VerinotioNOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
A relação entre objetividade e subjetividade
no ato estético
The relationship between objectivity and subjectivity in the aesthetic act
Monica Hallak Martins da Costa*
Resumo: Este artigo tem por objetivo
acompanhar a análise de Lukács acerca da
especificidade do espelhamento artístico. Para
tanto, o autor diferencia o reflexo estético
daqueles da ciência e do cotidiano. A partir deste
contexto, Lukács analisa o papel da
Entäusserung
no r estético. A abordagem de
Lukács secotejada com a análise de Chasin do
complexo objetividade/subjetividade e, ao final,
serão levantadas algumas questões acerca da
dupla base (natural e social) da produção
humana.
Palavras-chave: Ontologia do ser social; György
Lukács; marxismo e estética.
Abstract: This article aims to follow Lukács'
analysis of the specificity of artistic mirroring.
Therefore, the author differentiates the
aesthetic reflection from those of science and
everyday life. From this context, Lukács
analyzes the role of
Entäusserung
in aesthetic
putting. Lukács' approach will be collated with
Chasin's analysis of the objectivity/subjectivity
complex and, at the end, some questions will be
raised about the double basis (natural and
social) of human production.
Keywords: Ontology of the social being; György
Lukács; Marxism; Aesthetics.
Imortal é o autor que lega polêmica à posteridade.
Antes de iniciar a elaboração de sua
Ontologia
, Lukács concluiu a
Estética
,
publicada em 1963. Nessa grande obra (que, não obstante suas 1.600 páginas, era
apenas a primeira parte de um projeto maior), Lukács tratou da alienação apoiando-
se em Hegel. Vejamos, de início, como compreende os reflexos científico e estético
para, posteriormente, tratar de forma específica da
Entäusserung
, como momento do
espelhamento estético.
Na abordagem inicial em
Estética,
Lukács apresenta os elementos do pensamento
cotidiano a partir dos quais brotam as diferenciações tanto do pôr científico quanto
do artístico. Seu escopo é o de capturar a especificidade do estético delimitando sua
distinção em relação à ciência. Para a compreensão do significado da
Entäusserung
em Lukács, a distinção é importante tanto para compreender a apropriação da
Entäusserung
hegeliana na análise da relação sujeito/objeto na arte, quanto para
* Doutora em serviço social; professora do curso de serviço social da Pontifícia Universidade Católica
(PUC Minas). E-mail: monicahallak@uol.com.br.
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.647
Monica Hallak Martins da Costa
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refletir a futura introdução (Lukács o fará explicitamente em
Ontologia
) dessa
categoria na análise de toda objetivação humana como uma característica do trabalho
em geral.
Nos passos subsequentes àquela primeira abordagem do pensamento cotidiano,
Lukács detalha os momentos distintivos que dão origem à ciência e à arte. Ele já havia
exposto que, tanto uma quanto a outra forma de reflexo, nascem do metabolismo entre
homem e natureza, pois a “gênese real das objetivações deve encontrar-se na própria
hominização, no paulatino nascer da linguagem e do trabalho” (LUKÁCS, 1970, p. 51).
Nesse processo, os sentidos são constituídos na ordenação e armazenamento de
experiências visuais, auditivas etc. graças à intervenção do pensamento que torna
possível a substituição de um sentido pelo outro, assim, o “olho assume as mais
variadas funções perceptivas do tato, das mãos, com o que estas se tornam disponíveis
para o trabalho propriamente dito e podem desenvolver-se de forma superior e
diferenciar-se cada vez mais” (LUKÁCS, 1970, p. 51).
Os experimentos rudimentares baseiam-se, antes de tudo, na imitação dos
objetos imediatamente encontrados, mas as ferramentas assim produzidas são
modificadas em função do que Lukács chamou de “imitação do aspecto subjetivo”, ou
seja, “de uma imitação dos movimentos que dão bom resultado na prática do trabalho,
da continuidade de sua experiência. Assim pois, quanto mais relativa ao homem é a
imitação, tanto mais fecundamente pode continuar a operar inclusive em estágios
superiores” (LUKÁCS, 1970, p. 72).
Conforme ainda observa:
Em sua forma humana, a imitação pressupõe uma relação sujeito-objeto
relativamente elaborada, porque essa imitação se orienta claramente até um
objeto determinado como parte ou momento do entorno do homem; isso
supõe uma certa consciência de que esse objeto se encontra frente ao sujeito,
existe com independência dele, mas, em certas circunstâncias, pode
modificar-se pela atividade do sujeito. (LUKÁCS, 1970, p.72)
E por isso pode dizer, com segurança, que o homem primitivo se encontra em
um nível qualitativamente superior aos animais mais evoluídos pelo fato de que o
conteúdo do reflexo e da imitação tem como meio a linguagem e o trabalho” (LUKÁCS,
1970, p. 72), o que, mesmo em estágios rudimentares de desenvolvimento, pressupõe
a relação entre sujeito e objeto. Relação essa que se constrói objetivamente, na
atividade e a partir de todos os sentidos. Mesmo assim, diz: “todo o mérito do rápido
progresso da civilização se atribui à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do
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cérebro” (LUKÁCS,1970, p. 76).
Lukács dedica parte do capítulo referente às diferenciações produzidas a partir
do cotidiano para o exame do reflexo religioso, do qual trataremos na medida em
que envolver uma forma específica de espelhamento que deve ser diferenciada do
espelhamento estético, aquele chamado pelo filósofo de subjetivista-antropomórfico,
no qual “a imagem cósmica [...] se centra teleologicamente no homem (seu destino,
sua salvação), se refere diretamente a seu comportamento em relação a si mesmo, em
relação a seus próximos, em relação ao mundo” (LUKÁCS, 1970, p. 99). Essa forma de
comportamento em relação a si mesmo do homem entra, com frequência, em
divergência, na vida cotidiana, com o trato científico da realidade, visto que:
O conhecimento científico serve, simplesmente, para superar todas as
consequências subjetivas imediatas e a priori, para mover aos homens a
operar sobre a base de uma consideração objetiva e sem preconceitos dos
fatos e da conexão entre eles. Esta tendência opera também, como é natural,
na vida cotidiana: o choque entre as duas atitudes ocorre muito
frequentemente na consciência humana não como tal choque entre atitude
científica e atitude religiosa, mas seu sentido segue sendo, inclusive em níveis
elevados de desenvolvimento, uma divergência real do pensamento
cotidiano. (LUKÁCS, 1970, p. 99-100)
A
questão
que se coloca é, pois, “[...] se o domínio humano da realidade pode
ter lugar sobre uma base antropomorfizadora, teleologicamente centrada no homem,
ou se exige necessariamente um distanciamento mental em relação aos ditos
momentos” (LUKÁCS, 1970, p. 100). A essa exigência de distanciamento mental do
homem em relação a si mesmo Lukács chama desantropomorfização, traço típico do
reflexo científico que pressupõe a dedicação exclusiva a um campo homogêneo sobre
o qual o homem está inteiramente voltado.
Para que esse reflexo se realize é necessário, é certo, um salto em relação ao
campo heterogêneo da cotidianidade, melhor dizendo, um deslocamento do aspecto
específico da realidade a ser analisado, sob a ótica científica, para um espaço no qual
este elemento destacado é o centro. Na vida cotidiana, esse tipo de isolamento não é
possível, por ser a esfera do homem inteiro, ocupado com as mais diversas atividades
necessárias para sua reprodução física e social. Como constataremos em páginas
vindouras, também o espelhamento artístico pressupõe a separação em relação à vida
cotidiana, separação que se expressa efetivamente no fato de, tanto o exercício da arte
quanto da ciência, exigirem “certo ócio, uma certa liberdade por mais que relativa
em relação às preocupações cotidianas, em relação às reações imediatas da
cotidianidade às necessidades elementares” (LUKÁCS, 1970, p. 170). Tal afirmação
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encontra ressonância nos
Manuscritos de 1844
, no qual Marx afirma que o homem
(diferentemente do animal) produz verdadeiramente quando livre da necessidade
física imediata.
