DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.580
César Mortari Barreira
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Engels contra Marx? Do lógico/histórico aos níveis de abstração
César Mortari Barreira
1
Resumo: O presente artigo tem como objetivo problematizar as críticas ao
chamado “historicismo” de Engels. Ainda que este traga inúmeras dificuldades
para a compreensão da crítica da economia política, isso não deve encampar
um argumento de ruptura entre Marx e Engels. Na verdade, a análise das
edições de O capital levanta problemas igualmente “engelsianos”,
notadamente no exame do dinheiro. Ao invés de recolocar o clássico problema
da relação entre o lógico e o histórico, ambos são compreendidos como
diferentes níveis de abstração a partir dos quais pode-se construir uma teoria
marxista da sociedade.
Palavras-chaves: Engels; Marx; lógico; histórico.
Engels versus Marx? From logical/historical to abstraction levels
Abstract: This article aims to question the criticisms of Engels’ so-called
‘historicism’. Even if this poses some difficulties in understanding the critique
of political economy, this should not lead to an argument of rupture between
Marx and Engels. In fact, the analysis of Capital editions raises equally
Engelsian problems, notably in the examination of money. Instead of
replacing the classic problem of the relationship between the logical and
historical, both are understood as different levels of abstraction from which a
Marxist theory of society can be constructed.
Keywords: Engels; Marx; logical; historical.
Introdução
Duzentos anos após o nascimento de Friedrich Engels, as discussões
sobre o legado do autor ainda constituem um dos mais claros exemplos do
característico campo de batalha marxista. Das questões relacionadas à crítica
da economia política àquelas referentes à dialética da natureza, o valor de
Engels para o marxismo não poucas vezes é ceifado em duas alternativas: ou
1
Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Coordenador Científico do
Instituto Norberto Bobbio. E-mail: csarmbarreira@gmail.com.
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ele aparece como um verdadeiro detrator, como se suas reflexões
constituíssem uma degradação do desenvolvimento científico alcançado por
Marx; ou ele é apreciado como o cofundador do socialismo moderno, tendo
não apenas construído sua obra em perfeita harmonia com seu fiel amigo, mas
até mesmo desenvolvido o campo de reflexão deste.
Por isso mesmo, não chega a ser surpreendente a análise feita por
Christopher Arthur acerca do legado engelsiano cem anos após seu
falecimento. Naquele momento, era particularmente claro que a variedade
temática das contendas sequer encobria a rotineira interpretação de que Marx
seria “o bom moço”, restando a Engels o papel de “vilão” (ARTHUR, 1996, p.
xii). Essa constatação levanta a suspeita de que a recorrência da “controvérsia
Engels”
2
(BLACKLEDGE, 2019, p. 6) possa estar associada à existência de uma
motivação ideológica. Esta, por sua vez, seria a responsável por alimentar
“sentimentos mistos” que invertem argumentos científicos em insultos
pessoais. Nesse sentido, Kaan Kangal destaca uma estratégia argumentativa
bastante arriscada, em que as interpretações atuais sobre Engels são
projetadas a partir de um texto passado, estabelecendo uma forte distinção
entre as intenções do autor, seu texto e suas leituras subsequentes (KANGAL,
2020, p. 3).
É curioso notar que esse modus operandi esteja bastante distante do
esforço filológico que caracteriza a nova leitura de Marx
3
, notadamente a
partir da MEGA2. Nesta, o estudo minucioso tanto dos manuscritos marxianos
como de sua correspondência compõe um mosaico cada vez mais vasto que
aponta não só para a compreensão da obra de Marx “como um processo
atribulado de avanços e estagnação na compreensão /.../, de tomar partido e
recuar” (VOLLGRAF, 2018, p. 66), mas sobretudo para as chamadas
“ambivalências de Marx”
4
(HEINRICH, 2017, p. 198). Não seria possível,
2
Segundo Stephen Rigby, o argumento de que Engels teria distorcido as ideias de Marx
estava presente no final do século XIX (RIGBY, 1992, p. 4). Blackledge apresenta um resumo
detalhado dos embates logo na introdução de seu Friedrich Engels and modern social and
political theory (BLACKLEDGE, 2019, pp. 1-20).
3
A nova leitura de Marx [neue Marx-Lektüre] tem início na década de 1960, mais
precisamente nos anos de 1964 e 1965, no âmbito da Escola de Frankfurt, a partir do
desenvolvimento de um grupo de trabalho de alunos de Adorno. Com fulcro nos trabalhos de
Hans Georg Backhaus, Helmut Reichelt, Helmut Brentel e, mais recentemente, Michael
Heinrich e Nadja Rakowitz, entre outros, essa leitura tem como premissa a retomada da
forma-valor como eixo a partir do qual se movimentam as análises da sociedade capitalista.
Apesar das profundas divergências sobre o sentido das categorias marxianas, a defesa de uma
teoria monetária do valor e a ênfase no fetichismo do capital e não da mercadoria
constituem duas de suas principais contribuições. Para uma visão geral das inúmeras leituras
de Marx que passam a ser produzidas a partir da década de 1960, ver o livro Marx global
(HOFF, 2009, pp. 78-195).
4
Note-se que essa ambivalência não é atribuída a um erro ou a uma falta de precisão conceitual
(BRENTEL, 1989, p. 281). O argumento aqui é sensivelmente mais profundo. As
ambivalências são compreendidas como uma consequência de toda revolução científica que
tenta “criar uma nova disciplina teórica com base na crítica de um sistema de pensamento
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portanto, compreender a negação de Engels como negação da negação de Marx
enquanto centro de certeza para o marxismo?
Esse tipo de questionamento está relacionado à sugestiva “nova leitura
de Engels”
5
e serve como estímulo ao presente artigo. Após apresentar as raízes
e desdobramentos da “leitura histórica” de O capital, exporei a influente
contraposição entre o “lógico” (Marx) e o histórico(Engels), formulada por
Backhaus a partir da análise do conceito engelsiano de “produção simples de
mercadorias”, destacando os deslocamentos que a posição Engels sofre nesse
processo. Logo após, demonstrarei como a confusão lógico-histórica pode ser
encontrada no próprio Marx. Minha hipótese é que o reconhecimento desses
déficits comuns atesta tanto a infertilidade da distinção lógico/histórico como
a necessidade de incorporar a problemática dos níveis de abstração como
requisito para a construção de uma teoria marxista da sociedade.
1. Engels contra Marx: apontamentos sobre a “leitura histórica”
é comum na literatura marxista observar uma série de comentários
a respeito da “leitura historicista de Marx” (SOTIROPOULOS; MILIOS;
LAPATSIORAS, 2013, p. 46). De modo geral, a narrativa de que o Livro I de O
capital seria um “trabalho essencialmente histórico” (KAUTSKY, 1887, p. IX)
decorre de uma interpretação bastante específica do sentido da crítica da
economia política, notadamente da Seção I do Livro I. É a partir de uma
resenha de Engels ao livro Para à crítica da economia política (1859) que a
crítica marxiana passa a ser interpretada a partir do “método lógico-histórico”,
isto é, como uma apresentação do processo de desenvolvimento histórico do
capitalismo.
Nesse texto, Engels inicialmente salienta que o método dialético
utilizado por Marx permitiria “fazer a crítica da economia de duas maneiras: a
histórica e a lógica” (MEGA, II. 2, p. 252). No entanto, uma vez que o
desenvolvimento histórico frequentemente passa por “saltos e ziguezagues”,
então seu tratamento lógico pareceria ser a única alternativa. Ainda assim,
Engels sustenta que “isto [a abordagem lógica CMB], no entanto, não é na
verdade nada mais que o [método CMB] histórico, apenas despojado da
forma histórica e das irritantes contingências”, de tal modo que “lá onde
começa essa história deve começar também o processo de reflexão (MEGA,
II. 2, p. 253 destaque meu). Além disso, Engels compreende que o
estabelecido” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS, 2013, p. 46). Por isso Heinrich
argumenta que o seu próprio desenvolvimento categorial [de Marx CMB] permanece
ambivalente em pontos decisivos” (HEINRICH, 2017, p. 17 destaque no original).
