DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.485
Vitor Bartoletti Sartori
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Os juristas nas Teorias do mais-valor de Karl Marx:
produtividade e desenvolvimento capitalista diante da concepção
marxiana de socialismo
Vitor Bartoletti Sartori
1
Resumo:
Pretendemos mostrar, a partir daquilo que J. Chasin chamou de análise
imanente, o modo pelo qual Karl Marx, em seu Teorias do mais-valor,
analisou o trabalho produtivo ao ter em conta o desenvolvimento da burguesia
e o surgimento de camadas intermediárias entre o proletariado, a burguesia e
o processo imediato de produção. Em um primeiro momento, com Smith e a
crítica diante da sociabilidade feudal, haveria um elogio do trabalho produtivo
e uma crítica à improdutividade do trabalho de comerciantes, juristas,
funcionários públicos, entre outros. Depois, porém, a classe burguesa teria
adotado a mesma postura que criticara na nobreza. E, assim, desenvolve-se
uma concepção apologética no que toca ao sentido da categoria trabalho
produtivo. Os juristas, antes olhados com desconfiança, vêm a ser vistos de
modo acrítico em um processo em que, ao mesmo tempo, tem-se um
capitalismo senil e possibilidades abertas à superação deste.
Palavras-chave: Marx; Teorias do mais-valor; direito; trabalho produtivo;
juristas.
The jurists and in Karl Marx´s Theories of surplus value:
productivity and capitalist development and the Marxian concept
of socialism
Abstract:
We intend to show, with resource to what J. Chasin called immanent analysis,
the way in which Karl Marx, in his Theories of surplus value, analyzed the
productive work having the development of the bourgeoisie in account as long
as intermediary social categories emerge between proletariat and the
bourgeoisie. First, with Smith and a critique of feudal sociability, there was
certain attachment to work and to the critique the unproductiveness of the
work of merchants, lawyers, public contracts, among others. But then the
bourgeois class adopted the same stance which it had criticized in the nobility.
1
Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e
professor da do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). E-mail: vitorbsartori@gmail.com. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia
Noeli Ferreira de Assunção.
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And so its worldview develops in a apologetical way. The jurists, previously
viewed with suspicion, are seen in an uncritical way. The process in which that
occurs is that of a senile capitalism, with possibilities brought.
Keywords: Marx; Law; Theories of surplus value; productive work; jurists.
Introdução
No presente artigo, procuraremos analisar um aspecto importante da
obra de Karl Marx no que toca ao direito. Trata-se da relação entre a posição
do jurista e a concepção marxiana de trabalho produtivo. Para tanto,
passaremos por um texto pouco analisado na área de estudos de marxismo e
direito, as Teorias do mais-valor. Tal abordagem se justifica diante do enfoque
quase exclusivo da tradição brasileira de crítica marxista ao direito no livro I
de O capital. Na esteira da análise de Pachukanis (1988) e, no Brasil, de Márcio
Naves (2000; 2014), tem-se enfatizado a relação existente entre forma jurídica
e forma mercantil. Isto se dá, principalmente, tendo em conta o primeiro e o
segundo capítulos de O capital. De nossa parte, acreditamos que, mesmo tal
abordagem possuindo inúmeros méritos (cf. SARTORI, 2015), que não podem
ser negados, de se analisar o corpus da obra marxiana quando se pensa
no campo de estudos crítica marxista ao direito tendo em conta toda a
extensão do tratamento marxiano ao direito.
para que mencionemos alguns exemplos de relevo: o papel ativo do
direito no capital portador de juros é algo de grande importância a ser
compreendido (cf. CASALINO, 2015; SARTORI, 2019a); também é essencial
analisar o estatuto dúbio da regulamentação fabril em Marx (cf. SARTORI,
2019b); outros temas, como a posição de Marx quanto à teoria do direito (cf.
SARTORI, 2018a; 2017b) ou à noção justiça (SARTORI, 2017a), também são
essenciais na formação de um pensamento marxista sobre a esfera jurídica.
Não se pode, de modo algum, reduzir a crítica marxiana ao direito à relação
entre forma jurídica e forma mercantil
2
.
Poderíamos citar aqui outros exemplos
3
. Nosso ponto, porém, não é
esgotar o assunto. Antes, é: supondo o que deveria ser óbvio – que Marx tem a
2 Não é isso que Pachukanis faz, embora, deva-se frisar que os leitores destes dois autores, não
raro, tragam consigo tal leitura da obra marxiana, a qual, de nossa parte, acreditamos limitada.
3 para que mencionemos três outros exemplos: é importante ter em conta os primeiros
momentos da formação do pensamento de Marx no que toca ao direito. De 1837 a 1842,
consideráveis questões a serem levantadas e estudadas com calma no que diz respeito à
compreensão marxiana do direito (cf. PEREIRA LEITE, 2018). A relação entre nero
humano, democracia e direitos humanos na Crítica à Filosofia do direito de Hegel é um
aspecto bastante central no entendimento da formação do pensamento marxiano (cf. PALU,
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contribuir muito para o desenvolvimento da tradição marxista –, vale uma
análise exaustiva de seu pensamento sobre o direito. Nesse sentido, pode ser
importante analisar a posição que ocupam os juristas na teoria de Marx; e um
primeiro passo neste sentido pode ser dado com a análise das Teorias do mais-
valor.
A partir daquilo que J. Chasin chamou de análise imanente
4
,
intentamos explicitar as determinações do mencionado texto marxiano no que
tange à posição dos juristas na sociedade capitalista e em meio ao contraditório
desenvolvimento do modo de produção capitalista. Com isso, pretendemos
contribuir no estudo do pensamento de Marx. Mesmo que tal autor seja um
pensador do século XIX, diversas questões colocadas por ele ainda nos
perseguem. E, assim, uma atualidade bastante grande de sua obra (cf.
HARVEY, 2014). Para uma análise crítica do direito mesmo que se venha a
discordar do autor de O capital e do marxismo como um todo –, o
conhecimento da posição marxiana é central. Caso se concorde com o autor,
forneceremos subsídios para um conhecimento mais aprofundado; para
aqueles que dele discordam, o cuidado na análise da obra de Marx é sempre
bem-vindo; afinal, críticas superficiais não são propriamente críticas, mas algo
que, na melhor das hipóteses, traz certa ingenuidade.
Trabalho produtivo e o desenvolvimento do modo de produção
capitalista
No geral, a noção de trabalho produtivo tem um significado bastante
preciso no pensamento de Marx (cf. COTRIM, 2013). Não se trata de algo que
tenha um sentido o mais amplo possível; antes, tal abrangência equivocada do
termo chegaria a um ponto em que, com aquilo que Marx chamou de
concepção apologética, diz-se que “por fim, também o boi é um trabalhador
produtivo” (MARX, 1980, p. 245). Se é verdade que, em um sentido mais geral
e menos cuidadoso, pode-se falar do trabalho produtivo na produção de
valores de uso
5
, um sentido específico, que Marx sempre remete em suas
2019). Por fim, vale mencionar a posição de Marx quanto ao direito penal, o encarceramento
e o estatuto do crime (cf. MEDRADO, 2018).
4 Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação
ideal – em sua consistência autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o
conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e
suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta
que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses,
iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo
investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de
entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por
isso, de existir” (CHASIN, 2009, p. 26).
