DOI: 10.36638/1981-061X.2020.v26.594
Vitor Bartoletti Sartori
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Editorial
Vitor B. Sartori
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A presente edição da Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências
Humanas traz, além dos habituais textos de fluxo contínuo, um dossiê sobre
os 200 anos do nascimento de Friedrich Engels. Trata-se de uma ocasião em
que não somente se rendem elogios a este importante autor, mas também se
tem a possibilidade de reflexão crítica sobre sua obra, o marxismo e a própria
realidade social.
Dentre as diversas posições defendidas nos artigos sobre o autor do
Anti-Düring, certa ênfase ao fato de se tratar do primeiro divulgador da
obra de Marx. E, com isto, pode-se dizer que os marxistas são todos, mesmo
que indiretamente, herdeiros de Engels. Assim, o presente número da
Verinotio pretende auxiliar, mesmo que minimamente, no debate que pode
dar ensejo à mencionada reflexão crítica e autocrítica.
Há, portanto, alguns pontos a serem levantados. de se dizer que,
depois da morte de Marx, as dificuldades engelsianas não foram poucas.
Primeiramente, quer se queira, quer não, ele foi um pensador de estatura
menor que seu grande amigo. Somado a isto, tem-se o fato de explicitamente
ele ter buscado divulgar, e popularizar, posições que não foram suas e que
foram desenvolvidas pelo autor de O capital. Deve-se destacar também a
necessidade que teve o autor do Anti-Düring e todo aquele comprometido
com as lutas de uma época de compreender a complexa tessitura da
realidade, e isto sem o auxílio direto de seu grande amigo, que morreu em
1883. Ou seja, em Engels, e na própria tradição marxista, havia tarefas
bastante díspares e que, embora correlacionadas, imediatamente pareciam
opor-se. Os artigos do presente número abordam estes aspectos de um modo
ou doutro: trazem elementos decisivos do debate em torno da obra de
Friedrich Engels e das consequências das leituras dele e dos marxistas que o
seguiram.
Isto é importante porque a grandiosidade do marxismo, em parte
considerável, decorre da correlação existente entre as tarefas mencionadas,
ligadas a aspectos da formação de alguns pontos centrais para a crítica à
sociedade capitalista: ao rigor de uma tradição intelectual, à formação de uma
consciência comunista de massa e à análise apurada do processo de
desenvolvimento, bem como das contradições e das oposições, que marcam a
realidade social de uma época. Engels, de certo modo, precisou ser
1
Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Autor de Ontologia nos extremos:
o embate Heidegger e Lukács, uma introdução (Intermeios, 2019). Coeditor da Verinotio. E-
mail: vitorbsartori@gmail.com.
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“marxólogo”, ativista político socialista e alguém que, a partir do conhecimento
acumulado e do modo científico de proceder diante da realidade, procurou
apreender as determinações desta última. E o fez tanto ao procurar explicitar
as dimensões mais universais da realidade efetiva de uma época quanto no que
diz respeito à especificidade de cada formação social em cada momento do
desenvolvimento histórico do sistema econômico capitalista e de um povo.
Se teve o mesmo sucesso que Marx nesta última empreitada o cabe
levantar aqui, mas os debates trazidos nos artigos do presente doss
adentram, de um modo ou doutro, neste importante problema. O essencial
aqui é destacar que, consciente da determinação social do pensamento, bem
como da função concreta que este exerce na realidade como ideologia, a
tradição marxista, seguindo Engels, buscou uma correlação entre a crítica da
situação presente e a necessária superação da sociabilidade burguesa.
O marxismo, assim, parecia ter por vocação se tornar uma força
material. E, para tanto, precisaria manter sua capacidade analítica, seu rigor e
exercer uma função social por meio da correlação entre os intelectuais e as
massas. Estas últimas, estando educadas naquilo que de melhor haveria no
pensamento ocidental, poderiam criticar as bases do modo presente pelo qual
a civilização explicita-se contraditoriamente: o modo de produção capitalista.
Uma consciência comunista de massa seria, pois, de grande relevo.
Nos 200 anos do nascimento de Engels, porém, sabemos que a história
embora marcada por episódios importantes, em que a unidade destas tarefas
se manifestou de modo mais ou menos meandrado mostrou que as
dificuldades que Engels enfrentou foram muito maiores para seus herdeiros
no século XX. É preciso que se diga, sobre os anos que se passaram depois da
morte de nosso autor: se o centenário de Friedrich Engels foi marcado pelas
possibilidades trazidas à tona pela Revolução Russa, dificilmente achamos
algum intelectual no século XX que tenha realizado tais tarefas de modo pleno.
