REVISTA VERINOTIO  
NOVA FASE  
dossiê  
ARTE  
prática e crítica  
julho-dezembro  
2023  
VERINOTIO REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS  
ISSN 1981-061X v. 28 n. 2 jul-dez. 2023  
PERIODICIDADE: SEMESTRAL  
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Gomes Casalino, PUC-Campinas, Brasil.  
SUMÁRIO  
Editorial: ............................................................................................................................. VII  
Ester Vaisman, Vitor Bartoleti Sartori e Vânia Noeli Ferreira de Assunção  
Arte: prática e crítica  
O aprendiz e o aprendizado: gênese e primeiras recepções de Wilhelm Meister, de  
Goethe ............................................................................................................................................. 01  
Manoela Hoffmann Oliveira  
Da crítica de arte na imprensa brasileira: revendo e atualizando a arte e a crítica nos  
anos 1980 ...................................................................................................................................... 20  
Ronaldo Rosas Reis  
Estética, violência e solidariedade: juventude faccionada no proibidão .......................... 44  
Luiz Eduardo Lopes da Silva, Ronaldo Rosas Reis  
Partidarismo e crítica literária: alguns elementos para a compreensão da “estética  
comunista” de Georg Lukács ..................................................................................................... 71  
Elisabeth Hess, Paula Alves  
Artigos fluxo contínuo  
EPÍLOGO a Por que Lukács? ................................................................................................... 108  
Nicolas Tertulian  
As formas jurídicas em O capital ............................................................................................ 124  
Vitor Bartoletti Sartori  
A força de trabalho como forma de ser: protoforma da individualidade do Capital em  
Marx ............................................................................................................................................... 156  
Antônio José Lopes Alves  
O Irracionalismo e sua Teoria do Conhecimento: Reação Agnóstico-relativista de  
Guerreiro Ramos ao Marxismo (1939-1955) ...................................................................... 232  
Leandro Theodoro Guedes, Elcemir Paço Cunha, Wescley Silva Xavier  
Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács: novos  
comentários sobre o tema ....................................................................................................... 259  
Ester Vaisman  
Marx e o cardápio da taberna do futuro: sobre os caminhos para uma revolução russa  
no século XIX ............................................................................................................................... 288  
Gabriela M. Segantini Souza  
Romantismo ou Regeneração? ............................................................................................... 335  
Lucas Parreira Álvares  
Tradução  
O novo irracionalismo ............................................................................................................... 383  
Tradução de Lara Nora Portugal Penna  
Entrevista  
Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno, por Nicolas Tertulian [entrevista  
de István Mészáros a Mikaï Dinu Gheorghiu] ...................................................................... 414  
Tradução de Gabriela M. Segantini Souza  
Resenha  
Os porquês de “Por que Lukács?” ........................................................................................... 429  
Gabriela M. Segantini Souza  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.700  
Editorial: Tornamo-nos idealistas e pragmatistas?  
Não é incomum certa análise “livre” das obras de Marx e, por vezes, dada a  
necessidade premente de intervenção prática, o autor é usado como fonte de  
inspiração, e não como um pensador cuja contribuição ainda tem vinculação com o  
que se passa na atualidade. Esse tipo de interpretação traz à tona aquilo que J. Chasin  
(2009; 2023) chamou de hermenêutica da imputação, por meio da qual um  
posicionamento particular do leitor é introduzido no texto interpretado, não raro, com  
uma finalidade política específica imediata. E, assim, os ditos marxistas, com certa  
frequência, acabam por deixar de lado a leitura rigorosa da obra do próprio Marx. No  
limite, como destacou novamente Chasin (2000), tem-se a conjunção entre uma  
hermenêutica subjetivista e uma posição claramente politicista. A crença na  
onipotência da política e consequente cegueira diante das determinações sociais da  
política e da vontade criticadas pelo autor das Glosas marginais ao artigo do rei da  
Prússia (2010) – acaba por confluir com o uso “tático”, para que se use um eufemismo,  
da obra de Marx. Nesse sentido, no cenário da crise contemporânea do sistema  
capitalista de produção e da ofensiva do capital diante do trabalho, não é raro que  
pensadores “marxistas” como Domenico Losurdo (2010), aqui tomado como exemplo,  
busquem defender o estado, o direito e, no limite, o legado do stalinismo. O problema  
é que, procedendo desse modo, o autor italiano não fala a partir de Marx, entretanto,  
igualmente verdadeiro é que Losurdo acabou por influenciar interpretações ora mais,  
ora menos honestas da obra marxiana. Assim, a necessidade imediata ainda dita a  
tônica que é dada, em verdade atribuída e imputada, à obra do autor de O capital.  
É vital deixar claro o seguinte: se a “utilidade” de Marx é servir somente de  
inspiração imediata (ou mesmo remota, aqui não importa), sua atualidade, ao fim e ao  
cabo, não se torna verdadeiramente explicitada. Nesse caso, talvez seja possível  
identificar “fontes de inspiração” que se mostrem muito mais eficientes no combate  
imediato e pragmatista e, portanto, sem caráter verdadeiramente revolucionário –  
das mazelas do capitalismo da contemporaneidade. Efetivamente, é isso que acontece  
com certa frequência.  
Na crítica à imediaticidade do sistema capitalista de produção algo necessário,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 27 n. 2, Lukács: 50 anos depois, ainda- mar. 2022  
NOVA FASE  
Editorial  
mas não suficiente para um marxista , são muito mais coerentes autores como Butler,  
Foucault, Agamben e Boaventura Santos, dentre outros. Algo comum que marca todos  
esses autores é a posição contrária à obra de Marx e de seu legado. Ou seja, se  
abordarmos a questão como ela realmente se apresenta, os marxistas têm se colocado,  
no mais das vezes, no mesmo terreno que os autores acima mencionados (aquele do  
proveito político imediato de determinada teoria), sem qualquer vantagem  
comparativa. Na época do autor de O capital, Proudhon e Lassalle se mostraram muito  
mais influentes que Marx. Mobilizavam grande número de trabalhadores e  
trabalhadoras. Hoje se sabe que as teorizações desses dois autores são absolutamente  
incapazes de apreender as determinações basilares do sistema capitalista de  
produção. Acreditamos que algo semelhante se passe com pensadores  
contemporâneos, como os referidos linhas acima, que enxergam Marx como um autor  
ultrapassado e contra o qual é necessário se posicionar. Em outras palavras, o Mouro  
passou a ser encarado pelas estrelas contemporâneas da novíssima esquerda como  
um autor do século XIX, cuja obra provocou resultados desastrosos, tendo em vista os  
impasses provocados pelas transições intentadas para o socialismo do século XX. Dito  
de outro modo: a esquerda contemporânea, em geral, é antimarxista. A posição  
defensiva diante do avanço contemporâneo do capital não vem sendo exercida por  
marxistas em geral, fenômeno que sinaliza a morte da esquerda, como bem colocou J.  
Chasin (2023).  
Por via de consequência, a ofensiva frente ao capital, preconizada por autores  
como Mészáros (2002), necessita de análises e reflexões bem compreendidas e  
elaboradas a partir da própria obra de Marx. E, como não poderia deixar de ser, o  
primeiro passo para se chegar a esse patamar reside na análise cuidadosa de seus  
escritos, com o objetivo de identificar o que ele de fato pensou e formulou. O caminho  
a ser percorrido talvez seja mais árduo do que possa parecer para os mais desavisados.  
É claro que isso não significa afirmar que a ofensiva defendida por Mészáros  
esteja na ordem do dia ou algo do gênero, contudo, tornou-se vital reconhecer que,  
mesmo considerando fins práticos imediatos, a hermenêutica da imputaçãoou as  
abordagens que mencionamos se revelam totalmente ineficazes frente ao desafio de  
superar o capital. Se o que Mészáros (2002) afirma é verdadeiro, somente por meio  
da compreensão apurada da realidade e com uma postura não apenas reativa seria  
possível se contrapor ao modo de produção capitalista. A tarefa é de tal envergadura  
que, em verdade, mesmo o marxismo de boa parte do século XX foi tematizado por  
Verinotio  
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nova fase ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, p. VII-XIX jul-dez. 2023  
Tornamo-nos idealistas e pragmatistas?  
Lukács (2020b; 2013) como algo que deveria passar por um renascimento radical.  
Ademais, é importante sublinhar que os marxistas em geral não se dedicam à  
leitura das obras de Marx, e quando o fazem não o compreendem com o mínimo de  
rigor; ou seja, no anseio de buscar soluções práticas imediatas, procuram transpor  
mecanicamente a teorização marxiana para os problemas dos séculos XX e XXI. Por  
isso, de acordo com o autor húngaro, em verdade, eles não seriam propriamente  
marxistas. Esta é uma das razões pelas quais o stalinismo dominou boa parte do  
movimento socialista; ironicamente, após tantos dilemas regressivos, assiste-se hoje a  
certa tentativa de revivê-lo teoricamente. Parece que o cenário não é muito melhor do  
que aquele do tempo em que Lukács escreveu e justificou sua proposta de  
renascimento do marxismo, o que torna ainda mais vital envidar esforços na direção  
preconizada pelo autor húngaro. Ou seja, é preciso compreender Marx com seriedade;  
avançar diante de suas conquistas com ajuda dos clássicos do marxismo; trazer, com  
as devidas mediações, uma análise marxista do capitalismo contemporâneo e, por fim,  
elaborar uma crítica efetiva deste último. Isso significa afirmar a necessidade prática  
de superação do capitalismo.  
Há pistas suficientes a apontar que uma das mazelas envolvidas nas dificuldades  
acima apontadas tem a ver com as incompreensões de toda sorte, que vêm  
atravessando décadas, acerca da natureza da proposta propugnada por Marx, acerca  
da aproximação gnosiológica dos complexos reais efetivamente existentes (Chasin,  
2009; Lukács, 2010; 2012; 2013).  
A fonte de tantos dilemas talvez tenha sido a controvertida relação crítica de  
Marx com a tradição clássica alemã, que resultou. para alguns, em uma extensão não  
percebida de parâmetros idealistas não apenas em sua propalada “fase juvenil”, mas  
também em boa parte de seu percurso da maturidade. Contudo, detendo-se com rigor  
nas obras, sobretudo, de seu período inicial, constataremos que a fase rigorosamente  
idealista não passa de meados de 1843. Ou seja, o acerto de contas, a rejeição da  
“substância mística” hegeliana, do seu “misticismo lógico, panteísta” se realiza nas  
afamadas Glosas de Kreuznach (Marx, 2003a). Já nesse período é possível identificar,  
em seus contornos mais decisivos, a opção gnosiológica de Marx, que rejeita qualquer  
tipo de construtivismo especulativo, seja este resultante de alguma tentativa de  
correção sofisticada mas, sempre formalizante dos limites das ciências do  
entendimento, seja ele o que vem a ser tão unilateral e equivocado quanto qualquer  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, p. VII-XIX jul-dez. 2023 | IX  
nova fase  
Editorial  
tipo de edificação, mesmo elevada ou tortuosa, de algum cogito transcendental. Estes  
dois caminhos equivocados, por mais diferentes que sejam entre si, não elidem a  
distância essencial que os separa da formulação marxiana, visto que ambos não  
ultrapassam a dação de sentido pela razão, com a única distinção cabível de um a  
priori para um a posteriori. Resumidamente, o construto simplesmente muda de lugar:  
antecede ou sucede o golpe de vista que se dirige ao mundo, imanentemente carente  
de sentido; dá sentido à entificação antes ou depois de tocá-la. Mas é sempre a razão  
a doadora de significação a um mundo, imanentemente carente de sentido. Condição  
mesmo de existência de sentido, no primeiro caso; aproximação genérica, emulsão  
significativa em meio a um campo homogeneizado, no segundo, ambos tomam a  
operação mental como constituinte de sentido, divergindo entre si na forma e na  
extensão com que tudo se realiza. Diferença importante, mas radicalmente diversa  
daquela que opõe ambas à posição marxiana: a razão descobre, reproduz – “na forma  
única pela qual a cabeça é capaz de fazê-lo” – pelo conceito o sentido das coisas (ver  
Vaisman, 2006, pp. 9-18). Para os dois caminhos anteriormente apontados, em  
primeiro lugar, as coisas são desprovidas de sentido e, em segundo, a razão é,  
digamos, a oficina ou a linha de montagem do significado.  
Na atualidade, a interrogação de rigor sobre a irredutível natureza social  
humana e a historicidade intrínseca à sociabilidade, conquistas da obra de Marx –  
constitui a plataforma geral que pode vir a dinamizar o clareamento do ser e do saber  
da cotidianidade, como o entendimento e a prática da atividade científica e filosófica.  
Nesse resgate da subjetividade ativa, racionalmente potencializada mas nunca como  
império da vontade , o oponente que ela tem de enfrentar são as mil faces de sua  
negação, que se reiteram impiedosamente em todos os espaços, tanto individuais  
quanto sociais, desde a renúncia cética até a impertinência da desrazão ou irrazão,  
como queiram.  
Desse modo, uma das dimensões da contribuição decisiva para o conhecimento  
das várias formas da sociabilidade, sobretudo a capitalista, foi a revolução teórica  
conformada por Marx. De acordo com ele, as coisas do mundo humano têm elas  
mesmas um sentido imanente, portanto, o método aqui tem a função de buscar e  
captar esse sentido. A razão, em contrapartida, entendida como uma figura histórica e  
socialmente constituída, reproduz esse mesmo sentido. É, portanto, reprodutora de  
sentido, e nunca sua usina originária. As coisas do mundo são reconhecidas, mas não  
como empiricamente amorfas, em sua imanência que é passada, a uma forma de  
Verinotio  
X |  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, p. VII-XIX jul-dez. 2023  
nova fase  
Tornamo-nos idealistas e pragmatistas?  
pensamento, ou seja, não é o pensamento que dá forma ao mundo, recortando os  
objetos a partir da pletora caótica do mundo fenomênico. Já em artigo de finais de  
1843, Marx se posiciona a respeito, ao demonstrar os limites da crítica à religião  
operada por Feuerbach, quando afirma que a “missão da filosofia a serviço da história  
/.../ consiste em desmascarar a autoalienação em suas formas profanas” (Marx, 2003b).  
Em suma, uma razão doadora de sentido oscila entre a aproximação genérica,  
vaga, unilateral e a imputação arbitrária de significados. Oscila, portanto, entre um  
quase nada formal e um quase tudo suposto. Como pontos de partida de uma prática,  
podem ir em um gradiente do nada ao tudo se pode.  
São variantes epistemológicas que voltam as costas às proposituras marxianas:  
aqui em relação a um saber que se prova quando capaz de intenção transformadora.  
E isso não é nenhum pragmatismo.  
Trata-se, em verdade, de uma nova concepção de objetividade, que não guarda  
nenhum parentesco nem com a solução kantiana, nem com a hegeliana. Em palavras  
bem simples e diretas como convém em determinados momentos , não se trata de  
organizar o mundo pela cabeça, mas organizar a cabeça pelo mundo.  
Marx reivindica a organização da cabeça regida pelo mundo, mas não o mundo  
das notas ou manchas empíricas, e sim como todo existente e significante por si  
porque é (não discutimos aqui a questão da gênese). O pensamento deixa de falar  
sobre si mesmo para falar sobre as coisas, ou seja, deixa que as coisas “falem” e  
“façam” o pensamento, pois este, em Marx, é histórica e socialmente constituído, como  
aludimos acima. Nesse sentido, a razão é transcendida pelo mundo, condiciona a visão  
sobre ele, porque é condicionada antes pelo próprio mundo. Ou melhor, nesse  
processo, ora transcende, ora é transcendida condiciona por ter sido condicionada,  
isto é, quando o faz, já o faz como resultado. Atente-se que, para Marx, qualquer  
disjunção aqui é uma forma de renúncia da razão histórica e das formas pelas quais  
ela pode ser edificada.  
Num mundo inamovível e onde graça a inamovibilidade, esta desobrigação  
conforta, um reconforto utópico subjetivo. Em outras palavras, quando o mundo  
aparece incapaz de se mexer, a única coisa que se agita é o espírito. Aqui o espírito  
volta a ser a revolução do mundo, tal como os neo-hegelianos de quem Marx nos fala  
criticamente não apenas em A ideologia alemã, mas também, como é sabido, em outras  
obras do mesmo período.  
Verinotio  
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nova fase  
Editorial  
Quando a solução materialista não é capaz de dar conta do lado ativo, o  
idealismo assume a cena e se expande, para entusiasmo da grande maioria. Não é  
sobre questões dessa ordem que Marx se pronuncia na primeira tese Ad Feuerbach?  
***  
Este número de Verinotio Revista on-line de filosofia e ciências humanas  
apresenta aos leitores um leque variado de produções de qualidade, começando por  
um dossiê sobre arte e seguindo com artigos sobre temas livres, além de tradução,  
entrevista e resenha.  
Abrindo o Dossiê Arte: prática e crítica, apresentamos O aprendiz e o  
aprendizado: gênese e primeiras recepções de Wilhelm Meister, de Goethe, texto de  
autoria de Manoela Hoffmann Oliveira, autora de tese de doutorado sobre o clássico  
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Após breve exposição do processo de  
elaboração da obra por Goethe, Hoffmann aborda duas fases da recepção do texto e  
discute a longa tradição crítica que o toma como um Bildungsroman. Ela ressalta que  
os críticos analisaram especialmente o percurso do protagonista e que, em geral,  
concordaram acerca da sua realização individual, embora discordando do conteúdo do  
aprendizado e do caráter da relação existente entre aprendizado e maestria. A autora  
chama a atenção para o silêncio dos referidos críticos, inclusive os românticos da  
segunda geração (para os quais o texto foi extremamente significativo), a respeito das  
determinações sociais da (ir)realização da individualidade.  
O ensaio que vem a seguir, intitulado Da crítica de arte na imprensa brasileira:  
revendo e atualizando a arte e a crítica nos anos 1980, é de Ronaldo Rosas Reis. O  
texto aborda um tema de grande relevância na atualidade: a prevalência cultural do  
pós-modernismo, uma das vertentes contemporâneas do irracionalismo. Para tanto, o  
autor trata da controversa relação entre a crítica de arte e a imprensa no Brasil, tendo  
como foco a rotulação ideológica de um grupo de jovens artistas emergentes na cena  
artística como “geração anos 1980”, à qual foi atribuído pelo conglomerado midiático  
um conformismo inerente. Ele observa que a forma como a arte entretenimento é  
tratada pela mídia lhe pespega um rótulo libertário para distrair do interesse pela arte  
que verdadeiramente importa. De acordo com o autor, a crítica agenciada pela mídia  
mercantilizada dificulta todo esforço de compreensão do que seja uma história artística  
do país. Rosas Reis ainda aponta um nexo causal entre libertarismo e liberalismo pós-  
moderno, que afirma ser parte do processo de destruição da razão que marca nossa  
Verinotio  
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nova faseISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, p. VII-XIX jul-dez. 2023  
Tornamo-nos idealistas e pragmatistas?  
história recente.  
