DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.668  
A crítica marxiana da política: seguindo as trilhas  
abertas pelo autor de O futuro ausente  
The Marxian critique of politics: following the trails opened by the author  
of The absent future  
Felipe Ramos Musetti*  
Resumo:  
O
presente  
artigo  
pretende  
Abstract: This article intends to honor the text  
The absent future: towards the critique of  
politics and the rescue of human emancipation,  
by J. Chasin, by rescuing and developing his  
analyzes of Marxian work, focusing on the  
critique of politics. It starts with the research  
path opened by Chasin, recorded mainly in the  
works Marx: ontological statutes and  
methodological resolution and Marx: the  
ontonegative determination of politicity, and  
shows, through the immanent analysis of the  
marxian work, how the recognition of the  
ontonegative determination of politicity remains  
central to Marx's criticism in his mature work,  
improved by the analysis that the German  
philosopher develops on the value form.  
homenagear o texto O futuro ausente: para a  
crítica da política e o resgate da emancipação  
humana, de J. Chasin, resgatando  
desenvolvendo suas análises da obra marxiana,  
no que se refere à crítica da política. Parte-se do  
caminho de pesquisa aberto por Chasin,  
registrados sobretudo em Marx: estatuto  
ontológico e resolução metodológica e Marx: a  
determinação ontonegativa da politicidade,  
procurando mostrar, por meio da análise  
e
imanente da obra marxiana, como  
o
reconhecimento da determinação ontonegativa  
da politicidade permanece central para a crítica  
de Marx em sua obra madura, aprimorada pela  
análise que o filósofo alemão desenvolve sobre a  
forma valor.  
Keywords: Marx; Chasin; State; politics; human  
emancipation.  
Palavras-chave: Marx; Chasin; estado; política;  
emancipação humana.  
Redigido em 1993, o texto intitulado O futuro ausente: para a crítica da  
política e o resgate da emancipação humana, de J. Chasin, jamais foi concluído,  
lamentavelmente. Sua versão incompleta, publicada após a morte do autor, fornece  
indícios dos caminhos analíticos que seriam percorridos, mas registram, também, a  
distância significativa existente entre a amplitude do problema delineado na seção que  
inaugura as reflexões chasinianas, de um lado, e a análise que o autor foi capaz de,  
efetivamente, desenvolver em vida, de outro. Pode-se intuir que Chasin pretendia  
avançar sua investigação em um projeto amplo e significativamente ambicioso,  
sobretudo quando se considera que a análise efetivamente publicada que se inicia  
com reflexão acerca do primeiro humanismo renascentista, faz um volteio que examina  
*
Doutor em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail:  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Felipe Ramos Musetti  
a política na Antiguidade clássica, para, em seguida, avançar pelo desenvolvimento do  
pensamento político moderno é impulsionada, como se constata na leitura dos  
primeiros parágrafos, pela constatação de uma crise sem precedentes da sociabilidade  
do capital ao final do século XX, a qual se caracteriza, justamente, pelo abandono dos  
referenciais positivos acerca do homem que, não sem contradição, foram  
desenvolvidos no período de formação da sociedade burguesa. Considerado que o  
texto se encerra, abruptamente, na análise do pensamento de Thomas Hobbes, apenas  
se pode lamentar que a morte prematura de Chasin tenha privado o intérprete de  
passos analíticos promissores e decisivos, que, certamente, o autor desenvolveria com  
o rigor característico de suas reflexões.  
O subtítulo indica certa continuidade entre as reflexões inacabadas de O futuro  
ausente e as obras anteriores do autor voltadas para a explicitação da crítica marxiana  
à política (cf. CHASIN, 2009; 2000). Contudo, a argumentação de O futuro ausente  
contrasta com os textos anteriores de Chasin sobre o tema, à medida que, ao invés de  
realçar o que o filósofo brasileiro denominou, a partir de suas análises da obra de  
Marx, de determinação ontonegativa da politicidade1, enfoca no desenvolvimento das  
concepções que apreendem a política como determinação ontopositiva, procurando  
compreender as razões pelas quais, contraditoriamente, a política aparece para o  
pensamento moderno como a instância mais elevada de realização da universalidade  
humana2.  
O presente artigo não pretende continuar a reflexão que Chasin legou  
inacabada trabalho necessário, mas que transcende os objetivos deste espaço ,  
tampouco abordar aspectos da argumentação que se extrai da parte textual que o  
autor efetivamente redigiu. Significativamente mais modesto, intenta-se prestar as  
1 Chasin cunha a expressão determinação ontonegativa da politicidade para demarcar a especificidade  
e radicalidade do tratamento marxiano à política, o qual “exclui o atributo da política da essência do  
ser social, só o admitindo como extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de  
historicamente circunstancial; numa expressão mais enfática, enquanto predicado típico do ser social,  
apenas e justamente, na particularidade do longo curso de sua pré-história. E no interior da intrincada  
trajetória dessa pré-história que a politicidade adquire sua fisionomia plena e perfeita, sob a forma de  
poder político centralizado, ou seja, do estado moderno (CHASIN, 2009, p. 64).  
2
Em Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, Chasin se refere ao “âmbito secularmente  
predominante da determinação ontopositiva da política, para a qual o atributo da politicidade não só  
integra o que há de mais fundamental do ser humano-societário e intrínseco a ele mas tende a ser  
considerado como sua propriedade por excelência, a mais elevada, espiritualmente, ou a mais  
indispensável, pragmaticamente; tanto que conduz a indissolubilidade entre política e sociedade, a  
ponto de tomar quase impossível, até mesmo para a simples imaginação, um formato social que  
independa de qualquer forma de poder político.  
Verinotio  
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A crítica marxiana da política  
devidas homenagens ao texto chasiniano pelo resgate e desenvolvimento de suas  
análises sobre a obra marxiana, sobremaneira no que se refere à crítica da política.  
Para tanto, parte-se dos caminhos analíticos abertos por Chasin em suas análises da  
obra de Marx, procurando acompanhar como a crítica da política se desdobra ao longo  
de todo o itinerário de desenvolvimento do pensamento marxiano, desde o seu  
período formativo até as obras que marcam a maturação de sua crítica econômica.  
Procurar-se-á demonstrar que Marx mantém, ao longo de todo o seu itinerário de  
pesquisa, o reconhecimento da determinação ontonegativa da politicidade,  
enfatizando a necessidade prática, posta historicamente pelo advento da sociedade  
burguesa, de superar o estado e a política pelo movimento revolucionário voltado para  
a conquista da emancipação humana3.  
Os principais contornos da crítica da política na formação do pensamento  
marxiano  
No interior do processo de formação do pensamento marxiano, o  
desenvolvimento da crítica à política tem início com a ruptura de Marx com a filosofia  
hegeliana, cujos primeiros lineamentos aparecem expostos em Crítica da filosofia do  
direito de Hegel, redigida em 1843. Nos Manuscritos de Kreuznach4, Marx expõe, pela  
primeira vez em seu itinerário intelectual, o reconhecimento da política como  
determinação negativa, em evidente contraste com sua própria posição anterior,  
registrada nos artigos da Gazeta Renana, para qual a solução das mazelas sociais  
remeteria à necessidade do aperfeiçoamento da política e do estado como instâncias  
racionais de regulação dos conflitos sociais. Em Crítica da filosofia do direito de Hegel,  
bem como nos textos redigidos no período subsequente, salta aos olhos o caráter  
distinto da abordagem marxiana: estado e política passam a ser reconhecidos como  
instâncias alienadas produzidas pela cisão entre indivíduo e comunidade, cuja  
maturação é atingida com o advento da sociedade moderna estruturada pelo livre  
movimento da propriedade privada. Em outras palavras, estado e política são  
deslocados da condição de instâncias resolutivas para serem reconhecidos como  
complementos necessários aos conflitos emergentes do seio da sociedade civil, de  
3
O presente artigo condensa parte da reflexão desenvolvida em tese de doutorado em Filosofia,  
dedicada ao desenvolvimento da crítica da política nos principais textos do período formativo do  
pensamento marxiano e seus desdobramentos na obra madura do autor (cf. MUSETTI, 2022). Link de  
acesso: <https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/26084/1/Felipe%20Ramos%20Musetti.pdf>.  
4 Jamais publicada durante a vida de Marx, a Crítica da filosofia do direito de Hegel também é conhecida  
como Manuscritos de Kreuznach, em referência à cidade onde foi escrita.  
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modo que a superação de tais conflitos passa a exigir o movimento mais amplo da  
emancipação humana, a qual, em contraste com o processo de emancipação política  
que marcou o advento da sociedade moderna, pressupõe a superação do estado e da  
política enquanto tais5.  
O acerto de contas com a filosofia hegeliana realizado em 1843 atesta,  
todavia, uma ruptura mais profunda, que não se restringe apenas à crítica da política  
apreendida isoladamente, mas, ao contrário, consubstancia os primeiros passos de  
elaboração de uma abordagem mais ampla, que, orientada pelo rechaço radical à  
filosofia especulativa, deve ser capaz de apreender, de modo imanente, as conexões  
entre diferentes formas de sociabilidade e seus complexos específicos, como a política,  
a filosofia, a arte etc. É mérito de Chasin reconhecer a especificidade, bem como a  
amplitude das consequências resultantes de tal rechaço marxiano ao pensamento de  
Hegel, em 1843. Segundo ele, a letra da Crítica da filosofia do direito de Hegel atesta  
uma viragem ontológica” que marca a inflexão intelectual a partir da qualMarx  
passa a elaborar seu próprio pensamento(CHASIN, 2009, p. 57). Ainda segundo  
Chasin:  
ao enfocar e superar, tão substancial e rapidamente, a esfera política,  
a rota de Marx faz transparecer que o núcleo propulsor de seus  
esforços articulava interesses teóricos e práticos que se estendiam à  
globalidade do complexo humano-societário, implicando a demanda  
por uma planta intelectual bem mais ampla, para além das fronteiras  
de uma estrita teoria política, se esse tipo de abordagem sempre fosse  
incapaz de dar corpo à completa e resolutiva intelecção da  
mundanidade emergente em seu tempo, como acabara de verificar  
que ocorreria, pela revisão do melhor dos seus exemplares, em  
qualquer formulação do gênero (CHASIN, 2009, p. 67).  
O ponto a ser registrado, nesse passo, é a conexão íntima entre a crítica da  
política e o problema da autoprodução humana na formulação do pensamento próprio  
de Marx. À medida que identifica o estado e política como produtos da sociedade civil,  
reconhecida como lócus de atuação dos sujeitos reais, o pensamento marxiano  
principia a edificação de uma nova posição ontológica, para a qual a adequada  
compreensão das determinações políticas, bem como das formas de consciência,  
pressupõe reconhecê-las em suas conexões com as condições materiais da existência  
5 Referindo-se à radicalidade da crítica marxiana à política, instaurada a partir de Crítica da filosofia do  
direito de Hegel, Chasin argumenta que o reconhecimento da determinação ontonegativa da politicidade  
consiste no marco exponencial que separa, totalmente, o Marx juvenil, adepto da filosofia da  
autoconsciência, do Marx marxiano que principia em 1843(CHASIN, 2009, p. 63).  
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A crítica marxiana da política  
humana, entendidas como o complexo prático relacional que estrutura determinada  
formação social. Tal constatação, somada a uma importante contribuição de Friedrich  
Engels6, impulsionam a intensificação dos estudos de Marx sobre economia política,  
como revelam as palavras do próprio autor na célebre passagem do Prefáciode  
1859:  
Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as  
relações jurídicas, bem como as formas de estado, não podem ser  
explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do  
espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas  
condições materiais de existência, em suas totalidades, condições  
estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século 18,  
compreendia sob o nome de sociedade civil. Cheguei também à  
conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser  
procurada na Economia Política. (MARX, 2008, p. 47)  
Note-se que, referindo-se ao seu próprio processo formativo, Marx assinala,  
explicitamente, que o seu primeiro acerto de contas com a filosofia hegeliana do qual  
se extraem os primeiros contornos de sua crítica à política atestaram a  
indissociabilidade entre estado, política, formas de consciência etc., de um lado, e a  
totalidade das condições materiais de existência, identificadas às relações materiais da  
vida [materiellen Lebensverhältnissen], de outro. Para a crítica ontológica de Marx, a  
pretensão de se investigar o estado e as formas políticas por si mesmos, como  
instâncias autossuficientes e isoladas das práticas sociais que as engendram como  
produtos de relações específicas, pressupõe negligenciar certas determinações  
constitutivas da política, as quais ela própria procura afastar de sua jurisdição, ao  
estabelecer-se como universalidade abstrata contraposta ao atomismo da sociedade  
civil. Em outras palavras, a crítica à filosofia hegeliana conduz o pensamento marxiano  
ao reconhecimento do estado e da política como formas abstratas, cuja relativa  
autonomia se explica no modo contraditório pelo qual procuram apagar as suas  
próprias bases de sustentação nas relações de propriedade, para se afirmarem como  
instâncias universais e independentes. Nesse sentido, longe de resolver em si os  
conflitos originados dos entrechoques entre interesses particulares no âmbito da  
sociedade civil, o estado político está assentado em tais conflitos, bem como sua  
existência os pressupõe.  
6
Marx ressalta o impacto do texto Esboço de uma crítica da economia política, de Engels, no seu  
itinerário de buscar a anatomia da sociedade civil pela crítica da economia política (cf. MARX, 2008, pp.  
48-49).  
