Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda - mar. 2022
Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe
Carolina Peters*
LUKÁCS, György.
Goethe e seu tempo.
Tradução de Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi
Fortes; revisão da tradução de José Paulo Netto e Ronaldo Vielmi Fortes;
apresentação de Miguel Vedda. São Paulo: Boitempo, 2021, 224p.
“Goethe tem um efeito suavizador sobre
mim um ‘Olímpico’ genuíno. Sinto tanta
afinidade com seu
Weltanschauung.
Infelizmente não possuo a laboriosidade férrea
de Goethe (para não falar em seu nio). A
amplitude de interesses espirituais que este
homem tem! É inacreditável”, confessou Rosa
Luxemburgo (1983, p. 161) ao amado Leo
Jogiches, em outubro de 1905. Alguns anos
antes, como presente de aniversário, ela
recebera do jornalista socialdemocrata Bruno
Schönlank e de sua esposa uma luxuosa edição
em 14 volumes da obra goetheana, e, na
ocasião, lia sua tradução da autobiografia do
escultor renascentista Benvenuto Cellini.
Rosa Luxemburgo não foi de modo algum a
primeira nem a última revolucionária
impressionada pelo grande escritor alemão, sua
obra literária e sua visão de mundo. Basta
recordar que foi a partir do
Fausto
(e do
Timão
de Atenas
, de Shakespeare), não dos
economistas políticos, que Marx iniciou sua
apreensão da universalidade do dinheiro, cuja
quantidade possuída prevalece mesmo sobre as
eventuais qualidades inerentes ao indivíduo,
sobre a individualidade, portanto. “A
universalidade de seu
atributo
é a onipotência
de seu ser; ele vale, por isso, como ser
onipotente” (MARX, 2010, p. 157), escreve em
seus manuscritos parisienses, logo antes de
citar uma fala de Mefistófeles. Desde as
primeiras investigações acerca da economia
clássica inglesa até sua grande crítica da
economia política, exposta em
O capital
, esse
personagem o acompanha no desvelamento
das fantasmagorias modernas. A literatura
1
* Mestranda em Filosofia pela UFMG, graduada em Letras pela UFRJ. E-mail:
carolinapeters50@gmail.com.
1
Verdade seja dita, os ensaios aqui reunidos o são integralmente inéditos em português. Já no início
da década de 1990, a (infelizmente agora extinta) Editora Ensaio publicara como paratexto à sua
tradução de
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister
, assinada por Nicolino Simone Neto,
o texto
de Lukács sobre romance. Ambos, romance e ensaio, foram republicados, em 2006, pela Editora 34.
realista de Goethe (e, convém adendar, do
aludido Bardo, de Balzac etc.) o se presta,
nos escritos marxianos, à mera ilustração
exemplificadora dos fenômenos cientificamente
apreendidos, mas oferece um modo próprio de
conhecimento da realidade conhecimento dos
homens e mulheres de carne e osso em suas
relações sociais reais.
György Lukács, talvez mais do que qualquer
outro, soube reconhecer não apenas na
literatura, como em toda grande arte, essa lição
de coisas, e encontrou na vasta produção
artística, bem como na teoria estética de Johann
Wolfgang von Goethe um campo fecundo onde
cultivar a sua própria filosofia da arte, enraizada
no pensamento de Marx. Não é possível ignorar
que o autor assume um papel de destaque no
ambicioso projeto lukácsiano de redigir uma
estética
em três tomos (dos quais, como se
sabe, apenas o primeiro veio a lume), a tal
ponto que a ele é concedida a palavra final.
Contudo, para além das recorrentes menções a
Goethe, feitas em
A peculiaridade do estético
,
de 1963, convém destacar também sua
presença nos bastidores, por assim dizer, desse
empenho monumental. Referimo-nos aos tantos
ensaios de crítica literária dedicados por Lukács
ao autor alemão, e que vistos em retrospecto
ajudam a dar corpo às generalizações e
categorias que por vezes podem soar
demasiadamente abstratas aos leitores da obra.
