DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.544
Paula Alves Martins de Araújo
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Triunfo do realismo: o que é isso? Sobre uma categoria da
teoria do realismo de Lukács
Paula Alves Martins de Araújo
1
Resumo:
Ao analisar uma obra literária, Lukács a localiza em seu contexto histórico-
social. Em seus estudos sobre Tolstói, por exemplo, ele busca demonstrar
como a obra desse escritor supera certas dificuldades impostas em sua época
para o “grande realismo”, contrariando até certo ponto sua visão de mundo
reacionária. Esse fenômeno é o que Lukács entende como “triunfo do
realismo”. Nosso artigo visa assim discutir essa tese, perguntando-se quais são
as circunstâncias que tornam possível um tour de force realista. Também nos
interessa avaliar o contexto em que Lukács desenvolve essa tese, considerando
suas polêmicas contra o sociologismo vulgar, bem como seu engajamento na
frente popular nos anos 1930.
Palavras-chave: György Lukács; teoria do realismo; triunfo do realismo;
teoria literária marxista.
What is the triumph of realism? On a category of Lukacs' theory
of realism
Abstract:
When analyzing a literary work, Lukacs sets it against its socio-historical
context. In his studies on Tolstoy, for instance, he seeks to demonstrate how
this writer's work surmount some difficulties that were imposed to the "great
realism" at his time, breaking to a certain point the limits of his own
reactionary world view. That’s what Lukacs calls the "triumph of realism". Our
article aims to discuss this thesis, interrogating what are these circumstances
that enable a realist tour de force. It is also our interest to evaluate the context
in which Lukacs develops this thesis, taking account of his polemics against the
vulgar sociologism and his engagement in the popular front during the 1930s.
Keywords: Gyorgy Lukacs; theory of realism; triumph of realism; Marxist
literary theory.
1
Mestre em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail:
paulaama@hotmail.com.
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I
Em um de seus textos, László Sziklai observa que, mesmo quando não
parece, nas contribuições de Lukács sobre o grande realismo nunca se trata
apenas do grande realismo (cf. SZIKLAI, 1976, p. 124). Haveria algo a mais. É
de se perguntar, então, do que Lukács de fato trata, para além das questões de
literatura, em seus textos dos anos 1930 e 40 - um período de sua atuação que
lhe valeu, e ainda vale, a acusação de pensador oficial do stalinismo. Pois
justamente a tematização do grande realismo parece contribuir com provas
para esse tipo de acusação. Seu interesse crítico por autores do século XIX,
como Balzac ou Tolstói, que além do mais o apresentados em sucessivas
contribuições como uma herança a ser reivindicada pelo campo socialista (em
detrimento de certas linhas do modernismo literário), é tomado muitas vezes
como mais uma evidência de um marxismo dogmático e anacrônico, nada
diferente do que se espera da boa tradição do stalinismo. Ironicamente,
contudo, se nos fiarmos nas indicações do próprio autor, somos confrontados
com o entendimento contrário, pois, para Lukács, os textos desse período são
justamente um bastião, conquanto discreto, do antisstalinismo.
De fato, é possível encontrar, em textos posteriores, diversas passagens
em que Lukács se distancia explicitamente do stalinismo. Convicto da
necessidade de reformas radicais, ele se empenha na renovação do socialismo,
o que para ele significa, fundamentalmente, uma democratização, em sentido
comunista, de toda a vida social, livrando o socialismo “dos grilhões do método
stalinista” (LUKÁCS, 1970, p. 189). Mas ao revisitar sua trajetória
2
, Lukács não
circunscreve sua oposição ao stalinismo àquele momento em que, após a morte
de Stálin e das resoluções do XX Congresso do Partido Comunista (1956), seu
legado estava sendo revisto e debatido nas fileiras do comunismo
3
, processo
que ficou conhecido como desestalinização. Ele revela ter usado uma
linguagem esópica para driblar a censura já nos textos da década de 30,
entremeando, além disso, citações protocolares de Stálin em seu argumento.
Assim, mesmo quando não endereça de maneira direta a sua crítica, até
porque, como Lukács mesmo reconhece (cf. 1970b, pp. 235-6), em certos
momentos não havia mesmo uma discordância espiritual e moral entre suas
convicções e as posições de Stálin, ele entende que, de um modo ou de outro,
ela sempre esteve presente. Nesse sentido, ele dirá ao final de sua vida “poder
2
Veja-se, nesse sentido, o texto Sozialismus als Phase radikaler kritischer Reformen (1969),
em que Lukács, de modo sintético, faz um balanço do ponto de vista biográfico de sua relação
com Stálin, ponderando suas motivações, muitas vezes eivadas de ilusões, e o acerto (ou não)
de suas escolhas no contexto histórico da época.
3
Também José Paulo Netto reforça o aspecto contínuo de sua crítica: “entre a crítica
lukacsiana elíptica dos anos 1930 aos anos 50 e a denúncia aberta do último Lukács, posterior
ao XX Congresso do PCUS, não há hiatos: há uma continuidade essencial, dissimulada
somente pela linguagem fabular utilizada na era stalinista” (2019, p. 336).
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tranquilamente afirmar que eu era objetivamente um adversário dos métodos
de Stálin, mesmo quando eu mesmo acreditava ser um defensor de Stálin”
(LUKÁCS, 1970b, p. 240). Para Lukács, portanto, a oposição à linha oficial do
stalinismo avulta em seus textos não nas manobras linguísticas, mas, e
sobretudo, ela fundamenta a elaboração dos princípios metodológicos, numa
“atitude estruturalmente antisstalinista”, como pontua Nicolas Tertulian
(2007, p. 11)
4
.
É nesse sentido que Lukács enquadra sua leitura de Tolstói e Balzac
como um protesto tácito, de maneira indireta, contra a prática stalinista de
avaliar os méritos de uma obra literária a partir da filiação partidária de seu
autor (cf. LUKÁCS, 2018, p. 580). Quando ele, nos anos 30, inscreve Tolstói
na tradição do grande realismo, apresentando-o como uma figura relevante
para o desenvolvimento do realismo socialista, o gesto de polêmica é assim
calculado. Pois, também na interpretação da literatura, a tendência stalinista
“desativava todas mediações” (LUKÁCS , 1970, p. 177), de modo que a crítica
se contentava em estabelecer correspondências entre a “teoria do partido e o
teor das ideias poéticas” (LUKÁCS, 2018, p. 580), forçando uma politização
extremamente simplificadora das artes. Trata-se de uma prática semelhante à
que Lukács identificava no chamado sociologismo vulgar, uma vertente da
sociologia da arte que buscava encontrar nas produções literárias um
equivalente de determinadas estruturas sociais e econômicas, da psicologia de
classe do escritor, a cuja gênese social a obra é então reduzida.
