ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de
O futuro ausente
- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
DOSSIÊ
Verinotio
nova fase
J. Chasin: a ontonegatividade
da politicidade em Marx
1
J. Chasin: the ontonegativity of politicality in Marx
Ana Selva Castelo Branco Albinati*
Resumo: O propósito desse artigo é apresentar o
trabalho realizado por J. Chasin na elucidação de
um aspecto central do pensamento de Marx, que
é a crítica à política. Não se trata só da conhecida
questão do fim do estado, uma vez que essa se
coloca no interior de uma determinação mais
ampla que é a da necessidade, da origem e do
significado da política, reflexão desenvolvida por
Marx, que conduz à consequente negação da
politicidade enquanto atributo inerente à
existência social, aspecto que Chasin procura
explicitar na obra do autor e que é fundamental
para o resgate do sentido profundo da
proposição marxiana, qual seja, a possibilidade
da emancipação humana, desentranhada das
ilusões sobre as quais se sustenta a concepção
tradicional da política.
Palavras-chave: Marx; ontonegatividade da
politicidade; emancipação humana.
Abstract: The purpose of this article is to
present the work of J. Chasin in the elucidation
of a central aspect of Marx's thought, which is
the critique of politics. It is not just about the
well-known question of the end of the State,
since this is placed within a broader
determination that is the need, origin and
meaning of politics, a reflection developed by
Marx, which leads to the consequent denial of
the politicality as an attribute inherent to social
existence, an aspect that Chasin seeks to
explain in the author's work and which is
fundamental for the rescue of the deep meaning
of the Marxian proposition, that is, the
possibility of human emancipation, freed from
the illusions on which the traditional politics
conception is based.
Keywords: Marx; ontonegativity of politicality;
human emancipation.
Introdução
O propósito desse artigo é apresentar em traços gerais o trabalho realizado por
J. Chasin na elucidação de um aspecto central do pensamento de Marx, que é a crítica
à política. Crítica no sentido compreendido por Marx como determinação da função e
dos limites de uma dada entificação histórico-social. O significado do esforço de Chasin
está em que ele nos remete à fundamentação ontológica de tal crítica, tratando-a com
o rigor e o alcance devidos à dimensão e originalidade com que Marx a propõe. A
compreensão da relação entre a atividade política e a existência social, entre o ser
1
Versão revista e ampliada do artigo originalmente publicado na
Verinotio Revista on line de Filosofia
e Ciências Humanas
Edição Especial, 2008, pp. 47-61.
* Doutora em filosofia pela UFMG e professora do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais.
E-mail
: anaselvaalbinati@gmail.com.
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.666
Ana Selva Castelo Branco Albinati
184 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
social e o estado, possibilitada pelos estudos de Chasin permite, aos leitores de Marx,
o resgate do sentido profundo de sua proposição filosófica, qual seja, a possibilidade
da emancipação humana, desentranhada dos equívocos e ilusões sobre os quais se
sustenta a concepção tradicional do sentido e da razão de ser da política.
A tradição ocidental nos legou, a partir dos gregos, uma concepção da política
como ciência superior, atividade pautada pelo conhecimento racional que visa o bem
comum. Tal atividade seria fundada sobre o que seriam os elementos da natureza
humana que estão envolvidos diretamente na vida em comunidade: a racionalidade e
a liberdade na determinação de valores, normas e instituições que garantam a vida em
comunidade.
Nessa perspectiva, temos o reconhecimento de uma positividade na ação política,
referida à destinação da política e à suposição de sua qualificação intrínseca para esta
destinação. Em outros termos, a política é tida como a esfera privilegiada da expressão
da liberdade e da isonomia humanas, como esfera racional de conformação das
relações sociais a partir do estabelecimento racional de critérios para uma vida justa.
A esfera política seria, assim concebida, o elemento por excelência do humano. Essa
concepção da política permanece ainda hoje como o horizonte ao qual devem se voltar
as práticas políticas, e resiste a despeito do exercício sempre faltoso em relação ao
seu conceito. Em outros termos, se as práticas políticas são imperfeitas, isso não é
suficiente para abalar a confiança na politicidade, entendida como atributo inerente ao
ser social, e isso parece constituir o núcleo da filosofia política da antiguidade aos
nossos tempos.
