DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.519
Juarez Torres Duayer
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Lukács e a emigração na URSS (1933-45): realismo e
sorte em tempos de catástrofes
Juarez Torres Duayer
1
Resumo:
Os escritos estéticos de Lukács durante a emigração na URSS constituem uma
súmula de seu posicionamento contra o despotismo stalinista e a ortodoxia
soviética. A despeito das “autocríticas protocolares”, os textos expressam a
crítica interdita pelo dogmatismo e o sectarismo característicos do período e
irão repercutir a preocupação do autor de que a Estética e Para uma ontologia
do ser social, fossem consideradas como sua contribuição à urgência da
construção de um projeto de renovação e renascimento do marxismo.
Palavras-chave: arte; Lukács; estética marxista; realismo; stalinismo.
Lukács and the emigration in USSR (1933-1945: realism
and luck in time of catastrophes
Abstract:
The aesthetic writings of Lukács during emigration in the USSR constitute a
summary of his position against Stalinist despotism and soviet orthodoxy. In
spite of the "protocolic self-criticisms", the texts express the criticism
prohibited by the dogmatism and sectarianism characteristic of the period and
will have repercussions on the author's concern that his works of maturity,
Aesthetics and Ontology of social being, were considered as contributions to
the urgency of building a project for the revival of Marxism.
Keywords: Lukács; art; Marxist aesthetics; realism; Stalinism.
Portanto, todo realismo verdadeiro implica a
ruptura com a fetichização e a mistificação.
György Lukács
É possível considerar os escritos estéticos de Lukács do período da
emigração na URSS – de 1933, ano da ascensão de Hitler a 1945, data do final
da II Guerra Mundial e de seu retorno à Hungria após um exílio de 26 anos -
1
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor
Titular do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
juarez_duayer@uol.com.br.
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como uma súmula de seu posicionamento em uma disputa levada a cabo
simultaneamente em duas frentes: de um lado contra o sectarismo literário”
da RAPP
2
, de outro, contra o “vanguardismo” e o “modernismo burguês” das
vanguardas estéticas dos anos 1930
3
, naquele que mais tarde ficou conhecido
como o “debate sobre o expressionismo” (LUKÁCS, 1966, p. 8).
Pelas razões que serão expostas mais adiante, ainda que no plano
político em diversas ocasiões durante o exílio soviético suas manifestações se
expressassem através das nem sempre bem compreendidas “autocríticas
protocolares”
4
, não dúvida de que elas enformam a natureza e a dimensão
da interdição imposta pela ortodoxia e o dogmatismo stalinista às artes e
políticas culturais do período
5
. No entanto, se anos mais tarde quase ao final
da vida Lukács dirá que seu posicionamento “já naquela época” era de
“oposição universal à ideologia staliniana, não restrita à estética” (LUKÁCS,
1999, p. 166), foi através do “realismo verdadeiro”
6
nos termos da epígrafe
utilizada neste trabalho que ele se posicionou contra a “manipulação
grosseira”
7
da fetichização e mistificação do período:
Não existe precisamente na arte, para a arte uma tal
possibilidade de manipulação absoluta; não o propósito, a intenção
dos escritores (que podem ser regulados) é o dado determinante,
mas a configuração, que permanece sujeita à “Vitória do realismo”.
(...) [Por meio] da gênese da mimese, a “vitória do realismo” perde
qualquer nuança irracionalista: nela irrompe justamente a verdade
da história. (1999, p. 167)
Em que pese, todavia, toda a ordem de dificuldades durante a
emigração na URSS, a produção intelectual de Lukács do período é notável.
Nele o filósofo consolida boa parte de sua produção intelectual e as mudanças
em sua relação com o marxismo. São os anos de colaboração com Michail
Lifschitz no Instituto Marx-Engels em Moscou (1930-4) e de elaboração de sua
concepção de realismo em meio ao “debate sobre o expressionismo”
8
com as
2
A organização stalinista oficial dos escritores revolucionários da URSS.
3
É assim que Lukács no Prefácio de 1965 se refere a estes textos reunidos em Problemas del
realismo (1966); a maior deles foi escrita entre 1934 e 1940 e publicada na revista Literaturnyj
Kritik.