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Felipe Ramos Musetti  
Ademais, observe-se como a virada radical do pensamento marxiano a partir  
de 1843 se caracteriza pela imbricação entre as críticas ontológicas da política e da  
filosofia especulativa, uma vez determinadas as condições materiais da existência como  
a base real, existente por si, no interior da qual são produzidas tanto as formas  
políticas quanto as formas de consciência. Em outras palavras, anote-se que a crítica  
marxiana à filosofia do direito de Hegel atinge, simultaneamente, a própria realidade  
efetiva do estado e da política em sua relação contraditória com sua base de  
sustentação na propriedade privada , bem como a filosofia hegeliana, apreendida  
como forma de consciência que expressa, no pensamento, a inversão real que estado  
e política produzem ao apagarem seus nexos com a sociedade civil. Ambos estado  
político e filosofia hegeliana são apreendidos por Marx como expressões específicas  
da contradição constitutiva da sociedade civil-burguesa, entendida como o campo de  
interatividade dos sujeitos reais, como forma específica do metabolismo social.  
A preocupação marxiana em apreender a política e as formas de consciência  
no interior do complexo de relações materiais estruturantes da sociedade civil-  
burguesa se faz presente nos textos políticos redigidos no período de 1843-18447.  
Tais textos evidenciam, ademais, como a argumentação de Marx associa a formação  
do estado em sua forma perfeita, moderna, com a differentia specifica da sociedade  
civil-burguesa frente aos modos de sociabilidade que a antecederam. Em Crítica da  
filosofia do direito de Hegel, Marx, dando apenas os primeiros passos em direção à  
formulação de seu pensamento próprio, não deixa de ressaltar que o estado político,  
perfeito e acabado, corresponde ao completamento da separação entre vida pública e  
vida privada efetivado no processo de formação da moderna sociedade burguesa,  
referindo-se às formas estatais anteriores como a grega como estados incompletos,  
imaturos (cf. MARX, 2006, pp. 51-53; 89-98). Redigido alguns meses depois, a letra  
de Sobre a questão judaica salienta que o estado ganha sua verdadeira forma  
definitivano processo de dissolução da feudalidade que libertou a propriedade  
privada dos últimos entraves políticos que cerceavam seu livre movimento,  
consolidando a separação entre vida pública e vida privada. De acordo com o autor, a  
realização plena do estado é inseparável da emancipação da sociedade burguesa em  
7 Destacam-se os textos Sobre a questão judaica (MARX, 2010), Crítica da filosofia do direito de Hegel  
- Introdução(MARX, 2006b) e Glosas críticas ao artigo O rei da Prússia e a reforma social. De um  
prussiano(MARX, 2010b).  
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A crítica marxiana da política  
relação à política:  
a
realização plena do idealismo do estado representou  
concomitantemente a realização plena do materialismo da sociedade  
burguesa. O ato de sacudir de si o jugo político representou  
concomitantemente sacudir de si as amarras que prendiam o espírito  
egoísta da sociedade burguesa. A emancipação política representou  
concomitantemente a emancipação da sociedade burguesa em relação  
à política, até em relação à aparência de um teor universal.  
A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no homem, só  
que no tipo de homem que realmente constituía esse fundamento, no  
homem egoísta.  
Esse homem, o membro da sociedade burguesa, passa a ser a base,  
o pressuposto do estado político (MARX, 2010, p. 52).  
A letra de Sobre a questão judaica se refere ao progresso contraditório  
representado pela emancipação política conquistada pela sociedade burguesa, ao  
mesmo tempo em que destaca os seus limites estruturais. Por um lado, à medida que  
constituiu o estado político como assunto universal, isto é, como estado real” –  
dissolvendo o conjunto de estamentos, corporações, guildas, privilégios, que eram  
outras tantas expressões da separação entre o povo e seu sistema comunitário(MARX,  
2010, p. 52) , a emancipação política representa um grande progresso; por outro  
lado, ela consagra a cisão do homem nas figuras do bourgeois (o homem concreto,  
real, proprietário privado e membro da sociedade civil-burguesa) e do citoyen (o  
homem abstrato, apartado de suas determinações concretas e que participa de uma  
comunidade imaginária, irreal)8. Em poucas palavras, os limites da emancipação política  
se revelam à medida que conforma o estado político pleno, o qual constitui, por sua  
essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material(MARX, 2010, p.  
40)9. Para Marx, a cisão do homem em público e privado (...) não constitui um estágio,  
8
No volume II de Para uma ontologia do ser social, Lukács se refere ao processo de emancipação  
política do seguinte modo: aqui só precisamos ressaltar que a nova situação socialmente objetiva (com  
todas as ilusões e todos os equívocos do pensamento que dela se originam espontaneamente) é que,  
pela primeira vez, dispõe ser humano e sociedade em relações puramente sociais e que, por essa razão,  
ela é uma consequência necessária do surgimento e da predominância do capitalismo e, pelas mesmas  
razões, chega a ser realizada só pela grande Revolução Francesa. A nova relação simplifica as formações  
anteriores mais complicadas, naturalmenteemaranhadas, sendo que, ao mesmo tempo, ela aparece,  
contudo, na nova estrutura da consciência dos homens de maneira duplicada: como a dualidade de  
citoyen [cidadão] e homme (bourgeois) [homem (burguês)] dentro de cada membro da nova sociedade.  
9
Marx aduz que onde o estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma  
vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva  
uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente  
comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais  
pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes  
estranhos a ele(MARX, 2010, p. 40).  
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e sim a realização plena da emancipação política(MARX, 2010, p. 42), sendo a  
dimensão privada o momento predominante, à medida que, no funcionamento da  
sociedade burguesa, o citoyen é declarado como serviçal do homem egoísta, de tal  
modo que a esfera em que o homem se comporta como ente comunitário é  
inferiorizada em relação àquela em que ele se comporta como ente parcial(MARX,  
2010, p. 42).  
Compreende-se, pois, que, ainda nos primeiros passos da formação de seu  
pensamento original, Marx observa que o estado moderno se constitui como realização  
plena do poder estatal, à medida que se assenta na radicalização da separação entre  
vida pública e vida privada, que define a especificidade da sociedade burguesa. Na  
condição de forma acabada do poder estatal, o estado moderno, assentado sobre a  
propriedade privada desenvolvida, cria as possibilidades para um novo tipo de  
desenvolvimento do homem a emancipação humana10 , ao mesmo tempo em que  
ilumina a imperfeição das formas anteriores, caracterizadas pela incompletude do  
processo de cisão entre as dimensões pública e privada. Em A ideologia alemã, a  
relação entre o completamento do processo formativo do poder estatal, de um lado, e  
a diferença específica da sociedade burguesa como ponto máximo da separação entre  
indivíduo e comunidade, de outro, continua no centro da crítica marxiana da política.  
De acordo com Marx, a formação do estado moderno associa-se à edificação da  
propriedade privada pura, que se despiu de toda aparência de comunidade e suprimiu  
toda influência do estado sobre o desenvolvimento da propriedade(MARX; ENGELS,  
2009, p. 75). A crítica marxiana insiste que a essa propriedade privada moderna  
corresponde o estado moderno, o qual, por meio da emancipação da propriedade  
em relação à comunidade, (...) se tornou uma existência particular ao lado e fora da  
sociedade civil(MARX; ENGELS, 2009, p. 75).  
Anote-se, a maturação do processo de desenvolvimento da propriedade  
privada a formação da propriedade privada pura, emancipada da comunidade –  
10  
Como se verá mais adiante, Marx opõe à parcialidade da emancipação política o caráter abrangente  
da emancipação humana. Se a emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro  
da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral, a  
emancipação humana se realiza quando o homem individual realrecupera para si o cidadão abstrato”  
e se torna ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho  
individual, nas suas relações individuais. Em suma, quando o homem tiver reconhecido e organizado  
suas 'forces propres' [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si  
mesmo a força social na forma da força política(MARX, 2010, p. 54).  
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nova fase  
A crítica marxiana da política  
permite ao estado assumir uma existência particular ao lado e fora da sociedade civil,  
para constituir-se como comunidade ilusória[illusorische Gemeinschaft] assentada  
sobre a plena separação entre interesses particulares e interesse geral. Não obstante,  
importa registrar que é a realização plena da separação entre indivíduo e comunidade  
que permite a investigação de sua gênese, no interior da qual se apreende as formas  
incompletas do poder estatal, bem como seu enraizamento na contradição do interesse  
particular com o interesse coletivo. À medida que avança em seus estudos de economia  
política, Marx aprofunda sua crítica da política, identificando a gênese do estado no  
desenvolvimento da propriedade privada, desde suas formas mais embrionárias –  
como entre os povos antigos, nos quais, conforme os termos d'A ideologia alemã, a  
propriedade tribal aparece como propriedade do estado” –, até a forma moderna,  
acabada, perfeita, definida pela emancipação da propriedade privada frente ao estado.  
Para Marx, é precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse  
coletivo que o interesse coletivo assume, como estado, uma forma autônoma, separada  
dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade  
ilusória(MARX; ENGELS, 2009, p. 37). Em suma, a forma moderna do poder estatal  
revela-o como produto de formas limitadas de intercâmbio, nas quais o interesse  
coletivo, constituído real e efetivamente pelo necessário caráter social da interatividade  
humana, assume a forma de uma comunidade ilusória(MUSETTI, 2022, p. 158), cuja  
função é garantir e manter a separação que a sustenta. Com efeito, para Marx, o estado  
e a política, em qualquer uma de suas formas, correspondem à comunidade aparente,  
em que se associaram até agora os indivíduose que sempre se autonomizou em  
relação a eles, jamais deixando de ser uma comunidade totalmente ilusória(MARX;  
ENGELS, 2009, p. 64) produzida pela incapacidade de se constituir uma mediação  
adequada entre interesse particular e interesse coletivo. Nesse sentido, a assertiva  
marxiana, segundo a qual todas as lutas no interior do estado (...) não são mais do  
que formas ilusórias em geral, a forma ilusória da comunidade nas quais são  
travadas as lutas reais entre as diferentes classes(MARX; ENGELS, 2009, p. 37).  
Considerada a determinação negativa do estado e da política, apreendidos  
como poderes estranhados produzidos pelas formas sociais marcadas pela cisão (mais  
ou menos embrionária) entre indivíduo e comunidade, bem como pelos conflitos que  
decorrem de tal separação, frise-se que, para Marx, a differentia specifica do estado  
moderno, na condição de forma maturada do poder estatal enquanto tal, é  
determinada pela particularidade da sociedade civil-burguesa como ponto de  
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Felipe Ramos Musetti  
culminação da alienação do trabalho, com a consequente emancipação da propriedade  
privada frente à comunidade. Investigando a gênese da sociedade burguesa, Marx  
observa como o processo de autoprodução humana, alavancado pela atividade  
sensível, se desenvolve, contraditoriamente, através de relações de alienação. Para a  
crítica marxiana, a análise da anatomia da sociedade civil-burguesa revela o mundo  
sensível tal como ele existe até agoracomo produção, como atividade humana,  
contínuo trabalhar e criar sensíveis(MARX; ENGELS, 2009, p. 31). Contudo, se a  
história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma  
delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a elas transmitidas  
pelas gerações anteriores, vale realçar, seguindo a argumentação marxiana, que, no  
decorrer do desenvolvimento histórico, ocorre uma inevitável autonomização das  
relações sociais(MARX; ENGELS, 2009, p. 64), à medida que, frente às limitações  
próprias às formações sociais que antecedem a grande indústria, as forças produtivas  
apenas podem se desenvolver por meio da divisão do trabalho, entendida como  
divisão involuntária das atividades, de tal modo que a própria ação do homem torna-  
se um poder que lhe é estranho e que a ele é contraposto, um poder que subjuga o  
homem em vez de por este ser dominado(MARX; ENGELS, 2009, p. 37). A sociedade  
burguesa se apresenta como ponto de culminação do processo de separação entre o  
ser humano autoprodutor e seus poderes sociais: em nenhum período anterior as  
forças produtivas assumiram essa forma indiferente para o intercâmbio dos indivíduos  
na qualidade de indivíduos, porque seu próprio intercâmbio era ainda limitado(MARX;  
ENGELS, 2009, p. 72).  
Destarte, a diferença específica da sociedade burguesa consiste, justamente,  
na sua condição de ponto de chegada do processo no qual, por meio da atividade  
sensível, os homens produzem os seus meios de vida e desenvolvem suas capacidades,  
todavia de modo contraditório, por meio do aprofundamento da alienação do trabalho.  
Ao completar a separação entre indivíduo e comunidade com a consequente  
agudização da contradição entre interesses privados e interesse geral , a sociedade  
burguesa produz o estado como forma autônoma, separada dos reais interesses  
singulares e gerais(MARX; ENGELS, 2009, p. 37), que funciona como meio pelo qual  
a classe burguesa atribui a seu interesse médio uma forma geral(MARX; ENGELS,  
2009, p. 75). Desse modo, sem desconsiderar a autonomia do estado frente à  
sociedade civil-burguesa sua condição de poder estranhado e incontrolável, acima  
das classes e dos indivíduos , Marx não deixa de salientar que ele não é nada mais  
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A crítica marxiana da política  
do que a forma de organização que os burgueses se dão necessariamente, tanto no  
exterior como no interior, para a garantia recíproca de sua propriedade e de seus  
interesses(MARX; ENGELS, 2009, p. 75). A especificidade do estado moderno reside  
na dupla função que o poder estatal desempenha na sociabilidade estruturada pela  
grande indústria: de um lado, comunidade universal abstrata, autônoma frente à  
sociedade civil-burguesa, a qual imprime forma política ao conjunto de instituições  
coletivas e acolhe os indivíduos pela figura caricata do citoyen; de outro lado, poder  
impessoal que funciona para preservar o interesse médio da classe burguesa contra  
perturbações que ameaçam a propriedade privada, sobre a qual se assenta.  
