Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, Lukács: 50 anos depois - jan./jun. 2021
O espírito europeu (1946)
*
György Lukács
Na filosofia atualmente dominante, é comum tomar como ponto de partida a
chamada situação”. Faremos o mesmo em nossas considerações, embora por
“situação” não entendamos a situação individual do homem agindo isoladamente, mas
a situação em que toda a humanidade se encontra hoje. Esta situação pode ser
resumida da seguinte forma: o poderio militar do fascismo foi aniquilado pela guerra.
No entanto, o desenvolvimento do período pós-guerra mostra que a aniquilação
política, orgânica e, sobretudo, ideológica do fascismo é muito mais lenta e mais difícil
de alcançar do que muitas pessoas imaginavam. Isso, do ponto de vista político,
porque muitos estadistas, que enfaticamente se proclamam democratas, consideram
os fascistas como uma reserva, poupam-nos e até os apoiam. E, por outro lado, a visão
de mundo fascista está provando ser muito mais resistente do que muitas pessoas
imaginaram após a aniquilação de Hitler.
Devo dizer que não estou entre aqueles que se surpreendem e se decepcionam
com esse desenvolvimento. Mesmo antes da guerra, e durante ela, defendi
constantemente a tese de que o fascismo não é de forma alguma, do ponto de vista
histórico, uma manifestação rbida isolada; de que ele não constitui uma erupção
brusca da barbárie na civilização europeia. O fascismo como visão de mundo marca,
antes, a culminação qualitativa de doutrinas irracionais no campo da teoria do
conhecimento e de doutrinas aristocráticas de um ponto de vista social e moral,
*
“O espírito europeu” foi o mote da primeira edição dos Encontros Internacionais de Genebra, ocorrida
entre 2 e 14 de setembro de 1946. Além de Lukács, foram convidados a expor suas considerações
sobre o tema Julien Benda, Georges Bernanos, Karl Jaspers, Stephen Spender, Jean Guéhenno, Francesco
Flora, Denis de Rougemont e Jean-Rodolphe de Salis. Conferida originalmente em 9 de setembro de
1946, em alemão, a palestra (já em tradução francesa, feita por Renée Schidlof), foi publicada
integralmente pela primeira vez no tomo I (1946) dos
Textes des conférences et des entretiens
organisés par les Rencontres Internationales de Genève
. Les Éditions de la Baconnière, Neuchâtel, 1947,
364p. Collection: Histoire et société d'aujourd'hui. Para a presente tradução que inclui, além da
conferência lukácsiana, seus pronunciamentos durante as sessões de discussão promovidas pela
organização do evento, nos valemos da edição eletrônica dos anais supramencionados. Tradução de
Carolina Peters (agradeço a Murilo Leite pelo aulio no cotejo e revisão desta tradução). Revisão técnica
da tradução de Vitor Bartoletti Sartori.
DOI 10.36638/1981-061X.2021.v27.620
György Lukács
10 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
doutrinas que, muitas cadas, desempenham um papel proeminente tanto na
ciência oficial quanto na não oficial, e no mundo da divulgação científica e
pseudocientífica. Como estamos diante de um vínculo orgânico, é fácil para os adeptos
espirituais do fascismo encontrar uma posição de recuo; eles podem repudiar Hitler e
Rosenberg e, enquanto esperam uma oportunidade favorável para uma nova ofensiva,
entrincheirar-se atrás da filosofia de Spengler ou Nietzsche. Eis um processo que pude
observar pessoalmente, desde a sua origem, por ocasião das confencias que fiz
durante a guerra com oficiais superiores alemães aprisionados.
Portanto, mesmo do ponto de vista da visão geral de mundo, a aniquilação da
ideologia fascista não é de modo algum uma questão simples. Ao retirar do comércio
os escritos de Mussolini, Hitler e Rosenberg, nada foi feito ainda. O que precisa ser
aniquilado são as raízes espirituais e morais do fascismo. No entanto, isso não pode
ser alcançado se não estiver claro quando e como surgiu a crise da qual o fascismo
emergiu como uma forma peculiar, bárbara e desumana de seu desenvolvimento. Até
agora, essa crise foi vista de diferentes maneiras, de diferentes pontos de vista. No
entanto, as causas profundas de suas diferentes manifestações são idênticas em sua
essência e, portanto, devem ser pensadas de forma idêntica.
Quando nos propomos a abranger, com o pensamento, essa crise em seu
conjunto, nos deparamos com quatro grandes complexos: crise da democracia, crise
da ideia de progresso, crise da crença na razão e crise do humanismo. Cada um desses
complexos é o resultado do triunfo da grande Revolução Francesa. Todos os quatro
alcançaram seu auge no período imperialista. Todos os quatro o qualitativamente
acentuados durante o período entre as duas guerras mundiais, no período em que
nasceu o fascismo. Pela conveniência da exposição, estudaremos esses quatro
complexos separadamente, mas sem com isso perder de vista sua natureza comum.
Porque a sua essência e, consequentemente, a forma de concebê-los constituem, de
fato, uma unidade. Apenas a clareza da exposição obriga-nos a separá-los e mesmo
assim, sem que o desejemos, os veremos se fundir.
Antes de passar propriamente à exposição, permitam-nos mais uma observação
preliminar de ordem metodológica. Todos os argumentos usados contra a democracia
e o progresso, contra a razão e o humanismo, não são meros sofismas vazios; eles
emanam da própria essência social de nossa época. Como diz Marx, eles não passaram
dos livros para a vida, mas da vida para os livros. Como resultado, todos esses
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 11
desenvolvimentos refletem, embora desfigurados, problemas concretos, sofrimentos
concretos, necessidades concretas. Por estarem assim comprometidos com o social,
esses argumentos têm, portanto, uma espécie de justificativa intrínseca, e não podem
ser simplesmente refutados pela prova de seu caráter contraditório ou mesmo de seu
absurdo. Devemos, antes, mostrar que esse caráter contraditório, absurdo, tem sua
origem em necessidades concretas, que ele contém os elementos de um problema
justificado, mas colocado de forma distorcida e desfigurada, e que, por isso mesmo,
esse problema, justificado do ponto de vista subjetivo, mas mal formulado do ponto
de vista objetivo, só pode ser resolvido por uma resposta correta e adequada.
Por que foi precisamente a vitória da grande Revolução Francesa que causou
essa crise? Porque são as condições históricas concretas dessa vitória, e seu
paralelismo não fortuito com a revolução industrial inglesa, que asseguraram, em seu
desenvolvimento antitético, o advento do capitalismo, base da sociedade burguesa
moderna. Do ponto de vista da visão de mundo, a conseqncia desse fato é que a
situação social assim criada comporta, ao mesmo tempo e inseparavelmente, uma
realização e uma refutação das ideias da filosofia do Iluminismo. Consideremos agora
esses quatro complexos separadamente.
1. A crise social e intelectual da democracia tem sua origem no caráter antitético
que apresentam a liberdade e a igualdade humanas, conforme sejam vistas no plano
político ou no plano concreto. A famosa piada de Anatole France, de que a lei proíbe
ricos e pobres de dormir sob as pontes com igual majestade,
1
traduz esse complexo
de contradições de uma forma que é clara e plástica. Alguns críticos clarividentes da
sociedade, como Linguet, por exemplo, perceberam essas contradições antes mesmo
da vitória da Revolução Francesa. Mas era necesrio que a liberdade e a igualdade
formais fossem realizadas na vida concreta para que seu caráter contraditório servisse
como um centro de cristalização para todos os modos de agrupamento político e social
do século XIX e, consequentemente, para as rias visões de mundo que se
desenvolveram durante este período, a saber: tentativas, em primeiro lugar, de realizar
concretamente a liberdade e a igualdade humanas, ou pelo menos tender para essa
1
Lukács refere-se à célebre frase de Anatole France sobre a majestosa igualdade das leis, que proíbe
tanto o rico quanto o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão” [Nota da
Tradução].
György Lukács
12 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
realização (jacobinos, democratas radicais, socialistas);
2
em segundo lugar, os esforços
para fixar juridicamente e idealizar pelo pensamento os resultados político-sociais da
Revolução Francesa (liberalismo); e, em terceiro lugar, a tendência de considerar a
desigualdade humana efetiva e sua ausência de liberdade como um fato natural”, uma
“lei da natureza”, ou um dado metafísico e, assim, tomar essas noções como ponto de
partida de uma visão de mundo
sui generis
(várias tenncias reacionárias, até o
fascismo).
Esses grupos, que do ponto de vista tipológico esgotam as várias posições
possíveis em relação aos principais problemas da crise da democracia moderna, estão
na origem de todas as polêmicas, tão intimamente ligadas entre si apesar da sua
diversidade, que opuseram, durante os séculos XIX e XX, as várias visões de mundo.
A ideia que liga os esforços das democracias revolucionárias radicais aos do
socialismo é uma nova concepção de democracia, que pode ser resumida da seguinte
forma: se pode falar de democracia onde todas as formas concretas de dependência
do homem em relação ao homem, a exploração e a opressão do homem pelo homem,
a desigualdade social e a ausência de liberdade tenham desaparecido. É necessário,
portanto, alcançar uma liberdade e uma igualdade que não ignorem as diferenças de
situação econômica, nacionalidade, raça, sexo etc.
então a terceira grande etapa da igualdade humana seria realizada.
Caracterizemos brevemente essas etapas: o Cristianismo proclamou a igualdade das
almas humanas perante Deus; a Revolução Francesa, a do homem abstrato perante a
lei; o socialismo realizará a igualdade humana concreta na vida real.
