DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.712  
Os direitos humanos à luz de O capital  
Elementos para uma aproximação  
(Parte 01)  
The human rights in the light of The Capital  
Elements for an approximation  
(Part 01)  
Vinícius Casalino*  
Resumo: O artigo procura compreender a  
natureza dos direitos humanos à luz de O capital,  
de Karl Marx. Sustenta a hipótese de que tais  
direitos devem ser analisados sob a óptica da  
esfera da circulação mercantil em conexão com a  
esfera da produção do mais-valor. A partir da  
noção de interversão das leis de produção  
mercantil em leis de apropriação capitalista,  
busca demonstrar como os direitos humanos  
devem ser compreendidos através da articulação  
entre identidade formal dos sujeitos de direito e  
diferença material entre classes sociais. As  
conclusões revelam que tais direitos, embora  
expressem e assegurem modos capitalistas de  
exploração e acumulação, abrem importantes  
espaços de lutas sociais de resistência em  
âmbitos institucionais. O método utilizado é o  
dialético-materialista.  
Abstract: The article seeks to understand the  
nature of human rights in the light of Karl Marx’s  
The Capital. It supports the hypothesis that such  
rights must be analyzed from the sphere of  
mercantile circulation in connection with the  
sphere of production of surplus value. Based on  
the notion of interversion of the laws of  
mercantile production into laws of capitalist  
appropriation, it seeks to demonstrate how  
human rights should be understood through the  
articulation between formal identity of subjects  
of law and material difference between social  
classes. The conclusions reveal that such rights,  
although they express and ensure capitalist  
modes of exploration and accumulation, open  
important spaces for social struggles of  
resistance in institutional settings. The method  
used is dialectical-materialist.  
Palavras-chave: Crítica marxista do direito;  
forma mercantil e forma jurídica; equivalência e  
interversão; sujeito de direito e classes sociais;  
direitos humanos e capitalismo.  
Keywords: Marxist critique of law; mercantile  
form and legal form; equivalence and  
interversion; subject of law and social classes;  
human rights and capitalism.  
E a igual exploração da força de trabalho  
é o primeiro direito humano do capital.  
Karl Marx  
Introdução1  
O problema dos direitos humanos tem sido quase sempre uma espécie de  
* Professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica  
de Campinas (PUC-Campinas). Doutor e mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito  
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco USP). Email:  
1 O trabalho divide-se em três partes das quais a primeira, que é o conteúdo deste trabalho, analisa os  
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Os direitos humanos à luz de O capital  
“pedra no sapato” do marxismo. Desde que Marx publicou Sobre a questão judaica e  
mostrou, acertadamente, que os direitos do homem não passam dos direitos do  
indivíduo burguês e egoísta que habita a sociedade capitalista, “recolhido ao seu  
interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade” (MARX, 2010,  
p. 50), os marxistas têm sérias dificuldades para lidar com o tema.  
Esta dificuldade decorre do caráter ambíguo, ou melhor, contraditório, do  
objeto. Se é certo, por um lado, que os direitos humanos são produzidos no contexto  
de um modo de produção fundado na exploração e na dominação de uma classe por  
outra, assegurando, de fato, esse estado de coisas; é certo também, por outro lado,  
que sua linguagem humanista e universal abre relevantes espaços de lutas de  
resistência e reivindicações que não podem ser desprezados, mesmo por aqueles e  
aquelas que clamam pela superação revolucionária da sociedade capitalista.  
É necessário, portanto, adotar uma dupla precaução: não mistificar os direitos  
humanos, procurando sua origem em postulados metafísicos como a “natureza do  
homem” ou a “dignidade da pessoa humana”, como faz a teoria tradicional, e  
tampouco desprezá-los ou tratá-los de modo displicente, como se não passassem de  
artifícios retóricos ou simples “ilusões” criadas pela sociedade capitalista.  
Antes de tudo, é preciso chamar a atenção para duas constatações.  
Em primeiro lugar, registre-se que Marx não conheceu os chamados direitos de  
segunda dimensão, isto é, os direitos econômicos e sociais, cuja positivação nas  
constituições teve lugar somente na primeira metade do século XX2. Assim, em Sobre  
a questão judaica, o filósofo tem em mente os denominados direitos de primeira  
dimensão, ou seja, aqueles ligados à superfície da economia de mercado, a saber:  
liberdade, propriedade privada, igualdade formal e segurança. Nada obstante, os  
direitos de segunda dimensão cumprem importante papel no que concerne à  
redistribuição, ou melhor, à devolução do excedente econômico à classe trabalhadora,  
o que permite sua manutenção existencial em patamares mínimos que viabilizem a  
organização para lutas de resistência e, quiçá, revolucionárias.  
Em segundo lugar, Marx não presenciou e talvez sequer julgasse possível a  
chamados direitos de primeira dimensão. A segunda parte, que será o conteúdo de um segundo artigo,  
tratará dos direitos de segunda dimensão. A terceira e última parte, conteúdo de um terceiro trabalho,  
apresentará a síntese necessária à compreensão global dos direitos humanos sob a óptica marxista.  
2
Não nos deteremos nas diferenças doutrinárias entre “direitos do homem”, “direitos humanos” e  
“direitos fundamentais”, tampouco nas distinções entre “gerações” e “dimensões” de tais direitos,  
questões típicas da teoria tradicional. Para um olhar abrangente e bem contextualizado sobre o tema,  
sob perspectiva tradicional, veja-se: (SARLET, 2012, pp. 27-57).  
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captura da classe trabalhadora pelas forças políticas reacionárias e de extrema direita,  
como ocorreu nos regimes totalitários fascista e nazista. Sobretudo este último, que  
aplicou os princípios da moderna divisão do trabalho à eliminação sistemática do povo  
judeu, dos comunistas e de outras minorias, impõe ao marxismo que reflita seriamente  
sobre a natureza dos direitos humanos, deixando de lado bravatas e simplificações  
que, enfraquecendo tais direitos, têm por consequência, no limite, o fortalecimento da  
nova direita e dos regimes de subversão interna da democracia formal3.  
Assim, este trabalho, que é dividido em três partes4, procura analisar a natureza  
dos direitos humanos à luz de O capital, obra de maturidade de Karl Marx.  
Não se trata, evidentemente, de abandonar as concepções marxianas expostas  
nas obras de juventude. Trata-se, sim, de incorporá-las à dinâmica de amadurecimento  
da reflexão econômico-filosófica de Marx, acompanhando o desenvolvimento de seu  
percurso intelectual até o auge, que se encontra na crítica da economia política5. A  
hipótese que se sustenta pode ser enunciada do seguinte modo: a estrutura dos  
direitos humanos é decifrada a partir da análise da esfera da circulação mercantil, da  
troca de equivalentes e da identidade formal que caracteriza a figura do sujeito de  
direito (numa palavra, juridicamente); a partir daí, é preciso considerar a esfera da  
produção do mais-valor absoluto e relativo, o intercâmbio de valores não-equivalentes,  
a exploração de uma classe social por outra e, portanto, as relações políticas que daí  
provêm. É na síntese destas duas esferas, cuja chave para compreensão reside na  
categoria da interversão, que se pode compreender adequadamente a estrutura social  
e normativa dos direitos humanos, sua origem material e seus limites práticos.  
Desse modo, a primeira parte do trabalho, conteúdo deste artigo6, procura  
investigar a gênese dos chamados direitos humanos de primeira dimensão, cuja origem  
3
É preciso considerar, com a devida seriedade, as observações de Herbert Marcuse sobre a potência  
totalitária que há no discurso e na prática liberal: “A mudança do Estado liberal ao Estado total-  
autoritário ocorre no plano da mesma ordem social. No que concerne a essa unidade da base econômica  
é possível afirmar: o liberalismo ‘gera’ a partir de si próprio o Estado total-autoritário, como sendo a  
sua realização plena num estágio evoluído do desenvolvimento. O Estado total-autoritário fornece a  
organização e a teoria social que correspondem ao estágio monopolista do capitalismo” (MARCUSE,  
2006, p. 61). Assim, o apoio teórico, jurídico e político aos direitos humanos, pelas forças progressistas,  
pode se revelar como uma importante forma de “bloqueio” desta passagem que, no limite, é quase  
inevitável.  
4 Vide nota de rodapé nº 01.  
5
Nesse sentido, Reichelt observa: “Por essa razão, queremos aplicar mais uma vez à própria obra de  
Marx a sua indicação metodológica quanto à elaboração conceitual de formações sociais mais antigas  
(...) e interpreta as formulações anteriores a partir da perspectiva da obra tardia” (REICHELT, 2013, p.  
34, passim).  
6 Vide nota de rodapé nº 01.  
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encontra-se na esfera da circulação mercantil. Trata-se de mobilizar o aparato  
conceitual produzido por Marx e Pachukanis para compreender de que maneira tais  
direitos podem ser considerados expressão da forma jurídica. Nesse sentido, a primeira  
seção propõe a passagem de Sobre a questão judaica a O capital com o objetivo de  
entender como o indivíduo burguês e egoísta apresentado na primeira, ressurge, na  
segunda, como guardião de mercadorias. Em seguida, analisa-se a figura do sujeito de  
direito e a noção, teoricamente incorreta, de que os direitos humanos podem ser  
compreendidos como espécies de direitos subjetivos (MASCARO, 2017). A terceira  
seção procura mostrar como a passagem da circulação simples à circulação do dinheiro  
como capital, embora implique uma diferença formal, projeta uma identidade jurídica  
no âmbito da forma do sujeito de direito, o que é fundamental para o sentido geral e  
universal dos direitos humanos. A última seção demonstra como o trabalhador e a  
trabalhadora, por serem proprietários da mercadoria força de trabalho, também  
assumem a forma de sujeito de direito e, portanto, sentem-se contemplados pelos  
direitos de primeira dimensão. Tal constatação coloca em questão uma abordagem  
marxista meramente negativa dos direitos humanos.  
Na segunda parte do trabalho7, analisar-se-á a produção do mais-valor absoluto  
e relativo e o modo como as classes sociais são integradas à apresentação marxiana,  
dando ensejo a relações políticas e revelando a natureza dos direitos de segunda  
dimensão. A terceira e última parte apresentará a noção dialética de interversão, com  
apoio na leitura de Ruy Fausto8. O objetivo será o de compreender a articulação precisa  
entre as esferas da circulação e da produção, cuja síntese permite descobrir a natureza  
específica dos direitos humanos e sua abertura para novas dimensões.  