A crítica da política na obra madura de Marx  
Como se vê, a crítica econômica de Marx, à medida que se desenvolve ao  
longo do período formativo de seu pensamento11, aprofunda e desdobra a crítica da  
política, sobretudo quando considerada a relação entre estado moderno como forma  
acabada do poder estatal em geral, de um lado, e a especificidade da sociedade  
burguesa como última forma antagônica da produção, de outro. Mesmo considerando  
a imaturidade da crítica econômica de Marx no período entre 1843 e 1847, é  
imperioso constatar a complementariedade entre as críticas econômica e política,  
sobretudo no que se refere ao enraizamento do estado na propriedade privada,  
enfatizado em A ideologia alemã12. Para a crítica marxiana, estado moderno enquanto  
forma acabada do poder estatal enquanto tal e capital formam um círculo vicioso de  
dimensões complementares que se retroalimentam, não sendo possível a superação  
de um sem a dissolução do outro.  
Entretanto, se, no período de formação do pensamento marxiano, o  
11  
Seguindo trilha aberta pelas pesquisas de Chasin, considera-se que o processo de formação do  
pensamento marxiano compreende o período de 1843-1847 (cf. CHASIN, 2009; MUSETTI, 2022). Tal  
periodização se fundamenta nos relatos do próprio Marx, que, no “Prefácio” de 1859, relata que “os  
pontos decisivos” de sua “maneira de ver foram, pela primeira vez, expostos cientificamente, ainda que  
sob forma de polêmica”, no trabalho “aparecido em 1847, e dirigido contra Proudhon: Miséria da  
filosofia” (MARX, 2008, p. 49).  
12  
Convém insistir que tal conexão se enraíza na virada ontológica de 1843, quando Marx, iniciando a  
formulação de seu pensamento próprio, identifica a sociedade civil como complexo real, existente por  
si, no interior do qual são produzidas as formas de consciência. Chasin ressalta “a feição precisa do  
passo inicial da caminhada” iniciada em 1843: “em contraste radical com a concepção do estado como  
demiurgo racional da sociabilidade, isto é, da universalidade humana, que transpassa a tese doutoral e  
os artigos da Gazeta Renana, irrompe e domina agora, para não mais ceder lugar, a ‘sociedade civil’ –  
o campo de interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do metabolismo social como  
demiurgo real que alinha o estado e as relações jurídicas. Inverte-se, portanto, a relação determinativa:  
os complexos reais envolvidos aparecem diametralmente reposicionados um em face do outro” (CHASIN,  
2009, pp. 57-58).  
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enquadramento da questão já está definido em seus lineamentos mais gerais, observa-  
se, nos Grundrisse, como as conexões entre crítica da política e a crítica da economia  
política são desdobradas e aprofundadas, à medida que o autor desenvolve suas  
reflexões em torno da forma valor. Mais especificamente, importa atentar para o  
aprimoramento da reflexão marxiana em torno da especificidade da conexão social  
estabelecida pela sociedade burguesa distinta de todas as formações sociais  
anteriores e suas repercussões para a configuração da especificidade do estado  
moderno entendido como forma acabada do poder estatal enquanto tal , assentado  
na máxima separação entre indivíduo e comunidade. Observa-se como a crítica  
econômica madura de Marx confirma a principal conclusão atingida no período  
formativo: estado e política, em qualquer uma de suas formas históricas, constituem-  
se como predicados negativos do ser humano autoprodutor, produzidos no interior  
de formações sociais limitadas, marcadas pela clivagem entre interesses particulares e  
interesse geral.  
Logo no início da conhecida Introdução de 1857, Marx critica a economia  
política clássica em seu procedimento de tomar como ponto de partida o indivíduo  
isolado as robinsonadas do século XVIII, rejeitadas por generalizar as  
determinações específicas da sociedade burguesa para a totalidade da história  
humana, de modo a apreender a individualidade moderna não como um resultado  
histórico, mas como ponto de partida da história(MARX, 2011b, p. 40). Por  
conseguinte, a economia política perde a diferença essencial da sociedade burguesa  
como primeira forma social na qual o indivíduo aparece desprendido dos laços  
naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um  
conglomerado humano determinado e limitado(MARX, 2011b, p. 39). De acordo com  
Marx, quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o  
indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro de um todo maior”  
(MARX, 2011b, p. 40). Ainda segundo o filósofo alemão, somente no século XVIII,  
com a ‘sociedade burguesa’, as diversas formas de conexão social confrontam os  
indivíduos como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior”  
(MARX, 2011b, p. 40). A formação do indivíduo moderno associa-se, desse modo, à  
diferença específica da sociabilidade do capital frente a todas as formas anteriores,  
pois a época que produz esse ponto de vista, o ponto de vista do indivíduo isolado,  
é justamente a época das relações sociais (universais desde esse ponto de vista) mais  
desenvolvidas até o presente(MARX, 2011b, p. 40).  
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Anote-se, a crítica marxiana da economia política, tal como exposta nos  
Grundrisse, atenta para a especificidade da relação entre indivíduo e comunidade na  
sociedade capitalista, entendida como forma de intercâmbio correspondente às  
relações sociais (universais) mais desenvolvidas. Marx define a diferença específica da  
sociedade burguesa como forma social na qual a produção de todo indivíduo singular  
é dependente da produção de todos os outros; bem como a transformação de seu  
produto em meios de vida para si próprio torna-se dependente do consumo de todos  
os outros(MARX, 2011b, p. 104). Em outras palavras, diferentemente de todas as  
formas sociais que a antecederam, caracterizadas pela predominância de relações de  
dependência pessoalna produção, a sociedade da livre concorrênciaestabelece,  
pela primeira vez na história, a dependência recíprocauniversal entre os indivíduos,  
que se expressa na permanente necessidade da troca e no valor de troca como  
mediador geral(MARX, 2011b, p. 104). Com efeito, de acordo com Marx, a  
dissolução de todos os produtos e atividades em valores de troca pressupõe a  
dissolução de todas as relações fixas (históricas) de dependência pessoal na produção,  
bem como a dependência multilateral dos produtores entre si(MARX, 2011b, p. 104).  
Importa registrar que a especificidade da sociedade burguesa se define pela  
superação de um limite presente em todas as formas sociais precedentes. De acordo  
com Marx, em contraste com a produção capitalista, as formas anteriores pressupõem  
a unidade natural do trabalho com seus pressupostos objetivos, de tal modo que o  
trabalhador se relaciona às condições objetivas de seu trabalho como sua  
propriedade(MARX, 2011b, p. 388). Nas múltiplas formas com as quais se efetivaram  
historicamente, as relações de produção que antecedem o capitalismo se assentam  
sobre duas condições extintas pela sociedade moderna: de um lado, a apropriação  
da condição natural do trabalho, da terra tanto como instrumento original do  
trabalho, laboratório, quanto depósito das matérias-primas não pelo trabalho, mas  
como pressuposto do trabalho, uma vez que a principal condição objetiva do  
trabalho não aparece, ela própria, como produto do trabalho, mas está dada como  
natureza(MARX, 2011b, p. 397); de outro lado, tal unidade natural entre trabalho e  
as condições objetivas de sua realização é imediatamente mediada pela existência  
originada natural e espontaneamente, mais ou menos historicamente desenvolvida e  
modificada, do indivíduo como membro de uma comunidade(MARX, 2011b, p. 397).  
De modo geral, em todas as formas que precederam a capitalista, a propriedade de  
terra e a agricultura constituem a base da ordem econômica e, por conseguinte, (...) a  
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produção de valores de uso é a finalidade econômica. Mais especificamente, o  
objetivo da produção é, em todos os casos, a reprodução do indivíduo nas relações  
determinadas com sua comunidade e nas quais ele constitui a base da comunidade”  
(MARX, 2011b, p. 397). Ainda nos termos de Marx:  
Em todas essas formas, o fundamento do desenvolvimento é a  
reprodução das relações pressupostas do indivíduo singular à sua  
comunidade relações originadas mais ou menos naturalmente, ou  
mesmo historicamente, mas tornadas tradicionais , e uma existência  
objetiva, determinada, predeterminada para o indivíduo, no  
comportamento seja com as condições do trabalho, seja com seus  
companheiros de trabalho, companheiros de tribo etc. ,  
desenvolvimento que, por conseguinte, é por princípio limitado, mas  
que, superado o limite, representa decadência e desaparecimento.  
(MARX, 2011b, p. 399)  
Importa salientar, no que se refere às formações sociais que antecederam a  
produção capitalista, que, se, por um lado, o ser humano” – e não a riqueza – “aparece  
sempre como a finalidade da produção, por estreita que seja sua determinação  
nacional, religiosa ou política, por outro lado, não se pode pensar (...) em um  
desenvolvimento livre e pleno nem do indivíduo nem da sociedade, uma vez que esse  
desenvolvimento está em contradição com a relação original(MARX, 2011b, p. 399).  
A reprodução das formas sociais que antecederam a produção capitalista,  
condicionadas pelo desenvolvimento incipiente das forças produtivas, se voltam para  
a manutenção dos pressupostos limitados sobre os quais se estruturam, dados natural-  
espontaneamente. Nesse preciso sentido, a sociedade burguesa é radicalmente  
distinta. Conforme observa Marx, o capital põe a própria produção de riqueza como  
pressuposto de sua reprodução e, consequentemente, o desenvolvimento universal  
das forças produtivas, a contínua revolução de seus pressupostos existentes(MARX,  
2011b, p. 446). Desse modo, ultrapassa o limite natural-espontâneo que determina  
as formações sociais anteriores, substituindo as relações de dependência pessoal,  
características do período em que a produção humana se desenvolve de maneira  
limitada e em pontos isolados(MARX, 2011b, p. 106), pela universalização de  
relações de dependência coisal”, que definem a forma de sociabilidade na qual a  
conexão socialentre os indivíduos é mediada pelo valor.  
O caráter coisaldas relações de dependência que ultrapassam as relações  
de dependência pessoal associa-se à dimensão contraditória do salto promovido pela  
sociedade burguesa, que, por um lado, estabelece uma conexão universal entre os  
indivíduos, mas, por outro, a troca universal de atividades e produtos, que deveio  
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condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca, aparece para eles  
mesmos como algo estranho, autônomo, como uma coisa(MARX, 2011b, p. 105).  
Mais especificamente, a própria necessidade de primeiro transformar o produto ou a  
atividade dos indivíduos na forma de valor de troca, no dinheiro, e o fato de que só  
nessa forma coisal adquirem e comprovam seu poder social [gesellschaftliche Macht],  
revela que a produção dos indivíduos na sociedade capitalista não é imediatamente  
social, uma vez que não resulta da associação [association] que reparte o trabalho  
entre si” –, mas, ao contrário, indica que os indivíduos estão subsumidos à produção  
social que existe fora deles como uma fatalidade(MARX, 2011b, p. 106). Ademais,  
as relações de dependência coisal instauradas pelo modo de produção capitalista  
pressupõe a plena separação entre indivíduo e comunidade, que se autonomiza no  
dinheiro como produto social. Nos termos de Marx, uma vez que trabalho assalariado,  
por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca  
desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação, tem-se que o dinheiro é, ao  
mesmo tempo, imediatamente a comunidade real, uma vez que é a substância universal  
da existência para todos e o produto coletivo de todos. Porém, a crítica marxiana  
adverte que a comunidade no dinheiro (...) é pura abstração, pura coisa exterior e  
contingente para o singular e, simultaneamente, puro meio de sua satisfação como  
singular isolado, radicalmente distinta da comunidade antiga, a qual pressupõe uma  
relação completamente distinta do indivíduo para si(MARX, 2011b, p. 169).  
No que se refere à conexão socialdos indivíduos, o caráter contraditório do  
salto promovido pela sociedade burguesa reside, nesse sentido, na universalização  
das relações de produção pela plena separação entre trabalho e as condições objetivas  
de sua realização, razão pela qual, no valor de troca, a conexão social entre as pessoas  
é transformada em um comportamento social entre coisas; o poder [Vermögen]  
pessoal, em poder coisificado(MARX, 2011b, p. 105). Com efeito, Marx argumenta  
que a forma coisificada da conexão universal dos indivíduos criada pela sociedade  
burguesa não é uma supressão das 'relações de dependência', dado que são apenas  
a sua resolução em uma forma universal; é, ao contrário, a elaboração do fundamento  
universal das relações pessoais de dependência(MARX, 2011b, p. 111). Em outros  
termos, a universalização da conexão social dos indivíduos é atingida,  
contraditoriamente, pelo processo que produz tal conexão como poder autônomo que  
se contrapõe aos indivíduos, razão pela qual a ultrapassagem dos limites das formas  
anteriores ocorre pela radicalização da dependência pessoalem dependência  
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coisal. Nos termos de Marx, a relação de dependência coisal nada mais é do que as  
relações sociais autônomas contrapostas a indivíduos aparentemente independentes,  
i.e., suas relações de produção recíprocas deles próprios autonomizadas. Como  
resultado, na sociabilidade regida por relações de dependência coisal, tais relações  
aparecem de maneira tal que os indivíduos são agora dominados por abstrações, ao  
passo que antes dependiam uns dos outros (MARX, 2011b, pp. 111-112).  
