DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.705  
A posição dos juristas na divisão do trabalho e  
suas ilusões em A ideologia alemã*  
The jurists position in labor division and their illusions  
in The German Ideology  
Gabriel Müller de Jesus Pinheiro Machado**  
Resumo: A partir das considerações de José  
Chasin acerca da análise imanente dos objetos,  
este breve artigo intenta abordar o tratamento  
dado por Karl Marx e Friedrich Engels aos juristas  
em sua obra A Ideologia Alemã, redigida em  
1845-6. Com ênfase na configuração que a  
divisão do trabalho adquire na sociedade civil-  
burguesa, demonstra-se como a posição social e  
a subsequente vida prática dos juristas estão na  
base das ilusões nas quais eles creem, sobretudo  
com relação à categoria da vontade e suas  
potencialidades. O artigo encerra suas reflexões  
com a exposição da perspectiva comunista de  
como suprimir tais ilusões, não por um combate  
hipostasiado das mesmas, mas pela supressão  
das relações materiais que necessariamente as  
engendram, processo este que corresponde à  
construção das bases reais para a existência de  
indivíduos multifacetados mediante a supressão  
da divisão do trabalho.  
Abstract: This paper aims to expose, through  
José Chasin’s lessons about immanent analysis,  
Karl Marx and Friedrich Engels’ treatment of the  
jurists in their oeuvre The German Ideology  
(1845-6), emphasizing the form the labor  
division acquires in the civil-bourgeois society,  
in which the social position and the subsequent  
practical life of the jurists provide a materialistic  
explanation to their particular illusions, strongly  
tied to a creed on the powers of will. The paper  
concludes with the exposition of the marxian  
communist position on how to suppress not  
only those juridical illusions on will but precisely  
those social relations that produce, as a  
necessity, such illusions, thus creating, with the  
suppression of labor division, the material basis  
to the existence of multifaceted individuals.  
Keywords: Labor division; Jurists; Will; Illusions.  
Palavras-chave: Divisão social do trabalho;  
Juristas; Vontade; Ilusões.  
Introdução  
Embora tenha ocupado um espaço significativo no início do percurso de Marx1  
que culminou na construção de uma "concepção das coisas tal como realmente são e  
tal como se deram” (Marx, 2007, p. 94), de cariz ontológico2 e materialista, a crítica  
*
8036.2022.39334).  
**  
1 Por economia, utiliza-se o adjetivo ‘marxiano’ para referir a obra e o pensamento de Karl Marx.  
2
Em termos simples e esquemáticos, pode-se dizer que concepção de mundo instaurada por Marx é  
‘ontológica’ em um sentido muito singelo: a análise de Marx se dá sobre a realidade efetiva [Wirklichkeit]  
em sua lógica específica, despida de quaisquer pré-ordenamentos arbitrários da subjetividade,  
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ao Direito nunca foi central em sua análise da sociedade civil-burguesa3, seja porque  
desde cedo, quando colocado “na embaraçosa obrigação de opinar sobre os interesses  
materiais(Marx, 2009, p. 46), Karl Marx percebera a limitação das relações jurídicas  
para compreender a lógica e funcionamento internos dessas relações jurídicas mesmas,  
seja porque, ao encontrar na sociedade civil-burguesa a raiz para compreender tanto  
tais “relações jurídicas” quanto “as formas de Estado”, dedicou o resto de sua vida à  
análise crítica daquilo que constituía, em suas palavras, a “anatomia” dessa sociedade,  
a saber: a “Economia Política” ” (Marx, 2009, p. 47). Não por acaso, a grande obra de  
sua vida, O Capital, é acompanhada pelo subtítulo “Crítica da Economia Política”4: a  
razão disso não é qualquer idiossincrasia pessoal, por suposto. Os ciosos estudos de  
Marx o permitiram compreender que é na economia política que a sociedade civil-  
burguesa se estrutura, logo, é onde esse organismo social pode ser visto em suas  
determinações mais puras daí se falar em anatomia5.  
Tudo isso é verdadeiro, basilar, até, e, no entanto, seria uma incorreção  
grosseira dizer que Marx não tem nada a dizer sobre o Direito. Na verdade, o beabá  
da crítica de Marx ao Direito, que não é central, mas perpassa reiteradamente sua obra  
(afinal, o Direito é parte necessária à reprodução da totalidade social que Marx analisa,  
logo, seria absurdo simplesmente ignorar a análise dessa forma social), remete-nos  
precisamente à necessidade de apreender o Direito não como algo que se explique  
característica geral de concepções de mundo com caráter gnosiologizante.  
3 O sentido de crítica aqui utilizado não tem precisamente o sentido usual, corriqueiro. Criticar, em Marx,  
tem o sentido de “capturar "a lógica específica da coisa específica' e de esclarecê-la por sua gênese e  
necessidade” (In: CHASIN, José. Marx. Estatuto ontológico e resolução metodológica, 2009, p. 80).  
Nesse sentido, registre-se que uma análise realmente competente da obra de Marx e Engels demandaria  
sua apreensão e exposição em sua imanência histórica, missão que somente seria possível por meio  
daquilo que José Chasin denomina “tríptico metodológico” lukácsiano (CHASIN, 1978, p. 23): “crítica  
imanente [...] gênese social e função” do objeto investigado (LUKÁCS, 1984, p. 6). Entre esses eixos há  
um “enlaçamento íntimo, substantivo [...] dado a nível ontológico, e que o procedimento metodológico  
simplesmente separa para efeitos analíticos” (1978, p. 67).  
4 Retome-se aqui o sentido de “crítica” em Marx, exposto na nota 5, acima, para reiterar que em nenhum  
momento de seu desenvolvimento o mesmo teve a pretensão de escrever uma “economia política  
comunista”, o que, aliás, seria uma contradição em termos, já que uma sociedade comunista pressupõe  
a superação da economia política e da própria política. Marx buscou, em verdade, demonstrar a  
necessidade de superação da economia política enquanto tal, o que, no estágio de desenvolvimento  
social em que nos encontramos, só pode ser alcançado por uma revolução comunista. Para além do  
subtítulo de sua obra magna, sua própria estrutura, que se encerra com a necessidade da “negação da  
negação” mediante a “expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo” (MARX, 2013, p. 832-  
3), não deixa margem para dúvidas quanto à necessidade da supressão da economia política, em vez  
da criação de uma economia política de novo tipo.  
5 Quando, portanto, Marx se propõe a realizar a “crítica da economia política”, trata-se de uma espécie  
de dupla crítica: tanto à totalidade das relações de produção que constituem a base real da sociedade  
capitalista quanto à expressão teórica dessas relações, a qual se observa naquele ramo do saber  
denominado “Economia Política”, que tem como seus representantes clássicos, por exemplo, William  
Petty, Adam Smith, David Ricardo etc.  
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“pela chamada evolução geral do espírito humano” ou algo que o valha, mas por sua  
relação concreta com outras formas ideológicas, como a política, a religião, filosofia,  
arte etc., e, doutra parte e simultaneamente, pela imbricação necessária de todas essas  
formas ideológicas com as “condições materiais de existência” (Marx, 2009, p. 47-9).  
Quando Marx e Engels afirmam, a certa altura da obra à qual nos dedicaremos  
aqui, que “a consciência [Bewusstsein] não pode ser jamais outra coisa do que o ser  
consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real” ” (Marx,  
2007, p. 94), alerta precisamente para o equívoco de autonomizar as diferentes formas  
de consciência humana, o que se fez e faz sempre que se as desconecta dos indivíduos  
reais que, ironicamente, pensaram essas ideias. A concepção de mundo e da história  
formulada Marx e Engels, e da qual partiremos aqui, vai de encontro a toda uma  
milenar tradição idealista de pensamento que encontra em Georg F. W. Hegel seu  
cume, e segundo a qual as ideias, a consciência, os conceitos etc. não são produtos  
da mente humana em suas expressões social e individual, mas sim seus produtores6.  