5
O termo [neue Engels-Lektüre] é utilizado por Kangal logo na introdução de seu Friedrich
Engels and the dialectics of Nature, em clara referência à “nova leitura de Marx (KANGAL,
2020, p. 1).
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desenvolvimento conceitual nada mais seria do que “a imagem refletida, de
forma abstrata e teoricamente consequente do desenvolvimento histórico”.
Assim, “neste método, partimos da primeira e mais simples relação que temos
historicamente, factualmente; aqui, portanto, da primeira relação econômica
que encontramos. Depois, procedemos à sua análise (MEGA, II. 2, p. 253
destaque meu).
O mesmo tipo de entendimento aparece em Lei do valor e taxa de lucro
(1895). Mais do que apenas reafirmar essa abordagem histórica, nesse escrito
Engels faz uma interpretação da teoria marxiana do valor que será
particularmente influente nas análises marxistas do século XX. Em um
primeiro momento ao comentar a interpretação de Werner Sombart do
sistema marxiano , Engels parece não apresentar nada particularmente novo.
Ele resume os pontos principais da compreensão da teoria do valor,
destacando que “o valor das mercadorias é a forma histórica específica em que
se impõe, de maneira determinante, a força produtiva do trabalho, a qual, em
último caso, rege todos os processos econômicos” (MEGA, II. 14, p. 328).
Em que pese salientar que “não se pode dizer que esteja incorreta essa
concepção da importância da lei do valor para a forma de produção
capitalista”, Engels destaca: “porém, parece-me que sua formulação é
demasiadamente ampla, suscetível de uma formulação mais restrita, mais
precisa” (MEGA, II. 14, p. 328 destaque meu). Por isso, logo após a lei do
valor é apresentada “em maiores detalhes”. Engels enfatiza que a produção
de mercadorias se desenvolveu a partir da determinação do valor pelo tempo
de trabalho, algo que inclui “múltiplas relações em que se afirmam os
diferentes aspectos da lei do valor, tal como expostos na seção I do Livro I de
O capital (MEGA, II. 14, p. 332). Consequentemente, são as condições
presentes nessas múltiplas relações que afetam a forma-valor. E Engels de fato
destaca que essas condições parecem naturais, de tal modo que elas “se
impõem sem que os participantes tomem consciência delas e podem ser
abstraídas da prática cotidiana por meio de uma longa investigação teórica”
(MEGA, II, 14, p. 332).
No entanto, um acontecimento histórico “o progresso mais
significativo e decisivo” é apresentado como o principal responsável por
alterar substancialmente as referidas condições, qual seja “a transição para o
dinheiro metálico” (MEGA, II. 14, p. 332). Este seria o responsável por fazer
com que a determinação do valor pelo tempo de trabalho não mais aparecesse
de forma visível na superfície da troca de mercadorias. Esta demarcação
histórica separa dois períodos, aquele anterior ao dinheiro metálico,
denominado por Engels “produção simples de mercadorias” [einfache
Warenproduktion] ou “produção mercantil”, e o período capitalista
propriamente dito, atual, de tal modo que a Seção I do Livro I de O capital e
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sua análise da forma-valor pertenceriam tão somente ao primeiro período
6
. E
é exatamente isso que Engels sustenta no Prefácio ao Livro III, ao dizer que,
no início de sua crítica da economia política, Marx “toma como ponto de
partida a produção simples de mercadorias como seu pressuposto histórico
para, então, avançar desde essa base até o capital” (MEGA, II. 15, p. 16
destaque meu). Vale ressaltar a questão acerca da validade da lei do valor nas
palavras do próprio Engels:
[A] lei marxiana do valor tem validade geral, desde que as leis
econômicas valham para todo o período da produção simples de
mercadorias, portanto, até o tempo em que esta experimenta uma
modificação por meio da introdução da forma de produção
capitalista /.../. Assim, a lei marxiana do valor tem validade
econômica geral para um período que vai desde os primórdios da
troca que transforma os produtos em mercadorias até o século XV
de nossa era. No entanto, a troca de mercadorias tem origem numa
época anterior a toda a história escrita; numa época que, no Egito,
remonta a pelo menos 3.500, talvez 5.000, e na Babilônia, a 4.000,
talvez 6.000 anos antes de nossa era; portanto, a lei do valor
vigorou por um período de cinco a sete milênios (MEGA, II. 14, p.
333 destaque meu).
A influência dessa interpretação foi gigantesca
7
no desenvolvimento das
correntes marxistas. Note-se, por exemplo, a própria compreensão de W. I.
Lênin a respeito da obra marxiana. Se em As três fontes e as três partes
constitutivas do marxismo (1913) é dito que “Marx traçou o desenvolvimento
do capitalismo desde os primeiros germes da economia mercantil /.../ até às
suas formas superiores, até à grande produção” (LW, 19, p. 07), no texto Karl
Marx (1915) a principal obra de Marx é vista como um estudo que apresenta o
modo de produção capitalista “em sua emergência, desenvolvimento e
decadência” (LW, 21, p. 48).
Aqui sobressai uma compreensão empírica das categorias da crítica da
economia política. Desse modo, a forma-valor teria como objeto “a origem da
forma-dinheiro do valor, o estudo do processo histórico do desenvolvimento
da troca, dos atos de troca particulares e fortuitos /.../ até a forma geral do
valor” (LW, 21, p. 49 destaque no original). Na mesma linha encontra-se
6
Após a publicação do Livro III, o falecido Marx era alvo da crítica de que a lei do valor
exposta no Livro I teria sido abandonada a favor das determinações dos preços de produção.
Daí o argumento de Conrad Schmidt de que o valor seria apenas uma “ficção”, uma mera
“hipótese científica”. A saída encontrada por Engels para defender Marx foi justamente
salientar que toda a temática não era apenas lógica, mas histórica. O “dinheiro metálico” seria
o responsável tanto por invisibilizar a teoria do valor como por trazer à luz os preços de
produção como critério de avaliação.
7
Trata-se daquilo que Ingo Elbe denomina Engelsianismo: “os escritos de Engels – ainda que
conceitos como ‘marxismo’ ou ‘materialismo dialético’ não se encontrassem neles
forneceram para gerações inteiras de leitores, marxistas e antimarxistas, o modelo
interpretativo através do qual a obra de Marx foi apreendida” (ELBE, 2010, p. 14).
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Ernest Mandel, para quem, sem a produção simples de mercadorias, nenhum
capitalismo poderia começar a existir, razão pela qual O capital, os
Grundrisse e outros textos econômicos básicos de Karl Marx incluem muitas
análises da produção simples de mercadoria” (MANDEL, 1976, p. 14
destaque meu)
8
.
No mesmo contexto, são igualmente sintomáticas as palavras de Ronald
Meek. Adepto da leitura histórica do valor, ele sustenta que a postulação de
Marx de uma sociedade abstrata pré-capitalista baseada no que ele chamou
de produção simples’ de mercadorias não era essencialmente diferente da
postulação de Adam Smith sobre uma sociedade ‘precoce e rude’ habitada por
caçadores de veados e castores” (MEEK, 1973, p. 303 destaque meu)
9
. De
todo modo, na produção simples de mercadorias a lei do valor operava de
modo a tornar as relações de troca equivalentes às taxas de trabalho
incorporadas” (MEEK, 1973, p. 156).
É verdade que não deixam de existir diferenças entre esses autores, aqui
brevemente retratados. Se em Engels a lei do valor existiu em uma etapa
anterior ao capitalismo, no período da “produção simples de mercadorias”’ ou
“produção mercantil”, em Meek ela é vista como um primeiro “modelo geral”,
uma “primeira aproximação” que seria especificada e aprofundada
gradativamente (MEEK, 1973, p. 180). Ainda assim, o interesse por trás dessa
concisa retomada da interpretação de Engels acerca do objeto da Seção I do
Livro I é destacar de que modo ela pavimenta o caminho para as análises que
compreendem a crítica da economia política como a análise da gênese histórica
do capitalismo
10
.
