Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
A questão do estranhamento entre a superação e
o passo de volta: sobre
Ontologia nos extremos
Matheus Correa de Sousa Heleno*
SARTORI, Vitor B.
Ontologia nos extremos:
o embate Heidegger e Lukács, uma
introdução
.
São Paulo: Intermeios, 2019, 307p.
Em 2019, a editora Intermeios
publicou o
livro
Ontologia nos extremos: o embate
Heidegger e Lukács, uma introdução
, de autoria
do Prof. Dr. Vitor B. Sartori, hoje vinculado aos
programas de graduação e de pós-graduação
do curso de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). O título adveio da
primeira parte da tese de doutoramento de
Sartori, orientada por Jeanette Antonios Maman
e defendida na Universidade de São Paulo, em
2013. Conta, também, com uma apresentação
redigida por Ester Vaisman, que esboça um
breve panorama acerca da questão ontológica
em duas frentes, a saber: a) o itinerário de
resgate dos limites e das potencialidades da
subjetividade percorrido pelos filósofos
modernos e b) a importância de questões
ontológicas comuns entre Heidegger e Lukács,
como a cotidianidade e o estranhamento, ainda
que ambas encontrem resoluções
extremamente díspares nos dois autores
mencionados.
Ontologia nos extremos: o embate
Heidegger e Lukács, uma introdução
possui
307 páginas e, como o próprio autor expõe em
seu prefácio, resulta de uma árdua pesquisa
com cunho eminentemente marxista. Porém,
não se deixa colapsar pela perspectiva
mecanicista do
marxismo vulgar
, que
compreende as formações ideais enquanto
produtos passivos da tão nomeada “base
material”. Tampouco fetichiza o pensamento na
forma de um mero exercício exegético. Ao
contrário, Sartori coloca em ação aquilo que
György Lukács e, posteriormente, Jo Chasin
chamaram de crítica imanente, ou ainda de
análise imanente e estrutural, cujo princípio
está em tomar a bibliografia investigada como
* Graduando em Direito/UFMG. Grupos de pesquisa “Marx como crítico do Direito e da política” e “Tinta Vermelha”.
1
“As formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais
os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim” (MARX, 2017, p. 50).
entificação concreta, isto é, como
forma de ser
que comporta nexos significativos próprios
antes de configurar um amálgama de
impressões subjetivas dos mais variados
intérpretes. Assim, Sartori segue o objetivo de
explicitar tanto a consistência autossignificativa
dos textos por ele analisados quanto a
determinação social do pensamento neles
abarcada.
Dessa maneira, ao seguir o diapasão
marxiano de que a filosofia, em suas mais
diversas configurações, é uma formação
ideológica sob a qual os indivíduos tomam
consciência acerca das contradições inerentes à
realidade e as levam a término
1
, Sartori visa
demonstrar que as teorizações de Heidegger e
Lukács, apesar de encontrarem gênese no solo
da sociedade capitalista, não se reduzem a
predicados passivos dela. Antes, colocam-se
como “condição para se operar em meio à
própria realidade” (SARTORI, 2019, p.13), pois
uma vez gestadas em dado contexto procuram
responder a ele na forma de uma tomada de
posição concreta.
Por óbvio, os dois teóricos em tela tomaram
posições antagônicas diante das possibilidades
efetivas dispostas na sociedade capitalista do
século XX e, consequentemente, seus esforços
ontológicos ocuparam extremos distintos nessa
época. Donde se justifica o título do livro de
Sartori e a necessidade de se confrontar as
articulações filosóficas de Heidegger e Lukács,
uma vez que apenas identificar os temas
comuns a ambos os autores resultaria em uma
falsa identidade entre eles. O esforço
verdadeiramente válido, parafraseando Marx
em
Crítica da filosofia do direito de Hegel
, jaz
na constatação da gica específica do objeto
DOI 10.36638/1981-061X.2020.v27.616
A questão do estranhamento entre a superação e o passo de volta
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específico e, portanto, na diferença dos
caminhos e das conclusões engendradas por
esses pensadores, ainda que eles tenham se
debruçado sobre matérias semelhantes.
Assim, a presente resenha pretende expor
as principais descobertas de Sartori, planando
sobre os marcos substanciais que foram
galgados pelo autor de
Ontologia nos
extremos: o embate Heidegger e Lukács, uma
introdução
. Isso, é claro, sem antecipar a leitura
da obra aos interlocutores deste texto, mas,
antes, explicitando a importância da pesquisa
nela pronunciada.
Faz-se importante dizer, ainda, que Sartori
não ignora, em seus esforços, produções
teóricas pretéritas as quais lançaram luz à
comparação entre as ontologias de Heidegger
e Lukács. Nesse sentido figuram Lucien
Goldmann e Nicolas Tertulian como
precursores, mesmo que em graus distintos.
Enquanto Goldmann constatou o nexo entre
Heidegger e Lukács a partir das obras
Ser e
tempo
e
História e consciência de classe
,
inebriando-se em certo exagero que colocava o
primeiro desses livros no status de resposta aos
escritos lukácsianos de 1923, Tertulian
apontou a importância que ambos, Heidegger e
Lukács, atribuíam à vida cotidiana e ao
fenômeno do estranhamento.
É justamente nesse diapasão que Sartori
escreve
Ontologia nos extremos: o embate
Heidegger e Lukács, uma introdução
. Ao levar
em consideração o desenvolvimento das
formulações lukácsianas diante e para além de
Heidegger, Sartori projeta luz à importância que
o filósofo alemão aos aspectos mais
imediatos da sociedade civil-burguesa
(
bürgerliche Gesellschaft
) enquanto procura
seus fundamentos essenciais. Assim, é seguro
afirmar que a bibliografia investigada por
Sartori não se prende apenas a
Para uma
ontologia do ser social
, no caso de Lukács, e a
Ser e tempo
, no caso de Heidegger. Ao
contrário, a obra aqui resenhada enseja grande
vulto quando cobre
A destruição da razão
,
O
jovem Hegel
e a
Estética
, por um lado, e
O que
é metafísica
,
Carta sobre o Humanismo
,
Introdução à Metafísica
,
O Que é Isto, a
Filosofia?
