DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.572
Aline Cristina Ferreira
305
As relações entre capitalismo e forma romanesca em Lucien
Goldmann
Aline Cristina Ferreira
1
Resumo: O presente artigo apresenta as relações entre capitalismo e romance
de acordo com Lucien Goldmann. Para tanto, apoiamo-nos especialmente em
sua obra Sociologia do romance, em que o autor apresenta a historicização do
romance de forma homóloga às mutações do capitalismo. Acreditamos que
nosso texto é relevante pois Goldmann apresenta uma visão crítica, a partir de
conceitos como o de reificação. No entanto, apesar de seus méritos, em nossas
considerações finais também apresentamos os limites do autor, já que os seus
pressupostos teórico-metodológicos podem gerar uma análise mecanicista.
Palavras-chave: Romance e capitalismo; literatura e sociedade; Lucien
Goldmann
The relations between capitalism and romanesque form in Lucien
Goldmann
Abstract: This article presents the relations between capitalism and romance
according to Lucien Goldmann. For this purpose, we rely especially on his work
Towards a sociology of the novel, in which the author presents the
historicization of the novel in homology to the changes in capitalism. We
believe that our text is relevant because Goldmann presents a critical view,
based on concepts such as reification. However, despite its merits, in our final
considerations we also present the author’s limitations, since his theoretical-
methodological assumptions can generate a mechanistic analysis.
Keywords: Novel and capitalism; literature and society; Lucien Goldmann
Lucien Goldmann foi um sociólogo franco-romeno, cuja produção é
datada a partir da década de 1940, estendendo-se até o fim da década de 1960,
no interior da academia francesa. Sua produção é destacada principalmente
nos estudos sobre marxismo e literatura (EAGLETON, 2011; KONDER, 2013),
além de ser considerado um dos principais representantes da sociologia da
1
Doutoranda pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). O presente trabalho foi realizado
com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (Capes).
E-mail: allinex3@gmail.com
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literatura (RICCIARDI, 1971). Contrapondo-se ao althusserianismo, ideologia
influente em sua época, Goldmann era humanista e historicista, por isso alguns
estudiosos o enquadram como marxista historicista (LÖWY, 1987).
Sua obra de destaque é Le Dieu caché, em que o autor faz uma análise
de Pascal e Racine a partir do conceito de visão do mundo trágica, que,
sabemos, provém do texto Metafísica da tragédia: Paul Ernst, do jovem Lukács
(2015). Além desse campo de estudo associado à filosofia e ao teatro,
Goldmann também investiu na análise de romances. Para tanto, buscou criar
um aparato teórico-metodológico próprio, com influência estruturalista e
marxista o seu chamado estruturalismo genético. Isso se apresenta em seu
também conhecido livro Sociologia do romance (em francês, Pour une
sociologie du roman, título que dá um sentido mais aberto, menos acabado, à
sua sociologia do romance). Nele, há ensaios específicos sobre o seu método e
a análise de alguns romances, com a apresentação de um panorama relacional
entre expressões literárias e a história do capitalismo. É especificamente esse
elemento que objetivamos explorar no presente texto
2
.
Realizar tal trabalho é importante e relevante por dois motivos.
Primeiro porque traz consigo uma perspectiva crítica e sobretudo totalizante
das relações entre literatura e sociedade. Ou seja, trata-se de explorar uma
perspectiva que não a literatura de maneira isolada da realidade social, e,
ainda, parte de uma perspectiva crítica em relação à sociedade. Segundo
porque, a nosso ver, é uma forma de contribuição para o desenvolvimento das
discussões no interior da teoria marxista da literatura. Nesse sentido, não
consideramos de forma alguma a visão de Goldmann como acabada, pelo
contrário. Também sabemos que há outros autores que buscaram realizar tais
associações entre literatura e períodos históricos, tal como é o caso de Lukács
em, por exemplo, O romance como epopeia burguesa (LUKÁCS, 2011). Enfim,
evidenciar o trabalho de Goldmann é importante na medida em que ele traz
novos elementos que podem contribuir para pensarmos as relações entre
literatura e sociedade
3
.
Para atingir o objetivo proposto, apoiar-nos-emos especialmente em
Sociologia do romance em diálogo com as suas bases intelectuais
(notadamente A teoria do romance e História e consciência de classe).
2
Parcialmente isso foi apontado por Frederico (2005; 2006), mas de forma mais geral,
que o objetivo do autor é nos apresentar a sociologia da literatura de Goldmann desde Le Dieu
caché (1959) até A criação cultural na sociedade moderna (1971) e os seus principais conceitos
(sujeito transindividual, visão do mundo etc.). O que pretendemos fazer aqui é um
aprofundamento do elemento específico da historicização, baseando-nos em Sociologia do
romance (1964).
3
Por exemplo, no caso de Lukács, em O romance como epopeia burguesa, ele se atém mais à
forma romance até se chegar às perspectivas do romance socialista. É certo que, em outros
trabalhos, o filósofo húngaro também aborda autores considerados vanguardistas, mas ainda
de forma crítica às vezes com alguns recuos, como é o caso com Kafka. Goldmann, por outro
lado, vai além, chegando até o nouveau roman, associando-o ao conceito de reificação.
