DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.710  
Forma de aparecimento que torna invisível a  
relação efetiva e mostra precisamente o oposto  
dessa relação: Marx diante do salário e a crítica  
marxiana ao direito  
Form of appearance which makes the actual relation  
invisible and shows the direct opposite of that relation:  
Marx before wages and the Marxian critique of law  
João Lucas Sales Prates*  
Resumo: Neste artigo, a partir daquilo que J.  
Chasin chama de análise imanente, procuraremos  
expor a crítica marxiana à categoria salário tendo  
como ponto de partida o Livro I de O Capital.  
Entende-se que o pensador alemão em sua  
crítica da economia política considera o salário –  
que na superfície da sociedade civil-burguesa  
aparece como valor ou preço do trabalho uma  
forma de aparecimento invertida e irracional para  
o valor da força de trabalho, na qual todo  
trabalho aparece como trabalho pago. Tendo em  
conta que no estatuto marxiano as categorias  
são formas de ser [Daseinformem], demonstrar-  
se-á que a expressão preço do trabalho, com seu  
caráter irracional, é efetiva, ou seja, uma  
categoria dada não somente nas cabeças dos  
indivíduos, mas expressão de uma contradição  
que existe, dotada de objetividade e movimento  
no real. Por fim, analisa-se a relação entre o  
direito e o salário tendo em vista a crítica  
marxiana ao direito. Procurar-se-á dar sentido à  
assertiva marxiana segundo a qual a consciência  
jurídica reconhece apenas uma diferença material  
no intercâmbio entre capital e trabalho, o que a  
leva a aceitar a irracionalidade da expressão  
preço do trabalho, que ao mesmo tempo é a base  
para as “tolices apologéticas” da economia  
vulgar e para as “representações jurídicas”  
Abstract: In this paper, from what J. Chasin  
called immanent analysis, we try to showcase  
the Marxian critique of the wage category taking  
Das Kapital’s first volume as a starting point. It  
is believed that Marx’s critique of political  
economy considers wage which in civil-  
bourgeois society’s surface appears as value or  
price of labour an irrational and inverted form  
of appearance to the value of the labour power,  
in which all labour appears as paid labour.  
Taking in consideration that in Marxian thought  
categories are forms of being [Daseinformem],  
it will be demonstrated that the inversion in the  
wage-form and its irrational character are  
effective, that is, they are given not only in the  
heads of the individuals, but express  
contradictions that exist, equipped with  
objectivity and movement in reality. At last, it is  
analyzed the relation between the wage  
category and law in view of Marx’s critique of  
law. We try to make sense of the marxian  
statement according to which the legal  
conscience recognizes  
a
merely material  
difference in the interchange between capital  
and labour. This standpoint leads the legal  
conscience to accept the irrationality of the  
expression price of labour, which is also the  
basis to the vulgar economy’s “apologetic  
foolishness” and to the “legal notions”  
[Rechtsvorstellungen] of both worker and  
capitalist..  
[Rechtsvorstellungen]  
capitalista.  
de  
trabalhador  
e
Palavras-chave: O Capital; Salário; Direito.  
Keywords: Das Kapital; Wage; Law.  
*
Graduando  
em  
Direito  
pela  
Universidade  
Federal  
de  
Minas  
Gerais.  
E-mail:  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
nova fase  
 
João Lucas Sales Prates  
Introdução  
O objeto do presente artigo é a crítica marxiana à categoria salário presente no  
Livro I de O Capital e a relação desta com sua crítica ao direito. Nesse sentido, nosso  
primeiro objetivo é demonstrar que o autor de O Capital compreende o salário como  
uma forma de aparecimento [Erscheinungsform] invertida para o valor da força de  
trabalho, na qual o conceito de valor “converteu-se em seu contrário”1. A  
irracionalidade da expressão do salário, contudo, não é concebida como acidental ou  
simplesmente uma deformação da realidade operada apenas nas cabeças dos agentes  
sociais. A partir do que o filósofo brasileiro J. Chasin denominou de análise imanente2,  
defende-se que Marx pensa a forma do salário [Form des Arbeitslohns] como uma  
categoria que, conquanto irracional, expressa uma irracionalidade que corresponde às  
relações de de produção capitalistas e explica fenômenos reais da superfície da  
sociedade civil-burguesa, que é ela mesma efetivamente regida por formas irracionais.  
Seu caráter mistificador não é senão o resultado necessário das relações de produção  
vigentes, em que a irracionalidade se coloca como imperativo.  
Sobre essa forma irracional e mistificadora em que todo trabalho aparece  
1
Nesse sentido, alinhamo-nos a San Martins (2016, pp. 10-14), segundo o qual o aspecto da crítica  
marxiana ao salário enquanto forma de manifestação irracional é um ponto ainda pouco explorado pela  
literatura marxista. Em sua pesquisa, Martins identifica duas linhas no que tange à pesquisa sobre o  
salário em Marx. A primeira, para o pesquisador, sequer se coloca a questão do salário como uma  
categoria que comporta uma tensão entre o seu conteúdo e a sua expressão. Escapa a esses autores  
que a expressão do salário e o conteúdo que esta vela (a venda da força de trabalho) são coisas  
qualitativamente distintas, sendo o salário uma expressão irracional e invertida do valor da força de  
trabalho. Mesmo autores de vulto como Rosdolsky (2001, p. 237) incorrem nesse erro. Segundo este  
autor, “o preço da força de trabalho é o salário”. Marx teria simplesmente, “assim como aqueles que o  
antecederam”, distinguido o salário do valor da força de trabalho por este ser a grandeza média pela  
qual a força de trabalho é vendida, enquanto aquele seria o preço da força de trabalho, que depende  
da relação entre oferta e demanda no mercado de trabalho. Assim, Rosdolsky admite que o salário seria  
conceitualmente idêntico ao preço da força de trabalho. Note-se como, ao ignorar que Marx tinha o  
salário como uma forma de manifestação irracional para o valor ou preço da força de trabalho, Rosdolsky  
perde de vista justamente um dos aspectos mais originais da crítica marxiana da economia política,  
identificando, de certo modo, o tratamento de Marx a algo que já se colocava havia muito tempo na  
economia política. Por outro lado, Martins traça uma segunda linha, composta por autores como David  
Harvey, que admite textualmente que o salário seja uma forma de manifestação irracional, cujo conceito  
adequado seria o valor da força de trabalho. Essa vertente, contudo, não aprofunda a investigação no  
sentido da necessidade dessa expressão, não procura derivá-la a partir do conteúdo essencial que ela  
oculta, tampouco aborda como ela decorre necessariamente das relações sociais imanentes à sociedade  
produtora de mercadorias.  
2
“Trata-se de procedimento analítico que “encara o texto —a formação ideal em sua consistência  
autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como  
negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e  
incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos  
quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do  
para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o  
observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes  
não deixariam, por isso, de existir [...]” (CHASIN, 2009, p. 26).  
Verinotio  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
como trabalho pago e a fração não paga da jornada de trabalho é ocultada repousam,  
segundo Marx, todas as representações jurídicas, todas as ilusões de liberdade do  
modo de produção capitalista e todas as tolices apologéticas da economia vulgar.  
Diante disso, outro objetivo assumido pela presente pesquisa é dar sentido e elaborar  
essa assertiva. Em particular, procura-se esclarecer por que o direito aceita a expressão  
irracional do salário e, a partir desta, é elencado por Marx lado a lado das apreensões  
mais apologéticas e mistificadoras da sociedade do capital. A expectativa é que a  
pesquisa possa, tomando as considerações marxianas sobre a relação do direito com  
a forma do salário como ponto de partida provocativo, lançar alguma luz sobre a crítica  
marxiana ao direito enquanto tal presente na sua maior obra de crítica da economia  
política.  
Nessa empreitada, partiremos do Livro I da obra prima de Karl Marx. Este tomo  
e em particular a seção VI, que versa especificamente sobre o salário encerra a  
análise mais pormenorizada do salário como forma de aparecimento e constitui o  
ponto nevrálgico da crítica ao salário em todo O Capital3. Em especial, o capítulo 17,  
intitulado “transformação do valor (ou preço) da força de trabalho em salário”, é o  
primeiro da sexta seção e trata justamente da oposição entre valor da força de trabalho  
e salário e da transformação necessária daquela nesta última forma irracional. Por essa  
razão, a presente análise se constrói sobretudo a partir desse capítulo.  
A crítica marxiana ao salário, porém, não se esgota no referido capítulo, nem  
mesmo em todo O Capital, embora neste livro se encontre mais acabada e mais bem  
exposta. Além disso, é necessário ter em mente que as considerações marxianas sobre  
o direito no referido capítulo não estão plenamente desenvolvidas e, nesse compasso,  
por nós são tomadas como questionamentos cuja elucidação orienta o trabalho de  
pesquisa a outros textos. Por estes motivos nós nos valeremos de muitas outras  
passagens de outros tomos dO Capital, das Teorias do mais-valor, do Grundrisse, d’A  
Ideologia Alemã enfim, onde quer que a referência a outras passagens a um só tempo  
enriqueça o debate e respeite a malha categorial própria de cada texto. Segundo os  
mesmo critérios, o artigo emprega textos de comentadores, em especial Vitor Sartori,  
3
Uma série de temas sobre o salário como suas formas particulares e outras digressões empírico-  
históricas cuja abordagem estaria a princípio reservada a um livro autônomo sobre o trabalho  
assalariado, foram, com o abandono de projetos pretéritos para O Capital, inseridos ao longo do  
primeiro tomo. Entende-se, pois, que a maior parte do conteúdo, ou ao menos os fundamentos, de sua  
crítica do trabalho assalariado se encontra no Livro I, em especial na Seção VI, intitulada “O Salário”. Cf.  
ROSDOLSKY, 2001, pp. 61-65.  
Verinotio  
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João Lucas Sales Prates  
que trata sobretudo da relação entre crítica da economia política e crítica ao direito;  
Isaak Illich Rubin, cujo principal mérito reside em ter exposto pela primeira vez um  
estudo rigoroso do fetichismo da mercadoria; Roman Rosdolsky, que  
monumentalmente aborda a relação entre os diversos manuscritos para O Capital, sua  
gênese e sua estrutura, e Fábio Luiz San Martins, que em sede de tese doutoral  
abordou com fôlego e em português brasileiro a questão do salário como forma de  
manifestação.  
O salário enquanto forma de aparecimento irracional  
É preciso assinalar, antes de mais nada, em que consiste a crítica marxiana ao  
salário. O primeiro passo de Marx no capítulo em análise é explicar a oposição, já  
enunciada no próprio título, entre salário e valor da força de trabalho. Para tanto, o  
autor primeiro expõe de que maneira o salário se apresenta, qual seja, como o valor  
do trabalho:  
Na superfície [Oberfläche] da sociedade burguesa [bürgerlichen  
Gesellschaft] o salário [Arbeitslohn] do trabalhador aparece [erscheint]  
como preço do trabalho, como determinada quantidade de dinheiro  
paga por determinada quantidade de trabalho (MARX, 2017a, p. 605).  
Em primeiro lugar, é interessante notar que o autor relaciona o salário aos  
aspectos mais imediatos da sociedade civil-burguesa: aquele aparece, na superfície  
desta, como preço do trabalho. Essa constatação merece atenção, pois em Marx a  
relação entre aparecimento e a superfície da sociedade capitalista não é nada ingênua.  
Na verdade, é na superfície da sociedade civil-burguesa que as coisas assumem uma  
aparência contraditória e invertida que simultaneamente oculta e pressupõe sua base  
efetiva (SARTORI, 2019).  
Conforme a forma-mercadoria se generaliza e a produção subjetiva e  
objetivamente volta-se para a troca, os produtos do trabalho humano passam a  
somente funcionar como elos do metabolismo social e integrar o trabalho social total  
mediante a troca. Nesse contexto, em que as relações sociais assumem  
necessariamente a forma de relações entre coisas, os indivíduos colocados na  
concorrência figuram como portadores de relações sociais na troca de mercadorias4.  