Ou seja, não se trataria da consciência de Pedro, ou da consciência da classe  
trabalhadora, da classe burguesa etc., sim da Consciência, da Ideia, com letra  
maiúscula, que pensariam a si mesmas e se efetivariam materialmente em Pedro, nas  
classes trabalhadora, burguesa etc. Noutras palavras, segundo a concepção idealista,  
em suas diferentes expressões, a consciência é que produziria o ser. Já a concepção  
materialista de Marx e Engels, a nosso ver melhor amparada em fatos históricos e  
mesmo nas descobertas das ciências exatas a respeito do desenvolvimento do ser  
humano a partir do desenvolvimento da vida orgânica7 (que, por sua vez, adveio do  
desenvolvimento da vida inorgânica), impugna essa e quaisquer outras concepções  
idealistas, porém, mais do que isso, compreende-as e as explica a partir das condições  
reais de vida dos indivíduos que conceberam tais idealismos, inclusos todos os seus  
interesses e necessidades concretos: “a produção de ideias, de representações, das  
consciência” afirmam nossos autores, “está, em princípio, imediatamente entrelaçada  
com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens(Marx, 2007, p.  
6
Evidentemente, não é nossa pretensão aqui senão aludir ao milenar embate entre concepções  
materialistas e concepções idealistas de mundo. No que concerne especificamente à superação de Hegel  
por Marx, que no início de sua formação teve forte afinidade com Hegel, embora nunca tenha sido  
propriamente um hegeliano, cf. SARTORI, 2014.  
7
A esse respeito, vale remeter à obra posterior de um de nossos autores, Friedrich Engels, que, no  
Anti-Dühring (1876-8), reafirma, nos tópicos VI, VII e VIII da Seção 1, a necessidade de capturar a  
diferença específica entre essas duas formas de ser, orgânico e inorgânico. Cf. ENGELS, 2015, pp. 87-  
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94). Não se trata, portanto, de caçar com certa dose de credulidade ideias pensadas  
por indivíduos reais ao longo da história para compreender o modo de vida desses  
indivíduos mesmos, mas precisamente o inverso: há de se entender o modo de vida  
concreto destes, as relações sociais reais pelas quais produzem e reproduzem sua vida  
material, para, então, compreender com um olhar sóbrio sua produção espiritual. Ou,  
para dizê-lo em termos menos prosaicos: “Tendo a história sido, por tempo suficiente,  
dissolvida em superstição, passamos agora a dissolver a superstição em história”  
(Marx, 2010, p. 38).  
A divagação introdutória um tanto extensa, mas possivelmente não vã, justifica-  
se na medida em que o objetivo nuclear deste artigo compreender como aparecem  
os juristas na obra A Ideologia Alemã coincide com levar às últimas consequências  
tais considerações dos autores sobre sua concepção de mundo de bases materialistas,  
a fim de compreender uma posição social específica na divisão social do trabalho, a  
dos juristas. Em outras palavras, busca-se essencialmente explicitar o jurista segundo  
aquilo que ele é na sociedade capitalista, segundo aquilo que faz e o modo como faz,  
em vez de dar-lhe o injustificável privilégio de julgá-lo pelo que ele, seja por ilusão ou  
por cinismo, pensa e diz de si mesmo.  
Nota sobre a estrutura e o contexto da obra  
O movimento argumentativo que Marx e Engels percorrem na obra Ideologia  
Alemã, que ora tomamos por objeto central de análise, merece uma explanação prévia.  
Como o nome sugere, trata-se de obra destinada a explicitar precisamente a “ideologia  
alemã” de seu tempo, mas, pode-se indagar, no que consiste exatamente essa  
ideologia? A Alemanha da década de 1840 vivia no plano intelectual um período de  
dissolução do hegelianismo, no qual a obra de Hegel, morto em 1831, começara a  
perder força, mas ainda gozava de consideráveis adeptos, sobretudo no círculo  
intelectual berlinense, este fortemente marcado por um ponto de vista pequeno-  
burguês, um dos sintomas do desenvolvimento tardio alemão. Dentre seus resilientes  
adeptos houve em linhas gerais, segundo Marx e Engels, uma bifurcação: de um lado  
entrincheiraram-se os “velhos-hegelianos”, que tomavam as categorias hegelianas  
como absolutas e inquestionáveis, aplicando-as a todo e qualquer fenômeno da  
realidade e, assim, obtinham uma resposta míope a todo e qualquer problema. No  
outro lado da disputa pequeno-burguesa pelo espólio espiritual de Hegel estavam  
pensadores mais originais, os “jovens-hegelianos”. Enquanto aqueles “compreenderam  
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tudo” com muita facilidade quando fizeram da lógica hegeliana sua varinha de condão,  
“os jovens-hegelianos criticavam tudo, introduzindo furtivamente representações  
religiosas por debaixo de tudo ou declarando tudo como algo teológico” (Marx, 2007,  
p. 83-4).  
Na transposição da reflexão teórica para a sua postura prática diante da  
realidade, os velhos-hegelianos consubstanciavam tendências políticas explicitamente  
reacionárias e genufletoras ante o Estado Prussiano cristão. Os jovens-hegelianos, por  
sua vez, atribuíam a si mesmos a de revolucionários, criticando a Coroa Prussiana e  
defendendo a necessidade da realização do “verdadeiro Estado”, o Estado racional,  
político. Para eles, “as representações, os pensamentos, os conceitos – em resumo, os  
produtos da consciência por eles autonomizada” são “os autênticos grilhões do  
homem”, logo, segundo sua concepção de mundo, trata-se “de lutar apenas contra  
essas ilusões da consciência” (Marx, 2007, p. 84).  
Substancialmente, é essa concepção dos jovens-hegelianos, amparada de modo  
contraditório na filosofia especulativa de Hegel, que Marx e Engels denominam “a  
ideologia alemã” de seu tempo, e se propõem a investigá-la criticamente em obra  
homônima, redigida entre os anos de 1845/6. O porquê de um tratamento tão  
minucioso dos autores que conformam a ‘ideologia alemã’, além de “acertar as contas  
com nossa consciência filosófica da época” (Engels, 2020, p.15), deve-se tanto à  
repercussão que os jovens-hegelianos passaram a assumir em círculos progressistas  
alemães, com forte presença em periódicos intelectuais e populares, quanto ao fato de  
que os mesmos se autoproclamavam revolucionários, mas, em verdade, Marx e Engels  
demonstram que a perspectiva desses legatários de Hegel é pronunciadamente  
reacionária, pequeno-burguesa, pois limita sua luta a uma luta contra ideias,  
representações, conceitos, quando, segundo a perspectiva de nossos autores, não se  
trata de combater ideias simplesmente, mas suprimir as relações reais que carecem  
necessariamente de tais ideias. E não se combate relações reais com ideias, mas com  
atos: “só é possível conquistar a libertação real [wirkliche Befreiung] no mundo real e  
pelo emprego de meios reais”. Eis aí um dos grandes pontos dessa obra seminal. Por  
trás da fraseologia revolucionária, os jovens-hegelianos, mesmo com suas nuances  
internas, expressavam de modo geral os interesses dos “pequeno-burgueses de hoje  
que almejam ser os burgueses de amanhã” (Marx, 2007, p. 397), e, por isso, eram  
revolucionários exclusivamente na sua imaginação e no seu discurso. Efetivamente,  
eram o oposto do que clamavam e criam ser. Na feliz expressão do prólogo de Marx:  
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“O primeiro volume desta obra tem o objetivo de desmascarar esses cordeiros que  
consideram a si mesmos e são considerados por outros como lobos(Marx, 2007, p.  
523).  
Marx e Engels, por sua vez, já representavam, com suas elaborações teóricas,  
os interesses do proletariado, isto é, interesses realmente revolucionários, e, assim,  
viram no combate a tal “ideologia alemã” uma necessidade premente, a fim de  
demonstrar, no plano teórico, a superioridade do seu específico e original ponto de  
vista materialista ante qualquer idealismo, e mesmo ante outros materialismos8, e, no  
que concerne a questões práticas, a superioridade da posição comunista diante de  
outros partidos de oposição aos poderes estabelecidos9.  
A divisão social do trabalho: gênese e expansão  
Da aurora do ser humano à gênese histórica da divisão social do trabalho: a  
polêmica contra Feuerbach  
Na seção nomeada “Feuerbach e história”, que abre a exposição da obra ora  
analisada, Marx e Engels polemizam com a posição de Ludwig Feuerbach  
essencialmente no que respeita ao modo como este concebe o mundo e a história.  