Na crítica marxiana da economia política, o desenvolvimento do valor como  
poder social autônomo que, embora produzido pelos indivíduos em suas relações  
de dependência multilateral entre si, constitui-se como objetividade fantasmagórica”  
separada dos produtores, a qual passa a reger o processo de produção à revelia de  
suas vontades permanece no centro da argumentação. O processo no qual o valor  
assume uma existência materialseparada associa-se à radicalização do  
estranhamento na sociedade estruturada pela troca generalizada de mercadorias, bem  
como à plena autonomização do poder social frente aos próprios produtores. A  
especificidade definidora da forma mais extrema do estranhamento, à medida que  
radicaliza a autonomização da conexão social entre os indivíduos, edifica, por  
conseguinte, a inversão constitutiva da sociedade capitalista, no interior da qual as  
relações sociais tal como aparecem no plano da superfície como realização livre”  
dos interesses privados são apenas expressões do caráter coisal assumido pelo nexo  
social mediado pelo valor, que oculta seu fundamento na separação entre trabalho e  
condições objetivas de sua realização. Em outras palavras, o caráter contraditório da  
sociedade burguesa se enraíza na estrutura fundamental de seu modo de produzir,  
caracterizado pela máxima oposição entre indivíduo e sociedade, resultante da  
dissolução dos limites naturais-espontâneos das formas anteriores: de um lado, como  
proprietários privados, os indivíduos produzem de modo independente uns dos  
outros, como se fossem completamente indiferentes entre si, mas, de outro lado,  
permanecem conectados pela dependência recíproca e multilateral que se expressa no  
valor de troca, haja vista que apenas o engajamento na troca generalizada permite a  
satisfação mútua das várias necessidades dos produtores independentes. O resultado  
de tal contradição é a autonomização do valor como relação social independente que  
impõe sua lógica às próprias relações que o produzem, o que acarreta na dominação  
dos indivíduos por abstrações, em radical contraste com as formas anteriores. Em  
suma, na sociedade capitalista, a participação dos indivíduos na produção social não  
se efetiva como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação a relações que  
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existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos  
indiferentes entre si(MARX, 2011b, p. 105).  
Os aportes marxianos sobre a marca distintiva do estado e da política  
modernos se inserem, justamente, na análise da diferença específica da conexão social  
estabelecida pela sociedade capitalista frente às formações sociais anteriores, bem  
como suas repercussões para a formação do valor como poder autonomizado que  
submete os indivíduos a sua própria lógica. De acordo com a argumentação de Marx,  
a determinação da política moderna como comunidade universal abstrata plenamente  
apartada da sociedade civil-burguesa se explica pela necessária equalização formal  
dos indivíduos enquanto trocadores, de modo a produzir uma conexão social  
radicalmente distinta das precedentes. O núcleo da questão encontra-se, uma vez mais,  
no caráter universal da conexão entre os indivíduos produzida pela mediação do valor,  
que, todavia, constitui tal conexão como nexos exteriores aos mesmos indivíduos.  
Insiste-se, as relações de dependência coisal instauradas pelo capital transforma  
radicalmente a relação do indivíduo com a comunidade, a qual deixa de ser algo local  
e determinado que se impõe como determinação absoluta das formas de produção  
e apropriação , para se constituir como esfera que abrange a totalidade dos  
indivíduos, ainda que na forma de uma conexão completamente exterior, tornada  
simples meio e não mais o fim da atividade produtiva. Notando como o processo de  
equalização característico da sociedade capitalista se conecta com o processo de  
emancipação política, Marx aduz, como se viu, que somente no século XVIII, com a  
‘sociedade burguesa’, as diversas formas de conexão social confrontam os indivíduos  
como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior(MARX,  
2011b, p. 40).  
Convém observar mais detidamente a argumentação marxiana. De acordo com  
o autor, como a mercadoria ou o trabalho estão determinados tão somente como  
valor de troca e a relação pela qual as diferentes mercadorias se relacionam entre si  
[se apresenta] como troca desses valores de troca, a sociabilidade capitalista  
pressupõe a equiparaçãodos indivíduos, os quais se determinam socialmente  
simplesmente como trocadores. Para Marx, importa destacar que a determinação  
formal dos indivíduos como trocadores, a qual exclui toda e qualquer diferença  
concreta existente entre eles, decorre da própria determinação econômicaque define  
o modo de produção capitalista e, por conseguinte, se constitui a despeito das  
vontades individuais, pelo tipo específico de interatividade prática instaurado pelo  
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movimento do capital, responsável por conferir determinada função social aos sujeitos  
reais atuantes no interior de determinada estrutura sociometabólica. Desvendando as  
relações práticas que dão sustentação às categorias fundamentais da política moderna,  
Marx observa como, na sociedade capitalista, cada indivíduo tem a mesma relação  
social com o outro que o outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por  
isso, a relação da igualdade. É impossível detectar qualquer diferença ou mesmo  
antagonismo entre eles, nem sequer uma dissimilaridade(MARX, 2011b, pp. 184-  
185).  
Seguindo nas considerações de Marx, no que diz respeito ao conteúdo  
determinado exterior ao ato da troca” – as particularidades individuaisde cada  
trocador, a particularidade natural da mercadoria que é trocada, a necessidade  
natural particular dos trocadoresetc. , convém sublinhar que ele se encontra fora  
da determinação econômica, de tal modo que, longe de ameaçar a igualdade social  
dos indivíduos, faz de sua diferença natural o fundamento de sua igualdade social”  
(MARX, 2011b, pp. 185-186). Para a crítica marxiana, importa mostrar que o modo  
de produção capitalista impõe aos indivíduos um tipo específico de interatividade  
prática, o qual não anula ou suprime as determinações concretas constituintes da  
particularidade de cada indivíduo ou mercadoria, mas subordina-as à relação de troca.  
Trata-se de considerar a forma social dos sujeitos e produtos postos em relação por  
força da estrutura econômica na qual estão inseridos, no interior da qual a diversidade  
da necessidade de cada indivíduo e de sua produção fornece unicamente a  
oportunidade para a troca e para a sua igualação social na mesma. Com efeito, a  
diversidade natural é o pressuposto de sua igualdade social no ato da troca e dessa  
conexão em que se relacionam como agentes produtivos(MARX, 2011b, p. 186).  
Ademais, considerando que essa diversidade natural dos indivíduos e das próprias  
mercadoriasfornece unicamente o motivo para a integração desses indivíduos, para  
a sua relação social como trocadores, relação em que são pressupostos e se afirmam  
como iguais, à determinação da igualdade soma-se a da liberdade(MARX, 2011b,  
pp. 186-187).  
Para os propósitos do presente artigo, importante demarcar como a análise  
marxiana da igualdade e da liberdade registrada nos Grundrisse sofistica a  
argumentação desenvolvida em Sobre a questão judaica, segundo a qual o estado  
político, produzido pelo completamento da separação entre vida pública e vida  
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privada, acolhe o indivíduo na sua caricatura abstrata do citoyen13. Atestando  
aprimoramentos importantes oriundos do aprofundamento da crítica econômica  
marxiana, o texto dos Grundrisse revela que a determinação formal da cidadania, que  
iguala na comunidade política individualidades muito diferentes entre si, resulta da  
equiparação necessária à troca generalizada de mercadorias como meio incontornável  
pelo qual o indivíduo participa do produto social. Com efeito, registre-se como a  
análise marxiana da forma valor ilumina como, no modo de produção capitalista, as  
individualidades participam da comunidade como trocadores, sendo as demais  
determinações concretas da vida privada irrelevantes para a vida pública. Na condição  
de encarnação da forma comunitária exigida pelo capital, o estado moderno  
reconhece apenas as determinações do indivíduo correspondentes à sua função social  
específica na sociedade capitalista, razão pela qual reproduz, em âmbito jurídico-  
político,(MUSETTI, 2022, p. 309) a igualdade e a liberdade formais exigida pela troca  
generalizada de valores. Fixe-se, pois, que a análise marxiana da relação de  
complementariedade entre, de um lado, a estrutura fundamental do modo de produção  
capitalista o movimento de autovalorização do valor, enraizado na troca entre capital  
e trabalho e, de outro, a equiparação formal dos indivíduos como trocadores,  
complementa e desenvolve a crítica à figura do cidadão, de modo a precisar o  
conteúdo social subjacente às categorias da politicidade moderna(MUSETTI, 2022,  
p. 310). Para Marx, igualdade e liberdade (...) não apenas são respeitadas na troca  
baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva real,  
de toda igualdade e liberdade(MARX, 2011b, p. 188).  
O ponto a ser sublinhado é que o próprio movimento que estrutura o modo  
de produção do capital, em sua imanência, que enseja a necessidade do estado  
moderno em sua diferença específica frente as formas estatais anteriores. A igualdade  
e a liberdade políticas são constituídas como exigência da autovalorização do valor, a  
qual, contraditoriamente, efetiva a desigualdade e a ausência de liberdade das  
individualidades cindidas em diferentes classes sociais. Destarte, o modo de produção  
13  
Em Sobre a questão judaica, Marx desenvolve profícua análise sobre os direitos do homem  
proclamados pela revolução política, observando que a aplicação prática do direito humano à liberdade  
equivale ao direito humano à propriedade privada, assim como a igualdade nada mais é que a  
igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada homem é visto uniformemente como mônada que  
repousa em si mesma. O filósofo alemão salienta que a cidadania, a comunidade política, é rebaixada  
pelos emancipadores à condição de mero meio para a conservação desses assim chamados direitos  
humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como serviçal do homme egoísta, do homem como  
bourgeois(MARX, 2010, p. 49-50).  
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que tem o valor como mediador geralproduz uma forma de sociabilidade na qual o  
interesse coletivo aparece como motivo do ato [de troca] como um todo, (...) mas não  
é motivo enquanto tal, ao contrário, atua, por assim dizer, por detrás dos interesses  
particulares refletidos em si mesmos, do interesse singular contraposto ao do outro”  
(MARX, 2011b, p. 187). Insiste-se, a troca generalizada de mercadorias pressupõe a  
plena separação entre interesses particulares e interesse comunitário, a qual reduz o  
segundo a mero meio para a efetivação do primeiro. Nos termos de Marx, no sistema  
do capital, o interesse universal é justamente a universalidade dos interesses  
egoístas, pois os trocadores agem reconhecendo que o interesse comum consiste  
precisamente na troca do interesse egoísta em sua bilateralidade, multilateralidade e  
autonomização(MARX, 2011b, p. 188). Desse modo, nota-se como são as relações  
nucleares que estruturam a sociabilidade do capital que exigem a edificação do poder  
estatal e da comunidade universal abstrata correspondente, como complemento  
necessário que viabiliza a troca generalizada de mercadorias. A crítica marxiana não  
deixa de salientar, todavia, que o círculo vicioso que amarra estado moderno e capital  
como dimensões complementares entre si não está livre da tensão resultante do  
chancelamento formal da liberdade e igualdade políticas, de um lado, e a efetivação  
da desigualdade e ausência de liberdade produzidas, na prática, pelo movimento de  
autovalorização do valor, de outro.  
Registre-se, o desenvolvimento da crítica econômica madura de Marx  
aprofunda sua crítica da política, mantendo inalterado seus principais alicerces. O  
centro nervoso da questão permanece sendo a relação entre, de um lado, o  
desenvolvimento efetivo do modo de produção capitalista como ponto de culminação  
do processo contraditório pelo qual a autoprodução humana se desenvolve pelo  
aprofundamento de relações alienadas e, de outro lado, a consolidação da forma  
maturada do estado e da política, os quais correspondem ao grau máximo da alienação  
entre indivíduo e comunidade. Em tal alienação radical, estruturante da sociedade  
burguesa, repousa o caráter contraditório da emancipação política, que, por um lado,  
é considerada um progresso (à medida que supera os limites naturais e espontâneos  
das formas anteriores e põe a relação do indivíduo com a comunidade em termos  
puramente sociais, ainda que de forma invertida), mas, por outro lado, é reconhecida  
como limitada, pois enraizada na radicalização do estranhamento, na plena cisão entre  
vida pública e vida privada, a qual enseja a autonomização da política como  
universalidade abstrata contraposta aos indivíduos. Não por acaso, Marx, em Sobre a  
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questão judaica, afirmou que a emancipação política não chega a ser a forma definitiva  
da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação  
humana dentro da ordem mundial vigente até aqui(MARX, 2010, p. 41).  
O ponto a ser salientado, nesse passo, é que a contradição inerente à política  
moderna corresponde à contraditoriedade do salto promovido pela sociedade  
burguesa no processo da autoprodução humana. Como ponto de culminação de um  
processo de separação entre trabalho e condições objetivas de sua realização, a  
sociedade burguesa se constitui como ponto de transição no itinerário da  
autoprodução humana: de um lado, ponto de chegada de um longo processo de  
dissolução dos vínculos naturais-espontâneos que conectam, imediatamente, o  
trabalho à terra; de outro lado, ponto de partida para um metabolismo social universal  
estruturado pela associação livre dos produtores, que supera o limite socialmente  
posto pelo trabalho estranhado e promove a recuperação da universalidade das forças  
produtivas desenvolvidas. Atentando para as possibilidades objetivas criadas no seio  
do modo de produção capitalista, Marx assinala a tendência universal do capital que  
o diferencia de todos os estágios de produção precedentes. Segundo ele:  
Embora limitado por sua própria natureza, o capital se empenha para  
[o] desenvolvimento universal das forças produtivas e, desse modo,  
devém o pressuposto de um novo modo de produção, fundado não  
no desenvolvimento das forças produtivas para reproduzir e, no  
máximo, ampliar um estado determinado, mas onde o próprio  
desenvolvimento das forças produtivas livre, desobstruído,  
progressivo e universal constitui o pressuposto da sociedade e, por  
isso, de sua reprodução; onde o único pressuposto é a superação do  
ponto de partida. Tal tendência que o capital possui, mas que ao  
mesmo tempo o contradiz como modo de produção limitado e, por  
isso, o impele à sua própria dissolução diferencia o capital de todos  
os modos de produção precedentes e, ao mesmo tempo, contém em  
si o fato de que o capital é posto como simples ponto de transição.  