Parte desses escritos chega finalmente ao
público de língua portuguesa com a publicação
de
Goethe e seu tempo
, pela editora Boitempo.
1
Lançado em agosto de 2021, este é o décimo
volume a integrar a Biblioteca Lukács, coleção
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.656
Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe
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coordenada por José Paulo Netto e Ronaldo
Vielmi Fortes, responsáveis também pela
revisão técnica da tradução realizada por Nélio
Schneider, com a colaboração do próprio
Fortes. A edição brasileira conta ainda com uma
excelente e generosa apresentação de Miguel
Vedda, que situa, no itinerário intelectual do
autor marxista, um “caminho para Goethe”,
sustentando que “as análises lukácsianas, nesta
e em outras ocasiões, o mais incisivas e
provocativas quanto mais consequente é sua
perspectiva historicista e quanto menos o
orientadas para a busca de princípios
universais” (VEDDA, 2021, p. 17), um
parâmetro cuja validade, por assim dizer, o
próprio filósofo húngaro soube reconhecer em
diversos momentos, como em sua crítica a
Schiller, ou mesmo em seus apontamentos a
respeito de Hegel.
Nesse sentido, o presente volume de
ensaios lukácsianos pode ser considerado
exemplar, uma vez que, aqui, a relação entre a
arte e seu presente histórico, almejada desde o
próprio título do livro, é estabelecida a partir da
análise imanente dos textos literários (e
filosóficos, no caso dos escritos estéticos de
Friedrich Schiller e das teorizações contidas na
correspondência deste com Goethe), tomados
em sua singularidade.
Escritos entre 1934 e 1936, mas publicados
em livro somente em 1947, os cinco ensaios
que compõem a coletânea ocupam-se de dois
dos principais romances goetheanos,
Os
sofrimentos do jovem Werther
e
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
; percorrem a
correspondência entre Goethe e Schiller;
estudam a teoria da literatura moderna
desenvolvida por este último; além de
oferecerem uma bela análise do romance lírico
de Friedrich Hölderlin,
Hipérion ou o eremita da
Grécia
. Para os estudiosos dos escritos
estéticos lukácsianos e entusiastas da literatura
alemã, ressalte-se uma feliz coincidência: todas
as obras em foco contam com traduções para o
português, brasileiras ou lusitanas, ainda que,
no caso das cartas trocadas entre Goethe e
Schiller, tenham sido editadas apenas
parcialmente em nosso país.
Nem a escolha dos objetos, nem a
organização do volume (cujo sumário não
reproduz a sequência cronológica de escrita
dos textos, mas certa progressão temática dos
problemas) são arbitrários, e revelam algo das
preocupações teóricas e dos procedimentos
críticos do autor. Ele mesmo explicita, em boa
medida, algumas dessas questões no prefácio,
assinado em 1947, ou seja, pouco mais de uma
década depois da redação dos últimos ensaios
ali coligidos e, para alguns contemporâneos
seus, um momento completamente outro
vejamos se também para o húngaro.
Nesse prefácio, Lukács apresenta a seguinte
tese, que serviu de motor para a escrita dos
ensaios e sua posterior edição em livro: [...] o
desenvolvimento cultural alemão foi resultante
de um embate entre progresso e reação; e, na
medida em que, na Alemanha, as tendências
reacionárias se tornaram preponderantes no
campo da cultura, o acerto de contas ideológico
tem de começar por elas (LUKÁCS, 2021, p.
35). Diante da ascensão do nazifascismo na
década de 1930, quando esses textos foram
originalmente concebidos, a afirmação quase
poderia ser tomada como evidente; o próprio
filósofo húngaro envidou grandes esforços
intelectuais nessa tarefa, não se debruçando
apenas sobre problemas de história e teoria da
literatura, como é o caso, aqui, do “resgate” de
Goethe do none nazista, ou da contestação
da apropriação de lderlin pelo subjetivismo
decadentista reacionário, mas se dedicou
igualmente a perscrutar a tradição filosófica
alemã. É deste período que datam os primeiros
estudos acerca da filosofia irracionalista,
versões do que viria a ser publicado, anos mais
tarde, em 1954, como
A destruição da razão
. A
segunda dessas versões foi sugestivamente
intitulada pela seguinte pergunta:
Como a
Alemanha se tornou o centro da ideologia
reacionária?