Embora esse autor seja materialista em diversos pontos e traga em suas formulações  
alguns “embriões capazes de desenvolvimento”, trata-se, ainda, de um materialismo  
incapaz de enxergar o ser humano como atividade humana sensível, isto é, como ser  
que subsiste mediante um agir prático, como indivíduos em movimento constante que  
só sobrevivem um dia sequer na medida em que produzem seu próprio mundo através  
de um insuprimível metabolismo com a natureza. Dessa deficiência resulta que “a  
‘concepção’ feuerbachiana do mundo sensível limita-se, por um lado, à mera  
contemplação deste último, e, por outro, à mera sensação; ele diz ‘o homem’, em vez  
de os ‘homens históricos reais’. ‘O homem’ é, na realidade, ‘o alemão’” (Marx, 2007,  
p. 30). Por consequência direta, Feuerbach “enxerga, n’A Essência do Cristianismo,  
8
Ludwig Feuerbach, por exemplo, era um dos “jovens-hegelianos” criticados por Marx e Engels n’A  
ideologia alemã, porém parte significativa de suas formulações tinha caráter materialista, e o mesmo  
foi, inclusive, uma influência decisiva sobre Marx em sua fase de transição do idealismo hegeliano (com  
as ressalvas já referida na nota n. 9, acima) para o materialismo. Marx sintetiza os limites da concepção  
materialista de Feuerbach: “Na medida em que Feuerbach é materialista, nele não se encontra a história,  
e na medida em que toma em consideração a história ele não é materialista. Nele, materialismo e história  
divergem completamente, o que aliás se explica pelo que dissemos até aqui.” (2007, p. 32)  
9 Marx e Engels detalham esse último ponto de forma didática na última seção do Manifesto do partido  
comunista (2020), escrito em período muito próximo (aproximadamente um ano e meio depois) à  
redação d’A Ideologia Alemã.  
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apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano” e “não entende,  
por isso, o significado da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’” (Marx, 2007, p.  
533).  
Existe, portanto, um caráter fortemente contemplativo na concepção de mundo  
feuerbachiana, o que se explica facilmente pelas conhecidas condições miseráveis do  
desenvolvimento alemão, com sua “práxis mesquinha, própria de mercadores e  
manufatureiros(Marx, 2007, p. 453). A própria posição social do autor e seu ponto  
de vista pequeno-burguês restringiram sua teorização a certos lampejos materialistas,  
brilhantes e fundamentais ao desenvolvimento de Marx e Engels, sem dúvida, mas que  
se limitavam a tomar apenas a produção teórica como uma atividade humana, ao passo  
que a atividade sensível, o agir prático dos indivíduos que modificam a natureza  
conforme suas necessidades e, assim, constroem seu mundo e novas necessidades,  
era completamente apagada por Feuerbach. Mesmo quando seu aparecimento era  
inevitável, tomava-o como atividade inferior, de modo que era inevitável que  
Feuerbach olhasse para o mundo existente não como aquilo que é, a saber, um  
resultado da atividade sensível de incontáveis gerações do passado (afinal, para ele, a  
única atividade humana era a atividade dos pensadores atividade este que ele,  
enquanto teórico, curiosamente realizava), mas sim como algo plasmado, sempre  
existente, estático. Nas palavras de Marx e Engels,  
Ele [Feuerbach] não vê como o mundo sensível que o rodeia não é  
uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual  
a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da  
sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto  
histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações,  
que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram  
sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de  
acordo com as necessidades alteradas. Mesmo os objetos da mais  
simples ‘certeza sensível’ são dados a Feuerbach apenas por meio do  
desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial.  
Como se sabe, a cerejeira, como quase todas as árvores frutíferas, foi  
transplantada para a nossa região pelo comércio, há apenas alguns  
séculos e, portanto, foi dada à ‘certeza sensível de Feuerbach apenas  
mediante essa ação de uma sociedade determinada numa  
determinada época. (Marx, 2007, p. 30-1)  
“Aliás”, arrematam, “nessa concepção das coisas tal como realmente são e tal  
como se deram, todo profundo problema filosófico é simplesmente dissolvido num  
fato empírico” (Marx, 2007, p. 31). Ou seja, mesmo a atividade daqueles indivíduos  
que creem estar completamente apartados da atividade sensível do homens em cada  
época histórica por exemplo, filósofos, livres pensadores, juristas, artistas etc. , da  
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prática que visa à satisfação de necessidades concretas (a qual é determinada  
necessariamente pelo grau de desenvolvimento da indústria de cada época) é, ao fim  
e ao cabo, determinada por disputas atinentes à realidade concreta, que carecem ser  
estudados a fundo caso de queira explicar também a produção espiritual de cada  
época. Isso ficará mais claro quando tratarmos especificamente da posição social dos  
juristas e sua respectiva forma de consciência, bastando demarcar, neste passo, que  
tão pouco quanto o Direito é determinado pelo “desenvolvimento geral do espírito  
humano” (Marx, 2009, p. 46) é a prática dos juristas determinada pela justiça, razão  
ou qualquer abstração que o valha.  
Ainda em sua polêmica contra Feuerbach, Marx e Engels veem-se obrigados a  
retomar, nas suas determinações mais abstratas, a gênese do ser humano, a fim de  
explicitar como as concepções idealistas do mundo e da história cambaleiam  
atabalhoadamente quando tentam explicar a história real, profana, da espécie humana,  
concebendo, quando muito, uma história sagrada, fruto da crença especulativa dos  
ideólogos, sem qualquer respaldo em fatos positivos.  
Em oposição aos ideólogos alemães, “que se consideram isentos de  
pressupostos [vorausetzunglosen]” (Marx, 2007, p. 32) nossos autores explicitam 4  
pressupostos a partir dos quais a espécie humana pôde, no passado, e pode, hoje,  
“fazer história”. O enfoque deste trabalho não nos permite tratar tais pressupostos  
com a mínima minúcia, mas podemos sintetizá-los, em termos bastante esquemáticos,  
nos seguintes pontos: i) o 1º pressuposto está no singelo fato de que “os homens  
precisam estar em condições de viver para fazer história”, ou seja, precisam satisfazer  
suas necessidades fisiológicas e físicas básicas, de modo que “o primeiro ato histórico  
é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da  
própria vida material, [...] condição fundamental de toda a história, que ainda hoje,  
assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente  
para manter os homens vivos” (Marx, 2007, p. 33); ii) o 2º pressuposto consiste em  
que “a satisfação da primeira necessidade dos homens e o instrumento de satisfação  
já adquirido conduzem a novas necessidades”, na medida em que a espécie humana  
precisa não apenas produzir materialmente seu mundo, mas também reproduzi-lo  
continuamente; iii) dessa renovação diária da própria vida decorre o 3º pressuposto,  
isto é, os humanos, por necessidade, criam laços entre si: “a relação entre homem e  
mulher, entre pais e filhos, a família”. Esta, que “no início constitui a única relação  
social, torna-se mais tarde, quando as necessidades aumentadas criam novas relações  
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sociais e o crescimento da população gera novas necessidades, uma relação secundária  
(salvo na Alemanha)”; iv) o quarto e último pressuposto está no fato de que essa  
relação entre os indivíduos produz, em cada época histórica, uma cooperação para  
atuar sobre a natureza: “segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma  
determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de  
cooperação [...], que a soma das forças produtivas acessíveis ao homem condiciona o  
estado social e que, portanto, a ‘história da humanidade’ deve ser estudada e  
elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas” (Marx, 2007,  
p. 33).  
Trata-se, portanto, partindo de tais pressupostos, de apreender a existência da  
“conexão materialista dos homens entre si, conexão que depende das necessidades e  
do modo de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens uma conexão  
que assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma ‘história’, sem que  
precise existir qualquer absurdo político ou religioso que também mantenha os  
homens unidos” (Marx, 2007, p. 34).  
Anote-se oportunamente que tais pressupostos não são criações arbitrárias da  
cabeça de Marx e Engels, mas pressupostos reais, empiricamente constatáveis, que  
tanto foram necessários para a gênese e desenvolvimento do gênero humano a partir  
do ser natural quanto o são para a produção cotidiana da vida na particular forma de  
sociabilidade hoje em voga.  
