DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.716  
Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da  
servidão na Rússia  
Alexander, the unamazing: Marx and the abolition of serfdom in  
Russia  
Gabriella M. Segantini Souza*  
Resumo: em 1858, Marx escreveu dois artigos  
para o jornal ianque New York Daily Tribune  
tratando dos preparativos do czar Alexandre II  
para a abolição da servidão. O presente artigo  
tem por objetivo analisar como nesses artigos o  
Estado e o Direito aparecem no tratamento de  
Marx sobre a servidão russa à luz da relação  
entre o Estado, a nobreza e os servo. Enquanto  
o autor renano demonstra a todo tempo que o  
Estado e o Direito russos não possuíam  
efetivamente qualquer função de progresso na  
Rússia, para Marx existia no desenvolvimento da  
questão da emancipação dos camponeses  
enservados ao final da década de 1850 e nas  
tensões entre o Estado, a aristocracia e os servos  
russos um real potencial para mudanças  
profundas na outrora retrógrada Rússia.  
Abstract: in 1858, Marx wrote two articles for  
the Yankee newspaper New York Daily Tribune  
dealing with the preparations of Tsar Alexander  
II for the abolition of serfdom. The present  
article aims to analyze how in those articles the  
Russian state and law appear in Marx’s  
treatment of the Russian serfdom in light of the  
relationship between the state, the nobility and  
the serfs. While the Rhenish author  
demonstrates at all times that the Russian state  
and law did not have a progressive role in  
Russia, for Marx in the development of the  
question of the emancipation of enserfed  
peasants the end of the 1850s and in the  
tensions between the state, the Russian  
aristocracy and bondaged peasants there was a  
real potential for profound changes in the once  
retrograde Russia.  
Palavras-chave:  
servidão; Emancipação  
Marx; Rússia; Abolição da  
dos servos;  
Keywords: Marx; Russia; Abolition of serfdom;  
Emancipation of the serfs; Peasants; Aristocracy;  
Czardom; State; Law.  
Camponeses; Aristocracia; Czarismo; Estado;  
Direito  
Introdução  
O presente artigo tem por objetivo analisar o tratamento de Marx acerca da  
questão da abolição da servidão na Rússia nos artigos escritos pelo autor renano para  
o New York Tribune em outubro e dezembro de 1858 (The question of the abolition  
of serfdom in Russia e The emancipation question, parte I e II), abordando a forma  
como aparecem nesses artigos o Estado e o Direito russos e como Marx os relaciona  
ao desenvolvimento russo. Embora este artigo se dedique ao tratamento de Marx  
sobre a abolição da servidão russa, priorizando análise dos textos do New York Daily  
Tribune, também será feito uso de outros textos do autor pertinentes ao estudo da  
*
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestranda em Direito pela  
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: gabriella.segantini.souza@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
nova fase  
 
Gabriella M. Segantini Souza  
servidão russa. Outrossim, também será empregada bibliografia complementar de  
textos de outros autores que trataram da servidão russa e alguns aspectos de sua  
abolição. Recorreremos a esses outros autores com o intuito de obter uma  
compreensão mais aprofundada das particularidades da servidão russa e da forma  
como foi abolida a fim de auxiliar na análise de como a servidão e a emancipação dos  
servos aparecem nos textos de Marx, bem como para contribuir com a exposição do  
tema para o leitor brasileiro, talvez pouco familiarizado com a história da Rússia antes  
de 1905.  
Este artigo não pretende apresentar um tratamento completo da questão da  
Rússia na obra de Karl Marx, mas somente tratar de um aspecto pontual dos estudos  
do autor sobre aquele país e como ali aparecem o Estado e o Direito. Ademais, o  
objeto deste texto se insere em um problema muito maior do que a discussão de Marx  
sobre a abolição da servidão e do papel da política e do direito, a saber, a investigação  
de como se coloca a miséria russa na obra de Marx e como se desenvolveu a análise  
das problemáticas russas dentro da crítica à economia política. De modo semelhante,  
o presente artigo também se insere em uma pesquisa de maior escopo promovida pela  
autora deste texto, tratando-se do estudo de como se desenvolve a forma através da  
qual Marx aborda o potencial de uma revolução na Rússia entre 1848 e 1883.  
As particularidades da servidão russa  
Em 1861, o czar Alexandre II aboliu por decreto a servidão na Rússia. A  
longevidade da qual desfrutou um instituto de ares tão feudais na Rússia já muito nos  
indica sobre a particularidade da servidão russa. Basta, por exemplo, lembrarmo-nos  
como na Inglaterra o instituto da servidão já havia desaparecido quase que de forma  
absoluta na segunda metade do século XIV, sendo que já no século XV a maioria da  
população inglesa era composta de “camponeses livres, economicamente autônomos”  
(Marx, 2017, p. 788). Na Rússia, a servidão não só foi abolida de forma tão tardia —  
comparada a outros países europeus que também possuíram formas semelhantes de  
organização do trabalho , mas ela também se desenvolveu ali de forma tardia.  
Em geral, tanto a tradição historiográfica russa antes e durante a União  
Soviética, quanto ocidental traçam as origens da servidão na Rússia até os séculos XVI  
e XVII (Stanziani, 2018; Robinson, 1932). Ainda que as origens da transformação de  
camponeses outrora livres em servos possam ser encontradas nos séculos XIII, XIV e  
XV (Blum, 1961, p. 219), é nos séculos XVI, XVII que as tendências de enservamento  
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dos camponeses se intensificam as quais se consolidariam na lei russa de forma  
definitiva no final do século XVII e no XVIII , uma vez que até o século XVI, as  
obrigações que um camponês devia ao senhor das terras em que vivia se mantiveram  
relativamente estáveis, sem grandes aumentos (Blum 1961, p. 221).  
Entre os séculos XVI e XVII, a Rússia viveu uma grande expansão dos direitos  
da nobreza russa sobre as terras camponesas e, portanto, sobre seus ocupantes,  
acarretando também um crescimento das obrigações e encargos decorrentes dessa  
autoridade crescente e tornando o camponês russo cada vez mais preso à terra e ao  
seu senhor (Robinson, 1932). As obrigações devidas pelos camponeses foram sendo  
convertidas em obrigações monetárias (obrok) e a barshchina (trabalho obrigatório do  
camponês para o senhor) foi se tornando cada vez mais comum e foi aumentada de  
um dia de trabalho por semana a dois a três dias de trabalho por semana, de modo  
que o total das obrigações a serem prestadas pela família camponesa foram somente  
crescendo (Blum, 1961, p. 220). Enquanto o camponês inglês já era livre e autônomo  
há quase dois séculos, durante o século XVI o camponês russo se aproximava cada  
vez à condição de servo, ainda que a lei russa ainda não o reconhecesse oficialmente  
como servo.  
No concernente às leis relativas à organização do trabalho no campo e à  
servidão, a legislação russa do século XVII muito contribuiu com a fixação dos  
camponeses à terra, principalmente com a finalidade de facilitar a cobrança de  
impostos. Em novembro de 1601, um ukase de Boris Godunov, que era o regente na  
época, estabeleceu a proibição de que os servos viajassem livremente pela Europa,  
vinculando-os à terra em que nasceram (Marx, 2010b, p. 139) e 48 anos depois, o  
famoso Ulozhenie de 1649 consolida ainda mais a ligação do camponês à terra e à  
autoridade do senhor (Robinson, 1932, p. 20). Além disso, nos séculos XVI e XVII o  
Estado moscovita colocou em vigor diversas leis que instituíam o registro das terras e  
das almas1 associadas a elas com a finalidade de aumentar a receita tributária e o  
alistamento militar compulsório, acabando por limitar a mobilidade dos servos  
(Stanziani, 2018). Entre os séculos XVI e XVIII, vai sendo extinta a possibilidade de  
encerrar a relação de obrigação e vinculação do camponês ao seu senhor, uma vez  
que se excluía progressivamente a possibilidade de o camponês quitar suas obrigações  
1
A partir da era Petrina (reinado do czar Pedro, o Grande), passou-se a se referir por almas (dushi ou  
души) os camponeses tributáveis, sujeitos ao imposto por cabeça ou imposto das almas (poduchnaia  
podat ou подуш[ная] податъ).  
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com o seu senhor e de se tornar um homem livre, inclusive em razão de empréstimos  
contraídos pelos camponeses com os senhores das terras para arcar com os  
pagamentos e serviços devidos pelo uso da terra, os quais eram acordados com o  
senhor (Robinson, 1932, p. 19).  
Entretanto, até o século XVIII, a transformação do camponês em servo por parte  
da nobreza rural, a progressiva submissão daqueles à condição de propriedade  
privada desta ainda se colocava como uma usurpação ilegal por parte dos boiardos  
(Marx, 2010b, p. 139). É só no século XVIII, durante o reinado de Pedro, o Grande e  
de Catarina, a Grande, que os camponeses se tornam servos na lei russa. Dessa forma,  
quando com as revoluções de tipo europeu” (Marx, 2020, p. 323) já havia triunfado  
a burguesia e havia sido proclamada uma nova ordem política para a nova sociedade  
europeia” (Marx, 2020, p. 323), o século XVIII na Rússia foi marcado pelo  
desenvolvimento da servidão de forma intensiva e extensiva e de um fortalecimento  
da nobreza russa (Robinson, 1932, p. 25). Durante o reinado de Pedro, o Grande  
(1682-1725), o czar torna legal o enservamento dos camponeses pela nobreza (Marx,  
2010b, p. 139) e passou a reconhecer a hereditariedade do poder da nobreza agrária  
sobre os servos, consolidando esses nobres como senhores hereditários das almas de  
terras. Durante o reinado de Pedro, os camponeses que viviam numa dada propriedade  
foram transformados em propriedade privada e hereditária do nobre a quem pertencia  
aquela terra (Marx, 2010b, p. 139). A nobreza adquiriu ainda o poder de vender seus  
servos, seja de forma individual ou em lotes, juntos ou separados da terra, bem como  
se tornou legalmente responsável por seus servos e pelos impostos devidos por eles  
ao governo (Marx, 2010b, p. 139).  
Além de consolidar os privilégios da nobreza e consumar sua emancipação em  
relação ao Estado russo na sua Carta Régia à Nobreza de 17852, Catarina II teve um  
papel central na fixação dos camponeses enquanto servos. Na Carta de 1785 a czarina  
2 Pedro, o Grande tornou também obrigatório que os integrantes da nobreza russa servissem ao Estado  
russo durante toda sua vida adulta, colocando toda a classe nobre russa a serviço do czar. Contudo,  
enquanto a lei russa só aboliria a servidão em 1861, a obrigação da nobreza de servir ao Estado russo  
foi abolida já em 1762 mediante o Manifesto de Pedro III, o qual abolia a obrigatoriedade dos serviços  
da nobreza ao Estado instituída por Pedro, o Grande e estabelecia que o serviço ao Estado só seria  
obrigatório para os nobres em caso de emergências públicas, marcando o começo do que ficou  
conhecido como a emancipação da nobreza russa que seria levada a cabo no reinado de Catarina, a  
Grande. A consumação dessa emancipação por Catarina teria se dado em 1785 com sua Carta Régia  
da Nobreza, que consistia em um estatuto definindo a nobreza russa, seus privilégios e de seu papel  
na sociedade russa, substituindo o caos da antiga profusão de leis repetitivas e contraditórias que  
tratavam do mesmo objeto por um único texto legal e fortalecendo o domínio dos nobres e, portanto,  
a lealdade da nobreza com a czarina (Jones, 1973).  