No caso do reflexo científico, o salto em relação ao cotidiano significa certa
dessubjetivação
que, no entanto, “não suprime as propriedades, qualidades decisivas
do homem inteiro que esse salto, senão na medida em que obstaculizam a
reprodução do meio homogêneo pelo sujeito” (LUKÁCS, 1970, p. 147); pelo contrário,
exige agudeza, dom de observação, capacidade de combinar dados, constância,
capacidade de resistência adquiridos a partir da lida no cotidiano.
Lukács esclarece que a desantropomorfização não tem nenhuma relação com
tendências anti-humanas, estas nascem sempre do solo da vida histórico-social, das
estruturas sociais, de situações de classe no seio de uma formação” (LUKÁCS, 1970,
p. 148). Nas relações capitalistas de produção, o princípio desantropomorfizador, de
fato, aparece “[...] em função do desejo de lucro como força impulsora, como princípio
da inumanidade extrema e ade anti-humanidade”, mas ele é “essencialmente um
princípio de progresso e de humanização”, salienta marcando sua contraposição em
relação à “crítica romântica, retrógrada” (LUKÁCS, 1970, p.160).
Em um rápido apanhado histórico, resgatando o percurso filosófico de defesa
das tendências desantropomorfizadoras, Lukács valoriza, sobretudo, o trabalho de
Bacon, autor que “levou a cabo a separação entre pensamento cotidiano e reflexo
científico-objetivo da realidade em si de um modo muito mais amplo e sistemático que
qualquer outro [...] nesse período fundamental” (LUKÁCS,1970, p. 152). Resume o
“sentido central e mais geral da epistemologia baconiana” comparando-a aos esforços
metodológicos de Galileu: “trata-se de transformar de tal modo o sujeito humano, de
superar de tal modo suas limitações imediatamente dadas, que seja capaz de ler o
livro da realidade em si” (LUKÁCS, 1970, p. 156).
Também em Spinoza, o referido escritor encontra, sem desconsiderar as
distinções em relação a Bacon, a preocupação de reeducar o “sujeito no sentido da
recepção das leis da realidade em si, sem deformações humano-subjetivas, a reflexão
sobre a realidade segundo sua própria natureza, e não segundo os efeitos humanos,
e a sistematização do todo”, transformação que se torna possível pelo
“distanciamento em relação ao pensamento cotidiano, de sua imediatez e seu
antropomorfismo” (LUKÁCS, 1970, p. 156).
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Mesmo explicitando a crescente diferenciação da ciência em relação ao cotidiano,
Lukács nunca deixa de destacar a constante interação entre as duas esferas, seja por
meio das perguntas postas pelas necessidades do dia a dia, seja pela “influência
inversa das conquistas da ciência na prática cotidiana” (LUKÁCS, 1970, p. 163). Por
isso mesmo, de certa forma, Lukács responde aqui àqueles críticos que veem, em sua
análise, a presença de tendências totalizantes em relação à possibilidade do
conhecimento, pois justamente em função desse constante intercâmbio, ele esclarece
que o conteúdo da realidade “[...] não pode ser nunca esgotado nem pela ciência e a
arte mais perfeitas”. Em parte porque sempre aspectos da realidade ainda não
explorados ou explorados de uma forma e não de outra, “e em parte porque essa
infinitude extensiva e intensiva da realidade objetiva produz também a correspondente
inesgotabilidade dos problemas vitais de cada indivíduo humano, a um nível cada vez
mais alto” (LUKÁCS, 1970, p.166), a saber, surgem novos problemas inexistentes nas
formas anteriores, problemas cada vez mais específicos e, ao mesmo tempo, mais
amplos; o que significa dizer que objetividade e subjetividade desenvolvem-se em
interação, ainda que, muitas vezes, tal interação tenha a marca da contraditoriedade.
Como expressa Chasin, “objetividade e subjetividade humanas são produtos da
autoconstutividade do homem [...]. O homem e seu mundo são produções de seu
gênero a interatividade universal e mutante dos indivíduos em processualidade
infinita” (CHASIN, 2009, p. 92). A interação entre objetividade e subjetividade ocorre
em todas as formas da atuação humana, “não importa quão radicalmente contraditória
e, de fato, cruel, perversa e mutiladora seja a maior parte dessa trajetória sem fim”
(CHASIN, 2009, p. 93).
Se, na esfera da ciência, as contradições entre subjetividade e objetividade
tendem a se reproduzir de acordo com a especificidade de sua diferenciação em
relação ao cotidiano (o que inclui e implica decididamente relações sociais de
produção), na arte esse desenvolvimento assume características peculiares. Segundo
Lukács (1970), a esfera da arte não está tão arraigada à necessidade social de
produção e de reprodução da mera existência, como a necessidade da ciência. Para o
autor, essa aproximação maior da ciência em relação à vida cotidiana é facilmente
perceptível, pois a
[...] consecução de conhecimentos acerca do mundo externo circundante, o
incipiente descobrimento de suas conexões, é uma parte tão integrante da
prática cotidiana que inclusive os homens mais primitivos têm que percorrer
esse caminho, sob pena de perecer (LUKÁCS, 1970, p. 170).
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A necessidade da ciência aparece, por esse motivo, como necessidade de
sobrevivência do próprio homem, necessidade de conhecer a realidade à sua volta, ter
o mínimo de controle sobre ela.
A distinção entre o campo da arte e o da ciência aparece nitidamente na forma
do espelhamento: no caso da ciência, o reflexo busca conhecer a realidade objetiva,
“levando à consciência seus conteúdos, suas categorias etc.”, na arte opera-se o
movimento contrário, tem lugar uma projeção de dentro para fora” (LUKÁCS, 1970,
p. 178). Trata-se, portanto, da diferença entre os princípios antropomorfizador e
desantropomorfizador. No entender do autor, a “objetividade estética ainda que
também ela antropomorfizadora, se distingue qualitativa e essencialmente das formas
de objetividade da cotidianidade, a religião e a magia” (LUKÁCS, 1970, p. 178).
A exigência de diferenciação, para fins analíticos, não significa, claro, que na
realidade essas esferas se desenvolvam autonomamente. De modo adverso, para o
analista em questão, as “primeiras formas de expressão do reflexo científico e filosófico
da realidade aparecem mescladas com elementos estéticos” (LUKÁCS, 1970, p. 179).
Mais do que isso: o desenvolvimento da ciência e da filosofia permite e promove
efetivamente o surgimento de novas expressões artísticas, porquanto “por trás da
transformação qualitativa dos fatos da vida, das relações entre os homens, das
condições de sua ação, de sua psicologia, de sua moral, atuam forças sociais objetivas,
que a pesquisa científica pode descobrir e explicar” (LUKÁCS, 1970, p.182) e todas
essas transformações são matérias-primas da expressão do artista. Assim, no mesmo
processo por meio do qual os objetos da natureza são “conhecidos, convertidos no
reflexo científico, de objetos em-si em objetos para-nós” nascem objetivamente outros
produtos como a música, a arquitetura com “traços diversos dos meramente
destinados à conversão do em-si em para-nós (LUKÁCS, 1970, p.189) da ciência. Para
Lukács, a diferença entre os objetos produzidos pela arte e pela ciência é que o último
uma vez produzido é tão em-si como os objetos naturais.
Por diversas que sejam sua
estrutura objetiva e as leis de sua eficácia em relação às leis da natureza, seu reflexo
científico procede igualmente pelo direto caminho que vai do em-si ao para-nós”
(LUKÁCS, 1970, p. 189-190, grifo nosso). O autor compreende que, no campo da
ciência, é “mais difícil conseguir a forma pura da objetividade” (LUKÁCS, 1970, p. 189-
190), visto que o espelhamento científico se volta para as leis e estrutura da
objetividade exterior, da matéria natural pronta e acabada e o espelhamento estético
debruça-se sobre a compreensão interior, para a conformação subjetiva; porém, a
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própria interioridade se constitui socialmente, e não de forma isolada e interna.
A formulação de Lukács, reproduzida sinteticamente acima, inspira-se, segundo
reconhece o autor, nos
Manuscritos de 1844
. Ele assume abertamente essa filiação ao
pensador alemão ao citar um longo trecho desses rascunhos no qual aparece a
conhecida afirmação de que a “formação dos cinco sentidos é fruto de toda a história
do mundo até aqui” (MARX, 2004, p. 110). Marx não se refere especificamente à arte,
ainda que tenha utilizado exemplos relacionados à música (ao ouvido musical) e à
beleza da forma (ao olho capaz de percebê-la). Ele também fala do homem faminto
que não percebe a forma humana do alimento, ou seja, uma forma na qual a
subjetividade, o saber, os sentidos formados humanamente estão presentes. Nossa
alimentação é subjetividade humana objetivada em produtos sociais, constituídos
historicamente no contato entre os homens.
