DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.532
Leandro Candido de Souza
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Siegfried Kracauer e a teoria do romance policial
Leandro Candido de Souza
1
Para Carlos Eduardo Jordão Machado (in memoriam)
Resumo:
A partir de 1922, Siegfried Kracauer escreveu uma série de textos que
comporiam o livro O romance policial: um tratado filosófico, mas que
seriam publicados em 1971, no primeiro volume de seus Escritos póstumos. O
presente artigo tem como objetivo reconstituir a teoria do romance policial
formulada por Kracauer, buscando analisar como essa teoria foi
fundamentada e quais eram suas principais definições. Inicialmente, o intuito
é localizar essa teoria dentro do pensamento mais geral do autor,
relacionando-a a sua produção anterior e, principalmente, posterior. Em um
segundo momento, tentaremos dimensionar a interlocução estabelecida entre
Kracauer e autores do chamado marxismo ocidental, como György Lukács,
Walter Benjamin, Theodor Adorno entre outros.
Palavras-chave: Siegfried Kracauer; romance policial; teoria estética;
marxismo ocidental.
Siegfried Kracauer and the detective story theory
Abstract:
Starting in 1922, Siegfried Kracauer wrote a series of texts that would make up
the book The detective novel: a philosophical tract, which would only be
published in 1971, in the first volume of his posthumous Schriften. This paper
aims to reconstruct the detective novel theory formulated by Kracauer, seeking
to analyze the bases of this theory and its key definitions. The initial purpose
is to find this theory's place within the author's more general thinking, relating
it to his previous and, especially, later writings. Next, an attempt is made to
size up the interlocution established between Kracauer and so-called Western
Marxism authors, such as Gyorgy Lukacs, Walter Benjamin, Theodor Adorno
and others
Keywords: Siegfried Kracauer; detective novel; aesthetic theory; Western
Marxism.
1
Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de o Paulo (PUC-SP). Supervisor
de tutoria EaD (Ciências Sociais) da Universidade Brasil. E-mail: lecanza@yahoo.com.
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I Desamparo transcendental: racionalização e reificação
A teoria dos gêneros literários que abarcam histórias de crimes
publicadas em folhetins, romances policiais e best sellers de suspense
(thrillers) indica-nos um dos muitos objetos constantes na reflexão cultural
marxista. Esboçada pelo jovem Karl Marx nos comentários sobre Os mistérios
de Paris, de Eugène Sue, em A sagrada família, essa linha chega a seu ponto
conclusivo em Delícias do crime, de Ernest Mandel, abrangendo nesse ínterim
boa parte do conceito de “marxismo ocidental”: Walter Benjamin, Antonio
Gramsci, Bertolt Brecht, Ernst Bloch entre outros. Dentro dessa tradição, o
primeiro pensador a formular uma teoria coerente e minuciosa sobre esse
gênero foi Siegfried Kracauer, entre os anos de 1922 e 1925.
Nesses textos, mantidos inéditos até 1971
2
, Kracauer inaugurava, a
partir dos meios consagrados pela filosofia clássica, seu estudo dos fenômenos
considerados marginais da cultura burguesa, o que o levou a reconhecer nos
romances policiais a existência de uma estrutura formal que evidenciaria a
lógica operacional da cultura capitalista desenvolvida. Desse modo, Kracauer
antecipava a ideia de que o esteticamente inautêntico pode revelar algo
autêntico da realidade circundante; neste caso, o espalhamento
contemporâneo da literatura no campo mais geral da cultura e, portanto, das
ideologias.
Houve, porém, uma diferença com relação aos demais autores. Em
Kracauer, a fascinação pelo baixo, superficial ou aparente deflagrou uma
reorganização do pensar que o conduziu à desconstrução dos sistemas
filosóficos tradicionais, o que não vemos ocorrer em todos os citados. Uma
desconstrução que foi alimentada tanto pela crítica kierkegaardiana a Hegel,
quanto pela sociologia alemã nascente e pela teoria geral do romance de
Lukács, apresentada em livro no ano de 1916. Daí m os principais elementos
da cosmovisão subjacente a O romance policial: um tratado filosófico: a visão
da modernidade como movimento de perda crescente da vida, de dissociação
entre verdade e existência, devida, acima de tudo, à racionalização.
As origens desse percurso podem ser vistas já na resenha de A teoria do
romance que Kracauer publicou em duas versões diferentes, em setembro e
outubro de 1921. Na ocasião, já lhe interessava a visão da contemporaneidade
como um “processo de desagregação” entre indivíduo e mundo, sujeito e
objetividade, interior e exterior, como prescrito pela obra lukacsiana
(MACHADO, 2007, p. 186). Segundo Kracauer, foi precisamente esse estado
de tensão característico ao mundo burguês, essa “incisão inaudita” entre alma
e forma, que engendrou a especificação formal do romance policial.
2
Exceção feita ao capítulo O saguão de hotel, publicado pela primeira vez em 1963, junto ao
ensaio O ornamento da massa, em coletânea homônima.
