DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.558
Guilherme Wagner
Everaldo Siqueira
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O silêncio ontológico na obra de Wittgenstein: crítica à filosofia da
educação matemática
Guilherme Wagner
1
Everaldo Siqueira
2
Resumo: O presente trabalho se insere numa discussão filosófica sobre a
linha de continuidade da obra de Wittgenstein, mais especificamente das obras
do Tractatus logico-philosophicus e das Investigações filosóficas. Nesse
sentido, desenvolvemos a tese de que a continuidade entre as duas obras é o
silêncio ontológico do autor frente as questões essenciais da mundanidade,
visto que para ele, adotando a doutrina do dizer e do mostrar, a essência do
mundo não pode ser desvendada, e somente contemplada. Prosseguindo
discutimos os impactos diretos desse silêncio ontológico em concepções sobre
a matemática e suas implicações para o ensino culminando numa referência
biologicamente determinante do autor com relação ao ensino como
treinamento e denunciando a possibilidade de o autor austríaco ser utilizado
como referencial para uma posição neotecnicista na educação matemática.
Palavras-chave: Filosofia da matemática; filosofia da linguagem; ontologia;
filosofia da educação matemática.
The ontological silence in Wittgenstein's work: criticism of
philosophy of mathematics education
Abstract: The work is inserted in a philosophical line on the line of continuity
of the work of Wittgenstein, more specifically the works of Tractatus logico-
philosoficus and the Philosophical Investigations. In this sense, an emergency
thesis developed between the two works is being considered as an essential
issue of worldliness, since for him, adopting a doctrine of scenery and
spectacle, an essence of the world can not be unraveled, and only
contemplated. To continue the discussions on the methods of formation of
ontological teaching in conceptions about mathematics and their implications
for the teaching of the formation of a determining biology of the author with
1
Doutorando na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da rede municipal
de educação de Florianópolis (SC). E-mail: guilhermewagn@gmail.com.
2
Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atua no Programa de
Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (UFSC). E-mail: derelst@hotmail.com.
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respect to teaching and to denounce a possibility of the Austrian author being
used as a reference to a neotechnist position in mathematics education.
Keywords: Philosophy of mathematics; philosophy of language; ontology;
philosophy of mathematics education.
Introdução
Em 1954 Russell (1995) definia a existência de três grandes movimentos
filosóficos sucessivos no mundo britânico do século XX. O primeiro oriundo
do livro Tractatus logico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein, o segundo,
das obras do positivismo lógico e o terceiro oriundo dos trabalhos das
Investigações filosóficas também de Wittgenstein. Do primeiro Wittgenstein
uma geração do círculo de Viena fundará o neopositivismo. No entanto, a
maior influência de Wittgenstein está na sua segunda obra, aquela que
referendará a virada linguística do século XX (RORTY, 1993), fundamentará a
agenda pós-moderna (LYOTARD, 2009) e culminará como arcabouço teórico
fundamental do pensamento pós-estruturalista.
Não como falar em filosofia negligenciando Wittgenstein. Não seria
diferente no que concerne à educação matemática, ainda mais quando grande
parte de sua obra se dedica a observar e estudar a linguagem matemática.
Rorty (1994) radicalizará a posição de Wittgenstein e afirmaque o se pode
conhecer o mundo, somente a linguagem. O neopragmatismo rortyano
influenciará o final do século XX e mantém suas influências no início do século
XXI. Lyotard (2009) fazendo uso das categorias wittgensteinianas dique
nada pode ser compreendido fora dos jogos de linguagem, e que em verdade,
toda a realidade é somente um conjunto de sobreposições de diferentes jogos
de linguagem, de forma que se tornaram obsoletas as grandes narrativas, ou
metanarrativas, e que a pós-modernidade se opõem aos ideais modernos que
cultivavam o grande futuro do homem iluminista.
No que concerne aos estudos da educação matemática, sob o ponto de
vista da natureza do conhecimento matemático, os trabalhos de Gottschalk
(2002; 2004) caracterizam um novo movimento no campo de pesquisas da
educação matemática brasileira. Dessa nova visão serão iniciados os trabalhos
dos quais beberão todo um campo da educação matemática crítica
(SKOVSMOSE, 1999). E por outro lado, reforçarão o caráter pragmático do
ensino da matemática escolar.
Os estudos etnomatemáticos, em grande parte referenciados nos
trabalhos de Gelsa Knijnik (1996; 2018), inaugurarão um momento poderoso
na crítica da matemática dita universal, onipotente e onisciente, e em
consequência possibilitarão a compreensão da especificidade do campo da
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matemática escolar, e da importância cultural das outras diversas matemáticas
que existem na cotidianidade.
A tese defendida por Vilela (2007) onde analisa as semelhanças de
família entre a matemática de rua, do cotidiano, acadêmica, escolar etc.,
aponta os arcabouços teóricos para a consolidação da educação matemática
como um campo epistemologicamente diferenciado da própria matemática
enquanto atividade de pesquisa científica.
Em suma, a filosofia de Wittgenstein permitiu um movimento de
criticidade com relação ao próprio conhecimento matemático, questionando a
suposta neutralidade dos formalismos matemáticos defendida pelos
neopositivistas, evidenciando a influência cultural nas consolidações das
matemáticas dos diferentes povos. Se consolidou assim como fundamento
obrigatório da filosofia da educação matemática.
O presente trabalho se situa numa perspectiva de fazer filosófico que
busca se aprofundar com mais ênfase no pensamento de toda uma vida de
Wittgenstein. Portanto, o presente artigo analisa as duas obras principais de
Wittgenstein: o Tractatus logico-philosphicus e as Investigações filosóficas.
Existe uma espécie de consenso sobre a obra de Wittgenstein que afirma
existir uma ruptura epistemológica do Tractatus para as Investigações
filosóficas. O maior debate no campo hoje corresponde a discutir quais são as
características de continuidade do primeiro ao segundo Wittgenstein. Margutti
(2006) defende que essa continuidade é marcada por sua religiosidade mística
em que o fulcro de continuidade são suas concepções ético-religiosas. Wrigley
(2002) afirma que a continuidade se dá pela forma como Wittgenstein tratou
os problemas filosóficos, para o filósofo austríaco eles careciam de significado
mantendo assim a continuidade que a filosofia se reservaria à crítica da
linguagem, sendo, no entanto, a forma de compreender a linguagem
diametralmente oposta. Conant e Diamond (2010) defendem inclusive que
exista um único Wittgenstein. Em suma, a tese da continuidade é muito
controversa nas pesquisas sobre o pensamento wittgensteiniano. Nesse
aspecto, apontamos que uma das grandes dificuldades dessa discussão está na
procura interna de motivos, razões e significados para a continuidade, isto é,
naquilo que está presente no pensamento de Wittgenstein nos dois momentos
de sua filosofia. Advogamos que a continuidade se faz presente fatidicamente
não naquilo que está dito em sua obra, mas naquilo que não está, sobre o qual
inclusive se deveria calar. Defenderemos que a continuidade é seu grande
ausente, e que sua gênese se faz presente nas obras de cardeal Bellarmino
quando este advoga a separação entre ciência e religião, como sendo a
separação entre a gnosiologia e a ontologia. A tal característica denotamos de
silêncio ontológico.
Nesse artigo procuramos, assim, fazer uma exposição que evidencie o
silêncio ontológico como linha de continuidade entre o jovem Wittgenstein e a
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obra do autor maduro. Essa exposição se faz numa perspectiva de defesa do
pensamento teórico mais aprofundado no campo da educação matemática,
pois concordando com Moraes (2001) houve no campo da pesquisa
educacional um recuo da teoria e um aligeiramento das conclusões teóricas
sem a devida análise e questionamento da gênese das teses filosóficas
adotadas.
