentais.
Cheguemos mais a fundo ao quadro e aspecto debilitantes do
naturalismo que o autor denuncia no seminal texto Narrar ou descrever?, em
que se tornará clara, também, sua nova apreciação da arte e do realismo crítico
como arte autêntica. Sobretudo, no naturalismo, a conexão social dos fatos é
vigorosamente obscurecida por este método, de modo que os fatores sociais
aparecem de maneira abstraída, isolada e sequencial, isto é, ao modo de uma
figuração arbitrária. A dialética entre os cenários humanos e suas ações
pode ser alvorecida quando os objetos sociais e as relações sociais são
apresentados com o nus humanista particular e adequado, que revela
propriamente a vida humana como ação circunstanciada por outras
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objetivações históricas, e não como encadeamento de “coisas mortas”. Isto é,
dialeticamente, não se resolve a objetivação da arte como um “inventário”
descritivo (que homogeneíza e faz tudo equivaler), por mais nuança e talento
técnicos imprimidos, quanto antes, subsumindo a descrição à narração de
realidades efetivas, onde o drama é substanciado pela reciprocidade das ações
humanas, e a sociabilidade aparece, por excelência, como “mundo
humanamente configurado”. Em suma:
O contraste entre o participar e observar o é casual, pois deriva da
posição de princípio assumida pelo escritor em face da vida, em face
dos grandes problemas da sociedade, e não do mero emprego de um
diverso método de representar determinado conteúdo ou parte de
conteúdo. (LUKÁCS, 1965, p. 50)
No Lukács maduro e marxista, não se trata tanto da hipóstase e
hipertrofia da subjetividade, como se tem abastadamente marcado no seu
idealismo primeiro, nem mesmo tem-se a tônica de um materialismo
mecanicista no qual a arte é reflexo sem meandros, fotográfico, da realidade
objetiva. De um lado, no reflexo fotográfico, tem-se uma acepção que revela
apenas a aparência/imediatidade, ao passo que no idealismo tem-se a negação
da essência na realidade objetiva, o que implica a multiplicidade da
“impossibilidade” na averiguação do conteúdo essencial da realidade efetiva
(COTRIM, 2009). No próprio Lukács juvenil, vemos a distância apreensiva e
existencial entre subjetividade e objetividade, portanto, a tônica do idealismo
sobredito. Pesavam, ainda, sobre o jovem húngaro as admitidas influências do
existencialismo de Kierkegaard desde a primeira década do século, assim como
do anticapitalismo romântico de Sorel, com “seu antiestatismo radical”
(COTRIM, 2009), para não falarmos do próprio Simmel, outra grande
influência da mesma década supracitada, como da subsequente. Lukács
expressará, de forma cintilante e clara, sobre uma “kierkegaardização da
dialética histórica de Hegel”, porém com um traço próprio de insubordinação
romântica, esperança acabrunhada, uma “intenção ética” subjetivista. Para o
Lukács maduro e árduo na defesa do realismo como instauração da grande
arte, a figuração da objetividade como consciência dos problemas universais,
histórico-sociais, é fundamental, ainda que isso não se opere por feitio
mecânico, mas de maneira antropomórfica e criativa, tendo, porém, a própria
obra de arte como fulcro determinativo, congruente ou não a obra com a
posição do autor (COTRIM, 2009).
Definitivamente, neste Lukács em maturação no suor da recuperação
da instauração ontológica marxiana, temos a acepção realista da arte como
aquela que se põe de maneira desveladora e desfetichizadora. Isso quer dizer:
arte que se objetiva não como torneio subjetivista, nem plasma fotográfico,
mas apreensão da imediatidade e concreticidade da realidade, sem prender-se
à aparência/imediatidade, nem sinonimizar realidade a esta (COTRIM, 2009).
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Essência e aparência são polos da mesma realidade efetiva que se determinam,
a primeira é plataforma da edificação da segunda, que pode mesmo ser uma
apresentação invertida da primeira. Sabe-se, assumidamente pelo próprio
autor, que uma “guinada marxista e ontológica” em seu pensamento
quando, a partir de 1930-1, no Instituto Marx-Engels, em Moscou, tem contato
com os Manuscritos econômico-filosóficos de Marx, com os Cadernos
filosóficos de Lênin e com as cartas entre Marx e Engels debatendo arte e
literatura. A primazia da objetividade enforma a renovação de seu pensamento
filosófico e científico, dando azo à correção da influência idealista-hegeliana da
relação sujeito-objeto. Além disso, circunscreve a esse próprio movimento
recuperativo marxiano a distinção paulatina dos lineamentos filosóficos
fundamentais de Marx, como exemplo nuclear, a diferenciação entre alienação
e objetivação (COTRIM, 2009), embora o gradiente estético tenha mais
relevância que o filosófico na década recuperativa de 1930.
