DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.571
Henrique Segall Nascimento Campos
321
A Profissão de fé do Vigário Saboiano
e a fundamentação do pensamento de Rousseau
Henrique Segall Nascimento Campos
1
Resumo: É sabido que Rousseau teria aberto debate os mais diversos, sobre
os mais diversos problemas em questão no seu tempo. Vemos o genebrino, por
conseguinte, questionar teses que reduziam as faculdades humanas à sensibi-
lidade física, a recusar o materialismo, preocupar-se com o funcionamento das
faculdades humanas subjetivas, rejeitar o otimismo de uma educação produ-
tora do homem e as consequências desta para o campo da moral e da política.
A partir desses indicativos, no presente artigo nos propomos explorar, com es-
pecial atenção, a Profissão de do Vigário Saboiano, acreditando, por isso,
que sua antropologia, por exemplo, passaria a ganhar contornos ainda mais
importantes e precisos, bem como as consequências para o campo da moral,
da política e da religião, se fossem organizadas em torno da busca por funda-
mentos teóricos, referentes, especificamente, aos pressupostos epistemológi-
cos envolvidos no processo de desenvolvimento do indivíduo e, em geral, refe-
rentes ao desenvolvimento de sua subjetividade. Nesse sentido, as “meditações
metafísicas” do Vigário Saboiano com a formulação do cogito, ao nosso ver,
fazem convergir o pensamento de Rousseau de modo geral, das quais o saber
sensível, a consciência, em respeito à natureza, funcionariam como elementos
decisivos para compreensão de seu esforço de fundamentação dos resultados
de suas principais pesquisas.
Palavras-chave: Fundamentos; conhecimento; sensibilidade; subjetividade.
The Profession of Faith of the Saboian Vicar and the foundation of
Rousseau's thought
Abstract: It is well known that Rousseau would have started several debates
over the most varied problems of his era. The Genevan, thus, could be seen
questioning theses like: the restriction of the human faculties to its physical
sensibility, the refuse of the materialism, the concern with the functioning of
the subjective human faculties, the rejection of the optimism of a productive
education and its consequences to the moral and political field. According to
this article, it is acknowledged the fact that both his anthropology theory would
1
Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Faseh/Vespasiano-
MG. E-mail: henriquesegall@gmail.com.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
322
be more accurate and its consequences to the moral and political field would
be more structured if they were organized in terms of its theoretical back-
ground. Those findings would be more precise if based on the epistemological
assumptions of the subjective development of the individual being. Therefore,
the “metaphysical meditations” of the Vicar of Savoie when formulating its co-
gito, from our point of view, seems to converge the general thinking of Rous-
seau: the sensitive knowledge and the consciousness, related to nature, would
be key elements of understanding his efforts on establishing the grounds for
the main researches results.
Keywords: Theoretical grounds; knowledge; sensitivity; subjectivity.
Introdução
No presente trabalho nos debruçaremos sobre o livro IV de O Emílio no
qual aparece a fundamentação da filosofia de Rousseau. Isso é admitido, ao
nosso ver, a partir de um trabalho de justificação, do pensador genebrino, dos
saberes e da subjetividade do homem relativos à crítica a religião revelada. O
texto intitulado A profissão de fé do Vigário Saboiano
2
, localizado no livro IV
2
Parece que pelo seu teor, forma e conteúdo, muito se especulou e ainda se especula sobre as razões da
presença da Profissão de fé dentro da exposição geral de O Emílio. Essas especulações, talvez, tenham
surgido porque nunca, em outro lugar de sua obra, Rousseau se valeu de um modo de exposição do
pensamento em que a primeira pessoa fosse usada para fins teóricos, ao lançar mão de uma personagem
que teria dito o que Rousseau pensava de fato. Verifica-se um estranhamento porque, além de outras
questões, o gênero do texto e a forma de exposição das ideias contidas diferem de sobremaneira do
modo com o qual trabalha Rousseau na redação das demais passagens e na composição geral da obra.
Por outro lado, que se destacar que a diferença de gênero textual, por si só, não configuraria uma
artificialidade de qualquer texto, que o próprio Emílio, como um todo, é entrecortado por formas
diversas de escrita: lições, narrativas, fábulas, ensaios. Todas essas formas, grosso modo, são
encontradas ao longo do texto e compõem, de uma maneira ampla, a estrutura formal e estilística, se
podemos dizer assim, do texto. Nesse sentido, pela razão da forma não existe justificativa para o
estranhamento e para achar que este trecho tenha sido inserido de modo abrupto dentro do livro IV de
O Emílio. quem diga, num outro âmbito, que o texto foi formulado e inserido por um propósito único:
responder ao sensualismo reducionista de Helvetius. De outra maneira, acreditamos que a razão da
redação desse texto e sua suposta inserção, na obra da qual faz parte, não se explica pela intenção de
dar resposta a um autor somente. O próprio Rousseau, em passagens discriminadas ao longo de sua
obra, indica o que pretendeu. Pode até ter querido se dirigir contra Helvetius. No entanto, o tema de um
suposto materialismo, ou de um sensualismo, não era praticado por Helvetius. O genebrino mesmo
o praticou num certo sentido e não o rejeitou de modo absoluto, tendo se aproximado, segundo alguns,
do sensualismo de Condillac, como pode ser identificado em passagens do livro II de O Emílio e ao
longo do Segundo discurso, nos quais estão indicadas a influência das sensações na formação do ideário
do homem no estado de natureza e de Emílio. Disse, ademais, em sua Carta a Christophe de Beaumont,
que o mal do texto em questão não seria chegar à dúvida sobre o duvidoso, uma vez que o bem se
encontraria na demonstração da verdade. De outro modo, com a passagem acima, pode-se perceber que
o debate sobre a religião é trazida à baila num contexto em que se discutem as condições a partir das
quais o pensamento sobre a religião e as condições de crença são abordadas. Nesse caso, associada à
rejeição do moderno materialismo, a Profissão de fé é marcada também pela temática religiosa e, de
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
323
do referido estudo sobre educação, segundo seu próprio autor, contém elemen-
tos de acordo com os quais, também, são criticadas as teses sensualistas, ma-
terialistas e reducionistas do século XVIII (p. ex. a tese julgar é sentir de Hel-
vetius). Teria recorrido a este artifício, ainda, para consolidar sua posição filo-
sófica contrária à passividade da alma e para criticar o papel da religião oficial
na educação do cidadão.
Kuntz, ao criticar Cassirer, chegou a dizer que a política para Rousseau
seria o centro de gravidade da maioria de suas preocupações intelectuais, o que
não deixa de ser verdade face a presença constante dessa tópica ao longo de
seus textos filosóficos. Nem por isso, talvez, teria sido a política a única preo-
cupação do autor, ou o centro de gravidade de sua filosofia como um todo. Cas-
sirer chegou a afirmar que as formulações jurídicas de Rousseau teriam levado
o problema da salvação para fora da metafísica, privilegiando-o no interior da
ética e da política. Segundo o intérprete, ainda, a opinião do filósofo kantiano
"parece fundamentalmente incorreta, pois não como compreender nem a
ética, nem as soluções jurídicas de Rousseau sem uma referência à sua metafí-
sica” (KUNTZ, 2012, p. 67). Dito isso, nos parece de suma importância tratar-
mos do tema de uma possível "metafísica " no livro IV de O Emílio, com o in-
tuito de ressaltar em Rousseau, senão, a necessidade de fundamentação de seu
pensamento, seja em qual disciplina filosófica isso seja cabível, já que o termo
metafísica, dotado de campo semântico vastíssimo, pode gerar toda sorte de
equívocos teóricos. Como veremos mais abaixo, em passagens da referida me-
ditação filosófica, Rousseau, pela voz do Vigário sugere, na nossa visão, para
fugir dos dogmatismo dos partidos filosóficos e teológicos, mais uma “funda-
mentação do conhecimento”, com uma crítica do conhecimento, do que uma
“metafísica” para dar sustentação às teses morais, religiosas e políticas, por
mais que na composição do cogito estejam em questão temas da metafísica
acordo com isso, toda uma gama de teses e posições seriam examinadas. Do fato de estarem presentes
estas questões no alto do livro IV de O Emílio, por outro lado, não acreditamos serem elas abordadas
num contexto argumentativo equivocado ou incoerente com o que havia sido desenvolvido até então.
Talvez seja por isso que não vemos na Profissão de fé, e o possível problema de ter sido ela elaborada
fora do Emílio, como um problema que se deva levar em conta no pensamento de Rousseau. Inserir uma
passagem ou outra, de modo abrupto, se torna um problema se o que se coloca apresenta-se incoerente
com o pensamento do autor de um modo geral. Essa inserção, se ela foi abrupta, nos leva a dar ainda
mais crédito ao autor porque passamos a imaginar e olhar com bons olhos seu esforço intelectual para
defender seu pensamento e dar ainda mais sentido às teses defendidas até o momento. Esse problema
de ser autêntica ou não a inserção da Profissão de , em relação ao modo de exposição de seu
pensamento no Emílio como um todo, passa a ser para nós um falso problema. Isso acontece porque o
ponto de partida, então, para o estudo do texto em questão deve-se ao fato de que a religião tem no
Emílio uma abordagem antropológica e pedagógica - este texto inclusive assume em parte uma forma
semelhante àquela consagrada no Segundo discurso em comparação com o homem no estado de
natureza - quando Rousseau descreve a alteração gradual e qualitativa por que passa a criança quando
aprende algo valendo-se das faculdades e dos conteúdos com os quais trabalham estas mesmas
faculdades. O homem é levado a crer quando, por suas luzes, tiver condições para crer. Toda uma
dimensão espiritual, cognitiva, parece ser o ponto de partida de acordo com o qual Rousseau passa a
introduzir o problema da religião.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
324
tradicional, tais como Deus, alma, mundo.
Quando Rousseau redige a Profissão de fé e dá voz ao Vigário, e coloca-
a no meio do livro IV, o texto foi cercado e preparado por uma longa discussão
sobre a moral, o estágio da educação do Emílio adolescente, em que as paixões
sociais podem começar a fazer parte de si, e sobre a religião cuja origem pode
ter, de acordo com o estágio cognitivo do homem, uma dependência em relação
ao grau de relacionamento do homem com o mundo objetivo, suas necessida-
des, sua cultura, sua elaboração espiritual com as sensações as mais imediatas.
Se a posteriori a religião será objeto de investigação de Rousseau de modo mais
sistemático, isto só pode se dar quando houve cautela na introdução do ensino
religioso de Emílio, porque em fases anteriores de sua educação, exploradas ao
longo dos cinco livros de O Emílio, a educação sensível pode preparar o bom
uso do entendimento, dos juízos, no sentido de evitar que proposições irracio-
nais sejam responsáveis por arruinar uma crença com a qual a razão não po-
deria se associar. Numa passagem de ressonância pedagógica, Rousseau assim
se pronuncia sobre o tema:
Evitemos de anunciar a verdade àqueles que não estão em condição de
entendê-la, porque isso seria substituí-la pelo erro. Seria melhor não ter ne-
nhuma ideia da divindade do que ter dela ideias baixas, fantásticas, injuriosas,
indignas dela; seria um menor mal desconhecê-la do que ultrajá-la. /.../ Vimos
por qual caminho o espírito humano cultivado se aproxima desses mistérios e
eu concordarei voluntariamente que ele só chega até aí, naturalmente, no seio
da sociedade mesma numa idade mais avançada. Mas como na mesma so-
ciedade causas inevitáveis pelas quais o progresso das paixões é acelerado, se
acelerássemos da mesma forma o progresso das luzes que servem para regrar
estas paixões, então sairíamos verdadeiramente da ordem da natureza e o
equilíbrio estaria quebrado. (ROUSSEAU, v. 4, 1995, pp. 556-7)
Na esteira do que foi sugerido mais acima, nessas passagens vemos con-
firmar as razões de nossa suspeita. Ao nosso ver, a questão da religiosidade, a
crença em deus ou em qualquer outra divindade se passa por uma questão de
entendimento, de razão, pois um educando qualquer não conhece deus, porque
suas ideias tem um alcance limitado, pois a exigência de um tipo de pensa-
mento dessa natureza demanda uma abstração tal que os sentidos e as sensa-
ções produzidas, em determinado contexto prático e objetivo inclusive, são in-
capazes de fornecer. Desta feita, tanto as ideias de deus, potência, matéria e
espírito, tem, por isso, uma origem antropologicamente sustentada, porque se
encontra, para quem sobre estas noções elabora qualquer sentido, num deter-
minado grau de relacionamento com as coisas, e com as necessidades as quais
precisa satisfazer, vinculadas à uma produção ideal cujo referencial exclusivo
seriam as relações concretas, seja com as coisas, seja com seus pares. Deus, por
exemplo, poderia ser o somente a expressão da diferença de potência entre o
indivíduo, a realidade objetiva constrangedora, ou até mesmo o pai, cujo poder
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
325
prescritivo poderia sugerir a imagem de alguém poderoso acima de tudo e de
todos, no contexto familiar.
Emílio será educado em alguma religião qualquer necessariamente?
Será ele cristão? Será ele muçulmano? Rousseau admite que Emílio será edu-
cado na religião que teria condições de escolher, aquela segundo a qual a razão
é melhor empregada. Nesse sentido, a religião tem a função de ajudar a formar
os valores a partir dos quais o indivíduo vai agir e, por isso, consolidar sua po-
sição como agente em sociedade disposto a agir moralmente. Não faria sentido
ser crente numa religião cujo ordenamento escapasse do fiel, pois isso seria o
mesmo que condenar o mesmo fiel por uma fuga de seus preceitos quando os
ignora, porque não consegue alcançar suas imagens, seus ritos e suas regras.