A amplitude da análise de Marx não passou despercebida pelo filósofo húngaro.
Lukács salienta que o desenvolvimento dos cinco sentidos aludido por Marx
“compreende naturalmente muito mais que o desenvolvimento de uma receptividade
estética” e o “exemplo dos alimentos mostra que em sua concepção trata-se antes de
tudo de manifestações elementares da vida, cuja elevação objetiva e subjetiva é
produto do desenvolvimento do trabalho” (LUKÁCS, 1970, p. 191). Mesmo assim, ele
observa que as “interações entre objetividade e subjetividade pertencem à essência
objetiva das obras de arte” (LUKÁCS, 1970, p.190). E não pertenceriam também,
perguntamos, à essência objetiva de todo produto social? Chasin forjou, a partir de
Lukács
1
, a expressão
dação de forma
para explicitar o significado da prática social,
humana: “uma vez que a efetivação humana de alguma coisa é dação de forma humana
à coisa, bem como pode haver forma subjetiva, sensivelmente efetivada, em alguma
coisa” (CHASIN, 2009, p. 97). Por isso, é pela mediação da prática que “objetividade
e subjetividade são resgatadas de suas mútuas exterioridades [...] de tal modo que
interioridade subjetiva e exterioridade objetiva são enlaçadas e fundidas, plasmando
o universo da realidade humano-societária” (CHASIN, 2009, p. 98).
Para Lukács, no caso da obra de arte é válida a máxima “que em qualquer outro
1
Cf. LUKÁCS, 1970, p. 167;1982, p. 215. A edição italiana (1970) da
Estética
traduziu por “figuração”.
Na edição espanhola (1982), a tradução é “dação de forma”.
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campo da vida humana seria idealismo filosófico” segundo a qual “não pode existir
objeto algum sem sujeito” (LUKÁCS, 1970, p. 190).
Outra aquisição, reconhecida por Lukács, a partir das ideias de Marx, além do
reconhecimento “da historicidade radical da arte e da receptividade artística”, é a
consideração do autor dos
Manuscritos de 1844,
de que “os sentidos,
qualitativamente distintos, tem que possuir relações (e, portanto, interações) também
qualitativamente distintas com o mundo dos objetos” (LUKÁCS, 1970, p.191). Ainda
assim “sempre são sentidos de um homem inteiro” que “vive em sociedade com seus
semelhantes, desenvolve nessa sociedade suas mais elementares manifestações vitais
e consequentemente tem em seus sentidos elementos e tendências profundamente
comuns com as desses outros homens”. A heterogeneidade e separação entre os
sentidos, portanto, não significa que possam se separar “hermeticamente uns dos
outros” (LUKÁCS, 1970, p. 195), porque
A divisão do trabalho entre os sentidos, a facilitação e o aperfeiçoamento do
trabalho por meio deles, a recíproca relação de cada sentido com os demais
através dessa colaboração cada vez mais diferenciada, a crescente conquista
do mundo externo e interno do homem [...] tudo isso põe [...] a tendência a
desenvolver mais peculiarmente as próprias qualidades imanentes e a
conquistar para estas uma tal universalidade, uma tal capacidade de
compreensão que sem prejuízo da independência de cada arte em
particular penetre progressivamente no que é comum a todas , o meio do
estético. (LUKÁCS, 1970, p. 195-196)
Comum a todos os sentidos e a todos os homens é, antes de tudo, o metabolismo
da sociedade com a natureza que se efetiva em relações de produção determinadas.
Por isso Lukács considera:
Quanto mais forte é, intensiva e extensivamente, esse intercâmbio ou
metabolismo, tanto mais acusadamente aparece na arte o reflexo da própria
natureza. Esse reflexo não é o ponto de partida, pelo contrário, é o produto
de um nível sumamente desenvolvido do dito intercâmbio. Mas, de outra
parte, o reflexo do intercâmbio da sociedade com a natureza é o objeto
último e verdadeiramente conclusivo do reflexo estético. Em-si,
objetivamente, esse intercâmbio contém a relação de todo indivíduo com o
gênero humano e com seu desenvolvimento. Este conteúdo implícito se
explicita na arte, e o em-si, com frequência oculto, aparece como um plástico
ser-para-si. (LUKÁCS, 1970, p. 197)
O autor admite que esse processo também ocorre na vida cotidiana, no
intercâmbio presente no próprio trabalho, mas para ele no trabalho “as componentes
objetiva e subjetiva conseguem uma eficácia relativamente independente,
desenvolvem-se com relativa autonomia, ainda que, sem dúvida, em ininterrupta
interação” (LUKÁCS, 1970, p. 197). A arte aparece, em sua análise, como o
desenvolvimento da componente subjetiva, que só pode ser tardio, pois, ela nasce do
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desenvolvimento da objetividade por meio do metabolismo da sociedade com a
natureza que “manifesta constantemente aspectos novos, novas leis etc. da natureza
em sua relação com o homem, e inclui assim a própria natureza, intensiva e
extensivamente, cada vez com mais energia naquele intercâmbio com a sociedade”
(LUKÁCS, 1970, p. 198). A unidade entre subjetividade e objetividade
[...] significa, pois, que se abandona a unidade de um determinado estádio
do desenvolvimento para substituí-la por outra mais complicada, mais
mediada, mais altamente organizada. Este processo está em íntima interação
com o desenvolvimento da componente subjetiva, cujo desenvolvimento,
imediata e aparentemente, é interno (LUKÁCS, 1970, p. 198).
Esse desenvolvimento, que é interno aparentemente, realiza-se, de fato, no
intercâmbio com os objetos e relações efetivamente constituídos na vida social. Sob
esse aspecto, diferentemente do reflexo científico que nem sempre espelha o
intercâmbio com a natureza, que desenvolve caminhos próprios que não
desembocam de novo naquele processo senão através de amplas mediações” (a
matemática, por exemplo), o reflexo artístico “pode captar e conformar a natureza
com seus próprios meios” (LUKÁCS, 1970, p. 198), tendo por base o metabolismo
entre o natural e o social.
Outra distinção em relação ao reflexo científico é que este deve sempre buscar
“as determinações gerais do objeto estudado em cada caso”, enquanto na arte o
reflexo “se orienta imediata e exclusivamente a um objeto particular” (LUKÁCS, 1970,
p. 199). A particularidade refere-se, em primeiro lugar, à linguagem própria de cada
objeto artístico (palavra, som, imagem), mas também ao modo próprio do objeto
estético se expressar. Segundo Lukács, “a generalização estética é a elevação da
individualidade ao típico e não como na científica, o descobrimento da conexão entre
o caso individual e a legalidade geral”. Por isso, “a base real que subjaz a todo reflexo,
a sociedade em seu intercâmbio com a natureza, não pode manifestar-se senão” por
meio de “mediações, postas em movimento pela imediatez estética evocadora”, o que
vale para o objeto que conforma a imediatez de “um fragmento da natureza (como na
pintura paisagística)” e para aquele que traduz um “acontecimento humano puramente
interno (como no drama)” (LUKÁCS. 1970, p. 199).
O típico expresso nos objetos da arte sempre se volta para reflexão da própria
subjetividade, orienta-se ao próprio homem abarcando os conteúdos do mundo
concreto do modo mais completo possível” (LUKÁCS, 1970, p. 202). Trata-se da velha
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e, segundo Goethe
2
, inútil exigência de conhecer-se a si mesmo. O filósofo húngaro,
amparado no literato alemão, recusa a orientação à interioridade na referência ao
sujeito e se norteia em um comportamento direcionado ao mundo. Desse modo, ele
prepara o leitor para a compreensão da especificidade da antropomorfização na arte,
posto que, agora, ele pode dizer que o desprendimento “da autoconsciência em
relação à prática cotidiana [...] não é nenhuma supressão do reflexo antropomorfizador,
mas só a constituição de uma peculiar espécie dele, independente e qualitativamente
nova” (LUKÁCS, 1970, p. 203). Significa referir-se a uma forma de antropomorfização
que não se volta para a reprodução do particular, como no caso da vida cotidiana, mas
que busca responder à seguinte questão: “até que ponto é realmente este mundo um
mundo do homem, um mundo que ele possa afirmar como mundo próprio, adequado
à sua humanidade?” (LUKÁCS, 1970, p. 204).