5 Como diz Marx: “trabalho produtivo é uma qualificação que, de início, absolutamente nada
tem a ver com o conteúdo característico do trabalho, com sua utilidade particular ou com o
valor de uso peculiar em que ele se apresenta” (MARX, 1980, p. 395).
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análises do modo de produção capitalista: trata-se do trabalho subordinado ao
capital e, em verdade, essencial à reprodução da relação-capital. Marx traz o
trabalho produtivo como uma categoria típica do modo de produção
capitalista, em que o essencial é a valorização do valor e, portanto, a extração
do mais-valor. Nesta situação, diz Marx que “a produtividade no sentido
capitalista baseia-se na produtividade relativa; então, o trabalhador não
repõe um valor precedente, mas também cria um novo”; complementa, ainda:
“materializa em seu produto mais tempo de trabalho que o materializado no
produto que o manm vivo como trabalhador. Dessa espécie de trabalho
assalariado produtivo depende a existência do capital” (MARX, 1980, p. 133).
Fica claro: o trabalho produtivo é a outra face do capital, é o trabalho produtor
de mais-valor
6
.
Trabalho produtivo no sentido da produção capitalista é o trabalho
assalariado que, na troca pela parte variável do capital (a parte do
capital despendida em salário), além de reproduzir essa parte do
capital (ou o valor da própria força de trabalho), ainda produz mais-
valia para o capitalista. Só por esse meio, mercadoria ou dinheiro se
converte em capital, se produz como capital. é produtivo o
trabalho assalariado que produz capital. (Isso equivale a dizer que o
trabalho assalariado reproduz, aumentada, a soma de valor nele
empregada ou que restitui mais trabalho do que recebe na forma de
salário. Por conseguinte, só é produtiva a força de trabalho que
produz valor maior que o próprio.) (MARX, 1980, p. 132)
O trabalho produtivo liga-se, portanto, à produção do mais-valor, e não
à sua realização ou ao intrincado processo pelo qual o valor produzido para
além do valor da mercadoria força de trabalho entra, a partir da circulação, no
sociometabolismo do capital (cf. COTRIM, 2013).
Dito isto, vale mencionar que, segundo Marx, no momento em que a
burguesia elogia o trabalho produtivo, ela vem mesmo a lhe atribuir “virtudes
sobrenaturais”, como teria acontecido, de acordo com a Crítica ao Programa
de Gotha, em John Locke
7
. Ou seja, Marx não é propriamente alguém que faz
a apologia do trabalho produtivo; antes, relaciona-o ao momento ascendente
6 Aponta Marx que “a força de trabalho do trabalhador produtivo é, para ele mesmo,
mercadoria. O mesmo se estende ao trabalhador improdutivo. Mas, o trabalhador produtivo
produz mercadoria para o comprador de força de trabalho. Para este, o trabalhador
improdutivo produz mero valor de uso e não mercadoria; valor de uso imaginário ou real. O
trabalhador improdutivo, e isto o caracteriza, não produz mercadoria para seu comprador; ao
contrário, deste recebe mercadorias” (MARX, 1980, p. 139).
7 Diz Marx na Crítica ao Programa de Gotha, e contra Locke e Lassalle: “os burgueses têm
excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força sobrenatural de criação; pois
precisamente do condicionamento natural do trabalho segue-se que o homem que não possui
outra propriedade senão sua força de trabalho torna-se necessariamente, em todas as
condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas
do trabalho. Ele só pode trabalhar com sua permissão, portanto, só pode viver com sua
permissão” (MARX, 2012, p. 24).
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da burguesia e à consolidação da relação-capital e, com ela, do assalariamento.
O elogio do trabalho produtivo, quando aparece no autor de O capital, dá-se
em termos bastante relativos: confunde-se com a constatação do caráter
progressista da burguesia em determinado momento historicamente limitado
e situado do modo de produção capitalista, o primeiro da história a buscar a
produção pela produção, como reconhecem importantes economistas políticos
como David Ricardo (cf. MARX, 1980). De acordo com o autor de O capital, os
defensores desta forma de trabalho são, sobretudo, os grandes pensadores da
economia política, como Smith e Ricardo (cf. SARTORI, 2018b). Este último,
seria, no limite, cínico, mas expressaria o cinismo da própria realidade
capitalista, sem falsificá-la
8
. A defesa do trabalho produtivo, assim, é uma face
da consolidação do modo de produção capitalista. Este, em seu momento
ascendente, coloca-se contra a nobreza e sua improdutividade, ligada à
burocracia estatal e à propriedade fundiária. Diz Marx sobre tal contexto:
Eis aí a linguagem da burguesia ainda revolucionária, que até então
não subjugara a sociedade toda, o estado etc. Essas ocupações
transcendentes, veneráveis, a de soberano, juiz, militar, sacerdote
etc., junto com todos os velhos grupos ideológicos que geram, os
eruditos magistrados e padres, equiparam-se, no plano econômico,
à turba de seus próprios lacaios e bobos, sustentados por eles e pela
riqueza ociosa, aristocracia fundiária e os capitalistas desocupados.
São meros servidores da sociedade, como os outros são seus
servidores. Vivem da atividade de outras pessoas, e portanto têm de
ser reduzidos à quantidade imprescindível. Estado, Igreja etc. têm
justificativa como organizações para superintender ou gerir os
interesses comuns da burguesia produtiva; e seu custo, por
pertencer às despesas acessórias da produção, tem de ser reduzido
ao mínimo indispensável. Essa ideia tem interesse histórico e está
em contradição aguda seja com o modo de ver dos antigos, para os
quais o trabalho produtivo de coisas materiais traz o labéu da
escravatura e é considerado apenas pedestal para o cidadão ocioso,
seja com a concepção inerente à monarquia absoluta ou
constitucional aristocrática surgida nos fins da era medieval,
concepção expressa com toda candidez por Montesquieu, ele mesmo
dela cativo, nesta frase (VII, cap. IV, Esprit des lois): "Se os ricos não
8 Desde a Miséria da filosofia Marx ataca o utopismo proudhoniano, ao destacar o cinismo de
Ricardo; o último traria uma abordagem burguesa e científica, ao passo que o primeiro, não:
“a teoria dos valores de Ricardo é a interpretação científica da vida econômica atual; a teoria
dos valores do Sr. Proudhon é a interpretação utópica da teoria de Ricardo. Ricardo verifica a
verdade da sua fórmula derivando-a de todas as relações econômicas. E assim explica todos os
fenômenos, inclusive aqueles que, à primeira vista, parecem contradizê-la, como a renda, a
acumulação de capitais e a relação entre salários e lucros; e é isto, precisamente, que faz da
sua doutrina um sistema científico. O Sr. Proudhon, que redescobriu esta fórmula de Ricardo
através de hipóteses inteiramente arbitrárias, vê-se compelido, ulteriormente, a procurar fatos
econômicos isolados, que violenta e falsifica. Para fazê-los passar por exemplos, aplicações
existentes, realizações iniciais da sua ideia regeneradora” (MARX, 1989, p. 54).
Posteriormente, principalmente nas Teorias do mais-valor (1980), Marx criticará a teoria do
valor de Ricardo e de Smith.
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gastarem muito, os pobres morrerão de fome”. (MARX, 1980, p.