4
Cf RUBIN, 1987. O grande mérito de Rubin consiste em expor como a teoria do fetichismo da  
mercadoria em Marx não é um apêndice mais ou menos acessório de sua teoria do valor. As condições  
objetivas da produção sob o capital a separação entre trabalho e meios objetivos de produção, a  
independência entre as unidades de produção etc. exige que os produtos sociais transformados em  
mercadorias só funcionem como elo do trabalho social mediante a troca. Dessa maneira, as relações  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
Assim, a superfície da sociedade civil-burguesa é o espaço em que os indivíduos, no  
âmbito da troca e da concorrência, atuam como portadores de relações sociais, sendo  
também o ponto de partida de onde os sujeitos elaboram representações e formas de  
consciência como o salário que lhes permitem tomar consciência dessas mesmas  
relações:  
Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de  
trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O  
conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total.  
Como os produtores só travam contato social mediante a troca de  
seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de  
seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou,  
dito de outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente  
como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca  
estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também  
entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus  
trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não  
como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios  
trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações  
sociais entre coisas (MARX, idem, p. 148).  
Contudo, o que é essencial para o modo de produção capitalista a relação-  
capital e a valorização do valor não reside na circulação, senão na produção, no  
mais-valor que se extrai da exploração da força de trabalho. Nas palavras de Marx  
(2017b, p. 390): “Em seu movimento real, o capital não existe como tal dentro do  
processo de circulação, mas apenas no processo de produção, no processo de  
exploração da força de trabalho”. Assim, enquanto se afastam da esfera da produção,  
as formas da circulação e da concorrência parecem eclipsar precisamente a relação  
essencial para essa sociedade a relação-capital com sua respectiva extração de mais-  
valor , produzindo um certo apagamento do trabalho:  
Assim, na concorrência, tudo aparece invertido. As figuras acabadas  
das relações econômicas, tal como se mostram na superfície, em sua  
existência real e, por conseguinte, também nas representações por  
meio das quais os portadores e os agentes dessas relações procuram  
obter uma consciência clara dessas mesmas relações, são muito  
distintas e, de fato, invertidas, antitéticas a sua figura medular interior  
essencial, porém encoberta e ao conceito que lhe corresponde.  
(MARX, 2017b, p. 245. Destaque no original).  
Na circulação e na concorrência, onde o salário se apresenta como valor do  
trabalho, a exploração do trabalho na produção, o momento preponderante  
[übergreifende Moment]5 que dá a tônica dos demais, não se vislumbra imediatamente,  
sociais assumem necessariamente a aparência de relações travadas entre e presididas por coisas.  
5 “O importante aqui é apenas destacar que, se produção e consumo são considerados como atividades  
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é apenas pressuposto. Precisamente aquilo que produz o salário enquanto tal a  
determinação do trabalho como trabalho assalariado, o trabalho alijado de suas  
condições objetivas de produção, a relação entre trabalho e capital está pressuposto  
e oculto pelas formas que se dão na superfície da sociedade produtora de mercadorias  
na esfera da concorrência.  
Se o trabalho não fosse determinado como trabalho assalariado, o  
modo pelo qual participa dos produtos não apareceria como salário,  
como, por exemplo, na escravidão. Um indivíduo que participa da  
produção na forma de trabalho assalariado participa na forma do  
salário nos produtos, nos resultados da produção. A articulação da  
distribuição está totalmente determinada pela articulação da  
produção. A própria distribuição é um produto da produção, não só  
no que concerne ao seu objeto, já que somente os resultados da  
produção podem ser distribuídos, mas também no que concerne à  
forma, já que o modo determinado de participação na produção  
determina as formas particulares da distribuição, a forma de  
participação na distribuição. (MARX, 2011, p. 49).  
A produção capitalista fundada na relação-capital determina o trabalho como  
trabalho assalariado. O indivíduo só toma parte na riqueza socialmente produzida na  
forma do salário porque todo o restante do produto de valor não lhe pertence, embora  
seja resultado de seu trabalho. Porém, considerado o salário tal como esse se  
apresenta na superfície da sociedade civil-burguesa, isto é, como preço do trabalho,  
isto está oculto, embora lhe seja a base efetiva.  
Desse modo, logo o primeiro período do capítulo já nos conduz a considerar o  
salário como uma categoria ligada à apreensão mais imediata das relações capitalistas,  
precisamente no espaço em que estas aparecem invertidas e ocultam seu conteúdo  
essencial a relação-capital e a exploração da força de trabalho. No que tange  
especificamente ao salário, essa forma de aparecimento oculta precisamente aquilo  
que torna a mercadoria força de trabalho uma mercadoria sui generis na valorização  
do valor, pois a expressão preço do trabalho apresenta toda a jornada de trabalho  
como trabalho pago, como se o trabalhador recebesse um pagamento equivalente à  
integralidade de sua jornada, ocultando a parcela não-paga da jornada de trabalho,  
que consiste no mais-valor: “A forma-salário [Form des Arbeitslohns] extingue,  
portanto, todo vestígio da divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e  
mais-trabalho, em trabalho pago e trabalho não pago. Todo trabalho aparece  
de um sujeito ou de muitos indivíduos, ambos aparecem em todo caso como momentos de um processo  
no qual a produção é o ponto de partida efetivo, e, por isso, também o momento preponderante  
[übergreifende Moment]” (MARX, 2011, p. 49)  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
[erscheint] como trabalho pago” (MARX, 2017a, p. 610).  
Não à toa, após destacar que se trata de uma expressão ligada à apreensão  
superficial da sociedade do capital, o autor logo em seguida começa a expor o salário,  
compreendido como valor ou preço do trabalho, como uma expressão irracional que  
oculta a extração de mais-valor.  
Mas o que é o valor de uma mercadoria? A forma objetiva do trabalho  
social gasto em sua produção. E como medimos a grandeza de seu  
valor? Pela grandeza do trabalho nela contido. Como podemos  
determinar o valor, por exemplo, de uma jornada de 12 horas? Pelas  
12 horas de trabalho contidas numa jornada de trabalho de 12 horas,  
o que é uma absurda tautologia. [...] O trabalho é a medida imanente  
dos valores, mas ele mesmo não tem valor nenhum. (MARX, 2017a,  
pp. 605-06).  
A expressão valor ou preço do trabalho é irracional, pois o trabalho não possui,  
em si mesmo, nenhum valor. Na realidade, o que o trabalhador vende ao capitalista  
não é o trabalho em si mas a sua capacidade de trabalho colocada na mercadoria força  
de trabalho. Afinal, a impossibilidade de alienar [veräußern] o próprio trabalho é antes  
um pressuposto do assalariamento na medida em que o trabalhador é despojado dos  
meios objetivos de realização do trabalho6. Desprovido dos meios de produção, o  
trabalhador só pode alienar ao capital a sua capacidade de trabalho, o complexo  
[Inbegriff] de músculos, nervos e energia necessários à realização de trabalho, a força  
puramente subjetiva de trabalho que reside no próprio corpo do trabalhador7.  
No mercado, o que se contrapõe diretamente ao possuidor de  
dinheiro não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que  
este último vende é a sua força de trabalho, mal seu trabalho tem  
início efetivamente e a força de trabalho já deixou de lhe pertencer.  
[...] O valor da força de trabalho, que existe na personalidade do  
trabalhador e é tão diferente de sua função, o trabalho, quanto uma  
máquina de suas operações. (MARX, 2017a, pp. 607-09)  
O que o trabalhador efetivamente troca com o capitalista, recebendo por isto o  
equivalente em dinheiro, é sua força de trabalho, e não o trabalho em si, como aparece  
no salário. A força de trabalho, cujo consumo é o emprego da capacidade de trabalho  
do trabalhador numa forma útil e determinada, durante uma jornada, possui a  
característica de produzir mais valor do que ela mesma vale. Sua função no processo  
6
“Para ser vendido no mercado como mercadoria, o trabalho teria, ao menos, de existir antes de ser  
vendido. Mas se o trabalhador pudesse dar ao trabalho uma existência independente, o que ele venderia  
seria uma mercadoria, e não trabalho” (MARX, 2017a, p. 606).  
7
"Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o complexo [Inbegriff] das capacidades  
físicas e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na personalidade viva de um homem e que  
ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo" (MARX, idem, p. 242).  
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de valorização do valor consiste precisamente em fornecer um valor maior do que o  
que o capitalista emprega na sua compra, e dessa diferença resulta o mais-valor.  
É importante pontuar que a solução marxiana ao resgatar o conceito adequado  
de valor da força de trabalho não é meramente silogística, pois não resolve uma falha  
puramente lógica na expressão preço do trabalho ou salário. Ao contrário: a crítica do  
chamado método especulativo, que traz os conceitos autoengendrados e  
silogisticamente relacionados, é um ponto de inflexão central para a formação do  
pensamento marxiano, que se afirma na direção da análise imanente do objeto e suas  
próprias determinações8.  
A operação que se leva a cabo não é uma que, a partir da dedução dos  
conceitos autonomizados, encontra a categoria logicamente adequada. Trata-se antes  
de um esforço por, partindo do real, expor o movimento efetivo em categorias que  
no estatuto do pensamento marxiano não são mais do que “formas de ser  
[Daseinformem], determinações de existência9. Nesse sentido, adverte Rosdolsky  
(2001, p. 108): “um leitor não familiarizado com a obra de Marx poderia considerar  
que essa dedução é uma ‘construção’, um exemplo de uma simples ‘dialética  
conceptual’ que atribui vida própria às categorias econômicas e faz com que elas, de  
um modo autenticamente hegeliano, surjam umas das outras e se transformem umas  
nas outras”. Pelo contrário, em Marx, arremata o comentador, “as categorias  
econômicas representam relações reais e não podem ser deduzidas apenas pela lógica,  
independentemente da história”. Nesse sentido, a própria existência da força de  
trabalho enquanto mercadoria é resultado de um processo histórico que formou,  
segundo Marx, homens livres num duplo sentido, pois tanto não pertencem a ninguém  
quanto nada a eles pertence em termos de meios de produção10. Deve-se ter em conta,  
8 “O fundamental da recusa marxiana à especulação não é algo circunscrito à sua fisionomia técnica ou,  
menos ainda, restrito a defeitos ou insuficiências particulares da mesma, os quais, inadvertidos no seio  
originário, uma vez retificados, pudessem levar à retomada do paradigma a que pertencem. Ao inverso,  
trata-se de uma rejeição de fundo, porque de caráter ontológico. Em poucas palavras, o que Marx  
impugna, entendendo que seja o defeito capital da especulação, é o próprio fundamento das operações  
hegelianas: a ideia como origem ou princípio de entificação [...], o fato como realização da ideia, pois  
esse como tal é um mero resultado místico, um produto do “misticismo lógico”. Cf. CHASIN, 2009, p.  
72.  
9
“Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter  
presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça,  
e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência” (MARX,  
2011, p. 59).  
10 “Se um pressuposto do trabalho assalariado e uma das condições históricas do capital são o trabalho  
livre e a troca desse trabalho livre por dinheiro a fim de reproduzir e valorizar o dinheiro, [...] outro  
pressuposto é a separação do trabalho livre das condições objetivas de sua realização do meio de  
trabalho e do material de trabalho. [...] O pôr do indivíduo como um trabalhador, nessa nudez, é ela  
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portanto, que a expressão irracional que o salário apresenta superficialmente não é  
simplesmente produto da incapacidade intelectual dos sujeitos da sociedade civil-  
burguesa; antes remete à irracionalidade da próprias relações de produção de que os  
indivíduos são portadores na circulação:  
se a expressão consciente das relações efetivas desses indivíduos é  
ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para  
baixo, isto é consequência de seu modo limitado de atividade material  
e das suas relações sociais limitadas que daí derivam (MARX, 2007,  
p. 93).  
Com efeito, longe de ser um volteio silogístico, o que Marx faz neste momento  
é retomar sua exposição anterior sobre a produção do mais-valor. A esse respeito, o  
mérito do autor de O Capital reside em expor como a produção de mais-valor passa  
pela circulação mas não é resultado dela. Para reproduzir-se como tal, o capital precisa  
de encontrar na circulação as formas que lhe servirão como suportes [Träger] no  
movimento de valorização do valor11. Por outro lado, se é certo que a valorização do  
valor não prescinde da circulação, essa esfera, no entanto, não é o central. Embora a  
circulação seja um momento imprescindível para o movimento de valorização do valor,  
o mais-valor tem origem em algo que, considerada a circulação, ocorre pelas suas  
costas, lhe é invisível o processo de trabalho12. Da simples troca de equivalentes,  
que se coloca como uma lei imanente da sociedade produtora de mercadorias, não  
surge mais-valor, e a investigação volta suas atenções para a produção, onde não  
por força da lógica, mas real e efetivamente apresenta-se a exploração da força de  
trabalho como a origem do mais-valor.  