Num primeiro momento será feito uma exposição histórica da
ontologia
3
para em seguida situar a posição de silêncio ontológico de
Wittgenstein nessa história. Assim, pretendemos demonstrar que a filosofia
wittgensteiniana se estabelece numa linha contínua de tradições históricas da
filosofia e da ontologia. Em sequência delineamos o silêncio ontológico e sua
manifestação nas duas obras representantes de cada momento de maturidade
filosófica de Wittgenstein, para no final, analisarmos as consequências do
silêncio ontológico nas concepções teórico-filosóficos da educação
matemática.
Um breve excurso histórico da ontologia
Antes de podermos compreender o que se entenderá por “silêncio
ontológico” na obra de Wittgenstein é necessário que estabeleçamos um
traçado histórico do desenvolvimento da ontologia durante alguns períodos
importantes da sociedade humana.
Usualmente a ontologia é confundida com a metafísica, sendo a
metafísica uma perspectiva de se estudar ontologia. A ontologia, para a
metafísica, é a produção de metadiscursos que procuram elucidar o ser
enquanto ser. Em linhas gerais, é o estudo e a ciência do ser
4
. No decorrer
desse trabalho estaremos constantemente alertando para não confundirmos
esses dois campos. Em nossa perspectiva a ontologia não é um discurso
metacientífico que elabora reflexões que transcendem a ciência e assim
estruturam a dinâmica da realidade. Nessa perspectiva ontológico-metafísica,
afirma Lukács, são tomados
contínuos compromissos metodológicos que põem de lado o
problema ontológico fundamental da especificidade ontológica do
3
Essa exposição é diretamente interessada no sentido de evidenciar no movimento histórico
a gênese do chamaremos de silêncio ontológico, numa perspectiva lukacsiana. Não temos
interesse de dar conta de toda a história da ontologia, muito menos das diferentes perspectivas
de ontologia no decorrer histórico.
4
No pensamento ocidental vários são os autores que exploram a metafísica, entre os principais
estão Heidegger, Platão, São Tomás de Aquino e Santo Agostinho. Estes serão aqueles que
influenciarão mais profundamente a metafísica e sua hegemonia caracterizará a ontologia
como sinônimo de metafísica. Segundo Lukács (2012) um dos primeiros autores a romper com
essa hegemonia será Nicolai Hartmann cunhador da ideia de intentio recta tratada na primeira
seção.
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ser social e enfrentam as dificuldades cognitivas dos setores
singulares de modo puramente gnosiológico ou puramente
metodológico, epistemológico (2012, p. 19).
Compreendemos a ontologia, baseados em Bhaskar (2012; 2014) e
Lukács (2012; 2013), como um estudo do ser não direcionado necessariamente
pelos discursos intersubjetivos da ciência mesmo estes o influenciando-, mas
sim guiado pelo próprio objeto, pela realidade, pela materialidade. Portanto, a
visão de ontologia aqui defendida é materialista.
Para esse rápido excurso sobre a história da ontologia (ou então das
concepções que a sociedade teve sobre si e sobre o mundo, a realidade)
partiremos das sociedades primitivas ainda nômades onde imperava o
conhecimento mágico. Nessas sociedades a ontologia baseada em um
conhecimento mágico sobre o mundo acreditava que a sociedade era mais uma
parte da natureza assim como uma floresta ou uma caverna. Em suma, para o
pensamento mágico não havia uma diferenciação ontológica do ser social com
o ser orgânico e inorgânico (LUKÁCS, 1966).
Com o desenvolvimento das forças produtivas e consequente liberação
de tempo de trabalho novas concepções de mundo foram emergindo, e desta
forma a cosmovisão religiosa começa a se efetivar. No entanto, nestas
sociedades primitivas a ontologia em si ainda não havia se desenvolvido como
campo da filosofia. É na Antiguidade clássica grega, devido ao seu sistema
escravista e militarmente expansionista
5
, que a ontologia
6
passará a ser tratada
como campo relativamente autônomo. Lukács (2012) aponta para essa
tendência grega em grande parte devido a não existência de um poder
sacerdotal nem uma teologia dogmático-obrigatória visto que os mitos
estavam em constante mutação e eram continuamente reinterpretados.
A inexistência desse poder religioso se tornara fundamental dado que a
ontologia religiosa era uma via oposta à ontologia científico-filosófica. A
primeira, segundo Lukács (2012), move-se a partir das necessidades singulares
dos humanos frente aos seus comportamentos cotidianos buscando o sentido
da sua vida, e assim, construindo uma imagem de mundo que, quando
efetivada, poderia realizar os desejos manifestos nessas necessidades ou seja,
os paraísos
7
. Ao ponto que a segunda poderia investigar a realidade objetiva
tratando de compreender o espaço real da práxis humana real.
5
Cabe lembrar que na sociedade grega somente os gregos donos de escravos eram vistos como
seres humanos ao mesmo tempo que sentiam aversão ao trabalho e consequentemente
gozavam de ócio contínuo para as reflexões intelectuais, e por outro lado, o caráter
militarmente expansionista permitia aos gregos pilharem as cidades invadidas, escravizá-las e
roubarem suas riquezas materiais, e principalmente nesse caso, riqueza tecnológica e
científica.
6
Conforme tratada no escopo desse trabalho e definida nos parágrafos anteriores.
7
Para compreender de que maneira na sociedade grega helenística esses desejos religiosos não
se manifestavam tão fortemente ver Lessa (2007) e Tonet (2013).
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Por essa oposição de caminhos entre as ontologias científico-filosófica e
a místico-religiosa que as mesmas, nos seus embates, apelam para as
necessidades teóricas e práticas da vida sentimental dos seres humanos. Não
obstante, dependendo do hic et nunc histórico podem estabelecer relações de
aliança ou concorrência dependendo da estrutura social e da correlação de
forças envolvidas (LUKÁCS, 2012).
É, portanto, por não haver uma resistência teológica dogmática que a
ontologia, conforme mencionamos anteriormente, pode se desenvolver em
direção as questões mais essenciais do ser. São os pré-socráticos
8
até o período
de Sócrates, enquanto a sociedade grega se mantinha em ascensão, que melhor
desenvolveriam esse pensamento ontológico. Após o período helenista e o
início da decadência da pólis grega passa-se a procurar responder à pergunta
que fazer?. Platão é o primeiro filósofo que vai se propor esta tarefa de,
apesar da decadência da pólis, estabelecer uma imagem de mundo onde os
valores morais considerados imprescindíveis para a salvação grega se
tornassem realizáveis e possíveis. Não se trata aqui de delinear todos os
percursos da filosofia grega, mas de explicitar a importância de Platão e outros
para a aliança da ontologia místico-religiosa e científico-filosófica. Com Platão
se inaugura um dualismo ontológico onde, de um lado havia o mundo dos seres
humanos das quais emergem as necessidades religiosas e a ânsia por sua
realização, e do outro, um mundo transcendente que é invocado para fornecer
as garantias dessa realizabilidade do mundo dos homens e dos valores gregos
imprescindíveis (LUKÁCS, 2012; LESSA, 2007). Alguns filósofos, como
Plotino e Proclo irão radicalizar a visão religiosa, enquanto, Aristóteles pode
ser visto como um contragolpe a maior parte das teses platônicas sem,
contudo, romper com o dualismo ontológico
9
.