As conclusões alcançadas, que vêm à tona em toda a sua extensão apenas na  
última parte do trabalho9, revelam que os direitos humanos, em sua essência, visam à  
conservação da estrutura econômica, jurídica e política da sociedade do capital,  
assegurando modos de exploração e acumulação capitalistas e apresentando,  
portanto, caráter conservador. Contraditoriamente, no entanto, sua forma aparente,  
7 Vide nota de rodapé nº 01.  
8 Tal categoria, que é fundamental para a compreensão da estrutura lógica de apresentação de O capital,  
tem passado despercebida pela teoria marxista e, em especial, pela crítica do direito. A propósito,  
Fausto anota: “A esse respeito, é impressionante constatar como o conteúdo desses textos, e mesmo,  
simplesmente, o seu sentido geral, foi ignorado ou mal conhecido. A razão desse curto-circuito é a  
mesma proposta de ‘simplificação’ da teoria da circulação simples: num caso e no outro, trata-se de um  
texto rigorosamente dialético” (FAUSTO, 2021, pp. 30-31).  
9 Vide nota de rodapé nº 01.  
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por contemplar aspecto humanista e universal, permite vocalizar reivindicações e  
aspirações da classe trabalhadora e de minorias vulneráveis, revelando natureza  
progressista e demarcando importantes espaços de lutas sociais e institucionais de  
resistência.  
O método utilizado é o dialético-marxiano, isto é, a dialética tal como concebida  
por Karl Marx e concretizada, sobretudo, em O capital. Vale lembrar que, ao contrário  
do método desenvolvido por Hegel, que é idealista, Marx busca a análise concreta das  
relações sociais, de modo que as abstrações teóricas não devem ser confundidas com  
estruturas de pensamento autônomas ou ensejadoras da realidade, mas como sínteses  
de múltiplas determinações que emanam da realidade contraditória, ou seja, como o  
concreto pensado (MARX, 2011, p. 54).  
I. Passagem de Sobre a questão judaica para O capital  
Em Sobre a questão judaica, trabalho publicado em 1844, Marx, seguindo de  
perto o texto da declaração francesa de 1789, analisa os direitos humanos sob duas  
perspectivas: os direitos do homem e os direitos do cidadão. Trata-se daquilo que a  
teoria tradicional chama de direitos de primeira geração ou dimensão10.  
Tais direitos surgem no contexto da sociedade moderna - diferente e  
superadora do mundo feudal - que se organiza em torno da indústria e do comércio  
privados. São novos modos de sociabilidade do indivíduo burguês que, acorrentado à  
lógica do excedente econômico, dá vazão à produção e reprodução econômica por  
intermédio de relações bem demarcadas, caracterizadas pela liberdade de  
empreendimento, igualdade formal e autonomia para a disposição de bens.  
Estas novas relações sociais emanam da propriedade privada que visa ao lucro  
e, portanto, dissolvem antigos nexos sociais comunitários baseados na feudalidade.  
Isso significa que, se outrora os poderes econômico e político concentravam-se nas  
mãos dos senhores feudais, da aristocracia ou realeza, agora eles foram cindidos e  
separados. A atividade econômica pertence ao indivíduo que produz e comercializa  
10 Mesmo neste caso, em que Marx faz a crítica dos direitos humanos, não a faz no sentido meramente  
negativo, mas com vistas à compreensão das limitações que tais modos de sociabilidade apresentam  
no que concerne a uma eventual e desejável emancipação. A propósito, Mészáros anota: “O objeto da  
crítica de Marx não consiste nos direitos humanos enquanto tais, mas no uso dos supostos ‘direitos do  
homem’ como racionalizações pré-fabricadas das estruturas predominantes de desigualdade e  
dominação. Ele insiste que os valores de qualquer sistema determinado de direitos devem ser avaliados  
em termos de determinações concretas a que estão sujeitos os indivíduos da sociedade em causa; de  
outra forma, esses direitos se transformam em esteios de parcialidade e da exploração, às quais se  
supõe, em princípio, que se oponham em nome do interesse de todos” (MÉSZÁROS, 2008, p. 161).  
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bens e serviços sob a óptica do excedente econômico - numa palavra: o burguês. A  
função política demarca o indivíduo que se dedica à ação comunitária, que representa  
não o interesse egoísta, mas o de toda a comunidade - em suma: o cidadão.  
A produção e a circulação capitalista dão ensejo a modos de sociabilidade  
distintos daqueles que existiam no antigo regime, substituindo o privilégio feudal pelo  
direito burguês. Enquanto o primeiro se expressava por normas concretas e singulares,  
que asseguravam a dominação local e tradicional e o imobilismo da propriedade, o  
segundo demanda normas gerais e abstratas, aplicáveis a todos, cujo conteúdo  
exprime a liberdade, a igualdade formal e o fluxo perpétuo de bens e serviços.  
Uma vez que o direito burguês é declarado politicamente pelas forças  
vencedoras das revoluções liberais, seus múltiplos aspectos são reunidos e  
denominados “direitos humanos”. Estes, por sua vez, são considerados “direitos do  
homem”, quando ligados ao indivíduo em sua faceta econômica, e “direitos do  
cidadão” quando vinculados ao aspecto político.  
Esta cisão é reflexo da cisão que ocorre no interior da própria sociedade, isto  
é, da separação entre as esferas econômica e política, acima citada. A primeira  
caracteriza aquilo que Marx, mais tarde, denominará, na esteira de Hegel, de  
“sociedade civil”, ou seja, o âmbito da produção e troca privada de bens e serviços; a  
segunda demarca o chamado Estado moderno e a pretensa tutela do “interesse  
público”. Marx esclarece:  
Observemos por um momento os assim chamados direitos humanos,  
mais precisamente os direitos humanos sob sua forma autêntica, ou  
seja, sob a forma que eles assumem entre seus descobridores, entre  
os norte-americanos e os franceses. Esses direitos humanos são em  
parte políticos, direitos que são exercidos somente em comunhão com  
outros. O seu conteúdo é constituído pela participação na  
comunidade, mais precisamente na comunidade política, no sistema  
estatal. Eles são classificados sob a categoria da liberdade política sob  
a categoria dos direitos do cidadão, os quais, como vimos, de modo  
algum pressupõem a superação positiva e irrefutável da religião, e,  
portanto, inclusive por exemplo do judaísmo. Resta, então, analisar a  
outra parte dos direitos humanos, os droits de l´homme [direitos do  
homem], na medida em que são distintos dos droits du citoyen  
[direitos do cidadão] [...] Os droits de l´homme, os direitos humanos,  
são diferenciados como tais dos droits du citoyen, dos direitos do  
cidadão. Quem é esse homme que é diferenciado do citoyen?  
Ninguém mais ninguém menos do que o membro da sociedade  
burguesa. Por que o membro da sociedade burguesa é chamado de  
“homem”, pura e simplesmente, e por que seus direitos são chamados  
de direitos humanos? A partir de que explicaremos esse fato? A partir  
da relação entre o Estado político e a sociedade burguesa, a partir da  
essência da emancipação política (MARX, 2010, pp. 47/48, passim).  
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Note-se que, para o Marx de 1844, os direitos do homem, que marcam o núcleo  
dos direitos humanos, são as formas de sociabilidade ligadas ao indivíduo econômico,  
ao burguês, àquele que produz e comercializa sob o manto da propriedade privada  
visando ao lucro, enfim, “do homem egoísta, do homem separado do homem e da  
comunidade” (MARX, 2010, p. 48). Em síntese: a igualdade formal; a liberdade,  
sobretudo de comércio; a segurança, em especial a polícia; e a propriedade privada,  
com destaque para a transmissibilidade quase absoluta de bens e serviços11.  
Não bastasse a cisão entre a economia e a política, produzida pela sociedade  
moderna e suas formas de produção e circulação, há ainda a submissão da segunda à  
primeira. Em outras palavras, os direitos de cidadania ficam submetidos aos direitos  
do homem à medida que o Estado deve se submeter aos imperativos econômicos. As  
forças políticas, reunidas sob a forma estatal, devem organizar-se institucionalmente  
de modo a dar vazão às relações econômicas e nunca obstá-las. Marx anota:  
Esse fato se torna ainda mais enigmático quando vemos que a  
cidadania, a comunidade política, é rebaixada pelos emancipadores à  
condição de mero meio para a conservação desses assim chamados  
direitos humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como serviçal  
do homme egoísta; quando vemos que a esfera em que o homem se  
comporta como ente comunitário é inferiorizada em relação àquela em  
que ele se comporta como ente parcial; quando vemos, por fim, que  
não o homem como citoyen, mas o homem como Bourgeois é  
assumido como o homem propriamente dito e verdadeiro (MARX,  
2010, p. 50)12.  
A descrição levada a cabo por Marx nos revela ainda o papel ativo do Estado  
na conservação dos direitos humanos. Os direitos do cidadão, isto é, as liberdades  
políticas, devem ser usadas para a preservação dos direitos do homem, ou seja, da  
liberdade econômica, igualdade formal, propriedade e segurança. O poder estatal não  
cria tais direitos; pelo contrário, é criado num terreno em que os direitos do homem  
já figuram como modos ativos de sociabilidade.  
Em outras palavras, a revolução francesa não criou os direitos declarados em  
1789. Pelo contrário, porque esses já existiam na realidade francesa concreta, a  
11  
Um rápido passar de olhos pelo artigo 5º, caput, da Constituição brasileira de 1988 dá conta da  
atualidade destes direitos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,  
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida,  
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]”.  
12 De fato, o art. 2º da declaração francesa de 1789 estabelece: “O fim de toda a associação política é  
a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a  
propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Em outras palavras, a associação política - em  
termos modernos, o Estado - existe para conservar os direitos do homem, isto é, do burguês egoísta,  
separado da sociedade.  
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burguesia pôde, através da luta política, conquistar o aparato estatal ligado ao antigo  
regime, voltando-o contra as forças econômicas e políticas feudais. As declarações e  
positivações de direitos humanos são o resultado da vitória burguesa, a formalização  
de modos de sociabilidade que já estão em vigor no âmbito econômico.  
