VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Lukács diante da estetização do direito
Lukács on aesthetization of Law
Vitor Bartoletti Sartori*
Resumo: Diante da questão da especificidade do
direito, na contramão de parte importante da
teoria do direito contemporânea, demostraremos
a impossibilidade de se aproximar a esfera
estética da jurídica. Para Lukács, o complexo
jurídico é inerentemente marcado por uma
espécie de manipulação homogeneizante, sendo
incapaz de apreender o contraditório acontecer
social; os especialistas da esfera jurídica ocupam
também uma posição na divisão do trabalho,
realizando funções objetivamente definidas pela
reprodução do ser social, ligadas ao domínio
classista e à presença de categorias como
mercadoria e dinheiro. A esfera estética, por
outro lado, é completamente distinta. A
especificidade da arte faz dela uma forma de
objetivação superior ao passo que as
objetivações presentes no direito são
manipuladas e fetichizadas.
Palavras-chave: Lukács; direito; estética; teoria
do direito; manipulação.
Abstract: Faced with the issue of the specificity
of law, contrary to an important part of the
contemporary Theory of law, we will show the
impossibility of bringing the aesthetic sphere
close to the legal one. For Lukács, the legal
complex is inherently marked by some sort of
manipulation and homogenization; it is
incapable of apprehending the contradictory
social movement; specialists in this sphere also
occupy a position in the division of labor,
performing functions objectively defined by the
reproduction of the social being and linked to
the class domain and the presence of categories
such as merchandise and money. The aesthetic
sphere, on the other hand, is completely
different. The specificity of art makes it a
superior form of objectification, whereas the
objectifications present in law are manipulated
and fetishized.
Keywords: Lukács, law; aesthetics; theory of
Law; manipulation.
Introdução
Principalmente depois da década de 1970, surgiram teorias do direito que
procuraram se contrapor ao chamado positivismo jurídico (vertente que tem como
maior expoente o neokantiano Hans Kelsen). Elas fazem isto, dentre outros pontos, ao
trazer certa proximidade entre a argumentação jurídica e a arte, mais precisamente, a
literatura, sendo tal aproximação muito visível em autores como Dworkin, que pode
ser considerado o pai fundador da tendência “pós-positivista” (cf. MACEDO, 2008,
2011; MUÑOZ, 2008). No presente artigo, a partir da teoria madura de Lukács e do
que José Chasin chamou de análise imanente, pretendemos demonstrar porque tal
empreitada é baseada em uma confusão inaceitável entre a esfera jurídica e a estética.
* Doutor pela universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Pontifícia Universidade Católica (PUC SP).
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
E-mail
: vitorbsartori@gmail.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.631
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Explicitaremos esta posição em um contexto em que intérpretes supostamente
autorizados sobre a temática do direito no autor de
Para uma ontologia do ser social
como Csaba Varga (2012) procuram demonstrar que o tratamento do complexo
jurídico por parte de Lukács é valioso, dentre outras coisas, por convergir com autores
como Dworkin. Aqui, defenderemos que o que acontece é o oposto: o chamado pós-
positivismo é baseado justamente em procedimentos manipulatórios criticados
fortemente pelo marxista húngaro em sua obra madura. Não como se apropriar
“criticamente” destes autores.
A sedução da argumentação jurídica operacionalizada pela centralidade da
interpretação e pela estetização do direito
As teorias como as de Dworkin e Alexy autoproclamadas pós-positivistas se
contrapõem a autores positivistas como Hart (1983; 2003) e Kelsen (1986; 2003) e
são hoje o ponto de partida para o tratamento do direito (ATIENZA, 2014;
MACCORMICK, 2006). Diante da ausência de uma teoria normativa sobre a decisão
judicial e sobre a argumentação jurídica nos autores do positivismo jurídico, e no
contexto da década de 1970, a posição dos mencionados autores se volta também a
uma teoria sobre o que se pode e deve fazer na atividade dos próprios juristas. Ou
seja, parte da sedução destas teorias está na valorização da atividade daqueles que
operam o direito.
Principalmente a partir do debate com autores da filosofia da linguagem como
Austin (1975) e Wittgenstein (1996), a atividade jurídica passa a ser vista como
relacionada a determinados jogos de linguagem em meio à capacidade em parte,
performativa de se “fazer coisas com palavras”. Tem-se, transplantado para o campo
da teoria do direito, o giro linguístico da filosofia (MUÑOZ, 2008). Tratar-se-ia,
supostamente, da superação de quaisquer visões de mundo realistas”, em que
prepondera a oposição entre sujeito e objeto e em que algo como uma realidade
objetiva.
O aparato com o qual se equipa filosoficamente o chamado pós-positivismo
passa, portanto, pela filosofia da linguagem. Ela tem uma importante função, a de
tentar se voltar contra a relação opositiva entre sujeito e objeto e a de trazer a
linguagem contextual e em uma forma de enunciado que o fosse “meramente”
constatativa. As filosofias de Austin e Wittgenstein, porém, para Dworkin, ainda
conviveriam com outras influências, constantemente citadas, como as de Dilthey
(1950) e as de Gadamer (1997, 2002, 2009), as quais enfatizam o momento
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interpretativo. Elas posicionam-se no sentido de não haver somente uma situação em
que a linguagem é considerada como parte da atividade ou de formas de vida para
Wittgenstein, “o termo ‘jogo de linguagem’ deve salientar que o falar da linguagem é
uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 35).
Não se teria que a linguagem seja, ela mesma, um fazer para Austin, “em alguns
casos, e sentidos específicos (somente em alguns, pelo amor de Deus!) em que
dizer
algo é
fazer
algo; ou em que por dizer ou ao dizer algo estamos fazendo alguma coisa”
(AUSTIN, 1975, p. 12). Há também uma posição em que a “compreensão” (central a
Dilthey em sua concepção sobre as ciências do espírito) é o momento central da
interpretação e remete à necessária relação entre a moral e o direito.
É verdade que, por vezes, transposições bastante diretas da filosofia da
linguagem ao campo do direito. MacCormick, a partir do debate entre Hart e Dworkin
chamado de “debate metodológico” , diz que “o pronunciamento de um veredicto
é o que J. L. Austin chamou de ‘enunciado performativo’: é um exemplo da realização
de um ato institucionalmente definido mediante o uso de palavras” (MACCORMICK,
2006, p. 43). Porém, geralmente, as coisas se dão de outro modo, com mediações
maiores no que diz respeito à interpretação. É verdade também que Dworkin diz que,
na interpretação, trata-se de “não apenas utilizar o mesmo dicionário, mas compartilhar
aquilo que Wittgenstein chamou de uma forma de vida suficientemente concreta”
(DWORKIN, 2014, p. 77). Porém, o autor também fala que precisamos primeiro
lembrar uma observação crucial de Gadamer, de que a interpretação deve pôr em
prática uma intenção” (DWORKIN, 2014, p. 67). Ou seja, a intenção inerente à
compreensão (em oposição ao que ocorre na explicação) faria parte da própria
atividade de interpretar, não podendo, simplesmente ser deixada de lado. E, assim,
Dworkin também diz que é sempre preciso lembrar de “Gadamer, que acerta em cheio
ao apresentar a interpretação como algo que reconhece as impostações da história ao
mesmo tempo em que luta contra elas” (DWORKIN, 2014, p. 75). Ou seja, por mais
que haja na teoria do direito uma base filosófica assentada na filosofia da linguagem,
interações com aquilo que ficou conhecido como hermenêutica filosófica, e que gira
em torno de uma apreensão da tensão entre compreensão, explicação e interpretação,
e que parte da problemática de Dilthey (a oposição entre ciências da natureza e do
espírito, entre explicação e compreensão), mas que bebe fortemente na apresentação
heideggeriana da questão (cf. GADAMER, 2009).
Assim, não se trata propriamente de uma retomada direta da filosofia do começo
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do século XX, mas de algo contemporâneo às leituras que são realizadas no momento
do pós-II Guerra e que têm influência da filosofia da linguagem. Grondin diz sobre isso
que “a hermenêutica filosófica [...] é de uma data bastante recente. No sentido restrito
e usual, ela designa a posição filosófica de Hans-Georg Gadamer e, eventualmente,
também a de Paul Ricoeur” (GRONDIN, 1998, p. 24). Ou seja, trata-se da apreensão
de algo que, de certo modo, está no ar naquele momento. Dizemos tudo isto para
deixar claro que as teorias pós-positivistas acreditam ter consigo o melhor dos
aparatos filosóficos.
Tratar-se-ia, portanto, de uma teoria sobre o direito baseada na nata da filosofia
de uma época; ter-se-ia também que os juristas, e a atividade deles, teriam bastante
importância prática e teórica. Tal teoria, assim, viria a valorizar o direito e os juristas.
Em meio a uma apropriação dos temas e das categorias da hermenêutica
filosófica e da filosofia da linguagem, surge a tematização da interpretação como algo
central. Com esta fundamentação, a teoria do direito não poderia deixar de se colocar
sobre uma teoria da interpretação.
Isto ocorreria até mesmo porque o próprio conceito de legalidade seria
interpretativo: “desde o início a legalidade foi um ideal interpretativo, e assim continua
sendo para nós” (DWORKIN, 2010, p. 240-241). Tratar-se-ia de ver o direito como
algo que não se confunde com alguma forma de objetividade que precisaria ser
descoberta, mas que traz consigo as noções de sujeito e de objeto (em verdade,
renegadas tanto pela filosofia da linguagem quanto pela hermenêutica filosófica) de
modo distinto. Ter-se-ia uma correlação entre sujeito e objeto, de modo que, tal como
na esfera estética, haveria uma espécie de identidade entre sujeito e objeto (cf.