É possível acompanhar, em diversos textos dos anos 1930, o debate que
Lukács trava no cenário soviético, juntamente com Michail Lifschitz, contra
essa linhagem crítica, representada, de acordo com os autores, sobretudo por
Plekhânov
5
. Eles criticavam, por exemplo, a concepção rasteira de
4
O que, diga-se de passagem, não impede que Lukács reconheça eventuais acertos táticos de
Stálin, no calor da hora, mas também depois, como podemos ler, por exemplo, no texto
mencionado na primeira nota, Sozialismus als Phase radikaler kritischer Reformen. Um
balanço muito lúcido dessa relação é o texto de José Paulo Netto, do qual destaco uma outra
passagem: “Com efeito, Lukács, fiel à sua ortodoxia marxista, adotou uma postura de dúplice
crítica: contra o dogmatismo da era stalinista e contra o liberalismo emergente com a sua
denúncia” (2019, p. 310). José Paulo Netto analisa ainda com bastante interesse a
problemática cultural da era stalinista e a oposição de Lukács, em sua atividade crítica, às suas
linhas gerais bem como em questões pontuais.
5
De acordo com Sziklai, essa polêmica contra a sociologia vulgar se inicia em 1936, com um
texto de Lifschitz, Der Leninismus und die Kunstkritik, nas colunas da revista Literaturnaja
Gaseta. antes, na revista Literaturny Kritik, essa vertente havia sido criticada, mas, na
avaliação de Sziklai, “essa polêmica foi em partes demasiadamente abstrata. Sua
argumentação se fundava em bases filosóficas lábeis”, limitações das quais o artigo de
Lifschitz, por sua vez, não compartilharia (1978a, p. 95). Nas notas dos Moskauer Schriften
podemos ler ainda que o ponto de referência da sociologia literária soviética, já que era um de
seus principais representantes, era W. M. Fritsche (LUKÁCS, 1981, p. 159). Se, àquela altura,
a polêmica talvez não tenha tido intencionalmente esse sentido, julgando-a da perspectiva dos
trabalhos de Lukács e Lifschitz, é possível interpretar essa diferenciação em relação à
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engajamento, de acordo com a qual os méritos de uma obra podem ser
avaliados a partir da origem e posicionamento do escritor, tendo em vista que
o estilo coincide ponto por ponto com o “estilo da classe” à qual ele pertence.
O escritor é visto como um porta voz dos interesses de sua classe e se ela é
progressista, a obra também o será e representa assim um estilo progressista.
Se, pelo contrário, ele avalia com uma consciência reacionária o estado das
coisas, sua obra pode de saída ser considerada como algo menor.
Logo se que os campos progressista e reacionário são demarcados por
uma linha clara e rígida, não havendo qualquer ponto cego ou indício de
contradição. Daí até a conclusão de que um autor pequeno burguês jamais
poderia escrever uma obra que não fosse pequeno burguesa, bem como um
conde reacionário como era Tolstói não teria o que dizer para um
trabalhador russo é um pulo. E mesmo que, a certa altura, os críticos dessa
vertente se vejam obrigados a fazer algumas concessões, na avaliação de
Lukács essa guinada estratégica mantém com um tipo de dualismo eclético
em um buraco, eles depositam as concepções políticas reacionárias do autor e,
em outro, uma “misteriosa maestria” (LUKÁCS, 1981, p. 128) – todas as
concepções de base, mantem uma certa visão sobre o progresso
6
que elimina
as manifestações de contradição do desenvolvimento histórico nas sociedades
de classe (cf. LUKÁCS, 1981, p. 70).
Ao recusar esse tipo de análise, Lukács evidentemente não assume o
ponto de vista diametralmente oposto, isto é, de que não haveria qualquer
relação entre uma obra de arte e suas determinações sociais, ou que a visão de
mundo de um autor não se imprime de modo algum na sua obra e seria,
portanto, indiferente. O que Lukács combate em primeira linha é a ideia de que
o sujeito e seu papel na elaboração, por exemplo, de um romance ou ainda sua
visão de mundo possam ser determinados mecanicamente como um produto
imediato de seu ser social. Dentre outras coisas, Lukács pondera que, se a
sociabilidade e o pertencimento a uma classe são um fator fundamental no
desenvolvimento ideológico, elas não representam, para o indivíduo, uma
jaula de ferro, como se ele fosse um produto passivo de sua classe. Tal
posicionamento, e não uma forma qualquer de fatalismo, é o que caracteriza
para Lukács o marxismo. Se este mostra a impossibilidade de que limitações
impostas por uma determinada classe sejam superadas em massa pelos
indivíduos dessa classe, é porque de modo acidental elas podem ser superadas
individualmente (cf. LUKÁCS, 1971, p. 262). Assim, sem negar o caráter
sociologia vulgar como um episódio do esforço de estabelecimento do que seria (do que
poderia ser) uma estética marxista, esforço este central para a trajetória de ambos.
6
Como lembra Sziklai, “Lifschitz diagnostica de modo totalmente correto que o principal
esquema, que serve de modelo para o sociologus vulgaris na análise de todos os processos da
história da cultura, era o colisão entre a burguesia progressista com a nobreza feudal,
madura para o declínio” (SZIKLAI, 1978a, p. 94).
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determinante da classe, Lukács conclui que um indivíduo não “está preso
hermética e solipsisticamente no ser e consciência de sua classe; na realidade,
pelo contrário, ele se defronta frequentemente com toda a sociedade”
(LUKÁCS, 1971, p. 263). Tendo em vista a contraditoriedade do
desenvolvimento social, Lukács entende que as relações entre indivíduo e
classe só podem ser representadas no quadro da “dialética da realidade”.
Assim, a partir do princípio da totalidade
7
, Lukács ressalta o caráter
determinante das relações sociais e econômicas no que diz respeito à
consciência individual e às atividades da vida espiritual, tais como as ciências
ou as obras de artes, ao mesmo tempo em que se contrapõe ao sociologismo
vulgar, bem como ao que ele identifica como “método stalinista”, ao ressaltar
justamente a complexidade dessa relação.
É por considerar que o desenvolvimento social nas sociedades de classe,
em sua realização processual e por vezes dramática, é contraditório
8
que
Lukács descarta a possibilidade de separar e contrapor mecanicamente o lado
bom e o lado ruim de determinada ideologia, extraindo seu sentido de todo
progressista ou de todo reacionário. Ele parte do pressuposto histórico-
filosófico de que, no capitalismo, o progresso se realiza às custas dos
indivíduos, que são submetidos à experiência da alienação de si e dos outros.
Lukács discute esse antagonismo próprio ao capitalismo em diferentes textos
(nesse sentido, são paradigmáticos os comentários sobre Goethe e Hegel). Ele
atravessa, também, os debates contra o sociologismo vulgar nos Escritos de
Moscou, como podemos ver em uma passagem em que Lukács comenta certa
limitação na obra de Ricardo, que também desconsidera de maneira coerente
com os lineamentos de sua teoria a unidade dialética entre indivíduo e
gênero:
Em Ricardo, apenas o progresso do gênero se torna conceito, os
indivíduos aparecem à margem justificadamente, a partir de sua
concepção enquanto nulidades em desaparecimento. Na
realidade, pelo contrário, o progresso do gênero se realiza sobre o
calvário trágico da felicidade e das mais nobres aspirações humanas.