4
Para uma abordagem do problema das “autocríticas” e suas distinções, ver Tertulian (2002).
5
Com relação às políticas culturais do período ver Netto (1979).
6
Para Tertulian, o realismo em Lukács “sempre foi um caractere congênito de toda a arte e
não uma simples questão de escolha entre estilos” (1980, p. 255).
7
Em Para uma ontologia do ser social, após se referir às teorias da II Internacional como uma
“mistura de materialismo mecanicista e voluntarismo subjetivo”, para Lukács, depois da morte
de Lênin, “sob Stálin o marxismo voltou a ser deformado numa mescla inorgânica de
necessidade mecanicista e voluntarismo (manipulação grosseira)” (LUKÁCS, 2013, p. 629;
grifo meu).
8
Embora crítico às posições de Lukács, uma boa aproximação ao debate está em Machado
(1998); para uma defesa da atualidade do realismo para a estética marxista, ver Duayer (2015).
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vanguardas estéticas dos anos 1930 e com o sectarismo das políticas culturais
do Proletkult
9
. De acordo com Oldrini (1996), é o momento da “virada
ontológica” responsável pela alteração radical da relação anterior de Lukács
com o marxismo e da transformação da perspectiva filosófica de História e
consciência de classe
10
. Enfim, e talvez o mais decisivo: das experiências do
período da emigração toma corpo e nasce o empenho lukacsiano no projeto de
renovação e renascimento do marxismo. Para Tertulian (1980, p. 287), após “a
longa noite stalinista”, o filósofo acreditava que as categorias fundamentais do
pensamento marxista deveriam ser submetidas a um reexame radical. Este foi
o sentido da preocupação manifestada mais tarde por Lukács de que suas obras
da maturidade, a Estética e Para uma ontologia do ser social, fossem
consideradas como contribuições pioneiras à construção daquele projeto no
qual trabalhará até o fim da vida.
Não surpreende portanto que após quase três décadas do retorno à
Hungria, no roteiro do esboço autobiográfico que preparou no início de 1971
(Lukács faleceu em 4 de junho) para as entrevistas que concedeu entre março
e maio do mesmo ano a István Eörsi e Erzsébet Vezér
11
(Pensamento vivido),
o autor se refira à emigração soviética como um período de “sorte em tempo
de catástrofes”
12
.
Na edição do esboço preparado por Lukács, os responsáveis pelas
entrevistas de Pensamento Vivido se referem ao tempo da emigração como um
período de “alargamento do campo de conflito” (1999, p. 166); Netto (1983, p.
50) se referiu a ele como “os tempos difíceis” e o húngaro Szabô (2016, p. 135),
de os “anos perigosos na União Soviética onde ele [Lukács] viu de perto a
prática despótica stalinista” e lembrou que “não por acaso”, Daniel Bell se
referiu ao filósofo magiar como “o grande sobrevivente da época” (2016, p.
136). É bem provável que o sociólogo estadunidense, autor do best-seller O
fim da ideologia, tenha se reportado em seu comentário a seguinte passagem
dos depoimentos de Lukács: “Infelizmente devo dizer que, na minha opinião,
além de mim não existe nenhum escritor húngaro que tenha escapado da era
9
O Proletkult, movimento russo adepto de uma “cultura proletária”, defendia a ruptura entre
a arte socialista e o passado (a tradição cultural) em defesa de uma literatura operária como a
autêntica literatura revolucionária.
10
Oldrini considera que esta “virada” se deve ao “contato de Lukács com os Manuscritos de
1844 de Marx e os Cadernos filosóficos de Lênin e se “funda nas geniais críticas de Marx (e
Lênin) a Hegel, através dos quais Lukács pela primeira vez as consequências que derivam
dos contorcionismos idealistas hegelianos” (2002, p. 53).
11
Pensamento Vivido (Gelebtes Denken) foi publicado em alemão pela primeira vez em 1980
( em português, cf. LUKÁCS, 1999).