, e
Identidade e diferença
, por outro.
Portanto a pesquisa de Sartori sustenta-se
em um rastreamento da constituição das
ontologias de Heidegger e Lukács, “tendo a
compreensão do cotidiano e sua ligação com o
fenômeno do estranhamento por parâmetro”
(SARTORI, 2019, p. 16). Isso, é claro,
reconhecendo os méritos e as críticas que
Lukács tece diretamente a Heidegger enquanto
mantém a lucidez de assumir a falta de
reciprocidade do filósofo alemão nesse aspecto.
Assim, Sartori rejeita “um trabalho filológico
que busque ligar um autor ao outro” (SARTORI,
2019, p. 18) em detrimento da importância da
questão do estranhamento para os rumos dos
debates filosóficos do século XX” (SARTORI,
2019, p. 20) evidenciada por Lukács, o que
afasta
Ontologia nos extremos: o embate
Heidegger e Lukács, uma introdução
das
análises de Goldmann e o aproxima, em certo
sentido, da concepção de Nicolas Tertulian, a
qual identifica pontos que unem Heidegger a
Lukács ao mesmo tempo em que os afasta.
Assim, conclui Sartori:
Deste modo, neste escrito, deve-se
justamente mostrar o caminho que ambos os
autores, Lukács e Heidegger, percorrem para
que o estranhamento possa parecer-lhes
como tema central à modernidade e ao
homem moderno. Aqui, pois, não se busca
saber se Heidegger se inspirou em Lukács ou
tentou uma resposta à
História e consciência
de classe
em
Ser e tempo
. Também não se
procura saber o que da obra do autor alemão
está na obra tardia do marxista. O essencial
nesse escrito é ver como o estranhamento,
uma questão essencial aos rumos de nossa
época, imediatamente posterior àquela dos
autores aqui estudados, é visto de maneira,
ao mesmo tempo, convergente e divergente
nesses dois importantes pensadores do
século XX (SARTORI, 2019, p. 21).
Feitas tais aduções, cabe aqui justificar a
exposição da presente resenha. Dada a própria
forma pela qual Sartori organiza
Ontologia nos
extremos: o embate Heidegger e Lukács, uma
introdução
, a saber, em duas grandes partes,
neste texto será respeitado o arranjo original. A
primeira parte da obra, na qual são “tratados
Heidegger e Lukács em consonância com o
modo como dialogam com a filosofia
precedente, tendo-se de um lado o ‘passo de
volta’ (
Schritt zurück
) e doutro a busca de uma
superação (
Aufhebung
)” (SARTORI, 2019, p.
23), será analisada logo abaixo. A segunda
parte, que procura “demonstrar como a história,
a ontologia e a técnica aparecem nesses dois
importantes autores do século XX relacionadas,
sobretudo, à problemática do trabalho, do
estranhamento e da práxis transformadora”
(SARTORI, 2019, p. 23), há de ser coberta na
sequência.
Ainda se deve dizer que, devido à densidade
e à extensão de
Ontologia nos extremos: o
embate Heidegger e Lukács, uma introdução
,
não passaria de mero devaneio ou de simples
presunção anunciar o esgotamento dos temas
cuidadosamente investigados e expostos por
Sartori em uma resenha. Antes, este texto tem
por objetivo a apresentação da obra e, como
mencionado em momento anterior, sobrevoar
as principais descobertas de Sartori. Portanto,
pousar-se de modo mais enfático nas
diferenças específicas
entre Heidegger e Lukács
no que toca ao posicionamento de ambos
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diante da filosofia precedente, em um primeiro
momento, e, posteriormente, à concepção
ontológica própria dos dois autores, assim
instigando se bem-sucedido os
interlocutores a conhecer os escritos de Sartori
em questão por suas próprias palavras.
Acerca da “Parte I: Heidegger, Lukács, a
ontologia e o diálogo com a filosofia
precedente”
Como o título anuncia, a primeira parte do
livro de Sartori volta-se aos diálogos que
ambos os autores em tela estabelecem com a
filosofia precedente. Se, por um lado, Lukács
aparece “com uma postura que valoriza a
tradição moderna da filosofia e principalmente
a filosofia clássica alemã, buscando a superação
da mesma” (SARTORI, 2019, p. 25), Heidegger,
por outro, deseja “um ‘passo de volta’ em
relação às questões levantadas de modo
moderno, o que significaria remeter para algo
além da filosofia moderna: tem-se uma virada
(
Khere
)” (SARTORI, 2019, p. 25). Desde , duas
coisas tornam-se bastante claras a todos: a)
tanto Heidegger quanto Lukács firmam diálogo
com a filosofia moderna para gestar suas
teorizações, ou seja, ambos versam sobre um
objeto de certa forma comum; e b) é impossível
reduzir um autor ao outro, tendo em vista que
o posicionamento de cada um deles diante da
modernidade é extremamente distinto. Aqui,
pois, chama a atenção a proposta de Sartori,
acima descrita e muito bem justificada pelos
próprios traçados determinativos dos escritos
por ele investigados.
De tal
diferença específica
, entretanto, cabe
derivar breve aprofundamento a fim de ilustrar
aos interlocutores da presente resenha aquilo
do que dispõe
Ontologia nos extremos: o
embate Heidegger e Lukács, uma introdução
.
de se começar por Lukács, pois Sartori
chama a atenção para a necessidade de se
tratar do autor que enxerga algo de proveitoso
na filosofia moderna e, por conta disso,
sustenta a necessidade de superá-la
(
Aufhebung
). Isso porque as bases daquilo que
virá a ser criticado por Heidegger
posteriormente estariam lançadas ao leitor no
momento em que se iniciasse o rastreio dos
textos do teórico alemão.
Sartori inicia a sua argumentação trazendo à
baila a oposição entre o posicionamento
lukácsiano e o
marxismo vulgar
, isto é, o
stalinismo. Demonstra, pela própria palavra de
Lukács, que a tendência stalinista é a de
sistematizar e esquematizar a filosofia,
resultando na tese de que o marxismo em si
constituiria uma ruptura a-histórica com o
pensamento pretérito. Esforço tal que enxerga
“a teoria de Marx, e depois o marxismo, como
um modo de pensar separado por uma
espécie de muralha da filosofia e do
pensamento precedentes” (SARTORI, 2019, p.