Mesmo um autor como Maquiavel a quem devemos o grande questionamento
do sentido da política e do papel do estado na origem da modernidade , ainda se
inscreve no interior dessa perspectiva, diferenciando-se, no entanto, ao apresentar a
essência da atividade política em um momento no qual a relação entre o indivíduo e a
comunidade já se apresentava muito mais cindida e complexa. A questão central para
Maquiavel era a preservação da unidade de um povo, que ele via ameaçada quando
do desmoronamento da ordem feudal e das instituições pré-modernas. A corrupção
decorrente dessa transformação, que corresponde ao declínio da comunidade e ao
surgimento do indivíduo, leva à necessidade, na percepção de Maquiavel, de uma
recriação do estado como “demiurgo da sociabilidade”. Como observa Chasin:
Sua enérgica denúncia e rejeição, sistematicamente reiteradas, do
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 185
Verinotio
nova fase
presente corrompido, assim como a concepção resolutiva dos choques
e confrontos que adota, comprovam que não é do realismo com que
reconhece a desagregação moderna que extrai o polo norteador da
parte concludente de sua reflexão, mas de uma luz que vem do
passado, para se transfigurar em suas mãos num claro-escuro
revelador. (CHASIN, 2000, p. 225)
O significativo da inflexão realizada por Maquiavel em relação à política é que
ele desvela o modo de ser da política, agora mais claramente exposto, no que se refere
à sua relação intrínseca com a forma da sociabilidade. A política é uma intervenção,
assegurada pelo monopólio do poder e da violência legitimada, sobre as contradições
da sociedade, sobre as fissuras internas à existência social, de forma a mantê-las sob
controle.
Ainda segundo Chasin,
um dos grandes méritos de Maquiavel foi ter constatado e admitido a
existência do fenômeno social que, bem mais adiante, recebeu o nome
técnico de contradição, porém, sob a forma reduzida e
dessubstanciada do que também posteriormente foi chamado de
conflito (2000, p. 227).
Vale dizer que a grandeza de Maquiavel de reconhecer a desunião e a desordem
como elementos da vida em sociedade, rompendo com a mística da harmonia social,
recua na medida em que essas não são compreendidas como contradições postas
historicamente, mas como conflitos diante dos quais não pode haver superação,
remetidos a uma antropologia naturalista que lhes subsistência
ad eternum
. A
percepção de uma ordem social pautada sobre contradições, e o remetimento destas
ao estatuto de conflitos, originários e eternos, próprios da natureza humana,
possibilitam a Maquiavel a leitura da política como artifício de assegurar a ordem frente
a seus elementos negadores. Para tanto, a razão política se descola da razão ética,
baseada na homologia com a harmonia da
physis
, e ganha os contornos de uma arte
de estabilizar as contradições. O caráter irresolutivo da política, em relação às questões
sociais, se manifesta integralmente na reflexão de Maquiavel, assumindo, no entanto,
uma fundamentação naturalista, de forma que a leitura da realidade empírica de seu
tempo se ancora sobre uma antropologia do egoísmo como dado irrecusável das
relações humanas.
O desenvolvimento filosófico de tal fundamentação se dará em Hobbes, cujo
pensamento consagra a necessidade do estado como condição
sine qua non
da
sobrevivência dos indivíduos e a ideia do estado de natureza como ameaça constante
que ronda os indivíduos fora do domínio da sujeição ao estado.
Ana Selva Castelo Branco Albinati
186 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
Hobbes apreende com muita perspicácia o traço característico da modernidade,
o abandono das hierarquias de uma sociabilidade estamental e o surgimento de novas
condições que assentam a sociabilidade do capital, quais sejam, o reconhecimento da
igualdade e da liberdade universal dos homens. É essa igualdade que funda a
preocupação hobbesiana, razão de conflitos a serem sanados pela vida civil sob o
controle de um estado forte.
A questão que perpassa a filosofia política moderna diz respeito à legitimidade
do poder do estado. Em outras palavras, temos que, a partir de uma constatação da
necessidade de regulação das contradições sociais, o estado é entendido como esfera
que dispõe do monopólio do uso legítimo da força para intervir internamente nas
questões sociais, bem como para garantir a segurança frente às outras nações, como
afirmará Max Weber. De forma bastante simplificada, a existência do estado se justifica
pelo reconhecimento das dificuldades de se viver em sociedade. A positividade da
atividade política está em atuar como uma arte de conformação de conflitos. Portanto
não um rompimento na tradição que legitima e considera insuperável a esfera
política, ainda que essa passe a ser considerada como o lugar do possível, ou em
outras palavras, o lugar da não-resolução. Mais que isso, a reflexão política
contemporânea coloca como definitiva a não-resolução das questões sociais, o que
alicerça a compreensão da política como o campo do possível, compreensão que
consagrará a crença na “vontade política”.
O que fica, no entanto, oculto nessa formulação é a razão de ser e o caráter das
contradições sociais que, em sua incompreensão, são tomadas como parte da condição
humano-social, entronizando assim, a politicidade como elemento essencial da
existência social. Negligenciando a relação entre o processo de individuação e a
autoconstituição do gênero humano, atravessada e conduzida pela particularidade da
existência social, tal perspectiva pretende estabelecer uma condição humana como
ponto de partida para a compreensão das contradições sociais e eternizar a esfera
política como possibilidade única de minimizar as questões sociais.
A análise de Chasin a respeito desse aspecto central do pensamento de Marx é
fundamental para a compreensão e crítica do politicismo que viceja, sob diversas
roupagens, na atualidade.
A trajetória de Marx rumo à determinação ontonegativa da politicidade
Esse aspecto fundamental do pensamento de Marx foi exaustivamente trabalhado
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 187
Verinotio
nova fase
por José Chasin, que procurou trazer à tona a radicalidade da proposição marxiana
através do termo “ontonegatividade da politicidade”.
o se trata da conhecida questão do fim do estado, uma vez que esta se
coloca no interior de uma determinação mais ampla e profunda que é a do significado
da política, e da negação da politicidade enquanto atributo inerente à existência social.
