DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.669  
Da observação da natureza como apreensão do  
conhecimento na passagem do primeiro ao  
segundo humanismo renascentista:  
uma continuidade do debate iniciado  
por J. Chasin n’O futuro ausente  
On observation of nature as apprehension of knowledge in the transition  
from the first to the second Renaissance humanism: a continuation of the  
debate started by J. Chasin on The absent future.  
Claudinei Cássio de Rezende*  
Resumo: Num ensaio inacabado de J. Chasin,  
intitulado O futuro ausente, o filósofo busca  
traçar a noção de politicidade do mundo Antigo  
ao mundo contemporâneo embora interrompa  
seu material em Hobbes. Uma das questões  
suscitas por Chasin envolve a discussão sobre o  
apreço da natureza objetiva em contrapartida a  
uma forma idealizada da vida contemplativa,  
portanto, da filosofia moral do trecento ao  
quattrocento renascentistas. Tendo como ponto  
de partida a elaboração de Chasin, este artigo  
avança sobre a história das polêmicas médica e  
astrológicas que tomaram forma no universo  
renascentista. Se, por um lado, Ernst Cassirer  
elabora uma tese sobre a originalidade de  
Nicolau de Cusa, por outro, deixa passar um  
aspecto primordial quando contrapõe sua  
filosofia à de Pico: o embate sobre a polêmica  
astrológica nasce no bojo da discussão do livre-  
arbítrio, portanto, da tentativa de impugnação da  
astrologia divinatória por considerá-la uma  
teleologia da natureza que se contrapunha  
teleologia teológica. Não obstante a inexistência  
de uma ruptura epistemológica proposta por  
Abstract: In an unfinished essay by J. Chasin,  
entitled O futuro ausente, the philosopher seeks  
to trace the notion of politicality from the  
Ancient world to the contemporary world –  
although it interrupted in the work of Hobbes.  
One of the questions raised by Chasin involves  
the discussion about the appreciation of  
objective nature in contrast to an idealized form  
of contemplative life, therefore from the  
philosophy of morals from the 14th to the 15th  
century. Taking Chasin's elaboration as a  
starting point, this article advances the history  
of medical and astrological controversies in the  
Renaissance universe. If Ernst Cassirer  
elaborates a thesis on the originality of Nicholas  
of Cusa, he misses a primordial aspect when he  
opposes his philosophy to that of Pico: the clash  
over the astrological controversy arises in the  
midst of the discussion of free will, therefore, of  
the attempt to challenge of divinatory astrology  
for considering it a teleology of nature that was  
opposed to theological teleology. Despite the  
inexistence of an epistemological rupture  
proposed by Cassirer, the development of  
Renaissance philosophy attested to the  
contradictory struggle for the empirical  
observation of reality.  
Cassirer,  
o
desenvolvimento da filosofia  
renascentista atestou a luta contraditória pela  
observação empírica da realidade.  
*
Doutor em ciências sociais pela Unesp. Professor de história na Cogeae-PUC-SP e de arte clássica no  
Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.  
ISSN 1981-061X, v. 28.1, “30 anos de O futuro ausente- 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023  
Verinotio  
nova fase  
Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
Palavras-chave: J. Chasin (1937-1998);  
Renascimento; filosofia da natureza; Ernst  
Cassirer (1874-1945); Nicolau de Cusa (1401-  
1464); Giovanni Pico della Mirandola (1463-  
1494).  
Keywords: J. Chasin (1937-1998); Renaissance;  
philosophy of nature; Ernst Cassirer (1874-  
1945); Nicolau de Cusa (1401-1464); Giovanni  
Pico della Mirandola (1463-1494).  
Sed, opere consummato, desiderabat artifex esse  
aliquem qui tanti operis rationem perpenderet,  
pulchritudinem  
amaret,  
magnitudinem  
admirateur.1  
Pico, Oratio de hominis dignititade (12).  
A dinâmica do conteúdo e o título do ensaio inacabado de J. Chasin (2000), a  
saber, O futuro ausente: para a crítica da política e o resgate da emancipação humana,  
revelam tanto a aflição à qual estávamos e ainda estamos submetidos, como uma  
tentativa de o autor expor uma propositura voltada à resolução dos impasses da  
organização social. Lamentamos o fato de um filósofo da envergadura intelectual de  
Chasin ter abandonado seu texto inacabado, em 1993, na reflexão da trajetória  
humano-societária até a substância do absolutismo teórico de Hobbes, porque tudo  
indicava que o autor chegaria aos nossos tempos. O modo pelo qual ele apresentava  
a ideia de que estávamos diante de um desafio sem precedentes, mas com virtuais  
resoluções coletivas, era um esforço de encontrar novos caminhos para a problemática  
da politicidade, apesar do aparentemente desesperançoso título do ensaio. Novos  
caminhos, afinal de contas, Chasin inaugura o escrito com uma epígrafe de Francis  
Bacon, segundo o qual não é expediente ordinário aventar universos inéditos, já que  
as coisas novas são sempre compreendidas por analogias com as antigas.  
No universo reflexivo chasiniano se destaca o que o filósofo chamou de a aurora  
feroz da politicidade moderna, que se plasma no primeiro humanismo renascentista,  
cuja base intelectual estava envolvida na idealização jurídica como protoforma da mais  
elevada manifestação do espírito humano em contraposição à cosmovisão teológico  
feudal. Esse primeiro humanismo do trecento, segundo o que aventa Chasin (2000, p.  