Isso significa que os direitos humanos, quer sob a óptica de direitos do homem,  
quer sob o aspecto de direitos do cidadão, passam pelo Estado, isto é, dependem da  
forma estatal, não para a sua constituição ou existência, mas para a sua preservação.  
De fato, a passagem do privilégio feudal para o direito burguês ocorre a partir da  
economia, mas não se afirma e nem sobrevive sem a conquista do Estado.  
A organismo estatal formaliza e assegura, no âmbito institucional, as condições  
políticas para que o direito burguês seja permanentemente o modo de expressão das  
relações econômicas de produção e circulação de bens visando ao lucro. O aparelho  
estatal, conquistado pela burguesia, passa a reconhecer explicitamente e assegurar os  
direitos humanos. No entanto, como não pode explicá-los, parte do pressuposto de  
que são evidentes, ou seja, “naturais”. Marx anota:  
A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade  
burguesa nos indivíduos independentes cuja relação é baseada no  
direito, assim como a relação do homem que vivia no estamento e na  
guilda era baseada no privilégio se efetiva em um só e mesmo ato.  
O homem, na qualidade de membro da sociedade burguesa, o homem  
apolítico, necessariamente se apresenta então como homem natural.  
Os droits de l´homme se apresentam como droits naturels, pois a  
atividade consciente se concentra no ato político. O homem egoísta é  
o resultado passivo, que simplesmente está dado, da sociedade  
dissolvida, objeto da certeza imediata, portanto, objeto natural (MARX,  
2010, p. 53).  
Os direitos do homem são considerados “naturais” porque a sua positivação,  
isto é, o ato político de inscrevê-los em declarações ou constituições, reputa-se a si  
mesma como atividade consciente, quer dizer, exercício intelectual ativo.  
Nada obstante, a revolução não pode explicar a origem destes direitos, pois o  
movimento revolucionário não é um ato crítico; é um ato prático. O homem comum, o  
burguês egoísta, é tratado pelo homem político, o cidadão, como um dado prévio,  
quase um objeto da natureza, que deve ser reconhecido e preservado. Os direitos são,  
assim, “naturais”, porque são evidentes, como as estações do ano, que não são criadas  
pelo homem, mas apenas conhecidas e estudadas. Por isso, os direitos naturais podem  
ser descobertos pela razão, já que sua existência independe das forças políticas.  
Pois bem, se pudéssemos dar um salto no percurso intelectual de Marx,  
abandonando Sobre a questão judaica e aterrissando em O capital, no ano de 1863,  
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encontraríamos uma estrutura categorial homóloga.  
Esta estrutura pode ser remetida, com os cuidados metodológicos  
necessários13, à obra de juventude, reformulada, entretanto, à luz das enormes  
conquistas teóricas obtidas no campo da economia política, alcançadas pelo filósofo  
alemão a partir de 1847, quando seu pensamento adquire ares definitivamente  
científicos14.  
Assim, em O capital, os indivíduos burgueses, egoísta natos; aqueles que vivem  
da produção e comercialização de bens e serviços visando ao lucro, cujo modo de  
sociabilidade é o direito e não o privilégio feudal, ressurgem na primeira seção do  
Livro I, no primeiro nível de abstração categorial utilizado por Marx, como possuidores  
de mercadorias, isto é, indivíduos que, a partir do trabalho próprio, criam valores de  
uso que devem ser levados ao mercado para realizarem seus valores de troca, isto é,  
para serem trocados. No famoso parágrafo inicial do capítulo 02, Marx observa:  
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se  
umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus  
guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso,  
não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas,  
ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à  
força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como  
mercadorias, seus guardiões têm que estabelecer relações uns com os  
outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de  
modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar  
a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro,  
portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm,  
portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados.  
Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente  
desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a  
relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é  
dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas  
para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por  
conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência de  
nosso desenvolvimento veremos que as máscaras econômicas das  
pessoas não passam de personificações das relações econômicas,  
como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras (MARX,  
2013, pp. 159-160; 1962, pp. 99-100).  
13  
Em razão dos limites deste trabalho, a demonstração metodológica da viabilidade e necessidade  
desta passagem não pode ser efetuada. De qualquer maneira, registre-se, desde logo, a seguinte  
observação de Reichelt: “A exposição exata desta ideia é O capital, como ainda veremos. O que Marx  
tem em vista aqui, ele caracteriza mais tarde, no Rascunho de O capital, como ‘capital existente para si’,  
e em O capital como personificação de categorias econômicas. Em Sobre a questão judaica, ao contrário,  
isso não passa de um indício, que, como indício, no entanto, só pode ser decifrado sobre o pano de  
fundo da obra tardia” (REICHELT, 2013, p. 34).  
14  
Nas palavras do próprio Marx, escritas no famoso prefácio à Contribuição à crítica da economia  
política: “Os pontos decisivos das nossas concepções foram cientificamente esboçados pela primeira  
vez, ainda que de forma polêmica, no meu texto contra Proudhon publicado em 1847: Miséria da  
filosofia etc.” (MARX, 2003, p. 07, grifo meu).  
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Marx aponta, aí, a origem material; a gênese concreta do direito. Em outras  
palavras, o direito é uma relação social, isto é, a forma que é projetada pelo  
intercâmbio mercantil. A troca de valores equivalentes exige que os indivíduos que se  
encontram no mercado se considerem reciprocamente como proprietários privados,  
livres, formalmente iguais e autônomos.  
Desse modo, o enlace econômico mercantil reflete a relação jurídica, cuja forma  
é o contrato, reconhecida legalmente ou não. Note-se que a norma posta pelo Estado  
não é essencial à caracterização jurídica da relação. O decisivo, aqui, é a relação  
econômica que serve de base material e o modo como ela se constitui: a troca de  
valores equivalentes.  
O “indivíduo burguês”, o “egoísta nato” de Sobre a questão judaica, ressurge  
aqui, neste recorte específico, como pessoa, isto é, como o representante da  
mercadoria. Para que a troca ocorra, os guardiões mercantis precisam se reconhecer  
mutuamente como proprietários privados, livres, formalmente iguais e autônomos.  
Estes são os caracteres da pessoa que contrata, isto é, que ajusta sua vontade  
com outra. A personalidade não surge da norma posta pelo Estado e tampouco reside  
na “natureza humana”. Ela existe apenas ali, concretamente, no momento do contrato  
que, a seu turno, apenas dá vazão ao movimento econômico de circulação mercantil.  
O “salto” de Sobre a questão judaica para O capital, permite que se confira  
materialidade e concretude à figura do “homem” que surge na primeira. Trata-se, sem  
dúvida, do indivíduo burguês; do homem egoísta situado no contexto das novas  
relações econômicas capitalistas.  
Concretamente, no entanto, sua origem remonta àquele indivíduo que vai ao  
mercado para trocar a sua mercadoria, produto do seu próprio trabalho. Eis o  
momento econômico fundamental a partir do qual a noção de “direitos do homem”  
pode ser reconstituída.  
II. O sujeito de direito e a natureza específica dos direitos do homem e do  
cidadão  
A pessoa da qual fala Marx no início do capítulo 02, do Livro I, de O capital não  
é ninguém mais, ninguém menos, do que o famoso sujeito de direito, descrito de modo  
abstrato e ideologizado pela teoria tradicional. O primeiro autor do campo marxista a  
identificar esta correspondência foi Evgeny Pachukanis15 que, em 1927, no prefácio à  
15  
A recepção da obra de Pachukanis, no Brasil, deu-se inicialmente pelas mãos de Márcio Bilharinho  
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segunda edição de Teoria geral do direito e marxismo, observa:  
A tese fundamental, a saber, de que o sujeito de direito das teorias  
jurídicas possui uma relação extremamente próxima com os  
proprietários de mercadoria, não precisa ser provada uma segunda  
vez depois de Marx. Ademais, não acrescentou nada de novo a  
conclusão seguinte, qual seja: aquela filosofia do direito cuja base é a  
categoria do sujeito com sua capacidade de autodeterminação (e  
nenhum outro sistema coerente de filosofia do direito foi apresentado  
pela ciência burguesa) é, com efeito, a filosofia da economia mercantil  
a estabelecer as condições mais gerais, mais abstratas, de acordo com  
as quais a troca pode se realizar em função da lei do valor, e a  
exploração se passa sob a forma de “contrato livre” (PACHUKANIS,  
2017, pp. 60-61; 2003, pp. 36-37).  
A relação jurídica é precisamente a forma de expressão da relação econômica  
da troca mercantil. Daí por que se tornou célebre a tese de Pachukanis da “forma  
jurídica”, que não significa senão o reflexo da relação econômica, isto é, o modo  
específico como esta relação envolve os indivíduos que dela participam, ou seja, os  
possuidores de mercadorias que se apresentam, então, como sujeitos de direito.  
Assim, no início do capítulo 04 de Teoria geral do direito e marxismo,  
Pachukanis observa: “Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o  
átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser  
decomposto. É por ele, então, que começaremos nossa análise” (PACHUKANIS, 2017,  
p. 117; 2003, p. 109).  
A figura do sujeito de direito e seus atributos (liberdade, igualdade formal,  
propriedade privada e autonomia da vontade) são a base concreta a partir da qual os  
direitos do homem e do cidadão devem ser analisados.  
Os direitos de primeira geração são, portanto, a formulação lógica e abstrata,  
levada a cabo pela teoria tradicional, para racionalizar, num nível distinto de relações  
sociais, os atributos do “homem e do cidadão”, categorias que não passam do  
resultado da elaboração filosófica daquela primeira (sujeito de direito), desenvolvida  
em um nível superior de abstração16.  
Naves (2000; 2014), que interpreta a obra do autor russo à luz do pensamento de Louis Althusser.  
Dando prosseguimento a esta linha, cite-se Alysson Leandro Mascaro (2003). Leituras críticas à  
recepção althusseriana têm se destacado nos últimos tempo. Destaque-se a proposta de um direito  
insurgente, levada a cabo por Ricardo Pazello (2021) e a interpretação, à luz da obra de Lukács,  
desenvolvida por Vitor Sartori (2023).  