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Secundariamente, utilizaremos outros textos de sua autoria a fim de melhor
compreendermos os conceitos utilizados.
O herói problemático e o fenômeno da reificação
Lucien Goldmann defende a homologia entre a “forma romanesca” e a
“estrutura do meio social”. Para traçar tal relação, nosso autor se apoia em A
teoria do romance, de Georg Lukács, e Mentira romântica e verdade
romanesca, de René Girard. Goldmann tenta “marxicizar” o Lukács neo-
hegeliano que se utiliza das discussões presentes em A teoria do romance
associando-as ao desenvolvimento do capitalismo e aos conceitos presentes
em História e consciência de classe, notadamente o de reificação. O que gera
uma interpretação específica do romance, desagradando o “velho” Lukács
4
.
Vejamos como isso ocorre.
Para fundamentar a homologia entre a forma romanesca e a estrutura
do meio social, Goldmann considera as relações traçadas por Lukács entre o
herói do romance e o mundo degradado ao qual ele se depara. Para este autor,
“O indivíduo épico, o herói do romance, nasce desse alheamento em face do
mundo exterior” (LUKÁCS, 2009, p. 66, grifo nosso). Há aqui uma associação
entre o mundo que é degradado e o herói do romance que é criado a partir dele.
um herói problemático que busca de forma inautêntica valores autênticos
em um mundo igualmente problemático. Por isso um problema ético se
transforma em um problema estético. Sendo que a partir desse pressuposto
Lukács constitui uma tipologia do romance: 1) romance do idealismo abstrato;
2) romance psicológico - o romantismo da desilusão; 3) romance de educação;
4) abertura de um novo tipo com Dostoievski, já que Lukács pensava que em
1914 estaríamos em uma transição para um novo tipo de sociedade e
Dostoievski representaria essa mudança (LUKÁCS, 2009).
Goldmann insere nessa discussão o desenvolvimento histórico do
capitalismo, retomando Marx e também História e consciência de classe por
meio do conceito de reificação. A partir disso, o autor defende que uma
4
Como se sabe, Lukács passou durante sua trajetória intelectual por diversas perspectivas.
Desde sua aproximação com o Círculo de Max Weber até chegar ao seu encontro com Lênin a
partir da década de 1930 (LÖWY, 1979), e, no final de sua vida, passando ao “resgate do
sistema de conselhos” na década de 1960 (LUKÁCS, 2008). Assim, em meio a críticas,
autocríticas e recuos, Lukács não acha positivo o fato de Goldmann estar atrelado às obras de
sua juventude: “É preciso dizer que, durante a remessa para Lukács de seu livro Le Dieu caché,
que Lukács, aliás, apreciaria como uma obra interessante, Goldmann recebera daquela pessoa
que não cessava de glorificar como ‘o maior pensador do século XX’, mas, exclusivamente, pela
contribuição trazida por suas obras da juventude, uma carta extremamente significativa que
revelava claramente a sua intenção de não aceitar categoricamente todo o discurso
goldmanniano sobre sua obra” (TERTULIAN, 2008, p. 292, grifo nosso).
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homologia entre o romance e a sociedade de mercado, sendo que tal relação é
marcada pela reificação. Em suas palavras:
Com efeito, a forma romanesca parece-nos ser a transposição para
o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista
nascida da produção para o mercado. Existe uma homologia
rigorosa entre a forma literária do romance, tal como acabamos de
definir, nas pegadas de Lukács e de Girard, e a relação cotidiana dos
homens com os bens em geral; e, por extensão, dos homens com os
outros homens, numa sociedade produtora para o mercado.
(GOLDMANN, 1967, p. 16)
Nesse sentido, o autor defende que o valor de troca e a coisificação são
homólogos ao gênero romanesco. Conforme a coisificação avança, o romance
acompanha tal “evolução”. Mas o que efetivamente significa esta coisificação?
Ou, em termos lukacsianos, reificação?
A menção aos “poderes das coisas” (o que remete à coisificação) está
presente em Marx e Engels, em A ideologia alemã, estendendo-se,
posteriormente, à discussão sobre fetichismo da mercadoria, no capítulo “A
mercadoria”, de O capital. Nesses escritos é pontuado como as relações sociais
aparecem como relações entre coisas, sendo que a “saída” para este problema
seria a abolição da divisão do trabalho da sociedade capitalista. Vejamos o
seguinte trecho de A ideologia alemã:
A transformação dos poderes (relações) das pessoas em poderes das
coisas [sachliche] por meio da divisão do trabalho também não pode
ser abolida pelo fato de se banir da cabeça a sua representação geral,
mas apenas pelo fato de os indivíduos submeterem de novo a si esses
poderes das coisas e abolirem a divisão do trabalho. (MARX;
ENGELS, 2009, p. 94, grifo nosso)
o fetichismo da mercadora, conceito elaborado n’O capital, é
caracterizado pela transformação das relações sociais em relações entre coisas
que se manifesta quando o operário não reconhece o seu trabalho em sua
própria produção. E, assim, as mercadorias produzidas aparecem como se
tivessem vida própria, adquirindo um “caráter misterioso”, como pontuado
por Marx na conhecida passagem:
O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres
sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos
próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são
naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social
dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre
os objetos, existente à margem dos produtores. (MARX, 2013, p.