LUKÁCS, 1966 a). Isto faria com que a interpretação de uma obra de arte e a
interpretação jurídica tivessem muitas similitudes e pudessem, no essencial, convergir.
Sobre o assunto, ao trazer à tona a correlação entre as práticas sociais e as obras de
arte, diz Dworkin:
A interpretação construtiva é uma questão de impor um propósito a um
objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou
do gênero aos quais se imagina que pertençam. Daí não se segue, mesmo
depois dessa breve exposição, que um intérprete possa fazer de uma prática
ou de uma obra de arte qualquer coisa que desejaria que fossem; [...] Do
ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação
entre propósito e objeto. (DWORKIN, 2014, p. 63-64)
Não entraremos em algumas questões essenciais, como o ecletismo da teoria do
direito. Ele é bastante óbvio quando Dworkin fala de sujeito e de objeto estando
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baseado em autores, como os da filosofia da linguagem e da hermenêutica filosófica,
que renegam tal par categorial como algo ultrapassado. A noção de propósito, e sua
oposição ao objeto traz o mesmo problema, que deixa evidente que o rigor filosófico
não é a maior preocupação dos autores do chamado pós-positivismo. Aqui, precisamos
enfocar outros pontos essenciais para o nosso tema, como a centralidade da
interpretação.
Esta última seria construtiva, exigindo sempre um posicionamento inclusive
moral e político do intérprete. Trata-se de algo que, segundo Dworkin, estaria
presente na categoria da compreensão e “esse pressuposto tem uma base mais geral
na literatura filosófica da interpretação” (DWORKIN, 2014, p. 62-63)
1
.
A interpretação construtiva traria uma correlação entre propósito, objeto ou
prática. A historicidade e o horizonte compreensivo se conformariam nesta interação,
em que a forma ou o gênero a que pertencem o objeto ou a prática dariam a tônica
daquilo que é trazido pelo intérprete construtivamente. A posição ativa do intérprete,
relacionada à valoração moral e política, seria pungente, portanto. Mas ela somente se
colocaria como algo que traz o melhor exemplo possível de determinada forma ou
gênero.
Para o autor de
Levando os direitos a sério
, a resposta à seguinte pergunta é
central: “como as convicções morais de um juiz devem influenciar seus julgamentos
acerca do que é o direito?” (DWORKIN, 2010, p. 3). Não havendo em meio a uma
interpretação que é sempre compreensiva como se afastar das convicções morais, a
questão essencial seria como elas fariam parte da interpretação construtiva. Não se
trataria nunca de fazer de uma obra de arte ou de uma prática jurídica o que se quer,
simplesmente. O propósito, amparado em justificações morais, sempre estaria
presente. Mas ele precisaria ter como lastro a forma artística ou o gênero de prática
social em cada caso.
No caso da prática jurídica, haveria, inclusive o requisito da integridade: “a
1
Continua o autor americano dizendo que “Wilhelm Dilthey, um filósofo alemão que foi especialmente
importante em dar forma ao debate sobre a objetividade nas ciências sociais, usou a palavra
verstehen
para descrever especificamente o tipo de entendimento que adquirimos ao saber o que outra pessoa
quer dizer com aquilo que diz (poderíamos dizer que esse é um sentido da compreensão no qual
entender alguém implica chegar a um entendimento com tal pessoa), em vez de descrever todas as
possíveis maneiras ou modalidades de entender seu comportamento ou vida mental” (DWORKIN, 2014,
p. 62-63).
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integridade, mais do que qualquer superstição de elegância, é a vida do direito tal
qual a conhecemos” (DWORKIN, 2014, p. 203). Nela, seria preciso trazer uma
correlação entre decisões passadas, presentes e futuras; elas trariam, não uma
coerência e uma historicidade, mas uma espécie de narrativa. Tratar-se-ia de ver o
direito como uma espécie de romance em cadeia, escrito por distintos autores, mas
sempre com um senso de totalidade e de unidade. Assim, tal qual em uma obra
literária, não se teria uma simples enumeração de fatos, mas algo assemelhado à
estrutura do romance
2
.
Diz Dworkin que “os juízes devem conceber o corpo do direito que administram
como um todo, e não como uma série de decisões distintas que eles são livres para
tomar ou emendar uma por uma, com nada além do que interesse estratégico pelo
restante” (DWORKIN, 2014, p. 203). Tal dever faria dos juízes pessoas com um dever
de integridade; e isto ocorreria não só ao passo que se “pede aos que criam o direito
por legislação que o mantenham coerente quanto aos princípios” (DWORKIN, 2014, p.
203). Mas que se tenha, além da integridade na legislação, “o princípio de integridade
no julgamento”, que “pede aos responsáveis por decidir o que é a lei, que a vejam e
façam cumprir como sendo coerente nesse sentido” (DWORKIN, 2014, p. 203). Ter-se-
ia ainda “a integridade política”, que “supõe uma personificação particularmente
profunda da comunidade ou do Estado” (DWORKIN, 2014, p. 204). Confluente com a
semelhança entre a esfera jurídica e a estética, haveria todas essas suposições, que
são importantíssimas para um pós-positivista como Dworkin. A noção de integridade
traria parâmetros normativos, inclusive, no que diz respeito ao funcionamento das
instituições.
Para que a interpretação construtiva possa se realizar de modo bem-sucedido,
tais requisitos de integridade precisariam ser cumpridos. Somente então, o intérprete
estaria pronto para considerar as práticas sociais do direito como o resultado de uma
espécie de romance em cadeia. A aproximação entre esfera estética e jurídica aparece
como central.
O que pretendemos deixar claro aqui é que a estrutura da teoria de um autor
como Dworkin levanta tal proximidade a partir de alguns pressupostos, que, no limite,
2
Há professores de Direito que, em seus cursos de hermenêutica jurídica, indicam a leitura do famoso
ensaio de Lukács sobre narrar ou descrever. Como veremos em nosso texto, isto não pode deixar de
ser irônico.
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levam à necessidade de considerar os juízes como alguém que se coloca em uma
posição análoga ao escritor de um romance em cadeia. Trata-se de algo que ainda traz
algumas suposições, como aquela da figura de um juiz ideal, que pudesse dedicar toda
a sua vida à resolução de um caso controverso e difícil. Trata-se do que o autor
americano chamou de juiz Hércules (DWORKIN, 2007). Somente com ele, e com
aquilo que colocamos acima, é que se poderia ter a situação em que “uma teoria geral
do direito deve ser ao mesmo tempo normativa e conceitual” (DWORKIN, 2007, p. XIII-
IX). Tratar-se-ia de uma teoria do direito que, de modo compreensivo, elabora seus
conceitos ao mesmo tempo em que traz propósitos que corroborem a integridade do
direito e a historicidade e narratividade das decisões, colocadas no ideal do romance
em cadeia.
Não podemos explicitar todas as determinações mais importantes da teoria de
Dworkin (como a oposição entre princípios e regras, a noção de comunidade de
princípios e de regras, os argumentos de princípios e os de política etc.). Porém, pelo
que mostramos, a base filosófica utilizada pelo autor e por muitos expoentes do
chamado pós-positivismo traz uma valoração da teorização mais geral sobre a
linguagem e sobre a interpretação. Isto é realizado trazendo uma conceituação que,
ao mesmo tempo, é normativa e que traz propósitos, não em cada decisão
individual, mas quanto ao funcionamento das instituições. E é interessante notar que
a operacionalização das decisões judiciais precisaria remeter a um funcionamento que
é típico da esfera estética, e remete mais precisamente à literatura. Isto dito, podemos
trazer à tona a posição de Lukács, que é diametralmente oposta àquela dos expoentes
do pós-positivismo.
Lukács diante da conformação objetiva da esfera jurídica na divisão do trabalho
Como dissemos, Varga (2012) tenta aproximar o tratamento lukácsiano da
Ontologia
da abordagem de autores como Dworkin. O intérprete da obra de Lukács
acaba por trazer certa valorização do direito, com isto. Veja-se o que ele diz sobre a
administração da justiça e sobre a relação do complexo jurídico com a sociedade:
O papel assumido conscientemente pelo administrador da justiça pressupõe
um duplo caráter e até certo ponto uma personalidade cindida. O jurista está
consciente de que ele é somente um servidor, um servo da lei, ao mesmo
tempo, sabe que os préstimos da lei são somente um meio de servir à
sociedade. (VARGA, 2012, p. 154)
De acordo com Varga, a partir de Lukács, haveria uma teorização sobre a
administração da justiça, e sobre o modo pelo qual o direito poderia ter um papel
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decisivo na visão de mundo crítica. O autor de
Para uma ontologia do ser social
traria
uma posição segundo a qual o jurista, bem como o administrador da justiça, seria de
grande importância a tal ponto que haveria, tanto um dever diante da sociedade,
quanto diante da lei. Tal personalidade cindida do administrador da justiça, portanto,
no limite, poderia ser parte da resolução dos problemas sociais decisivos de uma
época. Com estes pressupostos, Varga tenta aproximar Lukács de autores como
Dworkin.