172), emerge como um humanismo civil e cívico, o que significa que decorre do  
universo mundano relacionado à vida coletiva entre os cidadãos e em relação ao  
estado. Este é o motivo pelo qual a cosmovisão das gerações de meados do trecento  
até fins do quattrocento alude a uma cisão deliberada entre o mundo do espírito  
1
Mas, uma vez concluída a obra, o artífice desejou que houvesse alguém capaz de compreender o  
significado de uma obra tão grande, que pudesse amar sua beleza e admirar sua imensidão.”  
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humano e o mundo da natureza, razão que incita a polêmica dos cultores do direito  
contra a medicina coetânea, na altura tomada como arquétipo das ciências da natureza.  
É a partir desta reflexão encetada por Chasin que pretendemos estabelecer breve  
diálogo.  
Tal qual Dante (1265-1321), Francesco Petrarca (1304-1374), a quem Chasin  
(2000) atribui o matrizamento originário desta polêmica, é um humanista renascentista  
que dirige um culto ao universo do classicismo como pensamento mais dinâmico em  
relação ao medievo. Tal humanismo tem como característica a unidade entre a  
Antiguidade Clássica e a teologia católica por meio da poesia. Conferindo a Platão e a  
Cícero a estrutura da sua nova posição filosófica de mundo, Petrarca busca a superação  
das cosmovisões averroísta e escolástica dominantes desde a Alta Idade Média. Um  
direcionamento primígeno tão deliberado em sentido da ruptura por parte do poeta  
aretino confirma uma mobilização do indivíduo para uma vida interior, ou seja,  
contemplativa, de tal maneira que a sua obra De vita solitaria alude ao mundo religioso  
interior como o campo da liberdade. Não obstante, a inquietação promovida pelo  
próprio poeta sobre o impulso da ascese e a sua quebra pelos interesses mundanos  
já revelam que a problemática da liberdade passa indelevelmente pela relação do  
sentido de alienação do mundo percebido entre o campo do mundo das ideais e a  
realidade imanente objetiva. O nascimento da poesia romanesca de Petrarca também  
é uma prova de que os tempos do trecento indicam o fecundo início de uma transição  
para um campo da individuação mais acentuada, na qual a realidade da vida cotidiana  
começa a aparecer no conjunto poético outrora apenas idealizado. Na  
supramencionada polêmica petrarquiana, que está substanciada no seu material menos  
conhecido de 1355, o Invectivarum contra Medicum quendam libri IV, o poeta acusa  
a medicina de vacuidade e inconsistência doutrinária, justamente pelo seu modus  
operandi mecânico, exaltando o contraste com o mundo poético especulativo, tido  
como de valor humano mais elevado, o que não significa outra coisa senão o  
desinteresse pela ordem física da natureza e a suposta superioridade da filosofia  
moral. Questão que é apresentada por Chasin (2000).  
No evolver paulatino do último quarto do trecento, Coluccio Salutatti (1331-  
1406) amplia a disputa contra os médicos. Em De nobilitate legum et medicinae, o  
literato sustenta igualmente a superioridade da sabedoria humana em face dos estudos  
da natureza, aponta Chasin (2000, p. 174). Raciocina de modo a conceber as leis como  
representantes da esfera moral e social, e, justamente por isso, fala sobre um universal;  
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enquanto a medicina trata do particular sempre. Chasin percebe que a figura de  
Coluccio Salutatti é moldada pelo cinzel da politicidade ainda em transformação no  
nascimento da individualidade moderna. Todos os literati incluindo aqui os advindos  
do primeiro quattrocento tomam como ponto de partida que a natureza é  
desimportante porquanto o campo universal do espírito pertence à contemplação  
teológica. A característica humanista de Bartolomeo Sacchi (1421-1481) consiste na  
propositura da solidariedade e do benfazejo, afinal de contas, o agir virtuoso é o ponto  
de chegada ao paraíso não é em sem motivos que a disputa religiosa em torno da  
contrarreforma no século seguinte reitera o humanismo católico trentino contra a  
predestinação religiosa, tida pelos católicos como um absurdo, como se Deus  
escolhesse arbitrária e secretamente seus abençoados. Não obstante, Matteo Palmieri  
(1406-1475) em Della vita civie, adiciona o componente do benfazejo em relação à  
pátria e ao coletivo social. O desenvolvimento deste humanismo já revela uma vertente  
da politicidade moderna em busca do coletivo, com base no estoicismo de Marco Túlio,  
na qual há a reivindicação de uma ligação entre o indivíduo e a comunidade.  