Se uma religião fosse ensinada sem uma determinada preparação espiritual do
crente, do ponto de vista cognitivo, com um tipo de ideação abstrata o sufici-
ente para ser incompreensível, o mesmo fiel aderiria a uma crença por cons-
trangimento, por uma profunda falta de autonomia e por ignorância, ou seja,
estaria o fiel pronto para aceitar qualquer imagem, qualquer discurso, porque
sua alma não dispõe de defesas que o livrem do engano. A própria noção de
escolha, de levar Emílio a desejar no que acreditar, pretende compatibilizar a
clareza epistêmica das imagens religiosas espiritualmente compreendidas a se-
rem anunciadas, com o tipo de ordenamento que confere ao homem de a
chance de aderir-se livremente ao Deus sumamente bom que não permitiria
qualquer tipo de coerção
3
. Com isso, ficam vinculados, tua e coerentemente,
o momento do desenvolvimento educacional do aluno, com uma religião cuja
pretensão não pode levar ao homem a perverter ou alterar o curso natural de
sua formação. Antecipar certas regras, prescrever certas condutas, levar à
crença ilusória, teria o mesmo sentido da pré-maturação da qual pretende fugir
todo o propósito educacional de Rousseau com o qual trabalha, em especial,
com a prevenção do erro. Cabe-nos apontar, portanto, como a requisição de
uma educação religiosa e a necessidade de se apresentar uma religião que seja
Emílio capaz de praticar pode trazer à tona questões para a fundamentação
3
É importante dizer que dar chance ao indivíduo, em sua época de formação, de escolher uma
religião, quando foi preparada a alma desse mesmo indivíduo para que a razão não se dissocie
da crença é retirar qualquer possibilidade de coerção para a fé. Mas, ao mesmo tempo, com
isso, nos parece, a proposta feita aqui por Rousseau, como atestaram a recepção do Emílio em
geral e sua Profissão de em particular, foi revolucionária porque, fundamentalmente, era
uma proposta efetivamente exequível, e uma proposta que estabeleceria as bases para a secu-
larização, ao transferir para a esfera privada o lugar da escolha e prática da religião, sem que
qualquer intervenção de um poder religioso central pudesse se pronunciar. Na secularização
não existe uma religião em especial, exclusiva a qual os homens devem seguir, mas a religiosi-
dade privadamente cultivada pelo indivíduo, cujas bases se assentam a partir do que o indiví-
duo livremente considere fazer sentido, que seja razoável e que seja bom para si. Interferir na
consciência do homem de fé é trabalhar com o mesmo propósito da forma de governo absolu-
tista, no qual a consciência do súdito e/ou do fiel se submete à consciência do monarca, único
ser livremente consciente.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
326
filosófica. Se concepções de deus e a natureza fizerem parte das referências,
estão lançadas as pistas da modalidade de pensamento a qual buscamos em
Rousseau, por se tratar da expressão filosófica que consolidaria suas principais
teses.
1. A interioridade e o advento do cogito
Cabe agora debruçarmo-nos sobre o texto de Rousseau, Profissão de fé,
no sentido de extrair das passagens a argumentação de uma suposta "metafí-
sica" praticada pelo vigário (Rousseau) que pretende, dentre outras coisas, tra-
balhar com a fundamentação de seu pensamento, a sustentar a antropologia,
a moral, a política, a educação e a religião sobretudo. Preliminarmente, o dis-
curso proferido pelo Vigário destaca a precariedade do conhecimento humano
e que muitos filósofos recusaram-se a ignorar o que não se pode saber. Não
admitem o que não se pode conhecer e preferem usar para conhecer a desdi-
tosa imaginação, em detrimento da razão. Ainda que tenham condições de des-
cobrir a verdade, muitos deles não a buscam porque se apegam aos seus siste-
mas, porque os sistemas são defendidos propriamente, em nome da vaidade e
não da correção e da verdade. Alguns desses filósofos, em condições de desco-
brir o verdadeiro e o falso, preferem a mentira, defendem uma mentira por
vaidade, se a verdade tiver sido descoberta por outro. Impressionado com a
perfídia humana, limitou o vigário suas investigações àquilo que o interessava
de fato, a regozijar-se da ignorância de todo o resto e inquietar-se com a dúvida,
se ela o impedisse de conhecer o que era necessário e o que era útil. Consultou
dentro de si apenas a luz interior e fez dela seu guia como fonte de todo o pen-
sar, sem se orientar antes pela opinião alheia. Feito isso admitiria seu erro ser
apenas seu, ao invés de correr risco de partilhar de um erro alheio como seu.
Afastou de si o erro alheio, por adesão precipitada e constrangida, e limitou o
erro ao erro que surgia dentro de si. Dessa forma, o Vigário limita as chances
do erro, prevenindo-se quando se fecha à opinião alheia, ao consultar a honesta,
embora precária, luz interior solitária. A partir de então ele diz:
Levando comigo o amor à verdade como única filosofia e único método
uma regra fácil e simples que me dispensa da inutilidade dos argumentos,
retomo, com essa regra, o exame dos conhecimentos que me interessam, re-
solvido a admitir como evidentes todos aqueles os quais na sinceridade de meu
coração eu não poderia recusar meu consentimento, como verdadeiros todos
aqueles que me pareceriam ter uma ligação necessária com os primeiros e dei-
xar todos os outros na incerteza, sem rejeitá-los nem admiti-los e sem me ator-
mentar por esclarecê-los se eles não me levam à nada de útil para a prática.
(ROUSSEAU, v. 4, 1995, p. 570)
As primeiras meditações do vigário, como é possível notar, estão cheias
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
327
de um estilo cartesiano de fazer filosofia. A necessidade de um exame da luz
natural, da subjetividade, a necessidade da prevenção contra o erro, o voltar-
se para si (a fala em primeira pessoa), o procurar fazer uma reforma do pensa-
mento praticado até então, prescindir das opiniões alheias duvidosas e, ainda,
estabelecer , não uma investigação apenas sobre o eu que pode conhecer, mas
sobre o conteúdo daquilo que há de ser conhecido. Praticará a filosofia da ver-
dade, cujo método é seguir a regra da sinceridade, a regra com estatuto não
epistêmico. Parece ter essa regra a função da dúvida, com critérios de clareza
e distinção, mas se vale da sinceridade, a qual, ao nosso ver, não guarda caráter
epistêmico, por mais que a proposta da meditação o indique, já que o exame se
pronuncia sobre o que se pode saber.
Pensamos, por outra via, que a sinceridade do coração pode ser o outro
nome dado à honestidade, dentro de uma orientação moral, não epistêmica
estritamente, pois, ao que tudo indica, o Vigário lança mão de uma chave afe-
tiva, para eliminar não possíveis saberes obscuros, mas as más intenções. An-
tes de ser uma regra da dúvida com uma proposta de fechamento ao indistinto,
a sinceridade não se fecha, mas realiza uma abertura, permite aquilo cuja ne-
cessidade e utilidade podem admitir como possível, pois o que se pretende não
é o pensar do conhecimento, mas o pensar do fazer prático-moral, ao serem
indicadas as condições do movimento e da ação. Tanto a regra do método da
sinceridade afetiva, quanto o resultado do saber que sobrevier à aceitação da
sinceridade, dado o assentimento, apontam para o que pode ser feito com
aquilo que se sabe. Mesmo aqueles saberes que ainda forem carentes de certeza
não são aceitos, nem rejeitados, mas suspensos pela utilidade prática que os
organiza, que os distingue, por serem eles sobreviventes ao uso do critério afe-
tivo. Desse modo, o procedimento de meditação e de exame desse eu, cuja re-
gra recai sobre a sinceridade afetiva, pretende dissociar qualquer conquista
epistêmica de uma identidade vazia, inútil, pretensiosa, ou vaidosa do saber
cuja verdade resultante pudesse servir para a decrepitude e o vício moral.
Tanto o saber quanto o fazer, nesse caso, são salvos de uma possível identidade
desvirtuada, pois o erro pode ser admitido sem o crivo de uma alma desonesta.
um desdobramento, portanto, moral deste método, porque o sentimento,
base da moralidade, como ponto de partida de uma moralidade, pode ser aci-
onado para garantir a clareza das necessidades de apreensão de determinado
conhecimento. Ocorre-nos que todo esse procedimento, cujas regras são deli-
mitadas pelo exame do sujeito não poderia se resumir a um contexto episte-
mológico apenas, as conquistas do Discurso sobre as ciências e as artes autori-
zam, porque não deve haver disjunção entre o saber e os benefícios do saber,
para quem sabe, ou para quem se beneficiará do sabido. A preocupação do
vigário com seu método é não obter uma verdade de um saber que se regozija,
mas ser honesto ainda que suscetível de erro. O que se quer não é evitar neces-
sária e primordialmente o erro, mas o vício, que ser mal é pior do que ser
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
328
ignorante. Para isso, portanto, o homem de natureza é oferecido como a hipó-
tese exemplar.
Fixadas as regras de acordo com as quais pode-se pensar, admitir, recu-
sar e agir, o vigário busca investigar as condições do pensamento, sobre o que
se pode pensar e quem pode pensar, quando procura investigar o que se pensa.
O Vigário pronuncia-se assim:
Mas quem sou eu? Que direito tenho eu de julgar as coisas e o que de-
termina meus julgamentos? /.../ É preciso então voltar meus olhares para mim
para conhecer o instrumento do qual eu quero me servir e até que ponto con-
fiar em seu uso. Eu existo e tenho sentidos pelos quais sou afetado. Eis a pri-
meira verdade que me atinge e com a qual sou forçado a concordar. Tenho eu
um sentimento próprio de minha existência, ou só a sinto por meio de minhas
sensações? Eis a minha primeira dúvida que me é, até o presente, impossível
de resolver. que sendo continuamente afetado por minhas sensações, ou
imediatamente, ou pela memória, como posso saber se o sentimento do eu
[moi] é algo de fora dessas mesmas sensações e se ele pode ser independente
delas? (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 570-1)
Remetendo-se a uma busca interior, a pergunta pelo eu passa a ser, a
partir de então, o ponto em que se convergem as respostas às perguntas pela
existência, permitindo compreender, além das condições de conhecimento, do
uso das "ferramentas" a partir das quais se pode conhecer, aquilo que se pode
afirmar algo sobre si e sobre o mundo.
Ainda que a fala de desconfiança quanto ao uso, legitimidade e determi-
nação do juízo seja colocada em pauta, o que se pretende saber é quem [qui] é
o eu [le moi], tendo como ponto de partida o saber da coisa que não é o eu, que
parece ser indicado pela importância de uma resposta dada à segunda per-
gunta apresentada no trecho transcrito acima: a de se saber como são julgadas
as coisas, advindas objetivamente, segundo as informações das sensações. O
olhar do eu que se pergunta a si mesmo questiona os instrumentos a partir dos
quais é possível todo juízo, mas para isso admite, com a sinceridade que se
serviu de regra, a existência a partir do atributo da capacidade de sentir ". O eu
existe porque sente, logo o eu pode existir desde que seja capaz de ser afe-
tado e de valer-se dos sentidos. Desse modo, esse olhar que se volta a si, a per-
guntar a natureza e as condições do eu pode ser inteiramente reconhecido,
porque a primeira verdade que foi proferida pretende postular os sentidos,
portanto os instrumentos com os quais a projeção e a conexão com algo ex-
terno seja assumido. Diante disso, não cai o Vigário na tentação de um cogito
meramente solipsista, que reconhece os instrumentos com os quais admite
e reconhece o padecimento, a afetação e aquilo que, futuramente, pode ser re-
conhecido como aquilo que não é o eu, porque se abre a causalidades não ma-
nifestas apenas internamente. Feito isso, o eu não é simplesmente tomado
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
329
como forma pura e substancial de pensamento, porque se abre para outros mo-
dos de ser que são marcados pela diferença com aquilo a partir do que são pro-
duzidas as sensações e toda a faculdade de sentir. Se a existência é marcada
pela afetação sensível, o eu afirma-se e identifica-se, preliminarmente, pelas
sensações as quais teriam condições de serem indicadas pelas diferenças per-
cebidas entre si, umas com as outras, cuja sensibilidade é capaz de fornecer
aquilo que está fora do eu. Mas o sentimento da existência ainda não é afir-
mado, nem se as sensações podem ser os feixes de informações a partir dos
quais é afirmada a "egoidade". Apenas o que foi reconhecido é o fato da exis-
tência do eu ser marcada pela condição de ser afetado e, com isso, acenar para
a origem não interna da sensação, que parece ser o conteúdo com o qual tra-
balha esta interioridade.
O passo seguinte a se afirmar, admitindo-se o contínuo de afetação sen-
sível, é, a partir de então, reconhecer o conteúdo do eu apenas se a sensação
imediatamente apresentada e a sensação relembrada são admitidas como sua
expressão. Nesse caso, até o presente momento de sua argumentação, os
sentidos e a capacidade de ser afetado foram apresentados como sendo cons-
titutivos desse eu, sem ainda afirmar o conteúdo desse eu e a causa formadora
das sensações. O Vigário diz que:
minhas sensações se passam em mim, porque elas me fazem sentir
a minha existência, mas sua causa me é estranha, posto que elas me
afetam ainda que eu não queira e que não depende de mim nem
produzi-las, nem anulá-las. Eu concebo, pois, claramente que minha
sensação que é eu [moi] e a sua causa ou seu objeto que está fora de
mim não são a mesma coisa. Assim, não somente eu existo, mas
existem outros seres, a saber: os objetos de minhas sensações, e
mesmo que esses objetos sejam apenas ideias, é sempre verdadeiro
que essas ideias não são eu [moi]. Ora, tudo o que sinto fora de mim
e que age sobre os meus sentidos eu chamo matéria e todas as
porções de matéria que eu concebo reunidos em seres individuais eu
os chamo de corpos. Dessa forma, todas as disputas entre idealistas
e materialistas não significam nada para mim; suas distinções sobre
a aparência e realidade dos corpos são quimeras (ROUSSEAU, v. 4,
IV, 1995, p. 571).