Do ponto de vista da visão de mundo, observemos ainda que todas essas
tendências, apesar de sua diversidade, sempre consideraram e ainda consideram a
igualdade como condição
sine qua non
do verdadeiro desenvolvimento da
personalidade, e nunca como sua aniquilação. Do ponto de vista filosófico, a
contribuição específica da nova interpretação e do desenvolvimento do materialismo
na visão de mundo marxista é a seguinte: liberdade e igualdade não são ideias simples,
mas formas de vida humana concretas, relações concretas entre os homens, entre eles
e a sociedade e, por meio dela, entre eles e a natureza; consequentemente, sua
2
Considerando que se trata da transcrição de uma exposição oral, não da letra lukácsiana, tomamos a
liberdade de substituir os travessões por parênteses nos trechos em que Lukács apenas alude a
exemplos, a fim de facilitar a leitura [N.T.].
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 13
realização requer necessariamente que as condições sociais das relações humanas
sejam modificadas.
Entre aqueles que foram, socialmente falando, os verdadeiros vitoriosos da
Revolução Francesa, a ideia originária desta grande convulsão se cristaliza e desidrata
cada vez mais, pelo próprio efeito de sua vitória. Quanto mais o liberalismo,
considerado como a expressão espiritual e política dessas tendências sociais em
oposição à democracia radical e ao socialismo , se encontra acuado na defensiva, do
ponto de vista ideológico, mais os conceitos de liberdade e igualdade se tornam
abstratos e formais. Certamente, esses conceitos o pálidas ideias formais em
Fichte e Kant. No entanto, com esses pensadores, a expressão filosófica das ideias de
liberdade e igualdade se ligava a poderosas esperanças utópicas, cujo elemento
patético as transportou particularmente no que diz respeito ao jovem Fichte muito
além dos limites do formalismo. Do mesmo modo, a prática da Revolução Francesa
raramente se eleva acima do conceito jurídico formal de liberdade e igualdade
pensemos em Robespierre se posicionando contra as associações de trabalhadores
mas aí, precisamente, é fácil ver como o utopismo plebeu dos
sans-culottes
ultrapassa
os quadros estreitos da liberdade e igualdade formais, e tende a dar vida à liberdade
e igualdade concretas.
O fundamento teórico consciente ou inconsciente de todas as concepções
liberais é a economia clássica inglesa. A ideia de que uma liberdade de ação ilimitada
do
homo œconomicus
, no quadro da liberdade e da igualdade jurídicas formais,
permite assegurar a todos os seres humanos, pelo funcionamento automático das
forças econômicas, um estado social e cultural ideal, uma máxima felicidade e
realização, está na base de todas as esperanças do liberalismo. Mas, desde o início do
século XIX, essa concepção foi demolida pelo próprio desenvolvimento econômico, e
essa contradição entre a concepção original da economia clássica inglesa e os fatos
da vida econômica capitalista se reflete na derrota espiritual da economia clássica
(discussão Ricardo-Sismondi, dissolução da escola ricardiana). Essa crise está levando
a economia proletária ao seu ponto de maturidade. Além disso, a economia capitalista
engendra e isso mesmo antes do período imperialista toda uma série de
instituições controle alfandegário, protecionismo, monopólios que não
constituem uma refutação prática dos princípios da doutrina econômica clássica em
sentido estrito, mas, ao mesmo tempo, derrubam todos os princípios fundamentais de
uma visão de mundo segundo a qual uma renovação, ou tão simplesmente uma
György Lukács
14 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
consolidação da humanidade, poderia ocorrer graças ao livre jogo das forças
econômicas no quadro da liberdade e da igualdade formais. Tal situação engendra ou
uma economia puramente empírica desprovida de qualquer fundamento ideológico,
ou uma posição de defesa apologética cada vez mais exagerada. Defende-se uma
liberdade e uma igualdade cada vez mais problemáticas, sem que uma crença fundada
nos fatos permita esperar que o futuro possa algum dia corrigir as deficiências
indiscutíveis do presente. Assim, a visão de mundo liberal se petrifica cada vez mais,
porque a situação econômica e social a que corresponde torna-se cada vez mais irreal.
Esse entorpecimento também atua em uma parte importante do ser humano, na
sociedade burguesa. A Revolução Francesa viveu em meio à tensão entre o cidadão e
o burgs no seio de um povo livre. O grave e trágico problema humano da cidadania,
que nasce dessa tensão, encontrou expressão na melhor poesia de todos os países do
início do século XIX (Schiller, Hölderlin, Stendhal, Shelley). Mas o desenvolvimento que
acabamos de esboçar e, sobretudo, a base econômica concreta desse desenvolvimento
transformaram rapidamente o cidadão numa caricatura abstrata, da qual emerge de
forma mais caricaturada os traços que, externamente, sobreviveram ao período
iluminista e à Revolução Francesa, mas que, internamente, agora são destituídos de
qualquer significação (Monsieur Homais,
3
de Flaubert).
A democracia formal do liberalismo transforma o homem em uma pessoa privada.
O desaparecimento do cidadão não corresponde apenas a um empobrecimento e a
uma desespiritualização da vida pública, à qual voltaremos mais adiante, mas também
a uma mutilação do homem enquanto indivíduo, enquanto personalidade. O
individualismo burguês moderno, tal como se desenvolveu sobre esta base tanto faz
se de acordo com ela, em um espírito de indiferença ou em um espírito de rejeição ,
nada quer saber, que fique claro, dessa mutilação. Da afirmação estética da vida no
fim do século ao entorpecimento sombrio de Heidegger em um nada destrutor,
apenas o lado “homem privado” do ser humano o lado “burguês” no sentido da
Revolução Francesa é reconhecido como essencial. Mas, como o homem, quer queira,
quer não, e que se reconheça ou o, também pertence e participa da vida pública,
todas as possibilidades e aptidões de sua personalidade que apenas encontram
oportunidade de se desenvolver na vida pública são extirpadas, desse modo, de forma
3
Personagem do romance
Madame Bovary
, Monsieur Homais é um boticário, ou melhor, “farmacêutico”,
como ostenta na fachada de seu estabelecimento [N.T.].
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 15
artificial e à força. Basta pensar nos Antigos para perceber até que ponto todas as
formas de individualismo moderno são mutilações da personalidade humana.
Daí, aliás, uma falsa estruturação da economia privada do homem, do burguês.
Quanto mais a economia capitalista se fetichiza, mais ela assume formas apologéticas
e mais, ao mesmo tempo, a parte exploradora e parasitária do
homo œconomicus
se
identifica com sua personalidade. Parte-se da ideia justificada em si mesma de que
para garantir o desenvolvimento da personalidade humana é indispensável reservar
constantemente um terreno concreto para ela entre as coisas e as relações humanas.
Mas essa ideia é então deformada a ponto de os meios para o homem explorá-lo
acabarem assumindo o valor de atributos fetichistas insepaveis de sua
personalidade; e é por isso que, nessa concepção de vida, a socialização da
personalidade é logo considerada como sinônimo de sua aniquilação. O que não se
leva em conta é que do próprio ponto de vista do verdadeiro desenvolvimento da
personalidade o “terreno” em questão justamente apenas pode ser constituído por
relações recíprocas, reais e concretas entre os homens e entre os homens e as coisas;
e que, desde que existam essas relações e essa reciprocidade, não importa como as
relações jurídicas de propriedade organizam dito “terreno”; pelo contrário, um direito
de propriedade que não seja acompanhado por tais relações recíprocas fato
característico do capitalismo paralisa o desenvolvimento da personalidade e a mutila,
em vez de ser-lhe favorável. Foi isso que com clareza reconheceram estoicos e
epicuristas. Não menos “fetichizada”, aliás, [é] a concepção segundo a qual o
desenvolvimento da personalidade em certos homens os não-capitalistas exigiria
como estímulos a fome, a privação etc. É assim que o fetichismo desse período se
transforma em um aristocratismo muitas vezes velado, mas em todo caso sempre
transposto no plano objetivo, para o qual existem duas espécies distintas de homens,
cujos respectivos desenvolvimentos requerem condições sociais opostas.
Assim, esse desenvolvimento leva ao mesmo tempo a uma deformação da
personalidade, ao seu exagero fetichista e ao seu definhamento.
É impossível para s descrever em detalhes aqui a crise da concepção liberal
de mundo. Vamos simplesmente observar duas características. Em primeiro lugar,
aquilo que se denomina problema da “constituição das massas”, em que certos
aspectos econômicos do desenvolvimento do capitalismo encontram-se fetichizados
do ponto de vista da psicologia e da filosofia sociais; é necessário ver aí, no plano
György Lukács
16 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
intelectual, um reflexo importante da crise de que falamos: o liberalismo se separa
progressivamente da democracia, que cada vez mais se enfraquece e perde cada vez
mais sua influência, exceto no interior do movimento socialista dos trabalhadores.
Assim, se produz uma separação total entre o pensamento liberal e as massas; o medo
e ao mesmo tempo o desprezo pelas massas emergem. Este desenvolvimento tem seu
ponto de partida em Stuart Mill e atinge seu auge na psicologia social de Le Bon, na
sociologia de Pareto, Michels etc. Nessa fase, ele se alia, nos sinceros representantes
do pensamento liberal, a uma profunda resignação. O sociólogo mais importante desse
período, Max Weber, lutou ao longo de toda sua vida pela democratização da
Alemanha Guilhermina. Mas ele o fez com a ideia de que favoreceria o desenvolvimento
de um sistema um pouco melhor do que o anterior do ponto de vista do
“funcionamento cnico”, e sem acreditar nem uma vírgula na possibilidade de uma
conversão verdadeira do povo alemão, o que parecia lógico, dada a premissa de seu
pensamento e a forma como julgava a situação.
