DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.589
Friedrich Engels
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Esboço para uma crítica da economia política
1
Friedrich Engels
A economia política
2
emergiu como consequência natural da expansão
do comércio e, com ela, o trapaceiro simples e não científico foi substituído
por um sistema especializado de fraudes permitidas, uma ciência completa do
enriquecimento.
Essa economia política ou ciência do enriquecimento, que resultou da
inveja recíproca e da ganância dos comerciantes, carrega a marca do egoísmo
mais repugnante na testa. Ainda havia uma concepção ingênua de que ouro e
prata eram riquezas e, portanto, não havia nada mais urgente a se fazer do
que proibir a exportação de metais "nobres”. Os países se encaravam como
avarentos, cada um com sua cara bolsa de dinheiro cercando as duas armas e
olhando para os vizinhos com inveja e suspeita. Todos os meios foram usados
para atrair o máximo possível de dinheiro vivo dos povos com quem se
negociava, e para manter aquilo que foi felizmente obtido dentro dos limites
aduaneiros.
A implementação mais consequente desse princípio teria matado o
comércio. Então se começou a ultrapassar a primeira etapa; percebeu-se que
o capital permanece morto se preso no caixa, enquanto aumenta
constantemente na circulação. Então se tornou mais filantrópico, enviou seus
ducados como chamarizes para trazer outros de volta e se percebeu que não
faria mal se se pagasse demais a “A” por sua mercadoria, desde que se
pudesse vender a “B” por um preço mais alto.
Sobre essa base se ergueu o sistema mercantil. O caráter ganancioso
do comércio foi um pouco escondido; as nações começaram a se aproximar,
fecharam tratados de comércio e amizade, fizeram negócios reciprocamente
e, por amor a um ganho maior, fizeram todo o bem possível uns aos outros.
Mas, basicamente, era a antiga cobiça por dinheiro e o egoísmo que, de
1
Texto traduzido diretamente da língua alemã: “Unrisse zu einer Kritik der
Nacionalökonomie. In: Marx-Engels Werke Bd. 1. Berlin: Dietz Verlag, 1981. Foram
utilizadas, para efeito de cotejamento, as seguintes traduções: “Esbozos para una crítica de la
economia política”. In: MARX, K. Manuscritos económico-filosóficos. Trad. Fernanda Aren,
Silvina Rotemberg y Michel Vedda. Buenos Aires: Colihue Clásica, 2010;ENGELS, F.
Lineamenti di una critica dell’economia politica. Trad. Nicola De Domenico. Roma: Editori
Riuniti, 1977. Tradução de Ronaldo Vielmi Fortes. Revisão da tradução de Vitor Bartoletti
Sartori. Revisão ortográfico-gramatical de Vânia Noeli Ferreira de Assunção. Nesta tradução
foram introduzidas notas das três edições utilizadas. Indicamos as edições do seguinte modo:
edição alemã [NEA]; tradução italiana [NTI] e tradução espanhola [NTE]. Utilizamos
também as anotações [NT] para nota do tradutor e [NRT] quando a nota for do revisor da
tradução.
2
[NTE] Em alemão Nationalökonomie, termo utilizado para designar a economia política.
[NRT] O termo politischen Oekonomie será, porém, utilizado posteriormente pelos autores
em suas obras para tratar do tema.
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tempos em tempos, explodia nas guerras, que na época eram todas
provocadas pelos ciúmes comerciais. Essas guerras também mostraram que o
comércio, como o roubo, era baseado na lei do mais forte
3
; não havia nenhum
escrúpulo em distorcer, com astúcia ou com uso da força, tratados
considerados os mais favoráveis.
O ponto principal em todo o sistema mercantil é a teoria da balança
comercial. Como o princípio de que ouro e prata eram riquezas ainda era
mantido, o único considerado benéfico era o negócio que acabaria por trazer
dinheiro em espécie para o país. Para deduzir isso, comparava-se exportação
e importação. Se se tivesse exportado mais do que havia sido importado,
acreditava-se que a diferença havia ingressado no país em dinheiro em
espécie e se acreditava estar mais rico. Portanto, a arte dos economistas era
garantir que, no final de cada ano, as exportações tivessem um saldo
favorável em relação às importações; e por causa dessa ilusão ridícula,
milhares de pessoas foram massacradas! O comércio também tem suas
cruzadas e sua inquisição.
O século XVIII, o século da revolução, também revolucionou a
economia; mas, como todas as revoluções deste século foram unilaterais e
ficaram presas à oposição, assim como permaneceu contraposto ao
espiritualismo abstrato o materialismo abstrato, à monarquia a república, ao
direito divino o contrato social, do mesmo modo a revolução econômica não
suplantou a oposição. Os pressupostos permaneceram em toda parte; o
materialismo não atacou o desprezo e a humilhação cristãos do homem,
apenas se limitou a contrapor ao homem, no lugar do deus cristão, a natureza
como absoluto; a política não pensou em examinar os pressupostos do estado
em si e para si; a economia nem sequer chegou a pensar em perguntar sobre a
legitimidade da propriedade privada. É por isso que a nova economia foi
apenas progresso pela metade; ela era obrigada a trair e negar seus próprios
pressupostos, a usar sofisma e hipocrisia para encobrir as contradições em
que se envolvia e a chegar às conclusões a que foi impulsionada não por seus
pressupostos, mas pelo espírito humano do século. Assim, a economia
assumiu um caráter filantrópico; ela negou seu favor aos produtores e o
entregou aos consumidores; agiu como se sentisse uma repulsa sagrada pelos
horrores sangrentos do sistema mercantil e declarou o comércio como um
vínculo de amizade e unidade entre nações, assim como entre os indivíduos.
Era toda a magnificência e esplendor mas os pressupostos voltaram de
novo a vigorar e, em contraste com essa filantropia cintilante, geraram a
teoria populacional malthusiana, o sistema bárbaro mais difícil que já existiu,
um sistema de desespero que derrubou todas aquelas frases bonitas sobre o
3
[NTE] Em alemão: Faustrecht, corresponde ao direito dos cavaleiros que perdurou até o
final da Idade Média.
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amor humano e sobre o cosmopolitismo; eles criaram e elevaram o sistema
fabril e a escravidão moderna, que não tem nada a invejar à antiga escravidão
em termos de desumanidade e crueldade. A nova economia, o sistema de
livre comércio baseado nA riqueza das nações de Adam Smith, está
provando ser a mesma hipocrisia, inconsistência e antieticidade
[Unsittlichkeit]
4
que agora se opõe à humanidade livre em todas as áreas.
Mas o sistema de Smith não foi um progresso? Claro que foi, e foi
um progresso necessário. Era necessário que o sistema mercantil, com seus
monopólios e restrições de tráfego, fosse derrubado, para que as verdadeiras
consequências da propriedade privada pudessem vir à tona; era necessário
que todas essas mesquinhas considerações locais e nacionais retrocedessem
para que a luta de nosso tempo se tornasse mais universal, mais humana; era
necessário que a teoria da propriedade privada deixasse o caminho
puramente empírico, meramente objetivo, e assumisse um caráter mais
científico, que também a responsabilizasse pelas consequências e, assim,
levasse a questão a um domínio universalmente humano; que a antieticidade
[Unsittlichkeit] contida na velha economia fosse elevada até o pico mais alto,
tentando negá-la e incorporando a hipocrisia uma consequência necessária
dessa tentativa. Tudo isso era da natureza da questão. Reconhecemos de bom
grado que pelo estabelecimento e execução do livre comércio nos
encontramos em condições de ir além da economia da propriedade privada,
mas, ao mesmo tempo, devemos ter o direito de apresentar esse livre
comércio em toda a sua nulidade teórica e prática.
Nosso juízo se torna mais difícil quanto mais próximos de nossos
tempos estejam os economistas que devemos julgar. Enquanto Smith e
Malthus apenas encontraram fragmentos isolados à sua frente, os mais
recentes tinham todo o sistema à sua disposição; as consequências foram
todas extraídas, as contradições saíram com clareza suficiente e, no entanto,
não chegaram a uma prova das premissas, e ainda assim assumiram a
responsabilidade por todo o sistema. Quanto mais os economistas se
aproximam do presente, mais se afastam da honestidade. A cada progresso
do tempo, o sofisma necessariamente aumenta a fim de manter a economia à
altura do tempo. Por isso, por exemplo, Ricardo é mais culpado que Adam
Smith e MacCulhoh e Mill são mais culpados que Ricardo.
A economia mais recente não pode sequer julgar o sistema mercantil
corretamente, porque é ela mesma parcial e está vinculada aos pressupostos
daquele. Somente UM ponto de vista [Standpunkt] que se eleva acima da
oposição entre os dois sistemas, que critica os pressupostos comuns de
4
[NRT] A expressão é de difícil tradução, que remete à oposição entre Sittlichkeit,
geralmente traduzido por eticidade, e Moralität, moralidade. Deste modo, embora fosse
possível traduzir Unsittlickeit por imoralidade, perder-se-ia algo central à teoria da época
que dialogava com as expressões hegelianas , a saber, a própria oposição mencionada.