28).
Para Lukács, porém, afirma Sartori:
Longe de ter havido um “grande salto” para
fora da história, e da história da filosofia em
particular, um salto que trouxesse consigo
algo absolutamente sem precedentes, haveria
relativa continuidade do marxismo em relação
ao “bimilenar desenvolvimento europeu”,
principalmente no que diz respeito aos
“valores” trazidos com esse. Nisso, a justa
apreensão das relações sociais é essencial à
filosofia, a qual acompanha, inclusive, aquilo
de mais digno na cultura ocidental, como o
humanismo (SARTORI, 2019, p. 29).
Portanto, reitera o autor de
Ontologia nos
extremos
, de acordo Lukács não espaços
para se conceber a relação entre Marx e a
filosofia precedente na forma de um “corte” ou
cisão, o que por si afasta o teórico húngaro
não apenas do
marxismo vulgar
como também
de autores quais Louis Althusser. Contudo, não
haveria em Marx uma continuidade pura e
simples, que conservaria os elementos
pretéritos indistintamente; antes, tratar-se-ia de
uma “continuidade que lugar à emergência
de um pensamento distinto, que traz consigo
algo novo, mas que não é algo absolutamente
separado daquilo que o precedeu. Tem-se uma
‘superação’” (SARTORI, 2019, p. 30). Assim, a
superação (
Aufhebung
) da qual fala Lukács é
indissociável da percepção de que “a teoria de
Marx é herdeira da tradição do humanismo, e
mesmo da filosofia clássica alemã, ao mesmo
tempo que, sem estabelecer cisões bruscas e
abruptas com as conquistas pregressas,
ultrapassa e transforma as mesmas de modo
substancial” (SARTORI, 2019, p. 30).
Em outras palavras, Lukács
compreende que a teoria de Marx se enquadra
no longo itinerário de busca pela
emancipação
humana
, caminho este no qual se destacam
rupturas e continuidades. O grande mérito da
filosofia precedente estaria, pois, no
estabelecimento e na sustentação da sociedade
civil-burguesa (
bürgerliche Gesellschaft
),
progresso inegável diante da sociedade feudal.
Contudo, dada a natureza classista da
sociedade civil-burguesa (
bürgerliche
Gesellschaft
), quando esta se de fato
consumada, torna-se inviável a continuação do
mencionado itinerário emancipatório. A teoria
de Marx, portanto, apresenta-se como
superação (
Aufhebung
) na medida em que
questiona o ser-propriamente-assim das
sociedades classistas, identificando os limites
intrínsecos ao capital e a todo um rol de
estranhamentos (
Entfremdung
) que coloca a
subjetividade, tanto no espectro teórico quanto
no prático, em uma condição limitada de
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passividade o que está intimamente
vinculado, inclusive, à imposição do caráter de
incognoscibilidade da objetividade mesma.
Sobre o diálogo de Lukács com a filosofia
precedente, conclui Sartori:
No que se vê: o modo como Lukács enxerga
as filosofias anteriores liga-se ao tempo em
que elas se desenvolvem e depois são
efetivas trata-se, pois, de se ver o
pensamento precedente em meio às
contradições concretas que marcam uma
época e, em se tratando da filosofia moderna,
pode-se mesmo dizer, a época capitalista.
Hegel, por exemplo, seria indissociável da
Revolução Francesa e da consolidação da
sociedade civil-burguesa, ao passo que Marx
precisaria superar (
aufheben
) tal ponto de
partida. E isso teria implicações substantivas
para a teoria do autor de
O capital
, também
no que diz respeito à questão do
estranhamento, a qual será combatida pelo
autor justamente com sua posição socialista,
contrária à própria manutenção do
capitalismo como tal. Com isso, agora, pode-
se dizer que, para o marxista húngaro, a
forma de diálogo com a filosofia precedente
é aquela da superação, da supressão. E
Heidegger (tal qual Althusser) vai se opor
explicitamente a esse modo de se relacionar
com o passado (SARTORI, 2019, p. 34).
Contudo, antes de passar a Heidegger,
Sartori ainda alerta seus leitores sobre o
sentido materialista de superação (
Aufhebung
)
tanto em Marx quanto em Lukács.
Diferentemente da colocação hegeliana do
problema, que se baseia na premissa do sujeito-
objeto idêntico para criar um vínculo lógico
entre o desenvolvimento da realidade efetiva
(
Wirklichkeit
) e o desenvolvimento do Espírito
(
Geist
) em que o verdadeiro é o vir-a-ser de
si mesmo(HEGEL, 2014, p. 32), isto é, em que
a superação (
Aufhebung
) coloca-se como
elemento lógico e necessário do
desenvolvimento presumidamente racional da
realidade mesma , em Marx e,
consequentemente, em Lukács, a superação
(
Aufhebung
) possui caráter concreto, ou seja, é
indissociada da resolução real de contradições
reais que estão presentes na realidade efetiva
(
Wirklichkeit
) mesma. Em outras palavras, o
problema da superação (
Aufhebung
) em Marx e
Lukács não depende de uma questão
metodológica se por método considerar-se
um arranjo a priori das faculdades cognitivas
humanas, um esforço de cunho gnosiológico
que se pergunta sobre as possibilidades e
condições do conhecimento antes mesmo de se
entrar em contato com o objeto a ser conhecido
ou da mera especulação, que, por sua vez,
autonomiza a razão (
Vernunft
) e a coloca no
status de demiurgo do real.
A questão da superação (
Aufhebung
), tanto
em Marx quanto em Lukács, se trazido à tona o
problema do estranhamento (
Entfremdung
) o
que é fundamental para Sartori , significa a
supressão prática da sociedade capitalista. A
partir do momento em que Marx critica a
natureza classista da sociedade civil-burguesa
(
bürgerliche Gesellschaft
), visando superá-la,
coloca-se também em xeque todos os seus
predicados que se apresentam como forças
sobre-humanas e dominadoras dos indivíduos.