Lukács, porém, é bastante claro quando diz que “os limites histórico-sociais da
gênese e do fenecimento da esfera do direito estão determinados fundamentalmente
como limites temporais” (LUKÁCS, 2013, p. 244). Ou seja, é preciso que se diga que
o direito tem uma gênese e um termo. Ele não é eterno e seria preciso ver as condições
mediante as quais ele surge, desenvolve-se e pode vir a fenecer. Neste sentido, sequer
seria possível se falar de um direito socialista e seria necessário deixar claro que, ao
fim, trata-se da supressão do direito: “o desenvolvimento do socialismo rumo ao
comunismo criará uma condição social que não necessitará do direito; por isto, não
creio que, desse ponto de vista, se possa falar num direito socialista especial” (LUKÁCS,
2008, p. 245). Ou seja, enquanto Varga supostamente a partir de Lukács toma o
complexo jurídico como essencial na resolução das contradições sociais, o autor da
Ontologia
aponta que o direito depende das contradições sociais das sociedades
classistas, da propriedade privada, da família patriarcal e da existência do Estado. Ou
seja, a única maneira pela qual as contradições sociais poderiam ser resolvidas ao se
tratar do direito é aquela do processo em que as sociedades classistas, e com elas a
própria esfera jurídica, são superadas.
A primeira razão, segundo a qual não como aproximar a abordagem de Lukács
daquelas dos autores do pós-positivismo, é que os últimos tomam o direito como um
ponto de partida e um ponto de chegada. Na
Ontologia
, por outro lado, trata-se da
necessidade do fenecimento do direito. Em verdade, portanto, ele não poderia sequer
ser um ponto de partida, não podendo sequer se falar em uma espécie de direito
socialista.
Neste sentido específico, Lukács chega a dizer que “não diferença entre o
direito socialista e o direito capitalista” (LUKÁCS, 2008, p. 245). No que, a partir de
um debate com os posicionamentos de Marx na
Crítica ao programa de Gotha
, diz:
Remeto aqui a Marx. Na
Crítica ao programa de Gotha
, Marx afirma
claramente que o direito dominante no socialismo é ainda o direito civil,
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mesmo que sem a propriedade privada, e que este lado formal do direito foi
desenvolvido pela civilização capitalista; e não dúvidas de que ele
permanece, no socialismo, enquanto direito. (LUKÁCS, 2008, p. 245)
Ao tratar da fase de transição como “socialismo” – seguindo o exemplo leninista
Lukács explicita que nem mesmo em meio às formas transicionais que se colocam
entre o domínio da classe trabalhadora e a supressão das classes sociais é o direito
um ponto de partida válido na luta emancipatória. Ele ainda seria uma espécie de
direito civil, formalmente colocado em torno de uma concepção de igualdade
burguesa: “após a desapropriação dos exploradores, o direito igual permanece
essencialmente um direito burguês com suas limitações aqui arroladas” (LUKÁCS,
2013, p. 244). As individualidades colocadas como “os indivíduos universalmente
desenvolvidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão
igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário” (MARX, 2011, p. 164)
são incompatíveis com a igualdade reconhecida pelo direito. O que Marx chamou de
“o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos” (MARX, 2012, p. 33) também. E,
assim, Lukács é claro ao dizer que “queremos enfatizar apenas que Marx considera
irrevogável, também nesse estágio, a discrepância entre o conceito de igualdade do
direito e de desigualdade da individualidade humana” (LUKÁCS, 2013, p. 244). Ou
seja, a existência do direito, mesmo em uma fase transicional, é indissolúvel do
aviltamento da personalidade dos homens e, em verdade, do reconhecimento de
potências sociais estranhadas.
3
Não como teorizar sobre o direito com a suposição de que ele é compatível
com o desenvolvimento multifacetado das individualidades. É preciso sempre realizar
uma crítica do direito, e nunca a busca de uma teoria crítica sobre o uso do direito.
Ou seja, é preciso se falar abertamente do fenecimento do direito. Ao analisar a
gênese e o desenvolvimento do direito, nota-se sua insuficiência intrínseca na
regulamentação das relações sociais. E mais: a esfera aparece relacionada, de um lado,
com aspetos da religião, doutro, com uma moral entendida de modo abstrato. E, assim,
em meio às determinações basilares da esfera jurídica, necessariamente aviltamento
3
Diz Lukács sobre a persistência destas potências e, em especial, sobre o fenômeno do estranhamento:
“o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente também o desenvolvimento das
capacidades humanas, mas - e aqui emerge plasticamente o problema do estranhamento (
Entfremdung
)
- o desenvolvimento das capacidades humanas não produz obrigatoriamente aquele da personalidade
humana. Ao contrário: justamente potencializando capacidades singulares, pode desfigurar, aviltar etc.
a personalidade do homem” (LUKÁCS, 1981, p. 564).
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da personalidade dos indivíduos. Mas, para que se compreenda isto, é necessário
explicitar a gênese do direito e do modo pelo qual, objetivamente, ele depende de
certos especialistas.
Ao falar das comunidades primitivas, em grande parte em diálogo com Gordon
Childe, diz Lukács em
Para uma ontologia do ser social
que:
Por mais que, naquelas condições primitivas, as pessoas singulares, em
situações vitais, tomavam espontaneamente decisões em média mais
parecidas do que posteriormente, por mais que, na igualdade de interesses
que naquele tempo ainda predominava, tenha havido menos razões objetivas
para resoluções contrárias, sem dúvida houve casos de fracasso individual,
contra os quais a comunidade precisou se proteger. Assim, teve de surgir
uma espécie de sistema judicial para a ordem socialmente necessária, por
exemplo, no caso de tais cooperações, muito mais no caso de contendas
armadas; porém, ainda era totalmente supérfluo implementar uma divisão
social do trabalho de tipo próprio para esse fim; os caciques, os caçadores
experientes, guerreiros etc., os anciãos podiam cumprir, entre outras, também
essa função, cujo conteúdo e cuja forma estavam traçados em
conformidade com a tradição, a partir de experiências reunidas durante longo
tempo. (LUKÁCS, 2013, p. 230)
A dissolução das comunidades traz a contraposição das pessoas singulares entre
si e diante do interesse coletivo. Trata-se do processo em que o interesse da
comunidade começa a destoar dos individuais. Este processo está na base da gênese
do direito.
Ele traz consigo uma espécie de sistema judicial, mas ainda não leva à uma
divisão social do trabalho de tipo próprio. Ou seja, inicialmente, este tipo de sistema
judicial ainda não traz os especialistas que posteriormente serão necessários ao
desenvolvimento do complexo jurídico. Líderes dos mais diversos tipos ainda realizam,
dentre outras, as funções que posteriormente serão características do direito.
Neste momento, isto se ainda de acordo com a tradição. Ou seja, a
contraposição entre o público e o privado começa a emergir e a gênese do direito está
baseada nesta dissolução dos laços comunitários. Porém, um sistema judicial
propriamente dito ainda não está presente. Ele somente vai aparecer com a divisão
das sociedades em classes e em meio ao intercâmbio de mercadorias:
quando a escravidão instaurou a primeira divisão de classes na sociedade,
quando o intercâmbio de mercadorias, o comércio, a usura etc.
introduziram, ao lado da relação “senhor-escravo”, ainda outros
antagonismos sociais (credores e devedores etc.), é que as controvérsias que
daí surgiram tiveram de ser socialmente reguladas e, para satisfazer essa
necessidade, foi surgindo gradativamente o sistema judicial conscientemente
posto, não mais meramente transmitido em conformidade com a tradição. A
história nos ensina também que foi num tempo relativamente tardio que
até mesmo essas necessidades adquiriram uma figura própria na divisão
social do trabalho, na forma de um estrato particular de juristas, aos quais
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foi atribuída como especialidade a regulação desse complexo de problemas.
(LUKÁCS, 2013, p. 230)
Lukács é claro no sentido de a gênese do direito precisar das classes sociais. Ele,
porém, não subordina diretamente o complexo jurídico às lutas de classes que se
colocam diretamente entre as classes fundamentais de determinada sociedade: a
emergência da escravidão, bem como da relação senhor-escravo são decisivas para
que o direito possa surgir. Porém, o comércio e “outros antagonismos sociais”
(LUKÁCS, 2013, p. 230) vêm a ser decisivos quando se fala da necessidade da
regulamentação jurídica.
O sistema judicial propriamente dito, portanto, possui uma ligação mediada com
o Estado e uma relação mais imediata com o intercâmbio de mercadorias, o comércio,
a usura etc. No caso, tem-se a correlação entre a mercadoria, o dinheiro e os juros
como decisivos para que a regulamentação jurídica comece a se colocar sobre os
próprios pés.
Isto se na medida em que o estrato de juristas começa a se desenvolver e
adquirir uma posição, cada vez mais própria, na divisão do trabalho. Se é relativamente
tarde que este processo se completa, é verdade que ele se inicia já no surgimento das
sociedades classistas. E, assim, é possível dizer que o direito traz consigo a oposição
entre o público e o privado, gestada na dissolução das comunidades primitivas, porém,
ele depende da existência das classes sociais, da propriedade e do Estado. O que
vimos, porém, é que, de acordo com Lukács, a relação do complexo jurídico com o
domínio classista que se põe como central a determinada sociedade não é direta. A
ligação da esfera jurídica com as classes sociais passa por oposições que se dão, em
geral, no interior das relações mercantis, como aquelas entre credores e devedores.
Subjacente à forma jurídica, estão as formas sociais da mercadoria, do dinheiro, bem
como a figura dos juros.