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reconheceu definitiva e oficialmente o servo como propriedade privada do nobre,  
tornando o camponês em situação servil absolutamente submetido à autoridade  
despótica de seu senhor (Jones, 1973, p. 291). Por demais, embora as leis russas que  
tratavam da relação entre senhor e servo supostamente obrigassem o nobre a  
alimentar seus servos e o impedia de exercer violência exagerada ou crueldade contra  
seus servos, “the law did not even go so far as to provide a specific punishment for a  
landlord who tortured a peasant to death a thing by no means unheard of in this  
enlightened time3 (Robinson, 1932, p. 28). Durante todo o reinado de Catarina II só  
foram registrados 20 casos de senhores punidos por crueldade contra seus senhores  
e considerando que um servo que fizesse reclamações contra seu senhor poderia  
ser punido por flagelação e exílio para trabalhos forçados na Sibéria, esse pequeno  
número se torna ainda mais esclarecedor. Assim, “for them [bondaged plowmen and  
courtyard people] the century of the Enlightment was a century of abysmal darkness  
and depression4(Robinson, 1932, p. 27).  
Assim, ao longo dos reinados de Pedro, o Grande e Catarina, a Grande as  
prerrogativas dos senhores sobre os seus servos iam se assomando a tal ponto que o  
nobre exercia poderes dos mais diversos sobre a vida do camponês. O nobre poderia  
como bem quisesse, para citar apenas alguns: aumentar ou reduzir as terras da vila  
camponesa ou da família camponesa individual; aumentar as obrigações e serviços  
devidos pelo camponês; interferir na distribuição e redistribuição das terras comunais;  
apreender os bens móveis do camponês; limitar as relações do camponês com pessoas  
de fora da propriedade; decidir sobre o casamento do camponês (Robinson, 1932).  
Por exemplo, Robinson (1932, pp. 27-28) aponta que durante o reinado de Catarina  
II ocorreu um enorme aumento no obrok5 pago pelos camponeses aos senhores,  
podendo esse aumento ser estimado em cerca de 100%; ademais, nas terras em que  
as obrigações dos servos com seus senhores eram pagas na forma da barshchina6 o  
número de dias de trabalho nas terras senhoriais podiam chegar até 5 dias, durante  
os quais as terras do camponês ficariam sem ser semeadas e sua colheita apodreceria  
na terra (Robinson, 1932, p. 28).  
3 A lei não chegava longe o suficiente a ponto de providenciar uma punição específica para um senhor  
de terras que torturasse um camponês até a morte algo de forma alguma inaudito nessa Era  
Iluminada. (tradução livre)  
4
Para eles (lavradores tornados servos e servos de pátio) o século do Iluminismo foi um século de  
escuridão abismal e depressão. (tradução livre)  
5 Espécie de pagamento monetário pelo uso das terras.  
6 Espécie de pagamento em forma de trabalho forçado pelo uso da terra.  
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Mas se por um lado a nobreza tornava cada vez mais miserável a vida do servo  
russo e o a mão de ferro do Estado russo muito bem se assegurava disso , de  
outro, esses nobres encontravam no camponês uma feroz resistência. O reinado de  
Catarina II foi marcado por diversas revoltas camponesas, tendo nos anos de 1773 a  
1775 a Rússia sido palco da maior revolta cossaca-camponesa de sua história, a  
revolta de Pugachev. Em 1773, logo depois de deixar uma prisão de Kazan e fazendo-  
se passar czar Pedro III que já estava morto desde 1762 , cossaco Pugachev  
reuniu em torno de si uma força considerável de camponeses e cossacos e espalhou  
terror pelas províncias dos Urais, invadindo diversas propriedades da nobreza e  
executando famílias nobres inteiras (Robinson, 1932, p. 31). O exército de Pugachev  
conseguiu em derrotar as primeiras forças do Exército Russo enviadas pela czarina  
para reprimir a revolta e em tomar a cidade de Kazan (Robinson, 1932, p. 32). A fúria  
dessa revolta foi, contudo, recebida com uma reação da czarina em igual fúria, tendo  
sido a revolta duramente reprimida, os cossacos e os camponeses dispersados e  
Pugachev executado (Robinson, 1932).  
Outras revoltas camponesas eclodiram no século XVIII, mas nenhuma com as  
proporções da revolta de Pugachev, e todas elas incluindo a pugachevshchina —  
fracassaram em melhorar a condição dos servos russos. Depois que os camponeses e  
os cossacos de Pugachev foram duramente reprimidos e o incitador da revolta  
executado, Catarina se tornou uma ansiosa adepta do reacionarismo. Depois da  
revolta, a czarina nunca mais fez menção a qualquer reforma na organização do  
trabalho servil para reduzir a tirania à qual era submetido o servo, tendo concluído  
que o controle absoluto dos servos pelos nobres era um mal menor comparado à  
possibilidade de perda do controle dos servos (Jones, 1973, p. 292)7. Evidência disso  
é a já mencionada Carta Régia de 1785, o texto legal mais simbólico da aliança entre  
o Estado e a nobreza russa em prol da garantia da ordem na Rússia. Nessa Carta Régia,  
reconhecia-se os privilégios da nobreza e os fortalecia, inclusive como uma reação à  
pugachevshchina, que ameaçava esses próprios privilégios, bem como se dava  
reconhecimento definitivo do servo como uma propriedade do nobre.  
Não é por razão alguma que o século XVIII tenha ficado conhecido na história  
7
Depois da pugachevshchina, qualquer potencial revolucionário que os cossacos tinham nesse  
momento foi suprimido parte dos cossacos se tornou proprietária de terras, convertendo-se em  
nobreza pequeno russa (ucraniana), parte foi transformada em um serviço militar especial e parte foi  
despida completamente de qualquer elemento que os distinguia efetivamente do camponês comum.  
Sobre isso, cf. Robinson, 1932.  
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russa como a “Era de Ouro da Nobreza Russa” (Robinson, 1932), embora não seja  
pelas razões que se costuma atribuir, pois não se trata de um período de verdadeiros  
avanços civilizatórios. Pelo contrário, as reformas levadas a cabo pelos “grandiosos”  
Pedro e Catarina nada mais fizeram do que introduzir na Rússia “sham and show8  
(Marx, 2010b, p. 147) de civilização, apesar das palavras grandiosas proferidas por  
Catarina II no começo de seu reinado. Em verdade, esse período pode ser dito a “Era  
de Ouro da Nobreza Russa”, pois nunca antes pareceu tão sólida a base social de sua  
dominação, nunca antes seu poder pareceu tão absoluto e inquebrável. Nesse período  
se solidificou a servidão do camponês russo, foi o século do triunfo do sistema servil,  
da exploração mais brutal e absoluta do servo por seus senhores. Como indica Geroid  
T. Robinson,  
not in absence of opposition, but in spite of it, about nineteen and  
one-half million of persons stood bondaged to the landlords in 1797,  
while the State peasantry […] numbered about fourteen and one-half  
million some thirty-four millions altogether, in a total population of  
thirty-six (Robinson, 1932, p. 33)9.  
Assim, esse período terminou por prender à terra e à tirania da nobreza e do  
Estado cerca de 94% de toda a população russa, solidificando as bases da dominação  
da aristocracia russa. Contudo, nessas bases foram se mostrando cada vez mais as  
rachaduras, até que chegamos no final da década de 1850, às vésperas da abolição  
da servidão.  
Marx e as preparações para a emancipação dos servos: The question of the  
abolition of serfdom in Russia”  
Quando era correspondente do jornal norte americano New York Daily Tribune,  
Marx escreveu dois artigos tratando das propostas do czar Alexandre II para a abolição  
da servidão, um escrito e publicado em outubro de 1858 The Question of the  
abolition of serfdom in Russia e outro escrito em dezembro de 1858 e publicado  
em duas partes em janeiro de 1859 The Emancipation Question. Trataremos  
primeiro do texto de outubro, que trata do momento em que foram tornados públicos  
os preparativos do czar para a emancipação, com a convocação dos nobres a São  
Petesburgo para discutirem a questão dos servos. Depois trataremos dos textos de  
8 Farsa e espetáculo. (tradução livre)  
9
Não com ausência de oposição, mas apesar dela, cerca de dezenove e meio milhões de pessoas  
estavam enservadas aos senhores de terras em 1797, enquanto o campesinato do Estado somava cerca  
de quatorze e meio milhões um total de trinta e quatro milhões, numa população de trinta e seis.  
(tradução livre)  
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dezembro, os quais abordam os princípios propostos pelo czar para a abolição da  
servidão.  
No segundo semestre do ano de 1858 o terceiro ano de reinado do filho de  
Nicolau I e dois anos depois do fim da Guerra da Crimeia (1853-1856) , a questão  
da abolição da servidão havia chegado a um ponto de inflexão durante o reinado do  
czar Alexandre II. Em outubro desse ano, Marx escreve o artigo The question of the  
abolition of serfdom in Russia enquanto correspondente do jornal ianque New York  
Daily Tribune para explicar as circunstâncias dessa inflexão, sobretudo as que  
provocaram as movimentações do czar, além de tratar do estado geral de ânimos entre  
os russos naquele momento.  
Escreveu Marx que em 1858, o czar havia sido levado a um “extraordinary  
step10 (Marx, 2010b, p. 51) em relação a questão da servidão com a convocação a  
São Petesburgo de um conselho geral de nobres para fins de discussão da abolição  
da servidão, tendo dessa convocação surgido o chamado Chief Peasant Question  
Committee11. Esse passo indicou uma virada séria na questão dos servos russos, na  
medida que Alexandre II (que de forma alguma não era o primeiro czar a flertar com a  
emancipação dos servos) avançava na questão de forma definitiva em seus planos para  
libertar os servos, diferentemente do que haviam feito seus antecessores, inclusive seu  
pai, Nicolau I e seu tio, Alexandre I. Contudo, e Marx bem o ressalta, é importante notar  
que o czar não avançava com a questão da emancipação por qualquer tipo de  
sentimento humano ou vontade pessoal, ele fora forçado, levado a, “driven to12 (Marx,  
2010b, p. 51) a tal passo por contingências que o impediam de desviar de uma  
10 Passo extraordinário.  
11  
Segundo a nota 46 na Marx Engels Collected Works, “the Chief Peasant Question Committee is the  
name given in January 1858 to the Secret Committee "for discussing measures to arrange the life of the  
landowners' peasants" which began its sittings on January 3, 1857 with Alexander II as chairman. The  
aim of the Chief Committee was to consider "the decisions and proposals concerning serfdom". The  
Grand Duke Constantine was among its members. In November 1857 a rescript was issued inviting each  
gubernia to form landowners' committees for the purpose of drafting the conditions for the abolition of  
serfdom. Such committees were set up in all gubernias in the course of 1858. Their composition varied,  
the majority consisting of big serfowners and the minority, of liberal landowners.” (MECW, p. 648) [o  
Chief Peasant Question Committee é o nome dado em janeiro de 1858 ao Comitê Secreto “para discutir  
medidas para organizar a vida dos camponeses dos senhores de terras”, o qual iniciou seus encontros  
em 3 de janeiro de 1857, com Alexandre II como diretor. O propósito do Chief Committee era considerar  
as “decisões e propostas relativas à servidão”. O Grão Duque Constantine estava entre seus membros.  