Assim, as primeiras sociedades, que por milênios se relacionaram de forma  
muito próxima ao animalesco com a natureza, a qual se lhes apresentava como “um  
poder totalmente estranho”, começaram a vencer paulatinamente os limites naturais,  
tanto da natureza externa quanto de sua natureza interna, o que faziam precisamente  
pela crescente modificação histórica do mundo natural. O paulatino desenvolvimento  
populacional demandou “produtividade aumentada” e “incremento das necessidades”  
(Marx, 2007, p. 35) sociais, e a complexificação das relações sociais advinda do  
crescimento das necessidades e, consequentemente, das forças produtivas, demandou  
o surgimento de uma divisão social do trabalho. Essa trouxe consigo um potencial  
progressivo gigantesco em relação ao modo de cooperação e produção precedente,  
ainda marcado por uma relação fortemente animalizada com a natureza, mas,  
simultaneamente, uma autonomização tal das relações sociais face aos indivíduos que,  
quanto mais desenvolvida a divisão do trabalho, mais faz dos indivíduos reféns de  
suas próprias relações sociais.  
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Desenvolvimento da divisão do trabalho e autonomização das relações sociais  
O desenvolvimento da divisão social do trabalho e a consequente  
autonomização das relações sociais são elementos fundamentais à nossa exposição,  
sem os quais provavelmente seria inviável compreender a posição social dos juristas  
e, no limite, de qualquer tipo de trabalho em qualquer época social particular em que  
já exista uma divisão social do trabalho.  
Vimos, até aqui, que a última nasce como resposta a uma necessidade social  
de agrupamentos humanos (ainda na forma de tribos) cuja expansão exigiu um novo  
modo de cooperação para realizar satisfatoriamente seu metabolismo com a natureza.  
Marx e Engels anotam que tal divisão “originalmente nada mais era do que a divisão  
do trabalho no ato sexual e, em seguida, divisão do trabalho que, em consequência  
de disposições naturais (por exemplo, a força corporal), necessidades, casualidades  
etc. etc., desenvolve-se por si própria ou ‘naturalmente’”. Contudo, a divisão do  
trabalho “só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão  
entre trabalho material e [trabalho] espiritual” (Marx, 2007, p. 35).  
Dessa forma já consolidada da divisão social do trabalho decorre uma  
consequência decisiva a todo o desenvolvimento histórico posterior, e, quanto a nosso  
objeto, à compreensão da posição social dos juristas, qual seja: “com a divisão do  
trabalho está dada a possibilidade, e até a realidade, de que as atividades espiritual e  
material de que a fruição e o trabalho, a produção e o consumo caibam a indivíduos  
diferentes” (Marx, 2007, p. 36).  
Com a divisão do trabalho, na qual todas essas contradições estão  
dadas e que, por sua vez, se baseia na divisão natural do trabalho na  
família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas  
umas às outras, estão dadas ao mesmo tempo a distribuição e, mais  
precisamente, a distribuição desigual, tanto quantitativa quanto  
qualitativamente, do trabalho e de seus produtos; portanto, está dada  
a propriedade, que já tem seu embrião, sua primeira forma, na família,  
onde a mulher e os filhos são escravos do homem. A escravidão na  
família, ainda latente e rústica, é a primeira propriedade, que aqui,  
diga-se de passagem, corresponde já à definição dos economistas  
modernos, segundo a qual a propriedade é o poder de dispor da força  
de trabalho alheia. (Marx, 2007, p. 36-7, negrito nosso)  
A heterogeneidade entre aqueles que executam o trabalho e aqueles que fruem  
de seus produtos, exercendo poder sobre a força de trabalho alheia, identifica-se com  
a propriedade privada enquanto tal. Daí o porquê nossos autores afirmarão, em  
seguida, que “divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas –  
numa é dito com relação à própria atividade aquilo que, noutra, é dito com relação ao  
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produto da atividade”. Ainda, a referida “distribuição desigual” engendra patrimônios  
desiguais, com o que se tem, simultaneamente, a gênese histórica das classes sociais.  
Assim, propriedade privada e divisão social do trabalho se colocam como dois lados  
da mesma moeda, e têm como efeito necessário e concomitante a produção de classes  
sociais. Por essa razão a divisão do trabalho traz em seu bojo “a contradição entre o  
interesse dos indivíduos ou das famílias singulares e o interesse coletivo de todos os  
indivíduos que se relacionam mutuamente” (Marx, 2007, p. 37), e, ademais, em  
qualquer sociedade calcada nessa oposição entre os interesses individuais e o  
interesse coletivo, oposição inerente à divisão social do trabalho, “a própria ação do  
homem torna-se um poder que lhe é estranho e que a ele é contraposto, um poder  
que subjuga o homem em vez de por este ser dominado” (Marx, 2007, p. 37, grifo  
nosso).  
Toca-se, aqui, em problema fundamental: o processo de autonomização das  
relações sociais condicionadas pela divisão social do trabalho. O grau de  
autonomização é proporcional ao grau de expansão da divisão social do trabalho, de  
modo que, quão mais desenvolvida esta última, menos controle os indivíduos exercem  
sobre suas próprias relações sociais e mais subjugados ficam ao poder autonomizado  
de relações que eles próprios protagonizam. A divisão do trabalho torna-se, assim,  
uma potência estranha, que não apenas se descola do controle e da vontade dos  
indivíduos, mas volta-se contra os mesmos, controlando-os e determinando seu  
destino:  
Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter  
um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e  
ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou  
crítico crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio  
de vida. [...] Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação do  
nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que  
foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila  
nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento  
histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção  
multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos  
condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos,  
porque a própria cooperação não é voluntária mas natural, não como  
seu próprio poder unificado, mas sim como uma potência estranha,  
situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para  
onde vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e  
que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de fases  
e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos  
homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir. (Marx, 2007,  
p. 37-8, negrito nosso)  
A potência estranha em que as relações sociais se convertem a partir da divisão  
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do trabalho inverte o processo de desenvolvimento histórico, de modo que os  
indivíduos passam a ser assujeitados pela objetividade social que eles mesmos  
produziram e produzem cotidianamente por meio de sua atividade sensível. E, ao  
impor uma posição social específica aos indivíduos, a divisão social do trabalho não  
apenas os subjuga contra sua vontade, mas, ao fazê-lo, unilateraliza-os: a própria  
vontade e as ações dos indivíduos passam a ser dirigidas não por um ímpeto interno  
e subjetivo, mas por esse “poder objetivo situado acima de nós, que foge do nosso  
controle que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas”,  
determinando a cada um “um campo de atividade exclusivo e determinado [...] O  
indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e assim deve permanecer se  
não quiser perder seu meio de vida” (Marx, 2007, p. 37-8).  
Num momento mais adiante da exposição, nossos autores expõem de forma  
ainda mais clara a causa desse processo de autonomização de suas relações sociais  
em face deles mesmos:  
Os indivíduos sempre partiram de si mesmos, sempre partem de si  
mesmos. Suas relações são relações de seu processo real de vida.  
Como ocorre que suas relações venham a se tornar autônomas em  
relação a eles? Que os poderes de sua própria vida se tornem  
superiores a eles?  
Em uma palavra: a divisão do trabalho, cujo grau depende sempre do  
desenvolvimento da força produtiva. (Marx, 2007, p. 78)  
As relações sociais de produção e intercâmbio calcadas na divisão social do  
trabalho, cuja configuração, por sua vez, depende do estágio de desenvolvimento das  
forças produtivas em cada época social, aparecem aos indivíduos tal como Deus  
aparece à consciência religiosa: Deus criou o homem e determina seus passos, embora,  
sob uma perspectiva marxista, Deus não passe de uma criação da consciência humana  
ainda presa a um nível pouco desenvolvido, e consequentemente sem controle  
consciente, da produção. As relações de produção e intercâmbio são fruto da ação dos  
indivíduos, “relações de seu processo real de vida” (Marx, 2007, p. 78), mas adquirem  
aparência de vida própria, “independente do querer e do agir dos homens e [...] até  
mesmo dirige esse querer e esse agir” (Marx, 2007, p. 38). Ocorre, pois, uma “inversão  
entre Sujeito e Predicado”, onde o predicado usurpa a posição de sujeito e subjuga o  
elemento que originalmente é sujeito, reduzindo-o à mera posição de predicado. O  
sujeito torna-se predicado de seu predicado, criador torna-se criatura.  
E por que, afinal, esse ponto a inversão entre sujeito e predicado é tão  
necessário para a compreensão da divisão do trabalho e da posição dos juristas nela?  