Aprofundando na revitalização lukacsiana dos termos filosóficos
próprios do autor de Trier, pode-se inclusive tecer uma ligação entre as suas
posições política e estética maturadas (COTRIM, 2009). Se em Teoria do
romance ele ensejou uma passagem ao idealismo objetivo de Hegel, ainda com
a inflexão do subjetivismo como aporte, a faceta hegeliana só encontrará toda
sua expressão em História e consciência de classe, em que o proletariado
encorpará o sujeito-objeto idêntico, em seu movimento de reconciliação
consigo mesmo. Ademais, nesse texto, o próprio Lukács desconsiderará as
instâncias ontológicas do ser inorgânico e do ser orgânico, eixo fundamental
para o entendimento da práxis social em seu sentido modelar, do trabalho
como práxis social fundante e das questões materiais donde a reprodução
ampliada funda a base. A superação dalente hegeliana” (LUKÁCS, 1983) e a
inserção na obra marxiana mesma tem grande marco nas Teses de Blum, nas
quais o autor repreende qualquer posição idealista sectarista de ultraesquerda,
avançando pela primazia do concreto e de seu conjunto determinativo, para a
resolução tático-estratégica da posição socialista (COTRIM, 2009). Se, nesse
caso, o bastião tático impôs-se favorável à consecução da ampla frente
democrática contra o fascismo, posição que Lukács, posteriormente, nem dirá
de tanto valor histórico, terá bastante relevância, por outro lado, seu apreço
materialista pela cadeia determinativa do real, configuração diversificada,
encadeada e prioritária do concreto. Segundo o próprio húngaro, o grande
ganho de Teses é o giro, a passagem de Lukács ao verdadeiro norte
materialista, em que o humanismo não plaina desimpedido e absoluto nos ares
do idealismo, mas faz contas com a realidade efetivamente existente
(COTRIM, 2009).
As posições lukacsianas estéticas da década de 1930, em feitio análogo,
considerarão, além da voraz crítica ao romantismo-vanguardismo subjetivista
(irracionalismo) e ao naturalismo (“realismo ingênuo”), uma crítica ao
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“realismo soviético”. Trata-se de forma estica propagandística em que o
trabalhador e a revolução despistam e desdenham a configuração real da
sociabilidade, apresentando-se não como figuração do concreto, como
demanda e enfatiza Lukács sobre a grande obra realista (COTRIM, 2009), mas
como projeção subjetiva da volição individual dos autores ou grupos
intencionados (“arte de tendência”), engatados na objetivação de uma arte
inóspita e pejorativamente didática, distante do delineamento das questões do
concreto mundo edificado, mantendo-se, pois, na barca idealista e
abstrativante.
Faz-se necessário, ainda, expressar que a volumosa e monumental
qualidade da atividade estética lukacsiana crava bases na teoria marxiana.
Mesmo que de modo disperso, sem incorrer na exegese, na anatomia de
exaustão, a práxis social artística é circunscrita por Marx em análises de tino
materialista não adstringido, isto é, abarcando sua especificidade e autonomia
relativa, como sua relação reflexiva com os demais complexos sociais. Em
Marx, a defesa do realismo também toma aporte, em contraste com a arte
propagandista e didatista, rebotalho artístico que se expressa, por exemplo, na
discussão que Engels e Max fazem, por carta, sobre o Sickingen com seu autor,
Lassalle. Na esfera da criação artística, não basta a posição intencionada do
autor (“arte de tendência”). A plasmação da arte consigna um objeto social que
deve ser analisado na sua substância figurativa própria em relação com a
história (COTRIM, 2009). Destarte, a criação literária pretensamente
emancipatória, por exemplo, pode reforçar arrimos e alicerces da decadência
ideológica burguesa (COTRIM, 2009). Consoante ao que Lukács dissertou
sobre o “realismo soviético”, a literatura advinda de um autor posicionado
anticapitalisticamente pode ferir de morte todo espírito humanista na
realização da grande arte (realista). Contrafação da ideação revolucionária e
realista que consigna a miséria de uma arte abstrativante rebaixada a
depoimento moralista, invólucro de ideias sem trama figurativa, hipóstase
subjetivista da sintomática dos estranhamentos sociais do capital e correlatos.
Arte que pretende humanismo sem ater-se ao núcleo da concreticidade como
trama, ação e tipicidade (COTRIM, 2009), e que, portanto, vira mero estertor,
isto é, pulsão solipsista, quando muito, elaborada com alguma lavra técnica.