Em novembro de 1857, uma ordem imperial foi emitida convidando cada gubernia a formar um comitê  
de proprietários de terras com o propósito de redigir as condições da abolição da servidão. Esses  
comitês foram formados em cada gubernia ao longo de 1858. Sua composição variava, a maioria  
consistindo de grandes senhores e servos e a minoria de proprietários de terras liberais]. (tradução  
livre)  
12 Levado a. (tradução livre)  
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discussão séria sobre a abolição da servidão, as quais serão discutidas mais à frente.  
Ao contrário do que esperava Alexandre II (Marx, 2010b, p. 53), não se  
avançava com a questão com boa vontade da nobreza russa. Pelo contrário, os avanços  
na questão propostos pelo czar eram recebidos com aberta resistência no próprio  
comitê por ele convocado para tratar da abolição, bem como dos diversos comitês  
provinciais cuja criação o governo havia ordenado em 1857 (cf. nota nº 10). Sobre os  
trabalhos iniciais da comissão, Marx escreve que  
The labors of the "Chief Peasant Question Committee" have proved  
little better than abortive, and only led to fierce quarrels among its  
own members, quarrels in which the Chairman of that Committee, the  
Grand Duke Constantine13, sided with the old Russian party against  
the Czar14(Marx, 2010b, p. 51).  
Essa atuação quase abortiva do Comitê Central também se repetia nos Comitês  
Provinciais, em que os nobres pareciam em grande parte ter abraçado a oportunidade  
concedida pela discussão oficial acerca dos passos preparatórios para a emancipação  
não com a finalidade de debater as condições do fim da servidão e fazer avançar a  
discussão, mas sim com a finalidade de turvar a questão. Ou seja, aquilo que Alexandre  
II queria que fossem os nobres russos para a emancipação dos servos instrumentos  
nas grandiosas mãos libertadoras do czar , esses nobres não mostravam de forma  
alguma dispostos em sê-lo.  
Marx ressalta que certamente havia dentre a nobreza russa alguns que  
apoiavam em maior ou menor medida, um “abolicionist party15 (Marx, 2010b, p. 51),  
como diz o autor renano16. Mas de forma alguma podemos superestimar o tamanho  
ou influência desse grupo, eis que era composto por uma minoria numérica e de forma  
alguma havia dentre eles qualquer tipo unidade quanto aos pontos mais importantes  
da questão em verdade, Marx aponta que a moda dentre a nobreza era se declarar  
contrário à servidão, mas defender que fosse conduzida de tal forma que se tornasse  
uma mera farsa (Marx, 2010b, p. 51). Assim, a posição predominante da nobreza  
quanto à emancipação, senão uma aberta resistência, era de um apoio morno, o que  
não era nada além do esperado da classe que se beneficiava diretamente da  
13 O Grão-Duque Constantino era o irmão mais velho de Nicolas I e Alexandre I.  
14  
os trabalhos do Comitê Central da Questão Camponesa se demonstraram pouco mais do que  
abortivos e só levaram a fortes disputas entre seus membros, disputas nas quais o presidente daquele  
comitê, o Grão Duque Constantine, se posicionou com o velho partido russo contra o czar. (tradução  
livre)  
15 Partido abolicionista. (tradução livre)  
16  
Geroid T. Robinson se propõe a explicar algumas das razões pelas quais havia dentre os nobres  
russos alguns que defendiam o fim da servidão; cf. Robinson, 1932, p. 57-58.  
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exploração dos servos. Como bem explica Marx,  
It is a story as old as the history of nations. In fact, it is impossible to  
emancipate the oppressed class without injury to the class living upon  
its oppression, and without simultaneously discomposing the whole  
superstructure of the State reared on such a dismal social basis. When  
the time of change arrives, much enthusiasm is at first manifested;  
joyful felicitation upon mutual good will is dealt in, with great pomp  
of words as to the general love of progress, and so forth. But so soon  
as words are to be exchanged for deeds, some retire in fright at the  
ghosts raised, while most declare themselves ready to stand and fight  
for their real or imaginary interests. (Marx, 2010b, p. 52)17  
Ou seja, no momento inicial em que se tomou conta de que o tempo da servidão  
estava se aproximando do fim, que o tempo de mudança se aproximava e em que  
disso se deram conta, muito se felicitou quanto ao progresso que finalmente chegaria  
à Rússia. Não obstante, isso se colocava na cabeça e na boca dos nobres somente  
como uma bela frase que de forma alguma pretendiam tornar efetiva. Eis que no  
momento no qual o czar começa a dar indícios de querer transformar em ação a frase  
da emancipação, de fazer valer suas promessas de abolição a nobreza recua assustada  
diante da ameaça aos seus interesses (sejam reais ou imaginários) e se horroriza diante  
da possibilidade da dissolução efetiva da base social de sua dominação. E em verdade,  
não haveria como esperar que ela agisse de forma diferente (Marx, 2010b, p. 52). Com  
que razão se esperaria que a nobreza russa, a própria classe que vivia da servidão,  
abrisse mão voluntariamente dessa base social, que com suas mãos elas destruísse as  
bases de sua dominação, a exploração dos servos?  
Isso tudo se agravava diante da situação em que as finanças da aristocracia  
russa se encontrava. Como expõe Marx, os nobres russos ressaltavam que antes  
mesmo da abolição já era difícil a obtenção de empréstimos assegurados pela  
propriedade da terra em certas províncias graças à incerteza generalizada provocada  
pela depreciação iminente do valor da propriedade da terra. E mais, como os  
proprietários de terras cumpririam com suas obrigações com o governo, indagavam  
os nobres e grande parte das propriedades da Rússia eram hipotecadas ao próprio  
Estado russo. O que seria dos vários nobres que viviam das obrigações devidas por  
17  
É uma história tão antiga quanto a história das nações. De fato, é impossível emancipar a classe  
oprimida sem danos à classe vivendo sob sua opressão e sem simultaneamente decompor toda a  
superestrutura do Estado baseada em uma base social tão sombria. Quando o tempo de mudança  
chega, muito entusiasmo é de início manifestado; felicitação alegre quanto à boa vontade mútua é  
tratada, com grande pompa quanto o amor geral pelo progresso e assim em diante. Mas assim que  
palavras estão para ser trocadas por atos, alguns recuam atemorizados diante do fantasma levantado,  
enquanto a maioria se declara pronta para se erguer e lutar por seus interesses reais ou imaginários.  
(tradução livre)  
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seus servos instalados nas cidades? E os boiardos que possuíam um limitado número  
de servos e propriedades de terras igualmente limitadas? O que seria deles se cada  
servo emancipado recebesse uma pequena parcela de terra, conforme pretendia o  
czar? E depois da emancipação, que tipo de de limite efetivo contra o poder imperial  
restaria à disposição dos nobres? Afinal, o fim da servidão representaria uma séria  
redução no poder político que estavam acostumados a exercer, sem mencionar que a  
abolição da servidão pelo czar não era para a nobreza nada senão uma séria  
interferência do Estado em seus assuntos. Esses eram alguns dos pontos discutidos  
pela nobreza e formavam so many strong positions behind which the friends of  
serfdom pitch their tents18 (Marx, 2010b, p. 52).  
Mas apesar disso tudo, Alexandre II supunha que os nobres russos,  
submeteriam-se às ordens imperiais sem recuar ou oferecer resistência. Não só isso, o  
czar esperava que até mesmo considerariam a mark of honor19 (Marx, 2010b, p. 53)  
que lhes fosse permitido through the instrumentality of their several committees20  
(Marx, 2010b, p. 53) que pudessem tomar parte ativa nesse grande drama (Marx,  
2010b, p. 53). Entretanto, assim como é de se esperar que a nobreza resistisse aos  
planos de abolição, tampouco o equívoco de Alexandre II se deveu exclusivamente a  
suposições gratuitas do czar. Em verdade, até aquele momento a nobreza russa estava  
acostumada a se submeter às ordens imperiais. Embora Marx não traga no texto as  
razões pelas quais a nobreza russa até então estava habituada a se submeter às ordens  
imperiais sem muita resistência às ordens imperiais, podemos supor que tenha relação  
com a eficácia com a qual Nicolau I e o Conde Beckendorf promoveram o esmagamento  
do levante dezembrista em 1825 (Herzen, 2013, p. 165).  
Depois de 1825, quando membros republicanos da aristocracia russa  
(principalmente oficiais do exército) se levantaram contra o czarismo (cf. Yarmolinsky,  
1956), qualquer caráter minimamente progressista que algum dia tenha existido na  
nobreza russa foi aniquilado, tendo ela perdido, na dicção romântica de Alexandre  
Herzen21, “as noções, fracamente assimiladas, de honra e mérito […]; tudo que havia  
18 Tantas posições fortes atrás das quais os amigos da servidão montavam suas tendas. (tradução livre)  
19 Um distintivo de honra. (tradução livre)  
20 Por meio da instrumentalidade de seus vários comitês. (tradução livre)  
21  
Marx e Engels chamavam Alexandre Herzen de um “beletrista” (Marx, 2013, p. 54), pois lhe faltaria  
rigor científico. Ao apêndice à primeira edição de O Capital (removido já na segunda edição alemã),  
Marx escrevia que Herzen havia descoberto o ‘comunismo russo’ em Haxthausen (Marx, 2013, p. 54).  
Herzen possuía também, por sua vez, certa aversão a Marx, mas não por um confronto de ideias, mas  
sobretudo em razão da relação conflituosa entre o autor alemão e Mikhail Bakunin, amigo de Herzen.  
Em 1869, Herzen teria afirmado que toda sua hostilidade com Marx e os marxistas se devera a Bakunin,  
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nela de nobre e magnânimo esgotava-se nas minas da Sibéria” (Herzen, 2013, p.  
163)22. E assim, quando 33 anos depois depois dos dezembristas a nobreza sai de  
seu covarde servilismo e resiste às ordens do czar, ela o fez pelas razões mais vis e  
egoístas, a manutenção de uma das formas mais brutais de exploração do trabalho —  
e talvez não seja nada menos que natural que ela assim agisse, pois como aludido  
acima por Marx, it is a story as old as the history of nations. In fact, it is impossible to  
emancipate the oppressed class without injury to the class living upon its  
oppression23(Marx, 2010b, p. 52), apesar de qualquer “honra e mérito” que Herzen  
enxergasse nessa classe.  