Como se sabe, Marx diz, na Introdução de 1857, que “seria, além de
impossível, falso ordenar as categorias econômicas na sucessão em que foram
historicamente determinantes”. Consequentemente, não apenas sua ordem
seria determinada pela relação que elas mantêm entre si, na sociedade
burguesa moderna”, como isso seria o “o inverso do que parece ser a sua ordem
natural ou a correspondente sucessão do desenvolvimento histórico” (MEGA,
II. 1.1, p. 42). Daí a assertiva em O capital de que a lei do valor “só se
8
Note-se, no entanto, que nenhuma referência textual é dada ao leitor. Como destacado mais
adiante, isso ocorre porque a categoria “produção simples de mercadoria” simplesmente
nunca foi utilizada por Marx.
9
Salientando quão complexa era uma análise desse tipo para fins de compreensão da
sociedade capitalista, Meek chega mesmo a classificar esse estudo como uma “mitodologia”
[mythodology] (MEEK, 1973, p. 304).
10
O exemplo mais sintomático possivelmente está em Wolfgang Fritz Haug. Em sua “décima
preleção” introdutória sobre O capital, Haug chega mesmo a dizer, em defesa da perspectiva
trans-histórica da teoria do valor, que nada se altera desde os tempos de Homero, ou desde
milênios antes dos mesmos, ainda que o seu estatuto social [da forma valor CMB], bem
como o estatuto das formas que se vão edificando em cima dela, com destaque para a forma
do preço, passem por metamorfoses enormes” (HAUG, 2005, p. 152 destaque meu).
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desenvolve livremente com base na produção capitalista(MEGA, II. 6, p. 499
destaque meu).
Polêmicas à parte, as diferenças entre Marx e Engels não devem ser
subestimadas, algo que pode ser observado pela comparação entre o
manuscrito do Livro III (publicado pela MEGA2 em 1992) e o Livro III tal
como editado por Engels (1894). Marx, por exemplo, não deixa dúvidas de que,
“no caso das categorias mais simples do modo de produção capitalista, da
mercadoria e dinheiro, nós salientamos o caráter mistificador (MEGA, II.
4.2, pp. 848-9 destaque meu). No entanto, em seu processo de edição, Engels
altera o sentido da frase ao acrescentar e demarcar a análise da mercadoria e
do dinheiro à produção mercantil, isto é, à “produção simples de mercadorias”:
“no caso das categorias mais simples do modo de produção capitalista, e
mesmo da produção mercantil, ao examinar a mercadoria e o dinheiro, nós já
salientamos o caráter mistificador (MEW, 25, p. 835 destaque meu)
11
.
Note-se que, a partir dessa linha de raciocínio, mercadorias e dinheiro
já não são mais as categorias mais simples do modo de produção capitalista,
mas da produção mercantil. Como destaca Brentel, Engels entende a lei do
valor da referida “produção simples de mercadorias” no sentido de um
comércio de permuta realmente pré-monetário, em que os atos de troca são
mais ou menos diretamente orientados pela quantidade de trabalho”
(BRENTEL, 1989, p. 144). Por isso mesmo, não é mera casualidade que, ao
deslocar a forma-valor para o período pré-capitalista, esse tipo de leitura
apareça como o principal adversário de Backhaus em sua tentativa de
reconstrução da crítica da economia política.
Ainda assim, o “historicismo” de Engels não constitui a única fonte que
alimenta as reflexões do aluno de Adorno. Diante das exposições mais ou
menos fragmentárias de Marx e das variações na exposição da forma-valor
12
,
Backhaus não hesita dizer: resta, portanto, um desideratum urgente da
pesquisa marxista em reconstruir por inteiro a teoria do valor (BACKHAUS,
11
Naturalmente, existem outros exemplos da interpretação histórica de Engels. Em Anti-
Dühring, após citar a famosa referência acerca da inversão das leis de propriedade que regem
a produção de mercadorias em leis da apropriação capitalista “a lei da apropriação ou lei da
propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se,
obedecendo sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto” (MEGA, II. 6, p.
538) –, Engels sustenta que essa “fase” corresponde à “história do desenvolvimento da
burguesia” (ENGELS, 2015, p. 192).
12
Existem seis exposições da forma-valor, todas diferentes entre si: (i) a primeira, tal como
aparece em Para a crítica da economia política (1859); (ii) a segunda, na primeira edição do
Livro I de O capital (1867); (iii) a terceira, na versão popularizada, incluída como anexo à
primeira edição do Livro I; (iv) a quarta, igualmente divergente das anteriores, na segunda
edição do Livro I de O capital (1872); (v) uma quinta exposição na tradução francesa do Livro
I, revisada e corrigida pelo próprio Marx e (vi) a sexta, tal como aparece na autocrítica feita
em Complementos e alterações à primeira edição, texto publicado pela primeira vez em 1987.
Daí a enorme importância da hercúlea organização e nova redação do Livro I a partir dessas
diferenças, feita por Thomas Kuczynski (2017).
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1997, p. 42 destaque meu). Este é o solo em que a distinção entre a “leitura
lógica” e a “leitura histórica” se enraizará.
2. Marx contra Marx: o canto do cisne da reconstrução categorial
Em se tratando dos debates que ocorreram em solo alemão na década
de 1970, a assim chamada “reconstrução da crítica da economia política”
possui um sentido bastante preciso. Trata-se do pressuposto de que entre os
diversos textos de Marx existiria um discurso unitário e correto que, por sua
vez, permitiria uma reconstrução apta a tanto afastar as interpretações
equivocadas da teoria marxiana como reverter seu processo de popularização
(HEINRICH, 2017, p. 16). Essa hipótese tem como corolário a expectativa de
que O capital seria a “obra final”, isto é, como se os manuscritos que compõem
o projeto da crítica da economia política seguissem uma linha qualitativa
ascendente entre os textos marxianos que culminasse na melhor e definitiva
versão.
De modo geral, a principal referência dessa notória e recorrente
expectativa remete aos trabalhos de Backhaus, notadamente em Dialética da
forma-valor (1997), livro que reúne artigos que apresentam e desenvolvem o
projeto de pesquisa do autor
13
. Como salientado, o principal adversário da
“leitura lógica” era a leitura historicista da crítica da economia política
efetuada por Engels, principalmente no que diz respeito à tese da “produção
simples de mercadorias”. Por tal razão, o importante aqui não é expor uma
análise detalhada da obra de Backhaus, mas enfatizar como a mudança de
postura desse autor em relação aos estudos históricos e, consequentemente,
uma reavaliação da contribuição de Engels abre portas para a compreensão
dos diversos níveis de abstração que compõem o estudo da reprodução social
capitalista e seus respectivos limites, uma abertura que, como será destacado,
não se deixa entrincheirar pela oposição lógico ou histórico.
Considere-se, primeiramente, o texto Para a dialética da forma-valor
(1969). Nele Backhaus faz uma espécie de apresentação de seu programa de
pesquisa, tendo como ponto de partida uma análise da recepção da crítica da
economia política em diversos autores. Nesse momento é salientando como a
teoria marxiana do valor é geralmente distorcida na mera “enumeração de
hipóteses sociológicas e econômicas” (BACKHAUS, 1997, p. 41), algo
13
O desenvolvimento das reflexões de Backhaus parte de sua leitura, por volta de 1963, da
primeira edição (1867) de O capital, na biblioteca de Hermann Brill, um político social-
democrata que falecera alguns antes. Segundo Hoff, o texto era raramente conhecido naquele
período, pelo menos na Alemanha Ocidental. As consequências da leitura em especial, as
diferenças na exposição da forma-valor constituíram uma espécie de guia para a elaboração
conceitual de Backhaus (HOFF, 2009, p. 83).
