Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
Lukács diante do Direito e da autonomização da
esfera jurídica no capitalismo
*
Vitor Bartoletti Sartori
**
Resumo: Abordaremos a crítica lukácsiana ao
Direito. Mostraremos como, segundo o autor, a
autonomização da esfera é importante para que
ela cumpra sua função na sociedade capitalista.
Assim, para que o Direito se coloque de acordo
com sua especificidade, ele exerce uma função
progressista na emerncia do capitalismo e,
depois, no momento de decadência ideológica da
burguesia, o papel do Direito e dos juristas vem
com doses consideráveis de manipulação.
Palavras-chave: Lukács; Direito; ontologia;
autonomização do Direito; crítica ao Direito.
Abstract: We will address the Lukacisian critique
of law. We will show how, according to the
author, the autonomy of the sphere is important
for it to fulfill its function in capitalist society.
Thus, for the Law to conform to its specificity, it
plays a progressive role in the emergence of
capitalism and, later, in the moment of
ideological decay of the bourgeoisie, the role of
Law and of the jurists comes with considerable
doses of manipulation.
Keywords: Lukács; Law; Ontology;
Autonomization of Law; Critic of Law.
Introdução
Aqui, ao se ter em mente a especificidade dos distintos complexos sociais,
procuraremos mostrar a atualidade e o cuidado da crítica lukácsiana ao Direito. Para
tanto, teremos em conta a obra madura do autor, conformada, sobretudo, em seu
Para uma ontologia do ser social
e em sua
Estética
. Mesmo que sobre este tema
seja possível partir de importantes textos como
Tática e ética
ou
História e
consciência de classe
(Cf. ALMEIDA, 2006; SARTORI, 2020)
,
tendemos a concordar
com Nicolas Tertulian, que diz sobre as duas obras de maturidade que mencionamos:
“as duas últimas grandes obras de György Lukács, representam o ponto culminante
de sua atividade teórica, sua maior contribuição à filosofia contemporânea
(TERTULIAN, 2007a, p. 221).
1
Neste sentido, em nossas explanações sobre o
complexo jurídico, pretendemos extrair da ontologia lukácsiana apontamentos, que
acreditamos serem essenciais, sobre o tema. Mesmo que aqui não seja possível
traçar, com o cuidado devido, os delineamentos mais gerais da temática (Cf.
*
O texto é uma versão atualizada e modificada de texto no prelo, a ser publicado em coletânea
organizada por Lívia Cotrim, Claudinei Cássio e Vitor Sartori.
**
Professor da UFMG, doutor pela USP e mestre pela PUC SP; e-mail: vitorbsartori@gmail.com.
1
Para alguns apontamentos nossos sobre a atualidade da filosofia lukácsiana, Cf. Sartori (2010a;
2010b; 2012; 2013; 2014; 2015a; 2015b).
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.597
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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SARTORI, 2010) nem se contrapor com a ênfase necessária às leituras redutoras ou
ecléticas acerca da posição do Direito na obra lukácsiana (Cf. SARTORI, 2015a), ou a
crítica do autor à moral (Cf. SARTORI, 2015b) , abordar a relação entre o Direito e a
autonomização dos complexos sociais pode ser importante, tanto para a
compreensão desta esfera do ser social, quanto para sua crítica. Neste escrito, pois,
apreciaremos a questão da especificidade da esfera jurídica tendo em conta a
questão da autonomização das esferas do ser social frente ao momento econômico
para que, com isto, seja possível uma apreensão cuidadosa da posição lukácsiana
sobre a potencialidade do Direito enquanto campo de lutas sociais. Neste percurso,
procuraremos mostrar que, em Lukács, não se tem a busca por um Direito crítico,
alternativo, insurgente etc.; antes, uma crítica ontológica ao Direito. (Cf. SARTORI,
2010, 2015b).
Sobre o Direito na ontologia lukácsiana
Uma primeira questão a ser levantada, ao se tratar do tema, diz respeito à
posição de Lukács quanto ao modo pelo qual se colocam dois equívocos simétricos
na apreensão do ser-propriamente-assim da sociedade: de um lado, ter-se-ia certa
forma de reducionismo econômico encontrado no marxismo vulgar (e no stalinismo);
doutro, haveria a fetichização (mais ou menos mediada) dos complexos do ser social,
presente de modo pungente na ciência burguesa. (Cf. LUKÁCS, 1959, 2010, 2013).
Como aponta o autor, após realizar sua análise acerca da especificidade do Direito:
2
É possível tirar uma importante conclusão para o funcionamento e a
reprodução dos complexos sociais parciais, a saber, a necessidade
ontológica de uma autonomia que não pode ser prevista nem
adequadamente apreendida no plano lógico, mas que é racional no plano
ontológico-social e uma peculiaridade de desenvolvimento de tais
complexos parciais. Por essa razão, estes conseguem cumprir suas funções
dentro do processo total tanto melhor quanto mais enérgica e
autonomamente elaborarem a sua particularidade específica. Isso fica
diretamente evidente para a esfera do Direito. (LUKÁCS, 2013, p. 248).
Lukács trata do Direito ao passo que diz: “a intenção era apenas dar um
vislumbre dos contornos mais gerais desse complexo, visando apreender os
2
Importante destacar que os propósitos da análise lukácsiana do Direito são, até certo ponto,
bastante modestos. Diz o autor: “nem aqui nem em outro lugar, essas análises se propõem a fazer
uma tentativa de esboçar uma ontologia social sistemática da esfera do Direito (LUKÁCS, 2013, p.
248). Deste modo, a questão do Direito ainda pode ser bastante desenvolvida a partir de Lukács. O
autor mesmo fala que na
Ontologia
fez “parcas e fragmentárias alusões” (LUKÁCS, 2013, p. 248)
ao tema. Para um delineamento geral da questão Cf. Sartori (2010). Para uma análise mais cuidadosa
da relação entre Direito e moral, Cf. Sartori (2015b); para a relação entre Lukács e a teoria do Direito
contemporânea, Cf. Sartori (2015b).
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princípios do seu funcionamento” (LUKÁCS, 2013, p. 237). E isto certamente não é
pouco, que implica na busca de uma apreensão cuidadosa da especificidade deste
complexo do ser social.
No entanto, claro, não se trata de uma análise exaustiva acerca da temática; até
mesmo por ela não se pretender como tal. Este complexo social parcial que
trataremos neste texto somente na medida em que buscamos explicitar o modo pelo
qual se coloca o complexo jurídico na obra lukácsiana seria exemplar ao tratar do
desenvolvimento, ao mesmo tempo, unitário de multifacetado do ser da efetividade.
Aqui, portanto, procuramos expor somente o modo pelo qual o “pouco” que Lukács
trata do complexo jurídico pode ser de enorme ajuda na compreensão acerca do
modo como a mediação jurídica se põe no desenvolvimento histórico e objetivo da
sociedade capitalista.
A questão é bastante importante, que, de acordo com Lukács, os próprios
“funcionamento e reprodução” dos distintos complexos dependem da “autonomia”
de cada complexo parcial ao mesmo tempo em que a reprodução social pode
ocorrer tendo em conta o complexo social total.
3
Ou seja, o modo pelo qual a
totalidade social é conformada enquanto tal depende da autonomia dos complexos
parciais (como o Direito), ao mesmo tempo em que esta autonomia não pode figurar
senão como um fator, um momento do desenvolvimento do todo (Cf. SARTORI,
2010). Para que tragamos à tona diretamente aquilo que abordamos: segundo o
marxista húngaro, o Direito tem sua especificidade e sua autonomia, somente ao
passo que se coloca como dependente do desenvolvimento do todo social, do
complexo social total.
4
A conformação objetiva do todo social, por sua vez, depois de
3
Lukács define o ser social como “complexo de complexos”. Ter-se-ia “o fato ontológico de que todos
os atos, relações etc. por mais simples que possam se apresentar à primeira vista são sempre
correlações entre complexos, pelas quais os elementos desses têm uma operatividade real somente
como parte constitutiva do complexo ao qual pertencem. [...]. De maneira que o ser social, até em seu
estágio mais primitivo, representa um complexo de complexos, onde interações permanentes quer
entre os complexos parciais quer entre o complexo total e as partes (LUKÁCS, 1981, p. IV).
4
Tem-se no ser-propriamente-assim do Direito esta relação que apontamos: “por trás da
especialização reiteradamente exigida dos representantes da esfera do Direito, oculta-se um problema
referente à reprodução do ser social que não deixa de ser importante. Ao expandir-se quantitativa e
qualitativamente, a divisão social do trabalho gera tarefas especiais, formas específicas de mediação
entre os complexos sociais singulares, que, justamente por causa dessas funções particulares,
adquirem estruturas internas bem próprias no processo de reprodução do complexo total. Com isso,
as necessidades internas do processo total preservam a sua prioridade ontológica e, por essa razão,
determinam o tipo, a essência, a direção, a qualidade etc. nas funções dos complexos mediadores do
ser. Contudo, justamente pelo fato de o funcionamento correto, no nível mais elevado do complexo
total, atribuir ao complexo parcial mediador funções parciais particulares, surge nesse complexo
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determinado grau de desenvolvimento das sociedades marcadas pelo antagonismo
entre classes sociais, é impensável sem a autonomia do complexo jurídico. Tem-se
reprodução social da sociedade capitalista e Direito ligados intimamente.
Deste modo, primeiramente, para uma compreensão adequada da questão,
devemos ressaltar sobre o que diz o autor: tem-se, na reprodução do ser social, uma
autonomia dos complexos parciais que não é simplesmente “epistêmica”; antes, há
uma “necessidade ontológica de uma autonomia que não pode ser prevista nem
adequadamente apreendida no plano lógico”; aquilo que explica a autonomia do
Direito não está colocado, por conseguinte, no terreno de uma teoria do
conhecimento que separe distintos objetos” para ciências parcelares específicas,
com lógicas específicas”.