Ao evidenciar a peculiaridade do reflexo antropomorfizador da arte, Lukács não
está isolando a expressão estética do comportamento cotidiano. Ao contrário, segundo
ele:
Na vida cotidiana os desejos e as satisfações se centram [...] no indivíduo:
por um lado, nascem de sua existência individual, real e particular e, por
outro, se orientam a uma satisfação real, prática, de desejos pessoais
concretos. Não dúvida de que a conformação artística nasce
originariamente desse solo. (LUKÁCS, 1970, p. 204)
Na arte, no entanto:
Surge um tipo particular de generalização [...] estritamente contraposta à
desantropomorfização da ciência, [ela] consiste em que o artisticamente
conformado se libera da individualidade meramente particular e, com isso,
da satisfação prático-fática da necessidade, cismundana ou ultramundana,
mas sem perder o caráter de vivencialidade individual e imediata. Ainda mais:
este tipo de generalização tem precisamente a tendência a robustecer e
aprofundar esse traço. Pois, preservando a individualidade no objeto e em
sua recepção, sublinha o genérico e supera desse modo a mera
particularidade. (LUKÁCS, 1970, p. 205)
Assim, consoante à visão do analista, a expressão artística eleva a “um nível
superior a determinação da autoconsciência, da estreita e particular esfera do
2
Sobre a exigência de conhecer a si mesmo, Lukács cita Goethe no livro publicado por Eckermann,
Conversações com Goethe
: “Sempre é dito e repetido que que intentar conhecer-se a si mesmo.
Curiosa exigência, que nada tem satisfeito até agora e que propriamente não cumprirá nada. O homem
está orientado, com todos os seus sentidos e aspirações, ao externo, ao mundo em torno de si, e está
bastante ocupado no trabalho de conhecer esse mundo e pô-lo a seu serviço na medida em que o
necessita para seus fins. Ele conhece a si mesmo quando goza ou quando sofre, e a dor e a alegria
lhe informam sobre si mesmo, dizem-lhe o que deve buscar ou evitar” (GOETHE
apud
LUKÁCS, 1970,
p. 202).
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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meramente cotidiano e adquire uma generalidade” própria, que tem por traço
distintivo “uma generalização sensível e manifesta do homem inteiro, conscientemente
baseada no princípio antropomorfizador” (LUKÁCS, 1970, p. 205). Uma criação do,
para e pelo homem que assume seu caráter fictício (diferentemente da religião que
pretende ser “uma realidade transcendente mais verdadeira que a da vida cotidiana”)
e assim recusa a transcendência, a busca da verdade além da própria vida. Por isso,
Lukács afirma que a obra de arte cria “formas específicas de reflexo da realidade,
formas que nascem desta e regressam ativamente a ela” (LUKÁCS, 1970, p. 207), pois
tais formas não se pretendem uma verdade independente da existência.
A percepção sensível do mundo é, portanto, a referência permanente do reflexo
antropomorfizador da arte que, dessa maneira, não deve nunca perder o contato com
a existência cotidiana, suas dores, seus prazeres, suas diferentes configurações etc.,
que as “generalizações [da arte] se realizam no marco da sensibilidade humana, e [...]
por força acarretam de certo modo uma intensificação da imediatez sensível para poder
executar com êxito estético o processo de generalização” (LUKÁCS, 1970, p. 207). A
generalização estética realiza-se, portanto, na intensificação do traço individual, que
assim caracterizado expressa
no objeto
da arte sua entificação especial, particular,
única e, por isso mesmo, universal.
Do lado
do sujeito
, o caráter potencializador do aspecto individual em cada
campo particular da arte se vincula “à possibilidade de desenvolvimento e refinamento
dos sentidos humanos, entendida, desde logo, no mais amplo sentido”, o que não
significa que “a cada sentido deva corresponder uma arte”, porque, no curso do
desenvolvimento, surgem “interações que se fazem cada vez mais íntimas e
penetrantes” (LUKÁCS, 1970, p. 208).
Para Lukács, também no produto do reflexo estético tem-se “uma realidade de
existência tão independente da consciência do indivíduo e da sociedade como no caso
do em-si da natureza; mas se trata de uma realidade na qual o homem está
necessariamente e sempre presente. Como objeto e como sujeito” (LUKÁCS, 1970, p.
209). Essa afirmação associada àquela na qual o autor estabelece que o objeto da
ciência uma vez produzido é tão em-si como qualquer objeto natural” pode se
constituir em um indicativo para compreendermos a insistência de Lukács, em
Ontologia
(2012) e em
Prolegômenos
(2010), em relembrar, a todo momento, o
caráter dúplice (natural e social) da entificação humana, motivo pelo qual, em relação
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a essa citação, assim como a assertiva anterior, podemos perguntar se nos produtos
do trabalho não está o homem também necessariamente presente como objeto e como
sujeito? Será que, para Lukács, nos reflexos científico e do trabalho o homem é
sujeito? E o objeto exterior é matéria? Cabe aqui lembrar a I Tese
ad Feuerbach
, na
qual Marx reclama da incapacidade do velho materialismo em reconhecer a presença
da subjetividade no objeto. Assim, como demonstra Chasin, “o materialismo antigo
ignora por completo a qualidade da objetividade social, isto é, sua
energia,
sua
atualização pela
atividade sensível dos homens
ou, simplesmente, desconhece sua
forma subjetiva
(CHASIN, 2009, p. 97). É certo que não podemos acusar Lukács da
mesma insuficiência. O objetivo é tão somente aprofundar a interlocução com os
resultados da análise do marxista húngaro. Mesmo porque, como veremos adiante, em
sua abordagem do reflexo estético, ele demonstra a especificidade dessa forma de
espelhamento.
Nesse sentido, o autor esclarece seu entendimento da especificidade da
generalização nessa forma de espelhamento:
A profunda verdade vital do reflexo estético repousa, não em último lugar,
em que, ainda que sempre aponte ao destino do gênero humano, o separa
nunca este dos indivíduos que o constituem, não pretende fazer nunca dele
uma entidade existente com independência dos próprios indivíduos. O
reflexo estético mostra sempre a humanidade na forma de indivíduos e
destinos individuais. (LUKÁCS, 1970, p. 209)
Enquanto poder-se-ia dizer na tentativa de compreender o encaminhamento
analítico do autor os objetos do trabalho e do reflexo científico podem se constituir
independentemente dos destinos individuais e são objetos que não se referem direta
e imediatamente aos indivíduos, os objetos da arte não podem adquirir caminho
próprio.
Como resultado de uma forma de reflexo que sempre se debruça sobre os
caminhos individuais, a obra de arte não se limita a fixar simplesmente um fato em si,
como a ciência, mas eterniza um momento do desenvolvimento histórico do gênero
humano” (LUKÁCS, 1970, p. 209), que se expressa, como vimos, na intensificação da
especificidade daquele momento. Por isso, Lukács afirma que a verdade artística é,
pois, como verdade, histórica; sua verdadeira gênese converge com sua
verdadeira vigência, porque esta não é mais que a descoberta e
manifestação, o ascender da vivência de um momento do desenvolvimento
humano que formal e materialmente merece ser assim fixado (LUKÁCS, 1970,
p. 209).
Diz respeito a uma fixação material e formal em que “a íntima interação entre
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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subjetividade e objetividade [...] do objeto e do sujeito do reflexo estético, não destrói
a objetividade das obras de arte, mas, pelo contrário, põe precisamente o fundamento
específico de sua específica peculiaridade” (LUKÁCS, 1970, p. 210).
Em síntese, para Lukács:
[...] enquanto a diferenciação do reflexo científico da realidade nas diversas
ciências está essencialmente determinada pelo objeto, na origem das
diversas artes e dos distintos gêneros desempenha um papel decisivo
também o momento subjetivo. Não, naturalmente, o arbítrio meramente
particular de cada sujeito. A arte é em todas as suas fases um fenômeno
social. Seu objeto é o fundamento da existência social dos homens: a
sociedade em seu intercâmbio com a natureza, mediado naturalmente, pelas
relações de produção, as relações dos homens entre si, mediadas por elas.