Entretanto, como já adiantado acima, tampouco podemos superestimar os  
motivos pelos quais Alexandre II pretendia abolir a servidão e atribuir ao czar algum  
tipo de sentimento humanitário ou compadecimento pelos camponeses. Para o filho  
de Nicolau I, abolir ou não a servidão consistia em uma escolha entre despertar ou não  
os elementos adormecidos (Marx, 2010b, p. 53). O czar temia que, caso ele mesmo  
não abolisse a servidão e libertasse os camponeses em seus termos ainda que  
comprometendo as bases sob as quais assentava a velha sociedade russa , esses  
elementos adormecidos não dormiriam por muito mais tempo e logo destruiriam com  
suas próprias mãos, arrancando tijolo por tijolo, as bases de sua exploração. E isso  
não se trata de mera suposição gratuita por parte de Marx, eis que em 1856 Alexandre  
II teria dito que it were better that the emacipation came from above, than from  
bellow24 (Robinson, 1932, p. 61). O uso do Direito aqui possui uma função  
evidentemente conservadora, de evitar que os inflamados camponeses russos  
transformassem com suas próprias mãos a sociedade russa de maneira radical.  
Alexandre II sabia bem que uma reforma da sociedade russa feita por cima, isto é, uma  
reforma promovida pelo Estado por meio do Direito traria menos riscos do que se  
fosse deixado nas mão dos servos que conquistassem sua própria liberdade, pois uma  
tendo inclusive se surpreendido em 1869 ao descobrir que Marx e Bakunin trocavam correspondências  
entre si e que Bakunin tinha planos de traduzir O Capital para o russo. Sobre isso, (apesar de alguns  
equívocos teóricos). cf. Mervaud, 2012).  
22  
Depois do levante de dezembro de 1825, grande parte dos participantes da insurreição em sua  
maioria, nobres em serviço militar foram condenados ao exílio na Sibéria ou a serviço militar no  
Cáucaso, com exceção de cinco dos idealizadores da conspiração, o coronel Pavel Pestel, Kondraty  
Ryleyev, o tenente-coronel Sergey Muravyov-Apostol e o tenente Bestuzhev-Ryumin. (cf. Yarmolinsky,  
1956)  
23  
É uma história tão antiga quanto a história das nações. De fato, é impossível emancipar a classe  
oprimida sem danos à classe vivendo sob sua opressão e sem simultaneamente decompor toda a  
superestrutura do Estado baseada em uma base social tão sombria. (tradução livre)  
24 Seria melhor que a emancipação viesse de cima do que de baixo. (tradução livre)  
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vez esses camponeses começassem pela abolição da servidão, nada garantiria que  
parariam por aí. Isso tampouco é uma suposição tirada de lugar algum. Teria sido dito  
por Catarina II antes da pugachevshchina, quando a imperatriz passou a adotar uma  
postura reacionária (Jones, 1973, p. 295) e repetido por Nicolas II que caso não se  
modificasse a servidão russa, os servos tomariam a questão em suas próprias mãos  
(Robinson, 1932, p. 61). Pode-se supor que também tenha vindo a Alexandre II essa  
realização.  
Alexandre II tinha plena consciência de que de a guerra que lhe fora legada  
pelo pai (Guerra da Crimeia) havia exigido enormes sacrifícios do povo russo, como  
Marx explica. Sobre a extensão desses, Marx diz  
Sacrifices, the extent of which may be estimated from the simple fact  
that, during the epoch commencing in 1853 and ending in 1856, the  
paper money of forced currency was increased from three hundred  
and thirty-three millions to about seven hundred millions of roubles;  
all this increase of paper money representing, in fact, but taxes  
anticipated25 (Marx, 2010b, p. 53)  
Para amenizar o golpe desses sacrifícios, Alexandre II tomou o exemplo de seu  
tio, Alexandre I, que durante a invasão da Rússia pela Grande Armée de Napoleão de  
1812, motivava os camponeses a lutar contra os franceses com promessas de dar fim  
à servidão. Contudo, ele não poderia fazer o mesmo que o tio e quebrar as promessas  
feitas aos camponeses. Como explica Marx  
The war, moreover, led to a humiliation and a defeat, in the eyes at  
least of the serfs, who cannot be supposed to be adepts in the  
mysteries of diplomacy. To initiate his new reign by apparent defeat  
and humiliation, both of them to be followed by an open breach of the  
promises held out in war-time to the rustics, was an operation too  
dangerous even for a Czar to venture upon.26 (Marx, 2010b, p. 53)  
Muitos sacrifícios foram exigidos dos camponeses e muitas promessas lhes  
foram feitas para que suportassem os custos daquela guerra que lhes pesava nas  
costas como um fardo, tudo isso para que ao fim a guerra o único espólio de guerra  
da Rússia tenha sido humilhação e derrota ao menos no olhar dos camponeses, dos  
25  
Sacrifícios cuja extensão pode ser estimada pelo simples fato de que, durante a época iniciada em  
1853 à terminada em 1856, o papel moeda de curso forçado foi aumentado de trezentos e trinta e  
três milhões para cerca de setecentos milhões de rublos; todo esse aumento de papel moeda  
representando, de fato, nada senão impostos antecipados. (tradução livre)  
26 A guerra, além disso, levou a humilhação e derrota aos olhos dos servos, os quais não se pode supor  
que sejam adeptos aos mistérios da diplomacia. Iniciar seu novo reinado pela aparente derrota e  
humilhação, ambas a ser seguidas por um descumprimento aberto das promessas feitas durante a  
guerra aos rústicos era uma operação perigosa demais até para um czar se aventurar. (tradução livre)  
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quais não se espera que sejam adeptos aos mistérios da diplomacia (Marx, 2010b, p.  
53). Diante dessa situação, abandonar as promessas feitas aos servos seria um passo  
temeroso demais até mesmo para o czar da Grande Rússia, de modo que Alexandre II  
se viu forçado pelas contingências a avançar com a abolição da servidão. E os riscos  
ficavam cada vez mais evidentes de romper com as promessas feitas aos servos, na  
medida que esses camponeses haviam sido levados a acreditar que o czar lhes  
reservava maravilhas que jamais haviam experimentado. Diante da lentidão com a qual  
a questão era levada, a ansiedade dos camponeses se converteu em impaciência e  
revolta, de modo que insurreições camponesas se proliferavam pela Grande e Pequena  
Rússia como fogo em um palheiro, espalhando medo nos corações nobres da  
aristocracia e do czar de que a fúria daqueles servos poderia incinerar a sociedade  
russa até os ossos. Na dicção de Marx  
the peasantry, with exaggerated notions even of what the Czar  
intended doing for them, have grown impatient at the slow ways of  
their seigneurs. The incendiary fires breaking out in several provinces  
are signals of distress not to be misunderstood. It is further known  
that in Great Russia, as well as in the provinces formerly belonging to  
Poland, riots have taken place, accompanied by terrible scenes, in  
consequence of which the nobility have emigrated from the country to  
the towns, where, under the protection of walls and garrisons, they  
can bid defiance to their incensed slaves.27 (Marx, 2010b, p. 53)  
Assim, Alexandre II considerou que esse seria um momento oportuno para  
convocar os nobres à capital e por transformar em ação as discussões sobre a  
necessidade da emancipação dos servos, dando um passo que não poderia reverter  
exceto se estivesse disposto a ver os camponeses atearem fogo por toda a Rússia.  
Mas de outro lado, via-se também confrontado pela resistência da nobreza, que se não  
oferecia resistência aberta à questão e agiam de forma a frear qualquer avanço em  
direção ao fim da servidão na Rússia, ofereciam um apoio morno à abolição.  
Marx sobre o projeto imperial de abolição: The emancipation question,  
partes I e II  
No artigo The emancipation question, escrito em dezembro de 1858, Marx  
27 Os camponeses, com noções exageradas inclusive daquilo que o czar pretendia fazer por eles, haviam  
se tornado impacientes com os modos lentos de seus senhores. Os fogos incendiários que se iniciaram  
por diversas províncias são sinais de perigo a não serem mal-compreendidos. Sabe-se ainda que na  
Grande Rússia, assim como em províncias antes pertencentes à Polônia, revoltas ocorreram  
acompanhadas de cenas terríveis, em consequência das quais a nobreza emigrou do campo para as  
cidades, onde, sob a proteção de muros e guarnições, podem desafiar seus escravos inflamados.  
(tradução livre)  
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Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia  
parte para analisar o relatório que foi produzido pela Comissão Imperial Central e  
entregue para Alexandre II no dia 13 de novembro de 58, documento no qual the  
bases are laid down on which the emancipation of the serfs is proposed to be carried  
out28 (Marx, 2010b, p. 139). Esse relatório continha dez princípios fundamentais que  
guiariam a abolição da servidão, expressando, ainda que indiretamente, as ideias do  
czar Alexandre II acerca da grande questão social da Rússia. Na primeira parte do  
artigo, Marx parte para analisar o que os oito pontos representariam para a nobreza  
russa e o que daí se poderia esperar para o futuro da relações entre a aristocracia  
russa e o czar. Na segunda, ele trata do que se poderia esperar dos camponeses.  
Conforme apontado por Marx, o relatório de 13 de novembro tratava-se de uma  
simples continuação ou até mesmo um complemento ao programa que havia sido feito  
pelo Comitê Central na primavera anterior, o qual tratava-se de a mere form […] which  
they were expected to fill up29 (Marx, 2010b, p. 141) para mostrar à nobreza russa a  
que direção em que deveriam agir. Contudo, quando mais se entrava na questão do  
fim da servidão e o que isso significaria para a aristocracia russa, maior era a repulsa  
da nobreza quanto a tudo, de modo que o plano que deveria ter sido elaborado de  
forma espontânea pelos nobres do comitê teve de ser elaborado pelo governo oito  
meses depois. Assim, Alexandre II se viu forçado a cumprir a tarefa que ele esperava  
ser feita de forma espontânea pelos próprios nobres.  
Mas enquanto a nobreza russa não pensava que já era tempo da chegada do 4  
de agosto de 1789 na Rússia, que ainda estava distante a necessidade de sacrificar  
seus privilégios no altar de seu país (Marx, 2010b, p. 141), Alexandre II, um verdadeiro  
samoderjetz vserossiiski30 (Marx, 2010a, p. 141) já havia chegado na Declaração dos  
Direitos do Homem. Logo no primeiro ponto de seu relatório declarava-se o seguinte  
Serfdom and all its attributes are abolished forever, without any  
consideration being paid to their former proprietors; for, says the  
report, serfdom was arbitrarily introduced by Czar Boris Godunov,  
grew by an abuse of power into part and parcel of the common law,  
and thus, having been created by the will of the sovereign, may also  
be abolished by the will of the sovereign. As to a pecuniary  
consideration for its abolition, such a money payment in return for  
rights which belong to the peasantry by nature, and should never have  
been taken away from them, would form, says the report, a disgraceful  
28  
São postas as bases sobre as quais se propõe que a emancipação dos servos fosse levada a cabo.  