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intimamente associado aos ficits de compreensão da forma-valor no
marxismo então hegemônico. No entanto,
[A] recepção inadequada da análise da forma de valor não pode ser
atribuída apenas a uma certa cegueira problemática dos intérpretes.
A inadequação de suas representações provavelmente pode ser
entendida partindo da suposição de que Marx não deixou para trás
uma versão completa de sua teoria do valor-trabalho (BACKHAUS,
1997, p. 42).
Backhaus refere-se à existência das já mencionadas diferenças na
exposição da forma-valor, o que traria a “necessidade urgente” de reconstruir
totalmente a teoria do valor (BACKHAUS, 1997, p. 42). Com isso ele esperava
destrinchar a contribuição da análise da forma-valor para a teoria marxiana da
sociedade a partir de três aspectos: ela seria (i) a interface entre sociologia e
teoria econômica para a construção de uma teoria da sociedade; (ii) a base para
uma crítica da ideologia e a para a construção de uma teoria específica do
dinheiro; e (iii) a premissa para se compreenderem as relações entre as
relações de produção e a “superestrutura” no âmbito de uma teoria da
sociedade (BACKHAUS, 1997, p. 57).
Mas é a partir da década de 1970 que Backhaus aprofunda essas
questões. Entre 1974 e 1997 aparecem os famosos Materiais para a
reconstrução da teoria marxiana do valor, divididos em quatro partes
primeira (1974), segunda (1975), terceira (1978) e quarta (1997). As duas
primeiras possuem uma narrativa comum, qual seja, a construção de um
discurso crítico tanto a Engels como ao marxismo que o sucedeu. Assim, na
Primeira parte Backhaus inicia suas considerações analisando algumas
críticas feitas à teoria do valor de Marx, para então salientar que a literatura
marxista “não era de modo algum capaz de refutar convincentemente todas as
objeções do outro lado; ela mesma não está livre de graves deficiências de
interpretação(BACKHAUS, 1997, p. 69 destaque meu). E qual seria a razão
dessa “grave deficiência”?
Segundo Backhaus, isso estava intimamente associado ao “erro
fundamental” de Engels ao interpretar equivocadamente os três primeiros
capítulos de O capital nos termos de uma produção simples de mercadorias”,
tal como destacado no item anterior. Consequentemente, ao seguir essa
interpretação, “a teoria marxista do valor teve que bloquear a compreensão da
teoria marxiana do valor” (BACKHAUS, 1997, p. 69 destaques no original).
Isso teve como consequência primária a formação de um cenário em que
atuam as distintas versões da análise da forma-valor e os mais diversos erros
interpretativos, de tal modo que “os estudiosos marxistas se viram incapazes
de definir o significado de seus próprios conceitos básicos da teoria do valor de
uma maneira universalmente vinculante” (BACKHAUS, 1997, p. 72). Desse
modo, não chega a ser surpreendente que Backhaus resuma a contribuição da
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teoria marxista do valor ressaltando uma vez mais a diferença entre Marx e
marxistas:
A teoria marxista do valor ficou presa ao terreno da teoria pré-
marxiana, e sua estrutura conceitual poderia ser definida como uma
versão apenas terminologicamente nova da teoria do valor-trabalho
dos ricardianos de esquerda (BACKHAUS, 1997, p. 74 destaque
no original).
Esse tipo de compreensão traz uma consequência importante, qual seja,
a expectativa de que “o texto de Marx é, em si mesmo, incompreensível e, na
melhor das hipóteses, acessível somente à filologia especializada de Marx
(BACKHAUS, 1997, p. 70 destaque meu). Assim, a ênfase nos erros da
tradição marxista vinculada a Engels e o destaque à reconstrução filológica do
núcleo da crítica da economia política denotam um pressuposto fundamental:
a existência de um discurso correto e coerente no texto marxiano, como
indicado, acessível somente a especialistas.
Ora, este é justamente o principal objeto da Segunda parte, que tem
início destacando como as teorias marxistas do valor possuem uma “afinidade
estrutural” com as teorias subjetivas do valor. E qual seria essa afinidade?
Segundo Backhaus, ambas ignoram a conexão entre forma-valor e dinheiro e,
portanto, constituem “teorias pré-monetárias do valor” em que “a indiferença
à teoria monetária e à forma não-dialética do desenvolvimento conceitual o
basicamente apenas dois aspectos da mesma coisa (BACKHAUS, 1997, p. 93).
É a partir deste momento que Backhaus passa a enfatizar o caráter monetário
da teoria marxiana do valor, no preciso sentido de que a crítica da economia
política deveria ser entendida como uma crítica a todas as abordagens pré-
monetárias (BACKHAUS, 1997, p. 94). Daí a retomada do argumento de que o
“núcleo racional” da teoria marxista do valor seria uma “variante determinada
da teoria do valor dos ricardianos de esquerda” (BACKHAUS, 1997, p. 94).
Backhaus procura justificar esse argumento salientando que a “função
do valor” teria sido reduzida à mera regulação da relação de troca entre
mercadorias. Consequentemente, “para a apresentação do conceito de valor,
parece ser completamente irrelevante se os valores são expressos como preços
monetários e se a troca é mediada pelo dinheiro ou não” (BACKHAUS, 1997,
p. 95). Assim, ainda que os adeptos da teoria da produção simples de
mercadorias” façam uso de conceitos dialéticos, Backhaus não nisso mais
do que uma mera “construção verbalmente dialética” (BACKHAUS, 1997, p.
97) que substitui a derivação conceitual do dinheiro por uma hipótese histórica
acerca de seu surgimento.
Daí sua insistência na tese de que o material histórico poderia ser
compreendido e ordenado pela lógica. Mas o só, já que o autor chega a dizer
que “se as interpretações de Engels fossem seguidas, as montanhas da dialética
de Marx teriam dado à luz a nada mais do que um rato” (BACKHAUS, 1997, p.
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120
112 destaque meu)
14
. Portanto, não chega a ser surpreendente a suspeita
levantada por Backhaus de que Engels possivelmente não tenha compreendido
adequadamente o sentido da exposição dialética marxiana das categorias da
crítica da economia política (BACKHAUS, 1997, p. 113).
No entanto, o que realmente chama a atenção é a mudança de postura
observada na Terceira parte de suas reflexões acerca da alegada “necessidade
urgente” de reconstrução da teoria marxiana do valor. Aqui Backhaus informa
ao leitor que tomou conhecimento de algumas passagens de Marx e Engels que
não se enquadravam nem lógica, nem historicamente, o que trouxe uma vez
mais a problemática da primazia de uma ou outra abordagem (BACKHAUS,
1997, p. 131). Diferentemente de momentos anteriores, agora Backhaus admite
que existe “uma incerteza da parte de Marx sobre a origem e validade dos
termos que ele usa”. Consequentemente, seria necessário “rever
fundamentalmente o conceito de ‘reconstrução’ subjacente às duas primeiras
partes dos Materiais” (BACKHAUS, 1997, p. 132 – destaque meu).
Isso significa que há uma alteração na “imputação” dos chamados erros
de interpretação. Se antes Backhaus advogava pela existência de uma leitura
correta da obra marxiana, algo que seria obtido pela reconstrução lógica da
apresentação categorial, agora é o próprio estatuto da crítica da economia
política que é questionado. Uma vez constatada uma “certa incerteza” em Marx
ou seja, a não clareza quanto ao caráter lógico ou histórico de determinadas
passagens , então os equívocos interpretativos têm origem no próprio Marx:
[À] luz das passagens anteriormente ignoradas no texto, esta
interpretação lógica revelou-se uma simplificação injustificável
do problema da apresentação /.../. O conteúdo teórico crítico e
monetário forma apenas um componente da teoria do valor de
Marx, de modo que a peculiaridade problemática dessa teoria do
valor é compreendida quando se mantém um olho no
componente oposto, sua intenção histórico-lógica. Apenas o
reconhecimento de certas ambiguidades [Zweideutigkeiten]
transmite uma imagem adequada da teoria marxiana do valor
(BACKHAUS, 1997, p. 133 destaque meu).