No entanto, na superfície da sociedade civil-burguesa, onde os indivíduos estão  
determinados simplesmente como trocadores na circulação e na concorrência, essa  
exploração está apagada. Na expressão do salário como valor ou preço do trabalho  
não se divisa a fração não-paga da jornada de trabalho a forma do salário exprime  
que o capitalista compra o trabalho, e a aparência é que todo o produto da jornada  
própria um produto histórico” (MARX, 2011, p. 388).  
11  
“As formas independentes, as formas-dinheiro que o valor das mercadorias assume na circulação  
simples servem apenas de mediação para a troca de mercadorias e desaparecem no resultado do  
movimento. Na circulação D-M-D, ao contrário, mercadoria e dinheiro funcionam apenas como modos  
diversos de existência do próprio valor: o dinheiro como seu modo de existência universal, a mercadoria  
como seu modo de existência particular, por assim dizer, disfarçado. O valor passa constantemente de  
uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático  
do processo” (MARX, 2017a, pp. 229-230).  
12  
“Mostrou-se que o mais-valor não pode ter origem na circulação, sendo necessário, portanto, que  
pelas suas costas ocorra algo que nela mesma é invisível” (MARX, 2017a, p. 240).  
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de trabalho recebeu do capitalista um pagamento equivalente. Trata-se, portanto, de  
uma forma de aparecimento transformada [verwandelten Erscheinungsform] para o  
valor da força de trabalho que oculta a exploração da força de trabalho ao apresentar  
todo o trabalho como trabalho pago.  
Dessa maneira: “conclui-se, evidentemente, que o valor do trabalho tem de ser  
sempre menor que seu produto de valor, pois o capitalista sempre faz a força de  
trabalho funcionar por mais tempo do que o necessário para a reprodução desta  
última” (MARX, 2017a, p. 609). Assim, a expressão irracional do salário que se extrai  
da superfície da sociedade civil-burguesa engendra a aparência mistificadora de que  
uma jornada de trabalho que gera um produto de valor de 2x vale, ela mesma, apenas  
X.  
As razões de ser da expressão do salário e a consciência jurídica  
O salário, portanto, como tantas outras expressões que se ligam à apreensão  
imediata das relações sociais na superfície da sociedade civil-burguesa, é uma  
categoria irracional que oculta a figura medular do capital. “Na expressão valor do  
trabalho, o conceito de valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em  
seu contrário. É uma expressão imaginária, como valor da terra” (MARX, 2017a, p.  
607). Essa irracionalidade, porém, não é simplesmente tomada pelo autor como  
produto de uma má-consciência:  
Essas expressões imaginárias surgem, no entanto, das próprias  
relações de produção. São categorias para as formas em que se  
manifestam relações essenciais. Que em sua manifestação as coisas  
frequentemente apareçam invertidas é algo conhecido em quase todas  
as ciências, menos na economia política (MARX, 2017a, p. 607).  
Na melhor tradição do tratamento marxiano, a irracionalidade da categoria é  
encarada como uma forma de ser colocada não somente na cabeça dos sujeitos, mas  
na realidade. Se o salário encerra uma aparência irracional e mistificadora, ele não faz  
que expressar, enquanto categoria, irracionalidades e mistificações reais e efetivas,  
imanentes ao modo de produção capitalista, cuja raiz remonta às suas relações de  
produção e à irracionalidade de suas leis.  
É por essa razão que a solução marxiana não se resolve logicamente; antes,  
impele a investigação à realidade, instiga-se a buscar no real as razões de ser da  
categoria que é objeto da crítica. Tendo como pano de fundo a concepção de que as  
categorias expressam formas de ser, aliada a uma recusa à crítica puramente lógica  
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nova fase  
Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
das categorias da sociedade civil-burguesa, a crítica marxiana ocupa-se de explicar de  
que maneira uma categoria irracional que contradiz o conceito de valor é efetiva, e  
que relação esta expressão irracional guarda com o conceito adequado que ela oculta.  
O autor, ao mesmo tempo em que assinala a aparência invertida da forma do  
salário, consigna que se trata de inversão realmente efetiva nos campos da circulação  
e da concorrência, precisamente onde a figura medular do capital e a exploração da  
força de trabalho estão ocultas. Nas chamadas Teorias do mais-valor a relação entre a  
forma do salário e o campo da concorrência – que n’O Capital, conquanto inteligível,  
é tratada muito brevemente aparece mais explicitamente:  
Considerando a relação geral nós devemos levar em conta apenas  
excepcionalmente essa forma invertida [a forma do salário] na qual o  
valor da capacidade de trabalho aparece. Essa forma invertida, no  
entanto, é a maneira como ela aparece no processo real da  
concorrência, onde tudo aparece numa forma invertida, e na  
consciência tanto do trabalhador quanto do capitalista. (MARX, 1994,  
p. 77, tradução livre13).  
Nessa forma, o valor, preço do trabalho é uma expressão específica  
que contradiz diretamente o conceito de valor. Mas esta contradição  
existe. [...] Essa forma torna-se importante quando se examina o  
salário em seu movimento real. Ela também é importante à  
compreensão de muitos equívocos na teoria. (MARX, 1994, p. 72.  
Destaque no original, tradução livre14).  
Há uma confluência entre a exposição do Capital e das Teorias na medida em  
que em ambos os textos o autor toma o cuidado de assinalar que a inversão presente  
na categoria salário expressa uma objetividade do modo de produção capitalista. O  
valor da força de trabalho se converte em preço do trabalho não apenas nas  
consciências de trabalhador e capitalista, mas também no processo real de  
concorrência. Por essa razão, a crítica marxiana do salário não se dá apenas no plano  
da lógica, não se contenta em apontar a irracionalidade da expressão para dar-lhe as  
costas. O essencial é compreender que se trata de uma forma de ser que expressa  
irracionalidades reais e que, por esse motivo, deve ser não simplesmente abandonada  
mas levada em conta quando o objetivo for explicar fenômenos da realidade que são  
efetivamente regidos por essas formas irracionais.  
13 “In considering the general relation we have only to take account by way of exception of this inverted  
form in which the value of labour capacity appears. This inverted form is, however, the way in which it  
appears in the real process of competition, where everything appears in an inverted form, and in the  
consciousness of both worker and capitalist”  
14 In this form, the value, price of labour is a specific expression, which directly contradicts the concept  
of value. But this contradiction exists. [...] This form becomes important when one is examining wages  
in their real movement. It is also important in understanding many misconceptions in the theory.”  
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Nessas passagens Marx é bastante claro ao enfatizar que as contradições da  
expressão preço do trabalho exprimem uma contradição real que inclusive explica o  
movimento dos salários na esfera da concorrência, onde a prática é de fato regida por  
formas irracionais. Nesse sentido, conquanto irracional, a expressão que se tem no  
salário ajuda a explicar o movimento dos salários na concorrência, onde o preço da  
força de trabalho, na forma do salário, pode cair abaixo de seu valor:  
Em países há mais tempo desenvolvidos, a própria máquina produz,  
por meio de sua aplicação em alguns ramos de negócios, uma tal  
superabundância de trabalho em outros ramos, que a queda do salário  
abaixo do valor da força de trabalho impede aí o uso da maquinaria,  
tornando supérfluo e frequentemente impossível, do ponto de vista  
do capital, cujo lucro provém da diminuição não do trabalho aplicado,  
mas do trabalho pago [...] Como ele [o capital] não paga o trabalho  
aplicado, mas o valor da força de trabalho aplicada, o uso da máquina  
lhe é restringido pela diferença entre o valor da máquina e o valor da  
força de trabalho por ela substituída. [...] Considerando-se, além disso,  
que o verdadeiro salário do trabalhador ora cai abaixo de seu valor,  
ora sobe acima dele, a diferença entre o preço da maquinaria e o preço  
da força de trabalho a ser substituída por ela pode variar muito [...].  
Mas é apenas a primeira diferença que determina os custos de  
produção da mercadoria para o próprio capitalista e o influencia  
mediante as leis coercitivas da concorrência. (MARX, 2017a, p. 466).  
É dizer, dado que no capitalismo o preço e o valor das mercadorias só  
coincidem tendencialmente, o salário pode cair abaixo do valor da força de trabalho.  
Nesse caso, as leis da concorrência obrigam o capitalista a empregar mais trabalho  
superexplorado do que a maquinaria, vez que, ainda que contenham mais trabalho  
humano objetivado, as mercadorias assim produzidas serão vendidas por um preço  
mais baixo. Vê-se dessa maneira que os nexos da forma de aparecimento salário com  
o conceito adequado que oculta (valor da força de trabalho), podem romper-se  
completamente quando o salário cai drasticamente abaixo do valor da força de  
trabalho, caso em que a forma do salário será efetiva ao reger, mediante as leis  
coercitivas da concorrência, o comportamento dos agentes no mercado (SAN MARTINS,  
2016, pp. 153-157). Eis uma evidência decisiva de que o salário, conquanto irracional,  
é uma expressão efetiva que explica fenômenos reais e rege a atividade cotidiana dos  
agentes sociais colocados na concorrência.15  
Por outro lado, essas formas como a expressão preço do trabalho não podem  
ser tomadas apenas negativamente, isto é, compreendidas como mero obscurecimento  
15 Para uma análise detalhada da regência dos movimentos do salário pela sua expressão irracional, ver  
“O movimento dos salários” In: SAN MARTINS, 2016.  
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do pensamento. Em alguma medida, é a partir dessas formas que os sujeitos da  
sociabilidade capitalista tomam consciência de si e, no limite, sua própria atividade é  
mediada por e a partir de essas expressões16. Qualquer um pode imaginar, por  
exemplo, de que maneira a reivindicação por melhores salários integra o léxico das  
lutas dos trabalhadores do passado e do presente, como essa expressão medeia sua  
apreensão da luta em que se encontram contra o capital etc.  
Nessa esteira o autor de O Capital ocupa-se de expor as razões de ser do  
salário, as razões de ordem prática e cotidiana que conformam essa aparência  
irracional: “Se a história universal precisa de muito tempo para descobrir o segredo  
do salário, não há, em contrapartida, nada mais fácil de compreender do que a  
necessidade, as raisons d’être [razões de ser], dessa forma de aparecimento  
[Erscheinungsform]” (MARX, 2017a, p. 610).  
O direito, que até então estava aparentemente ausente na exposição, surge de  
modo bastante interessante quando Marx trata das razões e condições concretas que  
explicam a assunção da aparência irracional do salário pelo valor da força de trabalho  
na superfície da sociedade capitalista.  
Ao cuidar das referidas razões de ser da forma de aparecimento do salário, a  
primeira consideração levantada pelo autor é que a troca que se dá entre capital e  
trabalho não se distingue à primeira vista da troca de quaisquer outras mercadorias:  
Inicialmente, o intercâmbio entre capital e trabalho apresenta-se à  
percepção exatamente do mesmo modo como a compra e a venda de  
todas as outras mercadorias. O comprador dá certa soma de dinheiro,  
e o vendedor, um artigo diferente do dinheiro. (MARX, 2017a, p. 611)  
Nos estreitos limites da relação de troca, a expressão preço do trabalho não parece  
ser mais irracional do que o preço das uvas em todo caso, há simplesmente a  
expressão do valor de uma mercadoria em um equivalente monetário de igual  
grandeza.  
Além disso, é notado que “como o valor de troca e o valor de uso são, em si  
mesmos, grandezas incomensuráveis, as expressões “valor do trabalho” e “preço do  
trabalho” não parecem ser mais irracionais do que as expressões “valor do algodão”  
e “preço do algodão” (MARX, 2017, p, 61). Mais uma vez, há algo próprio da anatomia  
16 “Convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção [...] e as  
formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo as formas ideológicas sob as  
quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim” (MARX, 2008, p. 48. Grifo  
nosso).  