(tradução livre)  
29 Um mero formulário que deveriam preencher. (tradução livre)  
30 Autocrata das Rússias. (tradução livre)  
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page, indeed, in Russian history31. (Marx, 2010b, p. 139) [grifo meu]  
O czar proclamava abertamente o fim dos privilégios da nobreza ou ao  
menos era como via a nobreza. Ele afirmava que a servidão seria abolida de uma vez  
por todas e que o seria sem consideração aos seus antigos proprietários, pois uma  
consideração pecuniária paga pela abolição em troca dos direitos que pertenceriam  
por natureza aos camponeses e que nunca deveriam ter-lhes sido privados seria uma  
mácula nas páginas da história russa. Dizia ainda que a servidão havia sido introduzida  
de forma arbitrária pelo czar Boris Godunov e que se desenvolveu por um abuso de  
poder e que a partir desse abuso de poder se tornou parte essencial do direito comum  
e que, como havia sido introduzida pela vontade soberana de um czar, poderia ser da  
mesma forma abolida.  
Em primeiro lugar, é interessante notar como o relatório traz que a servidão  
teria sido introduzida por Boris Godunov, um czar que era considerado um usurpador  
(Dunning, 1992) e que não era da mesma dinastia que Alexandre II, e que teria se  
tornado parte do direito comum russo por meio de um abuso de poder. O relatório  
convenientemente ignora que, na verdade, a servidão até o reinado de Pedro, o Grande  
ainda se colocava como uma usurpação ilegal por parte da nobreza e que o czar  
legalizasse a servidão e colocasse os servos como propriedade privada e hereditária  
dos nobres, bem como que Catarina, a Grande foi a responsável pelo enservamento  
de milhões de camponeses durante seu reinado. Assim, a verdade é que a servidão  
conforme ela existia no século XIX na Rússia foi produto não do abuso de Boris  
Godunov, mas das reformas promovidas por Pedro, o Grande e por Catarina, a Grande  
durante o século XVIII (Marx, 2010b, p. 139). Como Marx bem aponta, dificilmente um  
documento oficial da Rússia czarista mencionaria o papel central que os czares  
Romanovs tiveram no estabelecimento da servidão como a principal forma de  
organização do trabalho na Rússia, de modo que recaía sobre Boris Godunov os  
pecados de seus sucessores (Marx, 2010b, p. 139).  
Ademais, é extremamente irônico que o relatório do czar dissesse que não seria  
paga nenhuma consideração monetária aos antigos senhores dos servos em troca de  
31  
Servidão e todos os seus atributos estão abolidos para sempre, sem qualquer consideração sendo  
paga aos seus antigos proprietários; pois, diz o relatório, a servidão foi arbitrariamente introduzida pelo  
czar Boris Godunov, tornou-se a partir de um abuso de poder em parte necessária e inevitável do direito  
comum, e então, tendo sido criada pela vontade do soberano, pode também ser abolida pela vontade  
do soberano. Quanto à consideração pecuniária pela sua abolição, tal pagamento monetário em troca  
do retorno de direitos que pertencem ao campesinato por natureza e nunca deveria ter sido retirados,  
formaria, diz o relatório, uma página realmente desgraciosa na história russa. (tradução livre)  
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seus “direitos naturais”, isto é, que não se pagaria o resgate pela liberdade dos servos,  
quando se sabe que a coisa se deu de forma exatamente oposta. Já o próprio relatório  
se contradiz, pois no mesmo ponto em que faz essa essa bela declaração de que os  
servos não deveriam pagar por sua liberdade estabelecia que os ex-servos ficariam  
num período de obrigação provisória de 12 anos em relação a seus antigos mestres,  
período durante o qual haveriam ainda obrigações a serem pagas se isso não é  
para o czar uma consideração pecuniária paga aos antigos senhores, o que seria?  
Sabe-se ainda que depois que a Emancipação foi levada a cabo em 1861, os servos  
foram efetivamente obrigados a indenizar os seus antigos mestres pelos tributos e  
serviços que estes não mais poderiam cobrar daqueles, isto é, eram obrigados a pagar  
o resgate das obrigações que deviam aos seus antigos senhores para serem livres (cf.  
Marx, 2020, p. 104), de modo que, ao contrário do que foi dito, os ex-servos foram  
forçados a pagar por sua liberdade.  
Por demais, não escapa a Marx a ironia como czar urgia a Rússia que finalmente  
chegasse em 1789 (mesmo que 69 anos atrasada), que o velho sistema de privilégios  
tivesse fim e que fosse devolvido aos servos os direitos que lhe pertenciam por  
natureza (!). Tempos estranhos esses, como diz Marx, em que o ninguém menos que  
um czar clamava pelos direitos do homem, aquele símbolo de tudo aquilo que havia  
de mais conservador e antigo na Europa, o soberano de todas as Rússias clamando  
pelo fim dos privilégios e pelo reconhecimento dos direitos do homem, isto é, pelo  
reconhecimento do Direito burguês a igualdade da troca de mercadorias e a  
liberdade da venda da força de trabalho. Aqui a alusão à Revolução Francesa e o papel  
que ela desempenhou no desenvolvimento do capitalismo na França é evidente e  
esclarecedora. Quando o czar clama pelos direitos que pertencem ao servo por  
natureza, fica claro (e os eventos das décadas seguintes só iriam comprová-lo) que ele  
clama por nada menos que pela moderna sociedade civil burguesa, pelo  
desenvolvimento capitalista da Rússia e pelo Direito burguês.  
Basta lembrarmos como na segunda metade do século XIX Estado russo  
assumiria um papel central e ativo na dissolução das estruturas comunais do campo  
russo e no desenvolvimento do capitalismo na Rússia, nutrindo os “intrusos  
capitalistas” (Marx, 2013, p. 87) às custas dos camponeses e da comuna agrária russa.  
Como Marx explica nos rascunhos de resposta à carta de Vera Zasulitch, própria  
dissolução da obshchina foi diretamente catalisada pela opressão do Estado russo e  
pelos “novos pilares sociais” (Marx, 2013, p. 80) que, tutelados pelo Estado, sugavam  
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até as últimas gotas a vitalidade da comuna agrária russa e dos mujiques. O capitalismo  
que se desenvolvia na Rússia, segundo Marx, era um nutrido às expensas dos  
camponeses por intermédio do Estado” (Marx, 2013, p. 87). Como explica Marx sobre  
o contexto russo ao fim dó século XIX, “à custa dos camponeses, o Estado deu forte  
impulso aos ramos do sistema capitalista ocidental que, sem desenvolver de nenhum  
modo as capacidades produtivas da agricultura, são os mais apropriados para facilitar  
o roubo de seus frutos pelos intermediários improdutivos” (Marx, 2013, p. 79), dando  
fôlego para que um novo parasita capitalista” (Marx, 2013, p. 79) passasse a sugar o  
sangue da já debilitada obschina. Assim, não bastasse a carga fiscal com a qual o  
Estado sufocava a obschina desde 1861, o Estado russo abriu as portas para que o  
vampiro capitalista se juntasse à sangria da comuna agrária. Como coloca Marx “o  
Estado concorreu para o desenvolvimento precoce dos meios técnicos e econômicos  
mais apropriados, a fim de facilitar e precipitar a exploração do agricultor, isto é, da  
maior força produtiva da Rússia, além de enriquecer os ‘novos pilares sociais’” (Marx,  
2013, p. 79). E para que isso tudo fosse possível, era preciso dar fim à servidão na  
Rússia, essa relação que prendia o trabalhador à terra e a um único senhor, dado que  
o desenvolvimento de relações capitalistas pressupõe a separação entre produtores e  
meios e condições de produção (Marx, 2017, p. 786)  
Essa alusão aos direitos naturais do homem nos leva a um segundo ponto.  
Embora seja necessário um grande cuidado ao comparar a situação russa em 1858 e  
a alemã, aqui não podemos deixar de lembrar daquilo que Marx traz sobre a miséria  
alemã na década de 40. Na década de 40, a Alemanha se encontrava numa situação  
semelhante à russa diante da qual nos defrontamos nos textos aqui analisados. Sobre  
aquele contexto alemão, Marx diz que “a negação de nosso presente político é já um  
fato empoeirado no quarto de despejo histórico das nações modernas” (Marx, 2010a,  
p. 146), referindo-se ao fato de que em 1843-1844 a Alemanha vivia um presente  
político que há muito já havia sido superado pelas nações modernas como a França e  
Inglaterra, eis que a Alemanha nunca havia passado pelas revoluções de tipo europeu  
que a França e a Inglaterra haviam vivido: o status quo alemão, ainda marcado pela  
feudalidade e pelos privilégios, era o passado dessas nações modernas, expressando  
a “perfeição manifesta do ancien régime” (Marx, 2010a, p. 148).  
Nesse sentido, “se nego as perucas empoadas, fico ainda com as perucas  
desempoadas” (Marx, 2010a, p. 146), isto é, negar o presente político alemão da  
década de 40 ainda assim deixaria a Alemanha no passado das nações europeias  
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modernas, “quando nego a situação alemã de 1843, não me encontro nem mesmo,  
segundo a cronologia francesa, no ano de 1789, quanto menos no centro vital do  
período atual” (Marx, 2010a, p. 146). Em razão desse atraso alemão, saudava-se na  
Alemanha em 1843-44 “como a aurora de um futuro glorioso que ainda mal ousa  
passar de uma teoria astuta a uma prática implacável” (Marx, 2010a, p. 149) aquela  
“situação antiga, apodrecida, contra a qual essas nações se rebelam teoricamente e  
que apenas suportam como se suportam grilhões” (Marx, 2010a, p. 149). Isto é, aquilo  
que se via na Alemanha como um progresso, algo de propositivo, a ‘moderna  
sociedade civil-burguesa’, já mostrava-se podre e caduco. O que a Revolução Gloriosa  
havia consolidado na Inglaterra no século XVII e que a Revolução Francesa havia  
consumado na França no século XVIII havia efetivamente sido revolucionário naquele  
momento, pois significou a dissolução das relações feudais e possibilitou que a  
sociedade civil burguesa se colocasse sob seus próprios pés (Marx & Engels, 2005),  
mas que em 1840 já era uma situação apodrecida, contra a qual esses países se  
rebelavam teoricamente e suportavam como grilhões. Ali os direitos naturais do  
homem foram efetivamente uma “força explosiva revolucionária” (Lukács, 2015, p.  
169), eis que possuíram diretamente função na derrubada dos alicerces da velha  
sociedade feudal.  