Assim, a posição realista defendida por Lukács, a partir de 1930, como
consignação da grande arte, deita bases em Marx e Engels e, dessa forma,
também a captação do feitio ideológico do objeto social artístico em sua
peculiaridade desveladora ou obnubiladora da dialética social. Doravante,
marca-se que a senda nuclear do realismo é condensar as forças motrizes
articuladas que geram a reificação da vida (e, inclusive, a derrogação
tendencial da grande arte) por meio da representativa relação orgânica entre
ação e tipicidade (COTRIM, 2009). Com isso, refere-se a uma trama figurada
em que os destinos individuais evidenciam a essência ou concreticidade das
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lutas histórico-sociais, a processualidade social. O refinamento da captação da
especificidade do artístico, pelo autor magiar, ganha elementos na década de
1930 (majoritariamente, em sua estada em Moscou, mas, também, entre 1931-
3, em Berlim), donde se pode apreciar a descoberta do apanágio
antropomórfico (termo utilizado nas últimas décadas de sua vida) da arte, de
sua plena vivacidade ao demonstrar o concreto por meio da vida orgânica
entificada na imediatidade, e também o acabamento ou fechamento da obra de
arte que desfetichiza uma totalidade intensiva (COTRIM, 2009), assim, sem
precisar se abrir a constantes aperfeiçoamentos e acréscimos. Por outro lado,
até a metade da década de 1930, Lukács mantém a postura do vínculo lógico
Marx-Hegel (manterá, em grande monta, até sua obra madura Estética,
segundo Chasin), assim como sua apreensão do lineamento ontológico da
práxis social não é completa, o que acarreta, no diapasão gradativo em captar
a centralidade da ação e da tipicidade, questões que lhe vão sendo cada vez
mais caras na segunda metade da década de 1930 (COTRIM, 2009).
III
Roberto Schwarz (2000), em Um mestre na periferia do capitalismo,
reconhece, a partir das pegadas machadianas, o valor e o peso da historicidade
no fazer estético. Nesse sentido, trata-se, em outros termos, de superar um
certo contato tacanho e rebaixado com a cultura e a história, qual seja, aquele
“pitoresco e patriotista”, em que a história aparece mais como plano singular
irrepetível, imagem exótica e inconfundível, do que como complexo social
observado e narrado: contextura efetiva na/da totalidade da história humana.
Com larga astúcia, Veríssimo referia-se ao talento universalista de
Machado como tônica que reposicionava o nacional na generidade humana
(SCHWARZ, 2000), dando-lhe figuração concreta de sociabilidade típica do
capital periférico. Nesse intuito, as marcas de uma imaginação idealista e
romântica estariam dispensadas da dialética machadiana, vez que o perfazer
figurativo instaura, sobretudo, as marcas preponderantes da realidade, de um
escritor “imbuído de seu tempo e país”. A astúcia machadiana (largamente
valorizada por Schwarz), sua inflexão realista na consignação da ação e do
típico brasileiros, denota imponência tanto ao demonstrar a preponderância
do conteúdo social quanto ao negativar a rmula do descritivismo naturalista.
Em outras linhas, a resolução metodológica do romance e a dimensão técnica
servem como deslinde de rigor em que fica “apurado um jogo de pontos de
vista produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira”
(SCHWARZ, 2000, p. 9).
Trata-se, outrossim, de dramatizar o país por meio de um complexo
literário no qual a particularidade não desemboca em particularismo, quanto
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antes, demonstra na peculiaridade brasileira uma singularidade atrelada aos
elementos universais da configuração global do capitalismo, isto é:
Ao transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja,
ao interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão
da sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação
muito particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria
romântica. O homem de seu tempo e de seu país deixava de ser um
ideal e fazia figura de um problema. (SCHWARZ, 2000, p. 9)
Se há em Machado “lucidez social”, há também, segundo o crítico
brasileiro, “insolência e despistamento” (SCHWARZ, 2000). Quanto a isso
cabe dizer, peremptoriamente, que o autor realista toma a vida social como
solo indispensável, ao mesmo tempo em que edifica no campo da peculiaridade
estética seu viés, sua marca, sua técnica, que até hoje “obnubila leitores” e nos
permite depreciar qualquer “sociologismo”. Machado encontra nas personas
(das classes) dominantes o fulcro, a fonte que pode, por meio de uma voz
legitimada e arcaica, expor, pela narrativa, o esqueleto do conservadorismo
brasileiro, fazer sangrar com vivacidade o efeito das presas afiadas de uma
classe dominante congenitamente decadente; presas, estas, tão bem inseridas
e efetivadas que a “obnubilação dos leitores”, cnica machadiana, é aspecto
probatório da força das ideologias dominantes: o leitor mediano trata os
protagonistas narradores com plena compaixão, quando não reconhecimento.
