DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.711  
De pré-marxiano a propriamente marxiano: o  
tratamento do crime e da punição em dois  
momentos da obra de Marx  
From pre-Marxian to properly Marxian: the treatment of  
crime and punishment in two moments of Marx's work  
Nayara Rodrigues Medrado*  
Resumo: Buscaremos, neste artigo, apontar as  
diferenças gerais na forma de compreensão do  
crime e da punição entre um Marx pré-marxiano  
Abstract: In this article, we will seek to point out  
the general differences in the way crime and  
punishment are understood between a pre-  
Marxian Marx and a properly Marxian Marx. For  
this purpose, we will privilege the analysis of  
texts published by the author in the Gazeta  
Renana in 1842, in an effort comparative with  
later works, located between 1844 and 1853.  
e
um  
Marx  
propriamente  
marxiano.  
Privilegiaremos, para isso, a análise de textos  
publicados pelo autor na Gazeta Renana em  
1842, em esforço comparativo com obras  
posteriores, situadas entre 1844 e 1853.  
Palavras-chave: Marx; Crime; Punição.  
Keywords: Marx; Crime; Punishment.  
Introdução  
Abordando dois momentos centrais da trajetória intelectual de Marx, marcada,  
na concepção de Chasin, pela passagem de uma determinação ontopositiva da  
politicidade para uma determinação ontonegativa, buscaremos analisar neste artigo,  
adaptação do primeiro capítulo de nossa dissertação de Mestrado, as implicações  
dessa viragem sobre as concepções de crime e de punição no pensamento do autor  
alemão. Para isso, tomaremos como referenciais importantes de análise alguns dos  
textos publicados por Marx em 1842 n’A Gazeta Renana, com destaque para aquele  
que recebeu o título de Debates acerca da lei sobre o furto de lenha, e, de outro lado,  
passagens sobre o tema constantes em A Sagrada Família (escrita em 1844 e  
publicada pela primeira vez em 1845), n’A Ideologia Alemã (escrita entre 1845 e  
1846 e publicada apenas em 1932) e no artigo Capital Punishment, publicado em  
1853 no Jornal The New York Tribune.  
*
Mestre em Direito em Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Assistente da Universidade  
Federal de Juiz de Fora campus Governador Valadares.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
nova fase  
 
Nayara Rodrigues Medrado  
Buscaremos demonstrar, a partir dessas obras, como, à semelhança do que  
ocorre com as noções de Marx sobre a política, o Estado e o direito, há uma mudança  
drástica no tratamento do crime e da punição, com a transição de um Marx ainda  
bastante influenciado, com ressalvas e particularidades, pela teorização hegeliana a  
um Marx que, nas concepções sobre direito e política, rompe de forma explícita com  
os fundamentos da obra de Hegel. Para tanto, passaremos, inicialmente, por uma  
caracterização geral de cada um desses momentos – o do Marx “pré-marxiano” e o do  
Marx “propriamente marxiano” – abordando traços gerais da compreensão sobre a  
politicidade, sobre o Estado e sobre o direito, para, a partir daí, ter condições de  
apreender as decorrências dessa virada nas determinações do crime e da punição no  
pensamento do autor.  
Marx pré-marxiano: do conceito à crítica do realmente existente  
As obras juvenis de Marx produzidas entre 1841 e meados de 1843, que  
englobam sua tese doutoral e os seus artigos publicados na Gazeta Renana, seriam  
representativas daquilo que Chasin chamou de um “Marx pré-marxiano” (CHASIN,  
2009, p. 41), na medida em que os pontos fundamentais que constituiriam seu  
pensamento maduro ainda não estavam definitivamente colocados. Estamos falando  
de um Marx cuja reflexão, fortemente influenciada pelo pensamento hegeliano Marx  
compunha a corrente dos chamados “neo-hegelianos de esquerda” – estava “confinada  
ao quadro da autoconsciencialidade”, sendo “por esta estruturada” (CHASIN, 2009, p.  
47).  
Em uma Alemanha marcada pelo atraso econômico e político comparativamente  
com outros países europeus, predominava o caráter idealista e especulativo daquilo  
que se convencionou chamar de “filosofia clássica alemã”, que teve em Hegel seu  
expoente máximo (ENGELS, 2023). O legado hegeliano era disputado basicamente  
entre os chamados velhos hegelianos (ou hegelianos de direita) e os jovens hegelianos  
(ou hegelianos de esquerda). Enquanto o primeiro grupo enfatizava a máxima  
hegeliana "o racional é real" como uma forma de chancela ao efetivamente existente  
(em especial, do Estado Prussiano), o segundo grupo destacava a segunda parte da  
frase "o real é racional" , de modo a denunciar a irracionalidade do realmente  
existente. Ainda, enquanto o primeiro grupo privilegiava a construção sistêmica do  
pensamento do Hegel, sustentando o Estado como realização da razão na história e o  
Estado Prussiano, por consequência, como "fim da história", os jovens hegelianos  
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enfocavam sobretudo o método hegeliano, destacando o caráter negativo da dialética  
e, portanto, a perecibilidade de uma realidade irracional (ASSUNÇÃO, 2004, p. 09).  
Marx, à época estudante da Universidade de Berlim, tendo sido orientado por  
Bruno Bauer (1809-1882), um jovem hegeliano destacado por suas críticas à religião,  
compunha o segundo grupo de herdeiros da tradição hegeliana, embora já mantivesse  
significativas diferenças em relação aos demais integrantes da vertente, que não  
formava exatamente um bloco monolítico de pensadores absolutamente concordantes  
entre si (CHASIN, 2009, p. 47)1. O autor alemão, portanto, era também herdeiro e  
tributário de um tipo de filosofia que se movia sobre os terrenos da abstração e da  
especulação, sendo sua filosofia marcada, como prefere classificar Chasin (2009, p.  
45), por um tipo de “idealismo ativo”. O próprio Marx descreve aquela tradição  
filosófica, dotada de uma “visão mais ideal e mais profunda”, e que pode ser tida como  
o ponto de chegada da filosofia clássica alemã, e da qual ele era, com suas  
peculiaridades, tributário. Ela “considera o Estado como um grande organismo no qual  
a liberdade jurídica, ética e política devem alcançar a própria realização, e no qual o  
cidadão singular, obedecendo às leis do Estado, obedece somente às leis naturais da  
sua própria razão, da razão humana. Sapienti sat(MARX, 1998b, p. 244). A essa  
tradição, Marx agregava uma “dimensão crítica particularizadora, que o distingue tanto  
de Hegel quanto dos neo-hegelianos, em especial no que tange à problemática das  
relações entre filosofia e mundo” (CHASIN, 2009, p. 47): a filosofia deixa de ser algo  
metafísico e isolado para imbricar-se com a própria vida, transformando-a e sendo  
transformada por ela. Tratava-se, para Marx, de realizar a filosofia (ASSUNÇÃO, 2004,  
p. 14)  
De qualquer modo, o pensamento político desse Marx pré-marxiano que se  
torna, em 1842, editor-chefe da Gazeta Renana é marcado, na acepção de Chasin, por  
uma determinação ontopositiva da politicidade. A política e o Estado são concebidos  
como locus da própria “realização do humano e de sua racionalidade”, na medida em  
que constituiriam um atributo intrínseco, perene e eterno do ser social: “politicidade  
1
“Marx emerge como pensador no momento que há uma claríssima disputa pelo legado monumental  
que é a obra de Hegel. Desde o princípio, mostra simpatia pelos autores da esquerda hegeliana e muito  
especialmente para com Feuerbach. Mas, mesmo quando se soma às fileiras da esquerda hegeliana,  
tem uma atitude diferenciada que remetia a filosofia hegeliana à realidade prussiana (e a  
incompreensões do próprio método pelo velho filósofo) e mantinha uma atitude crítica em relação a ela.  
Já nos textos jornalísticos podemos encontrar críticas sociais radicais que inexistem em Hegel: isso se  
deve ao desenvolvimento burguês na Alemanha pós-Hegel, à influência de M. Hess e do socialismo  
francês sobre Marx e à recusa deste das soluções hegelianas para o conflito Estado-sociedade civil”  
(ASSUNÇÃO, 2004, p. 09).  
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como atributo perene, positivamente indissociável da autêntica entificação humana,  
portanto, constitutiva do gênero, de sorte que orgânica e essencial em todas as suas  
atualizações” (CHASIN, 2013, p. 43). Por sua vez, o Estado é concebido como esfera  
universal, “encarnação da razão e entidade compelida ao progresso pela crítica  
filosófica, ferramenta espiritual na eliminação das irracionalidades do real pela  
determinação de cada existente pela essência, de toda realidade particular pelo seu  
conceito” (CHASIN, 2009, p. 50).  
Dessa forma, o tom crítico de Marx em seus textos da Gazeta Renana não se  
dirige ao Estado em si, mas ao Estado realmente existente, às distorções da realidade  
do Estado Prussiano, que o desvirtuariam dos atributos originais do “conceito” ou da  
“ideia” de Estado enquanto manifestação do Espírito. Trata-se, para Eidt (1998, p.  
146), de uma contraposição do “estado racional” (ou do conceito de estado) ao  
“estado reacionário” (o estado realmente existente).  
O direito, como emanação desse Estado, também teria por atributos  
fundamentais a racionalidade e a universalidade, sendo a esfera que, criada pelo  
homem para mediar os conflitos surgidos no confronto de infinitos interesses  
particulares, instauraria a liberdade e a igualdade, tendo sempre como base as  
necessidades humanas, e não um objeto externo qualquer tal como a propriedade  
privada (EIDT, 1998, p. 148). Objetivo e racional, e confundindo-se mesmo com a  
existência da liberdade, o direito seria capaz de frear tanto os ímpetos autoritários de  
Estados efetivamente existentes (como no caso do Estado prussiano da época) quanto  
o anseio dos estamentos em impor suas pretensões individualistas.  