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Se na resenha de 1921 vemos, pela primeira vez, a inspiração lukacsiana
do desamparo transcendental do homem moderno em decorrência do
“desaparecimento do sentido do mundo”, em Der Detektiv-Roman essa
condição de “sem-teto transcendental” se associa a Kierkegaard na definição
do mundo romanesco como a infinitude sem margem em uma época de
degradação. Uma inflexão definitiva que será mais bem assinalada por outra
resenha, publicada em 1926, sobre a tradução do Antigo Testamento para o
alemão, por Martin Buber e Franz Rosenzweig (KRACAUER, 2009, pp. 205-
20), na qual Kracauer concluiu que o acesso à verdade a partir do profano
exigia uma alteração nas formas convencionais da escrita. Mudança que
assumirá sua forma definitiva com Os empregados (1930), originando sua
“literatura sociológica” (MACHADO, 2012, p. 164).
Endossando a leitura de Carlos Eduardo Jordão Machado, Francisco
García Chicote sustenta que, após sua resenha da bíblia, Kracauer desdobra
uma formulação própria da teoria e práxis marxista que tanto se afasta das
posturas mecanicistas herdeiras da II Internacional, como de perspectivas
lukacsianas de História e consciência de classe (CHICOTE, 2012, p. 152).
Kracauer achava que nesse livro os extremos, os opostos e a
transcendentalidade se resolviam convencionalmente na rigidez de um
sistema idealista. Foi essa constatação que fortaleceu seu materialismo próprio
(sua “dialética material”), construída a partir e contra Lukács, a qual buscava
eliminar o sistema de tipo hegeliano identificado no filósofo húngaro. Se o
jovem Lukács havia fascinado Kracauer por seu objetivo de firmar uma “ética
por meio do conceito de forma”, a rigidez e o esquematismo assumidos em
História e consciência de classe desencorajaram o alemão de acompanhar seus
principais desdobramentos.
Em contraposição ao sistema lukacsiano, Kracauer nos ofereceu uma
forma calcada na experiência pessoal (“observação participante” nos
Empregados), o que impôs a abertura e inconclusão expositiva própria ao
ensaio. Como definiu Theodor Adorno, “[n]este olhar colado à coisa, nós
encontramos, no lugar da teoria, o próprio Kracauer” (ADORNO, 2009, p.
270). Essa combinação ensaística entre sociologia, materialismo e forma
literária mostra que o caminho assumido foi, de fato, aquele apontado na
conhecida abertura de O ornamento da massa (1927): “O lugar que uma época
ocupa no processo histórico pode ser determinado de modo muito mais
pertinente a partir da análise de suas discretas manifestações de superfície do
que dos juízos da época sobre si mesma.” (KRACAUER, 2009, p. 91) Desde
então, o recurso à superfície, esboçado pela primeira vez na análise dos
romances policiais, afastou-se de qualquer aspiração à substância “real”,
tornando-se um plano que intenta impugnar a verticalidade da filosofia
idealista. Novamente nas palavras de Adorno:
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A influência de Simmel exercida sobre ele revela mais da atitude
intelectual que de uma afinidade eletiva com o vitalismo
irracionalista. Mais tarde ele encontra a fenomenologia na pessoa de
Max Scheler, bem antes daquela de Husserl. Seu livro A sociologia
como ciência (1922) se esforça notadamente em religar o interesse
materialista e sociológico às reflexões epistemológicas fundadas
sobre o método fenomenológico. (ADORNO, 2009, p. 267)
O que Kracauer extraiu com radicalidade das formulações de Simmel
foi, fundamentalmente, a problemática da “unidade de sentido” que associa a
profanação do objeto enquanto posição na tradição teórica à participação do
indivíduo na construção desse objeto, engendrando sua forma ensaística
própria. Para nosso autor, somente “em uma época em que o sentido se tornou
alienado”, todo e qualquer fenômeno, coisa ou indivíduo se apresenta como
“suscetível de significados infinitos”, fazendo com que sua imagem final seja
resultado “de sua própria essência e da de seu observador” (KRACAUER,
2009, p. 275). Esse é o eixo principal de sua teoria do romance policial: a
eliminação dos indícios de uma vida comunitária referencial, a qual lança as
bases de sua posterior “caracterização fenomenológica das grandes urbes”
(VEDDA, 2013, p. 80).
II Mistérios do marxismo ocidental
Como tentamos demonstrar até aqui, em O ornamento da massa (1927),
Kracauer começou a dar unidade, em um plano horizontal, às investigações
dos fenômenos da vida cotidiana detectados nos escombros da cultura
burguesa. Como o herói romanesco definido pelo jovem Lukács, o pesquisador
se torna, ele também, um indivíduo que busca evidências materiais (no sentido
detetivesco) da negatividade da história, explicando em alguma medida seu
recurso à “fantasmagoria”, a qual também aparece em Bloch, Adorno e
Benjamin, comprovando a fecundidade da interlocução. Assim, a compreensão
da espacialidade do “saguão de hotel” (in O romance policial), aquele “ir-e-vir
de desconhecidos que se tornaram formas vazias porque perderam suas senhas
de identificação e perambulam como inapreensíveis fantasmas” (KRACAUER,
2009, pp. 200-1), aflui para uma segunda definição, muito mais geral em seu
pensamento, a da “distração” (ou “dispersão”) [Zerstreuung].