147)
Lukács, sobre este fenômeno, enfatizando o ocultamento das “relações
entre os homens” (isto é, das relações sociais), afirma o seguinte:
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A essência da estrutura da mercadoria já foi ressaltada várias vezes.
Ela se baseia no fato de uma relação entre pessoas tomar o caráter
de uma coisa e, dessa maneira, o de uma objetividade
fantasmagórica que, em sua legalidade própria, rigorosa,
aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de
sua essência fundamental: a relação entre os homens. (LUKÁCS,
2012, p. 194)
Lukács aponta que no capitalismo a mercadoria penetra “no conjunto
das manifestações vitais da sociedade e remodela tais manifestações à sua
própria imagem” (2012, p. 196). Ou seja, o caráter fetichista perpassa toda a
sociedade capitalista, inclusive a consciência, que se torna coisificada ou, em
seus termos, reificada. Na consciência, as formas do capital aparecem como
verdadeiras e universais, como se as “coisas” existissem isoladamente. O
imediato é tomado como o universal pela consciência reificada. Assim, o ser
humano se torna um espectador em relação à realidade social.
Goldmann acrescenta este conceito de reificação à sua análise do
romance, associando as obras A teoria do romance e História e consciência de
classe. Mas não é apenas em Sociologia do romance que o autor discute sobre
a reificação. Em ensaio anterior
5
, de 1958, Goldmann expunha sua
interpretação sobre esse conceito, trazendo-nos exemplos bastante didáticos,
como podemos constatar no trecho a seguir:
“Um par de sapatos custa cinco mil francos”. É a expressão de uma
relação social e implicitamente humana entre o criador de gado, o
curtidor de couro, seus operários, seus empregados, o revendedor, o
negociante de sapatos e, finalmente, o último, consumidor. Mas
nada disso é visível; a maioria desses personagens não se conhece e
até ignoram sua existência mutuamente. Ficariam todos espantados
de saber da existência de um laço que os une. Tudo isso se exprime
por um só fato: “um par de sapatos custa cinco mil francos”.
Ora, isto não é um fato isolado; é, pelo contrário, o fenômeno social
fundamental da sociedade capitalista: a transformação das relações
humanas qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a
manifestação do trabalho social necessário empregado para
produzir certos bens como valor, como qualidade objetiva desses
bens; a reificação que consequentemente se estende
progressivamente ao conjunto da vida psíquica dos homens, onde
ela faz predominar o abstrato e o quantitativo sobre o concreto e o
qualitativo. (GOLDMANN, 1979, p. 122)
Considerando que a reificação é um “fenômeno social fundamental da
sociedade capitalista”, naturalmente Goldmann centralidade a este conceito
em seu estudo sobre romance e sociedade capitalista. O caráter social da
produção literária, portanto, é a essência da abordagem de Goldmann. Por isso
a sua preocupação com a reificação, que interfere nas relações sociais, vistas
5
Trata-se da transcrição de uma palestra que Goldmann proferiu em Tolouse.
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como relações entre coisas. Entendamos um pouco mais sobre tal caráter
social, que envolve outros conceitos importantes.
O caráter social da produção literária
Para Goldmann, o caráter social da produção literária se a partir da
associação entre literatura e consciência de determinado grupo ou classe
social. Segundo ele, a homologia entre o romance e a “consciência coletiva” não
é uma novidade no interior da sociologia da literatura de sua época, havendo,
neste ponto, uma afinidade entre a chamada “sociologia marxista” e as
sociologias da literatura não-marxistas. Mas, ainda em sua perspectiva, a
diferença entre estes dois campos (marxistas versus não-marxistas) se dá no
modo de conceber a consciência: no marxismo a consciência possível. Nesse
sentido, o autor afirma:
No fundo, o que separa, nesse domínio como em todos os outros, a
sociologia marxista das tendências sociológicas positivistas,
relativistas ou ecléticas, é o fato de ela ver o conceito fundamental
não na consciência coletiva real, mas no conceito construído
[zugerechnet] de consciência possível, o único que permite a
compreensão do primeiro. (GOLDMANN, 1967, pp. 18-19, grifo do
autor)
De forma mais aprofundada, a discussão sobre consciência possível está
presente em seu livro Ciências humanas e filosofia. Ao tratar sobre as ciências
humanas, Goldmann aponta que os positivistas concebem somente a
consciência real (isto é, aquela que enxerga o imediato, a aparência). No
entanto, em suas palavras, “parece-nos que o conceito fundamental em
ciências históricas é o de consciência possível, que tentaremos examinar a
partir dos trabalhos de Max Weber e dos marxistas” (GOLDMANN, 1980, p.
94)
6
.