A gênese do cristianismo é dada nesse ambiente de dissolução da
cultura antiga em que o atendimento prioritário era o da satisfação dos desejos
de salvação da alma humana. Nesse contexto surgem várias seitas religiosas,
no entanto, não cabe a esse trabalho reiterar o passo a passo histórico pelo qual
o cristianismo alcança a hegemonia no império greco-romano, mas nos basta
elucidar a ideia cristã do retorno de Cristo ressuscitado, salvador e da redenção
das almas culminando naquilo que seria os fins dos tempos, o Apocalipse
bíblico, expressão religiosa, portanto, da dissolução da cultura antiga clássica
(LUKÁCS, 2012).
Assim, o cristianismo funda uma ontologia religiosa que marginaliza a
imagem de mundo científica em prol de uma realidade terrena desesperançosa
para a vida pessoal que esperava unicamente o Apocalipse. O juízo final não
8
Demócrito e Epicuro no período helenístico.
9
Em Aristóteles ocorre uma inversão em relação a Platão, trazendo a filosofia para o ambiente
terreno. Entretanto, sua filosofia se manteve fiel a uma visão transcendente e metafísica de
Platão caracterizada pela teleologia preponderante nos campos da realidade.
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ocorreu, mas a cristã se manteve apesar das tentativas puristas
10
de
Tertuliano, imperador romano, consideradas heresias subsequentemente.
Assim, aos poucos, o pensamento neoplatônico vai se incorporando a ontologia
cristã culminando na hegemonia religiosa do cristianismo sob Constantino.
Não obstante, as dificuldades encontradas, de um lado, pela Parusia que
não ocorreu e, de outro, pela radicalidade ética do Messias Jesus
constantemente se faziam presentes no cotidiano da Igreja que se via impelida
a rever suas compreensões dogmáticas dada a contradição imanente destes
dois postulados com a prática real e cotidiana. No entanto, apesar de todas
essas reformas de dogmas a visão ontológica essencial
11
se mantinha: de um
lado o mundo dos seres humanos que realizam o seu destino onde seu
comportamento define sua salvação e do outro um mundo cósmico-
transcendente, de Deus, que se constitui enquanto garantia ontológica última
do poder de Deus sobre a terra (LUKÁCS, 2012).
É nesse contexto constante de reformas da Parusia permitida pela falta
de futuro à vida social e consequente manutenção dos desejos cotidianos que
a ontologia religiosa se mantinha forte e resistente. Nesse escopo a teoria da
dupla verdade, como expressão do dualismo ontológico platônico, fornecia
refúgios intelectuais para o desenvolvimento da ciência. Isto é, a ciência teria
seu desenvolvimento permitido caso não atacasse a visão de mundo religiosa
que permitia a dominação moral sobre os indivíduos por parte da Igreja.
É com a derrubada científica do sistema geocêntrico, inicialmente
reprimida como heresia, na polêmica com Galileu que ocorre a inversão dos
objetivos da teoria da dupla verdade. Se antes ela servia para a proteção do
desenvolvimento científico às sombras da ontologia religiosa, agora ela passará
a servir como ideologia religiosa da Igreja para aquelas coisas as quais não
gostaria de renunciar, a saber, que no melhor domínio das forças da natureza
a ciência deveria ser permitida, mas com relação a tudo aquilo que transcende
a manipulabilidade cotidiana da natureza deveria ser mantido sob a custódia
da Igreja. Tal tese é atribuída a cardeal Bellarmino (LUKÁCS, 2012) que,
apesar de frear os impactos desses novos postulados científicos, que emergiam
no período da Renascença, na cosmovisão religiosa, não conseguiu blindar a
ontologia cristã dessas influências cada vez maiores. Brecht, na peça de teatro
que retrata a vida de Galileu, traz muito bem, pela arte, a fala de cardeal
Bellarmino quando este defende a teoria da dupla verdade ao cardeal
Barberini:
10
Para Paulo, apóstolo de Cristo, deveria existir a ontologia religiosa. Para compreender
melhor o desenvolvimento do cristianismo recomendamos Marx (2015), sobre a questão
judaica, e Mészáros (2017).
11
Nietzsche irá definir o cristianismo como platonismo para o povo, no entanto, essa visão
crítica não é favorável a humanidade e sim ao escravismo. Losurdo (2015; 2004) demonstra
como a crítica de Nietzsche era favorável ao escravismo.
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Vamos marchar com os tempos Barberini. Se os mapas celestes, que
dependem de uma hipótese nova, facilitam a vida de nossos
navegantes, eles que usem os mapas. O que nos desagrada são
doutrinas que tomam por erradas as Escrituras. (BRECHT, 1999, p.
111)
Ou seja, ao campo científico ficaria reservado os limites gnosiológicos
do conhecimento para a sua utilidade cotidiana, enquanto às Escrituras
deveriam se manter o trato e a explicação sobre a essência do mundo terreno
e sagrado.
Como dito, tal compromisso bellarminiano não conseguiria evitar o
avanço de uma ontologia científico-filosófica que, mesmo ainda sob o domínio
ideológico da Igreja, já se manifestava nos textos científicos de fervorosos
religiosos como Blaise Pascal e nas obras de arte como as de Michelangelo.
A tese bellarminiana será desenvolvida filosoficamente nos trabalhos de
Berkeley e Kant que procuram demonstrar gnosiologicamente não ser possível
atribuir significado ontológico ao conhecimento produzido sobre o mundo
material. Em Kant (2009) se institui a coisa-em-si incognoscível e em Berkeley
(2010) que todo conhecimento é produção subjetiva, sensível e solipsista. A
conclusão evidente dessas teses é que deveria ser devolvida a religião o direito
de determinar a ontologia do mundo (LUKÁCS, 2012).
Em grande medida aquilo que advogaremos ser o silêncio ontológico
em Wittgenstein é a manutenção e afirmação da tese bellarminiana.
O Tractatus logico-philosophicus e a exposição do silêncio
ontológico
No Tractatus Wittgenstein vai desenvolver uma fundamentação
filosófica que articula duas esferas: a estrutura essencial do mundo e a
estrutura essencial da linguagem. A mediação entre essas duas estruturas é
feita pela lógica
12
. Influenciado principalmente por Frege em sua obra
Conceitografia e por Russell no desenvolvimento logicista da matemática,
Wittgenstein desenvolverá um projeto filosófico único na linha daquilo que
Badiou (2013) chamará de antifilosofia.
Como afirmamos anteriormente, nosso interesse está em compreender
de que maneira a ontologia se faz presente nas duas obras wittgensteinianas,
demonstrando como a questão da ontologia constitui uma continuidade frente
a descontinuidade daquilo que se convencionou chamar de primeiro e segundo
Wittgenstein. É nessa direção que precisamos iniciar com a compreensão de
12
Segundo Condé (1998) existe uma polêmica nessa questão, para alguns comentadores a
lógica é a estrutura essencial das duas esferas que se articulam, enquanto para outros a lógica
é quem permite a mediação entre as duas esferas.
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mundo, e como essa compreensão se manifesta na linguagem para
Wittgenstein.
Para Wittgenstein (1968) um isomorfismo lógico entre mundo e
linguagem, e tal isomorfismo vai estar marcadamente presente durante toda a
obra do Tractatus. Compreender a ontologia do mundo de Wittgenstein é
compreender a essência da linguagem. Segundo Black:
É característico do pensamento de Wittgenstein que quase cada uma
de suas observações principais sobre linguagem ou gico tem um
contraponto ontológico, enquanto, reciprocamente, cada
observação ontológica está refletida em alguma verdade sobre a
essência da linguagem. (Apud CONDÉ, 1998, p. 66)
Para o filósofo austríaco a linguagem afigura o mundo, pois as duas
esferas compartilham a forma lógica, de forma que, operar com rigor na
realidade é operar com rigor na forma lógica da linguagem (TLF, §2.18)
13
visto
que a lógica não é um mero instrumento para se conhecer, ela transcende, é a
“figuração especular do mundo” (TLF, §6.13). Em suma, a lógica é a essência
da realidade, uma categoria ontológica.