Ou seja, a condição de superação dos
estranhamentos jaz na superação da própria
sociedade que os engendra. Nesse sentido, a
mencionada continuidade constitutiva do
diálogo de Lukács com a filosofia precedente
está na continuidade do debate “com as
contradições que percorrem a própria história,
na modernidade, marcada primeiramente pela
emergência, e depois pela crise, do capital, o
que é inseparável da temática do
estranhamento” (SARTORI, 2019, p. 39).
Ainda nessa toada, afirma Sartori:
Os rumos da filosofia são inseparáveis dos
rumos da história, sendo que há nos grandes
pensadores de um tempo uma posição
concreta quanto às questões fundamentais de
suas épocas. Uma superação efetiva, pois,
tem consigo uma posição distinta daquela da
filosofia que a precede [...] O modo como se
dialoga com a filosofia, assim, traz uma
posição concreta (
Standpunkt
) que busca não
melhor compreender uma época, mas
também transformá-la até mesmo porque,
para Lukács, na própria transformação da
realidade é que melhor se compreende a
mesma (SARTORI, 2019, p. 39).
Heidegger, por sua vez, traça um diálogo
bastante distinto com a filosofia precedente. No
autor alemão é patente a crítica do progresso,
uma vez que, para ele, tal noção é indissociável
de um
pensamento conceitual
, ou seja, do
idealismo moderno inaugurado por Descartes.
Segundo Heidegger, o
pensamento conceitual
estaria embebido de uma compreensão que
confere ao ser humano a qualidade de animal
racional e de uma centralidade da lógica. A essa
forma de pensar Heidegger atribui o status de
ontologia tradicional
, em um primeiro
momento, e de
metafísica
, posteriormente.
Portanto, logo de início conclui-se que, para o
filósofo alemão, a modernidade possui uma
dimensão negativa que a impede de ser tomada
como parâmetro fulcral em verdade, faz-se
necessário romper de uma vez por todas com
esse
pensamento conceitual
, o que resulta em
uma ontologia fenomenológica que busca na
filosofia clássica, em especial em autores como
Platão, Aristóteles e nos assim chamados pré-
socráticos, a abertura para se pensar as
questões originárias. Nisso consiste o “passo de
volta” (
Schritt zurück
): Trata-se de um ‘outro
começo’” (SARTORI, 2019, p. 42).
Diante disso, Sartori aponta para uma
Matheus Correa de Sousa Heleno
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questão fundamental: se em Heidegger o
repúdio da modernidade, do progresso e da
lógica, em suma, do
pensamento conceitual
que
atribui ao ser humano a qualidade de animal
racional e tem consigo a centralidade da
verdade absoluta, não se pode olvidar as
críticas de Heidegger a Hegel, autor que elevou
a lógica à condição de ciência basta lembrar
de um dos títulos mais importante do antigo
reitor da Universidade de Berlim,
A ciência da
lógica
. Portanto, mesmo que de maneira
sumária, Sartori se debruça sobre o tema e
extrai o seguinte:
A filosofia heideggeriana coloca-se de modo
crítico diante do apelo de Hegel ao absoluto
e ao incondicionado, dizendo ser a filosofia
hegeliana uma “ontoteologia”, dado que ela
pensaria nos termos da ontologia medieval
(tradicional) e apelaria, mesmo com inúmeras
mediações, à noção segundo a qual “Deus é
a verdade, e só ele é a verdade”. Critica-se a
noção hegeliana quando teria ela como
pressuposto uma “reconciliação” (
Vörsonung
)
em que a
ideia
apareça dando um
télos
ao
processo que, por sua vez, ao fim, teria
reconciliados o sujeito e o objeto, idealidade
e realidade, em uma identidade especulativa
(SARTORI, 2019, p. 43).
Assim, apesar de semelhantes em aparência,
as críticas de Heidegger e de Lukács à filosofia
hegeliana guardam diferenças substanciais.
Enquanto Lukács identifica em Hegel a
excelência teórica da sociedade civil-burguesa
(
bürgerliche Gesellschaft
) e, por isso mesmo, a
condição de pensamento limitado frente à
essência das contradições efetivas, que pensa
estarem solvidas por determinados predicados
do próprio pensamento, o que leva o filósofo
húngaro à necessidade de superação
(
Aufhebung
) concreta e consciente da
sociedade capitalista, como visto acima,
Heidegger identifica em Hegel a negatividade
dos tempos modernos, o império da
metafísica
,
a condição que relega aos indivíduos a
incapacidade de se tematizar a essência da
verdade, uma vez que ela a verdade se
encontra hipostasiada naquilo de superado no
absoluto, ou seja, esquecida. E é justamente por
conta dessa dimensão de esquecimento da
verdade, que jaz indissociada da modernidade,
da lógica e do modo de pensar
metafísico
, que
Heidegger defende o “passo de volta” (
Schritt
zurück
), um novo começo.
Heidegger, portanto, tem o intuito de
escapar da filosofia precedente, isto é, do modo
de pensar
metafísico
, recorrendo a um esforço
intelectivo que não se veja limitado pelo
princípio da identidade que apaga as diferenças
específicas mediante um juízo gico e, então,
deixa a essência da verdade oculta e
impensada. Tratar-se-ia, em Heidegger,
primeiramente, de se pensar aquilo que é mais
digno e que escapa ao
logos
moderno: o fato
de que, sem se pensar o Ser concretamente,
este passaria a ser visto como
ratio
, razão,
inclusive no sentido matemático” (SARTORI,
2019, p. 46).
Contudo, como aponta Sartori, a busca pelo
novo começo sob a ótica do “passo de volta”
(
Schritt zurück
) não impediu Heidegger de
tomar uma posição efetiva diante da realidade
em que vivia. Apesar da compreensão de que a
modernidade é inautêntica e, portanto,
também o seria o cotidiano moderno ,
Heidegger ainda aberturas para a
autenticidade na medida em que a sua proposta
fenomenológica tem por central o desvelar do
poder-ser (
sein können
).