16  
Note-se, a propósito, como a teoria tradicional, ainda hoje, apresenta a origem destes direitos de  
modo abstrato e ideológico. Ao remeter sua origem ao pensamento liberal, ela se posiciona, do ponto  
de vista filosófico, antes do próprio Feuerbach: “Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu  
reconhecimento nas primeiras Constituições escritas são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo  
social, característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de  
marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado,  
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Nada obstante, é importante não confundir a figura da pessoa ou sujeito de  
direito - das quais falam Marx e Pachukanis, respectivamente, em O capital e Teoria  
geral do direito e marxismo - com a figura do homem e do cidadão, das quais trata o  
filósofo alemão em Sobre a questão judaica. Aquelas estão numa relação mais próxima  
e íntima com a economia do que estas, que, por sua vez, dependem da mediação  
política para se constituírem e se consolidarem.  
De fato, para Pachukanis o sujeito de direito da teoria tradicional não passa da  
figura do possuidor de mercadorias apreendido a partir da unilateralidade do ponto  
de vista jurídico. Em outras palavras, a teoria jurídica “isola” os atributos do sujeito,  
desconsiderando a relação econômica que funciona como base, e desenvolve aqueles  
atributos separadamente, sem consideração pelo conteúdo material.  
Para o marxismo, contudo, é impossível desenvolver teoricamente a figura da  
pessoa sem a análise da base econômica, pois ela perde o sentido. Assim, Pachukanis  
observa:  
Na verdade, não há dúvida de que a categoria do sujeito de direito  
abstrai-se do ato da troca mercantil. Justamente nesses atos o homem  
realiza na prática a liberdade formal de autodeterminação. A relação  
mercantil transforma essa oposição entre sujeito e objeto em um  
significado jurídico particular. O objeto é a mercadoria, o sujeito, o  
possuidor da mercadoria, que dispõe dela nos atos de aquisição e  
alienação. Justamente no ato de troca o sujeito releva, pela primeira  
vez, a plenitude de suas determinações. O conceito formalmente mais  
bem acabado de sujeito, que se detém unicamente na capacidade  
jurídica, nos afasta ainda mais do sentido vivo, histórico, real, dessa  
categoria jurídica (PACHUKANIS, 2017, p. 124; 2003, p. 116-117).  
É importante compreender, portanto, que o sujeito de direito existe  
concretamente apenas no contexto de uma relação social que expressa uma troca de  
valores equivalentes. Fora dessa relação, pode-se encontrar a projeção formal daquela  
figura, mas não sua existência concreta.  
Na relação entre Fisco e contribuinte, por exemplo, verifica-se formalmente a  
existência de dois sujeitos de direito. Sob o ponto de vista concreto, no entanto,  
percebe-se que são formas projetadas, isto é, abstraídas artificialmente, pois a  
exigência de pagamento de tributo não dá ensejo a uma relação de equivalência, mas  
justamente a sua negação.  
Por isso, há uma diferença estrutural entre as figuras da pessoa ou sujeito de  
mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e  
uma esfera de autonomia individual em face de seu poder” (SARLET, 2012, pp. 46-47, grifo nosso).  
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direito e do homem e do cidadão. Estas são formas politicamente mediadas daquelas.  
Em outras palavras, l´homme e citoyen apenas surgem no contexto social no  
momento em que a persona já configura a forma jurídica dominante do nexo social  
econômico. Tanto do ponto de vista histórico, como lógico, a formulação das figuras  
do homem e do cidadão depende do estabelecimento e consolidação de uma classe  
social que, apoiada na figura do sujeito de direito, está apta à reivindicação do  
comando político da sociedade. Esta classe é a burguesia.  
Por isso, os chamados direitos do homem e do cidadão apenas surgem na arena  
política no momento em que a produção e circulação de mercadorias já tomou por  
completo a estrutura do organismo social. As formas mercantil e jurídica já moldaram  
o conjunto de nexos sociais através dos quais a sociedade engendra seu metabolismo,  
de modo que resta apenas conquista do poder político17.  
As declarações de direitos do século XVIII tinham como objetivo, portanto,  
forjar, em sentido amplo, a figura política do indivíduo à luz de sua figura jurídica.  
Para tanto, constroem-se duas formas de expressão: a do homem, ou seja, do  
indivíduo em sua vida privada, que transplanta as capacidades jurídicas do sujeito de  
direito à vida moral, religiosa, econômica etc.; e a do cidadão, isto é, a do indivíduo  
no âmbito político em sentido estrito, ou seja, transplantando as capacidades jurídicas  
do sujeito de direito à participação na gestão e administração da máquina estatal.  
Por isso, ao contrário do sujeito de direito, cuja existência concreta independe  
do Estado, a existência do homem e do cidadão dependem da mediação política, tanto  
para seu surgimento (ligado à classe social), quanto para a sua consolidação e  
manutenção (ligada ao Estado).  
Nesse sentido, a formulação teórica do conceito de direitos humanos, tal como  
estabelecida por Alysson Leandro Mascaro, está teoricamente incorreta, ao menos  
quando se pretende uma leitura efetuada à luz da obra de Karl Marx e Evgeny  
Pachukanis. De fato, o autor observa:  
Os direitos humanos se configuram, estruturalmente, como uma espécie dos  
17 Esse movimento econômico-histórico é apresentado pela teoria tradicional do seguinte modo: “Como  
aponta Perez Luño, o processo de elaboração doutrinária dos direitos humanos, tais como reconhecidos  
nas primeiras declarações do Século XVIII, foi acompanhado, na esfera do direito positivo, de uma  
progressiva recepção de direitos, liberdades e deveres individuais, que podem ser considerados os  
antecedentes dos direitos fundamentais. É na Inglaterra da Idade Média, mais especificamente no Século  
XIII, que encontramos o principal documento referido por todos que se dedicam ao estudo da evolução  
dos direitos humanos. Trata-se da Magna Charta Libertatum, pacto firmado em 1215 pelo Rei João  
Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses” (SARLET, 2012, p. 41).  
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direitos subjetivos. Suas lógicas e seu processo de formação são iguais, ainda que  
ressalvadas ambiguidades e contradições nessa dinâmica [...]. Assim, os direitos  
humanos são um quantum de direitos subjetivos específicos que venha a ser dado a  
partir da forma geral do sujeito de direito. Para que haja direitos humanos, é preciso  
que, antes, os indivíduos naturais sejam considerados sujeitos de direito. Então, após  
essa qualidade formadora, os chamados direitos humanos são certo grupo de  
garantias políticas e jurídicas específicas respaldadas às mesmas individualidades  
(MASCARO, 2017, p. 116/117-118, passim)18.  
Mascaro acerta, sem dúvida, quando relaciona os direitos humanos ao sujeito  
de direito. Erra, no entanto, no momento em que os caracteriza como direitos  
subjetivos. Esta conceituação o afasta da crítica marxista e o aproxima do idealismo  
abstrato, típico da teoria tradicional, que procura ver “direitos subjetivos” em  
quaisquer reivindicações que os indivíduos ou grupos sociais possam fazer.  
Ora, para Pachukanis a noção de direito subjetivo emerge no contexto de uma  
relação econômica bem concreta e delimitada, que é a troca de mercadorias. Fora  
desse contexto não existe direito subjetivo. De fato, o russo anota:  
Cada proprietário, assim como todos de seu círculo, compreende  
magnificamente bem que o direito que lhe assiste como proprietário  
tem em comum com o dever apenas o fato de ser seu polo oposto. O  
direito subjetivo é primário, pois ele, em última instância, apoia-se nos  
interesses materiais que existem independentemente de  
regulamentação externa, ou seja, consciente, da vida social [...] A  
esfera de domínio que envolve a forma do direito subjetivo é um  
fenômeno social atribuído ao indivíduo do mesmo modo que o valor,  
também um fenômeno social, é atribuído à coisa como produto do  
trabalho. O fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo  
da jurídico (PACHUKANIS, 2017, pp. 109/124; 2003, pp. 99/117).  
Apenas há direito subjetivo onde há valor. Na ausência desta figura econômica,  
não há que se cogitar daquela. Ademais, o direito subjetivo apoia-se imediatamente  
em interesses materiais, independentemente de regulação externa, isto é, institucional  
ou estatal. Basta pensar no direito do comércio internacional, que se desenvolve  
bastante bem sem quaisquer regulamentações autoritárias. Recordemo-nos, pois, da  
18  
Mais à frente, o autor observa: “Os direitos humanos, como um tipo de direito subjetivo, estão  
perpassados pelo núcleo da estrutura da própria reprodução do capitalismo. Estado e norma jurídica  
secundam e conformam a condição de sujeitos de direito aos indivíduos constituídos a partir das  
relações entre as classes exploradoras e exploradas do capitalismo [...] Os direitos humanos, sendo um  
núcleo específico dos direitos subjetivos, são considerados, louvados e reputados como aqueles que  
promovem determinado padrão político e social de dignidade; essencialmente, porém, garantem as  
estruturas político-jurídicas necessárias à dinâmica de reprodução do próprio modo de produção  
capitalista” (MASCARO, 2017, pp. 122/123, passim).  
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famosa Lex Mercatoria.  
Assim, os direitos do homem e do cidadão, por demandarem a mediação  
política para a sua constituição, não podem ser considerados direitos subjetivos, ao  
menos do ponto de vista marxista. Dependem sempre da articulação no âmbito da  
classe social ou do Estado, o que os inviabiliza sempre que uma ou outro não estiverem  
dotados de força, poder ou disposição para os fazerem valer na prática.  
As declarações de direitos, tanto quanto a positivação destes em constituições,  
são manifestações de força política das classes sociais que os reivindicam. Por isso,  
nem umas, nem outras garantem a existência destes direitos na prática, ao contrário  
do que ocorre com os direitos subjetivos, que têm lugar no quotidiano da sociedade  
capitalista, independentemente da participação do Estado.  
Por isso, a chamada “eficácia” dos direitos humanos, cuja ausência é tão  
lamentada pela teoria tradicional, não é um problema jurídico, mas político19.  