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ambos e parte de uma base universal puramente humana, será capaz de
mostrar a ambos o posicionamento [Stellung] correto. Mostrará que os
defensores do livre comércio são monopolistas piores do que os próprios
mercantilistas. Mostrará que, por trás da resplandecente humanidade dos
mais recentes destes, existe uma barbárie que os antigos não conheciam; que
a confusão conceitual do velho é ainda simples e consequente se comparada à
lógica ambígua de seus críticos, e que nenhuma das partes pode culpar a
outra por algo que não recaia também sobre si mesma. É por isso que a
economia liberal mais recente tampouco consegue conceituar a restauração
do sistema mercantil por meio de ardis, enquanto para nós a questão é muito
simples. A inconsistência e a ambiguidade da economia liberal devem
necessariamente se dissolver em seus componentes basilares. Assim como a
teologia deve voltar à fé cega ou avançar para a filosofia livre, também a
liberdade de comércio deve, por um lado, produzir a restauração dos
monopólios e, por outro, a superação [Aufhebung] da propriedade privada.
O único progresso positivo que a economia liberal fez foi o
desenvolvimento de leis da propriedade privada. Essas estão, entretanto,
contidas nela, embora ainda não estejam totalmente desenvolvidas e
claramente elucidadas. Daí resulta que em todos os pontos em que a decisão
sobre o caminho mais curto para enriquecer, portanto em todas as rígidas
controvérsias econômicas, é importante que os defensores do livre comércio
tenham o direito do seu lado. Bem entendido: em controvérsia com os
monopolistas, não com os adversários da propriedade privada, porque o fato
de serem capazes de tomar decisões economicamente mais corretas sobre
questões econômicas, muito os socialistas ingleses demonstraram
prática e teoricamente.
Ao criticarmos a economia política, portanto, examinaremos as
categorias fundamentais, revelaremos a contradição trazida pelo sistema de
livre comércio e traçaremos as consequências de ambos os lados da
contradição.
_____
A expressão “riqueza nacional” só surgiu pelo vício universalizante dos
economistas liberais. Enquanto existir propriedade privada, essa expressão
não terá significado. A "riqueza nacional" dos ingleses é muito grande e, no
entanto, são o povo mais pobre sob o Sol. Ou bem se abandona a expressão
completamente ou se assumem pressupostos que lhe confiram sentido. O
mesmo vale para expressões como economia nacional, economia política ou
pública. Nas condições atuais, a ciência deveria se chamar economia privada,
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porque suas relações blicas existem apenas em prol da propriedade
privada
5
.
_____
A consequência mais imediata da propriedade privada é o comércio, a
troca de necessidades mútuas, a compra e a venda. Sob o domínio da
propriedade privada esse comércio, como qualquer atividade, deve se tornar
uma fonte direta de renda para o comerciante; ou seja, todos devem procurar
vender o mais caro possível e comprar o mais barato possível. A cada compra
e venda se defrontam duas pessoas com interesses absolutamente opostos; o
conflito é decididamente hostil, porque cada um conhece as intenções do
outro, sabe que são opostas às suas próprias. A primeira consequência é, por
um lado, a desconfiança mútua, por outro, a justificativa dessa desconfiança,
o uso de meios antiéticos [unsittlicher] para alcançar uma finalidade antiética
[unsittlichen]. Por exemplo, o primeiro princípio do comércio é o sigilo,
ocultação de qualquer coisa que possa degradar o valor do artigo em questão.
A consequência disso é: no comércio é permitido se beneficiar tanto quanto
possível da ignorância, da confiança da contraparte e elogiar propriedades de
suas mercadorias que elas não possuem. Em uma palavra, negociar é fraude
legal. Que a prática corresponda a essa teoria testemunhará todo comerciante
que queira honrar a verdade.
_____
O sistema mercantil ainda possuía certa franqueza católica imparcial e
não escondia nem um pouco a essência antiética do comércio. Vimos como
este ostentava abertamente sua ganância vulgar. A posição mutuamente
hostil das nações no século XVIII, a inveja repugnante e o ciúme do comércio
foram as consequências lógicas do comércio em geral. A opinião pública
ainda não era humanizada, então, não havia razão para esconder a natureza
desumana e hostil do próprio comércio. Mas, quando o Lutero da economia,
Adam Smith, criticou a economia anterior, as coisas mudaram muito. O
século foi humanizado, a razão se afirmou, a eticidade começou a reivindicar
seu eterno direito. Os tratados comerciais extorquidos, as guerras comerciais,
o isolamento brusco das nações eram demais para a consciência avançada.
No lugar da retidão católica se impôs a hipocrisia protestante. Smith provou
que a humanidade também estava enraizada na essência do comércio; que o
comércio, em vez de ser "a fonte mais frutífera de discórdia e hostilidade", é
um "vínculo de união e amizade entre nações e entre indivíduos" (cf. A
5
[NRT] Engels utiliza os seguintes termos Natinalökonomie, Politische Ökonomie,
öffentliche Ökonomie e, por fim, privat Ökonomie.
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riqueza das nações, B4, c3, §2), pois é da natureza da questão que o comércio
como um todo seja vantajoso para todos os envolvidos.
Smith estava certo quando saudou o comércio como humano. Não
nada absolutamente antiético no mundo; o comércio também tem um lado
em que presta homenagem à eticidade e à humanidade. Mas que
homenagem! O direito do mais forte, o assalto na rua da Idade Média, foi
humanizado quando passou para o comércio o comércio, como sua
primeira etapa, caracterizada pela proibição da exportação de dinheiro e
para o sistema mercantil. Desse modo, este foi humanizado. Obviamente, é
do interesse do comerciante manter boas relações com aqueles de quem ele
compra barato, assim como com aqueles a quem ele vende a um preço mais
elevado. Portanto, é muito imprudente uma nação alimentar um clima hostil
com seus fornecedores e clientes. Quanto mais amigável, mais benéfico. Esta
é a humanidade do comércio, e essa maneira hipócrita de usar a eticidade
para fins antiéticos é o orgulho do sistema da liberdade de comércio. Não
derrubamos a barbárie do monopólio, exclamam os hipócritas, não levamos a
civilização para partes distantes do mundo, não confraternizamos os povos e
reduzimos as guerras? Sim, fez-se tudo isso, mas como se fez isso!
Aniquilaram-se os pequenos monopólios para tornar o único grande
monopólio, a propriedade, o mais livre e irrestrito possível; civilizaram-se os
confins da terra para ganhar novo terreno para o desenvolvimento de sua
vulgar ganância; confraternizaram-se os povos, mas se formou uma
irmandade de ladrões, e se reduziram as guerras para ganhar mais na paz,
para levar a inimizade do indivíduo, a guerra desonrosa da concorrência, ao
mais alto nível! Quando se fez algo por pura humanidade, por consciência
da nulidade da oposição entre o interesse geral e o individual? Quando se foi
ético sem interesses, sem motivos antiéticos e egoístas como pano de fundo?
Depois que a economia liberal fez o possível para generalizar a
hostilidade, dissolvendo nacionalidades, a humanidade se transformou em
uma horda de animais furiosos não é isso que são os concorrentes? que se
devoram exatamente porque cada um tem o mesmo interesse que os outros;
depois desse trabalho preliminar, lhe restava mais um passo para alcançar
a finalidade, a dissolução da família. Para conseguir isso, sua bela invenção, o
sistema da fábrica, veio em seu auxílio. O último traço de interesses comuns,
a comunidade de bens da família, foi soterrada pelo sistema fabril e pelo
menos aqui na Inglaterra está em processo de dissolução. É algo muito
comum na cotidianidade que crianças, tão logo sejam capazes de trabalhar,
isto é, completem nove anos, usem seu salário para si, e passem a ver a casa
de seus pais como simples tavernas e paguem a seus pais certa quantia pela
comida e acomodação. Como poderia ser diferente? O que mais poderia
resultar do isolamento de interesses subjacentes ao sistema da liberdade de
comércio? Uma vez que um princípio é posto em movimento, ele trabalha por
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si mesmo por meio de todas as suas consequências, gostem ou não os
economistas.
O próprio economista não sabe, porém, a que causa serve. Ele não sabe
que, com todo o seu raciocínio egoísta, é apenas um elo na cadeia do
progresso geral da humanidade. Ele não sabe que, com a dissolução de tudo
em interesses particulares, está apenas abrindo a estrada para a grande
mudança para a qual o século está caminhando, a reconciliação da
humanidade com a natureza e consigo mesma.