É assim que se desenvolve o acontecimento
(
Ereigniz
), como diz Sartori:
Em meio à inautenticidade (
Uneigentlichkeit
)
moderna e cotidiana, ela pode aparecer
como algo extraordinário, como um
acontecimento (
Ereigniz
) a essência da
verdade não poderia ser vista pela certeza e
pela adequação. Diz-se assim: “o essenciar-se
do Ser mesmo; o chamamos de
acontecimento” (SARTORI, 2019, p. 46-47).
Mas por que o acontecimento (
Ereigniz
)
pode aparecer como algo extraordinário? Ora,
justamente porque a cotidianidade dos tempos
modernos é marcada pela indistinção, pela
dissolução das diferenças pessoais naquilo que
Heidegger chamou de impessoal (
das Mann
). E
o impessoal ressoa no
pensamento conceitual
,
na
metafísica
, a partir do princípio da
indiferença, na noção de verdade como certeza,
como verdade posta e inquestionável. A
essência da verdade, o mais digno de ser
pensado, jaz oculta na própria cotidianidade
dos tempos modernos devido à indistinção dos
diversos indivíduos que a compõem no
impessoal (
das Mann
) o que guarda relação
fundamental com o fenômeno do
estranhamento e, portanto, ressoa como
impossibilidade de tematização no modo de
pensar
metafísico
, na concepção de progresso
que se encontra, como visto anteriormente, na
noção hegeliana de superação (
Aufhebung
) em
que impera a máxima do
pensamento que
pensa a si mesmo
. Portanto, para Heidegger, a
metafísica
perpetua o estranhamento sob a
noção de verdade como certeza, mantendo-se
na qualidade de forma de pensar inautêntica
sobre um modo de vida também inautêntico: a
própria cotidianidade dos tempos modernos.
A fim de ilustrar essa explicação, traz-se
Sartori:
Com isso, o homem, trivialmente, apareceria
sufocado num convívio que exprime não os
anseios condizentes com seu poder-ser (
sein
können
), mas com um perder-se em meio aos
entes que, por seu turno, se mostram como
A questão do estranhamento entre a superação e o passo de volta
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indiferenciados. Há, para Heidegger, uma
situação em que cada um é com o outro só
de modo impessoal e inautêntico: trata-se de
uma perda de si (
Verlorenheit
), a qual
Heidegger relaciona justamente com o
estranhamento (SARTORI, 2019, p. 48).
É nesse sentido que o acontecimento
(
Ereigniz
) pode aparecer como algo
extraordinário. Tendo em vista o predomínio do
impessoal (
das Mann
) na cotidianidade dos
tempos modernos e as noções de verdade
como certeza e adequação trazidas pela
metafísica
, o esquecimento do Ser em duas
frentes: a) na cotidianidade, em que cada um
é com o outro de forma impessoal, inautêntica
onde todos os entes se mostram de maneira
indiferenciada, configurando uma perda de si
dos indivíduos; e b) na filosofia, isto é, na
metafísica
, que leva o impessoal (
das Mann
) ao
plano do pensamento sob um juízo lógico
capaz de apagar as diferenças e, assim,
formular uma verdade inquestionável porque
acabada, ou seja, suprassumida como
racionalidade do processo progressivo. E, para
Heidegger, esse esquecimento do Ser sob o
jugo do impessoal (
das Mann
) pode, nas últimas
consequências, desenvolver-se como ditadura
da opinião pública (
Diktatur der Öffentlichkeit
).
Sobre a relação indissociável entre o
esquecimento do Ser e o estranhamento, bem
como acerca da
metafísica
enquanto forma de
pensar que perpetua ambos os elementos e da
necessidade do “passo de volta(
Schritt zurück
)
para de todo esse emaranhado se livrar, diz
Sartori:
O “esquecimento do Ser” tem consigo, pois,
o estranhamento, sendo a metafísica o modo
pelo qual o pensar é equacionado de maneira
técnica, ao ponto de o particularismo dos
“ismos”, criticado pelo autor, se impor na
cotidianidade de modo evidente, no entanto,
“ditatorial”. O “passo de volta”
heideggeriano, pois, busca certo
distanciamento em relação à modernidade e
procura re-pensar (
er-denken
) aspectos
esquecidos desde os gregos; assim seria
possível uma filosofia, não mais moderna e,
como tal, para Heidegger, marcada pelo
esquecimento e pelo estranhamento
(SARTORI, 2019, p. 50).
Porém, como muito bem direciona Sartori, o
“passo de volta” (
Schritt zurück
) heideggeriano
não se resume a uma simples nostalgia do
passado, a uma recusa impetuosa do presente.
Ao adotar um princípio fenomenológico,
Heidegger assume que a cotidianidade dos
tempos modernos e a
metafísica
, mesmo sendo
marcadas pelo esquecimento do Ser e pelo
estranhamento, preparam o impensado. Em
outras palavras, para se atingir aquilo digno de
ser pensado é preciso partir da modernidade;
mas partir da modernidade de um modo
bastante específico, como visto anteriormente,
mediante um afastamento das certezas
impostas pela cotidianidade dos tempos
modernos e pela
metafísica
, isto é, por meio do
“passo de volta” (
Schritt zurück
), que permite o
re-pensar (
er-denken
) e, assim, alcançar o
fundamento (
Grund
) este intimamente
relacionamento a elementos esquecidos pela
modernidade, como a temporalidade
(
Zeitlichkeit
) e a historicidade
(
Geschichtlichkeit
). Portanto, em Heidegger
uma busca constante pelo “passo de volta”
(
Schritt zurück
) em detrimento da superação
porque, enquanto aquele tem a potencialidade
de
descobrir
o fundamento (
Grund
), esta apenas
relega a essência do Ser ao esquecimento,
configurando-a como certeza e adequação.