Ao problema da “constituão das massas” se relaciona intimamente o da “elite
e da “escolha dos líderes”. Também aqui há razão em si para colocar tal problema, e
nem mesmo é incorreto constatar que a elite se torne amplamente independente das
massas que supostamente representa. O problema se distorce quando é
generalizado, extrapolando o quadro da história, perdendo assim de vista o fato de
que se trata apenas de um fato social particular em uma determinada fase do
desenvolvimento do capitalismo. A constatação, exata quanto a esta fase, denuncia
uma das fragilidades centrais da democracia burguesa formal. Do ponto de vista
formal, as massas aparecem no exercício do direito de voto como senhoras
absolutas, irrevogáveis; mas, na verdade, elas são totalmente impotentes e devem
permanecer assim, pela vontade daqueles que manipulam os cordéis da marionete.
Evoquemos poucos fatos: o enorme custo do aparelho eleitoral, os jornais destinados
às massas etc. bastam para trazer isso à luz; em tal organização econômica, o poder
total está necessariamente concentrado em poucas mãos. A imprensa, a literatura, o
cinema etc. assim dirigidos tendem a despolitizar o espírito das massas, pois somente
dessa forma a propaganda eleitoral podefacilmente afetá-las. Resumindo: a chamada
nova elite é, na realidade, escolhida por um pequeno número de personagens
anônimos, dentre os quais a maioria permanece oculta, em segundo plano;
parcialmente, essa elite escolhe a si mesma; mas em todo caso, suas insuficiências, sua
irresponsabilidade e sua corrupção serão atribuídas à democracia, às massas, porque,
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 17
formalmente, foram elas que a elegeram. Em terreno tão duvidoso, pode se
desenvolver a incoerência ou, melhor, a hipocrisia de pensamento, e a resignação
profunda continua sendo o único resultado possível para o pensamento
subjetivamente honesto.
A nova ideologia, abertamente antidemocrática, nasce dessa crise. O
anticapitalismo romântico que se desenvolveu em rebelião contra a cultura capitalista
no início do século [XIX] exibe primeiramente traços democráticos, que logo perde,
porém, à medida que a crise se desenvolve (mudança de atitude de Carlyle após 1848).
A oposição romântica da segunda metade do século coloca abertamente a
desigualdade e a ausência de liberdade na base de uma sociedade “saudável”. Essa
concepção tem muitos pontos em comum com a ideologia da Restauração após a
Revolução Francesa, mas de forma alguma traduz uma tentativa de restauração pura
e simples do sistema feudal absolutista que então havia sido aniquilado; na verdade,
é um novo produto da crise moderna da democracia. Pode-se considerar o pensamento
de Nietzsche como o fenômeno mais importante que marca a passagem para essas
novas concepções.
É fácil compreender por que a ideologia antidemocrática e não igualitária
encontra sua fundamentação científica acima de tudo na biologia. Com efeito, a
demonstração da existência de uma desigualdade biológica irremediável entre os seres
humanos pode fornecer-lhe a aparência de uma base racional. Na verdade, essa tal
biologia não é de forma alguma uma ciência, é um mito. podemos ver isso
claramente em Nietzsche; sua “raça dos senhores” tem, na realidade, apenas um
fundamento romântico-moral, e a biologia figura aí simplesmente como ornamentação
mística.
Outro mito biológico grosseiro se desenvolve paralelamente: o da teoria das
raças. Aqui, novamente, não se trata de uma teoria baseada nos resultados das ciências
naturais, mas da necessidade metodológica, nascida no plano político-social, de
demonstrar a existência de uma desigualdade radical entre os indivíduos dentro de
um mesmo povo, ou de vários povos entre si. Tal teoria constitui a negação brutal de
uma verdade antiga: aquela que afirmava que a diversidade das personalidades, as
próprias diferenças individuais se conciliam perfeitamente com a igualdade de direitos,
tanto entre as pessoas como entre os povos, e que essa diversidade apenas se torna
tolerável através da igualdade das condições de desenvolvimento econômico e social.
György Lukács
18 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
A teoria das raças, a doutrina radical da desigualdade, é sistematicamente
desenvolvida pela primeira vez em Gobineau, e não é por acaso que seus primeiros
leitores e adeptos foram recrutados entre os proprietários de escravos americanos,
conforme aparece na corresponncia [com] Tocqueville. Em efeito, apenas posta de
forma tão radical uma diversidade qualitativa entre os seres humanos pode servir de
fundamento para uma moral, uma sociologia, uma filosofia da história da qual se segue
que certas raças não pertencem à humanidade e justificar o total confisco dos direitos
humanos dessas raças.
Mesmo dentro desse campo, ocorreram violentas lutas de tendência, lutas nas
quais o mito biológico grosseiro prevaleceria cada vez mais claramente, e a psicologia
moral, por sua vez reduzida também aos mitos, seria empurrada cada vez mais para o
segundo plano. Mas o fato de que a orientação de Chamberlain-Rosenberg dominaria
a orientação nietzscheana não deve nos fazer perder de vista o fato de que, quando
se trata do desfecho da crise da democracia, essas duas orientações convergem.
Assim, se desenvolveu no entre guerras uma situação paradoxal na qual o mundo
civilizado em sua quase totalidade era governado de acordo com os princípios
democráticos, enquanto a democracia havia perdido todo o poder e todos os seus
defensores. A República de Weimar foi uma democracia sem democratas e, como seu
aparelho governamental atuou apenas em benefício de uma pequena minoria anônima,
gerou um desapontamento geral e profundo entre as massas alemãs com relação à
democracia. O poder de persuasão da verdadeira convicção faltava a seus melhores
defensores, como Max Weber. E o que é mais grave, os únicos possíveis defensores
ativos da democracia, os trabalhadores revolucionários, foram assim levados a se
tornarem oponentes cada vez mais ferrenhos da democracia. A opinião cada vez mais
difundida naquela época de que o mundo deveria escolher entre o fascismo e o
bolchevismo confundiu os oponentes do fascismo, e tornou impossível construir uma
frente antifascista naquela altura. Foi somente por meio desse caos ideológico que o
fascismo pôde aparecer tanto para as massas desamparadas quanto para uma elite
intelectual desesperada como uma solução para a crise da democracia.
É assim que a estratégia de Hitler pôde seguir de vitória em vitória até 1941.
Somente a aliança de 1941, a aliança entre democracia e socialismo, pôde levar a um
ponto de inflexão na história, fazendo surgir a possibilidade de salvar a civilização.
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 19
2. Todos esses problemas nos levam ao segundo complexo crítico: a crise da
ideia de progresso. Do ponto de vista filosófico, a noção de progresso pressupõe a
descoberta, no seio da sociedade, de tendências constantes, senão uniformes, para a
melhoria dos valores humanos, descoberta que permite assim fundamentar essa noção
de progresso em uma realidade concreta. Tal concepção filosófica implica tanto a
aspiração a um estado ideal em uma ideia de perfectibilidade indefinida, como Kant
a concebe quanto a possibilidade concreta de modificar qualitativamente a situação
presente, possibilidade que garante o florescimento das forças “naturais” da
humanidade (capitalismo na economia clássica, objetivos propostos pela filosofia do
Iluminismo, objetivos da Revolução Francesa etc.). Ora, na crise cujas características
acabamos de delinear, essa crença na realização concreta do progresso desapareceu.
Portanto, se a noção de perfectibilidade indefinida permanece isolada, como é o caso
do neokantismo liberal, toda conexão com a realidade social concreta é perdida, tudo
se torna abstrato, desprovido de força e poder de persuasão. No entanto, tal
desenvolvimento é socialmente necessário. Sob uma forma acadêmica, essa noção
ainda é encontrada entre os neokantianos. Mas tal concepção, na qual o descompasso
entre o ideal e a realidade aparece como inevitável e radicalmente intransponível, logo
conduz a um profundo pessimismo cultural entre a elite intelectual. Da
Impotência da
razão
,
de Scheler, a Valéry, vê-se aparecer a concepção de uma resistência heroica e
solitária, de uma morte heroica por uma causa perdida; defende-se ideais que sabemos
muito bem que não estão vinculados a nenhuma realidade social concreta nem
poderiam estar. A evolução cultural da elite espiritual é perseguida com resignação
aristocrática, distante da realidade hostil às ideias. A colocação em prática dos ideais
deve ser transposta para o plano interior. Em seu desenvolvimento, o homem isolado
ainda pode lutar pelo progresso, a sociedade não pode.
Relacionado a essa evolução, está o conflito entre cultura e civilização, que
exerceu enorme influência nas últimas décadas. Em termos gerais, esse conflito
repousa na ideia de que o progresso é possível no plano exterior, da civilização, e, em
particular, da civilização técnica, mas não no plano verdadeiramente fundamental, da
cultura. Aqui, novamente, trata-se de uma resposta falsa dada a uma questão em si
mesma perfeitamente fundamentada. É com razão que a elite intelectual protestou
contra o fato de que o desenvolvimento da cultura fosse tratado segundo o esquema
de um puro e simples progresso cnico. Para o dialético, o próprio princípio do
desenvolvimento da cultura reside em sua não uniformidade. Schiller já sabia que, no
György Lukács
20 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
campo da arte, uma evolução, um progresso pode perfeitamente ocorrer sem que se
devam considerar as criações futuras como superiores às do passado. É só porque a
elite intelectual se encontra perdida na sociedade moderna, porque é “organicamente”
incapaz de descobrir os caminhos e os meios do progresso real, que o conflito entre
cultura e civilização pôde nascer. E seria oportuno examinar em profundidade a relação
entre esses dois fenômenos, em cuja origem também aparece, é claro, certo
estacionamento dos ideais liberais.