Em sua discussão sobre sociologia da literatura, Goldmann relaciona
este conceito à literatura da seguinte maneira. As grandes obras literárias não
são homólogas “conteudisticamente” como um reflexo direto em relação à
consciência real, mas sim a partir de uma homologia de estruturas que não
necessariamente estão ligadas a esta consciência real. Considerando, então,
que Goldmann fala em consciência coletiva (seja real ou possível), outra
questão a ser pontuada é que o autor relaciona as obras filosóficas, literárias
6
Tal discussão apresentada por Goldmann vem de inspiração lukacsiana por meio do seu
conceito de consciência adjudicada. De acordo com wy e Naïr (2008, p. 43), “A expressão
‘consciência possível’ é a tradução de Goldmann para o conceito de Zugerechnetes Bewusstein
(literalmente, ‘consciência adjudicada’ ou ‘consciência atribuída’), definido por Lukács em
História e consciência de classe como a consciência que corresponde racionalmente à posição
de uma classe no processo de produção”.
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etc. não a um indivíduo, mas sim a um grupo. Em seus termos, uma obra é
expressão da visão do mundo de um grupo ou classe social. Este é o elemento
que faz com que as obras tenham um caráter social. Por isso, Goldmann
reitera que seu estudo se trata de sociologia, desvinculando-se de análises
puramente psicológicas. Para ele, o grupo social é o verdadeiro sujeito da ação
(GOLDMANN, 1967).
Tal discussão está vinculada à visão do mundo, que é definida da
seguinte maneira:
As visões do mundo são fatos sociais, as grandes obras filosóficas e
artísticas configuram expressões coerentes e adequadas dessas
visões de mundo; são como tais expressões individuais e sociais ao
mesmo tempo, sendo seu conteúdo determinado pelo máximo de
consciência possível do grupo, em geral da classe social, a forma
sendo determinada pelo conteúdo para o qual o escritor encontra
uma expressão adequada. (GOLDMANN, 1980, pp. 107-8, grifo do
autor)
Vemos aqui a dimensão coletiva, ou melhor, social, da concepção de
Goldmann em relação à produção literária. E, ainda, voltamos à questão da
consciência possível, que, na maioria das vezes, pode ser exprimida não em sua
totalidade, mas em seu potencial ximo. Isso porque, diferentemente de
Lukács (2012), Goldmann não considera a existência de uma identidade total
entre sujeito e objeto do conhecimento. Na verdade, para ele, uma
identidade parcial. Além disso, o autor romeno não se refere apenas ao
proletariado, mas a todos os grupos ou classes sociais que têm o potencial de
chegar ao seu máximo de consciência possível.
Esse modo de conceber a análise da literatura é chamado, em Sociologia
do romance, de “estruturalismo genético”
7
. O autor pontua que este método
parte do pressuposto de que as estruturas do universo da obra são homólogas
às estruturas mentais de certos grupos sociais (o que já pontuamos no caso do
romance e a sociedade capitalista). Assim, em sua concepção, o estruturalismo
genético contribuiu para o desenvolvimento da sociologia da literatura, pois
ele não concebe o conteúdo de forma anedótica ao estudar a relação entre a
obra literária e grupo social.
Desse modo, o último elemento que se deve considerar na sociologia do
romance de Goldmann é o de que “A consciência coletiva não é uma realidade
primeira, nem uma realidade autônoma; elabora-se implicitamente no
comportamento global dos indivíduos que participam na vida econômica,
social, política etc.” (GOLDMANN, 1967, pp. 18-9). Contudo, apenas
determinados grupos sociais conseguem constituir grandes obras, apenas
7
Antes dessa obra, Goldmann se utilizava dos termos “materialismo histórico” e “materialismo
dialético” para se referir à sua teoria e metodologia. Com o passar o tempo o autor passou a
incorporar o vocabulário estruturalista.
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aqueles “cuja consciência propende para uma visão global do homem”
(GOLDMANN, 1967, p. 209); sendo que “grupos sociais” não necessariamente
são classes sociais: “Do ponto de vista da investigação empírica, é certo que,
durante um período muito longo, as classes sociais foram os únicos grupos
desse gênero [isto é, que possui uma visão global]. (GOLDMANN, 1967, p.
209)
Mas no romance a questão da visão do mundo é concebida de forma
diferente, já que o autor considera que o romance do herói problemático é
crítico e “oposicional” ao capitalismo, e expressa não a consciência de
determinada classe (nem a real, nem a possível), mas ao mesmo tempo está
relacionado à história e ao desenvolvimento da burguesia, pois se opõe
justamente ao mundo degradado burguês.
A forma romanesca que acabamos de estudar [isto é, aquela do herói
problemático, assim como concebido por Lukács] é, em sua
essência, crítica e oposicional. É uma forma de resistência à
sociedade burguesa em curso de desenvolvimento. /.../ O romance
de herói problemático define-se assim, contrariamente à opinião
tradicional, como uma forma literária ligada, sem dúvida, à história
e ao desenvolvimento da burguesia, mas que não é a expressão da
consciência real ou possível dessa classe. (GOLDMANN, 1967, p. 25,
grifo nosso)
Deve-se acrescentar, ainda, outra questão: até aqui falamos do romance
de herói problemático. Mas com a reificação cada vez mais crescente na
sociedade capitalista, Goldmann identifica nos romances contemporâneos a
ele uma associação entre obra literária e consciência reificada, sem passar pelo
herói problemático, pois este desaparece. A partir de toda essa discussão é que
o autor traça três fases marcantes de desenvolvimento do romance até chegar
ao “triunfo” da reificação. Nesse sentido, os diferentes momentos do modo de
produção capitalista acompanham diferentes “níveis” de coisificação. É o que
veremos a seguir.