A partir do que foi destacado acima, o problema da identificação e da
definição do eu se porque a sensação pode conferir um lugar no qual ela
pode se expressar, no qual ela pode acontecer, num lugar que pode ser a
subjetividade. A metáfora espacial ajuda a entender o problema, porque a sen-
sação põe a necessidade de um receptáculo, de uma instância na qual seja aco-
lhida, ao mesmo tempo que se coloca como o meio a partir do qual a existência
do eu é admitida, porque esse não dispõe do poder de escolher não sentir. A
sensação, de um certo modo, e a capacidade de sentir também, impõe-se como
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
330
algo que foge do controle daquele que sente. Nesses termos, ainda que a cau-
salidade das sensações seja desconhecida, a origem específica desta causali-
dade é admitida por um procedimento negativo, que se sabe e a regra da
sinceridade assegura a confiança do que se diz - que ela acontece mesmo que
o eu não queira, mesmo que o eu não seja responsável pela produção e extinção
de sua manifestação. A partir de então, da diferenciação do lugar em que a
sensação acontece e seu conteúdo originário (os objetos externos), por oposi-
ção, posto que não faz parte do eu extrair de si mesmo sensações, o eu é admi-
tido. A existência do eu é assegurada, resumidamente, a partir dos seguintes
passos argumentativos: i) o lugar, a interioridade, da manifestação das sensa-
ções; ii) as sensações como causa do sentimento de existência, porque a sensi-
bilidade é condição necessária para a identidade; iii) as sensações impõem-se
porque o eu é sensibilidade e não está no seu poder não sentir; iv) por oposição,
negativamente entendido, o eu é admitido porque as causas das sensações, o
conteúdo delas, não têm como causa uma expressão pura nesse eu, mas por
algo que pode vir de fora; v) se existe uma interioridade a partir da qual se
reconhece o eu, os objetos externos, por oposição, são admitidos, como conte-
údo das sensações. Ainda que sejam expressos apenas como ideias, por não
terem origem no eu, os objetos externos são reconhecidos. Desta feita, tudo
aquilo que atua sobre os sentidos, cuja origem sensorial seja apontada como
causalidade externa é chamado de matéria e o conjunto de sensações reunidas
comumente é reconhecido como corpos. Parece ficar claro, a partir desse
exame levado a cabo pelo Vigário, que ser um eu até o momento pode ser
admitido nos termos da sensibilidade. Se nada fosse possível sentir, nenhum
eu existiria. A sensação que se sente, num dado momento, inaugura o espaço
da interioridade porque ela acontece aí. Com isso, o lugar onde acontece a
sensação diferencia espacialmente, um lugar de dentro e um lugar de fora. A
sensação marca, então, o fato da diferença entre a informação do sentido e do
percebido e o estranhamento pela causação não interna. uma elaboração
da alma (ou do espírito) que permite o reconhecimento desse estranhamento,
com o qual apercebem-se todas as manifestações da sensibilidade. Das sensa-
ções são feitas associações pelo juízo, procedimento a partir do qual ocorrem a
atribuição e o reconhecimento do desigual, entre o eu e o não-eu, porque a de-
sigualdade originária da informação da sensação pode ser diferenciada por
esse procedimento que, em larga medida, funcionaria como um recurso lógico
da alma. A partir de então, o eu/dentro, por oposição ao não-eu/fora, realiza,
também, o reconhecimento de uma realidade com a qual o sujeito tem de se
relacionar para se afirmar. Na terminologia acima apresentada, ocorre a cer-
teza de que a matéria, ademais, se define na relação com o eu, que nada mais
é do que as informações que acontecem dentro, mas cuja origem informativa
pode ser admitida, negativamente, como aquilo que não vem de dentro, ori-
entada pela atividade de julgar. Vejamos ainda como Rousseau desenvolve
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
331
mais o tema das sensações com o juízo:
Perceber é sentir; comparar é julgar: julgar e sentir não são a mesma
coisa. Pela sensação os objetos se oferecem a mim separados, isolados, tais
como eles são na natureza; pela comparação eu os reúno, eu os transporto, por
assim dizer, eu os coloco uns sobre os outros para pronunciar sobre sua dife-
rença ou sua semelhança e geralmente sobre todas as suas relações. Segundo
eu penso, a faculdade distintiva de um ser ativo e inteligente é poder dar um
sentido à palavra é. Eu procuro em vão no ser puramente sensitivo esta força
inteligente que superpõe e depois pronuncia, não saberia -la em sua natu-
reza. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 571)
Na passagem acima, o Vigário distingue dois procedimentos da alma, se
podemos dizer assim, o de sentir e o de julgar. Isso quer dizer que o conteúdo
com o qual trabalha a sensação é tomado diretamente, imediatamente, pelo
modo como são apresentados os objetos na natureza: separadamente. A expe-
riência sensível com a natureza não teria, imediatamente, qualquer contribui-
ção produtiva da alma. É a pura recepção de um dado informativo, com o qual
vai trabalhar posteriormente a função inteligente capaz de compor, atribuir re-
lação, associação e comparações a um dado que naturalmente pode não ter
essa conformidade ditada pelo julgamento. O ato de compor, associar, reunir
ou comparar é de outro nível, porque pode ser criador e, com isso, ser capaz de
indicar as verdadeiras relações dadas na objetividade. É capaz de ser coerente
com elas, ainda que possa, por essas funções, dar-se ao erro. Se a faculdade de
julgar é a inteligência, é ainda a inteligência que não é certa sempre como força
produtiva, porque mais do julgamento pode ser expresso do que a realidade da
sensação pode permitir. Com isso, podemos vislumbrar, a partir daqui, a pos-
sibilidade da experiência do erro. Por outro lado, se existe aqui um reconheci-
mento do modo como são apresentadas as informações apreendidas sensivel-
mente, naturalmente determinadas, quer dizer isoladas ou separadas, verifica-
se uma semelhança no plano epistêmico e do desenvolvimento do pensamento,
com o modo de ser do homem de natureza, no plano antropológico. Tanto o
homem como as sensações, naturalmente, são isolados. Nessa exposição do
Vigário, a antropologia rousseauísta, pelo menos naquela formulação do 2o
Discurso, e a epistemologia parecem ficar coerentes, pois o que uma indica,
sentir e pensar de modo imediato e estanque, a outra autoriza, que o homem
de natureza é firmado no isolamento e na relação direta com a realidade. Se-
gundo o genebrino, “tal foi a condição do homem ao nascer, tal fora a vida de
um animal limitado, inicialmente, às puras sensações, aproveitando com difi-
culdade os dons que lhe oferecia a natureza, longe de imaginar dela tirar algo,
mas tão logo as dificuldades se apresentaram era preciso aprender a vencê-las”
(ROUSSEAU, v. 3, 1989, p. 165). Ou seja,
errando nas florestas sem indústria, sem palavra, sem domicílio,
sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade de seus
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
332
semelhantes assim como nenhum desejo de lhes prejudicar, talvez
até mesmo sem jamais reconhecer nenhum individualmente, o
homem selvagem sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo,
tinha apenas os sentimentos e as ideias próprias desse estado, que
sentia apenas suas verdadeiras necessidades, observava apenas
aquilo que acreditava ser interessante de se ver e que sua inteligência
não fazia mais progressos que sua vaidade (ROUSSEAU, v. 3, 1989,
pp. 159-60).
Um modo de vida, portanto, do homem de natureza pode se dar de
forma coerente se seu pensamento o acompanhar, nesse caso, a unidade em si
mesma do homem de natureza e seu modo de pensar, num plano de pensa-
mento limitado à percepção imediata, sem qualquer complexificação de facul-
dades, de memória ou de abstração, quando ainda não são elaboradas as con-
quistas próprias da alteridade social e do julgamento
4
.
Mais adiante o Vigário acrescenta: "Esse ser passivo sentirá cada objeto
separadamente, ou ainda, sentirá o objeto total formado pelos dois; não tendo
nenhuma força para dobrar um sobre o outro, ele não os comparará nunca,
nem os julgará" (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 571-2). A partir dessas pala-
vras existem, então, dois momentos em que o pensamento se dá, ou dois mo-
dos complementares com os quais se conhece: um passivo, o da sensação sen-
tida imediatamente, no sentido de ser a sensibilidade a capacidade de receber.
Não, por isso, se entende sensibilidade passiva no sentido de inativa, mas no
sentido de não ser capaz de produzir nada nem alterar nada. E um segundo
modo seria a capacidade de compor, ativa, que julga, no sentido de quem cria,
produz, altera, "perverte" e verifica as relações entre as sensações percebidas.
Nas passagens a seguir podemos ter a confirmação do que foi dito:
Ver dois objetos ao mesmo tempo não é ver suas relações, nem julgar
suas diferenças; perceber vários objetos uns fora dos outros não é enumerá-
los. /.../ Quando duas sensações a comparar são percebidas, sua impressão é
4
O homem, em seu estado original, basta-se a si próprio, ama-se a si mesmo satisfazendo as
necessidades de defesa, subsistência, sobrevivência e, ainda, comovendo-se com o sofrimento
alheio. Este ser se explica pelas leis da mecânica, porque tem força e pouca carência, que dirá
da carência do outro. Ao final do dia este ser adormece, no dia seguinte acorda e o se lembra
de quem foi no dia anterior, porque ele se esquece, porque não a diferença dentro de si (o
outro). Nesse âmbito, o homem comporta-se num instante, num momento pontual. Como bem
salienta Goldschmidt “o homem selvagem resume nele toda a humanidade, porque ele é a uni-
dade numérica, o inteiro absoluto, que tem relação somente com ele mesmo e com seu seme-
lhante. Mas seu semelhante é ainda a humanidade inteira e, como ele, um universal abstrato”
(GOLDSHCMIDT, 1983, p. 378). Desse modo, num vel anterior à consciência de si, o eu é
simples, um universal simples no qual as diferenças não se acham. Conferir ainda passagem
análoga no texto do Emílio no qual o autor descreve a condição da criança: “Afirmo, pois, que
não sendo capazes de julgamento, as crianças não têm verdadeira memória. Retêm sons, figu-
ras, sensações, raramente ideias e mais raramente ainda as relações entre elas. /.../ Todo o seu
saber está na sensação, nada passa para o entendimento. Sua própria memória é pouca coisa
mais perfeita que suas outras faculdades, que quase sempre é preciso que reaprendam, ao
crescerem, as coisas cujos nomes aprenderam durante a infância.(ROUSSEAU, v. 4, II, 1995,
p. 345)
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
333
feita, cada objeto é sentido, os dois são sentidos, mas sua relação não é, por
isso, sentida. Se o julgamento dessa relação fosse apenas uma sensação e me
viesse unicamente do objeto, meus julgamentos não me enganariam nunca,
porque nunca é falso que eu sinta o que sinto. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p.
572)
Afirmado isso, as sensações conferem apenas informações unitárias e
não fornecem por isso qualquer disposição para a comparação, são informa-
ções dadas sem qualquer preparação e elaboração por parte do espírito. Dessa
forma, ao que parece, não existe pela sensação qualquer informação sobre a
relação entre as impressões, uma vez que as impressões por si sós não dão a
noção de diferenciação. Quem faz o trabalho de diferenciar, equivocadamente
ou não, são os juízos, porque as informações sensíveis, se fossem suficientes
para o conhecimento, seriam sempre certas. Mas o problema está justamente
aqui: para conhecer não basta sentir, mas também saber das diferenças e dos
atributos que são mostrados pela ação (grifo nosso) do julgamento que se dis-
tancia do dado imediato ao mediatizá-lo. Sobre a capacidade de julgar ele rei-
tera:
Que se este ou aquele nome a esta força de meu espírito que
aproxima e compara minhas sensações: a qual damos o nome de
atenção, meditação, reflexão, ou como queiram; sempre é
verdadeiro que ela está em mim e não nas coisas, que sou eu que a
produz, ainda que eu a produza por ocasião da impressão que os
objetos fazem sobre mim. Sem ser senhor de sentir ou não sentir, eu
o sou de examinar mais ou menos o que eu sinto. (ROUSSEAU, v. 4,
IV, 1995, p. 573)
A partir de então pode-se entender um pouco melhor o status do juízo
em Rousseau, quando é identificado como capacidade produtora, ainda que
sua origem, ou a relação de determinação da sensibilidade com esse julga-
mento, mentalmente, seja pouco claro. O que parece ser mais claro é o fato de
o julgamento diferenciar as informações sensíveis estimulado pelos dados que
a sensibilidade fornece, o que não significa dizer que as sensações sejam, evi-
dentemente, causa do julgamento. É aceita como evidência, garantida pela re-
gra da sinceridade, o julgamento como força ativa, a qual se mostra no afasta-
mento do momento espontâneo sensível que o homem não tem o poder de re-
jeitar. Se não se pode rejeitar a sensação, cujo conteúdo é sempre o mesmo, o
ato que diz ser esse conteúdo relativo a um objeto ou a outro, certo ou errado,
é livre porque seu poder gera-se ativa e internamente, ou como queira, reati-
vamente, dada a estimulação sensível.
Embutido na discussão sobre a origem e função do juízo está o problema
da experiência do erro, pois uma vez identificada a inteligência com a capaci-
dade de julgar não se exclui a chance do engano, quando nos deparamos com
o ato livre de composição do espírito com a realidade sobre a qual esse ato pode
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
334
ser propositivo. Manifesta-se a capacidade de julgar como instância espiritual
por meio da qual a atividade é posta, nem por isso a sua eficiência seria colo-
cada à toda prova, imune ao engano. Afinal, o momento em que o homem se
mostra na condição de senhor de si, e do seu entorno, ocorre quando ele ganha
o poder de diferenciar aquilo que o afeta, ou seja, a distinção entre o aspecto
formal da sensação e aquilo que ela é. Deve-se comparar, então, o conteúdo da
sensação com a causalidade não interna da sensação, a partir da qual ela pode
ser reconhecida. Para tanto, o poder de reflexão e identificação da origem da
sensação entra em ação porque ocorre apenas internamente. Em outro trecho,
dando seguimento a essa discussão, o autor assim conclui:
Não sou, então, simplesmente um ser sensitivo e passivo, mas um ser
ativo e inteligente; qualquer coisa que disserem da filosofia, ousarei pretender
a honra de pensar. Eu sei somente que a verdade está nas coisas e não em meu
espírito que as julga, e quanto menos eu colocar de meu nos julgamentos que
faço sobre elas, mais estou certo de aproximar-me da verdade; assim minha
regra de me entregar ao sentimento mais que à razão é confirmada pela razão
mesma. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 573)
A partir de então reafirma-se uma dupla dimensão cognitiva: i) uma
passiva cuja origem é dada pela natureza, uma vez que o poder de sentir e não
sentir não é adventício, mas dado imediatamente, porque as sensações são,
formalmente, sempre as mesmas e as informações sensíveis nos são dadas sem
qualquer alteração; ii) e uma dimensão ativa, pois o que se altera não são as
coisas, ou a sensação das coisas, mas a relação que se estabelece entre o sujeito
que conhece e as coisas. Num certo nível cognitivo, na natureza por exemplo,
quando inexiste a intervenção do juízo, as sensações têm uma relação formal
com o que ocorre efetivamente no mundo das coisas. Elas são expressão de
uma realidade para um sujeito que se comporta como se fosse possível um lu-
gar sem tempo, um mundo sem história, onde tudo é afirmado numa eterna
“mesmidade”. Já o juízo, a capacidade e função do homem que pensa racional-
mente, permite o engano, permite por isso a alteração, permite o engano e per-
mite o outro, o conhecimento de si como um outro, que a atribuição de ca-
racterísticas, propriedades, adjetivos, ocorrem na vigência de uma função
como a do juízo. Por isso, nos dizeres do Vigário, a verdade seria alcançada
quanto menos de si, quanto menos do que cada um "acha", opina, ou crê do
mundo interviesse como assentimento. Isso não quer dizer que todo juízo,
qualquer juízo porque pode expressar e marcar a diferença, possa ser encarado
como falso, mas que da capacidade de julgar nasce a possibilidade do erro,
posto que a natureza dada não erra. Comparada a um olho nu, ingênuo, talvez,
as impressões sensíveis imediatas são sempre certas, porque estão fora da es-
fera do registro, do campo epistemológico que se desloca do falso ao verdadeiro,
já que a necessidade de sobre elas intervir e sobre elas se diferenciar ocorre, e
a antropologia nos indica, com os seres humanos em dado estágio de seu
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
335
desenvolvimento sócio-histórico.