12
Lukács se referiu à “sorte” em três situações: quando recusou um encontro com Radek e
Bukharin em 1930 “se os tivesse encontrado teria sido liquidado”; ao seu afastamento do
movimento húngaro após o “fiasco” das Teses de Blum e, a terceira, à pouca atração exercida
pela casa em que morava pelo pessoal da NKVD, a polícia política do período.
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Stálin (1999, p. 91)”. Nesta última, o filósofo recorda as adversidades durante
os grandes processos 1936 e 1937 “eu passei por uma das maiores campanhas
de prisões do mundo” e sobre o período em que ficou preso por dois meses em
1941 sob a acusação de trotskista
13
- “em um momento em que todas as
execuções haviam cessado” -, voltou a dizer que mais uma vez teve “muita
sorte” e que não pôde “deixar de lembrar de Ivan Denísovitch, o herói de
Soljenítsin, que também tinha sempre muita sorte” (1999, p. 99)
14
.
A respeito das relações entre seus escritos estéticos durante o período
da emigração e a uma das duas frentes às quais nos referimos mais acima a
frente estética em defesa do “realismo verdadeiro” contra a “manipulação
grosseira” -, é possível avaliar a importância destes textos para o projeto
lukacsiano de renascimento do marxismo.
A necessidade deste projeto pode ser posta à prova pelo próprio autor
em pelo menos três momentos.
O primeiro, sem as “autocríticas protocolares”, por ocasião do Post-
scriptum de 1957 ao seu Meu caminho para Marx de 1933 quando ao tratar da
“questão da herança” contra as orientações literárias do Proletkult admitiu
que:
Foi necessário reconhecer que a origem do confronto das correntes
progressistas, que enriqueciam a cultura marxista, com a opressão
dogmática de uma burocracia tirânica sobre todo o pensamento
autônomo, deveria ser buscada no próprio Stálin e, portanto,
também na sua pessoa. (LUKÁCS, 1983, p. 90)
15
O segundo em 1971 nas entrevistas de o Pensamento Vivido. Ao se
referir ao período da emigração, Lukács chamou a atenção, nos textos em
defesa do realismo publicados na revista Literatunyj Kritik, em polêmica
aberta contra o Proletkult e a RAPP, para “a emergência no primeiro plano com
intensidade cada vez maior daVitória do realismo’ de Engels - contra a
regulamentação da ideologia de ‘cima’” (1999, p. 167)
16
.
Por fim, o terceiro momento, diz respeito à autonomia da arte em
relação ao estado à regulamentação ideológica vinda “de cima” - e nos remete
diretamente à participação de Lukács como Comissário do Povo na Comuna
Húngara de 1919 (República dos Conselhos Húngaros).
13
Na consistente apresentação a Literatura y revolución, Isidoro Cruz Bernal comenta que o
Proletkult foi o principal adversário de Trotsky” (2004, p. 11).
14
Referência a Um dia na vida de Ivan Denísovitch.
15
O texto publicado em 1933 na revista moscovita Internationale Literatur, 2. corresponde
ao depoimento de Lukács na série “Escritores sobre Karl Marx” por ocasião de um congresso
internacional de escritores em Moscou.
16
Em carta à romancista Margaret Harkness de abril de 1888, Engels, cita o exemplo de Balzac
que embora “politicamente legitimista” se viu “compelido a agir contra as suas pprias
simpatias de classe e preconceitos políticos” - como um “dos maiores triunfos do realismo”
(1979, p. 70).
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Não é difícil acompanhar nos escritos estéticos e posicionamentos
políticos dos anos da emigração na URSS a repercussão e o modo como Lukács
assimilou as experiências da Comuna Húngara.
Em mais uma notação de o Pensamento vivido, o autor se reporta aos
133 dias de duração da Comuna como o início dos anos de “aprendizagem
forçada”:
Os verdadeiros anos de aprendizagem forçada começaram com a
ditadura e depois da sua queda quando uma parte dos comunistas
se esforçou para conhecer e assimilar o marxismo no sentido
comunista da palavra. (1999, p. 57)
Uma breve remissão à sua participação na formulação política e cultural
da Comuna Húngara nos permite avaliar o significado desta “aprendizagem
forçada”, em especial no âmbito do confronto com as políticas culturais do
stalinismo e, mais tarde, no próprio projeto de renovação do marxismo na
Estética e de Para uma ontologia do ser social.