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da relação de valor que concorre para que a expressão preço do trabalho não salte  
aos olhos como uma patente contradição: a troca de mercadorias, ao equiparar  
diferentes valores de uso, expressa uma objetividade social a qualidade de serem  
ambos produtos de trabalho humano na forma de uma qualidade que se prende à  
coisa, na forma da igualdade de valores. Por essa razão, falar-se em preço do trabalho  
não parece ser mais absurdo que falar do preço da corda etc. Há algo objetivamente  
colocado na troca, âmbito em que os indivíduos atuam como portadores de relações  
sociais e de onde eles tiram as formas pelas quais tomam consciência dessas mesmas  
relações, que chancela a expressão do salário. A apreensão imediata das relações  
sociais capitalistas a partir da troca de mercadorias em nada contradiz, antes reforça,  
a expressão valor ou preço do trabalho.  
O autor ainda assinala que, diante da troca entre capital e trabalho na  
circulação, a consciência jurídica se comporta de modo bastante interessante: “Nesse  
fato, a consciência jurídica [Rechtsbewußtsein] reconhece, quando muito, uma  
diferença material, expressa em fórmulas juridicamente equivalentes [rechtlich  
äquivalenten Formeln]: do ut des, do ut facias, facio ut des, e facio ut facias” (MARX,  
idem, ibidem).  
Surge neste momento uma relação mais direta entre a forma do salário e o  
direito, cuja investigação foi objeto da presente pesquisa. Com esta assertiva, Marx  
parece relacionar o direito ao âmbito da troca de mercadorias: a consciência que se  
coloca a partir do direito reconhece no intercâmbio entre capital e trabalho uma  
diferença meramente material em relação às outras trocas, pelo que é capaz de  
expressá-lo numa forma juridicamente idêntica a qualquer outra troca. Como a  
natureza socialmente específica da relação entre capital e trabalho não se revela nos  
limites da troca, mas no processo produtivo, para o qual o momento da troca é  
somente um pressuposto, o direito parece assumir o ponto de vista da circulação ao  
não reconhecer aquilo que, considerada a relação de troca, não se revela. Desse modo,  
as distintas naturezas das mercadorias trocadas, as diferentes funções que cada agente  
assume no processo de produção que tem a relação da troca como ponto de partida,  
a qualidade especial da mercadoria força de trabalho, em suma, que um trocador seja  
trabalhador e o outro capitalista, são, à consciência jurídica, fatos acessórios que não  
lhe impedem de expressar a relação em uma fórmula idêntica a qualquer outra troca.  
Há uma outra passagem do mesmo capítulo em que a relação do direito com a  
forma invertida do salário recebe do autor um tratamento mais detido. Marx primeiro  
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distingue o assalariamento de formas de trabalho correspondentes a outros modos de  
produção para destacar a diferença específica daquele. Segundo o autor (2017, p.  
610), na corveia a relação é mais transparente, porque o trabalho que o servo realiza  
para si mesmo e o trabalho que realiza a serviço do senhor se distinguem espacial e  
temporariamente. Já na escravidão, o escravizado é em si mesmo propriedade de  
outrem, pelo que todo seu trabalho, mesmo aquele que serve para sua precária  
reprodução, aparece-lhe como trabalho realizado para um terceiro. No assalariamento,  
por sua vez, a forma do salário apresenta todo o trabalho como trabalho pago,  
produzindo a aparência mistificadora de que o trabalhador trabalha apenas para si  
mesmo, apagando o tempo de mais-trabalho: “No trabalho assalariado, ao contrário,  
mesmo o mais-trabalho ou trabalho não pago aparece como trabalho pago. No  
primeiro caso, a relação de propriedade oculta o trabalho do escravo para si mesmo;  
no segundo, a relação monetária oculta o trabalho gratuito do assalariado” (MARX,  
2017, p. 610). A forma do salário e a relação monetária ocultam o trabalho gratuito  
pois aquele apresenta toda a jornada de trabalho como jornada remunerada, e aquela,  
que é a figura transformada do produto do trabalho, apaga na sua forma que o que  
reflui para o trabalhador não é mais do que uma fração do seu produto de trabalho  
total17.  
A expressão do salário, pois, liga-se a uma diferença específica do  
assalariamento em relação a outras formas de trabalho. Se na corveia e na escravidão  
a aparência de dominação é imediata, no assalariamento a expressão preço do trabalho  
e a mediação do dinheiro como meio de pagamento ocultam todo o trabalho realizado  
gratuitamente que serve à valorização do valor, conformando uma aparência de  
independência e liberdade do trabalhador por baixo da qual está oculta a sua  
dominação pelo capital. Após apresentar o assalariamento como uma forma mais  
mistificadora de extração de mais-trabalho, que apresenta a exploração como  
liberdade e o trabalho gratuito como trabalho pago, arremata o autor:  
17  
“O que reflui continuamente para o trabalhador na forma-salário [Form des Arbeitslohns] uma parte  
do produto continuamente reproduzido por ele mesmo. Sem dúvida, o capitalista lhe paga em dinheiro  
o valor das mercadorias, mas o dinheiro não é mais do que a forma transformada do produto do  
trabalho. [...] É com seu trabalho da semana anterior ou do último semestre que será pago seu trabalho  
de hoje ou do próximo semestre [...] A ilusão gerada pela forma-dinheiro desaparece de imediato assim  
que consideramos não o capitalista e o trabalhador individuais, mas a classe capitalista e a classe  
trabalhadora. A classe capitalista entrega constantemente à classe trabalhadora, sob a forma-dinheiro,  
títulos sobre parte do produto produzido por esta última e apropriado pela primeira. De modo  
igualmente constante, o trabalhador devolve esses títulos à classe capitalista e, assim, dela obtém a  
parte de seu próprio produto que cabe a ele próprio. A forma-mercadoria do produto e a forma-dinheiro  
da mercadoria disfarçam a transação” (MARX, 2017a, pp. 642-643).  
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Compreende-se, assim, a importância decisiva da transformação do  
valor e do preço da força de trabalho em valor e preço do próprio  
trabalho. Sobre essa forma de manifestação [Erscheinungsform], que  
torna invisível a relação efetiva e mostra precisamente o oposto dessa  
relação, repousam todas as noções jurídicas [Rechtsvorstellungen],  
tanto do trabalhador como do capitalista, todas as mistificações do  
modo de produção capitalista, todas as ilusões de liberdade  
[Freiheitsillusionen], todas as tolices apologéticas da economia vulgar.  
(MARX, 2017a, p. 610).  
Nesta segunda passagem que relaciona diretamente a fora do salário ao direito,  
Marx uma vez mais destaca que o salário é uma forma de aparecimento  
[Erscheinungsform] invertida, uma expressão irracional em que o valor da força de  
trabalho se converte. Para o autor, essa forma antitética à figura medular do capital  
que oculta a relação essencial do modo de produção capitalista seria a pedra de toque  
para representações jurídicas [Rechtsvorstellungen], mistificações, ilusões de liberdade  
e tolices apologéticas. O direito, em sua relação com a forma do salário, aparece ao  
lado de elementos associados ao que há de mais simplório e apologético na apreensão  
do modo de produção capitalista: segundo Marx, a inversão operada na expressão  
preço do trabalho, que apresenta toda o trabalho realizado como trabalho pago, é  
uma forma de exploração de mais-trabalho que, na sua especificidade social, é mais  
sofisticada que a escravidão, menos transparente que a corveia e fornece ao mesmo  
tempo a base para as representações jurídicas e para mistificações, ilusões de  
liberdade e tolices apologéticas correspondentes ao modo de produção capitalista.  
Ante o exposto, tem-se que o capítulo 17 é um ponto de partida relevante para  
a pesquisa sobre a crítica de Marx ao direito. Ao tratar da transformação do valor da  
força de trabalho em valor ou preço do trabalho, Marx oferece pistas importantes para  
se compreender a posição que o direito ocupa em sua obra: por um lado, o direito  
parece coadunar-se com o ponto de vista da troca ao expressar no intercâmbio entre  
capital e trabalho uma diferença apenas material e no mesmo compasso aceitar a  
expressão irracional do salário; por outro, a inversão da forma do salário é tomada  
como base tanto para representações jurídicas quanto para concepções apologéticas  
do modo de produção capitalista.  
As determinações abstratas da troca como bases reais para o desenvolvimento  
das determinações jurídicas  
Diante disso, a pesquisa ocupou-se de explicar precisamente por que o direito  
recebe esse tratamento no salário. Em outras palavras, tomando as assertivas  
marxianas sobre a relação entre o direito e a forma do salário como ponto de partida,  
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ocupamo-nos de buscar em outras passagens de O Capital e em outros textos  
possíveis explicações para por que o direito se comporta precisamente assim diante  
da inversão do salário, com esperanças de jogar alguma luz sobre a crítica marxiana  
ao direito enquanto tal. Como se pretende demonstrar, a pesquisa revelou que a  
afinidade do direito com a expressão preço do trabalho e com as ilusões de liberdade  
e concepções apologéticas e mistificadoras do modo de produção capitalista remete  
na realidade a uma mesma questão: a conexão entre o direito e a relação de troca de  
mercadorias, em que esta se coloca, segundo Marx, como pressuposto para o  
desenvolvimento de determinações jurídicas.  
A relação entre o direito e o âmbito da circulação de mercadorias é bastante  
forte e se repete em outros momentos da crítica marxiana da economia política. Na  
introdução de 1857 do Grundrisse, o autor, ao tratar do desenvolvimento desigual  
entre as relações de produção e sua base produtiva, aponta na Roma antiga um  
desenvolvimento desigual entre sua produção e o direito privado:  
Mas o ponto verdadeiramente difícil de discutir aqui é o de como as  
relações de produção, como relações jurídicas, têm um  
desenvolvimento desigual. Em consequência disso, p. ex., a relação do  
direito privado romano (nem tanto o caso no direito penal e no direito  
público) com a produção moderna (MARX, 2011, p. 62).  
Haveria um desenvolvimento desigual entre o direito romano e a sua base  
efetiva na medida em que ele tem uma relação forte com a produção moderna,  
bastante distinta da produção romana. Uma pista para a explicação do referido  
desenvolvimento desigual parece ser oferecida mais adiante:  
Por isso, no direito romano o servus é corretamente determinado  
como aquele que não pode adquirir nada para si pela troca (ver  
Institut). Por essa razão, é igualmente claro que esse direito, embora  
corresponda a uma situação social na qual a troca não estava de modo  
algum desenvolvida, pôde, entretanto, na medida em que estava  
desenvolvido em determinado círculo, desenvolver as determinações  
da pessoa jurídica, precisamente as do indivíduo da troca, e antecipar,  
assim, o direito da sociedade industrial (em suas determinações  
fundamentais); mas, sobretudo, teve de se impor como o direito da  
sociedade burguesa nascente perante a Idade Média. Mas seu próprio  
desenvolvimento coincide completamente com a dissolução da  
comunidade romana (MARX, 2011, pp. 188-189).  
Ora, nessa passagem Marx, ao tratar do direito romano, afirma que, embora a  
troca ali não fosse plenamente desenvolvida, esta era suficientemente desenvolvida ao  
ponto de tornar possível aos romanos o desenvolvimento das determinações da  
pessoa jurídica. O desenvolvimento do direito privado romano, que é resgatado na  
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sociedade capitalista em oposição ao privilégio feudal, se dá segundo Marx justamente  
na esteira do desenvolvimento da troca de mercadorias certo desenvolvimento da  
troca é considerado como pressuposto para a elaboração de determinações jurídicas18.  
Nesse sentido, o servus diferenciar-se-ia da pessoa jurídica justamente pela sua  
incapacidade de adquirir bens pela troca. O que explicaria o desenvolvimento desigual  
das relações jurídicas em Roma em relação com sua base produtiva seria precisamente  
o desenvolvimento em um certo grau de relações de troca que permitem o  
desenvolvimento da pessoa jurídica como um dos momentos do sujeito da troca,  
determinações que seriam resgatadas e mais desenvolvidas pela nascente sociedade  
civil-burguesa.  
Claro está que em Marx há uma correlação entre o direito e a circulação de  
mercadorias; algum grau de desenvolvimento da troca é considerado a chave para o  
desenvolvimento de determinações jurídicas. Diante disso, ao exame da relação entre  
o direito e a forma do salário importa examinar as determinações da relação de troca.  