Na elaboração teoria de Chasin (2000, p. 176) encontramos a tese da  
emergência do indivíduo, guardadas as devidas discrepâncias, presentes na  
formulação de Jacob Burckhardt (2009), segundo o qual o Renascimento marca a  
emergência da individualidade, questão atestada pela era das biografias e das  
autobiografias. Há que se abrir parênteses neste ponto, ainda que a problemática, tão  
ampla e tão profunda, não nos autoriza uma redução desta monta. Na elaboração  
crítica a Burckhardt, Peter Burke (2009, p. 31) tende a imputar ao historiador suíço a  
ideia de que em sua teorização os indivíduos medievais não eram dotados de  
individualidade, de sorte que, se coadunássemos a tese burckhardtiana, afirmaríamos  
que o homem medieval não via a si próprio como um indivíduo, tendo de si uma  
consciência enquanto uma das formas do coletivo. Questões desta natureza seriam  
invalidadas, segundo o historiador britânico, com a existência de autobiografias  
datadas do século 12, como a de Abelardo, por exemplo. Nesta altura vale a menção  
de que Georg Misch (2018) escreveu uma História da autobiografia para discutir  
exemplos que invalidariam a teoria de Burckhardt sobre a individualidade. Se Georg  
Misch conseguiu ou não invalidar o argumento do Burckhardt é uma questão menor  
do que o fato de que ele passou de 1907 a 1962 escrevendo uma obra cujo tema  
central era a resposta a uma questão formulada por Burckhardt. A solução do enigma  
de Misch foi muito bem sintetizada pelo historiador húngaro Arnold Hauser (1995, p.  
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339). A afirmação de Hauser caminha numa crítica à Burckhardt, e vale notar a  
deficiência de se produzir um trabalho inteiro sobre a cultura italiana acreditando  
poder dissociar o fenômeno cultural do seu aspecto estrutural eminentemente  
econômico, como fez o historiador suíço, vangloriando-se desta imiscibilidade  
ilusoriamente possível entre cultura e vida econômica da sociedade. Não obstante a  
crítica de fundamento, Hauser aponta que a tese burckhardtiana não pode ser rejeitada  
in totum, sem que haja uma mediação profunda sobre o processo da individualidade  
forjada no nascimento da sociabilidade burguesa, esta que coloca os indivíduos em  
ampla concorrência pela sua subsistência quando comparada à situação estagnada da  
servidão consuetudinária. Mas Hauser vai além nesta questão, levando a um ponto  
sumário culminante: se personalidades fortes já existiam na Idade Média, pensar e agir  
individualmente é uma coisa; estar consciente da própria individualidade, afirmá-la e  
deliberadamente intensificá-la é outra coisa. Às reduções bastante esquemáticas, Ernst  
Cassirer (2001, pp. 9-10) chama a atenção à luz de Ernst Walser: a oposição entre o  
homem medieval e o homem renascentista ameaça a se desfazer e se volatizar à  
medida que se verifica a materialidade objetiva, ou seja, quanto mais avança a pesquisa  
biográfica isolada dos literati. Quando se estuda de modo indutivo o pensamento de  
figuras como Coluccio Salutatti ou Poggio Bracciolini (1380-1459), não encontramos  
discussões sobre individualismo, ceticismo ou paganismo. Parênteses fechados,  
voltemos à elaboração chasiniana (CHASIN, 2000, p. 176): a relação entre  
contemplação e vida ativa nesse final do quattrocento pode significar essa emergência  
do indivíduo, conspicuidade que não mais deixará a cena histórica. Seria essa  
emergência da individualidade também fator importante para a resolução da questão  
sobre a polêmica da natureza nos primeiros renascentistas? Pois a questão perpassa  
não só o âmbito das individualidades, como também sua resolução repousa sobre a  
questão piquiana de livre arbítrio e alternativas decisórias dos indivíduos, como  
veremos mais adiante.  
Se, por um lado, as formulações dos primeiros humanistas colocavam as ciências  
da natureza, destacadamente a polêmica médica, como inferiores por estarem  
imbuídas da mecânica das coisas, enquanto as ciências do espírito, a saber, o mundo  
moral, estava em altitude superior; por outro lado, Poggio Bracciolini já pôde inverter  
o raciocínio dos proto-humanistas e articular a sentença de que a medicina tem o seu  
fundamento na realidade material, ou seja, na própria natureza, e que esta é sempre  
idêntica, enquanto as ciências do espírito são contingentes, seguindo método  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
demonstrativo e adequado à realidade histórica. Isso não significa outra coisa senão a  
remoção da ideia de universalidade da questão moral, o que atesta a percepção de  
uma politicidade mais concreta e atinada à realidade.  
A passagem de um humanismo a outro, ao segundo e efetivo humanismo do  
Renascimento, conforme nos indica Chasin (2000), não é mero transcurso de câmbio  
de uma formação ideal para outra, por simples graça de virtudes, mas uma ruptura  
cabal entre as duas ordenações de pensamento. Segundo o que nos indica o filósofo  
paulista, “trata-se, dito do modo mais genérico possível, da passagem da especulação  
ético-jurídico-política sobre a vida ativa para a reflexão do homem ativo que se  
reconhece na e age sobre a natureza” (CHASIN, 2000, p. 177). Cessa-se uma  
propositura de aspecto mais lendário acerca do mundo ático; inicia-se uma nova  
substância do humanismo, guardando certa continuidade em torno das questões  
teológicas do livre-arbítrio, não obstante, a sua transformação é operada justamente  
pela politicidade em formação das senhorias e principados, que redundará no  
absolutismo, “antítese da idealidade referencial da pólis, da commune romana ou da  
quimera comunitária dos primórdios do Renascimento” (CHASIN, 2000, p. 177).  
Demonstrando como a tese de Burckhardt (2009) se assenta numa visão quase  
anedótica da política florentina do Renascimento, Chasin condiciona à situação da vida  
prática e econômica da sociedade a explicação do movimento do primeiro humanismo,  
ainda bastante vinculado a uma idealização da vida transcendental, para o segundo  
humanismo, já fundamentado na observação da natureza.  