A dedicatória de Brás Cubas, “ao verme que primeiro roeu as frias
carnes do meu cadáver” nos faz saborear a insolência do estilo. Insolência esta
que “compromete” obrigatória e intencionalmente o texto como forma, isto é,
delineamento estético que, para Schwarz, é essencial para colorir e
esquadrinhar o conteúdo social. O comportamento típico da classe dominante
“à brasileira”, terra de uma burguesia nada heroica, isto é, composição de estilo
que aglutina na própria forma e na própria trama mandonismo,
arbitrariedade, imponência, falsa sabedoria. Unidade de fatores estéticos que
se fundem em um segredo: alinhavar a natureza da tenaz e desigual
estrutura social brasileira.
Com vigor e posição, Cordeiro e Siffert (2016), em Origem do realismo
na teoria estética marxista do entreguerras, presentificam, também, as
questões que nos têm sido bastante pertinentes. Na medida em que uma
“identidade da não-identidade”, temos um contorno bastante candente da
nossa questão. Isto quer dizer que mesmo na representação realista pode-se
entrever multifacetado composto figurativo. Em suma, trata-se da variedade
estética plasmadora (no campo da própria arte) da “diferença específica da
coisa específica”, como posto na dicção marxiana. Faz-se valer, entretanto,
pelo critério substancial da “identidade da não-identidade”, que a obra realista
autêntica em sua variedade figurativa aglutina em uma linha de força:
desvelar a “síntese de múltiplas determinações” do tecido social.
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Assim, embora desenvolvido como linguagem e mantendo uma
inegável especificidade estética, o realismo pode ser visto como um
conjunto de técnicas que sempre possui sua razão de ser, em última
instância, na realidade histórico-social, que lhe é prévia, mas que o
realismo assimila formalmente e ajuda a compreender. Com isso,
estimula-se a emancipação da consciência humana mediante o crivo
crítico, algo crucial para a superação dos entraves da própria
realidade. (CORDEIRO; SIFFERT, 2016, p. 23)
Um entrave Lukács-Schwarz deve ser apontado como nota que nos
desvencilhe de uma harmonia integral entre os autores, sem que possamos, no
entanto, entrar nos detalhes da questão. Trata-se, de modo sumário, da
apreensão das vanguardas. A feição antirrealista dessas tendências faz coro na
apreensão estética lukacsiana, porém, segundo o próprio húngaro, não se trata
unilateralmente de uma divisa técnica, que assim sendo “obscurecem-se as
questões mais essenciais que dizem respeito à verdadeira forma” (LUKÁCS,
1969, p. 32). Colocada a questão no crivo isolado da técnica, obnubilam-se as
formas de transição, assim como se tergiversa o verdadeiro “princípio” da
oposição. A utilização da técnica, por si só, não garante o juízo da obra, o que
levaria a uma análise de superfície. Assim como nos detivemos sobre o caso da
técnica descritiva integrada ou o ao diapasão da narrativa, trata-se de
entender, para o autor marxista húngaro, se a técnica agrega-se ao novelo do
objeto artístico para desvelar criticamente a forma social, ou se é empregada
como realidade última”. Revela-se pertinente, por conseguinte, como cada
autor comunica a realidade no objeto artístico, doravante, o juízo da obra
perpassa o conjunto mimético elaborado independentemente da posição
pessoal do autor. Em outras palavras, a decorrência da forma estética tem
estreita relação com a inquirição “o que é o homem?”, aportando o
enraizamento da figuração na realidade efetiva, na obstinação da reflexão
artística autêntica do concreto historicamente determinado. Para Lukács,
porém:
Completamente oposto é o objetivo intencional pelo qual os
comandantes da vanguarda literária determinam a essência humana
de seus personagens. Podemos dizer, em suma, que eles não
consideram mais do que “ohomem, o indivíduo que existe desde
sempre, essencialmente solitário, desligado de todas as relações e, a
fortiori, social, ontologicamente independente. (LUKÁCS, 1969, p.
37)
Em Schwarz, por sua vez, o desagrado (quando existente) com as
vanguardas não toma um tom belicoso. É possível constatar, por vezes, até
certo apreço do autor em relação ao modernismo brasileiro, algo que pode se
explicitar, por exemplo, na medida em que o autor considera Oswald de
Andrade mais do que um inovador, ou um replicador daquilo patente na
vanguarda internacional. Em Oswald de Andrade, vale, segundo o marxista
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brasileiro, averiguar a matéria tratada: sua aglutinação geral entre Brasil
capitalista e pré-capitalista, ao modo estético de sua poesia, granjeia méritos.