_____
Outra categoria determinada pelo comércio é o valor. Sobre esta, assim
como sobre todas as outras categorias, não disputa entre os economistas
mais antigos e os mais novos, porque os monopolistas, em sua ria imediata
de enriquecimento, não tiveram tempo para lidar com categorias. Todas as
disputas sobre essas questões vieram dos mais recentes.
Para o economista que vive de oposições, existe, naturalmente,
também um valor duplo: o valor abstrato ou real e o valor de troca. Houve
uma longa disputa sobre a essência do valor real entre os ingleses, que
determinaram o custo de produção como expressão do valor real, e o francês
Say, que pretendeu medir esse valor de acordo com a utilidade de uma coisa.
A disputa esteve em suspenso desde o início deste século e adormeceu, não
foi decidida. Os economistas não podem decidir.
Os ingleses MacCulloch e Ricardo em particular afirmam que o
valor abstrato de uma coisa é determinado pelo custo de produção. Bem
entendido, o valor abstrato, não o valor de troca, o exchangeable value, o
valor no comércio que é algo completamente diferente. Por que os custos de
produção são a medida do valor? Por que ouça, ouça! por que ninguém
venderia nada, em circunstâncias normais e desconsiderando as relações de
concorrência, por menos do que a produção lhe custou? O que temos que ver
com "vender" aqui, quando não se trata da aposta comercial? Aqui temos de
novo o comércio, que devemos deixar de fora e que comércio! Um comércio
em que o principal, a relação de concorrência, não deve ser considerado!
Primeiro, um valor abstrato, agora também um comércio abstrato, um
comércio sem concorrência, ou seja, um homem sem corpo, um pensamento
sem cérebro para produzir pensamentos. E o economista não percebe que,
quando a concorrência é deixada de fora do jogo, não nenhuma garantia
de que o produtor venda suas mercadorias exatamente ao custo de produção?
Que confusão!
Mais ainda! Vamos admitir, por um momento, que tudo é como diz o
economista. Supondo que alguém tenha feito algo muito inútil com enorme
esforço e custos enormes, algo que ninguém deseja, esse vale também os
custos de produção? De maneira alguma, diz o economista, quem vai querer
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comprá-lo? Então, temos assim não apenas a utilidade desacreditada de Say,
mas com a "compra" a relação de concorrência ao lado. Não é possível ao
economista manter sua abstração por um momento sequer. Não apenas o que
ele está tentando remover com dificuldade, a concorrência, mas também o
que ele ataca, a utilidade, escorre entre seus dedos a todo momento. O valor
abstrato e sua determinação pelos custos de produção são apenas abstrações,
absurdos.
Mas vamos dar razão novamente ao economista por um momento
como ele determinará os custos de produção para nós sem ter em conta a
concorrência? Quando examinamos o custo de produção, vemos que essa
categoria também se baseia na concorrência e, também aqui, mostra o quão
pouco o economista está em condições de sustentar suas asserções.
Se passamos para Say, encontramos a mesma abstração. A utilidade de
uma coisa é algo puramente subjetivo, algo que não se pode estabelecer de
modo absoluto pelo menos enquanto ainda se estiver vagando entre
oposições, certamente não será estabelecida. Segundo esta teoria, as
carências [Bedürfnisse] necessárias devem ter mais valor que os artigos de
luxo. A única via possível para se chegar a uma decisão razoavelmente
objetiva e aparentemente universal sobre a maior ou menor utilidade de uma
coisa é, sob o domínio da propriedade privada, a relação de concorrência, e é
isso o que se deveria deixar de lado. Mas, se a relação de concorrência for
permitida, então também os custos de produção entram; porque ninguém
venderá por menos do que investiu na produção. Aqui também um lado da
oposição, sem que se queira, transpassa para o outro.
Tentemos lançar luz nessa confusão. O valor de uma coisa inclui os
dois fatores, que são separados à força pelas partes em disputa e, como
vimos, sem sucesso. O valor é a razão entre custos de produção e utilidade. A
aplicação mais precisa do valor é a decisão sobre se alguma coisa deve ser
produzida, ou seja, se a utilidade compensa os custos de produção. Somente
então se pode discutir a aplicação do valor para a troca. Uma vez equiparados
os custos de produção de duas coisas, a utilidade será o fator decisivo para
determinar seu valor comparativo.
Essa base é a única base justa da troca. Mas, se se parte dela, quem
deve estabelecer a utilidade da coisa? A mera opinião das partes? Pelo menos
é assim que uma delas é enganada. Ou uma determinação baseada na
utilidade inerente à coisa, independente das partes envolvidas e não evidente
para elas? A troca só pode ocorrer por coação, e cada um pensa que foi
enganado. Não se pode superar essa oposição entre a utilidade inerente real à
coisa e a determinação dessa utilidade, entre a determinação da utilidade e a
liberdade dos participantes da troca, sem superar a propriedade privada; e,
uma vez que essa venha a ser superada, não se pode mais falar em troca como
ela existe agora. A aplicação prática do conceito de valor será, então, cada vez
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mais limitada a estabelecer a produção, e está é a sua esfera própria.
Mas, então, como estão as coisas agora? Vimos como o conceito de
valor é violentamente dividido e os aspectos individuais são tomados como o
todo. Os custos de produção, distorcidos desde o início pela concorrência,
devem valer como o próprio valor; da mesma forma, a utilidade meramente
subjetiva já que agora não pode haver outra. Para obter essas definições
debilitadas, a concorrência deve ser usada nos dois casos; e o melhor é que,
no caso dos ingleses, a concorrência, em relação ao custo de produção,
representa a utilidade, enquanto, inversamente, em Say, a concorrência, em
relação à utilidade, introduz o custo de produção. Mas que utilidade, que
custos de produção traz! Sua utilidade depende do acaso, da moda, do humor
dos ricos, seus custos de produção aumentam e diminuem com a relação
casual entre demanda e oferta.
A diferença entre o valor real e o valor de troca é baseada em um fato -
a saber, que o valor de uma coisa é diferente do chamado equivalente dado a
ela no comércio, ou seja, que esse equivalente não é equivalente. Esse
chamado equivalente é o preço da coisa e, se o economista fosse honesto, ele
usaria a palavra "valor comercial". No entanto, ele ainda precisa manter um
rastro de aparências de que o preço está de alguma forma relacionado ao
valor, para que a antieticidade do comércio não venha à tona. Mas o fato de o
preço ser determinado pela interação dos custos de produção e da
concorrência é bastante correto e é uma das principais leis da propriedade
privada. Foi a primeira coisa que o economista encontrou, essa lei puramente
empírica; e a partir disso ele abstraiu seu valor real, ou seja, o preço, no
momento em que a relação de concorrência é equilibrada, quando a demanda
e a oferta coincidem então, é claro que os custos de produção permanecem,
e é isso que o economista chama de valor real, embora seja apenas uma
determinação do preço. Então, tudo na economia está de cabeça para baixo;
faz-se com que o valor, que é o original, é a fonte do preço, seja dependente
deste, seu próprio produto. Como é sabido, essa inversão é a essência da
abstração, e sobre tal questão Feuerbach pode ser consultado.
_____
Segundo o economista, os custos de produção de uma mercadoria
consistem em três elementos: a renda fundiária [Grundrente] pelo terreno
necessário para produzir a matéria-prima, o capital com lucro e o salário pelo
trabalho necessário para a produção e elaboração. Mas se mostra de imediato
que capital e trabalho são idênticos, uma vez que os próprios economistas
admitem que o capital é "trabalho acumulado". Portanto, temos apenas dois
lados: o natural, objetivo, o terreno, e o humano, subjetivo, o trabalho, que
inclui capital e uma terceira coisa além do capital em que o economista não
pensa, quero dizer, o elemento espiritual da invenção, do pensamento, além
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do elemento físico do mero trabalho. O que o economista tem que ver com o
espírito da invenção? Todas as invenções não lhe chegaram sem a sua
intervenção? Custou-lhe algo uma delas? Então, por que ele precisa
preocupar-se com o cálculo de seus custos de produção? Para ele, terra,
capital, trabalho são condições de riqueza e ele não precisa de mais nada. A
ciência não lhe interessa. Se ela lhe deu presentes através de Berthollet, Davy,
Liebig, Watt, Cartwright etc., o que beneficiou imensamente a ele e a sua
produção o que isso lhe importa? Ele não sabe como calcular semelhante
coisa; os avanços na ciência vão além de seus números. Mas, para uma
situação racional, que está além da divisão de interesses, como ocorre com o
economista, o elemento espiritual é um dos elementos da produção e
encontrará seu lugar na economia sob custos de produção. E é satisfatório
saber que o cultivo da ciência também é materialmente gratificante, saber
que um único fruto da ciência, como o motor a vapor de James Watt, trouxe
mais ao mundo, nos primeiros 50 anos de sua existência, do que o mundo
gastou desde o início do cultivo da ciência.