Nesse sentido, o “passo de volta” (
Schritt
zurück
) é indissociável do acontecimento
(
Ereigniz
). Isso se explica porque a própria
atitude de se recuar diante do já pensado a fim
de escapar das balizas da cotidianidade e da
metafísica
permite o
descobrimento
do
fundamento (
Grund
). Em outras palavras, é
mediante o “passo de volta” (
Schritt zurück
) que
se atinge os elementos originários
concernentes ao Ser, transcendendo o plano
ôntico e livrando-se do estranhamento e do
domínio do impessoal (
das Mann
) tanto na
cotidianidade quanto na
metafísica
modernas.
O próprio ato de pensar de maneira
fenomenológica é, pois, um acontecimento
(
Ereigniz
), que guarda em si algo de
extraordinário, a saber, a possibilidade de
abertura para o
descobrimento
, para a
transcendência do plano ôntico em sentido ao
ontológico.
Ainda no tocante ao “passo de volta” (
Schritt
zurück
), é importante ressaltar, como faz
Sartori, que o esforço heideggeriano, assim
como a perspectiva da superação (
Aufhebung
)
em Marx e Lukács, não se reduz a uma questão
de método. Para Heidegger, o
descobrimento
do impensado por meio da posição
fenomenológica se durante o passo
mesmo, quando ocorre o desvelar da essência
este não concebido de início, por uma
faculdade racional a priori ou autônoma, mas
descoberto
no sentido de desvelamento ou
ainda de
desencobrimento
.
Comprovando os comentários, diz Sartori:
Para o autor de
Ser e tempo
, a via para a
ontologia e para a crítica ao estranhamento
está na fenomenologia nesta acepção aqui
vista. A tradição, a filosofia precedente não
seria, pois, um “passado”, mas um
“passado-presente”, o qual, mesmo com as
vicissitudes modernas, poderia oferecer a
abertura fenomenológica para o mais
originário, ainda impensado. em meio ao
esquecimento daquilo mais importante seria
possível se conceber o descobrimento, o qual
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não teria consigo algum sentido prévio, como
na superação hegeliana, mas somente um
deixar-ser no qual “o ‘para-onde’ ao qual
conduz o passo de volta somente se
desenvolve e se mostra, através do exercício
do passo”. Ou seja, não se trata de um
movimento em que a essência aparece a
partir da existência, manifestando tal
processo o essencial presente no
télos
dado
pela própria razão (
Vernunft
) o caminho do
pensar heideggeriano se formaria no
caminhar, devendo-se ver o solo desse “não
como
ratio
, não como causa primordial, não
como fundamento racional, mas como um
deixar existir concretamente”. E isso é
essencial (SARTORI, 2019, p. 55).
Portanto, faz-se clara não as distinções
entre os diálogos firmados por Heidegger e
Lukács com a filosofia precedente, mas também
as diferenças fundamentais no que toca ao
posicionamento concreto de ambos os autores
diante do estranhamento. Enquanto Lukács,
seguindo o diapasão marxiano, busca a
superação dos estranhamentos por meio da
prática revolucionária e transformadora da
realidade mesma condição de existência
dessas forças alheias aos indivíduos ,
Heidegger agarra-se à fenomenologia para
vislumbrar possibilidades de
descobrir
o
fundamento (
Grund
), transcender o plano ôntico
e, portanto, livrar-se do estranhamento
intrínseco à cotidianidade dos tempos
modernos e à
metafísica
.
Acerca da Parte II: Trabalho, história e
técnica: ontologia do ser social e ontologia
fenomenológica”
Como anuncia Sartori, a segunda parte de
Ontologia nos extremos: o embate Heidegger e
Lukács, uma introdução
volta-se à forma pela
qual a ontologia do ser social de Lukács
empreende uma crítica ao trabalho abstrato a
partir da categoria marxiana de trabalho
concreto, por um lado, e ao modo como
Heidegger, em sua ontologia fenomenológica,
tece uma crítica à técnica apoiada sobre a noção
de acontecimento (
Ereigniz
), por outro. Diante
disso, Sartori acaba por ocupar-se também, de
maneira imanente, da concepção de
historicidade heideggeriana e da noção
lukácsiana de história. Tudo sem perder de vista
a matéria do estranhamento, que, como foi
tratado acima, é fundamental quando os dois
autores são colocados em tela.
Sartori inicia a sua argumentação trazendo à
baila o desenvolvimento lukácsiano da relação
entre trabalho e estranhamento, partindo da
autocrítica realizada pelo próprio filósofo
húngaro, em 1967, ao livro
História e
consciência de classe
, publicado por ele em
1923. A importância da questão logo é
revelada: se, em 1923, Lukács não se atentou
ao ser-propriamente-assim do ser social devido
a limitações pessoais, opondo à contemplação
neokantista uma noção de práxis que pairava
no ar, decerto não conseguiu superar, naquele
momento, a tese hegeliana do sujeito-objeto
idêntico. Esse fato, como reconhecido pelo
próprio Lukács em 1967, resultou na confusão
entre toda forma de objetivação e a categoria
de estranhamento (
Entfremdung
), o que acabou
por fazer o filósofo húngaro apenas se alojar no
interior da reflexão idealista, a qual ele almejava
criticar. Pior: de acordo com Sartori,
acertadamente, o Lukács de 1923 ainda
enxergava a práxis social como essencialmente
estranha ao controle consciente, sendo tanto os
meios como os produtos do trabalho algo que
se volta contra a realização da humanidade do
trabalhador” (SARTORI, 2019, p. 106).
Tal concepção só viria a ser superada por
Lukács em sua obra madura, a partir da
investigação necessária e cuidadosa da teoria
marxiana. Feita a sua guinada rumo ao
materialismo, o filósofo húngaro concluiu,
agora corretamente, que a objetivação é uma
consequência natural da atividade humana no
mundo, enquanto o estranhamento
(
Entfremdung
) configura-se como um tipo
negativo de objetivação, cuja gestação e
atuação dependem de condições sociais
específicas. Em outras palavras, “a
objetivação e a alienação concatenam-se no
processo pelo qual o homem produz um ente,
[...] mas se tal objetividade [...] coloca-se ou
não contra o desenvolvimento humano, isso
diz respeito às circunstâncias sociais”
(SARTORI, 2019, p. 108).