Note-se bem: aquilo que constituía a forma de descobrimento do
discurso correto e coerente de Marx aparece agora como uma “simplificação
injustificável”. Mais que isso, que Backhaus também aponta a necessidade
de se reconhecerem as “ambiguidades”
15
de Marx. Ora, as consequências desse
tipo de posicionamento afetam profundamente o conteúdo das Partes I e II dos
Materiais, algo que não passa despercebido pelo próprio autor.
14
Backhaus faz referência aqui à expressão de Horácio: parturiente montes, nascetur mus,
isto é, “a montanha pariu um rato”, utilizada para descrever situações em que o resultado
esperado é decepcionante frente à expectativa criada.
15
É importante não confundir a tese das “ambiguidades” (Backhaus) com a tese das
“ambivalências” (Heinrich).
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Com isso se compreende o argumento de que a interpretação lógica
poderia negar a interpretação histórica, mas que esta também poderia negar
aquela. Assim, o impasse entre esses dois modelos interpretativos deveria ser
entendido “como uma indicação de que o problema metodologicamente tão
importante da interpretação ‘lógica’ e ‘histórica’ foi resolvido de forma instável
pelo próprio Marx(BACKHAUS, 1997, p. 136 – destaque meu). Isso significa
uma mudança radical de postura frente às primeiras considerações
apresentadas nas páginas anteriores, o que pode ser observável pela própria
advertência feita por Backhaus: se a interpretação lógica de O capital ignorasse
as referidas “ambiguidades”, ela correria o risco de se tornar uma “nova
ortodoxia”, um “novo dogmatismo de uma filologia marxiana” em que o texto
marxiano seria considerado “sacrossanto” (BACKHAUS, 1997, p. 138).
Como se vê, o canto do cisne da tentativa de reconstrução filológica
constitui um verdadeiro réquiem para a distinção entre “lógico” ou “histórico”
como chave de leitura da crítica da economia política. Consequentemente,
percebe-se como Engels já não é mais o “rato”, ao mesmo tempo em que Marx
não aparece como a “montanha”. Tal como destacado por Backhaus, o
próprio texto marxiano motivos para argumentar com Marx contra
qualquer interpretação marxista e, finalmente, também com Marx contra
Marx” (BACKHAUS, 1997, p. 139 – destaque meu).
Se assim for e isto é fundamental para a problemática construída ao
longo deste artigo , então cai por terra a possibilidade de toda e qualquer
reconstrução da forma-valor e sua verve anti-Engels, algo que Backhaus
também admite. Primeiramente, salientando que o principal problema em
Marx já não seria o da “variabilidade” e dos “erros de exposição”, mas a
manifestação destes como “problemas objetivos insuficientemente resolvidos,
defeitos da análise material” (BACKHAUS, 1997, p. 144). E, em segundo lugar,
sustentando que Marx se viu incapaz de articular de modo suficientemente
claro e distinto sua própria descoberta por meio dos conceitos econômico-
filosóficos por ele utilizados, os quais pertenciam a diferentes modelos
teóricos” (BACKHAUS, 1997, p. 144).
Diante dessas novas reflexões, quais seriam as consequências desse giro
compreensivo para o embate entre Marx e Engels? Se a expectativa inicial
acreditava poder desvendar um discurso correto e coerente da obra marxiana
a partir dessas determinações formais, seria o reconhecimento da importância
da leitura histórica um aceite da historização da forma-valor? Seria correto, tal
como postula Engels, considerar que “a lei do valor vigorou por um período de
cinco a sete milênios” (MEGA, II, 14, p. 333 – destaque meu)?
Em hipótese alguma. A contribuição da leitura “lógica” está justamente
na crítica à tese da “produção simples de mercadorias”, revelando com isso o
amálgama existente entre valor, forma-valor e dinheiro no capitalismo.
Mesmo Blackledge concorda com os críticos dentre os quais se destacam,
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além de Backhaus, Arthur e Heinrich –, afirmando que Engels “entendeu
muito mal a teoria do valor de Marx de uma forma que teve implicações
teóricas e políticas profundamente deletérias para o marxismo do século XX”
(BLACKLEDGE, 2019, p. 166).
Ainda assim, é indisputável a limitação e a reavaliação do projeto
originário de Backhaus. Se a análise da forma-valor continua fundamental, ela
perde o estatuto de centro de gravidade a partir do qual todas as questões
subjacentes à crítica da economia política poderiam ser resolvidas. Por essa
razão, Backhaus agora admite que o próprio Marx mescla análises lógicas e
históricas. Portanto, esses novos problemas [referentes à contribuição dos
estudos históricos CMB] estão em condição de relativizar a reconstrução
‘lógica’ da teoria do valor, transformando-a em uma interpretação”
(BACKHAUS, 1997, p. 155 destaque no original). Neste movimento da
“reconstrução” à “interpretação” , Backhaus chega mesmo a dizer, em uma
nota de rodapé particularmente importante, que suas reflexões de 1969
quando destacava a “necessidade urgente de reconstruir por inteiro a teoria do
valor” (BACKHAUS, 1997, p. 42) nada mais seriam do que a manifestação de
uma “pretensão ingênua” (BACKHAUS, 1997, p. 220, n. 32 – destaque meu).
De todo modo, diante da própria mudança de postura de Backhaus, a
Quarta parte dos Materiais tenta desvendar a possível conexão entre as
leituras lógicas e históricas. Aqui entra em cena um exame minucioso não
das edições de O capital, mas também dos Grundrisse e de Para a crítica da
economia política. Se o “Rascunho” de 1857-8 e a primeira edição (1867) de O
capital jogariam a favor de uma interpretação lógica, o prefácio do texto de
1859 e a segunda edição (1872) de O capital encampariam uma interpretação
histórica. Assim, essa análise teria como condão provar que “em Marx e Engels
o ‘lógico’ e o ‘histórico’ se combinam de diferentes maneiras” (BACKHAUS,
1997, p. 229). Essa “combinação”, no entanto, nada diz acerca da pergunta:
como se relacionam o lógico e o histórico na exposição categorial dialética?
Backhaus não consegue encaminhar uma resposta satisfatória a essa
questão, mesmo após percorrer inúmeros textos de Marx e Engels. Ele até
considera a hipótese de que a história não seria uma mera “ilustração” do
desenvolvimento categorial dialético, mas uma “prova” deste, para logo então
descartar essa possibilidade (BACKHAUS, 1997, pp. 258-9). Não por acaso,
após idas e vindas, Backhaus observa a conexão entre “lógica” e “história
como um problema irresolúvel da construção marxiana da teoria do valor”,
em que as distintas versões deixadas por Marx manifestariam sempre novas
tentativas de estabelecer alguma relação lógico-histórica (BACKHAUS, 1997,
p. 297 destaque meu). Aparentemente, então, o projeto inicial de reconstruir
a teoria marxiana do valor pela correta interpretação da forma-valor
desemboca num beco sem saída. Tendo reconhecido a importância da análise
da forma-valor para uma crítica das teorias pré-monetárias do valor, a
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discussão sobre a conexão entre crítica da economia política e teoria da
sociedade tão cara a Backhaus em seus primeiros escritos parece ter seu
desenvolvimento interrompido.
Ocorre que as coisas não são tão simples. De fato, Backhaus termina
suas reflexões salientando como as críticas de Marx a Smith a respeito da
confusão entre desenvolvimento categorial e histórico podem ser
direcionadas ao próprio Marx, de tal modo que a construção de uma teoria
social a partir deste resta profundamente prejudicada. Mas o último parágrafo
da Parte IV também esboça uma saída. Diante de todas as reflexões que
marcam o percurso dos Materiais para uma reconstrução da teoria marxiana
do valor, notadamente a reconsideração dos estudos históricos, Backhaus
agora diz: “isto implica a necessidade de uma reconstrução crítica
(BACKHAUS, 1997, p. 297 destaque meu). Mas qual seria o sentido desta
nova reconstrução?