Em poemas como Postes da Light, o acotovelamento entre o brasil-presente e
o brasil-passado se sintetiza no bonde e nas carroças, nos advogados do bonde
e no carroceiro, o oxímoro reluzente da modernização conservadora e
subordinada que transpassa algum realismo (SCHWARZ, 1987). Fica
manifesto, em outro texto do esteta, certo incômodo com a rivalidade edificada
entre as experiências de vanguarda e os socialistas. O próprio autor admite que
a problemática insigne transcende o stalinismo, pois o precede, antes de tudo.
Em que medida se deveria, de outra forma, conturbar de maneira mais
acordada o levante anticapitalista das vanguardas e da arte socialista? É algo
que Schwarz não responde de pronto, embora nos diga com certo ar de espanto
(algo que o se repete em Lukács): "socialismo e vanguardismo viam como
caducas as formas do mundo burguês e quiseram apressar seu fim”; e
arremata: “Por isso mesmo espanta que não tenha sido maior a sua associação
e, sobretudo, que no interior da esquerda tenha havido tanta hostilidade ao
espírito experimental a ponto de se formar um desencontro histórico."
(SCHWARZ, 1987, p. 87) Em A Santa Joana dos Matadouros, o próprio autor
brasileiro, a respeito da referida obra de Brecht, certifica que o teor generalista
de certos enredos brechtianos tem uma função "preciosa" na arte que se
pretende revolucionária, "o que pareceu formalismo a Lukács" (SCHWARZ,
1987, p. 89).
Duas questões, contudo, ficam bem delineadas para os dois autores: a)
a prioridade ontológica do real, portanto, a negação de uma “imanência da
consciência” kantiana, como remetido pelo próprio Lukács em Meu caminho
para Marx, já abordado; b) a averiguação do escrutínio artístico em seu
terreno próprio que, mesmo em reciprocidade com os momentos da realidade
efetiva, não pode ser tomado como predicado ou derivativo simplório. Em alto
relevo, acaba-se, em uma tacada, erigindo as vigas fortes da apreensão
dialética e da valorização do realismo crítico: a recusa da empulhação de uma
arte hipostasiada, juntamente ao solapar das noções de gênio” e
sobrevalorização da subjetividade. Ademais, ficam canceladas as estreitas
visões sociologistas, nas quais o curso estético pode ser explicado por simples
analogias com complexos sociais que lhes são distintos, desativando o papel
concreto das mediações e determinações reflexivas ao modo rigoroso
concebido/apreendido pela ontologia marxiana.
Entre a fatura artística e a complexa ordem de questões que exerce
sobre ela seu poder de configuração (questões que derivam da
realidade concreta), existe um campo de mediações cuja gica é
incorporada e estilizada na obra de arte. Tais mediações são
sintetizadas e se manifestam na forma, que, aqui, portanto, não é
entendida como resultado arbitrário da criação individual ou
subjetiva, nem como técnica de experimentação, mas como um
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substrato objetivo que é indissociável do conteúdo que precede e
condiciona o trabalho artístico e a fatura artística propriamente dita.
(CORDEIRO; SIFFERT, 2016, p. 23)
Concerne salientar, seguindo a mesma linha, que a formalização
estética, ao condensar o conteúdo social e, por isso, afirmar a precedência da
realidade efetiva, remonta também ao realismo e à apreensão dialética como
uma posição do autor objetivada na obra de arte. Por essa via, podemos
retornar ao Narrar ou descrever?, de György Lukács, em que o autor húngaro,
maturando sua teoria, afirma que a posição naturalista é antes de tudo uma
posição política, qual seja, aquela que ativa pressupostos conservadores,
fazendo papel anti-humanista ao produzir uma síntese confusa entre dialética
da natureza e dialética do ser social, instâncias ontológicas dotadas de
peculiaridades (ainda que isso não cancele a interrelação entre as duas formas
de ser). Em outro viés, do qual não poderemos aqui tratar com o cuidado
devido, trata-se de se precaver das posições irracionalistas, que desaguaram
no vigorar do pós-1848 (marco da divisa entre as lutas proletárias e burguesas)
em ideologias reacionárias de tipo “nostalgista”, pessimista e/ou solipsista,
com as quais Lukács se imiscuiu em sua juventude. Em termos lukacsianos,
rebaixamento do reflexo social à posição reacionária, “inconformismo
conformado”, ou mesmo emolduração de um atrativo e perigoso
anticapitalismo romântico.
Voltemos, agora, ao encalço de Schwarz para dar mais claridade e
análise, por meio de suas próprias referências, ao que nos parece demonstrar
uma posição plenamente atinente ao Lukács maduro, vislumbrando sua
admitida influência de Marx e Lukács, explicitada em Um mestre na periferia
do capitalismo. Notadamente, trata-se de remeter ao solo social como
substrato indispensável da arte sem, contudo, dá-la por simples e mecânico
epifenômeno (superação da dicotomia antidialética esteticismo versus
sociologismo). Em Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem
e em A poesia envenenada de Dom Casmurro há, desde o mais incipiente dos
textos, a persistência na relação entre forma artística e processualidade social.