A historicidade do capitalismo e do romance
No texto “Introdução a um estudo estrutural dos romances de Malraux,
Goldmann lança a hipótese de que a evolução dos romances deste autor ao
longo da história transita na direção dos escritos em que o herói problemático
não aparece mais. Assim, vai da forma romance habitual (“clássica”) às
modificações históricas que chegam na dissolução do herói problemático. Tais
pontuações são sempre enfatizadas dando atenção ao contexto sócio-histórico.
Nesse sentido, as modificações dos romances não são explicadas por mudanças
individuais. O contexto específico de Malraux, de acordo com Goldmann, é o
da crise do individualismo, que colocou os problemas da ação e da morte. Além
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disso, também é apontada a influência proveniente do existencialismo e
marxismo, que estavam se adentrando na França. Nesse sentido,
trata-se de relembrar que o escritor não desenvolve ideias abstratas,
mas cria uma realidade imaginária, e que as possibilidades dessa
criação não dependem, em primeiro lugar, de suas intenções, e sim
da realidade social em cujo seio ele vive e dos quadros mentais para
cuja elaboração ele contribuiu (GOLDMANN, 1967, pp. 144-5).
É a realidade social que possibilita a criação de determinado universo
ficcional, e não as intenções do autor. Daí a importância de se compreender as
relações entre obra e contexto sócio-histórico, entre romance e capitalismo. A
historicização desta homologia está presente especialmente nos textos sobre
as análises das obras, sejam as de Malraux, sejam as de Robbe-Grillet.
Há a apresentação de três fases: 1) o início do romance até o século XX
(aqui temos, por exemplo, Cervantes, Stendhal, Flaubert, Goethe etc.); 2) o
período do início do século XX até a II Guerra Mundial (abordado nos estudos
de Goldmann sobre Malraux, por exemplo); 3) o momento da Segunda Guerra
Mundial em diante, considerando que Goldmann viveu até 1970 (aqui torna-
se representativo o estudo sobre o noveau roman). Exploraremos cada um
desses períodos.
A primeira fase compreende o início do romance até o século XX. De
acordo com Goldmann, tal período é caracterizado pela economia liberal e pela
apologia ao individualismo. O capitalismo liberal, para o autor, é marcado pelo
“seu progresso no decurso da segunda metade do século XIX e primeiros anos
do século XX, progresso que estava associado à possibilidade de uma
expressão colonial prolongada e contínua” (GOLDMANN, 1967, p. 167).
Nesse momento, a reificação é nascente e, portanto, não possui um
impacto muito intenso na literatura. O herói busca se adaptar a um mundo
degradado, marcado por uma reificação nascente; no entanto, este herói não
consegue a adaptação a esse mundo, daí a denominação herói problemático. É
o herói de Lukács em A teoria do romance, como vimos anteriormente. Nas
palavras de Celso Frederico, ao falar sobre essa fase apontada por Goldmann:
A literatura, nesse contexto, expressa o desconforto perante a
reificação nascente. No mundo desumanizado, os personagens se
debatem em busca de um sentido para a existência. O “herói
problemático” faz a sua aparição, inicialmente em Dom Quixote e,
depois, em Stendhal, Flaubert e Goethe. Romance, aqui, é crônica
social: é estudo das relações entre os personagens problemáticos e
os contextos sociais opressivos: essas relações nos contam a
tentativa de realização de valores autênticos num mundo hostil aos
valores; portanto, busca degradada de valores por personagens
desadaptados busca condenada ao fracasso, que assinala o caráter
precário e problemático da forma romance. (FREDERICO, 2005,
pp. 429-6)
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a segunda fase data do início do século XX seguindo até o fim da II
Guerra Mundial (aproximadamente de 1912 a 1945), denominada por
Goldmann como fase imperialista, em que há a formação de monopólios.