Somente uma frase a mais é apresentada por Backhaus até o término do
livro, onde se lê: “isso só pode significar que a teoria de Marx é ‘decomposta e
recomposta em uma nova forma para que possa assim atingir o fim que ela
mesma se pôs’” (BACKHAUS, 1997, p. 297). Assim, essa nova reconstrução
crítica implicaria desmontar e refazer a crítica da economia política, não mais
a partir de uma crítica imanente tal como desenvolvida pela apresentação
categorial das determinações formais do modo de produção capitalista , mas
a partir de uma aproximação à intersubjetividade como critério normativo.
Isso porque o trecho citado por Backhaus “desmontada e refeita em uma
nova forma para melhor atingir o objetivo que estabeleceu para si mesma”
vem de Para a reconstrução do materialismo histórico, escrito por Jrgen
Habermas
16
em 1976 (BACKHAUS, 1997, p. 298).
Ora, os impasses decorrentes da tentativa de Backhaus de reconstruir a
análise da forma-valor parecem constituir uma espécie de “Cavalo de Tróiado
chamado “giro antiprodutivista da teoria social” (GONÇALVES, 2014),
caracterizado sobretudo pelo retorno do idealismo. Por isso mesmo, é
fundamental apontar os dois pontos principais que constituem o principal
legado da reflexão iniciada pelo aluno de Adorno. O primeiro tem como base
as duas primeiras partes dos Materiais, intimamente associadas à ênfase na
conexão interna entre a teoria do valor e a teoria do dinheiro. Isso significa a
compreensão da crítica da economia política como uma crítica das teorias pré-
monetárias do valor, sejam elas marxistas ou não. O segundo ponto, por sua
16
Como destaca Habermas já no início de suas reflexões: “a falta de clareza imperou desde o
início sobre os fundamentos normativos da teoria social de Marx /.../. As melodias do
socialismo ético foram tocadas sem êxito até o fim: uma ética filosófica que não se limita a
enunciados metaéticos pode encontrar lugar ainda hoje se conseguir reconstruir os
pressupostos e procedimentos comunicativos universais de justificação de normas e valores
(HABERMAS, 2016, p. 28 destaque meu).
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vez, decorre da guinada compreensiva presente nas duas últimas partes dos
Materiais. Se a análise da forma-valor, apesar de permanecer fundamental, já
não pode ser vista como o centro a partir do qual gira uma reconstrução da
obra marxiana, isso significa que ela mesma constitui somente um nível de
abstração da crítica da economia política, distinto, por exemplo, do estudo
histórico de uma sociedade capitalista em particular.
Consequentemente, a possibilidade de uma saída normativa uma
abertura posta pelo próprio Backhaus, ainda que ele mesmo não a siga está
longe de ser uma necessidade. Pelo contrário, não se trata aqui de desmontar
a crítica da economia política em virtude do “problema insolúvel” acerca da
relação entre o lógico e o histórico, mas de delimitar seus respectivos âmbitos
de problematização e sua conexão em uma ciência integrada da reprodução
social capitalista. Nesse sentido, a análise da forma-valor e seu
desenvolvimento conceitual até as formas mais concretas podem ser
compreendidos como manifestação da crítica da economia política em sua
“média ideal” (MEGA, II. 4.2, p. 853), tal como colocado por Marx no Livro
III
17
.
Mas não só. Como o próprio Marx destacava nos Grundrisse, “o nosso
método indica os pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida”
(MEGA, II. 1.2, p. 369). No entanto, não se trata apenas de uma indicação,
que no Urtext Marx faz uma advertência decisiva, e ainda hoje pouco
reconhecida: “a forma dialética de apresentação é correta se conhece seus
limites(MEGA, II. 2, p. 91 destaque meu). Mais do que uma separação entre
leituras lógica ou histórica , aqui se manifesta uma distinção referente aos
distintos níveis de abstração que atravessam uma teoria crítica da
sociabilização capitalista. No entanto, isso não significa que não existam
dificuldades “históricas” no próprio Marx, notadamente no âmbito de sua
análise do dinheiro, tema que, como destacado, orientou grande parte das
críticas destinadas a Engels.
3. Engels com Marx: aprofundando a temática dos veis de
abstração
Uma dificuldade considerável atravessa O capital, qual seja, a
fundamentação do sistema monetário em uma mercadoria que seria dinheiro
17
Em Resultados do processo imediato de produção texto que originalmente seria a “ponte”
entre o Livro I e II –, Marx também qualifica sua abordagem como “pura”. Ao discutir a relação
entre fluidez do capital e versatilidade do trabalho um axioma da economia política clássica
–, Marx salienta: “a fim de apresentar as leis da economia política na sua pureza, é feita
abstração destas fricções, tal como na mecânica pura é feita abstração de fricções particulares
que têm de ser ultrapassadas em cada caso particular da sua aplicação” (MEGA, II. 4.1, p. 88
destaque meu).
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[Geldware]
18
: “a dificuldade não está em compreender o que é mercadoria,
mas em descobrir como, por que e por quais meios a mercadoria é dinheiro”
(MEGA, II. 6, p. 120). Diante da queda de Bretton Woods, que pôs fim ao ouro
como lastro do dólar, isto é, fazendo com que o sistema monetário não
dependesse mais de uma mercadoria, o que fazer com a premissa acima
destacada? Seria possível encontrar outra fundamentação para o sistema
monetário que não seja pressupondo historicamente uma mercadoria-
dinheiro como base de seu desenvolvimento conceitual?
Aqui é interessante notar como no Urtext encontra-se outra delimitação
acerca da fundamentação do dinheiro:
O processo de produção burguesa apreende primeiro a circulação do
metal como um órgão tradicional acabado, que se transforma
gradualmente, mas que retém sempre a sua construção básica. A
questão, portanto, do porquê o ouro e a prata servem como material
do dinheiro ao invés de outras mercadorias, vai além dos limites do
sistema burguês. (MEGA, II. 2, p. 39)
Diferentemente do argumento sustentado em sua principal obra, nesse
momento Marx explicitamente se move pela narrativa dos “limites” do sistema
burguês. Ora, não parece ser trivial que o dinheiro deva ser uma mercadoria
X, e não Y, algo que Marx procurou destrinchar ao longo dos anos. Ainda que
a partir da segunda edição de O capital se encontre a referida identificação
entre dinheiro e mercadoria, é importante notar um registro distinto dessa
questão tanto em Para a crítica da economia política como na primeira edição
de O capital. A diferença na abordagem está relacionada a uma determinação
formal importante para a teoria monetária do valor, e posteriormente
abandonada por Marx: a sugestiva “forma genérica” [Gattungsform].
Em se tratando do texto de 1859, em particular no que se refere à análise
do dinheiro, Marx sustenta:
Contrariamente às mercadorias que apenas representam a
existência independente do valor de troca, o trabalho social geral, a
riqueza abstrata, o ouro é a existência material da riqueza abstrata
/.../. O ouro é a riqueza universal como indivíduo. (MEGA, II. 2, p.
188 destaque no original)
Se o “ouro é a riqueza universal como indivíduo”, então o dinheiro não
é apenas um termo genérico abstrato, mas também isto é, ao mesmo tempo
18
Esta não é a única questão problemática envolvendo o dinheiro na crítica da economia
política, algo relacionado à tese de Gerhard Göhler acerca da “redução dialética” (GÖHLER,
1980, p. 160). Em Para a crítica da economia política e na primeira edição de O capital, a
forma-dinheiro não é desenvolvida a partir da análise da forma-valor, mas surge como
resultado do processo de troca, exposto no segundo capítulo, um nível de abstração distinto
daqueles a relação de troca e a relação de valor entre mercadorias tratados no primeiro
capítulo do Livro I. Daí a presença da “forma IV” na edição de 1867 (MEGA, II. 5, p. 43),
abandonada nas edições posteriores.