(MARX, 2011b, pp. 445-446, grifos meus)  
Vale insistir nesse ponto, decisivo para a crítica ontológica marxiana: ao  
completar a separação entre trabalho e seus pressupostos objetivos, a sociedade  
burguesa se edifica como a forma mais extrema do estranhamento, assentada na  
relação do capital com o trabalho assalariado. A radicalidade da separação  
constitutiva da sociabilidade do capital permite reconhecê-la como um ponto de  
passagem necessário, à medida que encerra em si, ainda de forma invertida, de  
cabeça para baixo, a dissolução de todos os pressupostos limitados da produção, de  
tal modo que a inversão não altera o fato de que o capital cria e produz os  
imprescindíveis pressupostos da produção e, em consequência, as condições materiais  
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plenas para o desenvolvimento total, universal, das forças produtivas do indivíduo”  
(MARX, 2011b, p. 425). Insiste-se, à diferença de todas as relações de produção  
precedentes, no capital, o seu próprio pressuposto o valor é posto como produto,  
e não como pressuposto superior, pairando sobre a produção(MARX, 2011b, p. 446).  
Com efeito, o limite do capitalnão é natural-espontâneo (embora apareça como  
natural-espontâneo no contexto de autonomização do valor), mas social, enraizado no  
caráter contraditório das relações de produção, pelo qual o desenvolvimento e o  
aprimoramento das forças produtivas, da riqueza universal etc., do conhecimento etc.,  
aparece de tal forma que o próprio indivíduo que trabalha se aliena [entäussert]e se  
relaciona às condições elaboradas a partir dele não como suas próprias condições,  
mas como condições de uma riqueza alheia e de sua própria pobreza(MARX, 2011b,  
p. 446).  
No que se refere à crítica da política, observe-se como a forma maturada do  
estado corresponde à especificidade da dominação impessoal instaurada pelas  
relações de dependência coisal características do modo de produção do capital, na  
exata medida em que se assentam no movimento autônomo do valor, o qual pressupõe  
a completa separação entre indivíduo e comunidade. A relação nuclear de tal  
dominação impessoal é, justamente, a troca entre capital e trabalho, a qual, no plano  
político, se apresenta como troca de equivalentes efetivada por cidadãos formalmente  
livres e iguais, de modo a esconder o trabalho excedente não pago pelo capital14. De  
modo a sintetizar os principais movimentos da argumentação marxiana sobre o estado  
e a política moderna, recorda-se que  
a análise madura da forma valor, somada aos aportes registrados pelo  
jovem Marx, fornece as categorias que conformam a ossatura do  
estado moderno. Como encarnação da comunidade abstrata  
pressuposta no processo de autovalorização do capital, o estado  
moderno expressa, no plano político, o domínio impessoal do capital  
sobre o trabalho, apresentando-o na sua forma fetichizada, como  
troca livre entre cidadãos iguais. Sua principal função consiste,  
justamente, em fornecer a estrutura jurídico-política necessária para  
garantir a troca entre trabalho e capital, cuja lógica própria exige a  
igualação dos sujeitos da produção como trocadores de mercadorias  
indiferentes entre si, determinação formal que, politicamente, se  
14 Em O capital, Marx ressalta “a importância decisiva da transformação do valor e do preço da força de  
trabalho na forma-salário ou em valor e preço do próprio trabalho”. Segundo o filósofo alemão, “sobre  
essa forma de manifestação, que torna invisível a relação efetiva e mostra precisamente o oposto dessa  
relação, repousam todas as noções jurídicas, tanto do trabalhador como do capitalista, todas as  
mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices  
apologéticas da economia vulgar” (MARX, 2013, p. 610).  
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expressa na equiparação entre proprietários e não proprietários das  
condições objetivas do trabalho os meios de produção na figura  
do cidadão. Nesse sentido, o estado moderno difere radicalmente das  
variadas formas estatais que antecedem a produção capitalista, nas  
quais as relações de dependência pessoal instituem formas de  
dominação direta, que, por sua vez, repercutem no caráter  
explicitamente coercitivo do estado frente aos produtores diretos.  
Mais precisamente, à medida que corresponde à última forma  
antagônica da produção, o estado moderno constitui a forma  
completa e acabada do poder estatal, que, como resultado da  
completa dissolução dos vínculos naturais-espontâneos que uniam  
imediatamente indivíduo e comunidade, se separa da sociedade civil  
como comunidade abstrata universal (MUSETTI, 2022, p. 314).  
Ademais, anota-se que a radicalidade da alienação do trabalho na sua relação  
com o capital, ao mesmo tempo em que determina o limite do modo de produção  
capitalista na consequente autonomização dos poderes sociais, faz aparecer em sua  
pureza, despida das determinações naturais-espontâneas, a relação do trabalho, da  
atividade produtivaem geral, com as suas próprias condições e com seu próprio  
produto” (MARX, 2011b, p. 425). Nesse sentido, o próprio modo de produção do  
capital fornece, no plano da objetividade, o arsenal categorial para se pensar a  
multiplicidade as formas anteriores como modos específicos da relação entre trabalho  
e suas condições objetivas de realização, bem como explicita a relação estrutural de  
complementariedade entre a forma estatal e a propriedade privada. Em outras  
palavras, ao pôr, historicamente, a relação do trabalho com suas condições objetivas  
de realização em termos puramente sociais, a maturação do modo de produção  
capitalista abre caminho para a investigação que reconhece na relação direta entre os  
proprietários das condições de produção e os produtores diretoso segredo mais  
profundo, a base oculta de todo o arcabouço social(MARX, 2017, p. 852), revelando,  
por conseguinte, que estado e política não se explicam por si mesmos, uma vez que  
são produzidos em resposta à necessidades específicas originadas nas relações de  
produção. Desse modo, assim como a sociedade burguesa, na condição de última  
forma antagônica da produção (que explicita, consequentemente, a relação da  
atividade produtiva em geral com seu meio), fornece uma chave para a compreensão  
das formações sociais anteriores15, o estado moderno, como forma acabada do poder  
15  
Em passagem célebre dos Grundrisse, Marx argumenta que a sociedade burguesa é a mais  
desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que  
expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a  
organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos  
escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não  
superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. A anatomia  
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estatal, fornece uma chave para a compreensão das formas imperfeitas anteriores,  
revelando, ainda, que estado e política, em qualquer uma de suas formas históricas,  
são produtos alienados de formas de sociabilidade limitadas, nas quais impera a  
contradição entre interesses particulares e interesse comum.  
Em seção dedicada às formas que antecederam a produção capitalista, a  
crítica marxiana apresenta exemplo profícuo do modo pelo qual a anatomia da  
sociedade civil-burguesa, na condição de forma mais desenvolvida da produção,  
fornece uma chave para a compreensão das formas anteriores, apreendidas como  
momentos específicos do amplo e contraditório processo da autoprodução humana.  
Reitera-se, a crítica marxiana toma como ponto de partida a sociedade burguesa  
desenvolvida e, através da cooperação entre a análise das categorias que conformam  
a estrutura do modo de produção do capital e a análise da gênese histórica da  
separação entre indivíduo e comunidade (pressuposta no movimento de  
autovalorização do valor), distingue os elementos que definem a particularidade  
concreta de cada forma social examinada das determinações comuns às múltiplas  
formas de apropriação social que se desenvolvem no processo da autoprodução  
humana. Marx jamais deixa de considerar que o modo de produção da vida material  
condiciona o processo de vida social, política e intelectual(MARX, 2008, p. 47), de  
modo que, conforme observação registrada nos Grundrisse, em todas as formas de  
sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que  
estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas  
relações(MARX, 2011b, p. 59). O filósofo alemão adverte, sem embargo, que a  
unidade do ser humano vivo e ativo com as condições naturais, inorgânicas, do seu  
metabolismo com a natureza e, em consequência, a sua apropriação da naturezanão  
é resultado de um processo histórico, de modo que o que carece de explicação é,  
justamente, a separação entre essas condições inorgânicas da existência humana e  
essa existência ativa, uma separação que só está posta por completo na relação entre  
trabalho assalariado e capital(MARX, 2011b, p. 401).  
Ao iniciar sua incursão sobre as formas que precederam a produção  
do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores  
nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é  
conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Mas de  
modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade  
burguesa em todas as formas de sociedade(MARX, 2011b, p. 58). Para uma explicação mais detalhada  
da argumentação marxiana nesse excerto, cf. Musetti (2022, p. 206).  
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capitalista, Marx insiste que a especificidade da sociabilidade do capital se define na  
exata medida em que supera limite que, em maior ou menor grau, se faz presente em  
todas as formações sociais anteriores. Tal limite, vale reiterar, se constitui pela unidade  
imediata do trabalho com suas condições objetivas, bem como do indivíduo com a  
comunidade. Para o tema do presente artigo, importa salientar que, ao investigar a  
gênese da separação constitutiva do mundo burguês entre trabalho e condições  
objetivas de sua realização , a crítica marxiana mostra que o surgimento do estado  
corresponde à passagem da comunidade natural correspondente às primeiras formas  
da comunidade, nas quais não há qualquer perturbação na unidade imediata entre  
trabalho e terra para uma segunda forma de propriedade, na qual a união imediata  
entre indivíduo e comunidade é reposta de modo qualitativamente distinto16.  
Diante de uma variedade múltipla de formações sociais que precederam a  
produção capitalista, Marx procura agrupá-las, em termos bastante gerais, em três  
tipos diferentes de propriedade: a primeira forma da comunidade natural, a segunda  
forma de propriedade correspondente à Antiguidade clássica e a terceira forma  
correspondente à propriedade germânica. De modo a salientar apenas o essencial para  
a argumentação deste artigo, registre-se que a comunidade natural, apreendida como  
forma originária do metabolismo entre homem e natureza à medida que se estrutura  
pela ausência de qualquer cisão, socialmente constituída, na relação entre indivíduo e  
comunidade , prescinde do estado e da política. Conforme salienta Marx, o ser  
humano só se individualiza pelo processo histórico. Ele aparece originalmente como  
um ser genérico, ser tribal, animal gregário ainda que de forma alguma como um  
ζῷον πολιτικόν em sentido político(MARX, 2011b, p. 407). Ainda de acordo com o  
filósofo alemão, no âmbito da comunidade natural, a propriedade significa (...)  
pertencer a uma tribo (comunidade) (...) e, por mediação do comportamento dessa  
comunidade em relação ao território, à terra como seu corpo inorgânico(MARX,  
2011b, p. 403). A ausência de qualquer separação entre interesses particulares e  
interesses comunitários torna desnecessária a função do ager publicus, produzida no  
contexto do desenvolvimento histórico posterior.  
Sem desconsiderar as variadas e muito diversas formas pelas quais a  
16 Para uma análise mais detalhada da incursão marxiana sobre as formas que antecederam a produção  
capitalista, bem como suas repercussões para a crítica da política, cf. Musetti (2022, pp. 278-325).  
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comunidade natural pode se estruturar17, importa anotar que, para Marx, mesmo a  
forma mais elementar e inicial da propriedade que, originalmente nada mais significa  
que o comportamento do ser humanos em relação às suas condições naturais de  
produção como pertencentes a ele, como suas, como condições pressupostas com a  
sua própria existência(MARX, 2011b, p. 403) pressupõe uma relação de  
apropriação ativa com as condições dadas, a qual, por conseguinte, impulsiona para a  
alteração das condições originárias (MARX, 2011b, p. 404). Sublinhando que qualquer  
forma de sociabilidade pressupõe uma configuração específica das categorias da  
produção humana, Marx observa que mesmo onde só há o que achar e descobrir, isto  
logo exige esforço, trabalho como na caça, na pesca, no pastoreio e produção (i.e.,  
desenvolvimento) de certas capacidades do lado do sujeito” (MARX, 2011b, p. 404),  
de tal modo que, além de produzir o necessário para a reprodução e reposição dos  
pressupostos originários da comunidade, também produzem, contraditoriamente,  
novas necessidades que remetem para além da comunidade natural. Com efeito:  
uma vez que a unidade entre a forma do sistema comunitário e a  
propriedade sobre a natureza a ele relacionadatem, como se viu,  
sua realidade viva em um modo de produção determinado(MARX,  
2011b, p. 406), ainda que, no âmbito da comunidade natural, a  
apropriação comunitária seja primordialmente voltada para a  
reposição dos pressupostos dados naturalmente, é a própria  
produção social que impulsiona as comunidades para além dos seus  
limites originais, criando redes mais complexas de relações de  
produção que, ao mesmo tempo em que desenvolvem forças  
produtivas, dissolvem os liames naturais que unem indivíduo à terra e  
às condições de trabalho (MUSETTI, 2022, p. 287).  