Em poucas palavras, a atividade política não se assenta sobre uma dimensão
constitutiva da vida social, nem representa a vocação universalista de uma dada
essência humana. Em outras palavras, ela não é imprescindível nem como elemento
superior da relação humano-social, nem como mal necessário.
A politicidade indica, ao contrário, uma insuficiência da sociabilidade, e não o
seu corolário. A atividade política, enquanto meio para a regulação social, expressa
não um rito, mas um déficit social. Se até então as contradições sociais eram
compreendidas como conflitos inerentes à condição humano-social, Marx procurará
compreendê-las em sua gênese, retirando-lhes assim o caráter de necessidade e
eternidade, para o qual a melhor resposta seria a política. O estado surge como
resposta às contradições entre interesses privados e interesses coletivos que são, por
sua vez, oriundos da divisão do trabalho que separa os indivíduos em redutos
específicos que os impedem de compartilhar de uma forma concreta a universalidade
do gênero. A questão de que o estado venha a representar um dado conjunto de
valores e interesses particulares como sendo universal se acrescenta a essa
compreensão primeira.
Trata-se para Marx de fazer a crítica da forma da sociabilidade sobre a qual se
erige a necessidade do estado. Esta trajetória se inicia com a
Crítica da filosofia do
direito de Hegel
, texto de 1843, no qual o autor concentra-se sobre os parágrafos da
obra de Hegel, Princípios da filosofia do direito, que tratam do estado. O texto de Marx
se compõe de camadas de críticas e considerações a respeito da relação entre
sociedade e estado, tal como colocada por Hegel, que se assentam sobre uma crítica
de caráter ontológico, qual seja, a identificação da inversão ontológica que Hegel
realiza entre o sujeito e o predicado. Isso equivale a dizer que Hegel toma a Ideia
como sujeito e a realidade como predicado desta Ideia, como havia sido denunciado
por Feuerbach.
Segundo Marx, Hegel "deduziria" a relação entre estado e sociedade civil a partir
de uma lógica que lhe é imposta de fora. Assim sendo, em Hegel, "a lógica não serve
Ana Selva Castelo Branco Albinati
188 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
à demonstração do estado, mas o estado serve à demonstração da lógica" (MARX,
2005, p. 39). O fenômeno político passa a ser uma aplicação da lógica hegeliana, na
qual a ideia que se desdobra no Espírito objetivo, nas esferas da família e da sociedade
se recupera, agora plena de determinações, no estado. Sendo a ideia o sujeito, temos,
segundo Marx, que em Hegel:
A realidade empírica é tomada tal como é; ela é também enunciada
como racional; porém ela não é racional devido à sua própria razão,
mas sim porque o fato empírico, em sua existência empírica, possui
um outro significado diferente dele mesmo. O fato, saído da existência
empírica, não é apreendido como tal, mas como resultado místico.
(2005, p. 31)
Assim, a crítica ao edifício lógico de Hegel, que tem na filosofia do espírito
objetivo o estado como ápice, é feita por Marx no sentido de indicar neste
procedimento a inversão da relação entre ser e ideia, e a mistificação que dela se
deriva. A crítica ao procedimento especulativo se enlaça à crítica do próprio estado,
que se inicia neste texto, vindo culminar numa compreensão absolutamente peculiar
ao pensamento marxiano do significado da política.
Se a princípio, trata-se não da recusa do estado enquanto instância de
universalidade, mas da recusa do procedimento especulativo que qualificaria qualquer
estado existente como racional e, nessa medida, insere-se a defesa da democracia em
contraposição ao reconhecimento da monarquia constitucional como expressão
legítima do estado moderno por Hegel, encontra-se, no entanto, elementos nesse texto
que propiciam a ruptura com a determinação da política e do estado como instâncias
da racionalidade concreta.
Temos, em Hegel, que o grande mérito do estado moderno é a manutenção das
particularidades na vida civil e a conciliação de seus interesses na vida política. O passo
decisivo que Marx dá neste texto é a tematização das razões que levaram
historicamente a este distanciamento entre interesse privado e interesse público.
Enquanto o que Hegel identifica como mérito da modernidade, o distanciamento entre
as esferas civil e política e a conciliação via estado moderno como expressão da ideia
da liberdade, Marx identifica como produto do desenvolvimento histórico, apontando
a sua significação contraditória, e a conciliação, a princípio, possível apenas na forma
democrática.