Tão pouco é justificável economicamente protestar contra o
progresso que o capitalismo representa em nome dos indivíduos ou
de grupos humanos, tanto menos a ênfase exclusiva sobre os
momentos de progresso pode expressar o caráter específico dessa
fase do desenvolvimento. (1981, p. 112)
7
Um comentário de Sziklai é bastante esclarecedor quanto a esse ponto: “A sua essência [do
princípio dialético da totalidade] consiste em que sempre se deve considerar, em um
determinado período do desenvolvimento histórico total, as classes e as correlações de força
que surgiram entre elas, e o em relação ao seu estado morto [Zustandshaftigkeit], mas a
suas principais tendências de movimento” (1978, p. 96).
8
Cf. Cotrim (2009, p. 337) para uma apresentação sintética e bastante clara do problema da
contraditoriedade do progresso na sociedade de classes.
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À diferença de Ricardo, Lukács confronta o problema da
contraditoriedade do progresso do ponto de vista do socialismo; à diferença
dos sociologistas vulgares, para Lukács a realização do socialismo não significa
o fim das contradições. É o que ele deixa claro, ao comentar em O romance
histórico as colisões trágicas nos dramas:
A contradição do desenvolvimento social, a intensificação dessas
contradições aa colisão trágica é um fato comum [allgemein] da
vida. Essa contraditoriedade da vida também não cessa com a
superação social do antagonismo de classe através da revolução
socialista vitoriosa. Acreditar que, no socialismo, apenas haveria o
júbilo tedioso da satisfação não problemática, sem lutas ou conflitos
seria uma concepção totalmente rasa e não dialética da vida. (1965,
p. 118)
O desenvolvimento social não é um processo dicotômico e linear. Sendo
assim, a crítica também não pode se contentar em simplesmente afirmar que
tal ideólogo ou que tal escritor é reacionário, pois
tendências do futuro podem ter traços reacionário-utópicos, e a
orientação no passado pode ter como consequência as mais
grandiosas descobertas cientificas, prenhes de futuro… A história da
ciência conhece inúmeros exemplos em que descobertas certas e
importantes foram feitas a partir de premissas falsas (LUKÁCS,
1981, pp. 127-8).
O que Lukács constata a respeito da história da ciência certamente não
se restringe a esse campo de produção do conhecimento; antes, esse exemplo
retoma e especifica uma das “leis fundamentais” da filosofia da história,
enunciada diversas vezes pelos clássicos, como nos lembra Sziklai:
frequentemente, nas sociedades de classe, os homens realizam a própria
história com uma falsa consciência, o que não significa que esses objetivos
embebidos por uma falsa consciência subjetiva não possam conduzir a
resultados objetivamente corretos (cf. SZIKLAI, 1976, p. 130). Pois os homens
atuam sem que tenham total conhecimento de todas as circunstâncias ou das
consequências de sua ação, e isso repercute em tal descompasso entre a
motivação de quem age e o resultado dessa ação ou seu sentido objetivo. Não
por acaso, ao analisar o escopo alcançado pela iniciativa pessoal no contexto
do romance moderno, Lukács identifica a preponderância das relações sociais
em detrimento da intenção do herói, de modo que surge justamente “o
socialmente necessário: os homens agem de acordo com suas inclinações e
paixões individuais, mas o resultado de suas ões é algo totalmente diferente
do que eles intenderam” (1965, p. 179). O esquema do sociologismo vulgar, de
acordo com o qual o caráter progressista da classe se reflete de modo linear
sobre sua ideologia, sinalizando igualmente a grandiosidade das obras de arte
produzidas pelos autores dessa classe, exclui o surgimento da falsa consciência
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no contexto da realização de objetivos sociais progressistas e ignora a
contradição do progresso na sociedade de classes.
Há, ainda, pelo menos um terceiro aspecto na abordagem do
sociologismo vulgar sobre a relação entre a base econômica e o complexo
artístico que contribui, na perspectiva de Lukács, para sua simplificação. Ao
aproximar excessivamente uma esfera da outra, o sociologismo vulgar supõe
que o desenvolvimento das artes ocorre paralelamente ao desenvolvimento
econômico, o que vale o mesmo que dizer que a arte produzida nas sociedades
economicamente mais avançadas é, ela mesma, mais avançada do que aquela
produzida nas sociedades economicamente menos avançadas. Para Lukács,
contudo, essa relação é caracterizada por uma desigualdade
9
. A mesma base
econômica pode dar origem a fenômenos artísticos mais ou menos avançados,
de modo que é possível que um artista em um país economicamente menos
desenvolvido capture de modo mais pregnante traços essenciais de sua época
do que um contemporâneo em um país mais desenvolvido:
o materialismo histórico reconhece também aqui em grande
contraste com o marxismo vulgar – que o desenvolvimento das
ideologias não ocorre paralelamente, de modo mecânico e
necessário, com o avanço econômico. Não é de forma nenhuma
necessário, para a história do comunismo primitivo e das sociedades
de classe, sobre as quais Marx e Engels escreveram, que todo avanço
econômico, social necessariamente traga consigo um avanço da
literatura, da arte, da filosofia, etc.; não é de forma alguma
incontornavelmente necessário que uma sociedade mais avançada
tenha uma literatura, arte, filosofia mais desenvolvida do que uma
sociedade menos avançada (LUKÁCS, 1969, p. 210).
Afinal, dirá Lukács, se de acordo com o materialismo histórico as
ideologias determinam o processo de desenvolvimento de maneira secundária
em relação à base econômica, concluir a partir disso que entre “base e
superestrutura exista uma relação causal simples, na qual a primeira figuraria
apenas como causa e a última apenas como consequência” (LUKÁCS, 1969, p.
207) é um tipo de insuficiência própria do materialismo vulgar, ao qual
escapam as mediações próprias às expressões ideológicas. Assim, enfatizando
o papel desempenhado pela “energia criadora” do sujeito, Lukács conclui que
cada ramo da atividade espiritual possui uma “determinada independência
relativa”
10
:
9
De acordo com Winfried Schröder, a primeira vez que Lukács fala do significado das notas
de Marx sobre a relação desigual entre arte e economia para a superação da sociologia vulgar
foi no artigo sobre Franz Mehring, publicado em 1933. Lukács se perfila a Marx e Engels, ao
identificar e desenvolver esse problema. Ambos teriam repetidas vezes demonstrado o
“desenvolvimento desigual no campo da história das ideologias” (LUKÁCS, 1969, p. 210).
10
E que se coloque o devido peso na palavra “relativa”, que explicita a correlação entre base
econômica e o desenvolvimento ideológico, nos marcos da divisão do trabalho. Numa
passagem mais abaixo desse mesmo texto, Lukács retoma Engels para explicar como é possível
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Cada uma dessas áreas de atividade, cada esfera se desenvolve
através do sujeito criador -, a si, liga-se imediatamente às próprias
criações anteriores, continuidade ao desenvolvimento,
conquanto crítica e polemicamente (1969, p. 209).