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a materialização da riqueza abstrata, um elemento concreto que está no
mesmo plano das mercadorias individuais. Trata-se, assim, de um universal
que efetivamente também é individual, algo que Marx havia captado na
primeira edição alede O capital em uma passagem igualmente excluída
das edições posteriores com a sugestiva analogia:
Na forma III, que é a segunda forma invertida e que está, portanto,
contida nela, a tela aparece, pelo contrário, como a forma genérica
[Gattungsform] do equivalente para todas as outras mercadorias. É
como se ao lado e além dos leões, tigres, lebres e todos os animais
efetivamente reais, que agrupados constituem as diferentes raças,
espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse
também o animal, a encarnação individual de todo o reino animal.
Tal indivíduo que compreende em si mesmo todas as espécies
efetivamente existentes da mesma coisa é um universal, como o
animal, Deus e assim por diante. (MEGA, II. 5, p. 37 destaques no
original)
19
Essa “forma genérica” é sem dúvida uma abstração real, cujo sentido
permite uma melhor compreensão da problemática assertiva de que o dinheiro
deve ser uma mercadoria. Note-se que esse “animal” não necessita ser, por
exemplo, o leão, ou o tigre. O que está em jogo não é a identidade entre o
gênero e as espécies, mas que aquele exista ao lado destes.
Ou seja, a possibilidade de que ambos coincidam, algo que Marx
tomava como sendo necessário. Tal como destacado por Heinrich,
Marx inicia a análise da forma de valor com o fato de que o valor de
uma mercadoria é expresso no valor de outra mercadoria. O que ele
demonstra não é que seja necessário que uma segunda mercadoria
sirva como expressão de valor para a primeira, mas que esta
expressão de valor é incompleta e deficiente, se estiver ligada a uma
única mercadoria aleatória. Por meio da expressão de valor de uma
mercadoria em outra mercadoria, Marx demonstra quais
requisitos uma forma de valor deve atender para expressar
adequadamente seu valor. No entanto, que o portador desta forma
de valor seja ele próprio uma mercadoria não foi evidenciado, mas
assumido desde o início. Embora a análise da forma de valor forneça
as determinações formais do equivalente geral, ela o fornece um
argumento sobre se o equivalente geral deve ou não ser uma
mercadoria. (HEINRICH, 2017, p. 233 destaques no original)
No entanto, no âmbito da crítica da economia política, isto é, tendo em
vista seu nível de abstração na referida “média ideal”, a posição dessa
identidade ultrapassa os mencionados limites da apresentação dialética.
19
Um raciocínio próximo se manifestava nos Grundrisse, momento em que Marx faz um
paralelo com a álgebra: “por exemplo, a, b, c são números; números em geral; contudo, são
números inteiros em relação à a/b, b/c, c/b, c/a, b/a etc., que, todavia, os pressupõem como
elementos gerais” (MEGA, II. 1.2, p. 359).
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Mesmo nos Grundrisse, ainda que sem se referir à “forma genérica”, Marx
também salienta:
A mercadoria deve ser trocada por uma terceira coisa que, por sua
vez, não seja ela mesma uma mercadoria particular, mas o símbolo
da mercadoria como mercadoria, o próprio valor de troca da
mercadoria; portanto, que represente, digamos, o tempo de
trabalho enquanto tal, digamos, um pedaço de papel ou de couro
que represente uma parte alíquota de tempo de trabalho. (MEGA,
II. 1.1, p. 79 destaques no original)
Não por acaso, a ideia de que o dinheiro existe “ao lado” das
mercadorias era aqui percebida. Por isso é dito que o valor de troca se
apresenta no dinheiro não só como “mercadoria universal ao lado de todas as
mercadorias particulares”, mas “simultaneamente /.../ como mercadoria
particular (dado que possui uma existência particular) ao lado de todas as
outras mercadorias”. Consequentemente, “aqui não se fala ainda, de modo
algum, do dinheiro fixado na substância de um determinado produto”
(MEGA, II. 1.1, p. 84 destaques no original).
Por mais que nos Grundrisse essa percepção do dinheiro não seja
desenvolvida a partir da análise da forma-valor, é importante atentar que
qualquer dinheiro (quer se trate de mercadorias com valor
intrínseco ou não) é apenas um representante do valor como tal e,
portanto, um selo de valor. Apenas neste sentido geral é que a
categoria de dinheiro é o resultado do exame do processo de troca
(HEINRICH, 2017, p. 236 destaque no original).
Note-se que a ideia de representação está intimamente associada à
análise formal. É ela que desenvolve a determinação decisiva do dinheiro, qual
seja, a forma de equivalente geral. Por isso, aqui se percebe como a abordagem
marxiana se distancia tanto do nominalismo como do metalismo. Nestes, a
controvérsia gira em torno da pergunta “o que transforma o dinheiro em
dinheiro, uma convenção social ou um valor intrínseco da coisa?”. Marx, por
sua vez, aponta a necessidade de uma expressão independente de valor, uma
manifestação que é tanto exteriorização quanto fetichização.
Naturalmente, o desenvolvimento histórico subjacente a essa
necessidade “materializa” de distintos modos a referida expressão
independente de valor. Assim, é importante atentar para a delimitação desse
objeto no estudo do dinheiro tal como ele se apresenta na circulação simples
de mercadorias, essa “esfera abstrata” (MEGA, II. 2, p. 68) da sociedade
burguesa. No entanto, aqui a pergunta acerca da necessidade do dinheiro está
localizada em um nível distinto de apresentação quando comparada à
pergunta pela natureza do objeto que figura como dinheiro (HEINRICH, 2017,
p. 237).
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Como se vê, nesta ocasião entra em cena uma vez mais a importante
ressalva de que “a forma dialética de apresentação é correta se conhecer seus
limites(MEGA, II. 2, p. 91 destaque meu), ainda que o próprio Marx os
ultrapasse em determinados momentos. Por isso, é a desatenção a essas
fronteiras que faz com que o desenvolvimento categorial do dinheiro fique por
vezes refém da determinação histórica, tal como manifestado na análise do
“dinheiro mundial”:
Ao deixar a esfera da circulação interna, o dinheiro se despe de suas
formas locais de padrão de medida dos preços, de moeda, de moeda
simbólica e de símbolo de valor, e retorna à sua forma original de
barra de metal precioso. (MEGA, II. 6, p. 162 destaque meu)
Mas é justamente o reconhecimento de que também em Marx o “lógico”
é atravessado pelo “histórico” que permite questionar uma vez mais sua
contraposição a Engels. É certo que existem diferenças fundamentais. Diante
da sequência mercadoria-dinheiro-capital exposta no Livro I
20
, pode-se dizer
que Engels a aborda em termos históricos e, assim, mescla a dialética
conceitual com a dialética histórica (ARTHUR, 1996, p. 183). Isso, no entanto,
omite um texto sumariamente ignorado pela literatura, qual seja, a sinopse”
escrita por Engels em 1868, em que a necessidade do dinheiro é explicitamente
desdobrada da análise da mercadoria, sem nenhum argumento histórico
(MEW, 16, p. 247).
Marx, por sua vez, inicialmente a compreende como manifestação da
circulação simples de mercadorias, isto é, como forma de aparecimento da
totalidade da sociabilização capitalista, “esfera abstrata do processo global de
produção burguês” (MEGA, II. 2, p. 68)
21
. Mas aqui também não se pode
esquecer que o próprio Marx colocou a questão do valor igualmente em termos
históricos no manuscrito do Livro III: “é bastante apropriado /.../ considerar
os valores das mercadorias não do ponto de vista teórico, mas também do
histórico, como o prius dos preços de produção” (MEGA, II. 4.2, p. 252
destaque no original).