Com a vitória dos Aliados na
Segunda Guerra Mundial, entretanto, não
estaria a fatura liquidada?
Lukács foi um daqueles (poucos, deve-se
sublinhar) a responder resolutamente que não;
e a denúncia enérgica de que, apesar da
inegável derrota militar, a ameaça fascista
permanecia à espreita justificou a edição e
publicação sem alterações de conteúdo,
passados onze anos e uma guerra desde o
derradeiro ponto final dos cinco ensaios
reunidos sob o título
Goethe e seu tempo
, em
fins da década de 1940. Restava ainda por
travar, pois, uma batalha ideológica contra as
reminiscentes tendências reacionárias, batalha
que se dava em duas frentes: em um flanco, a
dissolução de mitos (muitas vezes acreditados
entre os próprios militantes antifascistas), como
aquele que erigia uma Muralha da China entre
o Classicismo alemão e a filosofia iluminista
(uma “lenda literária viva ainda hoje, como
lembra Vedda em sua apresentação ao volume,
vitalidade que, certamente, muitos estudiosos
da literatura poderão também atestar por
experiência própria); no outro flanco, a
reivindicação de uma tradição cultural alemã
genuinamente progressista, datada do período
da Revolução Francesa, que teria em Goethe um
dos seus principais expoentes.
Ambos os aspectos estão expressos no
primeiro ensaio, dedicado a
Os sofrimentos do
jovem Werther
, em que é proposta uma leitura
inteiramente nova, para a época, do romance
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epistolar do jovem Goethe e, por extensão, de
todo o movimento do
Sturm und Drang
.
Até então, desde o clássico livro da madame
de Staël sobre a Alemanha, difundira-se entre
os historiadores burgueses da literatura uma
versão segundo a qual o “Tempestade e
ímpeto” encontrava-se em oposição frontal à
Aufklärung
, estratégia que visava “rebaixar o
Iluminismo em favor das tendências
reacionárias posteriores do Romantismo”
(LUKÁCS, 2021, p. 44). O jovem Goethe e,
particularmente, seu
Werther
, tornavam-se
assim precursores da estética e, mais
importante, da
Weltanschauung
românticas. Na
contramão dessa corrente, que, alerta ele,
reverberou inclusive no interior da sociologia
vulgar pseudomarxista”, o marxista húngaro
busca demonstrar como a obra em questão, que
após a publicação original, em 1774, obteve
rapidamente enorme repercussão por toda a
Europa, representou em verdade um marco
indiscutível do papel intelectual proeminente
exercido pelo Iluminismo alemão.
Seu argumento realiza dois movimentos:
Primeiramente, Lukács toma certa distância e
enxerga o romance em um cenário mais amplo
da historiografia literária, colocando-o lado a
lado com suas “fontes”, para apontar quão
inconsistente é a caracterização do jovem
Goethe como um protorromântico. Em seguida,
ele então se reaproxima do texto goetheano, a
fim de analisar em minúcia sua economia
interna, reconhecendo aí, na forma literária, um
conteúdo social próprio. Acompanhemos esses
passos um pouco mais de perto.
Incapazes de dissociar o
Werther
de seus
precursores evidentes a prosa literária de
Richardson, um típico iluminista burguês, e,
sobretudo, a de Rousseau , cumpriu aos
fabuladores dessa lenda literária (aos melhores
entre eles, pelo menos) transformar também
este último em ancestral do reacionarismo
romântico. A acusação que seus detratores
faziam pesar sobre Iluminismo, e que permitia
afastar o autor do
Emílio
da filosofia das luzes,
é bastante simplória: enquanto os iluministas
advogavam a valorização irrestrita do intelecto,
a literatura rousseauniana debruçava-se sobre a
vida sentimental humana. Assim, a produção
literária do
Sturm und Drang
, acompanhando a
senda aberta pioneiramente por Rousseau,
precederia o romantismo ao representar
justamente a revolta do sentimento, do caráter
e do impulso contra o famigerado racionalismo
iluminista.