Assim, aparece relativamente cedo a negação do progresso histórico. Ela é mais
radical em Schopenhauer, mas também se encontra, definitivamente, em Kierkegaard
e na escola histórica romântica alemã, em Ranke e em seus sucessores. Nietzsche tenta
fundar sobre essa base uma utopia reacionária. Mas, de fato, por um lado, sua
verdadeira concepção da história é muito próxima à de Schopenhauer: a história nos
oferece o espetáculo de uma corrupção constante, de um declínio inevitável, e seus
raros pontos de inflexão favoráveis são milagres. E, por outro lado, sua doutrina do
eterno retorno das coisas é uma nova negação de todo desenvolvimento histórico, de
todo progresso. onde o progresso, do modo como o compreende, deve ser
constatado, ele se perde no puro mito.
Uma relação muito interessante pode ser observada aqui: o pessimismo social
emerge de uma concepção estática da história; a doutrina antidemocrática está
estreitamente ligada à negação do progresso; tudo o que a história pode
eventualmente sustentar de bom pertence ao passado; o próprio processo histórico
pode consistir em um lapso; o melhor que se pode fazer é voltar a um estado
anterior. Mas esse resultado não pode ser obtido organicamente, por meio do
desenvolvimento histórico; constitui um brusco salto qualitativo.
É essa última ideia que domina, em particular, a teoria das raças. A Idade Média
do anticapitalismo romântico torna-se aqui o estado original da raça pura. O
desenvolvimento histórico se manifesta apenas na miscigenação das raças e,
consequentemente, na sua corrupção. Daí o pessimismo de um Gobineau. A ideologia
fascista é construída sobre essas bases, nega radicalmente qualquer ideia de
progresso e assenta sobre um “milagre” termo usado por Hitler para designar sua
própria missão a perspectiva de um restabelecimento do estado original.
Desse modo, por um lado, a noção de elite, a concepção aristocrática, torna-se
acessível também para as grandes massas porque é aplicável a povos inteiros; por
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 21
outro lado, essa concepção adquire uma base totalmente rígida e totalmente arbitrária.
O racismo radical desenvolveu-se por muito tempo dentro de pequenas seitas; no
entanto, uma vez que essas seitas viviam em um ambiente por si aristocrático, onde
a noção de elite repousava, sobretudo, em concepções moral-sociais, psíquicas ou
espirituais, mas sempre se resumia em última instância a um mito racista (Nietzsche e
Spengler), sua influência se expandiu cada vez mais. Claro, foram as condições sociais
do período preparatório para a Segunda Guerra Mundial que levaram à vitória do
movimento fascista entre as massas.
É necessário destacar, aqui, uma convergência entre a noção de democracia ou
a concepção antidemocrática, de um lado, e o que se convencionou chamar de
“posições extremasem matéria filosófica, de outro, convergência que de nenhuma
maneira é uma construção abstrata pura, uma “tipologia” sempre mais ou menos
arbitrária , tal como a encontramos nas ciências do espírito. Trata-se, antes, de
mostrar como se comportam os pensadores diante de certas tendências concretas de
seu meio social, como interpretam essas tendências, que posição positiva ou negativa
eles assumem em relação a elas, se as negam ou se as reconhecem etc. O vínculo
entre, por um lado, progresso e democracia e, por outro, negação do progresso e uma
concepção aristocrática é, portanto, um fato da vida concreta.
Não é de modo algum por acaso que o conceito de pessimismo surge aqui. Aqui,
novamente, pode-se destacar uma conexão importante fundamentada no
desenvolvimento social concreto. Não é de modo algum por acaso que o progresso, o
otimismo e a democracia, por um lado, a oposição ao progresso, o pessimismo e o
ponto de vista aristocrático, por outro, caminham juntos. Pois, embora os fatos naturais
pareçam desempenhar um grande papel na controvérsia entre o otimismo e o
pessimismo, ainda assim é o ponto de vista social que tem a última palavra, e os fatos
naturais apenas lhes fornecem justificativas. O fato de que todo o planeta e, com ele,
toda a cultura humana um dia desaparecerão não pode perturbar um democrata
otimista e, por outro lado, Chamberlain e Nietzsche mostraram como é possível usar
o darwinismo para fins de uma filosofia antievolucionista.
O crescente poder do pessimismo dos nossos dias evidencia particularmente
bem as raízes sociais dessa concepção, embora se apresente essencialmente como
pessimismo cultural, como uma negação do progresso no que diz respeito aos
problemas humanos fundamentais. A situação da elite intelectual de nosso tempo, do
György Lukács
22 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
modo como acabamos de descrevê-la, está intimamente relacionada ao fato de que o
pessimismo se apresenta cada vez mais como uma atitude distinta, em oposição ao
robusto otimismo plebeu; aparece como a única atitude espiritual autêntica possível,
moralmente superior ao otimismo. Aqui, novamente, trata-se de um ponto de vista
parcialmente justificado: em um ambiente fundado na apologia da vida capitalista,
onde toda feiura, baixeza, desumanidade devem ser parcialmente negadas,
parcialmente idealizadas, em um ambiente onde reina uma concepção vulgar de
progresso, identificando o desenvolvimento deste tipo de economia e sua civilização
cnica como uma marcha ascendente sem levar em conta os efeitos destrutivos
dessa evolução nos planos humano e cultural , o ceticismo e mesmo o pessimismo
podem muito bem ser mantidos em um nível intelectual e moral superior ao de seus
adversários. Mas uma reversão de valores ainda é iminente. Ocorre assim que esse
pessimismo se transforma em uma concepção aristocrática que se satisfaz por si
mesma, e logo leva a uma aliança com as forças da reação. O anti-historicismo e o
pessimismo metafísico de Schopenhauer pretendiam se elevar acima da mesquinhez
da vida social e política. Mas, na realidade, eles não estavam fazendo outra coisa, e
isso no próprio Schopenhauer, a não ser apoiar o Terror Branco de 1848 e do pós-
1848. E o progresso dessas tenncias aristocráticas pessimistas, depois de
Schopenhauer, apenas reforça esse caráter decadente e reacionário. Não é à toa que
Thomas Mann, para caracterizar nosso tempo, fale da força de atração da doença, do
definhamento e da morte.
Todas essas tenncias são levadas ao extremo dentro do fascismo, pois, como
acabamos de ver, a caractestica dessas teorias das raças é um pessimismo e um
aristocratismo absolutos. O “pessimismo heroico” do fascista é uma filosofia fundada
no mais extremo desprezo pelo homem, na exploração sem escrúpulos do profundo
desespero das grandes massas e de uma elite intelectual desorientada. Os campos de
extermínio de Auschwitz ou Majdaneck são a consequência imediata da política
imperialista do fascismo. Mas este sistema político e suas manifestações nunca teriam
conseguido se desenvolver sem esse aristocratismo que considera todo ser de outra
raça como não-humano, sem uma concepção universal do desespero, sem a ausência
de qualquer visão social e histórica, tudo o que coloca uma nação inteira e seu destino
na situação de um aventureiro à beira do abismo.
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 23
3.estamos tocando mais de perto os problemas propriamente filosóficos, que
são o assunto deste estudo. As seguintes considerações nos levarão à questão central:
negação ou afirmão da razão. Considerar a posição da filosofia em relação à razão
como um problema imanente à filosofia no domínio da teoria do conhecimento, da
fenomenologia ou da ontologia é obra de um falso academicismo. Todas essas
disciplinas são apenas aspectos da filosofia geral, cujos fundamentos devem ser
buscados no próprio ser, como os gregos já haviam visto, assim como Fichte, para não
falar dos materialistas. Para qualquer problema relevante da teoria do conhecimento
ou de algum outro ramo da filosofia, os modos de colocá-lo e resolvê-lo dependem da
maneira como o filósofo concebe a relação entre o ser e a razão e diferem conforme,
para ele, o núcleo da existência, a essência do ser, seja de natureza racional ou
irracional.
É impossível abordar aqui, mesmo de passagem, o problema filosófico do
irracionalismo. Contentemo-nos em indicar a sua ligação com o nosso problema, com
o dilema aristocrático-democrático. Novamente aqui, a coordenação é claramente
visível. Não, é claro, no sentido simplista em que se perguntaria se, de um ponto de
vista político, certo pensador tem opiniões de direita ou de esquerda. A esse respeito,
há exceções frequentes: por exemplo, Sorel. Mas, no que diz respeito à visão geral de
mundo, a ligação é inequívoca: o ponto de vista antiprogressista está quase sempre
estreitamente relacionado ao irracionalismo e à tão peculiar noção de “nova elite”. As
tendências fundamentais de um Sorel correspondiam, certamente, a uma mentalidade
socialista; mas, certamente, não a uma mentalidade democrática. A ruptura, tão
carregada de consequências, entre socialismo e democracia também se manifesta em
sua filosofia.