5
Antes, em meio ao devir das contradições sociais, tem-se
a “necessidade ontológica de uma autonomia”, de tal feita que o modo pelo qual
desenvolve-se a autonomia do Direito depende da própria conformação histórica e
objetiva da realidade efetiva e das distintas funções que este complexo parcelar
têm frente a última (Cf. SARTORI, 2016). Lukács, neste sentido, aponta algo que
pode parecer paradoxal à primeira vista: no plano do ser, a autonomia dos distintos
complexos do ser social decorre da inseparabilidade mesma destes complexos frente
ao todo social (Cf. SARTORI, 2010). A autonomia de cada complexo, pois, não pode
ser apreendida no plano “lógico” de modo algum; somente pode ser vista no plano
ontológico, em que os complexos parciais conseguem cumprir suas funções dentro
do processo total tanto melhor quanto mais enérgica e autonomamente elaborarem a
sua particularidade específica”. Para o autor da
Ontologia
, quanto mais autônomos
os complexos, quanto mais eles tiverem desenvolvido “sua particularidade
específica”, e melhor eles conseguirão se colocar efetivamente em meio à reprodução
do ser social. Compreender a especificidade da esfera do Direito e de outras
esferas do ser social não é somente um exercício de erudição, pois: para Lukács,
trata-se de algo essencial para a apreensão do ser-propriamente-assim da sociedade.
parcial chamada à existência pela necessidade objetiva certa independência, certa peculiaridade
autônoma do reagir e do agir, que precisamente nessa particularidade se torna indispensável para a
reprodução da totalidade” (LUKÁCS, 2013, p. 248).
5
Diz Lukács: “é certo que as obras econômicas do Marx maduro estão centradas coerentemente na
cientificidade da economia, mas nada têm em comum com a concepção burguesa, segundo a qual a
economia é mera ciência particular, na qual os chamados fenômenos econômicos puros são isolados
do conjunto das inter-relações do ser social como totalidade e, depois, analisados nesse isolamento
artificial, visando eventualmente relacionar de maneira abstrata o território assim formado com
outros territórios isolados de modo igualmente artificial (o Direito, a sociologia etc.)” (LUKÁCS, 2012,
p. 291).
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Neste sentido, compreender a especificidade do Direito, por exemplo, o
significa adentrar de modo acrítico nos meandros da “ciência do Direito” ou da
“teoria do Direito” (Cf. SARTORI, 2015a); antes, tem-se a busca pela apreensão da
autonomia de cada complexo parcelar ao se tratar do modo como real e
efetivamente estes complexos, somente ao passo que se desenvolvem na história
com características e determinações específicas, têm funções distintas na realidade
efetiva. Assim, para Lukács, captar o ser-propriamente-assim da sociedade somente é
possível com uma compreensão cuidadosa da relação existente entre os distintos
complexos do ser social entre si e com o complexo social total, a própria sociedade
de uma época. O cuidado que o autor ngaro dedicou à questão da especificidade
de cada esfera do ser social em sua
Ontologia,
de um lado, traz um rigor bastante
grande somente possível a alguém com a erudição do autor (Cf. TERTULIAN, 2009) e,
doutro, traz uma posição decididamente contrária à conformação da sociedade atual,
conformação essa somente compreensível a partir de uma análise cuidadosa da
efetividade e contrária ao esquematismo stalinista.
Sobre a autonomia do complexo do Direito e a atividade dos juristas
Relacionada intimamente a esta questão mais geral, tem-se a necessidade de
tratar do modo pelo qual a atividade social relaciona-se à autonomia dos complexos
sociais parciais, tendo-se, inclusive, uma incompreensão que salta aos olhos no
chamado “marxismo vulgar”. Sobre o assunto, alerta Lukács na
Ontologia
:
O próprio desenvolvimento social providencia que daí não resulte nenhuma
autonomia absoluta, naturalmente não de modo automático, mas na forma
de tarefas a serem cumpridas em cada caso, na forma de reações,
atividades etc. humanas que surgem a partir delas, o importando se,
nessas questões, essa autonomia se torne mais ou menos consciente, não
importando o quanto ela seja mediada ou o quanto seja desigual o modo
como ela se impõe. Nessa questão, o marxismo vulgar não foi além da
declaração de uma dependência niveladora, mecânica, em relação à
infraestrutura econômica (o neokantismo e o positivismo do período
revisionista representaram um castigo justo da história por essa
vulgarização). O período stalinista, por sua vez, exacerbou novamente essa
concepção mecanicista e a transpôs para a práxis social pela força; os
resultados são conhecidos de todos (LUKÁCS, 2013, p. 249).
A ressalva lukácsiana acerca da inexistência de qualquer autonomia absoluta
dos complexos sociais é clara e não deve ser esquecida sob o risco de se ter a
adoção de uma posição atribuída pelo autor à ciência burguesa (Cf. LUKÁCS, 1959)
esta última, em verdade, marcada por uma conformação decadente e, no limite,
apologética (Cf. LUKÁCS, 1968). Para o autor, como mencionamos, a autonomia
mesma das esferas do ser social decorre do contraditório “desenvolvimento social”,
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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em correlação com distintas “tarefas a serem cumpridas”, “atividades”, “formas de
reações” por parte de cada complexo parcial. Estas “tarefas”, por seu turno, partem
da especificidade do desenvolvimento de cada complexo social parcial ao mesmo
tempo em que não são compreendidas senão como um fator, um momento da
reprodução do todo.
Com isto, tem-se que, segundo Lukács, o ser-propriamente-assim da sociedade
traz os nexos objetivos mediante os quais a atividade humana (e a teleologia
inerente a esta atividade) operam real e efetivamente por meio de complexos sociais
parciais (Cf. LUKÁCS, 2013). E, assim, o critério para que se possa “cumprir funções”
de modo mais acertado não é, nem pode ser, epistemológico; está ligado à forma
específica mediante a qual se tem em meio à especificidade de determinado
complexo parcelar um reconhecimento de nexos presentes na própria objetividade
do real. Neste sentido específico, aponta o autor húngaro que tudo se “não
importando se, nessas questões, essa autonomia se torne mais ou menos consciente,
não importando o quanto ela seja mediada ou o quanto seja desigual o modo como
ela se impõe”; a problemática diz respeito ao modo pelo qual, em sua atividade, por
meio de complexos parciais, os homens reconhecem, ativamente estes nexos
objetivos. Ou seja, mesmo que se tenham distintas “formas ideológicas” (como o
Direito) que operam em meio ao real e diante de diferentes conflitos sociais,
6
para o
autor húngaro, o essencial são os nexos presentes objetivamente na realidade efetiva
a especificidade do Direito, assim, poderia ser compreendida tendo em conta o
modo pelo qual este complexo parcial se coloca frente aos nexos mencionados e
presentes na conformação histórica objetiva da efetividade.
7
Este ponto nos parece central (Cf. SARTORI, 2010). E ele remete ao modo real
e efetivo mediante o qual os distintos complexos sociais operam, por meio da
atividade dos indivíduos e de modo mediado pelas lutas sociais, na sociedade. Neste
sentido, é preciso destacar: mesmo que a autonomia dos complexos sociais seja
necessária para a conformação do ser-propriamente-assim da efetividade do ser
6
Segundo Marx, há uma relação íntima destas “formas” com os conflitos sociais: “formas ideológicas,
sob as quais os homens adquirem consciência desses conflitos” (MARX, 2009, p. 46) entre elas,
inclusive, as “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas” (MARX, 2009, p. 46).
7
Como aponta Ester Vaisman acerca da questão da ideologia em Marx e em Lukács: “assim, em
termos gnosiológicos, pode-se determinar se um produto espiritual é falso ou verdadeiro, mas não se
pode através disso determinar se ele pode ou não assumir função ideológica. Essa identificação é
possível através do critério ontológico-prático, ou seja, através do exame da função que este
pensamento desempenha na vida cotidiana efetiva (VAISMAN, 2010, p. 51).
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social de uma época, isto não significa que aqueles que operam por meio dos
complexos parciais tenham consciência acerca da função social que vêm a
desempenhar em sua atividade. Muitas vezes, inclusive, tem-se o oposto. No que
aponta Lukács:
Os legisladores revolucionários da grande virada no fim do século XVIII
agiram, pois, contradizendo seus ideais teóricos gerais, mas em
consonância com o ser social do capitalismo, de modo ontologicamente
coerente, quando em suas constituições subordinaram o representante
idealista da generidade, o
citoyen,
ao
bourgeois
, que representava o
materialismo dessa sociedade (LUKÁCS, 2010, p. 283).
8
Justamente porque os “legisladores revolucionários da grande virada do fim do
século XVIII” trouxeram uma crença inflamada no
citoyen
é que, por meio do Direito,
teriam tido uma função essencial na defesa da sociabilidade que tem por fundamento
o
bourgeois
. Ou seja, eles agiram de tal modo que tudo se deu “contradizendo seus
ideais teóricos” ao mesmo tempo em que, justamente por causa disso, os
acontecimentos transcorreram “de modo ontologicamente coerente”.
A efetividade da situação o pode ser explanada ao se ter em mente uma
“dependência niveladora e mecânica em relação à infraestrutura econômica” à moda
do marxismo vulgar, dado que o Direito não é, nem pode ser, um simples
epifenômeno da “estrutura econômica”. Claro, a questão também não pode ser
apreendida sem se ter em conta a relação meandrada do complexo jurídico com o
complexo econômico; tal equívoco, ocorreu, em geral, no desenvolvimento da
“ciência do Direito”.