Na sequência, Luiz Eduardo Lopes da Silva e Ronaldo Rosas Reis, no texto  
Estética, violência e solidariedade: juventude faccionada no proibidão, discutem a  
relação entre facções criminais e jovens ludovicenses da periferia culturalmente  
engajados no gênero do funk conhecido como “proibidão”, identificado como principal  
elo entre membros das facções locais detidos nos presídios e os referidos jovens. Se  
à primeira vista ressaltam-se as letras apologéticas da violência e sexualizadas, uma  
análise mais acurada mostra, segundo os autores, que o “proibidão” abarca uma teia  
complexa de afetos e relações contraditoriamente articuladas e dissimuladas sob a  
violência da superfície. Por outro lado, avaliam que as letras dos funks também  
sintetizam e difundem regras determinadas pelas lideranças das facções no interior  
dos presídios e disseminadas pelos seus membros nas periferias da Grande São Luís,  
no Maranhão, numa ética que que medeia conflitos internos e enfatiza a solidariedade  
e a união. Os autores concluem que o funk tem sido uma forma de sensibilização  
estética e de conscientização do pertencimento comunitário entre a juventude da  
periferia de São Luís envolvida com facções criminosas e duramente atingida por  
políticas estatais de encarceramento e extermínio.  
Encerrando o Dossiê, Elisabeth Hess e Paula Alves abordam um dos objetos mais  
recorrentes no pensamento lukácsiano, a crítica literária, no texto Partidarismo e crítica  
literária: alguns elementos para a compreensão da “estética comunista” de Georg  
Lukács. As estudiosas refletem sobre a especificidade do tratamento da literatura no  
decorrer do desenvolvimento teórico do filósofo húngaro, apresentando elementos da  
estética marxista lukácsiana, particularmente da relação entre literatura e história e,  
por conseguinte, das necessidades artísticas com as do desenvolvimento histórico. O  
texto ressalta que marxista busca uma síntese objetivamente verdadeira entre a  
compreensão da esfera estética, o entendimento da função da arte em relação a outras  
áreas das atividades humanas, e o conhecimento das condições materiais que a  
determinam. Afirma, ainda, a objetividade da ligação entre valor estético e uma relação  
dialética de forma e conteúdo, cujos fundamentos corretos devem se erguer sobre uma  
teoria que sustente a perspectiva da arte como autoconsciência do desenvolvimento  
humano. As modificações sofridas pelo pensamento lukácsiano no tocante a esta  
temática são apresentadas no bojo de transformações sócio-históricas e políticas. As  
autoras mencionam os debates de Lukács com outras vertentes, como o realismo  
stalinista contaminado pelo sociologismo vulgar, e se detêm no debate sobre o  
Verinotio  
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nova fase  
Editorial  
romance histórico.  
Abrimos a seção de temática livre com o “Epílogo” a Por que Lukács?, de Nicolas  
Tertulian. Trata-se de manuscrito inédito enviado pelo autor para Juarez Torres Duayer  
e Ester Vaisman no ano de 2009, e que fazia parte da versão inicial provisória do livro  
Por que Lukács?, ainda em elaboração naquela época. Não se conhecem as razões que  
fizeram com que o autor suprimisse o “Epílogo, concebido, pelo menos inicialmente,  
como capítulo final da versão que, finalmente, veio a ser publicada em Paris pela  
editora da Maison des sciences de l’homme no ano de 2016. A tradução para o  
português, recém-publicada pela Boitempo Editorial, ao seguir o original francês  
efetivamente publicado, também não traz o que Tertulian intitulou provisoriamente de  
epílogo. O fato é que o autor tratou do tema em dois capítulos da edição publicada,  
“Caldeirão ideológico romeno” e “Encontros com Cioran”, mas em nenhum deles com  
a profundidade e a agudeza do manuscrito ora publicado pela Verinotio. O comitê  
editorial da revista resolveu levá-lo a público dada a importância da análise e da  
denúncia ali contidas, e por se tratar de assunto que atualmente é da mais alta  
importância do ponto de vista teórico-ideológico, não apenas nos países do Leste  
europeu.  
Publicamos também As formas jurídicas em O capital, de Vitor Bartoletti Sartori.  
No texto, o autor se posiciona criticamente em relação à teoria pachukaniana, a posição  
dominante no que toca à crítica marxista do direito no país. Segundo tal teoria, há um  
vínculo indissociável entre as categorias da economia mercantil e monetária e a própria  
forma jurídica, decorrente da forma mercantil. Por isso, a crítica marxista do direito  
referenciada no teórico russo deveria se contrapor não só ao conteúdo classista das  
normas jurídicas, mas também à sua forma, inerentemente capitalista e necessária à  
própria mercantilização. Sartori, por seu turno, busca demonstrar que, se Marx faz, de  
fato, críticas às formas jurídicas, a categoria forma jurídica tem uma importância menor  
do que o afirmado pela crítica marxista do direito. Para tanto, o autor se remete a O  
capital, principalmente ao Livro III, buscando comprovar, por meio da leitura imanente,  
que a correlação das formas jurídicas com a forma-mercadoria, geralmente, é muito  
mais mediada e indireta do que imagina uma primeira avaliação. Ademais, Sartori  
pontua a existência de um sem-número de assuntos que estão presentes na obra  
magna marxiana e cujos aspectos jurídicos ainda necessitam de estudos mais  
aprofundados.  
Verinotio  
XIV |  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, p. VII-XIX jul-dez. 2023  
nova fase  
Tornamo-nos idealistas e pragmatistas?  
Antônio José Lopes Alves é o autor de A força de trabalho como forma de ser:  
protoforma da individualidade do capital em Marx, texto que vem na sequência. O  
artigo parte da categoria força de trabalho enquanto instrumento que possibilita acessar  
elementos substanciais do caráter específico que a individualidade toma no modo de  
produção capitalista e da sociabilidade correspondente. Com base na análise imanente  
da obra marxiana, intenta demonstrar seu estatuto de referente geral para o  
entendimento da referida forma particular de individuação, ou seja, o fato de ser “um  
referente genérico que apresenta em si, de modo sintético, articulado numa totalidade  
unitária de diferentes determinações, um conjunto de traços que caracterizam um ente  
em uma forma de ser particular, uma forma objetiva de existência ou uma inflexão  
processual”. Para explicitar essas descobertas, o autor aborda as determinações que, no  
seu entender, a partir da modernidade, tornam a força de trabalho livre individual,  
mercantilizada, uma protoforma de individuação na sociabilidade do capital: a  
capacidade humana de realizar trabalho como forma de ser do capital e força de sua  
produção, o modo particular de alienação da força de trabalho, o caráter complexo do  
objeto apropriado pelo capital e a relação que o indivíduo tem consigo mesmo como  
proprietário privado de força de trabalho.  
O irracionalismo e sua teoria do conhecimento: reação agnóstico-relativista de  
Guerreiro Ramos ao marxismo (1939-1955), artigo de Leandro Theodoro Guedes,  
Elcemir Paço Cunha e Wescley Silva Xavier, tem como objeto os textos iniciais de  
Alberto Guerreiro Ramos sobre teoria do conhecimento. Segundo os autores, se já há  
outros estudos que se debruçaram sobre a adesão do conhecido sociólogo brasileiro a  
tendências epistemológicas específicas, eles próprios buscam, no texto em tela, suprir  
uma lacuna no tocante à existência de tendências irracionalistas nas primeiras  
elaborações do sociólogo acerca do tema. Tais elaborações subsidiarão o diagnóstico  
de questões contemporâneas e o prognóstico para seu enfrentamento entre os analistas  
que se remetem a suas análises. Após breve excurso metodológico, os autores fazem  
uma caracterização histórica do irracionalismo e de sua teoria do conhecimento. Na  
sequência, procedem à análise imanente dos textos relativos ao tema escritos no período  
1939-1955 por Guerreiro Ramos que, tendo elegido o marxismo como adversário,  
aderiu ao agnosticismo relativista existencialista e fenomenológico. A análise revela  
laivos irracionalistas, os quais se manterão, conforme os autores, em consagrados textos  
posteriores do teórico brasileiro, nos quais as questões relativas à epistemologia  
comparecem articuladas a preocupações sociológicas, políticas e econômicas.  
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nova fase  
Editorial  
Ester Vaisman comparece neste número da Verinotio com o texto intitulado Sobre  
“O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács: novos  
comentários sobre o tema. A autora revisita um assunto com o qual trabalha desde o  
início dos anos 1980, num movimento de constante aprofundamento e concomitante  
ampliação do estudo. Ela comenta o profícuo itinerário intelectual de Lukács, no qual  
os problemas atinentes à subjetividade (e à sua relação com a objetividade) sempre  
estiveram presentes. Vaisman aponta a importância da reflexão lukácsiana sobre as  
especificidades do “momento ideal” e suas relações com o momento material na esfera  
da prática, detendo-se em sua tematização sobre a ideologia. Destaca a grande  
originalidade do tratamento que Lukács dá ao tema, desenvolvido a partir de  
manifestações textuais de Marx, e mostra que o filósofo húngaro, nos últimos anos de  
sua vida, refutou as abordagens mais disseminadas, que se utilizavam do critério  
gnosiológico para a determinação do fenômeno ideológico, ao qual contrapôs a  
utilização do critério ontoprático. Lukács, argumenta a autora, havia se emprenhado  
em demonstrar à exaustão o caráter teleológico da atividade laborativa e, então,  
comprovar que a prática social, ampla e diversa, compartilha características comuns  
com aquela, ou seja, caracteriza-se pela interveniência de um momento ideal. A autora  
então se debruça sobre o problema da ideologia na Ontologia do ser social,  
aprofundando-se nas considerações a respeito deste complexo tema.  
O artigo seguinte é de Gabriella M. Segantini Souza, Marx e o cardápio da taberna  
do futuro: sobre os caminhos para uma revolução russa no século XIX. Partindo da  
análise dos esboços e da carta final enviada por Marx em resposta a uma pergunta posta  
pela revolucionária russa Vera Zasulich, além de outros escritos do filósofo alemão que  
têm como temática a Rússia, a autora investiga a questão do desenvolvimento histórico  
na obra marxiana. Ao tratar da assim chamada acumulação originária em O capital, Marx  
afirma que o modo de produção capitalista pressupõe a separação entre produtores e  
meios e condições de produção, de modo que o camponês se torne trabalhador  
assalariado e as pequenas propriedades rurais deem lugar à propriedade privada. Mas  
a Rússia, um país de desenvolvimento não clássico, ainda era naquele momento uma  
sociedade agrária marcada pela comuna, vista por uns como forma arcaica de produção  
condenada a desaparecer, e por outros como embrião do comunismo. Revisitados pela  
autora, os textos de Marx sobre a Rússia oferecem importantes materiais para a reflexão  
sobre as diferentes vias de objetivação do capitalismo e sobre a própria visão de história  
do autor renano. Bem assim, é possível compreender a perspectiva do filósofo alemão  
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Tornamo-nos idealistas e pragmatistas?  
sobre a possibilidade de uma revolução na Rússia no século XIX. O artigo se contrapõe  
a interpretações do pensamento de Marx que o tomam como um esquema de um  
movimento inevitável do desenvolvimento humano, transformando-o numa filosofia da  
história, etapista, que conteria uma noção de progresso linear e necessário.  
Abordando uma bibliografia semelhante, sobre o mesmo local e época ou seja,  
o debate no interior do marxismo sobre a possibilidade revolucionária da comuna  
agrária na Rússia , Lucas Parreira Álvares, em seu artigo Romantismo ou  
regeneração?, discute a relação entre o pensamento de Marx e a tradição romântica.  
Após breve exposição do percurso bibliográfico da discussão no Brasil, detém-se na  
edição que recebeu o nome de Lutas de classes na Rússia, da Boitempo Editorial, mais  
especificamente na introdução do sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, também  
organizador do livro. Löwy associa os escritos de Marx a uma espécie de “romantismo  
revolucionário”, enquanto Álvares, embora reconhecendo a importância do sociólogo  
no campo do pensamento social crítico, propõe outra compreensão da relação entre  
o filósofo alemão e o pensamento romântico. Avalia que esta tradição teórica está  
presente na obra de Marx, mas não como uma influência, uma vez que este procurou  
se distanciar dessa perspectiva, em toda a extensão de sua obra, em particular nos  
textos em que tratou da Rússia.  
A seção Tradução apresenta o texto O novo irracionalismo, de John Bellamy  
Foster, assentado sobre a afirmação de que o irracionalismo está novamente na moda.  
O autor inicia com a definição do problema do irracionalismo, a partir de A destruição  
da razão, de Lukács, que objetivava demonstrar que o irracionalismo, longe de ser  
uma contradição ou um desenvolvimento fortuito, era um produto par excellence do  
próprio capitalismo, particularmente do estágio imperialista. Na esteira de Lukács, o  
autor faz uma abordagem histórica do irracionalismo, reconstruindo a linhagem  
intelectual irracionalista e antimodernista que remonta a Nietzsche, Bergson e  
Heidegger. Concorda com Lukács: a derrota histórica do fascismo não implicara seu  
desaparecimento, mas ele continuava nutrindo à socapa tendências reacionárias. Para  
o professor estadunidense, dada a fraqueza da esquerda ocidental, foi o irracionalismo  
burguês que definiu o clima intelectual dominante do imperialismo tardio, refletindo  
uma contínua destruição da razão. O irracionalismo passara a desempenhar um papel  
crescente na constelação do pensamento, manifestando-se em vários graus de  
intensidade do pós-modernismo e do pós-estruturalismo desconstrutivistas de  
pensadores como Jean-François Lyotard e Jacques Derrida às novas filosofias da  
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Editorial  
imanência representadas por figuras supostamente de esquerda como Gilles Deleuze,  
Félix Guattari, Bruno Latour, Jane Bennett e Timothy Morton. Também critica o filósofo  
lacaniano-hegeliano Slavoj Žižek, que, segundo ele, acabou por tomar partido pela  
tradição anti-humanista proveniente do heideggerianismo de esquerda. Critica, ainda,  
os tratamentos pós-humanistas da crise ecológica, particularmente na forma do que é  
chamado de “novo materialismo” (Latour, Bennett e Morton), afirmando que, sob uma  
aparência radical, são reacionárias. Conclui que são muitas as reviravoltas  
irracionalistas e reacionárias existentes no interior do que ainda se entende como uma  
análise de esquerda.  
Apresentamos em seguida uma importante entrevista concedida por Nicolas  
Tertulian a Mihaï Dinu Gheorghiu, que recebeu o título de Itinerário e encontros com  
Marcuse, Lukács, Adorno. O filósofo romeno, falecido em 2019, conta inicialmente de  
sua atuação universitária na Faculdade de Filosofia da Universidade de Bucareste, a  
partir de 1969, e suas primeiras batalhas contra a autocracia do partido. Em seguida,  
apresenta seus contatos intelectuais com diversos autores na Europa e no Japão,  
tecendo importantes comentários avaliativos sobre suas teorias. Aborda, ainda, suas  
relações teóricas e pessoais com Lukács.  
Por fim, fechando o amplo leque de formatos de difusão do pensamento incluídos  
neste número de Verinotio, apresentamos a resenha de Gabriella Segantini Os porquês  
de Por que Lukács?, obra seminal de Nicolas Tertulian lançada no Brasil este ano pela  
Boitempo Editorial. Traduzida por Juarez Duayer, com revisão técnica de Ester  
Vaisman, trata-se de uma autobiografia intelectual do teórico romeno, em particular  
de sua relação com o filósofo húngaro G. Lukács, de quem foi muito próximo. A autora  
reconstrói a tessitura do texto de Tertulian e demonstra a sua importância para o  
conhecimento e difusão de seu pensamento e, especialmente, da obra de Lukács.  
Referências bibliográficas  
CHASIN, J. A miséria brasileira. São Paulo: Ad Hominem, 2000.  
_____. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
2009.  
_____. O futuro ausente. Rio das Ostras: Verinotio Livros, 2023.  
LOSURDO, Domenico. Stálin: uma lenda negra. Trad. Jaime Clasen. Rio de Janeiro:  
Revan, 2010.  
LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Trad. Lya Luft e  
Rodnei Nascimento. São Paulo: Boitempo, 2010.  
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Tornamo-nos idealistas e pragmatistas?  
_____. Para uma ontologia do ser social v. I. Trad. Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo, 2012.  
_____. Para uma ontologia do ser social v. II. Trad. Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo, 2013.  
_____. A destruição da razão. Trad. Bernardo Hess, Rainer Patriota e Ronaldo Vielmi  
Fortes. São Paulo: Instituto Lukács, 2020a.  
_____. Essenciais são os livros não escritos. Trad. Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo:  
Boitempo, 2020b.  
MARX, Karl. Crítica à filosofia do direito de Hegel. Trad. Leonardo de Deus e Rubens  
Enderle. São Paulo: Boitempo, 2005.  
_____. Crítica à filosofia do direito de Hegel introdução. In: MARX, Karl. Crítica à  
filosofia do direito de Hegel. Trad. Leonardo de Deus e Rubens Enderle. São Paulo:  
Boitempo, 2005b.  
_____. Glosas marginais ao artigo do rei da Prússia e a reforma social. Trad. Ivo Tonet.  
São Paulo: Expressão Popular, 2010.  
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Trad. Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo,  
2002.  
VAISMAN, E. “A importância da polêmica sobre as relações entre Marx, filosofia e  
método”. In: A obra teórica e o marxismo. Campinas, Cadernos Cemarx n. 3, 2006,  
pp. 9-18.  
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d o s s i ê  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.688  
O aprendiz e o aprendizado: gênese e primeiras  
recepções de Wilhelm Meister, de Goethe  
The apprentice and apprenticeship: genesis and first receptions of  
Goethe's Wilhelm Meister  
Manoela Hoffmann Oliveira*  
Resumo: O artigo apresenta o ciclo Meister e as  
recepções de Os anos de aprendizado de  
Wilhelm Meister, principalmente no que  
concernem ao protagonista. A ideia pedagógica  
foi identificada como central por Schiller, Körner  
e W. Humboldt, que delinearam as principais  
posições da crítica sobre Wilhelm Meister e sua  
realização individual, interpretanndo-a como  
completada. Os românticos da segunda  
recepção, F. Schlegel e Novalis, seguiram o  
mesmo entendimento. Não houve consenso,  
porém, sobre o que foi aprendido e a relação  
Abstract: The article presents the Meister cycle  
and the receptions of The Apprenticeship of  
Wilhelm Meister mainly in what concerns the  
protagonist. The pedagogical idea was  
identified as central by Schiller, Körner and W.  