Marx contrapõe a democracia à monarquia, atribuindo à primeira forma de
governo a capacidade de conciliação verdadeira entre os interesses particulares e os
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 189
Verinotio
nova fase
interesses universais do gênero humano. A relação entre vida civil e vida política se
torna clara quando Marx afirma:
Na monarquia, o todo, o povo, é subsumido a um de seus modos de
existência, a constituição política; na democracia, a constituição
mesma aparece somente como uma determinação e, de fato, como
autodeterminação do povo. Na monarquia temos o povo da
constituição; na democracia a constituição do povo. A democracia é o
enigma resolvido de todas as constituições. Aqui a constituição, não
apenas em si, segundo a essência, mas segundo a existência, segundo
a realidade, em seu fundamento real, o homem real, o povo real, e
posta como a obra própria deste último. (2005, p. 50)
A sociedade civil aparece neste texto, mesmo que ainda não em seu contorno
definitivo, como o polo determinante das relações políticas e jurídicas, em oposição à
colocação hegeliana do estado como fundamento e síntese das esferas da família e da
sociedade. Esta reconfiguração da relação sociedade-estado possibilitará a Marx uma
abordagem radicalmente distinta da de Hegel da política e do estado.
Na análise marxiana, o estado moderno estaria divorciado da sociedade civil.
Esse divórcio se traduziria efetivamente na cisão entre o cidadão do estado e o
indivíduo enquanto membro da sociedade, em sua vida privada. Marx dirá que o
indivíduo privado não se reconhece na determinação universal abstrata, e o cidadão
não se traduz na sua realidade empírica. estado e sociedade são então esferas
antitéticas, na medida em que a primeira é apenas a expressão formal da determinação
humana, porém vazia de conteúdo e a segunda é a esfera da fragmentação, da vida
material que não encontra uma vinculação com sua expressão mais genérica. Por isso,
a conciliação que se pretende via estado não passa de uma conciliação formal.
Na
Crítica à filosofia do direito de Hegel
, a superação desta fragmentação se
daria através da democracia. A continuidade dessa temática nos textos subsequentes,
no entanto, indica que a própria democracia seria o caso limite desta conciliação via
estado.
O ponto ao qual Marx chega é uma reconsideração radicalmente distinta da
relação entre estado e sociedade, que se coloca na contraposição à consideração
tradicional acerca da política. A partir da
Crítica de 43
, o seu foco se desloca para a
compreensão do movimento da sociedade civil, como base do entendimento da
relação estado-sociedade.
De acordo com a análise histórica oferecida pelo autor, a separação entre os
interesses sociais e os interesses políticos teve sua origem a partir do final da Idade
Ana Selva Castelo Branco Albinati
190 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
Média. Esta progressiva abstração do estado seria o movimento de descolamento da
imediatidade do social, decorrente das mudanças estruturais ocorridas na passagem
da sociedade feudal à sociedade moderna. Na sociedade feudal, identifica-se a
presença explícita dos interesses privados na esfera política, a constituição política
traduz de forma imediata a vida civil, marcada por toda sorte de privilégios. Marx
refere-se a essa situação dizendo que “na Idade Média a vida do povo e a vida política
são idênticas. O homem é o princípio real do estado, mas o homem não livre”, ou ainda
caracteriza a Idade Média como “a democracia da não liberdade” (2005, p. 52).
No movimento histórico de autonomização do político, ocorre exatamente a
perda dessa referência imediata ao conteúdo social em favor de uma concepção
representativa e universalista. O estado moderno se caracteriza, segundo Marx, por
uma relação de exterioridade em relação à vida civil, resguardando a universalidade
que faltava aos estados de unidade substancial”, nos quais a tradução da vida civil se
pautava pela manutenção da desigualdade e dos privilégios privados na esfera política.
Essa universalidade formalizada na modernidade, no entanto, se relaciona com a
fragmentação da vida civil moderna de forma semelhante ao que se verifica no
fenômeno religioso. A constituição política moderna é “o céu de sua universalidade
em contraposição à existência terrena de sua realidade” (MARX, 2005, p. 51). Questão
que ele desenvolve em
Sobre a questão judaica
ao dizer que:
O estado elimina, à sua maneira, as distinções estabelecidas por
nascimento, posição social, educação e profissão, ao decretar que o
nascimento, a posição social, a educação e a profissão são distinções
não políticas; ao proclamar, sem olhar a tais distinções, que todo o
membro do povo é igual parceiro na soberania popular, e ao tratar do
ponto de vista do estado todos os elementos que compõem a vida
real da nação. No entanto, o estado permite que a propriedade
privada, a educação e a profissão atuem à sua maneira, a saber, como
propriedade privada, como educação e profissão, e manifestem a sua
natureza particular. Longe de abolir estas diferenças efetivas, ele só
existe na medida em que as pressupõe; apreende-se como estado
político e revela a sua universalidade apenas em oposição a tais
elementos. (MARX, 1989, p. 44)
O estado se mostra como uma esfera de pseudoconciliação, de universalidade
apenas formal, independente da forma política. Não se trata mais do regime político,
mas da essência do estado que seria marcada por uma tentativa sempre insuficiente
de reparação da cisão fundamental advinda da sociedade civil, e que nunca pode ser
resolvida na esfera política. Marx procura demonstrar a insustentabilidade da tentativa
de Hegel de unificar os interesses privados da sociedade com o interesse universal do
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 191
Verinotio
nova fase
estado:
Hegel não chamou a coisa de que aqui se trata por seu nome
conhecido. É a controvérsia entre constituição representativa e
constituição estamental. A constituição representativa é um enorme
progresso, pois ela é a expressão aberta, não-falseada, consequente,
da condição política moderna. Ela é a contradição declarada. (MARX,
2005, p. 93)
É a fragmentação vivida pelos indivíduos privados que sustenta a universalidade
idealizada no estado e na figura do cidadão. Marx percebe na política a mesma relação
“espiritual” que se estabelece entre o céu e a terra, entre o reino da idealidade e o
campo de batalha dos interesses conflitantes, e daí a sua consideração na Introdução
à
Crítica da filosofia do direito de Hegel
, do estado como sendo a forma profana de
alienação, nos mesmos moldes que a religião seria a sua forma sagrada. O estado
proclama uma igualdade e uma universalidade em contraposição à efetiva realidade
da vida social. De acordo com Marx, esse estado de coisas começa a se revelar não
como um “acidente” na relação do estado com a sociedade, para o qual, por exemplo,
a democracia poderia ser o corretivo, mas como a relação real e possível entre a esfera
política e a esfera social na sociedade moderna.