E isso vale particularmente para as artes e a literatura, o que tem
implicações na maneira como a ideologia do artista, sua visão de mundo, em
suas oscilações e inconsistências, se imprime nas obras de arte. Sem negar o
caráter desfavorável da formação capitalista para o desenvolvimento das
artes
11
, Lukács reconhece que o artista possui uma margem de manobra maior
diante da realidade do que, por exemplo, um cientista social:
Mas, de certo, a margem de manobra, dentro da qual mesmo a mais
intrépida sinceridade artística não leva a uma ruptura completa e
franca com a própria classe, à necessidade de transição para o
proletariado, é incomparavelmente maior do que nas ciências
sociais. A literatura é, do ponto de vista imediato, a representação
de homens singulares e destinos singulares, que apenas em uma
instância tem contato com as relações sociais da época e não
precisam, necessariamente, demonstrar uma ligação direta com a
oposição burguesia-proletariado. (1971, pp. 266-7)
Para Lukács, em virtude da especificidade das esferas artística e
literária, o posicionamento do autor, consciente ou não, e que traz consigo as
perspectivas de sua classe, não afeta de modo necessário e direto a
representação artística. Também por essa razão é que, referindo-se sobretudo
ao período que antecede a ascensão da burguesia ao poder, ele dirá que
casos em que uma visão de mundo política e socialmente reacionária não pode
impedir o surgimento das maiores obras primas do realismo, e casos em
que justamente o progressismo político de um escritor burguês assume formas
que se colocam no meio do caminho de seu realismo na figuração” (1971, p.
269). Vê-se que Lukács, como viemos dizendo, não separa a visão de mundo
do escritor da realização (esteticamente bem-sucedida ou não) de sua obra; ele
nega, contudo, que haja uma causalidade direta entre as tendências
progressistas ou reacionárias e o valor artístico de uma expressão ideológica,
explicitando por seu turno outras determinações, como as diferentes
exigências dos diferentes campos da atividade ideológica e as possibilidades
que eles abrem, historicamente, para a apreensão concreta da realidade.
II
Quando se trata de avaliar o que é a literatura de fato progressista e qual
o papel nela exercido pelo fator subjetivo, essa concepção do desenvolvimento
que certas esferas da vida espiritual se desenvolvam de maneira relativamente independente
(cf. 1969, p. 209).
11
A esse respeito, cf. Bischof; Araújo (2015, p. 90).
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histórico, que identifica a contraditoriedade no coração da noção de progresso
nas sociedades de classes; que define nos termos de uma desigualdade a
relação entre a base econômica e as formas ideológicas de um período (dentre
as quais figura, vale lembrar, a literatura); que ratifica as leis gerais de
contradição entre ser e consciência rejeita a solução dos paralelos mecânicos.
Para responder, então, que tipo de influência, seja ela positiva ou negativa,
uma determinada visão de mundo exerce sobre uma obra, é preciso, dirá
Lukács, descer às raízes, é preciso determinar a situação histórica concreta, ao
mesmo tempo em que se observa de perto, na própria produção de um
determinado artista, quais são as implicações de seu posicionamento diante da
realidade:
A concretude histórica exige assim, a cada vez, a investigação de
como uma determinada visão de mundo atua sob determinadas
circunstâncias sobre um determinado escritor. Essa investigação
exige então, por um lado, a compreensão correta do
desenvolvimento capitalista e do papel das diferentes visões de
mundo nela; por outro, ela deve se concentrar na correlação
concreta na criação mesma do escritor. (1981, p. 132)
Atendo-se a essa perspectiva, através da análise da situação concreta,
Lukács pode identificar no caso de alguns escritores um fenômeno muito
curioso, que mencionamos por alto. Ele constata que há obras em que o
autor figura e assim a questiona na prática justamente o contrário de sua
visão de mundo professada, o que não pressupõe qualquer tipo de
intencionalidade de sua parte. A intenção do autor não é decisiva nesse caso.
Isso é o que Lukács entende por “triunfo do realismo” ou “vitória do realismo”.
Como se sabe, essa é na sua origem uma expressão de Engels
12
, que a usa para
caracterizar um aspecto da obra de Balzac em uma carta a Margaret Harkness.
A avaliação de Lênin sobre Tolstói segue por essa mesma direção; em
diferentes artigos, ele comenta e contextualiza do ponto de vista histórico e
econômico as contradições na visão de mundo de Tolstói, cuja obra contem
12
A carta de Engels, escrita em inglês, sob o ensejo de comentar uma obra de Margaret
Harkness, desapareceu, e o que se conhece dela é um esboço. A partir de uma carta de M.
Harkness supõe-se que Engels a enviou em abril de 1888. De acordo com Jan Myrdal (1976, p.
551), a carta foi divulgada pela primeira vez em 1932 na Linkskurve em tradução alea partir
do russo; o original em inglês foi publicado em 1948 na coleção dos escritos estéticos de Marx
e Engels organizada por Michail Lifschitz. Na carta, depois de caracterizar o realismo bem
como o posicionamento político de Balzac, Engels nota sua mordacidade justamente em
relação àqueles com quem o escritor francês por uma questão de classe - simpatizava: os
nobres, e conclui com as seguintes palavras: “que Balzac então tenha sido compelido a agir
contra suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos, que ele tenha visto a
necessidade do declínio de seus queridos nobres e os descreveu como pessoas que não
merecem um destino melhor; e que ele tenha visto os verdadeiros homens do futuro ali,
somente onde naquela época elas poderiam ser encontradas isso eu considero um dos
maiores triunfos do realismo e um dos traços mais extraordinários do velho Balzac“ (1948, p.
104).
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não imagens incomparáveis da vida russa”, mas “pertence à literatura
mundial” (LÊNIN, 1977, p. 96).
Não é, contudo, como um recurso a uma autoridade ou por mera
deferência aos clássicos do marxismo que Lukács retoma consistentemente a
noção de “triunfo do realismo”. Ela expressa, num ponto crucial, que é a
relação do escritor, enquanto subjetividade artística, e a realidade, a
autonomia relativa da literatura, contra as exigências da propaganda e do
partido, contra, na expressão acertada de Tertulian, as “injunções ideológicas”:
“se ssemos enxergar (com Gundolf)
13
na literatura somente a expressão da
individualidade do artista ou (com a sociologia vulgar) somente a expressão da
psicologia de classe e não o reflexo da realidade objetiva(LUKÁCS, 1964a, p.
224). Ela sintetiza, também, uma possibilidade de abertura à cultura burguesa,
que, ancorada ela mesma nas concepções mais gerais de Lukács sobre o
marxismo e a literatura (como viemos sugerindo), participa do esforço que
caracteriza esse período da produção de Lukács: a elaboração das alternativas
para a arte e a literatura, “em períodos nos quais o fascismo chega ao poder ou
o socialismo é vitorioso“ (SZIKLAI, 1976, p. 124). É a isso que Sziklai se refere,
quando afirma que nos escritos estéticos dos anos 1930, Lukács não estava
simplesmente tematizando o grande realismo, por mais que parecesse ser esse
o seu objetivo. Assim, a tese do “triunfo do realismo” organiza um problema
central de sua teoria, e que ganha particular relevância no contexto da frente
popular
14
.