De acordo com sua gênese histórica, a ideologia antirracionalista se originou em
oposição à Revolução Francesa e, por esta razão, se opõe fortemente ao conceito de
progresso, à ideia de que as coisas do passado devem necessariamente ser destruídas
por coisas novas. Constitui, portanto, antecipadamente uma defesa da velha sociedade
aristocrática, e não apenas no plano político. Sua visão geral de mundo é dirigida
contra o racionalismo da filosofia do Iluminismo, e pretende defender instituições etc.
pela simples rao de existirem, mantendo as tradições apenas porque parecem estar
vivas, tudo sem se preocupar se são ou não racionais. É, portanto, a rejeição da
racionalidade como critério. A independência assim posta em relação à razão torna-se
uma concepção positiva: porque essas instituições, essas tradições etc. representam
György Lukács
24 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
algo superior a toda racionalidade, vemos nelas o núcleo suprarracional, irracional, de
toda realidade. O fato de que um Burke, um de Maistre ou um Haller pareceriam
singularmente racionais diante dos irracionalistas de hoje apenas destaca a
profundidade e a amplitude do desenvolvimento assumido por essa concepção de
mundo. A relação entre o irracionalismo e a visão de mundo aristocrática não
determina apenas a nese dessa concepção, mas também sua ppria estrutura
filosófica. Pensemos na controvérsia entre Schelling e Hegel a respeito da intuição
intelectual. Aqui, a oposição é elevada de forma duradoura ao nível filosófico e, ao
mesmo tempo, o caráter, respectivamente, aristocrático e democrático dos dois pontos
de vista encontra-se claramente expresso. Schelling pensa que a intuição intelectual,
ou seja, o órgão que nos permite acessar a realidade em si, requer um dom genial,
que não pode ser adquirido pelo estudo. Essa ideia encontra seu desenvolvimento
através de Schopenhauer, Nietzsche, Bergson e da escola de George, até o
irracionalismo contemporâneo. O importante não é distinguir entre os requisitos de
“gênio” estético, moral, filosófico, psicológico etc. O que importa é o princípio
aristocrático que, desde Chamberlain, também se apresenta como um princípio racista.
Em contrapartida, Hegel defende o ponto de vista de que todo homem tem os
meios para acessar uma concepção filosófica da realidade. Isso de forma alguma
significa que Hegel acredite que o conhecimento filosófico seja acessível sem mais a
toda inteligência humana saudável, e que ele considere supérfluo o trabalho técnico
preparatório para a filosofia. Seu ponto de vista implica apenas que, em princípio, esse
caminho está aberto a qualquer homem normal. A comparação que ele faz a esse
respeito é bastante significativa: qualquer soldado de Napoleão poderia se tornar um
marechal, mas, é claro, nem todos se tornariam; o mesmo se aplica ao acesso dos
homens ao conhecimento filosófico. A
Fenomenologia do Espírito
de Hegel se dirige
contra Schelling já pelo simples fato de que ela opõe ao “salto” irracional e genial da
intuição intelectual um caminho racional tanto individual quanto coletivo, tanto
antropológico quanto histórico e social para a compreensão do mundo.
Claro, a importância da mudança de ponto de vista que ocorreu aqui não deve
ser minimizada: a razão hegeliana não é idêntica à dos filósofos do Iluminismo. Entre
elas está a Revolução Francesa e a crise da humanidade provocada por sua vitória,
crise cujo contragolpe nós acabamos de estudar na crise do pensamento democrático
e da ideia de progresso. Em Hegel, a mudança de ponto de vista marca todos os
problemas, bem como a própria estrutura de sua visão de mundo. Aqui, novamente,
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 25
podemos apenas esboçar o fenômeno em linhas gerais. Acabamos de mostrar as
relações entre Hegel e a filosofia irracionalista de sua época; também sabemos qual
foi a atitude de Hegel em relação à Restauração e ao Romantismo. Em nosso tempo,
tentou-se muitas vezes negar ou atenuar a sua oposição claramente manifesta em
relação a essas tenncias, embora baste reler as passagens relativas a Haller ou a
Savigny da
Filosofia do direito
para ver claramente qual era a sua posição. Durante a
Revolução Francesa, a razão, como também diz claramente Hegel, tornou-se senhora
da sociedade e da história. O reino da razão foi, portanto, realizado. Mas como se
apresenta essa realização? Como Engels muito acertadamente mostra, esse reinado se
apresenta, ao mesmo tempo, como o da burguesia. Acabamos de revisar brevemente
as contradições que se manifestaram a esse respeito em todos os âmbitos da vida.
Diante da contradição inerente a toda realidade histórica-social, a filosofia pode
escolher entre três possibilidades: primeiramente, estreitar e empobrecer a noção de
razão, para que o domínio da burguesia possa continuar a parecer o da razão; em
segundo lugar, considerar a realidade como irracional; e deixaremos de lado, aqui
novamente, as múltiplas variões possíveis dentro desses dois pontos de vista.
Hegel, por sua vez, faz aparecer uma terceira possibilidade: enquanto na
presença das contradições de que falamos, um desses dois pontos de vista se
transforma na negação da razão e o outro procura simplesmente escapar das
contradições, Hegel resolutamente instala essas contradições no centro da própria
filosofia, da lógica, bem como da ontologia, e de cada parte concreta da filosofia, seja
ela a filosofia social ou a filosofia da história. Todos os elementos da realidade que
tomados isoladamente e como absolutos , enquanto fatos definitivos que não podem
ser mudados, servem de base para o irracionalismo aparecem, em Hegel, como simples
elementos da nova razão, como problemas que se resolvem dialeticamente. Todas as
contradições que a filosofia p-hegeliana considerou como conflitos entre a razão e a
realidade aparecem agora como simples oposições dialéticas da inteligência que
conduzem ao novo racionalismo.
Desse modo, duas linhas filosóficas encontram seu ponto culminante em Hegel:
em primeiro lugar, a antiga filosofia dos contrários, cuja descoberta remonta aos
eleatas e a Heclito, mas na qual Hegel sistematicamente introduz a contradição como
fundamento de toda filosofia; em segundo lugar, a filosofia racionalista moderna, tal
qual remonta a Descartes, mas levando em conta a convulsão mundial devida à
György Lukács
26 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
Revolução Francesa. Uma exposição detalhada é aqui, obviamente, impossível.
Sublinhemos apenas, para melhor situar o problema, dois pontos característicos. Por
um lado, a razão na história. O anti-historicismo dos filósofos do Iluminismo, tão
frequentemente aludido, é certamente uma lenda reacionária. Mas é verdade que,
segundo a concepção desses filósofos, a razão única e imutável se afirma através das
vicissitudes da história. Ao contrário, Hegel mostra a evolução, a realização, a tomada
de consciência e a afirmação da razão na história, pela história. E, por outro lado, as
contradições da vida, elevadas até ao nível da tragédia, aparecem como veículos e
manifestações supremos da própria razão. Isso é particularmente visível na relação
entre o indivíduo e o nero. Mas os povos e as nações também são indivíduos desse
ponto de vista. A tragédia aparece como a mais elevada forma de realização concreta
que a razão pode alcançar. Essa é a ideia comum ao
Fausto
, de Goethe, e à
Fenomenologia do Espírito
, de Hegel.
Assim, a doutrina de Hegel resolve e elimina da maneira mais adequada a crise
gerada pela Revolução Francesa. No entanto, e por melhor que ela seja, essa filosofia
é apenas uma conquista relativa, metodológica. O conceito histórico de razão antitética
foi descoberto, mas do ponto de vista do próprio Hegel, sua plena realização histórica
era impossível. É a liberdade que, com seu novo sentido, deve se tornar o conceito
central do desenvolvimento interno, em si mesmo antitético, da razão, mas, do ponto
de vista concreto, a filosofia hegeliana da liberdade marca, em decorrência das
condições gerais desfavoráveis desse período (particularmente na Alemanha), um
retrocesso mesmo em comparação com a Revolução Francesa. É por isso que uma
voa reluzente envolve a figura de Hegel. Alguns o chamam de filósofo do
prussianismo reacionário, enquanto Herzen seu método como a álgebra da
revolução.
Como seus alunos e seus sucessores burgueses não seguem a linha de Herzen,
as novidades mais preciosas da dialética hegeliana se perdem cada vez mais; as
inovações acadêmicas permanecem ineficazes precisamente no que diz respeito à
questão principal. Apenas em Marx veremos os resultados e as experiências concretas
desse período incorporados ao método filosófico. Em Marx, a razão hegeliana desce
radicalmente sobre a terra. A conquista da liberdade e da igualdade torna-se a
demanda por liberdade e igualdade concretas para os homens realmente existentes
em uma sociedade concreta. É somente a partir de Marx e de seus grandes sucessores
que o gênero concreto, despertando por seu desenvolvimento antitético e, por meio
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 27
das antíteses, para a autoconsciência e a atividade espontânea, torna-se o verdadeiro
sujeito da história. Foi Marx quem primeiro destacou o verdadeiro desenvolvimento
do homem e não esse sentimento distorcido pelo capitalismo que o torna um átomo
no mundo fetichizado em suas relações concretas e antitéticas com os outros
homens. As relações entre os homens aparecem agora como o fundamento da
estrutura e do dinamismo do progresso, como os órgãos vivos pelos quais a razão se
realiza na história.
Essa grande filosofia até agora permaneceu quase completamente ineficaz no
mundo burguês; era preciso, portanto, esquecer ou disfaar a dialética. No entanto, o
curso das coisas não pode ser interrompido por este silêncio e esta mutilação:
continuamente, novos e cada vez mais importantes problemas dialéticos se
apresentam problemas que, como resultado da evolução filosófica que acabamos de
esboçar, aparecem a cada vez como “dados insolúveis” do irracionalismo. Assim,
estreitadas e distorcidas, as perguntas necessariamente recebem respostas falsas e
inadequadas, sem relação com problemas humanos concretos.
4. Aqui, chegamos à crise do humanismo. Não há necessidade de longos
discursos para destacar o fato de que esta crise existe. Basta lembrar que o fascismo
reinou por doze anos na Alemanha. Mas em que consiste essa crise do humanismo?
