Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jan./jun. 2020. v. 26. n. 1
Leandro Candido de Souza
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As consequências sociais da mercantilização da literatura
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fizeram das
bancas de jornal “as bibliotecas do flâneur” (BENJAMIN, 1989, p. 35) que,
desse modo, torna-se um “botânico do asfalto”, o qual tem como pré-condição
a urbanidade própria ao mundo pós-Haussmann. Vistas por esse ângulo, as
fisiologias da primeira metade do século XIX anteciparam formalmente essa
nova literatura ao também atenderem ao intuito burguês de “fornecer aos
habitantes dos centros urbanos uma ideia amistosa das outras”. E acabaram
tecendo, a seu modo, uma “fantasmagoria da vida parisiense” (BENJAMIN,
1989, p. 36) que influenciou grandes escritores, incrementando, por exemplo,
as intrigas balzaquianas, já ricas “em variações intermediárias entre histórias
de índios e de detetives” (BENJAMIN, 1989, p. 40)
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.
Para a criminalística [a fotografia] não significa menos que a
invenção da imprensa para a literatura. Pela primeira vez, a
fotografia permite registrar os vestígios duradouros e inequívocos de
um ser humano. O romance policial se forma no momento em que
estava garantida essa conquista – a mais decisiva de todas – sobre o
incógnito do ser humano. Desde então, não se pode pretender um
fim para as tentativas de fixá-lo na ação e na palavra. (BENJAMIN,
1989, p. 45)
As afinidades entre Benjamin e Kracauer até aqui são evidentes: a
assistematicidade, a escrita ensaística particular, o interesse pela cultura de
massa e a experiência que ela instaura, a associação entre técnica, ratio e
modernidade, o apego aos objetos ignorados pela tradição institucionalizada,
a influência das fisiologias e a tentativa de atualizá-las
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. No caso específico de
Benjamin, o incógnito representado pela multidão massificada ergue-se como
uma ameaça que está no âmago do romance policial: “Em tempos de terror,
quando cada qual tem em si algo do conspirador, o papel do detetive pode
também ser desempenhado. Para tal a flânerie oferece as melhores
perspectivas.” (BENJAMIN, 1989, p. 38) Nos fragmentos daquilo que
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Em seus Pequenos trechos sobre arte, Benjamin retoma: “Nem todos os livros se leem da
mesma maneira. Romances, por exemplo, existem para serem devorados. Lê-los é uma volúpia
da incorporação. Não é empatia. O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora
ao que sucede a este. (...) Ao comer, se for preciso, leia-se o jornal. Mas jamais um romance.
São obrigações que se excluem.” (BENJAMIN, 2012, p. 283)
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No entanto, a influência mais decisiva na gênese do romance policial provavelmente tenha
sido a de J. F. Cooper, refletida já no título de Os moicanos de Paris de Alexandre Dumas e em
Os mistérios de Paris (1842-3) de Eugène Sue, o qual se refere ao autor de O último dos
moicanos logo na abertura. David Harvey comentou em seu detalhado estudo sobre a Paris do
século XIX: “Antes de Baudelaire ter lançado seu manifesto das artes visuais (e um século antes
de Benjamin tentar decifrar os mitos da modernidade no inacabado projeto das Passagens de
Paris), Balzac já havia colocado os mitos da modernidade sob o microscópio e usado a figura
do flâneur para fazê-lo”, acrescentando, linhas abaixo, que o famoso romance de Sue ajudou
a moldar “a imaginação popular em relação ao que a cidade era e poderia se tornar” (HARVEY,
2003, pp. 24-5).
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Benjamin considerou Os empregados de Kracauer uma “contribuição à fisiologia do capital”
(BENJAMIN, 2008).