Humboldt, who outlined the main critical  
positions on Wilhelm Meister and his individual  
achievement, interpreting it as completed. The  
romantics of the second reception, F. Schlegel  
and Novalis, followed the same understanding.  
There was no consensus, however, on what was  
learned and the relationship between learning  
and mastery. Above all, it is striking that the  
social obstacles to individual activity have  
remained outside the perspective of the  
authors.  
entre aprendizado  
e
maestria. Marcante,  
sobretudo, é que os entraves sociais para a  
atividade individual tenham permanecido fora  
da perspectiva dos autores.  
Palavras-chave: Goethe, Wilhelm Meister,  
formação, atividade, individualidade.  
Keywords: Goethe, Wilhelm Meister, formation,  
activity, individuality.  
O ciclo Meister: aprendizado, itinerância e maestria1  
Conforme documentam a correspondência, os diários, cadernos e anotações de  
Goethe, o processo de elaboração da história de Meister foi longo até que fosse  
finalmente terminado. Iniciado em 1777, o primeiro romance do ciclo somente vem a  
público quase vinte anos depois, em 1795/96, dividido em quatro volumes (cada qual  
contendo 2 livros), respectivamente publicados em janeiro, maio e novembro de 1795,  
e o último em novembro de 1796.  
*
Doutora em Ciências Sociais (Unicamp, 2014) com pós-doutorado em Sociologia (2019). E-mail:  
manoela.hoffmann@gmail.com.  
1 Revisado e em parte reformulado, este texto pertence à minha tese de doutorado em Ciências Sociais  
(Unicamp, 2014): OLIVEIRA, Manoela Hoffmann. A sociedade é inefável. Sobre a individualidade do  
protagonista de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister(1795/96), de Goethe. Todas as citações  
deste artigo foram traduzidas pela autora.  
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Manoela Hoffmann Oliveira  
O primeiro registro, dos muitos que seriam feitos sobre o Meister ao durante a  
vida de Goethe, data de 16.2.1777, quando o autor escreve em seu diário: No jardim,  
ditando Wilhelm Meister” (GOETHE, 2002, p. 613). Em 31.10.1777, numa carta a  
Charlotte von Stein, Goethe comenta sobre o livro: ontem à noite dei um salto mortal  
sobre três capítulos fatais de meu romance, os quais evitava há muito tempo; agora  
que eles já ficaram para trás, espero produzir a primeira parte muito em breve” (apud  
BAHR, 1982, p. 252). Entretanto, não foi o que aconteceu, como Goethe registra em  
um de seus cadernos de 1819/20, na seção até 1780”: Os inícios de Wilhelm Meister  
já nessa época deixavam-se avistar, embora apenas cotiledoneamente; o  
desenvolvimento e a formação posteriores arrastaram-se por muitos anos” (GOETHE,  
2002: p. 618). E na seção até 1786”: Os inícios de Wilhelm Meister ficaram por  
longo tempo em suspenso” (GOETHE, 2002, p. 618).  
Por meio de uma carta de 1782 escrita a Knebel (GOETHE, 2002, p. 614),  
sabemos que o romance deveria chamar-se, originalmente, A missão teatral de Wilhelm  
Meister [Wilhelm Meisters theatralische Sendung], também referido na literatura por  
primeiro Meister[Urmeister]2; nessa mesma data, os três primeiros livros de A missão  
teatral já se encontravam quase terminados; três anos mais tarde, o sexto livro estava  
pronto e Goethe pretendia dar prosseguimento ao romance. As cartas documentam  
que a confecção do romance foi lenta entre os anos 1777 até novembro de 1785,  
quando Goethe chega até o sexto livro o sétimo livro foi posteriormente também  
iniciado (mas dele não restou cópia). O enredo de A missão teatral desenvolve-se até  
o início do quinto livro do futuro Os anos de aprendizado. A viagem para a Itália entre  
1786-1788 marca uma nova fase da elaboração do romance.  
Em carta a Charlotte von Stein de 20.1.1787, no entanto, Goethe diz não mais  
querer continuar a narrativa sobre o curso da vida de um jovem escritor que se torna  
ator e diretor e que busca no mundo artístico do teatro sua satisfação e vê nisso sua  
missão de vida(apud CONRADY, 1994, p. 623).  
A pretensão de Goethe com Wilhelm Meister é grandiosa em sua concepção e  
amplitude de significado. Isso, naturalmente, levou tempo para ser maturado, tempo  
em que concomitantemente o curso da história real parecia, com as Revoluções  
2
Não conheceríamos esse precursor de Os anos de aprendizado se uma amiga de Goethe, Barbara  
Schulthess, para quem o manuscrito fora enviado, não tivesse copiado o texto antes de devolvê-lo  
ao autor. A transcrição foi descoberta somente em 1910, sendo impressa pela primeira vez em 1911.  
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O aprendiz e o aprendizado  
Francesa e Industrial, ter se acelerado, o que conduziu a um alargamento e  
aprofundamento deste romance que deveria abranger, nas palavras de Goethe: muito  
sobre mim mesmo e sobre os outros, sobre o mundo e a história, sobre os quais eu  
falarei, a meu modo, muitas coisas boas, embora não novas. Finalmente, está tudo  
compreendido e abarcado no Wilhelm(Redigido em 1828/29, referente ao dia 2 de  
outubro de 1787. GOETHE, 2002, p. 616).  
Após alguns anos interrompido, o trabalho em Wilhelm Meister foi retomado,  
brevemente, em 1791, mas apenas em 1794 Goethe retornou ao romance para de  
fato terminá-lo (GOETHE, 2002, pp. 616-617). Essa última fase do trabalho não  
significou simplesmente uma continuação do fragmento de 1786, mas uma  
transformação substancial do mesmo.  
Em carta a Schiller de 12.7.1796 (portanto, antes mesmo de concluir a  
publicação de d’Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister), Goethe se disse  
entusiasmado com a ideia de dar continuidade à história e menciona que deixara  
alguns elos para uma continuação do romance (GOETHE, 2002, p. 648). Nos anos  
seguintes, de 1797 a 1799, cartas a Schiller (12.8.1797), ao editor Cotta (27.5.1798)  
e a Johann Heinrich Meyer (10.5.1799) já contêm as primeiras considerações sobre o  
material e a fábula da continuação (NEUMANN/DEWITZ, 1989, p. 777 e ss.). Até 1810  
o romance já havia sido substancialmente concebido (a viagem como elo; a  
permanência das personagens de Os anos de aprendizado), mas é a partir de 1816  
que começam a ser publicadas em uma série contínua aquelas narrativas que já  
estavam prontas, estreando com a primeira metade de Nußbraunen Mädchen, no  
Taschenbuch für Damen auf das Jahr 1806(NEUMANN/DEWITZ, 1989, p. 787).  
Novamente, demorou mais de vinte anos até que Goethe concretizasse seu projeto e  
publicasse, em 1821, Os anos de itinerância de Wilhelm Meister ou Os renunciantes  
[Wilhelm Meisters Wanderjahre oder die Entsagenden]. Nos anos subsequentes o  
romance foi essencialmente modificado pelo autor, transformando-se numa segunda  
versão da obra, que veio a público em 1829.  
Aludindo às etapas do percurso do artesão, de aprendiz a mestre de ofício,  
Goethe concebeu uma trilogia cuja origem estaria no conceito de anos de  
aprendizado[Lehrjahre], o qual se articula aos conceitos de anos de itinerância”  
[Wanderjahre] e anos de maestria” [Meisterjahre] (Goethe em conversa com Friedrich  
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Manoela Hoffmann Oliveira  
von Müller de 8 de junho de 1821)3. Esse plano não chegou a ser plenamente  
efetivado, mas é bastante elucidativo do que Goethe tinha em mente ao criar os  
romances do ciclo.  
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister é a obra seminal a partir da qual se  
lançam luzes para iluminar a obra seguinte, Os anos de itinerância de Wilhelm Meister.  
A ausência de Os anos de maestria, por outro lado, nos mantêm atrelados às  
tendências e possibilidades descortinadas nas primeiras obras, deixando para o  
terreno da especulação o que apontaria para a maestria no contexto dos dois romances  
efetivados e, simultaneamente, indicando com clareza que a maestria nas histórias  
anteriores não foi alcançada.  
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e o idealismo  
A correspondência com Friedrich Schiller: a não pronunciação da ideia4  
A recepção de Wilhelm Meisters Lehrjahre deteve-se, assim como o próprio  
romance, no protagonista, sua história, seus dilemas, trajetória, destino. Em 6.12.1794,  
por ocasião do primeiro livro, Goethe comenta com Schiller: Finalmente chegou o  
primeiro livro de ʽWilhelm Schülerʼ [aluno], o qual não sei como apanhou o nome  
ʽMeisterʼ [mestre]” (GOETHE, 2002, p. 621).  
É no entanto somente na carta de 5.7.1796, após quase dois anos de  
correspondência sobre o romance, que Schiller escreverá detidamente a respeito do  
herói Wilhelm Meister. Depois de ler a história completa, Schiller responde à pergunta  
implícita no título do romance o que, afinal, Wilhelm aprende em sua trajetória? de  
modo a ressaltar os antagonismos que por fim se dissolvem, ou se unificam:  
Se eu tivesse de expressar com palavras secas o objetivo que  
Wilhelm, após uma longa série de erros, finalmente atinge, então eu  
3 É incorreto considerar, portanto, o primeiro Meistercomo parte de uma trilogia composta por A  
missão teatral de Wilhelm Meister, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e Os anos de  
itinerância de Wilhelm Meister.  
4 Em agosto de 1794, Goethe inicia uma correspondência com Schiller na qual propõe que ele discuta  
e opine sobre o romance. A importância desse intercâmbio para o autor foi expressa em diversas  
ocasiões, dentre elas destacamos as passagens: A participação de Schiller foi a mais íntima e a mais  
elevada(Diários e anuários, escritos entre 1829-1824, da seção 1795”. GOETHE, 2002, p. 619);  
Em suas cartas a mim estão os comentários e opiniões mais relevantes sobre Wilhelm Meister”  
(Conversas com Eckermann, 18.1.1825. GOETHE, 2002, p. 619).  
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O aprendiz e o aprendizado  
diria: de um ideal vazio e indeterminado, ele entra numa vida ativa  
determinada, mas sem prejuízo da força idealizante. /…/ Que ele  
então, sob a bela e alegre orientação da natureza (por meio de Felix),  
passe do ideal para o real, de uma vaga aspiração por agir e pelo  
reconhecimento do efetivo, porém sem prejuízo daquilo que naquela  
primeira condição de aspirante era real, que ele alcance  
determinação sem perder a bela determinabilidade, que ele aprenda  
a limitar-se, mas que nessa limitação mesma, novamente encontre,  
por meio da forma, a passagem para o infinito etc. isso eu  
denomino a crise da sua vida, o fim dos seus anos de aprendizado,  
e nisso me parecem unificar-se todos os princípios na obra do  
modo mais perfeito. A bela relação natural com seu filho e a ligação  
com a nobre feminilidade de Natalie garantem esse estado de saúde  
espiritual, e nós o vemos, nós nos separamos dele num caminho que  
leva para uma completude sem fim (Schiller a Goethe, 8.7.1796.  
GOETHE, 2002, p. 642-643).  
Em seguida, porém, Schiller passa a reconsiderar sua apreciação. Ele  
compreende a concepção de Goethe de que somente do interior de Wilhelm poderia  
vir o que ele busca, erroneamente, fora de si; isso, no entanto, não seria suficiente para  
fundamentar a relação entre aprendizado e maestria tal como esta se configura no  
romance. Consequentemente, da forma como se apresenta, essa relação não se  
mostraria capaz de abarcar a vida de Wilhelm como um todo.  
O modo, pois, como o senhor explica o conceito de anos de  
aprendizado e de maestria parece estabelecer entre ambos uma  
estrita fronteira. O senhor compreende o primeiro meramente o erro  
de procurar fora de si o que o interior do homem mesmo tem de  
criar; o segundo, a convicção da erraticidade daquela busca, da  
necessidade do próprio criar etc. Mas é possível compreender e  
esgotar a vida inteira de Wilhelm (tal como está diante de nós no  
romance) real e completamente sob esse conceito? Com essa fórmula  
tudo se torna compreensível? E ele pode então ser absolvido  
meramente pelo fato de se expressar nele o coração paterno, como  
acontece no desfecho do livro sete? O que eu desejaria aqui,  
portanto, seria que a relação de todos os elos singulares do  
romance fosse feita de maneira ainda mais clara sob aquele  
conceito filosófico. Eu gostaria de dizer: a fábula é totalmente  
verdadeira, também a moral da fábula é totalmente verdadeira, mas  
a relação de uma com a outra ainda não salta aos olhos de modo  
nítido o bastante (Schiller a Goethe, 8.7.1796. GOETHE, 2002, p.  
642-643).  
O amigo de Goethe percebe que Felix, e pode-se acrescentar, Natalie, não bastam  
para dar substância ao aprendizado de Wilhelm. Para a justificação do título (que é o  
que o público alemão gostaria de ver), Schiller tenta fazer com que seu sentido  
delineie-se melhor sugerindo reiteradamente que o conteúdo filosófico da obra seja  
enunciado onde for possível, pois, confessa, é meio forteque um romance assim, em  
tempos especulativos, tenha um protagonista que seja guiado de maneira tão  
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Manoela Hoffmann Oliveira  
discreta:  
Eu confesso que é um pouco forte, em nossos tempos especulativos,  
escrever um romance desse conteúdo e desse tamanho, em que ʽo  
indivíduo que é necessárioʼ seja conduzido tão silenciosamente –  
em que se permita que um caráter tão sentimental, como Wilhelm  
permanece sempre, complete seus anos de aprendizado sem o  
auxílio daquela digna guia [a filosofia]. O pior é que ele, com toda  
seriedade, realmente os completa, o que não desperta, pois, a  
melhor opinião sobre a importância daquela guia. Mas, sério como  
o senhor conseguiu educar e tornar um homem pronto sem impeli-  
lo a necessidades que somente a filosofia pode responder? Estou  
convencido de que isso só se atribui à direção estética que o senhor  
tomou no romance inteiro (Schiller a Goethe, 9.7.1796. GOETHE,  
2002, p. 646).  
Aproximando-se da ideia original de Goethe a de que somente o interior de  
Wilhelm poderia trazer-lhe o que ele buscava também para Schiller somente o  
próprio herói poderia satisfazer a própria necessidade:  
A ele não falta um certo pendor filosófico próprio a todas as  
naturezas sentimentais, e portanto ele avançaria um pouco no  
especulativo, assim, seria desejável, junto a essa falta de um  
fundamento filosófico, posicionar isso criticamente em torno dele,  
pois apenas a filosofia pode fazer o filosofar inofensivo; sem ela,  
segue-se inevitavelmente para o misticismo (Schiller a Goethe,  
9.7.1796. GOETHE, 2002, p. 647)5.  
Misticismo que acomete a bela alma (Livro VI). Assim, Schiller ressente-se da  
falta de uma clara orientação filosófica do romance, seja no entorno do herói ou de  
uma consciência filosófica desenvolvida no próprio herói. Pois somente a entronização  
da filosofia na individualidade de Wilhelm, algo que seria, aliás, próprio à sua natureza  
(Schiller encontra uma falha na caracterização), seria capaz de dotar de realismo sua  
5 Muito se discutiu na década de 1780 sobre o ingênuo”. Dentre os que trataram desse tema estão  
Diderot e D’Alambert, Kant, Wieland, Herder, Moritz e o próprio Goethe (KOOPMANN, 1998, p. 629).  
Schiller escreve Sobre poesia ingênua e sentimental (1795-1796) no mesmo período da troca mais  
intensa de cartas com Goethe a respeito do romance e foi um escrito que teve imensa influência  
sobre os contemporâneos, em especial sobre a geração dos primeiros românticos. Na distinção que  
Schiller estabelece entre as poesias antigas e modernas depreende-se claramente que as primeiras  
estão vinculadas ao mundo sensível, vivo e real; as segundas estão ligadas ao mundo ideal. Daí se  
extrai que a reflexão sentimental é mais elevada e, acrescenta Friedrich Schlegel diferenciando-a da  
objetividade dos antigos, é a interessante (Über das Studium der Griechischen Poesie, 1797). A perda  
da natureza (a influência de Rousseau é nítida), que traz sentimentos de inferioridade à época  
moderna, está, porém, ligada ao ganho de uma capacidade reflexiva, esta que por sua vez pode criar  
uma autêntica obra poética. Quando Schiller qualifica o caráter de Wilhelm como sentimental, ele tem  
em vista, portanto, não somente seu idealismo, no sentido da reflexão filosófica, mas também sua  
inclinação artística, considerando que desse balanço negativo do moderno resulta um patrimônio  
poético que somente a pretensão da arte pode preencher de modo legítimo” (KOOPMANN, 1998, p.  
631). Ver também: ZELLE, 2005.  
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trajetória e, portanto, o romance6. Schiller explica:  
Recai então sobre o senhor a exigência (a qual o senhor, ademais,  
cumpriu por toda parte largamente) de apresentar seu pupilo com  
plena independência, segurança, liberdade e solidez quase  
arquitetônica, de modo que ele possa permanecer em pé eternamente  
sem precisar de um suporte externo; quer-se vê-lo, portanto, por meio  
de um amadurecimento estético, saltar completamente até mesmo  
sobre a necessidade de uma formação [Bildung] filosófica, a qual  
ele não ministrou a si. Questiona-se, agora: ele é realista o bastante  
para nunca considerar necessário deter-se na razão pura? Porém,  
não o sendo não deveria estar um pouco mais preocupado com as  
necessidades do idealista? (Schiller a Goethe, 9.7.1796. GOETHE,  
2002, p. 647).  