A ruptura observada por Chasin do transcurso do humanismo do século XIV para  
o XV foi também percebida por Eugenio Garin (1937 e 1996). Como texto inacabado,  
Chasin se debruça sobre a natureza da política florentina, mas não desenvolve a  
discussão dos gramáticos para além do que já fora mencionado. Por isso, reiterando  
a discussão encetada por Chasin, avanço em alguns pontos sobre como essa transição  
simbolizou o abandono da especulação medieval em direção da constituição de uma  
interpretação moderna da ciência mas não sem carregar em seu bojo as contradições  
da manutenção teológica de cosmos.  
O humanismo filológico florentino do segundo quattrocento se consubstanciou  
na figura do gramático Angelo Poliziano (1454-1494). Seu ponto alto está da exegese  
dos materiais litúrgicos e jurídicos o que Erasmo (1466-1536), de algum modo, faz  
com Valla (1407-1457) ulteriormente. Em vez de um ataque aberto a Aristóteles como  
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recomposição do ideário neoplatônico que se almejava operar na República Florentina  
dos Medici, o que se viu em Poliziano foi uma análise racional e histórica dos seus  
escritos. A exemplaridade do mestre destes humanistas, Marsilio Ficino (1433-1499),  
atesta esse novo modus operandi voltado ao âmbito naturalista: Ficino, tradutor da  
obra de Plotino, foi além de grande literato, concentrando-se nos estudos da física, da  
perspectiva, da luz e da visão. Condicionado ao desenvolvimento econômico de  
Florença, os literati passam a respaldar e arbitrar as comissões artísticas. E é nessa  
conjuntura que em torno do círculo de Ficino se concentram todos os comitentes do  
que seria chamado de classicismo da Alta Renascença. Não obstante a importância  
temática desta situação histórica, quero chamar a atenção a um aspecto muito  
idiossincrático da interpretação da observação materialista da natureza coisa que  
simboliza o abandono dos cânones pictóricos em direção da mimetização pictórica da  
natureza. Obviamente que o reflexo disso na nova individualidade demonstra que aqui  
também o Renascimento teve um ponto de virada: Agnes Heller (1982, p. 126) está  
bastante certa ao dizer, em seu trabalho O homem do renascimento, que naquela  
época a arte se separou da techné e do entretenimento puro e simples, e o artista  
(antes nunca chamado nesses termos) começa a considerar a arte enquanto tal como  
seu objetivo, em vez de considerar como um simples produto secundário da atividade  
religiosa, ou mero artefato decorativo sob comissão com função puramente prática. O  
mundo começa a aparecer como um mundo feito de indivíduos e personalidades  
individuais. Nunca anteriormente havia sido possível hierarquizar as personalidades  
artísticas de acordo com um critério técnico e um juízo do belo no século seguinte,  
em 1557, atestando a decorrência acumulativa da individuação, Ludovico Dolce  
(c.1510-1568) estabelecerá a discussão sobre a quem cabe o debate sobre o belo  
estético, nascendo o que costumeiramente chamamos de crítica de arte. Uma  
passagem da Theologia platonica de Ficino, em sua quarta parte, fala sobre a natureza,  
e, por consequência, da observação da realidade material na determinação do  
pensamento:  
se a arte humana não é senão imitação da natureza, se a arte do  
homem fabrica as suas obras por motivos precisos (per certas operim  
rationes), de modo análogo procede a natureza: e com uma arte tanto  
mais viva e sábia quanto mais vivas age por meio de motivos vivos (si  
ars vivas rationes habet) (...), quanto mais vivos não deverão ser os  
motivos da natureza geradora dos viventes e produtora das formas?  
(...) E o que é a arte humana senão uma natureza que plasma a matéria  
de fora? E a natureza, o que é senão uma arte que intimamente  
modela a matéria, como se o modelador da madeira estivesse na  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
própria madeira? Mas se a arte humana, ainda que de fora, adere e se  
imiscui na obra que vai produzindo, a ponto de realizar a síntese entre  
a obra e a ideia (ut certa opera consummet certis ideis), quão melhor  
não fará a natureza! Esta não toca com instrumentos alheios a  
superfície da matéria, como faz a mente do geômetra quando inscreve  
as suas figuras sobre o terreno, mas é como uma mente geométrica  
que intimamente forma uma matéria fantástica (FICINO apud GARIN,  
1996, p. 96).  
Ao passo que existe o impulso denodado pela fatualidade empírica, o indivíduo  
do Renascimento tem como concepção de mundo além da inextrincável junção da  
filosofia com a ciência natural um credo filosófico. Grife-se com todo destaque a  
expressão credo. Esse aspecto em particular, vislumbrado agora na filosofia de Ficino,  
mostra que a filosofia da natureza e a ciência da natureza não eram diferenciadas da  
experiência da natureza (HELLER, 1982, p. 301). Isso significa que em poucos  
momentos da história humana estavam tão conectadas a filosofia da natureza e a  
concepção teológica. Por isso é tarefa inócua procurar no Renascimento uma arte pura  
de pintura de paisagens, ou uma poesia bucólica ou meramente descritiva da natureza.  
A experiência da paisagem só adquire autonomia na representação artística quando a  
filosofia e a ciência deixaram de desempenhar um papel nela, cindindo-se em campos  
distintos.  