Estas categorias econômicas, e seu desenvolvimento na história, trazem a tônica
do processo em que os especialistas necessários ao funcionamento do direito ganham
um lugar na divisão do trabalho. Tal lugar, por sua vez, não depende simplesmente da
vontade dos juristas ou dos administradores da justiça: ele é caracterizado de modo
objetivo em meio ao processo de reprodução do ser social (SARTORI, 2010).
E, neste ponto, temos algo importante para o tema que aqui tratamos: a
conformação da administração da justiça, bem como dos juristas não é algo que
Lukács diante da estetização do direito
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dependa essencialmente do conhecimento jurídico ou jusfilosófico. Trata-se de uma
configuração que somente pode ser entendida em meio ao processo de reprodução
do ser social.
Ou seja, uma teoria do direito pode tentar ser “normativa e conceitual” o quanto
quiser; porém, os nexos reais sobre os quais ela opera são aqueles vigentes nos
sistemas produtivos de cada época. O direito, desde a sua gênese, lida com a oposição
entre o público e o privado, bem como com o comércio e o intercâmbio de
mercadorias. A regulamentação jurídica pode se dar nos limites destas
determinações. Ao se considerar a conformação objetiva do direito, a aproximação
bem como a diferença específica que precisa ser destacada, portanto, não é aquela
entre a esfera jurídica e a estética. Antes, tem-se a necessidade de aproximar e de
trazer a autonomização existente entre a esfera de produção e circulação de
mercadorias diante da esfera jurídica.
Os especialistas da esfera jurídica, que se desenvolvem a partir desta condição
social, têm crescentemente uma posição na divisão social do trabalho. Portanto, eles
não se colocam acima dos conflitos sociais. Em verdade, fazem parte deles, sendo a
caracterização destes especialistas uma resultante das oposições e contradições que
envolvem a reprodução do ser social. Para que se compreenda a dimensão interna das
práticas jurídicas, portanto, não se trata tanto de desenvolver uma teoria do direito
normativa e conceitual. Deve-se analisar a simultânea autonomia e dependência dos
juristas diante da realidade socioeconômica.
Reprodução do ser social e a função concreta dos especialistas do direito
Quando se fala da reprodução do ser social, pensa-se em dois polos, entre os
quais se colocam séries de complexos sociais: o indivíduo singular e o complexo social
total. De acordo com Lukács, portanto, não se pode compreender o processo de
reprodução sem que se olhe, simultaneamente, para estes polos e as mediações que
se interpõem entre eles.
No caso do direito, vimos como a mediação jurídica traz consigo uma
determinação econômica ligada à economia mercantil (não necessariamente em sua
forma capitalista). Isto, porém, precisa ser explicado de modo mais cuidadoso.
Para Lukács, a especialização, bem como o surgimento de uma posição bastante
clara dos juristas na divisão do trabalho, só pode ser vista quando a especificidade do
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direito se encontra completamente caracterizada. E isto se daria na passagem à
sociedade capitalista, em que vem a se impor a forma jurídica caracterizada pela
vigência da regulamentação jurídica universal e que redunda no “domínio material
universal do capital” (LUKÁCS, 2010, p. 283). Ao tratar deste processo, diz nosso
autor que:
Num primeiro momento, eles são considerados no âmbito do direito privado
neste, a conexão entre direito e intercâmbio de mercadorias é diretamente
perceptível. Obviamente também nesse caso o desenvolvimento é desigual.
O fato de que, por exemplo, na Idade Média, o poder estatal fosse
descentralizado, de que indivíduos pudessem dispor o de armas, mas
também de séquitos maiores ou menores de homens armados, fazia com que,
naqueles tempos, a imposição de um decreto emanado do direito estatal
muitas vezes se tornasse uma questão de combate aberto entre o poder
central e a resistência contra ele. A socialização da sociedade impôs nesse
ponto formas de transição o paradoxais, que para certas épocas o conteúdo
do direito passa a ser avaliar em que casos tais resistências são juridicamente
válidas. Aqui não é o lugar para esmiuçar as contradições dessas teorias; elas
decorrem principalmente da problemática da passagem contraditória do
feudalismo para o capitalismo, que necessariamente procurou implementar
uma regulação jurídica universal de todas as atividades sociais, como também
simultaneamente transformou em questão principal da vida social a
superioridade e, desse modo, a autoridade da regulação central perante
todas as demais. (LUKÁCS, 2013, p. 235)
A passagem à regulamentação jurídica universal e para um papel mais
proeminente do direito na reprodução do ser social é aquela em que uma luta
para a expansão do comércio e do poder central do Estado. Na emergência da
sociedade capitalista, tais elementos ganham destaque e tal transição não é das mais
simples.
A implementação da regulamentação universal se impõe com o domínio
universal do capital. E, assim, a especificidade do complexo jurídico emerge tanto mais
a socialização da sociedade avança, certamente. Porém, ela é mais proeminente
verdadeiramente neste momento específico em que a socialização avança a passos
largos, aquele da emergência da sociedade capitalista. E isto é central ao que tratamos.
As formas da mercadoria e do dinheiro, que acompanham a gênese do direito,
passam a estar envolvidas em um processo específico de reprodução, aquele do
capital. Trata-se, portanto, tanto de um momento da história em que os especialistas
jurídicos aparecem de modo mais claro na divisão social do trabalho, quanto da
situação em que a reprodução se torna acumulação de capital, reprodução ampliada
do capital.
Lukács diante da estetização do direito
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A função concreta que os especialistas do direito realizam, portanto, é
indissolúvel do movimento em que o capital está se reproduzindo de maneira
ampliada.
Lukács, portanto, está longe de trazer as aspirações que Varga parece lhe atribuir.
Antes, a sociedade a que o administrador da justiça se volta, bem como a lei a que se
submete, são aquelas que trazem determinações do desenvolvimento contraditório da
relação-capital. A superioridade da regulamentação universal, bem como o poder
central passam, cada vez mais, a se subordinar ao processo de acumulação de capital.
Se fosse possível falar da vida do direito como uma espécie de romance em
cadeia, portanto, não se trataria de qualquer obra de arte. Antes, ter-se-ia um enredo
imposto por imperativos reprodutivos do capital. E mais: os escritores deste romance
teriam suas funções determinadas por uma potência estranhada, que se impõe sobre
suas personalidades de modo aviltante; estão mais para
Ghost Writers
que para
artistas.
A função dos especialistas do direito não é definida por suas posições mais ou
menos críticas, mas por suas posições objetivas na divisão social do trabalho. Lukács
diz sobre o direito que “esse complexo é capaz de se reproduzir se a sociedade
renovar constantemente a produção dos ‘especialistas’ (de juízes e advogados até
policiais e carrascos) necessários para tal” (LUKÁCS, 2013, p. 247). Os carrascos
podem ser o quão críticos e conscientes quiserem, continuarão a exercer a função de
carrascos; os policiais exercem sua função de vigilância em torno de uma ordem
específica, que não é da escolha dos indivíduos singulares da corporação. Advogados,
vendem sua força de trabalho e oferecem serviços em troca de pagamento. Os juízes
também têm suas funções definidas objetivamente pelo contraditório acontecer social.
Todos podem ser conscientes, no limite, da impossibilidade de a sociedade capitalista
oferecer futuro à humanidade; porém, a função que exercem está colocada em
correlação com a vigência da regulamentação universal baseada em uma forma
específica de igualdade e liberdade. Como diz Lukács: “não se afirma simplesmente
uma aparência de liberdade e de igualdade, mas precisamente sua essência econômica,
ou seja, o que liberdade e igualdade efetivamente representam na circulação capitalista
das mercadorias” (LUKÁCS, 2008, p. 93). A reprodução dos especialistas do direito,
portanto, liga-se ao mesmo processo de reprodução ampliada e universalização da
circulação capitalista de mercadorias.
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E isto se também com os juízes, promotores, defensores públicos, técnicos
judiciários e tantos mais funcionários públicos ligados a funções judiciais quanto se
possa pensar. Eles são de grande importância para a conformação da mediação jurídica
na sociedade capitalista e ocupam uma posição na divisão do trabalho bastante clara,
mesmo que isto não se de modo tão direto quanto em alguns casos que
mencionamos acima.
Algo importante nisto, porém, é que os juristas não julgam realizar esta função.
Isto ocorre, em parte, devido à especificidade dos especialistas reproduzidos
para que o direito possa ser efetivo. Eles trazem consigo uma linguagem específica,
marcada por categorias jurídicas, que parecem ter uma impessoalidade e uma
autonomia diante da sociedade. Há uma forma jurídica que se desenvolve e parece ser
algo discutido somente no Olimpo dos juristas, e não em meio aos conflitos sociais
concretos. Ela parece ser fruto de debates regados à base das mais elaboradas
filosofias e com as mentes mais brilhantes e doutas de uma época. E não é de se
estranhar que estes indivíduos, que ganham a aparência de uma espécie de elite
intelectual, possam se ver como uma espécie de artistas. Isto tudo, porém, decorre do
próprio processo de reprodução social, que é marcado, ao mesmo tempo, pela
dependência diante dos imperativos reprodutivos do complexo social total e pela
autonomização da esfera jurídica:
Por trás da especialização reiteradamente exigida dos representantes da
esfera do direito, oculta-se um problema referente à reprodução do ser social
que não deixa de ser importante. Ao expandir-se quantitativa e
qualitativamente, a divisão social do trabalho gera tarefas especiais, formas
específicas de mediação entre os complexos sociais singulares, que,
justamente por causa dessas funções particulares, adquirem estruturas
internas bem próprias no processo de reprodução do complexo total. Com
isso, as necessidades internas do processo total preservam a sua prioridade
ontológica e, por essa razão, determinam o tipo, a essência, a direção, a
qualidade etc. nas funções dos complexos mediadores do ser. Contudo,
justamente pelo fato de o funcionamento correto no nível mais elevado do
complexo total atribuir ao complexo parcial mediador funções parciais
particulares, surge nesse complexo parcial chamada à existência pela
necessidade objetiva certa independência, certa peculiaridade autônoma
do reagir e do agir, que precisamente nessa particularidade se torna
indispensável para a reprodução da totalidade. (LUKÁCS, 2013, p. 248)
tarefas especiais na divisão social do trabalho que acabam por exigir, em
verdade, certa falta de conhecimento sobre os motivos reais que regem a totalidade
do processo social. E, no caso do direito, é necessária uma autonomia de reagir e agir
que está amparada teoricamente na dogmática jurídica e nas teorias do direito.