Ele conclui, ademais, que é incongruente com o título do romance que o herói  
permaneça o mesmo até o final, como bem observa a respeito do comportamento do  
herói em relação às obras de arte do Salão do Passado, já quase no fim do romance:  
“é para mim ainda muito o velho Wilhelm”, o que significa que ele permanece fixado  
quase exclusivamente na mera matéria [Stoff] da obra de arte e, para mim, poetiza  
demais com isso(Schiller a Goethe, 9.7.1796. GOETHE, 2002, p. 648)7. Schiller sugere  
se não seria o caso de mostrá-lo como um observador mais objetivo, já que conhecedor  
seria mesmo impossível, e assim colocá-lo no rumo de uma crise mais feliz”. Jarno,  
lembra ele, foi usado de maneira muito adequada para dizer no livro VII uma verdade  
que conduz tanto o herói quanto o leitor a um grande passo adiante”, a saber, que  
Wilhelm não tem talento para o teatro. Depreende-se dessa observação de Schiller que,  
não fossem as palavras de Jarno, o leitor ficaria com uma nítida sensação da  
irrealização de Wilhelm, sensação que é atenuada se se considera, afinal, que Wilhelm  
não nascera para o ofício.  
A isso se liga outra dificuldade particular que se coloca na análise do conteúdo  
da realização do herói ao final do romance, a identificação dos objetivos que Wilhelm  
coloca para si. Para Schiller, Wilhelm possui objetivos inefáveis. Seu valor está em seu  
6
Em carta de 7.1.1795, Schiller confessava: Eu não posso expressar-lhe o quanto me é  
frequentemente penoso o sentimento de observar um produto desse tipo na essência filosófica. Lá é  
tudo tão alegre, tão vivo, tão harmonicamente resolvido e tão humanamente verdadeiro; aqui é tudo  
tão severo, tão rígido e abstrato e tão altamente não natural, porque toda natureza é apenas síntese  
e toda filosofia antítese” (Schiller a Goethe, 9.7.1796. GOETHE, 2002, p. 623). Posteriormente, contudo,  
Schiller considerou necessário temperar a poesia com a filosofia para dotar Wilhelm de mais realismo.  
7
Diferente do que acontece em relação a outras observações schillerianas, essas passagens da obra  
citadas por ele e referidas aqui são mantidas por Goethe tal como originalmente concebidas de  
modo que consideramos que o autor, mesmo tendo lido a censura de Schiller, tendo ou não  
concordado com a observação, viu como mais pertinente manter Wilhelm como estava.  
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estado interior [Gemüt]8, não em seus resultados, em sua aspiração, não em sua ação;  
por isso, sua vida tem de lhe parecer tão vazia de conteúdo tão logo ele queira dar  
conta disso a alguém” (Schiller a Goethe, 5.7.1796. GOETHE, 2002, p. 637). Em  
seguida, ele compara Wilhelm com Therese exatamente neste ponto: ela pode  
documentar seu valor sempre por meio de um objeto exterior”. Schiller percebe que  
o problema de Wilhelm está na exteriorização, na objetivação, e não no seu interior”.  
Ele percebe que Wilhelm não consegue concretizar; isso, entretanto, não é atribuído à  
impossibilidade de afirmação de suas disposições na atividade pela qual sentia uma  
decidida inclinação desse modo, é bastante esclarecedor que Schiller não se refira  
às condições sociais com as quais heróis é defrontado:  
Aliás, é muito belo que o senhor, com toda a devida atenção por  
certas formas positivas exteriores, rejeite, tão logo dependa de algo  
puramente humano, nascimento e estrato social em sua completa  
nulidade (Schiller a Goethe, 5.7.1796. GOETHE, 2002, p. 638).  
Ainda que Schiller considere que Wilhelm realmente completa seus anos de  
aprendizado, ele não consegue encontrar o que, afinal, palpável e concretamente foi  
aprendido pelo protagonista. Mas, então, o que acontece com Wilhelm se seus  
objetivos mal são formuláveis, se ele não amadureceu filosófica nem esteticamente?  
Schiller parece confiar no que a Sociedade da Torre avalia e reserva ao herói, e que só  
pôde ser formulado por ele de maneira abstrata: de um ideal vazio e indeterminado,  
ele entra numa vida ativa determinada”.  
Com isso, Schiller acaba por chamar a atenção para um ponto importante: para  
ele, Wilhelm não poderia, não seria lógico, almejar a maestria. O título do romance  
não é dado da perspectiva do herói, pois Wilhelm não tem esse objetivo, mas quem  
dirige Wilhelm, sim, quer instruí-lo.  
/.../ em seu livre curso, observam-no, dirigem-no de longe e para um  
objetivo do qual ele mesmo não fazia ideia, nem podia fazer. Tão  
suave e escondida é essa influência de fora quanto, porém, ela está  
efetivamente lá, e foi indispensável para atingir o objetivo poético.  
Anos de aprendizado são um conceito relacional, eles exigem seu  
correlato, a maestria, isto é, a ideia desta última tem de esclarecer  
e fundamentar aquele primeiro. Ora, essa ideia de maestria, a qual  
é obra apenas da experiência amadurecida e completa, não pode,  
porém, nortear por si mesma o herói do romance; ela não é capaz e  
8
Gemüt tem um significado primário de interioridade, vida interior, conjunto das disposições  
psíquicas e espirituais e, por essa via, alma; num segundo nível pode ainda significar sentimento,  
sensação, sentido. De acordo com o Goethe Wörterbuch, Gemüt tem tanto o significado de razão  
quanto de sentimentos, unindo assim esferas tão frequentemente separadas no século XVIII.  
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nem lhe é permitido colocar-se diante dele como sua finalidade e  
seu objetivo; pois tão logo ele cogitasse o objetivo, então ele  
também o teria alcançado eo ipso; ela tem, portanto, de se colocar  
como guia por detrás dele. Desse modo, o todo encerra uma bela  
finalidade sem que o herói tivesse um objetivo. O entendimento  
encontra assim uma tarefa realizada, ao mesmo tempo em que a  
imaginação afirma inteiramente sua liberdade (Schiller a Goethe,  
8.7.1796. GOETHE, 2002, p. 640).  
Também neste ponto a ideia fundamental, o conteúdo ideal [Ideeninhalt] que  
Schiller quer ver melhor pronunciados no romance mostram-se diretamente  
relacionados ao protagonista:  
Talvez não seria supérfluo se ainda no oitavo livro fosse mencionada  
a ocasião aproximada em que Wilhelm tornou-se em um objeto dos  
planos pedagógicos do abade. Esses planos receberiam assim uma  
relação especial, e o indivíduo Wilhelm apareceria para a Sociedade  
também mais significativo (Schiller a Goethe, 8.7.1796. GOETHE,  
2002, p. 641)9.  
Como mencionamos anteriormente, de modo geral os intérpretes da obra  
seguiram a indicação de seu título e tentaram encontrar os limites do erro e do  
aprendizado de Wilhelm, e para tanto centraram-se na questão da atividade  
profissional do protagonista. Vejamos agora o que dizem as cartas de Körner e  
Humboldt, para em seguida retornarmos aos comentários de Schiller sobre ambas as  
concepções, os quais recairão, novamente, sobre a possibilidade de realização  
individual por meio da atividade de Wilhelm Meister.  
A carta de Christian Gottfried Körner: a formação [Bildung] de um homem”  
Em 5.11.1796, quando todo o romance havia sido publicado, Körner escreve  
uma carta detalhada sobre o Meister a Schiller, logo publicada na revista editada por  
ele, Die Horen. O ensaio de Körner chegou a ser qualificado como talvez o documento  
mais rico de consequências na história da interpretação” desse romance (GILLE, 1971,  
p. 41). E com razão, pois é ele que teria dado origem à longa tradição crítica da obra  
como um Bildungsroman. O conteúdo do livro é explicado colocando em seu centro a  
figura do herói.  
Aquilo que o ser humano não pode receber de fora espírito e  
força está presente em Meister num grau para o qual não se  
colocam limites à fantasia. Seu intelecto é mais que a habilidade de  
alcançar um dado objetivo final. Seus objetivos são infinitos, e ele  
9 Klaus Gille chega a afirmar que o centro da crítica de Schiller a Os anos de aprendizado está na análise  
da relação entre o mundo da Torre e seu pupilo Wilhelm (1971, p. 24).  
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pertence à classe de seres humanos que em seu mundo é chamada a  
dominar. Na consecução disso que ele pensou com espírito, ele mostra  
seriedade, amor e perseverança. O sucesso de sua atividade  
permanece sempre num certo claro-escuro, e por isso é deixada  
livre margem para a imaginação do leitor. Nós ficamos sabendo  
apenas de sua boa aceitação no castelo dos condes, sua reputação  
entre as damas, o aplauso na exibição de Hamlet, mas nenhum de  
seus produtos poéticos nos é mostrado. Sua alma é pura e  
inocente. Sem um pensamento sobre dever, por uma espécie de  
instinto, o mal, o não nobre, são odiados, e ele é atraído pelo  
excelente. Amor e amizade são para ele necessidade, e é facilmente  
decepcionável, pois lhe é difícil punir qualquer mal. Ele anseia  
agradar, mas nunca à custa de outro. A ele é penoso impingir a outro  
qualquer sensação desconfortável, e quando ele se alegra, tudo que  
o rodeia deve desfrutar com ele. Sua plasticidade não tem  
fraquezas. Coragem e independência ele prova quando liberta  
Mignon do italiano, em como ele se defende dos ladrões, em como  
afirma sua independência frente a Jarno e ao abade. A autoridade  
pessoal do abade, a qual em um círculo de seres humanos excelentes  
é de tão grande peso, não o arrebata. Philine está lá, ela é amável,  
muito atraída por ele, mas ele não é dominado por ela. Jarno  
torna-se odiado por ele, já que exige o sacrifício do ancião e de  
Mignon. A essas disposições somam-se ainda figura receptiva,  
decoro natural, conformidade da linguagem. Para um tal ser deveria  
então ser encontrado um mundo do qual se pudesse esperar a  
Bildung não de um artista, de um homem de estado, de um erudito,  
de um homem de bom tom mas de um ser humano (Körner a  
Schiller, 5.11.1796. GOETHE, 2002, pp. 653-654).  
Körner faz uma descrição geral de Wilhelm destacando seus melhores atributos,  
mostrando-o como exemplar de uma classe de seres humanos que em seu mundo é  
chamada a dominar”, e elevando-o, por fim, a uma universalidade humana que exige  
uma formação correspondente, esta que, desse modo, torna-se altamente abstrata,  
desligada de qualquer atividade. Mas enquanto para Schiller o leitor deve se esforçar  
para encontrar a ideia diretora expressa já no título do romance, Körner, funcionário  
de justiça [Justizbeamter] artisticamente instruído, não parece ter tido essa dificuldade,  
ele vê claramente completada a formação do herói:  
Imagino a unidade do todo com a representação de uma bela  
natureza humana, a qual se forma [ausbilden] gradualmente por  
meio da cooperação de suas disposições interiores e de suas relações  
exteriores. O objetivo dessa formação [Ausbildung] é um completo  
equilíbrio, harmonia com liberdade... Quanto mais plasticidade na  
pessoa e quanto mais força moldadora no mundo que a rodeia, mais  
abundante a nutrição do espírito que esse fenômeno proporciona”  
(Körner a Schiller, 5.11.1796. GOETHE, 2002, p. 653).  
Körner considera que a formação de Wilhelm resulta dacooperação de suas  
disposições interiores e de suas relações exteriores”, interação que tende ao equilíbrio  
e à harmonia com liberdade. Novamente divergindo de Schiller sem saber Körner  
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diz: todos esses preparativos não foram suficientes para a formação [Bildung] de  
Meister. O que a completou foi uma criança um pensamento amável e altamente  
verdadeiro” (Körner a Schiller, 5.11.1796. GOETHE, 2002, p. 656). Em suma, enquanto  
Körner concorda inteiramente com a visão que a Sociedade da Torre transmite a  
Wilhelm a respeito de sua trajetória e de seu necessário destino, Schiller questiona  
Goethe sobre o tratamento de diversos assuntos que poderiam sustentar apenas  
fragilmente a felicidade do herói (a começar pela não pronunciação da ideia, mas  
também a insuficiência em atribuir à paternidade de Felix a causa da redenção do  
herói).  
Körner apossa-se do objeto e fala dele com certa propriedade. De uma  
apreciação de Goethe sobre a interpretação de Körner, contudo, não há registro. O  
autor grifou somente uma frase na carta de Körner da qual havia gostado  
principalmente: Especial arte encontro no entrelaçamento entre os destinos e os  
caracteres” (Körner a Schiller, 5.11.1796. GOETHE, 2002, p. 653) por sinal, questão  
presente no ritual de aprendizado de Wilhelm Meister no Livro VII e mesmo teor de  
uma frase de Therese a Wilhelm.  
Entre Schiller, Wilhelm von Humboldt e Körner, este último é o único que  
compreende o romance marcadamente pela sobrelevação do herói. Essa maneira de  
interpretar advém diretamente da teoria de Christian Friedrich von Blanckenburg  
(Versuch über den Roman, 1774), para quem o tema exemplar do romance consistiria  
no aperfeiçoamento de um caráter, e todas as circunstâncias agiriam para seu  
desdobramento10.  
10 Assim, tanto para Blanckenburg quanto para Körner, nenhum personagem seria passível de tal  
desenvolvimento somente o herói. Após o exemplo de Agathon, Blanckenburg desenvolveu a  
exigência de que o romance deveria apresentar o indivíduo efetivo e explicar, sobretudo, o interior  
humano. Tal formulação já sugere que o romance não deve apresentar o herói com qualidades  
imutáveis, ao contrário, deve mostrar um ser humano completo no processo de tornar-se[einen  
ganzen werdenden Menschen] (JACOBS/KRAUSE, 1989, p. 52). O objetivo do romance seria a formação  
do caráter: Ausbildung, Formung des Charakters (SELBMANN, 1988). Blanckenburg fala da história  
interiorde um herói (e não da representação de uma sequência de ações externas) como o essencial  
e próprio de um romance”, estabelecendo assim o fundamento psicológico do romance. Trata-se de  
conceder perfectibilidade, não perfeição, ao herói do romance. O herói passivo do Bildungsroman, nas  
palavras de Plett (2002), cujo tornar-se estaria não no agir, mas no deixar agir[Tun-Lassen], já estaria  
modelado em Blanckenburg. Da mesma forma que estão aqui os contornos do herói romanesco  
problemático” do século XIX. Blanckenburg acaba por limitar o romance à história interior, de modo  
a complementara épica, tradicionalmente fundada em acontecimentos exteriores ligados à história  
mundial”. Não haveria, portanto, uma contraposição de ambos neste ponto. Tampouco haveria uma  
invasão de território quanto à forma: enquanto o romance moderno é narrado em prosa, a épica clássica  
é versificada [Versepos]. Ao mesmo tempo, afirma-se dessa forma o igual valor de realidade que o  
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A carta de Wilhelm von Humboldt: a fraqueza do herói (contraposição a Körner)  
Numa carta de 24.11.1796 a Goethe, Humboldt contrapõe-se frontalmente à  
interpretação de Körner, ainda que comece por elogiar (sem, no entanto, explicitar) a  
perspectiva principal daquela. Em seguida, critica a apreensão do colega do caráter de  
Meister a interpretação de Körner, todavia, apoia-se exatamente aí. Humboldt não  
concorda com a leitura otimista feita de Wilhelm Meister. Körner  
parece encontrar nele um conteúdo com o qual a economia do todo,  
como eu acredito, não poderia existir, e, ao invés disso, ele não  
parece ter encontrado suficientemente, como me parece, sua  
determinabilidade ininterrupta sem quase toda determinação real,  
seu contínuo aspirar para todos os lados sem decidida força natural  
para um deles, sua irrefreável inclinação para refletir e sua tepidez, se  
eu não devo dizer frieza, da sensação, sem a qual seu comportamento  
após as mortes de Mariane e Mignon não seriam compreensíveis. E,  
contudo, esses traços são para o romance como um todo da mais  
alta importância (Humboldt a Goethe, 24.11.1796, GOETHE, 2002, p.  
659).  
Para Humboldt, Meister  
descreve o mundo e a vida completamente como eles são,  
inteiramente independentes de uma única individualidade e  
exatamente por isso abertos para toda individualidade. Inclusive em  
todas as demais obras primas desse gênero, tudo sustenta o  
caráter do protagonista por semelhança ou contraste. No Meister,  
tudo e para todos, e cada indivíduo e o todo, está completamente  
determinado pelo intelecto e pela fantasia. Por isso, todo ser humano  
reencontra no Meister seus anos de aprendizado (Humboldt a Goethe,  
24.11.1796, GOETHE, 2002, p. 659).  
E finaliza:  
É ruim que o título de Os anos de aprendizado não seja  
suficientemente observado por alguns e, por outros, seja mal  
compreendido. Os últimos, por essa razão, não detêm a obra por  
acabada. E, porém, não é isso, se Os anos de aprendizado de Meister  
devem significar a completa formação [Ausbildung], educação  
[Erziehung] de Meister. Os verdadeiros anos de aprendizado estão  
terminados, agora Meister interiorizou a arte de viver, agora entendeu  
que para se ter algo, um tem de receber e o outro tem de lhe sacrificar  
(Humboldt a Goethe, 24.11.1796, GOETHE, 2002, p. 660).  
A ironia (e a consequente ambiguidade) com a qual o narrador acompanha o  
mundo interiortem frente ao exterior”. E por ser o caráter do herói tão decisivo no novo romance  
que surgia, o livro de Blanckenburg, na primeira parte, é mais sobre drama que romance. Quanto ao  
caráter, a única diferença entre ambos é que o drama mostra apenas caracteres já prontos e formados,  
enquanto o romance mostra o processo de formação [Bildungsprozess] em seu curso. (Essa definição  
aparece meses antes do Werther, em 1774, ser publicado.)  
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O aprendiz e o aprendizado  
herói causam certo incômodo ao leitor que queria ver aquela ideia de formação plena  
e belamente realizada. Humboldt percebe a ironia contida em Meister, assim como  
Schiller, mas Körner, não. Para este, a plasticidade de Wilhelm não tem fraquezas11.  
Ao posicionar-se contra Körner, Humboldt inaugura uma linha de interpretação  
quase tão forte de Os anos de aprendizado: a qualidade do romance consiste na  
individualidade do protagonista ser deixada quase indeterminada, relativizando desse  
modo a posição central do herói. Marca-se assim uma despedida da observância  
poética do romance de Blanckenburg, que mantinha a validade da possibilidade de  
identificação com o herói como uma categoria central (Wirkungspoetik). Humboldt  
orienta-se pela épica em sua interpretação do romance, com isso, a fraqueza e a palidez  
da figura de Wilhelm são ressaltadas, o que atenua também suas aspirações  
profissionais (GILLE, 1971, p. 44). A completude da obra, porém, estaria assegurada,  
na medida em que Meister interioriza a arte de viver”. A perspectiva de análise que  
insere novamente o romance nos quadros da épica, determinando a fraqueza do herói,  
será posteriormente retomada por Friedrich Schlegel e também por Friedrich Schelling.  