Sartori ainda evidencia outro aspecto
importantíssimo acerca da matéria. A ausência
da apreensão do ser-propriamente-assim do ser
social, isto é, a recusa consciente ou não do
materialismo marxiano, obscurece a
historicidade do ser social porque toma o
estranhamento (
Entfremdung
) como qualidade
intrínseca à relação do homem no e para com o
mundo. Mesmo em um autor do vulto de Hegel,
que despende grande atenção à história e
busca resolver o problema do estranhamento,
acaba resolvendo a questão de modo
insatisfatório, pois, na toada de que a filosofia
é o pensamento que pensa a si próprio, dilui o
revés no seio do pensamento e contenta-se
com uma resposta especulativa, que não implica
na transformação das condições pelas quais o
estranhamento se engendra.
Resume Sartori:
[...] para Hegel, se a filosofia, tomando como
supostas essas circunstâncias, quer superar o
estranhamento, deveria rumar ao absoluto, e
somente o estranhamento poderia ser
superado com base na “reconciliação” das
contradições desenvolvidas no espírito
objetivo e suspensas no absoluto. Com isso,
A questão do estranhamento entre a superação e o passo de volta
Verinotio
NOVA FASE
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as próprias relações sociais concretas
(expressas no espírito objetivo), não vêm a
deixar de construir o essencial quando se
trata de superar o estranhamento. A
superação do estranhamento se ao custo
da mistificação da realidade objetiva, que
passa a ser, sob este aspecto, um mero
momento da realização marcadamente
teleológica do espírito absoluto (SARTORI,
2019, p. 109).
Diante do exposto é que se pode aferir o
caráter materialista e histórico da ontologia do
ser social lukácsiana. Seguindo o itinerário
marxiano, Lukács compreende o ser como
entificação concreta, complexo de
determinações objetivas que existe
independentemente da consciência e que, a
partir da emergência da subjetividade,
constitui-se em uma relação indissociável com
ela. Há, pois, uma autarquia relativa da
realidade objetiva sobre as formas de
consciência. Autarquia porque “as categorias
expressam formas de ser, determinações de
existência” (MARX, 2016, p. 59), isto é, partes
constitutivas de uma objetividade externa aos
indivíduos e que se impõem sobre eles,
interferindo efetivamente em seu campo de
possibilidades de ação; relativa porque a
relação dos homens no e para com o mundo
não somente é inalienável para a manutenção
da vida humana, mas também porque mediante
a sua atividade altera-se de modo concreto a
própria objetividade. Para Lukács, a ontologia
é, portanto, “a modalidade real e concreta da
existência do ser, a sua estrutura e movimento
(NETTO, 1978, p. 70).
Ou ainda, como diz Sartori:
[...] em Lukács, quando se trata de conjunto
de “todo o existente” e do ser, percebe-se
que se busca uma apreensão adequada da
realidade social, a qual teria consigo
determinações históricas e objetivas,
tratando-se sempre não de um ente
apreendido imediatamente, mas do processo
pelo qual as determinações do ser se
desenvolvem (SARTORI, 2019, p. 117).
Heidegger, por sua vez, apresenta uma
concepção ontológica muito distinta da de
Lukács. De rompante, já é possível dizer que o
filósofo alemão rechaça a concepção de Marx,
também integrada às formulações lukácsianas,
de que “as categorias expressam formas de ser,
determinações de existência” (MARX, 2016, p.
59). Uma vez que, como levantado na seção
anterior, o próprio estranhamento é, para
Heidegger, indissociável da perda de si diante
da indiferenciação do mundo, qualquer esforço
intelectivo que almeje a apreensão do ser-
propriamente-assim da realidade objetiva cairia
nos limites intrínsecos à cotidianidade e,
portanto, sucumbiria ao império do impessoal
(
das Mann
).
A esse respeito, esclarece Sartori:
O modo como o homem se relaciona com o
mundo tendo por base a última seria
essencialmente agressivo, dominador e,
como visto, isso teria deixado resquícios em
Hegel, Marx e, seguindo o pensamento
heideggeriano, Lukács. A noção de
adequação criticada pelo autor de
Ser e
tempo
traria consigo não a
impossibilidade de se pensar aquilo de mais
digno, “isso determina para o futuro como
uma consequência da nova transformação da
essência da verdade, o caráter tecnológico do
moderno, isso é, da técnica da máquina”. Se
o autor da
Ontologia do ser social
busca o
ser-propriamente-assim da objetividade, a
percepção correta da realidade objetiva,
tratar-se-ia, em verdade, seguindo o autor de
Ser e tempo
, de uma “ontologia tradicional”
(SARTORI, 2019, p. 118)
Para Heidegger, o próprio esforço
intelectivo de se buscar uma verdade objetiva
está atado aos limites da
metafísica
e da
cotidianidade dos tempos modernos. Tratar-se-
ia, antes, de adotar a postura do “passo de
volta” (
Schritt zurück
) para re-pensar (
er-
denken
) a constituição do homem no mundo,
que subjaz à própria objetividade do real,
constituindo-se como elemento originário, e,
assim, buscar
descobrir
o fundamento (
Grund
).
Fundamento (
Grund
) este, como visto na seção
anterior, que não é base racional ou resposta
aos moldes do
pensamento conceitual
, mas o
próprio caminho de se desvelar,
desencobrir
, os
fenômenos.
Assim, estaria colocada a ontologia
fenomenológica de Heidegger. Fenomenologia
justamente porque parte dos fenômenos da
cotidianidade dos tempos modernos a fim de se
atentar para a forma pela qual eles mesmos se
mostram, não em busca de uma lógica ou razão
de ser desses fenômenos, mas antes da
transcendência que se poderia alcançar ao ter
como enfoque as questões originárias. Em
outras palavras, a objetividade enquanto
objetividade seria inessencial à teorização
heideggeriana, pois as coisas não constituem
por si mesmas objetos. A questão central está
no deixar-ser proposital, em manter-se aberto
para aquilo de extraordinário, para um
acontecimento (
Ereigniz
).