Temos, portanto, dois elementos de produção, natureza e homem, e
este último, por sua vez, física e espiritualmente em atividade; e agora
podemos retornar ao economista e a seus custos de produção.
_____
Tudo o que não pode ser monopolizado não tem valor, diz o
economista uma tese que examinaremos em mais detalhes posteriormente.
Se dizemos que não tem preço, a tese está correta para a condição relativa à
propriedade privada. Se o solo fosse tão fácil de obter quanto o ar, ninguém
pagaria juros fundiários [Grundzins]. Como esse não é o caso, mas a extensão
das terras que são apropriadas em um caso especial é limitada, então são
pagos juros fundiários pelo solo tomado em propriedade, ou seja,
monopolizado, ou se paga um preço de compra por ele. Mas é muito estranho
ter de ouvir do economista, após essas informações sobre a origem do valor
da terra, que os juros fundiários são a diferença entre o rendimento, que paga
os juros, e a parcela que paga pior o esforço pelo cultivo. Como é sabido, esta
é a definição dos juros fundiários que Ricardo desenvolveu completamente.
Esta definição é praticamente correta se levarmos em conta que uma queda
na demanda reage instantaneamente aos juros fundiários e desativa
imediatamente o cultivo de uma quantidade correspondente da pior terra
cultivada. Mas esse não é o caso, a definição é, portanto, insuficiente; além
disso, não inclui a causa dos juros fundiários e, portanto, deve ser
abandonada. O coronel T. P. Thompson, leaguer da Liga contra a “Lei dos
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Grãos”
6
, renovou a definição de Adam Smith, em contraposição a essa, e a
fundamentou. Segundo ele, os juros fundiários são a relação entre a
concorrência entre os candidatos pelo uso do solo e a quantidade limitada de
solo disponível. Aqui está, pelo menos, um retorno à origem dos juros
fundiários; mas essa explicação exclui a diferença de fertilidade do solo,
assim como a precedente explicação omite a concorrência.
_____
Então, novamente, temos duas definições unilaterais e, portanto,
meias definições para o mesmo objeto. Como no conceito de valor, teremos
novamente de combinar essas duas determinações para encontrar a
determinação correta que se segue ao desenvolvimento da questão e,
portanto, engloba toda a prática. Os juros fundiários são a relação entre a
capacidade produtiva do solo, o lado natural (que, por sua vez, compõe-se da
predisposição natural e da exploração humana, o trabalho, para melhorar) ,
e o lado humano, a concorrência. Os economistas podem sacudir a cabeça
com essa "definição"; eles ficarão chocados ao ver que ela inclui tudo o que
está relacionado à questão.
O proprietário fundiário não tem de reprovar nada ao comerciante.
Ele rouba monopolizando o solo. Ele rouba para si mesmo explorando
o aumento da população, o que aumenta a concorrência e, portanto, o valor
de seu terreno, tornando fonte de sua vantagem pessoal, que não aconteceu
por meio de sua ação pessoal, o que lhe é puramente contingente. Ele rouba
quando arrenda, ao se apoderar das melhorias feitas por seu último
arrendatário. Este é o segredo da riqueza cada vez maior dos grandes
proprietários fundiários.
Os axiomas que qualificam o modo de aquisição do proprietário como
roubo, ou seja, que todos têm direito ao produto de seu trabalho ou que
ninguém deve colher onde não semeou, não são nossa afirmação. O primeiro
exclui a obrigação de alimentar as crianças, o segundo exclui todas as
gerações do direito de existir, na medida em que cada geração assume o
legado da geração anterior. Portanto, esses axiomas são consequência da
propriedade privada. Ou se realizam suas consequências ou se renuncia à
premissa.
6
[NT] A Liga Anti-Corn-Law era uma associação de comerciantes livres fundada pelos dois
fabricantes Richard Cobden e John Bright em 1838 com o objetivo de revogar as leis de
grãos. Trata-se das leis de grãos que foram introduzidas na Inglaterra em 1815 no interesse
dos grandes proprietários de terras, dos senhores da terra e que restringiram ou proibiram a
importação de grãos do exterior. Em 26 de junho de 1846, o Parlamento inglês decidiu abolir
as leis dos grãos. Foi uma vitória importante para a burguesia industrial, que estava sob o
lema do livre comércio contra as leis de grãos, sobretudo para obter mão de obra mais
barata.
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Friedrich Engels
274
Sim, a própria apropriação originária [urprüngliche Appropriation] é
justificada pela afirmação do direito comum de propriedade, ainda mais
antigo. Por onde quer que vamos, a propriedade privada nos conduz a
contradições.
Foi o passo final em direção à usura de si mesmo, da terra, que é a
nossa única e a primeira condição de nossa existência; foi e ainda é uma
antieticidade que só é superada pela antieticidade da venda de si mesmo
[Selbstveräußerung]. E a apropriação originária, a monopolização da terra
por um pequeno número, a exclusão do resto da condição de sua vida, não
ultrapassa em nada, em antieticidade, a tardia comercialização do solo.
Se excluirmos a propriedade privada aqui novamente, os juros
fundiários serão reduzidos à sua verdade, à visão razoável, que é a sua base
essencial. O valor do solo, separado dele como juros fundiários, retorna ao
próprio solo. Esse valor, que deve ser medido pela capacidade de produzir de
uma mesma área com a mesma quantidade de trabalho, é considerado parte
dos custos de produção ao determinar o valor dos produtos e, como os juros
fundiários, é a relação entre a capacidade de produzir e a concorrência, mas a
concorrência verdadeira, tal como será desenvolvida a seu tempo.
_____
Vimos como capital e trabalho são, em sua origem, idênticos; vimos, a
partir dos desenvolvimentos do próprios economistas, como o capital,
resultado do trabalho, é imediatamente transformado em substrato material
do trabalho no processo de produção e, assim, a separação do capital em
relação ao trabalho é superada momentaneamente pela unidade de ambos; e
ainda assim o economista separa capital e trabalho, mantém a divisão sem
reconhecer a unidade de outro modo, exceto pela definição de capital:
"trabalho acumulado". A cisão entre capital e trabalho resultante da
propriedade privada nada mais é do que a divisão do trabalho em si mesmo,
que corresponde a este estado de divisão e dele surge. E, depois que essa
separação ocorre, o capital se divide novamente no capital originário e no
lucro, o aumento de capital que recebe no processo de produção, embora a
própria prática imediatamente transforme esse lucro novamente em capital e
o faça fluir com ele. Sim, mesmo o lucro é novamente dividido em juros e
propriamente em lucro. Nos juros, a irracionalidade [Unvernünftigkeit]
dessas cisões é levada ao extremo. A antieticidade de emprestar a juros,
receber sem trabalho, pelo mero empréstimo, embora seja inerente à
propriedade privada, é óbvia demais e muito é reconhecida pela
consciência popular imparcial, que geralmente é correta nessas questões.
Todas essas cisões e divisões sutis surgem da separação originária do capital
em relação ao trabalho e da conclusão dessa separação na cisão da
humanidade em capitalistas e trabalhadores, uma cisão que está se tornando
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275
cada vez mais nítida a cada dia e que, como veremos, deve sempre ir
aumentando. Essa separação, como a separação do solo entre capital e
trabalho, que foi considerada, é, entretanto, em última instância,
impossível. De maneira alguma é possível determinar quanto da terra, do
capital e do trabalho está contido em um determinado produto. As três
grandezas são incomensuráveis. O solo cria a matéria-prima, mas não sem
capital e trabalho, o capital pressupõe solo e trabalho e o trabalho pressupõe
pelo menos o solo, geralmente também capital. As funções dos três são muito
diferentes e não podem ser medidas em uma quarta medida comum.
Portanto, quando a situação atual leva a uma distribuição do produto entre os
três elementos, não medida inerente a eles, mas uma medida
completamente estranha e aleatória decide: concorrência ou o refinado
direito do mais forte. Os juros fundiários implicam a concorrência, o lucro
sobre o capital é determinado apenas pela concorrência e em seguida
veremos que é o que ocorre com o salário do trabalho.
Se abandonarmos a propriedade privada, todas essas cisões não
naturais desaparecem. A diferença entre juros e lucro desaparece; capital não
é nada sem trabalho, sem movimento. O lucro reduz sua importância ao peso
que equilibra o capital na determinação dos custos de produção e, portanto,
permanece inerente ao capital, à medida que volta à sua unidade original com
o trabalho.
