ISSN 1981-061X, v. 28.1, 30 anos de
O futuro ausente
- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
DOSSIÊ
Verinotio
nova fase
J. Chasin e a crítica do tríplice amálgama:
explorando origens e consequências
J. Chasin and the critique of the “triple amalgam”:
exploring origins and consequences
Alexandre Aranha Arbia*
Resumo: Explorando a crítica do “tríplice
amálgama” que J. Chasin desenvolve em
Marx:
estatuto ontogico e resolução metodológica
,
texto de 1995, este artigo procura retomar, em
um procedimento expansivo, os textos indicados
pelo marxista brasileiro, a fim de verificar a
gênese teórica de sua posição crítica. Para tanto,
revisita os textos de Kaustky, nin e, sobretudo
Engels, demonstrando que, na busca por precisar
o estatuto da cientificidade marxiana, Chasin
fornece as pistas para encontrarmos não apenas
a originalidade de Marx, mas a autenticidade do
próprio filósofo de Barmen. Neste percurso, não
apenas o problema do método, como ainda a
reanálise da política, o lugar da determinação
ecomica e a definição da ideologia encerram o
quadrado engelsiano.
Palavras-chave: J. Chasin; Marxismo; Friedrich
Engels; método marxista; política; Karl Marx.
Abstract: Exploring the critique of the “triple
amalgam” that J. Chasin develops in
Marx:
ontological statute and methodological
resolution
, text from 1995, this article seeks to
resume, in an expansive procedure, the texts
indicated by the Brazilian Marxist, in order to
verify the theoretical genesis of its critical
position. To do so, it revisits the texts of
Kaustky, Lenin and, above all, Engels,
demonstrating that, in the quest to clarify the
status of Marxian scientificity, Chasin provides
the clues to find not only the originality of Marx,
but the authenticity of the philosopher of
Barmen. In this path, not only the problem of
method, but also the reanalysis of politics, the
place of economic determination and the
definition of ideology enclose the Engelsian
square.
Keywords: J. Chasin; Marxism; Friedrich Engels;
Marxist method; policy; Karl Marx.
Não há dúvidas de que J. Chasin foi um dos mais originais marxistas brasileiros.
Suas proposições, nem sempre de fácil assimilação, crivadas de polêmicas, quase
sempre virulentas nas críticas, estranhamente não tiveram a mesma repercussão de
sua força argumentativa. De qualquer modo, a classe trabalhadora de um país que
patina em sua miséria genética, no hibridismo de suas formas sociais excrescentes, nas
ideologias pequeno-burguesas que tomam permanentemente de assalto os interesses
* Doutor em serviço social pela UFRJ, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da UFJF.
E-mail
: alexandre.arbia@ufjf.br.
DOI 10.36638/1981-061X.2020.28.1.665
Alexandre Aranha Arbia
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nova fase
do trabalho, não pode se dar ao luxo de não examinar rigorosamente cada um dos
grandes nomes do pensamento brasileiro, especialmente quando, no seio do
marxismo, esses nomes apontam, sem ecletismos ou irracionalismos, para formas
absolutamente inéditas de interpretação (do pensamento e da realidade). Este é o caso
de J. Chasin.
Neste artigo, proponho-me a examinar mais de perto algumas afirmações do
autor, procedendo a uma “abertura” de suas indicações que, muitas vezes de modo
ensaístico, terminam por apresentar demonstrações demasiado condensadas. Parece-
me certeira afirmação de que J. Chasin deixou um programa de estudos a ser
esquadrinhado, para ratificação ou retificação. Um programa que, em todas as suas
polêmicas da questão do método à ontonegatividade da politicidade, da recusa das
interpretações comuns sobre à realidade brasileira à crítica da esquerda, da revisitação
à história do pensamento ocidental à justa recolocação de Marx, da crítica do
socialismo de acumulação aos entraves do presente e do futuro (ou da ausência dele)
, traz como fio condutor a mesma preocupação do velho mestre alemão: os caminhos
para a
emancipação humana
. Afinal, em
última instância
, é disso que se trata
toda
a
obra de Marx: a questão da emancipação humana.
Não é possível, em um artigo, condensar resultados de um estudo que, em
verdade, deve ser expandido e não sintetizado. Assim, neste breve trabalho, não tenho
por objetivo ficar “seguindo o fio” da obra geral de J. Chasin, escavando onde essa ou
aquela questão aparece pela primeira vez e o modo como vai se desenvolvendo no
pensamento do autor ao longo dos anos. Este, talvez, o expediente mais apropriado e
coerente com o seu legado, e adequado ao leitor que se interessa por seu
pensamento
1
. Meu objetivo aqui será o de expandir a trilha aberta nos textos do
autor brasileiro ainda que na apertada síntese de um artigo revisitando a crítica do
“tríplice amálgama”, para compreendê-la em seus fundamentos.
1- Na rota de
Marx
:
estatuto ontológico e resolução metodológica
Marx:
estatuto ontológico e resolução metodológica (CHASIN, 2009) (doravante,
EORM) traz para primeiro plano duas questões que, de certo modo, ocupam boa parte
1
Ademais, outros intelectuais o fizeram, seja apresentando o legado do autor, seja desenvolvendo
pesquisas a partir do desdobramento de suas ideias. Basta lembrar aqui Ester Vaisman, Antônio Rago,
Vera Cotrim, Ivan Cotrim, Sabina Maura da Silva, Ana Selva Albinati, Antônio Lopes Alves, Ronaldo Vielmi
Fortes, Mônica Hallak Costa, nia Assunção, Vitor Sartori, Claudinei Cássio de Rezende, Lúcia Sartório,
Elcemir Paço Cunha, dentre outros.
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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das energias de Chasin. A
raison d’être
do texto já está impressa no título: uma busca
pela virada, de caráter ontológico, que a cientificidade marxiana imprime nas ciências
sociais. a segunda,
consequência inextricável da primeira
, ocupa boa parte das
energias de Chasin desde, pelo menos, o fim dos anos 1970: a questão da
ontonegatividade da politicidade.
A questão da ontonegatividade da politicidade, na elaboração de Chasin, não é
gratuita ou despropositada; também não se trata de artilharia conjuntural para abater
desafetos teóricos e políticos. O problema do lugar da política, na elaboração marxiana,
surge para Chasin “naturalmente”, em seu processo de seguir cronológica e
imanentemente a evolução do pensamento marxiano. E, justamente nessa perseguição
febril pelo autêntico desenvolvimento de Marx, livre de imputações ao gosto do
observador, que Chasin se depara com uma
crítica do pensamento político hegeliano
.
Mas, se não ineditismo na constatação da crítica de Marx à politicidade em
Hegel (ao contrário, essa verificação pode ser considerada até mesmo trivial), o mesmo
não se pode dizer em relação ao peso que dita crítica adquire na leitura do autor
brasileiro. Para Chasin, não se trata de simples acidente de percurso, caminho fortuito
para o abandono do hegelianismo, determinação temporal e dialógica que impinge a
Marx o combate contra o hegelianismo de esquerda, ao qual se filiara em determinado
período. Pelo contrário, essa ruptura enquadra-se na reformulação mais profunda de
caráter ontológico que Marx impõe como clivagem na filosofia
2
.
No caso de Chasin, sinais bastante claros da consolidação de seu
entendimento do problema já nos textos que aparecem em fins dos anos 1970, mais
precisamente em dois escritos de 1977: Sobre o conceito de totalitarismo (CHASIN,
1977), publicado no v. 1 da
Temas de Ciências Humanas
, e A “politicização” da
totalidade: oposição e discurso econômico (CHASIN, 1977a), publicado no mesmo ano,
no v. 2 da mesma revista.
Portanto, da distensão à institucionalização da autocracia burguesa, dos fins de
1970 ao longo de toda a década de 1980, J. Chasin vem “pensando com Marx” a
miséria brasileira, os (des)caminhos de seu capital atrófico, o perfil e o projeto de suas
2
Em oportunidade anterior, empreendi também essa viagem em busca das posições de Marx a respeito
da política.
Salvo melhor juízo
, não existe,
ao longo de toda a sua trajetória
, uma
reformulação
de sua
avaliação crítico-negativa da politicidade. A síntese dessas conclusões pode ser encontrada em Arbia
(2021).
Alexandre Aranha Arbia
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classes e as alternativas (ou ausência delas); insere-se no combate
teórico
e
político
;
sem dissociá-los
, mas também
sem confundi-los
. E é justamente em 1995, em um
posfácio aportado à obra de Francisco Teixeira (
Pensando com Marx:
uma leitura
crítico-comentada de
O capital
TEIXEIRA, 1995), que o autor apresenta de modo
mais sistemático ainda que ensaístico, sua elaboração.