Desse modo, o Marx do início dos anos 1840, redator e posteriormente editor-  
chefe de um jornal financiado pela burguesia liberal renana, estava comprometido com  
a reforma do Estado Prussiano que partisse de uma matriz democrata radical e se  
orientasse no sentido da construção de um Estado de direito que superasse o  
absolutismo prussiano. Basicamente, portanto, o Marx da Gazeta Renana “procurou  
resolver problemas socioeconômicos pelo recurso ao formato racional do estado  
moderno e da universalidade do direito” (CHASIN, 2013, p. 43).  
A ruptura definitiva com uma determinação ontopositiva da politicidade apenas  
se daria com a escrita de Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução, em  
1843. A partir daí, no entanto, a mudança seria permanente, e a determinação agora  
negativa da política constituiria uma marca do pensamento de Marx até o fim de sua  
vida.  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
A Gazeta Renana: o Marx neo-hegeliano e a ontopositividade da pena  
A Gazeta Renana foi um veículo eminentemente liberal do qual Marx participou  
como simples colaborador e, posteriormente, como editor-chefe. Ainda fortemente  
influenciado pela herança hegeliana, Marx trazia, nos seus escritos para a gazeta, ainda  
uma visão ontopositiva do direito e do Estado (CHASIN, 2009), com a qual apenas  
romperá posteriormente, nos artigos dos Anais Franco-Alemães. Essa visão  
ontopositiva sobre o Estado e o direito tem uma repercussão direta na forma como  
Marx, nesse momento de sua trajetória intelectual, tematiza a questão do crime e da  
punição.  
Dos textos da Gazeta Renana, o Debatten über das Holzdiebstahlsgesetz,  
traduzido por Celso Eidt como Debates acerca da lei sobre o furto de lenha e mais  
recentemente pela Boitempo sob o título de “Os Despossuídos”, é o que, pela  
pertinência temática, nos interessa em especial. Publicado em 1842, o Debates sobre  
a lei do furto de lenha é composto por uma série de comentários, escritos por Marx e  
divididos em vários artigos, em relação a uma proposta de lei submetida à VI Dieta  
Renana. A proposta legislativa tinha o objetivo de equiparar os atos de subtração de  
lenha caída e de recolha de lenha seca sem autorização do proprietário da floresta ao  
ato de furtar madeira verde em caule, elevando os dois primeiros à categoria de crime  
de furto. Com isso, a coleta de madeira empreendida pela população pobre da região  
da Renânia passaria a ser sancionada penalmente, em um contexto de aumento  
contínuo do pauperismo rural e de crescente utilização da madeira, por parte da  
população empobrecida (até então tidos como simples possuidores da madeira  
recolhida), para fins comerciais (BENSAÏD, 2017, p. 16).  
Marx, opondo-se à aprovação da lei, lança uma série de argumentos contra a  
pretensão do projeto. Dentre eles, destacam-se: 1) a lenha caída já é lenha cortada e,  
portanto, não faz parte do organismo árvore, sendo resultado não de um juízo  
arbitrário emitido pelo recolhedor contra seu proprietário, mas sim de um juízo já  
emitido pela própria árvore; 2) a lei tem o dever universal de dizer a verdade, guiando-  
se pela natureza jurídica das coisas, e viola esse dever, sacrificando o pobre a uma  
“mentira legal” e impedindo que ele alcance uma posição real de direitos, quando  
equipara duas condutas (furtar madeira e ajuntar madeira caída no chão) que são  
essencialmente diferentes, tanto em relação ao conteúdo quanto em relação à forma  
das ações; e 3) a aplicação do rigor penal a um caso indevido importa na perda da  
credibilidade da lei (MARX, 2017a, p. 91).  
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Contra um Estado que transforma a desgraça em crime e o crime em desgraça,  
Marx defende que o problema material concreto dos camponeses empobrecidos seja  
resolvido “politicamente”, em consonância com a razão do Estado e com a moralidade  
pública. Contra um Estado que viola seu dever incondicional de “não transformar em  
crime o que foi convertido em contravenção unicamente por circunstâncias”, Marx  
advoga a necessidade de um Estado “humano, rico e generoso”, que conceda ao  
direito uma “esfera positiva de ação”, que, privando todo impulso jurídico de sua  
essência negativa, não apenas afastará a “impossibilidade de que os integrantes de  
uma classe pertençam de direito a uma esfera mais elevada, mas elevará sua própria  
classe a uma possibilidade real de direitos” (MARX, 2017a, p. 91).  
Fica nítido aqui como Marx, nesse momento um neo-hegeliano com  
particularidades próprias, especialmente no que se refere “à crítica à religião, aos  
propósitos políticos e ao modo de encarar a prática teórica” (CHASIN, 2013, p. 44),  
parte de uma visão ontopositiva da politicidade, “uma das inclinações mais fortes e  
características do movimento dos jovens hegelianos” (VAISMAN; ALVES, 2008, p. 49).  
Justamente pelo fato de a política ser concebida como pressuposto inarredável da  
própria sociabilidade humana, como a atividade humana mais elevada realizada no  
âmbito da comunidade estatal, é que o problema dos “despossuídos” – de direitos e  
de condições dignas de existência – deve ser resolvido “politicamente”, a partir de sua  
elevação à condição real de detenção e de exercício de direitos ou a partir daquilo que  
Marx chamou de “leis e medidas preventivas racionais”.  
Naquilo que nos interessa mais diretamente, embora por derivação e em íntima  
conexão com os demais temas colocados, o questionamento sobre a violação frente a  
um considerado dever legal de dizer a verdade é também, em grande medida,  
fundamentado em uma visão ontopositiva da pena. A punição para o jovem Marx de  
que tratamos aqui, quando aplicada onde e como deve ser aplicada, representa o êxito  
do direito em sua liberdade e universalidade. Por essa razão, o modo como a  
população enxerga a lei e, mais especificamente, a sua aplicação concreta têm, para  
ele, uma significativa relevância.  
Rompendo com qualquer concepção que enxergue o crime como uma violação  
do indivíduo (MARX, 2017a, p. 113), o Marx pré-marxiano da Gazeta Renana considera  
o delito essencialmente como uma violação do direito em sua racionalidade, liberdade  
e dignidade. Nesse sentido, “a essência criminosa da ação não é o ataque à madeira  
material, mas o ataque ao veio público da madeira, ao direito à propriedade como tal,  
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consistindo na realização da intenção contrária ao direito” (MARX, 2017a, p. 114).  
Por isso, a pena surge como “a harmonização do crime com a razão do Estado,  
sendo, por consequência, um direito do Estado, e um direito tal que ele não pode  
cedê-lo a agentes privados, do mesmo modo que um indivíduo não pode ceder a outro  
sua consciência” (MARX, 2017a, p. 115). A pena não pressupõe o exercício de um  
poder punitivo que viola a liberdade do cidadão. Ao contrário, ela própria é exercício  
de liberdade, na medida em que significa “a restauração do direito”, “a vitória do  
direito contra os atentados ao direito” (MARX, 2017a, p. 113).  
A punição estatal representa, nesse sentido, uma espécie de reafirmação do  
direito a partir da anulação da intenção expressa no crime. O direito, assim, apesar de  
violado pelo crime, permanece vigente e tem sua racionalidade e sua universalidade  
reforçados. Ou, colocado nos termos do próprio Marx, o direito, que tem como atributo  
a imperecibilidade, determina e explicita a perecibilidade do crime: “o Estado pode e  
tem de dizer: eu garanto o direito contra todas as contingências. Para mim, a única  
coisa imperecível é o direito, e é por isso que lhe provo a perecibilidade do crime,  
anulando-o” (MARX, 2017a, p. 119). Com isso, afirmando sua própria  
imperecibilidade, o Estado aproxima-se, uma vez mais, de seu conceito, de sua própria  
realidade efetiva.  
Ao mesmo tempo, a pena possibilita a reconciliação do cidadão com o Estado,  
do crime com a lei, algo muito caro, na medida em que essa reconciliação é condição  
para a própria sustentação do Estado (Racional) enquanto comunidade orgânica, locus  
por excelência da sociabilidade humana. Como interpreta Eidt (1998, p. 176), o  
Estado, para o Marx da Gazeta Renana, é definido “como um organismo no qual se  
realiza a liberdade racional dos seres humanos enquanto seres sociais; a razão reina  
livre no Estado”. Cada cidadão é membro de um organismo vivo que recebe o nome  
de Estado, no qual exerce a atividade humana mais elevada a atividade política e  
cuja unidade resulta da diversidade de seus membros, que são, por intermédio desse  
organismo, elevados à condição de igualdade:  
[...] O Estado, portanto, verá também alguém que violou a lei da  
madeira como uma pessoa, como um membro vivo, no qual circula o  
seu sangue, um soldado que defende a pátria, uma testemunha cuja  
voz deve ter validade diante do tribunal, um membro da comunidade  
que deve poder exercer funções públicas, um chefe de família cuja  
existência é santificada, acima de tudo um cidadão do Estado, e o  
Estado não excluirá levianamente um dos seus membros de todas  
essas determinações, pois o Estado amputa a si mesmo toda vez que  
transforma um cidadão em criminoso (MARX, 2017a, p. 92).  
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Assim, ao contrário do interesse privado, que “converte a lei em apanhador de  
ratos que quer exterminar a praga, pois não é um pesquisador da natureza e, por isso,  
vê ratos apenas como praga”, o Estado, que aqui emerge como “comunidade”  
(VAISMAN, ALVES, 2009, p. 51), pressupõe uma ligação vital com todos os seus  
membros, os seus cidadãos. Por isso, o violador de suas leis – aquele que “cortou  
autocraticamente um nervo” – não pode ser tratado como simples praga, como um  
inimigo a ser aniquilado, na medida em que isso representaria a aniquilação, a  
“amputação” do próprio Estado. Por sua ligação vital com os cidadãos, o Estado, ao  
mesmo tempo que tem o dever de aplicar a pena, em uma reafirmação do direito  
diante de uma violação, deve fazê-lo em respeito à dignidade do cidadão: “o Estado  
não só tem os recursos para agir de maneira adequada tanto à sua razão,  
universalidade e dignidade quanto ao direito, à vida e à propriedade do cidadão  
incriminado, mas tem também o dever incondicional de ter esses recursos e aplicá-los”  
(MARX, 2017a, p. 98).  