Essas referências reforçam a mencionada suspeita de que a negação de
Engels serve como instrumento de bloqueio à problematização de que que a
doutrina de Marx seria “omnipotente porque ela é verdadeira. É completa e
harmoniosa, dando aos homens uma visão integral do mundo” (LW, 19, pp. 3-
4 destaque meu), tal como interpretado por Lênin em As três fontes e as três
20
A delimitação é importante, já que a avaliação deve ter seu tom calibrado quando se leva em
consideração a análise feita em Para a crítica da economia política. Como destaca Arthur, no
final da década de 1950 “Marx não estava de forma alguma claro sobre a relação entre lógica e
história; a questão tem muito a sensação de uma discussão exploratória” (ARTHUR, 1996, p.
185).
21
Note-se que a circulação simples de mercadorias, apesar de fundamental, é exposta
detalhadamente o que inclui reflexões sobre sua “lei de apropriação” nos Grundrisse e,
sobretudo, no Urtext.
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partes constitutivas do marxismo (1913). Na verdade, há entre Marx e Engels
mais aproximações ainda que estas demonstrem problemas comuns do
que franca contraposição, tal como sugerido nas reflexões iniciais de Backhaus.
Por isso mesmo, é particularmente importante a sistematização
apresentada por Kozo Uno na década de 1960, ao apresentar três níveis de
apreensão da sociedade capitalista: (i) a teoria pura [genriron]; (ii) a teoria
dos estágios históricos capitalistas [dankaïron]; e (iii) a análise empírica da
atual situação da economia política em um estado qualquer [genjô-bunseki]
(UNO, 2016, p. 236), sendo que “a lógica interna do capitalismo pode ser
rigorosamente compreendida pela teoria pura econômica, que por sua vez é
distinta da teoria das etapas do desenvolvimento capitalista” (UNO, 2016, pp.
31-2)
22
.
A partir dessa perspectiva, a reflexão de Engels acerca da transformação
histórica pode ser compreendida como a tentativa de uma “teoria da história
econômica” (HOLLANDER, 2011, p. 111), algo que se situa no nível do
dankaïron. Isso fica particularmente claro quando se atenta para a carta que
Engels enviou a Werner Sombart (11 de março de 1895). Após salientar a
importância da análise de Marx sobre as leis econômicas e a equalização da
taxa de lucro, Engels pergunta: “mas como esse processo de equalização
realmente se deu? Esse é um ponto muito interessante sobre o qual o próprio
Marx tem pouco a dizer” (MEW, 39, p. 428). E, logo após, pondera:
Todo o modo de pensar de Marx não é tanto uma doutrina, mas um
método. Ele fornece, não tanto dogmas prontos, mas auxílios para
uma investigação mais profunda e o método para tal investigação.
Aqui, então, está um trabalho a ser feito que o próprio Marx não
tentou em seu primeiro rascunho. /.../ Uma exposição efetivamente
histórica deste processo que, embora reconhecidamente exigindo
uma grande quantidade de pesquisa, oferece a perspectiva de
resultados correspondentemente gratificantes seria um
complemento muito valioso para o Capital. (MEW, 39, pp. 428-9
destaque no original)
23
22
Ainda assim, é importante reconhecer que a fundamental problemática dos níveis de
abstração foi possivelmente colocada pela primeira vez por Lênin, em um artigo de 1899. No
texto Novamente sobre o problema da teoria da realização, o líder da Revolução Russa
destaca a diferença entre o “ideal do capitalismoe sua “realidade efetiva” (LW, 4, p. 77). O
“novamente” deve-se ao fato de Lenin ter abordado a temática em Nota sobre o problema
da teoria dos mercados: a propósito da polêmica entre o Sr. Tugan-Baranowski e o Sr.
Bulgakow, escrito no final de 1898 e publicado em janeiro de 1899 (LW 4, p. 45).
23
É digno de nota que na mesma carta Engels restringe o alcance da “lei do valor”. Se em Lei
do valor e taxa de lucro a “produção simples de mercadorias” tem uma validade milenar, aqui
Engels diz o seguinte: “eu deveria delimitar [o conceito de valor – CMB] historicamente,
confinando-o expressamente à fase econômica na qual, por si, tem e poderia ter havido
qualquer questão de valor até agora às formas sociais em que existe troca de mercadorias e
produção de mercadorias; o comunismo primitivo não conhecia nenhum valor” (MEW, 39, p.
427).
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Como se vê, o “historicismo” de Engels não é uma substituição ou
inversão de O capital, mas um complemento que pode ter a crítica da
economia política em sua “média ideal como seu pressuposto. Essa
possiblidade, no entanto, depende cada vez mais de pesquisas que consigam
amalgamar o ímpeto filológico da “nova leitura de Marx” à “nova leitura de
Engels”.
Considerações finais
Em uma carta a Maxim Maximowitsch Kowalewski (abril de 1879),
Marx não deixou de destacar a importância de “distinguir o que um
determinado autor realmente diz do que ele acredita dizer” (MEW, 34, p. 506).
Apesar da seletividade de grande parte da literatura marxista na aplicação
dessa regra, as recentes discussões acerca das ambivalências do aparato
conceitual marxiano prometem bons frutos. Ainda que “poucos marxistas
estejam prontos para aceitar a possibilidade de tais contradições nos escritos
econômicos maduros de Marx” (SOTIROPOULOS; MILIOS; LAPATSIORAS,
2013, p. 35), esta é uma abertura particularmente importante. No presente
artigo, procurei demonstrar como ela pode ser produtivamente movimentada
contra as narrativas que sustentam a existência de uma contraposição entre
Marx e Engels.
Após inicialmente apresentar uma retomada dos argumentos que
caracterizam o “historicismo” de Engels notadamente, a resenha de Para a
crítica da economia política e o texto Lei do valor e taxa de lucro , destaquei
tanto a influência que o conceito de “produção simples de mercadorias” teve
enquanto chave de leitura da crítica da economia política, como sua
cristalização enquanto “leitura histórica” de O capital, principal adversária da
“leitura lógica”. Logo depois, recuperei a argumentação desenvolvida por
Backhaus, principalmente no que se refere à alegada “necessidade urgente” de
reconstrução da teoria marxiana do valor. Tendo apresentado os argumentos
desenvolvidos em Materiais para a reconstrução da teoria marxiana do
valor, enfatizei a mudança de postura no tocante à contribuição de Engels para
a crítica da economia política. Nesse contexto, se a análise da forma-valor
não podia ser vista como o eixo a partir do qual giraria a reconstrução da obra
marxiana, isso significou que ela mesma estava restrita a um nível de abstração
específico a análise na “média ideal” ou genriron , não se confundindo com
o estudo histórico da sociedade capitalista situado no nível do dankaïron.
Esses argumentos serviram como base para aprofundar os desafios da
distinção lógico/histórico no próprio Marx. Após discutir um dos aspectos
problemáticos na exposição do dinheiro no Livro I, demonstrei como a
“presença” historicista de Engels no próprio Marx aponta para a necessidade
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de incorporação dos estudos dos níveis de abstração que atravessam a
sociabilização capitalista como objeto de pesquisa. Nesse sentido, a tão
criticada “transformação histórica” engelsiana aparece como um
desenvolvimento analítico que não apenas difere da “pureza” subjacente à
dialética categorial como a pressupõe. Assim, o reconhecimento dos “limites”
da “média ideal”, de um lado, e a construção de um amálgama conceitual que
vincule os níveis macro, meso e micro, do outro, ainda constituem um dos
principais desafios para a construção de uma teoria marxista da sociedade.
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Como citar:
BARREIRA, César Mortari. Engels contra Marx? Do lógico/histórico aos níveis
de abstração. Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas,
Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 110-33, jul./dez. 2020.
Data do envio: 31 ago. 2020
Data do aceite: 2 nov. 2020