Um tal objeto social geral não pode ser adequadamente refletido por uma
subjetividade aferrada à mera particularidade; para conseguir um nível de
aproximada adequação o sujeito estético tem que desenvolver em si os
momentos de uma generalização à escala da humanidade: os momentos do
especificamente humano. Mas no terreno do estético, não pode tratar-se do
conceito abstrato de gênero, mas de homens individuais concretos, objetivos
sensíveis, nos quais o caráter e em cujos destinos estejam contidos concreta
e sensivelmente, individual e imanentemente, as qualidades e o nível de
desenvolvimento alcançado pelo gênero (LUKÁCS, 1970, p. 211).
Assim compreendida, a especificidade do pôr estético, a tarefa de analisar a
própria subjetividade estética aparece como uma exigência incontornável, pois Lukács
precisará justificar e desenvolver o que diferencia o reflexo e a construção da obra de
arte dos outros campos da vida humana. sabemos que um ponto central dessa
diferença é que a subjetividade estética não é em absoluto simplesmente idêntica à
subjetividade da vida cotidiana”, ainda que o estético coloque sempre no centro o
momento subjetivo que o alimenta” (LUKÁCS, 1970, p. 492).
A questão que o autor considera é:
como, em resposta a que necessidade, dirigida por quais forças se produz
uma tal intensificação da subjetividade que esta pode valer como um
qualitativo-ser-outro em relação à subjetividade da cotidianidade? E que
papel desempenha a esfera estética nesse desenvolvimento? (LUKÁCS, 1970,
p. 492).
Na própria colocação do problema, Lukács sinaliza para a presença da questão
da gênese, isto é, se compreende o estético como um modo de pôr humano, que
é produto de determinadas necessidades constantemente presentes a partir de uma
certa fase de desenvolvimento” (LUKÁCS, 1970, p. 492-493). Como vimos, esse
aparecimento tardio da arte relaciona-se à necessidade de um “determinado nível de
bem-estar material, de ócio” (LUKÁCS, 1970, p. 494) para que o equilíbrio, a harmonia,
a proporcionalidade apareçam como carência para os homens. Historicamente, tal
situação se torna possível a partir de um certo desenvolvimento da divisão do
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trabalho, o que não significa, segundo o escritor, que a
necessidade social da arte
esteja circunscrita a uma fase histórica particular, pois sua base “não é tal ou qual
formação social concreta [...], mas a essência do homem em sociedade” (LUKÁCS,
1970, p. 494-495).
Não obstante a universalidade da necessidade da arte, ela se apresenta sempre
em uma forma concreta, situada histórico-socialmente, pois “contém as determinações
básicas da relação entre homem e mundo, entre o sujeito humano e as forças que
decidem, segundo leis, seu destino, seu bem e sua dor” (LUKÁCS, 1970, p. 505) e
ainda porque “o estético se esforça sempre por despertar uma totalidade humana que
inclui o mundo sensível aparencial, que, portanto, o estético se orienta na mimese a
uma ampla e ordenada riqueza da realidade” (LUKÁCS, 1970, p. 503), realidade que
é sempre concreta.
Ao tratar do caminho do sujeito em direção ao espelhamento estético, Lukács
dedica um item específico para a questão da alienação (
Entäusserung
) e sua
reapropriação do sujeito. Ele considera a aplicação da categoria da alienação, nos
termos de Hegel, “a mais acertada descrição da relação sujeito-objeto” na esfera do
estético “ainda que o próprio Hegel parece não ter considerado sua aplicação” nesta
esfera. Inicia suas considerações a esse respeito partindo da relação sujeito-objeto no
campo do trabalho humano. Diz ele:
No trabalho a subjetividade e a objetividade têm que unir-se
inseparavelmente: a introdução da teleologia posta pelo sujeito depende
exclusivamente de que o ser-em-si do objeto do trabalho e da ferramenta
tenham sido refletidos corretamente. Por outra parte, sua objetividade
permanece praticamente morta, alheia ao homem, esterilizada, se não se
alimenta da subjetividade que se estranha de si mesma e volta a si desse
estranhamento. (LUKÁCS, 1970, p. 510)
Em sua perspectiva, a unidade de subjetividade e objetividade no trabalho
raramente se reflete desse modo na consciência. Nela, domina
[...] em geral o ser-em-si do objeto como entrega absoluta ao trabalho
objetivo ou de um modo corrente em níveis mais desenvolvidos, como um
estar perdido no mundo dos objetos ao qual o trabalhador se sente
condenado , ou impera uma imaginária onipotência da subjetividade que
e os fins (LUKÁCS, 1970, p. 510).
O autor afirma que não tratará nem de um nem de outro caso. Ele refere-se ao
primeiro caso como “estranhamento socialmente condicionado” e ao segundo como
“tendência mitologizadora” (LUKÁCS, 1970, p. 510).
Colocando a questão nesses termos, Lukács critica aquelas interpretações que
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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consideram o “estar perdido no mundo dos objetos” uma condição inerente a qualquer
forma de produção. Ele menciona que nas formas mais complexas, como mercadoria,
dinheiro, o estranhamento é ainda maior, pois “as relações entre os homens criadas
pela sua própria atividade aparecem na consciência cotidiana como coisas em relação
às quais o homem se comporta imediatamente como com a natureza que ele não
produziu” (LUKÁCS, 1970, p. 510). O estranhamento, portanto, estaria associado a
essa imersão em um mundo não criado pelo próprio homem, seja ele a natureza ou o
mundo dos objetos produzidos de forma alheia aos produtores. O mundo humano é
o mundo objetivo criado pelos homens por meio de seu metabolismo com a natureza.
Esta visão de Lukács está relacionada a outra na parte anterior do texto (referente à
primeira parte da estética na qual ele afirma que uma vez fixado o objeto do trabalho
é
tão em-si como os objetos naturais).
É assim que a abordagem de Marx nos
Manuscritos de 1844,
acerca da relação
entre subjetividade e objetividade no trabalho, é tão significativa para Lukács, porque
com ela
[...] termina de uma vez por todas o sonho do demiurgo. A ação inovadora
do trabalho não pode consistir na criação de uma objetividade a partir do
nada, de um caos não menos místico: a ação do trabalho é “só” mas esse
“só” abarca toda a história humana , a transformação, correspondente aos
fins humanos, das formas de objetividade presentes em si, mediante o
conhecimento finalístico e a aplicação das leis intrínsecas àquelas
objetividades (LUKÁCS, 1970, p. 511).
Nesse mundo produzido pela atividade dos homens é que se fundamenta, para
ele, a necessidade do estético, pois a vida se realiza em um mundo real e objetivo e
ao mesmo tempo “adequado às mais profundas exigências do ser-homem (do gênero
humano)” (LUKÁCS, 1970, p. 512-513). Em Lukács, o ato estético originário se efetua
na “entrega incondicional à realidade e no apaixonado desejo de transcendê-la”, sem,
no entanto, impor um
ideal
, e sim buscando
destacar traços da realidade que em si lhe são imanentes, mas nos quais se
faz visível a adequação da natureza ao homem e se superam a estranheza e
a indiferença em relação ao ser humano, sem afetar por isso a objetividade
natural e ainda menos querer aniquilá-la (LUKÁCS, 1970, p. 513).
Isso porque a necessidade em questão é justamente “a de uma objetividade
adequada ao homem” (LUKÁCS, 1970, p. 513).
A unidade entre objetividade e subjetividade no ato estético constitui, na
compreensão de Lukács, “um nível superior, mais espiritual e consciente do próprio
trabalho no qual a teleologia que transforma o objeto do trabalho é inseparável da
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captação dos segredos da matéria dada” (LUKÁCS, 1970, p. 513).
No entanto, adverte Lukács:
[...] enquanto no trabalho se trata de uma relação puramente prática entre o
sujeito e a realidade objetiva, razão pela qual a unidade do ato não é mais
que o princípio coordenador do processo de trabalho e por isso perde sua
significação ao consumar-se esse processo e não a consegue de novo senão
mais tarde, ao contrário, essa unidade adquire na arte uma objetivação
própria; tanto o próprio ato quanto a necessidade social que o suscita
tendem a essa captação, fixação, eternização da relação do homem com a
realidade, à criação de uma coisidade objetivada na qual se encarne a
unidade sensível e significativa, evocadora de dita impressão (LUKÁCS, 1970,
p. 513-514).