Originalmente, e por sua essência, o humanismo é um conhecimento do homem, com
vistas à defesa de sua dignidade e de seus direitos. É por isso que o humanismo foi
combativo e até agressivo desde a Renascença e através do século XVIII até o apogeu
da Revolução Francesa. A crise que acabamos de analisar manifesta-se da seguinte
forma, no que diz respeito ao humanismo: quanto mais estreitamente se unem às
filosofias antidemocráticas e antiprogressistas e, em particular, às filosofias racistas,
mais as diferentes ciências se desenvolvem em direções anti-humanistas. O humanismo
deixa de se fundamentar nas ciências humanas concretas. E, por sua vez, a defesa da
dignidade e dos direitos humanos se reduz cada vez mais a uma simples atitude
defensiva, ideologicamente enrijecida em abstrações, e leva a uma passividade cada
vez maior e, pela perda do contato com qualquer realidade social concreta, a um
utopismo pálido. As causas decisivas desta crise emergem claramente da nossa análise
anterior: o indivíduo isolado, que fundamenta os seus postulados de vida sobre esse
isolamento, e que acredita ser uma pessoa privada em face de uma sociedade estranha,
György Lukács
28 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
morta e desumana, pode procurar, sobre esta base, meios pacifistas de proteger
seu retiro.
Esse empobrecimento do humanismo se manifesta claramente em sua atitude a
respeito do próprio passado e de sua maior conquista prática, a Revolução Francesa.
Grandes escritores humanistas, como Victor Hugo, em
O Noventa e três
, e Dickens, em
Um conto de duas cidades
, fornecem exemplos bastante típicos a esse respeito. Tanto
no plano nacional quanto no da política externa, o humanismo é incapaz de se opor
com verdadeira eficácia à
realpolitik
desumana dos poderes políticos e sociais no
comando. Os conselhos humanistas resumem-se a dizer “não resista ao mal”,
“mantenha seu asseio individual” etc. O pacifismo puramente humanitário da Primeira
Guerra Mundial, sua maneira de se proclamar em abstrato como o defensor do homem
abstrato, não poderia fornecer um direcionamento para uma ação humana efetiva. Daí
a grande decepção dos mais ilustres intelectuais da época, à medida que a ideologia
anti-humanista a vence dia a dia em força de fascínio, em ação extensiva e intensiva.
Essa fraqueza do humanismo reside no afrouxamento de sua relação com a
democracia em geral e com a democracia combatente em particular. Victor Hugo e
Dickens são, sem vida, democratas autênticos. A crise do humanismo se manifesta
entre eles na medida em que o verdadeiro caminho para a realização de seus ideais
os assusta, que se perdem no labirinto de contradições criado pela Revolução
Francesa, que o futuro da humanização do gênero humano não parece oferecer-lhes
qualquer solução praticável. Eles aceitam os ideais jacobinos, mas rejeitam os métodos
adequados para realizá-los. Mas a ppria rejeição desses métodos é um sintoma do
enfraquecimento do pensamento democrático, do humanismo ativo. Enquanto os
adversários da democracia, sem o constrangimento de nenhum escrúpulo humanista,
fazem tudo ao seu alcance para atingir seus objetivos reaciorios, a ideologia do
humanismo democrático, que chegou a este ponto crítico, mostra-se, por um lado,
conservadora em sua forma de adeo aos ideais p-revolucionários da filosofia
iluminista, ideais de fato desviados abusivamente de seu objeto, e, por outro lado,
hipercrítica, de um ceticismo autodestrutivo, quanto aos meios de realização concreta
desses ideais. A negação do mal resulta em uma capitulação externa a ele, enquanto
o sujeito se esforça apenas para preservar sua pureza moral individual de qualquer
mácula. É somente em face do triunfo das tendências anti-humanistas e
antidemocráticas no período de conquista do fascismo e durante sua dominação que
o humanismo finalmente reage de uma forma mais realista. Podemos considerar
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 29
Anatole France como o precursor dessa reação; apesar do ceticismo agudo em relação
aos ideais dos jacobinos, que deveriam ser superados, ele endossa seu todo ativo
heroico. Esse movimento mostra que, desse ponto de vista, algo mudou entre os mais
eminentes humanistas de nosso tempo. Ir além dos ideais jacobinos implica uma
tomada de posição concreta e positiva em relação ao socialismo, o que de forma
alguma significa que os humanistas devam a todo custo passar para o lado do
socialismo, mas apenas que sua concepção do contdo social das ideias democráticas
se tornou mais concreta, de um humanismo mais realista, que ela foi am do antigo
formalismo; eles começam a se dar conta de que à violência anti-humana, à violência
desencadeada pelo desvario racista, pode se sobrepor a violência, o poder do povo
finalmente desperto para a vida democrática. Vemos essa evolução ocorrendo em
Romain Rolland, passando do gandhismo para a humanidade combativa; esta é a que
perseguiram Thomas e Heinrich Mann. Há aí uma reação importante contra os
desenvolvimentos do fim do século passado. É o início do restabelecimento da aliança
entre socialismo e democracia e, por meio dela, da transição para o humanismo
concreto. E a Segunda Guerra Mundial, a luta dos povos contra a “nova ordemfascista,
despertou entre os povos em graus diversos, claro, a depender do país reações
que possibilitaram a cristalização de numerosas formas de vida democrática na nova
Europa.
Chegamos aqui ao problema da nova Europa. E acreditamos que o caminho que
percorremos indica claramente a resposta que deve ser dada aqui. A nova Europa só
pode ser criada e mantida se conseguir extirpar as raízes do fascismo, até o plano
ideológico, de forma a impossibilitar o seu regresso. Não cabe aqui dizer o quão
insuficiente é tudo o que foi feito até então a este respeito, tanto em política interna
quanto externa. Quando se busca tirar as lições da dominação fascista do ponto de
vista da visão de mundo, vê-se que o fascismo encontrou a resistência mais forte onde
havia um verdadeiro espírito democrático entre o povo, não um liberalismo formalista
diluído (URSS, Iugoslávia, França). Esta observação é correta, mas insuficiente.
Devemos também perceber que o fascismo nunca poderia ter vencido sem essa crise
da democracia e o complexo de ideias que a acompanha, o qual nós acabamos de
esboçar. Essa crise tornou as massas e a elite intelectual suscetíveis ao veneno
ideológico da teoria das raças, e tornou a resistência ideológica impossível, ou quase
impossível. No futuro, é importante dar provas de maior perspicácia e mais energia em
György Lukács
30 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
todas essas questões do que ocorreu na luta contra a ascensão do fascismo; é
importante descobrir de antemão as posições de recuo da reação como apontamos
no início desta palestra para tornar impossível qualquer restabelecimento, qualquer
nova realizão concreta de suas ideologias.
Para tanto, é indispensável que se desenvolva uma visão de mundo democrática;
ou melhor, é indispensável que saibamos que em matéria de aristocratismo e
democratismo não neutralidade possível, que qualquer atitude filosófica implica
tomar posição em relação à democracia. E, além disso, um destino como, por exemplo,
o da República de Weimar mostra-nos bem a inevitável fragilidade e impotência de
uma república sem republicanos, de uma democracia sem democratas.
Muitas pessoas, eu sei, acreditam ainda hoje na validade de um retorno à
democracia pré-guerra, de uma restauração da velha democracia formal. Esperamos
ter mostrado que esta última inevitavelmente revisitará a velha crise e assim
reacenderá, no que diz respeito às massas, a força de atração da ideologia reacioria.
Isso, como sempre acontece na história, em um grau ainda maior. E o breve período
do pós-guerra que acabamos de viver mostra, por vários exemplos, quão tolerante
é esta forma de vida social em relação aos inimigos da democracia, enquanto opõe
todo o seu poder contra aqueles que realmente desejam renová-la. Quanto a estas
pessoas, elas serão frequentemente socialistas ou comunistas. Mas seria errado colocar
o problema, com todas as graves consequências que isso acarreta, em termos de uma
escolha a ser feita entre a cultura burguesa e o socialismo, ou entre as formas oriental
e ocidental de democracia. São justamente esses falsos dilemas do pré-guerra que
importa agora superar. O falso dilema do fascismo ou bolchevismo” contribuiu
extraordinariamente para o enfraquecimento ideológico das forças progressistas no
período pré-guerra.
Durante a guerra, em 1941, ocorreu uma mudança importante que está
intimamente relacionada com a necessária mudança de flanco de que estamos falando
aqui. Se desejarmos conquistar a paz do mesmo modo como foi ganha a guerra, a
política de 1941 todo o resto permanecendo igual deve ser continuada. Deve-se
perceber que, após os efeitos devastadores do falso dilema anterior à guerra, a história
universal agora oferece à democracia uma oportunidade inesperada de renascimento
político, social e ideológico. A única questão é: como usar essa oportunidade?
Não é nosso papel estabelecer um programa aqui, embora estejamos
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 31
convencidos de que nossos comentários negativos e críticos jogaram luz sobre
algumas linhas gerais de tal programa. Eles trazem à tona a necessidade de uma
reforma ergica de nossa visão de mundo: categorias como as da liberdade e da
igualdade, do progresso e da razão devem assumir um novo brilho, um novo alcance,
e isso é possível desde que o conteúdo social da ideia democrática, adaptada às novas
condições, recupere a sua plenitude e a sua potência luminosa de 1793 e 1917. E,
além disso, categorias a que estamos ligados muito tempo e que, em certos círculos,
quase passaram ao posto de axiomas, como a constituição das massas”, devem se
tornar obsoletas.
