Leandro Candido de Souza
158 | VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, pp. 150-181 - mar. 2022
Esses são alguns dos problemas que surgem de seu projeto durante a segunda
metade da década de 1950, indicando que a importância concedida ao assunto “arte
pré-histórica” não atendia apenas ao interesse interno de desenvolvimento da teoria
lukácsiana, pois também funcionava como uma atualização materialista, científica, de
sua reflexão à luz do conhecimento de ponta da época, neste caso, da arqueologia e
seus mais recentes debates. A busca lukácsiana pela gênese da arte, decididamente
o conduz ao reconhecimento da arte como um produto histórico relativamente tardio
do processo de autodesenvolvimento da espécie humana, tal como esboçado nos
manuscritos marxianos de 1844: a arte é tão histórica quanto os sentidos e
sentimentos humanos que a fundamentam. Do mesmo modo que o olho se torna
olho humano quando seu objeto se converte em objeto social que medeia a relação
entre os homens, a arte se concretiza historicamente como forma de objetivação
decisiva nesse processo de autoformação dos cinco sentidos do homem. Os cinco
sentidos se tornam sentidos humanos tanto subjetivamente quanto objetivamente: “o
olho
humano
frui de maneira diversa da que o olho rude, não humano; o
ouvido
humano [frui] diferente da [maneira] do ouvido rude etc.” (MARX, 2008, p. 109). Uma
ideia que reencontramos na arte como antecipação do que está por vir, nos
Grundrisse
: “o objeto de arte – como qualquer outro produto – cria um público
capaz de apreciar a arte e de sentir prazer com a beleza. A produção, por
conseguinte, produz não somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito
para o objeto” (MARX, 2011, p. 66).
Esse enraizamento materialista permitiu a Lukács superar as definições
idealistas – seja a negação do apriorismo das categorias do espírito em Kant, seja a
recusa à primazia da Ideia no idealismo objetivo de Hegel – e reconhecer a essência
da arte “como resultado de um longo desenvolvimento histórico, de uma
necessidade surgida na vida cotidiana” e cujas categorias são “engendradas
concretamente pelo processo histórico-social” (FREDERICO, 2013, p. 116-119). Esse
o início de seu trabalho sobre Dostoiévski. Seu primeiro projeto de uma estética sistemática era,
assim, interrompido para dar lugar a um livro que deveria conter, para além do escritor russo, boa
parte da “ética metafísica e filosofia da história” do jovem húngaro. Deste novo livro, apenas a
primeira parte, redigida no inverno de 1914-1915, foi publicada em 1916, na revista de Max Dessoir,
com o título de
A teoria do romance
, e, como livro, em 1920, pela editora de Paul Cassirer (LUKÁCS,
2000). Apenas nos anos 1980, suas inacabadas
Anotações sobre Dostoiévski
foram publicadas.
Sobre a conexão entre gênero formal e questões éticas no jovem Lukács, veja-se: (MACHADO, 2004)
e (VAISMAN, 2005). Particularmente sobre a estética de Heidelberg, veja-se: (SILVA, 2021, p. 283-
366), e a respeito das permanências e rupturas entre as duas estéticas lukácsianas, veja-se:
(TERTULIAN, 1980, p. 107-156) e (PATRIOTA, 2010, p. 165-252).