Por sua extensão e originalidade, o posfácio de 1995, intitulado
Marx:
estatuto
ontológico e resolução metodológica (CHASIN, 1995), posteriormente republicado
como obra autônoma sob o mesmo tulo (CHASIN, 2009), revela um esforço teórico
de demonstrar a originalidade específica do pensamento marxiano. Sem tentar
esconder a decisiva influência de Lukács ainda que Chasin se dedique a uma crítica
do marxista magiar, no quarto final da obra , Chasin, ao longo de uma apertada
síntese de aproximadamente 100 páginas (nas quais se concentra o núcleo-duro de
sua exposição), apresenta, a despeito de possíveis críticas ou louvores, uma leitura
inegavelmente original da obra marxiana. Interessa aqui percorrer as indicações da
primeira parte mais precisamente, do capítulo de abertura às quais me aterei. O
capítulo sobre A resolução metodológica
(CHASIN, 2009, pp. 89 ss), cuja
interpretação absolutamente inédita da
Introdução de 1857
(MARX, 2011) merece um
estudo à parte, não será objeto de avaliação neste artigo.
Em EORM, Chasin empreende uma leitura imanente e contextual da obra de Marx,
mas sem gastar o mesmo espaço para demonstrações exaustivas, como a que nos
acostumou em
O integralismo de Plínio Salgado
, por exemplo (CHASIN, 1999). Na tese
doutoral, o esforço em acompanhar o
modus operandi
de Lukács em
A destruição da
razão
(LUKÁCS, 2020), conferia à análise da ideologia uma justa exposição probante.
Aqui, em EORM, o caráter enxuto do texto confere solidez na unidade argumentativa,
mas, em alguns momentos, perda na extensão demonstrativa.
Todavia, é interessante, no que diz respeito à estilística, sua pontualidade e
precisão. de início, destaca-se seu
óbvio
expediente: Chasin Marx
cronologicamente. E, por meio dessa leitura “cronológica”, consegue estabelecer, sem
elaborar uma biografia estrita do autor tratado, a gênese e o desenvolvimento de seu
universo categorial,
em estreita conexão com os dilemas de sua vida e sua época
.
Chasin elabora, em seu texto enxuto, um inventário do ideário marxiano, tal como nos
processos de liofilização, que, ao expelirem a água, conservam as propriedades
essenciais.
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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Assim, antes de entrar propriamente na Gênese e crítica ontológica (CHASIN,
2009, p. 39 ss), o marxista brasileiro apresenta, de certo modo, justificativas ou as
razões para a retomada de Marx
por Marx
. E é nesse prólogo que Chasin, bem ao seu
inconfundível estilo, dá boas-vindas ao leitor com uma constelação de polêmicas, que
se multiplicam ao longo do livro.
2- A crítica do “amálgama originário”.
O coração da originalidade de EORM não está explícito no capítulo inicial; ele
será encontrado à abertura do terceiro. Todavia, é ele quem orienta a crítica do
tríplice amálgama. Por essa razão, não haverá qualquer precipitação em evidenciá-lo
logo de saída, seguindo as trilhas do próprio texto de “Apresentação (VAISMAN;
ALVES, 2009):
Se por método se entende uma arrumação operativa,
a priori
, da
subjetividade, consubstanciada por um conjunto normativo de
procedimentos, ditos científicos, com os quais o investigador deve levar a
cabo seu trabalho, então, não método em Marx. Em adjacência, se todo
método pressupõe um fundamento gnosiológico, ou seja, uma teoria
autônoma das faculdades humanas cognitivas, preliminarmente estabelecida,
que sustente ao menos parcialmente a possibilidade do conhecimento, ou,
então, se envolve e tem por compreendido um
modus operandi
universal da
racionalidade, o , igualmente, um problema do conhecimento na reflexão
marxiana. E essa inexistência de método e gnosiologia não representa uma
lacuna (...). Isso equivale a admitir que a suposta falta seja antes uma
afirmação teórico-estrutural, do que uma debilidade por origem histórica
insuficientemente digerida. (CHASIN, 2009, pp. 89-90)
Na citação, o problema central está posto por Chasin sem maiores rodeios:
qualquer empreitada que busque apreender
epistemologicamente
a contribuição de
Marx deixará de reconhecer justamente aquilo que ela tem de fundamental: uma
posição ontológica
3
. A questão, para Chasin, é que a admissão desta última, em sua
profundidade e extensão (em sua radicalidade), termina por obliterar a primeira. Em
poucas palavras, a inexistência de um tratado sobre o “método”, em Marx, não significa
3
M. Duayer, cujas posições, neste âmbito, apresentam algum grau de diferença em relação as de Chasin,
considerou noutro lugar: “a crítica ontológica (...) visa a refutar os pressupostos estruturais da tradição
criticada. Em consequência, tem de ser crítica que refigura o mundo, que põe e pressupõe outra
ontologia. É justamente nesse sentido que a crítica de Marx é crítica ontológica no caso, crítica da
sociedade capitalista, da formação socioeconômica posta pelo capital. Figura o mundo social de maneira
radicalmente distinta não só das formas de consciência do cotidiano dessa sociedade, mas também de
suas formas de consciência científicas. Tanto umas quanto outras são empiricamente plausíveis, uma
vez que m circulação social, interpretam o mundo para os sujeitos e, nessa medida, orientam suas
práticas. Razão pela qual sempre se trata de reconhecer a realidade ou objetividade social das ideias
criticadas. Como circulam socialmente, são ideias razoáveis e, por isso, o exame crítico o pode se
circunscrever a sua estrutura lógica: deve explicar como e por que ideias insubsistentes orientam a
prática dos sujeitos” (DUAYER, 2016, p. 35).
Alexandre Aranha Arbia
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qualquer lacuna na produção do filósofo alemão, não é casual e nem fortuita; pelo
contrário, indica uma posição.
E aqui, dado o pressuposto, deparamo-nos com o fato de que os defensores
inaugurais do “tríplice amálgama” buscaram, de certo modo, corporificar em bases
epistemológicas o materialismo histórico-dialético como a doutrina original de Marx.
Nessa busca, lançar mão do ambiente teórico (e histórico) no qual estava imerso o
pensador alemão terminou servindo mais para baralhar que para pôr a questão em
nos termos. Em uma síntese: a posição de Chasin, crítica das proposições de Kautsky
e Lênin
4
sobre o “método”, enforma uma
busca pelos fundamentos do pensamento de
Marx a partir dos próprios escritos marxianos
, e não pelo enxerto de construtos
exógenos e distintos que, na magistral síntese reflexiva do filósofo alemão, teriam
alcançado uma unidade antes incompreensível aos próprios desenvolvedores dessas
teorizações parciais.
2.1- Kautsky e o erro inaugural
No caso de Kautsky, a questão está centrada no texto de 1908 (
As três fontes
do marxismo
KAUTSKY, s/d). Cf. Chasin (2009, p. 31), do “naturalismo positivista”
de Kautsky aflora a ideia de modo bastante imediato e empobrecido de que Marx
haveria promovido uma “síntese das ciências naturais e das ciências psicológicas”
(
apud
CHASIN, 2009, p. 31), que a dialética ensejaria uma espécie de evolução
catastrófica”, a qual, encontrada na natureza e na história, explicaria, por fim, a própria
necessidade da luta entre classes. Em arremate, Kautsky localiza na fusão dos três
alicerces do pensamento moderno a economia política inglesa, a filosofia alemã e o
pensamento político francês o ineditismo da produção de Marx. Na síntese de Chasin
(2009, p. 34):
Segundo Kautsky, cada um dos três pensamentos que integram o amálgama
é uma formação parcial, quando no interior da malha nacional de
positividades e negatividades que o origina. Enquanto produtos isolados (...)
são carentes uns dos outros, como que destinados a um
ménage à trois
que
os libertaria da hipertrofia originária. De fato, perdem unilateralidade
graças às suas mútuas junções, pretendidamente operadas por Marx, cujo
mérito intelectual, altamente enfatizado, então não passaria da habilidade
para aglutinar ideias e procedimento preexistentes.
Em resumo: a perspicácia de Marx, para Kautsky, estaria em compilar e aglutinar
construtos teóricos que se encontravam geográfica e
epistemicamente
separados. Mas
4
... E, por consequência lógica, de Engels, como veremos em detalhes.
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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nova fase
vejamos a coisa de perto.
Em
As três fontes...
, Kautsky enuncia, logo na abertura de sua tese, duas
compreensões articuladas: a de que o método [de Marx] será mais frutuoso do que
qualquer outro” (KAUTSKY, s/d/, p. 10) e a de que “encontramos [neste método],
antes de tudo, a síntese do pensamento inglês, francês e alemão, a do movimento
operário e do socialismo e, por fim, a da teoria e da prática” (KAUTSKY, s/d, p. 11). O
que se segue no argumento é a defesa de uma ultrapassagem, pelo método de Marx,
da cisão entre “ciências naturais e ciências psicológicas” (sociais), de significativa
influência positivista
5
.