A questão que interessa a Lukács no ensaio
não é tanto constatar a abstração pobre e
vazia” (LUKÁCS, 2021, p. 45) a que foi reduzido
e pensamento iluminista, mas, antes, interrogar
acerca do conteúdo ideológico e da função
social dessa falsificação. Qual o propósito de
uma tal caricatura, que releva as contradições
reais e as disputas existentes no interior mesmo
do Iluminismo?
Definido em oposição excludente a toda
sensibilidade, o “intelecto” forjado pela
reprimenda romântica é destituído de sua
verdadeira essência, qual seja, “uma crítica
implacável da religião, da filosofia
teologicamente contaminada, das instituições
do absolutismo feudal, dos mandamentos
religiosos da moral etc.” (LUKÁCS, 2021, p. 45),
crítica que outrora insuflou uma burguesia
ainda revolucionária, mas que no período de
sua decadência ideológica torna-se para ela
insuportável. Além disso, ao assumir como
ponto de partida uma falsa contradição entre
qualidades abstratamente tomadas (intelecto
versus
impulso), a posição dos românticos e
seus partidários encobertava as verdadeiras
contradições, decorrentes da gênese e
desenvolvimento do próprio capitalismo, que
opuseram por vezes Rousseau a outros
iluministas, como Voltaire ou Lessing, e
suscitaram a “novidade” em sua ficção um
plebeísmo por vezes obscuro e com alguns
traços reacionários, certamente, mas que acima
de tudo representou uma “elaboração
dialética”, embora ainda “incipiente das
contradições da sociedade burguesa” (LUKÁCS,
2021, p. 47) após o triunfo de sua revolução.
É nesse sentido, dirá Lukács, que a criação
literária do jovem Goethe representa uma
continuação
da linha rousseauniana”, todavia,
assumindo aspectos marcadamente alemães,
pois a inovação formal levada a cabo em
Os
sofrimentos do jovem Werther
responde à
necessidade de conferir tratamento estético a
um conteúdo vital efetivo, engendrado pela
miséria alemã. Contra aqueles que pretendiam
reconhecer nos sofrimentos e desfecho extremo
do protagonista goetheano não mais que uma
tragédia da paixão amorosa infeliz, Lukács
demonstra, pela análise detida dos principais
momentos da trama (que se segue a essas
considerações preliminares acerca das
influências literárias e históricas da obra), como
no romance de amor está perfeitamente
figurada a “contradição inerente ao casamento
burguês: ele está baseado no amor individual,
com ele surge historicamente o amor individual
mas sua existência socioeconômica está em
contradição insolúvel com o amor individual”
(LUKÁCS, 2021, p. 57), conexão íntima entre os
destinos individuais das personagens e o curso
do desenvolvimento histórico que faz deste um
dos maiores romances de amor da literatura
mundial.
A imagem da sociedade burguesa, que no
Werther
aparece refletida na subjetividade
rebelde do herói, ganha maior objetividade em
sua forma expositiva nos romances posteriores
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de Goethe, notadamente em
Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister
, objeto do
segundo ensaio, com o qual se alcança “o ponto
culminante na história da arte narrativa”
(LUKÁCS, 2021, p. 80). Como no caso anterior,
também a sua publicação representa um marco
na história da literatura, cujo legado à
posteridade um estilo de figuração serena e
harmônica, embora decididamente marcante ,
longe de se reduzir a um traço estilístico,
concebido em perspectiva estritamente
formalista, repercute, do ponto de vista formal,
desenvolvimentos importantes do espírito e da
psique humanas no curso da história, de modo
que aqui, talvez ainda mais intensamente que
no ensaio anterior, está em questão a relação
entre forma artística e processo social.