O ponto a ser registrado, nesse passo, é que já no interior do  
desenvolvimento processual da primeira forma de propriedade, surge in statu nascendi  
uma divisão do trabalho, que resulta em formas embrionárias da separação dos  
indivíduos frente à comunidade(MUSETTI, 2022, p. 286). Tal processo impulsiona o  
metabolismo social e cria as condições para a segunda forma da propriedade  
correspondente à Antiguidade clássica, que difere da comunidade natural à medida  
que se constitui como produto de uma vida histórica mais movimentada[, das]  
vicissitudes e da modificação das tribos primitivas(MARX, 2011b, p. 390). Se a  
17  
A leitura atenda dos Grundrisse revela que Marx jamais perde de vista os múltiplos modos de  
complexificação da comunidade natural em diferentes povos, de modo que seria grave equívoco  
desconsiderar o elevado nível de abstração na reflexão marxiana sobre a primeira forma de  
propriedade. Grife-se que são os elementos comuns de diversos modos de apropriação distintos entre  
si que permitem agrupá-los como pertencentes à comunidade natural (cf. MUSETTI, 2022, pp. 281-283)  
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passagem da primeira para a segunda forma de propriedade não supera a unidade  
natural-espontânea entre indivíduo e comunidade e, por conseguinte, também tem  
a comunidade como primeiro pressupostoda produção , tal unidade é reposta de  
modo qualitativamente distinto, pois a comunidade, embora permaneça como  
pressuposto, não se constitui mais como substância da qual os indivíduos são simples  
acidentes ou da qual eles constituem componente puramente naturais(MARX, 2011b,  
p. 390). Em contraste com a comunidade natural, a segunda forma não presume a  
terra como base, mas a cidade como sede e já constituída das pessoas do campo. (...)  
O campo aparece como território da cidade; e não o povoado, como simples apêndice  
do campo(MARX, 2011b, p. 390). Com efeito, a Antiguidade clássica corresponde a  
um modo de produção mais complexo, que se assenta sobre uma estrutura social na  
qual os pressupostos naturais originários se embricam com pressupostos criados pelo  
próprio trabalho. Como consequência, produz-se mediações sociais no  
desenvolvimento contraditório da relação entre indivíduo e comunidade.  
O marco distintivo da segunda forma de propriedade, segundo Marx, consiste  
no desenvolvimento da dimensão privada do trabalho e da apropriação, de tal modo  
que a valorização da propriedade do indivíduo singularpassa a depender menos do  
trabalho comum, quebrando o caráter puramente natural da tribo. Com efeito, o  
deslocamento da sede natural da comunidade na tribo para o solo estranhoda  
cidade pressupõe condições de trabalho essencialmente novas, bem como maior  
desenvolvimento da energia do indivíduo singular, de tal modo que o seu caráter  
comunitárioaparece como unidade negativa voltada para o exterior e tem de  
aparecer desse modo , tanto mais estão dadas as condições para que o indivíduo  
singular devenha proprietário privado de terras do lote particular, cujo cultivo cabe  
a ele e sua família(MARX, 2011b, p. 391). Como se observa, Marx procura descrever  
a contraditoriedade do processo no qual o desenvolvimento das capacidades humanas  
de apropriação da natureza ocorre pari passu com a dissolução dos laços naturais-  
espontâneos entre indivíduo e comunidade. No interior de tal processo contraditório,  
criam-se as condições para a forma de sociabilidade da Antiguidade clássica, bem  
como para o surgimento do estado e da política, que encarnam a existência econômica  
autônomada comunidade:  
A comunidade como estado é, por um lado, a relação recíproca  
desses proprietários privados livres e iguais, seu vínculo contra o  
exterior e, [por outro,] ao mesmo tempo, é sua garantia. Nesse caso,  
o sistema comunitário baseia-se no fato de que seus membros  
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consistem de proprietários de terra que trabalham, camponeses  
parceleiros, bem como no fato de que a autonomia destes últimos  
consiste na sua relação recíproca como membros da comunidade, na  
proteção do ager publicus para as necessidades comunitárias e a  
glória comunitária etc. Ser membro da comunidade continua sendo  
aqui pressuposto para a apropriação de terras, mas, como membro da  
comunidade, o indivíduo singular é proprietário privado. Ele se  
relaciona com sua propriedade privada como terra, mas ao mesmo  
tempo como seu ser na qualidade de membro da comunidade, e a sua  
manutenção enquanto tal é também a manutenção da comunidade e  
vice-versa etc. Como a comunidade, não obstante aqui já produto  
histórico, não só de fato, mas já reconhecida enquanto tal, e, por isso  
mesmo, originada, é aqui o pressuposto da propriedade da terra i.e.,  
da relação do sujeito trabalhador com os pressupostos naturais do  
seu trabalho como pertencentes a ele , esse pertencimento, no  
entanto, é mediado pelo seu ser como membro do estado, pelo ser  
do estado em consequência, por um pressuposto que é encarado  
como divino etc. (MARX, 2011b, p. 391)  
Observe-se que Marx, apreendendo as formas estatais em conexão com as  
relações materiais que as engendram, assinala que, na Antiguidade clássica, o estado  
que, por estarem ausentes as condições objetivas para o seu florescimento, inexistia  
na comunidade natural surge como resultado de uma complexificação do  
metabolismo social, enraizada na primeira separação entre propriedade comunitária”  
e propriedade privada. Tal complexificação produz uma estrutura social na qual, de  
um lado, a individualidade deixa de se confundir, imediatamente, com a existência  
comunitária pois o trabalho pessoal passa a pôr as condições e elementos objetivos  
da personalidade do indivíduo(MARX, 2011b, p. 392) de modo relativamente  
autônomo frente à comunidade , bem como a própria comunidade não pode mais  
aparecer na forma natural, como no caso da primeira forma de propriedade, mas  
como comunidade ela própria já produzida, originada, secundária, produzida pelo  
trabalhador(MARX, 2011b, p. 410); de outro lado, indivíduos proprietários e  
comunidade política ainda se relacionam dentro dos limites impostos pelas ligações  
naturais-espontâneas entre trabalho e meios de produção, as quais, embora  
complexificadas, persistem como pressuposto da forma de apropriação. Com efeito,  
ainda que a segunda forma de propriedade corresponda a um maior desenvolvimento  
das forças produtivas em relação à comunidade natural, a incompletude do  
desenvolvimento social seja do indivíduo, seja da comunidade enseja a encarnação  
da comunidade no estado, como complexo de relações que se autonomizam e se  
apresentam como pressuposto encarado como divino. Importa demarcar que, nas  
análises marxianas das formas que antecederam a produção capitalista, a necessidade  
do estado e da comunidade política se enraíza na limitação da forma de apropriação,  
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como resultado de um impasse histórico: de um lado, o processo dissolutor da unidade  
imediata entre indivíduo e comunidade, que possibilita a constituição de ambos como  
construtos sociais; de outro lado, a incompletude de tal processo repercute na  
incapacidade de se restabelecer a unidade entre indivíduo e comunidade em termos  
puramente sociais. Em suma, a gênese do estado e da política revela-os como  
complexos específicos que não são inerentes ao metabolismo social humano, mas que  
se edificam como comunidade alienada, separada, própria de formas de apropriação  
limitadas, cuja função é garantir, como poder estranho, o vínculo comunitário que os  
indivíduos ainda não podem estabelecer por si mesmos. A esse respeito, são  
esclarecedores os termos de Chasin em O futuro ausente, para os quais:  
por seus limites, debilidades e incipiências intrínsecas, a comunidade  
antiga (o exemplo grego é a melhor iluminura) não é socialmente  
autoestável, é incapaz de se sustentar e regular exclusivamente a  
partir e em função de suas puras e específicas energias sociais. Esta  
incapacidade ou limite social engendra, a partir de si mesmo, em  
proveito  
e
em vista da estabilidade comunitária, uma  
dessubstanciação social como força extrassocial uma desnaturação  
e metamorfose de potência social em força política. Ou seja, esta é  
uma forma social que se entifica pelo desgarramento do tecido  
societário, dilaceração naturalmente determinada pela impotência  
deste, e que, enquanto poder, se desenvolve tomando distância  
(varável de acordo com os modos de produção) da planta humano-  
societária que o engendra (mesmo na democracia direta) e a ela se  
sobrepõe, como condição mesma para o exercício de sua função  
própria regular e sustentar a regulação. Força social usurpada e  
presentificada como figura político-jurídica que forma com a  
sociedade stricto sensu um indissolúvel cinturão de ferro, cujos  
segmentos ou elos não subsistem em separado (CHASIN, 2000, pp.  
169-170).  
O ponto central a ser demarcado é a determinação do estado e da política  
como entificações específicas gestadas em meio ao desenvolvimento da propriedade  
privada, o qual promove a separação entre interesses privados e interesses  
comunitários. Nesse contexto, a função primordial da comunidade política é manter e  
gerir a relação social limitada que a produziu. Desse modo, explica-se a inexistência  
do poder estatal nas formas originárias da comunidade natural, uma vez que nelas a  
apropriação individual não se distingue, objetivamente, da apropriação comunitária.  
Sem desconsiderar o nível mais elevado de sofisticação da análise marxiana frente à  
crítica econômica desenvolvida no período formativo, não se pode deixar de notar a  
confluência entre a análise marxiana sobre o surgimento do estado na Antiguidade  
clássica contida nos Grundrisse e os aportes registrados em A ideologia alemã, na qual  
salienta-se o vínculo estrutural entre o desenvolvimento da propriedade privada e o  
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surgimento do poder estatal como produto da alienação entre indivíduo e comunidade.  
Ademais, em A ideologia alemã, Marx anota a conexão entre a propriedade estatal ou  
comunal da Antiguidadee o desenvolvimento da escravidão, ecoando as  
considerações presentes em A sagrada família, segundo as quais o estado antigo  
tinha como fundamento natural a escravidão(MARX; ENGELS, 2011, p. 132).  
Seguindo na análise marxiana das formas que antecederam a produção  
capitalista, tem-se que a dissolução da segunda forma de propriedade, que enseja a  
emergência do estado e da comunidade política, dá lugar à terceira forma, a  
propriedade germânica. De modo a sintetizar o essencial da argumentação de Marx,  
aponta-se que, em contraste com a segunda forma de propriedade, entre os  
germanos, onde os chefes de família individuais se fixam nas matas, separados uns  
dos outros por longas distâncias, a comunidade só existe, desde logo externamente  
considerada, pela reunião periódica dos membros da comunidade. O elemento  
distintivo da propriedade germânica se define na medida em que a comunidade  
aparece (...) como reunião [Vereinigung], não como associação [Verein], como  
unificação [Einigung] constituída por sujeitos autônomos, os proprietários de terra, e  
não como unidade [Einheit](MARX, 2011b, p. 395). Com efeito, diferentemente da  
forma de propriedade da Antiguidade clássica, a forma germânica de apropriação é  
caracterizada pelo isolamento dos produtores em suas propriedades privadas,  
constituídas como unidades independentes, tornando o vínculo comunitário  
meramente acidental e esporádico. Marx considera sintomático que a comunidade  
germânica não se concentra na cidade, uma vez que, no caso da Antiguidade clássica,  
com a reunião na cidade, a comunidade enquanto tal possui uma existência  
econômica, de modo que a simples existência da cidade enquanto tal é diferente da  
simples pluralidade de casas independentes. O todo não consiste aqui de suas partes.  
É um tipo de organismo autônomo. Em outras palavras, a simples concentração na  
cidade, no caso da Antiguidade clássica, faz com que a comunidade enquanto tal  
tenha uma existência externa, distinta da existência do indivíduo singular(MARX,  
2011b, p. 395). No caso da forma germânica, haja vista que os proprietários privados  
se encontram isolados e autossuficientes, a comunidade não existe de fato como  
estado, sistema estatal, como entre os antigos, porque ela não existe como cidade”  
(MARX, 2011b, p. 395).  
Conforme a argumentação de Marx, embora aprofunde a separação entre  
indivíduo e comunidade (e, nesse sentido, apresente condições distintas da unidade  
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originária característica da comunidade natural), na forma germânica a comunidade  
não existe de fato como estado, sistema estatal, como entre os antigos, porque ela  
não existe como cidade(MARX, 2011b, p. 395). Com efeito, observa-se que, mesmo  
constatando a correspondência entre a formação do poder estatal e o processo de  
separação que culmina na sociedade burguesa, a crítica marxiana atenta para o  
desenvolvimento não linear do estado e da política, anotando como condição objetiva  
para o seu surgimento a existência efetiva da comunidade como um organismo  
autônomoapartado dos indivíduos proprietários. Ainda de acordo com a crítica  
marxiana, para que a comunidade tivesse existência efetiva, os proprietários de terra  
livres precisavam se reunir em assembleia, ou apresentar condições similares a de  
Roma, nas quais a comunidade existe à parte das assembleias, na existência da  
própria cidade e dos funcionários públicos que a servem etc.(MARX, 2011b, p. 395).  
Registre-se, sendo o fundamento da comunidade na forma germânica a habitação  
familiar isolada, autônoma, constata-se que, o homem do campo não é cidadão do  
estado, i.e., não é habitante da cidade(MARX, 2011b, p. 396). De acordo com Marx,  
é verdade que também entre os germanos há o ager publicus, a terra comunitária ou  
a terra do povo, à diferença da propriedade do indivíduo(MARX, 2011b, p. 395),  
porém, contrastando com a segunda forma de propriedade, esse ager publicus não  
aparece, como, por exemplo, entre os romanos, como a existência econômica particular  
do estado ao lado dos proprietários privados, pois aparece antes somente como  
complemento da propriedade individual e figura como propriedade somente na  
medida em que é defendido contra tribos inimigas como propriedade comunitária de  
uma tribo em particular(MARX, 2011b, p. 395).  