9
Trazer o complexo econômico à tona simplesmente não bastaria
pois se teria um equívoco grave no marxismo vulgar: ao considerar as determinações
econômicas, a infraestrutura econômica da sociedade, tem-se que elas foram
pensadas de modo mecanicista e, assim, não se teve em conta qualquer autonomia
real e efetiva dos complexos sociais parciais. Se, com a posição que prepondera na
“ciência jurídica” burguesa (a autonomização absoluta dos complexos parciais) tudo
8
Complementa Lukács com algo importante na compreensão de sua posição sobre os rumos do
capitalismo de sua época: “essa avaliação da importância do ser também dominou mais tarde todo o
desenvolvimento capitalista. Quanto mais energicamente se desenvolvia a produção, tanto mais o
citoyen
e seu idealismo se tornavam componentes dirigidos pelo domínio material-universal do
capital (LUKÁCS, 2010, p. 283).
9
Vale apontar que aquele autor mais criticado por Lukács neste meandro é Hans Kelsen. Para uma
análise da consolidação da “ciência do Direito” (que tem Kelsen por essencial), Cf. Sartori (2015b).
Interessante notar também que as origens do Direito enquanto ciência parcelar dotada de
cientificidade remeter a Savigny (criticado por Marx na
Gazeta Renana
), Bentham (criticado por Marx
duramente em
O capital
e nos
Manuscritos etnológicos)
e a Austin (também criticado por Marx nos
mencionados
Manuscritos
. Aqui, infelizmente, não poderemos tratar deste assunto o qual, aliás, está
ainda a ser estudado com cuidado.
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se como se os nexos reais e efetivos presentes na realidade social fossem, ao
menos, secundários no limite, tratando-se de formas de apreensão da realidade
que flertam com o irracionalismo (Cf. LUKÁCS, 1959), no marxismo vulgar não se tem
a solução para esta posição; tem-se, segundo o autor, algo muito problemático: um
flerte com uma forma de “hiperacionalismo” (Cf. LUKÁCS, 1986). Ou seja, segundo o
marxista húngaro, tem-se equívocos gêmeos: enquanto um lado procurou fetichizar
os complexos sociais parciais como autossuficientes frente às determinações
objetivas do ser-propriamente-assim da realidade efetiva, doutro lado, a questão é
vista de modo muito unilateral e simplificado pelos autoproclamados marxistas, os
quais, em verdade, colocaram-se como seguidores de Stálin, e não do que o autor da
Ontologia
chama de “marxismo concebido acertadamente”.
10
Segundo Lukács, portanto, a outra face da “autonomia absoluta” é justamente a
“declaração de uma dependência niveladora, mecânica, em relação à infraestrutura
econômica”. O renascimento do marxismo seria necessário e essencial neste cenário.
Em verdade, pois, o marxismo vulgar não se saiu muito melhor que a ciência
burguesa, incorrendo em um sério erro para Lukács, imperdoável e “cujos
resultados são conhecidos de todos”. As consequências de tal visão mecanicista
seriam nada menos que assombrosas: “o período stalinista […] exacerbou
novamente essa concepção mecanicista e a transpôs para a práxis social pela
força”.
11
Não só o stalinismo teria deixado de apreender de modo rigoroso a
tessitura da realidade efetiva; as análises stalinistas seriam mecânicas e
desconsiderariam a especificidade de cada complexo social parcial. Partindo de uma
“dependência niveladora”, ter-se-ia um manipulatório claro-escuro e, a partir de uma
análise mecanicista, ter-se-ia a justificação de determinada práxis social transposta
“pela força”.
12
No lugar da compreensão da real tessitura da sociedade e da
meandrada relação entre teoria e práxis, o stalinismo trouxe um taticismo inaceitável,
em que “na práxis a atuação não é regulada pela mais profunda inteligência das
coisas, ao contrário, essa mais profunda inteligência é construída em função da tática
10
Aponta Lukács, de modo enfático, que “o marxismo, concebido acertadamente, [...] não existe mais.
Em seu lugar, temos o stalinismo, e continuaremos a -lo ainda por algum tempo (LUKÁCS, 1972, p.
32). Para que não se deixe dúvida acerca de sua crítica, Lukács complementa: “nãomais marxistas.
Nós simplesmente não temos uma teoria marxista (LUKÁCS,1972, p. 32).
11
Para uma visão cuidadosa acerca da relação de Lukács com o stalinismo, Cf. Tertulian (2007b).
12
Segundo Lukács, “o stalinismo é mais que uma interpretação errônea ou uma aplicação descuidada
do marxismo; é uma negação do marxismo. Com stalinismo não teóricos, táticos (LUKÁCS,
1972, p. 32).
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do agir (LUKÁCS, 1986, p. 63) Assim, tanto a ciência burguesa como o stalinismo
não compreendem a simultânea dependência e autonomia dos distintos complexos
sociais que conformam a totalidade da sociedade. Ambos deixam de apreender o
ser-propriamente-assim da realidade efetiva de tal modo que seria necessário um
verdadeiro renascimento do marxismo, que se colocasse no plano filosófico
contra as degenerações do marxismo e contra a ciência e a filosofia burguesas
13
e,
no campo político e da práxis compreendida no seu sentido mais amplo, contra a
democracia burguesa e contra as vicissitudes do stalinismo (Cf. LUKÁCS, 2010;
2012; 2013).
14
Se o erro da ciência burguesa, no que toca ao Direito, é hipostasiar a
autonomia do complexo jurídico, seria igualmente equivocado transpor o Direito
como expressão simples da luta de classes concebida taticamente (Cf. SARTORI,
2010, 2015a).
A prioridade do econômico e a especificidade do complexo jurídico
Neste sentido, seria de grande importância compreender o modo pelo qual, em
correlação com as determinações objetivas da realidade social, consegue o complexo
jurídico “cumprir suas funções dentro do processo total”, simultaneamente, a partir
de uma dependência diante do complexo econômico, e de sua autonomia frente a
ele. Neste sentido, vale trazer um posicionamento de Lukács, retirado de Marx,
segundo o qual o modo específico pelo qual o Direito opera se mediante o
reconhecimento de nexos objetivos presentes na efetividade do próprio ser social.
Diz o autor:
O fato de o sistema vigente do Direito positivo e a fatualidade
socioeconômica na vida cotidiana subsistirem lado a lado e se encontrarem
ao mesmo tempo emaranhados leva necessariamente aos mais diversos
tipos de más interpretações da relação entre ambos. Polemizando contra tal
teoria errada de Proudhon e em conformidade com a constatação da
prioridade ontológica e da legalidade própria dos processos econômicos,
Marx propôs a seguinte definição: “O Direito é apenas o reconhecimento
oficial do fato”
15
recém constatada do econômico. Essa definição quase
aforística é extremamente rica em conteúdo, contendo os princípios mais
gerais daquela discrepância necessária entre Direito e realidade econômico-
social [...]. A determinação “o fato e seu reconhecimento” expressa com
13
Segundo Lukács, isto implica em uma ontologia do ser social: “o objeto [da ontologia] é o
realmente existente; a tarefa é a de investigar o ente com a preocupação de compreender o seu ser e
encontrar os diversos graus e as diversas conexões em seu interior (LUKÁCS, 1969, p. 15).
14
Lukács aponta que “enquanto os resquícios do período stalinista não forem realmente superados
na teoria e sobretudo na prática, nem a superioridade do método marxista no plano do pensamento,
nem a do modo de vida socialista real no âmbito do ser social conseguirão assumir uma figura
autêntica, visível para o mundo todo, que influencie decisivamente as suas perspectivas (LUKÁCS,
2013, p. 822).
15
“O Direito nada mais é que o reconhecimento oficial do fato” (MARX, 2004, p. 84).
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exatidão a condição de prioridade ontológica do econômico: o Direito
constitui uma forma específica do espelhamento, da reprodução consciente
daquilo que sucede de fato na vida econômica. A expressão
“reconhecimento” apenas diferencia ainda mais a peculiaridade específica
dessa reprodução, ao trazer para o primeiro plano seu caráter não
puramente teórico, não puramente contemplativo, mas precipuamente
prático (LUKÁCS, 2013, p. 237-238).
A concepção lukácsiana acerca do Direito enquanto complexo social parcial
procura romper com os dois equívocos que apontamos acima. O “reconhecimento”
que trata o autor húngaro coloca-se “ao trazer para o primeiro plano seu caráter não
puramente teórico, não puramente contemplativo, mas precipuamente prático. E,
assim, tem-se justamente o modo pelo qual a atividade jurídica cumpre funções
dentro do processo total relacionado ao fato segundo o qual “o reconhecimento
pode adquirir um sentido real e razoável dentro de um contexto prático” (LUKÁCS,
2013, p. 238); e, neste sentido, fica clara a necessidade de um complexo específico
capaz de reconhecer os nexos presentes na “vida econômica” ao mesmo tempo em
que, para fazê-lo, precisa de uma heterogeneidade e de uma autonomia efetivas
diante da primeira. Neste sentido, se Proudhon traz um elogio ao suposto caráter
demiúrgico do complexo jurídico como algo central e verdadeiro (Cf. MARX,
2004), equivoca-se substancialmente:
16
mesmo que sem o Direito determinadas
legalidades presentes na vida econômica” não possam operar na realidade efetiva
de modo adequado, segundo Lukács, isto não significa que o complexo jurídico seja
capaz de “criar” nexos econômicos (Cf. SARTORI, 2014). Neste sentido, aponta o
marxista húngaro “que determinação 'o fato e seu reconhecimento' expressa com
exatidão a condição de prioridade ontológica do econômico”. E ela, simultaneamente,
pressupõe a “discrepância necessária entre Direito e realidade econômico-social”.