É compreensível que Lukács considere diferentemente a objetivação no trabalho
prático e aquela na obra de arte. Mas será que é o caso de considerar a última como
“um nível superior” em relação ao trabalho? A característica de comportar uma maior
espiritualidade é própria da obra de arte, pois sua intensificação recai sobre a
dimensão evocadora do humano resgatada no objeto. Assim, poder-se-ia dizer que,
no trabalho, a subjetividade se adapta ao objeto e, na arte, o objeto acomoda-se,
ajusta-se à subjetividade. Com isto, de fato, o ato estético torna-se mais espiritual”,
como afirma Lukács; todavia qual a referência de valor para que ele afirme que esse
ato compreende um “nível superior” do trabalho? Isso significa que ele é mais
humano porque seu maior compromisso é com a adequação espiritual? Então, as
características espirituais são mais humanas do que as corporais? É possível, nos
termos de Marx, fazer essa separação? É pertinente hierarquizar valorativamente as
formas de reflexo no trabalho e na arte? As perguntas obviamente implicam uma
posição frente a elas. Por ora, vejamos como Lukács desenvolve a questão. Ele declara
que essa
[...] contraditoriedade [entre objetividade e subjetividade], como motor da
posição estética (e da necessidade social que lhe vida) se apresenta sob
traço filosoficamente talvez mais essencial: a intensificação simultânea da
subjetividade e da objetividade acima do nível da cotidianidade (LUKÁCS,
1970, p. 514).
Será esse o motivo para que considere a arte “um nível superior”? Mas, não é
ele próprio quem admite que, no trabalho, uma elevação em relação à mera
cotidianidade? As objeções colocadas aqui não significam que não se compreende a
diferença entre as objetivações próprias do trabalho e aquelas do ato estético. Na
verdade, a hierarquização realizada por Lukács pode ser um indicativo para a
compreensão do uso que ele fará na
Ontologia
da categoria da alienação
[
Entäusserung
] entendida como momento subjetivo do ato laborativo, seja ele qual for
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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(na lida direta com o objeto ou naquela específica do trato da arte).
De todo modo, o ponto central para o autor, tanto no reflexo do trabalho quanto
no ato estético, é a crescente adequação da realidade ao homem. No primeiro caso,
essa adequação é objetiva, material; no segundo, é subjetiva, espiritual, ainda que
expressa também objetivamente, pois como sustenta o escritor:
[...] a adequação de que falamos não é mais que o manifestar-se do trabalho
que a humanidade realizou ao largo de toda sua história com a natureza,
com as inter-relações entre o homem e a natureza, com e no próprio homem:
o que antes, como expressa Marx, chamamos de metabolismo da sociedade
com a natureza. Esse metabolismo é antes de tudo um metabolismo material,
uma transformação da superfície terrestre de acordo com as necessidades
dos homens. (E é óbvio que nessa transformação as leis naturais consciente
ou inconscientemente são utilizadas, não se superam ou aniquilam, como
tampouco se destroem no trabalho individual). O alcance desse metabolismo
é, entretanto, muito maior que o da penetração e a transformação materiais
da natureza concreta pelo trabalho e o esforço da sociedade, pois, esse
processo produziu o homem e, ademais, transforma-o constantemente, o
enriquece, eleva e aprofunda. Também esta transformação é uma alteração
da realidade, interna e externamente (LUKÁCS, 1970, p. 515).
Lukács refere-se, portanto, à transformação real da materialidade em torno do
homem, das relações entre os homens, do metabolismo dos homens com a natureza
e daquela de cada ser humano individual no seu contato com o mundo. Atesta ainda
que essa
[...] adequação [resultado do intercâmbio entre sociedade e natureza] em que
pensamos é cismundana, imanente e isso em dois sentidos: em
primeiro
lugar
, o movimento que nasce com ela e que produz alterações radicais não
pode desenvolver-se senão dentro do marco de cumprimento definido pelas
leis naturais; em
segundo lugar
, todas as finalidades postas pelo homem com
consciência verdadeira ou falsa estão também determinadas pelas leis
objetivas do desenvolvimento social (LUKÁCS, 1970, p. 515, grifo nosso).
O autor volta a mencionar que, no caso da atividade estética, é válida a premissa:
não objeto sem sujeito, porquanto o objeto existe enquanto objeto estético para
um sujeito e não em si, que sua essência é “evocar certas vivências no sujeito
receptor por meio da mimese, que é uma forma específica de reflexo da realidade
objetiva” (LUKÁCS, 1970, p. 517). A recepção do objeto artístico significa uma forma
de apropriação sensível que envolve inteiramente (para usar a expressão de Lukács) o
sujeito receptor, diferentemente dos objetos que não têm a função de
evocar vivências
,
como a obra de arte, mas tem outras atribuições na vida social. Isto significa que
aquela atitude da ciência, e do reflexo desantropomorfizador, de dessubjetivação para
o efetivo conhecimento do objeto que é exterior ao sujeito e tem características
próprias, não é válida para a obra de arte, pois esta necessita, para ser conhecida, da
aproximação subjetiva do sujeito e não de seu distanciamento. Então, o alienar-se e o
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retroagir da alienação no sujeito são válidos tanto para o artista como para o
apreciador das obras de arte. Para o artista, os dois momentos são necessários para
a reconfiguração da realidade, para o receptor são eles que possibilitam a efetiva
apropriação do objeto estético. Isso não significa que uma identidade entre a
subjetividade posta pelo artista, na elaboração da obra de arte, e a do receptor em
sua apreensão. A intensificação subjetiva no objeto realizada pelo artista pode evocar
aspectos da subjetividade do receptor que não eram possíveis a ele prever e que não
estavam presentes na elaboração da obra.
Na forma como Lukács compreende a alienação e a retroação, elas se constituem
enquanto momentos entrelaçados, diferentemente de como aparecem na
Fenomenologia
de Hegel como “dois atos claramente separados que se completam
precisamente em sua contraposição”, mas o autor húngaro mantém “a contraposição
[entendida a partir do entrelaçamento de ambas] de suas respectivas orientações” na
sua definição desse ato (duplo e unitário): alienação significa
caminho do sujeito
ao
mundo objetivo, às vezes até perder-se nele; a retroação ou reabsorção desta
alienação significa, ao contrário, que toda objetividade
assim nascida é totalmente
copenetrada da particular qualidade do sujeito
” (LUKÁCS, 1970, p. 522, grifo nosso).
Então, será que podemos dizer que na obra de arte a subjetividade do artista e a do
receptor estão presentes? No artista, a alienação realiza o mergulho no mundo
objetivo para destacar o aspecto da realidade a ser reconfigurado esteticamente,
enquanto a retroação é a própria reconfiguração ou a objetivação da obra de arte. No
receptor, a alienação é o mergulho na própria obra e a retroação é a mudança efetivada
na subjetividade (que pode ter implicações efetivas em sua vida) dele próprio por meio
da recepção.
Assim constituído o espelhamento na arte, manifesta-se ao mesmo tempo sua
forma imediata e, nela mesma, sua essência. A relação essência e aparência, portanto,
aparece de forma distinta daquela dos demais objetos em-si, já que a aparência é ela
própria seu desvelamento, ou nas palavras de Lukács:
A fecunda contraditoriedade do reflexo estético consiste em que, por um
lado, se esforça por captar todo objeto e, antes de tudo, a totalidade dos
objetos, sempre em conexão inseparável, ainda que não explícita e
diretamente dita, com a subjetividade humana de um sujeito [...] e, por
outra parte, fixa e sentido ao mundo dos objetos não só em sua essência,
senão também em sua forma de manifestação imediata: a dialética da
aparência e da essência se impõe em sua legalidade geral e, ademais, em sua
imediatez, tal como se apresenta ao homem na vida (LUKÁCS, 1970, p. 523).