Para a crítica marxiana da política, a análise das formas que antecederam a  
produção capitalista importa à medida que explicita as condições objetivas que  
ensejam a edificação do estado e da política. No caso das três formas de propriedade  
analisadas por Marx, constata-se que, enquanto a ausência de estado na comunidade  
natural se explica pela unidade imediata, dada natural-espontaneamente, entre  
indivíduo e comunidade, na propriedade germânica, tal ausência é elucidada quando  
se considera o isolamento dos proprietários privados, que produzem sem estabelecer  
qualquer vínculo comunitário efetivo entre si. Desse modo, a ausência do estado na  
comunidade natural e na forma germânica, bem como seu surgimento na Antiguidade  
clássica, revelam que a comunidade política pressupõe, além do desenvolvimento da  
propriedade privada com o correlato processo de dissolução dos elos comunitários  
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dados natural-espontaneamente , relações de produção que ensejam a existência da  
comunidade como organismo autônomo, efetivamente separado das individualidades.  
Além disso, explicitam a gênese histórica do estado e da política como processo não  
linear, no interior do qual, a depender da especificidade do modo de produção, são  
gestadas as condições de seu surgimento.  
O ponto a ser salientado, não obstante, é a confirmação, pela crítica econômica  
madura de Marx, de algumas determinações estruturantes da crítica da política tal  
como desenvolvida desde o período formativo: i) estado e política não são  
determinações intrínsecas do ser humano social, mas são ensejados pelas debilidades  
e limites da forma de apropriação que, marcada pela clivagem entre interesses  
particulares e interesse geral, ensejam a encarnação da comunidade em um organismo  
autônomo, externo à vida dos indivíduos; ii) na condição de predicado negativo do ser  
humano social, estado e política não são instâncias resolutivas, pois desempenham  
função de manter e gerir os conflitos que os produzem e nos quais se assentam; iii) a  
comunidade política tem como base real a separação entre indivíduo e comunidade,  
promovida à medida que se desenvolve a contradição entre apropriação privada e  
apropriação comunitária, a qual enseja a existência da comunidade como entidade  
separada e externa frente aos interesses privados, razão pela qual seu surgimento está  
intimamente relacionado à emergência da cidade como centro organizador da vida  
comunitária. Confirma-se, desse modo, o reconhecimento da determinação  
ontonegativa da politicidade, pois constata-se que estado e política, em qualquer uma  
de suas formas, correspondem a uma limitação do tecido societário que é incapaz de  
se estabelecer como comunidade real.  
Sublinhadas as principais determinações da crítica marxiana da política,  
recorda-se que seu principal escopo é a compreensão da especificidade da forma  
maturada, correspondente ao círculo vicioso que compreende a relação de  
complementariedade entre estado moderno e modo de produção capitalista. Tal  
especificidade se define, convém reiterar, na dissolução completa do limite  
predominante, em maior ou menor grau, em todas as formações sociais que  
precederam a produção capitalista: a unidade imediata entre trabalho e suas condições  
objetivas de realização, bem como entre indivíduo e comunidade. O caráter  
contraditório do modo de produção do capital se define, todavia, à medida que a  
superação do limite das formações anteriores ocorre pela radicalização do processo  
de separação entre trabalho e terra, bem como entre indivíduo e comunidade, o que  
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acarreta na substituição das relações de dependência pessoal por relações de  
dependência coisal, determinadas pelo movimento autônomo do valor que impõe sua  
própria lógica à produção social, a despeito das vontades dos indivíduos. Nesse  
sentido, argumentou-se que a superação do limite se realiza como sua explicitação  
máxima, sua transformação de limite natural-espontâneo para limite posto socialmente  
como natural-espontâneo(MUSETTI, 2022, p. 303).  
No que se refere à especificidade do estado moderno, ressalta-se que, em O  
capital, Marx aduz que os antigos organismos sociais de produção são  
extraordinariamente mais simples e transparentes do que o organismo burguês, à  
medida que são condicionados por um baixo grau de desenvolvimento das forças  
produtivas do trabalho, bem como pelas relações correspondentemente limitadas  
dos homens no interior de seu processo material de produção da vida, ou seja, pelas  
relações limitadas dos homens entre si e com a natureza. Ainda nos termos marxianos,  
os modos de produção que antecedem o capitalista se enraízam ou na imaturidade  
do homem individual, que ainda não rompeu o cordão umbilical que o prende a outrem  
por um vínculo natural de gênero [Gattungszusammenhangs], ou em relações diretas  
de dominação e servidão(MARX, 2013, p. 154). Ao dissolver todos os elos naturais-  
espontâneos das formas de apropriação anteriores, o capital produz uma nova forma  
de dominação, impessoal e abstrata, que se expressa no fato de os indivíduos serem  
compelidos à troca de valores pela estrutura econômica, a qual apresenta tal troca  
generalizada de mercadorias como forma natural de participação no produto social.  
De acordo com Marx, a subordinação do trabalho ao capital não é imposta pela  
violência física direta, como trabalho forçado, servil, escravo, mas pelo dado de que  
as condições da produção são propriedade alheia, existindo elas próprias como  
associação objetiva, que é o mesmo que acumulação e concentração das condições de  
produção(MARX, 2011b, p. 490). Tal relação de dominação impessoal confere ao  
estado moderno, na condição de comunidade política ensejada pela máxima separação  
entre indivíduo e comunidade, uma diferença frente a todas as formas estatais que o  
antecederam, pois, sua função passa a ser a manutenção das relações de dependência  
coisal, de modo a garantir a viabilidade do movimento do capital em seu domínio  
impessoal sobre o trabalho.  
Observe-se, como comunidade abstrata universalizada pelo modo de  
produção capitalista, o estado moderno iguala as individualidades na condição de  
trocadores, de modo a assegurar a forma especificamente capitalista de extração do  
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mais-trabalho, uma vez que a troca entre capital e trabalho, assentada sobre relação  
estritamente econômica a cisão entre proprietários e não proprietários dos meios de  
produção, resultante da completa separação entre trabalho e meios de trabalho ,  
dispensa a coerção direta. Com efeito, a relação de complementariedade entre estado  
moderno enquanto forma acabada do estado enquanto tal e sociedade burguesa  
como última forma antagônica da produção, tem como pressuposto a superação  
contraditória do limite presente nas formações anteriores, que cria as condições  
objetivas para o surgimento do estado na forma mais radicalizada possível. Destarte,  
o estado político moderno encarna a comunidade que, enquanto dinheiro, ganha  
existência efetiva plenamente autonomizada frente à propriedade privada, à qual se  
subordina, enquanto mero meio para realização dos interesses individuais privados”  
(MUSETTI, 2022, p. 308). Constituindo a forma perfeita do estado enquanto tal, a  
forma moderna do poder estatal mantém e gerencia a especificidade da contradição  
que o constitui a separação entre trabalho e meios de produção , apresentando-se  
como administração neutra que organiza, racionalmente, os conflitos resultantes das  
relações de produção, apreendendo os indivíduos como cidadãos iguais e livres. Nesse  
sentido, o estado contribui com a forma fetichizada pela qual o modo de produção  
capitalista se apresenta aos agentes da produção, apagando o caráter social e histórico  
da especificidade das relações práticas que lhe servem de fundamento, de modo a  
absolutizar as relações de produção burguesas como naturais.  
Assim, elucidadas as determinações basilares que constituem o estado  
moderno como comunidade abstrata que garante a troca entre capital e trabalho,  
anota-se, para finalizar esta seção, a permanência, na reflexão madura de Marx sobre  
a política, da dupla dimensão do poder estatal na sua forma moderna, ressaltada,  
anteriormente, em A ideologia alemã: no desempenho de sua função primordial a  
manutenção das relações de produção enraizadas na troca entre capital e trabalho, o  
estado moderno, de um lado, assume a forma de uma administração neutra autônoma  
frente aos interesses particulares das classes sociais, apresentando como natural as  
leis econômicas que compelem os indivíduos à troca de mercadorias; de outro lado,  
opera como poder indireto da classe burguesa contra o trabalho assalariado, à medida  
que produz as leis e instituições responsáveis por assegurar a contínua exploração do  
trabalho pelo capital. Ambas as dimensões administração neutra e poder coercitivo  
convivem simultaneamente à medida que o estado moderno, enquanto forma  
maturada do estado, não se assenta sobre uma estrutura econômica na qual  
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predominam relações de dominação direta, como nas formas que antecederam a  
produção capitalista, mas na coerção mudacaracterística da forma mais extrema do  
estranhamento. Convém advertir, não obstante, que tal dupla dimensão do estado  
moderno na sua condição de poder político à serviço da dominação impessoal do  
capital sobre o trabalho expressa uma tensão interna à política moderna, enraizada  
na especificidade do salto contraditório promovido pelo capital no processo da  
autoprodução humana, o qual resultou na plena autonomização dos poderes sociais.  
Mais especificamente, aponta-se que, relacionando-se contraditoriamente com sua  
base de sustentação, o estado moderno, de um lado, chancela a igualdade e liberdade  
no plano da formalidade política, enquanto, de outro lado, para o capital, a liberdade  
e a igualdade se efetivam como desigualdade e ausência de liberdade(MARX,  
2011b, p. 191), de tal modo que o movimento de autovalorização do valor produz  
perturbações imanentesao modo de produção capitalista, por vezes pondo em  
xeque a neutralidade da administração estatal. Marx não deixa de analisar, ao longo  
de sua obra, diversos momentos nos quais o capital necessita e exige a intervenção  
coercitiva do estado moderno para assegurar a troca entre capital e trabalho,  
explicitando, nesses casos, o seu caráter de poder de classe18. Ademais, considerando  
que o estado moderno, na condição de forma pura do poder estatal, separa-se  
completamente da sociedade civil-burguesa e paira sobre os interesses privados,  
tendo como função primordial servir ao impulso do capital por extração de mais-valia,  
sua superação torna-se imprescindível para dar continuidade ao processo da  
autoprodução humana, possibilitada pelo próprio modo de produção capitalista. Como  
se verá na próxima seção, enquanto poder que expressa, no plano político, a  
dominação impessoal do capital sobre o trabalho, o estado moderno, tal como o  
próprio capital, é incontrolável, de modo que seu desmonte se torna condição  
imprescindível para o avanço do processo revolucionário que visa a emancipação  
humana.  
A superação da política pela emancipação humana  
Enfatizou-se a radicalidade da crítica marxiana da política, que, tomando como  
18  
Em tese de doutorado, tal questão foi desenvolvida com mais fôlego, de modo a observar como a  
dimensão neutra da administração estatal corresponde aos momentos de desenvolvimento do capital  
nos quais a luta de classes não está agudizada. Já no momento em que a o modo de produção capitalista  
necessita de uma ação coercitiva direta contra o trabalhador assalariado para garantir sua reprodução,  
o estado explicita a sua dimensão como poder de classe (cf. MUSETTI, 2022, pp. 326-476).  
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ponto de partida a forma maturada do estado e da política modernos como  
complexos específicos que resultam da completa separação entre indivíduo e  
comunidade pressuposta no movimento de autovalorização do valor , investiga a  
gênese do estado e da política enquanto tais, reconhecendo-os, em qualquer uma de  
suas formas, como predicados negativos do ser humano social, produzido por  
formações sociais limitadas, marcadas pela contradição entre interesses particulares e  
interesse geral e que ensejam a encarnação da comunidade como organismo  
autônomo contraposto aos indivíduos. Não por acaso, em A guerra civil na França,  
redigido após a publicação de O capital, em 1871, Marx reitera sua posição segundo  
a qual o poder estatal é força extrassocial usurpadora das energias sociais, referindo-  
se a ele como enorme parasita governamentalque constringe o corpo social como  
uma jiboia(MARX, 2011c, p. 170).  
O itinerário de desenvolvimento da crítica marxiana da política se inicia,  
conforme se argumentou, na Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843,  
desdobrando-se pelos textos redigidos no período subsequente, para adquirir seus  
últimos contornos com a maturação da crítica econômica de Marx, a qual define, com  
precisão, a conexão entre o movimento autônomo de autovalorização do valor que  
estrutura o modo de produção capitalista, de um lado, e o completamento do processo  
de dissolução dos vínculos naturais-espontâneos entre trabalho e condições objetivas  
de sua realização, bem como entre indivíduo e comunidade, de outro. No período  
formativo do pensamento marxiano, o filósofo alemão enfatizou os limites da revolução  
política que completou o desenvolvimento do poder estatal, identificando-a como  
revolução parcial (...) que deixa de pé os pilares do edifício, pois determinada classe  
empreende, a partir da sua situação particular, uma emancipação geral da situação”  
(MARX, 2006b, p. 154). Sendo a forma definitiva da emancipação humana dentro da  
ordem mundial vigente até aqui, a emancipação política se esgota com a edificação  
da sociedade burguesa, porém cria as possibilidades para a emancipação humana  
autêntica, na qual o homem reconhece e organiza suas forces propres[forças  
próprias] como forças sociais e, em consequência, não separa mais de si mesmo a  
força social na forma da força política (MARX, 2010, p. 54).  