É dizer, se o desenvolvimento da troca é pressuposto para a elaboração de  
determinações jurídicas e o direito se coloca sobre as determinações da relação de  
troca, reconhecendo-as e as elaborando juridicamente, importa analisar precisamente  
o que essa relação exprime e como determinações do direito são engendradas a partir  
disso. Ainda no mesmo texto, Marx expõe em detalhe algumas determinações da  
relação de troca:  
De fato, como a mercadoria ou o trabalho estão determinados tão  
somente como valor de troca e a relação pela qual as diferentes  
mercadorias se relacionam entre si [se apresenta] como troca desses  
valores de troca, como sua equiparação, os indivíduos, os sujeitos,  
entre os quais esse processo transcorre, são determinados  
simplesmente como trocadores. Entre eles não existe absolutamente  
nenhuma diferença, considerada a determinação formal, e essa  
determinação é econômica, a determinação em que se encontram  
reciprocamente na relação de intercâmbio; o indicador de sua função  
social ou de sua relação social mútua. Cada um dos sujeitos é um  
trocador, i.e., cada um tem a mesma relação social com o outro que o  
outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por isso, a  
relação da igualdade. É impossível detectar qualquer diferença ou  
mesmo antagonismo entre eles, nem sequer uma dissimilaridade.  
Além disso, as mercadorias que trocam são, como valores de troca,  
equivalentes ou ao menos valem enquanto tais [...]. Os equivalentes  
são a objetivação de um sujeito para o outro; i.e., eles próprios são  
de mesmo valor e se confirmam no ato da troca como valendo igual  
18 Dessa maneira Marx parece admitir a existência de uma forma de direito pré-capitalista ainda que,  
por certo, ligado à dissolução da comunidade romana o que diferencia sua concepção da  
pachukaniana, cf. SARTORI, 2022.  
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e, ao mesmo tempo, como reciprocamente indiferentes. Na troca, os  
sujeitos são sujeitos uns para os outros exclusivamente pelos  
equivalentes, como sujeitos de igual valor, e se afirmam enquanto tais  
pela permuta da objetividade em que um é para o outro. Uma vez que  
só são assim, um para o outro, como sujeitos de igual valor, como  
possuidores de equivalentes e como sujeitos que atestam essa  
equivalência na troca, como sujeitos de igual valor são ao mesmo  
tempo indiferentes uns aos outros; suas outras diferenças individuais  
não lhes interessam; são indiferentes a todas as suas outras  
peculiaridades individuais (MARX, 2011, pp. 184-185).  
A forma do valor exige que na troca as mercadorias valham apenas como  
invólucros de valor: a relação realiza uma abstração de todas as qualidades materiais  
etc. das mercadorias ao colocá-las como permutáveis entre si enquanto invólucros da  
mesma quantidade de trabalho social abstrato. Ao mesmo tempo, a relação de troca  
determina os indivíduos tão-somente como trocadores, e eles valem apenas como  
guardiões dessas mercadorias de mesmo valor, como suportes dessa relação na  
medida em que precisam colocar as mercadorias em contato umas com as outras. Eles  
existem um para o outro apenas como possuidores, guardiões de mercadorias de igual  
valor.  
Se entre os produtos a troca realiza uma abstração de toda diferença e os  
relaciona apenas como valores, com os possuidores de mercadorias não pode ser  
distinto. Determinados objetivamente apenas como trocadores, nessa relação não há  
entre eles qualquer diferença, e um tem com o outro a mesma relação que este tem  
consigo na medida em que se apresentam como guardiões de mercadorias de mesmo  
valor. A troca, pois, estabelece objetivamente uma relação de igualdade que é fundada  
na forma-mercadoria; nessa relação as mercadorias se igualam como invólucros de  
valor de mesma grandeza e seus guardiões, ao relacionarem essas coisas entre si,  
também se conformam enquanto iguais possuidores. Conforma-se um sentido de  
igualdade bastante singular: a forma do valor, ao equiparar os produtos do trabalho  
humano exige que sua igualdade se expresse na forma da igualdade entre coisas e  
os seus guardiões só são iguais entre si na medida em que se apresentam como  
possuidores de mercadorias de igual valor. A relação monetária realiza os indivíduos  
como iguais mas apenas indiretamente: são iguais como sujeitos apenas por e na  
medida em que são os guardiões de coisas igualáveis enquanto invólucros de valor.  
Ainda nessa relação, à igualdade somam-se os momentos da liberdade e do  
direito:  
[A diversidade natural de necessidades e mercadorias dos indivíduos]  
constitui o motivo para a integração desses indivíduos, para a sua  
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relação social como trocadores, relação em que são pressupostos e  
se afirmam como iguais, à determinação da igualdade soma-se a da  
liberdade. Ainda que o indivíduo A sinta necessidade da mercadoria  
do indivíduo B, não se apodera dela pela força, nem vice-versa, mas  
reconhecem-se mutuamente como proprietários, como pessoas cuja  
vontade impregna suas mercadorias. Em decorrência, aqui entra de  
imediato o momento jurídico da pessoa e da liberdade, na medida em  
que está contida na primeira. Nenhum deles se apodera da  
propriedade do outro pela força. Cada um a cede voluntariamente.  
Mas isso não é tudo: o indivíduo A serve à necessidade do indivíduo  
B por meio da mercadoria a somente na medida em que, e porque, o  
indivíduo B serve à necessidade do indivíduo A por meio da  
mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao outro para servir a si  
mesmo; cada um se serve reciprocamente do outro como seu meio.  
(MARX, 2011, p. 187).  
As distintas necessidades que os impulsionam para a troca, o valor de uso de  
suas mercadorias etc. constituem apenas o pressuposto para seu contato social mas  
são indiferentes para a relação monetária enquanto tal e para a sua determinação  
enquanto trocadores. A liberdade se afirma na medida em que nenhum sujeito  
apropria-se da mercadoria alheia senão pela troca, mediante o acordo de vontades em  
que ambos reconhecem-se mutuamente como proprietários. Trata-se de um sentido  
de liberdade que objetivamente não quer dizer senão que o indivíduo somente se  
serve do que outro possui por meio de um acordo de vontades que pressupõe o mútuo  
reconhecimento da qualidade de proprietário de mercadorias. Ambos só se relacionam  
mutuamente como sujeitos livres na medida em que necessitam da mercadoria alheia  
uma vez mais trata-se de um sentido de liberdade que é objetivamente realizado  
pela troca e, nessa medida, só atinge o sujeito na mediação pelas formas da mercadoria  
e da relação de valor, e que não é mais que o corolário de seu egoísmo privado. É  
patente, pois, que se trata de momentos de igualdade e liberdade em cuja testa está  
escrito que correspondem a um modo de produção em que as coisas dominam as  
pessoas: liberdade e igualdade são antes determinações que decorrem da relação  
entre mercadorias enquanto valores, predicados que somente atingem os seres  
humanos indiretamente enquanto possuidores dessas mercadorias e que se colocam  
fundamentalmente como uma necessidade imanente à troca de mercadorias19.  
Daí decorreria, para Marx, o momento jurídico da pessoa e da liberdade, em  
que a liberdade em verdade está contida na primeira, isto é, no momento jurídico da  
pessoa. Outra vez, portanto, o autor traz o direito como corolário da relação de troca.  
19 Inclusive, vale mencionar que na sequência do desenvolvimento dessas passagens Marx traz o sujeito  
de maneira ainda mais abstrata, como mera individuação do Dinheiro, que realiza objetivamente a  
liberdade enquanto forma universal da mercadoria (SARTORI, 2022, pp. 103-108).  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
Os momentos jurídicos são engendrados a partir da relação de troca reconhecem  
situações dadas por relações econômicas e, em relação às determinações de liberdade  
e igualdade realizadas por estas, não são mais do que a mesma base elevada a outra  
potência20.  
Longe de ser o central na análise marxiana, o direito atua tão somente  
reconhecendo determinações que são dadas pela relação de troca, chancelando  
inclusive sentidos de igualdade e liberdade que, longe de qualquer pretensão  
grandiloquente, significam relações objetivamente dadas pela forma-mercadoria e sua  
respectiva relação de valor. Na medida em que se afasta da esfera da produção onde  
o capital existe como capital mediante a exploração da força de trabalho e opera seu  
reconhecimento a partir da circulação, o direito realiza uma apreensão do modo de  
produção capitalista a partir daquilo que se revela em sua superficialidade. Ele  
referenda a irracionalidade da expressão preço do trabalho justamente na medida em  
que, à relação de troca e à determinação dos indivíduos como trocadores, as distintas  
necessidades dos trocadores, a natureza particular de suas mercadorias e as distintas  
funções sociais que exercem no processo produtivo são irrelevantes. Quanto à  
categoria salário, essa correlação explicaria por que a consciência jurídica vislumbra  
no intercâmbio entre capital e trabalho uma diferença apenas material que não afeta a  
respectiva fórmula jurídica implicando em uma aceitação da expressão irracional  
preço do trabalho.  
A referida relação entre desenvolvimento do direito e troca de mercadorias  
também se faz presente no próprio Capital, em que Marx, ao tratar novamente da troca  
das mercadorias, estabelece o mútuo reconhecimento dos indivíduos colocados na  
troca como proprietários como pressuposto para o desenvolvimento do acordo de  
vontades na forma do contrato.  
Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias,  
seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como  
pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que  
um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria  
mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por  
meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de  
se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação  
jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou  
não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O  
20  
“Igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores  
de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade. Como  
ideias puras, são simples expressões idealizadas dessa base; quando desenvolvidas em relações  
jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base em uma outra potência” (MARX, 2011, p. 188).  
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conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação  
econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas  
como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como  
possuidoras de mercadorias. (MARX, 2017a, pp. 159-160)  
Aqui, como na passagem dos Grundrisse, Marx pontua a necessidade de  
apropriar-se da coisa alheia apenas por meio da troca como o fundamento a partir do  
qual se coloca o elemento jurídico. Outra vez mais o mútuo reconhecimento da  
qualidade de proprietário de mercadoria aparece como fundamento de uma liberdade  
objetivamente realizada na troca a partir da qual desenvolvem-se determinações  
jurídicas, como o contrato. Além disso, é assinalado de modo explícito que a relação  
jurídica travada entre os indivíduos não faz mais que refletir a relação econômica, que  
lhe dá não apenas o conteúdo como lhe é pressuposto.  
Em outra passagem de O Capital, a relação entre o direito e a esfera da  
circulação é ainda mais explícita. Na medida em que ela se conforma como o âmbito  
em que livres trocadores trocam equivalentes, na circulação predominam a liberdade  
e a igualdade, o reino dos direitos inatos do homem e de Bentham. Nela, trabalhador  
e capitalista defrontam-se como juridicamente iguais, atuando como comprador e  
vendedor de força de trabalho, respectivamente.  
A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se  
move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um  
verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem [angebornen  
Menschenrechte]. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade,  
da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e  
vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho,  
são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como  
pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos [als freie, rechtlich  
ebenbürtige Personen]. O contrato é o resultado, em que suas  
vontades recebem uma expressão legal [Rechtausdruck] comum a  
ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro  
apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por  
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu.  
Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força  
que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria,  
de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. (MARX, 2017a,  
pp. 250-51).  
A circulação, portanto, traz o elemento jurídico ao realizar em seus limites os  
direitos inatos do homem. O direito conforma-se desenvolvendo um papel importante  
na circulação onde, tomando os livres trocadores e o egoísmo das vontades como  
pressupostos, opera um reconhecimento dessa liberdade e das relações que se  
estabelecem na troca. Trata-se do reconhecimento jurídico, do contrato como  
expressão jurídica das vontades dos indivíduos egoístas colocados como trocadores  
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no campo da circulação que, na realidade, sequer é o central para a produção do mais-  
valor. Os indivíduos reconhecem-se como proprietários de iguais direitos sobre as suas  
mercadorias, das quais só podem apropriar-se mediante a troca. Longe dos elevados  
ares que contemporaneamente lhes são atribuídos, Marx traz os direitos do homem  
[Menschenrechte] com um papel bem mais singelo e mesmo mesquinho em que há  
apenas a expressão jurídica daquilo que antes de existir juridicamente já se colocava  
como fato, o reconhecimento jurídico do indivíduo atomizado, do egoísmo privado que  
rege a esfera da circulação.  