Ao contrário da concepção clássica de política, na qual a virtude do estado
consiste em ser, ao menos potencialmente, o depositário dos princípios universais que
tornariam todos os homens iguais nos seus direitos e deveres, Marx sustenta que o
estado se origina exatamente das insuficiências de uma sociedade em realizar em si
mesma, de forma concreta, estes ideais universalistas, ou seja, de garantir em sua
dinâmica a igualdade de condições sociais.
J. Chasin se dedica à recomposição e análise desta trajetória de Marx, em vários
de seus textos. Na trilha aberta por Marx, Chasin dirá então de uma ontonegatividade
do estado, cuja presença indica o “caráter antissocial” da vida civil. Essa determinação
tem caráter ontológico que se refere à natureza do estado, ao seu “ser-
precisamente-assim”.
Mas se é assim, a questão a se enfrentar não é mais a do aperfeiçoamento do
estado e da política, mas sim a da compreensão do ser social que leva à necessidade
da política. O reconhecimento do texto crítico de 1843 como sendo o texto de
transição que marca a ruptura com a tradição idealista se justifica na medida em que
Marx traz à tona, a partir daí, a existência social como o elemento primário a ser
considerado em sua relação com o estado, contrariamente à proposição hegeliana.
Ana Selva Castelo Branco Albinati
192 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
Como bem analisa Enderle:
O esforço de Marx em Kreuznach rendera-lhe a preciosa noção de
"autodeterminação da sociedade civil". Subsistia, no entanto, uma
grave insuficiência: a contradição entre estado e sociedade civil
permanecia nos quadros de um problema de ordem política, uma
deficiência localizada no terreno da "vontade". Imediatamente após a
Crítica, nos
Anais Franco-alemães
, Marx tratará de superar essa
posição. A gênese da alienação política será detectada no seio da
sociedade civil, nas relações materiais fundadas na propriedade
privada. Consequentemente, não se tratará mais de buscar uma
resolução política para além da esfera do estado abstrato, mas sim
uma resolução social para além da esfera abstrata da política. Na
Crítica, Marx encontrou seu objeto. Faltava desvendar sua "anatomia”.
(2005, p. 26)
Ou seja, a partir de um certo momento do texto de Marx, o estado deixa de ser
uma presença espiritual, pairando sobre a sociedade civil, e esta "espiritualidade
universal" passa a ser entendido como uma necessidade vinculada aos interesses
materiais da sociedade civil. De acordo com Chasin,
em contraste radical com a concepção do estado como demiurgo
racional da sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que
transpassa a tese doutoral e os artigos da GR, irrompe e domina
agora, para não mais ceder lugar, a sociedade civil o campo da
interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do
metabolismo social como demiurgo real que alinha o estado e as
relações jurídicas (CHASIN, 1995, p. 362).
A partir dessa consideração, Marx distingue entre o que seja a "emancipação
política" e a "emancipação humana", distinção que aponta para os limites da primeira,
enquanto forma parcial da liberdade, uma vez que
O estado político aperfeiçoado é, por natureza, a vida genérica do
homem em oposição à sua vida material. Onde o estado político
atingiu o pleno desenvolvimento, o homem leva, não em
pensamento, na consciência, mas na realidade, na vida, uma dupla
existência celeste e terrestre. Vive na comunidade política, em cujo
seio é considerado com ser comunitário, e na sociedade civil, onde
age como simples indivíduo privado, tratando os outros homens como
meios, degradando-se a si mesmo em puro meio e tornando-se
joguete de poderes estranhos. (MARX, 1989, p. 45)
Resgatadas essas passagens de Marx, podemos compreender melhor o termo
cunhado por Chasin de uma "determinação ontonegativa da politicidade", que aponta
no sentido de que a política não é um atributo intrínseco ao ser humano, mas sim que
ela é gerada como um subproduto de uma sociabilidade “antissocial”.