Observando a argumentação do Vigário sobre o tema, não entendemos
que seja o julgamento um problema, como um sinal de lamentação pela capa-
cidade humana de conhecer; ao contrário, observa-se no recurso do julga-
mento o poder de diferenciação e de distanciamento da unidade numérica, do
inteiro absoluto, do universal abstrato de um homem no estado puro de natu-
reza, ou com os limites cognitivos da experiência sensível imediata no qual to-
dos os dias, todos os pensamentos, todas as coisas padecem, fixadas num
eterno presente, num tempo sem memória, sem futuro, sem amanhã, como se
as conquistas, ganhos e criações humanas tivessem de ser, sempre, relembra-
das em todo alvorecer.
Nesse contexto, nota-se a fixação de um cogito, com as funções por meio
das quais o eu pode ser pensado, ter consciência de si, pensar o que não está
em si. Já a regra do sentimento (a sinceridade, a honestidade, ou como quiser,
o bom senso), é evocada, é assegurada não porque serviu de escrutínio a cada
uma das etapas de constituição dessa interioridade, mas porque foi demons-
trado, numa estratégia argumentativa negativa, a falibilidade do procedimento
racional de conhecer quando associado ao juízo. O Bom Senso, portanto, indica
ser mais correto afirmar a incapacidade humana de conhecer verdadeira e se-
guramente a partir de sua capacidade de julgar, do que nela confiar leviana-
mente sem qualquer expectativa ou garantia de evidência. Por outro lado, a
confiança que se tem no sentimento não ocorre porque o sentimento é em si
mesmo seguro, correto, infalível, mas porque a razão
5
é falha e porque no sen-
timento se identifica o critério de diferenciação do conhecimento que pode ser
(grifo nosso) falho, ou digno de desconfiança. Afirma-se o sentimento porque
se desconfia da razão, pois é mais razoável não ser totalmente racional, não
confiar exclusivamente no juízo, mas ser verdadeiro na admissão do erro e ser,
por isso, honesto. Ocorre, aqui, em suma, o uso de uma "regra" do plano moral
para orientar exames epistemológicos com objetivos morais, que por meio
dela, ocorre a abertura para a localização dos problemas, da precipitação, das
antecipações e das perversões do relacionamento humano intersubjetivo e,
5
Para melhor compreensão da relação que se estabelece entre as distintas faculdades da alma
em Rousseau, ou como a razão relaciona-se com o sentimento sugerimos observar o texto de
Robert Derathé, Le rationalisme de J. J Rousseau. Entendemos que, por se tratar de um sen-
timento e no contexto da Profissão de estar associado a uma regra de inspeção do pensa-
mento para o estabelecimento de um cogito, seria importante detalharmos mais seu funciona-
mento ao buscarmos como ele se associa com as informações tratadas pelo juízo. Para tanto,
uma distinção entre sentimentos e sensações deve ser conhecida. Com relação a esse tema é
importante observar a distinção que Rousseau faz no seu Notes sur De l´esprit de Helvetius.
Nossa suspeita parece apontar para o fato de que existe, para a regulamentação do sentimento
e sua expressão no âmbito da chamada consciência moral, a necessidade da informação sensí-
vel pela sensação associada à capacidade de julgar, para que o sentimento diga se aquilo que
se conhece é bom ou ruim, verdadeiro ou falso, honesto ou desonesto, e o homem poder agir
na relação de si com as coisas e com outros homens.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
336
ainda, caso seja realizável, a prevenção destes problemas.
2. O cogito e o mundo exterior
A partir de então, assentado o cogito, marcados os contornos desse eu
pensante sensivelmente determinado, parte-se para a reflexão do mundo exte-
rior
6
, parte-se para as definições do que se entende ser a realidade objetiva,
fora e estranha ao eu sinto/penso. Assim o Vigário manifesta-se:
Tudo o que eu percebo pelos sentidos é matéria e eu deduzo todas as
propriedades essenciais da matéria das qualidades sensíveis que me fazem per-
cebê-la e que são inseparáveis dela. Eu a vejo ora em movimento, ora em re-
pouso, donde eu infiro que nem o repouso, nem o movimento lhe são essenci-
ais; mas o movimento sendo uma ação é um efeito de uma causa cujo repouso
é somente a ausência. Quando, então, nada age sobre a matéria, ela não se
move e por ela mesma é indiferente ao repouso ou ao movimento, seu estado
natural é de estar em repouso. Eu percebo nos corpos dois tipos de movimento,
a saber: movimento comunicado e movimento espontâneo ou voluntário. No
primeiro, a causa motriz é estranha ao corpo movido, e no segundo ela está
nele mesmo: eu não concluirei daí que o movimento de um relógio seja espon-
tâneo, pois se nada estranho à mola agisse sobre ela, ela não tenderia a se en-
direitar e não puxaria a corrente. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 573-4)
A partir do que foi dito nesse longo e importante trecho podemos ter
uma baliza do que o Vigário pensa sobre matéria e movimento porque: i) as
propriedades da matéria, em primeiro lugar, são reconhecidas pelos sentidos,
pelas sensações; ii) estas propriedades essenciais são qualidades sensíveis que
se apresentam inseparáveis da matéria percebida, pois todas as vezes que se
percebe um dado externo, tem-se uma propriedade, um atributo correlato que
acompanha a sensação de algo que advém de fora; iii) por experiência, ou me-
lhor, por experiência reiterada, infere-se que o movimento, sendo ocasionado,
ora ocorre na matéria, ora não, o que permite a conclusão, por generalização,
de que o movimento não faz parte das propriedades sensíveis da matéria, por-
6
Conferir o trecho a seguir, no qual aparece explicitamente a transição da argumentação,
quando o vigário parte do cogito para discutir a relação do eu penso/sinto com o mundo exte-
rior. “Tendo-me por assim dizer, assegurado de mim mesmo, começo a olhar para fora de mim,
e considero-me com uma espécie de frêmito, jogado, perdido neste vasto universo e como que
afogado na imensidão dos seres, sem nada saber sobre o que eles são, nem entre eles, nem
relativamente a mim. Estudo-os e observo-os, e o primeiro objeto que se apresenta a mim para
compará-los sou eu mesmo.” (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 573) O começo do exame do
mundo exterior, uma vez admitida as condições de conhecimento a partir do eu penso e o co-
nhecimento do próprio eu, permite, por comparação, por relação, por julgamento, colocar o
eu pensante como o par da diferenciação, da comparação, da relação a partir da qual o conhe-
cimento objetivo é admissível.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
337
que não é sempre que o movimento é percebido na matéria; iv) a crença assu-
mida, ao nosso ver, segundo a regra do sentimento ou do bom senso, de acordo
com a qual o assentimento
7
é dado ao movimento por ser resultado de uma
atividade, efeito de uma ação, o efeito de uma causa originária desconhecida,
mas pressuposta. Isso é dito porque se não houvesse essa atividade, haveria,
admitindo-se apenas a ocorrência do repouso, a ausência de movimento. Nesse
sentido, retira-se da substância material o movimento como atributo essencial,
com base na definição de repouso como ausência de movimento, que, por sua
vez, é gerado e ocasionado sobre a matéria externamente; v) a aceitação de dois
tipos de movimento, cuja diferenciação passa a ser definida pelo agente origi-
nário, ou responsável pela geração do movimento. Ou seja, se o movimento foi
ocasionado por um ser a gerar um efeito de uma causa, externamente, ou se
existe um ser do qual o movimento é gerado por si mesmo. Marcada essa dife-
renciação, abre-se caminho para se pensar a noção de passividade e atividade
geradora do movimento e, ainda, a noção de responsabilidade pelo movimento
e, decorrência disso, a noção de liberdade do agente por ser capaz de, volunta-
riamente
8
, gerar o movimento por si mesmo, sem o concurso de algo que lhe
seja estranho.
O que se viu até aqui foi toda uma argumentação orientada para retirar
7
Na nota apresentada por Rousseau no pé da página aparece uma digressão sobre o assunto,
matéria e movimento, que pode ajudar a esclarecer ainda mais o raciocínio: “Esse repouso
nada mais é, se quiserem, do que relativo; mas já que observamos o mais e o menos no movi-
mento, concebemos muito claramente um desses dois termos extremos que é o repouso e nós
o concebemos tão bem que somos inclinados mesmo a tomá-lo como absoluto o repouso que
é apenas relativo. Ora, não é verdadeiro que o movimento seja essencial à matéria, se ela pode
ser concebida em repouso.” (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 574) Dissemos mais acima que
poderia ser mais esclarecedor esta nota do autor porque o raciocínio, a explicação da ausência
de movimento na matéria, causa espanto por ser simples demais. Em linhas gerais, o vigário
pensa que à matéria não se atribui movimento porque ela é percebida em repouso, a partir da
informação com a experiência reiterada. Se repouso, assim como o intervalo do movimento,
em relação àquilo a partir do qual houve movimento, é porque admite-se, por generalização, o
que o bom senso recomenda ser plausível, ou seja, assumir como inessencial o movimento na
matéria. Em suma, o que sobreviveu ao bom senso, à regra do sentimento, foi a plausibilidade,
apenas, da matéria não ter movimento, por experiência.
8
O Vigário admite nas passagens que se seguem do texto da Profissão de , a origem volun-
tária do movimento, o caráter ativo daquele que realiza o movimento, próprio daquele que
pensa e é consciente. Ao aceitar isso, a regra do sentimento entra em ação, pois o que é pro-
blemático do ponto de vista da justificação em termos estritamente racionais, passa a ser au-
torizado pelo sentimento, pela sinceridade, que é plausível, até autoevidente, o fato de o
movimento advir do querer, mexer um braço por exemplo, e ser originalmente espontâneo.
Não seria necessário, e seria até um absurdo, acionar todo um aparato racional e justificador
para dar assentimento ao movimento voluntário cuja origem se localiza no pensamento
mesmo num ato de vontade simples. Vejamos como ele se pronuncia especificamente a res-
peito disso: Vós me perguntais ainda como eu sei que movimento espontâneo; eu vos
direi que eu sei porque eu sinto. Eu quero mexer meu braço e eu o mexo, sem que o movimento
tenha outra causa imediata que minha vontade. É em vão que eu queira raciocinar para
destruir em mim esse sentimento; ele é mais forte do que toda evidência; portanto seria pro-
var a mim que eu não existo”. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 574)
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
338
da matéria, ou do mundo material sensivelmente percebido, qualquer respon-
sabilidade e autoridade criadora do movimento. Se dois tipos de movimento
existem, o produzido e o comunicado, a matéria inanimada (uma molécula por
exemplo) não pode extrair movimento de sua natureza e dar-se a si mesma um
princípio de ação, pode no mais é receber a ação provocada por outrem e, como
consequência, ser movida. Não o Vigário qualquer capacidade autogeradora
da matéria de produzir em si e por si o movimento sem que algo lhe provoque
esse efeito. Isso é pensado porque a tarefa do Vigário é provar, ante a passivi-
dade material, o agente ou o princípio causador do movimento por produção.
Dessa maneira, ele indica, ou assinala a necessidade de uma outra instância, a
espiritual, marcada pela vontade como princípio cujo sinal é a responsabili-
dade, a partir da qual toda ação, ou efeito, se desenrola. Segundo o Vigário,
as primeiras causas do movimento não estão na matéria, ela recebe
o movimento e o comunica, mas ela não o produz (grifo nosso). /.../
Em uma palavra, todo o movimento que não é produzido por um
outro pode vir apenas de um ato espontâneo, voluntário; os corpos
inanimados agem somente pelo movimento e não há verdadeira
ação sem vontade. Eis o meu primeiro princípio. Eu creio que uma
vontade move o universo e anima a natureza. Eis o meu primeiro
dogma, ou meu primeiro artigo de fé. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p.
576)
Como a experiência o indica e o sentimento de sinceridade o confirma,
aparece o primeiro artigo de fé, que reza a crença na espiritualidade da vontade
como princípio do movimento e causa do mundo natural, sem que se tenham
provas, por outro lado, como isso seja feito, ou transmitido. Sabe-se que isso é
feito porque a experiência ordinária o indica, de modo autoevidente, a corre-
lação entre o querer, a responsabilidade, o início de qualquer ação e o movi-
mento compreendido como um efeito do querer. Se a vontade é conhecida pe-
los efeitos, a regressão indica, do efeito para causa, a atividade espiritual da
vontade atuando sobre a receptividade da matéria. Não há, portanto, ação cau-
sada sem vontade causadora. O raciocínio pode ser assim resumido: i) se o que
se conhece do movimento dos corpos são seus efeitos, se a matéria pode ser
concebida também em repouso, não faz parte da definição material o movi-
mento, apenas a sua comunicação, posto que a responsabilidade e origem do
movimento é atividade, ou espontaneidade; ii) a experiência ordinária
9
atesta
9
“Como uma vontade produz uma ação física e corporal? Não sei, mas experimento em mim
que ela produz. Quero agir e eu ajo; quero mover meu corpo e meu corpo se move, mas que
um corpo inanimado e em repouso venha a se mover por si mesmo ou produza o movimento
isso é incompreensível e sem exemplo. A vontade me é conhecida por seus atos, não por sua
natureza. Eu conheço essa vontade como causa motora, mas conceber a matéria produtora do
movimento é claramente conceber um efeito sem causa, é não conceber absolutamente nada.”
(ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 576) As consequências desse primeiro artigo de fé já podem ser
vislumbradas a partir dessa noção de que existe uma vontade que governa as ações da natureza
e do universo quando: i) que toda ação verdadeira é voluntária e isso implica deter o poder de
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
339
a relação entre vontade e origem do movimento, iii) logo a vontade anima a
matéria e é ela o princípio de qualquer movimento. Em suma, a vontade
10
é o
atributo espiritual ativo e produtor e a matéria passiva, porque é receptividade
e não causa a si mesma qualquer movimento.
Diante disso, colocada a vontade como causalidade, ela pode ainda ser
entendida enquanto uma fonte de expressão, como se fosse a manifestação de
um discurso, de um ordenamento, de um propósito, de uma intenção, sem a
qual nada no mundo se explica, ou pelo menos nada no mundo natural ani-
mado seria possível, nem que qualquer ser inanimado seja pensado, ainda que
de forma caótica. Dizer, portanto, que a matéria é movida por uma vontade
significa localizar uma origem desse movimento e, ainda, o propósito desse
movimento, sem o qual não haveria razão, sentido e ficaria incompreensível a
apresentação das porções mais íntimas de matéria, relacionando-as umas com
as outras e chocando-se umas com as outras. Algumas questões a partir desse
raciocínio podem ser levantadas: afinal, se a matéria é movida, existe sentido
ou direção nesse movimento? Existem tipos de movimento? Translação? Quer
dizer,
se cada molécula de matéria tem sua direção particular, quais serão as
causas de todas essas direções e de todas essas diferenças? Se cada átomo ou
molécula de matéria girasse apenas sobre seu próprio centro, jamais sairia de
seu lugar e não haveria movimento comunicado, ainda assim seria preciso que
esse movimento circular fosse determinado em algum sentido (ROUSSEAU, v.