A posição de Schiller frente a Körner e Humboldt: Wilhelm é o mais necessário,  
mas não o mais importante  
Em 28.11.1796, Schiller escreve a Goethe comentando as asserções de  
Humboldt e Körner evitando sabiamente o ponto em disputa, a saber, o teor  
do aprendizado, Schiller acaba por concentrar-se no caráter de Meister. Reconhece que  
o mais característico de Os anos de aprendizado é não estar ligado ao protagonista.  
Mas, para ele, ambas as posições são extremas, enquanto Humboldt despreza  
completamente o protagonismo de Wilhelm, Körner observa demais o caráter do herói  
como o convencional de um romance: o título da obra e a tradição literária seduziram-  
no. Na opinião de Schiller,  
Wilhelm Meister é na verdade a pessoa mais necessária, mas não  
a mais importante; exatamente isto pertence às peculiaridades de  
seu romance: que ele não tenha e nem precise de tal pessoa mais  
importante. Tudo acontece ao lado e em volta dele, mas não  
propriamente por sua causa; exatamente porque as coisas  
representam e expressam as energias, mas ele representa e expressa  
a plasticidade, ele tem de ter um relacionamento completamente  
diferente com os outros caracteres [Mitcharakter] do que tem o  
11 Essa apreciação “é um exagero grotesco e atesta falta de sentido para a ironia com a qual o narrador  
trata seu herói” (GILLE, 1971, p. 37).  
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herói em outros romances (Schiller a Goethe, 28.11.1796. GOETHE,  
2002, p. 651).  
Ele acha Humboldt injusto demais com o caráter de Wilhelm, e não entende  
exatamente como ele considera que o poeta poderia ter por acabado o romance se  
Meister fosse uma criatura indeterminada e sem conteúdo”. E significativamente,  
prossegue:  
Se a humanidade, de acordo com todo seu conteúdo, não é realmente  
evocada no Meister e colocada em jogo, então o romance não está  
pronto, e se Meister não é absolutamente capaz disso, então o senhor  
não tinha permissão para escolher esse caráter12. De fato, para o  
romance é uma circunstância delicada e complicada que ele não  
encerre, na pessoa de Meister, nem com uma decidida  
individualidade nem com uma realizada idealidade, mas com uma  
coisa intermediária entre ambas. O caráter é individual, mas apenas  
segundo as limitações e não segundo o conteúdo, e ele é ideal, mas  
apenas segundo as possibilidades. Ele nos recusa, por  
conseguinte, a satisfação mais próxima, a qual nós exigimos (a  
determinação), e promete-nos uma mais alta e a mais alta, a qual  
nós temos de creditar a ele, porém, num futuro distante. Muito  
estranho é como tanta disputa no julgamento ainda é possível com  
um tal produto (Schiller a Goethe, 28.11.1796. GOETHE, 2002, pp.  
651-652).  
Como já havia ficado claro, Schiller percebe o papel central de Wilhelm, já que o  
herói do romance tem de cumprir uma missão muito especial, a de representar toda a  
humanidade, porém, ele vê que Wilhelm é um tipo especial de herói romanesco e, por  
isso, não pode concordar com a unilateralidade de Körner e Humboldt. Quanto à  
realização do herói, Schiller percebe também que ela conta com a condescendência do  
leitor, já que ela não é dada nas fronteiras do romance, mas colocada para além dele  
e nisso o leitor deve crer, para que possa compreender e sentir Wilhelm como  
realizado e o romance como bem acabado.  
Os estudos de Friedrich Schlegel: a ironia da arte de viver  
Na primeira recepção abordada até aqui, temos delineadas as principais posições  
que a crítica assumiria frente à obra de Goethe e, especialmente, sobre Wilhelm Meister  
e sua realização individual. Ainda que a interpretação imediatamente subsequente às  
12 Lukács possui uma ideia similar: /…/ mesmo quando se baseia no mais abstrato e no mais exclusivo  
dos individualismos, o objeto da literatura é estabelecer uma relação entre o indivíduo e o mundo  
exterior, com a sociedade presente, e, por outro lado, certa universalização inelutável, tanto do sujeito  
como do objeto; quer ele queira quer não, o que o escritor escreve diz respeito ao destino de toda a  
humanidade” (1968, p. 102).  
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primeiras represente uma inovação importante nos estudos sobre Wilhelm Meister, no  
tocante ao herói, Schlegel alinha-se com os seus antecessores, especialmente  
Humboldt. A ideia pedagógica que orienta o romance foi identificada como central  
também pelos românticos que compõem a segunda fase da recepção do romance  
(GILLE, 1971, p. 16).  
A segunda fase da história da recepção de Wilhelm Meister consiste  
na crítica dos primeiros românticos [Frühromantik] Friedrich Schlegel  
(1772-1829) e Novalis (Friedrich von Hardenberg, 1772-1801). O  
romance goethiano foi para eles tão importante que contribuiu para  
que desenvolvessem sua própria concepção de poesia (BAHR, 1982,  
p. 300). Assim é resumido o contexto dessa influência:  
Os anos de aprendizado de Goethe situam-se, em seu aparecimento  
(1795/96), no meio de um contexto de ruptura literária. Seu efeito  
sobre os jovens autores foi grande, o romance constituiu um  
fermento para as discussões políticas, poetológicas e científico-  
naturais do primeiro romantismo. As consequências foram reações  
importantes e congeniais, assim a grande recensão de Friedrich  
Schlegel na Athenäum de 1798, que coroa as primeiras discussões,  
e a segunda recensão de 1808 nos Heidelbergischen Jahrbücher,  
que extrai a soma de tal efeito e ao mesmo tempo encerra  
provisoriamente  
a
discussão em torno do romance /.../  
(NEUMANN/DEWITZ, 1989, p. 889).  
No fragmento n.216 (1798) da revista romântica Athenäum, Schlegel coloca  
Wilhelm Meister entre os mais significativos acontecimentos daqueles tempos: A  
Revolução Francesa, a doutrina da ciência de Fichte e o Wilhelm Meister de Goethe são  
as maiores tendências da época”. Num esboço de 1797 (desconhecido no período)  
fica mais claro o que Schlegel entende por tendência”: As três maiores tendências  
de nossa época são a doutrina da ciência, Wilhelm Meister e a Revolução Francesa.  
Mas todas as três são apenas tendências sem realização sólida(apud BAHR, 1982, p.  
301)13.  
A recensão de 1798 consolidou-se como uma das mais relevantes sobre o  
romance e como a que desenvolveu ao mesmo tempo os princípios mais importantes  
da poesia romântica. Ela foi a primeira a tratar do romance de modo abrangente (à  
época, o único empreendimento comparável seriam as cartas de Schiller, mas elas  
foram publicadas somente três décadas mais tarde). Schlegel detém-se na  
13 E ainda: Todos as poesias (obras) incompletas são tendências, esboços, estudos, fragmentos, ruínas”  
(SCHLEGEL apud GILLE, 1971, p. 101); todos os livros preferidos têm algo de falsa tendência /…/  
os livros de formação não menos; Meister(SCHLEGEL, F. Zur Poesie und Litteratur. II, Nr. 413, ebd.  
p. 287 apud BIRUS, 2001).  
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Manoela Hoffmann Oliveira  
organização” (In GOETHE, 2002, p. 668) interna do romance e no papel do narrador,  
reconhecendo a influência da ironia (e com isso vislumbramos a importância do livro  
para a ironia romântica”); e observa o fato de Goethe tomar a poesia como objeto da  
poesia na discussão sobre Hamlet outro aspecto central na compreensão romântica  
da poesia14.  
Assim como em Humboldt, o tema de Os anos de aprendizado é interpretado  
por Schlegel como os anos de aprendizado da arte de viver”, nos quais nada mais é  
aprendido do que a arte de viver”; ao invés da uma educação bem sucedida de um ou  
outro indivíduo, o romance deve representar a Bildung mesma em exemplos variados  
e em fundamentos simples” (In GOETHE, 2002, p. 675). Sobre a Bildung de Wilhelm,  
Schlegel fala da inutilidade de seu aspirar, tanto mais grave porque o herói resume-se  
a esse contínuo aspirar, mas pior ainda porque ele não apenas não alcança seus  
desejos, como é usado por outros e zombado por ser como é.  
Seu completo fazer e ser consiste quase apenas no aspirar, querer  
e sentir, e embora nós prevejamos que somente tarde ou nunca ele  
agirá como homem, sua plasticidade ilimitada anuncia, todavia, que  
homens e mulheres fazem de sua educação um negócio e um  
divertimento /.../ (In GOETHE, 2002, p. 663)15.  
Novalis: crítica à economia e à razão  
Novalis pertence aos grandes admiradores e opositores de Wilhelm Meister,  
como testemunham aforismos e fragmentos de 1798-1800. Ele admira a arte de  
Goethe, elogia-o como poeta da realidade: Nele tudo é ato como em outros tudo é  
apenas tendência. Ele faz realmente algo, enquanto outros fazem apenas algo possível  
ou necessário” (In GOETHE, 2002, p. 683). A ironia do romance é identificada como  
romântica: a filosofia e a moral do romance são românticas. O mais ordinário é visto  
14  
Apesar da influência que as filosofias idealistas de Kant e sobretudo de Fichte exerceram sobre  
Friedrich Schlegel, a ênfase de ambas na crítica de Meister é diversa da de Schiller. Pois ao invés do  
conteúdo filosófico, da ação, da natureza e da formação dos protagonistas, Schlegel acentua sobretudo  
o tipo de representação’ e a ironia” (BIRUS, 2001, p. 7).  
15  
Deixemos Goethe finalizar: “É inegável que Schlegel sabe infinitamente muito, e quase nos  
assustamos com seus extraordinários conhecimentos e sua grande erudição. Mas nada é feito com isso.  
Toda instrução ainda não é julgamento. Sua crítica é completamente unilateral, de modo que quase em  
todas as peças teatrais ele vê apenas o esqueleto da fábula e do arranjo e prova sempre apenas  
pequenas similaridades com grandes precursores, sem se preocupar minimamente sobre o que o autor  
nos demonstrou da vida graciosa e da Bildung de uma alma elevada. Mas de que servem todas as  
artes do talento, se de uma peça teatral não nos vem de encontro uma personalidade amável ou  
grande do autor, desse único que transita na cultura do povo?(Goethe a Eckermann, 28.3.1827.  
GOETHE, 1987, p. 524).  
Verinotio  
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nova fase  
   
O aprendiz e o aprendizado  
e representado, com ironia romântica, como o mais importante” (In GOETHE, 2002, p.  
684). Mas crítica recai, principalmente, sobre o prosaísmo da obra, a economia e a  
razão.  
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister são completamente  
prosaicos e modernos. O romântico destrói-se nisso também a  
poesia da natureza, o maravilhoso ele trata meramente de coisas  
humanas triviais a natureza e o misticismo são inteiramente  
esquecidos (Novalis, 1798/1799. GOETHE, 2002, p. 685).  
Parece inegável que Meister possua em sua caracterização elementos românticos  
presentes em seus motivos mais frequentes, como a nostalgia e o amor ou a ligação  
entre os humores do protagonista e a natureza16. Ainda que não deem a coloração  
decisiva do romance, o pessimismo, a religião e a morte são traços também fortemente  
presentes na história de Wilhelm, e embora não pertençam propriamente ao caráter  
do protagonista, materializam-se na atmosfera que o rodeia durante a maior parte de  
sua trajetória.  
Observando também as estruturas tal como Schlegel, Novalis chega a um  
resultado mais convencional no que concerne ao herói do romance e sua atividade.  
Um escritor de romance faz um tipo de final rimado [bouts rimé] –  
que torna uma dada quantidade de acasos e situações uma linha  
bem ordenada e consequente que Um indivíduo oportunamente  
atravessa por meio de todos esses acasos rumo a Uma finalidade.  
Ele tem de ser um indivíduo característico, que determina os  
acontecimentos e é por eles determinado. Esse intercâmbio, ou as  
mudanças de Um indivíduo em uma linha contínua perfazem o  
interessante material do romance. Um escritor de romance pode  
criar obras de modo diverso ele pode, por exemplo, imaginar  
primeiro uma quantidade de acontecimentos e imaginar para a  
vivificação dessas em indivíduo / uma quantidade de estímulos, e  
inventar para esses uma constituição especial por eles diversamente  
mutante e especificadora / ou ele pode fixar-se, contrariamente,  
primeiramente num indivíduo de tipo próprio e, para este, inventar  
uma quantidade de acontecimentos... Quanto maior o poeta,  
menor é a liberdade que ele se permite, mais filosófico ele é. Ele se  
contenta com a escolha voluntária do primeiro momento e  
desenvolve depois apenas as disposições desse cerne até sua  
resolução. Todo cerne é uma dissonância um mal-entendido que  
deve paulatinamente se equilibrar. Esse primeiro momento  
compreende os elementos de alternância em uma relação que  
não deve permanecer assim por exemplo em Meister aspirar  
pelo mais elevado e situação de comerciante. Isso não pode ficar  
assim um tem de ser senhor do outro Meister tem de abandonar  
16  
Relação nitidamente representada em Werther e também problematizada na Empfindsamkeit: a  
natureza torna-se uma força primordial de uma estética emocional, deixando de ser somente um refúgio  
íntimo.  
Verinotio  
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nova fase  
 
Manoela Hoffmann Oliveira  
a posição de comerciante ou a aspiração tem de ser aniquilada –  
Poder-se-ia melhor dizer sentido para a bela arte e vida de  
negócio combatem-se por Meister dentro dele. O primeiro e o  
segundo beleza e utilidade são as deusas, as quais aparecem  
para ele sob diferentes figuras em encruzilhadas Finalmente chega  
Natalie e ambos os caminhos e ambas as figuras convergem em um  
(Novalis, 1798. GOETHE, 2002, p. 682).  
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Meisters Lehrjahre. Stuttgart: Reclam, 1982.  
BIRUS, Hendrik. Grösste Tendenz des Zeitalters oder Ein Candide, gegen die Poësie  
gerichtet? Friedrich Schlegels und Novalis Kritik des Wilhelm Meister. Disponível  
em:  
(Acesso em 12.05.2023)  
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Verinotio  
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nova fase  
O aprendiz e o aprendizado  
MÜLLER, Friedrich von. Goethes Unterhaltungen mit dem Kanzler Friedrich von Müller.  
Hrsg. von C. A. H. Burkhardt. Stuttgart: Cotta, 1870.  
NEUMANN/DEWITZ. Kommentar. In Goethe, J.W. Wilhelm Meisters Wanderjahre.  
Frankfurter Ausgabe I, 10. 1989.  
NOVALIS. In GOETHE, Johann Wolfgang von. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Werke,  
Kommentare und Register. Hamburger Ausgabe in 14 Bänden. Vol. 7. Romane und  
Novellen II. Erich Trunz (Org.). München: C.H. Beck, 2002.  
OLIVEIRA, Manoela Hoffmann. A sociedade é inefável. Sobre a individualidade do  
protagonista de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister(1795/96), de  
Goethe. Tese de doutorado em Ciências Sociais. IFCH/Unicamp, 2014.  
PLETT, Bettina. Problematische Naturen? Held und Heroismus im realistischen  
Erzählen. Paderborn, München: Schöningh, 2002.  
SCHILLER, Friedrich von.Briefwechsel Goethe Schiller. In GOETHE, Johann Wolfgang  
von. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Werke, Kommentare und Register. Hamburger  
Ausgabe in 14 Bänden. Vol. 7. Romane und Novellen II. Erich Trunz (Org.). München:  
C.H. Beck, 2002.  
SCHLEGEL, Friedrich. Ueber Goethes Meister. In: Athenaeum. Eine Zeitschrift von  
August Wilhelm Schlegel und Friedrich Schlegel. Vol. 1, 2. Stück, 1798.  
SELBMANN, Rolf. Zur Geschichte des deutschen Bildungsromans. Darmstadt, 1988.  
ZELLE, Carsten. Über naive und sentimentalische Dichtung. Theoretische Scriften. In  
LUSERKE-JAQUI, Matthias (Org.). Schiller-Handbuch. Leben-Werk-Wirkung.  
Stuttgart/Weimar: Metzler, 2005.  
Como citar:  
OLIVEIRA, Manoela Hoffmann. O aprendiz e o aprendizado: gênese e primeiras  
recepções de Wilhelm Meister, de Goethe. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp.  
01-19; jul-dez, 2023.  
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nova fase  
dossiê  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.689  
Da crítica de arte na imprensa brasileira  
Revendo e atualizando a arte e a crítica nos anos 1980  
Art criticism in the Brazilian press  
Reviewing and updating art and criticism in the 1980s  
Ronaldo Rosas Reis*  
Resumo: Versão adaptada e atualizada do  
ensaio “Geração 80, um rótulo na imprensa”,  
Abstract: Adapted and updated version of the  
essay “Generation 80, a label in the press”,  
published in 2004. The purpose is to  
publicado em 2004.  
O
propósito  
é
problematizar o tema geral do pós-modernismo  
na esfera cultural-acadêmica do país tendo a  
Crítica de Arte e o aparato dos Conglomerados  
de Mídia como alguns dos principais indutores  
da relação de causalidade entre o libertarismo  
problematize  
the  
general  
theme  
of  
postmodernism in the cultural-academic sphere  
of the country, taking into account Critic of Fines  
Art and the apparatus of Media Conglomerates  
as some of the main inducers of the causal  
relationship between libertarianism and  
liberalism as the foundation of current  
irrationalism.  
e
o
liberalismo como fundamento do  
irracionalismo atual.  