Para Marx, cobrar do estado uma efetivação de seu conteúdo universal é cobrar
a sua extinção, uma vez que ele se sustenta sobre a contradição entre o público e o
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 193
Verinotio
nova fase
privado, contradição esta gestada a partir da divisão do trabalho. Desta forma pode-
se entender o porquê da impotência administrativa do estado frente às mazelas sociais.
No artigo Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social”,
escrito em 44, Marx, ao polemizar com Arnold Ruge a respeito do sentido da revolta
dos tecelões da Silésia, introduz uma segunda distinção entre revolução política e
revolução social, que aprofunda a distinção entre emancipação política e emancipação
humana. Esclarecendo com mais rigor a gênese do estado, ele dirá que o estado
descansa na contradição entre a vida pública e a vida privada, na
contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Daí
que a administração deva limitar-se a uma atividade formal e negativa,
pois sua ação termina ali onde começa a vida civil e seu trabalho. Mais
ainda, frente às consequências que derivam do caráter antissocial
desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta
indústria, deste mútuo saque dos diversos círculos civis, é a
impotência a lei natural da administração. Com efeito, este
desgarramento, esta vileza, esta escravidão da vida civil constitui o
fundamento natural em que se baseia o estado moderno, do mesmo
modo que a sociedade civil da escravidão constituía o fundamento
sobre o qual descansava o estado antigo (MARX, 1987, p. 513).
Uma vez que o estado moderno se sustenta sobre a sociabilidade marcada pelos
interesses particulares antagônicos, não se pode esperar dele uma erradicação destas
mazelas, mas tão somente a eternização delas de maneira administrada, através de
medidas paliativas. Dessa forma é que Marx argumenta que, mesmo nos países mais
desenvolvidos politicamente, permanecem essas mazelas sociais. Assim, os bolsões de
miséria identificados em todos os países modernos são tidos como elementos
constituintes, para os quais o estado pode propor a assistência social conjugada
com a penalidade jurídica.
Portanto, trata-se de diferenciar o que seja emancipação política, com o seu
correlato, o estado moderno e a sociedade civil, e o que seja emancipação humana, o
rompimento da lógica política, com o advento de uma sociabilidade que permita um
mais pleno desenvolvimento das potencialidades do ser social. Continuando em sua
argumentação, Marx acrescenta que
quanto mais poderoso for o estado e mais político seja portanto o
país, menos se inclinará a buscar no princípio do estado, e portanto,
na atual organização da sociedade, cuja expressão ativa consciente de
si e oficial é o estado, o fundamento dos males sociais e a
compreender seu princípio geral. O entendimento político o é
precisamente porque pensa dentro dos limites da política. E quanto
mais vivo e sagaz seja, mais incapacitado se achará para compreender
os males sociais (1987, p. 514).
Ana Selva Castelo Branco Albinati
194 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
O aspecto a se ressaltar neste trecho é a determinação das limitações originárias
do estado, o que determina a impotência não de uma facção ou outra que esteja na
administração, mas do estado enquanto tal. Se assim for, nenhuma revolução política,
por melhor intencionada que seja e, portanto, mais vontade política demonstre em
efetivar uma boa administração, será suficiente para levar a cabo as transformações
sociais necessárias para dirimir as questões da miséria. A esperança de que a questão
social possa ser resolvida através da política se baseia, de acordo com Marx, em uma
incompreensão dos limites da política. E aqui Marx toca numa questão que é muito
cara aos tempos atuais: a cidadania e a correlata fé na "vontade política".
Com Marx, nós nos colocamos num terreno absolutamente outro, no qual estas
noções teriam que ser reavaliadas inteiramente. Não se trata de extrair daqui que Marx
tenha rechaçado a política, que ele tenha tomado como equivalentes quaisquer
proposição e ação políticas, ou mesmo tomado como indiferentes quaisquer governos
ou regimes políticos. Do que se trata é de esclarecer a essência da politicidade, de
compreender a esfera política em sua gênese, em sua relação com a forma da
sociabilidade, e em seus limites efetivos, derivados de sua condição ontológica. Ao
fazê-lo, coloca-se em questão a crença na política baseada na noção de uma "vontade
política", exatamente porque, como dirá Marx, a crença na onipotência da vontade
como fundamento da política desvia o foco da questão fundamental, que é a das
insuficiências da existência social. É por isso que ele afirma que "se o estado moderno
quisesse acabar com a impotência de sua administração, teria que acabar com a atual
vida privada. E se quisesse acabar com a vida privada, teria que destruir-se a si mesmo,
pois o estado só existe por oposição a ela" (1987, p. 514).