4, IV, 1995, pp. 577-8).
A ideia, portanto, de indicar a origem do movimento pela vontade fora
da matéria, e a matéria ser com isso, "morta", porque não gera por si movi-
mento, mostra o estatuto que a vontade tem, a de conferir intencionalidade à
realidade objetiva. Se a vontade põe esse desígnio, coloca então o sentido, uma
direção, uma forma a partir da qual a realidade deve (grifo nosso) apresentar-
se. Esse propósito pode ser identificado, portanto, pela manifestação do movi-
mento por meio da qual os seres, ou porções dos seres, sejam eles átomos ou
moléculas, chocam-se, ou relacionam-se. Se os átomos, moléculas ou seres re-
lacionam-se, a manifestação dessa relação mostra não o porquê de isso acon-
tecer, mas da existência tanto de um movimento comunicado, então a capaci-
dade de transmitir movimento se dar na matéria, quanto o sentido que essa
transmissão adquire. Ou seja, ainda que a aparente aleatoriedade dos choques
agir ou de não agir; ii) disso resulta que todo agente de vontade se responsabiliza por aquilo
que quer; iii) se existe ão espontânea porque vontade, existe a dimensão espiritual, do
pensamento.
10
Vale a pena destacar que o motivo que leva o vigário a reconhecer o movimento ser gerado
por um ato de vontade passa pela sensação ocasionada no eu penso por uma intenção de mo-
vimento espontânea. Isso irá permitir, posteriormente, definir o autor do ato de criação do
mundo, deus. Será provado, a partir do cogito, o ato de vontade criadora de deus, garantido
pela evidência do sentimento ocasionado no cogito, por associação e semelhança.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
340
ou dos encontros sejam percebidos e não se possa, de imediato e como um todo,
captar todas as relações as quais as porções de matéria estabelecem, isso sig-
nifica ser possível compreender não o propósito originário de tudo isso, mas a
existência de uma intenção que orienta os seres como um todo. Com isso, se a
intenção pode ser percebida (grifo nosso), é admitida alguma racionalidade ou
alguma inteligência que emana por um ato de vontade e dirige os seres no
mundo natural de modo geral. Reconhecidos então, desta feita, tanto a origem
do movimento pela vontade, quanto o sentido que este movimento adquire
pela interação diversa das porções mais diminutas dos entes materiais, o Vigá-
rio afirma seu segundo artigo de fé: "se a matéria é movida segundo uma von-
tade, matéria movida segundo certas leis me mostra uma inteligência" (ROUS-
SEAU, v. 4, IV, 1995, p. 578).
Com isso, algumas consequências podem ser depreendidas destes dois
atos de até aqui apresentados: i) a matéria é passiva, não é ativa; ii) o caos,
a aleatoriedade das relações entre os seres, é inteligível porque existem senti-
dos que dirigem os fenômenos particulares; iii) o Vigário, por isso, entende que
a harmonia pode ser compreendida porque o homem, sendo inteligente, sendo
dotado de razão, ainda que sua razão seja limitada, é capaz de explicar os pro-
pósitos pelos efeitos dessa inteligência que governa o mundo. Não se compre-
ende, pelo limite dessa razão, a finalidade última que orienta o universo, ou o
porquê da origem do mundo, ou todos os propósitos que unificam a relação
entre os seres, mas das relações se depreende a existência de uma regra. Essa
regra, ou ordem é identificada quando o eu que julga a realidade sensível per-
cebe e compara partes da realidade, dimensões dos seres e as próprias relações
entre os seres. O que o juízo
11
alcança pela percepção - a partir do eu penso
estabelecido pelo caminho à interioridade pela pesquisa do Vigário - é a racio-
nalidade, as regras existentes na relação dos seres, pela interdependência deles,
ao passo que o sentimento o assentimento seguro quanto à existência de um
ser cuja vontade reguladora, a inteligência, governa o mundo. Esse propósito,
sua ordem, a vontade e o ser a ela relativo explica-se, intuído sensivelmente,
retroativamente, dos efeitos às causas; iv) pode-se dizer, ainda, que não existe
11
"Eu julgo a ordem do mundo, ainda que eu ignore seu fim, porque para julgar esta ordem me
é suficiente comparar as partes entre si, estudar seu concurso, suas relações, de observar o
concerto entre elas. Eu ignoro por que o universo existe, mas eu não deixo de ver como ele é
modificado, eu não deixo de perceber a íntima correspondência pela qual os seres que o com-
põem se prestam socorro mútuo. Eu sou como um homem que visse pela primeira vez um
relógio aberto e que não deixou de admirar a obra ainda que não conheça o uso da máquina e
que não tivesse visto o mostrador. Não sei, diria ele, por que tudo se serve, mas eu vejo que
cada peça é feita para as outras (grifo nosso), admiro o artista no detalhe de sua obra e eu
estou certo que todas as engrenagens funcionam assim em harmonia para uma finalidade
comum que me é impossível de perceber." (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 578) Aqui neste tre-
cho fica ainda mais evidente o caráter inusitado da argumentação, ou seja, do fato de relações
entre as coisas serem perceptíveis é permitido supor uma racionalidade e uma organização
específica ao mundo físico.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
341
causalidade da matéria
12
porque a partir dela mesma não existe harmonia, por-
que a partir dela mesma não se encontra o motivo que explica a interdepen-
dência mútua entre os seres (o Vigário usa o exemplo das peças de um relógio),
pois, graças às relações entre os seres, por fim, é que se depreende uma racio-
nalidade no mundo natural. Ao nosso ver, supor a chamada inteligência dire-
tora da realidade sensível permite retirar da matéria qualquer possibilidade de
produzir seres inteligentes. Isso significa, por um lado, desqualificar a termi-
nologia metafísica tradicional e, por um outro lado, permite atacar o fatalismo
material de um Diderot, por exemplo. Em seguida o Vigário resume:
Eu creio, então, que o mundo é governado por uma vontade poderosa e
sábia; eu o vejo, ou melhor, eu o sinto, e isso é o que me importa saber: mas
esse mundo é eterno ou criado? Há um princípio único das coisas? Ou haverá
dois ou mais, e qual é a natureza deles? Eu não sei nada disso, e o que me im-
porta? À medida que esses conhecimentos tornam-se a mim interessantes, eu
me esforçarei para adquiri-los; até eu renuncio às questões ociosas que po-
dem inquietar meu amor-próprio, mas que o inúteis à minha conduta e su-
periores à minha razão. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 580-1)
A afirmação feita acima da vontade inteligente ocorre por um senti-
mento, porque as funções da razão utilizadas para dizer qualquer coisa sobre a
realidade (percepção, comparação, abstração, juízo) limitam-se a afirmar o
percebido, orientado dentro de uma experiência possível. Esta pressuposição,
a entificação de uma vontade sábia, supera a capacidade humana racional,
feito o uso destas "ferramentas". O Vigário lança mão da crença, amparada
num tipo de "intuição" do sentimento, porque esse sentimento tem em sua
função o fato de ser critério, de ser a regra segundo a honestidade, a sinceri-
dade, a qual orienta a atividade intelectual cujos desdobramentos superam
questões epistêmicas apenas, ao orientar-se, também, por direcionamentos
éticos.
Os procedimentos racionais trabalham com comparações e, por meio
delas, a possibilidade do juízo, pois noções de igualdade e diversidade re-
sultantes dessas comparações podem ser atribuídas à informação retirada da
sensibilidade, já que relações entre os seres podem ser notadas. O cogito isso é
capaz de perceber, mas, num outro âmbito, não é capaz de perceber o autor
supremo do mundo. Então, como é possível afirmar a existência do autor dessa
12
"Quantas absurdas suposições para deduzir toda essa harmonia do cego mecanismo da ma-
téria movida fortuitamente! Aqueles que negam a unidade de intenção que se manifesta nas
relações de todas as partes desse grande todo fazem bem cobrir suas galimatias de abstrações,
de coordenações, de princípios gerais, de termos emblemáticos; o que quer que façam, me é
impossível conceber um sistema de seres tão constantemente ordenados, que eu não conceba
uma inteligência que o ordene. Não depende de mim crer que a matéria passiva e morta tenha
podido produzir seres viventes e sensientes, que uma fatalidade cega tenha podido produzir
seres inteligentes, que o que não pensa tenha podido produzir seres que pensam." (ROUS-
SEAU, v. 4, IV, 1995, p. 580)
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
342
obra? Por meio da crença regrada pelo sentimento de transparência e sinceri-
dade, porque a afirmação de vontade inteligente pela via sentimental é sufici-
entemente admissível, respeitados os limites da razão, quando o eu do cogito
deixa de afirmar as fantasmagorias da metafísica tradicional, que só aumen-
tam a perfídia humana, ao incorrer na leviandade de afirmar algo que o está
em condições de dizer. Nesse caso, o sentimento como regra
13
garante a licença
ao Vigário, quando ele passa a poder afirmar, mesmo que não disponha da evi-
dência, a vontade suprema. Essa licença é a autorização para afirmar algo que
supera possíveis precipitações racionais, mas que se orienta pela sinceridade
de quem não quer ser enganoso e quem não quer afirmar aquilo que sua razão
não tem condições de dizer.
Num certo sentido, um "ceticismo mitigado" aparece nas palavras do
Vigário quando os limites da razão são evocados para marcar a dificuldade que
a razão tem de afirmar algo muito além de sua capacidade, ainda que em outro
sentido existam condições para que a sinceridade do sentimento possa supor
a vontade inteligente. Proferir aquilo que a razão não pode provar é manifestar
uma mentira, sugerir o falso, ser desonesto, precipitado, quando o que se pro-
cura são indícios sobre os quais o bom senso e a sinceridade possam garantir
a vontade inteligente, no campo da fé. Nesses termos, a partir de então, dois
problemas parecem ter sido tratados até agora: a necessidade de afirmar, de
um lado, a vontade inteligente que ordena o mundo e, de outro, o modo como
isso é garantido, em suma, pela delimitação do alcance da razão, e pela atuação
do sentimento em sua transparência. Com isso, salta aos olhos toda uma dis-
cussão a partir da fonte de conhecimento com as quais trabalha o Vigário, to-
das as suas "ferramentas" de consulta por meio das quais pode crer
14
no que
13
No sentido de garantir uma conciliação dessa problemática com o racionalismo, Derathé
sugere: "Não poderíamos louvar o bastante M. Beaulavon por ter mostrado que em Rousseau
não há uma oposição, mas uma constante colaboração do sentimento e da razão. Mas nós não
estamos certos que esta colaboração se faça unicamente no sentido que ele indica, a razão es-
clarecendo o sentimento. O pensamento profundo de Rousseau será mais que não há uma ra-
zão em um coração corrompido e que a consciência ela mesma deve servir de princípio ou
de regra para a razão que, sem este guia, arrisca-se de vagar de erro em erro e de engendrar os
piores sofismas. Neste sentido a pureza do coração seria a condição da reta razão." (DERATHÉ,
1995, p. 7)
14
Na identificação que faz o vigário, da vontade inteligente com deus, é dito: "Lembre sempre
que eu não ensino meu sentimento, eu o exponho." (v. 4, IV, 1995, p. 581) Quer dizer que a
exposição do sentimento funciona num outro registro daquele da demonstração racional. Exi-
gem-se da razão, aqui em especial, sobre seres e características de seres dos quais não se tem
experiência, provas as quais ela não é capaz de fornecer, embora o sentimento fosse capaz de
afirmar. Nesse caso, em algum sentido existe um tipo de ceticismo de um lado, porque se eli-
mina a fiabilidade nas capacidades racionais do homem de conhecer, ao passo que se indica
um salto para a fé, cuja expressão pode ser convincente porque são expostas crenças com toda
a sinceridade e honestidade, sem que seja obrigado o ouvinte da exposição a aceitar o que se
diz. Parece que a prova racional, nesse caso, indicaria um constrangimento do qual quer se
livrar todo o homem de fé, em se tratando aqui, em grande parte, de um tipo de saber, o saber
religioso que quer ser ensinado para o Emílio, no caso, cujo conteúdo expressivo é fundamen-
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
343
afirma crer, e o conteúdo mesmo dessa crença que pretende ter validade não
como conhecimento demonstrável exclusivamente, mas como determinação
do agir moral humano.
Como consequência do segundo artigo de fé, o Vigário refere-se ao ser
da vontade inteligente, Deus
15
, embora sua natureza, sua essência, seja impos-
sível de ser afirmada completamente. Afirma-se Deus como resultado da
crença no propósito e na regulamentação das coisas, dos seres, das leis, ou seja,
dos efeitos de uma causalidade geradora, cujo resultado ocorre em uma obra.
Num certo sentido, Deus não pode ser racionalmente afirmado porque, tam-
bém, as fontes de conhecimento e o conteúdo mesmo desse conhecimento, a
natureza divina, são insuficientes para se afirmar a sua essência. Epistemolo-
gicamente, o que seria exigido aqui é uma evidência, uma certeza, mas o campo
de exposição sobre o qual deus é abordado envolve aspectos sentimentais, o
"coração". Por este aspecto, ao se falar de Deus, fala-se não sobre Deus, mas de
um Deus suposto sem o qual a existência dos seres em geral e a do homem em
particular e, ainda, a validade do próprio cogito não teria sentido. Afirmando
Deus, sobre o qual o Vigário só pode supor, afirma-o tendo marcado os limites
humanos, sem incorrer em desonestidade e mentira, delimitado o equívoco
que outros poderiam cometer ao tentar falar sobre Deus sem ter condições de
fazê-lo e, por isso, falar mal de sua natureza. Dessa forma, o Vigário fala pouco,
mas fala o suficiente sobre a natureza divina. Furta-se ao erro e ao prejuízo que
incorrem determinadas doutrinas que tendem a afirmar mais do que podem.
O ato de honestidade intelectual permite realizar uma compatibilidade entre o
ato de crença, que afirma o Deus e o próprio Deus. Nesse sentido, não pode
haver equívoco do cogito, já que a subjetividade que afirma o deus deve sugeri-
lo de tal forma que seja tão boa, tão honesta, tão sincera, quanto a bondade
que emana de Deus, de acordo com um sentimento que impõe sua evidência
sobre qualquer possibilidade de evidência racional sujeita a falhas.
talmente misterioso. Acredita-se que a tarefa de Rousseau aqui seja, já, a de indicar uma reli-
gião, uma adesão pelos afetos, e pela consulta particular, privada e interna do homem de fé.