Trata-se de um período de crise estrutural do capitalismo. É o momento de
declínio da economia liberal e, por conseguinte, do herói problemático. O
comportamento humano torna-se central, especialmente na questão da ação e
da morte. A focalização se dá na exposição das dificuldades do ser humano em
se apresentar como indivíduo, diferentemente de como ocorria com as
filosofias individualistas da fase anterior. Ao caracterizar esse período
filosófico, Goldmann afirma:
Se o comportamento do indivíduo não pode, com efeito, fundar-
se nos valores transindividuais (pois o individualismo suprimira-os
todos), nem no valor incontestável do indivíduo (agora posto em
dúvida), o pensamento devia, necessariamente, centrar-se nas
dificuldades desse fundamento, nos limites do ser humano
enquanto indivíduo e na mais importante de todas seu
desaparecimento inevitável, a morte. /.../ Em resumo, privado de
dois fundamentos possíveis, o indivíduo e as realidades
transindividuais, o comportamento humano foi posto em questão,
e essa crise assumia, para o pensamento filosófico, a forma do duplo
problema da morte e da ão. (GOLDMANN, 1967, p. 191)
Para nosso autor, os dois primeiros romances de Malraux constituem
uma resposta a esses problemas apontados pela filosofia da época. Aqui, o
herói problemático não está presente como na fase anterior, pois nesse
momento a literatura é marcada pela dissolução dos personagens, tendo como
representantes Kafka, Joyce e algumas obras existencialistas, como A náusea
de Sartre e O estrangeiro de Camus. Estes autores ainda conservam uma
perspectiva humanista: “Kafka, Sartre, em A náusea, Camus, em O
estrangeiro, conservavam ainda perspectivas humanistas, implícitas ou
explícitas, que tornavam manifestamente seus livros obras de ausência”
(GOLDMANN, 1967, p. 191).
Este é o período no qual estão inseridas as obras de Malraux, que sofrem
uma mutação da forma romanesca. Com o tempo, o herói problemático se
direciona à dissolução dos personagens, especialmente com o tema da morte.
Nesse sentido, na concepção de Goldmann, a constituição de um gênero
intermediário. A “passagem” de um gênero a outro no caso de Malraux ocorre
a partir da obra Os conquistadores (1928) e A condição humana (publicada
em 1933, mas escrita anteriormente), direcionando-se a Tempo de desprezo
(1935) e, por fim, A esperança (1937) obras cujo herói não é problemático.
Desse modo, esta última obra “tem por tema a relação não problemática do
povo espanhol e do proletariado internacional com o partido comunista
disciplinado e oposto à espontaneidade revolucionária” (GOLDMANN, 1967,
pp. 116-7, grifo do autor). Por isso, Tempo de desprezo e A esperança não são
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romances no sentido estrito tal como se encontra na conceituação do herói
problemático.
André Malraux possui uma vasta produção textual. No entanto,
Goldmann finaliza seu estudo com a obra Os nogueirais de Altenburg (1943-
8), pois o autor francês começa a se dedicar a escritos teóricos e a partir de
então, após a II Guerra Mundial, uma nova fase literária. Trata-se da
terceira fase do romance a qual mencionamos, caracterizada por uma
sociedade capitalista avançada, com intervenção estatal momento
denominado por Goldmann como “capitalismo de organização”. Em suas
palavras, após a II Guerra Mundial, “uma sociedade capitalista avançada
que, graças à criação de poderosos mecanismos de intervenção estatal e de
regulamentação da economia, pôde prescindir da exportação maciça de
capitais e investir no mercado interno” (GOLDMANN, 1967, p. 167).
Na visão de nosso autor, este último período é caracterizado pela vitória
definitiva da reificação, tendo o nouveau roman como o novo representante
do romance. Isso significa que elementos oriundos da reificação passam a se
expressar na obra literária. Nesse sentido, ao analisar os escritos de Robbe-
Grillet, um dos expoentes do noveau roman, Goldmann aponta que os
personagens possuem uma passividade que, como vimos no início de nosso
texto, faz parte do processo de reificação. Em suas palavras:
O que Robbe-Grillet constata, o que serve de tema aos seus dois
primeiros romances, é a grande transformação social e humana,
nascida do aparecimento de dois fenômenos novos e de capital
importância: de uma parte, as autorregulagens da sociedade e, de
outra parte, a passividade crescente, o caráter de “olheiros” que os
indivíduos adquirem, progressivamente, na sociedade moderna, a
ausência de participação ativa na vida social, aquilo que, na sua
manifestação mais visível, os sociólogos modernos chamam a
despolitização, mas que, no fundo, é um fenômeno muito mais
fundamental que se poderia designar, numa graduação progressiva,
por termos tais como: despolitização, dessacralização,
desumanização, coisificação. (GOLDMANN, 1967, p. 190, grifo
nosso)
Goldmann aponta que tais características podem se manifestar no
romance de maneira implícita, sendo que o seu criador não necessariamente é
engajado. Tal descrição da passividade pode ser vista como algo crítico, o que
não necessariamente pode ter sido intenção o autor. Robbe-Grillet é um
exemplo disso. Este autor se declarava distante do marxismo, dizendo que os
marxistas são aqueles que tomam posição, enquanto ele próprio buscava ser
realista e objetivo, no sentido de não inserir julgamentos em suas obras.
Enquanto a discussão se limitava aos seus três primeiros romances,
Robbe-Grillet ateve-se a sublinhar uma diferença importante entre
o seu mundo romanesco e toda a tentativa marxista para interpretá-
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lo como uma revolta contra a desumanização. Os marxistas, disse
ele, são pessoas que tomam posições. Eu sou um escritor realista,
objetivo; crio um mundo imaginário que não julgo, que não aprovo,
nem condeno, mas cuja existência registro, como realidade
essencial. (GOLDMANN, 1967, p. 191)
Considerando Robbe-Grillet um autor original, Goldmann também
aponta que este seu aspecto realista, tal como definido na citação anterior, é o
elemento característico da analogia entre os romances do noveau roman e a
estrutura social.