Do ponto de vista da visão de mundo, esta última mudança é particularmente
importante; pois, o medo das massas, o desprezo pelas massas reais organizadas e
conscientes, foi e continua sendo uma das vias de acesso ideológico mais importantes
para o fascismo. E isso, tanto no interior das próprias massas quanto entre a elite
intelectual. Por último, mas certamente não menos importante, acrescentemos a isso a
necessidade de superar o isolamento individualista de maneira positiva; devemos
despertar o cidadão. Estou feliz por ter a oportunidade de falar sobre esta questão na
Suíça, porque a Suíça pode se orgulhar de ter possuído, no século XIX, o maior poeta-
cidadão do Ocidente, Gottfried Keller, e me sinto honrado de poder combater aqui sob
sua bandeira. Em primeiro lugar, a sua obra, e melhor ainda, a própria história do
século XIX, ensina-nos que somente aqueles para quem viver como “cidadão” voltará
a ser uma forma da vida cotidiana poderão reconstruir uma Europa verdadeiramente
nova. Mas ninguém pode se tornar um cidadão em virtude de uma simples resolução.
O que causou o desaparecimento do cidadão na Europa Ocidental, ou sua
transformação em uma caricatura abstrata, foi uma vida blica em que nenhuma
possibilidade de ação contínua foi oferecida às massas, e onde a conexão entre os
problemas essenciais de sua própria vida e aqueles da vida blica apenas pôde se
estabelecer por vias tortas, na corrupção. Esta transformação dos seres que compõem
as massas em “pessoas privadas”, como ocorria nas antigas democracias formais,
paralisa esses seres e dá origem a um tipo humano, uma mentalidade e uma moral
contrárias a toda verdadeira democracia viva e viável. Mas, aqui, novamente, devemos
ter cuidado com um falso dilema, que surge de um pensamento enrijecido em sua
fetichização. Nossos contemporâneos prontamente se perguntam: é o novo homem,
no caso o cidadão ressuscitado, ou são as instituições da nova democracia que devem
reeducar os homens e tor-los cidadãos? Mas, na verdade, este dilema não se coloca:
György Lukács
32 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
é enquanto os homens lutam pela nova democracia, enquanto eles a reconstroem, que
desperta neles o espírito do cidadão; enquanto transformam sua visão de mundo, eles
entram na luta pelas novas instituições da democracia.
Pode-se objetar: esta nova democracia nada mais é do que uma tentativa de
restabelecer as velhas democracias diretas, enquanto Rousseau reconheceu que os
grandes estados modernos não se prestam à democracia direta. Apenas neste ponto,
os liberais elogiam Rousseau além da medida. Claro, uma democracia direta como a
de Atenas na Antiguidade é bastante impraticável. Mas, em seu período heroico, a
grande Revolução Francesa foi toda imbuída do espírito de democracia direta e de
elementos concretos emprestados dela, e a vida econômica, social e cultural da
Comuna de Paris e a da União Soviética contêm uma infinidade de elementos relativos
à democracia direta. O próprio fato de que todas as questões concretas da vida
cotidiana, como questões do domínio da vida pública, tocam as grandes massas de
uma maneira direta mostra que a incorporação desses elementos na democracia
proletária é consciente. A Resistência, especialmente na Iugoslávia e na França,
naturalmente incluía vários desses elementos. Onde quer que, após a vitória do
movimento de resistência, esses elementos fossem abolidos, surgia o perigo de um
concomitante enfraquecimento da defesa contra os resquícios do fascismo e de uma
paralisação do ímpeto construtivo da nova democracia.
A Europa está lutando para assumir uma nova figura. Hoje, do ponto de vista
formal, o que parece estar em jogo são os diferentes tipos de democracia: a questão
seria saber se a democracia é uma forma simples de estado político-legal ou se deve
tornar-se uma forma de vida concreta para as pessoas. Mas, no fundo, se esconde
em realidade outro problema: o do poder. A forma democrática deve permanecer uma
forma de dominação anônima das “200 famílias”, como se diz na França, ou pode ser
desenvolvida de modo a tornar-se uma verdadeira forma de poder dos trabalhadores?
A nosso ver, tanto ideológica como politicamente, só a segunda opção e a escolha de
uma visão de mundo democrática, capaz de iluminar e encorajar a sua concretização,
podem fazer nascer uma nova Europa, com a garantia de impedir o retorno do fascismo
e o perigo de novas guerras e nova devastação que ele implica.
Embora apenas em germe e sob o signo da contradição, a aliança de 1941 foi,
desde o seu início, mais do que uma mera aliança política. Sua forma inicial foi
suficiente para vencer a guerra. Mas a luta pela paz genuína deve renovar o que era a
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 33
essência do contdo ideológico de 1941: a aliança entre socialismo e democracia e
a constatação de que socialistas e verdadeiros democratas se encontram mais
intimamente ligados por sua luta contra o inimigo comum, contra o inimigo da
civilização, da cultura, do desenvolvimento, contra o fascismo, que eles não podem ser
separados por suas divergências de pontos de vista, por mais fortes que sejam essas
divergências nos planos social, econômico, político, cultural e universal. É essa aliança
que constitui o conteúdo ideológico de 1941. E depende da própria democracia
decidir se quer, através desta aliança, levar a cabo a luta pela renovação da Europa e,
assim, fazer o seu próprio renascimento estrondoso, ou se quer rebaixar-se para voltar
a ser o espectador impotente de uma nova Munique. O objetivo de nossa apresentação
foi lançar luz, do ponto de vista de uma visão geral de mundo, sobre as condições
desse dilema.
György Lukács
34 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
O debate
4
TERCEIRA DISCUSSÃO, 10 de setembro de 1946
Presidida por Marcel Raymond
Lukács em resposta a Karl Jaspers:
5
Desejo responder brevemente ao senhor Jaspers, pois receio ver que certos
preconceitos perniciosos possam comprometer o sucesso do espírito de 1941, que
deveria salvar o mundo.
O senhor Jaspers disse que separava nitidamente a reflexão filosófica e a política,
e quero dar duas respostas, uma do ponto de vista objetivo e outra do ponto de vista
subjetivo.
Primeiramente, o ponto de vista objetivo. Constata-se na história da filosofia uma
tendência geral para a universalidade. A consciência desta universalidade existiu,
sendo mais ou menos clara a depender do autor, de acordo com sua consciência da
interdependência dos diversos âmbitos. No início do século XIX, durante a época do
socialismo utópico, criou-se uma sociologia separada e uma economia separada para
o maior malogro de ambas. Meu pensamento não é um sistema monocausal. Não se
deve separar política e filosofia; elas são inseparáveis.
O lado subjetivo é que, no mundo moderno, o cidadão morreu para permitir a
sobrevivência unicamente de um indivíduo privado e isolado. O homem se viu partido
em dois. É inevitável que um homem partido ao meio esteja impotente. Mas isso é
apenas o resultado de certos desenvolvimentos sociais que podem ser superados. Por
exemplo, na Iugoslávia e na Resistência francesa, no esforço empreendido contra o
fascismo, o cidadão voltou à vida e tornou-se membro de uma comunidade ativa e,
desse modo, ele foi mais ativo contra o fascismo. O senhor Jaspers vai achar que eu
falo mais uma vez de política, mas ao mesmo tempo estou falando sobre espírito,
sobre cultura e tudo mais. Muitas coisas o feitas para superar essa impotência que
4
Além das conferências, a programação do evento contou com cinco sessões de debate. O filósofo
húngaro interveio nas três últimas, respondendo a alguns dos questionamentos que lhe foram feitos
pelos presentes, cujo conteúdo buscamos resumir nas notas de rodapé. As intervenções de Lukács
foram feitas em alemão e, posteriormente, resumidas em francês. Nos anais do evento, portanto, temos
acesso somente esses resumos, que foram aqui vertidos ao português [N.T.].
5
Pouco antes, nesta mesma discussão, Jaspers dirigira contra Lukács as acusações de confundir política
e espírito, desviando-se do tema próprio do encontro, e conceber o desenvolvimento histórico como
uma linha clara e unívoca, dentro de um sistema monoexplicativo e monocausal. Como Lukács, ele se
expressa em alemão e temos acesso somente ao resumo traduzido de sua intervenção [N.T.].
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 35
o senhor Jaspers reputa como essencial. Ela não é essencial. Ela é acidental e pode ser
derrotada. A política deixará de ser um destino avassalador.
Falei em terminologia moderna e espero ter levado ao menos alguns de nós a
refletir sobre si mesmos e a tomar conscncia desse novo aspecto do problema.
QUARTA DISCUSO, 12 de setembro de 1946
Presidida por Victor Martin
Lukács em resposta a Jean Starobinski:
6
Fico feliz em responder ao senhor Starobinski, que me deu a oportunidade de
esclarecer minhas ideias sobre muitos pontos.
O mundo, disse o senhor Starobinski, tende à totalidade e se encontra diante de
um problema total. Em efeito, progressivamente, a civilização eliminou o mundo
bárbaro, difuso em torno de civilizações restritas. Mas o senhor Starobinski
negligenciou a causa disso, que é em suma simples e não espiritual. Se o mundo
evoluiu desta maneira, é porque o capitalismo, atualmente, penetrou no mundo inteiro,
e foi a penetração universal do capitalismo que suprimiu a configuração de cultura
limitada, da qual falava o senhor Starobinski.
Por outro lado, no interior das comunidades, a contradição permanece mais
atuante do que nunca. Em efeito, existem sistemas econômicos parciais que buscam a
hegemonia e comprometem o equilíbrio do todo. É dque vem a violência do fascismo
e é assim que o fascismo se constitui como uma caricatura da totalidade.