283)
Depois de determinado momento do desenvolvimento do modo de
produção capitalista, a burguesia subjuga a sociedade toda e o estado,
colocando-os como subordinados aos seus interesses (cf. MARX, 1997;
SARTORI, 2012). No entanto, a ascensão desta classe esteve ligada à crítica à
burocracia absolutista, em que as figuras como a do sacerdote, do soberano e
do jurista são proeminentes. Padres e magistrados foram grandes alvos da
classe burguesa, que os enxergava como parasitas, tal qual eram os lacaios e os
bobos. E, assim, como servidores da sociedade, tanto os religiosos quanto os
juristas apareciam como partes parasitárias da sociedade, sustentadas pela
atividade de outras pessoas. Deveriam, portanto, ser reduzidas o máximo
possível. Ou seja, de acordo com Marx, no momento ascendente da classe
burguesa, claramente uma crítica ao trabalho que não é produtivo. Seria
preciso reduzir o trabalho improdutivo como aquele dos padres e dos
magistrados a despesas acessórias à produção, e subordinadas às
necessidades desta última. E Marx o se cansa de destacar a limitação
histórica desta concepção, em oposição tanto à Antiguidade quanto à época de
Montesquieu. Ou seja, tal posição é típica da classe burguesa, marcando seu
momento progressista e não podendo ser tomada como parâmetro para o
proletariado, mesmo que sua crise seja um importante indicador do
anacronismo da dominação do capital.
Segundo a própria burguesia, portanto, o desenvolvimento capitalista
deveria se dar com um enfoque na esfera produtiva, tendo-se a subordinação
do trabalho improdutivo ao produtivo. O incremento do trabalho assalariado
e da produção da grande indústria, assim, andavam juntos. Deste modo, o
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho se colocava como o
resultado da produção centrada na crítica às atividades improdutivas, como
aquelas do clero e dos juristas. Estes últimos deveriam ser meros servidores da
sociedade, sendo reduzidos ao mínimo necessário.
Tratar-se-ia dos falsos custos. Com a produção burguesa, de início e
contra a nobreza, são padres, juristas e outros duramente criticados. Porém,
depois de determinado momento, diz Marx nas Teorias do mais-valor, a faceta
desta classe social começa a mudar substancialmente.
A economia política no período clássico, do mesmo modo que a
própria burguesia no período inicial de autoafirmação, porta-se de
maneira severa e crítica com a maquinaria governamental etc. Mais
tarde percebe e como a prática também evidencia pela
experiência apreende que brota de sua própria organização a
necessidade da combinação social de todas essas classes, em parte
por completo improdutivas. Até onde aqueles "trabalhadores
improdutivos" não criam meios de fruição e, por isso, comprá-los
dependa totalmente do modo como o agente da produção quer
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despender o salário ou o lucro, e até onde, ao contrário, são
necessários ou se façam necessários em virtude de doenças (caso dos
médicos) ou de fraquezas espirituais (caso dos padres) ou de
conflitos entre os interesses privados e os nacionais (caso dos
administradores públicos, juristas, policiais, soldados), são vistos
por A. Smith, pelo próprio capitalista industrial e pela classe
trabalhadora, como falsos custos de produção, que importa reduzir
o mais possível, ao mínimo necessário e na base da mais baixa
remuneração dos serviços. A sociedade burguesa passa a produzir,
em sua própria forma, tudo que combatera na forma feudal ou
absolutista. Tarefa principal dos sicofantas dessa sociedade,
sobretudo os dos "níveis mais altos” é, portanto, em primeiro lugar,
restaurar no plano teórico o segmento meramente parasitário desses
"trabalhadores improdutivos" ou ainda justificar as exigências
exageradas da fração para ela indispensável. Proclamou-se, na
realidade, a dependência das classes ideológicas etc. para com os
capitalistas. (MARX, 1980, p. 154)
A crítica severa da burguesia quanto à maquinaria estatal acompanha a
elaboração teórica da burguesia ascendente, a economia política clássica
(principalmente com Smith e Ricardo). A classe burguesa pretende-se, em um
primeiro momento, como uma grande defensora do trabalho produtivo,
opondo-se impiedosamente à nobreza e à burocracia estatal; no entanto, de
acordo com Marx, tem-se que o próprio modo de produção capitalista tem uma
dependência intrínseca quanto a classes parcial ou completamente
improdutivas. Marx trata extensamente desta questão no livro III de O capital,
em que passa também por diversas figuras concretas do capital (cf. SARTORI,
2019c). No entanto, nas Teorias do mais-valor, o autor também destaca esta
intrincada relação entre trabalho produtivo e improdutivo no modo de
produção capitalista. Como aponta Marx:
A exploração do trabalho custa trabalho. O trabalho executado pelo
capitalista industrial, na medida em que seja apenas exigido pela
oposição entre capital e trabalho, entra no custo de seus
contramestres (os suboficiais da indústria) e está computado na
categoria de salário, como os custos que causam os feitores de
escravos e suas chibatas se incluem nos custos de produção do
senhor. Esses custos, como a maior parte das despesas comerciais,
pertencem aos falsos custos da produção capitalista. Quando se trata
da taxa geral de lucro, não se considera o trabalho dos capitalistas
com a concorrência recíproca e com a tentativa de se lograrem uns
aos outros; tampouco, a maior ou menor habilidade, o nível dos
custos com que um capitalista industrial, em confronto com outro,
sabe extrair de seus trabalhadores maior soma de mais-valia com os
menores gastos e realizar, no processo de circulação, esse trabalho
excedente extraído. Essa matéria pertence à análise da concorrência
entre os capitais. O domínio dessa análise é a luta e o trabalho dos
capitalistas para se apoderarem do maior montante possível de
trabalho excedente e se restringe apenas à repartição do trabalho
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excedente pelos diferentes capitalistas, e nada tem que ver com a
origem nem com a amplitude geral do trabalho excedente. (MARX,
1980, p. 1.399)
Os custos para que seja possível a exploração do trabalho são inerentes
ao modo de produção capitalista. O trabalho daqueles que se subordinam
imediatamente ao capital comercial, financeiro ou portador de juros, segundo
Marx, não é produtivo (cf. COTRIM, 2013); mas este trabalho é essencial para
a reprodução diuturna da sociedade capitalista. Haveria, inclusive, uma
tendência ao aumento deste tipo de trabalho (improdutivo) (cf. SARTORI,
2019c). Sobre o assunto, percebe-se, pois: não o ideal da classe burguesa,
ligado ao elogio do trabalho produtivo, seria contraditório. A própria
sociabilidade engendrada a partir disto também seria marcada em seu âmago
por uma natureza contraditória. E, assim, no livro III de O capital, Marx chega
a dizer:
O modo de produção capitalista cai em nova contradição. Sua
missão histórica é o desenvolvimento, inescrupuloso, impulsionado
em progressão geométrica, da produtividade do trabalho humano.