Vejamos.
Pelo que remete Schwarz (1987), na análise marxista mais do que um
“método”. Se por método entende-se a via de chegada, o trajeto a ser
percorrido para o conhecimento, não se pode admitir que o “método marxista”
seja um modelo subjetivista extrínseco à sociabilidade. O método (marxiano)
é, antes de tudo, um enfrentamento da própria realidade, e não uma armação
discursiva, uma arquitetação mental a imputar procedimentos protocolares de
análise (CHASIN, 2009). Schwarz afirma que no texto de Antonio Candido,
Dialética da malandragem, que abarca Memórias de um sargento de milícias
(de Manuel Antônio de Almeida), a análise marxista é, ainda que não nomeada,
a inspiração central.
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Roberto Schwarz afirma que a consonância entre o aspecto formal e a
localização da obra é o tino de Candido, dando a entender que esta análise
dialética configura concomitantemente uma anatomia acerca dos “altos e
baixos” (a técnica de construção da narrativa), mas também a correta
assimilação da historicidade concreta esteticamente representada, em que os
complexos sociais estão objetivados de maneira particular. É por isso também,
em determinada medida, o sucesso do livro (de Manuel Antônio de Almeida),
que haveria com efetividade, no escrutínio das classes médias brasileiras,
uma representação levada às raias do simbólico da nossa situação de classe.
um “programa dialético”, portanto, e não um conjunto de “rituais”
formalísticos a ser seguido.
O que concerne bastante seriedade ao texto Dialética da malandragem,
de Candido, com toda concordância de Schwarz (1987), é justamente a análise
da trama centrada na “ação”, como já notávamos na dião de György Lukács.
Não se trata, portanto, de uma descrição fotográfica da “paisagem brasileira”,
quer dizer, de uma síntese confusa entre dialética da natureza e dialética do ser
social. O processo realista constatado na obra literária em questão (Memórias)
busca afirmar a práxis social como fulcro significativo, em que as teleologias
individuais, ou seja, a forma de representar o mundo, associar, refletir e
planejar a ação, demonstrem determinado pertencimento social, seu vínculo
inexorável com a posição ocupada na reprodução da sociabilidade (ainda que
seja um vínculo meandrado, não direto).
Assim, como marca György Lukács em Narrar ou descrever:
Esta constatação é necessária a fim de colocarmos concretamente o
nosso problema. Tal como ocorre nos demais campos da vida, na
literatura não nos deparamos com “fenômenos puros”. Engels
recorda que o “puro” feudalismo existiu na constituição do
efêmero reino de Jerusalém. No entanto, é evidente que o
feudalismo constitui uma realidade histórica e pode, logicamente,
ser objeto de uma indagação. Ora, é certo que não existe qualquer
escritor que renuncie completamente a descrever. E também seria
pouco lícito afirmar que os grandes representantes do realismo
posterior a 1848, Flaubert e Zola, tenham renunciado de todo a
narrar. O que nos importa são os princípios da estrutura da
composição e não o fantasma de um “narrarou “descrever” que
constituam um “fenômeno puro”. O que nos importa é saber como e
por que a descrição que originalmente era um entre os muitos
meios empregados na criação artística (e, por certo, um meio
subalterno) chegou a se tornar o princípio fundamental da
composição. Pois, deste modo, o caráter e a função da descrição na
composição épica chegaram a sofrer uma mudança radical.
(LUKÁCS, 1965, p. 50)
Vejamos como Schwarz se utiliza, de outro modo, das mesmas tintas:
Entretanto, não se trata de opor estético a social. Pelo contrário, pois
a forma é considerada como síntese profunda do movimento
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histórico, em oposição à relativa superficialidade da reprodução
documentária. Neste sentido, note-se que a ênfase no valor
mimético da composição, em detrimento do valor de retrato das
partes, chama uma consideração mais complexa também do real,
que não pode estar visado em seus eventos brutos. Uma composição
só é imitação se for de algo organizado... o que aliás indica, seja dito
de passagem, que a leitura estética tem mais afinidade com a
intepretação social abrangente do que as leituras presas à
autenticidade do pormenor. Leitura estética e globalização histórica
são parentes. (SCHWARZ, 1987, p. 135)
O que Schwarz (reforçando a análise de Candido) descreve como uma
“intuição profunda do movimento da sociedade brasileira” é justamente a
capacidade realista de Memórias, na medida em que supera e aglutina o
aspecto documental ( que, segundo Schwarz, seria imperdoável se
predominasse o aspecto documental-naturalista, a exclusão das classes
dirigentes e da classe dominada), tendo no “malandro” a condensação da
dinâmica social pica. Avançando: a composição artística inovadora do livro
permite justamente a representação da particularidade da sociedade de classes
brasileira – “representação crítica”, nas palavras de Candido –, pois consegue,
por meio do recorte, figurar as ações e “dinâmicas profundas” de uma situação
de classes não exatamente clássica (decadência genética da concreticidade
brasileira também bastante valorizada na figuração do real em Machado de
Assis), e que por isso transita, na “circulação dos personagens”, entre a ordem
e a desordem (SCHWARZ, 1987).