Posteriormente, sua biografia de Jacques Offenbach, escrita no exílio
parisiense, entre 1934 e 1937, também considerará que os fatos ali retratados
davam “certa atualidade à fantasmagoria do II Império” (KRACAUER, 1946,
p. 12). O início dessa conceituação que leva adiante, por meio da análise da
cultura de massas, a ideia de fantasmas da modernidade desencantada,
antecede em duas décadas a “indústria cultural” de Adorno e Horkheimer.
Kracauer chegou, inclusive, a falar em “fábricas americanas de distração” e
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“espetáculos” que se tornam “foco de interesse estético”. E, ao menos desde
1926, ele acenava para um “culto da distração”, acrescentando: “Como os
saguões de hotéis, [os cineteatros] o locais de culto do prazer, o seu brilho
visa à edificação.” (KRACAUER, 2009, p. 343)
Esse é o substrato do que poderíamos chamar de “teoria literária” de
Kracauer, na qual o nero detetivesco é encarado como uma “forma
paroxística” que “não aspira a oferecer a reprodução exata do capitalismo
desenvolvido, mas a destacar o caráter intelectualista dessa realidade”
(VEDDA, 2013, p. 80). Sua forma específica exacerba, portanto, a estrutura
social em que se radica, isto é, a liquidação da cultura e a divinização da ratio.
O detetive substitui o sacerdote e o mago de outrora, assim como o saguão de
hotel o faz com o templo sagrado, havendo aqui a confirmação de um
aprendizado que se originou tanto nas histórias policias quanto na psicanálise:
a ideia de que “a substância de uma época se extrai a partir de detalhes
inadvertidos”.
Kracauer aspira a transformar os recursos do jornalismo o
informe, a reportagem – com vistas a convertê-los em instrumentos
estética e ideologicamente revulsivos. (...) Convencido das
limitações do pensamento abstrato, promove – como Proust, como
Benjamin um pensamento pródigo em imagens e, antes de tudo,
em metáforas. (VEDDA, 2013, p. 83)
Sua definição de metáfora, estabelecida em “Georg Simmel” (1920-1),
prediz que a analogia “se limita a aproximar certos processos segundo seu
próprio percurso”, ao passo que a metáfora “fornece a explicação de um
fenômeno” ou conduz a uma alegoria que pode nos ajudar a pensar. Em outras
palavras, a última “circunscreve a impreso que o fenômeno produz em nós,
a nossa interpretação, e reproduz na imagem o significado, o conteúdo
substancial do fenômeno” (KRACAUER, 2009, p. 255). De modo semelhante,
em 1928, Kracauer reconheceu em Walter Benjamin uma escrita alegórica e
um olhar melancólico que ocasionavam uma “antítese da generalização
abstrata” própria aos sistemas filosóficos, algo que lhe era muito caro, ao
menos desde suas leituras de Simmel. Sua admiração por Benjamin vinha
sobretudo dessa demonstração de que “as questões grandes são pequenas, e as
pequenas, grandes”; mas também da “apoteose como signo da salvação” e de
sua intenção especulativa de escavar momentos ocultos da história: “De modo
semelhante, Benjamin pode se denominar um agente secreto, no mesmo
sentido em que Kierkegaard se definia como um ‘agente secreto da
Cristandade’.”
De Kierkegaard, Kracauer absorveu a “singularidade da fé” e da
“subjetividade”, as quais demonstram o verdadeiro trauma da imortalidade e
as exigências éticas que dela decorrem. Para o pensamento pós-idealista em
que Kracauer se inspira, a repetição é, ela própria, a prova da dupla
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impossibilidade de (primeiro) se atingir o significado e (segundo) não gerar
nenhum significado novo ao longo desse processo. Eis o cerne da negatividade
tocado por Kracauer, o que se confirma na evocada “ontologia negativa”, nas
páginas de seu tratado sobre o romance policial. Como percebeu Adorno,
Kracauer assumiu essa posição ao tomar Kierkegaard como pensador anti-
Hegel por excelência, numa proximidade que se deveu à necessidade de refletir
sobre “fenômenos apócrifos” que se apresentam como “alegorias histórico-
filosóficas como, por exemplo, o romance policial que é mais que um capricho
literário” (ADORNO, 2009, p. 271). Mais um aspecto de plena concordância
com Benjamin.
Em Casa mobiliada. Principesca. Dez cômodos (Rua de mão única,
1928), Benjamin falou do romance policial como a única apresentação
satisfatória do mobiliário do interior burguês da segunda metade do século
XIX: “A exuberância sem alma do mobiliário se torna conforto verdadeiro
diante do cadáver.” E o fato de Edgar Allan Poe tê-los descrito ainda na
primeira metade daquele século, não desmente a retroatividade defendida pelo
alemão, uma vez que “os grandes escritores, sem exceção, fazem suas
combinações em um mundo que vem depois deles, como as ruas parisienses
nos poemas de Baudelaire existiram depois de 1900 e também não antes
disso os seres humanos de Dostoiévski” (BENJAMIN, 2012, p. 13).