Ou seja, ela tem como momento necessário a autonomia do complexo jurídico
ao mesmo tempo em que tal autonomia é colocada real e efetivamente ao
reconhecer praticamente nexos objetivos presentes na própria realidade efetiva. E,
assim, sem nunca deixar de ter um caráter ativo na reprodução do ser social, “o
Direito constitui uma forma específica do espelhamento, da reprodução consciente
daquilo que sucede de fato na vida econômica. O modo como este espelhamento se
pode variar substancialmente e, como mencionamos, nem sempre se tem uma
16
Segundo Engels, “toda a doutrina de Proudhon assenta neste salto de salvação que vai da
realidade econômica para a frase jurídica. O valente Proudhon, sempre que deixa escapar a conexão
econômica e isto acontece nele com todas as questões sérias refugia-se no campo do direito e
apela para a justiça eterna” (ENGELS, 1982, p. 12).
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apreensão reta do ser-propriamente-assim da sociedade (Cf. SARTORI, 2010). Resta
claro, assim, que a “prioridade ontológica do econômico” é essencial ao autor, ao
mesmo tempo em que, por si só, o explicita a peculiaridade do Direito. Se os
“legisladores revolucionários” mencionados pelo marxista húngaro colocaram-se
efetivamente ao lado do desenvolvimento da sociabilidade burguesa, contradizendo
seus ideais teóricos gerais, mas em consonância com o ser social”, é preciso que se
trate do modo pelo qual se conforma a autonomia do Direito em meio ao
desenvolvimento social.
Para tanto, é preciso que se perceba o modo heterogêneo pelo qual o Direito
se coloca frente à economia em correlação com a discrepância necessária entre
Direito e realidade econômico-social”, ao mesmo tempo em que isto precisa ocorrer
ao se ter em mente a conformação da própria ciência do Direito”. Têm-se, ao
mesmo tempo, um complexo que precisa “cumprir suas funções dentro do processo
total” e um modo específico de conformação da autonomia deste complexo parcial
do ser social. Autonomia relativa e dependência diante do econômico são essenciais
neste processo.
Gênese e função do Direito no capitalismo
Ao tratar da relação entre os distintos complexos parciais entre si, bem como
da relação entre estes complexos e o complexo social total (a totalidade da
sociedade), a abordagem lukácsiana é essencialmente histórica, buscando explicitar a
relação existente entre a gênese, a estrutura e a função dos complexos sociais (Cf.
TERTULIAN, 2009). Novamente, portanto, a questão principal para Lukács não é a
apreensão de uma base epistêmica a partir da qual seja possível apreender a
complexidade da tessitura do real; se, em uma ontologia, trata-se de “investigar o
ente com a preocupação de compreender o seu ser e encontrar os diversos graus e
as diversas conexões em seu interior” (LUKÁCS, 1969, p. 15), isto significa que é
central a busca pelo processo real, efetivo e unitário mediante o qual a conformação
objetiva do complexo social em questão se deu. Ou seja, trata-se da apreensão da
objetividade, da processualidade e da historicidade do ser da própria sociedade. Diz
Lukács, neste sentido, que seria preciso tratar da gênese, e mesmo do fenecimento
do Direito: “os limites histórico-sociais da gênese e do fenecimento da esfera do
Direito estão determinados fundamentalmente como limites temporais (LUKÁCS,
2013, p. 244). E, assim, é essencial o processo mediante o qual, com o surgimento
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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do Estado e da propriedade privada, tem-se, em meio ao desenvolvimento da divisão
social do trabalho, também o surgimento do Direito.
17
A forma de regulamentação jurídica, de acordo com Lukács, tem sua gênese e
sua função indissolúveis do processo de desenvolvimento das sociedades classistas
e, em especial, da sociedade capitalista (Cf. SARTORI, 2016). Isto se porque,
mesmo que o autor da
Ontologia
considere formas pré-capitalistas de Direito (grego,
romano, por exemplo), aquilo que a especificidade do complexo jurídico em seu
sentido mais forte é certo modo de totalização, colocado em uma forma universal de
regulamentação social. Esta forma desenvolve-se de modo indissolúvel da
centralização do poder estatal, e é, segundo Lukács, convergente com o momento
em que a relação-capital começa a perpassar de modo abrangente o complexo social
total trata-se do processo em que a dimensão política e a dimensão jurídica
(correlacionadas às contradições ligadas à oposição entre as figuras do
bourgeois
e
do
citoyen)
, “se tornavam componentes dirigidos pelo domínio material-universal do
capital (LUKÁCS, 2010, p. 283). Neste contexto, tem-se, com este domínio, o
embate entre a “regulação universal jurídica de todas as atividades” e a outras
formas de regulamentação social, de tal modo que, aponta o autor húngaro em
Para
uma ontologia do ser social
:
O fato de que, por exemplo, na Idade Média, o poder estatal fosse
descentralizado, de que indivíduos pudessem dispor não de armas, mas
também de séquitos maiores ou menores de homens armados, fazia com
que, naqueles tempos, a imposição de um decreto emanado do Direito
estatal muitas vezes se tornasse uma questão de combate aberto entre o
poder central e a resistência contra ele. A socialização da sociedade impôs
nesse ponto formas de transição tão paradoxais, que para certas épocas o
conteúdo do Direito passa a ser avaliar em que casos tais resistências são
juridicamente válidas. Aqui não é o lugar de esmiuçar as contradições
17
Continua Lukács apontando as relações entre continuidade e descontinuidade acerca do tema:
“gênese e fenecimento são, assim, duas variações qualitativamente peculiares, inclusive unitárias de
tais processos, que, na superação, contêm elementos de preservação e, na continuidade, momentos
de descontinuidade. Assim sendo, já apontamos para o fato de que o estado pré-jurídico da
sociedade gera necessidades da própria regulação, nas quais está compreendida em germe a ordem
jurídica todavia qualitativamente diferenciados. Todavia, não se pode jamais esquecer quanto a isso
que, por trás dessa continuidade, se oculta uma descontinuidade: o ordenamento jurídico em sentido
próprio surge quando interesses divergentes, que poderiam, em cada caso singular, insistir numa
resolução violenta, são reduzidos ao mesmo denominador jurídico, são juridicamente
homogeneizados. O fato de esse complexo tornar-se socialmente importante determina a gênese do
Direito na mesma medida em que o fato de ele se tornar socialmente supérfluo em termos reais será o
veículo do seu fenecimento. Corresponde ao seu caráter puramente ontológico, que essas
considerações não têm, também nessa questão, a intenção de utopicamente ir além do caráter
ontológico geral, claramente reconhecido por Marx, das constatações desse contexto. Todo perguntar
enfático pelo como de sua realização é uma questão de desenvolvimento futuro, que não se pode
prever concretamente” (LUKÁCS, 2013, p. 244-245).
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dessas teorias; elas decorrem principalmente da problemática da passagem
contraditória do feudalismo para o capitalismo, que necessariamente
procurou. Aqui não é o lugar para implementar uma regulação jurídica
universal de todas as atividades sociais, como também simultaneamente
transformou em questão principal da vida social a superioridade e, desse
modo, a autoridade da regulação central perante todas as demais (LUKÁCS,
2013, p. 235).
O modo pelo qual se conforma o Direito, em sua especificidade, e em sua
abrangência totalizante, passa pela transição da sociedade feudal para a sociedade
capitalista (Cf. SARTORI, 2016). Somente nesta última, com base em relações de
produção que abrangem tendencialmente a totalidade das relações sociais de uma
época, é que se coloca real e efetivamente a universalidade do complexo jurídico.
O Direito, pois, é, ao mesmo tempo, uma forma de expressão da “socialização
da sociedade” e o sintoma de uma forma de sociabilidade em que esta socialização
se de modo essencialmente antagônico e estranhado (Cf. SARTORI, 2010). Neste
contexto, aquilo que diz Lukács acerca da gênese do Direito (“o ordenamento
jurídico em sentido próprio surge quando interesses divergentes, que poderiam,
em cada caso singular, insistir numa resolução violenta, são reduzidos ao mesmo
denominador jurídico, são juridicamente homogeneizados”) ganha um sentido
peculiar. Isto ocorre porque a redução “ao mesmo denominador jurídico” perpassa a
estrutura de uma sociedade em que a mediação mercantil se impõe “pelo domínio
material-universal do capital” e diuturnamente, aparece como evidente no cotidiano e
na conformação da tessitura da sociedade (Cf. SARTORI, 2010). E, assim,
concomitante à universalização da mediação econômica que passa pela expansão da
relação-capital e pelo consequente desenvolvimento de um mercado
tendencialmente mundial tem-se a “regulação jurídica universal de todas as
atividades sociais” como uma necessidade na “passagem contraditória do feudalismo
para o capitalismo”. A questão acerca do “combate aberto entre o poder central e a
resistência contra ele” (o feudalismo) é, assim, a expressão e o reconhecimento da
universalização de uma forma de sociabilidade que, política e juridicamente, não
reconhece mais os privilégios medievais. Esta forma de sociabilidade traz um
“mesmo denominador jurídico”, que, com o desenrolar da sociedade capitalista, veio
a aparecer em meio à noção jurídica de igualdade, inseparável da expansão da
relação-capital e da circulação capitalista de mercadorias.