Ernst Cassirer (2001, p. 80) ao discutir a obra de Nicolau de Cusa (1401-1464)  
sugere uma contradição entre a ubiquidade da tese deste que seria, segundo ele, um  
dos mais fundamentais filósofos do quattrocento e a sua parca aparição entre os  
gramáticos latinos da mesma geração e das seguintes. Há que se mencionar o fato de  
Giordano Bruno (1548-1600) ter mencionado que os dois maiores mentores que  
possibilitaram seu desenvolvimento intelectual foram Nicolau Copernico (1473-1543)  
e Nicolau de Cusa. Mas entre Bruno e Nicolau de Cusa existe um vão histórico de pelo  
menos um século e meio. Teria Nicolau de Cusa passado as gerações do quattrocento  
na obscuridade? Ao observar os sistemas filosóficos mais significativos, ao que tudo  
indica Nicolau de Cusa parece intocado; nem mesmo em Pietro Pomponazzi (1462-  
1525) ou nos pensadores da consagrada Escola de Pádua, bem como nos círculos  
platônicos de Ficino, o nome de Nikolaus von Kues é mencionado. Uma possibilidade  
hipotética sobre essa ausência talvez esteja na maneira como a partir do século XV o  
mundo não só italiano mas continental europeu passa a formar um contingente de  
homens letrados que não se vinculam diretamente à escola erudita dos literati.  
Leonardo da Vinci (1452-1519) seria um bom exemplo desta maneira de proceder, e  
teria de Nicolau de Cusa a sua basilar interpretação cosmológica, segundo Cassirer  
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Claudinei Cássio de Rezende  
(2001) interpretação diversa tem Eugenio Garin (1996). No que diz respeito a essa  
relação de Nicolau de Cusa e Leonardo, há um aspecto que parece bastante relevante:  
ao tríptico cusano, De sapientia, De mente, De staticis experimentis, o seu autor deu  
o aposto O idiota, porque o leigo, o inculto, geralmente é o personagem que na sua  
obra aventa as questões mais dinâmicas cujas resoluções perpassam essa dimensão  
do indivíduo iletrado. Em certa medida, essa é uma questão que assombra a vida de  
Leonardo. Quando preterido por Lorenzo, Leonardo parte a Milão, onde se fixa; de  
Ficino e da escola neoplatônica leva muito pouco em sua bagagem Garin (1996)  
sustenta, a despeito de Cassirer (2001), que a base dos estudos leonardescos está  
nos florentinos da escola neoplatônica, como Ficino, Poliziano e Cristoforo Landino  
(1424-1498) , mas de Nicolau de Cusa, segundo Cassirer (2001) apreende não só  
uma visão filosófica de mundo como um novo proceder metodológico, o que significa  
uma nova direção de pesquisa. Ainda que devidamente sustentada algumas reflexões  
de Leonardo nas obras dos neoplatônicos de Ficino, sufragadas em passagens literais  
demonstradas por Garin (1996), é sabido que Leonardo não pertenceu aos círculos da  
escola em torno do Medici, e uma vez fora da sua zona de influência, teria se voltado  
à materialidade da natureza, característica vislumbrada nos seus estudos anatômicos  
e nas obras de engenharia hidráulica. Essa verificação garante a Cassirer a afirmação  
de que Nicolau de Cusa “não é o representante de um determinado sistema filosófico;  
ele é, muito mais, o representante de um novo tipo de estudo, de uma nova direção  
da pesquisa” (CASSIRER, 2001, p. 86). Segundo o Cassirer, então, o impacto de uma  
ruptura tão importante representa a substituição de um estudo teológico e de um  
sustento filosófico na Antiguidade para a nova direção prática, a tendência geral a se  
ater a tarefas técnico-artísticas concretas, para as quais se monta uma teorização  
somente depois de ter matizado o objeto materialmente. Leon Battista Alberti (1404-  
1472) incorpora essa tendência e, em seus escritos matemáticos, demonstra estar  
ligado à interpretação cusana de mundo. Ainda que ligada às questões místicas em  
sua base, a busca da interpretação da natureza por Nicolau de Cusa é uma fuga  
deliberada da escolástica e do silogismo aristotélico, em busca de uma racionalidade  
matemática e que, paradoxalmente, busca a fundamentação do conhecimento de Deus.  