O cotejo dessas passagens com os trechos do Grundrisse acima expostos revela  
uma importante linha de continuidade na crítica marxiana da economia política: a  
despeito dos distintos modos de exposição e do nível de amadurecimento do  
pensamento do autor em cada obra, num e noutro caso Karl Marx afirma que o  
momento jurídico na forma da liberdade, da pessoa jurídica, dos direitos do homem  
etc. se liga de modo bastante forte à circulação, à relação de troca, e somente se  
afirma quando a troca se encontra suficientemente desenvolvida. Em ambos os textos  
o desenvolvimento do direito é colocado sobre uma base histórica efetiva: as  
determinações jurídicas somente se afirmam onde a troca está suficientemente  
desenvolvida, afirmam-se a partir da troca, operando um reconhecimento, uma  
elaboração de determinações que se revelam na relação de troca. Em todo caso, é  
evidente que para o autor o direito é algo longe do essencial, e em verdade apenas  
exprime juridicamente relações econômicas e chancela sentidos de igualdade e  
liberdade que se realizam no sistema monetário, pressupondo o egoísmo privado e  
afirmando-se apenas por meio de qualidades que residem nas coisas e em que os  
homens só valem enquanto possuidores, guardiões dessas coisas.  
Observe-se como, embora de fato exista na crítica marxiana uma relação muito  
próxima entre a isonomia dos iguais proprietários de mercadorias e a igualdade  
jurídica, não é possível aceitar a tese pachukaniana segundo a qual o sentido de  
pessoa na passagem em análise corresponde à figura do sujeito de direito21. O central  
nessas passagens, acreditamos, é nem tanto o desenvolvimento marxiano do sujeito  
de direito categoria da Teoria Geral do Direito e em verdade estranha à malha  
categorial da exposição de Marx mas a relação entre as determinações da pessoa  
jurídica, em que esta é um dos muitos momentos da pessoa, que figura como uma  
21  
Cf. PACHUKANIS, 2017. Para uma crítica à leitura pachukaniana da noção de pessoa em Marx, ver  
SARTORI, 2019b.  
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possuidora de coisas, e a troca de mercadorias (cf. SARTORI, 2020; 2022).  
É patente que muito do que há de mais valioso no texto marxiano estaria  
perdido com uma análise que se contentasse em assinalar a proximidade existente  
entre o sujeito de direito e a forma-mercadoria. O mais relevante nesse ponto parece  
ser a exposição da troca de mercadorias como uma base efetiva de uma igualdade e  
de uma liberdade que se instauram mediante coisas o que remete à constatação de  
que as formas do modo de produção capitalista expressam uma realidade em que as  
coisas dominam os homens22. Afinal, estes só são iguais na medida em que se  
relacionam como possuidores de mercadorias de mesmo valor; são livres as pessoas  
na medida em que somente se apossam da coisa alheia num ato de vontade levado a  
cabo na troca. Nesse contexto, longe de uma aproximação entre Marx e categorias da  
Teoria Geral do Direito mesmo o direito enquanto tal aparece de modo bastante  
singelo vez que apenas reflete ao seu modo um conteúdo econômico o essencial é  
e não poderia deixar de ser uma crítica arguta às categorias da sociedade civil-  
burguesa a partir da crítica de sua anatomia, a economia política.  
A relação do valor coloca determina os indivíduos tão somente como  
portadores de mercadorias de igual valor, estabelecendo uma igualdade objetiva  
diante da qual os trocadores reconhecem-se mutuamente enquanto proprietários que  
não podem apropriar-se da mercadoria alheia senão por um acordo de vontades,  
donde decorre sua relação jurídica. Assim, ao determinar os indivíduos simplesmente  
como trocadores, a troca parece dar as condições para o reconhecimento recíproco  
destes como iguais proprietários; há a realização e o reconhecimento de uma  
igualdade que se dá por intermédio das mercadorias e se realiza com o sistema  
monetário. Nela, abstrai-se de toda qualidade concreta das mercadorias: estas estão  
postas tão somente como invólucros de trabalho humano abstrato de mesma  
dimensão, e a natureza particular de cada mercadoria, a necessidade particular que  
levou cada indivíduo à troca estão abstraídas. Do ponto de vista da relação de troca,  
portanto, que um trocador seja trabalhador e outro capitalista, que um leve sua própria  
22 “É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor e a grandeza de  
valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais se colocou a seguinte questão:  
por que esse conteúdo assume aquela forma, e, portanto, por que o trabalho se representa no valor e  
a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho?  
Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo  
de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua  
consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo”  
(MARX, 2017a, pp. 155-156).  
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corporeidade à troca e o outro um equivalente monetário, é indiferente.  
Uma vez que se afirma a partir da relação de troca e da determinação dos  
indivíduos como trocadores, o momento jurídico não faz que elaborar as  
determinações da troca de mercadorias, sendo indiferente ao que é essencial nessa  
relação. Nos limites da relação de troca, como se viu, não é absurdo falar em valor ou  
preço do trabalho porque toda relação de valor exprime o valor na equiparação com  
um valor de uso qualquer. A irracionalidade da expressão preço do trabalho, afinal, só  
se revela de modo mais flagrante na produção, onde se dá a exploração da força de  
trabalho e onde é possível observar que um trabalho que “vale” X produz 2X. Como é  
característico do ponto de vista da troca de mercadorias, o direito é indiferente à  
natureza particular da mercadoria força de trabalho e ao seu papel específico na  
reprodução do capital, que somente se realiza no processo de produção. Logo, ao  
direito a expressão preço do trabalho não é mais irracional do que o preço das maçãs.  
Em conclusão, é por essa razão que a consciência que se coloca a partir do direito,  
como corolário da troca de mercadorias, é capaz de exprimir a compra e a venda da  
força de trabalho numa fórmula juridicamente equivalente à troca de quaisquer outras  
mercadorias, como a maçã e a pêra.  
A circulação como demiurgo do direito e das ilusões de liberdade capitalistas  
Ao mesmo tempo, a noção de que para Marx o direito se coloca a partir da  
troca é chave importante para se compreender por que, sobre a base do salário, o  
direito aparece lado a lado com as apreensões mais apologéticas e mistificadoras do  
modo de produção capitalista. Para Marx, afinal, refugiar-se nas determinações  
abstratas de liberdade e igualdade da troca determinações estas a partir da qual se  
colocam as determinações jurídicas são um lugar-comum dos apologistas da  
sociedade do capital:  
Por outro lado, na determinação da relação monetária, tal como  
desenvolvida até aqui em sua pureza e sem referência a relações de  
produção mais desenvolvidas, está implícito que todas as antíteses  
imanentes da sociedade burguesa parecem apagadas nas relações  
monetárias concebidas de modo simples, e, sob esse aspecto, refugia-  
se sempre no dinheiro para fazer a apologia das relações econômicas  
existentes, pela democracia burguesa mais ainda do que pelos  
economistas burgueses [...] (MARX, 2011, p. 184).  
A relação monetária determina os indivíduos tão-somente como trocadores.  
Nessa relação estão apagadas todas as suas diferenças naturais na medida em que se  
afirmam um para o outros como possuidores de mercadorias de igual valor. Refugiar-  
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se na liberdade e na igualdade que o sistema monetário realiza e tomar a relação de  
troca como régua para avaliar a sociedade civil-burguesa é um lugar-comum  
apologético porque significa julgar a sociedade do capital pelos seus momentos mais  
abstratos perdendo de vista o essencial: a valorização do valor no processo de  
produção. Em outro exemplo que sugere uma continuidade de pensamento entre o  
Grundrisse e O Capital, Marx em nota de rodapé repisa que um procedimento comum  
entre apologistas do modo de produção capitalista é avaliar a sociedade civil-burguesa  
a partir de seus momentos mais abstratos na relação de troca:  
Dois pontos são aqui característicos do método da apologética  
econômica. Em primeiro lugar, a identificação da circulação de  
mercadorias com a troca imediata de produtos mediante a simples  
abstração de suas diferenças. Em segundo lugar, a tentativa de negar  
as contradições do processo capitalista de produção dissolvendo as  
relações de seus agentes de produção nas relações simples que  
surgem da circulação de mercadorias. A produção e a circulação de  
mercadorias são, porém, fenômenos que pertencem aos mais distintos  
modos de produção, por mais variados sejam em sua dimensão e  
alcance. Portanto, ainda não se sabe nada da differentia specifica  
[diferença específica] desses modos de produção e, por conseguinte,  
não é possível julgá-los enquanto se conhecem apenas suas  
categorias abstratas, comuns a todos os modos de produção. Em  
nenhuma ciência além da economia política impera tal pedantaria  
acompanhada de lugares-comuns tão elementares. Por exemplo, J. B.  
Say julga-se no direito de dar um veredito sobre as crises porque ele  
sabe que a mercadoria é um produto (MARX, 2017a, pp. 187-188).  
Em ambas as passagens é dito que a relação de troca em sua pureza é algo  
que diz respeito a diversos modos de produção o desenvolvimento da troca, afinal,  
é um pressuposto para o desenvolvimento de determinações jurídicas na Roma antiga,  
muitos séculos antes do amadurecimento do modo de produção capitalista e que  
existe no capitalismo apenas como um de seus momentos mais abstratos. Nessa  
relação, conforme exposto, os indivíduos aparecem simplesmente como trocadores,  
proprietários de mercadoria. É a partir disso que se colocam os momentos jurídicos  
da pessoa e da liberdade.  
O autor é claro ao pontuar que, embora esse momento seja real e só tenha se  
desenvolvido plenamente no modo de produção capitalista, tomá-lo em sua pureza e  
abstração como ponto de partida para um julgamento da sociedade civil-burguesa é  
um lugar-comum da apologética, vez que nele está apagada a diferença específica do  
modo de produção capitalista, assim como todas as suas contradições. Afinal, é muito  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
diferente a troca do excedente de produção no modo de produção asiático23 para a  
produção voltada para a troca de uma fazenda capitalista, muito diferente ainda  
quando a troca se coloca como ponto de partida para a cessão da capacidade de  
trabalho, o que pressupõe o assalariamento etc. Por essa razão, o ponto de vista que  
toma as determinações abstratas da troca e a liberdade e a igualdade que se realizam  
ali como parâmetro para investigação da sociedade civil-burguesa será sempre  
apologético e mistificador, pois abdica de encarar as contradições essenciais a esse  
modo de produção, como a contradição entre capital e trabalho no processo de  
produção, em favor dos sentidos abstratos de igualdade e liberdade que se realizam  
na troca. No entanto, para o economista vulgar, cujo procedimento é marcado pela  
apologia do existente, as determinações abstratas de troca e a expressão irracional  
que apresenta o todo trabalho como trabalho pago representam “uma base segura de  
operações para sua superficialidade, fundada no princípio do culto das aparências”  
(MARX, 2017a, p. 609).24  
Uma vez que se desenvolve a partir da relação de troca, o direito parece operar  
um reconhecimento, isto é, uma elaboração a seu próprio modo, das determinações  
que se colocam na troca. Da mesma forma que o economista vulgar toma as  
determinações abstratas de relação de troca como ponto de partida, sendo-lhe  
indiferente se fala-se de um intercâmbio entre capitalista e trabalhador ou da venda  
do excedente da produção de um romano livre, o direito é indiferente à natureza  
concreta das mercadorias trocadas, pelo que interpreta a diferença como uma mera  
diferença material que não obsta a elaboração de uma fórmula jurídica idêntica.  
Dessa maneira, o direito, que tem como base efetiva o desenvolvimento da  
23  
“Nos modos de produção asiáticos, antigos etc. a transformação do produto em mercadoria e, com  
isso, a existência dos homens como produtores de mercadorias, desempenha um papel subordinado,  
que, no entanto, torna-se progressivamente mais significativo à medida que as comunidades avançam  
em seu processo de declínio” (MARX, 2017a, p. 154).  