Palavras-chave: Imprensa, crítica de arte,  
geração 80, Brasil  
Keywords: Press, art criticism, 80s generation,  
Brasil  
Introdução  
A Geração 80 tinha virado uma marca. Ouvia do Carlos Fiuza, um  
artista que andava infeliz como eu: “se você não é Geração 80 você  
não é nada”. Era verdade (CURY, A oficina da convivência, 2023)  
Os fatos e personagens de grande importância na história do mundo  
ocorrem, por assim dizer, por duas vezes: a primeira vez como  
tragédia, a segunda como farsa (MARX, O 18 Brumário de Luís  
Bonaparte, 1974)  
Há tempos realizei um estudo acadêmico sobre a emergência midiática do então  
chamado fenômeno Geração 80 (G80) no festivo e controverso ambiente cultural  
brasileiro daquela década marcada pela ascensão da luta política contra a ditadura  
civil-empresarial-militar1. Tendo participado perifericamente dos grandes eventos das  
*
Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com Estudos Pós-  
Doutorais em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e em Educação pela Universidade Federal de  
Minas Gerais. Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense. Pintor e desenhista –  
Instagram @ronaldorosa63 ronaldorosas.uff@gmail.com  
1 Cf. REIS (1994).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2 jul-dez, 2023  
nova fase  
   
Da crítica de arte na imprensa brasileira  
artes plásticas no Rio de Janeiro entre 1981 e 1985, eu havia travado contato com  
alguns dos artistas que se tornaram protagonistas da cena artística do período, cujo  
pano de fundo era a emergência do debate sobre o pós-modernismo no meio de arte.  
Já em fins daquela década, quando então eu rastreava os cadernos culturais dos  
grandes jornais brasileiros à procura de elementos para organizar um roteiro de estudo  
de doutoramento sobre as relações entre a mídia e a cultura no período da abertura  
política do país, dei-me conta do fato de que tudo que havia lido sobre teatro, dança,  
música e cinema nos anos anteriores nas páginas dos jornais dos grandes  
conglomerados brasileiros de comunicação, trazia no corpo da matéria um sujeito-  
protagonista dando a sua opinião, estabelecendo paralelos com outros modos de ver  
o momento e a situação do país. Enfim, um músico, artista ou diretor de teatro com  
nome e sobrenome que, respondendo por aquilo que criava e produzia, também  
refletia sobre o conjunto da produção cultural naquele contexto histórico.  
Contrariamente a isso, quando a matéria era sobre as artes plásticas, constatava que  
imperava uma algazarra ensurdecedora de atravessadores do assunto, tais como  
animadores culturais, jornalistas/colunistas, publicitários, críticos, marchands e  
galeristas, quase todos incensando e rotulando uma novíssima geração de artistas, a  
Geração 80 (G80). Mais atenção me chamou foi o contraste entre tal gritaria e o silêncio  
dos artistas, algo tão evidente que a minha reação foi a de procurar alguns daqueles  
compulsoriamente enquadrados no rótulo e, dando-lhes voz, perguntar-lhes o óbvio:  
como se sentiam sob essa tutela?2  
Em 2004, passada uma dezena de anos, revendo aquele texto original a fim de  
escrever um ensaio resumido sobre o tema3, achei por bem destacar do conjunto  
integral do estudo acadêmico basicamente os aspectos relacionados à insistência com  
que os cadernos culturais da mídia se mantinham apegados ao rótulo G80 criado como  
demanda ideológica na arte brasileira em contraposição aos movimentos  
construtivistas (concreto e neoconcreto) dos anos 1950, à arte pop e ao  
conceitualismo politizado que dominaram as décadas 1960 e 1970. Nesse novo texto,  
além de contextualizar com mais precisão as demandas ideológicas dos  
2 Entre 1992 e 1993 entrevistei os seguintes artistas: em Belo Horizonte, Isaura Pena, Mario Azevedo,  
Monica Sartori e Rosangela Renó; no Recife, Alexandre Nóbrega e José Patrício; em São Paulo, Leda  
Catunda e Sergio Romagnolo; e no Rio de Janeiro, Armando Mattos, Beatriz Milhazes, Daniel Senise,  
Jorge Barrão, e Ricardo Basbaum.  
3 Cf. REIS (2004).  
Verinotio  
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nova fase  
   
Ronaldo Rosas Reis  
conglomerados de mídia com vista à metamorfose teleológica rumo ao pós-  
modernismo, coloquei em destaque o contraponto crítico exercido pelos artistas  
plásticos em relação ao que escreviam os agentes da mídia, isto é, os  
jornalistas/colunistas de arte promotores da G804.  
Hoje, observando especificamente a particularidade do desenvolvimento do que  
se passou nesse tempo no meio de arte entre nós, vislumbro na presente chamada  
temática de Verinotio5 a oportunidade de problematizar o alcance da insistência da  
mídia e do mercado em manter embaralhado qualquer esforço de compreensão do  
que seja uma história da arte no Brasil. E é nessa condição de retorno ao vivido como  
experiência prática e teórica que retomo a ideia de um “lugar nenhum” como  
constituinte do meio de arte brasileiro há tempos discutida pelo professor e crítico  
Paulo Venâncio Filho (1981). Isto é, a ideia de que a produção artística do país tem  
sua existência pautada pela “permanente condição de começar de novo [...]”, onde o  
contemporâneo, o moderno e o acadêmico se apresentam com os seus significados  
desordenados, sem nexos e hierarquia histórica. Uma produção ficcional, avalia ele, em  
termos de uma história da arte, existindo apenas “para efeitos práticos do mercado  
(Idem, idem, pp. 23-25). No entanto, faltando pouco menos de um ano para completar  
três décadas desde a publicação do estudo original, tal questão particular do meio de  
arte brasileiro não se limita apenas ao que nele está circunscrito. Indo além, a questão  
remete ao assombro do jogador da metáfora do poeta francês Paul Valéry ao constatar  
que a mão do seu futuro tem cartas nunca vistas antes, e que as regras do jogo são  
modificadas de jogador para jogador6. E nesse ir além, se a metáfora poética traduz  
por antecipação a sublimação do sujeito físico pela automação invisível, tal como  
descreve Guy Debord na sua obra A sociedade do espetáculo (1997), sabe-se  
igualmente verdadeira que a competência para tal fim se situa no submundo intelectual  
do jornalismo capitalista, cuja tarefa permanente é difundir o extrato de falácias  
produzido pela ação do mercado. Com efeito, dentre as múltiplas falácias que faz  
mover a lógica reprodutiva do sistema capitalista global o mais recorrente deles é o  
Vazio Cultural, um silogismo disjuntivo pois que traz na sua formulação mesma a  
4 Vale esclarecer que ao retomar tal problemática no ensaio de 2004, me dei conta da presença rarefeita,  
uma quase ausência, de estudos sobre o pós-modernismo no campo da educação, em especial na  
educação estética, circunstância essa que me levaria a dedicar mais tempo aos temas voltados para essa  
pauta. Sobre esse assunto ver REIS (2005); (2009); (2010); e (2015), este último com DUAYER.  
5 Cf. Arte prática e crítica.  
6 Ver HARRINGTON (1967).  
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Da crítica de arte na imprensa brasileira  
solução para um falso problema criado. Tal como encontramos em mudar para  
conservar (LAMPEDUSA, 2002), e em Florestan Fernandes ao atribuir à prática política  
nacional o hábito recorrente de operar o mudancismo teleológico servindo tanto para  
“despertar falsas esperanças e crença na transformação automática da sociedade”  
como para “vitalizar o conservantismo” (1986, pp. 12-49). Uma estratégia para dirimir  
o “atraso” de décadas, em verdade revelam-se objetivos inconfessáveis da  
intelligentsia burguesa pois funcionam no sentido de sublimar a pressão que esta  
sente do sofrimento com a “decadência” (FREUD, 1997) como também para  
“conquistar posições de poder” (FERNANDES,1986) 7. Ocorre-me, nesse sentido, a  
lembrança dos textos apelativos alguns ridiculamente dogmáticos dos agentes  
ideológicos que nos anos 1980 engendraram no meio de arte brasileiro o télos ético-  
estético pós-modernista fundado numa relação de causalidade entre libertarismo e  
liberalismo. Ocorre-me ainda, conforme pretendo examinar no decorrer do texto, a  
possibilidade de que a expansão desse nexo causal para o ambiente cultural como um  
todo, resultou numa sociabilidade somatizada por traços anarcofascistas tal como se  
evidencia em diversos países, como, por exemplo, EUA, Brasil, Itália, França e Hungria.  
Além desta Introdução o artigo traz na primeira seção uma revisão sumariada  
dos principais fatos relacionados com as transformações globais no plano macro. Em  
seguida buscando contextualizar a emergência do tema do debate sobre o pós-  
modernismo no mundo e no ambiente cultural brasileiro à época da abertura política  
e da transição democrática, são traçadas resumidamente algumas das principais linhas  
de pensamento daquele debate. Na sequência é abordado o surgimento do rótulo ou  
marca G80 no colunismo de arte dos conglomerados de mídia e na quarta seção o  
ponto de vista dos jornalistas/colunistas relacionando a arte pós-moderna e a G80,  
além de algumas repercussões dos artistas comentando a prática da crítica artística.  
Por fim, conclusivamente, mediante a problematização da mudança do télos ético-  
estético operada pela crítica de arte agenciada pela imprensa, busco refletir sobre o  
nexo causal entre libertarismo e liberalismo pós-moderno, entendendo-o como parte  
do processo de destruição da razão8 e, por conseguinte, uma das fontes do  
anarcofascismo corrente nas últimas duas décadas.  
7 Ver ainda REIS (2005, pp. 104-111)  
8 Ver LUKÁCS (1968), em especial o que se apresenta no epílogo da obra.  
Verinotio  
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nova fase  
   
Ronaldo Rosas Reis  
A volta para o futuro do pretérito composto  
Em fins dos anos 1950, o caráter sistêmico das crises do capitalismo que haviam  
levado o mundo a duas grandes guerras, haveria de incorporar a médio e longo prazo,  
ainda que de modo fortuito, um conjunto de manifestações sociopolíticas e culturais  
originariamente antissistema. Dessa dialética negativa emergiria o modelo político-  
econômico neoliberal de sociabilidade que, desde então tem alimentado a relação de  
causalidade entre liberalismo e libertarismo, fundamento do estado anarcofascista há  
tempos emergente em governos e facções políticas nos EUA, Brasil, Hungria, Itália,  
França e dezenas de outros países ocidentais, conforme pretendo abordar mais  
adiante9. Com efeito, em fins dos anos 1960, figuras como Margareth Thatcher (Grã-  
Bretanha), Ronald Reagan (EUA) e Helmuth Kohn (Alemanha), assumiriam a liderança  
política dos seus respectivos países, impondo o retorno ao estado pretérito do  
liberalismo do tipo laissez-faire, laissez-aller, laissez- passer. Por longos anos essa  
nova cepa de dirigentes ocidentais com ideias radicalmente liberais, esteve à frente do  
projeto de redefinição teleológica do capitalismo tendo por base o escopo  
sociopolítico-econômico de que “governo não é a solução, mas o problema” (REAGAN  
apud HOBSBAWM, 1995, p. 401)10. Desde então o télos a ser perseguido passaria a  
ter o mercado como fio político condutor das operações transnacionais do sistema  
capitalista ocidental, proporcionando o surgimento de uma nova ordem econômica  
mundial “por sobre as barreiras da ideologia do Estado” (HOBSBAWM, 1995, p.12-  
19).  
Na América Latina, os primeiros efeitos negativos da expansão global da política  
econômica neoliberal foram sentidos em fins dos anos 1970 na plena vigência das  
ditaduras militares-civis empresariais. No Brasil especialmente, a redução drástica dos  
investimentos estrangeiros que em grande parte sustentava o regime de exceção  
deixando-o artificialmente ao largo da crise mundial daquela década, levaria o país a  
uma inflação devastadora associada a uma recessão sem precedentes. Diante do  
conteúdo explosivo da economia e da crescente insatisfação popular, os donos do  
regime ditatorial criariam uma agenda para uma retirada lenta e gradual dos militares  
9 Sobre a relação de causalidade citada ver o verbete correspondente em MORA (2005, pp. 133-135)  
10  
Cabe ressaltar que embora o tipo de liberalismo referido remeta a fins do século XVIII, as principais  
ideias orientadoras do novo liberalismo são do economista austríaco Friedrich Hayek (1987), em  
especial as que foram publicadas no livro Os caminhos da servidão, de 1944. Também seria do mesmo  
livro de Hayek a ideia inspiradora da frase proferida pelo presidente estadunidense Ronald Reagan.  
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nova fase  
   
Da crítica de arte na imprensa brasileira  
da administração do país11.  
O desejo do fim e o pós-modernismo  
Dentre muitas outras manifestações culturais significativas, as décadas de 1950  
e 1960 foram dominadas pela contracultura e pela politização da arte. Juntas tais  
manifestações denotavam a emergência de um mundo movido pela percepção de um  
esgotamento ético-estético e moral das regras do passado, e o que então se  
apresentava no campo cultural expressava a exigência de grandes mudanças  
libertárias.  
Na França, pensadores como Michel Foucault e Jacques Derrida concentravam  
seus esforços no questionamento e na desconstrução do sentido de revolução, ao  
mesmo tempo em que outros intelectuais, como Jean-François Lyotard, Gilles Deleuze  
e Felix Guattari, recusavam radicalmente a ideia de verdade contida naquilo que  
chamavam de metadiscursos modernos. É certo que cada um ao seu modo buscava  
assegurar a originalidade de suas respectivas ideias, entretanto, conjuntamente  
propunham caminhar para “mais perto do concreto, do presente, cooperando com as  
forças do acontecimento, decodificando e dando coerência aos detalhes da  
cotidianidade” (BARBOSA, 1985, p. xiii).  
Em meados dos anos de 1970, ainda na Europa, as ideias do teórico jamaicano  
Stuart Hall sobre multiculturalismo e diversidade alcançariam uma dimensão  
extraordinária em meio à uma esquerda acadêmica dividida. Mais ao fim daqueles anos  
a nova onda teórica atravessaria o Atlântico conquistando entusiasmados adeptos  
entre os militantes da contracultura e, especialmente, entre os antiteóricos do  
movimento camp estadunidense. Já na transição para a década seguinte, o conjunto  
desses esforços teóricos evidenciavam o objetivo de desconstruir o materialismo  
histórico como método de interpretação da realidade, acusando-o pelos excessos  
cometidos em nome da razão(LACLAU, 1991, pp. 127-128) e de ser incapaz de dar  
conta das transformações globais do mundo contemporâneo, bem como das novas  
subjetividades então emergentes.  
11  
Programada pelo general Golbery do Couto e Silva e implementada a partir do governo do general  
Ernesto Geisel (1976-1980), a abertura política não significou o fim das atrocidades cometidas pelos  
militares e empresários no porão do regime. Estas durariam ainda por quase dez anos, sendo que a  
prática da coerção mediante tortura seria, em parte, transferida para as polícias militares dos estados  
onde em muitos deles permanecem ativas.  
Verinotio  
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No plano prático, o estatuto vanguardista que mobilizara diversas gerações em  
torno dos seus fundamentos dava mostras de um evidente esgotamento. No limite, a  
crescente circulação comercial da iconoclastia pop tornara a atitude de vanguarda uma  
caricatura de si mesma, sendo denunciada como uma aberração infantil. O ciclo  
evolutivo das ideologias estéticas mais significativas desde o aparecimento das  
vanguardas no início do século, pareceu, enfim, ter perdido terreno para um amplo  
espectro de práticas artísticas dispersivas, todas, contudo, “operando a partir das  
ruínas do edifício modernista(HUYSSEN, 1990, p. 43). E foi precisamente nessa  
direção que, em meados dos anos 1970, surgiriam na Europa e nos EUA as primeiras  
tendências pós-modernistas no campo das artes plásticas, cujo arcabouço teórico  
trazia uma contradição em termos: i.e, em nome de uma presumida liberdade de  
expressão pautava a orientação ético-estética da sua produção pelo anti-  
intelectualismo e pelo anti-historicismo. Para o crítico italiano Achille Bonito Oliva, um  
dos principais ideólogos do pós-modernismo nas artes plásticas, a desilusão com o  
esgotamento da ideia de revolução que havia sido levada adiante pelas vanguardas  
históricas parece ser o principal aspecto considerado pelo chamado pós-  
vanguardismo, ou transvanguardismo como ele prefere (apud DE FUSCO, 1988).  
Segundo ele próprio, o modernismo se prende a uma necessidade temporal, portanto  
histórica, no sentido da existência de um ciclo que comporta o aparecimento, a  
evolução e o fim de um ciclo linguístico até o aparecimento de outro. Nesse sentido,  
nada pode parecer mais natural para os artistas transvanguardistas do que adotar a  
“ideologia cínica do traidor”. Isto é, condenar a história ao seu fim para preservar a  
arte (Idem, idem). O pós-modernismo, para seus defensores, se caracteriza pela tomada  
de consciência, por parte do artista e do público, de que o prazer é uma qualidade  
fundamental na realização e na apreciação da obra de arte, gênero de coisa  
abandonada pelo alto modernismo em função do seu comprometimento com a  
História. Nesse sentido, Bonito Oliva apontaria para a necessidade de se valorizar uma  
concepção horizontal de história, na medida em que esta possibilita o aparecimento e  
a utilização de uma multiplicidade de fontes, ao contrário do modernismo:  
A transvanguarda não exalta o privilégio de uma genealogia aberta  
em leque sobre antepassados de diversas origens e proveniências  
históricas, existe também, a classe baixa das culturas menores, de um  
gosto proveniente da prática artesanal e das artes menores (Idem,  
idem, p. 293).  
No limite as considerações de Oliva buscavam não apenas dispor a centralidade  
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do anti-intelectualismo como a variante ético-estética a ser considerada na apreciação  
das obras, como dispor o anti-historicismo na condução do processo reflexivo acerca  
do que seja a linguagem artística pós-vanguardista (ou transvanguardista), devendo  
ser esta apreendida  
[...] como um instrumento de transição, de passagem de uma obra  
para outra, de um estilo para outro segundo uma atitude inconstante  
de reversibilidade de todas as linguagens do passado, algo como um  
nomadismo em oposição às coordenadas obrigatórias das variantes  
artísticas do segundo pós-guerra, que se desenvolveram segundo a  
ideia evolucionista do darwinismo linguístico [...]  
Sobre a avassaladora pressão exercida pelos diversos críticos/colunistas nos  
conglomerados de mídia europeus e estadunidense em favor das posições pós-  
modernistas na arte, à época a resistência ainda se fazia sentir e respeitar. Isso porque  
havia espaço para o debate dentro e fora dos espaços acadêmicos, não de todo  
dominados pela sociabilidade do espetáculo e pela irracionalidade libertária e liberal.  
Na Inglaterra o professor e crítico Terry Eagleton (1993) procurava entender, através  
do exame das ideologias estéticas das vanguardas e de suas operações no ambiente  
moderno, em que momento e por que motivos a utopia revolucionária cedeu espaço  
para o cinismo e a decadência pós-modernista, nos quais, dizia ele, são expressos o  
feroz “anti-historicismo consumista, hedonista e filisteu da arte atual” (Idem, p. 273).  