De tudo isso se conclui que a pena constitui, a um só tempo, um direito e um  
dever do Estado e que, para além disso, o cidadão, como membro organicamente  
ligado a este, tem o direito de ver aplicados todos aqueles recursos de que o Estado  
dispõe para o tratamento adequado desse sujeito incriminado quanto ao seu direito,  
à sua vida e à sua propriedade. Mas não é só. Por seu próprio caráter, a pena pública,  
ao mesmo tempo que constitui direito e dever do Estado, intransmissível a agentes  
privados, consiste, assim como “todo direito público do Estado contra um criminoso”,  
concomitantemente em um “direito público do criminoso” (MARX, 2017a, p. 115).  
É bastante evidente a influência da teoria hegeliana sobre a concepção de crime  
e de pena do Marx da Gazeta Renana. Quanto à ideia de pena como reconciliação do  
criminoso com o Estado, e do crime com a lei, Hegel sustenta a repressão penal como  
“reconciliação do direito consigo mesmo na pena” (HEGEL, 1997, p. 196). O crime  
aparece, em Hegel, como uma “violação do direito enquanto direito”, ao passo que a  
pena, de forma muito similar ao tratamento marxiano, surge como “negação da  
negação”, a partir da anulação do crime. Mas essa repressão expressa sob a forma de  
negação da negação não se confunde com mera vingança esta última marcada pela  
subjetividade e pela contingência –, mas, antes, é a reconciliação da “realidade do  
direito” com ela mesma por meio da pena. Do ponto de vista objetivo, essa  
reconciliação se dá justamente a partir da anulação do crime, por meio da qual a lei  
se restabelece e realiza sua validade. Do ponto de vista subjetivo, há a reconciliação  
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do criminoso (cidadão do Estado) com a lei, por ele conhecida, tida como válida e  
aceita como expressão de sua própria liberdade (HEGEL, 1997, p. 196).  
A semelhança dessa compreensão com o entendimento de Marx, já apreensível  
por tudo que se disse até aqui, aparece de forma particularmente explícita no  
tratamento dado, pelo editor-chefe da Gazeta Renana, à Lei de Imprensa. Na coletânea  
Os Debates sobre a liberdade de imprensa e a publicação das discussões da Dieta,  
também integrante da Gazeta Renana, Marx, se opondo à elaboração de uma lei de  
censura e argumentando em defesa de uma lei protetora da liberdade de imprensa,  
afirma que a “lei de imprensa declara a liberdade como a natureza do delinquente” e  
que “o que ele fez contra a liberdade fez contra si mesmo, e esta auto-lesão lhe aparece  
como um castigo, que é para ele o reconhecimento da própria liberdade” (MARX,  
1998a, p. 209): As leis são muito mais as normas positivas, claras e universais, nas  
quais a liberdade adquiri (sic) existência impessoal, teórica e independente do arbítrio  
individual. Um código de leis é a Bíblia da liberdade de um povo (MARX, 1998a, pp.  
209-210).  
Também é presente em Hegel, no que parece uma inspiração adaptada da  
filosofia kantiana, a ideia da pena como direito do criminoso, como algo pressuposto  
na sua própria ação, na sua própria vontade enquanto ser racional. O “criminoso”  
submete-se à pena como quem se submete ao seu próprio direito. Objetivamente, “a  
pena com que se aflige o criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também  
o ser em si da vontade do criminoso, uma maneira da sua liberdade existir, o seu  
direito”. Subjetivamente, em relação ao criminoso, “constitui ela [a pena] um direito,  
está já implicada na sua vontade existente, no seu ato. Porque vem de um ser de razão,  
este ato implica a universalidade que por si mesmo o criminoso reconheceu e à qual  
se deve submeter como ao seu próprio direito” (HEGEL, 1997, p. 89).  
Tanto em Hegel quanto em um Marx pré-marxiano a pena aparece, portanto,  
como uma espécie de compensação frente a uma violação do direito, mas não uma  
compensação qualquer, tal como um castigo taliônico, tampouco como mera  
repressão, mas uma compensação que implica, ao mesmo tempo, em reconciliação. A  
pena, negando a negação, nas palavras de Hegel, ou anulando a violação, na expressão  
do Marx de 1842, surge, nesse sentido, como reafirmação do direito em sua  
racionalidade e em sua universalidade, declarando, em sua imperecibilidade, o caráter  
perecível do crime. Ao mesmo tempo, enquanto o crime representa um arbítrio  
individual contra a universalidade pressuposta no direito (ação contra a liberdade,  
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portanto), a pena representa, para o criminoso, o reconhecimento da própria liberdade  
e a imposição de seu exercício.  
No entanto, se essa formulação leva Hegel a referendar a pena de morte,  
abrindo divergência com o contratualismo de Beccaria (HEGEL, 1984, p. 89), o Marx  
da Gazeta Renana, na particularidade de sua construção teórica, levará o argumento à  
sustentação de um direito consuetudinário dos pobres, enfatizando a degradação do  
direito ao punir camponeses empobrecidos que recolhiam lenha e ao restringir a  
liberdade de imprensa. Disso fica claro como, apesar da influência hegeliana e de seus  
interlocutores entre os herdeiros dessa tradição, Marx, no seu confronto enquanto  
jornalista com os interesses materiais, apresentava já ali uma filosofia própria, uma  
filosofia que se pretendia situada no mundo, e, desde já, uma concepção de direito  
atenta a essa “massa mais baixa, sem posses e elementar”, a quem destina, a ela e só  
a ela, um direito consuetudinário (MARX, 2017a, p. 84).  
Para o Marx pré-marxiano, o mandamento de que o direito expresse a verdade,  
aplicando a pena tão-somente onde ela deve ser aplicada, em conformidade com a  
natureza jurídica das coisas, relaciona-se, de um lado, com o próprio atributo de  
racionalidade do direito, e, de outro, com a necessidade de se assegurar a sua  
credibilidade frente aos cidadãos, membros da comunidade estatal. É nesse sentido  
que Marx argumenta, ainda em favor do reconhecimento da diferenciação entre a  
recolha de lenha caída e o crime de furto de lenha, que “a população vê a pena, mas  
não vê o crime, e justamente por ver a pena onde não há crime não verá crime onde  
houver a pena”. O jovem autor completa o raciocínio dizendo que “ao aplicar a  
categoria de furto onde ela não pode ser aplicada, os senhores a abrandam onde ela  
tem de ser aplicada” (MARX, 2017a, p. 82).  
A pena, portanto, desempenha um papel “retributivo” de reafirmação do direito  
a partir da negação de sua negação, mas o exercício desse papel depende  
invariavelmente da confiança da população no direito, guiado que deve ser, este  
último, pela natureza jurídica das coisas. Se o direito mente, contrariando essa mesma  
natureza, acaba por perder sua credibilidade e, com isso, ocorre a sua própria  
revogação: “Ao negar a diferença entre tipos essencialmente diferentes do mesmo  
crime, os senhores negam o crime como diferença em relação ao direito, revogam o  
próprio direito” (MARX, 2017a, p. 82).  
Fica claro, então, que estamos falando de um Marx que carrega uma crença no  
direito e mais especificamente na pena como pressupostos da realização humana  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
na comunidade ética do Estado, de um Marx que acredita em um direito e em uma  
pena que têm de ser aplicados pelo Estado caso contrário, este estará decretando o  
seu “suicídio”, na medida em que “a desistência de seus deveres não seria mera  
negligência, mas crime” (MARX, 2017a, p. 115). Como o crime representa uma  
diferença em relação ao direito, a pena se apresenta reativamente como êxito do  
direito. É nesse sentido que, dirá Marx, o próprio conceito de crime exige a pena  
(MARX, 2017a, p. 83).  
Daí porque a pena aparece, para o Marx da Gazeta Renana, como dotada de  
uma determinação ontopositiva. As determinações da pena passam por algo um tanto  
mais complexo que uma mera funcionalidade preventiva. Se a politicidade é tida, nesse  
momento, como pressuposto inarredável da própria sociabilidade humana, como a  
mais elevada atividade humana no âmbito do Estado, essa “livre comunidade de  
homens éticos” (MARX, 1998b, p. 235), a pena representa uma mediação fundamental  
num sentido reconciliatório, essencial para a manutenção da organicidade da própria  
comunidade estatal.  
Para Marx, não é possível se falar em uma finalidade “preventiva” da pena, no  
sentido de dissuadir possíveis comportamentos criminosos. A atuação da lei, entendida  
como “inconsciente lei natural da liberdade” transmutada em “lei consciente do  
Estado”, é a posteriori: naqueles casos em que o homem, em sua ação prática,  
desobedece a lei natural da liberdade (aquelas “leis vitais” inerentes ao seu agir,  
inerentes a uma “vida da liberdade”), ela “o obriga a ser livre”, por meio da imposição  
da pena. Só aí ela se torna “lei ativa”, embora antes disso já se constitua como “lei  
verdadeira”:  
Não existem leis preventivas atuais. A lei só previne enquanto  
mandamento. Ela se torna lei ativa apenas quando é transgredida,  
porque é uma lei verdadeira só quando nela a inconsciente lei natural  
da liberdade tornou-se lei consciente do Estado. Lá onde a lei é real,  
ou seja, é a existência da liberdade, ela é a verdadeira existência da  
liberdade humana. As leis não podem prevenir as ações do homem,  
porque elas mesmas são as leis vitais inerentes ao seu agir, as  
projeções conscientes de sua vida. A lei, portanto, fica atrás da vida  
do homem, enquanto vida da liberdade, e só depois de a ação prática  
ter demonstrado que ele não mais obedece à lei natural da liberdade,  
a lei se faz valer enquanto lei do Estado e o obriga a ser livre, assim  
como as leis da física apenas aparecem como algo estranho quando  
minha vida deixou de ser a vida destas leis, quando está doente. Uma  
lei preventiva é, portanto, uma contradição sem sentido (MARX,  
1998a, p. 210).  