Esse caráter da casa burguesa, que estremece pelo assassino sem
nome como uma velha lasciva pelo galã, foi penetrado por alguns
autores que, qualificados como “escritores criminais”
[Kriminalschriftsteller] – talvez também porque em seus escritos se
estampa um pouco do pandemônio burguês –, foram privados de
suas devidas honras. Conan Doyle tem aquilo que deve ser atingido
aqui em alguns de seus escritos; em uma grande produção a
escritora A. K. Green o põe em evidência, e com o Fantasma da
ópera, um dos grandes romances sobre o século XIX, Gaston Leroux
promoveu esse gênero à apoteose. (BENJAMIN, 2012, p. 13)
Dois anos depois, em Romances policiais, nas viagens, pensando em
Simmel, Benjamin analisou o ritual de “fazer suas compras no chassi de
bandeirolas coloridas na plataforma da estação”. Para Benjamin, o viajante
que prefere comprar livros nas estações de trens a trazê-los de sua biblioteca
pessoal, embarca em uma experiência tipicamente moderna que é
determinante no sucesso das brochuras policiais, chegando até mesmo a
consignar que “qualquer um conhece o culto ao qual ele [o ritual de compra]
nos convida” (BENJAMIN, 2012, p. 224). Uma situação nova cuja base
material Benjamin indicará com maior precisão anos depois, em Paris do II
Império: a conotação subjetiva dessa transferência do culto à cultura.
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As consequências sociais da mercantilização da literatura
3
fizeram das
bancas de jornal “as bibliotecas do flâneur (BENJAMIN, 1989, p. 35) que,
desse modo, torna-se um “botânico do asfalto”, o qual tem como pré-condição
a urbanidade própria ao mundo pós-Haussmann. Vistas por esse ângulo, as
fisiologias da primeira metade do século XIX anteciparam formalmente essa
nova literatura ao também atenderem ao intuito burguês de “fornecer aos
habitantes dos centros urbanos uma ideia amistosa das outras”. E acabaram
tecendo, a seu modo, uma “fantasmagoria da vida parisiense” (BENJAMIN,
1989, p. 36) que influenciou grandes escritores, incrementando, por exemplo,
as intrigas balzaquianas, ricas “em variações intermediárias entre histórias
de índios e de detetives” (BENJAMIN, 1989, p. 40)
4
.
Para a criminalística [a fotografia] não significa menos que a
invenção da imprensa para a literatura. Pela primeira vez, a
fotografia permite registrar os vestígios duradouros e inequívocos de
um ser humano. O romance policial se forma no momento em que
estava garantida essa conquista – a mais decisiva de todas – sobre o
incógnito do ser humano. Desde então, não se pode pretender um
fim para as tentativas de fixá-lo na ação e na palavra. (BENJAMIN,
1989, p. 45)
As afinidades entre Benjamin e Kracauer até aqui são evidentes: a
assistematicidade, a escrita ensaística particular, o interesse pela cultura de
massa e a experiência que ela instaura, a associação entre técnica, ratio e
modernidade, o apego aos objetos ignorados pela tradição institucionalizada,
a influência das fisiologias e a tentativa de atualizá-las
5
. No caso específico de
Benjamin, o incógnito representado pela multidão massificada ergue-se como
uma ameaça que está no âmago do romance policial: “Em tempos de terror,
quando cada qual tem em si algo do conspirador, o papel do detetive pode
também ser desempenhado. Para tal a flânerie oferece as melhores
perspectivas.” (BENJAMIN, 1989, p. 38) Nos fragmentos daquilo que
3
Em seus Pequenos trechos sobre arte, Benjamin retoma: “Nem todos os livros se leem da
mesma maneira. Romances, por exemplo, existem para serem devorados. Lê-los é uma volúpia
da incorporação. Não é empatia. O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora
ao que sucede a este. (...) Ao comer, se for preciso, leia-se o jornal. Mas jamais um romance.
São obrigações que se excluem.” (BENJAMIN, 2012, p. 283)
4
No entanto, a influência mais decisiva na gênese do romance policial provavelmente tenha
sido a de J. F. Cooper, refletida já no título de Os moicanos de Paris de Alexandre Dumas e em
Os mistérios de Paris (1842-3) de Eugène Sue, o qual se refere ao autor de O último dos
moicanos logo na abertura. David Harvey comentou em seu detalhado estudo sobre a Paris do
século XIX: “Antes de Baudelaire ter lançado seu manifesto das artes visuais (e um século antes
de Benjamin tentar decifrar os mitos da modernidade no inacabado projeto das Passagens de
Paris), Balzac havia colocado os mitos da modernidade sob o microscópio e usado a figura
do flâneur para fazê-lo”, acrescentando, linhas abaixo, que o famoso romance de Sue ajudou
a moldar “a imaginação popular em relação ao que a cidade era e poderia se tornar” (HARVEY,
2003, pp. 24-5).
5
Benjamin considerou Os empregados de Kracauer uma “contribuição à fisiologia do capital”
(BENJAMIN, 2008).
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poderíamos identificar como os indícios de sua teoria do romance policial, as
narrativas desse nero são vistas como inteiramente obedientes aos ritmos da
cidade: “Qualquer pista seguida pelo flâneur vai conduzi-lo a um crime. Com
isso se compreende como o romance policial, a despeito de seu sóbrio
calculismo, também colabora na fantasmagoria da vida parisiense.”