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Primeiramente, trata-se de inversão que existe na própria realidade, na medida  
em que relações sociais de produção e de intercâmbio condicionadas pela divisão  
social do trabalho autonomizam-se dos indivíduos que as encenam e, como já vimos,  
aparecem como relações que controlam o movimento desses indivíduos mesmos à  
revelia de seu querer e seu agir.  
Ademais, tais inversões produzidas na própria realidade frequentemente não  
são percebidas pelos indivíduos que observam essa realidade mesma; pelo contrário,  
são tomadas como pressupostas, naturalizadas como algo dado, sempre existente e  
inevitável, em vez daquilo que de fato são: inversões aparentes historicamente  
produzidas e historicamente suprimíveis. O resultado da apreensão dessa realidade  
invertida de modo acrítico, tomando a totalidade social por sua aparência imediata e  
a partir de pressupostos idealistas, é uma produção intelectual ao estilo dos  
“ideólogos” que Marx e Engels criticam: filósofos, políticos e juristas colocam todas as  
relações empíricas “de cabeça para baixo [auf den Kopf]10(Marx, 2007, p. 343), donde  
cada filósofo, político ou jurista busca explicar o funcionamento da relações sociais a  
partir, de modo geral, da filosofia, da política ou do direito. O resultado, nocivo,  
embora pouco surpreendente, é o reflexo, produzido na cabeça desses ideólogos, da  
referida inversão entre sujeito e predicado existente na própria realidade efetiva:  
“como em geral ocorre com os ideólogos, é de se notar que eles necessariamente  
colocam a questão de cabeça para baixo [auf den Kopf] e veem na sua ideologia tanto  
a força motriz como o objetivo de todas as relações sociais, enquanto ela é tão  
somente sua expressão e seu sintoma [Ausdruck und Symptom]” (Marx, 2007, p. 405,  
grifo nosso). Como expressão e sintoma de relações estranhadas, calcadas na ausência  
de controle consciente de uma produção social ainda agrilhoada à divisão do trabalho,  
criam-se, por óbvio, formas ideológicas estranhadas: do direito à política, da religião  
à filosofia. O quanto cada um dos agentes que operam a partir de tais formas  
10 Um breve esclarecimento quanto à tradução faz-se necessário. Tradicionalmente, verte-se a expressão  
auf den Kopf como “de cabeça para baixo”, em alusão à conhecida inversão entre sujeito e predicado  
captada por Marx e Engels. Não rechaçamos integralmente essa tradução, a qual se compreende diante  
do sentido do original, contudo, deixe-se anotado que a tradução literal, e, por isso mesmo, talvez mais  
desejável, para auf den Kopf é “sobre a cabeça”, com a qual se capta perfeitamente a alusão crítica à  
ilusão idealista segundo a qual a consciência é que determina o ser, de modo que o desenvolvimento  
histórico da humanidade é colocado, nessa concepção que perverte as coisas, “sobre a cabeça”, isto é,  
como um desenvolvimento d’A Ideia, ao qual corresponde o desenvolvimento social, e não, como  
querem Marx e Engels, “sobre seus pés”, enquanto um desenvolvimento da produção, da indústria e do  
intercâmbio, o qual, por suas contradições, é a “causa material” do “sintoma idealista” (MARX; ENGELS;  
2007, p. 140), ou, em outras palavras, de qualquer “absurdo político ou religioso” (idem, p. 34) pelo  
qual se deturpe a real conexão material entre todas as gerações humanas do passado e do presente.  
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ideológicas (juristas, políticos, filósofos, religiosos etc.) tem consciência de tais  
inversões, é questão cientificamente secundária. Como dito acima, se por cinismo ou  
ilusão, as consequências práticas de replicar e agir conforme a ilusões são  
integralmente as mesmas. E, conquanto comuns aos ideólogos de modo geral, tais  
ilusões são particularmente agudas entre os juristas. Cabe explicitarmos o porquê.  
A posição do jurista na divisão social do trabalho capitalista: as ilusões  
necessárias  
Exposto em termos mais gerais e sintéticos o movimento sempre contraditório  
de “expansão da divisão social do trabalho” (Marx, 2007, p. 54) impulsionado pelo  
desenvolvimento das forças produtivas, torna-se, agora, possível, dedicarmos atenção  
específica aos juristas tal como estes são tratados na obra em vista, a fim de  
compreender a gênese de seu modo de conceber o mundo e sua função prático-social.  
Trata-se, como enfatizamos até aqui, de compreender o jurista não pelo que diz ou  
pensa de si mesmo, mas pelo que e como efetivamente faz no seio das relações sociais,  
sobre as quais, como já vimos, não exercem qualquer tipo de controle. Uma vez situado  
em sua posição na divisão social do trabalho, o jurista tem tanta obrigação de ‘agir  
como jurista’ quanto o filósofo tem a obrigação de ‘filosofar’, ou o frentista, de  
abastecer automóveis11, na medida em que a divisão do trabalho não se dobra à  
vontade dos indivíduos, mas, antes, faz esta dobrar-se àquela: “Logo que o trabalho  
começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e  
determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar” (Marx, 2007, p. 37-8,  
negrito nosso).  
A certa altura da obra investigada, no capítulo de polêmica com Max Stirner,  
Marx e Engels caracterizam o jurista como “o ideólogo da propriedade privada” (Marx,  
2007, p. 225). Mas o que, precisamente, quer-se dizer com isso? Avancemos com  
cuidado. Por ora, diga-se apenas que entre os juristas, a inversão especulativa  
característica dos filósofos, que creem com fervor no “predomínio do espírito na  
história”, e veem a própria história “apenas como o produto de pensamentos  
abstratos” (Marx, 2007, p. 174-5), assume uma forma específica, determinada por sua  
11  
Utilizamos este exemplo mais prosaico apenas para realçar o caráter objetivo com que a divisão do  
trabalho se opõe aos indivíduos que trabalham, mas há diversos dados pelo próprio Marx mesmo em  
formulações em suas produções mais maduras. Pelo caráter de síntese, registramos trecho dos  
manuscritos preparatórios a’O Capital dos anos de 1861-3, no qual Marx realiza uma digressão sobre  
o trabalho produtivo: “Um filósofo produz ideias, um poeta, poemas, um pastor, sermões, um professor,  
compêndios etc. Um criminoso produz crimes.” (MARX, 2010, p. 355).  
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vida prática e sua posição na divisão do trabalho, que, por sua vez, não é idêntica  
àquelas dos filósofos, embora ambos guardem certas ilusões em comum. Sobre essa  
diferença específica das crenças e ilusões dos juristas, algumas anotações esparsas de  
nossos autores nas páginas finais da seção Feuerbach e história, abaixo transcritas,  
trazem-nos elementos valiosos:  
Por que os ideólogos colocam tudo de cabeça para baixo. [auf den  
Kopf] [...]  
Políticos, juristas, políticos (homens de Estado, em geral), moralistas,  
religiosos.  
Para essa subdivisão ideológica numa classe, 1) autonomização dos  
negócios [Geschäfts] por meio da divisão do trabalho; cada um toma  
seu próprio ofício como o verdadeiro ofício [das Wahre]. No que diz  
respeito à relação entre seu ofício e a realidade, eles criam ilusões tão  
mais necessárias quanto isso já é condicionado pela natureza do  
ofício. As relações, na jurisprudência, na política, convertem-se em  
conceitos na consciência; por não estarem acima dessas relações,  
também os conceitos dessas relações são, na cabeça de religiosos,  
juristas, políticos e moralistas, conceitos fixos; o juiz, por exemplo,  
aplica o código, e por isso a legislação vale, para ele, como o  
verdadeiro motor ativo. Respeito por sua mercadoria, pois seu  
negócio [Geschäft] tem a ver com o geral [Allgemeine]. (Marx, 2007,  
p. 77-8, negrito nosso)  
Portanto, longe de ser uma distorção mental de indivíduos, a ilusão dos juristas  
é ilusão necessária e determinada objetivamente pela natureza mesma de seu ofício e  
pela mercadoria com a qual trabalha e é obrigado, enquanto jurista, a respeitar: a  
legislação. “Seu negócio tem a ver com o geral/universal [Allgemeine]” (idem, ibidem)  
justamente na medida em que a lei, na qual “os burgueses devem fornecer uma  
expressão geral de si mesmos, precisamente porque dominam como classe” (Marx,  
2007, p. 77, negrito nosso) e não meramente como estamento, traz em si um caráter  
de generalidade necessário para que possa expressar os interesses médios do  
conjunto da classe burguesa, dos proprietários privados, como o “interesse geral”, a  
vontade geral, de toda a sociedade. Apaga-se, com isto, o conflito real de classes  
antagônicas entre si e com interesses particulares em nome de um interesse geral, de  
modo que, ao fim e ao cabo, interesses particulares (da classe dominante) são  
expressos sob a forma de interesses gerais (de toda a sociedade), sob a forma da lei.  