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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A dialética entre essência e aparência, na forma estética, expressa a
simultaneidade dos atos de alienação e sua retroação nessa esfera específica do
espelhamento humano. É o que se depreende de:
Na esfera estética, a alienação e sua retroação estão estreitamente unidas: a
subjetividade se supera na alienação e a objetividade na retroação, de tal
modo que o momento da preservação e elevação a um vel superior adquire
certa preponderância no ato complexo da superação. Do efeito coincidente
dos dois movimentos resulta, pois, algo unitário: um mundo objetivo
conformado, como reflexo da realidade, o qual sublinha em sua intenção a
objetividade desta ainda mais energicamente do que ela se impõe nas
impressões e vivências da cotidianidade; pois o que se apresenta sempre ao
espectador ou ao leitor é um grupo de objetos relativamente pequeno, e essa
secção, esse fragmento, tem que evocar nele a realidade como um mundo
objetivo e fechado ou completo, e isso em circunstâncias que parecem ser
para ele efeito da objetividade mais desfavoráveis que as da cotidianidade
porque lhes falta necessariamente a força de convicção do meramente fático,
do
factum brutum
, posto que estão inevitavelmente postas como meros
reflexos, como formações miméticas que não podem conquistar uma
objetividade senão por seu conteúdo e por sua forma (LUKÁCS, 1970, p.
523-524).
O objeto conformado esteticamente, logo, é o que é não por sua materialidade
(ao contrário dos objetos em-si), mas pelo conteúdo que não está somente nele
mesmo, mas na sua relação com a subjetividade do artista e a do receptor que lhe dão
forma. Isso significa que:
A entrega do sujeito à realidade na alienação, sua imersão nela, produz desse
modo uma objetividade internamente intensificada. Mas esta e tal é o
sentido da retroação no sujeito está penetrada de subjetividade por todos
seus poros, e precisamente de uma subjetividade concreta e determinada. Na
obra mimética genuína esta subjetividade não é um acréscimo, um
comentário, nenhuma espécie de aura que circunda os objetos, mas é ao
contrário um momento constitutivo, uma parte integrante da sua própria
objetividade, é um elemento necessário, também a própria base de sua
existência determinada. (LUKÁCS, 1970, p. 524)
Alienação e retroação realizam o trânsito, a troca efetiva entre dois complexos
de realidade aparentemente exteriores um ao outro. O mundo objetivo das coisas e o
subjetivo e exclusivamente humano de sensações, desejos, sentimentos, ideais. Por
isso mesmo, na obra de arte, sempre se expressa a posição do artista frente ao mundo
que ele conforma. E não poderia ser de outro modo, que essa conformação é
subjetiva, a obra expressa algo que o artista quer dizer sobre o complexo de realidade
que ele elaborou artisticamente. A própria definição do objeto a ser configurado é
uma tomada de posição, mas esta, como mostra Lukács, não subjetiviza a obra:
É um preconceito moderno a suposição de que essa onipresença da tomada
de posição, da particularidade, subjetiviza as obras de arte. O caminho, que
passa pela alienação e leva à retroação desta, é o oposto estrito do
subjetivismo. se produz subjetivismo quando o sujeito é incapaz de, ou
se nega a, empreender o rodeio até si mesmo que passa pela alienação, pelo
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perder-se no mundo dos objetos, pela entrega incondicional ao mesmo.
(LUKÁCS, 1970, pp. 527-528)
O chegar a si mesmo pela alienação significa que a subjetividade do sujeito da
arte é assumidamente constituída no contato com o mundo social e humano dos
objetos e o a partir de si mesmo isoladamente. O autor húngaro identifica, no
próprio Hegel, a denúncia do risco dessa deformação da subjetividade que pretende
constituir o mundo a partir de si própria:
Hegel que, como sabemos, aplicou a perspectiva do problema da alienação
e de sua retroação antes de tudo à vida social e ao conhecimento adquirido
e desenvolvido no curso da evolução da humanidade, analisa várias vezes as
deformações que produz a subjetividade que quer confiar integral e
exclusivamente em si mesma, que crê poder renunciar à necessidade daquela
entrega receptiva ao mundo externo, ao mundo dos objetos. (LUKÁCS, 1970,
p. 528)
É essa entrega que marca, no entender de Lukács, a diferença entre a
subjetividade na estética e na vida cotidiana, pois esta referencia-se na imediatez do
mundo sensível, enquanto a primeira se diferencia dela cada vez mais qualitativamente
“ainda que sem suprimir a vinculação à personalidade, ao caráter subjetivo da
subjetividade; mais ainda: a orientação do movimento diferenciador é contrária a essa
eliminação, é um reforço, uma intensificação da subjetividade originariamente dada”
(LUKÁCS, 1970, p. 530).
Após acompanhar a análise de Lukács da relação objetividade/subjetividade na
arte, vejamos alguns pontos para o aprofundamento da interlocução com o autor
húngaro especialmente quanto às suas considerações sobre a “dupla base” na
constituição do ser social.
Reflexões sobre a “dupla base”
As afirmações acerca da dupla base” da entificação humana aparecem
especialmente na
Ontologia
, escrita e publicada após
Estética
. Ainda na primeira parte
da
Ontologia,
Lukács afirma que no
momento em que Marx faz da produção e da reprodução da vida humana o
problema central, surge tanto no próprio homem como em todos os seus
objetos, relações, vínculos etc. a
dupla determinação
de uma insuperável
base natural e de uma ininterrupta transformação social dessa base (LUKÁCS,
2012, p. 285, grifo nosso).
Certamente, o objetivo do autor é se distanciar de sua própria posição na
juventude, desenvolvida em
História e consciência de classe
, e não cair na armadilha
idealista de separar absolutamente natureza e sociedade, desconsiderando os
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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problemas relativos ao metabolismo entre essas duas esferas do ser na constituição
da sociabilidade. Ao colocar a questão nesses termos, Lukács aponta para uma
formação dúplice da sociabilidade humana que tende, ironicamente, a recolocar a
discussão idealista (retomaremos esta
ironia
adiante).
No capítulo sobre Marx da
Ontologia
, Lukács afirma que
a orientação de fundo no aperfeiçoamento do ser social consiste
precisamente em substituir determinações naturais puras por formas
ontológicas
mistas
, pertencentes à naturalidade e à sociabilidade [...],
explicitando ulteriormente - a partir dessa base as determinações
puramente sociais (LUKÁCS, 2012, p. 289, grifo nosso).
A indagação que pode ser colocada nesse preciso momento diz respeito à
validade em utilizar a expressão
determinações naturais puras
que justificaria a
identificação de
formas ontológicas mistas
ou
orientação exclusiva da natureza
quando, de fato, o que está em questão é o metabolismo entre sociedade e natureza.
No capítulo da reprodução, a abordagem da dupla base reaparece com grande ênfase,
mas, ao mesmo tempo, é perceptível também certa tensão nas tentativas exaustivas
de explicar o problema sob nova perspectiva. Mas, voltemos à
Estética
, na qual, como
vimos, a questão já se apresenta, ainda que não seja explicitada.
Quando Lukács afirma, em
Estética,
que as interações entre objetividade e
subjetividade pertencem à essência objetiva das obras de arte” (LUKÁCS, 1970, p.
190), tem por objetivo justificar sua compreensão de que, no caso da obra de arte, é
válida a máxima: “não pode existir objeto algum sem sujeito” (LUKÁCS, 1970, p. 190).
Uma questão se coloca aqui: é possível afirmar sobre os demais objetos da atividade
humana que eles podem existir sem sujeito? Somente para os objetos da natureza a
realidade em-si é de todo independente do sujeito e mesmo assim eles se
reconfiguram na relação com os homens. Não no trabalho que faz de uma árvore
uma mesa, mas na mais simples opção de plantar ou cortar uma árvore. A árvore ou a
mesa são igualmente em-si independentes do sujeito, tornam-se efetivamente objetos
autônomos (como expõe Marx, no livro I de
O capital,
tratando do processo de
produção). Por outro lado, para que a mesa tenha efetivamente uma existência de
mesa, os homens reais devem sentar à sua volta ou utilizá-la como tal em outras
situações, além, claro, de produzi-la. Tanto os objetos naturais quanto aqueles
produzidos pelo homem (artísticos ou não) são efetivamente independentes dos
homens, mas, em sua configuração real, os produtos humanos são também
“subjetividade objetivada ou, o que no mesmo, [...] objetividade subjetivada” para
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usar a expressão de Chasin (2009, p. 98).