Na Comuna, Lukács era dirigente do Partido Comunista Húngaro e foi
vice-ministro da Educação Pública (vice-comissário do povo). À época
defendia que a tarefa cultural que competia à Comuna era o
“revolucionamento das almas” através de um programa que considerava “a
política apenas um meio; o fim, a cultura” (apud NETTO, 1983, p. 32).
O programa cultural dos comunistas húngaros expresso em um
documento do Ministério da Educação Pública intitulado Tomada de posição,
fazia distinção apenas “entre boa e literatura (...). Tudo o que tiver
verdadeiro valor literário, venha de onde vier, encontrará apoio do
Comissariado” (apud NETTO, 1983, p. 32). Ao valorizar a “tradição cultural”,
o Ministério patrocinou a representação por grupos de trabalhadores de obras
de Lessing, Ibsen, Bernard Shaw, Molière e, a exemplo de Gustave Courbet
17
na Comuna de Paris (1871), os museus foram franqueados ao povo. Courbet,
para quem a arte “que faz avançar o mundo” não poderia ficar a reboque da
revolução (CLAYSON, 2011, p. 37) fundou e dirigiu com outros artistas a
Federação dos Artistas que defendia a total liberdade da arte em relação ao
estado e o controle de sua produção pelos seus próprios artífices. As ações da
República dos Conselhos mostram que muito provavelmente Lukács tinha
conhecimento das políticas culturais e artísticas da Comuna de Paris.
Chamo a atenção para a presença, por ocasião da Comuna Húngara
de 1919, do tratamento dado por Lukács à “tradição cultural”, a “questão da
herança”. Inspirada nos clássicos do marxismo (Marx e Engels) e atacada como
vimos pelo Proletkult, a “questão da herança” cultural irá se constituir em um
dos pilares do pensamento estético lukacsiano sobre o “modo artístico de
17
Pintor e principal representante da escola realista francesa, Courbet, presidiu na Comuna de
Paris a comissão de preservação do patrimônio cultural e reforma da Beaux-Arts (ROUGERIE,
2011, p. 33).
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figurar o mundo” (Marx, Introdução de 1857), ao lado da liberdade e
autonomia da arte e da recusa a todas as formas de sua instrumentalização.
No que diz respeito às relações da Comuna Húngara com a arte e os
artistas, Lukács escreveu no Jornal Vermelho, em uma formulação muito
próxima à defendida por Courbet, que “O comissariado não quer uma a arte
oficial nem muito menos a ditadura da arte do partido” (apud NETTO, 1983.
p. 33). Se referindo à “experiência de poder” de Lukács do período da Comuna,
Konder (1996, p. 28), mesmo considerando que nos textos dos anos trinta o
autor “caminhava em carvões incandescentes” considera que a despeito de
algumas “posições sectárias”, o Comissário do Povo adotou na direção da
política cultural uma orientação inequivocamente “democrática e pluralista” e
em nenhum momento, sua profunda e sincera preocupação com os autênticos
valores da cultura lhe deixou margem para qualquer vacilação: a prioridade
final da cultura repelia procedimentos voltados para instrumentalizá-la
(KONDER, 1980, p. 38; grifos do autor).
Massacrada a Comuna pelo governo Horty, Lukács é condenado à
morte. Escapa disfarçado de chofer para Viena onde é preso e tem sua
deportação exigida. Com o argumento de que Lukács “como filósofo, é um dos
grandes, que só aparecem uma vez em cada geração”, uma ampla mobilização
de intelectuais europeus (Paul Ernest, Franz Ferdinand Baumgarten, Heinrich
e Thomas Mann, Ernest Bloch, entre outros) impede que seja extraditado
(KONDER, 1980, p. 42). Os números da contrarrevolução húngara
impressionam: 5 mil execuções, 75 mil presos, 100 mil escaparam para o exílio,
entre estes Lukács que permaneceu em Viena até o fim dos anos 1920.