15
"Que a matéria seja eterna ou criada, que haja um princípio passivo ou não, sempre é certo
que o todo é uno e anuncia uma inteligência única, porque não vejo nada que não seja orde-
nado em um mesmo sistema e que não concorra para o mesmo fim, a saber, a conservação de
tudo na ordem estabelecida. Este ser que quer e que pode, este ser ativo por si mesmo, este ser
que, enfim, qualquer que seja, que move o universo e ordena todas as coisas eu chamo deus."
(ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 581) Sobre esse assunto, conferir a nota 48 à página 142 da
edição crítica da Profissão de fé de Bruno Bernardi. Lá ele se pronuncia no sentido de relativi-
zar, ou minimizar uma possível teologia do vigário nas passagens referidas do texto. Segundo
o comentarista, para se ter uma teologia deveria ser necessária a definição e determinação do
que seja deus, dado que, seguramente, falta aqui na exposição do texto. O que ocorre, por outro
lado, como foi destacado, é ausência ou renúncia de qualquer poder da razão de conhecer essa
natureza divina, ao passo que o sentimento assume esse papel, de evidência, e impõe à razão
a necessidade de se pensar sobre a relação do deus com o mundo e com os seres criados.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
344
3. O lugar do homem na ordem do mundo
Feito isso, o Vigário parte para a exposição do lugar que ocupa o homem
na ordem das coisas, no sentido de precisar qual o relacionamento, qual sen-
tido poderia fazer o homem nessa ordem providencial, bem como quais seriam
as condições a partir das quais o relacionamento direto com Deus acontece, a
ponto de sustentar uma religião. Diz o padre:
Posso observar, conhecer os seres e suas relações, eu posso sentir o que
é ordem, beleza, virtude, posso contemplar o universo, elevar-me até a mão
que o governa, eu posso amar o bem, fazê-lo; comparar-me-ia aos animais?
Alma abjeta, é tua triste filosofia que te torna semelhante a eles; ou, primeira-
mente, queres em vão te aviltar, teu gênio depõe contra os teus princípios, teu
coração benfazejo desmente tua doutrina e o abuso mesmo de tuas faculdades
prova tua excelência a despeito de ti. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 582)
Segundo foi dito, nota-se uma primazia da posição humana sobre os de-
mais seres e o mundo físico em especial, porque o homem é dotado de razão,
capaz de agir, de intervir sobre o mundo com uma vontade que o coloca na
condição de agente livre dos movimentos que inaugura. Destacada a habili-
dade humana de poder compreender e atuar na realidade, a tópica rousseau-
ísta também aparece: a decrepitude pelo abuso de suas faculdades e possi-
bilidade de ser livre apesar delas. Nesse caso, o problema do mal e do erro são
anunciados acima e, sobre isso, falaremos mais adiante. Por ora vale dizer que
desse retorno reflexivo sobre si mesmo o homem descobre a posição que as-
sume no universo e, em decorrência de seus atributos, de suas conquistas, des-
cobre o amor ao autor da espécie humana. Desse amor, ocorre uma adoração,
um culto que não foi, seguramente, transmitido (ensinado por qualquer dou-
trina), mas apreendido da própria natureza, da qual o homem descobre fazer
parte. Essa adoração traduz-se então por: "honrar o que nos protege e amar o
que nos quer bem" (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 583), expressões do amor-
de-si.
É importante destacar, a partir de então, que do lugar que ocupa o ser
humano no universo busca-se entender a relação a qual o homem estabelece
com esse Deus e o que ele tira dessa relação: como as atribuições divinas farão,
de algum modo, sentido para sua vida. Na observação da obra divina, são en-
contradas expressões da subjetividade humana que são amparadas pela antro-
pologia presente em outros textos do ideário rousseauísta. O amor-de-si aqui,
por exemplo, é evocado porque pode ser traduzido pelo querer o bem de si
mesmo, como expressão da bondade divina, de sua intencionalidade para o
mundo em geral e para interioridade humana em particular. O amor-de-si é
sempre bom porque deseja o que deus tenciona para o homem e para o mundo,
proteção, bem-estar e cuidado de si. No nível físico do Segundo discurso, o
amor-de-si podia mesmo ser reduzido a uma expressão meramente "biológica"
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
345
(autopreservação), mas aqui a exposição é moral, cuja expressão de autocon-
servação é traduzida em querer e amar o bem a partir de deus, que bem en-
tende o mundo. Nesse ponto, um suporte, "ontológico", da bondade à qual
o homem se vincula por ser ela atributo divino, que orienta o mundo físico e a
vida humana. De outra maneira, há claramente aqui uma interface, uma asso-
ciação, ou uma interdependência, do campo moral, religioso e antropológico,
interface essa, ao nosso ver, está presente em outros momentos da exposição
da Profissão de fé. uma expressão antropológica da questão, porque se re-
conhece ser o amor-de-si o princípio da natureza humana segundo o qual as
ações têm explicação. A moral apareceria porque é com ele, o amor-de-si, que
a qualificação da ação e da vida humana é garantida, se o homem tiver o cui-
dado de não se esquecer, de consultá-lo mesmo no quadro de depravação social.
E, ainda, pode ser religioso porque é delimitada a condição a partir da qual a
relação do homem de fé com Deus acontece.
Na esteira da discussão até agora determinada, a consulta interior ga-
rante o acesso ao estatuto do homem no universo, sua relação de primazia em
relação aos demais seres, o entendimento a partir da ordem de Deus de suas
orientações e, também, o problema do erro, posto pelo abuso humano de suas
faculdades. O problema do mal parece ser espinhoso para o Vigário porque,
com ele, a natureza, a obra de Deus e o próprio Deus poderiam ser responsáveis
por sua presença no mundo. No entanto, quando é posto o erro como resul-
tante do abuso que o homem faz de suas faculdades, leia-se a razão, o entendi-
mento, o homem passa a ganhar a chance de, por si próprio, ser capaz de de-
terminar suas ações, ainda que sejam elas um equívoco de seu saber e, de
acordo com isso, ser livre. Por um outro lado, a liberdade pode se expressar:
como a origem da ruína entre os homens; por outro lado, graças à sua a razão,
o homem acha-se num estado de primazia em relação aos demais seres do
mundo porque escolhe e erra, tem a chance de se equivocar e pensar mal tanto
a si mesmo quanto à realidade sobre a qual atua
16
. De um outro lado, Deus
ocorre porque ocorrem, no homem, sentimentos de bondade, de cuidado e de
proteção, inscritos em sua natureza íntima e no mundo de modo geral. Se isso
acontece, o homem ganha, com isso, responsabilidade por seus atos e o pro-
blema do mal passa a fazer parte de sua condição e Deus, sumamente bom, é
salvo de ter ele contribuído para que o mal fizesse parte da realidade a qual
ordena. O homem torna-se mau porque, também, esqueceu-se de perceber, de
sentir, ou de escutar a simplicidade e a pureza de sentimentos tais como o
amor-de-si. Esse sentimento, pois, é sempre espontâneo, imediato, verdadeiro.
16
intérpretes que afirmam, a partir de então, que pode ser detectado, aqui, algumas aporias
que poderiam ser solucionadas com o advento da religião natural. Há quem diga que a "alma
é tensão entre dois movimentos que podemos chamar de elevação e queda, de atividade e pas-
sividade /.../. A nostalgia da unidade interior nos faz sentir a fraqueza, a paixão, a passividade
como um mal" (cf. Notas in ROUSSEAU, v. 4, 1995, p. 1.538).
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
346
os conteúdos determinados pela razão e o entendimento, a faculdade de jul-
gar, são mediados, cujos resultados nem sempre são condizentes com a ordem
e a providência divina.
Vejamos agora como o autor torna ainda mais complexo o problema ao
localizá-lo na interioridade humana:
Nenhum ser material é ativo por si mesmo e eu o sou. Ainda que me
contradigam em relação a isso, sinto e esse sentimento que me fala é mais forte
que a razão que o combate. Tenho um corpo sobre o qual os outros agem e que
age sobre eles; esta ação recíproca não é duvidosa, mas minha vontade é inde-
pendente dos meus sentidos; consinto ou resisto, sucumbo ou sou vencedor, e
sinto perfeitamente em mim mesmo quando faço o que quis fazer ou quando
faço apenas ceder às minhas paixões. Tenho sempre o poder de querer, não a
força de executar. Quando me entrego às tentações ajo segundo os impulsos
dos objetos externos. Quando me reprovo por essa fraqueza, escuto apenas a
minha vontade; sou escravo pelos meus vícios e livre por meu remorso; o sen-
timento de minha liberdade só se apaga em mim quando eu me depravo e im-
peço enfim a voz da alma de se elevar contra a lei do corpo. Conheço a vontade
apenas pelo sentimento que tenho da minha e o entendimento não me é me-
lhor conhecido. Quando me perguntam qual é a causa que determina a minha
vontade eu pergunto de minha parte qual é a causa que determina meu julga-
mento, porque é claro que estas duas causas são apenas uma se compreende-
mos bem que o homem é ativo em seus julgamentos, que seu entendimento
nada mais é do que o poder de comparar e de julgar, veremos que sua liberdade
é um poder semelhante ou derivado daquele; ele escolhe o bom como julgou o
verdadeiro; se julga falsamente escolhe mal. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp.
585-6)
E no trecho seguinte ele resume seu terceiro artigo de fé;
O princípio de toda a ação está na vontade de um ser livre, não sabería-
mos remontar além disso. Não é a palavra liberdade que nada significa, mas a
palavra necessidade. Supor algum ato, algum efeito que não derive de um prin-
cípio ativo, é verdadeiramente supor efeitos sem causa, é cair num círculo vi-
cioso. Ou não um primeiro impulso, ou todo o primeiro impulso não tem
nenhuma causa anterior e, não verdadeira vontade sem liberdade. O ho-
mem é então livre em suas ações e como tal animado de uma substância ima-
terial: este é o meu terceiro artigo de fé. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 586)
Nesses longos e importantes trechos do texto da Profissão de Fé, a dis-
cussão ganha uma amplitude temática porque, de um lado, percebe-se um su-
posto dualismo, ou tensões que marcam a vida anímica do homem e oscilam
entre atividade/passividade, alma/corpo, em função da definição do problema
do bem e do mal. Um dos pontos que merecem atenção aqui, inicialmente, su-
gerida pelas edições críticas do texto em questão, é o nítido conhecimento da
vontade, do entendimento e da liberdade pelo sentimento que se tem delas em
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
347
ação, como algo mais evidente do que qualquer raciocínio lógico. De um outro
modo, nota-se a mesma causalidade determinante tanto da vontade, quanto
do juízo, a saber: a capacidade ou potência de julgar, a partir da qual qualquer
atividade livre pode ser indicada. Desse modo, a liberdade aparece como prin-
cípio primeiro, o que mostra toda a espiritualidade da alma, a imaterialidade
de sua animação e a diferenciação na alma de qualquer dado que poderia ser
governada por impulsos ou informações originárias da objetividade corpórea,
de caráter passivo. Donde se segue que o reconhecimento pelo sentimento
dessa liberdade mostra que não existe nada além da liberdade, nada anterior a
essa capacidade livre de julgar. A capacidade livre de julgar, de ser racional, de
agir a partir de uma causalidade interna, de uma causalidade do eu (moi) que
procura o que lhe seja conveniente, independente de qualquer dependência,
sem qualquer constrangimento, pode contribuir ainda mais para isentar de
responsabilidade a divina providência, a intencionalidade colocada no mundo
pela vontade inteligente de Deus, quanto ao problema do mal. Para retirar de
Deus a responsabilidade pelo mal do homem, ainda que não o impeça de fazê-
lo, pois isso seria contraditório com suas determinações, é preciso lançar mão
da liberdade como conatural ao homem que se aperfeiçoa. Num outro aspecto,
colocada a liberdade humana como princípio, o Vigário transfere a responsa-
bilidade do mal para a obra humana, indica a possibilidade do arrependimento,
do remorso e da realização do bem por escolha livre, também responsável. Di-
ante de tudo isso, da localização na alma humana em relação ao propósito di-
vino sobre o problema do erro, o que aparece é o tema da responsabilidade e
do mérito, como desiderato da moralidade, pois moralidade quando o
problema do mal surge no horizonte da vida humana e o homem pode ser re-
conhecido como virtuoso porque pode rejeitar o mal, arrepender-se e aceitar o
bem voluntariamente.
Seguramente, pode-se dizer que do uso abusivo
17
de suas faculdades o
homem tem a condição de dar explicação à origem do mal que pratica. Ber-
nardi na edição crítica da Profissão de fé assegura que a
noção de abuso, central na Antropologia de Rousseau, conta de
que uma natureza boa, no lugar de ser fixa é perfectível, pode conhe-
cer a depravação. O paralelismo entre os textos é surpreendente: li-
mitado ao instinto o homem terá permanecido como uma besta, a
razão faz dele um ser livre e um homem, entretanto o abuso dessas
faculdades o faz cair abaixo de sua condição primeira (ROUSSEAU,
1964, p. 145).
Dito isso, a tese do mal histórico, o mal da obra humana faz todo sentido
17
o abuso de nossas faculdades que nos torna infelizes e maus. Nossas tristezas, nossos
cuidados, nossas dificuldades vêm de nós mesmos. O mal moral é incontestavelmente obra
nossa e o mal físico não seria nada sem nossos vícios que nos tornaram sensíveis a eles." (RO-
USSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 587)
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
348
na fórmula "onde tudo está bem nada é injusto". Por outro lado, o Vigário toma
toda a precaução, e a argumentação seguida até o momento trata desse caso,
de identificar o problema do mal na história humana, mas na ação humana em
particular, na vida humana de determinados eventos, não em todos eles. Isso
significaria dizer que toda a sua vida e os contornos e destinos dados por suas
habilidades, inclusive aquelas gravadas pela potência divina em nossos cora-
ções, sofre do mal irremediável porque ele é geral e se apresenta em tudo aquilo
que o homem realiza. Como Deus colocou o bem na ordem enquanto tal, a ex-
periência do mal é particular, causado ao homem por si mesmo e não pode
estar presente geralmente em toda atividade humana. A noção de bondade, de
justiça, seria o efeito dos anseios de um ser sumamente bom e poderoso sem
limites e essencial a todo ser sensitivo capaz de se orientar pela expressão do
amor-de-si (grifo nosso). A bondade passa a fazer parte, mais uma vez, de
forma perene, intrínseca da vontade de deus e passível de ser identificável na
ordem das coisas. Desse jeito, poder, bondade e força são aqui associados a
Deus, porque é o único ser plenamente poderoso e forte, pode tudo e por isso
é bom. Quer dizer, se Deus fosse um ser de desordem, seria fraco e autocontra-
ditório porque sua obra desordenada seria expressão de sua inteligência de-
sordenada. No homem, por sua vez, porque existe limitação e fraqueza, a mal-
dade se encontra justamente quando um descompasso entre seus anseios,
necessidades e poderes de realização, ou por colocar no horizonte mais proje-
tos do que teria condições de executar, como pode ser constatado ao longo da
argumentação do livro II de O Emílio.