Os objetos constituem o fundamento ontológico, são os elementos
últimos e simples que compõe a estrutura do mundo, caracterizando-se como
uma existência lógico-transcendental. Carregam em si a condição de
possibilidade de um estado de coisas. Tais objetos são a substância do mundo
(TLF, § 2.02), o invariável (TLF, §2.03). Para além disso, sua existência não
pode ser pensada fora da combinação com outros objetos, isto é, pensada como
estado de coisas. Ou seja, há em Wittgenstein (1968) um atomismo ontológico
no qual os objetos, essências ontológicas do mundo, são impensáveis em suas
características particulares. O fundamento ontológico do mundo, os objetos,
não são pensáveis. Somente são pensáveis as suas combinações em um estado
de coisas. Aqui reside o primeiro problema ontológico de Tractatus: como
podemos pensar o múltiplo, o estado de coisas, se seus elementos constituintes
são impensáveis?
Por outro lado, há um segundo problema ontológico que Badiou (2013)
traz à tona. Refere-se a correlação entre a substância do mundo e o próprio
mundo. No §2.24 Wittgenstein (1968) afirma que a substância da realidade é
independente do que ocorre, no entanto, em §1 caracteriza a realidade do
mundo como tudo o que ocorre. Por conseguinte, não há relação entre os dois
dada sua independência? Ou a substância do mundo é externa ao mundo?
Ao primeiro problema ontológico Wittgenstein tenta resolver a partir da
designação ao nomear os objetos (TLF, §3.22). Designação que não é
13
Seguiremos com o uso de referenciação as obras de Wittgenstein utilizado pelos principais
interlocutores, onde aparecem inicialmente a abreviatura da obra correspondente, e em
sequência de qual aforismo ou proposição estamos referenciando.
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pensamento, proposição nem descrição. É em verdade uma representação em
um quadro (TLF, §2.13). Portanto, o acesso ou o pensar um objeto é dado na
nomeação deste num cenário, em um estado de coisas. Isto é, a nomeação fixa
o objeto em um estado de coisas e então se pensa com e a partir dele, mas não
o que é ele:
Posso nomear apenas objetos. Os signos os substituem. Posso
apenas falar sobre eles, não posso, porém, enunciá-los. Uma
proposição pode apenas dizer como uma coisa é, mas não o que é.
(WITTGENSTEIN, 1968, §3.221)
Noutra direção, este estado de coisas não pode ser nomeado, mas
somente descrito (TLF, §3.114). Esta disjunção entre o que se pode nomear e
descrever, é resultante direta da questão daquilo que só se pode dizer e do que
só se pode mostrar.
Condé (1998) apoiado em Stenius fala de um mostrar interno e de um
mostrar externo (descritivo) das proposições. Este mostrar externo descritivo
é que se diz sobre o estado de coisas. O mostrar interno seria dado pelo caráter
ontológico do mundo mostrando a realidade interna, aquela que não pode ser
dita. O que pode ser dito é o que pode ser descrito, enquanto o dizer sobre essas
questões internas (ontológicas, isto é, a lógica) é um absurdo, tal forma lógica
não é descrita pelas proposições, ela somente se mostra nelas. Portanto, o
ontológico se mostra. Assim, o objeto pode ser mostrado (denotado) e o
estado de coisas dito (proposição descritiva).
O estado de coisas, entretanto, se constitui como uma possibilidade de
acontecer no mundo, e seu acontecimento é sempre acidental casuístico,
fortuito. Portanto, uma proposição que descreve um estado de coisas, e carrega
em si o objeto pela sua denotação (nome), é sempre uma proposição de
possibilidade. Em uma direção paralela, podemos compreender que o papel da
ciência é o de expor o dizível, descrever todos os estados de coisas possíveis.
Como na proposição se descreve o estado de coisas e esta é sempre uma
justaposição de objetos conectados como quadros desconexos, também os
estados são atomizados (TLF, §2.061). É nessas proposições atômicas,
elementares, que estão concentrados de um lado a relação entre objeto e estado
de coisas, e de outro, a relação entre substância e mundo.
Há, portanto, um atomismo objetal e um atomismo entre estado de
coisas. Essas proposições de possibilidade terão sentido se forem
imediatamente compreensíveis, isto é, o sentido da proposição não está na
experimentação do mundo, mas em sua forma lógica compartilhada com o
mundo. É por isso que a proposição é sempre um pensamento com sentido.
Sentido sendo entendido como uma característica da substância do ser eterno,
invariável, imutável. Badiou (2013) chamará a tal ontologia de virtual em
contraposição ao real. As proposições sobre os estados de coisas são ditas
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verdadeiras se ocorrem no mundo, e falsas se não. Como tudo o que ocorre é
fortuito (TLF, §6.41), acidental, não razão para uma conexão, uma ligação,
entre o que ocorre e o ser possível da substância. A verdade é uma simples
constatação empírica (TLF, §2.223), apartada do sentido, casuística.
Como Wittgenstein opera nessa resolução do atomismo, no entanto, se
não sentido em dizer algo sobre os objetos, sobre a essência do mundo, mas
somente pode ser mostrada tal essência? Como Wittgenstein mostra a
essência ontológica do mundo?
Para Wittgenstein, com continuidade em toda a sua vida, e marcado de
maneiras caracteristicamente resolutiva em cada uma das obras aqui
estudadas, a filosofia estará enferma e tomada por problemas que seriam
pseudoproblemas, problemas mal postos e inefáveis, pois a maioria deles nem
se quer são “falsas mas absurdas” (WITTGENSTEIN, TLF, § 4.003). Para
Wittgenstein (1968) o absurdo é aquilo que é desprovido de sentido, e se é
desprovido de sentido não pode ser um pensamento (TLF, § 4.000). Assim, a
maior parte da filosofia não pode, se quer, ser considerada um pensamento.
Explica o filósofo austríaco que essa enfermidade filosófica surge quando algo
sem-sentido se expõe como sendo dotado de sentido, isto é, quando um não-
pensamento se expõe como forma de pensamento. Em grande parte, para
Wittgenstein (1968) a filosofia não repousa sobre a necessidade de produzir
teoria, mas é uma atividade (TLF, § 4.112) de forma tal que os problemas da
vida não seriam resolvidos se todos os problemas científicos fossem resolvidos
(TLF, § 6.52). Dessa forma, o que Wittgenstein (1968) está querendo dizer é
que não é tarefa da filosofia expor teorias para resolver os problemas da vida,
mas sim permitir que essas questões da vida se mostrem, de maneira que
aquilo que existe não pode ser expresso em proposições verdadeiras, mas
somente pode ser mostrado. Assim, a tarefa da filosofia deve ser de demarcar
os campos das coisas dizíveis (e consequentemente pensáveis) para assim
também demarcar o campo das coisas dadas que se caracterizam como
indizíveis e impensáveis destituídas de sentido (TLF, § 4.114, §4.115) donde
estas questões indizíveis que são dadas no mundo e consequentemente
informuláveis pela filosofia somente possam ser mostradas, e se mostradas
“são o que de místico” (TLF, §6.522). Esse elemento místico em
Wittgenstein é caracterizado por uma mistura de Evangelho com música
clássica, ao ponto de afirmar que “ética e estética são um só” (TLF, §6.421).