Em A ideologia alemã, após realçar o caráter contraditório do desenvolvimento  
da grande indústria, Marx afirma que a sociedade burguesa produz as condições para  
os indivíduos apropriarem-se da totalidade das forças produtivas(MARX; ENGELS,  
2009, p. 73) desenvolvidas, a qual fica, todavia, condicionada pelo processo  
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revolucionário que, distinguindo-se de todos os movimentos anteriores, é capaz de  
revolucionar os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio  
precedentes, bem como de abordar conscientemente todos os pressupostos naturais  
como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter  
natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados(MARX; ENGELS, 2009,  
p. 67). Com efeito, na estrutura argumentativa da crítica marxiana, apenas quando se  
completa a separação entre indivíduo e comunidade, torna-se possível a transformação  
social na qual os indivíduos voltam a subsumiras forças reificadas a si mesmos,  
superando os sucedâneos da comunidade existentes até aqui” – diversos modos de  
comunidade aparente, que sempre se autonomizaram em relação aos indivíduos na  
forma do estado para edificar a comunidade real, na qual os indivíduos obtém  
simultaneamente sua liberdade na e por meio da associação(MARX; ENGELS, 2009,  
p. 64). Em suma, a grande indústria possibilita a revolução que faz das condições  
existentes as condições da associação(MARX; ENGELS, 2009, p. 67), permitindo, pela  
primeira vez na história da autoprodução humana, a recuperação do poder social  
desenvolvido como potência estranha, política.  
Viu-se como os principais contornos da crítica marxiana da política  
desenvolvida no período formativo são reiterados na obra madura, quando Marx  
aprimora sua crítica econômica pela análise da forma valor. Ademais, convém salientar  
que, apreendendo a sociedade burguesa como necessário ponto de transição no  
itinerário da autoprodução humana à medida que promove o desenvolvimento  
universal das forças produtivas, todavia de modo invertido , Marx anota como a  
radicalização da separação constitutiva do modo de produção capitalista cria as  
condições objetivas para a edificação de um novo metabolismo social universal, que  
prescinde do estado e da política, uma vez que se estrutura pela associação livre dos  
indivíduos. Após analisar o caráter contraditório do salto promovido pela sociedade  
burguesa como última forma antagônica da produção, Marx argumenta que:  
Todavia, essa própria forma contraditória é evanescente e produz as  
condições reais de sua própria superação [Aufhebung]. O resultado é:  
tendencialmente e δυνάμει, o desenvolvimento universal das forças  
produtivas da riqueza em geral como base, bem como a  
universalidade do intercâmbio e, portanto, do mercado mundial, como  
base. A base como possibilidade do desenvolvimento universal dos  
indivíduos, e o efetivo desenvolvimento dos indivíduos a partir dessa  
base como contínua superação de seu limite, que é reconhecido como  
limite, e não passa por limite sagrado. A universalidade do indivíduo  
não como universalidade pensada ou imaginária, mas como  
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universalidade de suas relações reais e ideais. Por esse motivo,  
também a compreensão de sua própria história como um processo e  
o conhecimento da natureza (existente também como poder prático  
sobre ela) como seu corpo real. O próprio processo de  
desenvolvimento posto e reconhecido como pressuposto de si  
mesmo. No entanto, para isso é necessário, sobretudo, que o pleno  
desenvolvimento das forças produtivas tenha se tornado condição de  
produção; e não que condições de produção determinadas sejam  
postas como limite para o desenvolvimento das forças produtivas.  
(MARX, 2011b, p. 447)  
Desse modo, a sociedade burguesa, reconhecida como necessário ponto de  
transição, não apenas permite a apreensão do passado como momento específico da  
história universal do homem [Weltgeschichte], mas produz as condições objetivas para  
um futuro tornado possível, o qual, tendo como pressuposto de sua realização a  
universalidade da independência pessoal fundada sobre uma dependência coisal”  
(criada pelo próprio capital), se assenta na livre individualidade fundada sobre o  
desenvolvimento universal dos indivíduose na subordinação de sua produtividade  
coletiva, social, como seu poder social(MARX, 2011b, p. 106). Não por outra razão,  
Marx jamais deixa de enfatizar que o capital, enquanto potência econômica da  
sociedade burguesa que tudo domina, deve constituir tanto o ponto de partida  
quanto o ponto de chegada(MARX, 2011b, p. 60) da crítica ontológica, observando  
que sua correta observação e dedução, como relações elas próprias que devieram  
históricas, levam sempre a primeiras equações (...) que apontam para um passado  
situado detrás desse sistema(MARX, 2011b, p. 378), bem como a pontos nos quais  
se delineia a superação da presente configuração das relações de produção e, assim,  
o movimento nascente, a prefiguração do futuro(MARX, 2011b, p. 378).  
Registre-se, na estrutura categorial do modo de produção capitalista,  
convivem a plena autonomização dos poderes sociais constituída pela sociabilidade  
do capital, com a consequente substituição das relações de dominação pessoal por  
relações de dominação indiretas, mediadas pelo valor, de um lado, e a criação, pela  
primeira vez na história, de uma conexão universal dos indivíduos entre si, que gera  
as possibilidades para um metabolismo social que promova a recuperação dos poderes  
sociais autonomizados no desenvolvimento das forças produtivas, de outro. O  
progresso representado pela sociedade burguesa no processo da autoprodução  
humana reside no fato de que a dependência recíproca tem de ser elaborada de início  
em sua pureza, antes que uma comunidade social efetiva possa ser pensada(MARX,  
2011b, p. 216). Uma vez que os indivíduos não podem subordinar suas próprias  
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conexões sociais antes de tê-las criado, Marx salienta que, embora coisificada, a  
conexão social universal produzida pelo capital é certamente preferível à sua  
desconexão, ou a uma conexão local baseada unicamente na estreiteza da  
consanguinidade natural ou nas [relações] de dominação e servidão(predominante  
nas formas anteriores). O erro da economia política clássica (e do pensamento político  
moderno em geral) consiste em conceber tal conexão puramente coisificada como a  
conexão natural e espontânea, inseparável da natureza da individualidade (...) e a ela  
imanente(MARX, 2011b, p. 110). Ao atribuir caráter natural-espontâneo à conexão  
universal coisificada, a economia política clássica absolutiza a inversão constitutiva da  
sociedade burguesa e identifica a essência do modo de produção capitalista no seu  
modo de aparecer, perdendo de vista a grande novidade do capital: diferentemente  
do limite natural-espontâneo das formas anteriores, o limite do capital é posto  
socialmente, ainda que, contraditoriamente, se apresente como natural-espontâneo.  
Para a crítica econômica marxiana, a conexão é um produto dos indivíduos,  
isto é, um produto históricoque faz parte de uma determinada fase de seu  
desenvolvimento. Escapa à economia política que a condição estranhada  
[Fremdartigkeit]característica da sociedade capitalista, bem como a autonomia da  
conexão social que ainda existe frente aos indivíduos, revelam somente que estes  
estão ainda no processo de criação das condições de sua vida social, em lugar de  
terem começado a vida social a partir dessas condições. Em outros termos, uma vez  
que os indivíduos universalmente desenvolvidos” – isto é, indivíduos capazes de  
estabelecer suas relações sociais como relações próprias e comunitárias, submetidas  
ao seu próprio controle comunitário” – não podem ser um produto da natureza, mas  
da história, deve-se considerar que é a produção sobre a base dos valores de troca,  
a qual produz a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros,  
que produz, igualmente, a universalidade e multilateralidade de suas relações e  
habilidades(MARX, 2011b, p. 110), tornando-se pressuposto para superar o  
processo de separação na sua radicalidade máxima. Com efeito, a novidade da conexão  
coisificada do capital é que, em contraste com as formas anteriores, ela põe todas as  
relações como relações postas pela sociedade, não como relações determinadas pela  
natureza(MARX, 2011b, p. 216). Se, nas as formas em que domina a propriedade  
da terra a relação natural ainda é predominante, na sociabilidade em que domina o  
capital, predomina o elemento social, historicamente criado(MARX, 2011b, p. 60).  
Em A guerra civil na França, Marx retoma, sinteticamente, o processo histórico  
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da gênese do estado moderno, salientando sua importância para varrer os últimos  
entulhos feudais. Atento ao círculo vicioso que compreende a relação de  
complementariedade entre estado e capital, o filósofo alemão observa, não obstante,  
que, à medida que a sociedade burguesa se desenvolve, o estado se torna uma  
incubadora de enormes dívidas nacionais e de impostos escorchantes(MARX, 2011c,  
pp. 54-55). Ademais, Marx observa como o caráter progressista da emancipação  
política permanece restrito ao período de formação da sociedade burguesa, tal como  
se desenvolve no seio da sociabilidade feudal, argumentando que o caráter político”  
do estado mudou juntamente com as mudanças econômicas ocorridas na sociedade.  
Mais especificamente, Marx enfatiza que  
No mesmo passo em que o progresso da moderna indústria  
desenvolvia, ampliava e intensificava o antagonismo de classe entre o  
capital e o trabalho, o poder do estado foi assumindo cada vez mais  
o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força  
pública organizada para a escravização social, de uma máquina do  
despotismo de classe (MARX, 2011c, p. 55).  
Redigido em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, a obra A  
guerra civil na França, voltada para a análise da Comuna de Paris, reitera o  
reconhecimento da determinação ontonegativa da politicidade, bem como a  
necessidade de se avançar no processo da autoprodução do gênero humano pela  
superação do capital e pela conquista da emancipação humana. Conforme adverte a  
letra marxiana, no processo de revolução social que visa a superação do capital, a  
classe operária não pode simplesmente se apossar da máquina do estado tal como ela  
se apresenta e dela servir-se para seus próprios fins(MARX, 2011c, p. 54). Ao  
contrário, o grande feito da Comuna de Paris reside, justamente, na prática  
metapolítica efetivada pelos communards, pois a Comuna visava à destruição  
preliminar da velha maquinaria governamental (...) e sua substituição por um  
verdadeiro autogoverno que (...) era o governo da classe trabalhadora (MARX, 2011c,  
p. 172). Não sendo o caso de discorrer detalhadamente sobre a análise marxiana da  
Comuna de Paris19, importa anotar, rapidamente e à título de conclusão, a radicalidade  
da crítica marxiana à politicidade, mantida ao longo de toda a sua obra e evidenciada  
na argumentação d'A guerra civil na França, segundo a qual a revolução social dá os  
seus primeiros passos ao desmontar a maquinaria estatal e substituí-la pela forma  
19 Para uma análise mais extensa d'A guerra civil na França e sua importância para a crítica marxiana da  
política, cf. Musetti (2022, pp. 397-476).  
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A crítica marxiana da política  
política da emancipação do trabalho:  
A Comuna a reabsorção, pela sociedade, pelas próprias massas  
populares, do poder estatal como suas próprias forças vitais em vez  
de forças que a controlam e subjugam, constituindo sua própria força  
em vez da força organizada de sua supressão , a forma política de  
sua emancipação social, no lugar da força artificial (apropriada por  
seus opressores) (sua própria força oposta a elas e organizadas contra  
elas) da sociedade erguida por seus inimigos para sua opressão,  
(MARX, 2011c, p. 129)  
Para Marx, a Comuna não se confunde com o movimento social da classe  
trabalhadoraou com o movimento de uma regeneração geral do gênero humano,  
mas consiste nos meios organizados de açãodo proletariado, que não elimina a  
luta de classes” – e, por isso, permanece sendo uma forma política , mas fornece o  
meio racional em que essa luta de classe pode percorrer suas diferentes fases da  
maneira mais racional e humana possível(MARX, 2011c, p. 131), pois desmonta o  
poder estatal e o substitui pelo autogoverno dos produtores. Com efeito, A guerra civil  
na França complementa a crítica marxiana da política à medida que desvenda os meios  
concretos pelos quais, partindo da sociedade burguesa e suas contradições, a classe  
trabalhadora pode levar adiante sua luta contra o capital e a política. Esclarece,  
ademais, que, assim como o próprio modo de produção capitalista, a política não pode  
ser abolida com um só golpe, exigindo, ao contrário, um longo processo de transição  
que elimina a diferença de classes e, com ela, a contradição entre interesses  
particulares e interesse geral que enseja a comunidade ilusória. Todavia, no que se  
refere ao estado, sua dissolução e substituição pelo autogoverno dos produtores  
desponta, para Marx, como condição de possibilidade para que se possa caminhar em  
direção à emancipação humana20. Uma vez desmontado o estado em seus principais  
órgãos, o governo da classe trabalhadora” – a forma política da emancipação social  
– “é proclamado como uma guerra do trabalho contra os monopolistas dos meios do  
trabalho, contra o capital(MARX, 2011c, p. 140). Se, durante a guerra do trabalho  
contra o capital, é necessária a forma política da emancipação social, uma vez vencida,  
20 Em A guerra civil na França, Marx aduz que a Comuna foi uma revolução não contra essa ou aquela  
forma de poder estatal, seja ela legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução  
contra o estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção, pelo povo e para o  
povo, de sua própria vida social. Não foi uma revolução feita para transferi-lo de uma fração das classes  
dominantes para outra, mas para destruir essa horrenda maquinaria da dominação de classe ela mesma.  
Não foi uma dessas lutas insignificantes entre as formas executiva e parlamentar da dominação de  
classe, mas uma revolta contra ambas essas formas, integrando uma à outra, e da qual a forma  
parlamentar era apenas um apêndice defeituoso do Executivo (MARX, 2011c, p. 127).  
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Felipe Ramos Musetti  
realiza-se o que a crítica marxiana anuncia em Sobre a questão judaica: o ser humano  
passa a reconhecer e organizar suas próprias forças sociais como suas próprias forças  
e não como força social separada na forma de força política.  
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Como citar:  
MUSETTI, Felipe Ramos. A crítica marxiana da política: seguindo as trilhas abertas pelo  
autor de O futuro ausente. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 1, pp. 223-265,  
Edição Especial, 2022/2023.  
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