Mas se é verdade que aqui se assenta a explicação religiosa de mundo, é também  
verdade que “aqui se processou a ruptura para o campo aberto e livre da ciência  
objetiva” (CASSIRER, 2001, p. 91). A implicação de tal ruptura indica que a ciência do  
Renascimento envolve a ideia de técnica. Ao que parece, Cassirer superestima o  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
sentido do rompimento, apresentando uma verdadeira ruptura de ordem  
epistemológica. Apesar disso, não é sem razão que no Codice atlântico de Leonardo,  
tal qual em seu Tratado da pintura (DA VINCI, 2019), temos uma rejeição da cópia dos  
modelos, sejam os modelos filosóficos eruditos latinos, afinal, Leonardo ressentia-se  
pelo fato de o acusarem per non avere lettere; sejam os cânones pictóricos, que, na  
sua época, seu passo em direção a uma pintura mais naturalista acontece tanto pelo  
ingresso sistemático do óleo por Antonello da Messina (1430-1479) (VASARI, 2011),  
como por sua reflexão ulteriormente teorizada de que a pintura se degenera se copia  
modelos existentes em vez de mimetizar a própria natureza (Hauser, 1995; Garin,  
1996). Essa situação revela uma nova direção em busca da realidade objetiva no  
campo da interpretação cosmológica e, especialmente, na execução técnica por meio  
da observação e da experiência concreta. Supostamente alicerçado em Nicolau de  
Cusa, de acordo com Cassirer (2001), Leonardo elabora um novo saber-fazer, e, talvez,  
por isso, a filosofia cusana parece seguir inócua entre os literati. Importa-nos aqui,  
reiterando Ernst Cassirer, que quando “Nicolau de Cusa expõe e defende sua  
concepção básica de saber, quando explica que toda a ciência não é outra coisa senão  
o desenvolvimento e a explicação” de tudo que está contido no mundo objetivo, ele  
está voltando materialmente aos âmbitos “do saber técnico e da criação técnica”  
(CASSIRER, 2001, p. 97), implicando uma noção bastante empirista da observação da  
natureza. Muito posteriormente, também Galileu se envereda nesta direção quando se  
considera defensor do direito da experiência, enfatizando que o espírito não pode criar  
o conhecimento autêntico senão por si mesmo. Em suma, segundo o filósofo polonês,  
à medida que a nova ciência da natureza toma como ponto epistemológico de saída a  
apreensão do objeto material, ao desvincular da Escolástica, esta autonomiza-se sem  
precisar romper os laços que a uniam à filosofia Antiga (CASSIRER, 2001, p. 99).  
Ainda segundo Cassirer (2001), engana-se aquele que atribui ao Renascimento  
um desenvolvimento paulatino em direção do abandono da teologia medieval. O que  
se vê, em vez de caminho paulatino e retilíneo, é uma ruptura drástica no século 15,  
e que se erige fora da Itália, em Nicolau de Cusa, na percepção da nova ciência. Duas  
tendências percorriam o desenvolvimento deste século: de um lado, a manutenção da  
Escolástica medieval, não exatamente uma continuidade do aristotelismo, mas uma  
visão sui generis e medieval de uma teologia que teria partido de premissas silogísticas  
aristotélicas; de outro, a cultura clássico-humanista. Não obstante, para Cassirer  
(2001), se toda a filosofia do quattrocento esteve envolvida nessa dualidade, vale  
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notar que a visão “reacionária” em direção ao medievalismo vai ganhando forças e  
acaba por ameaçar a filosofia humanista. Esta, por sua vez, transforma-se em armadura  
defensiva das forças seculares, de sorte que a filosofia “não pode cumprir essa tarefa  
sem colocar em risco novamente os primeiros passos trilhados por Nicolau de Cusa  
rumo a uma metodologia autônoma e específica sem voltar a converter-se mais e mais  
em ‘teologia’” (CASSIRER, 2001, p. 103). Não foi sem motivos que a obra de Ficino  
esteve em torno de uma theologia platonica e a de Giovanni Pico della Mirandola  
(1463-1494), uma reflexão sobre a criação. O próprio discurso piquiano, Oratio de  
hominis dignititade (Pico, 2021), discorre sobre o agir virtuoso mas não sem, antes  
disso, transcorrer o âmbito teológico. Ao que tudo indica, Cassirer (2001) vislumbra  
na trajetória do Renascimento o que para ele é o ponto central da história: o problema  
da gnosiologia. Talvez por isso reivindique o fato de Nicolau de Cusa ter passado  
incólume entre os italianos da sua geração como uma falha do pensamento latino.  
Contudo, uma observação da dinâmica intelectual piquiana demonstra outros aspectos  
um pouco negligenciados pelo filósofo polonês.  
Para se compreender historicamente a questão do último quattrocento vale a  
retomada da polêmica astrológica realizada por Pico. A princípio é forçoso se colocar  
na discussão histórica da própria polêmica. Nas Disputationes adversus astrologiam  
divinatricem de Pico, a polêmica não é perpetrada contra um sistema ligado à tradição  
aristotélica-ptolomaica de mundo, nem mesmo contra uma consideração do cosmos  
que encontra sua base teórica na distinção qualitativa entre os mundos terrestre e  
celeste. Ao observar a ruptura piquiana devemos levantar a questão astrológica no seu  
significado coetâneo, que não era uma visão física do universo, mas uma  
antropomorfização do universo cosmológico, o que implicava uma ideia de  
comportamentos e emoções humanos no mundo astronômico. Essa situação  
corresponde a atribuição de teleologia ao universo cósmico, o que Paolo Rossi (1992,  
p. 38) acertadamente denomina um amálgama híbrido entre ciência e religião. Vistos  
por olhos pós-copernicanos, as Disputationes de Pico são inconsistentes ou  
superficiais. Entretanto, ao colocarmos a presença histórica do objeto no holofote,  
veremos que o ponto de partida de Pico é o mesmo da sua geração sobre a astrologia,  
que Cassirer (2001) chama de centralidade da liberdade do homem; mas Pico  
extrapola esse ponto quando coloca em relevo os equívocos que pertencem à  