Diante do apelo do czar aos ‘direitos naturais’ do campesinato, não nos escapa  
o paralelo da miséria russa com a miséria alemã. Todavia, na Rússia de 1858, a coisa  
se colocava de forma ainda mais cômica que na Alemanha de 1843. Dez anos depois  
de 1848 quando a Europa havia sido varrida uma revolução, a arma da crítica havia  
se tornado a crítica da arma, a teoria havia se tornado força material apropriando-se  
das massas e o comunismo havia se tornado uma ameaça real à sociedade civil-  
burguesa o czar dizia ser tempo da Rússia chegar a 1789. E isso tudo assume uma  
nova dimensão quando consideramos que, a partir da atuação do Estado russo de  
modo a trazer a Rússia a 1789 e consolidar ali relações burguesas, a comuna agrária  
russa seria levada à decomposição a qual, uma vez desenvolvida a partir da  
apropriação das riquezas engendrada pelo capitalismo, possuía o potencial de  
possibilitar a transição da Rússia para uma sociedade comunista sem a necessidade  
de que a Rússia se tornasse capitalista (cf. Marx, 2013). Não só o czar buscava  
consolidar na Rússia algo que já demonstrava claros sinais de apodrecimento, mas  
com isso ele progressivamente destruía a melhor chance que um povo já teve de  
construir uma forma de sociabilidade superior, isto é, a comunista (Marx, 2013, p. 54).  
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Referimo-nos aqui ao posicionamento defendido por Marx em 1881 em resposta à  
carta de Vera Zasulitch, em que o autor defende a possibilidade de revolucionar a  
Rússia a partir da comuna agrária russa possibilidade que inclusive dependeria da  
supressão do Estado e do Direito russos, conforme já adiantado (Marx, 2013). Ali o  
autor de O Capital fala no fato de a obschina ter sobrevivido com tanta vitalidade até  
um momento em que não só era contemporânea ao modo de produção capitalista,  
mas o encontrava em um momento de crise, de maneira que era possível a apropriação  
das riquezas engendradas pelo modo de produção capitalista no Ocidente (isto é, do  
desenvolvimento de forças produtivas).  
Ela poderia assim, “incorporar as conquistas positivas realizadas pelo sistema  
capitalista sem passar por seus forcados caudinos’” (Marx, 2013, p. 91), isto é,  
apropriar dos desenvolvimentos materiais proporcionados pelo capitalismo sem que  
fosse necessário ela mesma se submeter ao regime capitalista, podendo então “tornar-  
se o ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade  
moderna e trocar de pele sem precisar antes cometer suicídio.” (Marx, 2013, pp. 91-  
92). No entanto, para que isso fosse possível, era necessário antes de tudo colocar a  
obschina em condições normais, isto é, retirá-la do estado sufocado e anêmico em que  
se encontrava desde a emancipação dos servos graças ao Estado russo e a carga  
tributária exorbitante que recaía sobre o camponês e aos ramos do capitalismo  
ocidental que foram impulsionados pelo Estado russo. Assim, fazia-se necessária a  
uma revolução russa para salvar a comuna agrária russa e colocá-la sob condições  
normais, o que necessariamente envolveria a supressão do Estado.  
Dessa maneira, se na Revolução Francesa os direitos naturais possuíram uma  
força explosiva revolucionária(Lukács, 2015, p. 169), demarcando um rompimento  
com a feudalidade e com os privilégios e o nascimento da moderna sociedade civil-  
burguesa, aqui, em 1858 na Rússia não havia qualquer traço disso o Direito e o  
Estado possuem na Rússia naquele momento uma função absolutamente regressiva.  
Na Inglaterra e sobretudo na França, os direito não posto (direito natural) atuou  
ativamente na tragédia vivida pelo Ancien Régime naqueles países (Marx, 2010a, p.  
148). Na Rússia, foi um dos protagonistas de sua comédia.  
Entretanto, se em 58 Alexandre II acreditava ser hora da Rússia chegar ao  
menos ao 1789 da França, a nobreza russa sequer não tinha certeza nem disso ela  
bem gostaria de retornar a 1789 na Rússia. Se o século XVIII foi a Era de Ouro da  
nobreza russa, na metade do XIX ela enfrentava um tempo de dificuldades. Marx estima  
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que 90% da nobreza russa estava profundamente endividada com os bancos de  
crédito, os quais, por sua vez, eram instituições da Coroa, de forma que a nobreza  
também devia indiretamente ao Estado (Marx, 2010b, p. 143). A soma total dessa  
dívida chegava a 400 milhões de rublos de pratas, sendo que cerca de 13 milhões de  
servos estavam dados de garantia para esses empréstimos. (Marx, 2010b, p. 143)  
Para piorar, uma das principais formas de ganhos da nobreza constituía ou em vender  
a força de trabalho de seus servos ou em permitir que seus servos se locomovessem  
livremente e ganhassem a vida como quisessem em troca de um pagamento anual  
(obrok) (Marx, 2010b, p. 142). Além disso, ainda que os itens VI e IX no relatório  
assegurasse que os nobres ainda seriam os senhores dos camponeses recém libertos  
que vivessem em suas propriedades e manteriam assim um certo grau de jurisdição  
sobre os camponeses, o fim da servidão significava o fim da possibilidade de extorsão  
livre e desinibida praticada pelos senhores contra seus antigos servos, extortions by  
which a large portion of the Russian nobility have scraped together the means to keep  
fashionable lorettes in Paris and to gamble at German watering places32 (Marx, 2010b,  
p. 142). Isso na medida que com a emancipação, os servos ganhariam os direitos de  
todos os outros cidadãos russos, significando inclusive que poderiam então ajuizar  
ações contra seus senhores e testemunhar contra eles, algo que antes a um servo não  
era permitido (Marx, 2010b, p. 142). Isso tudo sem mencionar o fato de que o projeto  
do czar para a emancipação previa a alocação de terras aos servos libertos, as quais  
deveriam ser dadas pelo ex-senhor dos servos em questão terras que esses  
camponeses já ocupavam, sim, mas o faziam sob o controle dos nobres e em troca de  
serviços e obrigações estipuladas exclusivamente por eles; com a emancipação, os  
camponeses ocupariam aquelas terras conforme determinação do Estado, com as taxas  
e serviços estipuladas pela lei.  
A emancipação significava, pois, uma enorme perda material para a nobreza e  
uma séria perda do poder político exercido pela aristocracia russa. A nobreza se  
recusava a celebrar o 4 de agosto e o czar informava-lhes abertamente que seriam  
compelidos a fazê-lo o czar exigia-lhes que abrissem mão resignadamente de  
grande parte de seus ganhos, além de regular o restante de seus ganhos de forma  
que não só os limitaria, mas também manteria baixo o limite em questão.  
E assim eles o fizeram. Naquele ano de 1858, Alexandre II fez várias viagens  
32  
Extorsões por meio das quais uma larga porção da nobreza russa juntou os meios para manter  
elegantes lorettes [prostitutas] em Paris e apostar nas termas alemãs. (tradução livre)  
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pelas províncias russas, dirigindo-se aos seus nobres com arengas que ora assumiam  
roupas filantrópicas, ora assumiam a forma de exposições didáticas com o fim de  
persuadir, ora assumiam o tom agudo de ameaça e comando (Marx, 2010b, p. 144).  
Embora não ousasse dirigir a palavra negativa ao czar e resistir aberta e  
eloquentemente às propostas do czar, a nobreza respondeu de forma negativa aos  
sentimentos do czar com silêncio e inatividade. O czar esperava que a nobreza ecoasse  
suas palavras, que aplaudissem seus sentimentos e que se pusessem em movimento.  
Ao invés disso, a nobreza manteve-se quieta e adotou como política de seus comitês  
a procrastinação. Pouco tempo depois, o Comitê de Nobres interrompeu esse silêncio.  
Os membros do comitê redigiram nada menos que uma “petição de direitos” — Marx  
alude à petition of rights apresentada pelo Parlamento a Carlos I em 1628 , exigindo  
um parlamento de nobres para que pudessem discutir com o governo não só a questão  
da servidão, mas toda ordem de questões políticas. Dessa forma, assim como a  
nobreza francesa fez em 1788 convocando a Assemblée des Etats généraux, a nobreza  
russa exigia a convocação de uma Semski Sobor ou Semskaja Duma (Marx, 2010b, p.  
145). Com isso, movida pelo interesse de manter a antiquada base social da pirâmide  
a servidão e os privilégios da nobreza dela decorrentes a própria nobreza  
atacava o ponto de gravitação política dessa pirâmide, o caráter despótico do Estado  
russo. Contudo, essa pequena convulsão da nobreza não teve nenhum fruto muito  
significativo, não tendo sequer sido criado o órgão que a nobreza exigiu e toda  
tentativa posterior por parte da nobreza de manifestar sua oposição ao czar foi  
abafada ou suprimida e tudo ocorreu par ordre du moufti33 (Marx, 2020, p. 100),  
segundo a vontade de Alexandre II.  
Passemos ao outro lado da questão os próprios servos.  
Como Marx bem nota, 1858 não fora a primeira vez que um czar conjurava a  
fata morgana na emancipação diante dos servos. Tanto o pai de Alexandre II, Nicolas  
I, quanto o tio, Alexandre I, fizeram-no. Logo no começo de seu reinado, Alexandre I  
tentou convocar a nobreza à emancipação dos servos e foi recebido com a mesma  
frieza e resistência que seu neto seria anos depois. Em 1812, Alexandre I trouxe  
novamente à tona a questão da libertação dos servos, quando se passou a conceder  
liberdade aos servos que lutassem na Narodnoe Opolchenie [milícia popular] contra a  
invasão francesa se não de forma oficial, ao menos com o consentimento tácito do  
33 Segundo a vontade do moufti. (tradução livre)  
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imperador , na medida que the men who had defended Holy Russia could no longer  
be treated as slaves34 (Marx, 2010b, p. 145). Entretanto, a no reinado de Alexandre  
I questão não avançou mais do que em casos isolados de emancipação.  
Morre Alexandre I em novembro de 1825 e em dezembro assume seu irmão  
mais novo, o grão-duque Nicolas. Apesar do susto que foi o levante Dezembrista no  
primeiro dia de reinado do novo czar, durante seu reinado, Nicolas I fez diversos  
ukases que restringiam o poder dos nobres sobre os servos, avançando talvez no  
sentido de emancipar os servos. Em 1842, um ukase imperial passou a permitir que  
os servos celebrassem contratos com seus proprietários acerca dos serviços que  
aqueles deveriam prestar a estes, o que admitia, ainda que indiretamente, que os  
servos pudessem pleitear suas causas em juízo contra seus senhores (Marx, 2010b, p.  
145). Em 1844, foi baixado um ukase que comprometia o governo com a garantia do  
cumprimento das obrigações relacionadas aos contratos acima. Em 1846, um ukase  
passou a permitir que os servos comprassem sua liberdade caso a propriedade à qual  
estavam vinculados estivesse para ser vendida. Por fim, em 1847 passou a ser  
permitido que a corporação dos servos vinculados a uma propriedade que estivessem  
a venda pudesse adquirir tal propriedade. Esse impulso reformador de Nicolas I foi  
abruptamente interrompido em 1848. Quanto mais liberdade era dada aos servos,  
para grande espanto do czar e da nobreza, mais aqueles se demonstravam prontos  
aproveitar de sua nova condição: o servos passaram a adquirir propriedade atrás de  
outra e em muitos casos, os nobres haviam se tornado apenas proprietários no nome,  
tendo sido liberados de suas dívidas pelo dinheiro de seus servos, os quais, por sua  
vez, haviam se assegurado de sua liberdade e da propriedade das terras (Marx, 2010b,  
p. 146).  