O ponto de partida da análise lukácsiana é a
comparação entre a primeira versão do livro,
intitulada provisoriamente “A missão teatral de
Wilhelm Meister” e redigida entre 1777 e
1785, e a edição final, datada do intervalo de
1793 a 1795, “período em que a crise
revolucionária de transição entre os séculos
XVIII e XIX, que poderiam ser considerados
como duas eras distintas do desenvolvimento
do romance moderno, atingiu seu clímax na
França” (LUKÁCS, 2021, p. 61). A diferença
marcante entre o manuscrito preliminar e a
versão definitiva da obra, sublinha o crítico
húngaro, consiste em que a arte dramática e, de
modo geral, as artes como um todo deixam de
representar um espaço para a “libertação de
uma alma poética da estreiteza prosaica e
pobre do mundo burguês”, a partir do qual se
organiza todo o enredo, tornando-se
meios
para o desdobramento livre e pleno da
personalidade humana” (LUKÁCS, 2021, p. 62)
o grifo que enfatiza esse caráter mediado é
do próprio Lukács. Em outras palavras, o teatro
não é mais uma finalidade em si almejada, mas
um
ponto de passagem
importante, sem
sombra de dúvida, mas de todo modo
transitório na formação do jovem
protagonista, de sua personalidade. Seus anos
de aprendizado são, antes de mais nada, uma
educação do mundo que, apesar de contar com
a orientação de sucessivos tutores, se dá,
sobretudo, pela ação livre e espontânea no seio
da sociedade.
Uma tal concepção formativa tem
implicações éticas importantes, que situam
tacitamente o romance de Goethe no antípoda
da moral kantiana. A manifestação mais
evidente disso são as “Confissões de uma bela
alma”, incrustadas no centro do
Wilhelm
Meister
, mas não só. Tomada como “uma união
harmônica de consciência e espontaneidade, de
atividade mundana e vida interior
harmonicamente formada” (LUKÁCS, 2021, p.
70), a bela alma goetheana encontra em
Philine, a princípio uma personagem secundária
sem muita importância, mas que entre as duas
versões do livro sofre alterações bastante
significativas, outra encarnação ficcional.
Contrastando com a historiografia literária
burguesa, que sublinha em sua literatura a
“glorificação da nobreza”, Goethe figura a
jovem mulher, “em virtude de um profundo
realismo, com todos os traços da perspicácia,
da desenvoltura e da capacidade de adaptação
plebeias”, e é justamente na voz dela que faz
soar “o seu mais profundo sentimento vital”
(LUKÁCS, 2021, p. 66) sua interpretação
humanizada do
“amor dei intellectualis
spinoziano, que frequentaria tantos escritos
lukácsianos sobre ética: “E se te quero bem, o
que podes fazer?”
Mais veladas ou explícitas, as polêmicas
abertas pelo
Wilhelm Meister
não se encerram
por aí, pois a contestação da falsa dicotomia
entre interioridade e atividade anuncia
igualmente o combate às tendências
subjetivistas românticas e sua postura apátrida
em relação à vida burguesa. Diante da prosa do
mundo capitalista, o apatridismo romântico-
poético pode ser sedutor, mas nunca fecundo,
como a trama desvela nos destinos malogrados
de personagens como a pequena Mignon ou o
velho harpista. Humanista, a luta de Goethe se
volta contra “toda dissolução da realidade em
sonhos, em representações ou ideais
meramente subjetivos” (LUKÁCS, 2021, p. 72),
típicos de períodos decadentes, buscando sua
poesia nas contradições imanentes à própria
vida, não na recusa e revolta cega contra o
mundo.
O compromisso de Goethe com seu tempo
presente, observado por Lukács em suas
análises literárias, nos leva inevitavelmente a
interrogar acerca do conteúdo efetivo do
Classicismo que compartilhou com outros
contemporâneos seus. No terceiro ensaio,
dedicado à volumosa correspondência mantida
por Goethe e Schiller, as considerações dos dois
escritores sobre a Antiguidade são trazidas à
baila, lado a lado com suas reflexões sobre as
respectivas obras e sobre a literatura e a arte,
de modo mais amplo.