Ele se torna infiel a essa missão assim que, como aqui, se contrapõe
ao desenvolvimento da produtividade, refreando-o. Com isso,
comprova novamente que se torna senil e que, cada vez mais,
sobrevive a si mesmo. (MARX, 1986, p. 197)
Com o desenvolvimento capitalista, uma contradição gigantesca: o
modo de produção cuja missão era desenvolver a produtividade do trabalho
coloca-se contra esta. Por mais que, com a divisão do trabalho, na grande
indústria, forme-se o trabalhador coletivo e as forças produtivas sejam
desenvolvidas, isto não se de modo indefinido. Em verdade, com o tempo,
sequer o central, no que toca à reprodução da sociabilidade capitalista, vem a
ser a produção industrial e a burguesia produtiva; antes, tem-se a luta entre
diversas camadas da classe burguesa (burguesia comercial, financeira etc., por
exemplo) pela apropriação do valor produzido; e isso tudo sem que o central
seja a produção da riqueza mediante o aumento da produtividade do trabalho
(cf. SARTORI, 2019c). Ou seja, esta classe deixa de se portar de modo crítico
quanto à improdutividade de certas atividades. Ela deixa de se comportar
criticamente diante do existente e desenvolve aquilo que Marx chamou de
concepção apologética do trabalho produtivo (1980). E, em tal concepção, não
se deixa de lado a noção de trabalho produtivo, mas ela se mostra de modo tão
amplo que deixa de ser critério para qualquer concepção minimamente crítica:
“por fim, também o boi é um trabalhador produtivo” (MARX, 1980, p. 245).
Segundo Marx, neste ponto, a sociedade burguesa passa a reproduzir aquilo
que havia criticado veementemente no feudalismo e na nobreza.
Os elementos intermediários, como comerciantes, banqueiros e as
classes ideológicas, para que se use a dicção de Marx (1980) e os falsos custos
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são vistos como produtivos pela burguesia representante de um modo de
produção senil, que sobrevive a si mesmo (cf. SARTORI, 2019c). A
produtividade da atividade, mais precisamente, do trabalho, passa a ser vista
como aquilo que é necessário não ao incremento de riqueza social
9
e das forças
produtivas, mas à reprodução do sistema capitalista. Daí, um caráter
essencialmente apologético da concepção, segundo Marx. Se, em verdade, “só
o trabalho que produz capital é produtivo” (MARX, 1980, p. 136)
10
, para a
concepção apologética, qualquer trabalho minimamente relacionado à
reprodução indireta do capital passa a ser visto como produtivo. Se antes os
médicos, os padres, os administradores públicos, os juristas e os policiais
mesmo que necessários eram vistos como falsos custos, depois de
determinado momento, passam a ser vistos, sem uma análise minuciosa
11
,
como trabalhadores produtivos. Independentemente das nuanças que
envolvem tais trabalhos, como os do jurista, de se destacar que, segundo
Marx, há uma mudança substancial da burguesia quanto a este trabalho
improdutivo: antes, este deveria ser reduzido ao mínimo necessário; depois,
são reabilitados e se procura, no plano teórico e prático, uma aliança
retrógrada com tais camadas.
Trata-se, assim, da dependência de tais classes, que Marx chama de
ideológicas, diante dos capitalistas. Isto teria sido estabelecido com o
desenvolvimento capitalista. Tais classes aparecem como essenciais à
reprodução de uma sociabilidade calcada na valorização do valor. E, portanto,
tem-se também a dependência dos capitalistas diante de tais classes. A classe
burguesa, antes comprometida com o incremento da produtividade do
trabalho, passa a figurar como uma defensora das camadas sociais que criticou
em sua fase ascendente e que conformam, em verdade, falsos custos. Os
“sicofantas desta sociedade”, assim, não tardariam a enxergar nos juristas não
tanto uma camada a ser reduzida ao menor número possível, mas um estrato
9 Sobre os meandros da questão da riqueza em Marx, cf. Sartori (2018b).
10 “Só o trabalho que produz capital é produtivo. Mercadoria ou dinheiro tornam-se, porém,
capital, por se trocarem diretamente por força de trabalho e se trocarem apenas para serem
substituídos por mais trabalho do que neles se contém. É que, para o capitalista como tal, o
valor de uso da força de trabalho não consiste em seu valor de uso efetivo, na utilidade do
trabalho concreto particular o de fiar, tecer etc. Tampouco lhe interessa o valor de uso do
produto em si desse trabalho, sendo o produto para ele mercadoria (isto é, antes da primeira
metamorfose) e não artigo de consumo. O que lhe interessa na mercadoria é ter ela valor de
troca superior ao que por ela pagou, e assim, para ele, o valor de uso do trabalho consiste em
lhe restituir quantidade de tempo de trabalho maior do que a que pagou na forma de salário.
Nessa categoria de trabalhadores produtivos figuram naturalmente os que, seja como for,
contribuem para produzir a mercadoria, desde o verdadeiro trabalhador manual até o gerente,
o engenheiro (distintos do capitalista).” (MARX, 1980, p. 136)
11 Mencionamos a necessidade de tal análise porque a questão do trabalho produtivo envolve
a configuração das classes sociais em determinada sociedade, e o o conteúdo imediato de
determinado trabalho (cf. COTRIM, 2013).
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social de grande respeitabilidade. O desenvolvimento do modo de produção
capitalista, assim, traz uma mudança substancial na posição da classe
burguesa antes progressista e ligada ao incremento das forças produtivas; no
que diz respeito à mudança de tom diante dos juristas, isto é bastante claro e
precisa ser destacado ao se analisar de modo cuidadoso a posição de Marx
quanto ao direito.
Decadência ideológica, trabalho produtivo e juristas
De acordo com Marx, o momento ascendente da classe burguesa é
aquele em que suas demandas, contra a estrutura feudal, caminham lado a lado
com as das classes trabalhadoras. A situação é aquela de uma crítica
intransigente aos antigos dirigentes e às classes ideológicas que os
acompanhavam. Magistrados e padres não são poupados. No entanto, a
situação modifica-se:
Contudo, a burguesia alcança o domínio, apoderando-se ela mesma
do estado ou estabelecendo compromisso com os antigos dirigentes:
reconhece os profissionais ideológicos como carne de sua carne e os
transforma em funcionários e apropria-os; não é mais como
representante do trabalho produtivo que os confronta; os
verdadeiros trabalhadores produtivos erguem-se contra ela e dizem
que ela vive da atividade de outras pessoas; está bastante educada
para não se deixar absorver de todo pela produção, mas para querer
um consumo "refinado"; mais e mais os trabalhos intelectuais se
realizam a seu serviço, põem-se a serviço da produção capitalista:
como resultado imediato dessas ocorrências, as coisas mudam, a
burguesia procura, no “plano econômico", legitimar, de seu próprio
ponto de vista, o que criticara e combatera antes. Nessa linha, seus
porta-vozes e forjadores de consciências perfumadas são os Garniers
etc. Acrescente-se aí que esses economistas, por sua vez, sacerdotes,
professores etc., empenham-se em demonstrar sua utilidade
"produtiva", em justificar seu salário "no domínio econômico".
(MARX, 1980, p. 284)
As classes ideológicas, antes criticadas, tornam-se carne da carne da
classe burguesa; com isto, a concepção de trabalho produtivo torna-se
“expandida”, abrangendo, dentre outros, juristas e religiosos. Deste modo, há
uma mudança: se antes o trabalho produtivo aparecia no campo da produção
da grande indústria e, portanto, englobava essencialmente, embora não só, o
trabalho do moderno proletariado, agora tem-se um afastamento desta classe
social. A burguesia aproxima-se dos funcionários da maquinaria estatal
herdada do estado absolutista havendo uma íntima relação com os juristas
neste processo – e se afasta dos verdadeiros trabalhadores produtivos, aqueles
de cuja força de trabalho é extraído o mais-valor. Não se tem somente uma
concepção apologética de trabalho produtivo sendo desenvolvida, portanto; tal
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concepção depende, de um lado, da aliança com os antigos dirigentes antes
criticados e, doutro lado, do antagonismo quanto aos assalariados produtores
de mais-valor. Tem-se, assim, a explicitação da oposição entre burguesia e
proletariado.