Tal resolução do Partido Comunista no VII Congresso (1935)
15
, que por
um lado modifica a postura de rejeição diante da democracia burguesa, e, por
outro, apresenta-se como um contraponto ao dogmatismo e ao sectarismo na
União Soviética, pode ser vista como o gatilho político da necessidade de
elaboração de um aparato teórico para interpretar, adequadamente, a obra dos
aliados burgueses. Nesse sentido, podemos ler O romance histórico de Lukács
como uma resposta à produção de romances históricos de sua época. Mas,
como nota Sziklai, o debate sobre a relação entre visão de mundo e método
artístico, na União Soviética, se inicia antes, logo após a fundação da revista
Literaturny Kritik em 1933
16
, contando até 1934, quando se interrompe por
13
Friedrich Gundolf foi um conhecido germanista na República de Weimar. Ele pertencia ao
círculo de George.
14
JoPaulo Netto aponta para essa mesma correlação; ele entende que Lukács é um “coerente
ideólogo da política de frente popular avant la lettre” (2017, p. 331), pois ele já havia perdido
as esperanças de que a dominação burguesa iria ser liquidada a curto prazo, o que tem, para
ele, consequências táticas e estratégicas.
15
Sziklai nota que é característico da atividade de Lukács nesse período uma orientação “sem
reserva crítica tanto pelos princípios estratégicos como táticos da Internacional Comunista
(1990, p. 11).
16
Ainda de acordo com Sziklai, antes mesmo desse debate, Lunatscharski havia criticado a
falsa concepção de que, ao se apropriar do materialismo dialético, o escritor garantiria,
automaticamente, o conteúdo certo de sua obra. Também P. Judin e M. Rosental teriam se
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um tempo, com mais de 30 contribuições. Seja como for, Lukács se empenha
na crítica ao sectarismo, do qual ele mesmo não estivera isento
17
, e ressalta o
significado da grande literatura realista dos séculos anteriores. Assim, no
escopo dessa “plataforma antifascista” (SZIKLAI, 1990, p. 8), ele lapida sua
teoria no sentido de apoiar uma literatura partidária, indicando brechas para
a luta ideológica para além da União Soviética, sobretudo no campo literário.
Assim, contra a abordagem sectária que, à maneira do sociologismo
vulgar, estabelece equivalências entre posicionamento político e valor estético,
prejudicando o desenvolvimento da literatura radicalmente democrática e
proletária, Lukács procura mostrar como até mesmo a falsa consciência pode
ceder ao ímpeto da realidade, que se objetiva então na obra artística, rompendo
com o fetichismo e a mistificação (cf. LUKÁCS, 1981, p. 137), desvelando os
momentos de alienação no capitalismo, num adensamento crítico através da
representação literária. Pode-se então falar de “triunfo do realismo” quando a
“realidade vivenciada e apreendida corretamente” se opõe à “visão de mundo
ensinada” (LUKÁCS, 1971, p. 270); quando, na figuração literária, a pujança da
realidade, sua superioridade em relação às concepções subjetivas se manifesta;
quando, portanto, no processo de figuração literária, ser e consciência entram
em contradição.
Para tanto, não é exigido da parte do autor alguma forma de consciência
crítica ou revolucionária. Na verdade, no processo de reflexo literário, é
possível que o reacionarismo se constitua outrossim como um ponto de vista
privilegiado como no caso de Balzac. Mas, mesmo autores que se destacam
pelo caráter progressista de sua visão de mundo, como os democratas
revolucionários paradoxalmente, de acordo com Lukács, poucos desses nos
legaram uma obra propriamente realista (cf. 1981, p. 130) –, mesmo estes
devem lidar com os brotos da ilusão que caracterizam “qualquer visão de
mundo do pensamento pré-marxista” (LUKÁCS, 1981, p. 89). Frente a tais
ilusões historicamente necessárias, poderíamos dizer –, o triunfo do
realismo representa uma “determinada forma de no entanto [eine bestimmte
Form des Trotzdem]” (LUKÁCS, 1981, p. 89), indicando assim a constante
tensão em que elas se encontram com uma figuração propriamente realista da
sociedade, sem que seja possível determinar de antemão seu efeito (positivo,
oposto a equiparação da RAPP entre visão de mundo e método artístico (cf. SZIKLAI, 1978, p.
120).
17
A questão do sectarismo é apresentada clara e sinteticamente por Sziklai: “com a vitória do
fascismo na Alemanha, vem para primeiro plano no modo de pensar de Lukács justamente
aqueles momentos sectários (fascistização do capitalismo, a socialdemocracia como quartel-
mestre do fascismo), que estavam formulados nas Teses de Blum, sem que, na situação
modificada, a ideia da ditadura democrática a pudesse compensar em certa medida. Da falsa
alternativa de Lukács – fascismo ou a revolução proletária que o varre – decorre, no entanto,
linearmente que apenas o proletariado – mais exatamente – o proletariado apenas assume a
luta efetiva contra o fascismo, isto é, contra o capitalismo” (1990, p. 13).
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negativo) sobre a obra – embora, como nota Lukács, “essas ilusões se tornam
tão mais vazias e perniciosas para a compreensão da realidade, quanto mais
desenvolvidas as oposições de classe” (1981, p. 123). Faz-se necessário,
portanto, nada menos, nada mais do que um tour de force realista, que a
contrapelo impõe uma ruptura com essa gramática de expectativas do artista,
que é a sua visão de mundo.
A questão que a essa altura se torna forçosa então é: como essa ruptura
pode ocorrer? Como um sujeito que “não necessariamente conhece a realidade
em suas determinações essenciais chega a se converter no meio através do qual
certo saber sobre a realidade consegue se expressar na obra?” (MARANDO,
2014, p. 18). Lukács responde a essa pergunta em diferentes textos dos anos
30 e 40; em alguns, como Marx e o problema da decadência ideológica, ou
ainda certos ensaios dos Moskauer Schriften, ele se detém mais sobre o
assunto. Justapondo essas contribuições, é possível chegar a alguns elementos
que podemos considerar como centrais para a definição de Lukács sobre a
realização do “triunfo do realismo”. Ela envolve tanto aspectos subjetivos como
objetivos, que atuam em codependência.
No nível da possibilidade abstrata, Lukács menciona como
pressupostos subjetivos o talento, isto é, “a capacidade de capturar e
apresentar a realidade em sua complexidade” (1964a, p. 229), e a “honestidade
artística”. Frequentemente, Lukács afirma sobre um determinado escritor que
ele é honesto; assim, ele diz por exemplo que Flaubert e Zola não participam
do desenvolvimento social de sua época, pois são “grandes e honestos demais”
(1971, 205) para isso; também Kleist, que “rejeita a tentativa de aliciamento do
governo”, “arruína-se material e moralmente, mas enquanto uma pessoa
subjetivamente honesta (LUKÁCS, 1964a, p. 230). Com esse termo de
conotação aparentemente moral, Lukács procura indicar a coerência dos
escritores, que se esforçam por cunhar sua obra de acordo com a própria
imagem de mundo, sem se preocupar com aprovação ou rejeição” (1971, p.
269). Se a “honestidade artística” envolve um posicionamento ético, ela
pressupõe também certa consequência no processo de figuração.
Diferentemente daqueles que moldam a realidade de acordo com o filtro que
convém à classe dominante para Lukács, esses, que capitularam e se
converteram à apologética, estão perdidos como escritores –, os escritores
honestos possuem “a coragem de figurar o mundo que ele [escritor] viu e tal
como ele o viu” (1964a, p. 229). Nesse sentido, a honestidade é uma condição
importante para o triunfo do realismo, mas ela não passa de uma possibilidade
abstrata (cf. LUKÁCS, 1971, p. 269; 1981, p. 139).