_____
O trabalho, o elemento principal na produção, a "fonte de riqueza", a
atividade humana livre, é desdenhado pelo economista. Como o capital foi
separado do trabalho, o trabalho agora se cinde novamente pela segunda vez;
o produto do trabalho está frente a este como salário, é separado dele e é
novamente determinado, como de costume, pela concorrência, pois, como
vimos, não uma medida fixa da parcela de trabalho na produção. Se
abolimos a propriedade privada, essa separação antinatural também
desaparece, o trabalho é seu próprio salário e o verdadeiro significado dos
salários, anteriormente alienado, é revelado: a importância do trabalho para
determinar os custos de produção de uma coisa.
_____
Vimos que, no final, tudo se resume à concorrência enquanto existir
propriedade privada. Ela é a principal categoria do economista, sua filha mais
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querida, a quem ele mima e acaricia sem cessar e preste atenção ao tipo de
rosto de Medusa sairá daí.
A consequência seguinte da propriedade privada foi a divisão da
produção em dois lados em oposição, o natural e o humano; o solo, morto e
estéril sem fertilização, e a atividade humana, cuja primeira condição é o solo.
Também vimos como a atividade humana se dissolveu em trabalho e capital e
como esses lados se opõem de maneira hostil. tínhamos, portanto, a luta
dos três elementos um contra o outro, em vez do apoio tuo dos três; agora
se agrega o fato de que a propriedade privada traz consigo a fragmentação de
cada um desses elementos. Uma parcela de terra se opõe à outra, um capital
contra o outro, um trabalhador contra o outro. Em outras palavras: uma vez
que a propriedade privada isola todos de sua própria individualidade rude e
que todos têm o mesmo interesse que seus vizinhos, um proprietário é
hostil a outro, um capitalista a outro, um trabalhador a outro. Nessa
inimizade dos mesmos interesses em prol de sua igualdade, a antieticidade da
presente condição da humanidade está consumada; e essa consumação é a
concorrência.
_____
O oposto da concorrência é o monopólio. O monopólio era o grito de
guerra dos mercantilistas, a concorrência, o canto de batalha dos economistas
liberais. É fácil ver que essa oposição é novamente totalmente vazia. Cada
concorrente deve desejar o monopólio, seja ele trabalhador, capitalista ou
proprietário de terras. Cada coletividade menor de concorrentes deve desejar
ter um monopólio para si mesmo contra todos os outros. A concorrência é
baseada em juros, e os juros criam, por sua vez, o monopólio; em suma, a
concorrência se integra ao monopólio. Por outro lado, o monopólio não pode
interromper o fluxo da concorrência; inclusive, ele cria a própria
concorrência, por exemplo, a proibição de importação ou tarifas elevadas
virtualmente criam a concorrência do contrabando. A contradição da
concorrência é exatamente a mesma que a da própria propriedade privada. É
do interesse de cada um ser dono de tudo, mas o interesse da coletividade é
que cada um tenha a mesma quantidade. Assim, os interesses gerais e os
individuais são diametralmente opostos. A contradição da concorrência é que
cada um deve desejar o monopólio, enquanto a coletividade como tal perde
com o monopólio e deve, portanto, removê-lo. Sim, a concorrência
pressupõe o monopólio, nomeadamente o monopólio da propriedade e aqui
novamente a hipocrisia dos liberais vem à tona e enquanto existir o
monopólio da propriedade, a propriedade do monopólio está legitimada; pois
um monopólio, uma vez concedido, também é propriedade. Que deficiência
miserável é atacar o pequeno monopólio e deixar o monopólio fundamental
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existir. E se adicionarmos a isso a proposição do economista, mencionada,
de que nada tem valor se não pode ser monopolizado, ou seja, nada que não
permita que esse monopólio entre nessa batalha da concorrência, então nossa
afirmação de que a concorrência pressupõe o monopólio está perfeitamente
justificada.
_____
A lei da concorrência é que a demanda e a oferta se completam sempre
e, por isso, nunca se complementam. Os dois lados estão ademais separados e
se transformaram em uma acentuada oposição. A oferta está sempre logo
atrás da demanda, mas nunca chega a aten-la exatamente; é muito grande
ou muito pequena, nunca segundo a demanda, porque neste estado
inconsciente da humanidade ninguém sabe quão grande é essa ou aquela. Se
a demanda for maior do que a oferta, o preço sobe, e isso perturba [irritiert]
a oferta, por assim dizer; tão logo esta se manifeste no mercado, os preços
caem e, quando se tornam maiores do que a demanda, a queda dos preços
torna-se tão grande que a demanda volta a ser estimulada. E assim continua,
nunca um estado saudável, mas uma alternância constante de perturbação
[Irritation] e relaxamento, que exclui todo o progresso, uma oscilação eterna
sem nunca alcançar a meta. Essa lei, com seu ajuste constante, em que o que
aqui se perde se recupera ali, o economista a considera maravilhosa. É o seu
principal orgulho, ele não se cansa de olhar para ela em todas as
circunstâncias possíveis e impossíveis. E, no entanto, é óbvio que essa lei é
uma lei pura da natureza, não uma lei do espírito. Uma lei que cria a
revolução. O economista apresenta sua bela teoria de demanda e oferta,
prova a voque "nunca se pode produzir em demasia", e a prática responde
com as crises comerciais que se repetem tão regularmente quanto os cometas
e das quais agora temos uma a cada cinco a sete anos, em média. Durante 80
anos, essas crises comerciais ocorreram com a mesma regularidade que as
grandes epidemias do passado e trouxeram mais miséria e mais
antieticidade [Unsittlinchkeit] do que essas (cf. WADE, Hist[ory] of the
middle and working classes, Londres, 1835, p. 211). É claro que essas
revoluções comerciais confirmam a lei, elas a confirmam em toda a extensão,
mas de uma maneira diferente daquela que o economista quer que
acreditemos. O que se deve pensar de uma lei que pode ser aplicada por
meio de revoluções periódicas? É uma lei natural baseada na inconsciência
dos envolvidos. Se os produtores enquanto tais soubessem quanto precisam
os consumidores, se organizassem a produção, se a distribuíssem entre si, a
flutuação da concorrência e sua tendência à crise seriam impossíveis.
Produzindo com consciência, como homens, não como átomos fragmentados
sem consciência genérica, colocar-se-iam acima de todos esses opostos
artificiais e insustentáveis. Enquanto continua a produzir da maneira atual,
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de forma inconsciente e impensada, deixada ao acaso, as crises comerciais
permanecem; e cada crise sucessiva deve se tornar mais universal, isto é, pior
do que a anterior, deve empobrecer um número maior de pequenos
capitalistas e aumentar o número da classe que vive do trabalho em
proporções crescentes ou seja, a massa de trabalho a ser empregada, o
principal problema de nossos economistas, deve aumentar visivelmente e,
finalmente, provocar uma revolução social como a sabedoria escolar
[Schulweisheit] dos economistas não pode sonhar.
A eterna oscilação dos preços, criada pela relação concorrencial,
remove completamente o último traço de eticidade do comércio. Não se trata
mais de valor; o mesmo sistema que parece atribuir tanto peso ao valor, que
à abstração do valor em dinheiro a honra de uma existência particular o
mesmo sistema destrói todo valor inerente por meio da concorrência e muda
a relação de valor de todas as coisas entre si diariamente e de hora em hora.
Onde neste redemoinho está a possibilidade de uma troca fundada
eticamente? Nesses altos e baixos contínuos, cada um deve procurar
encontrar o momento mais favorável para comprar e vender; cada um deve se
tornar um especulador, ou seja, colhendo onde não semeou, enriquecendo
com a perda dos outros, calculando sobre o infortúnio dos outros ou
deixando que o acaso o beneficie. O especulador sempre conta com as
desgraças, principalmente safras ruins, ele usa de tudo, como, em sua época,
o incêndio de Nova York
7
, e o ponto culminante da antieticidade é a
especulação na bolsa de valores em fundos, por meio da qual a história, e nela
a humanidade, é reduzida a meios de satisfazer a ganância do especulador
que calcula ou arrisca. E oxalá o homem de negócios honesto e "sólido" não
se indigne com o jogo do mercado de ações de uma forma farisaica graças a
Deus etc. Ele é tão ruim quanto os especuladores de fundos, ele especula
tanto quanto eles, ele tem de fazê-lo, a concorrência o força a fazer isso, e seu
comércio implica, portanto, a mesma antieticidade que a deles. A verdade da
relação concorrencial é a relação entre a força de consumo e a força de
produção. Em uma condição digna de humanidade, não haverá outra
concorrência senão esta. A comunidade terá de calcular o que pode produzir
com os meios de que dispõe e, de acordo com a relação entre sua potência
produtiva e a massa de consumidores, determinar em que medida deve
aumentar ou diminuir a produção, até que ponto deve ceder ao luxo ou
limitá-lo. Mas, para julgar corretamente sobre essa relação e o aumento da
capacidade produtiva que se espera de uma condição razoável da
comunidade, meus leitores podem consultar os escritos dos socialistas
ingleses e, em parte, também de Fourier.