O processo pelo qual os juristas são reabilitados é aquele em que as
ocupações “transcendentes e veneráveis” passam a ser vistas de modo acrítico
e o proletariado passa a ser visto enquanto uma classe social antagônica à
moderna burguesia. Com tal processo, no plano ideológico, tem-se que “no
lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no lugar
da pesquisa científica imparcial entrou a consciência e a intenção da
apologética” (MARX, 1996a, pp. 135-6). Trata-se daquilo que György Lukács
(2015) chamou de decadência ideológica.
Nesse momento, aqueles que são os verdadeiros trabalhadores
produtivos se voltariam contra a própria burguesia. Em um primeiro
momento, inclusive, isto se daria com argumentos muito similares àqueles que
a classe burguesa usou contra os padres, os magistrados e outros: tais camadas
vivem da atividade de outras pessoas. Assim, em um primeiro momento, na
lida com as contradições sociais, também no que toca às “formas ideológicas,
sob as quais os homens adquirem consciência desses conflitos” (MARX, 2009,
p. 46), o proletariado moderno se coloca no terreno da burguesia, aquele da
defesa do trabalho produtivo. Uma arma forjada pela própria burguesia, uma
concepção centrada no trabalho produtivo, até certo ponto, começa a voltar-se
contra ela, tal qual ocorreu com as liberdades civis e políticas
12
. Ou seja, por
mais que, segundo Marx, a noção de trabalho produtivo não possa ser tomada
como parâmetro em uma crítica radical ao modo de produção capitalista, ela,
com os seus meandros, foi o ponto de partida da classe trabalhadora para tal
crítica. No momento de decadência ideológica da burguesia, as armas que
forjou colocam-se contra ela mesma, por mais que não possam levar até o fim
a crítica à classe burguesa
13
.
Enquanto a crítica passa ao lado da classe trabalhadora, a tentativa de
legitimação do existente coloca-se no campo da burguesia. E, assim, a noção
de trabalho produtivo, em vez de ser abandonada pela burguesia, passa a
adquirir contornos que Marx chamou de apologéticos.
12 Diz Marx no 18 brumário de Luís Bonaparte: “e não se trata aqui de mera forma de falar,
de moda, de tática de partido. A burguesia tinha a noção correta de que todas as armas que ela
havia forjado contra o feudalismo começavam a ser apontadas contra ela própria, que todos os
recursos de formação que ela havia produzido se rebelavam contra a sua própria civilização,
que todos os deuses que ela havia criado apostataram dela. Ela compreendeu que todas as
assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua
dominação classista a um tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se
tornado ‘socialistas’” (MARX, 2011, p. 80).
13 Contra as limitações desta centralidade do trabalho produtivo, cf. Marx (2012) e Sartori
(2018b).
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A relação entre lucro, renda e o sistema de dependentes (antes criticado
pela classe burguesa) colocar-se-ia, sempre de acordo com Marx, da seguinte
maneira neste momento:
Se trabalhadores produtivos são os pagos pelo capital, e
improdutivos os pagos pela renda, é óbvio que a classe produtiva
está para a improdutiva assim como o capital está para a renda.
Todavia, o crescimento proporcional de ambas as classes não
dependerá somente da relação existente entre a massa dos capitais
e a massa das rendas. Dependerá da proporção em que a renda
(lucro) crescente se transforma em capital ou é despendida como
renda. Embora muito parcimoniosa a origem, a burguesia, com a
produtividade crescente do capital, isto é, dos trabalhadores, passa
a imitar o sistema feudal de dependentes. De acordo com o último
relatório sobre as fábricas (1861 ou 1862), o total das pessoas
empregadas nas bricas propriamente ditas no Reino Unido
(inclusive gerentes) era apenas de 775.534, enquanto o número de
empregadas domésticas só na Inglaterra ascendia a um milhão. Que
belo arranjo este que faz uma operária suar 12 horas na fábrica, para
que o patrão ponha a seu serviço pessoal, com parte do que não lhe
pagou do trabalho, a irmã dela como criada, e o irmão como criado
de quarto, e o primo, como soldado ou guarda. (MARX, 1980, p. 180)
Em seu momento ascendente, a burguesia no plano teórico, com
David Ricardo à frente criticou vivamente a renda da terra e, portanto, a
classe que vivia desta. A crítica ao trabalho improdutivo trazia consigo não
uma posição contrária à maquinaria estatal e àqueles que a orbitavam, como
os juristas e o clero; tinha-se também uma condenação potente do modo de
vida da nobreza, com seus servos e seus dependentes. No entanto, com o tempo
com o desenvolvimento e explicitação das contradições do modo de
produção capitalista –, a própria burguesia começa a ver como muito
respeitáveis as “ocupações transcendentes” e passa a imitar o sistema feudal
de dependentes. Estes últimos, por sua vez, têm seus trabalhos pagos pela
renda e, assim, o modo de vida burguês passa a naturalizar o trabalho
improdutivo como algo essencial.
O incremento na produtividade dos trabalhadores faz que, de um lado,
com o assalariamento do trabalho de supervisão, a burguesia deixe de exercer
uma função direta na própria produção (cf. SARTORI, 2019c) e, doutro lado,
ela possa começar a imitar a nobreza no que toca à contratação de
dependentes, como empregadas domésticas, por exemplo. Ou seja, uma
separação entre a propriedade e a função no plano econômico: a função da
burguesia na produção passa a ser exercida por assalariados, como os gerentes
e supervisores, por exemplo. Tem-se também no plano doméstico uma
subordinação classista, havendo, mesmo na época de Marx, mais dependentes
do que operários fabris. O “arranjo” seria aquele em que se extrai mais-valor
de uma operária durante 12 horas para que, no plano privado e pessoal, o
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burguês possa empregar sua irmã e irmão como criados e seu primo como
guarda ou soldado; tudo isso com o mais-valor produzido por esta mesma
operária. A questão, de certo modo, é essencial ao tema tratado neste artigo.
Em primeiro lugar, há de se notar que as tendências apontadas por
Marx não são aquelas que transformam a sociedade, sem mais, em uma grande
fábrica; tal como destacado no livro III de O capital (cf. SARTORI, 2019c), aqui
se tem Marx apontando certo crescimento daquilo que hoje é chamado de
“setor de serviços” (embora não seja esta a expressão que o autor utiliza) em
meio às tendências do próprio capitalismo, e não como um desvio de rota
contingente. Outra questão importante é: com o desenvolvimento do modo de
produção capitalista, uma separação entre função e propriedade em um
duplo sentido: no plano “público”, o burguês traz um assalariado para realizar
o trabalho de supervisão da produção que se dá em sua propriedade; no plano
“privado”, não é mais a família burguesa (geralmente, pela estrutura patriarcal
da sociedade capitalista, a mulher) a realizar o cuidado da propriedade privada
de uma casa, do lar. Antes, tem-se assalariados improdutivos que, de modo
análogo ao que ocorria com a nobreza, realizam o trabalho doméstico em um
regime de dependência, que, inclusive, é pago com o mais-valor extraído dos
trabalhadores propriamente produtivos. E, é bom destacar: de acordo com
Marx, no caso, não se trata de qualquer resquício feudal. Tal imitação por parte
da burguesia faz parte do próprio processo em que esta classe desenvolve uma
concepção apologética e deixa de ser real e efetivamente uma classe social
capaz de uma postura crítica diante da realidade social. O próprio modo de
vida burguês, assim, passa a efetivar-se em uma simbiose com aquilo que a
burguesia enquanto classe criticou em sua fase ascendente: o regime de
dependência, o ganho decorrente da simples propriedade (antes, com a renda
da terra, agora com a propriedade dos meios de produção dissociada da função
de supervisão), o trabalho improdutivo colocado na maquinaria estatal e
naqueles que ela orbitam, como os magistrados, os juristas, os padres etc. A
respeitabilidade transcendente dos juristas passa a ser acompanhada de Deus,
família e propriedade.