Um passo na direção da concretização dessas qualidades subjetivas é o
“realismo espontâneo”. Ele consiste na preferência que o escritor manifesta na
tessitura de sua obra pelo acúmulo da realidade, em detrimento de sua própria
imagem de mundo (cf. LUKÁCS, 1971, p. 270). O realismo surge então
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76
espontaneamente
18
. Em relação à honestidade, que Lukács caracteriza como
“subjetivo-formal”, o “realismo espontâneo” representa um “conteúdo social e
ideológico” (1971, p. 270), sem que esteja em questão a apreensão correta da
realidade social ou a capacidade de tirar consequências corretas a partir dessa
apreensão. O “realismo espontâneo” é antes uma “força” que atua na direção
da abertura em relação à realidade, que desperta uma “confiança profunda e
íntima na realidade assim percebida” (1971, p. 270), e então permite que
surja “a intrepidez artística na reprodução do mundo assim visto” (1971, p.
270), que corresponde, assim entendemos, à “honestidade artística”.
O que Lukács identifica em Marx e a decadência ideológica burguesa
como “realismo espontâneo “nos parece semelhante à capacidade de reação
particular do jurista descrita por Engels e comentada por Lukács em Tribuno
popular ou burocrata? Ali, ele destaca a “espontaneidade imanente dessa área
profissional”, pois, no momento de seu surgimento, era possível que um
burocrata “subjetivamente honestofosse de encontro aos interesses de sua
classe, ao aprofundar ideologicamente a “espontaneidade de sua área”, “seu
comportamento espontâneo” em relação à ela, tornando-a “com pathos moral
o tema de sua vida” (1971, p. 426). A diferença é que esse conflito, no caso do
burocrata, é antes um acontecimento esporádico, enquanto que, no caso dos
artistas com tendências reacionárias, um tal processo não constitui uma
exceção. A despeito disso, é preciso notar que o momento histórico, também
no caso dos artistas, pode apresentar-se como favorável, ou, pelo contrário, ele
pode minar esse tipo de reação.
Outro paralelo possível é com a tipologia de Goethe sobre os escritores
apresentada por Lukács em Marxismo ou proudhonismo na história da
literatura. Goethe dirá que há escritores que procuram no geral o particular, e
este funciona então como um exemplo do geral, enquanto outros escritores se
ocupam do particular, que desapercebidamente pode conter o geral. Segundo
Lukács, esse último tipo não corrige a realidade a partir de sua visão de mundo,
pelo contrário, ele “reverencia a realidade, sua esperteza e sua sabedoria“
(1981, p. 133), o que paradoxalmente permite que sua visão de mundo,
indiretamente representada, atue de maneira mais produtiva sobre sua obra
(1981, p. 144).
Tanto em um quanto no outro caso, o que é descrito são manifestações
do realismo espontâneo. Em ambos os exemplos, a realidade se impõe sobre
uma apreensão tacanha, e assim a visão de mundo, em sua limitação, é
18
A escolha desse termo, “espontâneo”, é digna de atenção. A crítica de Lukács ao
espontaneísmo, enquanto uma maneira de exaltação da imediaticidade, pode ser encontrada
nos mais diversos contextos, e está no centro da crítica de Lukács ao naturalismo, por exemplo.
Ao especificar essa qualidade do escritor como “realismo espontâneo”, parece-nos que Lukács
sugere que é preciso ultrapassá-la, na medida em que a espontaneidade deve ser saturada
por mediações, através da figuração artística, transformando-se assim em outra coisa.
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questionada por causa de um comportamento espontâneo do sujeito, que o
coloca numa postura de receptiva abertura e assim a realidade pode se
imprimir, de maneira honesta e realista, na obra.
A postura do sujeito diante da realidade pode então contribuir, ou, pelo
contrário, inviabilizar o triunfo do realismo, ao permitir uma relação mais ou
menos profícua com a realidade. Para Lukács, está claro, não interessa em um
primeiro momento se a visão de mundo do autor é progressista, se ele alimenta
utopias ou se se trata de uma figura reacionária. Mas a imagem de mundo de
um autor - enquanto um processamento da realidade, enquanto uma “síntese
das suas experiências elevada a uma certa altura da generalização” (LUKÁCS,
1971, p. 229) pode ela mesma favorecer, ou pelo contrário, inviabilizar tal
representação abrangente, realista da realidade:
Com toda a tortuosidade da relação recíproca entre a possível
falsidade da visão de mundo e a grandeza da figuração realista, uma
visão de mundo equivocada qualquer evidentemente o pode servir
de sustentação para um grande realismo. (LUKÁCS, 1964b, p. 250)
Cabe então à crítica investigar concretamente de que maneira a visão de
mundo, enquanto um ponto de acesso à realidade, atua sobre a obra; se, numa
postura de “reverência à própria realidade”, o escritor se deixa guiar por suas
mãos (o que condiciona o “realismo espontâneo”) ou se ele procura dominar a
figuração, conformando-a não às suas próprias leis de desenvolvimento, mas
corrigindo-a de acordo com suas intenções pessoais. De modo que, por si
mesma, a visão de mundo não nos permite entender nada sobre literatura, mas
a sua “relação concreta com o processo criativo de um determinado escritor” é
um critério para que o triunfo do realismo possa ocorrer:
O ponto é em que medida o aprofundamento ideológico ajuda o
escritor a ver os homens, suas relações, conflitos etc. de maneira
mais correta e abrangente, mais verdadeira do que a mera
observação imediata tornaria possível. Aqui se mostra então um
resultado aparentemente paradoxal: quanto mais indireta a relação
entre a visão de mundo e a criação, mais profundamente apreendida
e pensada deve ser a visão de mundo, para de fato poder frutificar a
criação. Pois nessa relação indireta a visão de mundo do escritor
volta a ser novamente um momento da vida (LUKÁCS, 1981, p. 143).
Assim como Goethe, que vê no confronto com o singular (e não em sua
busca no geral, tal como na alegoria) as maiores possibilidades para a
literatura, Lukács insiste nas vantagens da relação indireta entre a visão de
mundo e a criação artística, em contraposição a uma relação direta,
intencional, característica da literatura de tendência enquanto expressão de
um ideal. Ainda assim, Lukács atribui grande importância ao ódio contra o
capitalismo e sua desumanidade, como no caso de Balzac. Tido por Lukács
como um dos expoentes da crítica romântica ao capitalismo, o ódio de Balzac
atravessa sua obra, como também a sua pessoa. De acordo com Lukács, ele é,
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assim como o reacionarismo, um elemento da sua visão de mundo; sendo
assim, quando Balzac “figura e não quando ele escreve como um panfletista
monarquista”, o ódio contra o capitalismo permite que ele reconheça certos
traços fundamentais da restauração, ele abre para Balzac “a percepção
precisamente desses fenômenos socialmente decisivos”, ele o torna
“clarividente” (LUKÁCS, 1981, p. 74). Para Lukács, não são raros esses casos
em que um ódio estreitamente ligado a tendências reacionárias permite que
um escritor perceba e figure mais adequadamente a realidade do que um
“representante do progresso burguês”. Outro exemplo seria Tolstói, cujo ódio,
mais precisamente o ódio de matiz camponês, é um elemento decisivo em sua
obra.