A crítica que Kautsky estabelece ao materialismo canhestro (crítica de clara
influência temática engelsiana) caminha na direção de que faltava à empiria à
compreensão articuladora da dialética. E mais, seguindo as trilhas de Engels, ainda
que em uma exposição extremamente mais pobre, Kautsky volta a revolver a questão
da unidade entre os seres; e, assim como Engels, o faz pela
dialética
e não pela história.
As leis “inexoráveis” da dialética ressurgem, em seus escritos, a partir de afirmações
extremamente problemáticas: “por mais distinta que possa parecer a sociedade do
resto da Natureza, nesta, como naquela, encontramos a evolução dialética, quer dizer:
o movimento provocado por uma luta de oposições que surge espontânea e
continuamente do próprio meio” (KAUTSKY, s/d, p. 17). E prossegue, atribuindo a Marx
a “anulação” do “abismo entre ciências naturais e psicológicas”: “a evolução social foi
assim situada no quadro da evolução natural; o espírito humano, mesmo nas suas
manifestações mais elevadas e mais complicadas, nas suas manifestações sociais, era
explicado como sendo uma parte da Natureza” (KAUTSKY, s/d, p. 17).
Na tentativa de comprovar sua tese, qual seja, imputar a Marx uma superação
da cisão entre sociedade e natureza pela dialética materialista, Kautsky, exatamente
como demonstra Chasin (2009, p. 31), chegará ao absurdo de constatar que “para
Marx (...)
a luta de classes não era mais do que uma forma da lei geral da evolução da
Natureza
, que de modo nenhum tem um caráter pacífico” (KAUTSKY, s/d, p. 23
itálicos meus). O autor alemão prossegue o argumento sinonimizando “transformação
dialética” e catástrofe”. Para Kautsky, a “catástrofe”, na Natureza e na sociedade,
como lei geral válida para todos os tipos de seres, é a demonstração inequívoca da
5
Impossível não lembrar de Auguste Comte e sua hierarquização das ciências, ao observar o modo
como Kautsky compreende suas evoluções em relação à “concretização”. Cf. Kautsky (s/d, p. 14).
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universalidade da dialética.
Enunciada, no primeiro bloco, sua (peculiar) compreensão da dialética marxista,
Kautsky passa a considerar os desenvolvimentos de Marx e de Engels para alcançar
finalmente, no terceiro capítulo, sua tese do amálgama. Os termos empregados no
resumo de Chasin comparecem, no texto do autor alemão, numa sequência que
procura dar conta do desenvolvimento material e ideológico da Inglaterra (KAUTSKY,
s/d, pp. 32-34); França (KAUTSKY, s/d, pp. 35-39) e Alemanha KAUTSKY, s/d, pp. 39-
43). Kautsky, que abre o capítulo defendendo que
três nações representavam, no século XIX, a civilização moderna.
quem tinha assimilado o espírito de todas as três e assim armado com
todas as aquisições do seu século podia produzir o imenso trabalho
que Marx forneceu. A
síntese do pensamento destas três nações, onde
cada um perdeu o seu aspecto unilateral
, constitui o ponto de partida
da contribuição histórica de Marx e de Engels (KAUTSKY, s/d, pp. 31-
32 itálicos meus).
... encerra-o explicando como foi forjado o amálgama:
[Marx e Engels] reconheceram que a economia e a política, o trabalho
de detalhe de organização e o ardor revolucionário se condicionavam
uns aos outros, que o trabalho de detalhe é estéril sem o objetivo
essencial que lhe serve simultaneamente de estimulante e de razão;
que este objetivo é impreciso sem o trabalho prévio de detalhe, o qual
fornece a capacidade de luta necessária para o atingir. Eles
reconhecem igualmente que um tal objetivo não pode nascer da
simples necessidade revolucionária; que deve ser desembaraçado das
ilusões e do inebriamento pela aplicação conscienciosa dos métodos
de investigação científica e que deve estar na unissonância do
conjunto do saber da humanidade. Eles reconheceram, além disso,
que a economia é o fundamento da evolução social e que ela
compreende as leis que regem necessariamente esta evolução.
A Inglaterra forneceu-lhes a maior parte da documentação econômica
que utilizaram e a filosofia alemã o melhor método para deduzir
daquela o objetivo da evolução social contemporânea;
a Revolução
Francesa demonstrou-lhes de maneira mais clara a necessidade de se
conquistar o domínio e, nomeadamente, o poder político, para se
atingir o objetivo
.
Foi assim que
criaram o socialismo científico moderno
, pela fusão de
tudo o que o pensamento inglês, o pensamento francês e o
pensamento alemão tinham de grande e de fértil (KAUTSKY, s/d, pp.
43-44 itálicos meus).
O fragmento é longo, mas imprescindível aqui. É interessante observar como,
daqui, a questão do “socialismo
científico
desliza com grande agilidade para a de
ciência como “ponto de vista” (de classe). O problema científico abandona a exigência
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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de reprodução fiel da realidade objetiva para recair no campo do “agir interessado”
6
.
Ora, mas enorme diferença entre o fato de a perspectiva científica do proletariado
ser a única capaz de reproduzir intelectivamente a realidade
tal como é
(em detrimento
das ciências burguesas, que procuram fragmentar, opacitar e/ou hipostasiar a
realidade, baralhando a compreensão) e a
instrumentalização
do conhecimento para a
mobilização e a ação políticas. A conclusão enviesada é do próprio Kautsky: o
socialismo “não é outra coisa senão a ciência da sociedade, encarada do ponto de
vista do proletariado” (KAUTSKY, s/d, p. 48).
Chasin acerta, portanto, quando identifica que a leitura epistemológica
produzida por Kautsky, cujo resultado é a defesa do “tríplice amálgama”, termina por
diminuir a originalidade de Marx, ao reinseri-lo, contra sua vontade, de volta no debate
gnosioepistêmico. E aqui evidencio, adicionalmente, que a apreensão da dialética como
recurso heurístico
, metodológico, trouxe consigo, no bojo do conjunto de problemas
(e o fragmento de Kautsky o demonstra), uma reorientação na própria teoria da ação
(política).
Os argumentos de Kautsky não são totalmente ainda que em grande medida
criações inusitadas, frutos apenas de um “pitoresco” entendimento do “marxismo”;
pelo contrário, eles levam ao paroxismo afirmações do próprio Engels, como veremos
a seguir. É muito difícil, para aqueles que conhecem os últimos escritos de Engels a
respeito do método dialético, não identificar um diálogo, na letra de Kautsky, ainda
que simplificado em demasia, com elementos-chave apresentados pelo filósofo de
Barmen. E, para Chasin, Lênin segue a linha, ainda que dentro de sua inquestionável
inteligência.
2.2- A respeito do prosseguimento dado por Lênin
As duras condições objetivas em que Lênin realizou suas elaborações são muito
conhecidas. Imersas ainda no desconhecimento público geral de boa parte dos escritos
de Marx, a qualidade de suas realizações lhe garante uma inquestionável posição
de terceiro grande pilar do pensamento marxista. Justamente por isso, poucos autores
tenham adquirido tamanha autoridade, foram tão difundidos, debatidos, assimilados
e, por óbvio, produziram tantas consequências. Não erra, portanto, Chasin, quando
elege o opúsculo
As três fontes e as três partes do marxismo
(LÊNIN, 1983) para
6
Sobre o agir interessado, ineliminável de qualquer forma de ação humana, cf. Lukács (2012, p. 295).
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nova fase
estabelecer a crítica.
Chasin não coloca Lênin no mesmo patamar de Kautsky, mas não o poupa:
Lenin reempunha o centro temático do amálgama; sem dúvida, com
uma diferença muito ponderável: a algaravia naturalista de Kautsky
desaparece, bem como o feitio desconjuntado de sua argumentação.
Todavia, a tese é idêntica e, porque bem espanada, ressoa ainda mais
categoricamente, também pela inclusão de arrimos filosóficos
tomados ao
Anti-Dühring
e ao
Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã
(CHASIN, 2009, p. 35).
Para aqueles que conhecem este escrito de Lênin, sabem que razão assiste a
Chasin. Lá encontramos:
A doutrina de Marx é todo-poderosa, porque é justa. É harmoniosa e
completa; aos homens uma concepção coerente do mundo,
inconciliável com toda a superstição, com toda a reação, com toda a
defesa da opressão burguesa. É a sucessora legítima de tudo quanto
a humanidade criou de melhor no século XIX:
a filosofia alemã, a
economia política inglesa e o socialismo francês
. É nestas fontes, nas
três partes constitutivas do marxismo, que vamos rapidamente falar.