Mais que uma finalidade preventiva, então, a pena aparece como algo que  
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pressupõe a liberdade e que coage o cidadão, eventualmente criminoso, a uma vida  
de liberdade. Essa mencionada ontopositividade da pena, no entanto, não pode servir  
de argumento legitimador para uma aplicação desmedida e sem critérios da punição.  
Marx, ao criticar a afirmação do “deputado da nobreza” Eduard Bergh de que a  
“exploração da madeira” ocorreria com frequência pelo fato de a atitude não ser  
considerada crime de furto, o que justificaria a criminalização, afirma que “por essa  
analogia, o mesmo legislador deveria concluir o seguinte: bofetadas são desferidas  
com tanta frequência porque uma bofetada não é considerada assassinato. Decrete-  
se, portanto, que bofetada é assassinato” (MARX, 2017a, p. 78). O argumento parece  
apontar, de um lado, para a já trabalhada necessidade de a lei nesse caso a lei penal  
dizer a verdade, e, de outro, para a desproporcionalidade de se punir, com a mesma  
pena do assassinato, uma bofetada.  
Em defesa de uma proporcionalidade na aplicação da lei penal, Marx afirmará  
que se o conceito de crime exige a pena, a realidade do crime exige uma medida da  
pena, já que “[...] é um fato tão histórico quanto racional que a severidade  
indiscriminada anula o êxito da pena, pois anulou a pena enquanto êxito do direito”  
(MARX, 2017a, p. 82). O limite da pena deve ser o limite do ato: ela deve “aparecer  
ao criminoso como o efeito necessário de seu próprio ato e, por conseguinte, como  
seu próprio ato(MARX, 2017a, p. 83). A medida da pena dependeria, assim, da  
medida do conteúdo violado pelo crime. Se a classificação de determinada conduta  
como crime encontra seu limite na natureza jurídica das coisas, a que cabe ao direito  
meramente reconhecer e proclamar, o modo de aplicação da pena toma por critério-  
limite a avaliação do conteúdo violado pelo crime.  
É também por conferir um viés positivo a essa “pena pública” que o Marx pré-  
marxiano, também em alguma semelhança a Hegel mas utilizando de exemplos  
bastante diversos, vai criticar enfaticamente qualquer pretensão de reduzi-la a uma  
espécie de sanção privada. Em tal situação, afirma, a pena do crime converter-se-ia  
“de uma vitória do direito contra os atentados ao direito em vitória do interesse  
pessoal contra os atentados ao interesse pessoal” (MARX, 2017a, p. 113). A crítica  
remete novamente ao rebaixamento da universalidade do Direito às particularidades  
do interesse privado e da propriedade privada, ou à distorção da lei visando à  
satisfação de interesses de certos estamentos. Como exemplo desse rebaixamento da  
lei ao interesse privado, ele menciona o lucro gerado pela punição: o proprietário  
recebe não apenas a reposição do valor subtraído, mas também o valor da multa e  
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uma “indenização especial”, cabendo ainda a “servidão temporal do devedor” em caso  
de inadimplemento (MARX, 2017a, p. 117).  
Em oposição aos “costumes dos privilegiados”, a ideia de um “direito  
consuetudinário dos pobres” aparece como espécie de resistência a um direito  
reduzido à condição de servo do interesse particular e da propriedade privada. Em seu  
lugar, propõe-se a efetivação de um direito que corresponda ao seu conceito, isto é,  
que seja detentor de um “conteúdo humano” e que acolha não a particularidade dos  
interesses privados, mas que seja expressão da própria generidade humana, que no  
lugar de acolher os privilégios de alguns, afirme o “privilégio do espírito humano”  
(MARX, 1998a, p. 204). Marx aponta, nesse sentido, para a defesa de um direito  
popular, que se coloca ao lado daquelas classes elementares, e democrático, na  
medida em que fundado na satisfação das necessidades humanas universais (EIDT,  
1998, p. 148). Há claramente aqui a defesa de um direito humano este dotado de  
meios racionais e orientado à consagração dos interesses universais em  
contraposição a um “direito animal”, pautado na lógica “prática” dos interesses  
privados e, portanto, contrários à racionalidade e à liberdade próprios ao direito.  
Em resumo, o Marx “pré-marxiano” da Gazeta Renana, como decorrência lógica  
de uma concepção do direito como esfera da racionalidade, da liberdade e da  
universalidade, entendia o crime como uma violação a essa esfera como um todo, e a  
pena como forma possível de reconciliação do crime e do cidadão autor de um crime  
com o direito e com o próprio Estado, entendido como comunidade ética. O próprio  
conceito de crime pressuporia a aplicação da pena, conhecida e aceita pelo criminoso  
como produto de sua própria vontade, no exercício de sua liberdade, como um produto  
necessário de seu ato. A pena aparece como mediação necessária à conservação da  
organicidade da comunidade ética do Estado, daí sua determinação ontopositiva.  
De qualquer forma, Marx apresentava uma perspectiva crítica em relação à  
manipulação desse direito, principalmente no que tange à aplicação da pena, no  
sentido de assegurar privilégios e garantir interesses privados, o que, em sua visão,  
importaria na degradação e no rebaixamento da universalidade do Estado a um  
particularismo egoísta, incompatível com um Estado que almeja a universalidade e a  
racionalidade. Em substituição, Marx defende um direito penal cuja aplicação é dever  
e condição de existência do Estado guiado pela natureza jurídica das coisas e  
concretizado segundo padrões de proporcionalidade da pena.  
Trata-se de uma visão, em suma, ao mesmo tempo ontopositiva e democrático-  
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radical da pena. Ontopositiva porque, como vimos, parte de uma crença na pena como  
mediação do cidadão com o Estado, isto é, do cidadão com a esfera da racionalidade  
e da universalidade, pressupondo a dimensão da politicidade como atributo intrínseco  
do ser social constituído enquanto membro da comunidade estatal. Democrático-  
radical porque reivindica o fim dos particularismos e das arbitrariedades de um direito  
orientado à consagração de privilégios (transformados em direitos), em favor de uma  
aplicação igualitária do direito, guiado por princípios jurídicos e orientado à satisfação  
das necessidades humanas universais. Assim, muito embora Marx, nesse momento de  
seu percurso intelectual, não possa ser taxado simplesmente de “liberal radical”, pelo  
teor democrático de suas reivindicações, não há, decididamente, uma análise  
materialista sobre a pena e sua concatenação com a ordem de coisas que em certa  
medida aí ele começara a perceber e a descrever.  
Marx propriamente marxiano: a determinação ontonegativa da politicidade e  
da pena em 1843-1844  
Chasin destaca a ocorrência, pouco tempo após a saída de Marx da Gazeta  
Renana e de suas correspondências com Arnold Ruge, de uma “viragem radical” no  
pensamento marxiano, que teria se dado não com, mas contra a natureza do  
pensamento político expresso na Gazeta Renana (CHASIN, 2009, p. 53). A experiência  
político-jornalística na Gazeta havia propiciado a Marx, de forma inédita e  
“embaraçosa”, o contato com os por ele reconhecidos interesses materiais (MARX,  
2008, p. 46). Pela primeira vez, Marx deixava de estar recluso aos debates  
exclusivamente teóricos e se colocava o desafio de analisar situações concretas, como  
a problemática real por detrás dos projetos de lei de censura e a respeito do furto de  
lenha.  
Provocado, de um lado, pelo embate frente a esses assim chamados “interesses  
materiais”, e pelo contato com dois textos recém-publicados por Ludwig Feuerbach,  
um dos jovens hegelianos com mais influência sobre Marx, o teórico passa a caminhar  
em uma direção que mudaria drasticamente o cerne de seu pensamento político, com  
mudanças centrais em três dimensões especiais: 1) o descarte da especulação; 2) o  
reconhecimento do caráter fundante da realidade objetiva; e 3) a identificação da  
sociabilidade como base da inteligibilidade (CHASIN, 2009, p. 57).  
É esse o ponto de viragem ontológica de Marx: da concepção do Estado como  
“demiurgo racional da sociabilidade”, passa-se a uma centralidade da sociedade civil  
como “campo da interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
metabolismo social”, o “demiurgo real que alinha o Estado e as relações jurídicas”  
(CHASIN, 2009, p. 58). Marx passa a negar a possibilidade mesma de um Estado  
racional e universal, e o faz a partir “da crítica ontológica à mais elevada expressão, à  
época, da reflexão política” (CHASIN, 2013, p. 46): a filosofia do direito de Hegel.  
São três, segundo Chasin, os textos que marcam essa virada no pensamento  
marxiano: Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução; Sobre a Questão  
Judaica; e Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”.  
De um Prussiano”. Os três textos marcariam o deslocamento de Marx rumo a uma  
determinação ontonegativa da politicidade, característica de seu pensamento maduro.  
Marx passa, a partir de então, a problematizar os limites da política na compreensão  
dos males sociais e na busca pela emancipação humana.  