Diante dessa demonstração de grande inteligência e energia por parte dos  
camponeses eles estavam gradualmente retirando a nobreza de suas terras e se  
consolidando como seus donos e atemorizado pelas revoluções que eclodiam na  
Europa em 48, as quais tornaram Nicolas um ansioso adepto ao conservadorismo,  
Nicolas I fez logo questão de recuar e aniquilar as liberdades que haviam sido  
concedidas. Ukase por ukase, Nicolas I fez questão de virtualmente anular os atos  
anteriores e quebrar qualquer esperança de emancipação. Primeiro, em março de 1848  
o czar estendeu o direito de compra que antes pertencia somente às associações de  
34  
Os homens que haviam defendido a Santa Rússia não poderiam mais ser tratados como escravos.  
(tradução livre)  
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servos aos servos individuais, de modo a enfraquecer ou até mesmo quebrar as  
associações que existiam nas vilas camponesas e entre as vilas de um dado distrito,  
impossibilitando que os servos concentrassem capital suficiente para adquirir as terras  
(Marx, 2010b, p. 146).  
Ademais, foi estabelecido que toda a transação estava condicionada à  
autorização do antigo senhor, bem como que os servos poderiam adquirir as terras  
dos nobres, mas não as pessoas vinculadas a elas, significando, portanto, que os  
servos não mais poderiam adquirir sua liberdade por meio da compra das terras às  
quais estavam vinculados: pelo contrário, ao comprarem as terras (o que só ocorreria  
por meio da autorização de seus antigos mestres, reduzindo a possibilidade de toda  
a transação efetivamente ocorrer), esses camponeses permaneceriam servos (Marx,  
2010b, p. 146). Não bastasse, o ukase de março de 1848 indiretamente autorizou e  
até mesmo encorajou que os nobres cujas propriedades estavam, por assim dizer, in  
trust of their serfs35 (Marx, 2010b, p. 146) quebrassem essa “confiança” e  
recuperassem a posse de suas terras, tendo sido toda reclamação levada pelos servos  
contra os nobres excluídas das cortes. Assim, as terras que as associações de servos  
conseguiram adquirir autorizados pelo ukase de 1847, isto é, autorizados pela lei,  
foram, também com base na lei (ukase de 1848), pouco tempo depois retomadas pelos  
nobres. De 1848 a 1853, Nicolas I fez questão de estraçalhar as esperanças de  
liberdade que ele mesmo havia incitado nos servos. Seria só com a Guerra da Crimeia  
(1853-1856) que as esperanças de emancipação foram reacesas, quando as  
necessidades da guerra exigiram o armamento dos servos e Nicolas I se viu forçado  
renovar as promessas de abolição (Marx, 2010b, p. 146).  
Depois desses antecedentes, não havia como Alexandre II não se sentir  
compelido a tratar com seriedade a questão dos servos só sabe o bom Deus o que  
teriam feito os camponeses russos se mais uma vez vissem estilhaçadas as promessas  
que lhes foram feitas de emancipação. Mas isso não significaria que o camponês russo  
se contentaria com a abolição nos termos que o czar propunha. Afinal, a história russa  
nos mostra que o campesinato russo não era o “saco de batatas” que fora grande  
parte do campesinato francês em 1848-1851 (Marx, 2011, p. 142)36: foi o terror das  
insurreições camponesas que haviam se tornado uma epidemia na Rússia desde 1842  
e que haviam se agravado desde a Guerra da Crimeia (Marx, 2010b, p. 147) que  
35 Colocados sob a confiança dos servos. (tradução livre)  
36 Importante deixar claro que tampouco era todo o campesinato francês um ‘saco de batatas’.  
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tornaram impossível a Alexandre II postergar a questão da abolição. Marx aponta que  
de acordo com estatísticas oficiais do Ministério do Interior russo, algo cerca de  
sessenta nobres eram assassinados anualmente por camponeses. Robinson (1932, p.  
49) aponta que nos trinta e cinco anos antecedentes à Emancipação de 1861, foram  
registradas quase mil e duzentos casos de insubordinação dos servos em propriedades  
da nobreza, as quais envolviam não alguns servos isolados, mas grupos de servos,  
vilas inteiras e até mesmo um conjunto de vilas camponesas vizinhas. Alexandre  
Herzen fala ainda sobre como a primeira metade do século XIX foi marcada por um  
significativo aumento do ”número de processos contra incendiários, a frequência de  
assassinatos de proprietários de terras, as revoltas camponesas” (Herzen, 2013, p.  
166) e como o governo russo fazia de tudo para encobrir o fato de que por toda a  
Rússia a insatisfação do camponês estourava em violência, dizendo que “poucos  
sabem o que está ocorrendo sob a mortalha com que o governo encobre cadáveres,  
manchas de sangue e execuções, anunciando, hipócrita e desdenhosamente, que ali  
não tem cadáveres, nem sangue” (Herzen, 2013, p. 166).  
Em função dessa fúria que movia os servos russos, Marx indagava  
What will the peasantry say to a twelve years probation, accompanied  
by heavy corvées, at the end of which they are to pass into a state  
which the Government does not venture to describe in any particular?  
What will they say to an organization of communal government,  
jurisdiction and police, which takes away all the powers of democratic  
self-government, hitherto belonging to every Russian village  
community, in order to create a system of patrimonial government,  
vested in the hands of the landlord, and modeled upon the Prussian  
rural legislation of 1808 and 1809? a system utterly repugnant to  
the Russian peasant, whose whole life is governed by the village  
association, who has no idea of individual landed property, but  
considers the association to be the proprietors of the soil on which he  
lives.37 (Marx, 2010b, p. 147)  
Com razão, Marx avalia que os termos da emancipação seriam absolutamente  
inaceitáveis aos servos que nas últimas décadas antes da emancipação haviam  
invadido tantas casas senhoriais e assassinado seus senhores em nome da liberdade  
37 O que dirá o campesinato a um período condicional de doze anos, acompanhado de pesadas corveias,  
no fim da qual eles passarão a um estado sobre o qual o governo não se aventura a descrever nada em  
particular? O que dirão a uma organização de administração, jurisdição e polícia comunais que retira  
todos os poderes democráticos de auto-governo, até então pertencente a toda comunidade camponesa  
russa, de forma a criar um sistema de administração patrimonial investido nas mãos do proprietário de  
terras e modelado a partir da legislação rural prussiana de 1808 e 1809? um sistema absolutamente  
repulsivo ao camponês russo, cuja vida inteira é governada pela associação da vila, e que não tem  
qualquer concepção de propriedade individual da terra, mas considera ser a associação a proprietária  
do solo em que ele vive. (tradução livre)  
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e da terra, de modo que ele previa ser inevitável uma tremenda conflagração entre a  
população rural russa (Marx, 2010b, p. 147). Isso porque, em primeiro lugar, apesar  
de todas as promessas do czar de liberdade, de devolver aos servos seus direitos  
naturais, de não exigir dos servos nada em troca da emancipação, os servos não  
teriam liberdade imediata, pois ficariam sujeitos aos seus antigos senhores por um  
período de obrigação provisória, durante o qual ainda teriam corveias a pagar aos  
nobres. Ou seja, durante esse tempo, a situação concreta do camponês em  
pouquíssimo se diferenciaria de como se encontrava quando ainda era servo. E sabe-  
se ainda que esse período de obrigação temporária acabou durando para a maioria  
dos servos mais que 12 anos, pois só terminaria quando o servo pagasse todas as  
obrigações que devia ao nobre, isto é, depois que completasse o pagamento do seu  
resgate (Robinson, 1932).  
Além disso, para não despir os nobres totalmente de sue poder sobre o  
camponês, com a emancipação o governo russo reformava completamente a  
organização das comunidades camponesas, introduzindo uma forma de administração  
que era totalmente alheia ao camponês russoe submetendo-a totalmente à autoridade  
dos nobres, que poderiam reverter ou modificar as resoluções tomadas pela  
comunidade camponesa. Como explica Marx, toda a vida dos camponeses russos era  
regida pela comunidade da vila e eles não possuíam a idea of individual landed  
property, but considers the association to be the proprietors of the soil on which he  
lives38 (Marx, 2010a, p. 147), de maneira que a tentativa do governo de introduzir  
um modelo de organização do campo que retirava da comunidade da vila o poder de  
decidir sobre as questões do camponeses, além de introduzir uma organização  
baseada na propriedade privada da terra (ideia totalmente alheia ao mujique),  
fatalmente não seria bem aceita39. E tudo isso se agravava no coração do camponês  
pelo fato de que estavam absolutamente convencidos e se guiavam por essa  
convicção de que o czar, o batiushka [querido pai ou paizinho] do povo russo (Keep,  
1982, p. 48), estava por eles, mas que era impedido de avançar na libertação dos  
servos (Marx, 2010a, p. 147).  
38  
Ideia de propriedade individual, mas considera a associação de proprietários do solo em que vive.  
(tradução livre)  
39  
Em 1881 Marx retomaria essa ideia em seus rascunhos para resposta à carta escrita a ele pela  
revolucionária russa Vera Zasulitch, nos quais o autor de O Capital discute o futuro da comuna agrária  
russa e seus potencial de servir de base para a transformação da sociedade russa. Nesses esboços, o  
autor renano retoma como o camponês russo nunca foi proprietário da terra que cultivava.  
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Sobre tudo isso, Marx conclui que  
the Emperor, tossed about between state necessity and expediency,  
between fear of the nobles and fear of the enraged peasants, is sure  
to vacillate; and the serfs, with expectations worked up to the highest  
pitch, and with the idea that the Czar is for them, but held down by  
the nobles, are surer than ever to rise. And if they do, the Russian  
1793 will be at hand; the reign of terror of these half-Asiatic serfs will  
be something unequaled in history; but it will be the second turning  
the point in Russian history, and finally place real and general  
civilization in the place of that sham and show introduced by Peter the  
Great.40 (Marx, 2010b, p. 147)  
Embora essa hipótese não tenha se concretizado da forma como o autor renano  
aqui propôs, não podemos ignorar como aqui é evidente para Marx o potencial  
revolucionário do camponês russo. Embora o autor aqui ainda não coloque a  
perspectiva de uma revolução propriamente comunista, uma vez ele traz o  
campesinato russo atuando de forma semelhante aos jacobinos na França  
revolucionária, que deram o golpe fatal na velha sociedade feudal francesa e  
possibilitaram que a sociedade civil burguesa se colocasse sobre seus pés, Marx trata  
aqui de um real potencial que uma revolta camponesa teria de transformar  
radicalmente a sociedade russa, de retirá-la da estagnação na qual era mantida pelas  
velhas estruturas e de lançá-la a um novo momento de sua história. Isso se torna ainda  
mais interessante quando trazemos o já aludido posicionamento defendido por Marx  
em 1881 em resposta à carta de Vera Zasulitch, em que o autor defende a  
possibilidade de revolucionar a Rússia a partir da comuna agrária russa.  