E, desde o início, o marxismo precisou lidar com as dificuldades encontradas
por Engels. Mesmo V. I. Lênin, se comparado a Engels, tinha uma formação
filosófica problemática. Um autor como György Lukács nem sempre de se
colocar diante das situações concretas da melhor maneira, e com uma análise
cuidadosa e materialista da situação concreta (basta pensar no messianismo e
na associação entre Weber, Hegel e Marx, de História e consciência de classe);
o mesmo vale, ainda que de modo mediado, para alguém como E. Bloch; Rosa
Luxemburgo, grande leitora da economia política e grande política comunista,
foi brutalmente assassinada; A. Gramsci ficou preso durante seu ápice
intelectual e morreu em decorrência de seu tempo na prisão. Karl Korsch
distanciou-se intencionalmente da práxis do movimento comunista. N.
Bukhárin, embora pudesse possuir méritos em certos aspectos de suas teorias,
era claramente dogmático em temas como o do desenvolvimento das forças
produtivas (vale destacar que tanto Gramsci quanto Lukács o atacaram com
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bastante vigor sobre o assunto). Ou seja, a difícil unidade do pensamento e da
prática engelsiana e marxista apareceu nos maiores expoentes do
marxismo do início do século XX de modo trágico e, é claro, correlacionado à
situação histórica da época, marcada por grandes potencialidades e por uma
violenta reação. Esta última foi vigorosa, com o exército branco invadindo a
Rússia revolucionária e, depois, tornou-se efetiva no fascismo, no nazismo e
em outras formas ideológicas irracionalistas, regressivas e afeitas ao ser-
propriamente-assim do capitalismo. E quase não é preciso dizer que, diante da
ameaça fascista, os desafios que já se haviam colocado a Engels reapareceram
de modo fortíssimo. Mostraram-se, também de forma extremamente
complicada na hegemonia do stalinismo no movimento comunista.
O taticismo stalinista foi incapaz de articular estas tarefas de modo
minimamente coerente: sua leitura de Marx era escolástica, sendo este autor
substituído por textos stalinistas de um simplismo atroz; o debate com os
clássicos do marxismo e o desenvolvimento de uma tradição crítica também
ficaram, na melhor das hipóteses, estancados. A análise de realidade era feita
de modo tosco, por meio das formulações dogmáticas da III Internacional. E,
assim, mesmo que a existência da União Soviética possa ter sido um potente
incentivo àqueles que lutaram contra o nazifascismo, o stalinismo foi um
entrave ao desenvolvimento socialista e à realização da unidade colocada entre
as tarefas que apareceram pela primeira vez já na prática e na teoria de
Friedrich Engels.
Voltemos, porém, aos grandes expoentes do marxismo do começo do
século XX: todos, de certo modo, buscaram incansavelmente tal unidade, mas
ela estava condicionada, como não poderia deixar de ser, pela própria
realidade. E esta última foi marcada pelos rumos da Revolução Russa e pela
crescente subordinação do movimento comunista aos caminhos teóricos e
práticos desta, que, também em sua grandiosidade, acabou em parte
considerável por eclipsar aspectos da especificidade nacional de cada formação
social que estudavam ou em que atuavam os marxistas. A importância desta
Revolução, assim, trouxe um aspecto dúplice: mostrou que seria possível a
formação de uma consciência comunista de massa e explicitou a possibilidade
de as formas econômicas capitalistas serem ultrapassadas; porém, também fez
que o mundo todo tivesse um olhar um tanto quanto russo para o socialismo
e para o marxismo.
E, se é verdade que mesmo Marx já havia se voltado para a Rússia, isso
havia ocorrido com a preocupação de destacar a diferença específica entre as
distintas formas de entificação do capitalismo e, por conseguinte, as distintas
vias revolucionárias. Observe-se que o que ocorreu na época foi, de certo modo,
o oposto disso. O que não deixou de ser desastroso.