Em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução, Marx, tentando superar  
a limitação da crítica apenas à religião sagrada, marca de neo-hegelianos como Bruno  
Bauer, propõe o desafio da crítica ao “erro profano”: dissolvido o “além da verdade”,  
tratava-se de desvelar a “verdade do aquém”. Contra a crítica do céu, onde a filosofia  
hegeliana insistia em se estabelecer, o autor alemão afirma a crítica da terra aquela  
crítica da religião, da teologia, mas também “da política” e “do direito(MARX, 2010b,  
p. 146). E é assim que da defesa de um Estado racional e laico, Marx passa à crítica  
ao próprio direito e à própria política enquanto tal, como formas invariavelmente  
ligadas à autoalienação humana.  
O Marx já propriamente marxiano passa a se opor radicalmente à noção de  
política como um atributo constitutivo do ser social, como “depositário dos princípios  
universais que tornariam todos os homens iguais em direitos e deveres”,  
demonstrando, ao contrário, como a politicidade e o Estado são conteúdos externos  
ao ser social, um defeito de sociabilidade: “Marx sustenta que o estado se origina  
exatamente das insuficiências de uma sociedade em realizar em si mesma, de forma  
concreta, estes ideais universalistas, ou seja, de garantir em sua dinâmica a igualdade  
de condições sociais” (ALBITANI, 2008, p. 55).  
Já em Sobre a Questão Judaica, publicada em 1844 em resposta a um texto  
escrito por Bruno Bauer, Marx trabalha as contradições entre Estado e sociedade civil,  
de um lado, e entre burguês (bourgeois) e cidadão (citoyen), de outro. O bourgeois  
representa o homem da sociedade civil: individualista, fragmentado, egoísta,  
competitivo, voltado à consagração de seus próprios interesses, ao passo que o  
citoyen representa o cidadão abstrato, o indivíduo genérico, voltado para a busca dos  
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interesses comuns, como membro de uma comunidade política ilusória. O Estado  
aparece como expressão formal da determinação humana, porém vazia de conteúdo,  
e a sociedade civil aparece como a esfera da fragmentação, do material que não  
encontra uma vinculação com sua expressão mais genérica (ALBINATI, 2008, p. 53). O  
homem burguês colocado na sociedade civil não se reconhece na universalidade  
abstrata do Estado, ao mesmo tempo em que o cidadão abstrato, pertencente à  
comunidade política, não se traduz na sua realidade empírica. O Estado aparece como  
uma tentativa de pseudoconciliação, de universalidade formal em relação às  
disparidades verificáveis na conformação da realidade objetiva da sociedade civil,  
definida por Marx como a “esfera do egoísmo, da guerra de todos contra todos”. O  
Estado consiste, portanto, em um ente abstrato, “que somente ganha existência pelo  
isolamento em relação à vida real, que é impensável sem a contraposição organizada  
entre ideia universal e existência individual do ser humano” (MARX, 2010c, p. 51).  
Portanto, embora a emancipação política, aquela fruto das revoluções  
burguesas, que afirma o cardápio dos direitos do homem no Estado, seja um “grande  
progresso”, a “forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial  
vigente até aqui” (MARX, 2010c, p. 41), a emancipação humana não pode se dar  
através por Estado, implicando, ao contrário, na própria supressão do conjunto das  
relações sociais de produção e reprodução da vida material, que teria como  
pressuposto a própria negação do Estado enquanto tal. Afinal, “o limite da  
emancipação política aparece logo no fato de que o Estado pode libertar-se de uma  
barreira sem que o homem esteja realmente livre dela, [no fato de] que o Estado pode  
ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (MARX, 2010c, p. 48).  
Por sua vez, em suas Glosas Críticas Marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a  
Reforma Social, de um prussiano”, escritas em 1844 e publicadas já no Vorwärts!,  
Marx enfatiza as limitações da política na compreensão e na busca por soluções para  
as mazelas sociais. O agora editor dos Anais Franco-Alemães usa o exemplo da  
Inglaterra, que, mesmo considerado “o país político por excelência”, não se esquivou  
da tendência de colocar a culpa do pauperismo na política e de buscar tão-somente  
na crítica a uma determinada forma do Estado acompanhada da afirmação de uma  
outra forma de Estado por princípio igualmente problemática a resolução para as  
mazelas sociais (MARX, 2010b, p. 30).  
Marx sustenta a tese segundo a qual o caráter “político” de um país está  
justamente em sempre buscar as soluções para seus males dentro do circunscrito  
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espectro da política, isto é, sem lançar mão de qualquer tipo de crítica à própria  
politicidade ou ao próprio Estado enquanto tal. Essa característica forma de pensar,  
que apenas se move “dentro dos limites da política” é, para Marx, precisamente o que  
torna seus adeptos incapazes de compreender, de fato, as reais raízes das mazelas  
sociais, as quais não podem ser buscadas em outro lugar que não no próprio princípio  
do Estado, isto é, na própria conformação social no qual ele se encontra assentado:  
“O entendimento político é entendimento político justamente porque pensa dentro dos  
limites da política. Quanto mais aguçado, quanto mais ativo ele for, tanto menos capaz  
será de compreender mazelas sociais (MARX, 2010b, pp. 40-41)”.  
Dessa análise fica claro, uma vez mais, como Marx, por um lado, passa a conferir  
primazia à própria sociedade civil (em detrimento do Estado) como eixo central da  
realização do humano2, e, por outro por decorrência dessa primeira conclusão ,  
como aquela crença na política como atributo intrínseco do ser social, outrora  
caracterizadora de sua formulação teórica, é substituída por uma crítica decisiva à  
própria politicidade. De um Marx que concebe a vida política no Estado como a  
atividade humana mais elevada, passamos a um Marx que vê uma relação direta entre  
politicidade e produção/manutenção das mazelas sociais.  
É justamente essa aposta cega e essa pressuposição da politicidade que impede  
a compreensão das origens dos males sociais e a consequente formulação de  
alternativas reais a eles, tendo como norte o horizonte da emancipação humana. Na  
medida em que se pensa apenas dentro dos restritos limites da política e do Estado,  
a resposta às mazelas sociais apenas poderá passar por aquilo que o Estado oferta  
por alternativas: medidas administrativas, assistência (ampliação ou redução) e, enfim,  
repressão.  
É o que ocorreu com a Inglaterra, país político por excelência. Pensando  
politicamente, a Inglaterra não consegue ver as raízes reais do pauperismo, e tal como  
se deu com os partidos políticos que empurravam a responsabilidade das misérias  
sobre o partido adversário , a Administração buscou atribuir a culpa ora na escassez  
de beneficência, ora em seu excesso, ora em sua falha. Aqueles problemas originários  
do moderno processo de industrialização problemas sociais que são são explicados  
como meros defeitos de administração e a eles são opostas soluções igualmente  
administrativas que, com o tempo, não mais buscavam sufocar o pauperismo, mas  
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O marco, nesse sentido, é a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, escrita ainda em 1843 (MARX,  
2010a).  
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“discipliná-lo, perpetuá-lo”. Ao fim, “a miséria foi vista como culpa dos miseráveis e,  
como tal, punida neles mesmos. O Estado inglês, longe de ir além das medidas  
administrativas e beneficentes, retrocedeu aquém delas. Ele se restringe a administrar  
aquele pauperismo que, de tão desesperado, deixa-se apanhar e jogar na prisão  
(MARX, 2010b, p. 35). Oscila-se, com isso, entre dois polos extremos, a assistência e  
a repressão, sendo que ambos, por sua própria natureza, não são resolutivos da  
questão.  
Antes que apareça uma formulação mais direta sobre a própria noção de pena  
(o que se dá, de forma mais própria, em artigo de 1853 que analisaremos no tópico  
subsequente), o Marx propriamente marxiano de 1844 já apresenta alguns dos  
desdobramentos dessa concepção ontonegativa de politicidade sobre a “questão  
penal”: de mediação reconciliatória do cidadão criminoso com o Estado, ofendido por  
meio do crime em sua dignidade, racionalidade e universalidade, a repressão penal  
aparece aqui como, fruto que é do “entendimento político”, uma tentativa de  
perpetuação e de administração do pauperismo convertido em “instituição nacional”,  
uma tentativa que se mostra, por óbvio, ainda aquém das já problemáticas medidas  
administrativas de beneficência, na medida em que, quanto ao pauperismo, nada mais  
faz que “cavar-lhe o túmulo”.  
Marx dá explicações mais minuciosas para essa escolha: partindo da teoria  
malthusiana da população, que considera o pauperismo como uma “lei natural eterna”,  
e considerando a miséria como culpa dos próprios pobres, a reforma da política  
assistencial inglesa de 1834 toma a assistência como um incentivo público à miséria.  
E é assim que a miséria passa a ser punida como crime. E aqui parece ser a primeira  
vez que Marx trata das workhouses, ali definidas como “asilo dos pobres”, “cuja  
organização interna dissuade os miseráveis de buscar nelas refúgio para não morrerem  
de fome. Nas workhouses, a beneficência está engenhosamente entrelaçada com a  
vingança da burguesia contra o miserável que apela à sua beneficência” (MARX,  
2010b, p. 34).  
A questão é resgatada em um artigo escrito por Marx para a Nova Gazeta  
Renana. As workhouses inglesas são definidas como “estabelecimentos públicos em  
que a população trabalhadora excedente vegeta às custas da sociedade burguesa” e  
que aliariam “de maneira verdadeiramente refinada a caridade à vingança que a  
burguesia descarrega nos miseráveis coagidos a apelar à sua caridade” (MARX, 2020,  
p. 363). Essas instituições, que se encobriam sob as vestes de caridade pública, em  
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praticamente nada se diferenciavam, quanto à estrutura de acomodação, das casas de  
correção (destinadas, em tese, aos criminosos), exceto quanto à sua ainda maior  
precariedade. Caracterizavam-se pela união de privação de liberdade com trabalho  
compulsório e improdutivo:  
Os pobres diabos não apenas são alimentados com os meios de  
subsistência mais parcos, miseráveis e que mal são suficientes para a  
reprodução física, como também sua atividade é limitada a uma  
simulação de trabalho improdutiva, repugnante, embotadora do  
espírito e do corpo por exemplo, mover moinhos a pedal (MARX,  
2020, p. 363).  