18
18
Em relação à pretensa autonomia do Estado e do Direito, aponta Lukács: “em suma: quanto mais
típica deste idealismo estatal, torna-se aparentemente e formalmente autônomo em relação à vida real
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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Em meio a este processo, o páthos inicial do Direito é bastante nivelador ao
trazer a ruptura com uma ordem com o “poder estatal descentralizado” e com
relações de produção colocadas de modo igualmente pulverizado; a centralização do
poder estatal, que tem por base real a expansão da relação-capital, o “domínio
material-universal do capital”, traz a igualdade jurídica e, posteriormente, a igualdade
política e jurídica frente ao Estado. Segundo Lukács, isto se em oposição ao
privilégio feudal, e, com isso, trata-se de garantir “a imposição de um decreto
emanado do Direito estatal”.
O Direito, por conseguinte, coloca-se enquanto um mediador com abrangência
totalizante real e efetivamente somente em meio à passagem contraditória do
feudalismo para o capitalismo. Neste contexto, em que a sociabilidade burguesa se
impõe, o modo pelo qual esta imposição aparece traz a possibilidade de uma forma
de reconhecimento oficial” somente ao passo que se tem a “questão principal da
vida social a superioridade e, desse modo, a autoridade da regulação central perante
todas as demais Ou seja, no desenvolvimento social, o reconhecimento jurídico é
marcado por lutas sociais (lutas de classe) em que o desenvolvimento do complexo
jurídico enquanto uma forma de “regulação jurídica universal de todas as atividades
sociais” vai ao encontro do desenvolvimento da sociedade civil-burguesa. O essencial
para o que tratamos aqui aparece ao passo que, para o autor húngaro, tanto mais
isso se dá, mais os elementos autônomos conformados enquanto complexos parciais
“se tornavam componentes dirigidos pelo domínio material-universal do capital.
Ao mesmo tempo em que o páthos original do Direito em meio a este processo
pode ter sido também aquele dos “legisladores revolucionários da grande virada do
fim do século XVIII”, tratou-se, ao final, daquilo que viria a se desenvolver “em
consonância com o ser social do capitalismo, de modo ontologicamente coerente,
quando em suas constituições subordinaram o representante idealista da generidade,
o
citoyen,
ao
bourgeois
, que representava o materialismo dessa sociedade”.
Neste momento, segundo Lukács, resta clara a natureza, sobretudo prática, do
da sociedade, quanto mais se torna capaz de aparecer como puro órgão da vontade ideal do povo,
tanto mais ele se torna adequado a servir como instrumento para implementar os interesses egoístas
de grupos capitalistas - e isso precisamente sob a aparência de uma liberdade e igualdade ilimitadas.
Talvez aqui o termo 'aparência' não seja inteiramente exato. Com efeito, aqui o se afirma
simplesmente uma aparência de liberdade e de igualdade, mas precisamente sua essência econômica,
ou seja, o que liberdade e igualdade efetivamente representam na circulação capitalista das
mercadorias (LUKÁCS, 2008, p. 93).
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reconhecimento jurídico, tendo-se seu caráter não puramente teórico, não
puramente contemplativo, mas precipuamente prático Na imposição da regulação
central perante todas as demais”, o páthos do Direito pode até mesmo ser visto
enquanto algo efetivamente revolucionário. Ele é um elemento constitutivo da
dissolução da sociabilidade feudal e da implementação da mediação totalizante do
capital. Figuras de um ímpeto jusnaturalista e idealista (trata-se, sobretudo, do
“representante idealista da generidade, o
citoyen
”)
têm um papel importante neste
momento em que, de acordo com o autor da
Ontologia
, na medida mesma em que o
Direito não tem como se elevar acima do nível de generidade que lhe é inerente”
(LUKÁCS, 2013, p. 243) aquele nível do “mesmo denominador jurídico” que
reconhece os nexos objetivos presentes no desenvolvimento contraditório da
sociabilidade capitalista –, ele traz a aspiração absurda de ancorar, em termos de
conhecimento e em termos morais-legais, no próprio sistema da ordem social
vigente, as transformações radicais dessa ordem, que naturalmente abrangem
também a de seu sistema jurídico (LUKÁCS, 2013, p. 235-236).
Ou seja, na gênese mesma da especificidade do Direito capitalista que se
coloca como um mediador universal, tem-se o convívio de uma tensão entre o Direito
natural sedento de justiça” e o Direito positivo que vem, também por meio do
páthos do jusnaturalismo, a reconhecer “o ser social do capitalismo” e o “domínio
material-universal do capital” como sua base real e efetiva.
A tensão mesma entre Direito positivo e justiça aparece, pois, como constitutiva
da especificidade do complexo jurídico e Lukács não deixa de perceber-se disso (Cf.
SARTORI, 2010).
19
Somente em meio a esta tensão e, com recurso à “a aspiração absurda de
ancorar, em termos de conhecimento e em termos morais-legais, no próprio sistema
19
Como aponta Lukács, “a fim de promover a mediação entre Direito e necessidade de justiça, a
reflexão sobre o Direito produz, por seu turno, a concepção peculiar do Direito natural, igualmente
um sistema do dever social, cujo pôr, no entanto, objetiva alçar o seu sujeito acima do estado
concreto de Direito existente em cada oportunidade. Esse sistema, dependendo das necessidades da
época, é concebido como determinado por Deus, pela natureza, pela razão etc. e, por isso, deve estar
capacitado para ultrapassar os limites impostos pelo Direito positivo. Como Kelsen reconheceu
corretamente, as duas tendências têm trajetos paralelos: intenção, finalidades etc. de uma facilmente
continuam nas de outra, pois ambas devem almejar, sem ter consciência crítica de si mesmas, na
mesma medida, um estágio da generidade mais elevado do que o realizável no Direito positivo. Só na
Ética
será possível expor por que nem a complementação pela moral nem todas as iniciativas
reformistas no Direito natural e a partir dele foram capazes de elevar o Direito acima do nível de
generidade que lhe é inerente (LUKÁCS, 2013, p. 242-243).
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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da ordem social vigente, as transformações radicais dessa ordem, que naturalmente
abrangem também a de seu sistema jurídico”, é que o Direito pôde adquirir sua
autonomia e pôde também realizar as “tarefas a serem cumpridas”, as atividades”,
as “formas de reações” que eram possíveis, e até certo ponto necessárias, em meio
ao ser-propriamente-assim do capitalismo em processo de consolidação. A
“prioridade ontológica” do econômico, no caso do complexo jurídico, expressa-se
justamente ao passo que, neste processo, o Direito pretende ser um demiurgo do
real sem nunca poder sê-lo efetivamente (Cf. SARTORI, 2014).
A estrutura mesma deste complexo parcial traz consigo a oposição entre
Direito positivo (consolidado no reconhecimento de nexos objetivos presentes em
determinado modo de produção), a noção de justiça e o Direito natural, os quais,
com base neste mesmo modo de produção, pretendem ultrapassar as vicissitudes do
presente de uma forma idealista (o que, para Lukács, é impossível).
Em “termos morais-legais”, sem poder questionar sua base real e efetiva, que
está “no próprio sistema da ordem social vigente”, busca este complexo o Direito
natural e o recurso à noção de justiça para supostas transformações radicais dessa
ordem”.
20
A questão se coloca de modo que não se trataria segundo a concepção
jurídica tanto do “reconhecimento oficial do fato”, mas de tentar, em termos
morais-legais”, superar aquilo que não tem como se ultrapassar sem negar “o ser
social do capitalismo” (Cf. SARTORI, 2015b). Tem-se, assim, “um sistema do dever
social, cujo pôr, no entanto, objetiva alçar o seu sujeito acima do estado concreto de
Direito existente em cada oportunidade” (LUKÁCS, 2013, p. 243) convivendo lado a
lado com “tarefas a serem cumpridas”, as “atividades”, as “formas de reações”
bastante coerentes com a implementação da sociabilidade capitalista. De acordo com
Lukács, esta dualidade está presente no ser-propriamente-assim do Direito.
Até certo ponto, pode-se dizer que é justamente esta peculiaridade do Direito
20
Diz Lukács: “nesse ponto, podemos apontar para o fato de que o sonho de justiça inerente a
todas essas exigências, enquanto ele precisar ser e for concebido nos termos do direito, não poderá
levar além de uma concepção em última análise, econômica de igualdade, da igualdade que é
determinada de modo socialmente necessário a partir do tempo de trabalho socialmente necessário e
que se concretiza no intercâmbio de mercadorias, tempo de trabalho socialmente necessário que deve
permanecer como base real e, por essa razão, insuperável no pensamento, de todas as concepções
jurídicas de igualdade e justiça. A justiça que emerge daí consta, por sua vez, no rol dos conceitos
mais ambíguos no desenvolvimento humano. Ela assume a tarefa, para ela insolúvel, de harmonizar
idealmente ou até institucionalmente a diversidade e peculiaridade individual dos homens com o
julgamento dos seus atos com base na igualdade produzida pela dialética do próprio processo da
vida social (LUKÁCS, 2013, p. 243).
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que permite que a autonomia deste complexo parcial traga consigo ideais teóricos”
a serem contraditos pela própria função social da esfera jurídica. Em sua gênese, ao
menos no desenvolvimento de sua especificidade no capitalismo (colocada na
“regulação jurídica universal de todas as atividades sociais”), o Direito segundo o
autor da
Ontologia
aproxima-se da implementação da relação-capital em termos
globais, ao passo que também se coloca bastante ligada à esfera política, expressa
por meio da noção de
citoyen
. Esta proximidade entre a esfera política e a jurídica,
no contexto da linha ascendente da sociabilidade do capital, trouxe um
páthos
revolucionário. Este último tem um duplo aspecto: de um lado, procurou opor-se às
vicissitudes de sua época por meio da noção de justiça e do Direito natural. Doutro
lado, justamente, com essa oposição “idealistaà sua época, ele a consolida em seus
termos reais e efetivos. O “sistema de dever social” jusnaturalista, pois, desenvolve-
se ao opor-se ao seu duplo e ao nunca questionar o próprio sistema da ordem
social vigente”.