(BENJAMIN, 1989, p. 39)
O romance policial, cujo interesse reside numa construção lógica,
que, como tal, a novela criminal não precisa possuir, aparece na
França pela primeira vez com a tradução dos contos de Poe: O
mistério de Marie Rogêt, Os crimes da Rua Morgue, A carta
roubada. Ao traduzir esses modelos, Baudelaire adotou o gênero.
Sua própria obra foi totalmente perpassada pela de Poe; e
Baudelaire sublinha esse fato ao se fazer solidário ao método no qual
se combinam os diversos gêneros a que Poe se dedicou.
(BENJAMIN, 1989, p. 40)
Além de registrar “a perda de vestígios que acompanham o
desaparecimento do ser humano nas massas das cidades grandes”, a obra de
Poe atendia ao postulado baudelairiano de associação entre arte, ciência e
filosofia. Por isso Benjamin chega a firmar pouco adiante: “A análise desse
gênero literário [detetivesco] é a análise da própria obra de Baudelaire,
apesar de ele não ter produzido nenhuma peça desse tipo.” (BENJAMIN, 1989,
p. 40) Esse aparente paradoxo em que se firmam as considerações
benjaminianas destaca uma diferença notável entre os dois poetas: Baudelaire
jamais escreveu um romance policial porque “em função da impulsividade de
seu caráter a identificação com o detetive lhe foi impossível”.
III A teoria do romance policial
A maturidade alcançada pelo pensamento de Kracauer em “O
ornamento da massa” é um desdobramento crítico dessas ideias desenvolvidas
em sua teoria do romance policial, entre 1922 e 1925. O fundo filosófico das
esferas no tratado literário coincide, grosso modo, com a análise do
superficial, segundo a qual o periférico, secundário, baixo ou residual
apresenta, invariavelmente, algo de autêntico em sua inautenticidade. Sua
própria desfortuna teórica seria, assim, sua maior recompensa ao afastá-lo da
vigilância da ratio, permitindo o acesso ao “oculto” da história que se encontra
escondido na superfície dos fenômenos, como na “carta roubada” de Poe
6
.
Era isso que seu tratado demonstrava, como a estrutura formal do
romance policial gerou um gênero estilístico bem definido que exibe “um
mundo próprio com meios estéticos próprios”, no qual a percepção do
6
Essa relação entre a teoria da superfície e a carta roubada no conto de Poe é referida pelo
próprio Kracauer em Os empregados.
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Absoluto “se apresenta como vivência (Erlebnis) intuitiva”. Pode-se dizer que
cada capítulo do tratado de Kracauer é uma demonstração ou localização de
momentos dessa constituição formal que expressam o “aspecto autêntico” de
sua “inautenticidade”. Falando em termos que nos remetem a Kierkegaard, o
homem é tido como um ser de “natureza intermediária”, em uma constante
tensão entre as esferas de cima e de baixo, de modo que as inferiores esboçam
uma “imagem deformada” das elevadas: uma “caricatura da substância
perversa” do processo civilizatório, da “ideia de uma sociedade civilizada
completamente racionalizada” (KRACAUER, 2010, pp. 24-5).
Muitas passagens confirmam que, em seus juízos, essa forma reflete
claramente a sociedade dominada pela ratio autônoma, numa mescla entre
segredo superior e perigo atomizado. Assim como o detetive “descobre o
segredo oculto entre os homens, o romance policial revela, através do medium
estético, o mistério da sociedade despojada de realidade e de suas marionetes
carentes de substância(KRACAUER, 2010, p. 41). Por esse mesmo motivo
Kracauer fala, no segundo capítulo da obra, da psicologia nessa literatura como
comprovação de uma “ontologia negativa” que elimina a subjetividade
7
: “cada
determinação psicológica é, por conseguinte, um obstáculo colocado de
propósito, que a ratio condenada ao triunfo deve superar”.
A totalidade estética do romance policial se constituiria a partir “da
neblina original que envolve o saguão de hotel” (KRACAUER, 2010, p. 73), e
sua fixidez formal segue o imperativo da repetição, confirmando a força motriz
que regula a sociedade civilizada completamente estabelecida. Na medida em
que se afasta da tensão entre as esferas que caracteriza a ética, o anti-herói das
histórias de crime “vaga no espaço vazio entre as figuras na qualidade de
representante da ratio”. Mas, antes de se dirigir a ela, personifica-a: o detetive
não é trágico ou dramático porque ele é vazio de experiência, não está em
tensão. Ele é uma negação do que caracteriza um herói, “como a ratio não
admite um eu, lhe está proibido relacionar-se com o mundo aparente”
(KRACAUER, 2010, p. 75).