A obra de Robbe-Grillet equaciona, naturalmente, muitos outros
problemas propriamente estéticos e que dizem respeito, em
primeiro lugar, às modificações que o conteúdo fez introduzir na
forma romanesca. Contudo, parece-nos que esta simples análise do
conteúdo mais imediato dos escritos de Nathalie Sarraute e de
Robbe-Grillet, bem como do filme deste último, tal como acabamos
de o esboçar, é suficiente para mostrar que se dermos à palavra
realismo o sentido de criação de um mundo cuja estrutura é
análoga à estrutura essencial da realidade social, em cujo seio suas
obras foram escritas, Nathalie Sarraute e Robbe-Grillet contam-se
entre os escritores mais radicalmente realistas da literatura francesa
contemporânea. (GOLDMANN, 1967, p. 195, grifo nosso)
Evidentemente tal definição de realismo está longe de ser consensual e
é bastante diferente de outros autores que discutiram tal termo, como vemos
nas obras de Lukács dos anos 1930, por exemplo
8
. No entanto, não teríamos
espaço neste texto para abordar tais diferenças e as diferentes conotações de
“realismo” trazidas por diferentes autores influenciados pelo marxismo. O que
podemos constatar aqui é a relação feita entre noveau roman e a intensificação
da reificação, fechando a terceira fase que representa as relações entre
romance e capitalismo de acordo com nosso autor.
A utopia da comunidade humana autêntica versus o “triunfo da
reificação”
Goldmann defende a hipótese de que a forma romanesca é uma
resistência à sociedade burguesa, na medida em que ela não expressa nem a
consciência real nem a consciência possível da burguesia, mas, pelo contrário,
se opõe criticamente ao mundo burguês, degradado. O romance não tem um
herói positivo (isto é, que exalta a sociedade em que vive), mas problemático.
Assim, até mesmo quando chegamos ao terceiro período da sociedade
capitalista em que a reificação reina e o herói está dissolvido, o que
8
Sobre isso, cf. o livro Marxismo e teoria da literatura (LUKÁCS, 2010). muitos outros
escritos em que Lukács aborda este assunto. A coletânea sugerida traz os textos de maior
destaque.
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Goldmann vê no romance de sua época é a descrição desta reificação, gerando
uma crítica implícita a ela (vide o seu exemplo dado com Robbe-Grillet). Dessa
perspectiva surge um problema: se o romance não é expressão da consciência
burguesa, então uma relação direta entre sociedade e literatura. Por isso
Frederico afirma que
Goldmann estuda o advento do nouveau roman sem referir-se a
nenhuma classe social. Aqui, estamos em pleno mecanicismo:
literatura é reflexo imediato que dispensa a mediação das classes
sociais e de suas lutas; o próprio autor, em seu desenraizamento
social, transformou-se num mero fotógrafo de uma realidade
estranha que não lhe diz respeito (2005, p. 439).
Parece-nos, porém, que para Goldmann o autor da obra literária pode
conseguir reproduzir a realidade em seu sentido objetivo, isto é, em sua forma
verdadeira, e não como apenas uma fotografia. O fato de Robbe-Grillet
descrever a passividade dos homens revela a reificação, tornando a obra
“realista”. Relembremos a seguinte afirmação: Nathalie Sarraute e Robbe-
Grillet contam-se entre os escritores mais radicalmente realistas da literatura
francesa contemporânea” (GOLDMANN, 1967, p. 195, grifo nosso) sendo que
realismo tem a ver com a captação da realidade essencial na definição trazida
por Goldmann a partir do próprio Robbe-Grillet: “Eu sou um escritor realista,
objetivo; crio um mundo imaginário que não julgo, que não aprovo, nem
condeno, mas cuja existência registro, como realidade essencial
(GOLDMANN, 1967, p. 191, grifo nosso). Como coloca Frederico (2005), isso
aparecerá de forma ainda mais evidente na produção pós-68 de Goldmann
9
.
Isso, no entanto, não resolve o problema, pois Goldmann acaba não explicando
por que essa visão crítica em relação à reificação (mesmo que não-intencional)
ocorre, que realmente nosso autor descarta aqui as classes sociais, dando
uma autonomia demasiada ao autor que conseguiria transpor diretamente a
“realidade” à obra literária.
Sem a presença de um sujeito criador transindividual (isto é, sem a
mediação da visão do mundo de determinada classe entre sociedade e
literatura), no fundo acaba havendo uma homologia direta entre estrutura
social (capitalismo) e o romance. Se essa homologia vai resultar numa visão
crítica à sociedade vigente, isso dependerá do realismo do autor (entendido tal
como apresentamos anteriormente). Toda essa discussão implica não apenas
uma visão mecanicista da criação literária nesse momento específico, como
9
Nesse momento, “O nouveau roman, portanto, não é mais interpretado como constatação da
reificação triunfante, mas sim como revolta. Mas essa literatura, ao contrário do realismo
crítico, encontra-se impossibilitada de elaborar uma história capaz de ser percebida de modo
imediato pelo leitor, que a realidade, sob a reificação, apresenta-se invertida” (FREDERICO,
2005, p. 442). Mas, como colocamos anteriormente, vemos essa característica do nouveau
roman já em Sociologia do romance, obra de 1964.
