A questão judaica e as Glosas Críticas
propriedade (cf. MACIEL, 2021, p. 67). Este se define pela possibilidade de dispor dos
próprios bens como bem se entender, o que não consiste senão na faculdade de
comprar e vender. O direito pressupõe o bourgeois, o indivíduo egoísta, o que é dizer
que ele tem por base a sociedade civil-burguesa e suas determinações. Vê-se agora
que esta é o reino do dinheiro e da troca mercantil, sem a qual não se pode falar em
livre disposição dos próprios bens, e, assim, em direito à propriedade.8
Como encarnação estranhada do trabalho humano, o dinheiro se torna fim em
si mesmo. Em virtude de sua permutabilidade universal, não é necessário desejar este
ou aquele objeto de consumo. Basta perseguir o dinheiro, o qual se pode trocar por
qualquer coisa que se queira. Como alienação da existência humana, ele se torna aquilo
pelo qual o ser humano vive e trabalha.9
Cabe ressaltar, ainda, que Marx afirma que o dinheiro despoja tanto os objetos
produzidos pelo ser humano quanto os da natureza de seus valores próprios. Tal
apontamento deve ser compreendido nos termos do culto ao dinheiro, já descrito, ou
seja, no fato de que o dinheiro, como encarnação alienada da vida humana, torna-se
fim em si mesmo. Entretanto, a colocação da questão em termos de valor mostra a
incipiência dos estudos econômicos de Marx, uma vez que tal palavra, no contexto da
economia política e de sua crítica, adquire sentido distinto, não aplicável à discussão
em questão.
Nos termos de O capital, qualquer sociedade, independentemente “de todas as
formas sociais” (MARX, 2017, p. 120), requer trabalho útil, que produz valores de uso,
ou seja, que produz algo que “por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades
humanas de um tipo qualquer” (MARX, 2017, p. 113). Sob condições capitalistas, em
8
Em O capital (2017, p. 250-251), Marx relaciona, explicitamente, a troca mercantil aos direitos
humanos: “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e
venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino
da liberdade, da igualdade, da propriedade, e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e
vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-
arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado,
em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se
relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadoria e trocam equivalente por
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha
somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade
própria, de sua vantagem pessoa, de seus interesses privados”.
9 Nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004, p. 157), o caráter universal da dominação do dinheiro
e o seu tornar-se fim em si mesmo são descritos nos seguintes termos: “O dinheiro, na medida em que
possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de todos os
objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu atributo é a
onipotência de seu ser; ele vale, por isso, como ser onipotente. ... O dinheiro é o alcoviteiro entre a
necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem”.
Verinotio
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 103-128 – jan.-jun., 2024 | 121
nova fase