7
[NTE] No ano de 1835 ocorreu em Nova York um incêndio de grandes proporções,
praticamente toda a Nova York holandesa foi destruída pelo fogo. Estima-se que cerca de
600 casas foram arrasadas nesse incidente.
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A concorrência subjetiva, a rivalidade do capital contra o capital, do
trabalho contra o trabalho etc. será, sob essas circunstâncias, reduzida à
rivalidade baseada na natureza humana e que, até agora, apenas foi
desenvolvida por Fourier de uma maneira aceitável; após a superação dos
interesses opostos, estará limitada à sua própria esfera peculiar e razoável.
_____
A luta do capital contra o capital, do trabalho contra o trabalho, da
terra contra a terra leva a produção a um calor febril que vira de cabeça para
baixo todas as relações naturais e razoáveis. Nenhum capital pode resistir à
concorrência do outro se não for levado ao mais alto nível de atividade.
Nenhuma parcela de terra pode ser usada para construir se não aumentar
continuamente sua capacidade de produção. Nenhum trabalhador pode
enfrentar seus concorrentes se não dedicar todas as suas energias ao
trabalho. Quem quer que se envolva na luta da concorrência pode suportá-la
sem o maior esforço de sua força, sem o abandono de todos os fins
verdadeiramente humanos. A consequência dessa hiperatividade, por um
lado, é, necessariamente, um relaxamento, por outro. Quando a oscilação da
concorrência é escassa, quando a demanda e a oferta, o consumo e a
produção são quase iguais, então o desenvolvimento da produção deve chegar
a um estágio em que haja tanto excedente de força produtiva que a grande
massa da nação não tenha nada para viver; que as pessoas morram de fome
por pura sobreabundância. A Inglaterra es nessa posição insana, nesse
absurdo vivo, algum tempo. Se a produção oscila mais fortemente, como é
necessário em decorrência de tal condição, então ocorre uma alternância de
prosperidade e crise, superprodução e estagnação. O economista nunca foi
capaz de explicar esse posicionamento maluco; para explicá-lo, ele inventou a
teoria da população, que é tão absurda, e ainda mais, do que essa contradição
de riqueza e miséria ao mesmo tempo. O economista não pode ver a verdade;
ele não pode ver que essa contradição é uma simples consequência da
concorrência, porque, do contrário, todo o seu sistema desmoronaria.
Para nós, é fácil explicar a questão. A força produtiva à disposição da
humanidade é incomensurável. A produtividade do solo pode ser aumentada
indefinidamente por meio do uso de capital, trabalho e ciência. De acordo
com os cálculos dos economistas e estatísticos mais capazes (cf. o Principle of
population, de Alison, v. 1, Cap. I e II), a Grã-Bretanha "superpovoada" pode
chegar a produzir em dez anos grãos suficientes para seis vezes sua população
atual. O capital aumenta diariamente; a força de trabalho cresce com a
população, e a ciência sujeita cada vez mais a força da natureza ao homem.
Essa capacidade produtiva incomensurável, se manejada conscientemente e
no interesse de todos, logo reduziria ao mínimo o trabalho que cabe à
humanidade; abandonada à concorrência, ela faz o mesmo, mas dentro da
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contradição. Uma parte da terra é mais bem cultivada, enquanto outra na
Grã-Bretanha e na Irlanda, 30 milhões de acres de boa terra fica selvagem.
Parte do capital circula com tremenda rapidez, outra parte fica morta no
caixão. Alguns dos trabalhadores trabalham 14 ou 16 horas por dia, enquanto
outros permanecem ociosos, inativos, e morrem de fome. Ou a distribuição
surge dessa simultaneidade: hoje, o comércio está indo bem, a demanda é
muito importante, tudo está funcionando, o capital está girando com uma
velocidade maravilhosa, a agricultura está prosperando, os trabalhadores
trabalham até adoecer amanhã haverá uma estagnação, a agricultura não
vale o esforço, extensões inteiras de terra permanecem não cultivadas, o
capital congela no meio do rio, os trabalhadores não têm ocupação e o país
inteiro labora em uma riqueza supérflua e uma população supérflua.
O economista não pode reconhecer este desenvolvimento da questão
como o correto; caso contrário, como eu disse, ele teria de desistir de todo o
seu sistema da concorrência; ele teria de ver o vazio de sua oposição entre
produção e consumo, entre população supérflua e riqueza supérflua. Mas,
uma vez que não poderia ser negado, para alinhar esse fato à teoria foi
inventada a teoria da população.
Malthus, o autor desta doutrina, sustentou que a população sempre
pressiona os meios de subsistência, que, à medida que a produção aumenta, a
população aumenta na mesma proporção e que a tendência inerente à
população de aumentar além dos meios de subsistência disponíveis é a causa
de toda miséria e cio. Porque, se muitas pessoas, elas m de ser
colocadas fora do caminho de uma forma ou de outra, ou mortas
violentamente ou mortas em função da fome. Mas, quando isso acontece,
novamente uma lacuna que é imediatamente preenchida novamente por
outros aumentos da população, e assim a velha miséria começa novamente.
Sim, este é o caso em todas as condições, não apenas no estado civilizado,
mas também no estado natural; os selvagens da Nova Holanda
8
, dos quais
cada um dispõe de uma milha quadrada
9
, sofrem com a superpopulação tanto
quanto a Inglaterra. Em suma, se quisermos ser coerentes, temos de admitir
que a terra estava superpovoada quando havia apenas um homem. As
consequências desse desenvolvimento são que, uma vez que os pobres são
precisamente os supérfluos, nada deve ser feito por eles, a não ser tornar para
eles a morte por inanição o mais fácil posvel, convencê-los de que não se
pode mudar nada e que não salvação para a sua classe a não ser
reproduzir-se o mínimo possível, ou, se isto não funcionar, é ainda melhor
que se estabeleça uma instituição estatal para a matança indolor dos filhos
8
[NTI] Antiga denominação da Austrália.
9
[NTE] A milha inglesa equivale a 1.609 m.
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Friedrich Engels
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dos pobres, como sugere "Marcus"
10
segundo o qual pode haver dois filhos
e meio para cada família da classe trabalhadora; mas tudo o que vier a mais
será morto sem dor. Dar esmolas seria um crime, pois ajuda a aumentar o
excedente populacional; mas será muito vantajoso se a pobreza se
transformar em crime e as casas dos pobres se tornarem instituições penais,
como foi feito na Inglaterra por meio da nova lei "liberal" dos pobres
11
. É
verdade que esta teoria está muito mal alinhada com o ensino da Bíblia sobre
a perfeição de Deus e sua criação, mas uma refutação ruim usar a Bíblia
contra os fatos"!
Devo elaborar ainda mais essa doutrina infame e vil, essa hedionda
blasfêmia contra a natureza e a humanidade, e levar suas consequências
ainda mais longe? Aqui, finalmente levamos a antieticidade do economista ao
auge. O que são todas as guerras e horrores do sistema de monopólio contra
essa teoria? E é precisamente ela a pedra angular do sistema liberal de
liberdade de comércio, cuja derrubada resulta na ruína de todo o edifício.
Pois, se a concorrência foi provada aqui como a causa da miséria, da pobreza
e do crime, quem então se atreverá a falar a seu favor?
Na obra acima citada, Alison abalou a teoria de Malthus apelando para
a força produtiva da terra e contrariando o princípio de Malthus com o fato
de que cada homem adulto pode produzir mais do que precisa, um fato sem o
qual a humanidade não poderia se multiplicar, nem mesmo existir; de que
mais os ainda não adultos poderiam viver? Mas Alison não vai ao fundo da
questão e, portanto, finalmente volta ao mesmo resultado que Malthus.
Embora ele prove que o princípio de Malthus está incorreto, ele não pode
negar os fatos que o levaram a enunciar esse princípio.
Se Malthus não tivesse considerado a questão de forma tão unilateral,
deveria ter visto que o excedente de população ou a força de trabalho está
sempre ligada à riqueza excedente, ao capital excedente e à propriedade
fundiária excedente. A população é grande onde a força produtiva é muito
grande. A condição de todos os países superpovoados, especialmente a
Inglaterra, desde a época em que Malthus escreveu, mostra isso claramente.
Esses eram os fatos que Malthus deveria considerar em sua totalidade e cuja
consideração deveria levar ao resultado correto; em vez disso, ele escolheu
10
[NTI] Sob o pseudônimo de "Marcus", apareceram na Inglaterra do final da década de
1830 alguns panfletos nos quais a teoria misantrópica malthusiana foi pregada. Em
particular: On the possibility of limiting populousness, editado por John Hill, Block Horse
Court, Fleet Street, 1838; e The theory of painless extinction, cuja publicação foi anunciada
em New moral word em 29 de agosto de 1840.