24 Uma exposição detalhada da relação da economia vulgar com o salário foge aos limites deste artigo.  
Cabe registrar, no entanto, que a afirmação de que a forma do salário fornece as bases para a operação  
da economia vulgar passa longe de ser simplesmente retórica. Para o autor de O Capital, a inversão  
operada pela expressão preço do trabalho é mesmo a pedra de toque para o desenvolvimento da  
famigerada fórmula trinitária da economia vulgar: “Uma vez que aqui o salário aparenta ser o produto  
específico do trabalho, o único produto do trabalho (e o salário é realmente o único produto do trabalho  
para o trabalhador assalariado), as outras frações do valor - renda da terra e lucro (juros) - parecem fluir  
tão necessariamente de outras fontes específicas. Assim como aquela fração do valor do produto que  
se reduz em salário [é concebida] como o produto específico do trabalho, as outras frações do valor  
que são compostas de renda da terra e lucro devem ser consideradas como o resultado específico de  
agências para as quais elas existem e às quais elas se acumulam, ou seja, como renda da terra e capital,  
respectivamente” (MARX, 1989a, pp. 530-531; Tradução nossa).  
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troca e que toma as determinações desta como pressupostos para o desenvolvimento  
das suas próprias, guarda uma proximidade evidente justamente com o que há de mais  
apologético no modo de produção capitalista. As determinações abstratas da troca,  
afinal, são ao mesmo tempo a base para o desenvolvimento do direito e o refúgio  
preferido da apologia do modo de produção capitalista justamente em razão de sua  
abstração, onde as contradições capitalistas estão apagadas. Por isso o  
comportamento análogo do direito diante da expressão irracional preço do trabalho,  
que oculta a exploração da força de trabalho, aceita tanto pelo economista vulgar  
apologista quanto pela consciência jurídica revela uma proximidade entre a posição  
do direito e dos elementos mais apologéticos do capitalismo.  
Tomando as determinações abstratas da troca como parâmetro para suas  
próprias operações, o direito também conforma uma ilusão de liberdade em sua  
atuação no intercâmbio entre capital e trabalho na circulação. No mercado de trabalho  
na esfera da circulação, portanto, onde sua subordinação ao capital não aparece  
imediatamente e onde o salário se apresenta como preço do trabalho o trabalhador  
assalariado se apresenta real e efetivamente como um proprietário, um vendedor de  
sua mercadoria “trabalho”. No intercâmbio entre capital e trabalho na circulação, as  
determinações de liberdade e igualdade da relação de troca que não são mais do  
que corolários do egoísmo privado e resultados das necessidades imanentes da  
circulação de mercadorias outra vez são o ponto de partida para o desenvolvimento  
de determinações jurídicas, na figura dos direitos inatos do homem [angebornen  
Menschenrechte] e do contrato de trabalho como resultado das vontades de pessoas  
livres, dotadas dos mesmos direitos [freie, rechtlich ebenbürtige Personen] (MARX,  
2017a, pp. 250-251).  
Mais uma vez, portanto, o direito aparece como caudatário da circulação de  
mercadorias que reconhece as determinações da troca e as elabora. Não surpreende,  
pois, que o direito em sua relação com o salário apareça como mais uma forma de  
consciência apologética ou mistificadora: ao tomar os momentos da igualdade e  
liberdade da circulação como pontos de partida, a consciência que se coloca ao direito  
é cega para o que é essencial ao modo de produção capitalista, a relação capital que,  
conquanto pressuposta na circulação, somente se revela no processo de exploração  
da força de trabalho no campo da produção.  
Ao mesmo tempo, porém, a apreensão unilateral que o direito faz desses  
momentos abstratos de liberdade e igualdade da troca e que, em sua relação com a  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
forma invertida do salário, o aproxima da apologética da sociedade civil-burguesa, não  
é de modo algum acidental. Por um lado, como se viu, a aproximação do direito com  
a circulação em Marx é algo que diz respeito à própria gênese do direito enquanto  
relação social afinal, o desenvolvimento da troca em Roma é considerado pelo autor  
a condição real para o desenvolvimento do direito privado romano que seria resgatado  
pela nascente sociedade civil-burguesa. Por outro, a mediação do direito é um  
elemento importante à própria reprodução da relação-capital e do assalariamento na  
medida em que o reconhecimento do trabalhador como um sujeito que não renuncia  
à titularidade dos direitos sobre si mesmo definitivamente, mas apenas  
transitoriamente no processo de produção é uma condição que o distingue enquanto  
assalariado da situação do escravo ou do servo25.  
O que se tem é uma atuação do direito conformando uma ilusão de liberdade  
que diz respeito à própria valorização do valor, produzida pelas relações sociais  
especificamente capitalistas. A subordinação do trabalhador ao capital não se mostra  
na circulação, o demiurgo do direito, mas somente no processo produtivo. Nesse  
sentido, segundo Marx, a amarras que prendem o trabalhador ao capital são fios  
invisíveis:  
O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o  
assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência  
é mantida pela mudança constante dos patrões e pela fictio iuris do  
contrato. (MARX, 2017a, p. 648).  
A subordinação do trabalho ao capital, ao contrário do que ocorre na  
escravidão, não se apresenta tão imediata e transparentemente. À primeira vista, há  
uma relação de igualdade travada nas trocas que somente se supera quando se  
considera não a relação isolada do trabalhador com o capitalista enquanto meros  
possuidores, mas a relação entre trabalhadores e capitalistas enquanto classe. Nesse  
sentido, a ficção jurídica do contrato, segundo a qual trabalhador e capitalista são  
sujeitos substancialmente livres e independentes, e somente em razão do contrato  
surge uma obrigação voluntariamente assumida do trabalhador de ceder sua  
capacidade do trabalho, chancela a aparência de liberdade própria da circulação de  
mercadorias. O trabalhador, afinal, jamais renuncia aos seus direitos de propriedade  
25  
“A continuidade dessa relação requer que o proprietário da força de trabalho a venda apenas por  
um determinado período, pois, se ele a vende inteiramente, de uma vez por todas, vende a si mesmo,  
transforma-se de um homem livre num escravo, de um possuidor de mercadoria numa mercadoria”  
(MARX, 2017a, p. 242).  
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João Lucas Sales Prates  
sobre sua capacidade de trabalho definitivamente fato que torná-lo-ia um escravo –  
, mas apenas transitória e livremente. Sob essa aparência esconde-se a relação do  
trabalhador com o capital enquanto tal, a completa ausência de meios de objetivar o  
próprio trabalho, a participação sempre mediata e estranhada nos produtos do próprio  
trabalho na forma dos salários etc. Tudo isso, no entanto, não diz respeito à esfera da  
circulação e, por consequência, considerada a relação jurídica, é algo fora desta.  
Afinal, a compra e venda da força de trabalho é um momento fundamental à  
própria existência do capital como tal e da valorização do valor enquanto algo que  
passa pela circulação mas ao mesmo tempo não reside propriamente nesta. É  
necessário à reprodução do trabalho enquanto trabalho assalariado e ao capital  
enquanto capital que o trabalhador se relacione com sua força de trabalho enquanto  
um possuidor juridicamente igual e livre cuja mercadoria não lhe pode ser alienada  
senão mediante um acordo de vontades na forma do contrato:  
Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor  
dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho,  
de sua pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram no  
mercado e estabelecem uma relação mútua como iguais possuidores  
de mercadorias, com a única diferença de que um é comprador e o  
outro, vendedor, sendo ambos, portanto, pessoas juridicamente  
iguais. [...] Como pessoa, ele tem constantemente de se relacionar com  
sua força de trabalho como sua propriedade e, assim, como sua  
própria mercadoria, e isso ele só pode fazer na medida em que a  
coloca à disposição do comprador apenas transitoriamente,  
oferecendo-a ao consumo por um período determinado, portanto, sem  
renunciar, no momento em que vende sua força de trabalho, a seus  
direitos de propriedade sobre ela. (MARX, 2017a, pp. 242-243).  
Na circulação, o trabalhador relaciona-se com sua capacidade de trabalho como  
um proprietário. Diante do capitalista, estabelece uma relação de iguais possuidores  
de mercadorias um, possuidor de dinheiro; o outro, da mercadoria força de trabalho  
, pessoas juridicamente iguais. Ao mesmo tempo, coloca-se como uma necessidade  
imanente à compra e venda da força de trabalho que o trabalhador se relacione com  
sua capacidade de trabalho como pessoa que a tenha como sua propriedade colocada  
à disposição apenas transitoriamente, sem jamais renunciar “a seus direitos de  
propriedade sobre ela”. A correlação entre a necessidade de o trabalhador, diante do  
capitalista, relacionar-se como pessoa com sua própria capacidade de trabalho e a  
apreensão jurídica dessa relação também é tratada por Marx nos Grundrisse:  
As duas partes se defrontam como pessoas. Formalmente, sua relação  
é a relação igual e livre de trocadores. Que essa forma seja aparência,  
e aparência enganosa, apresenta-se, considerada a relação jurídica,  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
como algo situado fora desta. [...] O trabalhador vende a manifestação  
de força particular a um capitalista particular, com quem se defronta  
como indivíduo independente. É claro que essa não é a sua relação  
com a existência do capital como capital, i.e., com a classe dos  
capitalistas. Em sua própria totalidade, a capacidade de trabalho  
aparece diante do trabalhador livre como sua propriedade, como um  
dos momentos sobre o qual ele exerce o domínio como sujeito e que  
ele conserva ao alienar (MARX, 2011, pp. 617-618).  
O que se tem é uma relação que simultaneamente conforma trabalhador e  
capitalista como livres possuidores e, nessa mesma medida, pessoas juridicamente  
iguais. Pelo prisma jurídico, que se coaduna com as determinações de troca, o  
trabalhador se apresenta como livre e igual diante do comprador de sua força de  
trabalho. Ao mesmo tempo, a expressão do salário conforma uma mistificação  
especificamente capitalista ao apresentar toda a jornada de trabalho como trabalho  
pago, velando a exploração da força de trabalho.  
Trata-se, é claro, de uma ilusão de liberdade porquanto não representa sua  
relação perante a existência do capital como capital, que só se revela no processo de  
exploração da força de trabalho. A relação jurídica, como corolário da relação de  
igualdade que os indivíduos estabelecem entre si enquanto iguais possuidores de  
mercadorias de mesmo valor, não considera a articulação da produção ao mesmo  
tempo que a pressupõe. Que um trocador seja trabalhador que, desprovido de meios  
de produção, só é capaz de alienar-se sua própria corporeidade e outro seja capitalista,  
ansioso por usufruir de capacidade de trabalho no processo produtivo é, considerada  
a relação jurídica, algo estranho a ela justamente porque tratam-se de determinações  
que escapam aos domínios da relação de troca. A consciência jurídica, afinal, limita-se  
a reconhecer o que se revela na circulação, sendo-lhe indiferente todo o resto.  
Ao passar da circulação rumo à produção, onde se produz o acréscimo de valor  
às custas do mais-trabalho e diante da qual o olhar jurídico se retrai, a coisa muda de  
figura:  
Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de  
mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções,  
conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do  
trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação,  
ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae  
[personagens teatrais]. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta  
agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu  
trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido  
por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe  
sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar  
além da... esfola (MARX, 2017a, p. 251).  
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Longe do Éden que se coloca na circulação, os livres trocadores contemplados  
pelo direito como iguais possuidores de mercadorias são substituídos pelas figuras  
concretas de trabalhador e capitalista. Note-se que, uma vez mais, a esfera da troca  
de mercadorias, ao mesmo tempo em que dita os limites da concepção jurídica, é  
apontada como referência da economia vulgar para julgar a sociedade do capital, o  
que reforça a aproximação entre direito e apologética observada na questão do salário.  
Diante do campo da produção, o livre-cambista vulgar e o elemento jurídico se retraem  
precisamente onde se passa o movimento essencial à produção de mais valor mediante  
o consumo da força de trabalho. Os possuidores de mercadorias da circulação recebem  
máscaras dramáticas menos pomposas; sua igualdade de proprietários esvai-se  
conforme a natureza específica da mercadoria que cada um levou à troca determina  
suas respectivas funções na produção. Aquele que levou ao mercado dinheiro tendo  
em vista fazer mais dinheiro atua como capitalista, isto é, capital personificado26; o  
segundo, que vendeu sua própria capacidade de trabalho, subitamente encontra-se no  
papel de trabalhador. No entanto, para usar a dicção dos Grundrisse, essa diferença é,  
considerada a relação jurídica, algo que se coloca fora desse. Coloca-se fora da relação  
jurídica justamente na medida em que é algo que remete para além das determinações  
simples da relação de troca.  