A derrota da Comuna e os “anos de aprendizagem forçada” ocupam
portanto um lugar de destaque nas entrevistas de Pensamento vivido e
repercutiram, como estamos procurando mostrar, nos embates travados
contra a RAPP, o Proletkult e as políticas culturais do stalinismo, em especial
contra a regulamentação da ideologia a partir de “cima”. A passagem que
reproduzimos a seguir é significativa para a caracterização das disputas
durante o “tempo de catástrofes” e de “alargamento do conflito”. Nela Lukács
se reporta aos textos em defesa do realismo que publicou na Literaturnyj
Kritik e fala da importância da revista (anti-Rapp, antimodernista) para a
transformação revolucionário-democrática da literatura russa entre 1934 até a
sua interdição em 1940 por Stálin
18
:
Nós atacamos na revista a ortodoxia naturalista de Stálin. o se
pode esquecer que naquela época foi publicada a carta de Engels
18
Os textos publicados na Literatunyj Kritik foram editados pela Fondo de Cultura Económica
(México, 1966) a partir da edição original Probleme des Realismus (LUKÁCS, 1955); parte
deles foram selecionados e traduzidos por Carlos Nelson Coutinho (LUKÁCS, 1968). Uma nova
edição com o mesmo título e também com seleção, apresentação e tradução de Carlos Nelson
Coutinho foi lançada pela Expressão Popular em 2010 com a inclusão do importante Narrar
ou descrever?, de Lukács, escrito em 1936 durante a emigração.
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sobre a questão Balzac, e, em contraste extremamente nítido com o
stalinismo, colocamos o problema sem que isso tivesse
consequências sérias - de que a ideologia não é critério para avaliar
a qualidade estética de uma obra e que pode existir uma boa
literatura, apesar de uma ideologia detestável como o monarquismo
de Balzac. Em seguida nós demos à essa ideia sua segunda forma:
uma boa ideologia pode gerar uma má literatura. (1999, p. 102)
A expectativa de Lukács e do grupo de colaboradores da Literatunyj
Kritik “de uma retomada, sem obstáculos burocráticos, da literatura socialista,
da metodologia e da crítica literária marxista”, entretanto, logo se desfez após
a dissolução da RAPP em 1932 (LUKÁCS, 1983, p. 90). Mais tarde ele e outros
integrantes do grupo que se opunha aos adeptos da organização stalinista
oficial dos escritores revolucionários da URSS compreenderam que todas estas
tendências contrárias ao progresso do pensamento tinham sólido apoio
burocrático e “que qualquer ideia que se distanciasse do modelo imposto,
esbarrava numa surda e agressiva resistência” (LUKÁCS, 1983, p. 90).
Após o centenário da Revolução Russa, vale confrontar as políticas
culturais do “tempo de catástrofes” com as experiências da Comuna de Paris e
da Comuna Húngara enquanto referências fundantes contra todas as formas
de cerceamento da expressão artística e de uma defesa enérgica da autonomia
da arte em relação ao estado.
Por essa razão, a rememoração das experiências artísticas e culturais de
ambas as Comunas permanecem como contribuições incontornáveis a um
debate que no campo do marxismo é frequentado, via de regra, pelo
desconhecimento ou por formas equívocas de apreciação da herança inspirada
nos clássicos do marxismo sobre a liberdade, autonomia e independência da
arte em relação ao estado.
Não são poucas as referências que tratam destas relações. A questão da
herança cultural da humanidade na arte e literatura acima referida está, por
exemplo, na admiração de Marx e Engels pelo legado da antiguidade clássica,
do renascimento, do iluminismo, dos grandes escritores realistas na literatura
do século XIX. Particularmente na referência de Engels ao “triunfo do
realismo” e contra o que ele denominou de “literatura de tendência”,
antecipando em décadas as críticas de Lukács à contrafação stalinista do
“realismo socialista”. De igual modo na rejeição de Lênin, Trotsky e Rosa
Luxemburgo à ideia de uma “literatura e cultura proletárias” em favor de uma
“cultura verdadeiramente humana” e de uma arte revolucionária
independente
19
. Também neste mesmo sentido, na forma como Vitor Serge
(1989, p. 97) denunciou os perigos do “utilitarismo literário” quando insistiu
19
Sobre a posição de Lênin, Trotsky e Rosa Luxemburgo contra a” cultura proletária” do
stalinismo ver a apresentação de Isidoro Cruz Bernal a Literatura y revolución de Leon
Trotsky (2004).