11
[NTI] Trata-se da lei sobre o pauperismo (An act for the amendment and better
administration of the laws, relating to the poor in England and Wales) que entrou em vigor
em 14 de agosto de 1834 e que concedia uma única assistência aos pobres, sua colocação em
trabalho coercitivo. As pessoas chamavam essas casas de trabalho de "Bastilhas para os
pobres".
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Friedrich Engels
282
um, desconsiderando o outro, e assim chegou ao seu resultado insano. O
segundo erro que ele cometeu foi confundir meios de subsistência e
ocupação. Que a população sempre pressiona pelos meios de ocupação, que
tantas pessoas podem ser geradas quanto possam vir a ser ocupadas, enfim,
que a produção de força de trabalho tem sido até agora regulada pela lei da
concorrência e, portanto, também esteve exposta a crises e flutuações
periódicas, é um fato que Malthus é responsável por estabelecer. Mas os
meios de ocupação o são os meios de subsistência. Os meios de ocupação
aumentam em seus resultados finais pelo aumento da força da máquina e
do capital; os meios de subsistência aumentam tão logo a força produtiva é
aumentada em qualquer quantidade. Aqui, uma nova contradição na
economia vem à tona. A demanda do economista não é a demanda real, seu
consumo é artificial. Para o economista, uma demanda real, um
consumidor real, quando se pode oferecer um equivalente pelo que se recebe.
Mas, e se for um fato que todo adulto produz mais do que pode consumir ele
mesmo, que as crianças são como árvores que retribuem abundantemente o
gasto realizado nelas e certamente esses são fatos então, teria de pensar
que todo trabalhador deveria ser capaz de produzir muito mais do que
precisa, e a comunidade, portanto, gostaria de lhe fornecer tudo o que ele
precisa; então, poderia pensar que uma grande família deveria ser um dom
muito desejável para a comunidade. Mas o economista, na aspereza de sua
visão, não conhece outro equivalente além do que lhe é pago em dinheiro
tangível. Ele está tão firmemente preso aos seus antagonismos que os fatos
mais contundentes o incomodam tanto quanto os princípios científicos.
Eliminamos a contradição simplesmente mediante sua superação.
Com a fusão dos interesses agora opostos, o antagonismo entre a
superpopulação aqui e a abundância ali desaparece; o fato maravilhoso, mais
maravilhoso do que todos os milagres de todas as religiões combinados, de
que uma nação deve morrer de fome por causa da riqueza e da abundância
vãs; desaparece a absurda afirmação segundo a qual a terra não tem o poder
de alimentar as homens. Esta afirmação é o ponto mais alto da economia
cristã e que nossa economia é essencialmente cristã, poder-se-ia ter
provado com cada proposição, com cada categoria, e o farei a seu tempo
12
; a
12
[NTI] É difícil estabelecer a qual projeto literário Engels se referia. Ele provavelmente se
referia à história social da Inglaterra, que pretendia escrever e que menciona no final deste
mesmo ensaio. Em sua série de artigos, A situação da Inglaterra (Die Lage Englands in:
Werke Marx-Engels, Band 1; Berlin: Dietz Verlag, 1981), que é um breve esboço preliminar
deste trabalho, Engels considera o ensinamento econômico de Adam Smith e as teorias
utilitaristas de Jeremy Bentham e James Mill uma teoria da dominação da propriedade
privada, do egoísmo, da alienação do homem, que representam a realização dos princípios
derivados da visão e da ordem do mundo cristãs (1981, p. 567). É provável, porém, que
Engels planejasse uma obra específica, de cunho econômico. Um ano depois, por exemplo,
Engels menciona a intenção de preparar um panfleto sobre o economista alemão List (ver
sua carta a Marx de 19 nov. 1844).
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teoria de Malthus é apenas a expressão econômica do dogma religioso da
contradição entre espírito e natureza e a consequente corrupção de ambos.
Espero ter mostrado essa contradão em sua nulidade também no campo
econômico, muito resolvida para e com a religião; a propósito, não
aceitarei nenhuma defesa da teoria de Malthus como competente se ela não
me explicar de antemão, com base em seu próprio princípio, como um povo
pode morrer de fome por causa da pura abundância, e que não harmonize
isso com a razão e com os fatos.
A teoria de Malthus, por sua vez, foi um ponto de transição
absolutamente necessário, que nos fez avançar infinitamente. Por meio dela,
como sobretudo por meio da economia, tomamos consciência da força
produtiva da terra e da humanidade e, depois da suplatanção [Überwindung]
desse desespero econômico, ficamos para sempre protegidos do medo da
superpopulação. Retiramos dela os argumentos econômicos mais fortes para
a transformação social; pois, mesmo que Malthus estivesse absolutamente
certo, essa transformação teria de ser levada a cabo em seguida, porque
somente ela, somente a formação das massas que ela proporciona, torna
possível a restrição moral do instinto de reprodução, que o próprio Malthus
apresenta como o antídoto mais eficaz e mais fácil para a superpopulação.
Por meio dessa teoria pudemos conhecer a mais profunda humilhação da
humanidade, sua dependência das relações de concorrência; mostrou-nos
como, em última instância, a propriedade privada fez do homem uma
mercadoria cuja produção e destruição dependem apenas da demanda;
mostrou-nos como o sistema da concorrência exterminou e extermina
milhões de homens todos os dias; vimos tudo isso e tudo nos leva à superação
dessa humilhação da humanidade por meio da superação da propriedade
privada, da concorrência e dos interesses contrapostos.
A fim de privar o medo geral da superpopulação de todas as bases, no
entanto, voltemos mais uma vez à relação da força produtiva com a
população. Malthus faz um cálculo no qual baseia todo o seu sistema. A
população aumenta em progressão geométrica: 1 + 2 + 4 + 8 + 16 + 32 etc., a
força produtiva do solo, em aritmética: 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6. A diferença é
óbvio, é apavorante; mas está correta? Onde está comprovado que a
capacidade produtiva do solo aumenta na progressão aritmética? A extensão
do solo é limitada, tudo bem. A força de trabalho a ser utilizada nesta
superfície aumenta com a população; vamos supor que o aumento dos
rendimentos pelo aumento do trabalho nem sempre aumenta na proporção
do trabalho; ainda assim, resta um terceiro elemento, que obviamente nunca
conta para o economista, a ciência, cujo progresso é tão infinito e pelo menos
tão rápido quanto o da população. Que progresso a agricultura deve, neste
século, apenas à química, sobretudo, apenas a dois homens Sir Humphry
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Friedrich Engels
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Davy
13
e Justus Liebig
14
? A ciência, entretanto, aumenta pelo menos como a
população; ela aumenta em proporção ao número da última geração; a
ciência avança na proporção da massa de conhecimento que lhe foi deixada
pela geração anterior, isto é, nas condições mais ordinárias, também em
progressão geométrica, e o que é impossível para a ciência? Mas é ridículo
falar de superpopulão enquanto "o vale do Mississippi tiver solo não
cultivado suficiente para transplantar toda a população da Europa"
15
,
enquanto apenas um terço da terra for considerado cultivado e a própria
produção deste terço puder ser aumentada por um fator de seis ou mais
aplicando melhorias que já são conhecidas.
_____
Assim, a concorrência coloca capital contra capital, trabalho contra
trabalho, propriedade fundiária contra propriedade fundiária e, da mesma
forma, cada um desses elementos contra os outros dois. Em uma luta, o mais
forte vence e, para prever o resultado dessa luta, teremos de examinar a força
daqueles que lutam. Em primeiro lugar, a propriedade fundiária e o capital
são mais fortes do que o trabalho, pois o trabalhador deve trabalhar para
viver, enquanto o senhorio pode viver com os seus aluguéis, e o capitalista,
com os seus juros e, em caso de necessidade, com o seu capital ou com as
propriedades fundiárias capitalizadas. A consequência disso é que apenas as
necessidades mais básicas, os meios básicos de subsistência, vão para o
trabalho, enquanto a maior parte dos produtos é distribuída entre o capital e
a propriedade fundiária. Ademais, o trabalhador mais forte desloca o mais
fraco do mercado, o capital maior, o menor, a propriedade funciária maior, a
menor. A prática confirma essa conclusão. São bem conhecidas as vantagens
que o grande fabricante e o grande comerciante têm sobre o pequeno e o
grande proprietários fundiários em relação ao proprietário de uma única
manhã. A consequência disso é que, mesmo em circunstâncias normais, o
grande capital e a grande propriedade fundiária devoram o pequeno capital e
13
[NT] Humphry Davy (Penzance, Cornwall, Reino Unido, 17 dez. 1778 Genebra, Suíça, 29
maio 1829) foi um químico britânico, considerado o fundador da eletroquímica, junto com
Alessandro Volta e Michael Faraday. Davy contribuiu para a identificação experimental de
vários elementos químicos por meio da eletrólise e estudou a energia envolvida no processo,
desenvolveu a eletroquímica explorando o uso da lula ou bateria de Volta. Realizou
importantes estudos na química e foi o responsável por identificar e isolar os elementos
potássio, sódio, bário, estrôncio, cálcio e magnésio.