A base jurídica para as figuras do homem e do cidadão já está dada, uma vez  
que a forma do sujeito de direito está em plena operação. No entanto, é a luta política  
que faz com que aquelas figuras obtenham significação social concreta, isto é, deixem  
de figurar apenas e tão somente como linguagem normativa e passem a caracterizar  
relações sociais materiais. Isso apenas pode ocorrer através do constrangimento das  
forças institucionais à observância das disposições normativas.  
III. Circulação mercantil e sujeito de direito: diferença econômica e identidade  
jurídica  
O homem e o cidadão apresentados por Marx em Sobre a questão judaica são  
modos de sociabilidade ligados ao indivíduo burguês, egoísta, que cuida apenas e tão  
somente de seus negócios e não se preocupa com nada, além de seus interesses  
privados, orientados à indústria e comércio que geram lucro.  
Comparados aos privilégios feudais, que aquinhoavam por nascença e  
hereditariedade os suseranos da aristocracia, nobreza e clero, os direitos de primeira  
dimensão constituíram, sem dúvida, um progresso, pois representaram a demanda da  
burguesia, uma classe então em ascensão, pela dissolução dos vínculos da feudalidade,  
como a servidão e a ligação perpétua do camponês à terra e a um senhor.  
19  
A teoria tradicional que se pretende menos alienada já alcançou esta conclusão. Norberto Bobbio,  
por exemplo, observa: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto  
o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político” (BOBBIO,  
2004, p. 16).  
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Isso não significa que tais direitos devam ser considerados uma forma de  
emancipação. Desde sempre, Marx considera as liberdades individuais uma espécie de  
“prisão” para o indivíduo. Este se liberta dos grilhões feudais para se ver amarrado  
aos grilhões da economia de mercado; liberta-se do feudo para atar-se às correntes  
da indústria, comércio e lucro. Liberta-se da suserania, vassalagem e campesinato para  
recair na cadeia das liberdades individuais:  
A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no homem, só  
que no tipo de homem que realmente constituía esse fundamento, no  
homem egoísta. Esse homem, o membro da sociedade burguesa,  
passa a ser a base, o pressuposto do Estado político. Este o reconhece  
como tal nos direitos humanos. No entanto, a liberdade do homem  
egoísta e o reconhecimento dessa liberdade constituem, antes, o  
reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais  
e materiais que constituem seu teor vital. Consequentemente, o  
homem não foi libertado da religião. Ele ganhou a liberdade de  
religião. Ele não foi libertado da propriedade. Ele ganhou a liberdade  
de propriedade. Ele não foi libertado do egoísmo e do comércio. Ele  
ganhou a liberdade de comércio (MARX, 2010, pp. 52-53).  
Como vimos, é possível associar a figura do indivíduo burguês apresentado por  
Marx em Sobre a questão judaica ao possuidor de mercadorias exposto no início do  
capítulo 02, do Livro I, de O capital. Este não está menos amarrado às relações sociais  
do que aquele. Sua “liberdade” consiste em estar preso à relação jurídica, isto é, à  
forma da relação econômica da troca mercantil.  
Nesse sentido, é importante compreender que há, ainda no Livro I de O capital,  
uma passagem categorial importante, que vai do capítulo 02 ao capítulo 04, sobretudo  
no que concerne à compreensão da figura do sujeito de direito e, especificamente no  
que toca a este trabalho, dos direitos humanos de primeira geração.  
Esta passagem consiste no ressurgimento do guardião da mercadoria, que está  
no capítulo 02, como capitalista e trabalhador assalariado, no capítulo 04. Tal  
passagem, no entanto, precisa ser mediada pelas funções do dinheiro, apresentadas  
no capítulo 0320.  
Inicialmente, recorde-se que, no capítulo 02, compreende-se que as  
20 Como observa Christopher Arthur (numa passagem que deverá ser criticada no momento adequado),  
“a dialética sistemática, tal como empregada por Hegel e Marx, investiga as conexões conceituais entre  
as formas internas de uma dada totalidade; uma sequência de níveis categóricos estabelece-se, na qual  
formas mais desenvolvidas enraízam-se nas mais primordiais. Esta lógica não depende de modo algum  
do desenvolvimento histórico que primeiramente lançou as pré-condições elementares do sistema, pois  
estas são articuladas e fundamentadas no interior do próprio ordenamento lógico. O ordenamento  
lógico corresponde às relações internas do objeto, retraçando as formas mutuamente positivas que  
garantem a reprodução da totalidade” (ARTHUR, 2016, p. 92).  
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mercadorias, por serem coisas, não podem ir sozinhas ao mercado e trocarem-se umas  
pelas outras. É preciso voltar a atenção a seus possuidores, os guardiões de  
mercadorias, que devem ajustar suas vontades para que a troca ocorra.  
Neste momento, os guardiões se qualificam como pessoas, de modo que a  
relação social, objetivamente, sem a necessidade da norma estatal, produz os  
caracteres da liberdade, igualdade formal, propriedade privada e autonomia da  
vontade em suma: os sujeitos de direito.  
Ainda neste capítulo, Marx mostra como o dinheiro surge da circulação de  
mercadorias. Trata-se de uma mercadoria especial, cujo valor de uso possui  
características específicas que a habilitam à substituição de todas as outras no  
mercado: raridade, maleabilidade para fracionamento e facilidade de transporte.  
Assim, os metais preciosos, notadamente a prata e o ouro, deixam de ser  
simples mercadorias e assumem o papel de mercadoria universal, intercambiável por  
quaisquer outras, em qualquer localidade, isto é, dinheiro.  
Em seguida, no capítulo 03, Marx apresenta a chamada metamorfose das  
mercadorias ou circulação simples, que pode ser expressa pela fórmula MDM.  
Trata-se da troca de mercadoria por dinheiro (MD) ou venda, e posterior troca  
de dinheiro por mercadoria (DM) ou compra. Enfim, vender para comprar. O objetivo  
da circulação simples é contemplar necessidades individuais de consumo. Troca-se a  
mercadoria “A” por dinheiro para, depois, trocar o dinheiro pela mercadoria “B”. Assim,  
troca-se arroz por dinheiro e, depois, dinheiro por carne. Substitui-se o arroz pela  
carne, com a mediação do dinheiro. O cristal monetário funciona como medida de  
valores e meio de circulação.  
Note-se que a circulação MDM é a troca direta de mercadorias (MM) com a  
presença do dinheiro (D). Trata-se da complexificação daquela, na medida em que a  
forma particular do valor (M) é entremeada por sua forma universal (D).  
Do ponto de vista jurídico, a pessoa ou sujeito de direito que surge na troca  
direta de mercadorias (MM) ressurge na circulação simples (MDM) com os mesmos  
caracteres. A única diferença é que os guardiões das mercadorias são, agora, também  
possuidores de dinheiro. Sob a óptica econômica há diferença; do ponto de vista  
jurídico, não.  
Nada obstante, “a circulação de mercadorias distingue-se da troca direta de  
produtos não só formalmente, mas também essencialmente” (MARX, 2013, p. 185;  
1962, p. 126). Isso ocorre porque a presença do dinheiro (D) permite romper os limites  
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territoriais e temporais da troca direta, projetando a relação econômica no tempo e no  
espaço. Pode-se vender uma mercadoria na Itália, hoje, e comprar outra, na França,  
daqui a seis meses. Essa dinâmica transforma o dinheiro em meio de pagamento.  
De fato, na compra à vista (DM) o dinheiro funciona como meio de compra,  
pois se recebe a mercadoria no momento em que se transfere o cristal monetário. A  
projeção da relação econômica no tempo e no espaço viabiliza a alienação imediata  
da mercadoria pelo recebimento do dinheiro no futuro. Entrega-se a mercadoria agora,  
mas se receberá o dinheiro daqui a seis meses (M ... D). Como afirma Marx, “o vendedor  
se torna credor, e o comprador, devedor” (MARX, 2013, p. 208; 1962, p. 149).  
Do ponto de vista jurídico, credores e devedores são sujeitos de direito, tanto  
quanto vendedores e compradores ou permutadores diretos de mercadorias.  
No primeiro caso, a pessoa opta por um contrato de crédito; no segundo, de  
compra e venda; no terceiro, de escambo. Não há modificação de forma: todos são  
pessoas dotadas de liberdade, igualdade formal, propriedade privada e autonomia de  
vontade.  
Note-se, pois, que o movimento mercantil, por mais que seja diferente do ponto  
de vista econômico, (MM), (MDM) ou (M...D...M), é sempre o mesmo do ponto de  
vista jurídico.  
Em todas as situações são sujeitos de direito (SD) exercendo autonomamente  
sua liberdade contratual e escolhendo, a partir de suas vontades egoístas, os modelos  
de contratos mais adequados às suas necessidades particulares: (SD-SD), (SD-SD-SD)  
ou (SD...SD...SD).  
A principal transformação do dinheiro ocorre, no entanto, no capítulo 04. Aqui  
o dinheiro deixa de ser mero dinheiro e transforma-se em capital. Marx observa:  
Inicialmente, o dinheiro como dinheiro e o dinheiro como capital se  
distinguem apenas por sua diferente forma de circulação. A forma  
imediata da circulação de mercadorias é MDM, conversão de  
mercadoria em dinheiro e reconversão de dinheiro em mercadoria,  
vender para comprar. Mas ao lado dessa forma encontramos uma  
segunda, especificamente diferente: a forma DMD, conversão de  
dinheiro em mercadoria e reconversão de mercadoria em dinheiro,  
comprar para vender. O dinheiro que circula deste último modo  
transforma-se, torna-se capital e, segundo sua determinação, já é  
capital (MARX, 2013, pp. 223-224; 1962, p. 161-162).  
A circulação DMD ou circulação do dinheiro como capital significa comprar  
(DM) para vender (MD): compra-se açúcar e, logo em seguida ou algum tempo  
depois, vende-se o produto. É o oposto da circulação MDM, que significa vender  
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(MD) para comprar (DM): compra-se açúcar, troca-se por dinheiro e, com este último,  
compra-se carne. A primeira transforma o dinheiro em capital; a segunda o mantém  
apenas como dinheiro21.  
Em ambos os casos, no entanto, as circulações podem ser fracionadas em  
momentos que são idênticos. Tanto em DMD como em MDM, tem-se compras (D–  
M) e vendas (MD). A diferença está apenas na ordem em que ocorrem.  