Sobre a reação dos servos à forma como se propunha a emancipação, em certa  
medida Marx também estava correto. De fato, os servos não se contentaram com os  
termos de sua emancipação e nos quatro meses seguintes à Emancipação, foram  
registradas mais de 600 revoltas camponesas movidas por rumores de que uma  
emancipação mais completa fora planejada pelo czar, mas que teria sido escondida  
dos camponeses pelos nobres (Robinson, 1932). Todavia, essas revoltas foram logo  
suprimidas e não se desenvolveram em algo maior do que insurreições isoladas.  
Contudo, a sociedade russa realmente sofreu transformações profundas a partir das  
40 O imperador, jogado entre necessidade do Estado e expediência, entre medo dos nobres e medo dos  
camponeses enfurecidos, certamente vacilará; e os servos, com expectativas levadas até o ápice, e com  
a ideia de que o czar é por eles, mas é impedido pelos nobres, certamente se insurgirão. E se o fizerem,  
o 1793 russo terá chegado; o reinado de terror desses servos maio-asiáticos será algo sem precedentes  
na história; mas será o segundo ponto de inflexão na história russa, e finalmente implementará uma  
civilização real e geral no lugar da farsa introduzida por Pedro, O Grande. (tradução livre)  
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reformas do czar, embora não da forma ou no sentido que Marx propôs em 1858 —  
pelo contrário. Depois da emancipação, os ex-servos foram lançados em uma situação  
de miséria que em alguns casos chegavam a ser pior do que antes da abolição, tanto  
em razão do pagamento do preço de resgate que foram obrigados a pagar por sua  
liberdade e pelas terras que lhes foram concedidas, quanto pela pesada carga  
tributária que recaía sobre os camponeses por exemplo, comparando a quantidade  
de tributos pagos pelos nobres na década de 1870 e o que os camponeses pagavam  
aos Estado russo, o total de tributos pagos pela nobreza era cerca de um décimo  
daquilo que os camponeses deviam ao Estado (Robinson, 1931, p. 95).  
Em seus cadernos dedicados ao estudo da situação russa depois da Reforma  
de 1861, Marx aponta que a maior parte do orçamento do Estado russo em 1864 era  
proveniente de impostos sobre os camponeses (117 milhões de rublos de impostos  
diretos e 231 milhões de rublos de impostos indiretos) (Marx, 2020, p. 120). Para  
arcar com a enorme carga de suas obrigações, muitos camponeses se viam forçados a  
complementar seus ganhos de outras formas, como a venda de sua força de trabalho,  
pois era impossível cumprir com todos os pagamentos apenas com seus ganhos  
advindos da atividade agrícola (Robinson, 1932).  
Ademais, Marx aponta em seus cadernos que o nadel concedido aos  
camponeses ou era de tamanho insuficiente o que ocorria com frequência nas férteis  
terras negras, pois quanto mais fértil era a terra, menores eram os lotes de terras  
concedidos aos camponeses ou era de baixa fertilidade, de modo que se viam  
forçados a arrendar terras ou recrutar mão de obra assalariada, fazendo com que os  
conflitos de interesses inerentes à obschina se aflorassem e se desenvolvessem,  
acelerando a decomposição da comuna agrária na medida que provoca a dissolução  
de seu elemento igualitário (cf. Marx, 2013). Isso sem mencionar que normalmente os  
lotes de terras não tinham áreas de pastagem ou floresta, fazendo com que os  
camponeses precisavam arrendar essas áreas de seus antigos senhores, mantendo-se  
economicamente dependentes destes (Marx, 2020, p. 108).  
Esses dados só arranham a superfície de como a forma pela qual o Estado russo  
emancipou os servos lançou os camponeses numa situação de miséria por ele próprio  
engendrada não só por meio da carga tributária colossal que recaia sobre os  
camponeses, mas também pelo incentivo dado pelo Estado aos “intrusos capitalistas”,  
que também passariam a viver da exploração do camponês , fazendo com que a  
comuna agrária russa, que até 1861 encontrava-se com bastante vitalidade, fosse  
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Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia  
colocada numa situação de anemia extrema até que em 1881 estivesse quase extinta  
(Marx, 2013, p. 79) e, com isso, se esvanecesse a “melhor chance que a história já  
ofereceu a um povo” (Marx, 2013, p. 54) para desenvolver uma sociedade comunista.  
Assim, de um lado o czar se encontrava pressionado a fazer a questão da  
emancipação avançar por medo de ver o povo tomar a questão com suas próprias  
mãos. Por outro lado, o czar via seus avanços freados pela nobreza russa, que de  
forma alguma estava pronta a abrir mão dos privilégios associados à servidão. Em  
meio à essa perigosa situação, Alexandre II se via forçado a agir. Sobre esse contexto,  
em dezembro de 1859 Marx escreveu em uma carta a Engels que in Russia the  
movement is progressing better than anywhere else in Europe. On the one hand the  
constitutionalism of the aristocracy versus the Tsar, on the other of the peasants versus  
the aristocracy41 (Marx, 2010c, p. 522). Marx via nas agitações que estouravam na  
Rússia, na forte contradição que marcava as relações entre Estado, camponeses e  
aristocratas russos como sinais de uma revolução gestando no ventre da Rússia, onde  
na década de 50 as coisas se desenvolviam mais rápido que em qualquer outro lugar  
na Europa. Nota-se, contudo, que Marx não atribui propriamente às ações do czar e  
do Estado russo a rapidez com que as coisas mudavam na Rússia, sim à tensão entre  
os principais elementos sociais russos, a qual os planos do czar de abolir a servidão  
somente alimentava essa tensão já existia ali, tendo inclusive o czar por elas tenha  
sido forçado a avançar com a questão da emancipação. Em razão disso tudo, Marx  
escreve a Engels que “come the next revolution and Russia will oblige by joining in”42  
(Marx, 2010c, p. 522) viesse a próxima revolução, escrevia Marx, e a Rússia não  
desempenharia a mesma função que teve em 1848.  
Em janeiro de 1861, Marx escreve à Engels expressando as mesmas convicções  
de dezembro de 1859. Ele escreve a Engels que In my view, the most momentous  
thing happening in the world today is the slave movementon the one hand, in  
America, started by the death of Brown, and in Russia, on the other43 (Marx, 2010d,  
p. 4). O autor renano considerava, portanto, que o desenvolvimento da questão dos  
servos na Rússia junto com a questão dos escravos norte-americanos eram os dois  
41  
Na Rússia, o movimento está progredindo melhor do que qualquer outro lugar na Europa. De um  
lado, o constitucionalismo da aristocracia versus o czar, do outro, os camponeses versus a aristocracia.  
(tradução livre)  
42 Venha a próxima Revolução, a Rússia irá atender juntando-se. (tradução livre)  
43  
A meu ver, a coisa mais momentosa acontecendo no mundo nesse momento é o movimento  
escravagista em uma mão, na América, começado pela morte de Brown, e na Rússia, de outra.  
(tradução livre)  
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eventos mais relevantes naquele momento. Marx via na forma como a questão dos  
servos movia na Rússia na década de 1860, com revoltas camponesas eclodindo por  
toda a Rússia, como um dos principais desenvolvimentos que ocorria no mundo  
naquele momento: na Rússia, país em que a servidão havia subsistido por tanto tempo  
e que era a base de toda sua ordem vigente, os servos estavam sendo emancipados e  
isso inevitavelmente levaria a profundas transformações naquele país retrógrado —  
quem sabe, até mesmo uma revolução. Sobre isso, Marx continua:  
You will have read that the aristocracy in Russia literally threw  
themselves into constitutional agitation and that two or three  
members of leading families have already found their way to Siberia.  
At the same time, Alexander has displeased the peasants, for the  
recent manifesto declares outright that, with emancipation, 'THE  
COMMUNISTIC PRINCIPLE' must be abandoned. Thus, a 'social'  
movement has been started both in the West and in the East. Together  
with the impending DOWNBREAK in Central Europe, this promises  
great things.44 (Marx, 2010d, p. 4)  
Assim, Marx considerava que toda a questão da servidão as ações do Estado,  
que claramente não levavam em consideração os interesses ou o bem estar dos servos  
emancipados; a reação constitucionalista da aristocracia, que atacava o “ponto de  
gravitação político” de toda a estrutura da sociedade russa; a inquietação polvorosa  
dos servos insatisfeitos com a forma como a abolição era promovida eram sinais de  
que eram iminentes e profundas transformações na Rússia. Tanto no Oeste, com as  
movimentações relativas à escravidão norte americana, quanto no Leste, com as  
movimentações da abolição da servidão na Rússia iniciavam-se movimentos ‘sociais’,  
no sentido de que eram iminentes profundas mudanças nessas sociedades,  
possivelmente uma revolução.  
Conclusão  
Ainda que de forma alguma objeto do presente artigo tenha sido exaurido, foi  
aqui exposto em linhas gerais o papel do Estado e do Direito russos na abolição da  
servidão na Rússia e o que Marx teve a dizer sobre esse papel. Tendo sido abolida a  
servidão russa por meio de uma reforma conduzida pelo Estado, seu escopo foi  
44  
Você terá lido que a aristocracia na Rússia literalmente se jogou em uma agitação constitucional e  
que dois ou três membros de famílias importantes já encontraram seu caminho para a Sibéria. Ao mesmo  
tempo, Alexander desagradou os camponeses, pois o manifesto recente declara diretamente que, com  
a emancipação, o “PRINCÍPIO COMUNISTA” deverá ser abandonado. Assim, um movimento ‘social’  
começou tanto no oeste quanto no leste. Junto do colapso iminente na Europa Central, isso promete  
grandes coisas. (tradução livre)  
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extremamente limitado, tendo seus resultados beirado a catastróficos para o povo  
russo. Como Marx bem resume a situação, “Alexandre II estava decidido desde o início  
a dar aos proprietários tanto quanto possível e aos camponeses tão pouco fosse  
possível” (Marx, 2020, p. 100).  
Ficou claro também que a emancipação dos servos foi executada em 1861 por  
Alexandre, “o Libertador” sem qualquer propósito real de realmente emancipar os  
servos, dado que a situação que fora legada o czar por seus antecessores era uma  
insustentável, tendo se tornado imperativo o Estado abolir a servidão de modo a evitar  
que os servos se emancipassem por suas próprias mãos. Também se evidenciou a  
ausência de qualquer função progressista do Estado e do Direito na Rússia, pois não  
só aquilo que era almejado pelo czar era o desenvolvimento de relações que na Europa  
já evidenciavam seu estado de decrepitude e apodrecimento absolutos, mas também  
a forma como se libertou os camponeses da servidão somente os lançou em uma nova  
situação de miséria aguda. Apesar de Marx não ver nas ações do Estado russo qualquer  
caráter efetivamente progressista, também ficou claro como para Marx havia naquele  
momento na Rússia um real potencial para a transformação daquele país,  
possivelmente de forma revolucionária, potencial esse que o autor renano considerava  
ser possível de ser realizado pelos camponeses russos.  
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Como citar:  
SOUZA, Gabriella M. Segantini. Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão  
na Rússia. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 433-464; jan.-jun., 2024.  
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