A compreensão da sociedade civil em sua totalidade e sistematicidade passa a
ser o objeto de Marx, uma vez compreendida a precedência desta sobre o estado e as
formas jurídicas, de tal forma que a questão se desloca, a partir de Marx, do campo da
política para o terreno da vida social concreta. Esse aspecto do pensamento de Marx
é central para a recomposição de sua proposição, segundo Chasin, na medida em que:
O ser e o destino do homem, que abstrata e, muitas vezes,
mesquinhamente atravessa a história recente da filosofia, não é para
Marx meramente aquilo que a pobreza de uso acabou por conferir ao
termo humanismo; não é um glacê sobre o oco, mas a questão prático-
teórica por excelência, o problema permanente e constante, que não
desaparece nem pode ser suprimido. (2000, p. 120)
Ou seja, a questão central que alinha toda a perspectiva marxiana é a da
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 195
Verinotio
nova fase
emancipação humana, que, no entanto, não pode ser reduzida simplesmente a um
apelo ético ou a uma esperança colocada num horizonte a jamais ser alcançado. Trata-
se de enfrentar a questão em seu terreno legítimo, o da forma da sociabilidade,
buscando ali a gênese das contradições, das contrafações, dos impedimentos, dos
limites, para que desta inteligibilidade, se possa perscrutar alguma alternativa objetiva
de superação.
Sabemos o quanto o termo “humanismo” foi questionado ao longo do século XX.
Assumi-lo como elemento central da filosofia marxiana não se torna, em vista disso,
uma tarefa fácil. Daí a preocupação de Chasin em discernir o caráter do humanismo
em Marx. Uma outra questão à qual ele não poderia deixar de responder, correlata a
esta, diz respeito à persistência ou não de tal temática, a relação entre emancipação
humana e humana política, no conjunto dos textos de maturidade de Marx. Atento às
críticas que poderiam surgir em relação à sustentação de uma determinação
ontonegativa da politicidade em Marx, Chasin cuidou de analisar em textos de sua fase
de maturidade, a presença e o desenvolvimento dessa questão, de tal forma a poder
sustentar que tal temática não constitui um mero arroubo de juventude do autor. De
acordo com a sua análise, se a questão da emancipação humana atravessa a obra de
Marx como o ponto de convergência de todos os seus esforços, a questão específica
da relação entre estado e sociedade se encontra presente, sobretudo, na trilogia.
A
guerra civil na França
,
As
l
utas de classe em França
e
O 18 Brumário
, recebendo nessas
obras um desenvolvimento coerente ao que Marx já tratara nos textos anteriores.
Ao examinar o material preparatório para a elaboração de
A guerra civil na
França
, texto de 1871, Chasin chama a atenção para passagens nas quais Marx retoma
essa temática, aprofundando-a:
Tanto quanto o aparelho de estado e o parlamentarismo não
constituem a verdadeira vida das classes dominantes, não sendo mais
do que os organismos gerais de sua dominação, as garantias políticas,
as formas e as expressões da velha ordem das coisas, igualmente, a
Comuna não é o movimento social da classe operária e, por
consequência, o movimento regenerador de toda a humanidade, mas
somente o meio orgânico de sua ação. (
Apud
CHASIN, 2000, p. 95)
-se nessa passagem que o poder político, ainda que em sua forma
reconhecidamente superior, como analisa Marx em relação à Comuna, não constitui um
fim em si mesmo, mas, ao contrário, apenas deve atuar como meio que cria “o ambiente
racional no qual a luta de classes pode atravessar suas diferentes fases do modo mais
racional e mais humano” (MARX
apud
CHASIN, 2000, p. 95).
Ana Selva Castelo Branco Albinati
196 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
Com o que Chasin conclui que “em suma, à política cabem as tarefas negativas
ou preparatórias; a obra de ‘regeneração’, de que fala Marx, fica a cargo inteiramente
da revolução social” (2000, p. 96).
Outras passagens deste teor podem ser encontradas nos textos de análise
política do Marx maduro, nas quais ele se refere ao estado como uma “excrescência
parasitária sobre a sociedade civil, fingindo ser sua contrapartida ideal” ou ainda como
“o poder governamental centralizado e organizado, que, usurpador, se pretende
senhor, e não servidor da sociedade” (MARX
apud
CHASIN, 2000, p. 159).
A ação política, orientada para a emancipação humana, não pode, portanto, se
pautar por uma eternização ou aperfeiçoamento do poder político, mas pela sua
superação. É a isso que Chasin se refere ao dizer de uma metapolítica, uma política
que se coloque como fim o fim da necessidade da política, enquanto instância que se
assenta sobre as deficiências societárias.