Nesse sentido, do ponto de vista jurídico, não há diferença entre as circulações.  
Vendedores e compradores ou credores e devedores, conforme o caso, são sempre  
sujeitos de direito (SD) escolhendo os contratos que melhor atendam a seus interesses.  
Tanto em DMD, como em MDM, a projeção jurídica é SDSDSD.  
Nada obstante, enquanto a circulação MDM visa a contemplar necessidades  
individuais, pois significa a substituição de uma mercadoria por outra, isto é, um  
produto diferente do outro, a circulação DMD visa ao dinheiro, ou seja, a um fim  
que é qualitativamente idêntico ao início. Dinheiro é sempre igual a dinheiro. Isso  
significa que há, em DMD, uma tautologia. Marx anota:  
Na circulação simples de mercadorias, os dois extremos têm a mesma  
forma econômica. Ambos são mercadorias. Eles são, também,  
mercadorias de mesma grandeza de valor. Porém, são valores de uso  
qualitativamente diferentes, por exemplo, cereal e roupas. A troca de  
produtos, a variação das matérias nas quais o trabalho social se  
apresenta é o que constitui, aqui, o conteúdo do movimento.  
Diferentemente do que ocorre na circulação DMD. À primeira vista,  
ela parece desprovida de conteúdo, por ser tautológica, mas ambos  
os extremos têm a mesma forma econômica. Ambos são dinheiro,  
portanto, não-valores de uso qualitativamente distintos, uma vez que  
o dinheiro é justamente a figura transformada das mercadorias, na  
qual estão apagados seus valores de uso específicos. Trocar £ 100  
por algodão e, em seguida, voltar a trocar esse mesmo algodão por £  
100, ou seja, trocar dinheiro por dinheiro, o mesmo pelo mesmo,  
parece ser uma operação tão despropositada quanto absurda. Uma  
quantia de dinheiro só pode se diferenciar de outra quantia de  
dinheiro por sua grandeza. Assim, o processo DMD não deve seu  
conteúdo a nenhuma diferença qualitativa de seus extremos, pois  
ambos são dinheiro, mas apenas à sua distinção quantitativa. Ao final  
do processo, mais dinheiro é tirado da circulação do que nela fora  
lançado inicialmente. O algodão comprado por £ 100 é revendido por  
£ 100 + £ 10 ou £ 110. A forma completa desse processo é, portanto,  
DM–D’, onde D’ = D + Δ D, isto é, a quantia de dinheiro inicialmente  
21  
A modificação da ordem da circulação, de M-D-M para D-M-D, representa uma modificação social  
estrutural que faz toda a diferença. A partir daí, todo o metabolismo da sociedade passa a seguir a  
lógica capitalista. Giannotti observa: “No plano do pensamento meramente abstrato é fácil passar do  
modo de produção simples de mercadoria (M-D-M-D ...) para o modo de produção capitalista. Basta  
cortar a sequência e começar pelo dinheiro (D-M-D-M ...). Mas o processo mudou completamente de  
sentido. O proprietário de D não é um entesourador, mas alguém que acumula dinheiro para investi-lo  
em busca de lucro. Sempre tendo um sistema legal a seu lado” (GIANNOTTI, 2013, p. 69).  
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adiantada mais um incremento. Esse incremento ou excedente sobre  
o valor original, chamo de mais-valor (surplus value). O valor  
originalmente adiantado não se limita, assim, a conservar-se na  
circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa  
grandeza um mais-valor ou valoriza-se. E esse movimento o  
transforma em capital (MARX, 2013, pp. 226-227; 1962, pp. 164-  
165).  
O que transforma dinheiro em capital é a expansão de valor que ocorre por  
intermédio da circulação DMD.  
Ao final do processo não se pode retirar do circuito a mesma quantia de  
dinheiro que fora lançada no início. Isso não faria sentido. Mais inteligente seria  
entesourar, ou seja, manter o dinheiro consigo, sem o lançar aos perigos da circulação.  
Por isso, na circulação DM–D o objetivo é transformar D em D’, ou seja, a quantia  
inicial, mais um acréscimo. O resultado é DM–D’. O símbolo (’) representa o acréscimo  
de valor que provém da circulação: o famoso mais-valor22.  
Nesse sentido, Marx observa que, “como portador consciente desse movimento,  
o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o  
ponto de partida e de chegada do dinheiro” (MARX, 2013, p. 229; 1962, p. 167).  
Do ponto de vista econômico, a circulação DM–D’ revela a presença de uma  
nova figura, que é o capitalista, ou seja, o indivíduo que impulsiona o movimento, isto  
é, que dá origem à circulação, na medida em que desembolsa a quantia inicial D.  
Sob o aspecto jurídico, no entanto, esta figura assume a forma de sujeito de  
direito. De fato, a circulação DM–D’ começa com um contrato de compra, tanto quanto  
a circulação MDM se encerra com este mesmo contrato. O fato de que o dinheiro,  
na circulação DM–D’, amplia sua magnitude, não modifica em nada os negócios  
jurídicos que são celebrados para que isso ocorra. O mais-valor é realizado ao final do  
processo e não nos seus entremeios.  
Nesse sentido, tanto em DM, como em M–D’, compras e vendas são pactuadas  
por pessoas dotadas de liberdade, igualdade formal, propriedade privada e autonomia  
da vontade. O capitalista é tão sujeito de direito quanto o credor ou devedor, o  
comprador ou vendedor e o permutador simples de mercadorias.  
A circulação DM–D’ apresenta-se juridicamente como SDSDSD.  
22 Anselm Jappe, a propósito, anota: “Para se conservar dentro da circulação, o valor tem de desenvolver  
uma forma no âmbito da qual, no final do processo de circulação o valor seja maior do que no início.  
Na sociedade mercantil desenvolvida, a primeira fórmula converte-se então numa outra: dinheiro-  
mercadoria-dinheiro (D-M-D) (...) Não se exagera muito se se afirmar que a conversão da fórmula M-D-  
M na fórmula D-M-D’ encerra em si toda a essência do capitalismo” (JAPPE, 2006, p. 60-61, passim).  
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Isso significa que o advento da circulação do dinheiro como capital (DM–D’)  
não modifica o complexo de relações jurídicas que já está formado pela troca direta  
de mercadorias (MM), pela circulação simples (MDD) ou pela circulação de  
mercadorias à base de crédito (M...D...M).  
Pelo contrário, como o capital se transforma em sujeito e substância  
automáticos em processo23, ou seja, alimenta-se a si mesmo infinitamente, ampliando  
as magnitudes de valor em jogo em escalas cada vez mais elevadas, ele reconstitui a  
todo momento as relações de troca pelas quais se estabelece e, com isso, também as  
relações jurídicas.  
Isso significa que o ordenamento jurídico é criado pelo capital. A  
complexificação dos sistemas de direito, quer sejam ligados à civil law ou à common  
law, dependem, em última instância, do estabelecimento, expansão e complexificação  
das relações capitalistas de produção.  
Finalmente, é importante registrar que a identidade dos sujeitos de direito não  
é produzida pelo fenômeno jurídico, mas pelo substrato econômico. A forma jurídica  
reflete a identidade que subjaz ao movimento econômico.  
De fato, embora, as formas econômicas sejam formalmente distintas entre si,  
revezando-se entre mercadoria (M) e dinheiro (D) que, por sua vez, ocupam posições  
distintas a depender da forma da circulação, elas não passam de expressões de uma  
identidade originária, que é o valor.  
Ora, uma quantidade de valor é idêntica a outra, não importa se expressa em  
mercadoria ou dinheiro. Assim, mil reais são mil reais, quer assumam a forma de dez  
notas de cem reais; vinte notas de cinquenta reais; vinte quilos de certa qualidade de  
carne ou a fração de uma pedra de diamante.  
A identidade jurídica, como reflexo da identidade econômica é, no entanto,  
fundamental para a compreensão dos direitos humanos, pois ela é o ponto de apoio  
da norma universal, geral e abstrata suposta no interior da sociedade, a partir da qual  
os direitos do homem e do cidadão são enunciados em declarações ou normas de  
direito positivo.  
IV. O proprietário da força de trabalho e os direitos do homem e do cidadão  
Por mais consentânea que seja com o circuito de relações jurídicas pautadas  
23 “O valor se torna, assim, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital” (MARX, 2013,  
p. 231; 1962, p. 170).  
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nos padrões de equivalência e identidade, a circulação DM–D’ carrega consigo uma  
importante contradição.  
De fato, o primeiro momento da circulação do dinheiro como capital, a compra  
(D-M), coincide com o último momento da circulação simples de mercadorias (MD–  
M); do mesmo modo, o último momento daquela, a venda (MD), coincide com o  
primeiro momento desta. Por outro lado, a circulação simples não passa da troca direta  
de mercadorias (MM) entremeada pelo dinheiro (D). Isso significa que não há a criação  
de valor, nem em uma, nem em outra.  
Desse modo, a circulação do dinheiro como capital não pode gerar a expansão  
do valor, pois tanto na circulação simples, como na permuta direta, o que se trocam  
são valores idênticos, de igual magnitude. Como anota Marx, “na medida em que a  
circulação de mercadorias opera tão somente uma mudança formal de seu valor, ela  
implica, quando o fenômeno ocorre livre de interferências, a troca de equivalentes”  
(MARX, 2013, p. 233; 1962, p. 173).  
Se a troca de valores equivalentes não pode gerar mais-valor, e a circulação do  
dinheiro com capital cinde-se em duas trocas de equivalentes, (D M e M D), de  
onde surge, então, o excedente de valor?  
A circulação DM–D’ deve ser desdobrada para que seja compreendida  
adequadamente. Na realidade, ela se apresenta assim: D – M ... P ... M’ – D’.  
O símbolo (...) significa a interrupção da circulação. Após a compra da  
mercadoria por seu valor, ou seja, pautada pela equivalência (DM), o capitalista se  
desloca a um ambiente distinto da circulação, que é a esfera da produção (P)24.  
Ali ele agrega valor à mercadoria adquirida, expandindo sua magnitude. Uma  
vez que o processo produtivo esteja concluído ele volta à circulação, mas agora com  
uma mercadoria dotada de mais valor do que aquela inicialmente adquirida (M’).  