Também no tocante às suas finalidades, as workhouses em nada se  
diferenciariam das casas de detenção comuns. Destinadas especialmente à população  
excedente, isto é, àquela parcela da população (sobretudo ex-camponeses) que não  
estava imediatamente engajada na produção manufatureira/industrial, as casas de  
trabalho exerciam um importante papel de regulação dos salários e da mão-de-obra  
aos níveis exigidos pelo mercado, além de, nos momentos necessários, servir ao  
adestramento e à adaptação dessa parcela da população à rotina de trabalho fabril.  
De modo geral, as workhouses evitariam que os paupers ameaçassem “a ordem  
burguesa e a atividade comercial” caso fossem todos repentinamente lançados à rua  
(MARX, 2020, p. 363). A administração desse público em uma instituição oficial  
evitaria possíveis atos de contestação, inclusive por meio do crime. Por outro lado,  
“essa ‘caridade feroz’ da burguesia inglesa responderia às demandas do mundo do  
trabalho nos diferentes ciclos de acumulação.  
Nos períodos de “febril superprodução, em que a demanda por braços mal  
pode ser atendida e os braços devem ser obtidos tão barato quanto possível”, as  
workhouses manteriam à disposição um exército industrial de reserva, viabilizando a  
oferta de força de trabalho no volume e com a regularidade exigidos pelo mercado e  
impedindo uma escassez que tenderia a gerar aumento salarial. Ao mesmo tempo,  
essa população trabalhadora excedente e a constante ameaça de desemprego que ela  
representa, pressiona o exército ativo de trabalhadores, favorecendo uma maior  
exploração do trabalho. Essa influência da superpopulação relativa ou exército  
industrial de reserva sobre a exploração do trabalho livre e a regulação dos níveis  
salariais é resgatada e aprofundada, dentre outros momentos, no capítulo 23 do Livro  
I d’O Capital, em que Marx trata da Lei Geral da Acumulação Capitalista3.  
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“O curso vital característico da indústria moderna, a forma de um ciclo decenal interrompido por  
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Já nos períodos “desfavoráveis para o comércio”, “de recuo comercial, em que  
a produção excede largamente o consumo e apenas com esforço a metade dos  
trabalhadores pode ser empregada, com metade dos salários”, as casas de trabalho  
administrariam esses trabalhadores excedentes, no sentido de transformá-los, “pela  
punição nestes piedosos estabelecimentos, em máquina sem vontade, sem resistência,  
sem exigências, sem necessidades” (MARX, 2020, p. 363). Em momentos de recessão,  
portanto, marcados pela centralização de capitais e pela agudização do desemprego  
e da pauperização, com muitos trabalhadores sendo lançados às fileiras do exército  
industrial de reserva, as workhouses concorreriam para neutralizar formas de  
insubmissão, organizadas ou não, aos capitalistas.  
É nítida, pois, a continuidade entre os textos de 1844 e de 1848, embora o  
primeiro seja recorrentemente tido como de um jovem Marx e o segundo de um Marx  
maduro, segundo a tradição que defende um corte epistemológico na obra do autor.  
De qualquer modo, aqui, já com mais algum acúmulo em termos de crítica à economia  
política, Marx, que já havia conectado a repressão criminalizante das workhouses com  
o desenvolvimento da indústria, consegue perceber com maior nitidez essas conexões.  
Aderir a essa “medida negativa”, mais do que uma vingança burguesa contra o pauper  
ou uma forma de dissuadi-lo a buscar abrigo no Estado, funda-se, também, em razões  
“muito práticas, inteiramente calculáveis”: atender às demandas das indústrias  
nascentes por força de trabalho, seja a partir da formação de um exército industrial de  
reserva para os períodos favoráveis, seja pela transformação desse pauper, agora  
candidato a trabalhador fabril, em “máquina sem vontade, sem resistência, sem  
exigências, sem necessidades”. Perceba-se, no entanto, que essa dimensão de  
vingança permanece afinal, em um regime de exploração da força de trabalho, ser  
inexplorável apenas pode ser representar o maior dos crimes:  
Para tornar perfeitamente claro a grandeza de seu crime, um crime  
que consiste em, no lugar de ser material produtivo e lucrativo para a  
burguesia, como no curso normal da vida, ter se transformado antes  
em custo para seu usufrutuário nato, do mesmo modo que os tonéis  
oscilações menores de períodos de vitalidade média, produção a todo vapor, crise e estagnação,  
repousa sobre a formação constante, sobre a maior ou menor absorção e sobre a reconstituição do  
exército industrial de reserva ou superpopulação. Por sua vez, as oscilações do ciclo industrial conduzem  
ao recrutamento da superpopulação e, com isso, convertem-se num dos mais enérgicos agentes de sua  
reprodução” (MARX, 2017, p. 708). Por superpopulação relativa, Marx está designando “uma população  
trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de  
valorização do capital e, portanto, supérflua” produzida constantemente pela acumulação capitalista,  
“na proporção de sua energia e volume” (MARX, 2017, p. 705). O termo “exército industrial de reserva”  
parece designar o mesmo, especificamente no contexto da Grande Indústria.  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
de bebidas deixados no depósito se tornam custo para o comerciante  
de álcool; para que aprendam a perceber toda a grandeza desse crime,  
são privados de tudo o que se concede aos criminosos comuns,  
convívio com mulher e filhos, entretenimento, fala tudo (MARX,  
2020, p. 363).  
Mas o exemplo não se esgota na Inglaterra. Marx já enxergava, nas Glosas, a  
adoção do direito penal no trato com o pauperismo como algo não apenas local, mas  
como uma tendência universal, própria daqueles países que pensam politicamente,  
como era também o caso da França. Pensando politicamente, Napoleão quis também  
lidar com o pauperismo em uma canetada. Optou pela repressão criminalizante, aqui  
ainda mais explicitamente travestida de beneficência: uma “instituição de custódia  
policial”, logo convertida em penitenciária, que representa, para a carência, “refúgio”;  
para a pobreza, “meio de subsistência”; para a infância, acolhimento; para os  
trabalhadores, “encorajamento” e “ocupação”; para os franceses: “fim de uma visão  
repugnante das enfermidades e da vergonhosa miséria” (MARX, 2010b, p. 36).  
Aqui,  
ainda  
mais,  
fica  
nítido  
como  
a
repressão  
e
a
beneficência/caridade/assistência aparecem como dois elos indissociáveis, dotados de  
um mesmo pano de fundo e operando sob uma lógica similar, e ambas, ainda,  
expressão concreta de um determinado modo politicista de pensar, alvo de incisiva  
crítica pelo Marx de 1844. O autor também interpreta as razões por detrás da  
“beneficência policial francesa”, adotada no lugar da assistência ou de outras medidas  
administrativas: escolher em sentido contrário, com “a alimentação e educação das  
crianças desvalidas, isto é, a alimentação e educação de todo o proletariado em fase  
de crescimento, representaria o aniquilamento do proletariado e do pauperismo”  
(MARX, 2010b, p. 37).  
Em resumo, o Marx propriamente marxiano que aparece após a viragem  
fundamental promovida em seu pensamento a partir de meados de 1843, será um  
crítico ferrenho da Política e do Estado. O foco deixa de ser a “revolução política pelo  
estado racional” e passa a ser a revolução radical das próprias condições de vida, que  
teria por central não mais a mera emancipação política, mas, sobretudo, a emancipação  
humana geral, levada a cabo por uma classe que representa, em essência, a dissolução  
mesma das classes enquanto tais (CHASIN, 2009, p. 62).  
A busca por essa emancipação deve ter por norte não uma mera prática política,  
mas, sobretudo, uma prática metapolítica, isto é, um fazer político que desfaça a  
política”, [...] que se desembarace de formas particularmente ilegítimas e  
comprometidas de dominação política, para substituí-las por outras supostas como  
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melhores, mas que vá se desfazendo, desde o princípio, de toda e qualquer  
politicidade, à medida que se eleva da aparência política à essência social das lutas  
históricas concretas, à proporção em que promove a afloração e realiza seus objetivos  
humano-societários, os quais, em suma, têm naquela ultrapassagem, indissociável da  
simultânea superação da propriedade privada dos meios de produção, a condição de  
possibilidade de sua realização (CHASIN, 2009, pp. 65-66). Marx passa, assim, de uma  
apologia à ideia de Estado enquanto atributo universal e racional da sociabilidade  
humana, como esfera em que se realiza a liberdade humana, a uma crítica ontológica  
à própria noção de Estado.  
No plano do direito, Marx aparece, enfim, como crítico aos chamados direitos  
do homem e do cidadão, como sendo expressão de uma emancipação meramente  
política e, como tal, limitada. Quanto à pena, em específico, o autor alemão explicita o  
modo como ela foi utilizada, por aqueles países que mais se reivindicaram políticos,  
como medida de administração e de perpetuação do pauperismo. Marx aponta  
particularmente como essa espécie de “beneficência policial” esteve historicamente ao  
lado e por vezes se confundindo com a assistência, na medida mesma em que ambas  
foram fruto de um “entendimento político” circunscrito aos limites do que o Estado  
tem a ofertar. Em íntima conexão com sua crítica à política, ao Estado e ao direito,  
como não poderia deixar de ser, Marx também empreende aqui uma crítica à “verdade  
do aquém” da pena, deixando clara sua determinação também ontonegativa: longe de  
um atributo intrínseco do ser social, de uma espécie de segunda natureza, a pena tem  
uma história, que parece estar intimamente ligada à história daquela forma de  
sociabilidade que o autor passa, naqueles anos, a criticar de forma decisiva.  