Se a ratio é, por excelência, “o pensamento que oscila livremente no
vazio, que só se refere a seu vazio profano” (KRACAUER, 2010, p. 81), então
um elemento de impessoalidade aboia dessa estilização de um mundo nascido
e governado pelo cálculo: para que o meio de sua manifestação se viabilize é
necessária a despersonalização do investigador. Desse modo, o que define o
detetive como guia narrativo é sua dedução intelectual. O detetive é o cura ou
monge de um mundo regido pela instrumentalidade, e que Kracauer
reconheceu literariamente no Padre Brown de G. K. Chesterton. O detetive
refuncionaliza o sacerdote porque este último não é mais pertinente ante o
sucesso da ratio. Aqui está a questão ética profunda que envolve a
7
Essa ideia é retomada no último capítulo da obra (cf. KRACAUER, 2010, p. 135).
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secularização das sociedades modernas e essa analogia nas funções sociais dos
tipos em lide.
Ambos “operam por ordem superior e, por conseguinte, devem ser
interpretados como mandatários da comunidade, enviados do espaço pleno de
vida em comum, para completar a obra de união [Verknüpfung] com o
Absoluto” (KRACAUER, 2010, p. 34). O que os une em diferença ao herói
romanesco clássico é que nenhum dos primeiros se mistura com a vida
comum. Kracauer observa, inclusive, como o romance policial recorreu à figura
do religioso para atingir esse objetivo estético, uma vez que não existem
condições mais propícias à exposição da ratio que pela ausência de desejos
própria às relações estabelecidas no plano do não sensível.
O caráter anti-heroico do detetive está precisamente nesse seu
afastamento cínico que Ernst Fischer chamou “desumanização”, e que
Kracauer, mais à frente, nomeará por “metamorfoses do ser ético-existencial
em relações legais” (KRACAUER, 2010, p. 44). Ou seja, as passagens do
sacerdote ao aventureiro e deste ao detetive revelam como o “reino das formas”
é uma “transitória prefiguração do reino autêntico”. É assim que a unidade da
construção estética “faz falar um mundo e infunde sentido aos temas ali
debatidos” (KRACAUER, 2010, pp. 38-9), algo próximo ao que Jorge Luis
Borges reverenciou em Os assassinatos da Rua Morgue: “Poe não queria que
o gênero policial fosse um gênero realista, queria que fosse um gênero
intelectual, um gênero fantástico se vocês preferem, mas um gênero fantástico
da inteligência, não apenas da imaginação.” (BORGES, 1979)
Esse papel duplo de fornecer um contraste estético e assim delimitar a
unidade, também é atribuído à figura do policial e sua corporação. Nesse tipo
de narrativa, a polícia consiste na “autoridade de cujo aparato (...) também
depende o detetive”, mas que se encontra destituída de qualquer
“superioridade” (KRACAUER, 2010, p. 94). A função policial é, pois, garantir
que a vida pública transcorra com sua devida tranquilidade e ordem, enquanto
no detetive “a ratio condicionada tem o efeito de elevar o processo a um fim
em si mesmo” (KRACAUER, 2010, p. 103).
O sistema [filosófico] surge porque o pensamento se separa com
arrogância da realidade e uma vez que este escapou, tem tão poucas
possibilidades de voltar a alcançá-la quanto a polícia estilizada no
romance policial de avançar ao “porquê” que ela sem querer
expulsa do mero processo que a devoraria se ela o estivesse a
cargo da meta desaparecida. (KRACAUER, 2010, p. 105)
Se no círculo formal sob o domínio da racionalidade, a polícia
representa a “ordem”, estando diretamente ligada à legalização e normalização
dos aparatos repressivos de estado, o ilegal “se converte em um evento pontual
que, na pura imanência, enfrenta os fatos derivados do princípio de legalidade
sem ter com eles a mínima relação” (KRACAUER, 2010, p. 107). Esquecendo
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que a civilização burguesa é simultaneamente civilização e rebelião contra a
civilização, o crime e seu autor são tomados como criações autossuficientes que
a ratio deve investigar. Eles não são mais que negação do legal e, em alguma
medida, justificativa para a existência da ação policial. Verdadeiramente, no
romance policial, apenas o ato ilegal outorga motivação e sentido ao fato
presente.