(LÊNIN, 1983, p. 72 itálicos do original)
Para além dos elementos elencados por Chasin, dentre eles, com destaque para
o fato de que Marx “enriqueceu as aquisições da filosofia clássica alemã, sobretudo do
sistema de Hegel” (LÊNIN, 1983, p. 73), extraindo como a principal destas aquisições
(...) a dialética” (LÊNIN, 1983, p. 73), destaco aqui o débito explícito que a
interpretação de Lênin possui com o último Engels (conforme também atestado acima,
no excerto de Chasin). Afirma com clareza o revolucionário russo que
Marx e Engels defenderam resolutamente o materialismo filosófico, e
mostraram muitas vezes o que havia de profundamente errôneo em
todos os desvios a esta doutrina fundamental.
Os seus
pontos de vista
estão expostos
com o máximo de clareza e pormenor nas obras de
Engels
: Ludwig Feuerbach
e
Anti-Dühring
, que como o
Manifesto do
Partido Comunista
são os livros de cabeceira de todo o operário
consciente.
(LÊNIN, 1983, p. 73 itálicos meus)
Lênin, aqui, empresta sua autoridade para chancelar duas posições, na melhor
das hipóteses, questionáveis: a) de que as conclusões de Marx a respeito da dialética
(e, por tabela, de tudo o que envolve sua relação com o espólio de Hegel, com a
esquerda hegeliana e a avaliação de Feuerbach) está contida no
Anti-Dühring
(Lênin
não o afirma, mas numa leitura apressada é bastante fácil, por este expediente, fazer
passar Marx por Engels
7
); b) estabelecer a dialética, tal como exposta pelo último
7
Há muitos escritos sobre as tentativas de cancelar as ideias próprias de Engels, tornando-o um mero
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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nova fase
Engels, como pórtico de entrada ao conhecimento científico do marxismo para o
movimento operário. Em ambos os casos, a admitirmos que Lênin tenha sido bem
sucedido, tendo-se em consideração o sucesso editorial de
Anti-Dühring
, ainda
durante a vida de Engels, poderíamos arriscar que
o movimento operário do século
XX
, sobretudo pós-1917,
é severamente tributário
mais, inclusive, do que é
costumeiramente admitido
das posições do último Engels
.
Mas isso não é tudo, e Lênin arremata:
Aprofundando e desenvolvendo o materialismo filosófico, Marx
-lo
chegar ao seu fim lógico
, e
estendeu-o do conhecimento do
conhecimento da natureza ao conhecimento da sociedade humana
. O
materialismo histórico de Marx foi a maior conquista do pensamento
científico. (LÊNIN, 1983, pp. 73-74 itálicos meus; negritos do
original)
A influência de Engels (e de Kautsky) é, aqui, inegável e este pequeno texto
dispensa mais demonstrações.
No texto (biografia de Marx) que escreveu em 1913, para o
Dicionário Granat
,
Lênin não deixa dúvidas a respeito da convicção da correção de sua posição:
O
marxismo
é o sistema das ideias e da doutrina de Marx. Marx
continuou e completou as três principais correntes de ideias do século
XIX, que pertencem aos três países mais avançados da humanidade: a
filosofia clássica alemã, a economia política clássica inglesa e o
socialismo francês. (LÊNIN, 1983a, p. 15)
Também aqui são abundantes as referências ao
Anti-Dühring
e ao
Feuerbach
,
de Engels. Também aqui, Lênin procura aproximar, demonstrativamente, Engels de
Marx, ao grifar que, em relação ao
Anti-Dühring
, Marx havia “lido o manuscrito” (LÊNIN,
1983a, p. 16) e, em relação a
Feuerbach
..., que Engels enviara o manuscrito para
publicação “depois de ter relido uma vez mais o velho manuscrito de 1844-1845
sobre Hegel, escrito em colaboração com Marx” (LÊNIN, 1983a, p. 17).
Finalmente, no capítulo sobre a dialética, a referência é a Engels e a
reintrodução de Marx no problema gnosioepistêmico é textual:
Foi este aspecto revolucionário da filosofia de Hegel que Marx adotou
e desenvolveu. O materialismo dialético “nada tem a ver com uma
filosofia planando acima das outras ciências”. A parte da antiga
filosofia que subsiste é “a doutrina do pensamento e das suas leis a
lógica formal e a dialética”. Ora, na concepção de Marx, como na de
repetidor (porta-voz) de Marx. A respeito da originalidade do velho alemão, cf. Paço Cunha (2014,
2014a), Sartori (2015), dentre outros. Para uma biografia de Engels, cf. Mayer (2020).
Alexandre Aranha Arbia
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Verinotio
nova fase
Hegel, a dialética compreende o que hoje se chama teoria do
conhecimento ou gnosiologia, que deve igualmente considerar o seu
objeto do ponto de vista histórico, estudando e generalizando a
origem e o desenvolvimento do conhecimento, a passagem da
ignorância
ao conhecimento. (LÊNIN, 1983a, pp. 20-21 itálico do
original)
De fato, não é preciso ir muito além para constatar, sem qualquer emoção, que
Lênin passa ao largo da ideia de uma
superação ontológica
, por Marx,
de todos os
construtos teóricos contra os quais se confrontou
: sua leitura da obra marxiana, neste
caso, mantém-se claramente na linha de uma interpretação, sobretudo,
epistemológica,
de confronto no interior da história da filosofia.
Todavia, é necessário anotar que a questão é mais sofisticada em Lênin que em
Kautsky, e o revolucionário russo, em que pesem diferenças, está bem mais próximo
da riqueza do pensamento de Engels que seu antecessor. No caso de Lênin, o
problema gnosiológico já havia sido abordado mais detidamente antes, em 1908, em
Materialismo e empiriocriticismo
(LÊNIN, 1975). Lá, sabemos, a polêmica contra Ernst
Mach e seus discípulos colocava Lênin, materialista, em oposição ao neokantismo
vulgar. Em sua introdução, aludindo à obra de George Berkeley
8
, Lênin reconhece uma
síntese precisa entre as duas filosofias conflitantes. E nessa síntese, está explicitado
um dos eixos fundamentais de seu entendimento do materialismo:
Las dos líneas fundamentales de las concepciones filosóficas quedan
aquí consignadas con la franqueza, la claridad y la precisión que
distingue a los filósofos clásicos de los inventores de “nuevos”
sistemas en nuestro tiempo. El materialismo:
reconocimiento de los
“objetos en sí”
o fuera de la mente;
las ideas e las sensaciones son
copias o reflejos de estos objetos
. La doctrina opuesta (el idealismo):
los objetos no existen “fuera de la mente”; los objetos son
“combinaciones de sensaciones”. (LÊNIN, 1975, p. 16 itálicos meus)
E a questão do reflexo é inequivocamente reafirmada logo à abertura do
primeiro capítulo, quando, em oposição ao empiriocriticismo, ancora firmemente sua
posição nas aquisições de Engels. O fragmento é longo, mas me parece suficiente para
afirmar que, em
Materialismo e empiriocriticismo
, apreendendo com profundidade a
posição de Engels, Lênin vincula-se a ela, repondo o problema do conhecer na relação
entre objetividade e
método
e não em um plano
meramente
epistemológico (mas
também não em um plano exclusivamente imanente). Afirma:
El materialista Federico Engels colaborador bastante conocido de
8
Tratado sobre os princípios do conhecimento humano
, de 1710.
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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Marx y fundador del marxismo habla invariablemente y sin excepción
en sus obras de las cosas y de sus imágenes o reflejos mentales
(Gedanken-Abbilder), y es de por claro que estas imágenes mentales
no surgen de otra manera más que de las sensaciones. Parecerá que
esta concepción fundamental de la “filosofía del marxismo” debiera
ser conocida por todos los que hablan de ella, y sobre todo por los
que intervienen en la prensa
en nombre
de esta filosofía. Pero en vista
de la extrema confusión creada por nuestros machistas, habrá que
repetir cosas de todos conocidas. Tomemos el primer párrafo del
Anti-
Dühring
y leamos: “… los objetos y sus imágenes mentales…”. O el
primer párrafo de la sección filosófica: “¿De onde saca el pensamiento
esos principios? [se refiere a los principios fundamentales de todo
conocimiento]. ¿Los saca de mismo? No… Las formas del ser no las
puede el pensamiento extraer y deducir jamás de mismo, sino
únicamente del mundo exterior… Los principios no son el punto de
partida de la investigación [como resulta según Dühring, que pretende
ser un materialista, pero que no sabe aplicar consecuentemente el
materialismo], sino sus resultados finales; estos principios no se
aplican a la naturaleza y a la historia humana, sino que son
abstracciones de ellas; no son la naturaleza y la humanidad las que se
rigen por los principios, sino que los principios son verdaderos
precisamente en tanto concuerdan con la naturaleza y con la historia.