Para que nos aproximemos da realidade brasileira, podemos dizer que,
à época da Revolução Russa, tanto o marxismo disponível em países não
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europeus quanto a apreensão da particularidade destes países foram bastante
débeis. E isto não decorreu necessariamente da obra de Marx e de Engels
supostamente europeus privilegiados, que, hoje, precisariam passar por uma
crítica “decolonial” , que trataram da Rússia, da China, da Índia, da miséria
alemã, da diferença entre o desenvolvimento americano e o francês, dentre
outros pontos. No século XX, em meio ao centenário de Engels, em grande
parte, a tarefa de divulgar a obra de Marx se deu sem acesso a textos
importantes deste autor, que somente depois seriam publicados. A
popularização da posição marxiana passou também pela ação de propaganda
da II Internacional, cuja interpretação foi marcada fortemente por uma
concepção mecanicista, economicista e evolucionista. Depois, veio o
esquematismo e o dogmatismo da III Internacional. Ou seja, salvo raríssimas
exceções, como Lênin, Gramsci e, em parte, Rosa Luxemburgo, a apreensão da
peculiaridade das formações sociais foi simplesmente ignorada. Os
“marxistas” dos países não europeus também demoraram a se desenvolver de
modo minimamente aceitável e com o mínimo de conhecimento sobre a obra
de Marx, sobre o marxismo e, também, sobre aspectos decisivos da crítica ao
modo pelo qual a entificação do capitalismo se deu em seus países.
Assim, quer se queira, quer não, quando se toma por referência o
movimento socialista, o centenário do pensamento de Engels foi marcado pela
atuação, sobretudo, de intelectuais europeus. Em conjunto, parte destes
grandes pensadores contribuiu enormemente para o movimento, inclusive,
compreendendo a realidade social de seus países com cuidado e buscando e,
por vezes, conseguindo orientar os distintos movimentos revolucionários dos
trabalhadores. No contexto, podemos dizer que a Revolução Russa, e suas
dificuldades iniciais, marcaram o centenário de Friedrich Engels. Uma parte
dos marxistas lidou com as dificuldades enfrentadas por Engels, outra que
triunfaria com o stalinismo, posteriormente parecia não se dar conta sequer
dos reais problemas colocados teórica, prática e efetivamente. Assim,
infelizmente, também podemos pontuar que, tanto pelas razões teóricas que
apontamos acima (e por outras mais graves basta pensar no gradual triunfo
do stalinismo em parte substancial do movimento comunista) quanto por
razões práticas, como o grau de desenvolvimento das forças produtivas de um
país como a Rússia, que se viu de repente isolado, uma tragédia veio a
desenvolver-se. Os rumos do marxismo posterior à morte de Engels (em 1895)
trouxeram grandes dificuldades que foram combatidas de modo hercúleo, mas
que, com o desenvolvimento do século XX, não foram superadas nem mesmo
nos melhores casos.
Não que não tenham existido grandes vitórias da classe trabalhadora.
Hoje, porém, vemos que o socialismo de moldes soviéticos sofreu uma derrota
irreversível. Talvez seja possível dizer que ela não era inevitável; porém, com
as tarefas do marxismo subordinadas a “intelectuais” stalinistas que mais se
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assemelhavam a burocratas, dificilmente tal unidade almejada por Engels e
pelos grandes marxistas poderia ter sido bem-sucedida. Neste sentido
específico, não se pode deixar de dizer que não houve o que comemorar nos
100 anos da Revolução Russa, em 2017. As potencialidades desta Revolução
foram muitas, mas parte de sua herança ligou-se inelutavelmente ao
stalinismo, que, mesmo que possa ser explicado, na época, pelas condições
materiais da União Soviética, foi um entrave ao movimento socialista. Tal
tradição certamente, para dizer o mínimo, é uma degeneração e uma
falsificação de uma posição crítica e revolucionária.
O evento que marca o centenário de Friedrich Engels, e o marxismo que
daí decorreu, teve, portanto, um rumo trágico, assim como foi trágico o destino
dos grandes intelectuais socialistas do início do século XX. Lukács, por
exemplo, precisou render homenagens, mesmo que protocolares, ao
stalinismo, que tanto criticou. Permaneceu, de um modo ou doutro, limitado
pela realidade de sua época e pelas suas esperanças na reforma do sistema
soviético. O marxista húngaro permaneceu isolado e parte substancial de seus
textos de intervenção foi publicada muitos anos depois de escritos. Lênin
morreu cedo, Trotsky foi assassinado a mando de Stálin, Rosa foi assassinada
e Gramsci apodreceu na prisão... Ou seja, mesmo sabendo da unidade das
tarefas que mencionamos, tais intelectuais foram levados pelos rumos do
conturbado século XX, no qual ocorreu, na melhor das hipóteses, o isolamento
e o silenciamento de uma das maiores vozes daquele período. O que nos leva a
uma preocupação sobre o presente: ao analisarmos o pensamento de Engels,
bem como as questões que se colocam a partir dele no século que nos antecede,
as quais marcam os rumos dos intelectuais que mencionamos, podemos dizer
que a farsa vem depois da tragédia? Seria o bicentenário de Engels a reedição
farsesca de seu centenário?