astrologia, e nos remete ao fundamento da metodologia moderna: a astrologia é um  
tipo de saber que nunca consegue se configurar como saber rigoroso, mas que tentou  
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assim se consolidar. Voltando ao itinerário da disputa médica que tomou conta a  
discussão de Chasin, vale notar uma passagem de Pico:  
De um lado, a astronomia, arte segura e nobre, plena de dignidade  
por seus méritos, que mede a grandeza e o movimento das estrelas  
com um método matemático; a medicina, liberada da teoria dos dias  
críticos e da influência dos signos zodiacais, reconduzida ao método  
de Hipócrates que procura “no exame das urinas” e não nos astros,  
no “pulsar das veias” e não no movimento das esferas os sinais do  
futuro desenvolvimento da doença; a meteorologia; a doutrina das  
marés, que exclui o recurso a uma força oculta ligada ao movimento  
e à luz da lua; de outro lado, toda uma série de superstições, de cultos  
e de cerimônias, nascidos junto a povos “de índole pouco apta ao  
saber”, “inexperientes de raciocínios físicos” e “rústicos de engenho”  
como os caldeus e os egípcios, “que não puderam abster-se de  
imputar aos astros as próprias culpas e as próprias penas, derivando  
deles tantos os males da alma como do corpo”. (PICO apud ROSSI,  
1992, pp. 38-39)  
Pico tem consciência que a astrologia parte de um saber pouco criterioso pelo  
qual existe uma promessa que simboliza tanto o porvir, o destino do conjunto social,  
como promessas, e que isso estimula a curiosidade popular. Mas ao perceber que a  
astrologia parte desta situação pouco criteriosa, Pico vê a imputação da realidade  
cotidiana a um significado cósmico, num cosmos repleto de sentimentos e simbologias  
peculiarmente humanos e não naturais (aqui tratado como cisão aquilo que é  
tipicamente natural, de um lado, e humano, de outro). Segundo o renascentista em  
questão, a astrologia, portanto, não só não é capaz de dar coisas úteis à humanidade,  
como contamina a reflexão séria sobre a vida. Esse juízo piquiano é reiterado  
posteriormente por Francis Bacon (1561-1626), para quem a astrologia deve ser  
condenada por não ser um saber refutável, uma mística que despreza evidências que  
lhe são desfavoráveis. Bacon coloca a questão da refutabilidade e da metodologia no  
itinerário científico. Se observarmos o fundamento sobre a questão astrológica de  
Johannes Kepler (1571-1630), vemos que ele próprio se refere diretamente a Pico.  
A polêmica astrológica que foi levantada por Cassirer (2001) em 1927 articula  
um cisma bastante evidente entre epistemologia e magia, mas não nos parece que  
essa situação esteja sufragada na história ou pelo menos não tão evidente como ele  
a apresenta. A observação de Eugenio Garin em duas obras, a primeira, sobre Pico  
(Garin, 1937) e, a segunda (Garin, 1976), sobre a própria polêmica astrológica do  
trecento ao cinquecento, remete a discussão a um estatuto mais complexo. A própria  
polêmica astrológica seria, então, resultado de uma longa jornada reflexiva que teria  
em Pico um ponto alto (GARIN, 1976, p. 23). Ainda assim, Pico e Savonarola (1452-  
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1498) estavam animados por uma questão de páthos moral, e combatem o télos  
astrológico (ou o destino estelar) em nome do livre arbítrio que não pode estar sujeito  
à natureza, mas a Deus; e nesta batalha, não se alinham com os novos humanistas,  
mas contra esses humanistas. Daí que Cassirer (2001), ao dizer que as obras  
combatem em nome da razão científica, não percebe que Pomponazzi e Pico, em De  
incontationibus e Disputationes, respectivamente, estão dialogando fortemente contra  
parcela da escola humanista e, acima de tudo, entre si. A implicância disso é a anulação  
da esquemática ideia de ruptura que uma revolução epistemológica teria perpetrado  
ao longo do Renascimento, em vez de um caminho repleto de contradições sinuosas.  
O próprio Kepler, que não acreditava na validade dos prognósticos astrológicos,  
sustentava abertamente a existência da alma do Sol (GARIN, 1976, p. 28), e Galileu  
denotava hilozoísmo em suas afirmações astronômicas. A história pode sufragar, no  
lugar das rupturas drásticas, um caminho contraditório e acumulativo humano-  
genérico em direção daquilo que conhecemos como ciência moderna. A tese da ruptura  
epistemológica drástica é uma invenção contemporânea tal qual a de que o humanismo  
se opunha às questões religiosas, em vez de ser o que realmente era, a saber, uma  
doutrina do catolicismo.  
O que se processa é uma invalidação da ciência astrológica ainda dentro da  
cosmovisão teológica. O humanismo tentou traçar uma linha divisória entre a  
astronomia como ciência de rigor, que é capaz de medir movimentação de corpos  
celestes, de um lado, e astrologia como combinação de uma concepção de mundo, de  
culto astrais e de técnicas proféticas, de outro. Nesse sentido, pensando com Eugenio  
Garin (1976), a polêmica astrológica é um grande laboratório para se compreender o  
homem do Renascimento em seu complexo contraditório do humanismo. Num mesmo  
local se observa a mais rica e avançada teorização de caráter científico, com ousadas  
experimentações, e explicações religiosas e um tanto ingênuas de mundo, com ecos  
em crenças primitivas. Por isso mesmo é refutável a tese apresentada como um lugar  
comum, de uma ruptura entre astrologia e astronomia no Renascimento. Ernst Cassirer  
(2001, pp. 105-111) atribui à adesão de Pico a Savonarola, ao final da sua vida, o  
obscurantismo que pôde fazer parte da sua filosofia. Mas nada pode ser tão falso  
quanto isso, afinal, a livre iniciativa humana, tese aprofundada para combater a  
influência da natureza contra a influência de Deus no destino dos homens, foi  
elaborada por Pico muito antes do seu contato com Girolamo Savonarola (GARIN,  
1976, p. 45). Se já está tudo escrito nos céus, qual é o sentido da obra do Homem?  
