Em prol de uma boa causa: a correspondência entre György Lukács e Günther Anders
Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 310-316 - mar. 2022 | 313
Um segundo eixo, que anima a comunicação entre os filósofos nos anos de 1967
e 1968, diz respeito à confluência de seus trabalhos em tomar a vida cotidiana como
ponto de partida e de chegada da reflexão filosófica e da investigação da realidade,
coisa até então – quem aponta é Lukács, ao que talvez nos seja permitido acrescentar,
ainda hoje
– largamente negligenciada pela filosofia, sociologia etc., além de
menosprezada por parte substantiva da literatura contemporânea, que sucumbindo à
estética naturalista recai em figurações fetichizadas do mundo.
Novamente, a troca de cartas é iniciada por uma publicação de Anders remetida
a Lukács, desta vez o livro
Die Schrift an der Wand
, um diário filosófico mantido ao
longo de mais de duas décadas de trabalho. À leitura das entradas do diário de Anders,
Lukács declarou ao amigo ser “da opinião de que o abordado aí pertence às questões
mais importantes do conhecimento da realidade social: a saber, a investigação exata
do que eu chamaria de ontologia da vida cotidiana”, algo de que se ocupava
pessoalmente no momento, enquanto redigia
Para uma ontologia do ser social
.
A partir da afinidade neste tópico da ontologia da vida cotidiana, que não deixa
de remeter ao acordo prévio dos dois quanto ao problema do estranhamento, Lukács
e Anders engatam uma discussão acerca das noções de otimismo e pessimismo que
deixa transparecer, com grande vivacidade, o fundamento ético de sua relação pessoal,
uma amizade que, infelizmente, pela força das circunstâncias, não pôde alcançar a
“realidade mais densa” do convívio presencial que Anders almejara com uma viagem,
nunca realizada, a Budapeste. Apesar de seu contundente ceticismo, que a princípio o
distanciaria de Lukács, Anders costumava repetir: “Se eu estou desesperado, o que
posso fazer?”. No lema, ecoa a célebre frase de Philine, personagem de
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
, tantas vezes relembrada pelo crítico húngaro como
expressão de um comportamento ético. Ao ser interpelada pelo protagonista do
romance de Goethe, receoso por não ser capaz de retribuir os generosos cuidados
que lhe dedicava, a jovem responde, sem titubear,
se eu te quero bem, o que podes
fazer?
No tópico “A base objetiva do estranhamento e da sua superação”, parte final do
último capítulo do segundo tomo de
Para uma ontologia do ser social
, Lukács chegaria
a registrar em nota de rodapé a postura exemplar de Anders, que, ao tomar como
ponto de partida a rejeição contra a bomba atômica, recusava esboçar uma imagem
de mundo
a priori
desesperançosa de qualquer sublevação contra os novos