Finalmente, ele vende a mercadoria valorizada, não por um valor acima do que  
ela possui, mas por seu valor exato. O mais-valor não surge da circulação, mas da  
produção. Por isso, a venda da mercadoria (M’–D’) também se caracteriza pelo  
intercâmbio de valores equivalentes.  
Do ponto de vista jurídico, a fórmula D – M ... P ... M’ – D’ pode ser representada  
24  
Como observa Christopher Arthur, “a transição-chave em O capital não é da produção mercantil  
simples à produção capitalista, mas da ‘esfera da circulação simples ou troca de mercadorias’ ao ‘edifício  
oculto da produção’. Uma vez feita esta reorientação, a circulação é tomada com a esfera na qual as  
relações de produção estão refletidas” (ARTHUR, 2016, p. 40). Este argumento será retomado na  
segunda parte deste trabalho. Vide nota de rodapé nº 01.  
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assim: SD SD ... P ... SD SD. O surgimento do mais-valor, que ocorre na produção,  
mantém o circuito jurídico intacto. Afinal, como observa Marx, “eventos que ocorram  
entre a compra e venda, fora da esfera da circulação, não alteram em nada esta forma  
do movimento” (MARX, 2013, p. 231; 1962, p. 170).  
A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: como funciona a produção  
do capital? Em outras palavras, como o capitalista agrega valor, na esfera produtiva,  
às mercadorias adquiridas na esfera da circulação sem violar o parâmetro de  
equivalência das trocas, mantendo intactas as subsequentes relações jurídicas? Marx  
explica:  
A mudança de valor do dinheiro destinado a se transformar em capital  
não pode ocorrer nesse mesmo dinheiro, pois em sua função como  
meio de compra e de pagamento ele realiza apenas o preço da  
mercadoria que ele compra ou pela qual ele paga, ao passo que,  
mantendo-se imóvel em sua própria forma, ele se petrifica como um  
valor que permanece sempre o mesmo. Tampouco pode a mudança  
ter sua origem no segundo ato da circulação, a revenda da mercadoria,  
pois esse ato limita-se a transformar a mercadoria de sua forma  
natural em sua forma-dinheiro. A mudança tem, portanto, de ocorrer  
na mercadoria que é comprada no primeiro ato DM, porém não em  
seu valor, pois equivalentes são trocados e a mercadoria é paga pelo  
seu valor pleno. Desse modo, a mudança só pode provir de seu valor  
de uso como tal, isto é, de seu consumo. Para poder extrair valor do  
consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter  
a sorte de descobrir no mercado, no interior da esfera da circulação,  
uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica  
peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto,  
objetivação de trabalho e, por conseguinte, a criação de valor. E o  
possuidor do dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria  
específica: a capacidade de trabalho, ou força de trabalho (MARX,  
2013, pp. 241-242; 1962, p. 181).  
A criação do mais-valor na esfera da produção depende da aquisição, pelo  
capitalista, de uma mercadoria especial: a força de trabalho.  
Como observa Marx, por força de trabalho se entende “o complexo das  
capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade, na personalidade viva de  
um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de  
qualquer tipo” (MARX, 2013, p. 242; 1962, p. 181). Assim, a força de trabalho é a  
capacidade física e mental que homens e mulheres têm para trabalhar. No capitalismo,  
ela se transforma em mercadoria, ou seja, possui valor de troca e valor de uso25.  
25  
“O que caracteriza a época capitalista é, portanto, que a força de trabalho assume para o próprio  
trabalhador a forma de uma mercadoria que lhe pertence, razão pela qual seu trabalho assume a forma  
do trabalho assalariado. Por outro lado, apenas a partir desse momento universaliza-se a forma-  
mercadoria dos produtos do trabalho” (MARX, 2013, p. 245; 1962, p. 184, nota de rodapé nº 41).  
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O valor de troca designa quanto vale a força de trabalho, isto é, a quantidade  
de trabalho abstrato depositado em sua composição e, portanto, a quantia de dinheiro  
que dever ser oferecida em troca de seu uso. O valor da força de trabalho coincide  
com o valor dos bens necessários à sobrevivência do trabalhador ou trabalhadora, tais  
como alimentação, vestuário, moradia etc. Esta cesta de bens, expressa em dinheiro,  
chama-se salário. Desse modo, o trabalhador e a trabalhadora trocam sua força de  
trabalho por salário.  
O valor de uso significa a qualidade física da mercadoria, isto é, as  
características materiais que, uma vez consumidas, contemplam alguma necessidade  
concreta. O valor de uso da força de trabalho é o próprio trabalho, ou seja, a atividade  
humana que, agregada às matérias de natureza, resulta em bens que, no capitalismo,  
podem ser alienados, ou seja, assumem a forma de mercadoria. A força de trabalho  
pode ser usada pelo próprio trabalhador, quando costura para si mesmo ou pode ser  
vendida para um terceiro que possua dinheiro, como ocorre no capitalismo.  
Como qualquer mercadoria, a força de trabalho é adquirida na esfera da  
circulação, juntamente com outros bens e insumos, que se caracterizam como matérias-  
primas. Na esfera da produção ocorre a fusão entre força de trabalho e matérias-  
primas, ou seja, o trabalhador ou trabalhadora efetivamente trabalham os produtos  
previamente adquiridos pelo capitalista, depositando neles sua energia vital e dando  
ensejo a novas mercadorias, dotadas de maior valor do que aquele originalmente  
lançado na produção. Este valor a mais ou mais-valor provém do consumo da força de  
trabalho, ou seja, da extração de trabalho do empregado ou empregada.  
Assim, a fórmula D – M ... P ... M’ – D’ deve ser desdobrada para uma melhor  
compreensão. Ela se apresenta assim: D – M ... P [MP + FT] ... M’ – D’.  
A esfera da produção (P) deve ser compreendida como fusão das matérias-  
primas (MP) à força de trabalho (FT), de modo que ambas são consumidas no processo.  
As primeiras experimentam uma modificação de seus valores de uso, de maneira que  
o algodão se transforma em tecido, por exemplo. A segunda experimenta a drenagem  
de sua energia vital, ou seja, o exercício de atividade laborativa pelo trabalhador ou  
trabalhadora, isto é, o trabalho que deve ser agregado às matérias-primas modificando  
sua características físicas e adicionando mais trabalho àquele que já estava  
incorporado nos bens. Este mais trabalho é a origem do mais-valor, que será realizado  
na circulação pela troca das mercadorias valorizadas ao final do processo (M’–D’).  
O decisivo, aqui, é compreender que a força de trabalho é uma mercadoria.  
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Portanto, o trabalhador ou a trabalhadora são seus guardiões, isto é, os possuidores  
desta mercadoria. Eles devem levá-la ao mercado para que seja trocada.  
Como todo proprietário de mercadorias, o empregado ou a empregada devem  
contratar para que a venda seja efetuada. Neste caso, eles devem contratar com o  
capitalista, ou seja, o possuidor do dinheiro que dará início ao circuito DM–D’.  
Ora, aquele que leva uma mercadoria ao mercado para trocar, ou seja, o  
possuidor da mercadoria, qualifica-se como pessoa ou sujeito de direito por ocasião  
do contrato. Isso ocorre no caso da troca direta (MM), da circulação simples (MDM)  
e, também, na circulação do dinheiro como capital (DM–D’).  
Portanto, o empregado e a empregada, na relação de compra e venda da força  
de trabalho com o capitalista, também se qualificam como pessoas, dotado dos  
mesmos atributos que quaisquer sujeitos de direito: liberdade, igualdade formal,  
propriedade privada e autonomia da vontade. Marx observa:  
A troca de mercadorias por si só não implica quaisquer outras relações  
de dependência além daquelas que resultam de sua própria natureza.  
Sob esse pressuposto, a força de trabalho só pode aparecer como  
mercadoria no mercado ne medida em que é colocada à venda ou é  
vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a  
própria força de trabalho. Para vendê-la como mercadoria, seu  
possuidor tem de poder dispor dela, portanto, ser o livre proprietário  
de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor de  
dinheiro se encontram no mercado e estabelecem uma relação mútua  
como iguais possuidores de mercadorias, com a única diferença de  
que um é comprador e o outro, vendedor, sendo ambos, portanto,  
pessoas juridicamente iguais. A continuidade dessa relação requer  
que o proprietário da força de trabalho a venda apenas por um  
determinado período, pois, se ele a vende inteiramente, de uma vez  
por todas, vende a si mesmo, transforma-se de homem livre num  
escravo, de um possuidor de mercadoria numa mercadoria. Como  
pessoa, ele tem constantemente de se relacionar com sua força de  
trabalho como sua propriedade e, assim, como sua própria  
mercadoria, e isso ele só pode fazer na medida em que a coloca à  
disposição do comprador apenas transitoriamente, oferecendo-a a  
consumo por um período determinado, portanto, sem renunciar, no  
momento em que vende a sua força de trabalho, a seus direitos de  
proprietário sobre ela (MARX, 2013, pp. 242-243; 1962, p. 181-182,  
grifo meu).  
Note-se, como afirma Marx, que por ocasião da compra e venda da força de  
trabalho, o trabalhador ou a trabalhadora aparecem como pessoas juridicamente iguais  
ao capitalista, ou seja, como sujeitos de direito26.  
26  
No capítulo 04 de Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis observa: “O servo está um uma  
situação de completa subordinação ao senhor justamente porque esta relação de exploração não exige  
uma formulação jurídica particular. O trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor  
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Sob a perspectiva do método dialético, percebe-se que os guardiões de  
mercadorias que surgiram no capítulo 02, assumindo a qualidade de sujeitos de direito  
e ajustando suas vontades para que a troca ocorresse, ressurgem agora, no capítulo  
04, como proprietários da força de trabalho e de dinheiro, ou seja, diferentes do ponto  
de vista social e econômico, mas com idênticos atributos jurídicos e formais, ajustando  
suas vontades para que o contrato seja realizado.  
A fórmula econômica D – M ... P [MP + FT] ... M’ – D’ pode ser traduzida  
juridicamente do seguinte modo: SD SD ... P [MP + FT] ... SD SD. O circuito jurídico  
é totalmente preservado com a produção do capital.  