O ódio é um “componente afetivo” de uma atitude que Lukács valoriza,
e que Maria Marando sintetiza nos termos de “sentir-se parte de um certo
destino comum” (MARANDO, 2014, p. 20). Desse modo, ela ressalta a partir
de Lukács a importância de tais componentes afetivos “para a aproximação à
vivência da genericidade”, que não acontece através de “saberes científicos”,
“senão que pela via afetiva” (2014, p. 20). Nesse sentido é que Lukács
menciona uma carta de Gorki, na qual ele defende uma “cultura dos
sentimentos”. Interessa a Lukács a observação de Gorki a respeito da diferença
entre os escritores e os leitores de sua época, na União Soviética. Gorki nota
que os leitores que fazem parte da vanguarda da classe trabalhadora, mesmo
quando não são familiares dos livros de Lênin, tem uma base emocional muito
mais sólida do que os escritores, o que lhes permite se apropriarem “da lógica
das ideias que subjaz as coisas”, pois o “sentimento de mundo” é “uma emoção
que antecede o conhecimento de mundo da gica intelectual” (GORKI apud
LUKÁCS, 1971, p. 272). Essa cultura afetiva de que eles dão mostras poderia,
por sua vez, ajudar os escritores burgueses, que dependem da “própria força”
para superar as circunstâncias hostis do capitalismo, “a procurar e encontrar
o caminho através da brenha dos preconceitos impeditivos”(LUKÁCS, 1971, p.
272).
Quando Lukács fala do ódio ou do componente afetivo envolvido na
imagem de mundo como uma das condições para o “triunfo do realismo”, pode
parecer que está em jogo uma dimensão muito própria, íntima por assim dizer,
do autor empírico. Mas, como bem notou Marando, o fundamental nessa
atitude é a ponte com um destino comum, que alcança certa expressividade
através do processo de figuração. O ódio é o sentimento que Tolstói
compartilha com “milhões do povo russo, que ‘já odeiam os senhores da vida
presente, mas que ainda não chegaram na luta consciente contra eles, na luta
consequente e que vai até o fim sem qualquer conciliação’” (LÊNIN, 1986, p.
316).
A partir dessa indicação, podemos apreender um elemento do triunfo
do realismo que se torna perceptível sobretudo nesses comentários sobre
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Tolstói, que é o vínculo com um movimento social relevante e progressista. A
obra de Tolstói reflete tanto as virtudes quanto as fraquezas das “revoltas
camponesas depois das reformas de 1861 e antes da revolução de 1905”. A sua
recusa do mundo burguês, que funde o ódio contra a aristocracia a ilusões de
corte reacionário, é da mesma natureza contraditória que o “ódio aos
proprietários de terras aos senhores feudais e seu governo” que moveu a
“massa de milhões de camponeses” à luta revolucionário-democrática”
(LÊNIN, 1977, p. 99). Assim, em virtude de seu teor objetivo, em virtude de sua
“necessidade histórico-mundial”, as ilusões de Tolstói não não impedem,
como são um ponto de apoio para sua grandeza literária, para sua “capacidade
de desvelar e figurar as determinações essenciais do desenvolvimento social”
(1964b, p. 190). Se, em outros momentos, Lukács não atribui claramente um
caráter determinante a esse vínculo, em seu comentário a Tolstói ele é de fato
categórico:
apenas aquelas ilusões do escritor que o fundadas
necessariamente no movimento social, cuja expressão literária é o
escritor, que, enquanto ilusões, frequentemente ilusões trágicas, são
de uma necessidade histórico mundial, não serão um impedimento
insuperável para uma tal figuração objetiva da sociedade (1964b, p.
191).
O vínculo com um movimento social significativo e progressista é o que
torna assim uma ilusão historicamente justificável (cf. LUKÁCS, 1964b, p.
250).
Se nos atentamos bem, podemos ler nessa restrição, no critério da
necessidade histórico-mundial que advém da estreita relação com um
movimento popular, um outro requisito da teoria do realismo e que
desempenha igualmente um papel no “triunfo do realismo”. Na medida em que
expressa literariamente a potência e os limites do movimento camponês russo,
Tolstói traz para o primeiro plano “os grandes problemas da vida, que, em
virtude de seu caráter geral e sua profundeza, podem ser entendidos por todos”
(LUKÁCS, 1964b, p. 256). Essa habilidade em retratar os momentos
significativos da vida popular é o que Lukács entende por “caráter popular”
[Volkstümlichkeit]. Através do caráter popular, através da “figuração múltipla
e integral da vida”, o ponto de vista do escritor, que política e socialmente pode
ser visto como iludido, ganha realidade. Não quer dizer que, na obra acabada,
esse ponto de vista ainda seja funcional. Ali, para Lukács, ele é um corpo
estranho, mas, para o processo de figuração, ele foi indispensável (cf. LUKÁCS,
1971, p. 433).
O que se torna evidente, nessas idas e vindas da relação entre o autor e
a realidade, através do processo de criação, é que a diferença (ora encurtada,
ora ressaltada no comentário de Lukács) entre a obra acabada e a realidade, da
qual aquela é um reflexo artístico, fundamenta afinal a possibilidade do
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“triunfo do realismo”. No processo de criação, a “subjetividade imediata” do
escritor se transforma, de modo que seus afetos – como o ódio – ganham uma
outra amplitude e uma outra dinâmica. Segundo Tertulian
19
, ocorre uma
“superação do estágio de pura singularidade”, o que implicaria,
ao mesmo tempo, uma superação por meio da intensificação de
determinadas características da experiência individual; essa
generalização [Verallgemeinerung] sui generis do vivenciado pode
se objetivar no mundo da obra com diversas reflexões
[Rückstrahlungen] na totalidade intensiva desta última (...), sem
conduzir a uma universalidade abstrata, como seria o caso nas
generalizações científicas (TERTULIAN, 1990, p. 89).
Outrossim, essa superação pressupõe como vimos um ponto de apoio
na realidade. Lukács destaca a potência dos momentos revolucionários, que
tornaram escritores como Balzac ou Tolstói, com seu reacionarismo estreito,
em grandes realistas. Mas, em determinados contextos, a força objetiva da
realidade o é suficiente para vergar a tacanhez obtusa de um modo de ver;
por vezes, o “poder objetivo” da realidade não é “manifesto e forte o bastante”
para transformar a pequenez reacionária em “uma figuração total e objetiva da
realidade” (LUKÁCS, 1964a, p. 230). Esse é o caso de Kleist, cuja honestidade
“é uma das condições subjetivas importantes para o ‘triunfo do realismo’ em
suas obras primas e em partes de sua produção como um todo” (LUKÁCS,
1964a, p. 230). Mas, por causa da Alemanha da época, o “triunfo do realismo”
se restringe a umas poucas obras. Combinada às suas tendências pessoais, a
situação alemã o lança na tragédia: Kleist “é destruído tragicamente pela
miséria da Alemanha, pelos seus próprios instintos tanto reacionários como
decadentes” (LUKÁCS, 1964a, p. 231). É essa opacidade o que caracteriza, para
Lukács, o período que se inicia depois da revolução de 1848: incapazes de
conceberem o mundo de uma maneira acertada, os escritores se veem
confrontados por uma realidade aparentemente esgarçada. Assim, após 1848,
as condições para o triunfo do realismo se tornam cada vez mais difíceis; os
fundamentos a partir dos quais os escritores poderiam superar sua
particularidade, ao oferecerem uma “visão geral sobre toda a vida social da
humanidade” (LUKÁCS, 1971, p. 434) se tornam cada vez mais problemáticos.