Nesse sentido, começa a ficar mais claro por que e em que sentido o jurista é  
“o ideólogo da propriedade privada” (Marx, 2007, p. 225), como mencionado acima.  
Descobrimos que a crença necessária dos juristas de que a lei “se baseasse na vontade  
e, mais ainda, na vontade separada de sua base real [realen], na vontade livre(Marx,  
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2007, p. 76) revela-se como a caixa de Pandora de onde escapam todos os seus  
pecados:  
No direito privado, as relações de propriedade existentes são  
declaradas como o resultado da vontade geral. O próprio jus utendi  
et abutendi [direito de uso e consumo/abuso G. M.] denota, por um  
lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se plenamente  
independente da comunidade e, de outro, a ilusão de que a própria  
propriedade privada descansa na simples vontade privada, na  
disposição arbitrária das coisas. Na prática, o abuti traz consigo  
limites econômicos muito bem determinados para o proprietário  
privado, se este não quiser ver sua propriedade, e com ela o seu jus  
abutendi, passando para outras mãos, já que a coisa, considerada  
simplesmente em relação com a sua vontade, não é absolutamente  
uma coisa, mas é apenas no comércio e independentemente do direito  
que ela se torna uma coisa, uma verdadeira propriedade. [...] Essa  
ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, resulta  
necessariamente, no desenvolvimento ulterior das relações de  
propriedade, no fato de que alguém pode ter um título jurídico de  
uma coisa sem ter a coisa realmente. [...] A partir dessa mesma ilusão  
dos juristas explica-se que, para eles e para todos os códigos jurídicos  
em geral, seja algo acidental que os indivíduos estabeleçam relações  
uns com os outros, contratos por exemplo, que essas relações sejam  
consideradas como relações que [podem] ser estabelecidas ou não a  
depender da vontade, e cujo conteúdo [rep]ousa inteiramente sobre  
o [arb]ítrio individual dos contratantes. (Marx, 2007, p. 76-7, negrito  
nosso)  
Na medida em que a divisão do trabalho lhe obriga a enxergar seu ofício como  
“o verdadeiro ofício” e a prestar respeito por sua mercadoria, a qual considera “o  
verdadeiro motor ativo” dos processos sociais, o jurista crê que as relações reais de  
comércio são tal como elas dizem ser: relações voluntárias, livres, contingenciais. Tal  
ilusão, aliás, é o único meio pelo qual o jurista pode manter-se firme em sua fé  
resignada no Direito. Fosse confrontado com a realidade efetiva, teria de descobrir  
que na sociedade civil-burguesa, calcada na propriedade privada em sua forma  
capitalista, firmar um contrato de compra e venda é condição necessária para ter  
acesso a toda a produção social, e, assim, descobriria que a liberdade contratual que  
subjaz seus contratos, na qual crê caninamente, é, na verdade, a liberdade de escolher  
entre vender sua força de trabalho em troca de um salário ou a mendicância, a  
criminalidade etc.  
Caso tomasse gosto pela apreensão da realidade tal como ela de fato é, uma  
investigação mais profunda conduziria nosso já aflito jurista à descoberta de que o  
“desenvolvimento propriamente dito do direito” (Marx, 2007, p. 76) está  
historicamente vinculado ao e determinado pelo desenvolvimento da classe burguesa,  
sobretudo a partir do “aparecimento da concorrência” universal e da consequente  
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“abolição das restrições locais, implementação de comunicações, divisão do trabalho  
evoluída, intercâmbio mundial, máquinas” (Marx, 2007, p. 358), numa palavra, uma  
série de pré-condições materiais para a supressão da ordem feudal mediante  
revolucionamentos burgueses, em cuja consolidação, mediante o “reconhecimento  
oficial do fato” (Marx, 2017, p. 84) o Direito, com sua expressão geral da classe  
burguesa, já enquanto classe dominante, teve papel fundamental. A universalidade da  
lei, expressão geral dos interesses da classe que personifica o capital moderno, cujo  
domínio econômico pressupõe uma “concorrência universal”, é a forma necessária e  
adequada do reconhecimento da supressão dos particularismos feudais e seu direito  
localista e francamente irracional. Por sua vez, os juristas, tanto aqueles práticos  
quanto os teóricos, não são senão a nova posição social demandada por uma divisão  
do trabalho já calcada na concorrência universal e na progressiva generalização da  
relação-capital, que, quanto mais se expande, tanto mais vê na forma geral da lei a  
forma necessária de expressão dos interesses da burguesia ascendente.  
Assim, começamos a identificar a gênese social da “ilusão jurídica, que reduz o  
direito à mera vontade” e crê que “seja algo acidental que os indivíduos estabeleçam  
relações uns com os outros, contratos por exemplo, que essas relações sejam  
consideradas como relações que [podem] ser estabelecidas ou não a depender da  
vontade, e cujo conteúdo [rep]ousa inteiramente sobre o [arb]ítrio individual dos  
contratantes(Marx, 2007, p. 77, negrito nosso). Fosse isso verdade, ter-se-ia como  
consequência prática que bastaria uma modificação da vontade dos indivíduos ou na  
vontade geral supostamente consubstanciada em lei para que as relações sociais  
pudessem ser modificadas ou mesmo revolucionadas, conclusão que, já sabemos a  
essa altura da exposição, ignora por completo o processo de autonomização e  
estranhamento das relações sociais em face dos indivíduos, sua objetividade hostil e  
independente da mera volição. Em algumas passagens mais longas, porém essenciais,  
pelas quais nos desculpamos ao leitor, Marx e Engels explicitam esse processo de  
gênese social do direito como produto do poder nucleado no Estado e das relações  
materiais nas quais se apoia esse poder, e não, como precisam crer os juristas, de  
certa vontade mais ou menos livre.  
Na história real, aqueles teóricos que consideravam o poder como o  
fundamento do direito formavam a oposição frontal àqueles que  
encaravam a vontade como a base do direito [...] Se o poder é suposto  
como a base do direito, como fazem Hobbes etc., então direito, lei etc.  
são apenas sintomas, expressão de outras relações nas quais se apoia  
o poder do Estado. A vida material dos indivíduos, que de modo  
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algum depende de sua mera "vontade", seu modo de produção e as  
formas de intercâmbio que se condicionam reciprocamente são a base  
real do Estado e continuam a sê-lo em todos os níveis em que a  
divisão do trabalho e a propriedade privada ainda são necessárias, de  
forma inteiramente independente da vontade dos indivíduos. Essas  
condições reais de modo algum foram criadas pelo poder do Estado;  
elas são, antes, o poder que o cria. Os indivíduos que dominam nessas  
condições, abstraindo do fato de que seu poder deve se constituir  
como Estado, têm de conferir à sua vontade condicionada por essas  
condições bem determinadas uma expressão geral como vontade do  
Estado, como lei - uma expressão cujo conteúdo sempre é dado pelas  
condições dessa classe, do que o direito privado e o direito criminal  
são a prova mais cabal. (Marx, 2007, p. 317-8, negrito nosso)  
Como já aludimos, as relações sociais condicionadas pela divisão do trabalho  
tornam-se potências estranhas que dirigem o próprio querer e o agir dos indivíduos  
e, nessa passagem, comprova-se que são precisamente tais relações sociais  
estranhadas as potências que servem de base para o Estado, e que esse “anel  
autoperpetuador12 entre relações sociais moldadas pela divisão do trabalho,  
especificamente a relação-capital, de um lado, e, de outro, o Estado, é um produto  
social necessário a certo nível ainda pouco desenvolvido da produção, fato que foge  
por completo ao mero querer dos indivíduos e mesmo à ação do Estado, que é produto  
dessas relações sociais, não produtor. E a lei, com determinação universal, tal como o  
Estado é a forma necessária de constituição do poder da classe dominante, é a forma  
necessária para exprimir a vontade da classe dominante, que não é, por sua vez, de  
modo algum arbitrária, mas materialmente condicionada pelas próprias condições de  
seu domínio classista.  