Desse tema, do mal histórico da obra humana, decorrem outras ques-
tões, outros dilemas: a opressão dos justos pela dispersão do mal, o problema
do mérito, se o homem que quer ser feliz o merece de fato, a imortalidade da
alma, a "dualidade substancial" e como isso tudo justifica a providência divina.
Segundo os intérpretes (cf. nota 3 in ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 1.545) a
própria ideia de ordem divina seria responsável pela garantia da imateriali-
dade da alma e sua sobrevivência ao corpo. Se o corpo, ou as determinações
corpóreas que seriam, em tese, responsáveis pelo mal humano, se separa da
alma, corrompe-se porque é coisa extensa, material, divisível, passiva, que
não tem condições de por si mesmo provocar o movimento (aqui sustentado
pelos outros dois artigos de fé). Já a alma, potência ativa, tem garantido o seu
retorno ao sistema da ordem, porque é força e a força é indivisível, produz mo-
vimento, portanto sua morte é inconcebível. Tudo isso é afirmado não por ra-
zões, mas pelas crenças consoladoras, mesmo que amparadas por experiências
ordinárias a partir das quais têm-se a percepção da degradação do corpo, em
detrimento da integridade da parte pensante. Segundo entendemos, a estraté-
gia de lançar mão de uma dualidade substancial e, com isso, a ideia de imate-
rialidade e imortalidade da alma tem algumas razões de ser: uma delas deve-
se ao fato de ser necessário salvaguardar o sistema da ordem, e o próprio Deus,
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
349
quando ao longo da história os justos são subjugados pelos ímpios. Dar a imor-
talidade da alma ao homem é marcar uma posição, a de que o indivíduo justo
não precisa pagar duas vezes pelo sofrimento por que passa na vida e depois
da metempsicose. Aquele que foi bom em vida retorna com sua alma imortal
ao sistema da ordem, pois tanto a justiça como a bondade, atributos divinos,
impõem a necessidade de ser restaurada a justiça depois da morte para aqueles
que sofreram em vida. Por outro lado, aquele que foi mau em vida não pode
sofrer a sina de ser mau duas vezes ainda, pois a bondade divina encarrega-se
de sua salvação na vida anímica. Deus não pode ser mau se concede o mal,
pune aqueles que se livraram de sua fonte, o homem livre do corpo, que deter-
minaria o mal pela perda da espontaneidade determinativa característica do
ser de vontade livre. Para a remissão dos pecados mundanos, portanto, bastam
as leis positivas. Ao se rejeitar as penas eternas, o mal fica restrito à obra hu-
mana, no mundo corpóreo, ao longo da existência, mas não para sempre, fora
da escala do tempo e da alteração e diferenciação típicas dos eventos históricos,
tampouco dentro do sistema ordenado cuja fonte primária é Deus. Outro mo-
tivo seria a manutenção da argumentação e da coerência entre os três artigos
de fé, pois aqui, no desenvolvimento das consequências que desembocam no
terceiro artigo de fé, exige-se a exposição da justificativa da imortalidade e ati-
vidade da alma. Essa alma, em sendo ela potência ativa de cuja vontade e inte-
ligência realizam o movimento da matéria corpórea, mantém-se a coerência
com a noção de a vontade ser a fonte produtora de movimento assegurada pe-
los outros artigos de fé, ainda que naquele momento a causalidade material
fosse determinada pela vontade divina. Desse modo, nota-se, mais uma vez, o
entrelaçamento entre os planos de uma fundamentação com o plano religioso,
pois as noções de Deus, vontade, inteligência e substância podem ser associa-
das a uma atitude a partir da qual o homem pode relacionar-se com Deus e
praticar sua fé.
A partir de então, justifica-se a necessidade de busca pelo conhecimento
(grifo nosso) de Deus, a começar por suas obras. Ao nosso ver, num primeiro
plano essa busca serve para a confirmação de certo estatuto da racionalidade
humana e a relação dessa com a crença e, essa por sua vez, reafirma-se como
mais capaz, epistemologicamente falando inclusive, de consolidar a aceitação,
entendimento e assimilação das noções até o momento discutidas. O Vigário,
para tanto, assim se pronuncia:
Nós só somos livres porque ele quer que o sejamos e a substância inex-
plicável está para nossas almas assim como nossas almas estão para nossos
corpos. Se ele criou a matéria, o corpo, os espíritos, o mundo, nada disso sei. A
ideia de criação me confunde e ultrapassa meu entendimento; creio sobre ela
tanto quanto posso concebê-la, mas eu sei que ele formou o universo e tudo o
que existe, que ele tudo fez e tudo ordenou. Deus é eterno, sem dúvida, mas
meu espírito pode abarcar a ideia de eternidade? Por que me contentar com
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
350
palavra sem ideias? O que eu concebo é que ele existe antes das coisas, que ele
será enquanto elas subsistirem e que ele seria até mesmo depois, se tudo se
acabasse um dia. Que um ser que eu não concebo dê a existência a outros seres
isso é apenas obscuro e incompreensível, mas que o ser e nada transformem-
se eles mesmos um no outro, isso é uma contradição palpável, é um claro ab-
surdo. (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 593)
Segundo se disse, então, há aqui uma necessidade de desqualificar, por
um lado, o entendimento/razão na tentativa de compreensão da natureza de
Deus e da criação; por outro lado, há a crítica, como um absurdo maior do que
o próprio limite racional, da possibilidade de a matéria ser autoprodutora, e se
do nada a concepção do ser. Desse modo, o espírito humano sabe pouco,
conhece pouco e por isso encontra problemas para atingir quem seja Deus,
quando o próprio Deus, ao ser evocado, pressupõe a ideia do ilimitado. De um
outro modo, o levantamento de uma hipótese, a geração recíproca do nada
para o ser, é absurda e, por ser absurda, impossível, irrealizável, a hipótese
obscura do conhecimento de Deus e de seus poderes, e de seu ordenamento
ganha força. O procedimento, então, de qualificação da hipótese explicativa de
deus é admitida negativamente, quando não existem chances para admissão
da hipótese da criação recíproca do ser para o nada, ou seja, da exclusão de um
absurdo admite-se o que seria obscuro e incerto, que Deus fez o universo e
prescreveu todo seu ordenamento. Ao nosso ver, metodologicamente falando,
o procedimento aqui empregado usa o que a razão pode oferecer, determinada
sua função de limpeza da "insustentabilidade" do campo epistêmico no con-
fronto entre hipóteses (a fraqueza de uma hipótese se transforma em força pela
exclusão de uma outra) para usar a nos momentos mais espinhosos e mais
importantes na sustentação do sistema de crenças, os pressupostos empre-
gados e, toda a concepção de inteligência e atuação moral humanas decorrente
disso. Lançar mão dessa estratégia pode fazer todo sentido dentro da argumen-
tação do vigário, porque justamente nas passagens subsequentes o problema
da racionalidade humana e divina é trazido à baila no sentido de se dar conta
da correção e da incorreção da atuação humana no mundo.
Em comparação com o homem que se localiza no tempo e precisa da
experiência sensível e dos procedimentos delimitadores de qualquer razão,
Deus tudo sabe porque sua razão é intuitiva. A potência humana age por meios,
a divina por si mesma, a capacidade humana, por sua vez, carece da interven-
ção de propósitos, de motivadores, é, por isso, dependente. Em função dessa
demarcação, discute-se o modo como a bondade e a justiça humana se reali-
zam, da mesma forma, em comparação com Deus e na sua relação com ele. Se
Deus ama a ordem, as regras e a conformação determinada dos seres como
expressão, afinal, de sua vontade, o homem que pouco pode ver desse ordena-
mento, só pode amar a si, os outros, os demais seres do mundo e a justiça que
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
351
pretende garantir se essa expressão do amor ao outro se mantém. Dada a li-
berdade humana, a capacidade de querer por determinações que podem ser
extraídas de si mesmo ou de fora de si, a desordem moral poderá ser obra
sua, como foi exposto mais acima. Na definição dessa relação, mais uma vez, o
Vigário fala da razão humana, sua insuficiência, de seu bom uso, marcados
seus limites numa atitude de humildade para supor e definir uma atitude bea-
tífica de contemplação e adoração (sentimentalmente sustentada) que garanta
efetivamente as características peculiares do homem e de Deus como possíveis,
para, a partir de então, aceitar um tanto de mistério e dizer que esse mesmo
Deus faz parte de nosso ser, ainda que o começo do universo, a origem de Deus
sejam para nós desconhecidos absolutamente.
4. Regras morais e ação humana: a noção de consciência
Em resumo, definidos os três artigos de fé, Rousseau precisa tirar deles
as regras que sejam consequentes para a conduta humana e que suas ações
sejam conformes aos pressupostos, fundamentos dos quais são postuladas sua
validade, sua verdade e correção morais. A verdade dessas regras, então, será
buscada não na especulação racional, mas no assentimento pelo sentimento
interior que lhe servirá de critério. Por fim, daqui, mais uma vez, são associa-
dos os planos moral e religioso e a consciência será para o Vigário o instru-
mento com o qual a universalidade de qualquer ação moral se sustenta. pre-
ciso o silêncio das paixões para que a voz da alma se faça ouvir e que a infali-
bilidade da consciência nos lembre de nosso bem, se é nocivo ao outro, torna-
se um mal. Isso é o que nos engaja pela via da universalidade moral" (cf. Nota
1, p. 596, ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, p. 1.552). As regras serão procuradas,
extraídas, tendo percorrido o Vigário o caminho, o exame, no cogito e além
dele pelo resultado de sua investigação, de acordo com o qual a vida humana
como ser produtivo se justifica.
Nesse caso, as regras morais, em conformidade com a liberdade hu-
mana, servem para dar ao homem, no plano “metafísico”, no plano em que
ocorrem não mais os ditames das leis mecânicas, um retorno do homem a si,
quando as leis do corpo se calam e a voz da alma fala. Mas ao fazer esse
exame, a investigação de si, é preciso extrair da consulta da própria alma as
condições, as expressões, os discursos que passam a ser condição de possibili-
dade para se pensar uma ação moral, quanto à sua correção e honestidade.
Para o Vigário,
toda a moralidade de nossas ações está no julgamento que fazemos
nós mesmos sobre ela. Se é verdade que o bem esteja bem, deve ele
estar no fundo de nossos corações assim como em nossas obras, e o
primeiro prêmio da justiça é o de sentir que a praticamos. Se a
bondade moral é conforme à nossa natureza, o homem saberia
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
352
ser são de espírito e bem constituído na medida em que é bom. Se
ela não o é, e o homem seja naturalmente mau, ele não pode cessar
de ser sem se corromper
e bondade é nele apenas um vício contra a
natureza (ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 595-6).
Tendo em vista o texto destacado acima, parece que a condição para que
a moralidade de uma ação se processe dois procedimentos deveriam ser res-
peitados: em primeiro, a ação para ser executada ou posta em prática, deve,
antes, partir da definição e do conhecimento do que seja o bem, por ter indi-
cado o bem a ser feito; em segundo lugar, o bem só se torna de fato um bem se
sobreviver à avaliação, ou ao escrutínio do sentimento, pois a ação só se apre-
sentará como verdadeira, transparente ou honesta se fizer sentido àquele que
age. Quer dizer, a vontade refletida cuja determinação pelo julgamento define
qual seja o bem, põe em marcha a ação, a desenrola, mas ganhará a ação o selo
da verdade, ou autenticidade, se for marcada pelas intenções as quais só o sen-
timento pode oferecer. Um outro dado pode ser percebido, a permanência da
consulta à natureza, o fundo "antropo-ontológico" da bondade natural que fala
à alma humana, pelo sentimento como uma disposição ao bem fazer. Associa-
se a isso, para questões morais, as funções da reflexividade e racionalidade ca-
pazes de diferenciar o ser humano de uma simples besta. A moralidade torna-
se possível porque pode haver humanidade conforme à natureza, porque a ra-
zão se associa à voz do sentimento perene e conatural ao homem. Por isso que
o desenvolvimento da experiência humana com o mal acontece pela surdez e o
descompasso entre aquilo que a natureza prevê ou predispõe e aquilo que o
homem pretende pois, de acordo com o 3o artigo de fé, é um ser de vontade
livre racionalmente determinada.
Tudo isso pode ser afirmado porque afinal "existe, pois, no fundo das
almas um princípio inato de justiça e de virtude, sobre o qual, malgrado nossas
próprias máximas, julgam-nos as nossas ações e as dos outros como boas ou
más, e é a esse princípio que eu dou o nome de consciência" (ROUSSEAU, v. 4,
IV, 1995, p. 598). A partir de então, esse princípio, identificado às vezes como
sentimento interno, passa a ser responsável pelo estabelecimento dos critérios,
das regras a partir das quais a capacidade de julgar, associada, como se disse,
ao entendimento e vontade, confere às ações morais sentido, identidade e valor,
define as dimensões de universalidade de que carece a moralidade.
Há, no entanto, por parte de Rousseau, uma rejeição da discussão sobre
metafísica, o que ao nosso ver sustenta tudo o que foi analisado e não invalida
a busca por uma fundamentação levada a cabo até o momento. Ele disse, por-
tanto, que o seu
plano não é entrar aqui em discussões metafísicas que ultrapassem
o meu alcance e o vosso e que no fundo não levam a nada. Eu vos
disse que não queria filosofar convosco, mas ajudar-vos a consultar
vosso coração. Quando todos os provarem que estou errado, se vós
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
353
sentis que eu tenho razão, nada mais desejo (ROUSSEAU, v. 4, IV,
1995, p. 599).
O Vigário aqui se recusa a discutir questões metafísicas, embora, como
foi visto ao longo de nossa demonstração, teria tratado, em sua fundamentação
(qualquer que seja o nome que ela venha ganhar no escopo das disciplinas fi-
losóficas) de temas circunscritos àquilo que o coração autoriza e que o senti-
mento permite. É curiosa essa passagem porque o procedimento de consulta
investigativa a partir de um cogito, a afirmação da vontade e inteligência, de
Deus, por mais que o tenham sido gerados pelos filosofemas tradicionais,
foram gerados por um modo de fazer uma fundamentação peculiar, sustenta-
dos todos os conceitos, pelo recurso epistêmico-moral da sinceridade e hones-
tidade, em referência direta aos limites da razão e sua ultrapassagem pela
crença, com o objetivo de assegurar certos "dogmas", quando os conteúdos
destes não podiam ser "provados" ou demonstrados. Entendemos, como foi
assinalado em outro lugar, que essa fala do vigário permite-nos localizar a dis-
cussão, os temas, numa formulação tal, a partir da qual são articuladas diver-
sas áreas de saber: pelos conceitos, temas e procedimento metodológico um
certo racionalismo filosófico seria admitido; a religião seria tratada quando a
crença e o relacionamento com Deus são evocados pelos limites da razão de-
monstrativa; e a antropologia porque estabelece as estruturas e as caracterís-
ticas singulares do homem, assim como a moral, pois tudo o que se disse per-
mite definir o que o homem pode ou deve fazer e definir os valores que ganham
sua atuação no mundo.