En esto consiste la única concepción materialista del asunto, ya la
opuesta, da de Dühring, es la idealista, que invierte por completo las
cosas asentándolas sobre la cabeza y construye el mundo real
arrancando de la idea” […]. Todo el que lea con un poco de atención
el Anti-Dühring y Ludwig Feuerbach encontrará a docenas los
ejemplos en que habla Engels de las cosas y sus imágenes en el
cerebro del hombre, en nuestra consciencia, em el pensamiento etc.
(LÊNIN, 1975, p. 28)
Este longo fragmento me parece suficiente para demonstrar que o caráter
dúplice
da dialética está, antes, em Engels que em Lênin, o qual acompanha de muito
perto o entendimento do filósofo de Barmen a respeito do problema. De todo modo,
e em resumo, haja vista o fato de que não podemos explorar mais tais questões no
revolucionário russo, pode-se afirmar que em Lênin subsiste a
dupla ideia
da dialética:
como objetividade e como método. Lênin não sucumbe ao epistemologismo simplista
ao perceber a relação entre (o primado da) objetividade e pensamento, mas tampouco
abandona a ideia do método como bússola da viagem científica marxista. Devemos,
portanto, rastrear a questão em sua gênese, revisitando Engels.
2.3- Uma visita ao último Engels.
Em EORM, Chasin faz referências pontuais a Engels, sobretudo quando aproxima
as compreensões sobre dialética de Lênin e daquele. Não é possível identificar as
razões da ausência de um tratamento mais dedicado da questão, em Engels, por
Chasin, uma vez que, como se sabe, embora o filósofo alemão não possa ser
responsabilizado pelas interpretações posteriores, o que foi feito da dialética por seus
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sucessores remete a uma interlocução explícita com suas últimas produções. O mais
provável é que Chasin tenha optado por centrar a crítica no problema do “amálgama
originário” e como Engels jamais se referiu à questão nesses termos, sendo uma
inovação introduzida pelos “marxistas” posteriores, tal fato justificaria apenas uma
referência
en passant
, mantendo-se a concentração no principal.
De todo modo, as referências a Engels lá estão, como vimos acima. E para que
não haja dúvidas, Chasin explicita:
Em suma, para Engels e Lênin, a dialética integra, sabidamente, mais
de uma face, que compreende a “ideia fundamental” do
movimento das coisas naturais e sociais, bem como o próprio
pensamento por isso mesmo, quando falam em
aplicar a dialética
“a
cada domínio submetido à investigação”, explicitam de modo enfático
um aspecto de grande peso de suas convicções, e, por conseguinte,
uma dimensão fundamental que entendem por dialética a existência
suposta de um
método universal de investigação
, devido na íntegra
ou em partes
modificadas
, não importa, a Hegel. (CHASIN, 2009, p.
36 itálicos do original)
Tal citação nos exige, pois, uma rápida visita aos últimos escritos mais
importantes do grande
partner
teórico de Marx.
De princípio, não é mais admissível que
tomemos Engels por Marx
. É fato que
estabeleceram intenso diálogo, que existem mútuas influências em suas elaborações e
que, talvez em toda a história da filosofia, nenhuma colaboração entre dois autores
tenha sido tão profunda e harmônica em termos ideais e pessoais. Todavia, isso não
pode obscurecer, para nós, a verdade simples e fatual de que se tratam de
dois autores
distintos
, intelectuais autônomos e profícuos e que, em alguma medida, apresentam
também suas diferenças. E, é claro, não nenhuma heresia nessa constatação. Para
meu propósito, ficarei concentrado nos textos do último Engels, nominalmente:
Anti-
Dühring
(1878),
A dialética da natureza
(1883),
Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã
(1886) e no Prefácio a
As lutas de classes na França
(1895).
2.3.1- A concepção de dialética no
Anti-Dühring
(1878) e em
A dialética da natureza
(1883)
É uma característica das elaborações do último Engels o combate duro ao senso
comum presente nas análises dos homens ditos “de ciência”; a elas, o autor buscou
opor o verdadeiro conhecimento científico, fazendo questão de revolver quase sempre
todo o seu enciclopédico conhecimento, seja da filosofia, das ciências sociais e das
ciências naturais. Engels apontava, no pensamento por ele denominado pensamento
“metafísico” (calcado na lógica formal) uma pobreza intrínseca incapaz de compreender
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o caráter relacional das leis objetivas, reduzindo todas as contradições a aspectos
primários de “sim” e “não”. Donde o combate bastante pronunciado de sua dupla
expressão (na forma cotidiana vulgar e na forma mistificada da especulação). Pode-se
demarcar aqui, sem muito receio de erro, as origens da obsessão, na II e III
Internacionais, pelo combate virulento ao idealismo (ao fim e ao cabo, o próprio Lênin
parece-me decisivamente influenciado por essa questão, sobretudo em 1908).
Encontra-se em Engels um processo de reconhecimento e dissociação entre
“dialética” e “Hegel”. Engels consegue ser peremptoriamente dialético e
peremptoriamente crítico de Hegel (cf. SARTORI, 2015, p. 125). Sua crítica a Hegel
está essencialmente concentrada em dois pontos: 1) a dialética hegeliana apresentaria
uma contradição insolúvel ao fechar-se (toda a realidade) em um sistema; 2) e, na
mesma via, haveria em Hegel uma generalização indevida, que buscava abarcar toda
a ciência da natureza e da história. Mas a própria posição de Engels não está livre de
aparentes paradoxos. Em sua busca por dissociar a ideia de método e sistema,
separando a virtude do vício, Engels termina por proferir afirmações nebulosas e
encriptadas, gerando interpretações que passaram a largo de suas pretensões
originais.
Crítico da ideia de “sistema”, Engels é, por outro lado, textualmente insistente
na convicção da existência das “leis fundamentais do pensamento dialético”;
de prime
abord
, destaco que o procedimento contrasta com a
imanência
da leitura marxiana em
relação aos objetos investigados. Suas referências explícitas à “aplicação do método
dialético” terminam por contrastá-lo, neste quesito, a Marx. Contra Dühring, sua
posição é clara: a dialética da realidade pode ser corretamente compreendida por
um método igualmente dialético.
Essa espécie de
leitmotiv
temático está presente como elemento estruturante
em suas últimas obras. Não apenas é o eixo que sustenta suas críticas a E. Dühring,
(1878), como abre seu volume sobre
A dialética da natureza
(1883). No
Ludwig
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã
(1886), embora menos pronunciada que
nas obras anteriores, a questão lá está. Neste último, a ela vem fazer companhia uma
(re)valorização da política que toma ares de revisão no Prefácio de 1895. Não passa
despercebido, portanto, o fato de que, no mesmo momento em que Engels está
profundamente convicto a respeito do caráter dúplice da dialética (enquanto
movimento e enquanto método; enquanto imanência e enquanto episteme) ele
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reavalie, em conjunto, sua própria concepção da política (e, estendendo por conta
própria, a de Marx).
Engels denuncia, com a competência que lhe é clássica, a ignorância de Dühring,
que, do alto de sua lógica formal, procura excluir a contradição da realidade. A
concepção de Dühring é empobrecida; nela comparece uma confusão entre
contradição e contrassenso (ENGELS, 2015, p. 151), concluindo pela impossibilidade
de existência real da primeira. Para comprovar o erro de Dühring, Engels lança mão
de exemplos amplos e transita de uns a outros, no mais das vezes, sem expor os
caminhos mediadores. Não estende a
lei do movimento (contradição)
9
da
matemática à natureza e desta a sociedade, como ainda toma, por um trânsito bastante
direto, a lei da transformação da
quantidade em qualidade
em seres absolutamente
distintos:
Citamos ali um dos exemplos mais conhecidos o da mudança dos
estados de agregação da água que, sob condições normais de pressão
atmosférica, a 0ºC passa do estado líquido para o sólido e a 100ºC
passa do estado líquido para o gasoso e que, portanto, nesses dois
pontos de mutação, a mudança meramente quantitativa da
temperatura acarreta um estado qualitativamente modificado da água.
Poderíamos ter citado, como prova dessa lei, mais algumas centenas
de fatos como esses extraídos tanto da natureza como da sociedade
humana. (ENGELS, 2015, p. 157)
E Engels, nas páginas imediatamente seguintes, nas demonstrações por meio
de exemplos, chega ao ponto de transitar, com espantosa imediatez, do universo da
química ao exército de Napoleão (cf. ENGELS, 2014, pp. 158-159).