Quando Wittgenstein (1968) aborda que a enfermidade da filosofia são
proposições sem-sentido se apresentarem como dotadas de sentido ele está
elucidando o papel da linguagem na apresentação dessas proposições. É a
partir da linguagem que coisas sem sentido se mostram com sentido. Isso
ocorre, segundo o autor, pela falta de clareza entre os limites do dizível e do
indizível, daquilo que pode ser dito com aquilo que pode ser mostrado. O
elemento místico que marca o pensamento de Wittgenstein (1968) é o
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cristianismo. Dado que as proposições científicas, dotadas de sentido, nada
podem falar/resolver sobre os problemas da vida, para Wittgenstein, o
cristianismo clarifica o sentido da vida e consequentemente do mundo, visto
que “sou meu mundo” (TLF, §5.63).
Objetivamente, assim, o sentido do mundo não pertence ao dizível,
estando fora do alcance deste podendo ser compreendido como transcendente,
isto é, algo exterior ao mundo. “O sentido da vida, dito de outro modo, o
sentido do mundo, pode ser chamado de Deus” (WITTGENSTEIN, 1916 apud
BADIOU, 2013, p. 26), visto que Deus não se revela no mundo (TLF, § 6.432)
e o místico é o sentimento dos limites do mundo (TLF, §6.45). Assim, o místico
que define os limites do mundo, é Deus. Igualmente, na subjetividade o
cristianismo expressa o sentido da vida individual, da vida bela e plena que
conduz a felicidade, isto é, a vida com sentido conduz a felicidade, mas esse
sentido da vida está fora do mundo. Dessa forma, para Wittgenstein (1968) o
sentido do mundo está fora dele, mas não consegue elaborar proposições que
se querem dotadas de sentido dentro da linguagem, visto que o sentido do
mundo é indizível. É por esta razão que Wittgenstein escreverá a Ficker em
1919 dizendo que em seu livro conseguiu restituir as coisas ao seu devido lugar
sem falar sobre elas (BADIOU, 2013). Assim, apesar da ciência poder ter
resolvido todas as questões pertinentes a si, aquelas as quais ela pode dizer,
mesmo assim, para Wittgenstein os problemas mais fundamentais da vida
nem terão sido compreendidos.
Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis
tenham sido respondidas, os problemas da nossa vida não terão sido
se quer tocados. Nesse caso, é claro que não restará mais nenhuma
questão, e essa é precisamente a resposta. Percebe-se a solução do
problema da vida no desaparecimento desse problema. (Não é por
essa razão que as pessoas, para as quais, após longas dúvidas, o
sentido da vida se tornou claro, não puderam dizer em que consiste
esse sentido?) , entretanto, o inefável, ele se mostra, é o místico.
(Apud LUKÁCS, 2012, p. 56)
É assim que o silêncio ontológico se manifesta no Tractatus, ao pôr a
essência do mundo como externa a ele, como algo indizível, e por diversas
vezes somente sensível, num caráter estético, que Wittgenstein termina sua
obra afirmando que sobre aquilo que não se pode falar, ou dizer, deve-se calar
(TLF, §7). O silêncio ontológico é esse calar-se frente ao mundo,
compreendendo que o mesmo se entende numa contemplação místico-
religiosa.
No que concerne à matemática é esclarecedor a passagem §6.21 onde
afirma que as “proposições matemáticas não expressam pensamento algum”
(WITTGENSTEIN, 1968). Isto é, o são dotadas de sentido, se configuram
como pura tautologia. Se elas são impensáveis, sem sentido, não são dotadas
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de construto ontológico. Mas, se não é dotada de sentido é impensável
formular questões sobre ela, e ela sobre si mesma, tornando-se impossível que
seus problemas matemáticos sejam resolvidos. Em suma, Wittgenstein ignora
a história da matemática e de como o impensável/impossível se tornou
possível em muitas situações em que o sem sentido ganhou sentido, basta
lembrarmos do paradoxo dos incomensuráveis e da sua resolução por Eudoxo.
O silêncio ontológico se faz presente na matemática, e assim como a lógica -
pois ela é um simples método lógico (TLF, §6.2) , a mesma é usada para
carregar o silêncio ontológico às discussões filosóficas dado que usamos a
matemática somente para inferir (TLF, §6.211). Badiou (2013) afirma que não
no Tractatus uma filosofia da matemática, mas sim um ataque a
matemática e a sua constituição ontológica, visto que esta seria puro lculo,
pura tautologia e se reservaria a ser usada nos artifícios da linguagem.
O silêncio ontológico nas Investigações filosóficas
Existe uma grande ruptura de modo de exposição filosófica do
Tractatus para as IF (Investigações filosóficas). Para Condé (1998) essa
diferença do modo de exposição é vinculada a ruptura do fazer filosófico do
primeiro para o segundo Wittgenstein, dado que no primeiro a linguagem
mostrava sua essência na forma lógica das proposições, e consequentemente a
essência do mundo se mostrava nessa linguagem ideal. Por outro lado, para o
segundo Wittgenstein (1991) a linguagem deixa de ter uma essência, algo
comum, sendo marcada exclusivamente por semelhanças e dissemelhanças
(IF, §65) e dessa forma rompe com as sucessivas tentativas de se aproximar da
realidade (IF, §130), de afigurá-la. Esta postura antiessencialista da linguagem
deriva, para Condé (1998), em uma visão antiessencialista do mundo.
Condé (1998; 2004) discute o caráter ontológico do mundo em
Wittgenstein a partir da relação linguagem-mundo, e trará as diferentes
perspectivas dos principais comentadores nacionais e internacionais sobre a
temática. No entanto, para todos estes comentadores e para o próprio Condé
(1998; 2004) a ontologia é entendida como metafísica, como uma essência que
transcende ao signo
14
. Nesse sentido, compreendendo ontologia como
metafísica, o próprio Wittgenstein (1991) esclarece ao afirmar que nas IF sua
tarefa, e a tarefa da filosofia, foi de reconduzir “as palavras do seu emprego
metafísico para seu emprego cotidiano” (IF, §116). Em diversas outras
passagens, que serão exploradas na sequência, o filósofo austríaco trata de
evidenciar essa postura antimetafísica. No entanto, em outro momento afirma
14
É devido a essa característica de divergência de fundamentação teórica do que vem a ser
Ontologia que a conversação contínua com tais interlocutores não é ponto-chave na discussão
que procuramos trazer.
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que a essência da linguagem, ou dos jogos de linguagem, está dada na
gramática (IF, §371), e como veremos a gramática é dada na cotidianidade das
formas de vida. Para Condé (1998) na verdade uma ampliação da
compreensão da lógica como essência do mundo, uma compreensão que se
distancia da lógica como transcendental aos signos, mas que se faz presente na
práxis da linguagem.
Em suma, por certos momentos defenderemos que não uma visão
antiessencialista da linguagem em Wittgenstein (1998), mas uma inversão
ontológica, que rompe com o idealismo e se aproxima do materialismo, ao
mesmo tempo que inaugura uma concepção essencial da linguagem muito
próxima das concepções dialéticas da linguagem como fenômeno social, mas
ainda assim insuficientes, em grande parte pelo autor austríaco não tomar a
historicidade da linguagem como parte necessária na compreensão da
gramática. A tese interpretativa que pretendemos apresentar se aproxima
muito de Rossi-Landi (1985).
No Tractatus a linguagem é compreendida como aquela que afigura ao
mundo, onde a representação dos objetos do mundo se pela denotação.