Aumento dos intermediários, melhor nível de cultura e trabalhador
coletivo: a possibilidade de superação do modo de produção
capitalista a partir das contradições do próprio capitalismo
A questão, assim, passa pelo caráter “senil” da produção burguesa, para
que se use a dicção do livro III de O capital. Ele se apresenta também na
medida em que camadas antes criticadas pela classe burguesa são reabilitadas.
Padres, juristas, assim, passam a fazer parte essencial do modo de vida e da
ideologia burgueses. No entanto, outra face deste processo: o crescimento
do trabalho improdutivo é o resultado também do aumento da produtividade
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do trabalho, e de diversos liames novos que acompanham tal incremento. E,
portanto, Marx não concebe tal cenário de modo romântico, com certa
nostalgia quanto à posição que a burguesia uma vez teria adotado (também em
relação ao jurista). Antes, tem-se o oposto: da natureza senil da produção
capitalista se desenvolveriam potencialidades inerentes à divisão do trabalho
que emerge sob a vigência da grande indústria na produção capitalista, que já
é acompanhada pelo anacronismo do domínio burguês.
Um lado destacado é o aumento de intermediários submetidos à
produção capitalista. Há, porém, vários tipos de intermediários se colocando
diante do processo imediato de produção. De acordo com Marx, estes
diferentes tipos aumentam substancial e tendencialmente, tendo-se o
crescimento dos comerciantes e daqueles que lidam de modo muito mais
mediado com a produção:
como os trabalhadores improdutivos políticos. Podia-se admitir que,
excetuados a horda de criados, os soldados, marinheiros, policiais,
funcionários subalternos etc., concubinas, palhaços, malabaristas –
esses trabalhadores improdutivos no conjunto teriam melhor nível
de cultura que os anteriores trabalhadores improdutivos, e
sobretudo que o número de artistas, músicos, advogados, médicos,
homens de letras, professores, inventores etc., mal pagos, teria
também aumentado. No seio da própria classe produtiva acresceram
os intermediários comerciais, e em particular os empregados na
construção de máquinas, nas ferrovias, na mineração e escavação;
além disso os trabalhadores que na agricultura se dedicam a criar
gado, produzem materiais químicos, minerais para adubos etc.
(MARX, 1980, p. 199).
Marx critica fortemente a “horda de criados”, que passa a ser vista de
forma acrítica pela burguesia no modo de produção capitalista. O tom de Marx
diante deste tipo de intermediário é bastante negativo e, assim, parece que eles
expressam simplesmente o caráter senil de um modo de produção marcado
pela decadência ideológica da classe burguesa. No entanto, o autor admite que,
mesmo que com suas individualidades subsumidas ao capital (cf. SARTORI,
2018c), também uma parcela de trabalhadores improdutivos que pode ter
um melhor nível de cultura, como é o caso dos professores e dos advogados,
entre outros. E, assim, a crítica de Marx a este grupo de ocupações não é tão
ríspida quanto aquela que tece ao grupo anterior. O autor de O capital aponta
também, em meio a este processo, o crescimento de intermediários na
produção, que acabam por desenvolver “potências intelectuais da produção”
14
14 O processo é dúplice: “as potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um
lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem
concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da divisão manufatureira do trabalho
opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia
e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o
capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo
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(MARX, 2013, p. 541), o que é trazido mais diretamente no último grupo
apontado, mas que também se relaciona indiretamente com o grupo
intermediário, em que estão os advogados e os professores. Estes últimos,
assim, têm uma posição bastante dúbia: não são uma “horda de criados”, mas
também não têm uma função direta no processo produtivo.
Ocupam uma posição no sistema produtivo e na divisão do trabalho
capitalista, sendo preciso para o nosso tema e para aqueles que pretendem
um estudo marxista do direito ter em conta o lugar dos juristas na
organização da produção, na divisão social do trabalho.
Assim, tem-se um processo dúplice: a subsunção das
individualidades, e das classes ideológicas, ao desenvolvimento do capital. No
entanto, isto se com o desenvolvimento de condições que, segundo Marx,
tornam anacrônica a própria dominação burguesa. A unilateralidade marca o
modo de produção capitalista sob este aspecto; “por exemplo, a produção
capitalista é hostil a certos setores de produção intelectual, como a arte e a
poesia” (MARX, 1980, p. 267). Porém, o fato de o trabalho intelectual e o
general intellect (cf. SARTORI, 2019c) relacionar-se intimamente com a
conformação daquilo que Marx chamou de trabalhador coletivo faz que a
ciência passe a ter um papel cada vez maior no desenvolvimento da
produtividade do trabalho. E isto é importante para o que tratamos aqui,
que a ciência desenvolve-se em correlação direta com a atividade produtiva,
como é o caso do último grupo de intermediários tratados por Marx; mas
também tem um impulso essencial advindo de camadas com maior grau
cultural e ligadas somente de modo mediado ao processo imediato de
produção. Músicos, médicos, inventores, advogados, professores, assim,
realizam um trabalho intelectual que, ao mesmo tempo, está subordinado à
produção capitalista, mas tem certa autonomia relativa em relação ao processo
imediato de produção. A posição de tais camadas, tão importantes para a
compreensão da história do século XIX (cf. HOBSBAWM, 2002; 2007), assim,
precisa ser analisada com bastante cuidado, caso se queira realizar um estudo
sério sobre a questão do direito que envolve a compreensão da posição dos
juristas – em Marx.
E, é preciso que se diga: tal questão, ao que saibamos, foi pouquíssimo
estudada pelos marxistas, sendo somente aludida por poucos autores, como
György Lukács (2013).
A ligação de tais camadas à produção é bastante importante no
desenvolvimento do processo global de produção capitalista, tratado, em suas
determinações gerais, por Marx no livro III de O capital. Os inventores, por
social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele
um trabalhador parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência
como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital” (MARX, 2013, p. 541).
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exemplo, são essenciais ao próprio incremento das forças produtivas e seu
papel no avanço das ciências é claro. A relação dos professores e da educação
formal, escolar, técnica ou universitária com a formação de uma força de
trabalho mais adequada às necessidades da produção capitalista também é,
mesmo que com nuanças, evidente (cf. SARTORI, 2018d). A posição dos
juristas, porém, é muito menos destacada por Marx, embora, em toda a sua
obra, tenha-se um tom bastante crítico quanto a estes e quanto ao papel do
direito e da visão de mundo jurídica (cf. SARTORI, 2018a). Ou seja, a partir
das Teorias do mais-valor, tem-se que um estudo do direito na obra marxiana
deveria passar pela compreensão da peculiaridade da posição social do jurista
diante da divisão do trabalho. Seria necessário ter em conta, de um lado, a
subordinação das classes ideológicas – no caso, dos juristas, em suas diversas
figuras aos capitalistas e, doutro, a autonomia relativa destas classes diante
do processo imediato de produção.