Alcança-se, assim, a polemíssima questão da negação da negação”. Explorando
9
“Se o simples movimento mecânico de um lugar para o outro contém em si uma contradição, isso
é ainda mais verdadeiro em relação às formas mais elevadas de movimento da matéria e, de modo bem
especial, a vida orgânica e sua evolução. Vimos anteriormente que a vida consiste sobretudo no fato de
que instante, um ser é ele mesmo e, ainda assim, outro. Portanto, a vida também é uma contradição
presente nas próprias coisas e processos que continuamente se põem e se resolvem; e, assim que cessa
a contradição cessa a vida e instaura-se a morte. Vimos igualmente que, no campo do pensamento,
tampouco podemos escapar às contradições e que, por exemplo, a contradição entre a capacidade
interiormente ilimitada do conhecimento humano e sua existência real se resolve apenas na forma de
seres humanos exteriormente limitados e limitadamente cognoscentes no processo infinito da sucessão
das gerações, que, ao menos para nós, é praticamente sem fim” (ENGELS, 2015, p. 152). Para além da
extensão da contradição, como lei unitária em todos os tipos de seres o que a tornará lei absoluta
Engels parece reinserir hegelianamente a teleologia na história. O que significaria, exatamente, a
afirmação de que “a vida também é uma contradição presente nas próprias coisas e processos que
continuamente se põem e se
resolvem
; e, assim que cessa a contradição cessa a vida e instaura-se a
morte”? A que tipo de “resolução” Engels se refere? Não é possível pensar em “resolução” quando se
trata de relações de causa e efeito; resolução tem de pressupor, de algum modo, intencionalidade,
teleologia.
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o último capítulo do Livro I d’
O capital
, Engels resgata a sucessão histórica de
desenvolvimento de modos de produção. Neste argumento, o autor mensura a posição
de Marx, concluindo:
Ao caracterizar o processo como negação da negação, Marx nem
pensa em querer prová-lo, por essa via, como um processo
historicamente necessário. Pelo contrário: depois de ter provado
historicamente que o processo, de fato, sucedeu em parte e em parte
ainda terá de suceder, ele o caracteriza como um processo que se
efetua conforme uma determinada lei da dialética. (ENGELS, 2015, p.
164)
Isso logo após ter considerado, também de modo muito preciso e acertado,
contra Dühring, que “o processo é histórico, e o fato de ele ser ao mesmo tempo
dialético não é culpa de Marx” (ENGELS, 2015, p. 164). Está clara, aqui e em outras
passagens, a dúplice existência da dialética, por parte de Engels: na realidade e no
método. Neste aspecto, Engels possui uma compreensão para bem ou para mal, não
importa distinta à de Marx, mantendo preocupações epistemológicas muito claras.
Tanto que conclui:
A lógica formal é, antes de tudo, um método pra encontrar novos
resultados, para avançar do conhecido para o desconhecido, e a
mesma coisa, que num sentido mais eminente, é a dialética, que,
ademais, por romper o horizonte estreito da lógica formal, contém o
embrião de uma concepção de mundo mais abrangente. (ENGELS,
2015, p. 165)
Da duplicidade da dialética, segue-se o argumento de que a negação da
negação” é “um procedimento muito simples, que se realiza em toda parte e
cotidianamente” (ENGELS, 2015, p. 165). Engels então recorre ao famoso exemplo do
grão de cevada
10
, das borboletas e da geologia em síntese, vai ilustrar seu argumento
com demonstrações
a partir da dialética da natureza
. Seu argumento de que “na
história não é diferente” (ENGELS, 2015, p. 167) pode dar margem a uma
interpretação analógica, mesmo a contragosto do próprio autor. Na exemplificação da
lei no desenvolvimento filosófico do materialismo (ENGELS, 2015, p. 168), mesmo sua
concepção da
Aufhebung
11
está mais próxima de Hegel que de Marx. E sua conclusão
de 1878, finalmente, é inequívoca e marcante, a ponto de permanecer sólida, pelo
menos, no quinquênio seguinte à sua elaboração. Finaliza Engels:
Então, o que é a negação da negação? Uma lei sumamente universal
10
A respeito, cf. Lukács (2010, pp. 167 ss.).
11
“A filosofia foi, portanto, ‘suprassumida’, isto é, ‘tanto superada como preservada’ superada em sua
forma, preservada em seu conteúdo real” (ENGELS, 2015, p. 168).
Alexandre Aranha Arbia
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e, por isso mesmo, de alcance extremamente amplo e de suma
importância referente à evolução da natureza, da história e do
pensamento; uma lei que, como vimos, vigora no mundo animal e
vegetal, na geologia, na matemática, na história, na filosofia e à qual
o próprio sr. Dühring, sem o saber, tem de render-se a seu modo,
apesar de toda renitência e resistência. (ENGELS, 2015, p. 170
itálicos meus)
Sabemos que Marx jamais se referiu a exceção da história a leis universais
da dialética. Mais que isso, a admissão apriorística de uma lei inexorável, válida para
todos os seres e em todas as épocas, põe em xeque a própria transmutabilidade do
ser. E Engels, de modo autônomo e original em relação a Marx, passos decisivos
em relação à existência de leis universais (da dialética):
Se digo que todos esses processos são negação da negação, estou
sintetizando todos eles nessa lei do movimento e, justamente por isso,
desconsidero a peculiaridade de cada processo específico. E a
dialética nada mais é que a ciência das leis universais do movimento
e da evolução da natureza, da sociedade humana e do pensamento.
(ENGELS, 2015, pp. 170-171)
uma relação difícil, aqui, entre gica e história. Ainda que critique Hegel,
Engels procura redimensionar o problema da dialética da natureza. Seu objetivo é,
certamente, colocar as coisas em termos materialistas; todavia, o que se vê em muitas
passagens é uma transmigração direta (sem mediações) entre os fenômenos naturais
e sociais, tomados pelas chamadas “leis gerais”. É neste ponto que Engels parece
deslocar-se
do campo da práxis
para o campo da lógica
. Todo esse arrazoado, muito
devido, talvez, ao modo expositivo de Engels mais “sistemático” que o de Marx (cf.
SARTORI, 2015) produz dificuldades interpretativas ainda maiores do que quando
Engels realiza a defesa da ciência da história, ao mesmo tempo em que secciona, no
trato do problema, a questão da “lógica” (formal e dialética) por um lado e ciência
positiva da natureza e da história”, por outro. No resumo de Sartori (2015, p. 127):
A ciência da história’ mencionada antes trazia consigo a imanência da dialética,
considerada o próprio movimento do real e, agora, a questão parece emergir de modo
um tanto quanto distinto, rompendo-se (...) a unidade entre ‘método’ e realidade
efetiva”.
A tensão permanece em 1883 e Engels demonstra não nutrir qualquer dúvida
em relação às leis da dialética. O prefácio de
A dialética da natureza
(ENGELS, 1976)
traz momentos de inspiração singular, que, numa leitura atenta, terminam por
comprovar a unidade ontológica entre ser natural e social. Engels reconhece essa
unidade, mas prefere explorá-la a partir do marco lógico que estabeleceu previamente.
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Suas ilustrações a respeito do desenvolvimento do cosmos até o desenvolvimento da
vida e do homem são inspiradoras e foram consideradas por Lukács no
desenvolvimento de sua
Ontologia...
; à diferença que o marxista magiar termina por
reformular, em bases totalmente novas e ampliadas, um problema corretamente
percebido, mas desenvolvido de modo ambíguo por Engels.
Novamente aqui, a exemplo do que vimos no
Anti-Dühring
, Engels transmigra
com demasiada fluidez entre as ciências naturais e sociais. Após linhas exemplares e
inspiradas a respeito do desenvolvimento da matéria, do cosmos e da vida, deparamo-
nos
de súbito
com a constatação de que
Nos países industriais mais avançados, o homem dominou as forças
naturais, submetendo-as ao seu serviço. Dessa maneira, se conseguiu
multiplicar infinitamente a produção de modo que um menino, hoje
em dia, produz mais que cem adultos antes. Qual a consequência daí
decorrente? Crescente excesso de trabalho e crescente miséria das
massas; e a cada ano um grande
krach
(craque ou crise). (ENGELS,
1976, p. 26)
É de se estranhar a forma sintética e súbita dos saltos. E, sem dúvida, esse
modo expositivo produziu controvérsias entre seus intérpretes. Basta que pensemos
no destino da dialética a partir de Bernstein, que, como antigo discípulo de Dühring,
a considerava um absurdo; do próprio Engels (aqui, seguido de perto por Lênin), que
vislumbrava sua duplicidade objetiva e epistemológica; e, por fim, do marxismo
ocidental, que atestava sua aplicação ao domínio social, mas não ao domínio natural.