Lukács observa que “das contradições entre ponto de partida utópico e
reprodução ampla da realidade surge cada vez menos uma vitória do realismo”,
pois “a utopia, frequentemente com subtendências reacionárias, infiltra-se
cada vez mais na figuração mesma” (1971, p. 434). Ele entende que a razão para
tanto é, justamente, o aprofundamento das relações capitalistas num
contexto pós-revolucionário, poderíamos acrescentar: “quanto mais o
19
Embora em seu comentário Tertulian se volte sobretudo para a estética tardia de Lukács, em
virtude das continuidades entre ela e a dita teoria do realismo, seu comentário pode também
explicá-la com precisão.
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capitalismo permeia todas as relações sociais, tanto menos uma visão
conservadora pode reclamar para si uma universalidade para esclarecer todos
os fenômenos sociais” (LUKÁCS, 1981, p. 139).
Fundamentalmente o problema é o mesmo: o conflito entre a “imagem
de mundo mental” e a “realidade vivenciada”. Mas, nesse período, o escritor
burguês honesto se acuado. Por um lado, “os preconceitos do período da
decadência desviam a atenção das pessoas da percepção dos acontecimentos
realmente importantes da época” (LUKÁCS, 1971, p. 270). Por outro, ao
criticar e recusar o desenvolvimento de sua classe, sem, contudo, romper com
ela, o escritor honesto acaba por assumir o lugar de observador. Esse lugar,
para Lukács, é trágico, pois ele expressa uma recusa, ele expressa “o ódio, a
repulsa, o desprezo pelo regime político e social de seu tempo” (LUKÁCS, 1971,
p. 205).
Essa oposição, no entanto, não exime os escritores das deformações de
seu tempo, eles são, afinal “filhos de sua época” (LUKÁCS, 1971, p. 209). Seria
preciso superá-las na figuração, quando, por meio de seu poder objetivo, a
realidade poderia driblá-las. Mas – e esse é o desfecho trágico o observador
se depara com resultados (não com o movimento); de seu canto, onde “eles não
estão em condições de vivenciar conjuntamente na vida a luta real do homem
pela organização plena de sentido de sua vida” (LUKÁCS, 1971, p. 233), o
“realismo espontâneo” – que poderia dissolver os resíduos do fetichismo - não
chega a tomar corpo, pois a experiência da realidade é débil.
Ademais, ainda que o escritor vivencie tais acontecimentos
fundamentais, “os preconceitos atuam no sentido de um aprofundamento
enganoso, no sentido de desviar da investigação das causas reais subjacentes
do acontecimento em questão” (LUKÁCS, 1971, p. 271). A partir dessa
avaliação do estado de coisas, Lukács entende que, nesse contexto, o trabalho
intelectual e moral do escritor se torna fundamental. Como bem resume Karin
Brenner:
Não basta mais captar o caráter da época com “cinismo ricardiano”,
o “olhar literariamente claro” se torna cada vez mais importante. O
grau de consciência estética recebe um peso decisivo em relação à
força figurativa puramente espontânea. (BRENNER, 1990, p. 156)
Isso não significa, para Lukács, que o escritor deva assumir a visão de
mundo do materialismo dialético. Ele deve lutar constantemente para “superar
esses preconceitos na observação e julgamento da realidade mesma” e lutar
“para superá-los na própria vida interior, na sua posição quanto as próprias
experiências interiores” (LUKÁCS, 1971, p. 271). Se a experiência imediata
reforça os fetiches da consciência cotidiana, Lukács entende que é preciso
desmontá-los através do trabalho intelectual e moral.
A situação dos escritores socialistas é em larga medida diferente.
Quando o povo organiza a vida social de acordo com seus interesses
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econômicos e culturais, cessa, de acordo com Lukács, a separação entre arte e
vida (cf. LUKÁCS, 1971, p. 443). Ele se contrapõe, como vimos, às limitações
sectárias de setores da esquerda, mas não deixa de sublinhar o corte de classe
que também desempenha um papel na relação do escritor com a realidade,
relacionando-o com outras dimensões da vida social. Como ele afirma em
Volkstribun oder Bürokrat, “o problema da consciência é qualitativamente
diferente para a classe trabalhadora do que para todas as outras classes da
sociedade capitalista, do que para todas as classes revolucionárias anteriores
da história” (1971, p. 446).
Ao mesmo tempo, é claro para Lukács que a realização dessas
possibilidades que permitiriam um novo florescimento da vida cultural se
ameaçada, dentre outras coisas, pelo burocratismo. Em suas notas
autobiográficas, ele estabelece retrospectivamente o sentido do destaque cada
vez maior do “triunfo do realismo” como um combate à tentativa de regular a
produção ideológica a partir de cima. Essa dimensão da visão de mundo na
produção literária foi colocada, dirá Lukács em Marxismo ou proudhonismo
na literatura, “energicamente na ordem do dia entre nós” (1981, p. 145), isto é,
entre os comunistas na União Soviética. Ele observa, contudo, que “se essa
política do Partido Comunista da URSS deve se tornar frutífera, então é
necessário que os escritores lidem consigo a respeito da complicada correlação
entre visão de mundo e literatura”. Não só os traços de “falsa consciência” não
desapareceram (cf. LUKÁCS, 1971, p. 421), como também, do ponto de vista da
política cultural, a tese do “triunfo do realismo” mantém sua atualidade em
relação aos escritores soviéticos, embora para avaliá-la seja necessário,
segundo Lukács, ter sempre em conta a diferença. Ele entende que certas
barreiras desaparecem no realismo socialista. Afinal, “a perspectiva socialista
gera também para a literatura a possibilidade de enxergar a vida social-
histórica com uma consciência correta” (LUKÁCS, 1971, p. 555). Dessa
possibilidade não se deve, contudo, concluir que “o processo de transposição
de uma consciência correta em um reflexo correto, realista, artístico da
realidade seja a princípio mais direto e mais cil do que de uma consciência
falsa” (LUKÁCS, 1971, p. 555). Como procuramos mostrar, muito do esforço de
Lukács vai no sentido de demonstrar que essa assunção não passa de um “erro
fatal” (LUKÁCS, 1971, p. 555).
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Como citar:
ARAÚJO, Paula Alves Martins de. Triunfo do realismo: o que é isso? Sobre
uma categoria da teoria do realismo de Lukács. Verinotio – Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 1, pp. 64-84, jan./jun.
2020.
Data do envio: 16 mar. 2020
Data do aceite: 2 jun. 2020