Desenvolvimentos posteriores de uma determinação ontonegativa da pena:  
Pena Capital, A Sagrada Família e A Ideologia Alemã  
O momento em que a ruptura empreendida no pensamento de Marx fica mais  
evidente quanto aos temas que nos interessam em especial neste estudo se situa em  
um artigo escrito em 1853 para o The New York Tribune, periódico que Marx passou  
a compor como representante internacional. No artigo, denominado Pena Capital  
(MARX, 2014), o Marx já propriamente marxiano e maduro entra em polêmica com a  
concepção descrita por Marx como “kantiana-hegeliana” de crime e punição. Como diz  
Marx, Hegel, em seu Filosofia do Direito, afirmara ser a pena um direito do criminoso,  
na medida em que seria fruto de um ato de sua própria vontade. Sendo o crime a  
negação do direito, a punição representaria a negação da negação e, por  
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consequência, uma afirmação do direito, demandada pelo próprio criminoso (MARX,  
2014, p. 33).  
Essa concepção kantiana, levada às suas últimas consequências por Hegel,  
apresenta semelhanças, como mostramos, com aquela defendida por Marx na Gazeta  
Renana. O crime, como um ato voluntário, representaria uma ruptura com o direito, e  
a pena surgiria no sentido de reconciliar o violador com a esfera jurídica, reafirmando,  
com isso, o direito em sua imperecibilidade.  
Contudo, em Pena Capital, Marx faz uma análise bastante crítica de tal  
interpretação, afirmando que ela partiria de uma concepção segundo a qual o  
criminoso é um ser livre e autodeterminado, quando, na verdade, ele nada mais é que  
um “mero objeto”, um “mero escravo da justiça” (MARX, 2014, p. 33). Marx amplia a  
crítica para toda a tradição do idealismo alemão, de que Kant e Hegel são  
representantes, afirmando que essa filosofia acaba, nesse caso e na maioria dos outros,  
por apenas “dar uma sanção transcendental às leis da sociedade existente” (MARX,  
2014, p. 33).  
Marx sinaliza, aqui, para o rompimento com o idealismo alemão, que exerceu  
uma forte influência em suas obras de juventude. Com isso, o autor antecipa a máxima  
que viria a desenvolver anos depois no Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia  
Política, segundo a qual: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser;  
ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2008, p. 47).  
Rompendo, assim, com uma tendência idealista de análise do realmente existente (em  
meio a ele, o Estado, o Direito, o crime etc.) a partir de um “conceito” ou “ideia” desses  
elementos – o que acabava por resultar em uma “sanção” ou uma legitimação  
transcendental às regras da realidade efetiva , Marx toma como ponto de partida o  
realmente existente, em uma tentativa de apreender as determinações da realidade  
objetiva e, assim, poder exercer um papel transformador sobre ela.  
E é com base nessa perspectiva materialista que Marx conclui seu raciocínio  
acerca do papel da punição na reprodução social, afirmando “claramente, e  
dispensando todas as paráfrases”, que “a punição nada mais é que um meio de a  
sociedade defender-se contra a infração de suas condições vitais, qualquer que seja o  
caráter destas” (MARX, 2014, p. 33). O papel da punição não está em reconciliar o  
homem com o direito, esfera da liberdade e da igualdade por excelência, mas, ao  
contrário, a assegurar a manutenção e a perpetuação de um estado de coisas, ainda  
que esse status quo tenha por referência uma sociedade baseada na desigualdade e  
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na exploração, que se transmuta, para citar Hegel, em um “espetáculo de devassidão  
bem como o da corrupção e da miséria" (HEGEL, 1997, p. 169).  
Quanto à função preventiva da pena, o Marx de 1853 afirma que “a punição,  
geralmente, tem sido defendida como um meio quer de melhoramento quer de  
intimidação. Que direito terias tu de punir-me para melhorar ou amedrontar outrem?”  
(MARX, 2014, p. 33). O autor completa o raciocínio classificando essa função declarada  
como algo carente de qualquer comprovação científica: “E, além disso, há história – há  
uma coisa como a estatística que prova com a mais clara evidência que desde Caim  
ninguém no mundo em nada foi amedrontado ou melhorado pela punição. Muito ao  
contrário” (MARX, 2014, p. 33). Há, novamente, uma ruptura clara com seus escritos  
de 1842, nos quais, conforme analisamos, era nítida a defesa de uma função  
preventiva da pena pública.  
Em Pena Capital, portanto, Marx apresenta uma visão essencialmente crítica a  
respeito das funções declaradas da pena pública, uma concepção que, agora, mais se  
aproxima da ideia do direito como mero “reconhecimento oficial do fato” (MARX,  
1985) e como mero sancionador do existente do que propriamente como esfera  
universal da liberdade. Ao mesmo tempo, questiona os discursos que atribuem a  
legitimidade dessa forma de punição a um pretenso livre-arbítrio do criminoso.  
Com isso, Marx consolida uma linha de definição sobre o crime e a pena que já  
vinha mostrando suas nuances desde 1844, com os textos analisados no tópico  
anterior, mas que também aparece na fase imediatamente posterior de sua formulação  
teórica, em textos como A Sagrada Família, escrita em 1844, e A Ideologia Alemã,  
escrita entre 1845 e 46.  
N’A Sagrada Família, Marx aparece como um crítico de uma teoria penal que  
não questiona a pena em si, mas apenas o modo de sua aplicação. Como um profundo  
crítico da moral, entendida como “impotência posta em ação”, Marx empreende uma  
crítica não-moral à moralidade burguesa, alicerce de uma teoria da pena que,  
equivalendo as noções de essência e de existência (de modo a sancionar as regras do  
realmente existente), aniquila individualidades. Contra uma visão que pressupõe o  
indivíduo atomizado, isolado, que age em conformidade puramente com sua vontade  
e que deve se moldar a uma dada visão de mundo tida como universal e necessária,  
Marx afirma que o crime consiste na manifestação de forças essenciais humanas, por  
vezes defeituosas ou excessivas, mas ainda forças essenciais humanas. O autor  
questiona o trato aniquilador e mutilador dessas manifestações essenciais, presente,  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
no âmbito literário, na teoria penal de Rodolfo personagem do romance de Eugéne  
Sue e considerado uma encarnação da teoria neo-hegeliana dos irmãos Bauer e, no  
âmbito da realidade histórica, no sistema prisional celular. De forma mais ampla, a  
pena, como imposição ligada à defesa de uma determinada moralidade, a qual, por  
sua vez, é expressão de uma dada configuração social, contradiz o comportamento  
humano, na medida em que faz caso omisso da individualidade, pressupondo-a  
universal, pré-formatada, a-histórica e uniforme, abstraindo, com isso, a concretude da  
natureza humana e o caráter ativo, dinâmico, histórico e social da objetivação dessa  
natureza. A pena criminal, assim como a penitência religiosa, atua como instrumento  
de castração de individualidades, ao passo que o que importa, Marx afirmou sem o  
assumir, é desvelar as raízes antissociais do crime e formar as circunstâncias  
humanamente, na medida em que é meio a essas circunstâncias que a subjetividade  
do homem (necessariamente histórica e socialmente determinada) é formatada (MARX;  
ENGELS, 2003, p. 150). O caminho é, Marx deixa implícito ao analisar uma visão  
atribuída ao Materialismo Francês, não castigar o crime no indivíduo, mas propiciar  
que esses sujeitos tenham condições de exteriorizar livremente sua individualidade,  
construindo as circunstâncias nas quais o próprio indivíduo, necessariamente ser  
social, forja sua existência humanamente.  
Se em 1845 esse tratamento aparecia em meio a um questionamento à  
moralidade burguesa como um todo, enquanto esfera escamoteadora dos conflitos  
reais, n’A Ideologia Alemã o autor concebe o crime, de forma mais explícita, como uma  
“luta do indivíduo isolado contra as condições dominantes”, como algo, portanto, que  
nada tem de “arbitrário” e que, “ao contrário, está nas mesmas condições que aquele  
domínio [o direito]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318).  
Além disso, Marx também reitera seu tratamento crítico quanto à concepção  
hegeliana da pena, embora reconheça em Hegel mais méritos que em Max Stirner,  
contra cuja teoria se dirigia naquele momento. Afirmando de modo mais claro sua  
concepção materialista da história, Marx, em conjunto com Engels, questionava a  
concepção de Max Stirner aliás antitética com sua própria obra segundo a qual o  
direito é o espírito da sociedade, consistindo na própria vontade soberana e arbitrária  
desta. Stirner, portanto, contraditoriamente à sua própria alegação anterior do direito  
como “poder do homem”, concebe a vontade como base do direito.  
Para Marx e Engels, no entanto, entender o direito como baseado puramente  
na vontade, isto é, entender o direito como uma criação da vontade, significaria  
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hipostasiar todas as condições materiais que constituem, essas sim, a base real sobre  
a qual o direito (e também o Estado) se apoiam. Tal resultaria, no fim, em uma visão  
idealista sobre o direito.  
Como afirmam os autores, “o direito não procede da pura arbitrariedade”, mas  
é, ao contrário, expressão do próprio modo de vida material dos indivíduos, ainda que  
os indivíduos que pertencem à classe dominante tenham de “conferir à sua vontade  
condicionada por essas condições bem determinadas uma expressão geral como  
vontade do Estado, como lei uma expressão cujo conteúdo sempre é dado pelas  
condições dessa classe, do que o direito privado e o direito criminal são a prova mais  
cabal” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318). Ou seja, o direito e o Estado não provêm do  
mero arbítrio dos indivíduos, sendo, contrariamente, expressão de um determinado  
modo de produção e reprodução da vida material, correspondente a um determinado  
estágio de desenvolvimento das forças produtivas, muito embora esse Estado –  
reitere-se: procedente do modo de vida material dos indivíduos – tenha “também a  
forma de uma vontade soberana”, expressa de forma genérica na lei (MARX; ENGELS,  
2007, p. 318).  