Mas, afinal, qual o significado da dialética da natureza em Engels? Talvez
pudéssemos considera-la uma primeira tentativa de unificação ontológica de natureza
e sociedade, uma compreensão correta, construída sobre bases temerárias. Tais bases
que geraram inúmeros desdobramentos posteriores, muitos dos quais, com toda
certeza, incompatíveis com a grandeza e genialidade de Engels foram sinteticamente
listadas à abertura do livro, no início do primeiro capítulo:
As leis da dialética são, por conseguinte, extraídas da história da
Natureza, assim como da história da sociedade humana (...). Reduzem-
se elas, principalmente, a três:
1) A lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa;
2) A lei da interpenetração dos contrários;
3) A lei da negação da negação. (ENGELS, 1976, p. 34)
O que se assiste, a partir daí, é uma elaboração extremamente culta, que
explicita o enciclopédico conhecimento de Engels a respeito das ciências naturais de
seu tempo. Em muitos casos, diga-se de passagem, Engels consegue, com sucesso,
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demonstrar como tais leis “universais” se manifestam nos seres inorgânicos e
orgânicos e como vêm sendo descobertas pelas ciências naturais.
No entanto, esse relativo sucesso não esconde os problemas, que, concluo,
concentram-se em três pontos-chave: 1) Engels transmigra de modo extremamente
direto (
imediato
) entre leis da natureza e da sociedade (tendo por eixo comum uma
dialética
lógica
universal); 2) Engels reinsere a
lógica
no lugar da
imanência
(no
caso engelsiano, a lógica passa a determinar a verificação empírica e explicar seus
resultados; lado outro, levada a orientação de cariz epistemológico ao paroxismo por
seus continuadores, a lógica terminará, finalmente, por servir de fecho coerente à
explicação, justamente nos pontos onde se ignoram os fatos; em poucas palavras: a
lógica é chamada a suprir exatamente as lacunas fatuais. Veremos em breve,
notadamente no Prefácio de 1895, elementos que virão a permitir dita extrapolação);
3) há, por certo, limitações da própria fase de desenvolvimento das ciências naturais
no período (final do séc. XIX); ou seja, muitas das explanações de Engels,
profundamente científicas na conjuntura da elaboração de
A dialética da natureza
, hoje
encontram-se superadas nas próprias ciências naturais.
A aproximação que Engels realiza entre natureza e sociedade, pelas leis da
dialética, somadas ao modo como (re)avalia (e combate) Hegel, marcadas pelo
profundo materialismo que orienta suas concepções, não resolvem, em uma leitura
rápida, questões que se impõe na leitura de suas últimas obras. Quais sejam: em se
tratando da dialética, estamos frentes a uma realidade apriorística ou Engels
empreendeu uma generalização lógica? A dialética é objetiva ou metodológica? (ao
menos neste aspecto, parece-me claro que, para Engels, encontra-se em ambos os
momentos: na própria realidade e como método. No primeiro caso, sua posição é
idêntica à de Marx; no segundo, distancia-se do
partner
teórico, que empreende,
como defendeu Chasin [2009, pp. 89 ss.], uma
leitura imanente
da realidade objetiva,
a partir do que o autor brasileiro definiu como “teoria das abstrações”; já Engels, por
seu turno, defende a adoção de uma posição metodológica dialética para a captura da
dialética objetiva essa posição está clara no texto de 1878 e foi certamente ela que
impulsionou as discussões posteriores, amplamente difundidas, a respeito do método).
Seguindo o bloco de questões, não também como negar a arbitrariedade
dos exemplos e o modo como estabelecem analogia, muitas vezes de cunho
homogeneizante, entre realidades tão distintas. E, por fim, sobre as controvérsias a
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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nova fase
respeito da existência (ou não) de uma dialética na natureza, prefiro abster-me, tendo
em vista minha ignorância nesta seara.
Logo, é difícil o concordar com Lukács, a respeito da existência de uma
tensão entre ontologia e lógica, nos escritos do filósofo de Barmen (LUKÁCS, 2010, p.
155). De todo modo, duas considerações de Lukács me parecem importantes e
consoantes ao problema também levantado por Chasin (menos em Engels, é verdade,
e mais em seus continuadores):
Na descrição de Engels e mais ainda naquelas que se seguiram,
parecia tratar-se da existência, sobretudo de um método dialético
unitário que poderia ser aplicado com a mesma justeza na natureza e
na sociedade. Segundo a autêntica concepção de Marx, trata-se, em
contrapartida, de um processo em última análise, mas só em última
análise histórico unitário, que se mostra na natureza inorgânica
como processo irreversível da transformação, de complexos maiores
(como sistemas solares e “unidades” maiores ainda) passando pelo
desenvolvimento histórico de cada planeta até os átomos processuais
e seus componentes, em que não existem fronteiras constatáveis para
“cima” ou para “baixo”. (LUKÁCS, 2010, pp. 263-264)
E conclui, muitas páginas a frente:
A determinação ontológica marxiana da história como característica
fundamental de todo o ser é uma teoria universal, válida tanto na
sociedade como na natureza. Mas isso não significa, de modo nenhum,
a visão amplamente difundida nas últimas décadas, especialmente
entre os comunistas, de que a concepção total de Marx seja uma teoria
filosófica abstratamente geral (em sentido antigo), cujos princípios
gerais, válidos para todo o ser, agora também fossem “aplicados” à
história e sociedade (no sentido mais estreito e burguês). Com essa
“aplicação” surge pretensamente a teoria do “materialismo histórico”.
Assim Stalin tomou posição em sua descrição desses complexos de
problemas no conhecido capítulo IV da
História do partido
. Ele afirma:
“O materialismo histórico é a
ampliação
dos princípios do
materialismo dialético para a pesquisa da vida social, a
aplicação dos
princípios do materialismo dialético
às manifestações da vida em
sociedade, à pesquisa da história da sociedade.
Quanto ao próprio Marx, até onde sei, ele não empregou a expressão
“materialismo dialético”; naturalmente, fala com frequência em
métodos dialéticos, e a expressão “materialismo histórico”, que
aparece com especial frequência em Engels, sempre se relaciona com
a totalidade da teoria, e nunca significa uma “aplicação” específica ao
“domínio” da história como esfera particular. Para Marx, que via na
história o princípio universal de movimento de todo ser, a expressão
“aplicação” seria uma contradição com seus próprios princípios
fundamentais. (LUKÁCS, 2010, pp. 330-331 itálicos do original)
Alexandre Aranha Arbia
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nova fase
2.3.2-
Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã
(1886): da interpretação
original da dialética à reavaliação da política no Prefácio de 1895
Escrito em 1886, a convite de Kautsky e Bernstein, em
Ludwig Feuerbach e o
fim da filosofia clássica alemã
(ENGELS, 2020), Engels aproveita a oportunidade de
comentar a tese de Karl Starcke para revistar os manuscritos de 1945/46 (
Ideologia
alemã
), fazendo ainda um balanço de sua relação (e da de Marx) com as ideias de
Feuerbach. Engels também se vale da oportunidade para apresentar uma crítica ao
neokantismo ascendente. O fato de ter produzido o texto a convite dos dois marxistas,
pode ter exercido alguma influência na inflexão analítica sobre a política que se
apresenta na última parte (assim como produziu, no Prefácio de 1895, a demanda
do Partido Social-Democrata Alemão; prova disso são os trechos escritos por Engels
sumariamente censurados pelo partido). Todavia, em
Feuerbach...
nada permite essa
conclusão liminar, a qual demanda uma investigação mais detida.
Na primeira parte, Engels realiza um formidável balanço sobre a tensão interna
do pensamento de Hegel (sistema X método), como ainda situa os debates entre os
velhos e jovens hegelianos a partir dessa clivagem fundamental. Na segunda parte,
retoma discussões a respeito do materialismo, explicitando suas insuficiências até o
séc. XIX, como consequência das próprias limitações das pesquisas no âmbito das
ciências naturais. Afinal, mesmo os movimentos mais gerais da matéria eram
relativamente desconhecidos neste campo. Na terceira parte, a abordagem é sobre os
limites do próprio Feuerbach, creditados ao seu próprio tempo (limitações das ciências
naturais) e ao seu isolamento (o modo como produziu sua filosofia), mas também
vinculados a sua própria debilidade em superar o idealismo. Para Engels, Feuerbach
conserva traços idealistas em sua crítica à religião, na mediada em que não pretende
“abolir” a religião, mas superá-la por uma religião humanista”. Os conhecidos
problemas de Feuerbach, indicados por Marx (em
Ad Feuerbach
), também são
resgatados pelo filósofo.
Todavia, é a quarta seção que nos interessa mais diretamente. Na última e mais
controversa parte da monografia, Engels retoma alguns temas como as leis universais
da dialética (que comparecem com menos destaque do que nos textos anteriores),
reorienta sua compreensão da política, reafirma a questão da determinação econômica
em última instância e, por fim, trata da ideologia. Vejamos brevemente tais questões,
com maior destaque para as duas primeiras.