Esta talvez seja uma importante questão a ser respondida no
bicentenário deste autor. Duzentos anos depois de seu nascimento e um pouco
mais de 100 anos depois da Revolução Russa estamos em uma situação, para
dizer o mínimo, nada boa para os marxistas.
Os herdeiros diretos dos grandes pensadores do início do século XX, em
grande parte, morreram ou não tiveram envergadura suficiente. Deste modo,
, na melhor das hipóteses, lukacsianos, leninistas, gramscianos,
luxemburguistas, trotskistas etc. Mas a gigantesca capacidade analítica dos
mestres não está presente nos discípulos. Estes, não raro, utilizam somente
uma espécie de jargão que supostamente estaria presente naqueles em que
embasam sua teoria e sua prática. Ou seja, as tarefas que Engels colocava a si
mesmo e aos marxistas passam longe de serem cumpridas de modo
satisfatório. Adicionam-se, ainda no campo marxista, althusserianos,
discípulos da teoria crítica (de Adorno, Horkheimer, Marcuse, Benjamin, entre
outros) e tantas linhagens afins importantes em diversos aspectos que,
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geralmente organizadas em torno da vida universitária (embora não só),
correm constantemente o risco de se tornarem seitas.
Ainda seria possível dizer que alguma força de maoístas embora
raros e de stalinistas, mais presentes em certa militância socialista que é
saudosa das virtudes, mas, sobretudo, dos vícios do movimento socialista do
século XX. Poderíamos ainda destacar inúmeras vertentes de marxistas. E,
assim, no bicentenário de Engels, aparentemente haveria debates pungentes
entre aqueles que, a partir de Marx, e na esteira do pensamento engelsiano,
buscam criticar o sistema capitalista de produção. Se esta pungência se
colocasse crítica e efetivamente, e se tivesse uma função prática decisiva no
movimento dos trabalhadores, estaria longe o desfecho não mais trágico, mas
cômico e farsesco para os intelectuais marxistas envolvidos nas lutas
anticapitalistas e na alternativa à sociabilidade burguesa. Trata-se de um
grande “se”.
Infelizmente, a capilaridade de tais marxismos no movimento dos
trabalhadores é muito fraca. Aliás, o próprio movimento dos trabalhadores
está em uma crise séria, que precisa ser entendida. E, assim, se as
potencialidades da Revolução Russa marcaram o centenário de Friedrich
Engels, mudanças substantivas na forma pela qual se desenvolveram as forças
produtivas, na organização das relações de produção e no modo pelo qual se
toma consciência destas marcam o bicentenário do autor. Neste contexto, uma
tarefa essencial aos marxistas seria tal qual fez Engels em sua época, ao
analisar o caráter ultrapassado das lutas de barricadas e ao trazer à tona as
mudanças na economia capitalista, advindas dos monopólios e das empresas
por ações considerar com muito cuidado as determinações contemporâneas
do modo de produção capitalista.
Engels, também pautado pela organização do livro III de O capital, em
que tais temas apareciam, partiu de Marx, mas pretendeu ir além,
compreendendo a sua época com todo o cuidado possível. Talvez isto seja
necessário ao marxismo hoje. E, se é verdade que as dificuldades que o autor
do Anti-Düring encontrou foram muitas e que nem sempre sua análise de
realidade esteve plenamente correta, igualmente verdadeiro é que nosso autor
sabia que não bastava repetir aquilo que Marx havia dito. Ele também tinha
consciência de não se podia em hipótese alguma trazer respostas que
mobilizariam os trabalhadores imediatamente, mas que não correspondiam à
verdade da situação concreta. Hoje, por outro lado, não podemos deixar de
notar: a posição dos muitos marxismos que se colocam no mercado das ideias
(e das redes sociais...) é muito distinta daquela de Engels.