Assim, a significação dos nomes nas proposições sempre é dada por uma
existência extralinguística. Nas IF a significação está vinculada aos usos que
fazemos das palavras e expressões. No entanto, afirma Con(1998), não é um
uso destas nas proposições lógicas, mas em diferentes contextos sociais de
práxis linguística que permite fazermos uma equiparação entre uso e
significação, visto que a “significação de uma palavra é seu uso na linguagem”
(IF, 1991, §43). Desta forma, as palavras e as expressões mudam suas
significações nos diferentes contextos em que são utilizadas. Monk (1997) nos
lembra dos gestos que foram feitos a Wittgenstein com denotação negativa (o
levantar do dedo médio). Rossi-Landi (1985) inclusive coloca essa importante
influência no colo de Sraffa que teria influenciado fortemente na inversão
filosófica de Wittgenstein, influência esta que o filósofo austríaco reconhece no
prefácio. Sraffa foi um marxista italiano, e sua influência é ignorada pela maior
parte dos biógrafos de Wittgenstein, principalmente por lançar luz para uma
visão materialista da linguagem em Wittgenstein, e rompendo com muitas
visões religiosas das IF (ROSSI-LANDI, 1985). Este mesmo autor, Rossi-Landi
(1985), questiona como seguidores de Wittgenstein mantiveram-se católicos
dada a sua visão materialista da filosofia, e comenta que a defesa de uma
impossibilidade de relacionar as diferentes passagens do livro das IF entre si,
por serem retratos apartados de um grande álbum, são para evitar evidenciar
essa compreensão materialista da linguagem, afinal, as essências das palavras
estão na cotidianidade (IF, §116).
Para compreender a significação de uma palavra é necessário que
compreendamos seu vínculo com os diferentes jogos de linguagem. Estes jogos
são mais do que simples usos de palavras, mas incorporam gestos, comandos,
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ordens, sendo assim o “conjunto da linguagem e das atividades com as quais
está interligada” (IF, §7), e existe uma multiplicidade de jogos de linguagem
que guardam entre si semelhanças de família. Não é simplesmente algo em
comum, mas somente semelhanças, como que traços mutáveis de um jogo a
outro. Wittgenstein (1991) procura discutir exaustivamente a gramática da
palavra jogo, onde os jogos modificam suas regras entre si de maneira
constante, não existindo princípios comuns a todos eles, no entanto, são
capazes de perceber traços característicos que marcam a todos eles. Essa
multiplicidade de jogos de linguagem (comandar descrever, desenhar, relatar,
conjecturar, inventar, cantar, traduzir, pedir etc.) não guardam semelhanças
com aquilo que os lógicos falavam da estrutura da linguagem.
Por outro lado, imaginar um jogo de linguagem é imaginar
15
uma forma
de vida (IF, §19). A forma de vida [Lebensform] é considerada uma das
dimensões mais importantes das IF, no entanto, aparece somente cinco vezes
durante todo o texto. Sua importância fundamenta-se no fato da linguagem
não ser algo que flutua sobre a forma de vida, sobre a cotidianidade, ela é
prática corrente dessa própria forma de vida, é uma atividade na e da forma da
vida (IF, §23), a linguagem emerge da forma de vida (CONDÉ, 1998). A forma
de vida pode ser compreendida como uma malha social extensiva e
intensivamente complexa, é a nossa cultura, algo característico dos seres
humanos, própria de nossa natureza (IF, §25).
Desta maneira, poderíamos nos questionar qual a relação entre
linguagem e forma de vida, ou melhor, a relação entre linguagem e mundo nas
IF? Condé (1998), apoiado em diversos comentadores, compreende que esse é
um falso problema, pois a linguagem é parte constituinte da forma de vida,
assim, não são esferas disjuntas que necessitam se relacionar. Por isso, a
discussão de relação entre linguagem e mundo é metafísica, pois sua resolução
já está dada na gramática.
A gramática
16
é quem regula os jogos de linguagem, as formas de vida.
Em grande parte, uma equiparação entre jogos de linguagem e formas de
vida, onde pensar uma forma de vida (o mundo, a cultura) é pensar um jogo
de linguagem. E assim, compreender a gramática dos jogos de linguagem
15
Do alemão Vorstellen, que pode ser compreendido como colocar algo frente a si, posicionar-
se frente a si para melhor compreender. Esse posicionar-se a sua frente tem conotação
conceitual e temporal, assim, sua tradução é complicada. Alguns tradutores a traduzem como
imaginar, outros como representar.
16
Os comentadores de Wittgenstein fazem uma distinção entre gramática superficial e
gramática profunda. A gramática superficial é aquela que se detém as características evidentes
das palavras, enquanto a gramática profunda engloba esta, mas se aprofunda nos diferentes
usos dessas palavras nos jogos de linguagem. Sempre que falarmos em gramática estamos nos
referindo a gramática profunda (CONDÉ, 2004; 1998).
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permite a compreensão daquela forma de vida da qual o jogo emerge
17
e
expressa (CONDÉ, 1998).
Para Wittgenstein (1991) a gramática deixa de ser aquela que analisa a
sintaxe lógica das proposições, e passa a compreender os diferentes usos das
palavras e expressões. Dessa maneira, uma expansão da compreensão de
significação, donde esta deixa de estar vinculada a um objeto fixo do mundo
extralinguístico, e passa a ser dado nos diferentes usos da linguagem fazendo
a significação surgir da práxis da linguagem. Por outro lado, uma ampliação
da noção de ter sentido, pois agora uma expressão terá sentido se estiver de
acordo com as regras gramaticais de determinado jogo de linguagem. Isto é, a
proposição, expressão fará sentido se fizer sentido para a forma de vida donde
age e atua.
A gramática não é simplesmente quem regula os discursos, ou os
normatiza. Ela verifica e expressa a pluralidade dos usos das palavras,
expressões etc., nos diversos modos de discurso. Em síntese, a gramática é
aquela que incorpora em si a regra a qual devemos seguir em um jogo. O seguir
a regra não é algo impositivo, mas ao mesmo tempo é aquele que regula o
sentido no jogo de linguagem. O deixar de seguir a regra, ou contradizê-la
também deve fazer sentido para o jogo de linguagem. Assim, a gramática que
incorpora em si essas regras não é simplesmente quem direciona, mas quem
expressa e detém as pluralidades.
É nesta direção que Wittgenstein (1991) afirma que a “essência está
expressa na gramática” (IF, §371). Para Condé (1998) essa essência não é
ontológica, mas sim uma ampliação da noção de lógica que é compartilhada
entre mundo e linguagem, pois “as regras gramaticais incorporam as
necessidades lógicas surgidas da prática efetiva de uma dada comunidade, isto
é, de uma forma de vida” (CONDÉ, 1998, p.173). Desta forma, para o
interlocutor de Wittgenstein a questão de relacionar linguagem e mundo é um
falso problema, pois surge de um mal-entendido gramatical, que assim como
nós nos cabelos, sua resolução é desmanchá-los a partir da análise gramatical.
A escolha de Condé (1998; 2004) para essa interlocução com as
tentativas resolutivas sobre a relação entre mundo e linguagem é em grande
parte pelas leituras metafísicas feitas por autores internacionais, e como essas
leituras aparecem discutidas e criticadas na obra supracitada. Em suma,
Condé realizou um trabalho crítico importante na área da ontologia em
Wittgenstein, e se aproxima de uma forma resolutiva mais abrangente e
coerente que outros comentadores. Portanto, criticamos partes das
17
Cabe compreender que o emergir para Condé (1998) é um emergir pragmático,
antiontológico, que se nos diferentes usos que surgem na forma de vida, assim se
distanciando da emergência bhaskariana como característica ontológica da realidade.
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compreensões de Condé, e procuramos uma interpretação materialista da
filosofia de Wittgenstein, compreensão esta que pode expressar os seus limites.
Para Condé (1998) esse falso problema de relacionar mundo e
linguagem surge da confusão entre proposições gramaticais e proposições
autênticas. As proposições autênticas são dotadas de sentido e conteúdo, isto
é, os usos das palavras se fazem presentes em determinada gramática, ao
mesmo tempo que representam uma forma de vida. Por outro lado, as
proposições gramaticais são aquelas que expressam regras de uso disfarçadas,
ilusões (IF, §111). Geralmente abstrações da própria gramática, que se
travestem de proposições autênticas, mas sem sentido e conteúdo, e naquilo
que Wittgenstein (IF, §251) condecora como sem representação contrária.