Outra vez, a relação entre o direito e o âmbito da circulação prova-se uma chave  
importante para interpretar-se a afirmação marxiana segundo a qual a inversão  
presente na categoria salário oferece as bases para as representações jurídicas de  
trabalhador e capitalista ao mesmo tempo que as oferece para ilusões de liberdade e  
concepções apologéticas. Conquanto ilusórios, porque apreendidos unilateralmente e  
tomados em sua abstração e pureza como parâmetro para julgar a sociedade do capital  
pela apologética, os momentos de liberdade e igualdade do intercâmbio entre trabalho  
e capital na circulação, elaborados juridicamente, são ao mesmo tempo algo que diz  
respeito à própria gênese do direito e uma necessidade imanente à reprodução da  
relação capital.  
A expressão irracional do preço do trabalho e sua aparência que oculta a  
exploração do mais-valor não são simplesmente trapaças capitalistas: encontram  
26  
“Como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua  
pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro. O conteúdo objetivo  
daquela circulação a valorização do valor é sua finalidade subjetiva, e é somente enquanto a  
apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo de suas operações que ele funciona como  
capitalista ou capital personificado, dotado de vontade e consciência (MARX, 2017a, p. 229).  
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lastro, inclusive, na atuação dos possuidores de mercadorias que se coloca como  
necessária à compra e venda da força de trabalho, e no reconhecimento jurídico disso  
na igualdade jurídica. Na esfera da circulação e da concorrência, o trabalhador se  
relaciona com sua força de trabalho como uma mercadoria. Ele atua, em razão das  
próprias leis imanentes da troca de mercadorias, que se desenvolvem livremente no  
modo de produção capitalista, como um proprietário. Não tem lugar aqui simplesmente  
uma ilusão mesquinha do trabalhador; trata-se de algo que se coloca efetivamente na  
sociedade civil-burguesa.  
É nesse sentido que a forma invertida do salário oferece as bases para as  
representações jurídicas, que aparecem ao lado das ilusões de liberdade, mistificações  
e tolices apologéticas da economia vulgar. Uma vez que a relação de troca se afirma  
como ponto de partida para o desenvolvimento das determinações jurídicas, as formas  
de consciência que se erguem a partir do direito tomam como pressuposto os  
momentos de liberdade e igualdade da troca. Trata-se de uma liberdade e uma  
igualdade que, conquanto não sejam propriamente falsas, correspondem aos  
momentos mais abstratos da circulação no modo de produção capitalista, onde a figura  
medular do capital com a exploração do mais-valor está oculta. Diante da forma do  
salário, portanto, o direito aparece ao lado das apreensões mais apologéticas da  
sociedade do capital precisamente porque um dos topos prediletos da apologética  
burguesa é julgar essa formação social a partir dos momentos mais abstratos da troca,  
em que as contradições do modo de produção capitalistas estão apagadas em favor  
da liberdade e da igualdade.  
Desse modo, há uma relação bastante forte entre o direito, a forma do salário,  
e o assalariamento. A consciência jurídica, ao passo que se conforma à esfera da  
circulação, é afim à expressão irracional preço do trabalho pois a mistificação operada  
por esta só se revela na produção, longe dos olhos jurídicos. Ao mesmo tempo, o  
direito, na figura do contrato e do direito de propriedade do trabalhador, é importante  
à reprodução do trabalho enquanto trabalho assalariado pois realiza uma mediação  
em que a venda da força de trabalho se dá sempre de forma transitória. Dessa maneira,  
ao mesmo tempo em que reconhece a mistificação da forma do salário, liga-se à  
própria reprodução da relação capital e da valorização do valor ao mediar a compra e  
venda da força de trabalho.  
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Conclusão  
Ante todo o exposto, sentimo-nos habilitados a concluir que existe, em O  
Capital, uma distinção qualitativa entre salário e valor da força de trabalho.  
Precisamente, aquele é uma forma de manifestação irracional e invertida para este  
último. No salário, o valor da força de trabalho aparece como preço do trabalho,  
expressão em que o conceito de valor se converteu em seu contrário e toda jornada  
de trabalho aparece como paga, ocultando o mais-valor.  
Diante dessa forma de aparecimento, a tarefa da ciência, segundo Marx, é  
desvelar seu conteúdo oculto, a relação essencial que reside por trás da aparência  
invertida e os nexos internos entre ambas27. Além de simplesmente mostrar o que a  
manifestação esconde, é necessário explicar por que aquele conteúdo oculto se  
apresenta precisamente daquela maneira. Nessa esteira, de maneira coerente com o  
seu próprio estatuto ideológico em cujo seio as categorias são formas de ser,  
determinações de existência , Marx em O Capital trata sempre a irracionalidade da  
expressão do salário como uma contradição com suas próprias razões de ser dadas  
não somente no pensamento, mas também na realidade. A irracionalidade presente na  
aparência invertida do salário corresponde à irracionalidade existente na superfície da  
sociedade civil-burguesa, onde a figura medular do capital é oculta e somente  
pressuposta, e o movimento real é efetivamente regido por figuras irracionais.  
Ao mesmo tempo, a relação da expressão irracional do salário com o direito,  
embora tratada esparsamente por Marx, oferece fundamentos valiosos para a  
compreensão da sua crítica ao direito. A investigação da razão por trás da aproximação  
entre o direito e as posições apologéticas quanto à irracionalidade da expressão do  
salário revela um tratamento bastante coeso da questão do direito em distintos textos  
de crítica da economia política marxiana: o cotejo dos textos do Grundrisse com O  
capital revela que em ambas obras Marx relaciona o direito à circulação de  
mercadorias, sendo o desenvolvimento da troca apontado como base histórica efetiva  
para a possibilidade do desenvolvimento de determinações jurídicas. Em razão disso,  
por um lado, a expressão preço do trabalho, considerada a relação de troca, não parece  
ser mais irracional do que o preço do algodão, pelo que uma consciência que se coloca  
27 De resto, com a forma de manifestação “valor e preço do trabalho” ou “salário”, em contraste com a  
relação essencial que se manifesta, isto é, com o valor e o preço da força de trabalho, ocorre o mesmo  
que com todas as formas de manifestação e seu fundo oculto. As primeiras se reproduzem de modo  
imediatamente espontâneo, como formas comuns e correntes de pensamento; o segundo tem de ser  
primeiramente descoberto pela ciência.  
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a partir da circulação não haveria motivos para dela desconfiar. Noutro giro, as  
determinações de liberdade e igualdade que se afirmam na circulação que traz  
consigo os direitos inatos do homem e o mútuo reconhecimento da condição de  
proprietário como condição para o contrato , pelo direito reconhecidas e elaboradas,  
são tomadas em sua pureza pelos apologistas da sociedade do capital para julgá-la,  
justamente em razão da sua abstração que apaga a diferença específica desse modo  
de produção e suas contradições essenciais.  
Por fim, cumpre registrar que, tratando-se de um autor para o qual categorias  
expressam formas de ser, essas ilusões de liberdade e apologias ao lado das quais  
aparece o direito, conquanto formas de consciência mistificadoras, não são  
simplesmente trapaças ou resultados da inaptidão intelectual dos juristas. Trata-se, em  
verdade, de determinações que remetem à própria gênese do direito e de sua  
mediação na reprodução da relação-capital, para a qual é imperativo que o trabalhador  
no intercâmbio com o capitalista se relacione com sua capacidade de trabalho sem  
jamais renunciar aos seus direitos sobre ela.  
Porém, mesmo nos seus instantes de atuação mais enfática, como quando a  
titularidade jurídica da capacidade de trabalho se coloca como um aspecto necessário  
à reprodução do assalariamento e da relação-capital, o direito jamais é o central, e  
passa longe de ser o principal objeto das considerações marxianas. Embora o direito  
muitas vezes tenha um papel ativo sobre a realidade, não é ele quem engendra os  
objetos de seu reconhecimento. Sua atuação, afinal, coloca-se sobretudo como  
reconhecimento oficial do fato, ou seja, como uma determinada recepção de  
fenômenos que, antes de existirem juridicamente, já estavam dados faticamente28.  
Marx, portanto, realiza uma crítica mordaz ao salário. Não se trata de uma crítica  
parcial, uma espécie de grito piedoso por melhores salários, tampouco um lamento  
sincero por um estado momentâneo do nível dos salários, senão de um ataque decisivo  
contra o salário enquanto categoria, como uma “forma de ser” típica de uma sociedade  
atravessada pelo estranhamento da relação-capital.  
Isso não autoriza nenhum cinismo não se trata de simplesmente dar de  
ombros à massa inculta que ignora o caráter irracional da categoria salário e  
abandonar qualquer reivindicação que passe pela forma do salário. Antes, um dos mais  
28  
“O ouro e a prata só são aceitáveis de direito porque o são de fato, e o são de fato porque a  
organização atual da indústria necessita de um agente universal de troca. O Direito não é mais que o  
reconhecimento oficial do fato” (MARX, 1989b, p. 86). Para uma análise detalhada desta passagem e  
do papel ativo do direito sobre a realidade a partir de O Capital, ver SARTORI, 2021.  
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decisivos desafios de sua crítica consiste precisamente em compreender de que  
maneira uma categoria carente de conceito é possível, isto é, dotada de objetividade  
e movimento no real. Observa-se que sua natureza mistificadora não se deve a uma  
espécie de desvio cognitivo geral, mas reside em e se deve ao real, à efetividade em  
que a irracionalidade é ao mesmo tempo resultado e pressuposto necessários das  
relações de produção vigentes, do próprio modo como a vida é produzida naquela  
sociedade.  
Em inúmeras ocasiões e de modo mais detido nos capítulos em que trata das  
lutas pela regulamentação da jornada de trabalho, do desenvolvimento da maquinaria,  
do exército industrial de reserva, da chamada acumulação primitiva etc. Marx  
denuncia rigorosamente as condições de trabalho e a miserabilidade dos rendimentos  
das famílias operárias de sua época e de anos passados, em muitos casos, inclusive,  
rebaixados mesmo além do nível considerado “normal”, necessário para a reprodução  
da força de trabalho. Disso não decorre que se deva aceitar a categoria salário,  
simplesmente incorporá-lo ao léxico da crítica da economia política como uma  
categoria inocente. Pelo contrário: a crítica das condições de vida da população  
trabalhadora conduz à crítica do salário enquanto tal em sua expressão carente de  
conceito e mistificadora, indissociavelmente entranhada às relações que produzem o  
trabalhador enquanto um miserável.  
Dessa maneira, a crítica da economia política não pode simplesmente valer-se  
dela enquanto tal, sob pena de incorrer na piedade castíssima que simplesmente clama  
por melhores salários sem compreender os nexos internos dessa forma de  
manifestação com os fundamentos da sociedade capitalista, ao modo do socialismo  
vulgar29. Mesmo quando Marx emprega o termo salário para abordar tal ou qual tema,  
ele o faz com ressalvas. Por exemplo, sua adoção do termo salário se faz útil sobretudo  
ao explicar seus movimentos, uma vez que o movimento efetivo do salário, que se  
processa na superfície da sociedade produtora de mercadorias, é justamente regido  
por essas irracionalidades.  
29  
A título de exemplo, pode-se ver na crítica do programa de Gotha como Marx (2012, pp. 28-29)  
condena Lassalle por empregar ingenuamente a categoria salário. “Desde a morte de Lassalle, impôs-  
se em nosso partido o ponto de vista científico de que o salário não é o que aparenta ser, isto é, o valor  
do trabalho ou seu preço, mas apenas uma forma disfarçada do valor ou preço da força de trabalho.  
[...] E depois que esse ponto de vista se estabeleceu cada vez mais em nosso partido, retrocede-se  
agora aos dogmas de Lassalle, mesmo que hoje seja impossível ignorar que Lassalle não sabia o que  
era o salário, senão que, seguindo os economistas burgueses, tomava a aparência da coisa por sua  
essência”.  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
Por fim, se a tarefa da ciência consiste, como aponta Marx, em desvelar o  
conteúdo essencial das aparências investidas, esperamos tê-lo logrado nessa  
exposição.  
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nova fase  
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Como citar:  
PRATES, João Lucas Sales. Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
e mostra precisamente o oposto dessa relação: Marx diante do salário e a crítica  
marxiana ao direito. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 267-304; jan.-jun.,  
2024  
Verinotio  
304 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 267-304 jan.-jun., 2024  
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