De acordo com Lukács, este questionamento com base na “justiça” e no Direito
natural trata de aspectos fenomênicos da realidade efetiva acreditando serem eles o
essencial; tal questionamento procura opor-se “em termos morais-legais” àquilo que
pode ser derrubado com lutas sociais que, explicitamente, procurem a supressão
da própria relação-capital. Deste modo, pois, surge uma contraditória autonomia do
Direito: na medida mesma em que só pode reconhecer padrões colocados na própria
realidade social, acredita criá-los; segundo Lukács, isto decorre da relação existente
entre tarefas a serem cumpridas”, as atividades”, as formas de reações”, de um
lado, e doutro, o modo pelo qual a consolidação da ordem capitalista necessitava de
um posicionamento revolucionário, de um páthos revolucionário e até certo ponto
(aquele da igualdade jurídica), nivelador.
Autonomização do Direito e desenvolvimento capitalista
Vimos, portanto, como que na obra lukácsiana a especificidade e a
autonomia do complexo jurídico desenvolvem-se histórica e objetivamente. Deste
modo, a relação do Direito com a socialização da sociedade e com o processo
contraditório de passagem do feudalismo ao capitalismo restou explicitado. No
entanto, aquilo que dissemos não trouxe ainda à tona o modo pelo qual, depois de
consolidado o modo de produção capitalista, opera real e efetivamente a esfera
jurídica em meio ao complexo e antagônico acontecer social. Neste sentido, Lukács
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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aponta:
Foi a abrangência total cada vez mais abstrata do Direito moderno, a luta
para regular juridicamente o maior número possível de atividades vitais
sintoma objetivo da socialização cada vez maior da sociedade , que levou
ao desconhecimento da essência ontológica da esfera do Direito e, por essa
via, a tais extrapolações fetichizantes [do Direito enquanto um demiurgo do
real, V.B.S.] O século XIX, o surgimento do Estado de Direito que foi se
aperfeiçoando gradativamente, fez com que esse fetichismo aos poucos
esmaecesse, mas apenas para dar origem a um novo. À medida que o
Direito foi se tornando um regulador normal e prosaico da vida cotidiana,
foi desaparecendo no plano geral o
páthos
que adquirira no período do seu
surgimento e mais fortes foram se tornando dentro dele os elementos
manipuladores do positivismo. Ele se torna uma esfera da vida social em
que as consequências dos atos, as chances de êxito, os riscos de sofrer
danos são calculados de modo semelhante ao que se faz no próprio mundo
econômico (LUKÁCS, 2013, p. 236).
O modo pelo qual o domínio material-universal do capital” se apresenta em
um nível jurídico relaciona-se intimamente com a “regulação jurídica universal de
todas as atividades sociais” e com “a abrangência total cada vez mais abstrata do
Direito moderno”. Deste modo, as lutas de classe que permeiam o ser do complexo
jurídico se apresentam como algo até certo ponto nivelador (ligado à noção jurídica
de igualdade) e que procura fazer com que os conflitos sociais sejam “reduzidos ao
mesmo denominador jurídico, [e, assim] são juridicamente homogeneizados
(LUKÁCS, 2013, p. 244). Neste sentido, o modo pelo qual se dá a luta para regular
juridicamente o maior número possível de atividades vitais” reveste as lutas sociais
que ocorrem na passagem do feudalismo ao capitalismo trazendo a “abrangência
total cada vez mais abstrata do Direito moderno”; a redução de tudo ao mesmo
denominador jurídico”, ao mesmo tempo, é irracional e efetiva: de um lado, é efetiva,
dado que, realmente, até mesmo como sintoma objetivo da socialização cada vez
maior da sociedade”, o Direito se torna um mediador tendencialmente universal da
atividade humana realizada na sociedade capitalista. Doutro lado, porém, tal redução
é bastante irracional: no seu próprio processo formativo, o Direito moderno traz um
ímpeto supostamente demiúrgico que o cega diante daquilo que lhe dá base real e
efetiva. Assim, a irracionalidade da esfera jurídica se coloca ao passo que, o
“aperfeiçoamento” do Direito e do “Estado de Direito” leva a este complexo parcial
“ao desconhecimento da essência ontológica da esfera do Direito”.
Ao desenvolver seu ser-propriamente-assim, o complexo jurídico aparece em
seu duplo aspecto: procura um espelhamento adequado do ser social da sociedade e
se como incapaz de realizá-lo devido à sua própria especificidade (Cf. SARTORI,
2010).
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O seu páthos inicial procura contrapor, sem que isso fosse possível, tipos
diversos de “sistema de dever social” ao ser-propriamente-assim da sociedade. Ao
passo que reconhece nexos objetivos presentes na realidade efetiva, o Direito
moderno enxerga-se, porém, como demiurgo deles.
E, assim, seu ímpeto inicial e revolucionário, neste momento de conformação do
Direito burguês, é inseparável do momento contraditório de passagem do feudalismo
ao capitalismo. Neste momento, tem-se, inclusive, “legisladores revolucionários”; com
seu ímpeto democrático-revolucionário (Cf. LUKÁCS, 2010), eles agiram
“contradizendo seus ideais teóricos gerais, mas em consonância com o ser social do
capitalismo”. Este é o cenário em que se tinha no complexo jurídico o
páthos
que
adquirira no período do seu surgimento”. Trata-se do simultâneo processo da
“abrangência total cada vez mais abstrata do Direito moderno”, da regulação
jurídica universal de todas as atividades sociais”, mas, principalmente, da
consolidação do “domínio material-universal do capital”. Portanto, pode-se enxergar
que, depois de determinado momento depois da consolidação deste domínio , o
ímpeto revolucionário do complexo jurídico vai “desaparecendo”: na medida em que
se tem o “surgimento do Estado de Direito” e de seu “aperfeiçoamento”, tem-se um
salto correspondente ao momento da decadência ideológica da burguesia (Cf.
LUKÁCS, 1968).
Tem-se o termo do período heroico da burguesia, em que, claramente,
prepondera um ímpeto jusnaturalista que procura “realizar” a justiça. Do ímpeto
revolucionário, necessário para a consolidação da regulação jurídica universal de
todas as atividades sociais” e do “domínio material-universal do capital”, passa-se à
“prosa” da sociedade capitalista consolidada Lukács é claro: depois de 1848 a
sociedade capitalista se apresenta com toda a sua fealdade consumada” (LUKÁCS,
1965, p. 106). O Direito, como “reconhecimento oficial do fato”, apenas reconhece
esta “fealdade”, mesmo que trate de pintá-la com tintas mais “abstratas” e
homogeneizadoras.
A “abrangência total cada vez mais abstrata do Direito moderno” consolida
este processo. No entanto, com esta forma de consolidação, o salto qualitativo da
esfera jurídica se de modo que a “realização” do páthos
inicial o leva a um
patamar em que o “Direito foi se tornando um regulador normal e prosaico da vida
cotidiana” juntamente com a preponderância de uma abordagem diretamente
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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reificadora e reificante (Cf. SARTORI, 2010): “foi desaparecendo no plano geral o
páthos
que adquirira no período do seu surgimento e mais fortes foram se tornando
dentro dele os elementos manipuladores do positivismo A preponderância de uma
abordagem positivista frente a uma jusnaturalista é parte do próprio processo
constitutivo da efetividade do ser social do capitalismo. E, deste modo, não obstante
ainda se tenha que “o sistema vigente do Direito positivo e a fatualidade
socioeconômica na vida cotidiana subsistirem lado a lado e se encontrarem ao
mesmo tempo emaranhados”, o modo pelo qual o complexo jurídico traz as tarefas
a serem cumpridas”, as “atividades”, as “formas de reações” muda a favor de um
elemento claramente manipulatório.
Se com o jusnaturalismo e com a noção de justiça, em meio à consolidação da
sociedade capitalista, o Direito procurava se apartar da esfera econômica e se
colocar como uma espécie de demiurgo do real, depois da consolidação do “domínio
material-universal do capital”, tem-se a aceitação das vicissitudes da sociedade civil-
burguesa de tal modo que se opera conscientemente na superfície desta. A
passagem do thos original do Direito moderno à sua expressão no positivismo
representa dois ímpetos gêmeos: a busca por um fundamento metafísico e
apologético para a ordem social, e o rechaço à compreensão de qualquer forma de
fundamentação real e efetiva do ser-propriamente-assim da sociedade. Esta
dualidade passa a fazer parte do ser mesmo do complexo jurídico, que se
autonomiza diante da realidade social na medida mesma em que é apologético a
esta.
No século XIX, época em que escrevem Bentham, Austin e Savigny, pais da
“ciência e da “teoria do Direito”, consolida-se o “Estado de Direito” e, segundo
Lukács, justamente neste processo, surge uma forma de fetichismo que, no
desenvolvimento social, vai trazendo o ímpeto manipulatório para o seio da
autonomia do complexo jurídico: com isto, “mais fortes foram se tornando dentro
dele os elementos manipuladores do positivismo Anteriormente se tinha a démarche
do
citoyen
, aquele dos “legisladores revolucionários”; após, prevalece no Direito,
depois do “Estado de Direito” que “foi se aperfeiçoando gradativamente”, o
bourgeois.
Isto tudo se dá na medida mesma em que, por vezes, os juristas
pretendam que sua autonomia seja absoluta.
Segundo Lukács, trata-se do processo
em que o
bourgeois
vence definitivamente e aquilo que caracteriza as chamadas
formas “consequencialistas” de raciocínio adentra o ser-propriamente-assim do
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Direito de modo decisivo.