Em suma, ao identificar somente nos objetos da arte a interação entre
objetividade e subjetividade como essência, Lukács justifica sua compreensão de que
os produtos humanos não artísticos são “tão em-si como os objetos da natureza”
(LUKÁCS, 1970, p. 190), uma vez que eles são fixados materialmente como algo
independente dos homens e a ênfase desta
fixação
recai sobre a objetividade.
A ironia mencionada acima refere-se ao fato de Lukács recolocar uma distância
tal entre objetividade e subjetividade que o trânsito entre uma esfera e outra sempre
apareça sob a rubrica de uma dupla determinação natural e social. O que significaria
que o físico (a objetividade), para Lukács, corresponderia ao natural e o espiritual (a
subjetividade), ao social, duas esferas separadas que se relacionam externamente. Só
assim a constituição humana continuaria sempre a aparecer como social de um lado e
natural de outro. Como se o físico fosse um fardo de naturalidade que o homem tivesse
que carregar por toda a eternidade, sem nunca romper com ele. É evidente que Lukács
não concluiu explicitamente que o homem é de um lado espírito e de outro, matéria.
Pelo contrário. Explicitamente ele diz exatamente o oposto. Os argumentos construídos
aqui dizem respeito às consequências da frequente identificação da base biológica
como dado ineliminável concorrendo sempre com a esfera social.
Chasin questiona a posição de Lukács exatamente neste ponto, porque, para ele,
a “legalidade natural vai sucumbindo na ruptura e progressivamente à legalidade
social” de tal modo que “em sua efetividade no ser social a legalidade natural não
mais atua por si, é dependente do ser social, não é mais a legalidade de um ser, pois
não mais um ser natural, mas um atributo natural dependente da essência social”
(CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXV). Por isso, para Chasin, as esferas de ser
precedentes (inorgânica e orgânica) não são
codeterminantes
, pelo contrário, são
subordinadas à nova formação.
As observações de Chasin, que caracterizam o natural como predicado, podem
direcionar a discussão por um caminho aberto pelo próprio Lukács. Isso significa que
a natureza obviamente participa da
autoformação
do humano, pois ela “inclui a própria
dação de forma e resolução ao predicado natural ou biológico: dação de forma que
em suma é dação de forma social ao predicado biológico” (CHASIN
apud
VAISMAN,
2001, p. XXV). A expressão
dação de forma,
como mencionado anteriormente, foi
utilizada por Lukács para tratar do produto da arte, mas nas considerações de Chasin
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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ela ganha outra dimensão, visto caracterizar a transformação humano-social que não
é meramente material já que “todo ente que muda de lugar muda de natureza, sem
alterar uma célula de sua composição material” (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p.
XXV).
Em
Prolegômenos
(2010), Lukács chega a afirmar que a existência biológica é
superada, mas clama sempre pela impossibilidade de ruptura com a natureza,
recolocando com grande insistência a esfera biológica como base. Os questionamentos
de Chasin incidem diretamente sobre esse ponto, porque para ele a base é sempre
[...] a sociabilidade, enquanto a naturalidade é apenas o insuprimível
predicado biológico, que passa a viger na forma e sob a regência da
sociabilidade. Não perde, por isso, uma célula de sua composição orgânica,
mas na sua efetividade muda de caráter. No interior da esfera societária, o
predicado biológico é um outro de si. Se originariamente foi o ponto de
partida, agora é produzido e reproduzido pela legalidade de um ser que o
ultrapassa e o domina, vive e pode viver na subjugação de um novo
estatuto. Ou seja, ao integrar como predicado o ser de nível mais elevado
realiza a sua máxima potência e isso é, ao mesmo tempo, sua
desnaturalização ou perecimento. Imperecível como predicado, o é base,
pois determina só por seus limites, pelas carências, não pelas determinações
resolutivas, nem mesmo em suas forças e sentidos, pois enquanto
virtualidades estas são humanas e superiores em resolução societária.
Ademais não é nunca um criador de novas necessidades, o que caracteriza a
legalidade social (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXVI).
Como já tivemos a oportunidade de mostrar em outro momento (COSTA, 1999),
as palavras de Chasin encontram ressonância na análise de Marx presente desde os
Manuscritos de 1844
até os chamados textos de maturidade. Trata-se, dessa maneira,
de uma ruptura de outra ordem, não simplesmente física ou material, enquanto forma
de ser a própria natureza se torna objetividade social.
Os indicativos de Chasin, além de formular o problema em novos termos,
esclarece a tendência aberta por Lukács ao colocar a questão a partir da
dupla base
,
que é, de acordo com sua argumentação, a de
[...] procurar deduzir, em graus diferentes em cada caso, o ser social do
natural, esquecendo que se trata da emergência do novo, de uma
configuração ontológica nova, e que o novo nunca é um simples
desdobramento do estágio anterior, no caso - do grau de ser antecedente,
ou seja, que entre os dois níveis ocorre o que se chama salto, um intervalo
em que a potência causal do antecedente não contém a capacidade, a
potência, ou a potencialidade para gerar o novo. Um intervalo que fica, assim,
indeterminado (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXIII-XXIV).
Será que se pode dizer que Lukács não estava atento a essa
novidade
? Claro
que não! Tanto é assim que a solução para a dificuldade es também em suas
formulações. Ou seja, a compreensão do surgimento do ser social a partir de um salto
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que inaugura uma nova forma de ser foi desenvolvida pelo próprio Lukács. No entanto,
perguntamos: por que ele retorna com tanta insistência ao que ele chamou de
base
biológica
? Talvez a resposta esteja em sua trajetória e nos diálogos que ele
estabeleceu com a tradição filosófica. De todo modo, qualquer tentativa de resposta
levaria à mera especulação, por isso registramos aqui apenas algumas possibilidades
colocadas por Chasin para o aprofundamento de nossa interlocução com Lukács que
apontam para as conquistas do próprio autor húngaro com relação ao marxismo do
século XX.
Chasin, ao colocar o problema em termos de
dação de forma
, explica que, mesmo
que o fator natural não seja jamais suprimido (como afirma Lukács diversas vezes), é
suprimida
[...] sua capacidade de autodeterminação, resta, portanto, simplesmente, o
que não é pouco, como um predicado do ser humano, um predicado
insuprimível, mas apenas como predicado biológico de um ser de outra
natureza e essência. A naturalidade é retida como predicado imprescindível,
mas não como essência. Donde, o são mais duas legalidades ontológicas
que coexistem, mas a legalidade superior, mais complexa, subsume a
legalidade natural, que não mais se autodetermina, mas é resolvida pela e do
interior da outra. Assim, o predicado natural do homem recebe forma e
resolução sociais, ou seja, o predicado natural é subsumido à legalidade
social (CHASIN
apud
VAISMAN, 2001, p. XXV).
A nova forma de colocar o problema percorre, na verdade, um caminho que foi
aberto pelo próprio Lukács em vários momentos. É como se sua antiga filiação e
posterior crítica às ciências do espírito o levassem a suspeitar do risco de se desprezar
a presença da natureza na constituição do mundo humano (o que, na realidade, não é
o caso, como vimos nas afirmações de Chasin). Provavelmente, o que permite a Chasin
levantar tais questionamentos, quase trinta anos depois da redação de
Prolegômenos,
é sua distância em relação à polêmica que pesou sobre o solitário autor de
Ontologia
do ser social
e o colocou na difícil e peculiar situação de lutar contra suas próprias
posições do passado
3
.
3
Celso Frederico cita o seguinte trecho de uma carta de Lukács de 10 out. 1959 endereçada a Lucien
Goldman que insistia em “valorizar as obras juvenis de Lukács (inclusive as não marxistas), em
detrimento de sua produção madura: ‘Se eu tivesse morrido por volta de 1924 e minha alma perene
olhasse sua atividade literária do além, ela ficaria plena de um verdadeiro reconhecimento de você se
ocupar tão intensamente de minhas obras de juventude. Mas como eu não estou morto e como durante
trinta e quatro anos eu criei o que se pode chamar apropriadamente a obra de minha vida e como, para
você, essa obra simplesmente não existe, é difícil para mim, enquanto ser vivo, cujos interesses estão
claramente dirigidos para a própria atividade presente, tomar posição sobre suas considerações’”
(FREDERICO, 2000, p. 299).
A relação entre objetividade e subjetividade no ato estético
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