Se a teoria e a crítica da literatura sempre
reconheceram a importância dos registros
mantidos pelos próprios artistas acerca de seus
processos criativos e sua produção, a relevância
dos autores em questão, que figuram entre os
nomes mais significativos de seu período
histórico, e a consistência de suas teorizações
estéticas fazem dessas cartas um documento
singular. Não obstante, é recomendável cautela
contra o “preconceito muito difundido” na era
capitalista “de que os artistas podem dizer
algo correto sobre a arte” (LUKÁCS, 2021, p.
84), pois aquilo de verdadeiro que os grandes
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artistas apreendem nas considerações acerca
de seu próprio trabalho carece sempre de uma
investigação complementar, não podendo ser
imediatamente adotado pela filosofia da arte
como princípio geral da estética.
Neste estudo, redigido em 1934, aparecem
de relance algumas ideias que, posteriormente,
serão inqueridas a fundo nas análises do
Werther
e do
Wilhelm Meister
, ambas datadas
de 1936. Acompanhando os diferentes
momentos da correspondência, Lukács busca
provar que a inflexão na obra dos autores, que
leva do
Sturm und Drang
ao Classicismo, o
primeiro ápice do desenvolvimento artístico
pós-revolucionário da burguesia, não é
resultante de mudanças meramente formais
nem subjetivas, mas acompanha um
desdobramento na própria história alemã, ao
qual Goethe e Schiller não eram alheios
“ambos tinham o tempo todo consciência de
que a arte que eles almejavam era expressão
daquela grande época que se iniciara com a
Revolução Francesa” (LUKÁCS, 2021, p. 93).
Apenas em sua aparência a investigação das
leis da arte grega, presente nas cartas, se reduz
a uma busca formalista pela forma. Superando
as formulações valiosas de Lessing, seu recurso
à Antiguidade intenta contribuir com a
superação de problemas modernamente
enfrentados. O filósofo, entretanto, não deixa
de rejeitar uma equivalência ou relação
imediata entre suas posições políticas
individuais e aspirações estéticas. O exame da
comunicação epistolar, auxiliado pela crítica
literária, é capaz de revelar como Schiller,
embora em muitos momentos mais radical que
Goethe, produziu uma literatura menos
intensamente orientada à realidade e imbuída
de ideais democráticos.
A amizade entre os dois, que jamais
implicou acordos irrestritos, muito pelo
contrário, possibilitou encontrar nas profundas
divergências uma contradição fecunda para a
colaboração tua, como ocorre na discussão
em torno do princípio alegórico, para Schiller,
e simbólico, para Goethe da composição
literária. Esse ponto de dissenso e outras
questões afins ganham especial interesse à luz
das considerações posteriores de Lukács acerca
da teoria da literatura moderna de Schiller,
particularmente de seus comentários sobre o
procedimento adotado pelo escritor para a
seleção da matéria dramática de suas peças
tópico que, aliás, ele retomaria na
Estética
. No
centro do ensaio dedicado aos escritos
schillerianos, porém, permanece a questão da
recuperação do mundo antigo pelos modernos
e o embate entre Romantismo e Classicismo,
uma oposição estética, mas também, como
defende Lukács, entre
Weltanschauungen
distintas.
Desde o princípio, anota nosso autor, o
desenvolvimento de uma teoria da literatura
moderna foi acompanhado pela teorização
acerca da Antiguidade, ainda que o ideal do
mundo clássico nunca tenha sido estável. A
necessidade de traçar um paralelo histórico
com as produções artísticas do passado para a
intelecção daquelas do presente se mantém
mesmo após alcançadas as condições objetivas
para uma estética propriamente moderna, isto
é, que não mais pressupusesse a arte antiga
como cânone e fosse capaz de encontrar nas
bases econômicas da sociedade burguesa,
tornadas evidentes, a gênese e fundamentação
das particularidades da literatura moderna. A
razão para isso é que, quando o capitalismo se
torna óbvio, “a ideologia burguesa estava
ingressando no período da apologética: ela não
dispunha mais de suficiente desenvoltura e
intrepidez para investigar de modo
cientificamente imparcial as possibilidades
ideológicas e artísticas de sua literatura”
(LUKÁCS, 2021, p. 123).