Isto, é claro, deve-se à menor envergadura dos intelectuais
contemporâneos, via de regra, escravizados pela divisão do trabalho de modo
muito mais claro e brutal que seus antepassados do século XX. também as
dificuldades naturais da conjugação de rigor analítico na leitura dos clássicos
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(ou seja, não mais de Marx, mas de Engels e Lênin, entre outros), da
tentativa de avançar em teorizações marxistas e da análise de realidade. Isto é,
não se trata de fatores simplesmente ligados à subjetividade e à vontade
individuais. Antes, as determinações de uma época marcada pela derrota do
movimento socialista do século XX (e, mais recentemente, por retrocessos
gritantes no que diz respeito à organização das relações de trabalho) deixa suas
marcas.
Dessa forma, nosso (coloco-me, é claro, dentre aqueles que estão
marcados pelas limitações levantadas acima) marxismo tem dias muito difíceis
pela frente. Para que não seja uma simples expressão cômica e farsesca daquilo
que foi, precisa avançar muito, sendo que suas bases não são as melhores:
no que diz respeito à compreensão dos clássicos, parecemos oscilar entre a
exegese escolástica e as hermenêuticas da imputação, que procuram
“atualidade” em Marx e nos clássicos do marxismo mesmo que seja preciso
deformá-los. Na tarefa de divulgação e popularização, não uma imprensa
socialista e as grandes editoras como é de sua natureza precisam ter por
norte o cálculo comercial. Com isto, a popularização de Marx e do marxismo
corre o risco de se alastrar nos rincões das redes sociais, em que, de repente, o
intelectual marxista é forçado a se tornar uma espécie de “influencer”. Sem a
base teórica adequada, e com disputas não raro, bizantinas entre os vários
“ismos” do marxismo atual, a análise de realidade é usualmente rasa,
esquemática e extremamente voluntarista.
Nossa envergadura, certamente, não é semelhante à dos nossos
antepassados; porém, a ausência de autocrítica (muitas vezes, não se sabe
sequer o solo em que se está pisando, mas continua-se: “bola pra frente”!) leva
a consequências sérias. Nem sequer questionamos seriamente as razões de
nossa quase insignificância prática... este talvez seja o primeiro passo para que
não sejamos simplesmente cômicos. Se este questionamento o aparece de
modo sério, os jargões substituem a análise de realidade, o debate marxista
vira simples clubismo e a compreensão da obra de Marx, na melhor das
hipóteses, coloca-se como uma questão meramente escolástica. Certamente,
enunciar um problema não é o mesmo que resolvê-lo; porém, é preciso, com
autocrítica, assumir os problemas de uma época em sua real tessitura. Se é
verdade que a humanidade somente coloca a si mesma problemas que pode
resolver, igualmente verdadeiro é que tal resolução demanda muito de nós.
Uma coisa é séria: damos passos largos à farsa no campo da teoria. Os
marxistas do século XX, que por vezes beiraram certo sincretismo, procuraram
ler Marx por meio de Kant (austromarxistas, Colleti), de Hegel (Lukács de
História e consciência de classe e os frankfurtianos), por Heidegger (Marcuse)
e Husserl (Karel Kosík), Spinoza (Althusser), entre outros. Fizeram-no em
meio aos conflitos teóricos de uma tradição que parecia mais do que nunca ser
uma força material junto ao movimento dos trabalhadores. Não raro, tentaram
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complementar Marx devido a supostas insuficiências de seu pensamento.
Mesmo que seja possível questionar tais insuficiências, este não é nosso ponto,
aqui; cabe destacar somente que, hoje, a questão se coloca de outro modo. De
modo muito pior.
Para iniciar, parece haver certa tentativa de revigorar o stalinismo. Em
um momento em que a especificidade do capitalismo e das formações sociais
precisa ser compreendida com todo o cuidado, procura-se ressuscitar
justamente a tradição que é mais cega a isto. Não debaterei os meandros da
questão, ou as tentativas supostamente historiográficas de combater tal lenda
negra”... mas comparar uma biografia como a de I. Deutscher, por exemplo,
àqueles que procuraram recentemente retirar Stálin do ostracismo é de uma
covardia gigantesca. Deste modo, é preciso falar daqueles que se contrapõem
ao stalinismo ou que procuram complementar suas insuficiências. Aqui, a
farsa já está consumada: em vez de se tomar como referência as insuficiências
de Marx, toma-se Stálin como ponto de partida.