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também implica deixar de lado a dimensão histórica e utópica que era presente
no seu conceito de visão do mundo e de consciência possível. Nesse sentido,
poder-se-ia dizer que Goldmann recai naquilo que ele combate: a consciência
reificada, pois nosso autor não concebe mais as relações sociais e as múltiplas
determinações na criação literária, mas apenas as relações entre coisas, ou
melhor, entre estruturas. E mais: se há o triunfo da reificação, quais são então
as possibilidades de transformação social? E nesse aspecto Goldmann
realmente não é muito elucidativo, revelando uma brecha em sua teoria,
caindo em contradição também em relação à sua defesa de aposta numa
sociedade pós-revolucionária, anticapitalista.
Uma das características atribuídas ao pensamento de Goldmann é
justamente a centralidade que ele à historicidade (LÖWY, 1987; LÖWY;
NAÏR, 2008), o que significa conceber a história não apenas em relação ao
passado, mas também ao futuro. Ou seja, houve sempre em Goldmann uma
utopia que se direciona à comunidade humana autêntica, à superação do
capitalismo
10
. No entanto, essa dimensão da possibilidade da transformação
social parece se perder em Sociologia do romance. Löwy e Naïr (2008)
defendem que isso ocorreu devido ao contexto histórico no qual Goldmann
estava inserido, marcado por um refluxo das lutas operárias. De acordo com os
autores, os anos 1960 foram marcados por questionamentos, momento em que
nosso autor chega a defender um reformismo revolucionário.
Goldmann, contudo, revê sua posição após os acontecimentos em torno
do chamado “Maio de 1968”, chegando a participar das atividades deste
momento histórico: basta nos lembrarmos da atividade de Goldmann em
Maio de 1968, nos anfiteatros da Sorbonne ou na rua, ao lado dos
manifestantes, para concluir sobre o caráter revolucionário de suas
convicções” (LÖWY; NAÏR, 2008, p. 20). A partir desse momento, este autor
volta a considerar a revolução. No entanto, Goldmann falece no ano de 1970,
impossibilitando um maior desenvolvimento de seu pensamento.
O contexto sócio-histórico pode, evidentemente, ajudar a explicar as
motivações pelas quais Goldmann abandona a sua perspectiva de
transformação social, conformando-se com a ideia de “triunfo da reificação”.
No entanto, isso não tira o fato de que a obra Sociologia do romance apresenta
uma contradição que tem implicações teóricas importantes e por isso é
imprescindível questioná-las e criticá-las para então se avançar no
10
Goldmann estava longe [da Romênia]. Mas a visão do mundo e as categorias que ele
assimilou em Botoșani, especialmente aquelas do Ha-Shomer ha-Tsair (humanismo,
religiosidade secular, e socialismo vistos como a realização do individual-em-comunidade)
permaneceram com ele. Ou, mais precisamente, ele as reinventaria em várias formas durante
todos os trabalhos de sua vida, em sua insistência que uma “comunidade humana autêntica”
era a verdadeira preocupação do marxismo, e em sua crença de que o marxismo representava
uma aposta no futuro da humanidade semelhante à existência de Deus de Pascal.(COHEN,
1994, pp. 24-5)
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desenvolvimento de uma perspectiva mais rigorosa. A associação realizada
entre sociedade e literatura em Goldmann é necessária e traz elementos
interessantes, especialmente porque tem como fio condutor o fenômeno da
reificação, mas está longe de ser ausente de defeitos.
Considerações finais
Goldmann possui o mérito de conceber a literatura de um modo social,
apontando para uma perspectiva crítica na medida em que associa as mutações
do capitalismo e as consequentes diferenciações das manifestações literárias.
Demonstra-se como estes dois elementos são intrínsecos entre si. Além disso,
nosso autor também contribui para desmistificar a visão de arte sublime, como
se esta fosse completamente autônoma de qualquer esfera social. Apontar suas
contribuições, todavia, não significa isentá-lo de críticas.
Como vimos, uma das principais deficiências de sua concepção é que o
autor acaba recaindo naquilo que ele busca combater, a consciência reificada,
pois considera apenas as relações entre estruturas. Isso parece ser
consequência não apenas da sua inserção em uma sociedade marcada pelo
refluxo das lutas revolucionárias, como também de sua aderência parcial ao
estruturalismo (mesmo denominando-o de genético, isto é, histórico). Mas
isso já é assunto para um próximo texto.
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Como citar:
FERREIRA, Aline Cristina. As relações entre capitalismo e forma romanesca
em Lucien Goldmann. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 305-20 jul./dez. 2020.
Data do envio: 1 ago. 2020
Data do aceite: 20 out. 2020