21
Se formos ser coerentes com o tratamento lukácsiano, podemos dizer que esta
forma mediante a qual se coloca a autonomia do complexo jurídico traz, no limite, a
manipulação como um momento da especificidade deste complexo do ser social (Cf.
SARTORI, 2015a). Ao mesmo tempo em que o sistema vigente do Direito positivo e
a fatualidade socioeconômica na vida cotidiana subsistirem lado a lado e,
portanto, não podem se confundir , diz o autor da
Ontologia
sobre a
regulamentação jurídica e sobre o Direito: “ele se torna uma esfera da vida social em
que as consequências dos atos, as chances de êxito, os riscos de sofrer danos são
calculados de modo semelhante ao que se faz no próprio mundo econômico Se o
páthos inicial do Direito moderno, em meio à implementação da regulação jurídica
universal de todas as atividades sociais”, é o de uma crítica (idealista) aos sintomas
da consolidação do ser social do capitalismo, com o próprio desenvolvimento do
processo que o Direito ajudou a desencadear, os “elementos manipulatórios do
positivismo” preponderam e passa a fazer parte do próprio ser do Direito a aceitação
do “domínio material-universal do capital”.
O funcionamento do Direito positivo está baseado, portanto, no seguinte
método: manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso
surja não um sistema unitário, mas um sistema capaz de regular na
prática o acontecer social contraditório, tendendo para a sua otimização,
capaz de mover-se elasticamente entre polos antinômicos por exemplo,
entre a pura força e a persuasão que chega às raias da moralidade ,
visando implementar, no curso das constantes variações do equilíbrio
dentro de uma dominação de classe que se modifica de modo lento ou
mais acelerado, as decisões em cada caso mais favoráveis para essa
sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis sobre a práxis social.
Fica claro que, para isso, faz-se necessária uma técnica de manipulação
bem própria, o que já basta para explicar o fato de que esse complexo só é
capaz de se reproduzir se a sociedade renovar constantemente a produção
dos “especialistas” (de juízes e advogados a policiais e carrascos)
necessários para tal (LUKÁCS, 2013, p. 247).
A função de “regular na prática o acontecer social contraditório” coloca-se ao
complexo jurídico do seguinte modo: ao passo que isto traz a necessidade de uma
apreensão e de um reconhecimento dos nexos presentes no campo econômico e
social, tal apreensão nunca consegue alcançar a compreensão das estruturas
objetivas do ser-propriamente-assim da sociedade.
21
Para a crítica das tentativas frustradas de crítica mais ou menos parcial deste aspecto dentro do
campo da “teoria do Direito”, Cf. Sartori (2015a; 2015b). Para uma crítica aos autores, como Varga
(2012), que pretendem conciliar Lukács com os “filósofos do Direito” contemporâneos, Cf. Sartori
(2015a).
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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Ela tem, pois, um duplo aspecto: ao passo que busca um espelhamento o mais
preciso possível, ao fazê-lo “de modo semelhante ao que se faz no próprio mundo
econômico”, isto ocorre ao se desenvolver a autonomia do Direito de modo
fetichizante. Na medida mesma em que as tarefas a serem cumpridas”, as
“atividades”, as “formas de reações” se apresentam a este complexo parcial,
desenvolvem-se enquanto “faz-se necessária uma técnica de manipulação bem
própria”. Ou seja, claramente o aspecto manipulatório começa a preponderar no ser
do complexo jurídico. Os juristas, assim, ao mesmo tempo, aproximam-se de modo
decidido e se afastam do ser-propriamente-assim da sociedade capitalista: por vezes,
justamente ao acreditarem operar com “autonomia absoluta”, reproduzem o modo
de ser do mundo econômico (e manipulatório) da sociedade em questão.
O “método” do Direito positivo tem por base as relações sociais de produção
da sociedade moderna o “domínio material-universal do capital” – de tal feita que a
tarefa de “implementar uma regulação jurídica universal de todas as atividades
sociais somente pode ser efetiva com “uma técnica de manipulação bem própria”
em que se trata de “manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso
surja [...] um sistema unitário”. Segundo Lukács, portanto, da unidade conformada
objetivamente pelo “domínio material-universal do capital”, e das contradições
sociais advindas deste domínio, por meio de procedimentos inerentes à esfera
jurídica, retira-se o “sistema jurídico”. Tal aspecto manipulatório faz com que o
aspecto contraditório das relações sociais seja deixado de lado no modo pelo qual
se opera ao Direito em prol de uma visão em que o aspecto universal do capital é
expresso como a universalidade de um “sistema de dever social” que passa a ser
tomado como dado e parece conformar uma espécie de “segunda natureza” evidente
do ser social. Ao mesmo tempo em que as contradições sociais saem de cena, elas
entram pelas portas dos fundos.
A reprodução do complexo social total somente pode ocorrer ao passo que se
tem a autonomia do complexo jurídico operando em meio ao reconhecimento de
determinadas lutas políticas, de lutas de classes, como legítimas.
22
E, certamente, não
22
Este processo é bastante meandrado e complexo, como aponta Lukács: em primeiro lugar, muitas
sociedades de classes estão diferenciadas em várias classes com interesses divergentes, e não ocorre
com muita frequência que a classe dominante consiga impor em forma de lei seus interesses
particulares de modo totalmente ilimitado. Para poder dominar em condições otimizadas, ela precisa
levar em conta as respectivas circunstâncias externas e internas e, na instituição da lei, firmar os mais
diferentes tipos de compromissos. Está claro que sua extensão e magnitude exercem influência
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é indiferente que lutas são reconhecidas enquanto “legítimas”; ao mesmo tempo,
tem-se a ligação indissolúvel entre o Direito e a forma de universalização colocada
na expansão da relação-capital. Ou seja, o modo pelo qual o Direito opera enquanto
“reconhecimento oficial do fato” depende da reprodução de sua autonomia e de
formas diversas de fetichismo (jusnaturalistas, juspositivistas, por exemplo) que
permeiam a esfera. A própria autonomia e especificidade do campo jurídico tem por
essencial que “esse complexo é capaz de se reproduzir se a sociedade renovar
constantemente a produção dos 'especialistas' (de juízes e advogados até policiais e
carrascos) necessários para tal E, neste sentido, a importância deste complexo social
parcial é bastante grande: todo um aparato de “especialistas” é desenvolvido com a
função de trazer consciente ou inconscientemente (lembremos do exemplo de
Lukács acerca dos “legisladores revolucionários”) o reconhecimento da forma de
universalidade colocada sob a relação-capital. Somente esta última é que figura como
a universalidade do “sistema jurídico”.
De acordo com Lukács, “implementar uma regulação jurídica universal” passa
por isto.
Para o autor, tal processo não se dá de modo simples, e nem com uma forma
de consciência capaz de trazer à tona a totalidade das determinações objetivas
presentes no contraditório acontecer social. A “otimização” do “acontecer social
contraditório”, em meio ao complexo jurídico, passa pelo reconhecimento de
fenômenos sociais que se colocam na superfície do ser social como se estes
conformassem a essência deste. Como visto anteriormente, isto ocorria mesmo na
fase “heroica” do complexo jurídico burguês, em que o ideal de justiça, bem como o
Direito natural pretendiam colocar a si mesmos como demiurgos do real; agora,
considerável sobre o comportamento das classes que deles participam, positiva ou negativamente. Em
segundo lugar, o interesse de classe nas classes singulares é, na perspectiva histórica, relativamente
unitário, mas em suas realizações imediatas ele muitas vezes apresenta possibilidades divergentes e,
mais ainda, avaliações divergentes por parte das pessoas singulares envolvidas, razão pela qual, em
muitos casos, a reação à legislação e à jurisdição não tem de ser unitária nem dentro da mesma
classe. Isso se refere, em terceiro lugar, não só às medidas que uma classe dominante adota contra os
oprimidos, mas também à própria classe dominante (sem falar de situações em que várias classes
participam da dominação, por exemplo latifundiários e capitalistas na Inglaterra após a “Glorious
Revolution”[Revolução Gloriosa]). Abstraindo totalmente das diferenças entre os interesses imediatos
do momento e os interesses em uma perspectiva mais ampla, o interesse total de uma classe não
consiste simplesmente na sumarização dos interesses singulares dos seus membros, dos estratos e
grupos abrangidos por ela. A imposição inescrupulosa dos interesses globais da classe dominante
pode muito bem entrar em contradição com muitos interesses de integrantes da mesma classe
(LUKÁCS, 2013, p. 233).
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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porém, a questão se coloca de modo ainda mais direto. Se antes aparecia com certo
incômodo por parte dos juristas diante das injustiças sociais”, agora, depois da
consolidação do ser social do capitalismo, prevalece um tratamento manipulatório
em que os sintomas do desenvolvimento da sociedade civil-burguesa, em geral,
sequer são questionados. De acordo com Lukács isto expressa o fato de que a
universalidade e a generidade expressas e reproduzidas no Direito são expressões
do “domínio material-universal do capital”.
A forma de oposição parcial, antes preponderante até certo ponto, em geral,
aparece apagada no ser social do Direito posterior à consolidação da sociedade
capitalista. No entanto, de certo modo, ela não deixa nunca de aparecer: “termos
morais-legais”, cuja base es“no próprio sistema da ordem social vigente”, buscam
“as transformações radicais dessa ordem” na medida mesma em que não têm como
negar “uma técnica de manipulação bem própria” que conforma o ser do Direito
moderno depois de determinado momento.
23
No que se deve destacar uma questão
de grande importância:
Nenhuma lei, artigo de lei, etc., é possível sem uma particularização que o
determine, pelo mero fato de que o ponto final de toda a jurisdição é a
aplicação ao caso singular. Mas isso não contradiz a supremacia categorial
da generalidade neste terreno. Pois os princípios que o determinam têm
que expressar-se em uma forma geral para manifestar a essência do Direito;
a particularidade e a singularidade são em parte objetos, em parte meios
de execução desse domínio da generalidade (LUKÁCS, 1966, p. 222).