Nesse contexto, Schiller mostra-se uma
figura do maior interesse, tanto pelo
discernimento com que vislumbra os riscos
impostos pela divisão capitalista do trabalho à
poesia o ensimesmamento contido na
doutrina de
l’art pour l’art
ou a submissão da
arte a finalidades práticas moralizantes
quanto pela debilidade, igualmente
significativa, das saídas que é capaz de propor.
Nos pontos mais frágeis, suas posições são por
vezes contrastadas às de Goethe e Hegel, mas
o fundamental repousa em confrontá-lo consigo
mesmo e identificar, na lógica interna de seu
texto, aqueles momentos em que a apreensão
correta dos fatos ameaça o quadro idealista de
seu pensamento. Grande exemplo disso é a
concepção de realismo presente em
A poesia
ingênua e sentimental
. Em suas observações,
“Schiller vê com clareza que seu critério
estilístico da poesia ingênua, a imitação do real,
evidentemente está presente em uma série de
escritores modernos e se encontra em oposição
aguda à concepção que ele próprio tinha do
tratamento poético moderno da realidade”
(LUKÁCS, 2021, pp. 152-53), agrupado sob a
alcunha de poesia sentimental. Mais do que
isso, ele “identifica o realismo em sentido
histórico amplo, no sentido de Homero e dos
poetas trágicos gregos, de Shakespeare,
Fielding e Goethe, com nada menos que o
princípio artístico último, contradizendo assim
o antagonismo extremo, por ele mesmo
estabelecido, entre a arte antiga, ingenuamente
ligada ao mundo objetivo, e a moderna, de
cunho subjetivo, sentimental. Seja como for, a
diferenciação schilleriana é “objetivamente mais
do que um simples esquema” e, apesar de
distorcida pelo idealismo, contém em si “uma
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determinação profunda do caráter específico da
poesia moderna” (LUKÁCS, 2021, p. 153), além
de intuir a contradição entre a sociedade
capitalista e grande arte ou, melhor dizendo, a
hostilidade do capitalismo à arte.
Atendo-nos às especificidades impostas, na
modernidade, à mimese do real, um dos
aspectos destacados por Lukács no ensaio
sobre Schiller é a (im)possibilidade da figuração
plena de heróis positivos. No plano de fundo
deste que pode parecer meramente um
problema de composição literária, está uma
contradição insolúvel porque presente na
própria realidade que afasta o realismo
burguês daquele da Grécia antiga: a “dualidade
irrevogável e [...] unidade contraditória de
citoyen
e
bourgeois
(LUKÁCS, 2021, p. 132),
e a preponderância deste, a pessoa privada,
sobre aquele, sua dimensão pública. No papel
de herói positivo, o burguês não pode mais que
conferir um lustre apologético à criação
literária, cumprindo que, para uma figuração
verdadeiramente realista, seja retratado “de
modo mais ou menos irônico, bem-humorado e
satírico”, traço bem conhecido entre nós,
brasileiros, que com a ajuda de um crítico
excepcional (leitor singular de Lukács, aliás)
aprendemos a desconfiar dos filosofemas
sedutores de tipos como Brás Cubas. Por sua
vez, quando escalado como protagonista
romanesco, o lado cidadão ou figura o ideal
positivo como tira, a exemplo do inigualável
Dom Quixote
, ou fracassa em alcançar uma
forma épica ao esboçar um romance do
citoyen
.
Eis a questão crucial do último ensaio do
livro o “estilo épico-lírico que surge desse
fracasso” (LUKÁCS, 2021, p. 186) , dedicado
a contestar as falsificações fascistas da obra de
Hölderlin, a partir da análise do
Hipérion
e da
comparação entre as posturas de lderlin e
outros dois contemporâneos seus, Hegel e
Schelling, diante do Termidor. O período aberto
com a execução de Robespierre em 1795
suscitou nos três à época, jovens estudantes
que haviam vivido “os grandes dias da
libertação revolucionária da França com um
júbilo embriagado” (LUKÁCS, 2021, p. 166)
reações diversas, não obstante, típicas da
reação alemã ao desenvolvimento francês.