Dado esse relevo ao problema da fundamentação, Rousseau trata agora
da articulação fina e complexa entre as instâncias da alma humana, no con-
curso de seus procedimentos com os quais a moral pode ser explicada. A tarefa
não é fazer exposição de uma análise da casuística das ações humanas e extrair
delas uma generalidade, mas explicar as condições determinantes da conduta
humana que seguem à exposição de sua vinculação com Deus, com a ordem e
mostrar que estão ligados estes pressupostos, como funcionam, o pensamento
humano inclusive, e pôr em marcha qualquer ação de valor moral no curso da
história e na associação societária. Para tanto, faz-se necessário compreender
a distinção na esfera do pensamento, da alma, o que sejam ideias, sentimentos,
sensações e mostrar como cada um desses fatos anímicos atuam quando um
outro agente humano poderia se interpor. Vejamos como o autor se pronuncia:
É preciso, para tanto, que vos faça distinguir nossas ideias adquiridas
de nossos sentimentos naturais, porque nós sentimos antes de conhecer e
como não aprendemos a querer o nosso bem e a fugir de nosso mal, mas rece-
bemos essa vontade da natureza, da mesma forma o amor ao bom e ódio ao
mal nos são tão naturais quanto o amor por nós mesmos. Os atos da consciên-
cia não são julgamentos, mas sentimentos, ainda que todas nossas ideias nos
venham de fora, os sentimentos que as apreciam estão dentro de nós e é por
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
354
eles que conhecemos a conveniência e inconveniência que existe entre nós e as
coisas que devemos buscar ou fugir. Existir para nós é sentir; nossa sensibili-
dade é incontestavelmente anterior à nossa inteligência e tivemos sentimentos
antes de ter ideias. Qualquer que seja a causa de nosso ser, ela proveu à nossa
conservação dando-nos sentimentos convenientes à nossa natureza e não sa-
beria negar que pelo menos aqueles sejam inatos. Esses sentimentos, quanto
ao indivíduo, são o amor-de-si, o temor à dor, o horror à morte, o desejo de
bem-estar. Mas se, como não podemos duvidar, o homem é sociável por natu-
reza, ou pelo menos foi feito para tornar-se sociável, pode sê-lo por outros
sentimentos inatos, relativos à sua espécie, pois, considerando apenas a neces-
sidade física, que deve certamente dispersar os homens, ao invés de reuni-los.
Ora, é do sistema moral formado por essa dupla relação, de si mesmo e com
seus semelhantes, que nasce o impulso da consciência. Conhecer o bem não é
amá-lo; o homem não tem um conhecimento inato do bem, mas tão logo sua
razão o faz conhecer, sua consciência leva a amá-lo: este sentimento que é inato.
(ROUSSEAU, v. 4, IV, 1995, pp. 599-600)
A partir de então, ocorrem distinções entre os chamados sentimentos e
as ideias adquiridas, estas originadas da experiência sensível com as sensações
originárias de objetos; por generalização e por abstração, as ideias são forma-
das por sensações. O uso que se faz do juízo contribui para a generalização de
informações sensíveis, os sentimentos, antropologicamente estabelecidos,
atuam segundo uma dimensão diretiva, prescritiva, sobre o que deve ser feito,
não pelos conteúdos cujos elementos específicos são diferenciados na esfera
cognitiva. Aqui o trabalho da consciência se processa, portanto, com sentimen-
tos, não com juízos, embora sejam as informações sensíveis aspecto necessário
para o escrutínio do sentimento. A razão não teria esse poder orientador, dire-
tivo, mas é capaz de dar à consciência, aos sentimentos internos, conhecimen-
tos, informações que a levam a avaliar, rejeitar/aceitar o mal e o bem. Eviden-
cia-se que o Vigário está a se valer de elementos específicos da cognição, do
entendimento, que faz o acoplamento de um predicado a um sujeito, de uma
característica a um ser percebido. Por outro lado, o gostar e o rejeitar as carac-
terísticas das coisas, o ato de amor ou ódio sobre o percebido, ter a disposição
de sentir apreço ou não sobre as coisas, isso é inato, ou melhor, natural ao ho-
mem. Verifica-se, ainda, que o sentimento atua na dimensão existencial do ho-
mem, constituindo-se sua essência, ao passo que a cognição não conta dessa
essência e fica, ao nosso ver, restrita a uma condição de auxiliar em questões
de ordem moral. Segundo se disse, o sentido fundamental que se atribui ao eu
(moi) a partir do qual o indivíduo se afirma é marcado pela imediaticidade do
sentimento, que ora promove a conservação de si, a autopreservação, num
plano natural originário, ora faz o homem ser clemente à dor alheia, pois num
plano social amplamente desenvolvido, ser clemente com o outro está associ-
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
355
ado ao temor de sofrer, o si mesmo, o que o outro sofre. Se num plano exclusi-
vamente físico-natural esses sentimentos são insipientes, ou que sejam funci-
onais apenas no registro "biológico", no desenvolvimento social, com eles,
pode-se compreender como a consciência se organiza, pois além de possibilitar
a realização da moralidade, permite definir os contornos, as fronteiras mais
precisas do que se entende ser o eu individual, o eu como um outro. Talvez seja
a partir daqui que ao se definir, na sociabilidade, o eu como um outro, no plano
"egóico", permite-se assentar as bases sobre as quais a moralidade seja possível
e possa ser justificada na sua universalidade.
Na nossa visão, a sociabilidade latente fica no homem como disposição,
capacidade, condicionamento, que pode ser usada, realizada, desde que o con-
curso das circunstâncias objetivas coloquem-na em marcha e ative sua história.
Mas qual seria, internamente, o resultado dessa sociabilidade desenvolvida? A
razão, bem se sabe, é constituída, não é inata, permite o saber; o amor ao
bem, ou o ódio ao mal, são definições dadas a posteriori pela avaliação dos
sentimentos. Poderíamos sustentar, a partir de então, que os sentimentos, ao
atuarem com as informações dos juízos, apontam uma direção, um sentido e
são, como foi dito, critérios, mas também a expressão da consciência, sendo
essa estrutura anímica, cuja forma de atuação se pela via sentimental e
dá ao homem uma vida, uma intenção.
A ação moral ao ser definida, posta como fenômeno, no tempo, na his-
tória, ganha a marca de seu valor e da intenção do agente, regulada pelos pre-
ceitos "inatos", originários e universais. Ao fazer isso, localizar a moralidade
na história, o autor coloca a consciência como prolongamento dos sentimentos
naturais dos homens, num momento em que ocorrem as complexificações do
aperfeiçoamento humano e a diversificação de seu processamento mental. A
consciência passa a ser sempre associada a um nível mais elevado da vida hu-
mana. Isso não significa que ela seja dependente dos procedimentos racionais
para desenvolver-se, mas deles precisa apenas os conteúdos, as informações as
quais só são dispostas na vida comum dos indivíduos, de modo que possa dar
à voz de natureza uma expressão social. Ela, a consciência,
é o instinto divino, imortal e celeste voz, guia seguro de um ser ignorante
e bom, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que torna o ho-
mem semelhante a Deus; és tu que faz a excelência de sua natureza e a mora-
lidade de suas ações; sem ti nada sinto em mim que me eleve acima das bestas,
a não ser o triste privilégio de perder-me de erros em erros com a ajuda de um
entendimento sem regra e de uma razão sem princípio (ROUSSEAU, v. 4, IV,
1995, pp. 600-1).
Nesse instante, fica muito claro como, pela consciência, ficam justifica-
das: a moralidade humana, a qualidade de suas ações, bem como o posiciona-
mento que ganha o homem na ordem providencial divina. Se em outro mo-
mento, pelo terceiro artigo de fé, o homem era dotado de razão e liberdade,
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
356
aqui com a consciência moral é confirmada a sua relação com Deus e seu lugar
de primazia no universo, determinado por atributos que superam as determi-
nações exclusivamente físicas comuns aos animais. A consciência, por outro
lado, fala a língua da natureza porque ela é sua expressão, ainda que o homem
social corra sempre o risco de, no aperfeiçoamento, ser surdo aos seus discur-
sos e de perder a qualificação correta que faz seus atos serem conformes aos
atributos divinos. Esse desvio de conduta ocorre porque o homem tem o privi-
légio do pensamento, de compreender, e ao fazer isso, associando-o com suas
paixões, erra, é míope e enxerga apenas as falsas impressões, as máscaras do
teatro das opiniões alheias.
Pressupor, então, desejar ou sonhar que o homem tivesse sido sempre
puro e livre absolutamente é um problema, por um lado, porque, na visão do
Vigário, não haveria qualquer mérito no alcance das virtudes. Dar ao homem
a liberdade que o arruína, pode levá-lo também a ter a chance de ser bom por
escolha, logo o bom uso de suas faculdades e de sua liberdade pode ser ao
mesmo tempo mérito e recompensa. A condição humana, o que ele tem de fa-
zer, que expressões de sua alma as quais utiliza para ganhar o prêmio de ser
bondosamente livre são sumamente importantes para que ele tenha condições
de superar os males que se impôs a si mesmo.
O papel da religião, a partir de então, pode ser apresentado porque
aponta o caminho, a relação que pode ser estabelecida com Deus e seu ordena-
mento no sentido de contribuir para superar os males e as antinomias huma-
nas. Mas essa função religiosa pode ser determinada porque houve definição
de fundamentos, a saber: i) os procedimentos investigativos de caráter racional
apoiados por um cogito amparado por regras e critérios de definição; ii) o con-
teúdo da pesquisa revelado pelos procedimentos, a saber, as noções de vontade,
Deus, matéria, alma, liberdade, sem as quais não poderíamos pensar conceitos
de ordem, de lei, bem como o papel do homem e sua definição antropológica;
iii) a distinção precisa das faculdades da alma a partir das quais a moralidade
se viabiliza. Desse modo, o tema da religião, consagrado na Profissão de fé, se
sustenta porque se apoiou em pressupostos de natureza fundamental; iv) esse
campo de investigação, ao nosso ver, contribuiu para consolidar e articular te-
mas diversos dos quais o próprio autor se vale em sua obra de uma maneira
ampla.
Considerações finais
Diante disso tudo, acreditamos ter considerado que Rousseau esforça-
se para elaborar uma fundamentação de seu pensamento dentro do vocabulá-
rio e da terminologia do período, no sentido de constituir um plano de trabalho
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
357
que supere as posições teóricas dispersas: rejeitando o reducionismo sen-
tir/julgar para uma dimensão mais espiritualizada da alma humana, para dar
conta do problema da liberdade, do problema do erro e, consequentemente, do
problema do mal. Sem esse trabalho de teorização, a humanidade do homem
fica sem sentido porque não foi elaborada a liberdade, sem a qual a religião
não se afirma, sem a qual a moralidade não se funda, sem a qual a educação
não se processa e sem a qual a política não se legitima.
Os pressupostos epistemológicos de Rousseau, por sua vez, são trazidos
à baila não para consolidar uma teoria do conhecimento, preocupação que está
longe de ser aquela à qual o genebrino parece mais atento, mas para serem
auxiliares e darem as noções cognitivas necessárias e os conhecimentos e as
informações mais adequadas do mundo, sobre o qual os homens têm de se po-
sicionar para não serem constrangidos geralmente, em termos sociais, e, par-
ticularmente, em termos morais.
Referências bibliográficas
BENSAUDE-VINCENT, Bernardette; BERNARDI, Bruno. Rousseau et les
sciences. Paris : L’Harmattan, 2003.
BERNARDI, Bruno. La fabrique des concepts: recherches sur l’invention
conceptuelle chez Rousseau. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2006.
CASSIRER, Ernst. « L’unité chez Rousseau ». In: GENETTE, Gerard;
TODOROV, Tzvetan (Org.). Pensée de Rousseau. Paris: Edition du Seuil, 1984.
______. « A questão de Jean-Jacques Rousseau ». In: O pensamento político
clássico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau et la science politique de son
temps. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1995.
______. Le rationalisme de Jean-Jacques Rousseau. Genève: Slatkine
Reprints, 2011.
GOLDSCHMIDT, Victor. Anthropologie et politique, les principes du système
de Rousseau. 2. ed. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1983.
GOUHIER, Henri. Les meditations metaphysiques de Jean-Jacques Rousseau.
Paris: Vrin, 1984.
HELVETIUS, Claude Adrien. De l’homme, de ses facultés intellectuelles et de
son éducation. Paris:
Librairie Arthème-Fayard, 1989.
______. De l’esprit. Paris: Adamant Media Corporation, 2005.
KAWAUCHE, Thomaz. Religião e política em Rousseau: o conceito de religião
civil. São Paulo: Ed. Humanitas, 2013.
KUNTZ, Rolf. Fundamentos da teoria política de Rousseau. São Paulo: Editora
Barcarolla, 2012.
Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. ISSN 1981-061X. ano XV. jul./dez. 2020. v. 26. n. 2
Henrique Segall Nascimento Campos
358
MARUYAMA, Natalia. A moral e a filosofia política de Helvetius: uma discus-
são com J-J. Rousseau. São Paulo: Associação Editorial Humanitas/Fapesp,
2005.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Émile ou De l’éducation. Paris: Éditions Garnier
Frères, 1961.
______. Oeuvres completes. Ed. publiée sous la direction de Bernard
Gagnebinet Marcel Raymond. Paris: Gallimard, c1959-95. 5v.
______. Emílio ou Da educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
______. Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a religião e
a moral. Org. e apres. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Li-
berdade, 2005.
SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a his-
tória no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
______. O cético e o ilustrado. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 2,
2000.
SPITZ, Jean-Fabien. Leçons sur l´oeuvres de JJ. Rousseau: les fondements du
système. Paris: Ellipses Marketing, 2015.
VARGAS, Yves. Introduction à L’Émile de Rousseau. Paris: PUF, 1995.
WEIL, Eric. « Rousseau et sa politique ». In : GENETTE, Gerard; TODOROV,
Tzvetan (Org.). Pensée de Rousseau. Paris: Edition du Seuil, 1984, pp. 9-39.
Como citar:
CAMPOS, Henrique Segall Nascimento. A Profissão de fé do Vigário Saboiano
e a fundamentação do pensamento de Rousseau. Verinotio Revista on-line
de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 321-58,
jul./dez. 2020.
Data do envio: 30 jul. 2020
Data do aceite: 27 out. 2020