Dizendo que as vanguardas não conseguiram perceber que houve uma penetração do  
reino simbólico pelo imperativo do lucro (a indústria cultural estaria aí mesmo para  
confirmar isso), Eagleton chamava a atenção para os fatores principais que constituem  
o caráter anti-histórico do pós-modernismo: a constatação da inoperância política das  
ideologias revolucionárias diante de um mundo cuja cultura fora estetizada, e o próprio  
processo de legitimação social do pós-modernismo. No primeiro caso o professor  
inglês procura demonstrar que os mecanismos econômicos do capitalismo mais  
recente tenderam a privilegiar os setores industriais voltados para o lazer, o  
entretenimento, a moda em geral, valorizando o culto do estilo, do prazer, da técnica,  
fetichizando-os como mercadorias. Por outro lado, Eagleton diz que a reificação do  
significante e o deslocamento do significado por intensidades casuais, percebidos  
através da desconstrução das narrativas mestras do modernismo e suas realocações  
ao acaso, acabaram contribuindo para reforçar a ideia de estilo atemporal,  
descontextualizado, destruindo o historicismo da obra. Embora diga que é possível  
reconhecer a existência de duas vertentes distintas nas ideologias estéticas pós-  
modernas, uma de afirmação do status quo e outra de resistência, respectivamente,  
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entretanto, Terry Eagleton não concorda que esta última vertente detenha uma feição  
historicista conforme ela reclama para si. De acordo com o que ele diz, na medida em  
que ambas as vertentes do pós-modernismo dependem de uma identidade cultural, e  
que esta é, nas sociedades capitalistas recentes, constantemente arruinada pela  
mercadoria, resta ao operador estético pós-moderno recorrer, no seu processo de  
legitimação, à anulação cínica da verdade, do significado e da subjetividade” (Idem,  
idem). Por fim, conforme Eagleton, tal característica, apesar de não ser uma constante  
na vertente pós-modernista de resistência, é o que torna palatável a sua assimilação  
cultural, e nesse sentido, sua resistência somente pode se dar no sentido de sua  
própria negação como fato histórico.  
Nasce uma virgem  
Se nas áreas mais em evidência no ambiente cultural brasileiro da primeira  
metade dos anos 1980, os temas ligados ao debate sobre o pós-modernismo foram  
absorvidos mediatamente a médio e longo prazo, nas artes plásticas eles foram  
imediatamente adotados pela crítica de arte agenciada pelo mercado e os  
conglomerados de mídia. Em regra, os colunistas com espaço na imprensa assumiriam  
o papel de veicular as ideias pós-modernistas constantes no circuito artístico  
internacional, cujo viés disjuntivo e contraditório propunha ser o indutor do  
surgimento de uma nova tradição na história da arte ao tempo em que se apresentava  
negacionista, artificial, conservador e superficial.  
No início daquela década, galeristas recém-chegados ao circuito de arte nas  
maiores capitais do país, enfrentaram o desafio de garantir as transações comerciais  
mediante a criação dos mecanismos de regulação do valor artístico dos artefatos  
produzidos a fim de profissionalizar e ampliar o mercado de arte brasileiro. Nesse  
sentido, inovariam ao investir pesadamente em jovens artistas, em sua maioria  
pintores, em início de carreira, alguns ainda em formação, pagando um pró-labore  
mensal. Como contrapartida, eles passaram a deter a prioridade e o direito de escolha  
e de compra de parte da produção do artista financiado. Já descontado o custo do  
investimento no trabalho e na divulgação da produção, algo arbitrado em torno de  
35% do valor de cada obra, os galeristas formariam assim uma espécie de reserva de  
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mercado de baixo custo para fins de especulação no circuito artístico12. De imediato o  
processo de profissionalização da cadeia produtiva colocado em curso, incluindo a  
produção/acumulação/exposição de mercadorias, enfrentou alguns desafios  
complexos para que a demanda justificasse os investimentos já realizados e o acesso  
ao consumo dos artefatos artísticos viesse a crescer. Para tanto se fazia necessário  
provocar “um renascimento dentro do caos” mediante o “apagamento” das ideologias  
estéticas de tendência minimalista, conceitualista e performática, ainda dominantes no  
meio de arte (LEIRNER, 1985)13.  
Para o sucesso do empreendimento, além de contar com animadores culturais  
com livre trânsito junto às esferas políticas dos governos estaduais e municipais, o  
mercado de arte agenciaria alguns dos mais experientes jornalistas em atividade com  
inserção e prestígio nas colunas de arte e sociais da imprensa brasileira. Juntos eles  
articulariam com eficiência dois movimentos táticos previstos na estratégia  
mercadológica descrita anteriormente. De um lado, os organizadores das mostras  
mesclavam obras de pintores experientes já assimilados pelo mercado e a  
novíssima produção, garantindo, assim, legitimidade comercial a esta última. De outro  
lado, o agenciamento do público se dava mediante o uso das colunas de arte e social  
na grande imprensa, nas quais clamava-se tanto pelo apelo ao velho clichê da  
necessidade de ocupação do Vazio Cultural existente, quanto pelo convencimento do  
público sobre a importância do surgimento de uma nova geração, politicamente  
despreocupada, e sem preconceitos em relação ao mercado. A essa demanda  
ideológica foram ainda somadas as ideias de uma geração que “retornava ao prazer  
da pintura” (MORAIS, 1984) e de um “ecletismo estético, nômade, fundado na  
irracionalidade, na emoção e no prazer” (PONTUAL, 1984). Dessa forma, com o terreno  
da racionalidade artística devastado pela ação negacionista engendrada pelos agentes  
ideológicos do mercado, tudo levava a crer que o télos ético-estético pós-modernista  
já se encontrava pavimentado para que a fecundação daquela que viria a ser a sua  
mais nova virgem: a Geração 80.  
12  
Vale o esclarecimento de que tal prática remonta ao século XVII, predominantemente na Holanda e  
na Bélgica. Exercida por rentistas e mecenas em busca de garantia e confiabilidade aos investimentos  
em pinturas, gravuras, esculturas, desenhos, jóias, móveis etc. e no aparecimento de novos artistas.  
Sobre o assunto ver ARRIGH (1996); HAUSER (1982); MARTINS (2005); REIS (2021).  
13  
Cabe o esclarecimento que embora as obras representativas das tendências mencionadas tivessem  
valor artístico reconhecido, não detinham ou detinham minimamente valor de troca, sendo praticamente  
inviável a sua comercialização em galerias.  
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Na imprensa, de acordo com os jornalistas/colunistas de arte, o retorno à pintura  
aproximava essa geração de artistas brasileiros da produção do eixo Berlim-Milão-  
Nova Iorque, o principal do circuito artístico internacional. De lá os galeristas  
brasileiros importavam os principais periódicos da época contendo imagens das obras  
expostas naquele circuito, bem como absorviam as ideias contidas nos artigos dos  
defensores das tendências artísticas pós-modernas, como o neoexpressionismo  
alemão, a transvanguarda italiana e o ecletismo pop estadunidense. Com uma reserva  
acumulada de obras, os galeristas passariam a organizar exposições coletivas de  
pinturas, mesclando trabalhos de pintores já assimilados pelo público e a chamada  
novíssima produção, garantindo, assim, legitimidade comercial a esta última. Assim, a  
partir de 1982, sempre contando com o apoio incondicionalmente interessado dos  
conglomerados de mídia, sucessivas exposições de variados tamanhos despontariam  
como palco de ensaio e testagem até o momento do grande evento que viria a ocorrer  
em 1984, dentre elas, “Entre a Mancha e a Figura”, realizada em 1982 no MAM-RJ  
(Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), “3.4 - Grandes Formatos”, realizada no  
Centro Empresarial Rio, “A Flor da Pele - Pintura & Prazer”, realizada no mesmo local,  
“A Pintura como Meio”, realizada no MAC-USP (Museu de Arte Contemporânea da  
Universidade de São Paulo), “Pintura Pintura”, realizada na Fundação Casa de Rui  
Barbosa no Rio de Janeiro, e, finalmente, “Pintura/Brasil”, realizada no Palácio das  
Artes em Belo Horizonte. Se dessas exposições veio o impulso inicial do circuito de  
arte para o aquecimento do mercado, registre-se então o mérito dos críticos de arte  
presentes nas colunas jornalísticas que, como avalistas de todo o processo, revelaram  
a novíssima geração cunhando o rótulo G80. Mas não apenas, pois, igualmente nessa  
condição foram eles os responsáveis diretos pelo nexo causal entre a intencionalidade  
libertária do pós-modernismo artístico e o neoliberalismo àquela altura já em vias de  
se tornar hegemônico em vários países.  
G80 é um nada  
Com as exceções de praxe, as manobras ideológicas da mídia e do mercado no  
sentido de delinear o perfil comportamental dos jovens artistas que viriam compor o  
quadro de referência da Geração 80 era a de algo simetricamente oposto ao da  
rebeldia da contracultura dos anos 1950-1960 e ao da sisudez politizada dos anos  
70, tal como avaliaria a crítica Sheila Leirner (1992, p.109):  
Mais do que uma simples definição de grupos e tendências estilísticas,  
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a Geração 80 é um apanhado amplo que engloba também questões  
estéticas, filosóficas e mesmo ideológicas. Todas elas marcadas pelo  
sentido dialético de contrariar seus precedentes imediatos. A começar  
pelo culto da subjetividade, individualidade, emoção e irracionalidade,  
que se colocam contra o rígido cultivo da linguagem, conceitos e  
consciência ética e estética característica dos anos 1970 [...]  
De Fortaleza a Santa Catarina, de Brasília a Vitória, passando por Porto Alegre,  
Juiz de Fora, Curitiba, Goiânia, Campo Grande (MS) e João Pessoa, as galerias, centros  
culturais, muros, praças, etc., foram literalmente ocupados pelos artistas identificados  
com a Geração 80. O mercado de arte, embalado pela oferta em grande quantidade  
de obras, sobretudo pinturas, estimulava um público que naquele momento ainda  
desfrutava dos resquícios dos Planos Cruzados I e II. Havia, naquele período, uma  
dupla euforia, quer pelo aparecimento de novos artistas quer pelo aumento da  
demanda de obras de arte.  
No início de 1984, o terreno para o grande salto do mercado já estava  
devidamente pavimentado. Convocados para fazerem parte do processo, animadores  
culturais e dirigentes da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage dariam a partida  
para a realização do mais ambicioso projeto da década nas artes plásticas: reunir no  
antigo palacete da rua Jardim Botânico o maior número possível de artistas,  
preferencialmente, mas não apenas ex-alunos da EAV, oficializando desse modo o  
caráter paradigmático emergencial da estética pós-modernista no país. Assim, em  
junho daquele ano os portões do vetusto palacete do Parque Lage foram abertos para  
a mostra “Como vai você, Geração 80? ” Reunindo mais de cem expositores de  
diversos pontos do país e cerca de três centenas de obras, o evento buscava dar conta  
daquilo que os promotores/organizadores generalizavam como sendo um  
mapeamento da produção artística daquele período. Coube ao então diretor da EAV,  
Marcus de Lontra Costa, a agitação cultural e política na difusão do evento, na  
convocação dos artistas, dos colunistas/críticos da mídia, na tarefa de intermediar o  
mercado. Coube ainda a ele praticamente todas as ações decorrentes daquela  
megaexposição tal como levar o modelo do evento para outras praças, privilegiando  
a sua interiorização nas ações regionalizadas14.  
14 Cabe o registro que foi certamente da insistência de Lontra Costa junto a colecionadores e galeristas  
em várias capitais brasileiras que dezenas de artistas do interior do país despontaram no cenário  
nacional ao longo daquela década. Devido a esse esforço do animador cultural e dirigente público que  
muito das insatisfações e inconformidades existentes entre artistas com os clichês publicitários que  
promoviam a G80 ficou diluída.  
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A inédita presença de um grande público para um evento de artes plásticas, em  
sua maioria formado de jovens, levaria nacionalmente as editorias de cultura da  
imprensa a repercutirem massivamente o evento tanto como um modismo de época,  
um entretenimento cultural, como também uma espécie de vitrine de um bazar a  
vender quinquilharias culturais. Dessa forma, as matérias dos colunistas que aqueciam  
o meio artístico exploravam a ideia de que o evento de lançamento da G80 revelava  
uma visão de mundo fundada na alegria proporcionada pela liberdade de mercado,  
provocando, no limite, o deslocamento do télos político da luta de classes para o télos  
pós-modernista, a um só tempo libertário e liberal. Traziam em seu conteúdo uma  
versão local, por assim dizer masterizada das ideias do crítico e teórico italiano  
conservador Achille Bonito Oliva (1982, apud REIS, 1994, p. 89) aqui anteriormente  
citado.  
Abordando não apenas o evento em si, mas o que compreendia como a  
totalidade das circunstâncias do aparecimento da G80 na condição pós-moderna, o  
jornalista Roberto Pontual autor do opúsculo Explode Geração! (1984),  
encomendado pelo mercado de arte e pelos curadores do evento no Parque Lage –  
procura situá-la na confluência entre o momento político do país e o surgimento no  
âmbito internacional do que ele chamava de “terceira etapa pós-modernista”:  
Se no âmbito de dentro a Geração 80 cumpre o papel histórico do  
filho positivo que nega com todas as suas forças o pai para firmar-se  
com individualidade própria, exorcizando os erros percebidos na  
figura paterna, no do fora ela apreende o espírito novamente  
impulsivo e liberatório do pós-modernismo na sua terceira e talvez  
derradeira etapa (1984, p. 49).  
Adiante, Pontual passa a considerar a G80 na perspectiva da dualidade  
crise/abertura, acrescentando que a sua nitidez somente é possível a partir deste foco.  
Nesse sentido, ele a define pelos paralelismos de gestos e de gostos, através dos quais  
se pode identificar o seu estilo, que, segundo o jornalista, se tece na pluralidade dos  
estilos em surgimento. Muito embora o texto de Pontual pareça deliberadamente  
construído com a finalidade de confundir o leitor quanto ao sentido do contraditório  
da G80 em relação às gerações de artistas precedentes, conscientemente politizadas,  
na verdade o que o jornalista busca é justificar sinceramente o Zeitgeist da época, a  
um só tempo distante e desinteressado de tudo e de todos. Assim ele dispõe, a série  
de nadas que trama a G80:  
[...] nada de frieza, nada de olimpismo, nada de altas teorias, nada de  
conceituação abusiva, nada de fotografismo, nada de isolamento,  
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nada de hegemonia entre cariocas e paulistas, nada de patrulhismos,  
nada de porra-louquice. Nada de exclusões ou de proibições (1984,  
p. 54)  
No entanto, ao decodificar cada um dos nadas por ele atribuídos à nova geração,  
o jornalista colunista de arte fornecia algumas pistas sobre o sentido da sua manobra,  
que era, nada mais do que a afirmação da originalidade das concepções ético-estéticas  
pós-modernistas que se opunham ao que ele chamava de “autoritarismo conceitual”  
das gerações precedentes, a saber:  
A situação foi mudando aos poucos de figura na medida em que à  
repressão veio somar-se ao `milagre'. Dessa ambiguidade, sofreram  
os quase filhos que se lançaram no experimentalismo dos meados da  
década de 70. Eram seguramente contra o estado de coisas vigente,  
mas, para contrariá-lo com seus próprios meios, não encontraram  
outra tática senão a da estocada indireta, (...). Cortado e frustrado o  
grito na rua, voltaram para o interior do museu. Ali, sob a sombra  
aterradora do pai, reuniram forças para simbolicamente negá-lo.  
Negaram-no, até onde puderam, pela arma exclusiva e fracionada da  
razão. A emoção tivera de ser evacuada (Idem, idem, p. 49)  
A exemplo de Roberto Pontual, o crítico e também colunista da imprensa  
Frederico de Morais, avaliaria a trajetória da G80 da seguinte forma:  
Depois de uma década de arte assexuada, hermética e fria, que tinha  
sua correspondência em um discurso crítico que de certo modo  
introjetara o autoritarismo da vida brasileira, e em face, portanto, da  
própria evolução política interna - anistia, eleições para governadores  
em 1982, campanha das Diretas-já, trazendo o povo de volta às ruas  
e de novas tendências da arte internacional Transvanguarda,  
Neoexpressionismo, Nova Imagem, Pattern , a expectativa em relação  
à nova geração de artistas era muito grande (MORAIS, 1992, p. 30).  
Seguindo os passos da mostra do Parque Lage, vários outros eventos artísticos  
ocorreriam em todo o país ampliando a publicidade afirmativa de todo o aparato  
ideológico do rótulo G80. Assim, em 1985, por ocasião da XVIII Bienal de São Paulo,  
ocorreria a consagração definitiva do processo de mudança teleológica no quadro  
geral da cultura, em especial nas artes plásticas. Organizada de modo a não esconder  
o caráter estratégico do evento para fins mercadológicos, a Bienal teve dois objetivos  
bem delineados: projetar a produção dos jornalistas colunistas de arte nos centros  
mundiais anteriormente mencionados e aproximar a produção da G80 da arte  
estrangeira. Desse ponto de vista, a exemplo do que se passava no exterior, o télos  
ético-estético proposto para a Bienal trazia um duplo movimento tático: de um lado  
os agentes ideológicos do processo buscavam primordialmente apagar o passado  
modernista mediante a condenação do que chamavam de darwinismo linguístico, por  
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outro lado buscavam afirmar o nomadismo estilístico como avalista da liberdade  
artística impondo o fator disjuntivo como télos ético-estético da arte pós-moderna15.  
Operando na forma de um marketing para o que viria a seguir no circuito artístico  
o evento foi um sucesso de público, todavia, ao ultrapassar a fronteira daquele circuito,  
agregaria valor no mercado de bens simbólicos se tornando um importante ativo para  
a elite burguesa do país. De resto, se o consumo ocioso e conspícuo do controvertido  
rótulo denominado certa feita de “vocábulo feliz” (LEIRNER, 1992, pp. 108-109)  
tornou possível ao público a identificação do grande contingente de jovens artistas  
emergentes no ambiente cultural naquela década, por outro lado, mediatamente, levou  
a produção artística do período à sua completa homogeneização diluindo o conteúdo  
ético-estético das obras. Uma década depois, em meados de 1994, a despeito do  
refluxo do mercado mostrar-se implacável com os artistas produtores, rótulo G80  
manteve-se íntegro ignorando a produção artística subsequente. Desse modo, ele  
alcançaria o novo milênio com a mesma superficialidade e “virgindade com que  
emergiu do caos dos anos 70” (Idem, idem). Em outras palavras, como pauta  
permanente para assuntos rentáveis, a rótulo G80 ainda hoje serve de link para as  
matérias de moda, de estilo, de decoração, de comportamento jovem, de ecologia, de  
saúde, de corpo, de sexualidade... e até de arte.  