Enquanto Schelling retraiu-se a um romantismo
reacionário, os outros dois seguiram caminhos
que, embora diametralmente opostos,
refletiram analogamente “o desenvolvimento
desigual da ideia revolucionária burguesa na
Alemanha de um modo contraditório” (LUKÁCS,
2021, p.167). Hegel assumiu o compromisso
com a nova realidade, em que a luminosidade
da França napoleônica parecia aumentar as
humilhantes sombras da vida alemã, e
Hölderlin, por sua vez, manteve-se “fiel ao
antigo ideal revolucionário da democracia da
pólis que se renova e rompe com a realidade
em que não havia lugar sequer no pensamento
poético para esses ideais”, preservando na
literatura um lirismo que resiste à prosa do
mundo moderno e confere à sua obra um
caráter único e irrepetível por mais que
inclusive certa filosofia tenha buscado emulá-la,
não alcançando mais que versões aguadas e
de segunda mão, para nos valermos das
expressões de Adorno, que, concordemos com
o conteúdo de seus juízos ou não, sabia insultar
como ninguém.
Lukács advoga que a chave de interpretação
da obra literária de Hölderlin é a correta
compreensão de seu helenismo, algo
impossível sem ter em conta sua posição diante
dos desdobramentos da Revolução Francesa e
das contradições inerentes ao desenvolvimento
burguês. Longe da nostalgia romântica pela
Idade Média, o recurso hölderliniano à
Antiguidade grega “celebra o caráter público
democrático da vida” na
polis
; e mesmo que o
autor partilhe da crítica à divisão capitalista do
trabalho, tem em vista “que o elemento mais
essencial da degradação a ser combatido é a
perda da liberdade”, não a “ordem” e
“totalidade” do trabalho artesanal, de modo
que a discrepância entre os temas eleitos por
ele e pelo Romantismo “não é, portanto, apenas
uma diferença temática, mas uma diferença
política e de visão de mundo” (LUKÁCS, 2021,
p. 179). A verve lírica-elegíaca de seu romance
é uma resistência da faceta cidadão ao caráter
burguês da épica moderna, não um
subjetivismo decadentista. Não à toa, Hölderlin
é uma presença constante nos escritos
lukácsianos sobre Heidegger, e ainda que seu
nome não seja sequer aludido neste ensaio de
1934 (os alvos aqui são Wilhelm Dilthey, que
faz do poeta um precursor das filosofias de
Schopenhauer e Nietzsche, e Friedrich Gundolf,
um dos mais destacados literatos da República
de Weimar), restam evidentes as bases da
profunda divergência no modo como ambos os
filósofos interpretam o escritor.
Como em qualquer resenha, nosso intuito
aqui não é esgotar os argumentos do autor,
mas, evidenciando alguns elementos
significativos do texto, convidar à leitura do
livro em toda a sua sutileza e, se nos couber
uma última sugestão, sem a ânsia por extrair
generalizações categoriais ou juízos definitivos
que possam ser replicados a outros objetos
literários.
Referências:
LUKÁCS, György.
Goethe e seu tempo.
Trad.
Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes.
São Paulo: Boitempo, 2021.
LUXEMBURGO, Rosa.
Camarada e amante
:
Cartas de Rosa Luxemburgo a Leo Jogiches.
Carolina Peters
460 | Verinotio NOVA FASE ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, p. 454-460 - mar. 2022
Trad. Norma de Abreu Telles. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1983.
MARX, Karl.
Manuscritos econômico-filosóficos.
Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo,
2010.
VEDDA, Miguel. Apresentação. In: LUKÁCS,
György.
Goethe e seu tempo.
Trad. Nélio
Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes. o
Paulo: Boitempo, 2021.
Como citar:
PETERS, Carolina. Lukács, seu tempo e o tempo de Goethe.
Verinotio
, Rio das Ostras,
v. 27, n. 2, pp. 454-460, mar. 2022.