No que diz respeito às leis universais da dialética, retomadas de modo sutil,
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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nova fase
resta claro que a questão não sofreu reformulações. Não há, todavia, uma insistência
incisiva no tema, o que pode estar relacionado ao fato de Engels haver-lhe dedicado
tratamento prolongado em textos anteriores. De qualquer modo, aqui não há guinada
em sua interpretação neste âmbito. Seu entendimento mais explícito é que a superação
científica da filosofia (metafísica) da natureza é justamente a
demonstração científica
da dialética da natureza. Engels não abandona a ideia de uma ciência una, capaz de
reconhecer as leis universais do movimento:
O que vale para a natureza, que também é reconhecido por meio disso
como um processo de desenvolvimento histórico, vale também para a
história da sociedade em todos os seus ramos e para a totalidade de
todas as ciências que se ocupam de coisas humanas (e divinas). (...)
Na natureza (...) somente agenciamentos cegos, desprovidos de
consciência, que geram efeitos uns sobre os outros e em cuja
interação recíproca a lei universal tona-se válida. (...) Em contrapartida,
na história da sociedade, os agentes estão nitidamente dotados de
consciência, são homens que se propõem a agir com reflexão ou
paixão, em determinadas finalidades; nada acontece sem propósito
consciente, sem uma finalidade que seja fruto da vontade. Mas essa
diferença, por mais importante que seja para a investigação histórica,
não altera em nada o fato de que o curso da história é regido por leis
universais. (ENGELS, 2020, pp. 99-101)
Algo estranha na afirmação, pela tensão entre práxis e leis férreas universais. E
não se está falando de leis, tais como as apresentadas por Marx em
O capital
, por
exemplo. Vimos, antes, tratar-se de leis universais que, de algum modo, estão postas,
elas mesmas,
sobre a própria história
e que condicionam seres tão distintos como as
matérias inorgânicas, orgânicas e o próprio desenvolvimento da consciência leis
absolutas
. Por outro lado, Engels é um homem de ciência, um racionalista radical. E é
nesse espírito que defende a superação cientifica da filosofia. No entanto, é preciso
determinar muito claramente aqui, que Engels está tomando a filosofia pela
“especulação”, ou seja, na estrita linha em que ele e Marx haviam estabelecido Hegel
como o próprio fim da filosofia. absoluta coerência neste aspecto da crítica
engelsiana, quando compreendida no quadro de sua afirmação. Todavia, suas palavras
terminaram extrapoladas, vindo a desaguar, não por sua responsabilidade, em um
cientificismo
canhestro no marxismo vulgar.
Engels também procurou equacionar o lugar do fundamento econômico na
determinação do conjunto macrossocietário. Em uma rápida passagem onde aborda a
questão das classes, explicita uma questão aparentemente óbvia, cujo destino foi uma
vulgarização terrível. O desenvolvimento histórico das classes, trazido em
Feuerbach...
(cf. ENGELS, 2020, p. 109), encontra um encadeamento absolutamente clássico e
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culmina na afirmação de que “a origem e o desenvolvimento de duas grandes classes
eram aqui claras e palpáveis a partir de causas puramente econômicas” (cf. ENGELS,
2020, p. 109); disso, segue-se que “na luta entre burguesia e proletariado, o que
estava em disputa, em primeiro lugar, eram interesses econômicos, para cuja efetivação
o poder político devia servir de mero meio” (cf. ENGELS, 2020, p. 109). Ora, toda luta
e toda formação ideal encontra,
em última instância
(Engels deixou apenas de frisar
com veemência “
em última instância, mas apenas em última instância!
”), uma carência
humana, como determinação material. Isso, todavia, não é mesmo que ratificar que
todo e qualquer fenômeno social tenha de encontrar explicações
necessariamente
econômicas. Claro, o problema foi ainda mais embaralhado pelo trânsito fluido de
Engels entre natureza e sociedade, nos inúmeros exemplos que traz sobre as leis da
dialética, em diversos momentos de sua obra. A relação exposta por Engels entre “leis
da dialética” e o fato de que “de acordo com a concepção materialista, o fator decisivo
na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata”
(ENGELS
apud
SARTORI, 2015 p. 129) abriu as portas para que o marxismo vulgar
tomasse a determinação econômica com uma radicalidade literal e esquemática: toda
e qualquer análise deveria desaguar, assim, em uma determinação econômica, ainda
que por atalhos. O marxismo oficial tornou-se sinônimo de
economicismo
. É evidente
que esse expediente é completamente alheio às pretensões do próprio Engels e,
inclusive,
não é encontrado nos escritos do autor
12
.
Em continuidade, ao menos em
Feuerbach...
, Engels apresenta ainda uma
definição mais refinada de ideologia
, que terminou unilateralizada. Ao mesmo tempo
em que, por um lado, a considera como expressão ideal que impulsiona os homens
para ações práticas, termina por abarcar, também, a concepção de “falsa consciência”,
sobretudo pelo modo como expõe, sequencialmente, direito, filosofia e religião. Senão,
12
Pelo contrário, em suas explanações sobre a ideologia, considera Engels (2020, p. 117): “O estado,
porém, uma vez que se torna um poder autônomo diante da sociedade, logo em seguida produz uma
ideologia ulterior. Nos políticos de profissão, nos teóricos do direito do estado e nos juristas do direito
privado,
perde-se, sobretudo, a própria conexão com os fatos econômicos
. Porque em cada caso
individual os fatos econômicos têm de tomar a forma de motivos jurídicos para serem sancionados na
forma da lei (...).
Ideologias ainda mais superiores
, isto é,
ainda mais afastadas do fundamento
econômico, material
, tomam a forma da filosofia e da religião. Aqui,
a conexão das representações com
as suas condições materiais de existência torna-se sempre mais complexa, sempre mais obscurecida por
elos intermediários
. Mas ela existe” (itálicos meus). Bem observado, Engels reafirma a determinação
econômica, mas não propõe atalhos para alcançá-la. Todavia, devemos reconhecer que a ampla
publicação das obras de Marx e Engels, hoje, torna mais fácil identificar essas nuances e o sentido
nos escritos do autor.
J. Chasin e a crítica do “tríplice amálgama
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nova fase
vejamos. Em sua primeira abordagem, define:
O único caminho que pode nos colocar no rastro das leis que dominam
a história, tanto em geral como em períodos e regiões singulares, é
averiguar, como fundamentos conscientes de movimento, as causas
motrizes que aqui se refletem clara ou obscuramente, imediatamente
ou na forma ideológica, por vezes sacralizada na cabeça das massas
e de seus condutores, os chamados grandes homens.
Tudo o que põe
os homens em movimento tem de passar por sua cabeça
; mas que
configuração toma nessa cabeça depende muito das circunstâncias.
(ENGELS, 2020, pp. 105-107 itálicos meus)
Seu argumento percorre, assim, da política (na revisão que estabelece e da qual
falarei em breve) ao estado
13
, do direito à filosofia e da filosofia à religião. Este
encadeamento é importante, pois ele será simplificado posteriormente e essa primeira
acepção será abandonada por seus continuadores. Sua crítica do direito, da filosofia e
da religião, como ideologias, produz, assim adicionalmente, a admissão de que a
ideologia pode nem sempre refletir fidedignamente à realidade, mas que deve manter
sua característica ativa:
Toda ideologia, porém, desde que ela exista, desenvolve-se em
conexão com o material da representação dado, a ele uma forma
ulterior; caso contrário, ela não seria ideologia, isto é, desenvolvendo-
se independentemente, submetida apenas às suas próprias leis. O fato
de as condições materiais da vida dos homens, em cuja cabeça esse
processo de pensamento avança, determinarem definitivamente o
curso desse processo,
permanece necessariamente inconsciente para
esses homens, afinal, caso contrário, toda ideologia chegaria ao fim
.
(ENGELS, 2020, p. 119 itálicos meus)
-se como, aqui, tratando da ideologia a partir da crítica da religião, o
fenômeno adquire uma clara conotação de falsa consciência. Mais precisamente, a
intepretação da abordagem engelsiana da religião produziu no marxismo posterior
uma concepção “sociológica” do fenômeno, passível de eliminação, sem que se
problematizassem seus condicionantes mais profundos nas relações humanas (como,
por exemplo, em Marx [2010]). Pôde, dessa forma, o marxismo vulgar produzir um
encadeamento ao mesmo tempo simplório e pernicioso: à filosofia (enquanto
idealismo) combate-se com o marxismo (ou seu materialismo dialético); à ideologia
(como falsa consciência) contrapõe-se à ciência dialética; por fim, contra a religião, o
materialismo.
13
“No estado, apres