Vejamos como Lukács comenta o problema da representação e a
semelhança das posições:
O espírito pequeno-burguês pode ser intimamente superado por
uma verdadeira compreensão dos grandes conflitos e das crises do
desenvolvimento social. O pequeno-burguês jamais compreende
estes conflitos, mesmo quando é implicado por eles, mesmo se neles
mergulha com paixão. Para a atividade do escritor, isto significa – se
recordarmos que a tarefa central da literatura, como a definimos
anteriormente, é a figuração do homem real que ele deve distinguir
o verdadeiro do falso, o objetivo do subjetivo, o importante do não
importante, o grande do pequeno, o humano do inumano, o trágico
do ridículo. (LUKÁCS, 1968, p.99)
A redução estrutural do romance é, portanto, a intensificação dos traços
da realidade social não por meio de uma totalizante descrição documental, mas
uma utilização da técnica descritiva subordinada ao aspecto narrativo, à
concentração significativa no sentido das ações, dos planos, das interrelações
entre os personagens, da conformação das particularidades subjetivas em
consonância com uma configuração social específica; algo que se pode ver em
Schwarz e Lukács. Ou seja, pode-se, por meio de uma composição que retira
de campo as duas classes essenciais da sociedade (Memórias) e apresenta a
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classe de transição em primeiro plano, entrever o ser-precisamente-assim da
morfologia social destacada. Trata-se, sobretudo, de marcar a origem dos
parasitismos, a mescla entre o mais antigo, o mais arcaico, e do novo, por meio
de uma modernização conservadora, localização realista e dialética da
particularidade na universalidade. A inspeção do privilégio, da herança, do
prestígio” (SCHWARZ, 1987), da reiteração do antigo como caudatário do
novo, ou do novo como caudatário do antigo, não se sabe.
O problema não para por aí, como já advertíamos. A dialética da ordem
e da desordem cria a inteligibilidade da obra, é o recurso de intensificação ou
recuo (os “altos e baixos”) donde surge a integração da criação estética com a
condensação (estética) do conteúdo social. Mas, perceba-se, é uma
peculiaridade do ficcional, jamais uma transposão documental direta do real
ao representativo (SCHWARZ, 1987), mas uma forma antropomórfica de
criação literária, em que ação e tipicidade, sensitividade e sagacidade do autor
se imprimem (ou seja, a utilização da classe de transição como trama
desveladora por Manuel de Almeida). Nessa estilização, os aspectos
“folclóricos” são utilizados; a rigor, a malandragem como símbolo, que transita
do particular ao desvelo do universal, expondo essa espécie de forma de
sobrevivência a malandragem em que se aglutinam dois pontos
fundamentais: a (falsa) suspensão da tensão de classes e o embrutecimento da
subjetividade que é vilipendiada pelo modus operandi da individualidade
pequeno-burguesa da periferia do capitalismo (SCHWARZ, 1987).
Em A poesia envenenada de Dom Casmurro (1991), de Schwarz, por sua
vez e por correspondência, é preciso analisar a consonância entre o arcabouço
técnico dos “passos obscuros”, das “ênfases desconcertantes” (a “insolência
estilística e formal” de Machado de Assis, alertada) e a forma realista que
deslinda uma das elites “mais queridas” pela “ideologia brasileira”
(SCHWARZ, 1991). Para o autor, é tão clara a vinculação entre obra e
sociedade, ainda que não seja direta, que a figura de Bento Santiago, percebida
criticamente depois de 60 anos pela crítica literária americana, é tomada de
maneira condescendente pela “leitura brasileira”, quando não personagem que
inspira compaixão.
A ênfase, o falso psicologismo, a técnica de condução dos fatos por
Casmurro, explicitam a capacidade de Machado de Assis de fazer o leitor
trilhar o âmago da amargura de Bentinho. Nesse trajeto, o destino final é
comprovação suposta do calculismo e da dissimulação da menina Capitu. É
por isso que Schwarz (1991) afirma que a colocação técnica, para o leitor
ingênuo em assimilação e sensitividade social, incorre em uma armadilha
prontamente demonstradora do caráter de classe das subjetividades
receptoras, nada mais, como em Marx, que a ideologia dominante de uma
época como ideologia da classe dominante.