Contudo, a mesmo o enfoque na
subjetividade, para Heidegger, está vinculado à
cotidianidade dos tempos modernos e ao
estranhamento engendrado pela “ditadura” do
impessoal (
das Mann
) e pela
metafísica
. Pensar
de acordo com a dicotomia entre sujeito e
objeto, mesmo que de maneira indissociável, é
um resquício do
pensamento conceitual
próprio
da modernidade. Em outras palavras, é manter-
se atado ao plano ôntico, no qual jaz o
estranhamento na indiferenciação do
Matheus Correa de Sousa Heleno
450 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 442-451 - jan./jun. 2021
conglomerado de entes. O “passo de volta”
(
Schritt zurück
), isto é, o esforço intelectivo de
se re-pensar (
er-denken
) as questões
originárias, o fundamento (
Grund
), liberta-se do
logicismo que impregna o plano ôntico com a
noção de que o ser humano é um animal
racional enquanto mantém-se aberto para um
acontecimento (
Ereigniz
). Assim, para
Heidegger, haveria a transcendência para o
plano ontológico.
Sobre o exposto, diz Sartori:
A “universalidade” do Ser, portanto, não está
na indeterminação como em Hegel, nem na
objetividade e na historicidade, como quer
Lukács a questão do Ser traria consigo, em
Heidegger, um remeter para além, como
visto, “o ser e a sua estrutura ontológica se
acham acima de qualquer ente e de toda
determinação ôntica possível de um ente”. Se
“o ser é o
transcendens
pura e
simplesmente”, isso advém de a ontologia
heideggeriana não tratar da realidade
objetiva ao modo de um Lukács, o qual,
assim, permaneceria seguindo o autor de
Ser e tempo
na busca de determinações
ônticas dos entes ao modo da ontologia
tradicional, da “metafísica”. Heidegger busca
ultrapassar a determinação ôntica remetendo
para a ontologia, ele visa, pois, àquilo que
chama de verdade do “sentido do Ser” e não
à dominação do mundo dos entes, embora
seja preciso se partir do modo como os
próprios entes se mostram primariamente
enquanto fenômenos. Portanto, se questiona
o Ser do ente para que seja possível um além,
um
transcendens
, partindo daquilo que se
apresenta. A fenomenologia, neste sentido,
configura-se como a abertura do Ser, como
clareira (
Lichtung
), que, levaria a um percurso
que se trilha no transcorrer dele mesmo, e
que é, em si,
veritas transcendentalis
. Na
fenomenologia heideggeriana não muralha
entre verdade empírica e transcendental é
da experiência privilegiada do ser-aí que
emerge a possibilidade da transcendência
(SARTORI, 2019, p. 123).
No grau de abstração que compete à
presente resenha, resta no mínimo clara uma
questão importantíssima: a
diferença específica
entre o tratamento dado à ontologia pelos dois
autores em tela. Para Heidegger, uma
dicotomia central entre Ser e ente na qual este,
o domínio ôntico, é marcado pela “ditadura” do
impessoal (
das Mann
) e pelo estranhamento,
enquanto aquele, o plano ontológico,
transcendental, é alcançado mediante um
“passo de volta” (
Schritt zurück
) que se
desprende das questões pertinentes ao
conglomerado dos entes para privilegiar as
questões originárias. Para Lukács, a ontologia
diz respeito ao modo de ser da realidade
objetiva, bem como à sua estrutura e ao seu
movimento, marcados pela historicidade e pela
processualidade.
Tal oposição, contudo, como aponta Sartori
ao embrenhar-se nas determinações concretas
de ambas as teorias, não constitui mero debate
de ideias que pairam no ar, subsistindo à
míngua. Antes, revela dois extremos no que
concerne à tomada de posição dos autores
diante da realidade mesma. Lukács, qual
ressaltado ao longo de todo o texto, assume um
caráter revolucionário e aposta na atividade
humana sensível como prática capaz de
transformar a realidade objetiva, derrubando as
bases que engendram o estranhamento e,
consequentemente, a produção dos homens
enquanto entrave para o próprio itinerário de
hominização. Heidegger, por outro lado,
deposita as suas fichas em uma configuração
transcendental marcada pelas questões que
foram esquecidas pela modernidade, relegando
a mobilização radical ao plano do impertinente,
pois o próprio tratamento das determinações
presentes na sociedade civil-burguesa fossem
elas positivas ou negativas é alienígena à
filosofia.
É mediante o levantamento dessa
problemática que se convida a ler
Ontologia
nos extremos: o embate Heidegger e Lukács,
uma introdução
. A partir da pesquisa levada a
cabo por Sartori e da conformação dos embates
filosóficos de nosso tempo “tempo esse em
que a herança de Heidegger parece ter vencido
a batalha de ideias sobre a questão ontológica”
(VAISMAN, 2019, p. 10) , indaga-se: a
mobilização de potências transformadoras do
mundo é, de fato, algo sem mérito para as
reflexões filosóficas? Mais vale um “passo de
volta” diante do mar tempestuoso dos
estranhamentos?
Referências bibliográficas
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Prefácio. In:
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.
Fenomenologia do espírito
. Petrópolis:
Vozes, 2014.
MARX, Karl.
Contribuição à crítica da economia
política
. o Paulo: Expressão Popular,
2017.
MARX, Karl.
Grundrisse
. o Paulo: Boitempo,
2016.
NETTO, José Paulo.
Lukács e a crítica da filosofia
burguesa
. Lisboa: Seara Nova, 1978.
SARTORI, Vitor B.
Ontologia nos extremos: o
embate Heidegger e Lukács, uma
introdução.
São Paulo: Intermeios, 2019.
VAISMAN, Ester. Apresentação. In: SARTORI,
Vitor B.
Ontologia nos extremos: o embate
Heidegger e Lukács, uma introdução
. São
Paulo: Intermeios, 2019, p. 7-10.
A questão do estranhamento entre a superação e o passo de volta
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 442-451 - jan./jun. 2021 | 451
Como citar:
HELENO, Matheus Correa de Sousa. A questão do estranhamento entre a superação e
o passo de volta: sobre
Ontologia nos extremos
.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 27, n. 1,
pp. 442-451, jan./jun 2021.