A natureza enigmática do romance policial surge, como vemos, da
anulação da tensão ética, diferenciando-o, enquanto tratamento da temática
do crime, de enredos como os de Sófocles, Shakespeare ou Dostoiévski. O que
os diferencia é que, agora, o crime possui a qualidade exclusiva de fator que
interrompe violentamente o curso das coisas. Assim, o tratado filosófico de
Kracauer define a forma do romance policial como um autêntico gesto da ratio
“que se oculta inicialmente para depois manifestar-se com mais clareza e sem
ambiguidades”. Sua transcendência começa no instante em que a ratio se
separa do legal, não por indiferença, mas como representante ético”
(KRACAUER, 2010, pp. 118-20). Quando, no combate ao ilegal, o detetive se
volta contra a lei, ele se assume como “portador consciente do ético” e conecta-
se ao âmbito do supralegal: “O supralegal que ele representa só perturba a lei
para dar-lhe um fundamento (...). A ênfase, em todo caso, está colocada na
transferência do social, cuja justificação ética pode se dar em termos
psicológicos.” (KRACAUER, 2010, p. 124)
Verifica-se uma legitimidade triunfante na ilegalidade do processo cuja
ação fundamental é a elucidação do enigma que, em linhas gerais, confirma a
realidade preservando-a. Eventuais evoluções esportivas”, ações físicas ou
narrações de proezas corporais têm como única função estética “pôr à prova
este processo teórico de maneira prática e manifesta” sem, jamais, reivindicar
um significado próprio. Por isso o romance policial “se encarrega de que o
processo comece no nada”, na fragilidade misteriosa do cadáver desconhecido,
numa restrição de sua base de lançamento que “corresponde à pretensão
inerente a toda filosofia idealista, a respeito da imanência do começo a partir
do nada” (KRACAUER, 2010, 132). Seu ardil estético se desdobraria dessa
inviabilidade inicial de deduzir os fatos de seus contextos de origem: “Ao
despojar de sentido a ação decisiva e subordinar o acontecimento à
contingência, o romance policial põe em evidência seu ponto de partida a
completa desrealização.” (KRACAUER, 2010, p. 150)
IV Crime e humanismo
Falando quase nos mesmos termos de Kracauer e mencionando seu
tratado na bibliografia, Ernest Mandel sinalizou, mais de sessenta anos depois,
“o caráter abstrato e racional da trama, o crime e o desmascaramento do
assassino” que coroam o romance policial como “auge da racionalidade
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burguesa na literatura”. Sem conflitos e paixões reais, apenas os instintos
elementares, as detective stories tratam unicamente de “homens como
objetos” que são dominados pelo destino e que se disputam intelectualmente,
dando novas provas do “declínio da racionalidade na ideologia e na sociedade
burguesa” (MANDEL, 1988, pp. 43-181).
No romance policial, “não é o poder do que acontece o que corta a
respiração, mas a impenetrabilidade da cadeia causal que condiciona o fato”
(MANDEL, 1998, p. 112). Em outras palavras, sua eficácia está na repetição
constante de sua fórmula e naquilo que Brecht chamou “efeito” [thrill] que
não é mais espiritual, mas puramente nervoso (BRECHT, 1973, p. 343). Isso
faz com que, num segundo momento, ainda que o detetive persiga os mesmos
objetivos que a polícia”, tudo ocorra “para diferenciá-lo dela e demonstrar sua
autonomia”. E a “desumanização da morte” enquanto cadáver a ser dissecado
no romance policial, torna a causalidade “um quebra-cabeças para ser
montado” (MANDEL, 1988, p. 37), singularizando-o.
Isto é o que diferencia o romance policial da literatura “não-trivial”
que se ocupa do crime. o é o mistério do ato criminoso (quem
matou quem), mas a trágica ambiguidade da motivação humana e
do destino que se situa no âmago de obras como Der Fall Deruga de
Ricarda Huch ou Crime e castigo de Dostoiévski, sem citar Macbeth
e Édipo Rei. A verdadeira literatura, como a verdadeira arte reflete
a sociedade através do “espelho quebrado” da subjetividade do
autor, repetindo uma fórmula de Trotsky, reiterada por Terry
Eagleton. Na Trivialliteratur esta subjetividade está ausente e a
sociedade está “refletida” apenas para servir, com fins comerciais, a
algumas prováveis necessidades dos leitores. (MANDEL, 1988, p.
51)
Essa diferenciação crucial nos repete como “o verdadeiro tema dos
primeiros romances policiais não é o crime ou o assassinato, mas o enigma”, a
luta de intelectos entre o grande detetive e o criminoso, entre o leitor e o autor:
“É um jogo com dados viciados. A racionalidade burguesa é a racionalidade do
trapaceiro” (MANDEL, 1988, p. 81). Uma atitude anti-humanista que Ernst
Fischer associou tanto a uma capitulação ante a inumanidade “O homem não
é nada. O êxito é tudo” quanto à ideia de um “voo para fora da sociedade”,
que aparece quando o austríaco fala dos milhões de jovens que “procuram
escapar a seus empregos insatisfatórios, às suas vazias ocupações cotidianas,
procuram escapar a um dio profeticamente analisado por Baudelaire,
procuram fugir às obrigações sociais e ideológicas” (FISCHER, 1977, p. 117).
A “perda da realidade”, já existente no romantismo, tornou-se “um
problema central no derradeiro mundo capitalista, altamente industrializado”,
propiciando o desenvolvimento de uma tendência que conduz, sempre
segundo Fischer, aoantirromance francês” de Nathalie Sarraute e Alain
Robbe-Grillet (FISCHER, 1977, pp. 223-5). Tese que será prontamente
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rechaçada por Lucien Goldmann. Enquanto, para o autor de A necessidade da
arte, o interesse está na degradação do gosto das massas provocado pela
industrialização da cultura
8
, Goldmann afirma que a forma assumida pelo
romance nos dois escritores citados não decorre de eles procurarem “a todo o
custo uma forma original, mas porque a própria estrutura de que participam
todos esses elementos mudou de natureza” (GOLDMANN, 1967, p. 174).
Mandel, semelhante a Fischer, considerou o novo romance uma tentativa
radical de estetização do romance policial (MANDEL, 1988, p. 103), hipótese
ignorada por Goldmann.