Assim como não depende de sua [da classe dominante G. M.]  
vontade ou arbitrariedade idealista o fato de seus corpos serem  
pesados, tampouco depende dela impor a sua própria vontade na  
forma da lei, pondo-a, ao mesmo tempo, fora do alcance da  
arbitrariedade pessoal de cada indivíduo entre eles. Seu domínio  
pessoal deve se constituir simultaneamente como um domínio médio.  
Seu poder pessoal se apoia em condições de vida que se desenvolvem  
como condições comuns a muitos, cuja continuidade eles, na condição  
de dominadores, devem afirmar contra outras [condições de vida G.  
M.] e, ao mesmo tempo, como válidas para todos. A expressão dessa  
vontade condicionada por seu interesse comum é a lei. Justamente a  
imposição dos indivíduos independentes uns dos outros e da sua  
própria vontade, que sobre essa base é necessariamente egoísta em  
seu comportamento recíproco, torna necessária a autorrenúncia na lei  
e no direito, autorrenúncia como exceção, autoafirmação de seus  
interesses na média dos casos (que, em consequência, não é  
considerada como autorrenúncia por eles [...]). (Marx, 2007, p. 317,  
12 CHASIN, 2013.  
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negrito nosso)  
A analogia feita pelos autores é significativa: tanto quanto é independente das  
vontades e arbítrios idealistas da classe dominante o fato de sua massa corporal ter  
um peso, assim também o é a necessidade de impor sua vontade de classe (isto é, a  
vontade condicionada pelas condições materiais de seu domínio) na forma de uma  
objetividade independente, autônoma e alheia às vontades e arbítrios individuais dos  
membros da classe dominante isto é, na forma da lei. Esta não se presta a afirmar  
os interesses particulares de certa fração específica da classe dominante, mas  
precisamente os interesses comuns do conjunto dela, mediante o reconhecimento de  
um domínio médio assentado “em condições de vida que se desenvolvem como  
condições comuns a muitos” e, justamente por isso, tal reconhecimento legal pode ser  
e é a “expressão dessa vontade condicionada por seu interesse comum” (ibidem).  
Tem-se, então, que a vontade geral que a ilusão dos juristas, de modo mais ou  
menos ferrenho, crê plasmar-se na lei e no direito é, em verdade, a vontade da classe  
social dominante, a expressão geral das condições médias de seu domínio, e o direito  
mesmo aparece como uma potência estranha em face da sociedade que o produziu, à  
medida que é sintoma idealista dessas relações estranhadas mesmas.  
Um dos corolários desse estranhamento imanente ao Direito se expressa no  
fato de que seus especialistas, os juristas, tenham precisamente nessa determinação  
“geral” da lei e do direito a sua “mercadoria” e seu “negócio” (Marx, 2007, p. 78) em  
sua vida prática, donde fica ainda mais claro em que sentido os juristas são, ainda que  
não o saibam ou o queiram conscientemente, os “ideólogos da propriedade privada”:  
o são na medida em que hipostasiam as leis e relações jurídicas de sua base real e  
professam sem peias a lei como expressão (se não efetiva, ao menos em potência) da  
vontade geral e as relações jurídicas como resultados contingentes de vontades livres  
e autônomas, com o que simultaneamente naturalizam e glorificam as relações de  
produção e propriedade que efetivamente dão o conteúdo da lei e demais  
manifestações do direito.  
Em outros termos, a consequência prática de partilhar dessas ilusões jurídicas  
é, necessariamente, uma posição no mínimo conservadora diante da realidade  
presente, uma vez que, mesmo quando subjetivamente os indivíduos que partam dessa  
perspectiva dos juristas imaginem-se revolucionários, as determinações objetivas da  
lei e do direito (em quaisquer “sociedades onde reina o modo de produção capitalista”)  
(Marx, 2013, p. 113) restringem qualquer luta neste âmbito a uma luta para alterar  
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pontualmente, mas de modo algum suprimir, as condições médias de vida da  
dominação burguesa. A aposta cega na onipotência da vontade, seja a individual, seja  
a ‘geral’, por incompreensão ou ignorância das relações materiais que condicionam  
essas vontades, redunda obrigatoriamente em posições que transitam entre certo  
reformismo pela via jurídica e exortações morais aos bons sentimentos humanos ou à  
revolução.  
Sobre esse aspecto, o esclarecimento e alerta dos autores às classes dominadas  
quanto ao risco de hipertrofiar a vontade também é altissonante:  
O mesmo vale para as classes dominadas, de cuja vontade tampouco  
depende a existência da lei e do Estado. Por exemplo, enquanto as  
forças produtivas não tiverem se desenvolvido a ponto de tornar  
supérflua a concorrência e, por essa razão, reiteradamente  
provocarem a concorrência, as classes dominadas quererão algo  
impossível se tiverem a "vontade" de eliminar a concorrência e, junto  
com ela, Estado e lei. [...] Portanto, não é o Estado que subsiste por  
meio da vontade dominante, mas o Estado que procede do modo de  
vida material dos indivíduos tem também a forma de uma vontade  
soberana. Se esta perde o domínio, então se modificou não só a  
vontade, mas também a existência e a vida material dos indivíduos, e  
só por causa disso a sua vontade. (Marx, 2007, p. 318, negrito nosso)  
Estado, direito e as condições materiais do domínio burguês (aqui, na forma da  
concorrência) são elementos indissociáveis e codeterminantes entre si e têm nas  
condições materiais a base dessas relações, de modo que a vontade que se volta  
contra os primeiros sem ter em conta a objetividade social estranhada destas últimas,  
resulta em uma apoteose da impotência, seja, reiteramos, pela via da pregação moral,  
seja pela via das reformas jurídicas. A vontade dominante na sociedade civil-burguesa  
não é causa, sim produto e reflexo das condições materiais de vida, e só é expressão  
geral da vontade da burguesia na exata medida e até o momento em que a burguesia  
detiver a propriedade privada dos meios de produção material e espiritual, que dão a  
base real àquela vontade dominante, soberana.  
Ademais, vale acrescentar que tal como uma posição quanto aos conflitos do  
presente calcada nessas ilusões jurídicas há de ser uma posição conservadora ou  
reacionária, também a interpretação que se tem do passado e do processo de  
desenvolvimento histórico é contaminada por essas inversões de sujeito e predicado:  
Da mesma maneira se pode, aqui, separar, por sua vez, o direito de  
sua base real [realen], com o que então se consegue extrair uma  
"vontade soberana" que se modifica diferentemente nas diferentes  
épocas e que em suas criações, as leis, possui uma história própria,  
independente. Desse modo, a história política e burguesa se dissolve  
ideologicamente numa história do domínio de leis sucessivas. Esta é  
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A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
a ilusão específica de juristas e políticos, a qual Jacques le bonhomme  
[Max Stirner G. M.] adota sans façon. [...] Ele [Max Stirner G. M.]  
nutre a mesma ilusão que, por exemplo, Frederico Guillerme IV, que  
também considera as leis como simples ideias repentinas da vontade  
soberana e, em consequência, sempre acha que elas fracassam diante  
do "Algo tosco" do mundo. [...] O exame mais superficial da legislação,  
por exemplo da legislação para os pobres em todos os países,  
mostrará o quanto os dominadores avançaram quando imaginaram  
poder impor algo mediante sua simples "vontade soberana", isto é,  
apenas como querentes. (Marx, 2007, p. 319, negrito nosso)  
Com este modo dos juristas de compreender o mundo e a história, eliminam-  
se quanto ao passado e ao presente os conflitos e contradições sociais nos quais se  
deu o desenvolvimento social, transformando-o em um suceder de ideias jurídicas e  
documentos legislativos frutos da vontade geral ou do Volksgeist de cada tempo –  
que são tomados como “o verdadeiro motor ativo” da história (Marx, 2007, p. 78). E  
se as leis forem tomadas como esse motor da história, não haverá nenhuma surpresa  
se um indivíduo embebido dessas ilusões jurídicas propugnar que a luta por novas leis  
ou novas interpretações das leis seja o grande cerne das lutas sociais de seu tempo.  
Seria, antes, a mais lógica das consequências.  