Há, portanto, muitos aspectos a serem estudados na obra de Marx que
não vêm a ser centrais na maior tradição de estudos marxistas sobre o direito,
aquela que tem como maior expoente Márcio Naves, de orientação
pachukaniana e althusseriana. Aqui não poderemos ir além destas indicações
no que diz respeito a este assunto. No entanto, no que tange ao nosso tema,
devem-se destacar aspectos que não se ligam tanto à posição dos juristas na
divisão do trabalho capitalista, mas à posição de outras camadas, que estão
relacionadas mais diretamente às contradições da produção capitalista, e que
trazem não só elementos de senilidade neste modo de produção, mas também
potencialidades. Ao se ter em conta o que diz Marx nas Teorias do mais-valor,
isto se daria, primeiramente, porque a função do capitalista no
desenvolvimento da produtividade passa a ser cada vez mais distante e
contingente: no que diz respeito às condições de trabalho, tem-se
trabalhadores assalariados realizando o trabalho de supervisão (trabalho este
que, via de regra, exige uma formação mais alongada, que pode ser realizada,
também, em escolas e universidades); no que toca ao desenvolvimento
científico, ele fica a cargo mais diretamente das classes ideológicas, mesmo que
improdutivas, como é o caso de um professor universitário ou de um
pesquisador (ou grupo de pesquisadores) de uma universidade pública. A
proeminência do capitalista no sistema capitalista de produção, assim, deve-
se à sua simples propriedade, e não a qualquer função que exercer na
produção. As funções antes exercidas pela classe burguesa passam a ser
exercidas por outras pessoas, cuja formação e função são possíveis devido
ao processo que mencionamos.
No livro III de O capital aparecem exemplos do que dizemos (cf.
SARTORI, 2019c). Segundo Marx, dentro do próprio capitalismo começam a
aparecer fábricas cooperativas, que expressam tanto a senilidade da produção
burguesa quanto o fato de que esta forma produtiva traz em potência embora
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não em ato a sua própria supressão. As fábricas cooperativas decorrem da
formação de um trabalhador coletivo que, sem o controle direto da classe
burguesa, produz social e coletivamente, mesmo que nos limites da produção
capitalista. Justamente da relação dos trabalhadores produtivos com as
potências intelectuais da produção e com o general intellect tem-se o
desenvolvimento das “fábricas cooperativas dos trabalhadores” que, segundo
Marx, “são, dentro da antiga forma, a primeira ruptura da forma antiga,
embora naturalmente, em sua organização real, por toda parte reproduzam e
tenham de reproduzir todos os defeitos do sistema existente” (MARX, 1986, p.
335)
15
. Ou seja, o mesmo processo que gera o caráter acrítico da burguesia
quanto ao trabalho improdutivo traz também, como possibilidade, a
autogestão da produção, a auto-organização dos trabalhadores produtivos.
Mesmo que, na forma das bricas cooperativas, não se tenha uma supressão
do capitalismo, seria possível uma primeira ruptura, com todas as contradições
que daí decorrem, caso não se tenha uma mudança no próprio modo de
produção. Aqui, porém, não podemos tratar deste complexo tema (cf.
SARTORI, 2019c); somente vale destacar o caráter transicional desta forma
social: o trabalho produtivo está, pelo que dissemos, subordinado ao capital.
No entanto, neste caso, isto se dá sem que o capitalista vá exercer uma função
no processo imediato de produção; tem-se uma situação em que “a antítese
entre capital e trabalho dentro das mesmas está abolida”, mas Marx acrescenta
uma importante ressalva: “ainda que inicialmente apenas na forma em que os
trabalhadores, como associação, sejam seus próprios capitalistas, isto é,
apliquem os meios de produção para valorizar seu próprio trabalho” (MARX,
1986, p. 335).
Mesmo que não se supere a forma capitalista de produção ligada ao
processo de valoração do trabalho e do valor –, provam-se dois aspectos
essenciais, que passam pela imbricação entre trabalho intelectual e manual: 1)
a função que a classe burguesa exercia deixa de ser necessária à própria
produção social; 2) a autogestão da produção passa a ser uma possibilidade
real. E, assim, ao mesmo tempo em que, com a reconciliação com camadas
antes criticadas pela burguesia, tem-se um capitalismo senil e a decadência
ideológica, a possibilidade objetiva de superação do modo de produção
capitalista, mesmo que isto seja, nesta situação, dramático (cf. SARTORI,
2019c).
Agora, portanto, podemos destacar: tal processo traz consigo a
indissolubilidade entre trabalho intelectual, classes ideológicas e produção. Tal
ligação se torna mais íntima e pode colocar-se, no exemplo das fábricas
cooperativas de trabalhadores, como uma primeira ruptura da forma antiga.
15 Para os meandros da questão das cooperativas, bem como das sociedades por ações, cf.
Sartori (2019c).
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Ou seja, no que diz respeito ao tema de nosso artigo, o processo que Marx trata
nas Teorias do mais-valor é aquele em que s potências intelectuais da
produção são desenvolvidas de modo proeminente. Mas isto envolve um
processo dúplice, em que tal modo de produção se torna senil ao mesmo tempo
em que surgem possibilidades objetivas antes indisponíveis. A classe burguesa
adquire uma posição acrítica quanto a padres, juristas e ao regime de
dependência, antes criticados por ela. Tem-se uma concepção apologética de
trabalho produtivo. Ao mesmo tempo, a autogestão já é, mesmo que de modo
limitado, uma realidade. Uma sociabilidade calcada na valorização do valor e,
portanto, no trabalho produtivo traz consigo tais contradições.
No que é importante que nos posicionemos mais claramente quanto ao
modo pelo qual Marx traz à tona, nas Teorias do mais-valor, a defesa burguesa
da produtividade de sua atividade:
A defesa da classe burguesa do trabalho produtivo, de certo modo,
mesmo na fase ascendente desta classe social, tinha curto alcance. O seu
enfoque unilateral na esfera produtiva, compreendida sob os ditames do
capital, fez que a subordinação de todas as atividades à lei do valor fosse o
essencial. Com isso, a ciência poderia se tornar uma força produtiva de
modo contingente, ou seja, enquanto estivesse subordinada à extração do
mais-valor. No entanto, segundo Marx, o desenvolvimento científico não tem
como se subordinar simplesmente à lei do valor.
Diz o autor nas Teorias do mais-valor: “o produto do trabalho
intelectual a ciência está sempre muito abaixo do valor”. E continua: “é que
o tempo de trabalho necessário para reproduzi-la não guarda em absoluto
proporção alguma com o tempo de trabalho requerido pela produção original.