Assim, o trabalhador ou a trabalhadora, tanto quanto o capitalista, são pessoas  
ou sujeitos de direito, dotados de liberdade, igualdade formal, propriedade privada e  
autonomia da vontade, aptos a contratarem livremente no mercado, dispondo de suas  
mercadorias da maneira que bem lhes aprouver. Nesse sentido, o proletário ou  
proletária se sentem tão bem na esfera da circulação mercantil quanto quaisquer  
outros proprietários de mercadorias. Marx anota:  
A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se  
move a compra e venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro  
Éden dos direitos naturais do homem. Ela é o reino exclusivo da  
liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade,  
pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo,  
a força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles  
contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O  
contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão  
legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam  
um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam  
equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe  
apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si  
mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de  
sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses  
privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo  
mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em  
consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os  
auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a  
obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral  
(MARX, 2013, pp. 250-251; 1962, pp. 189-190, grifo meu).  
O início do capítulo 02, do Livro I, de O capital, ressurge no final do capítulo  
04 ressignificado, isto é, com determinações mais complexas e abstrações mais  
concretas.  
de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é mediada pela forma jurídica do  
contrato. Acredita-se que esses exemplos sejam suficientes para se admitir o significado decisivo da  
categoria de sujeito para a análise da forma jurídica” (PACHUKANIS, 2013, p. 118; 2003, p. 110).  
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Naquele momento os guardiões de mercadorias dispõem de coisas que foram  
produzidas pelo trabalho próprio. Aqui houve uma complexificação, de modo que uma  
parte dispõe da forma universal do valor, o dinheiro (o capitalista), e a outra parte  
detém a forma particular do valor, a força de trabalho (o trabalhador ou trabalhadora).  
Aquela relação jurídica, cuja forma é o contrato, reconhecida legalmente ou não,  
ressurge agora. Se do ponto de vista econômico elas são diferentes, pois lá se deparam  
mercadoria com mercadoria (MM), enquanto aqui se deparam dinheiro e força de  
trabalho (DFT), do ponto de vista jurídico elas são idênticas, pois em ambos os casos  
são sujeitos de direito contratando (SDSD). Assim, à forma-mercadoria da força de  
trabalho corresponde a forma de sujeito de direito do trabalhador ou trabalhadora.  
Ora, se o sujeito de direito oferece a forma a partir da qual a figura do homem  
e do cidadão se estabelecem como modos de socialidade dos chamados direitos  
humanos, é evidente que o trabalhador e a trabalhadora, por assumirem a forma de  
sujeitos de direito no momento da compra e venda da força de trabalho, também se  
sentem contemplados pelas figuras do homem e do cidadão.  
Portanto, o empregado e a empregada, do ponto de vista da circulação de  
mercadorias e, portanto, dos circuitos jurídicos por ela engendrados, estão aptos a  
receberem a forma do homem e do cidadão e os respectivos atributos por elas  
contemplados. Também gozam das liberdades clássicas, da propriedade privada, da  
igualdade formal e da segurança jurídica.  
Ao utilizar a alegoria do “Éden”, Marx, apesar da ironia, está falando sério. A  
circulação mercantil é a sede dos direitos naturais do homem. É precisamente ali, por  
ocasião da troca de mercadorias e do estabelecimento do contrato entre sujeitos de  
direito, que surgem concretamente as formas de sociabilidade que conhecemos como  
liberdade, igualdade, propriedade e segurança.  
Considerada isoladamente, isto é, sem conexão com a esfera da produção, a  
circulação de mercadorias parece, de fato, um paraíso. Contratos são feitos porque as  
pessoas querem, já que ninguém as obrigam; todos são iguais, uma vez que carregam  
consigo somas idênticas de valor; a propriedade privada impera, já que a transferência  
mercantil depende apenas e tão somente da concordância de cada um. Todos cuidam  
do seu interesse próprio, sem preocupação com os demais.  
Além do mais, figura do “Éden” nos permite estabelecer um paralelo com o item  
04, do capítulo 01, que trata do famoso fetiche da mercadoria. De fato, naquele  
momento Marx observa que a mercadoria, apesar de ser uma coisa trivial, é dotada de  
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“sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. Uma mesa, por exemplo, assim que  
aparece como mercadoria “mantém os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo  
diante de todas as outras mercadorias (...)” (MARX, 2013, p. 146; 1962, p. 85, passim).  
Esta inversão dialética (os pés no chão, mas a cabeça para baixo) é fundamental  
para compreender o método de Marx.  
A forma de mercadoria subverte o sentido do produto do trabalho humano. A  
atividade humana prático-produtiva (o trabalho) depositada no produto mercantil  
desaparece, aparecendo apenas o aspecto quantitativo em que uma mercadoria se  
troca por outra, ou seja, seus valores. Assim, “as relações entre produtores, nas quais  
se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma  
relação social entre os produtos do trabalho” (MARX, 2013, p. 147; 1962, p. 86).  
Isso significa que a relação social por intermédio da qual se trocam mercadorias  
aparece como relação entre coisas, e não entre indivíduos. Aos olhos destes, parece  
que o valor da mercadoria não tem qualquer relação com o trabalho que a produziu,  
sendo algo implícito a ela, ou seja, que se encontra nos átomos que a compõem. Marx  
observa:  
Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar  
na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro  
humano parecem dotados de vida própria, como figuras  
independentes que travam relações umas com as outras e com os  
homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os  
produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola  
aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como  
mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de  
mercadorias (MARX, 2013, pp. 147-148; 1962, pp. 86-87).  
Ora, se o fetiche da mercadoria significa que uma relação social aparece como  
uma relação entre coisas, e não entre indivíduos, isso significa que o guardião da  
mercadoria se submete inteiramente à lógica mercantil, estando, portanto, sujeito à  
mercadoria. Ela é, pois, sujeito de direito.  
Nada obstante, como vimos, os portadores de mercadorias são pessoas. Desse  
modo, o fetiche da mercadoria é transpassado ao sujeito de direito. Assim, esta figura  
também assume caráter físico-metafísico, ou seja, existe apenas no contexto de uma  
relação social específica, que é a troca de valores idênticos.  
Por isso, a ligação que se pode estabelecer entre Sobre a questão judaica e o  
capítulo 02, do Livro I, de O capital, pode ser replicada ao capítulo 04, em que as  
abstrações do capítulo segundo são repostas num nível superior de concretude.  
Isso significa que os direitos do homem e do cidadão também contemplam os  
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trabalhadores e trabalhadoras, sujeitos de direito que contratam livremente no  
mercado. Por isso, não faz sentido para o marxismo a crítica negativa, não dialética,  
dos direitos de primeira dimensão.  
Estas formas de sociabilidade abrangem relações sociais e não indivíduos. As  
relações que, de alguma maneira, atraiam para si a forma do sujeito de direito, ainda  
que não sejam estritamente jurídicas, estão aptas à configuração concretas da figura  
do homem e do cidadão e, portanto, dos atributos que a acompanham.  
Não por outra razão, os discursos de direita e extrema direita que apelam às  
noções de liberdade e propriedade privada, prometendo a defesa radical destas,  
seduzem e conquistam os proletários e proletárias, enquanto o discurso progressista,  
muitas vezes crítico dos direitos humanos de primeira dimensão, afastam a classe  
trabalhadora.  
A defesa do proletariado não passa pela crítica simplesmente negativa e não  
dialética dos direitos humanos, mas pela compreensão crítico-positiva de sua natureza  
constitutiva e pela luta por sua superação dialética.  
Conclusões  
A apresentação efetuada até o momento não permite dizer o que são os direitos  
humanos, mas permite dizer o que eles não são. Definitivamente, não são espécies de  
direitos subjetivos. Estes apenas existem concretamente no âmbito da troca de  
mercadorias ou da compra e venda da força de trabalho. Fora deste contexto, são  
apenas abstrações, mais ou menos concretas, conforme o caso.  
A compreensão da natureza específica dos direitos humanos depende da  
mediação política. É verdade que eles assumem a forma jurídica, mas esta forma é  
apenas uma projeção. Eles dependem, antes de tudo, da articulação de uma classe  
social: a burguesia. A partir daí, a luta de classes os transforma em categorias  
universais, aplicáveis também aos trabalhadores e trabalhadoras.  
Por isso, a adequada compreensão da natureza dos direitos humanos depende,  
antes, da adequada compreensão das classes sociais e de sua organização política,  
isto é, do Estado nacional. Isso sem mencionar o desdobramento internacional das  
lutas de classes, o que passa pelas relações entre Estados nacionais no âmbito externo,  
como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas etc.  
A natureza dos direitos de primeira dimensão, por selarem, no nível político, os  
atributos jurídicos do sujeito de direito, seduzem a classe trabalhadora como um canto  
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de sereia. Por isso, os discursos de direita e extrema direita, que apelam para a defesa  
da liberdade, da propriedade privada, da igualdade formal e da segurança, atraem os  
trabalhadores e trabalhadoras que, submersos na ideologia da sociedade capitalista,  
interpretam-se a si próprios como empreendedores natos.  
Uma vez que conquistam o poder político, as forças conservadoras se põem  
logo e destruir os direitos humanos que supostamente defendiam, pois sabem que sua  
linguagem universal e humanista, por mais irônica que seja, funciona como uma  
espécie de baliza aos abusos do poder estatal.  
Por isso, as forças progressistas em geral, e os marxistas em particular,  
cometem um gravíssimo equívoco quando subestimam a potência política de  
resistência ligada aos direitos humanos, tratando-os como meras “ilusões” ou artifícios  
criados pelas classes dominantes. Numa época de avanços do totalitarismo de direita,  
tais direitos surgem como polo aglutinador e divisa comum para lutas democráticas.  
É no mínimo uma irracionalidade, para não dizer crua estupidez, fazer a crítica  
meramente negativa e não dialética dos direitos humanos. Renuncia-se a um  
importante espaço institucional de lutas de resistência pelo simples fato de não se  
compreender adequadamente a natureza de um objeto. Como diria Marx, a ignorância  
nunca ajudou a libertar ninguém.  
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Como citar:  
CASALINO, Vinícius. Os direitos humanos à luz de O capital: elementos para uma  
aproximação (Parte 01). Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 336-366; jan.-  
jun., 2024  
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