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na distinção entre arte e potica
20
. Distinção esta tanto mais importante, como
lembrou Chasin (1989, p. 12) “quanto mais se adverte que se trata de um
escrito de resistência pró-revolucionária no interior mesmo da revolução”
(CHASIN, 1989).
Não obstante a importância desta herança ainda persistem reedições
contemporâneas de “lamentáveis erros anteriores” que nos fazem lembrar de
perto o período dos “anos difíceis” e do “tempo de catástrofes”, como os da
“época gris” das políticas culturais nos anos sessenta e setenta em Cuba
21
.
Assim sendo, cabe rememorar desde os clássicos do marxismo as
melhores tradições envolvidas nas relações entre emancipação humana, arte e
revolução e lembrar que para os communards de 1871 e 1919, a arte e a
revolução deveriam sim andar juntas, mas em total liberdade em relação ao
estado.
Reivindicar, sim, a enorme herança da Revolução Russa de 1917, mas
sem esquecer com Netto, que “nenhum pensador marxista pode elidir-se de
um exame do stalinismo, um dos resultados do fracasso da Revolução no
Ocidente” (1979, p. 17)
22
.
Para finalizar, lembro que em Lukács “a rememoração do passado
sempre foi um veículo ideal da continuidade histórica” (1968, p. 4) mas, para
tanto,
temos que tomar o passado em um sentido ontológico, não no
sentido teórico-cognoscitivo. Se tomo o passado no sentido da teoria
do conhecimento, o passado está passado. Do ponto de vista
ontológico, o passado nem sempre é passado, mas exerce sua
influência até o presente (LUKÁCS, 1971, p. 41).
Deste modo, o passado é de um lado passado e auto experimentação da
humanidade; de outro nos proporciona um motivo para se adotar uma atitude
determinada ante o presente. Este é o sentido ontológico da rememoração de
Lukács do “tempo de catástrofes” para seu projeto de renascimento do
marxismo. Na esfera estética, frente a todas as formas de fetichização e
mistificação grosseira em nossos “tempos de catástrofes” cabe, ante o presente,
esgrimir a herança e a incontornável atualidade do realismo verdadeiro.
20
Para Serge, “Quando a luta tiver terminado, a divisão da sociedade em classes for abolida,
não haverá mais proletariado. A nova cultura nascente será verdadeiramente humana. num
sentido restrito, portanto, é que se pode falar de cultura e literatura proletárias” (1989, p. 97).
21
Os “erros lamentáveis” e a “época gris” estão em Os intelectuais cubanos e a política cultural
da Revolução 1961-1975 de Silvia Miskulin (2009). Sobre a presença da “barbárie stalinista
no “trágico destino” da literatura cubana (Lezama Lima) e na revolução chinesa ver a
apresentação de Bernal (TROTSKY, 2014, p. 13).
22
No Prefácio de Pensamento vivido Eösi escreveu: “Só uma única vez no outono de 1968, não
muito depois da marcha das tropas do Pacto de Varsóvia sobre Praga, ouvi de sua boca [de
Lukács] a seguinte declaração: ‘Parece que todo o experimento iniciado em 1917 fracassou e
tudo tem de ser começado outra vez em outro lugar.’” (1999, p. 13)
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Juarez Torres Duayer
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Como citar:
DUAYER, Juarez Torres. Lukács e a emigração na URSS (1933-45): realismo e
sorte em tempos de catástrofes. Verinotio Revista on-line de Filosofia e
Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 96-105, jan./jun. 2020.
Data do envio: 14 fev. 2020
Data do aceite: 8 maio 2020