Ou seja, a emergência das categorias jurídicas e da teorização sobre elas
Lukács diante da estetização do direito
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depende do processo de reprodução social e traz as necessidades internas do
processo total. Com isso, tem-se o direito operando sobre a universalização do capital.
Sua regulamentação universal, bem como sua vigência universal, são frutos deste
processo. Mas, e isto é essencial para nós, isto é possível porque funções
bastante específicas que se colocam ao complexo jurídico e exigem um grau de
especialização e de autonomia no reagir e no agir que são pungentes. O direito
pode estar subordinado ao processo de acumulação de capital porque consegue se
colocar com uma linguagem e um funcionamento próprios, estando o complexo
autonomizado diante de outros complexos sociais parciais. A falta de conhecimento
dos juristas sobre o processo total, portanto, por vezes, é um pressuposto para a
efetividade deste mesmo processo. O “conhecimento jurídico”, tanto prático quanto
teórico, é um requisito importante, tanto para a reprodução do complexo jurídico e de
seus especialistas quanto para a totalidade do processo.
Nesse ponto, precisamos de uma digressão em que a esfera estética e a jurídica
podem ser comparadas: Lukács diz sobre a esfera estética, que nela os homens não
sabem, mas fazem algo que alcança a autoconsciência do gênero humano. A
subjetividade estética do artista coloca-se com todas as suas vicissitudes no cotidiano;
tem-se aí o homem inteiro, com todas as suas idiossincrasias. Porém, a subjetividade
do artista é superada na obra de arte, que, se digna de tal qualificação, não pode ser
resumida de modo algum à uma dimensão particular, trazendo os grandes problemas
da humanidade à tona e alcançando uma esfera de universalidade típica das formas
superiores de objetivação. Trata-se do processo em que a alienação e a posterior
retrocaptação: a subjetividade estética traz, em um primeiro momento, a superação do
homem inteiro do cotidiano, subordinando-se a determinado meio homogêneo. A
partir das determinações de cada modo de apreensão das formas estéticas, as
questões essenciais para o próprio gênero humano emergem da relação colocada
entre individualidade e generidade. Ou seja, na arte está colocada de modo explícito
a autoconsciência do gênero.
Na esfera estética, os homens não sabem, mas trazem uma grande contribuição
para a autoconsciência do gênero humano, como mencionado. O meio homogêneo
que caracteriza cada gênero artístico traz especificidades que elevam as vivências
cotidianas a um nível de universalidade e, assim, a essência e a aparência são inter-
relacionadas de tal modo que as formas de aparecimento estético revelam a essência
do conteúdo que se coloca no desenvolvimento humano genérico (cf. LUKÁCS, 1966a).
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Ao contrário do que ocorre no caso da esfera jurídica, a antropomorfização não traz
qualquer imputação manipulatória de sentido à realidade. Também não ocorre um
espelhamento necessariamente equivocado do ser-propriamente-assim da sociedade.
Antes, trata-se da mimese, em que as determinações do real se explicitam sob forma
artística e subordinadas a meios homogêneos específicos. Ou seja, as categorias, as
formas de ser do próprio real, aparecem em correlação com o elemento humano
sempre (daí o caráter necessariamente antropomorfizador da arte e a existência de
uma espécie de sujeito-objeto idêntico); o centro da tematização estética está na
correlação, sempre mediada, entre os indivíduos e o gênero, havendo a apreensão
consciente da autoconsciência do gênero humano.
Pelo que vimos, aquilo que se passa no direito é diametralmente oposto. É
verdade que, também aqui, os indivíduos não sabem, mas fazem algo. Porém, ao passo
que eles acreditam estar discutindo os grandes temas da humanidade em meio às
ideias sobre o direito, a justiça, a administração da justiça, estão trazendo formas
diferenciadas de regulamentar a expansão do capital. Os juristas, portanto, partem de
uma universalidade abstrata e rumam a um particularismo pueril. Este último, porém,
é visto como algo decisivo aos próprios rumos da humanidade. Se possível, seria
desejável que um juiz pudesse passar a vida inteira decidindo, por exemplo, sobre
uma disputa comercial ou de herança (estes são temas tratados pelas decisões
analisadas por Dworkin, diga-se de passagem). A teorização jurídica que aproxima a
estética da prática social dos juristas também está longe de buscar superar a
subjetividade dos especialistas do direito; antes, um verdadeiro elogio à
necessidade de desenvolvimento destes especialistas, que passam a ser decisivos: em
vez de os destinos da humanidade serem o central na teorização jurídica, a
subjetividade dos juristas parece ser o mais importante para a própria humanidade. A
mesquinhez dos especialistas é universalizada, e não superada.
O meio no qual trabalham os juristas também é marcado por uma forma e, tal
qual na arte, uma subordinação das individualidades às formas sociais nas quais
operam. Porém, no direito, a forma jurídica, caracterizada pela regulamentação
universal, é plenamente dependente da universalização do capital e dos destinos da
mercadoria, do dinheiro etc. Não se tem no complexo jurídico qualquer consciência do
gênero humano (como na ciência) ou autoconsciência do gênero humano (como na
arte); antes, há uma subordinação da esfera jurídica aos problemas que se colocam de
imediato na esfera econômica.
Lukács diante da estetização do direito
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Portanto, por mais que os teóricos do direito possam tratar dos meandros da
interpretação, da linguagem e do caráter normativo e conceitual de uma teoria do
direito, os casos que o levados à justiça geralmente mediante pagamento, diga-se
de passagem dizem respeito a conflitos que supõem o grau de desenvolvimento
social em que vige a reprodução ampliada do capital. Tem-se formas específicas de
mediação, estruturas internas bem próprias ao direito e isto se coloca no sentido do
desenvolvimento de categorias jurídicas autonomizadas; porém, elas sempre operarão
sobre a facticidade econômica. Ou seja, não qualquer conexão entre a
homogeneização abstrata do direito e a colocação de questões que dizem respeito às
grandes questões de uma época e à essência da sociedade. Antes, permanece-se em
meio às formas fenomênicas de aparecimento da sociabilidade e tenta-se dar um ar de
grandiosidade a elas. Neste sentido específico, a esfera estética e a jurídica não
poderiam ter determinações mais opostas.
Por meio das categorias jurídicas, busca-se a elaboração de um sistema jurídico
completo, em que “os meios e as mediações mais variados da vida social devem ser
organizados de tal modo que possam elaborar em si essa completude, que também
no âmbito do direito leva a uma homogeneização formal” (LUKÁCS, 2012, p. 388). Em
meio à reprodução do ser social, a reprodução do complexo jurídico passa por
estruturas internas meandradas, bem como por funções de grande especificidade. Por
isto, as categorias jurídicas aparecem de modo a formar um sistema autônomo diante
de outros complexos sociais como a política, a arte e a religião, por exemplo e ele
não deixa de passar por uma espécie de homogeneização formal, que marca a
linguagem jurídica. Há, portanto, uma dependência diante da realidade econômica;
atua-se também em meio às suas determinações. Porém, tal dependência traz consigo
um sistema autonomizado e marcado pela homogeneização. E, assim, como diz Lukács,
“o sistema o brota do espelhamento da realidade, mas pode ser sua manipulação
homogeneizante de cunho conceitual-abstrato” (LUKÁCS, 2013, p. 238-239). A
manipulação que advém da própria formação das categorias jurídicas é parte
constitutiva do complexo jurídico. Não há, portanto, como falar de sistema jurídico sem
falar de manipulação. A subjetividade que marca os especialistas do direito, portanto,
não é elevada a um patamar superior em meio à atividade hermenêutica; antes, ela
permanece aviltada e ao aviltamento da personalidade é conferida uma aparência
grandiosa e, no limite, resolutiva.
A integridade e a coerência de que fala Dworkin, portanto, são conceitos da
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teoria jurídica que vêm a revestir este processo de que trata Lukács. Longe de se ter
uma espécie de meio homogêneo como na estética, em que uma caracterização
específica de cada gênero pela especificidade de cada meio tem-se uma
homogeneização abstrata e manipulatória. A comparação do direito com a arte, para
Lukács, é descabida.