Continuemos, pois. Voltamo-nos àqueles que se opõem ao stalinismo.
Não raro, fora de poucos círculos, ou uma leitura atenta de Marx é vista
como purista, de modo que nem sequer se busca compreender o autor que
nome a uma tradição, ou tal leitura é vista como um exercício simplesmente
filológico (basta pensar em algumas declarações de certos membros da
MEGA2, como bem alertou entre nós Maurício Vieira Martins); em esquerdas
marxizantes, são imputados diversos temas contemporâneos, e nem sempre
bem colocados, ao pensamento do autor. Deste modo, Marx aparece como
culpado por não ter tratado daquilo que se coloca em nosso capitalismo senil
como, de imediato e na superfície, fundamental. Não seria a anatomia do
homem a fornecer uma das chaves à anatomia do macaco; a anatomia de um
corpo putrefato é tomada como referência e procura colocar-se como A chave
do presente; e, deste modo, a presentificação sem qualquer mediação tende a
marcar inúmeras hermenêuticas da imputação. Assim, seria preciso
complementar Marx não mais com grandes autores da filosofia que eles
seriam todos homens, brancos, europeus, sendo preciso um pensamento
realmente decolonial, não eurocêntrico, não heteronormativo etc. , mas a
partir do mercado de ideias que marca a imediatidade das lutas sociais.
Os campos em que se deveria beber são muitos: as redes sociais, as
lideranças de movimentos sociais, que são marcadas por um antimarxismo e
antissocialismo gritantes, e, no limite, quaisquer autores e autoras que
pareçam cumprir uma função crítica diante dos adversários teóricos. E, assim,
de repente, parece o haver o que apreender objetivamente no pensamento
de Marx, no marxismo e na própria realidade.
Parece tratar-se de marcar posição, de modo que a complementação do
marxismo se aproxima bruscamente de uma forma de nominalismo muito
perigosa: o essencial não é mais a apreensão da realidade que permite que
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possamos operar em meio às possibilidades e contradições desta , mas a
contraposição aos inimigos práticos e teóricos. O taticismo que era típico do
stalinismo reaparece, com igual cegueira, com menos destaque e importância,
de modo igualmente caricato, mas com outra face. Para marcar posição, parece
que a própria ciência é um adversário... parece que não colocações sérias
sobre a estratégia socialista são deixadas de lado: a própria objetividade do real
o é. E, assim, fica-se refém daquilo que imediatamente se combate. Lemas do
mercado de ideias mencionado, ligados por jargões, operam de modo que
marca posição, certamente. Por vezes, os pontos de vista são até mesmo
acertados; porém, compreende-se pouco ou nada da realidade e, assim,
transformá-la é cada vez mais difícil.
Também por isto, no campo da prática, não caminhamos muito bem, já
que nem sequer conseguimos compreender a especificidade do capitalismo em
que vivemos.
Muitas vezes, não reconhecemos derrotas avassaladoras que a classe
trabalhadora sofreu. E, por isto, é preciso que a crítica e a autocrítica que são
o mínimo que se espera daqueles que pretendem contestar substancialmente
um modo de produção voltem a ser levadas a sério. Se não queremos ser um
pastiche ridículo, precisamos enterrar os mortos. Com isto, pode-se
reconhecer nossas derrotas para que, então, as possibilidades do presente
possam ser compreendidas. Assim, as tarefas colocadas por Engels talvez
possam ter uma função ativa hoje. O que somente faz algum sentido se
conseguirmos explicar primeiramente as razões da falência do projeto
socialista no século XX, as derrotas que presenciamos no século XXI e, é claro,
a relação entre as leis imanentes do modo de produção capitalista e a figura
atual deste sistema de produção. Seo o fizemos, no melhor dos casos,
seremos o pastiche e a versão farsesca da esquerda do século XX. Não basta a
vontade para reverter tal situação, sendo preciso compreender as próprias
questões que estão colocadas ao presente. Se este número da Verinotio ajudar
minimamente para isto, acredito que terá sido dado um de muitos passos
necessários.
Como citar:
SARTORI, Vitor B. Editorial. Verinotio Revista on-line de Filosofia e
Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 26, n. 2, pp. 7-15, jul./dez. 2020.