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O que parece descrever a situação de classe da recepção é que, para
Roberto Schwarz, a pena machadiana, em sua arrumação técnica da
condensação realista, também todo suporte para a desconfiança acerca de
Bentinho. A personagem desenha e redesenha seu caráter de classe dominante
nos traços particulares da personalidade e na reação quanto ao fato fulcral da
trama. Como alfineta:
Aliás, como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e sentimental,
admiravelmente bem-falante, um pouco desajeitado em questões
práticas, sobretudo de dinheiro, sempre perdido em recordações da
infância, da casa onde cresceu, do quintal, do poço, dos brinquedos
e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, além de obcecado
pela primeira namorada? (SCHWARZ, 1991, p. 86)
A adesão ao ponto de vista questionado é cruel e recorrente. Capitu vira
quase alegoria do perverso, do assentimental, da manipulação, de modo que o
questionamento de Bentinho visa a descobrir, de maneira retrospectiva, e esta
sim manipulatória, se na Capitu amorosa já existia a Capitu adúltera
(SCHWARZ, 1991). Se a técnica de deixar Bentinho conduzir-se ao ridículo não
funciona, mesmo em sua insidiosa interpretação enciumada e lacunar,
classista e patriarcal, possuidora e paternalista, é porque a “convulsão da
sociedade patriarcal em crise” ainda é representação enigmática de um modo
de ser arcaico e arraigado (SCHWARZ, 1991).
O ponto nevrálgico aqui, desta forma, é o conflito de classes entre uma
classe dominante de atributos decadentes e a tenacidade da “energia”
espantosa de Capitu. O horizonte antropomorfizado que se abre é o horizonte
social da objetividade em que cada ação particular não se revigora de
singularismo/particularismo, mas de condensação dos elementos mais
universais da dominação de classe, diga-se de passagem, travejados pelo liame
colonial. Nesse sentido, de maneira magistral e pioneira, o ato, a vontade, a
direção da personagem não aparecem como consciência de si pura, como
transvaloração subjetiva, mas como determinação social, ou subjetividade
como conformação ontologicamente articulada às configurações objetivas da
sociabilidade.
Ao adotar um narrador unilateral, fazendo dele o eixo da forma
literária, Machado se inscrevia entre os romancistas inovadores,
além de convergir com os espíritos adiantados da Europa, que
sabiam que toda representação comporta um elemento de vontade
ou interesse, o dado oculto a examinar, o indício da crise da
civilização burguesa. (SCHWARZ, 1991, p. 87)
O requinte e a sofisticação de Bento Santiago, na apresentação conflitiva
de sua narração, demonstram uma sagaz contradição que se compõe ao mesmo
tempo da sagacidade cnica e da condensação realista para representar o
“indício da crise da civilização burguesa”. Por um lado, o rapaz é cheio de
“credenciais”, é esposo e bom partido, bom filho e herdeiro, “arrimo da
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parentela”, proprietário e católico, no mesmo instante que se mostra
sentimentalmente desabrigado de humanismo (“indício da crise da civilização
burguesa”) quando supõe que sua honra o que significa remeter à “honra”?
– foi destroçada e que o peso disso valeria a extinção de uma vida.
A mesma ratoeira expositiva se repete na frase seguinte, agora com
apoio bíblico. Bento lembra o bom conselho de Jesus, filho de
Sirach, que manda não ceder ao ciúme para que a mulher "não se
meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Ainda aqui a
disposição para a incerteza serve de manto ao direito do mais forte,
à incriminação sem espaço para resposta: tudo se resume em saber
se a infidelidade de Capitu subtraída portanto a eventuais
objeções — foi efeito das constantes desconfianças do marido, ou se
estava , na menina, "como a fruta dentro da casca". (SCHWARZ,
1991, p. 89)
Vejamos que a inflexão religiosa-moral cristã aparece como traço
protagonista dessa classe dominante. De maneira correspondente, abrolha na
narrativa a imagem da mulher perfeita, dócil e controlada, em contraste com a
mulher corrompida pela malícia, pela autonomia, por um erro inato. Toda
inadequação do comportamento de Capitu, as grimas poucas jorradas, a
imagem de semelhança do filho e de Escobar, são pretextos, vias, contextos em
que o travessão mandonista, impositivo e opressivo da classe dominante
decadente dará o ar da graça. Não é por acaso que a precipitação conclusiva do
narrador, em vez de o ridicularizar, comove sem espanto e contradição.
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Como citar:
COELHO, Henrique. Roberto Schwarz e György Lukács: uma aproximação
dialética. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 278-300, jan./jun. 2020.
Data do envio: 1 jun. 2019
Data do aceite: 14 set. 2019