Em verdade, ela pode ser considerada como parte da ilusão jurídica e qualquer
posicionamento minimamente condizente com a apreensão do ser-propriamente-assim
da sociedade deve rechaçá-la com vigor. Os especialistas do direito, portanto, trazem
consigo autoilusões, que são elevadas a um patamar aparentemente científico e
filosófico pela teoria e a filosofia do direito. Lukács passa longe de reproduzir tais
ilusões; em verdade, ele mostra como são gestadas pela própria posição que os
juristas ocupam na divisão do trabalho e pelo modo como as ilusões jurídicas são
necessárias à reprodução do ser social. Há, efetivamente, uma correlação entre as
funções concretas dos especialistas na reprodução ampliada do capital e a reprodução
interna do complexo jurídico. Isto se tanto ao se propiciar que especialistas
continuem a ser formados, quanto ao passo que as categorias jurídicas e a teorização
sobre estas categorias são desenvolvidas e começam a fazer parte do cotidiano
daqueles que operam o direito.
Espelhamento manipulado e método do direito
A autonomização do complexo jurídico é um requisito da própria reprodução
social da sociedade capitalista. No caso, isto ocorre quando os especialistas ganham
uma posição clara na divisão social do trabalho. Também se liga à caracterização mais
explícita das categorias e linguagens próprias ao direito.
Lukács é claro no sentido de haver uma convergência entre a particularidade
específica da esfera jurídica e sua função na reprodução do complexo social total.
Existe tanto um ímpeto autorreprodutivo ligado à formação dos mais diversos
especialistas da área quanto uma conexão concreta com a reprodução ampliada do
capital. E mesmo que os juristas possam se julgar, por vezes, uma elite autônoma e
uma guardiã de um sistema jurídico amparado no rigor técnico-jurídico e em um
sistema autonomizado, tem-se, efetivamente, algo muito diverso. E, assim, na medida
mesma em que se acredita que há uma espécie de lógica especificamente jurídica, no
caso da interpretação, por exemplo, uma correlação imediata entre as decisões
jurídicas e o funcionamento das categorias econômicas que se colocam em
determinado momento do desenvolvimento social.
Lukács diante da estetização do direito
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Tendo estas questões em mente, diz Lukács que:
É possível tirar uma importante conclusão para o funcionamento e a
reprodução dos complexos sociais parciais, a saber, a necessidade ontológica
de uma autonomia que não pode ser prevista nem adequadamente
apreendida no plano lógico, mas que é racional no plano ontológico-social e
uma peculiaridade de desenvolvimento de tais complexos parciais. Por essa
razão, estes conseguem cumprir suas funções dentro do processo total tanto
melhor quanto mais enérgica e autonomamente elaborarem a sua
particularidade específica. Isso fica diretamente evidente para a esfera do
direito. (LUKÁCS, 2013, p. 248)
O exemplo perfeito das simultâneas particularização, autonomização e
dependência dos complexos sociais diante de outros complexos e do complexo social
total está na esfera do direito. Pelo que vimos, justamente a homogeneização formal,
a formação de um sistema aparentemente autônomo e o ensimesmamento dos juristas
são desenvolvidos em meio às distintas funções que o complexo jurídico cumpre na
reprodução do ser social. E as categorias jurídicas não espelham a realidade efetiva de
modo adequado; ao mesmo tempo, atuam em meio às categorias que compõem esta
realidade mesma. De acordo com Lukács, isso advém de uma especificidade do
espelhamento que aparece na esfera jurídica: “o espelhamento jurídico não possui um
caráter puramente teórico, devendo possuir, muito antes, um caráter eminente e
diretamente prático para poder ser um sistema jurídico real” (LUKÁCS, 2013, p. 239).
Ao mesmo tempo em que se forma um sistema aparentemente autônomo no
plano teórico, este sistema mesmo está ligado imediatamente ao caráter prático da
atividade jurídica. Esta última, como vimos, em conjunto com a teorização sobre ela,
adquire um caráter claramente manipulatório e toda a constatação jurídica”, assim,
vem a possuir certa ambiguidade. A sistematização jurídica se afasta da realidade na
medida mesma em que opera em meio a ela. As categorias jurídicas são formas de
homogeneização formal, que parecem ser fruto do debate técnico-jurídico”, porém,
elas são efetivas por meio das categorias que compõem a própria realidade; daí,
segundo Lukács, haver uma espécie de duplo caráter do espelhamento jurídico
(SARTORI, 2010):
Toda constatação jurídica de fatos possui, portanto, um caráter duplo. Por
um lado, pretende-se que ela seja a única fixação no pensamento relevante
de uma factualidade, expondo-a do modo mais exato possível em termos de
definição ideal. E essas constatações individuais devem, por sua vez, compor
um sistema coeso, coerente, que exclui contradições. Diante disso, evidencia-
se, uma vez mais, de modo muito claro que quanto mais elaborada for essa
sistematização, tanto mais ela necessariamente se afastará da realidade. O
que no caso da constatação singular de fatos pode representar uma
divergência relativamente pequena, como componente de tal sistema,
interpretado nos termos deste, deve se distanciar bem mais do chão da
realidade. Com efeito, o sistema não brota do espelhamento da realidade,
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mas pode ser sua manipulação homogeneizante de cunho conceitual-
abstrato. (LUKÁCS, 2013, p. 238-239)
Há, simultaneamente, a tentativa e a impossibilidade de se refletir, espelhar, de
modo preciso o ser-propriamente-assim da sociedade. Em cada caso, em cada
controvérsia jurídica, tem-se o ímpeto de escavar os fatos e trazer uma fixação ideal
no pensamento; com isto, a interpretação jurídica poderia se dar de modo correto.
Porém, isto ocorre sem qualquer intenção de apreensão reta do real: em verdade, a
referência precisa ser feita ao se recorrer a um sistema pretensamente coeso, coerente
e sem contradições. Olha-se para a realidade por meio de um sistema que
necessariamente se distancia dela, e que é uma manipulação homogeneizante
conceitual.
Desenvolve-se a tentativa de apreender de modo preciso e exato a realidade
social por meio de um sistema que, necessariamente, se afasta da realidade efetiva e
a homogeneíza de modo manipulatório. Isto é a antítese direta do que ocorre na arte:
o espelhamento artístico traz um elemento imanente ineliminável e que nunca leva a
uma homogeneização mais ou menos manipulatória. A mundanidade é expressa em
um meio homogêneo específico somente na medida em que a forma e o conteúdo
imanentes do real expressam-se de modo coerente, trazendo na própria forma de
aparecimento a manifestação da essência daquilo que é abordado. A esfera jurídica,
portanto, não poderia se afastar mais da estética. De acordo com Lukács, sempre
na estrutura mesma do direito uma oposição entre a conformação de uma
universalidade abstrata e a singularidade trazida em cada caso concreto. Com isto,
tem-se a inerência de uma homogeneização formal ligada ao próprio funcionamento
mais ou menos prosaico da esfera jurídica. E, assim, tem-se uma “manipulação
homogeneizante de cunho conceitual-abstrato” (LUKÀCS, 2013, p. 239) como algo
que faz parte do ser-propriamente-assim do direito; não se tem um mero desvio na
esfera jurídica, mas sim um desvio que o caracteriza de modo necessário.
Aqui também, vê-se que as teorias jurídicas tentam dar respostas a esta oposição
entre a universalidade abstrata do sistema jurídico e a singularidade do caso concreto.
Uma teoria como a de Dworkin busca trazer o sistema jurídico como algo em constante
construção e que traz uma espécie de lógica interna similar àquela de um romance e
que é marcada pela integridade. Pelo que vemos aqui, a partir de Lukács, pode-se
dizer que o processo e o método manipulatório que marcam o direito são apreendidos
pelo autor americano acerto ponto. Porém, o autor de
Levando os direitos a sério
Lukács diante da estetização do direito
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não faz isto de modo crítico, buscando denunciar aqueles que permanecem no estreito
horizonte jurídico; ele pinta com as tintas da filosofia da linguagem e da hermenêutica
filosófica tal horizonte como se fosse algo profundo e de enorme relevo, no limite,
resolutivo, do ponto de vista social. A teoria jurídica acaba por voltar-se aos próprios
especialistas do direito e trazer a estes ilusões, por vezes, necessárias à conformação
de certa visão colorida sobre a própria atividade e função dos juristas.
A manipulação que caracteriza o método do direito, assim, não é teórica. Como
dissemos, ela é essencialmente prática. E, se é verdade que vimos que a esfera jurídica
surge com uma relação mediada com as lutas de classes, isto também ocorre com o
seu desenvolvimento, em que o caráter manipulatório da atividade jurídica tem uma
função concreta nas lutas de classes e na manutenção da ordem social do capital:
A coesão teórica do respectivo sistema jurídico positivo, essa sua falta de
contraditoriedade oficialmente decretada, é mera aparência. Todavia, apenas
do ponto de vista do sistema; do ponto de vista da ontologia do ser social,
toda forma de regulação desse tipo, aa mais energicamente manipulada,
constitui uma regulação concreta e socialmente necessária: ela faz parte do
ser-propriamente-assim justamente da sociedade na qual ela funciona. Mas,
precisamente por essa razão, o nexo sistemático, sua dedução,
fundamentação e aplicação logicistas são apenas aparentes, ilusórias, porque
a constatação dos fatos e seu ordenamento dentro de um sistema não estão
ancorados na realidade social mesma, mas apenas na vontade da respectiva
classe dominante de ordenar a práxis social em conformidade com suas
intenções. (LUKÁCS, 2013, p. 239-240)
Ao mesmo tempo em que o funcionamento do direito não se dá por uma lógica
propriamente jurídica, o desenvolvimento de algo que neste sentido da teorização
sobre este tipo de lógica é imperativo, como vimos. Na medida mesma em que os
especialistas pensam operar por categorias próprias a determinado meio (meio este
que é autonomizado em um sistema pretensamente coeso, coerente e sem
contradições), eles não o fazem. E, deste modo, há um ponto interessante: a ausência
de contraditoriedade do sistema jurídico não tem como existir porque a oposição entre
uma dimensão universal abstrata e a singularidade de cada caso é inerente à esfera
jurídica. Porém, disto não resulta que a regulação jurídica universal não consiga trazer
certa ausência de contraditoriedade em certo sentido, ligado à regulamentação da
atividade social.