Gostaria de responder ao senhor de Salis
7
a respeito de vários pontos da sua
conferência. Em primeiro lugar, o senhor de Salis disse, afirmando-o, que qualquer
governo que aja pela força pode ser equiparado a qualquer outro, e que se deveria
aplicar a todos a mesma categoria. Esta é uma simplificação equivocada. É necessário,
em verdade, considerar o objetivo a que se propõem esses governos, e ademais, o
critério adotado pelo senhor de Salis não é claro nem válido. O senhor de Salis disse
que a ssia talvez seja atualmente contrarrevolucionária. Com essa sugestão, ele nos
faz voltar a um estado lamentável, anterior à guerra, que deixou a Europa indefesa
6
Remetendo à relação entre cidadão e estado, Starobinski perguntou a Lukács se acreditava que a
noção de cidadão deveria implicar uma religião civil, como concebera Rousseau, e se tal religião não
implicaria uma restrição à liberdade [N.T.].
7
Jean-Rodolphe de Salis proferira sua conferência no dia 5 de setembro [N.T.].
György Lukács
36 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
contra a catástrofe.
As ideias do senhor de Salis a respeito das duas Europas parecem-me perigosas,
porque nos levam a enfatizar o contraste entre as duas, correndo o risco de nos levar
de volta ao estado pré-guerra como se não tivéssemos aprendido nada, ou esquecido
tudo, como os emigrantes da Revolução Francesa. Não se deve esquecer a inflexão
definitiva ocorrida em 1941, quando Roosevelt e Stalin forjaram conjuntamente a
grande ideia segundo a qual, diante da ameaça fascista, era necessário que todas as
forças democráticas se aliassem, apesar de suas diferenças. Tudo depende do destino
que terá essa ideia em tempos de paz.
Há, evidentemente, grandes diferenças entre os diferentes tipos de democracia,
mas há também, do meu modo de ver, grandes diferenças entre a democracia francesa
e a democracia inglesa.
Por outro lado, do ponto de vista espiritual, para não nos restringirmos à política,
pode-se dizer que a cultura filofica da Europa do século XVIII, notadamente a
francesa, se encontra particularmente viva hoje na Rússia.
Para responder ao senhor Starobinski quanto à noção de cidadão, não penso
que uma personalidade inteira possa se identificar com o papel e a função de cidadão.
Não. Mas é indispensável, caso se queira ter personalidades completas, que sejam
também cidadãos, senão têm-se seres mutilados e empobrecidos; tal era o homem do
século XIX, muito diminuído em comparação com o homem antigo ou com o cidadão
recriado pela Revolução Francesa.
Da mesma forma, não se trata absolutamente de instaurar um novo fetichismo
de estado. Pelo contrário, pode-se constatar que na antiguidade não havia tal
fetichismo de estado. Este não surgiu até o momento em que o estado se separa da
sociedade e quando, em consequência dessa desintegração, dessa ruptura da unidade,
o próprio homem se despedaça. A noção de cidadão, ao contrário, impede isso, uma
vez que não mais conflito absoluto entre o interesse individual e o da comunidade,
o estado, pouco a pouco, tende a perder sua importância, tende a, progressivamente,
desaparecer, por assim dizer, no funcionamento do todo. É necessário tender,
consequentemente, a diminuir a importância do estado do ponto de vista próprio ao
socialismo, ao marxismo.
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 37
Lukács em resposta a Karl Jaspers:
8
Primeiramente, o professor Jaspers não desenvolveu [em seu comentário] o
ponto de vista filosófico em si, mas os traços fundamentais de sua própria filosofia,
que é a filosofia existencialista.
No meu modo de ver, esta filosofia é uma construção engenhosa e cheia de
espírito, mas é apenas um reflexo do homem privado e cindido de que falei durante
minha conferência.
Por outro lado, a ideia de totalidade não é invenção de um filósofo, mas se impõe
por si mesma na vida cotidiana; quando um cidadão não paga seu aluguel, nas
consequências daí advindas, a totalidade lhe é imposta com toda a sua força, e o
pensamento marxista apenas eleva a um nível superior de pensamento essa totalidade
que somos forçados a viver na vida cotidiana, quer queira, quer não, tenhamos
consciência ou não, tiremos consequências disso ou não. Eu acredito ter extraído essas
consequências.
QUINTA DISCUSO, 14 de setembro de 1946
Presidida por Ernest Ansermet
9
Tentarei responder a todas as perguntas que me foram feitas. Muito foi dito sem
responder ao propósito dessas discussões, um exemplo é a conferência de Bernanos.
10
Trata-se aqui de construir uma nova Europa, e Bernanos falou como ningm poderia
falar a propósito dos piores momentos de Munique. Chegou o momento de apanhar o
caráter decisivo da situação europeia. Nós estamos falando aqui sobre visão de mundo,
mas não sem propósito. É necessário que esta visão de mundo seja eficaz para salvar
o mundo.
Os senhores Goldman e Merleau-Ponty
11
sublinharam que a situação atual não é
mais a de 1941. Em 1941, a aliança tinha dois aspectos. Por um lado, ela se afirmava
contra o fascismo e, por outro, representava um antagonismo; ela era o resultado de
um antagonismo entre os imperialismos da Alemanha, Japão e Itália, de um lado, e o
8
Pronunciando-se logo em seguida a Lukács, Jaspers interpelou-o longamente sobre a categoria da
totalidade [N.T.].
9
Última intervenção de Lukács durante o encontro. A tradução consecutiva desta intervenção, conforme
indicado nos anais, foi feita por Jeanne Hersch [N.T.].
10
Georges Bernanos proferira sua conferência em 12 de setembro [N.T.].
11
Questões levantadas ainda durante a quarta discussão, do dia 12 de setembro [N.T.].
György Lukács
38 | Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021
imperialismo ocidental, de outro. Agora se trata apenas de evitar o retorno do
fascismo. Mas, por outro lado, o imperialismo, que estabelece para si novos objetivos,
confunde a situação e se vale de resquícios do fascismo. É necessário restabelecer a
aliança de 1941 e impedir qualquer cumplicidade com o fascismo. Hoje, é esta a
questão. Não dúvida de que o socialismo é a força com maior capacidade de extirpar
o fascismo, mas sejamos realistas. Como é impossível nesse momento realizar o
socialismo na Europa, esta seria uma ideia desastrosa. Portanto, se dizemos que é
necessário manter a aliança de 1941, isso significa que queremos mantê-la entre
socialistas e não socialistas; pouco importa as diferenças que subsistam no interior da
aliança, desde que resistamos ao perigo maior: o fascismo.
Esses senhores perguntaram qual era o significado da palavra
democracia
. A
democracia formal remete em suma, no mais das vezes, ao imperialismo das duzentas
famílias, para usar a expressão francesa. Trata-se de tornar isso impossível. Não quero
falar de política, mas seria necessário que cada país examinasse por quais vias poderia
eliminar esse imperialismo das duzentas famílias. Como a democracia formal se
transforma facilmente em fascismo, há o risco de que as conseqncias sejam
catastróficas. É perigosa a confiança que muitos continuam a ter no formalismo
democrático, opondo-se à URSS; e esse espírito é uma nova catástrofe.
O estado de espírito da impotência, por outro lado, expresso por muitos, é
bastante perigoso. Tal como foi formulado pelo senhor Jaspers, corre o risco de não
apenas levar à constatação da impotência dos intelectuais, mas também, por tabela,
tornar as massas impotentes. Não farei a crítica da filosofia existencialista, mas uma
consideração sobre uma atitude decorrente da situação. O senhor Jaspers falou sobre
ordem mundial e a dominação mundial, e ele preconiza, corretamente, a ordem
mundial. Está correto, e eu concordo, mas não se deve falar como se ela existisse,
porque de modo algum existe. Não devemos nos iludir. O senhor Jaspers não é o único
a assumir essa postura; ela é generalizada entre os intelectuais europeus cerca de
um século. A interioridade é protegida a força, e basta reler
Morte em Veneza
para ver
a crítica que Thomas Mann lhe faz. Toda essa postura de resignação e impotência
provém, na realidade, simplesmente do fato de que o homem foi inteiramente cindido
desde a morte do
cidadão
. Gottfried Keller, com sua compreensão de cidadão,
descreve de todas as maneiras possíveis a falência dos homens completamente
“privados” e, portanto, impotentes.
O espírito europeu (1946)
Verinotio
NOVA FASE
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 1, p. 9-39 - jan./jun. 2021 | 39
Guéhenno disse
12
que a França foi obrigada a se politizar como resultado da
Resistência; mas, hoje, a Resistência deve ser mais política do que nunca, pois as piores
traições ainda estão por vir. Ele disse ainda que a Resistência foi formada por uma
aliança de opiniões diversas contra o inimigo comum. Encontro-me em uma situação
paradoxal; cada palavra que digo parte do marxismo, que tende à criação do
socialismo, mas acredito que o objetivo imediato hoje não é estabelecer o socialismo;
é produzir uma reação defensiva contra o fascismo.
O senhor Merleau-Ponty falou da possível destruição dos dois adversários;
13
é
isso que dá todo o peso às minhas palavras. O perigo é grande demais, a casa está
em chamas, antes de qualquer outra coisa devemos buscar água.
Como citar:
LUKÁCS, György. O espírito europeu (1946). Tradução de Carolina Peters.
Verinotio
,
Rio das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 9-39, jan./jun 2021.
12
Ainda durante a terceira sessão de debates, no dia 10 de setembro, Guéhenno, sem deixar de
demarcar sua divergência com Lukács, havia dito, em resposta a Rousseaux, que defendera contra o
húngaro um caráter antes místico que político da Resistência francesa à invasão nazista, que se a traição
fora política, a resistência a ela só poderia ser igualmente política [N.T.].
13
Na realidade, é Goldman (provavelmente Lucien Goldmann), que faz sua intervenção imediatamente
após Merleau-Ponty, quem levanta a questão de que uma aliaa malsucedida entre as democracias
ocidentais e os países socialistas resultaria em uma nova guerra catastrófica [N.T.].