Mesmo que Fischer compartilhe com Gramsci, Brecht e o Lukács da
Estética, a convicção teórica de que uma arte que diverte é legítima (“O anseio
por uma arte que simplesmente ‘divirta’ é legítimo, e ao lado dos inovadores
mais originais, há lugar para grande número de artistas secundários”), jamais
abriu mão de seus juízos negativos nas análises concretas
9
. E, diferentemente
de Goldmann, não chegou a reconhecer que “a transformação qualitativa na
natureza do capitalismo ocidental” provoque “a supressão de toda importância
essencial do indivíduo e da vida individual” (GOLDMANN, 1967, p. 176), como
aparece no novo romance.
Ao desconhecer essa continuidade, porém, Lucien Goldmann criou um
ponto cego em sua sociologia do romance, levando-o ao falso enigma da
“defasagem de quase um século que separa a descoberta do fenômeno da
coisificação [em Marx] do aparecimento do romance sem personagem [novo
romance]” (GOLDMANN, 1967, p. 176). Goldmann ignorou que a
manifestação literária correspondente antecedeu à própria conceituação ou,
verdadeiramente, criou as condições e, em alguma medida, suscitou sua
concretização. Afinal, o próprio Marx foi o primeiro a se referir a ela em seus
apontamentos sobre o romance de Eugène Sue, contidos em A sagrada família
escrito com Engels, em 1844. Dito de outro modo, essa dissolução da
personalidade que surge com as histórias populares de crimes e detetives
10
, das
8
Lembremos a passagem em que o autor diz: “O homem, na sociedade industrial, acha-se
exposto a numerosos e diversos estímulos e sensações. Seu senso estético não é tábula rasa:
foi afetado por toda a massa das mercadorias que, uma vez produzidas, inundam a sua vida
desde a mais tenra infância. Seus critérios de apreciação artística são comumente
preconceituosos.” (FISCHER, 1977, p. 237)
9
Carola Pivetta observa que Lukács se aproximou pela primeira vez do romance policial lato
sensu em Anotações sobre Dostoiévski, continuação jamais publicada de sua Teoria do
romance, algo que Carlos Eduardo Jordão Machado acrescenta: “Ferenc Fehér tenta
compreender a interpretação de Lukács dos romances de Dostoievski como romance policial
[Kriminalroman].” (MACHADO, 2004, p. 14)
10
Sobre a formação desse caldo cultural popular que fomenta a dissolução de alguns elementos
literários como a psicologia das personagens, veja-se, além do já referido escrito de Brecht, as
anotações de Antonio Gramsci recolhidas no Quaderno 21 (XVII) 1934-1935: Problemi della
cultura nazionale italiana 1º Letteratura popolare (GRAMSCI, 1977, pp. 2.107-35).
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quais Kracauer foi um dos primeiros a se ocupar, antecede a existência do
próprio conceito de reificação.
Em palavras finais, o romance policial, enquanto virtualidade formal,
abarca um problema em comum com o novo romance, a atomização própria a
uma sociedade que reduz o indivíduo e, implicitamente, sua biografia e
psicologia “ao nível da anedota e do episódio acidental” (GOLDMANN, 1967,
p. 174). Esse fenômeno detectado pioneiramente por Kracauer no romance
policial, torna-se ainda mais interessante quando notamos que, no afã de
explicar essa “supressão de toda importância essencial do indivíduo e da vida
individual no seio das estruturas econômicas e, a partir destas, no conjunto da
vida social”, Goldmann também recorra à “ilusão fantasmagórica”
(GOLDMANN, 1967, pp. 176-9) evocada por Marx
11
.
Semelhante ao esquadrinhado por Kracauer, ao invés da revelação da
verdade, temos a apresentação hiperbólica da negatividade da história, seus
fantasmas. Essa foi a tensão que fundamentou sua teoria do romance policial,
o que, em sua máxima profundidade, significou uma ruptura com a cultura
burguesa e o domínio do idealismo filosófico. A partir de então, até seu exílio
em 1933, os textos de Kracauer vagarão por essa zona desconhecida, provisória
e indefinida, mas sempre reconhecendo a alienação como parte de sua própria
experiência. A fragmentação do sujeito, em termos teológicos e históricos,
defronta-se finalmente com o rompimento do feitiço do progresso, assumindo
uma luta para que os elementos ontológicos em desintegração possam ser
reintegrados por meio de uma prática emancipadora.
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11
A passagem goldmanniana diz exatamente: “É esse fenômeno de abolição, de redução ao
implícito de um setor extremamente importante das consciências individuais, substituído por
uma nova propriedade, de origem puramente social, dos objetos inertes, na medida em que
penetram no mercado para aí serem trocados e, a partir daí, a transferência das funções ativas
dos homens para os objetos, e essa ilusão fantasmagórica (que Marx assimilou à perspectiva
do personagem shakespeariano, para quem saber ler e escrever era uma qualidade natural, e
a beleza o resultado de um mérito) que se designa pela expressão extremamente sugestiva de
fetichismo da mercadoria e, depois, coisificação.” (GOLDMANN, 1967, 179)
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Como citar:
SOUZA, Leandro Candido de. Siegfried Kracauer e a teoria do romance
policial. Verinotio – Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das
Ostras, v. 26, n. 1, pp. 145-60, jan./jun. 2020.
Data do envio: 15 mar. 2020
Data do aceite: 8 maio 2020