Lukács diz que se tem a aparência de coesão e de falta de contraditoriedade
colocadas no plano teórico: por definição, o sistema jurídico não tem como obedecer
a estes ideais autoimpostos. Porém, a regulamentação jurídica, por mais manipulada
que seja, é socialmente necessária e opera em meio ao ser-propriamente-assim da
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sociedade. E, desta maneira, por trás da manipulação teórica e prática do direito não
se coloca tanto um ímpeto universalizado de um romance em cadeia, ou da
integridade, como quer Dworkin; na atividade prática e na cotidianidade, o direito
opera por meio do Estado e, por conseguinte, em acordo com os interesses e as
vontades das classes dominantes.
A manipulação, portanto, não é um instrumento da teoria e das ilusões
jurídicas. Trata-se de uma forma de operar que se coloca nas disputas classistas de
cada época. E, por isso, como dito, é preciso ver como o direito se relaciona com o
plano da economia, e não com aquele da arte. O complexo jurídico, ao mesmo tempo,
procura ter um acabamento formal baseado em uma homogeneização abstrata e
precisa operar em meio ao ser-propriamente-assim das relações econômicas da
sociedade:
O acabamento formal de um sistema de regulação desse tipo tem uma
relação de incongruência com o material a ser regulado, embora seja seu
espelhamento. Mas, apesar disso, para poder exercer sua função reguladora
ele deve captar corretamente, no plano ideal e prático, alguns de seus
elementos efetivamente essenciais. (LUKÁCS, 2012, p. 238)
O direito opera na superfície da sociedade. No momento em que desenvolve sua
especificidade de modo mais claro, vem a naturalizar de modo enérgico a correlação
entre a mercadoria, o dinheiro e o capital. Toma, portanto, a acumulação de capital
como uma espécie de segunda natureza e, assim, capta corretamente sua função,
mesmo que o faça ao apreender elementos essenciais da sociedade de uma época ao
torná-los eternos.
A regulamentação jurídica, portanto, traz um duplo caráter porque não apreende
nem pode apreender o contraditório acontecer social; também se tem um
espelhamento manipulado da facticidade. Porém, isto traz consigo uma função social
que precisa, no plano ideal e prático, que aspectos essenciais do funcionamento da
sociedade sejam conscientemente interiorizados na prática dos especialistas. No que
chegamos a um ponto importante sobre a manipulação jurídica: ela remete a um
sistema baseado na “manipulação homogeneizante de cunho conceitual-abstrato”
(LUKÀCS, 2013, p. 239); ele também traz consigo a vontade das classes dominantes.
Porém, esta vontade, por vezes, consegue se impor justamente devido à técnica
jurídica moderna. Sem ela, no campo das disputas políticas que se dão na esfera
pública, não haveria como determinados interesses prosperarem. E, assim, a técnica
Lukács diante da estetização do direito
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jurídica moderna pode trazer posicionamentos políticos a partir de uma manipulação
conceitual-abstrata:
Com a técnica jurídica moderna, todo Estado tem sempre algum “artifício
legal” para proceder em termos legalmente corretos, no plano da forma,
contra correntes e pessoas declaradas perigosas e, com meios de fato
injustos, torná-las “inofensivas”, exatamente como se fazia na época do culto
à personalidade, com o desprezo aberto e cínico de qualquer legalidade.
(LUKÁCS, 2008, p. 172)
O funcionamento do direito, portanto, traz a manipulação classista da legalidade.
Se autores como Dworkin dizem que a legalidade mesma é um conceito interpretativo,
chamam a atenção para um fato essencial: na sociedade capitalista tal qual na URSS
stalinista a legalidade não é propriamente uma proteção ao cidadão, mas um artifício
que somente é efetivo mediante a técnica jurídica moderna e por meio das disputas
classistas. O autor de
Levando os direitos a sério
acredita que a aproximação da esfera
jurídica com a estética pode garantir que isto nunca seja exercido com fins
manipulatórios, e muito menos com a manipulação classista. Por outro lado, segundo
Lukács, o caráter interpretativo do direito precisa ser acentuado, amesmo porque
“nenhuma lei, artigo de lei etc., é possível sem uma particularização que o determine,
pelo mero fato de que o ponto final de toda a jurisdição é a aplicação ao caso singular”
(LUKÁCS, 1966b, p. 222). E isto não tem como não ocorrer de modo manipulado e em
correlação necessária com um ímpeto classista mais ou menos direto.
Ou seja, há, na melhor das hipóteses, uma ilusão segundo a qual se opera o
direito ao modo de uma teoria hermenêutica baseada no conceito de integridade e de
romance em cadeia. Em verdade, tal ímpeto, independente das posições subjetivas dos
operadores do direito, vem a ser efetivo por meio dos nexos objetivos da economia
capitalista.
A forma jurídica traz consigo a especificidade de ser um complexo que não se
caracteriza somente pela regulamentação jurídica universal. Esta última ampara-se
sobre o domínio material universal do capital” (LUKÁCS, 2010, p. 283), o qual, por
vezes, precisa da técnica jurídica moderna para se impor.
4
Esta imposição pode se dar
de várias maneiras, com ou sem a participação direta dos especialistas do direito.
Porém, quando envolve a esfera jurídica, traz consigo um método bastante próprio:
4
Aqui não podemos discutir até que ponto este é o caso do stalinismo. Para isso, seria necessário
averiguar como os imperativos do capital por vezes ligados à expansão do parque industrial
estiveram presentes no auge do domínio de Stalin.
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O funcionamento do direito positivo está baseado, portanto, no seguinte
método: manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso
surja não um sistema unitário, mas um sistema capaz de regular na prática
o acontecer social contraditório, tendendo para a sua otimização, capaz de
mover-se elasticamente entre polos antinômicos por exemplo, entre a pura
força e a persuasão que chega às raias da moralidade , visando implementar,
no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação
de classe que se modifica de modo lento ou acelerado, as decisões em cada
caso mais favoráveis a essa sociedade, que exerçam as influências mais
favoráveis à práxis social. Fica claro que, para isso, faz-se necessária uma
técnica de manipulação bem própria, o que basta para explicar o fato de
que esse complexo é capaz de se reproduzir se a sociedade renovar
constantemente a produção de “especialistas” (de juízes e advogados até
policiais e carrascos) necessários para tal. (LUKÁCS, 2013, p. 247)
Lidar com as contradições que apontamos anteriormente acaba por constituir
o próprio método por meio do qual o funcionamento do direito positivo se sustenta.
A técnica jurídica moderna é, como afirmado, “uma técnica de manipulação bem
própria” (LUKÁCS, 2013, p. 247) que es ligada aos especialistas, os quais se
colocam, de modo mais ou menos mediado, como operadores do direito. A formação
destes especialistas, assim, pode oscilar entre polos antinômicos naturalmente, sem
que pareça haver qualquer contradição nisto; tanto a pura força quanto a persuasão
com vestes morais podem ser utilizadas a depender das circunstâncias, e teorias que
justifiquem tais oscilações não faltam.
A de Dworkin, por exemplo, é uma delas e, nela, há tanto uma teorização sobre
um lado da questão quanto de outro. O autor diz, por exemplo, que “a justiça é uma
questão que remete à melhor (ou mais correta) teoria do que é justo, moral e
politicamente, e a concepção de justiça de uma pessoa é a sua teoria, imposta pelas
suas próprias convicções sobre a verdadeira natureza dessa justiça” (DWORKIN, 2014,
p. 122). E, assim, o polo da moral e da persuasão é bastante enfatizado. Depois, ele
diz que o direito, porém, é diferente da justiça porque “o direito é uma questão de
saber o que do suposto justo permite o uso da força pelo Estado, por estarem incluídos
em decisões políticas do passado, ou nelas implícitos” (DWORKIN, 2014, p. 122). Ou
seja, o necessário uso da força por parte do Estado. A grande questão seria justificar
este uso por uma teoria em que “o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação
construtiva, de que nosso direito constitui a melhor justificação do conjunto de nossas
práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa que faz dessas práticas as melhores
possíveis” (DWORKIN, 2014, p. XI).
Longe de Lukács confluir com uma posição como esta, como vimos, ele é
profundamente crítico quanto a este meio de proceder. O método da técnica jurídica
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moderna aparece neste campo, em verdade, com toda a força. Mesmo que
subjetivamente um autor como Dworkin possa não desejar qualquer manipulação
classista, o que se tem é justamente o que Lukács descreve: uma “otimização, capaz
de mover-se elasticamente entre polos antinômicos - por exemplo, entre a pura força
e a persuasão que chega às raias da moralidade” e isto se daria “visando implementar,
no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classe
que se modifica de modo lento ou acelerado” de modo a se ter “as decisões em cada
caso mais favoráveis a essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis à
práxis social” (LUKÁCS, 2013, p. 247). Ou seja, uma confluência bastante grande
entre o método manipulatório criticado por Lukács e o modo de proceder de alguém
como Dworkin.