Quando falamos “essa barra tem um metro”, nossa frase tem sentido, conteúdo
e pode ser negada, no entanto, quando falo “toda barra tem um comprimento”
estou em verdade colocando como proposição uma convenção gramatical. Isto
é, afirmar que toda barra tem comprimento é, em verdade, travestir uma
convenção gramatical de proposição autêntica que representa uma forma de
vida.
Relacionar mundo e linguagem é, assim, uma ilusão gramatical que
quer se travestir como proposta proposicional autêntica. Isto é, não como
existir uma proposição com sentido e conteúdo que expresse a relação de
linguagem e mundo, visto que essa relação é dada na gramática. Nesse aspecto,
afirma Condé (1998) que não há uma negação da metafísica em Wittgenstein,
mas que na verdade, é uma ilusão gramatical falar sobre ela, visto que a
linguagem é uma práxis do próprio mundo.
A negação ontológica em Wittgenstein é a dos termos tractatianos, pois
agora a lógica não é algo que paira sobre o mundo, mas fruto da necessidade
da gramática. A lógica se expressa nas regras da gramática: são lógicas,
consensos, convenções. Ela deixa de ser uma superordem da linguagem (IF,
§97), é nesse sentido que Wittgenstein propõe voltar a linguagem ao solo
áspero (IF, §107), uma defesa da materialidade da linguagem e da
compreensão do mundo. Condé (1998; 2004) crê resolver a questão ontológica
entre linguagem e mundo pulverizando a linguagem dentro do mundo.
Mesmo que a linguagem seja parte constituinte do mundo e que o
mundo exista a partir dos diferentes jogos de linguagem de forma a não existir
uma essência da linguagem, no entanto, como que uma substância tractatiana
que se mantém imutável, a relação entre mundo e linguagem ainda se mantém
aberta. Não se resolve essa problemática dissipando e pulverizando a
linguagem na práxis cotidiana como crê Condé (1998). A linguagem é um
complexo social que mantém autonomia relativa frente à realidade do mundo,
seja da natureza, seja da cultura. Essa autonomia é trazida pelo aforismo §371
das IF onde a essência está expressa na gramática, e não é a essência da
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linguagem ou da realidade, mas a essência dessa forma de vida donde emerge
a linguagem. Assim, a essência da realidade está na gramática.
Da mesma forma, quando Wittgenstein afirma trazer a linguagem de
volta ao solo áspero (IF, §107) está advogando a materialidade da essência que
se faz presente na gramática, pois o retornar ao solo áspero é uma resposta ao
não caminhar no solo ideal da lógica do Tractatus. Isto é, Wittgenstein não
está ampliando o conceito de lógica do Tractatus, está o negando como algo
que nos impede de caminhar, um perigo das sutilezas de querermos descrever
tudo aos mínimos detalhes (IF, §106). Portanto, a essência da realidade, dada
na gramática, se faz presente na materialidade do cotidiano, e negando a lógica
do Tractatus essa essência deixa de ser imutável e eterna, passa a ser dada
somente pelas semelhanças e dissemelhanças de família. Em suma,
Wittgenstein (1991) inicia um movimento em direção a compreensão da
essência como descontinuidade na continuidade, mas se mostra incapaz de
desenvolvê-la.
Durante todo o texto das IF a descrição, o desenrolar e destrinchar dos
fenômenos linguísticos cotidianos se fazem presentes, e a essência desses
fenômenos é invocada somente em um momento, com uma citação altamente
complexa no aforismo §371. Este constante destrinchar dos fenômenos
linguísticos cotidianos, da compreensão da gramática dos usos das palavras
nos diferentes jogos de linguagem chega a dar a ideia de uma relação
fantasmagórica entre os jogos de linguagem. Por vezes, as relações da realidade
das formas de vida parecem ser feitas por jogos de linguagem, regulados por
gramáticas, e não por sujeitos sociais. Rossi-Landi (1985) faz essa comparação
com a existência fantasmagórica da mercadoria, onde parece haver uma mão
invisível que fazem as mercadorias serem trocadas no mercado, quando em
verdade, em sua essência são sujeitos sociais, os humanos, que vão ao mercado
e fazem a troca. De modo semelhante podemos compreender os jogos de
linguagem, onde eles estão dados e as interrelações entre eles representam as
interrelações da cultura, como que a linguagem fosse pública e disposta a todas
as pessoas, bastando elas serem treinadas nesses jogos de linguagem.
A linguagem em Wittgenstein é, portanto, pública e não social, e isto fica
evidente nas passagens do ensino como treinamento (IF, §5 e §6). É pública,
pois rejeita-se uma linguagem privada visto que ela ocorre com no mínimo
duas pessoas, entretanto, não é social, pois está mais preocupada em descrever
os usos de uma linguagem dada, do que compreender sua gênese para a
formação social das individualidades e da humanidade. Isto é, a linguagem não
é social nas IF, pois não se analisa a essência da realidade presente na
gramática, não se interroga sua formação. Desta forma, as crianças estão
biologicamente formadas e precisam ser somente treinadas nas regras dos
usos dos jogos de linguagem, visto que a linguagem é um óculo que está sobre
nariz com o qual vemos o mundo e nem se quer pensamos em tirá-lo (IF, §103)
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e que compreender uma linguagem significa compreender uma técnica, na
qual os usos das palavras e expressões são hábitos (IF, §199). Assim, a criança
e o adulto não estão de acordo com as opiniões expressas pela linguagem, mas
sim com o modo de vida ao qual estão sendo treinados (IF, §241). Portanto, o
materialismo presente das IF é predominantemente empirista e biologizante
(IF, §158).
Por mais que deixar de seguir a regra seja possível, não é consciente,
pois seguir a regra da gramática é uma ação cega (IF, §219), assim transformar
um jogo em outro se põe como possibilidade essencial presente na gramática.
No entanto, por que não se faz presente em Wittgenstein a análise mais detida
de como se essa transformação de determinadas regras gramaticais de um
jogo de linguagem em outras regras gramaticais, a partir das formas de vida?
É pela falta da história e do desejo de compreender a descontinuidade na
continuidade da essência que não se cogita a ideia da importância da
linguagem para a formação social da humanidade.
Durante toda a sua vida Wittgenstein esteve preso a uma visão
cosmológica cristã, de contemplação stico-religiosa do que está dado, razões
pelas quais a filosofia deveria, para ele, deixar tudo como está. Essa
contemplação é marcadamente presente em suas cartas e nas relações com a
família e o mundo. Perder irmãos para o suicídio, ver o mesmo sempre como
possibilidade em sua vida, ter relações sexuais homossexuais e se condenar
posteriormente, faziam da sua vida uma constante contradição entre a
materialidade cotidiana e a cosmologia místico-religiosa
18
, é essa cosmovisão
que evitará os avanços de Wittgenstein no campo de uma teoria materialista
da linguagem, fazendo-o parar em visões empiristas e biológicas.
Esta cosmovisão, que marcadamente se faz presente na negação da
constituição de uma teoria, onde a filosofia deixa tudo como está que faz Rossi-
Landi (1985) afirmar que, apesar da inversão ontológica da linguagem em
direção a materialidade, ainda lhe falta uma teoria da sociedade e da história,
isto é, uma concepção ontológica do ser social (que não fosse a místico-
religiosa), de forma que sua ontologia materialista virtual e ingênua congrega
a forma de vida como materialmente dada com uma essência de teor místico.