Um colegial, por exemplo, pode aprender em uma hora o teorema do binômio”
(MARX, 1980, p. 339). Ou seja, as forças produtivas, as capacidades humanas
desenvolvidas, na figura da ciência, no solo do modo de produção capitalista
ultrapassam em muito as relações de produção burguesas. O efetivo
desenvolvimento das forças produtivas e a aplicação destas na produção
passam a ser, até certo ponto, incompatíveis; as capacidades humanas trazidas
com o desenvolvimento científico não se realizam na produção capitalista por
não poderem mais se conformar à medida do valor. E, assim, uma tensão
bastante grande: de um lado, a subordinação das potências intelectuais da
produção à unilateralidade da lei do valor, doutro, a possibilidade de liberar
tais potências intelectuais da “prisão” em que estão colocadas pelas relações de
produção capitalistas. Tais tendências estão igualmente presentes nas
contradições da produção capitalista.
Trata-se de uma tensão entre uma produção calcada na valorização do
valor e capacidades humanas que não são mais adequadas a esta medida. Não
se trata, pois, da inefetividade da lei do valor em condições capitalistas de
produção, como quer Negri (2016). O aumento dos intermediários significa,
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assim, que se tem a contraditória socialização da produção que se dá no
capitalismo. Longe de a proeminência de ocupações como professores,
advogados, inventores etc. significar que a análise de Marx está ultrapassada,
pelo que indicamos, tem-se o oposto: o próprio autor de O capital analisou tal
questão, mesmo que este tema não seja o principal de sua obra.
Conclusão: universalização do trabalho produtivo como
socialismo?
Pelo que dissemos, nada passa mais longe de Marx que a defesa da
universalização do trabalho produtivo. Antes, esta forma de atividade seria
inerente ao modo de produção capitalista, sendo o trabalho produtivo aquele
que produz valor e, portanto, reproduz o capital. O autor de O capital, assim,
se é um crítico do modo de produção capitalista, igualmente é um crítico do
trabalho produtivo. Este último se liga a uma forma social em que a riqueza
das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como
uma ‘imensa coleção de mercadorias’ e a mercadoria individual como sua
forma elementar” (MARX, 1996a, p. 165). Marx, por seu turno, critica a
sociabilidade que tem como mediação universal a mercadoria; ele defende uma
concepção de riqueza em que a medida não é o tempo de trabalho socialmente
necessário, mas o tempo livre. A atividade humana, assim, desenvolver-se-ia,
“junto com a remoção dos antagonismos sociais entre patrões e empregados
etc., assume, como trabalho realmente social e por fim como base do tempo
disponível, caráter de todo diverso”, ou seja, não se trataria mais de trabalho
produtivo, subordinado ao capital e produtor de mais-valor, e isto significaria
uma atividade “mais livre, e que o tempo de trabalho de um ser humano, que
é ao mesmo tempo um ser com tempo disponível, terá de possuir qualidade
superior ao do trabalho da besta de carga” (MARX, 1980, p. 1.306). Nesta
condição, diz o autor nas Teorias do mais-valor: “o tempo livre, o tempo
disponível, é a própria riqueza – quer para fruir o produto, quer para a
atividade livre”, completando: “atividade que não é determinada como o
trabalho pela coerção de um objetivo externo que é mister atingir e cuja
realização é necessidade natural ou dever social, como se queira” (MARX,
1980, p. 1.306).
Tempo livre como medida de riqueza, e não tempo de trabalho
socialmente necessário; atividade livre, portanto, e não trabalho produtivo.
Esta é a posição de Marx.
O processo para que isso fosse possível, no entanto, tem vários
meandros, que vimos acima: 1) o desenvolvimento das forças produtivas
pode ser trazido no capitalismo com a valorização do trabalho produtivo e, com
ele, da produtividade do trabalho; 2) tal missão foi cumprida pelo sistema
capitalista e pela classe burguesa, mas este sistema social começou a entrar em
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contradição consigo mesmo, reabilitando classes contra as quais a burguesia
havia se posicionado anteriormente e, assim, trazendo uma concepção
apologética de trabalho produtivo; 3) tal questão representaria a senilidade do
modo de produção capitalista, o anacronismo do domínio da burguesia como
classe; mas também traria à tona possibilidades inimagináveis anteriormente
e decorrentes do próprio desenvolvimento das contradições deste modo de
produção; com isso, 4) a indissociabilidade entre produção material e
intelectual se coloca, tanto trazendo a subordinação das classes ideológicas aos
capitalistas quanto ao abrir espaço a formas de trabalho que prescindem do
controle burguês e utilizam-se da ciência como potência produtiva, como é o
caso das fábricas cooperativas, mas também de outras figuras que se
apresentam como formas transicionais de produção (c. SARTORI, 2019c); 5) a
ciência, no entanto, traria consigo capacidades humanas que não podem ter
como medida o processo de valorização do valor, de modo que há uma tensão
entre a subordinação das potências intelectuais, e do general intellect em sua
relação com o trabalhador coletivo, ao processo imediato de produção
capitalista, por um lado; por outro, tem-se a possibilidade de, com a autogestão
da produção e com a superação do modo de produção capitalista, ultrapassar
a produção subordinada ao processo de valorização do trabalho e, portanto, do
valor.
Marx, portanto, não possui uma apologia do trabalho produtivo, mas
mostra como a concepção apologética de trabalho produtivo é tanto um
sintoma do anacronismo da dominação burguesa quanto uma abertura para
que as classes produtivas comecem a se organizar contra o sistema capitalista
de produção. Isto seria essencial, embora não suficiente, para a derrocada do
domínio do capital. O ponto de partida da crítica marxiana, assim, passa pela
questão do trabalho produtivo, mas ruma à supressão de todas as classes
sociais (inclusive aquela que, por excelência, aparece no polo oposto da
relação-capital, o proletariado moderno) e do próprio trabalho produtivo. Se
Marx mostra as contradições na posição burguesa quanto ao trabalho
produtivo, passando pela análise da posição dos juristas, por exemplo, isto se
dá em meio à compreensão das contradições do próprio sistema capitalista de
produção. A abertura para um aprofundamento nos estudos da relação entre
Marx e o direito está presente neste ponto, que envolve um tipo de análise que
ainda não foi realizada pela crítica marxista ao direito no Brasil, e que pode ser
bastante importante para a marxologia e para aqueles interessados no
marxismo ou no debate honesto com este.
Tais elementos também são essenciais para que se compreenda a obra
marxiana. No que diz respeito ao direito, eles são trazidos à tona negativa e
positivamente: negativamente porque tal processo que descrevemos tem na
proeminência dos juristas um sintoma de que a classe burguesa não traz
mais consigo um ímpeto progressista. Positivamente, na medida em que a
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compreensão da posição dos diversos intermediários que surgem no processo
global de produção capitalista, inclusive da posição dos juristas, vem a ser algo
essencial no entendimento do funcionamento das contradições do próprio
modo de produção capitalista. Isto se ao passo que a senilidade do
capitalismo envolve certa proeminência e respeitabilidade do jurista (e de
outras camadas) e à medida que, dos meandros da dialética entre trabalho
produtivo e improdutivo, poderia surgir uma forma de sociabilidade que não
se baseia mais no tempo de trabalho socialmente necessário. Antes, haveria
uma forma social de riqueza que se assenta não no trabalho produtivo, mas no
tempo e na atividade livres. Pelo que dissemos, no que toca ao nosso tema, é
disso que se trata o socialismo.
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Como citar:
SARTORI, Vitor. Os juristas nas Teorias do mais-valor de Karl Marx:
produtividade e desenvolvimento capitalista diante da concepção marxiana de
socialismo. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio
das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 330-52, jan./jun. 2020.
Data do envio: 23 set. 2019
Data do aceite: 10 jun. 2020