Analisando os pontos essenciais da proposição marxiana, Chasin sintetiza:
1. a emancipação política ou parcial é um avanço irrecusável, mas
não é o ponto de chegada da construção da liberdade; resume-se à
liberdade possível na (des)ordem humano-societária do capital; sua
realidade é o homem fragmentado, impotente como cidadão e
emasculado como ser humano, diluído em abstração na primeira
metade e reduzido à naturalidade na segunda;
2. a emancipação universal ou humana não é mais da lógica das
liberdades restritas, condicionadas pela malha de determinações
externas ao homem, mesmo que por ele próprio construídas, mas a
constituição da mundanidade humana a partir da lógica inerente ao
humano, ou seja, do ser social, cuja natureza própria ou “segredo
ontológico” é a autoconstituição;
3. a emancipação humana ou revolução social do homem
compreende:
a. a reintegração pelo homem real da figura do cidadão,
ou seja, a reincorporação e o desenvolvimento da capacidade
de ser racional e justo, mera aspiração piedosa na esfera da
política, tornando a ética possível, porque imanente ao ser que
se autoedifica, de modo que ele não mais aliene de si força
humano-societária, degenerada e transfigurada em força
política, assim tornando impossível, além de inútil, o
aparecimento desta, o que derruba as barreiras atuais para a
retomada da autoconstrução do homem;
b. o reconhecimento e a organização racional e
humanamente orientada das próprias forças individuais como
forças sociais, de tal sorte que a individualidade, isolada e
confundida com o ser mudo da natureza, quebre a finitude do
ser orgânico e se alce à universalidade do seu gênero. (2000,
pp. 151-2)
J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em Marx
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 197
Verinotio
nova fase
Trata-se de uma completa contraposição à concepção tradicional da política, na
medida em que a formulação marxiana é uma reiteração da autoconstrução humana,
cujo
télos
não se encontra na expressão política de uma universalidade formal, mas
aponta para uma forma de sociabilidade que alinhe a unidade indivíduo-gênero em
sua vida concreta.
Isso equivale a dizer de uma desnaturação da política como elemento intrínseco
à vida social, e em termos concretos, exigiria a superação da sociabilidade do capital
e o estabelecimento de uma outra forma de existência social, na qual a questão seja a
administração das diferenças, a superação das contradições, mas não mais a
contradição não-resolvida, o que significa a manutenção “estável” dos antagonismos
sociais.
A questão desenvolvida por Chasin, a partir de Marx, diz respeito ao
entendimento do surgimento do estado moderno como universalidade ilusória, e se
refere à alternativa colocada frente ao futuro: o aperfeiçoamento do poder político ou
a perspectiva de sua superação. Ao primeiro, correspondem as medidas paliativas do
controle do poder do estado, através do apelo à ética, da ênfase na ideia de cidadania,
da vigilância às formas de corrupção e, na mais avançada das proposições, no
investimento em uma democracia mais abrangente, que contemple as diferenças e
integre as minorias. Na melhor das hipóteses, trata-se de um esforço de
aprimoramento do estado, assentado sobre a incompreensão de seu lugar num
sistema-mundo cada vez mais refém dos ciclos de acumulação do capital.
À segunda, corresponde uma visão que recusa a naturalização da condição
humana e a naturalização das relações sociais tais como se apresentam a partir da
modernidade, bem como a eternização da sociabilidade do capital, insistindo em fazer
cintilar no horizonte a distância entre a emancipação política e a emancipação humana.
Se tal possibilidade não está presente no futuro próximo, futuro ausente no qual o
tempo do capital parece se eternizar para além de sua vigência histórica, gestando
formas monstruosas de sociabilidade, é hora de manter viva, quando nada, a sua
formulação, para não nos afundarmos no terreno pantanoso da colocação de questões
equivocadas e respostas insuficientes próprias do politicismo.
Referências bibliográficas
CHASIN, José. Ad Hominem: rota e prospectiva de um projeto marxista.
Revista Ensaios
Ad Hominem,
São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, v. 1, t. III, pp. 5- 78, 2000.
Ana Selva Castelo Branco Albinati
198 | ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 183-198 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023
Verinotio
nova fase
_____. Democracia política e emancipação humana.
Revista Ensaios Ad Hominem,
São
Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, v. 1, t. III, pp. 91-100, 2000.
_____. A morte da esquerda e o neoliberalismo.
Revista Ensaios ad Hominem
, São
Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, v. 1, t. III, pp. 115-128, 2000.
_____. Marx: a determinação ontonegativa da politicidade.
Revista Ensaios Ad
Hominem
, São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, v. 1, t. III, pp. 129-161, 2000.
_____. O futuro ausente.
Revista Ensaios Ad Hominem
, São Paulo: Estudos e Edições
Ad Hominem, v. 1, t. III, pp.163-243, 2000.
_____.
Marx:
estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,
2009.
EIDT, Celso. A razão como tribunal da crítica: Marx e a
Gazeta Renana
.
Revista Ensaios
Ad Hominem
, São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, v. 1, t. IV, p. 79-100,
2001.
ENDERLE, Rubens. Apresentação. In: MARX, Karl.
Crítica da filosofia do direito de
Hegel
. São Paulo: Boitempo, 2005, pp. 11-26.
MARX, Karl. Glosas críticas al artículo “El rey de Prusia y la reforma social. Por un
prusiano”. In: ROCES, W. (Org.)
Marx:
escritos de juventud. México: Fondo de cultura
económica, 1987, pp. 505-521.
_____. Questão judaica. In:
Manuscritos econômico-filosóficos
. Lisboa: Edições 70,
1989, pp. 35-63.
_____.
Crítica da filosofia do direito de Hegel
. São Paulo: Boitempo, 2005.
Como citar:
ALBINATI, Ana Selva Castelo Branco. J. Chasin: a ontonegatividade da politicidade em
Marx.
Verinotio
, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 183-198, Edição Especial,
2022/2023.