Portanto, a filosofia em Wittgenstein (1991) não deve dar uma visão de
totalidade, uma autêntica ontologia, negando assim qualquer produção teórica
por parte da filosofia como sendo doentia (IF, §109).
A doutrina do dizer e do mostrar continua presente nas IF, portanto,
pois “diga o que quiser dizer, contanto que isso não o impeça de ver o que
ocorre. (E quando ver isto, deixará de dizer muita coisa)” (IF, §79). Isto é, o
18
Pensamos que Monk (1997) é uma boa referência. No entanto, a vida material de
Wittgenstein foi explorada em diversos meios (cinema, livro, teatro), mas ironicamente as
pontes entre suas contradições pessoais e sua obra teórica dificilmente são feitas. Rossi-Landi
(1985) chama isso de um vazio historiográfico na obra de Wittgenstein.
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contemplar a vida cotidiana como algo dado de maneira místico-religiosa
impede e, ao ver de Wittgenstein, evidencia que muitas coisas não precisam e
não devem ser ditas. Assim, o silêncio ontológico se expressa pela negação da
teoria, em prol de uma contemplação do que está dado nesses usos descritos
dos significados existentes. O silêncio ontológico se mantém a partir de uma
visão místico-religiosa da essência do mundo, assim como no Tractatus.
A matemática e a educação matemática
No que concerne à matemática e a educação matemática, importante
salientar, que não se trata de discutir as contribuições de Wittgenstein para a
filosofia da educação matemática, mas de compreender e explicitar os
impactos do silêncio ontológico numa compreensão wittgensteiniana da
filosofia da matemática ou da educação matemática
19
.
A matemática pode ser compreendida nesse ínterim de discussões da
linguagem e da ontologia do mundo como formada por proposições
gramaticais que trazem em si abstrações das regras de uso da cotidianidade
das formas de vida. Essa abstração se a partir das convenções lógicas nos
seus emaranhados usos da cotidianidade, como que fibras que torcidas juntas
a outra formam a continuidade de um fio, que aparenta ter uma essência que
se conduz por todo o fio, mas em verdade, é uma conexão constante de regras
que se convencionam a partir dos usos. Assim, a matemática, como abstração
tautológica das regras de uso da gramática, normatiza os jogos de linguagem
(que são equivocadamente equiparados a realidade cultural do mundo em
Wittgenstein).
A filosofia quando pensa a matemática também deixa tudo como está
(IF, §125), de maneira que a matemática expressa pura tautologia, proposições
inautênticas sobre o mundo, isto é, nada dizem sobre o mundo, e somente se
expressam como regras gramaticais. Como podem tais regras gramaticais
expressas pela matemática mudar a partir das transformações das formas de
vida, descontinuar-se numa continuidade, não é discutido por Wittgenstein.
Não por o querer, mas por crer que se deve ignorar, visto que a essência
presente na gramática era produto de sua reflexão. Mas, esse ignorar é por crer
que seria um problema mal posto, pois é puramente gramatical de fato, e
assim, nada pode se dizer sobre ele, a não ser mostrá-lo nas diferentes formas
de vida. Assim, silencia-se frente ao caráter ontológico da matemática por
compreendê-la somente como regras gramaticais dos jogos de linguagem. Em
suma, além de silenciar também esvaziou ontologicamente a matemática, não
19
Não obstante, essa é a razão para não analisarmos a obra em que Wittgenstein se debruça
sobre a matemática, visto que lá não se constitui o silêncio ontológico como continuidade nas
descontinuidades.
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obstante, que os teóricos que usam Wittgenstein atualmente sempre o fazem a
partir de uma teoria social externa ao seu pensamento (WAGNER; SILVEIRA,
2019).
A matemática ao ser compreendida desta forma abre as portas a
possibilidade de uma defesa tecnicista de seu ensino. Quando vista como um
jogo de linguagem, ou então, vários jogos de linguagem que se relacionam por
semelhanças de família, a matemática, ou as matemáticas, são consideradas
como públicas e não sociais: as mudanças nas regras do jogo podem ocorrer
para Wittgenstein, e cada regra do jogo de linguagem matemático é a
cristalização de relações sociais de determinada forma de vida da qual emerge,
entretanto, como isso ocorre? Por que isso pode ocorrer? Como os sujeitos
históricos e sociais agem sobre e nas formas de vida se tornando capazes de
transformar as regras dos jogos de linguagem matemáticos? Isto é, mesmo
admitindo a possibilidade da mudança, a negação de Wittgenstein com o
questionar-se o porquê das mudanças culmina numa defesa ostensiva da
aceitação das regras do jogo de linguagem matemático compreendendo seu
ensino como um treinamento.
Assim, no ensino da matemática sob a perspectiva wittgensteiniana o
professor deve convencer e treinar o estudante em novos conceitos e ampliar
os anteriores (GOTTSCHALK, 2007; 2008). Para além disso, essa
compreensão de ensino da matemática como ensino dos seus mais diversos
usos, no treinamento em uma técnica, num jogo de linguagem existente, sem
questionar ou problematizar tais jogos de linguagem, culmina numa defesa
biologicamente determinista do ato de aprender: Wittgenstein quando refletia
sobre como seria possível saber que alguma outra pessoa tenha aprendido uma
palavra, e nesse sentido, conceitos, gestos, ações etc., compreende que esse
processo seria melhor compreendido conquanto compreendêssemos os
processos biológicos das sinapses cerebrais, pois
se os conhecêssemos mais exatamente veríamos quais ligações são
produzidas pelo treinamento e, poderíamos, então dizer, quando
olhássemos no seu cérebro: agora ele leu essa palavra, agora a
ligação da leitura foi produzida (IF, §158).
Nesse sentido, a filosofia da (linguagem) matemática numa perspectiva
wittgensteiniana, quando tomada em direto diálogo com a obra do autor,
advoga uma visão utilitarista da matemática, uma concepção biologizante dos
processos de aprendizagem e, sendo estes, consequência direta de uma
concepção da linguagem pública e não-social.
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Considerações finais
No que toca ao campo da filosofia da educação matemática, como um
campo que emerge da filosofia e da educação matemática, o presente artigo
buscou uma discussão mais aprofundada das teses filosóficas
wittgensteinianas antes de compreendê-las no campo da educação
matemática. Portanto, um fazer filosófico, tocado pela busca de um diálogo
honesto com a obra do autor austríaco, se fez mais presente que um fazer de
interrelação entre os campos.
Essa falta de relação, entretanto, não prejudica a compreensão primária
de que o silêncio ontológico da obra wittgensteiniana carrega consequências
importantes para o campo da educação matemática, consequências estas por
diversas vezes ignoradas ou aceitas com grande passibilidade. Nesse sentido,
o fazer filosófico com a obra de Wittgenstein é a defesa de retomar teórico mais
aprofundado e menos aligeirado nas pesquisas do campo da educação
matemática, assim como (MORAES, 2001) diversas vezes denunciou no
campo da pesquisa em educação.
Nessa direção, o silêncio ontológico como característica inicial e direta
da filosofia wittgensteiniana traz a possibilidade, sem expressamente
defender, uma compreensão tecnicista do ensino da matemática ao expor que
este deva ser um treinamento nas técnicas dos jogos de linguagem
matemáticos ignorando o processo dinâmico de produção e reprodução do
conhecimento matemático, o tomando como dado, como algo público, sob o
qual os seres humanos deveriam se apropriar para fazer melhor uso.
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Como citar:
WAGNER, Guilherme; SIQUEIRA, Everaldo. O silêncio ontológico na obra de
Wittgenstein: crítica à filosofia da educação matemática. Verinotio Revista
on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 359-
82, jul./dez. 2020.
Data do envio: 27 abr. 2020
Data do aceite: 24 out. 2020