14
[NT] Justus Freiherr von Liebig (12 maio 1803 18 abr. 1873) cientista alemão que
realizou contribuições importantes nas áreas da agricultura e da biologia química. Foi
considerado o principal fundador da química orgânica. Costuma ser descrito como o pai dos
fertilizantes industriais por seus estudos sobre a importância do nitrogênio e outros
minerais como nutrientes essenciais para as plantas.
15
[NEA] ALISON, Archibald. The principles of population, and their connection with
human happiness v. 1. London, 1840, p. 548.
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a pequena propriedade fundiária de acordo com a lei do mais forte a
centralização da propriedade. Nas crises comercial e agrícola, essa
centralização acontece muito mais rapidamente. A grande propriedade
geralmente se multiplica muito mais rapidamente do que as pequenas, pois
uma parte muito menor da receita é deduzida como despesa da propriedade.
Essa centralização da propriedade é uma lei tão imanente à propriedade
privada quanto a todas as outras; as classes médias devem desaparecer cada
vez mais até que o mundo seja dividido em milionários e pobres, grandes
proprietários de terras e pobres diaristas. Todas as leis, toda divisão da
propriedade fundiária, toda fragmentação possível do capital são inúteis
este resultado deve vir, e virá, se não for precedido por uma transformação
total das relações sociais, uma fusão de interesses contrapostos e uma
superação da propriedade privada.
A livre concorrência, principal palavra-chave de nossos economistas
do dia, é uma impossibilidade. O monopólio pelo menos tinha a intenção, se
não pudesse reali-lo, de proteger o consumidor de fraudes. A abolição do
monopólio abre a porta à fraude. Fala-se que a concorrência tem em si o
antídoto para a fraude, ninguém vai comprar coisas ruins ou seja, cada um
deve ser conhecedor de cada artigo, e isso é impossível , daí a necessidade
de monopólio, que também é encontrada em muitos artigos. As farmácias etc.
devem ter um monopólio. E o artigo mais importante, o dinheiro, precisa do
monopólio acima de tudo. Cada vez que o meio circulante deixou de ser um
monopólio estatal, produziu uma crise comercial e os economistas ingleses,
incluindo o Dr. Wade, admitem aqui também a necessidade de monopólio.
Mas o monopólio também não protege contra o dinheiro falsificado.
Qualquer que seja o lado que se tome frente à questão, um é tão difícil quanto
o outro, o monopólio cria livre concorrência e essa, por sua vez, cria o
monopólio; portanto, ambos devem desaparecer, e essas dificuldades devem
ser eliminadas pela superação do princípio que os produz.
_____
A concorrência permeou todas as nossas condições de vida e
completou a escravidão mútua na qual os homens agora se mantêm. A
concorrência é a nossa grande força motriz que incita nossa antiga e
adormecida ordem social ou melhor, nossa desordem social ,
repetidamente à atividade, mas a cada novo esforço consome também uma
parte da força declinante. A concorrência rege o progresso numérico da
humanidade; tamm rege sua eticidade. Qualquer pessoa que se
familiarizou com as estatísticas do crime deve ter notado a peculiar
regularidade com que este progride a cada ano, com a qual certas causas
produzem certos crimes. A expansão do sistema fabril resulta em aumento do
crime em todos os lugares. O número de prisões, casos criminais, até mesmo
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o número de assassinatos, roubos, pequenos furtos etc. para uma grande
cidade ou distrito pode ser determinado com antecedência todos os anos,
como tem sido feito com bastante frequência na Inglaterra. Essa regularidade
demonstra que o crime também é regido pela concorrência, que a sociedade
cria uma demanda para o crime que é atendida por uma oferta adequada,
que a lacuna provocada pela prisão, pela deportação ou pela execução de
certo mero de pessoas é imediatamente suprida por outras, assim como
toda lacuna na população é imediatamente preenchida de novo pelos recém-
chegados, ou seja, o crime pressiona tanto os meios de punição quanto os
povos os meios de ocupação. O quanto é justo, nestas circunstâncias, à parte
de todas as outras, punir os criminosos, deixo ao critério dos meus leitores. O
que importa para mim, aqui, é apenas provar a expansão da concorrência
para o campo da moral [moralische Gebiet] e mostrar a profunda degradação
a que a propriedade privada trouxe as pessoas.
_____
Na luta do capital e da terra contra o trabalho, os dois primeiros
elementos têm uma vantagem especial sobre o trabalho o auxílio da ciência,
pois também esta é dirigida contra o trabalho nas condições atuais. Quase
todas as invenções mecânicas, por exemplo, foram motivadas pela escassez
de mão de obra, especialmente as máquinas de fiar algodão Hargreaves,
Crompton e Arkwright. Toda grande demanda por trabalho gerou uma
invenção que aumentou a força de trabalho de forma significativa; por
conseguinte, desviou a demanda por trabalho humano. A história da
Inglaterra de 1770 até o presente é uma evidência contínua disso. A última
grande invenção na fiação de algodão, a Self-acting Mule
16
, foi causada
inteiramente pela demanda de trabalho e do aumento dos salários ela
dobrou o trabalho da máquina e, dessa forma, reduziu o trabalho manual à
metade, deixou metade dos trabalhadores sem ocupação e reduziu, assim, os
salários dos outros pela metade; destruiu uma conspiração dos trabalhadores
contra os fabricantes e destruiu o último resquício de força com que o
trabalho havia suportado a luta desigual contra o capital (ver Dr. Ure,
Philosophy of manafactares, v. 2). O economista diz que o resultado final é
que o maquinário é favorável aos trabalhadores, tornando a produção mais
barata e, assim, criando um mercado novo e maior para seus produtos e,
desse modo, finalmente ocupando os trabalhadores que haviam ficado sem
trabalho. Certo, mas o economista esquece pois aqui que a produção de força
16
[NTE] quina fiadora: entre 1738 e 1835 se produziram na Inglaterra muitas invenções
importantes para a mecanização da fiação, muito significativas para o desenvolvimento do
capitalismo. Em 1764, James Hargreaves inventou a máquina “Jenny”, em 1779, Samuel
Crompton inventou outra máquina manual para fiar; em 1875 Richard Robert inventou a
Self-acting Mule ou Selfaktor (a “automática”).
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de trabalho é regulada pela concorrência, que a força de trabalho sempre
pressiona os meios de ocupação? Esquece que, se a vantagem que traz
consigo a maquinaria se materializar, haverá de novo um excedente de
concorrentes esperando por trabalho, então, tornar-se ilusória essa
vantagem, enquanto a desvantagem isto é, a retirada repentina dos meios
de subsistência para metade e a queda dos salários para a outra metade te o
trabalhador não é ilusória? O economista esquece que o progresso da
invenção nunca pára, que essa desvantagem se perpetua? Ele esquece que,
com a divisão do trabalho tão infinitamente aumentada por nossa civilização,
um trabalhador pode viver se puder ser usado nesta máquina específica
para este trabalho insignificante em particular? Esquece que a passagem de
uma ocupação para outra, mais nova, é quase sempre uma impossibilidade
decisiva para o trabalhador adulto?
Ao considerar os efeitos da máquina, chego a outro tema mais
distante, o sistema fabril, e não tenho inclinação nem tempo para lidar com
isso. A propósito, espero ter em breve a oportunidade de desenvolver
plenamente a hedionda antieticidade desse sistema e de expor
implacavelmente a hipocrisia do economista, em todo o seu esplendor
17
.
Escrito entre o final de 1843 e janeiro de 1844
Publicado por Deutsch-Französische Jahrbücher, Paris, 1844
Como citar:
ENGELS, Friedrich. Esboço para uma crítica da economia política. Trad.
Ronaldo Vielmi Fortes. Rev. Vitor B. Sartori. Verinotio Revista on-line de
Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 263-87,
jul./dez. 2020.
Data do envio: 16 set. 2020
Data do aceite: 7 out. 2020
17
[NEA] Engels pretendia escrever uma tese sobre a história social da Inglaterra, para a qual
havia coletado o material durante sua estada em Manchester (novembro de 1842 a agosto de
1844). Em um capítulo, ele queria lidar com a situação da classe trabalhadora inglesa. Mais
tarde, Engels decidiu dedicar um trabalho especial ao proletariado inglês. Após seu retorno à
Alemanha, ele escreveu A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (cf. Werke Marx-
Engels, v. 2 de nossa edição, pp. 225-506).