Passa longe de Lukács deixar de destacar o caráter o puramente teórico,
não puramente contemplativo, mas precipuamente prático” do espelhamento jurídico
segundo o autor, no limite, a própria reprodução social necessita do Direito e do
modo específico pelo qual se a renovação e a “produção de 'especialistas'”. Mais
ainda: a interpretação normativa, e formas distintas de hermenêutica jurídica”, são
essenciais ao próprio ser do Direito, de tal feita que Lukács é claro ao destacar que
“nenhuma lei, artigo de lei, etc., é possível sem uma particularização que o
determine, pelo mero fato de que o ponto final de toda a jurisdição é a aplicação ao
caso singular”.
Ou seja, tem-se em destaque a necessidade da autonomia do complexo jurídico
e do modo pelo qual aspectos aparentemente antagônicos que convivem em seu
seio: ao mesmo tempo em que se tem a “supremacia categorial da generidade neste
23
Como procuramos demonstrar noutro lugar, esta combinação bastante específica caracteriza o s-
positivismo da filosofia do Direito contemporânea. Cf. Sartori (2015a; 2015b).
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terreno”, a primazia do “implementar uma regulação jurídica universal” e, para que
nos expressemos em termos das bases reais do Direito, o “domínio material-
universal do capital” –, aparece no ser da esfera jurídica “a particularidade e a
singularidade" que se apresentam mediante a interpretação jurídica dos mencionados
"especialistas”. Justamente se tem uma antonímia bastante forte: o
desenvolvimento de “técnicas manipulatórias”, e de “especialistas”, bem como de
formas de interpretação e de “termos morais-legais” depende da autonomia e da
autonomização da esfera jurídica diante do uso da violência estatal e da imanência
da atividade econômica, ao mesmo tempo em que somente deste modo, a violência
estatal pode atuar como um “sistema capaz de regular na prática o acontecer social
contraditório, tendendo para a sua otimização”. Aponta o autor da
Ontologia
: “está
contida aí, uma vez mais, uma duplicação nossa conhecida na
contraditoriedade: por um lado, a força como garantia última dessa existência e
unidade; por outro, a impossibilidade de basear unicamente no uso da força essa
unicidade da práxis social controlada e garantida pelo Direito (LUKÁCS, 2013, p.
246).
Tal antinomia se expressa de modo bastante claro no “funcionamento do
Direito positivo”. Os “especialistas” acabam por reconhecer os nexos presentes na
própria esfera econômica sendo cada um dos juristas “capaz de mover-se
elasticamente entre polos antinômicos por exemplo, entre a pura força e a
persuasão que chega às raias da moralidade”. E, assim, as “tarefas a serem
cumpridas”, as “atividades”, as “formas de reações” se conformam de modo bastante
mediado frente às funções concretas que são exigidas do Direito na reprodução do
complexo social total.
No próprio funcionamento deste complexo parcial, por vezes, é importante que
se escape de uma análise puramente consequencialista” e se leve à valorização da
“moralidade” na qual, inclusive, “decisões mais favoráveis para esta sociedade” e que
não fiquem adstritas a um raciocínio de viés puramente "consequencialista" são
essenciais (Cf. SARTORI, 2015b). As “constantes variações do equilíbrio dentro de
uma dominação de classe”, segundo Lukács, assim o exigem.
E, deste modo, tem-se que, com o contraditório desenvolvimento social, a
autonomia do Direito, é, inclusive, reforçada, ao mesmo tempo em que não se tem
como dissociar o complexo jurídico da produção e da reprodução do ser social. Se
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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Lukács aponta sobre os complexos sociais que “estes conseguem cumprir suas
funções dentro do processo total tanto melhor quanto mais enérgica e
autonomamente elaborarem a sua particularidade específica”, ele complementa de
modo certeiro ao dizer que “isso fica diretamente evidente para a esfera do Direito”.
O central neste processo é o modo pelo qual a universalidade do Direito se coloca
possuindo por base real o “domínio material-universal do capital”, tendo-se que o
caráter sistemático do Direito vem, crescentemente, a depender de “técnicas
manipulatórias” as quais, ao fim, fazem com que Lukács não possa ter qualquer
forma de crença em torno de um uso crítico do Direito, Direito alternativo, ou de
qualquer coisa deste gênero.
Apontamentos finais
Diante da especificidade do complexo jurídico, que procuramos explicitar acima,
Lukács é claro quanto ao que espera do Direito: a sua supressão. Neste sentido, não
como buscar outra coisa de sua teoria no que toca este complexo social parcial.
Autores como Varga (2012), assim, violentam a obra lukácsiana de modo gritante
(Cf. SARTORI, 2015a; 2015b).
24
Segundo o autor da
Ontologia
, a esfera jurídica
certamente é permeada pela luta de classes; trata-se de um campo de luta e de
disputa, não dúvida. No entanto, não se trata de um terreno neutro, ou de um
campo de disputas sociais como qualquer outro; antes, tem-se na esfera uma
conformação objetiva que faz com que aquilo de pior da sociedade capitalista reste
como algo pressuposto e inquestionável.
Segundo o marxista húngaro, mesmo nas manifestações que se deem em
“termos morais-legais ou em termos de “justiça social”, isto viria a ocorrer. Por mais
que não seja indiferente qual posição se toma diante da conformação objetiva dos
direitos sociais (Cf. SARTORI, 2015a; 2015b), ao seguirmos Lukács, é possível e
necessário afirmar que nunca se poderia ter como apoio, e porto seguro, a esfera
jurídica. Isto se dá, não pela razão óbvia segundo a qual esta esfera opera em
meio aos conflitos sociais que dependem de determinada conjuntura momentânea
(sendo estes conflitos, bem como suas potencialidades, o centro do questionamento
24
Veja-se Varga: “o papel assumido conscientemente pelo administrador da justiça pressupõe um
duplo caráter e até certo ponto uma personalidade cindida. O jurista está consciente que ele é
somente um servidor, um servo da lei, ao mesmo tempo, sabe que os préstimos da lei são somente
um meio de servir à sociedade” (VARGA, 2012, p. 154). Isto, como se se viu acima, é absolutamente
incompatível com Lukács.
Vitor Bartoletti Sartori
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marxiano), mas também porque a especificidade do complexo jurídico é marcada,
depois de determinado grau de desenvolvimento social, por um ímpeto
manipulatório proeminente. Neste sentido, seria preciso, sobretudo, “afirmar, teórica
e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica
(LUKÁCS, 2007, p. 57). Isto, em verdade, implicaria em uma crítica decidida ao
próprio Direito.
Neste sentido, diz Lukács:
É inquestionável que não existe um Direito socialista; na verdade, o
desenvolvimento do socialismo rumo ao comunismo criará uma condição
social que não necessitará do Direito; por isto, o creio que, desse ponto
de vista, se possa falar num Direito socialista especial (LUKÁCS, 2008, p.
245).
O central à teorização lukácsiana é a apreensão do ser-propriamente-assim da
sociedade, sem dúvida. Isto se dá, porém, de modo que a especificidade de cada
esfera do ser social é essencial para que se compreenda os limites e potenciais da
atividade dos homens em cada complexo social.
Neste sentido, o autor da
Ontologia
o tarda em procurar apreender de modo
cuidadoso a diferença específica entre esferas como política, Direito, moral e ética
(Cf. SARTORI, 2015b). Tratar daquilo que caracteriza a autonomia, e simultânea
indissociabilidade, da esfera jurídica diante da reprodução econômica do ser social é
muito importante para a pesquisa lukácsiana. Que a luta de classes permeia as
diferentes esferas do ser social, até certo ponto, é um truísmo para os marxistas
sérios. A questão essencial é procurar entender o modo pelo qual isto se dá; e isto
somente é possível por meio de uma apreensão cuidadosa, também, do tema que
aqui tratamos. Deste modo, pode-se mesmo dizer a partir do que colocamos que,
com base em Lukács, é possível afirmar que, se uma “luta por direitos” que
procura se colocar como estratégica na luta anticapitalista, feliz ou infelizmente, já se
sabe de antemão o resultado desta luta. Apostar no complexo jurídico significa
apostar em um complexo social que, com a sua ideologia, opera de modo
essencialmente manipulatório. E, por isso, trata-se de suprimir o Direito.
A partir das considerações lukácsianas, podemos dizer que, se a esfera jurídica
teve uma função essencialmente revolucionária na passagem da sociedade feudal à
sociedade capitalista, o mesmo não ocorre na luta contra esta última sociedade.
Nota-se: o Direito é real e efetivamente, mesmo que de modo bastante meandrado,
uma expressão cabal da universalidade da relação-capital. Uma luta anticapitalista,
Lukács diante do Direito e da autonomização da esfera jurídica no capitalismo
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por mais que precise ter em conta questões que permeiem o complexo jurídico, é
uma luta, também, contra o Direito. Uma visão marxista assim o supõe, que tem
como meta a supressão do próprio modo de produção capitalista. Lukács, neste
sentido, é claro ao expressar a incompatibilidade entre o complexo jurídico e o
socialismo. Deste modo, segundo o autor, de maneira alguma basta criticar a
autonomização e a fetichização que permeiam o ser jurídico; contra estas
vicissitudes, não outra alternativa que a decidida luta pela supressão do capital e
do que o acompanha, como o Estado, o Direito, a propriedade privada, patriarcado
etc. Para Lukács, uma abordagem crítica acerca do Direito é possível como uma
crítica ao Direito e ao capital.
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