Nossas investigações nos conduzem, então, a um duplo ponto de chegada: se  
há de ser reconhecido, de um lado, o caráter revolucionário que o Direito da moderna  
sociedade civil-burguesa – na qual se teve o “desenvolvimento propriamente dito do  
direito” (Marx, 2007, p. 76) exerceu para a supressão dos privilégios feudais e do  
direito do mais forte [Faustrecht] vigente no Medievo, há que se reconhecer com igual  
necessidade a outra face da moeda, qual seja, sua vinculação necessária com o domínio  
da classe burguesa e a consequente função social necessária de seus especialistas, os  
juristas, na manutenção e reprodução desse domínio.  
Exatamente na época entre o domínio da aristocracia e o da burguesia,  
quando colidiram os interesses de duas classes, quando o intercâmbio  
comercial entre as nações europeias começou a ganhar importância e,  
em consequência, a própria relação internacional assumiu um caráter  
burguês, o poder dos tribunais começou a ter mais relevância,  
chegando ao seu ápice sob o domínio burguês, para o qual essa  
divisão consumada do trabalho é incontornavelmente necessária.  
(Marx, 2007, p. 331, negrito nosso)  
Sublinha-se aqui, novamente, a relação indissociável entre a consolidação de  
relações de produção e intercâmbio de “caráter burguês” e o crescimento e  
consolidação da classe dos juristas, os valiosos ideólogos da propriedade privada. E  
quanto a seu papel na reprodução da sociabilidade burguesa e seu grau de consciência  
disso, Marx e Engels destacam que “é totalmente indiferente o que os servos da divisão  
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do trabalho, os juízes, e até mesmo os professores juris [professores da ciência jurídica]  
imaginam sobre isso” (Marx, 2007, p. 331). Sob essa perspectiva, é plenamente  
extensível aos juristas a afirmação de Marx sobre os portadores de mercadorias na  
sociedade civil-burguesa, que diuturnamente trocam seus distintos produtos como  
valores: “eles não sabem disso, mas o fazem” (Marx, 2013, p. 149). Acrescentaríamos  
apenas: a insciência dos juristas acerca da função social real que exercem na  
reprodução das condições da dominação burguesa é momento necessário à  
reprodução cotidiana da mesma, pois condição indispensável à criação e preservação  
das ilusões inerentes a seu ofício.  
Considerações finais  
Que a causa das ilusões sociais aqui analisadas não se encontra no Direito ou  
nos juristas, que a existência do Direito e dos seus especialistas não é senão uma  
consequência de um estágio específico da produção social, no qual os indivíduos não  
a controlam, mas são por ela controlados, e que este processo de estranhamento  
decorre da própria gênese e expansão da divisão social do trabalho, é algo, a essa  
altura da exposição, já demonstrado.  
Contudo, útil repisar que, enquanto esfera particular de uma sociabilidade que  
reproduz, também com a mediação do Direito, relações sociais estranhadas, o  
fenômeno jurídico torna-se, também, potência estranhada em relação aos indivíduos,  
e os juristas, por sua vez, conscientes disso ou não, protagonizam todo o mise en  
scène pelo qual se reproduz tal estranhamento. Nesse sentido, Marx e Engels são  
explícitos quanto a sua posição, enquanto comunistas, ante o complexo no qual os  
jurista atuam:  
No que se refere ao Direito, afirmamos, entre muitas outras coisas, a  
contraposição do comunismo ao direito tanto em sua modalidade  
política quanto na privada, como também na sua forma genérica como  
Direito do Homem. Ver os Anais Franco-Alemães (p. 206 ss.), onde o  
privilégio e a prerrogativa são concebidos como correspondentes à  
propriedade privada vinculada ao estamento, e o direito é concebido  
como correspondente à situação da concorrência, da propriedade  
privada livre; da mesma forma, o próprio Direito do Homem é visto  
como privilégio e a propriedade privada como monopólio. (Marx,  
2007, p. 205, negrito nosso)  
Ressalte-se novamente como a expansão da divisão social do trabalho na época  
capitalista determina a conexão existente entre o Direito, em sua forma moderna, e a  
forma que a propriedade privada assume na particularidade da produção capitalista,  
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A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
diferentemente daquela que assumia no modo de produção feudal, escravista, asiático  
etc.  
A superação desse estado de coisas, isto é, do caráter estranhado que as  
relações sociais assumem nas sociedades condicionadas pela divisão do trabalho, pra  
sermos coerentes com tudo que se expôs até aqui, não pode se dar simplesmente  
“arrancando-se da cabeça” a representação geral dessas potências estranhadas. Isso,  
com maior ou menor refinamento, é o que sustentaram os jovens-hegelianos e os  
idealistas em geral, impiedosamente criticados por nossos autores. Na perspectiva  
destes, dado o caráter objetivo, real, dessas relações estranhadas, sua superação há  
de se dar também por meios reais: o processo de libertação só pode ocorrer, pois, “se  
os indivíduos voltarem a subsumir essas forças reificadas a si mesmos e superarem a  
divisão do trabalho”, processo este que “não é possível sem a comunidade. É somente  
na comunidade [com outros que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver suas  
faculdades em todos os sentidos; somente na comunidade, portanto, a liberdade  
pessoal torna-se possível” (Marx, 2007, p. 64). Enquanto o indivíduo encontra-se em  
uma sociedade calcada na divisão social do trabalho, isto é,  
quando as circunstâncias sob as quais vive esse indivíduo só lhe  
permitem o desenvolvimento [uni]lateral de uma quali[dad]e às custas  
de todas as demais, [se] elas lhe proporcionam material e tempo para  
desenvolver só uma qualidade, então esse indivíduo logra apenas um  
desenvolvimento unilateral, aleijado. Não há pregação moral que  
ajude.  
E
o
modo como se desenvolve essa qualidade  
preferencialmente favorecida depende, por sua vez, de um lado, do  
material de formação que lhe é oferecido, de outro lado do grau e do  
modo como as demais qualidades permanecem reprimidas. (Marx,  
2007, p. 257, negrito nosso)  
Em uma palavra, a unilateralidade da personalidade dos indivíduos até hoje  
existentes não é e não pode ser tomada como atributo inerente à sua natureza, sim  
algo historicamente condicionado pela configuração específica da divisão social do  
trabalho de suas respectivas épocas e localidades e, portanto, só pode ser superada  
mediante a superação da divisão social do trabalho enquanto tal. Seja jurista, filósofo,  
burguês, sociólogo, biólogo, camponês, jornalista... Enquanto o indivíduo estiver  
subsumido à posição que ocupa na divisão social do trabalho, que lhe é independente  
e dirige sua vontade com sua objetividade estranhada, estará, na melhor das hipóteses,  
sufocado em um “desenvolvimento unilateral, aleijado”. Somente na forma de  
organização social onde a divisão social do trabalho foi suprimida, isto é,  
onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode  
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aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade  
regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje  
fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite  
dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de  
acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador,  
pescador, pastor ou crítico. (Marx, 2007, p. 38)  
Somente em uma forma de sociabilidade, já não mais condicionada pela divisão  
social do trabalho e por sua outra face, a propriedade privada, será, enfim,  
objetivamente possível viver uma vida que “abarca uma grande esfera de atividades  
variadas e relações práticas com o mundo”, isto é, uma “vida multifacetada”, onde a  
atividade humana do pensar, em vez de ser tomada (tal como o fazem os idealistas  
em geral) como única atividade humana ou atividade humana superior (lembre-se a  
crítica de nossos autores a Feuerbach) e que, autonomizada dos indivíduos reais, guia  
o desenvolvimento histórico, passa a ter apenas “o mesmo caráter de universalidade  
de cada uma das demais manifestações vitais desse indivíduo”. Desse modo, tal pensar  
“não se fixa como pensar abstrato, nem há necessidade de artifícios reflexivos  
rebuscados quando o indivíduo passa do pensar para alguma outra manifestação vital.  
Trata-se, sempre, desde o início, de um momento que desaparece e se reproduz de  
acordo com a necessidade no todo da vida do indivíduo” (Marx, 2007, p. 257).  
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Como citar:  
MACHADO, Gabriel Müller de Jesus Pinheiro. A posição dos juristas na divisão do  
trabalho e suas ilusões em A Ideologia Alemã. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1,  
pp. 129-153; jan.-jun., 2024.  
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