Não só a aproximação entre direito, estética e literatura é absurda. O modo pelo
qual ela é desenvolvida é aquele em que a manipulação é necessária. De um lado,
um sistema unitário e supostamente baseado em uma lógica jurídica (ou em um ideal
de integridade, relacionado à noção de romance em cadeia); de outro, tem-se que este
sistema precisa ser capaz de regular o acontecer social contraditório. O funcionamento
mesmo do direito positivo traz consigo necessariamente um método que opera da
maneira descrita acima. Por mais que autores como aquele de
Levando os direitos a
sério
procurem dar uma nica diferente a este método, de acordo com Lukács, eles
estão pintando com cores róseas determinações aviltantes que são inerentes ao
complexo jurídico.
Ao se falar da oscilação entre polos antinômicos, notamos que a sistematização
do direito, bem como a autonomização deste complexo, é fruto necessário do
desenvolvimento social. Porém, segundo Lukács, é possível que se tenha certa
oposição a este desenvolvimento dentro do próprio funcionamento do direito. Se
haveria, de um lado, uma ênfase no sistema unitário, coerente, e carente de
contradições, o oposto também poderia ocorrer; a técnica jurídica moderna poderia
muito bem ignorar o próprio ideal de legalidade, ou reinterpretá-lo, para que se
tenham “as decisões em cada caso mais favoráveis a essa sociedade, que exerçam as
influências mais favoráveis à práxis social” (LUKÁCS, 2013, p. 247). E, com isto, o
direito e as ilusões jurídicas não teriam, de modo algum, como se aproximarem da
esfera estética; antes, isso sempre foi ilusório, mas trazia consigo o polo da persuasão
e da moral. vezes, porém, em que no direito passa a preponderar algo que se
assemelha muito ao simples cálculo econômico.
Vitor Bartoletti Sartori
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Sobre este assunto, que aparece explicitamente em teorias como as de Richard
Posner (2011) expoente da análise econômica do direito, contra quem Dworkin se
insurge , Lukács também se posiciona. O autor húngaro diz que o fetichismo centrado
na sistematização do direito acaba por dar lugar a outra forma de fetichismo, que
também estaria presente no direito, aquela segundo a qual o cálculo econômico é
central. Ou seja, os polos antinômicos que marcam o funcionamento do direito positivo
também aparecem nas teorizações sobre o direito. Estas últimas acabam por trazer
uma visão ideal e ilusória sobre as práticas jurídicas de uma época e a oscilação entre
os pontos de vista mencionados não adviria simplesmente dos debates jurídicos, mas
das determinações presentes nas contradições sociais que dão o conteúdo concreto
da esfera jurídica.
Foi a abrangência total cada vez mais abstrata do direito moderno, a luta
para regular juridicamente o maior número possível de atividades vitais
sintoma objetivo da socialização cada vez maior da sociedade , que levou
ao desconhecimento da essência ontológica da esfera do direito e, por essa
via, a tais extrapolações fetichizantes. O século XIX, o surgimento do Estado
de direito que foi se aperfeiçoando gradativamente, fez com que esse
fetichismo aos poucos esmaecesse, mas apenas para dar origem a um novo.
À medida que o direito foi se tornando um regulador normal e prosaico da
vida cotidiana, foi desaparecendo no plano geral o
thos
que adquirira no
período do seu surgimento e mais fortes foram se tornando dentro dele os
elementos manipuladores do positivismo. Ele se torna uma esfera da vida
social em que as consequências dos atos, as chances de êxito, os riscos de
sofrer danos são calculados de modo semelhante ao que se faz no próprio
mundo econômico. (LUKÁCS, 2013, p. 236)
O movimento de consolidação do direito moderno traria consigo a
regulamentação jurídica universal, que é a expressão jurídica do domínio universal do
capital. Uma vez consolidado este processo, tem-se, segundo Lukács, certa
centralidade sendo colocada na noção de Estado de direito; trata-se do processo em
que a classe burguesa deixa de trazer um ímpeto politicamente progressista e em que
se tem a “transformação [...] da democracia revolucionária em um liberalismo covarde
e de compromisso, que flerta com qualquer ideologia reacionária” (LUKÁCS, 2011, p.
391).
O processo de implementação da regulamentação jurídica universal é aquele da
luta pela centralização política do Estado moderno, pela supressão do localismo
político, contra os privilégios feudais e a favor da economia capitalista. O
pathos
original do direito moderno, portanto, é revolucionário. A expressão jurídica deste
processo é fetichista e se expressa no desconhecimento da essência ontológica da
sociedade, necessário à formação dos sistemas e das lógicas jurídicas. Trata-se do
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fetichismo que criticamos. Porém, como mencionado, outra forma de fetichismo, que
também se coloca no direito com a perda de qualquer
pathos
revolucionário, aquela
inerente ao positivismo. E ela vem justamente com a consolidação do estado de direito.
A democracia revolucionária, com certos ideais ligados ao direito natural,
expressou-se no ímpeto ligado ao polo da persuasão e da moral. No caso do Estado
de direito, acompanhado pelo liberalismo, ocorre a regulamentação jurídica universal
como algo prosaico. A cotidianidade e os hábitos dos indivíduos tomam o direito
como um regulador prosaico da vida cotidiana e, deste modo, os elementos
manipulatórios do positivismo tomam a dianteira de modo ainda mais brutal. Antes,
isto se dava com a manipulação conceitual-abstrata em foco; agora, o enfoque está
diretamente ligado às consequências dos atos regulados, que deveriam se ajustar
otimamente tendo-se, assim, repetimos, “as decisões em cada caso mais favoráveis a
essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis à práxis social” (LUKÁCS,
2013, p. 247). Trata-se, portanto, de outra forma de fetichismo.
5
Ambas são inerentes
ao funcionamento do direito.
De um lado, no limite, uma visão estetizada do direito, de outro, uma visão
economicista. Aqui não podemos tratar do assunto, mas talvez seja possível dizer que
visões como a de Dworkin tentam acentuar unilateralmente o “lado bom” do direito
enquanto aquelas como a de Posner procuram destacar, de modo igualmente
unilateral, o “lado mau” do funcionamento do direito positivo. Para o que nos cabe
aqui, é bom que fique claro que Lukács é crítico a ambas as posições. Ainda não
uma crítica imanente às teorias do direito, infelizmente. E esta tarefa precisa ser
realizada, amesmo porque aquilo que coloca Lukács sobre o funcionamento e o
método do direito positivo parece convergir bastante com as unilateralidades das
teorias jurídicas.
O espelhamento jurídico, tanto em sua expressão mais ligada à prática quanto
em sua vertente teórica, é profundamente marcado pela manipulação. E, assim, uma
posição como a de Varga (2012), que tenta aproximar Lukács de autores como
Dworkin, é, para dizer o mínimo, profundamente equivocada. Ao mesmo tempo, ela
mostra a necessidade de uma crítica imanente às teorias do direito e, por isto, tal
5
Posner fala sobre o utilitarismo que “nesta concepção a transação de mercado é considerada como
paradigma da ação moralmente adequada. Esta concepção, embora abominável para quem quer que
conserve mesmo o mínimo de simpatia em relação ao socialismo nesta era de triunfo do capitalismo
pode ser defendida (ainda que não se saiba ao certo com que grau)” (POSNER, 2011, p. 101).
Vitor Bartoletti Sartori
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colocação errada do intérprete da obra de Lukács pode render trabalhos futuros, a
nosso ver, necessários.
Apontamentos finais
Pelo que vimos, as tendências que se colocam na teoria do direito são passíveis
de crítica a partir da teoria de Lukács. Em verdade, elas expressam justamente o que
foi profundamente criticado pelo autor húngaro: o funcionamento necessariamente
manipulatório do direito e a oscilação entre polos antinômicos que caracteriza o
método do direito positivo e da teorização sobre ele. Aqui, porém, sequer entramos
na crítica imanente propriamente dita a estas teorias, embora acreditemos que isto
seja necessário.
Nesta empreitada, seria preciso tanto uma crítica à fundamentação filosófica das
teorias do direito (colocada na filosofia da linguagem e na hermenêutica filosófica)
quanto um estudo aprofundado de sua gênese, estrutura e função social. Aqui,
pretendemos explicitar como a obra lukácsiana é a antítese direta destas teorias.
Enfocamos, principalmente, o modo pelo qual, a partir de Lukács, é impossível
aproximar a esfera jurídica da estética. Ao mesmo tempo em que procuramos explicitar
como tal aproximação parece fazer todo o sentido para aquele que atua como jurista.
Ou seja, a própria conformação dos especialistas em uma posição objetiva na divisão
do trabalho faz com que pareça ser plausível a relação entre arte e direito, ao mesmo
tempo em que torna tal relação absolutamente esdrúxula. Os próprios elementos
manipulatórios, que são indissociáveis do funcionamento do direito, são pintados com
tintas róseas pelas teorias do direito. Assim, qualquer solução para as questões que
aparecem de modo deformado nas teorias jurídicas nunca poderia aparecer nestas
mesmas teorias. Em verdade, ela remete ao funcionamento da própria sociedade e à
necessária transformação substantiva da sociedade capitalista, trazendo uma
sociabilidade superior. A obra madura de Lukács buscou trazer as condições teóricas
para isto e é, no mínimo, equivocado tentar aproximar as teorias do autor húngaro
com as de alguém como Dworkin.
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Como citar:
SARTORI, Vitor Bartoletti. Lukács diante da estetização do direito.
Verinotio
, Rio das
Ostras, v. 27, n. 2, pp. 58-88, mar. 2022.