De fato, para manter suas condições de dominação, uma determinada classe  
precisa afirmar seus interesses interesses de classe que são como interesses gerais,  
como uma vontade geral consubstanciada no Estado e expressa em lei. Essa expressão  
genérica serve, materialmente, tanto para garantir seus interesses em contraste com  
aqueles das classes dominadas quanto para, em um nível intraclasse, servir como  
autoafirmação de interesses na média dos casos, elevando a lei a um estrato fora do  
alcance da arbitrariedade pessoal e do egoísmo de cada indivíduo pertencente à  
própria classe dominante e, com isso, servindo como uma espécie de “autorrenúncia  
como exceção” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318).  
Não há, portanto, uma vontade como mero arbítrio, desvinculada das próprias  
condições pelas quais os indivíduos produzem sua existência. Ao contrário, “a vida  
material dos indivíduos, que de modo algum depende de sua ‘mera vontade’, seu modo  
de produção e as formas de intercâmbio que se condicionam reciprocamente são a  
base real do Estado” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 317-318). Os autores reforçam:  
“essas condições reais de modo algum foram criadas pelo poder do Estado; elas são,  
antes, o poder que o cria” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 317-318). Entender em sentido  
contrário, na visão exposta n’A Ideologia Alemã, significaria conceber o Estado e o  
direito como sendo dotados de uma história própria, recaindo naquilo que Marx e  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
Engels chamaram de “ilusão específica dos juristas e políticos” (MARX; ENGELS, 2007,  
p. 319).  
O crime, para os autores, e aqui Marx e Engels parecem estar se referindo a  
uma determinada utilização específica do crime, situa-se no mesmo domínio do direito,  
isto é, como algo que não pode ser entendido como proveniente exclusivamente do  
arbítrio, de uma vontade “identificável em todas as épocas e sob todas as  
circunstâncias” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318). O crime aparece como expressão –  
não a única possível, nem a necessária – de um “querer” das classes dominadas de  
eliminar determinadas condições de vida predominantes, isto é, o crime aparece como  
fruto de uma “vontade” que não encontra como correlato um suficiente  
desenvolvimento das forças produtivas capaz de tornar a concorrência, e com ela o  
Estado e o direito, algo supérfluo e, portanto, superável.  
Com isso, os autores fogem tanto da robinsonada de conceber o crime como  
mero ato de vontade do sujeito, como também não recaem em uma romantização do  
delito como algo revolucionário já que, embora expressão de uma luta contra as  
condições dominantes, o crime é a luta do indivíduo isolado, não mediado pela  
consciência de classe, não incorporado a uma forma de organização coletiva e colocada  
em um contexto em que as condições objetivas para uma ação revolucionária efetiva  
não estão colocadas. Ao mesmo tempo, Marx e Engels apontam que o direito penal,  
como todo o direito, não tem uma história própria independente da história dos modos  
de produção da vida material, e ele tende a expressar as contradições da própria luta  
de classes ou, mais especificamente, os interesses da classe dominante.  
Desse modo, se entre 1842 e 1843 o que se percebe é uma viragem, uma  
ruptura decisiva no pensamento de Marx sobre o crime e a punição, no período  
subsequente, que vai de 1844 a 1853 para considerar apenas a miríade de textos  
aqui selecionados , o que se percebe é uma tendência de continuidade, embora com  
desenvolvimentos, incorporação de novos elementos e argumentos e complexificação  
das análises, em diferentes níveis de abstração. O mesmo se poderia dizer, ainda que  
aqui não tenhamos espaço para desenvolver o argumento, em relação ao restante do  
percurso intelectual de Marx que, n’O Capital, seguirá apontando, a partir da análise  
das leis terroristas ou sanguinárias, das leis para compressão dos salários e das leis  
anticoalizão, a historicidade das formas punitivas, bem como sua ligação umbilical com  
as demandas colocadas pelo capitalismo, enquanto novo modo de produção em  
desenvolvimento (Cf. SARTORI; MEDRADO, 2021; MEDRADO, 2021).  
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Considerações finais  
Buscamos apontar, a partir de textos de ao menos dois diferentes momentos  
da obra de Marx, como o acerto de contas com a obra de Hegel imprimiu também uma  
viragem brusca no pensamento marxiano quanto ao crime e à punição. À semelhança  
do que ocorre com o tratamento do Estado, da política e do direito, percebe-se a  
passagem de uma visão ontopositiva para uma visão ontonegativa da pena.  
Na Gazeta Renana, de 1842, a punição é entendida como mediação possível  
entre criminoso e o direito, este concebido, assim como o Estado, enquanto esfera da  
liberdade, da universalidade e da racionalidade. A aplicação da pena representaria um  
autoenjuizamento do criminoso, na medida em que já estaria pressuposta em sua  
manifestação de vontade de violar a racionalidade do direito. A pena, então, permitiria  
ao indivíduo que praticou um crime, um cidadão que compõe um dos milhares de  
nervos do organismo vivo Estado, reconciliar-se com essa comunidade política e ética  
estatal, mantendo, com isso, sua organicidade. A pena significa, nesse sentido,  
condenar um cidadão a uma vida de liberdade, coincidente com a vida política na  
comunidade ética do Estado.  
A partir de 1843 e 1844, como mostrado, Marx, na exata medida que passa a  
ser um crítico do Estado, da política e do direito, enxerga a pena, em uma conceituação  
já presente implicitamente nos textos escritos nesse período, mas explicitado  
definitivamente apenas em 1853, como um meio de a sociedade, seja qual for seu  
caráter, se defender contra a infração de suas condições vitais. É tomando essa  
conceituação como pressuposto que Marx empreenderá uma profunda crítica às  
workhouses, como sendo, ao lado da beneficência, mas aquém dela, a expressão de  
um politicismo que, para lidar com as mazelas decorrentes do próprio processo de  
gestação e de desenvolvimento do capitalismo, assume a feição de “caridade feroz”  
ou de “beneficência policialesca”. O pauperismo, convertido em “instituição nacional”,  
passa a ser gerenciado, de um modo tal a castigar aqueles miseráveis que ousam  
apelar à caridade burguesa, como Marx defende na Glosas Críticas de 1844.  
No período imediatamente subsequente à viragem, de 1845-1853, a  
ontonegatividade da pena permanece uma constante, ao mesmo tempo que recebe  
novos contornos. São incorporados elementos da crítica à economia política e de uma  
crítica não-moral à moralidade burguesa, ao mesmo tempo que são mobilizados outros  
argumentos em torno da crítica ao Estado e ao direito. As workhouses agora aparecem  
como meio de servir às necessidades do capitalismo, em diferentes fases de seu  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
desenvolvimento, controlando a disponibilidade de mão-de-obra, os níveis salariais e  
o potencial de insubmissão do proletariado e do lumpen, conforme a perspectiva  
expressa em 1848 na Nova Gazeta Renana. O desenvolvimento é coerente,  
acreditamos, com todo o restante do percurso intelectual de Marx, que, n’O Capital,  
complexificará ainda mais a análise, apontando o papel das leis sanguinárias, das leis  
para compressão dos salários e das leis anticoalizão na infância do capitalismo de via  
clássica.  
O Marx propriamente marxiano é, em resumo, um profundo crítico da pena,  
crítica essa que se situa, no entanto, não como uma crítica ao sistema penal em  
apartado, mas, ao contrário, é uma crítica que se concatena com a própria crítica à  
sociabilidade capitalista como um todo, que tem por consectário a crítica ao Estado, à  
política e ao direito. O crime, entendido como luta do indivíduo isolado contra as  
condições dominantes carrega consigo uma série de nuances, que se relacionam nem  
a um determinismo nem à noção de uma vontade desimpedida, mas, antes, às próprias  
condições engendradas por um determinado modo de produção e de reprodução da  
vida.  
Com isso, esperamos ter desmitificado tanto uma visão determinista, que reduz  
às contribuições de Marx à “questão penal” à pressuposição de uma relação imediata  
e mecânica entre crime e pobreza, quanto uma visão de que o autor dê um trato  
moralista à questão. Ainda, esperamos ter demonstrado a relevância do estudo  
daquelas obras frequentemente tidas como “de juventude” do autor, embora  
expressem já um Marx propriamente marxiano, para a crítica ao Estado, ao direito e,  
sobretudo, ao sistema penal, seja sob a forma de “beneficência policialesca”, seja sob  
a forma de pena propriamente dita.  
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_____. Os despossuídos. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2017a.  
_____. Pena Capital Panfleto do Sr. Cobden Regulações do Banco da Inglaterra.  
Trad. José Lopes Alves. In: Revista Verinotio, nº 19, Ano X, abr. 2014, pp. 32-35.  
_____. Sobre A questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010c.  
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família ou a crítica da Crítica crítica: contra  
Bruno Bauer e consortes. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003.  
_____. A Ideologia Alemã. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini  
Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.  
MEDRADO, Nayara. Marx e Engels como inauguradores de uma economia política da  
pena. In: MARTINS; TEIXEIRA; SERRA; MEDRADO. Economia Política da Pena e  
capitalismo dependente brasileiro. São Paulo: Editora Dialética, 2021.  
SARTORI, Vitor Bartoletti; MEDRADO, Nayara. Apontamentos sobre crime, Direito Penal  
e pauperismo em Marx In: Revista Brasileira de Ciências Criminais: RBCCrim, São  
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VAISMAN, Ester; ALVES, Antônio José Lopes. Apresentação. In.: CHASIN, José. Marx:  
estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 305-335 jan.-jun., 2024  
nova fase  
De pré-marxiano a propriamente marxiano  
Como citar:  
MEDRADO, Nayara Rodrigues. De pré-marxiano a propriamente marxiano: o  
tratamento do crime e da punição em dois momentos da obra de Marx. Verinotio,  
Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 305-335; jan.-jun., 2024  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 305-335 jan.-jun., 2024 | 335  
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