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Da observação da natureza como apreensão do conhecimento na passagem do primeiro...  
Esta seria a pergunta guia de Pico inclusive, o argumento fundamental ulterior do  
embate católico contrarreformista, quando ocorre a predestinação calvinista no interior  
do cristianismo. Daí uma espécie de tensão existente entre a instância humanista, que  
opõe a obra livre do homem ao determinismo natural, e a concepção de um renascer  
inscrito num caráter cíclico que parece subordinar qualquer acontecimento da história  
humana aos movimentos celestes, portanto, de uma história natural-teleológica. Daí  
também o esforço para assegurar a iniciativa do homem através de um trabalho de  
distinção e de escavação, que no interior da astrologia separa tudo o que seja uma  
concepção naturalista, da possibilidade de decisões e de escolhas individuais.  
A este ponto ninguém melhor que Eugenio Garin (1976, pp. 97-99),  
novamente, para verificar as contradições em torno de Ficino, Pico e Savonarola. A  
discussão católica em torno da magia é a baliza para a impugnação da astrologia por  
parte de Pico e de Savonarola. A despeito do contato mais íntimo ao final da vida de  
Pico com as interpretações de Savonarola, não se pode esquecer que desde o  
princípio, o elemento que norteia a questão astrológica de Pico está em torno da sua  
concepção da liberdade humana inconciliável com os pressupostos da astrologia  
divinatória. Em vez de uma observável ruptura de fundo, com consciência  
epistemológica, o que se tinha naquela época em Pico era um primeiro ingresso de  
uma análise da natureza por meio de uma busca metodológica explicativa do mundo.  
Mas esse ingresso na análise da natureza tinha como princípio a tentativa de impugnar  
uma teleologia da natureza, ou seja, uma natureza que decide sobre os rumos do  
mundo humano.  
Garin lembra, com razão, que sobre a influência da Lua sobre as marés, Pico  
conclui com grande firmeza:  
nada nos impede de admitir na Lua, além do movimento e da luz, um  
novo poder por meio do qual se mova o mar, desde que, examinando  
todas as diferenças das marés, evidentemente, se possa encontrar  
uma claríssima causa, ou no movimento do astro que sobe e que  
desce, ou no crescimento e diminuição da luz (PICO apud GARIN,  
1976, pp. 99-100).  
Nesta situação, a validade da comprovação empírica é o intento de aceitar as  
causas naturais, e tudo o que não se pode atribuir a causas naturais do movimento do  
astro é rejeitado. Pico, quando observamos a polêmica médica levantada pelo diálogo  
de O futuro ausente, de Chasin (2000), dá um passo além neste ponto, justamente por  
não vincular o mundo ideal a uma esfera superior àquela da realidade imanente, de  
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sorte a se declarar positivamente em direção do progresso médico [artis opera semper  
esse feliciora, quae cum naturae progressione concordant] (PICO apud GARIN, 1976,  
p. 100). Pico percebe os astros como causas físicas, alinhado ao aristotelismo. Mas  
estas causas não se relacionam com fenômenos particulares do mundo terreno. A essa  
característica analítica piquiana se juntam a polêmica antiocultista, a defesa da  
liberdade humana de qualquer afirmação do destino, a análise crítico-histórica das  
teorias astrológicas como disfarce de cultos astrais e de concepções gerais do mundo  
a ele ligadas, e, por fim, a defesa do cristianismo. A novidade histórica aqui reside no  
fato de Pico distinguir o elemento racional do elemento mítico, escavando em mais  
campos do saber empírico, isolando aspectos e procedimentos propriamente  
científicos de intrusões de gêneros distintos, como intuições místicas, resto de crenças  
antigas, superstições. Foi por essa razão que o décimo segundo livro das  
Disputationes de Pico está totalmente debruçado sobre a reconstrução da história da  
astrologia como progressiva influência de crenças religiosas de povos mais arcaicos,  
como caldeus e egípcios, o que, para Pico, não ocorreu fortuitamente. O centro da sua  
crítica está justamente em observar que a astrologia não faz observação física dos  
astros para relacioná-los com uma causalidade, de maneira a não ter como provar  
quais elementos são resultados causais de quais fenômenos astrológicos, o que, por  
si só, atesta a causa pouco criteriosa da investigação astrológica divinatória. É na busca  
de uma defesa de um cristianismo que o humanismo de Pico se debate contra a  
astrologia, justamente pelo fato de esta se concretizar como um saber fantasioso  
acerca de uma natureza teleológica. Note-se que isso não implica uma racionalidade  
totalmente moderna de mundo, mas uma anulação de uma natureza teleológica no  
interior do discurso do livre-arbítrio que, por sua vez, está preso a uma teleologia  
teológica.  
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Como citar:  
REZENDE, Claudinei Cássio de. Da observação da natureza como apreensão do  
conhecimento na passagem do primeiro ao segundo humanismo renascentista: uma  
continuidade do debate iniciado por J. Chasin n’O futuro ausente. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 28, n. 1, pp. 266-281, Edição Especial, 2022/2023.  
Verinotio  
ISSN 1981- 061X v. 28, n. 1, pp. 266-281 - 2º. sem. 2022/1º. sem. 2023| 281  
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