Não obstante o sucesso comercial da simbologia, alguns setores da imprensa  
não poupariam os artistas e o próprio jornalismo/colunismo de arte de severas críticas.  
Exemplo disso foi o comentário na Folha de São Paulo do jornalista Marcos Augusto  
Gonçalves. Em 1985, comentando a XVIII Bienal, Gonçalves deixaria claro que a  
estratégia mercadológica adotada pela imprensa e o mercado corria o risco de não  
passar de palha para um fogo ligeiro promovido por uma reciclagem do circuito das  
artes plásticas [que vinha] a reboque da onda neoexpressionista”. Na mesma matéria  
o jornalista ironizava o fato de que “qualquer um que pegar um pincel e esparramar  
tinta numa tela” seria legitimado como um jovem talento “para promover o  
reabastecimento do catálogo de descobertas do mercado”. E conclui dizendo que “[...]  
Não é, portanto, de se espantar, que rapidamente, a “nova pintura”, através da aura  
consagratória de uma Bienal, já esteja sendo enfiada na “história da arte e tornando-  
15  
Entenda-se por esse absurdo uma visão que, sobrepondo camadas estilísticas desreferenciadas do  
passado, negava não apenas as tendências artísticas modernistas como toda a história da arte. Sobre  
esse assunto ver OLIVA (1982) e também TOMASSONI (1986).  
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Da crítica de arte na imprensa brasileira  
se parte de uma “tradição”16. Já próximo do final da década de 1980, alguns grupos  
de artistas contrariados com o que chamavam de pensamento único da crítica artística,  
criticavam em publicações alternativas a ausência no país de uma produção teórica  
consistente, a negligência e os interesses obscuros do colunismo de arte17. O  
aparecimento dessas poucas vozes dissonantes levaria as editorias de cultura da  
imprensa a agir profilaticamente, quer as isolando quer levando críticos de arte a  
publicar em suas páginas matérias hostis aos artistas.  
Chaves para compreender o negacionismo disjuntivo da crítica de arte  
Há tempos o crítico de arte Mário Pedrosa ressaltava que “a ausência fatal,  
irreparável, dos padrões preexistentes (na arte da antiguidade) indica que a arte  
perdeu suas raízes culturais, e foi subordinada a outros padrões necessariamente  
instáveis e aleatórios como os dominantes no mercado consumidor” (PEDROSA, 1977).  
Junte-se a esse aspecto as exigências de globalização da economia apresentadas pelo  
capitalismo tardio, e teremos o padrão arte adotado pela mídia na atualidade: um  
apêndice do sistema da moda.  
Hoje é impossível deixar de reconhecer que os meios de comunicação se  
tornaram a peça fundamental na estratégia global de difusão e circulação de  
mercadorias, e não raramente o colunista de arte se vê influenciado por esse poder  
hegemônico, o que o leva a tomar para si ares de um avatar capaz de metamorfosear,  
como Midas, o opaco em resplandecente. Espelhando-se mutuamente, jornalistas e  
publicitários compõem o perfil dos meios de comunicação, e se sentem responsáveis  
pela circulação de ideias e conceitos produzidos pela indústria cultural. Assim é  
possível verificar que a demanda por mercadorias produzidas por esse poderoso setor  
da economia depende inevitavelmente do papel exercido pela mídia na estimulação  
do consumo, criando modismos e tornando outros obsoletos. Na cultura da  
obsolescência toda operação de estimulação do consumo de uma nova moda não pode  
dispensar a eficácia dos meios de comunicação. Contudo, dada a sua natureza  
artesanal e o que decorre daí em termos de sua produção conceitual, as artes plásticas  
resistem às investidas menos sutis e menos complexas que grande parte dos  
repórteres e do chamado colunismo especializado insistem em fazer sobre o seu  
16 Cf. Folha de São Paulo, Caderno MAIS, São Paulo, 1985.  
17 Sobre esse assunto ver BASBAUM (1988).  
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campo específico. Despreparados intelectualmente e revestidos por uma grossa  
camada de pragmatismo, esses jornalistas e colunistas imersos numa proverbial  
insensibilidade ignoram os aspectos singulares da atividade artística, os aspectos  
reveladores da potencialidade do artista no processo criador, e as limitações impostas  
pelo ambiente cultural na sua formação, quer seja ela oriunda da academia ou não. É  
sob esse ângulo do problema que se acentuam os diversos níveis de dependência da  
atividade da crítica de arte no Brasil, nos quais estão incluídas as demandas específicas  
do seu reduzido mercado e também as injunções de natureza sociopolítico-econômica  
mais gerais. Com a G80 esses problemas se acentuaram, elevando a tensão ético-  
estético ao seu limite no horizonte cultural do país. O anátema do conformismo que a  
mídia e a crítica impuseram aos jovens artistas emergentes no circuito na década de  
1980, certamente serviu para que, no plano institucional, se revelasse a posição  
hegemônica da ideologia anti-historicista e anti-intelectualista, permissiva e  
desmobilizadora que permeia as oligarquias intelectuais que atuam no meio de arte  
do país.  
Sem dúvida, para os artistas uma das mais constantes mistificações criadas pela  
mídia e pela crítica em torno da G80 foi a exacerbação de sua juventude, de seu  
hedonismo e de seu profissionalismo liberal. Nesse sentido, há pelo menos dois  
aspectos a serem considerados em torno da estratégia mercadológica que articulava  
tais adjetivações: primeiramente o próprio fato de os textos que criticavam,  
resenhavam, comentavam ou simplesmente apresentavam a G80 se prestarem ao uso  
adjetivado de palavras substantivas; e em segundo lugar, a associação dos mesmos  
com a criação de um tipo de comportamento que se pretendia paradigmático dos  
jovens dos anos 1980 como um todo, isto é, individualista, anti-intelectual, subjetivo,  
anti-historicista, desinteressado das questões políticas e sociais mais gerais.  
Para os grandes conglomerados de mídia, salvo esporádicas exceções, a oferta  
ao público de uma visão de mundo fundada num oba-oba alienante tem como  
finalidade manter e reciclar o Zeitgeist otimista, acrítico e, por vezes, francamente  
nostálgico sobre os modismos culturais emergentes. A notícia entretenimento  
veiculada pela intelligentsia agenciada pela mídia busca na consagração de um rótulo  
libertário alienar o interesse pela arte que verdadeiramente importa, conforme pensava  
o esteta húngaro György Lukács (1967). A rigor, a procura da arte como  
“autoconsciência da humanidade” (Idem), i.e, uma arte com organicidade social, jamais  
esteve no radar dos conglomerados midiáticos. Decorre daí que trago comigo a  
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desconfiança de que não importando se transgressor ou aderente ao establishment,  
todos os movimentos culturais incensados pelos conglomerados de mídia da  
contracultura beatnik, camp, hippie e punk aos expoentes da gentrificação pós-  
modernista, os estilosos yuppies, grunges e hipsters fazem parte de uma contradição  
involuntária por se encontrarem na origem daquilo que há tempos Walter Benjamin  
chamava de “efeito de distração” (1985, pp. 165-176). Ora, se esse fato é  
demonstrativo da dimensão de alienação coletiva acerca das formas de controle da  
informação e da cultura exercido pelos conglomerados de mídia e de entretenimento,  
no Brasil trazemos historicamente o agravante da aculturação arcaica da intelligentsia  
que atua diretamente na mídia como formadora de opinião. Retomando aqui o que foi  
dito anteriormente, se em todo o mundo os conglomerados de mídia adotam  
procedimentos alienantes com o claro objetivo mercadológico de reforçar modas  
fazendo parte de um contexto de disputa acirrado, entre nós a dimensão do problema  
vai além, dado que os meios de comunicação com frequência assumem o compromisso  
ideológico disjuntivo de deixar lacunas de compreensão da dinâmica cultural do país”  
com a exclusiva finalidade de colocar determinadas décadas “fora da história”  
(PEREIRA, 1986, p. 175).  
Nas artes plásticas, talvez um pouco mais do que nas demais manifestações  
artístico-culturais, repetem-se as críticas dos artistas à falta de preparo da crítica de  
arte no Brasil. De um modo geral, as críticas procedem do fato de que a atividade da  
crítica de artes plástica se confunde com a atividade jornalística, sendo, portanto,  
subalterna a editorias de cultura genéricas tendo como profissionais gente pouco  
familiarizada com o sentido histórico da arte18. Cabe observar, no entanto, que esse  
não é um problema genuinamente nacional. Há tempos o crítico e historiador da arte  
Lionello Venturi reclamava do costume francês de “chamar-se críticos de arte àqueles  
que escrevem nos jornais sobre a atualidade das exposições, e historiadores da arte  
aos que escrevem sobre a arte antiga” (1984, pp. 27-28 e 197-198). Costume que,  
segundo ele, traz algumas poucas vantagens e inúmeras desvantagens. Se a prática  
jornalística de generalizar as condições da arte contemporânea e os prognósticos  
sobre tendências do gosto, traz a vantagem de procurar e encontrar “a consciência da  
arte”, por outro lado, a própria característica fragmentária do veículo traz o  
18 De resto, é notório que a intelligentsia (críticos/colunistas e jornalistas) que realiza tal exercício, o faz  
na patética presunção de que o desinteresse e/ou ignorância popular em relação as artes plásticas se  
deve a uma anomalia genética.  
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inconveniente da improvisação, “da falta de informação histórica e estética suficiente”  
(Idem, ibidem). Contudo, conforme veremos em seguida, em que pese esses  
argumentos disponham sobre a realidade dos embates entre artistas, críticos e  
colunistas, de fato eles alcançam apenas uma parte do problema geral da lógica  
cultural do pós-modernismo.  
Sem embargo, desde o surgimento da ideia de uma condição pós-moderna19,  
não faltaram argumentos variados de tolerância alegando que tal condição trouxe  
benefícios na forma de um alívio ao promover o “apagamento dos traços da produção  
da mercadoria produzida” (JAMESON, 1996, p. 318). No caso das artes, um produto  
assinado, portanto, com um sujeito presente no artefato, a tolerância se estende para  
um tipo de argumento apelativo ao associar o interesse pelas artes às elites  
intelectuais, como um passatempo típico do status de um reduzido grupo excludente  
ao trabalhador comum. Não obstante, nota Jameson (1996), ainda que o capitalismo  
na sua fase tardia tenha aburguesado esse trabalhador travestindo-o num consumidor  
conspícuo, não menos verdadeiro é a incapacidade estrutural do sistema capital em  
realizar os ideais de igualdade social, incluindo a sua formação estético-cultural (Idem,  
idem). Na base disso está, conforme indica Fredric Jameson, uma visão populista  
demagógica, na qual prevalece uma “verdadeira subalternidade anti-intelectual no  
sentido gramsciano, um sentimento de inferioridade em face do outro cultural” (1996,  
p. 319). A demagogia populista dos defensores da reificação pós-moderna tem no  
mercado de comunicação e entretenimento a sua principal fonte de reprodução do  
anti-intelectualismo. Nesse contexto, Beatriz Sarlo (2006) chama atenção para o fato  
de que “o mercado ganha relevo e corteja a juventude, depois de instituí-la como  
protagonista da maioria dos seus mitos”, sendo que em contrapartida “[...] os jovens  
encontram no mercado de mercadorias e bens simbólicos um depósito de objetos e  
discursos fast preparados especialmente”. E conclui: “o mercado promete uma forma  
de ideal de liberdade e, na sua contraface, uma garantia de exclusão” (Idem, pp. 40-  
41).  
Dentre os apontamentos extraídos para revisão do ensaio publicado em 2004,  
não consta a questão da existência de um nexo causal entre as categorias libertarismo  
e liberalismo, ambas movidas por um impulso populista a um só tempo anti-historicista  
19 Ver ANDERSON (1999).  
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e anti-intelectual, porém anteriormente trabalhadas de forma isolada. Refletindo sobre  
os desdobramentos culturais das últimas décadas, descobri que aquelas categorias  
engendravam o tal nexo causal de origem o qual consumou não apenas o télos ético-  
estético dominante nas artes plásticas, mas, também, a totalidade teleológica cultural  
do presente. De fato, expandido para todo o ambiente cultural do país, o conteúdo  
tóxico do relação libertarismo-liberalismo acabaria contaminando a esfera política da  
sociabilidade mediante toda sorte de apelos absurdos tais como negacionismos  
variados, atavismos morais diversos, clamores libertários misturados com arroubos  
autoritários, liberalismo econômico adotado como programa de Estado, etc. Não por  
acaso o destampatório de irracionalidade ocorrido nos últimos dez anos atingiria,  
principalmente, as esferas científica, artística e cultural do país constituindo o que  
denomino de anarcofascismo. Do ponto de vista ontológico crítico, o anarcofascismo  
se trata de uma forma de dominação engendrada pelas elites capitalistas a partir do  
reconhecimento da sua própria incapacidade de suportar e/ou de manter as  
“liberdades democráticas [como] arquétipo da organização do Estado e regime de  
governo” (LUKÁCS, 1968, p. 623). A exemplo do trumpismo estadunidense, no Brasil,  
a partir de 2013, banqueiros, empresários e políticos de extrema direita, vale dizer  
com o apoio das forças armadas e policiais, movimentos liberais e a lucrativa indústria  
da fé, passariam a destampar o anarcofascismo incubado na sociabilidade brasileira.  
Muito embora o país tenha resistido democraticamente a essa forma de irracionalismo  
recauchutado, chegando ao ponto de revertê-lo parcialmente, sobram dúvidas sobre  
o tempo de duração disso. Sem muito esforço é possível notar que somente  
aparentemente o bestialógico da extrema direita tenha renunciado à ação, dado que,  
em realidade, ainda que a retórica anarcofascista prime “pela ausência de conceitos,  
[...] e a negação das leis reais, o que para ela conta é o  
“[...] apego aos aparentes nexos revelados diretamente, à margem dos  
conceitos, pela superfície imediata da realidade econômica. Estamos,  
portanto, diante de uma nova forma de irracionalismo, envolto em  
roupas aparentemente normais (Idem, idem, p. 628).  
Conclusão  
Decerto que os argumentos aqui apresentados em oposição ao irracionalismo  
pós-moderno não significam uma defesa do suposto racionalismo moderno, que nada  
mais é do que a mais vazia de todas as categorias culturais, como disse certa feita  
Perry Anderson (1999). Por conseguinte, parece-me evidente que, sob o capitalismo,  
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uma cultura orientada pela coisificação das relações sociais e daí para a decadência  
civilizacional, as apologéticas do modernismo e pós-modernismo se mostram  
indefensáveis. Na verdade, sob o capitalismo, qualquer que seja uma escolha desse  
tipo ela inevitavelmente tomará a forma de um espectro múltiplo e contraditório, a  
saber positivista, niilista e também religioso. Na arte, em especial no cinema e na  
literatura, tal espectro é frequentemente confundido pela crítica e muitos dos próprios  
artistas como busca da realidade, algo situado entre uma postura cínica e hipócrita,  
conforme lemos e assistimos, respectivamente, no livro e no filme Ruído branco  
(DELILO, 1985; BAUNBACH, 2023), ou nas pinturas transvanguardistas como as de  
Sandro Chia e Enzo Cuchi e de boa parte da G80.  
Por outro lado, a se considerar verdadeiro que somente o mundo que nos é  
possível compreender como tal é que é real, conforme disse Marx (apud FISCHER,  
1983), a pergunta sobre se é possível haver perspectivas para a superação dos  
impulsos que nos conduzem para a irrealidade cotidiana, alienada e cada vez mais  
desumanizada, talvez possa ser respondida mediante um “mapeamento cognitivo da  
totalidade” (JAMESON, 1996, pp. 396-413), algo que a apreciação da prática artística  
pode proporcionar. De modo a não deixar perdida a indicação desse mapeamento,  
recomendo, dentre outros muitos mais, os métodos adotados pelo escritor britânico  
China Miéville na novela policial/ficção científica A cidade e a cidade (2009), pelo  
cineasta pernambucano Kléber Mendonça Filho no filme Aquarius (2016), e pelo artista  
plástico fluminense Angelo Venosa em suas esculturas, em especial na A baleia (1988),  
hoje instalada na praia do Leme, no Rio de Janeiro. Concluo aqui reforçando o que  
venho dizendo há muito tempo a propósito da importância da educação, em especial  
da educação estética: se é verdade que ninguém está imune à influência do capitalismo  
global, cabe ao campo progressista resistir mantendo em elevado grau de consciência  
social a luta por uma ética-estética genuinamente humana.  
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Nota de referência de imagens  
Devido a exigência de pagamento de direitos autorais não foi possível exibir as  
imagens dos trabalhos dos artistas, seguindo uma relação dos sítios autorizados  
para tanto.  
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Da crítica de arte na imprensa brasileira  
MATTOS, A.  
ROMAGNOLO, S.  
Como citar:  
REIS, Ronaldo Rosas. Da crítica de arte na imprensa brasileira: Revendo e atualizando  
a arte e a crítica nos anos 1980. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp. 20-43; jul-  
dez, 2023.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 20-43 - jul-dez, 2023| 43  
nova fase  
d o s s i ê  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.687  
Estética, violência e solidariedade1  
Juventude faccionada no proibidão  
Aesthetics, violence and solidarity  
Youth factionalized in the “proibidão”  
Luiz Eduardo Lopes da Silva*  
Ronaldo Rosas Reis**  
Resumo: O artigo busca apreender como se deu  
e de certo modo ainda se dá o engajamento  
sociocultural da juventude no universo das  
facções criminosas da periferia da cidade de São  
Luiz, no Estado do Maranhão. Volta-se para a  
compreensão da formação da sensibilidade dos  
jovens imersos no gênero musical do funk  
também conhecido como proibidão, veículo de  
Abstract: The article seeks to understand how  
the sociocultural engagement of youth in the  
universe of criminal factions on the outskirts of  
the city of São Luiz, in State of Maranhão, took  
place and, in a way, still takes place. It focuses  
on understanding the formation of the  
sensitivity of young people immersed in the  
funk musical genre also known as prohibition, a  
vehicle for aesthetic awareness and community  
awareness, as a functional model of education  
of the senses and community awareness.  
sensibilização estética  
e
conscientização  
comunitária, como um modelo funcional de  
educação dos sentidos e conscientização  
comunitária  
Palavras-chave: funk, juventude periférica,  
violência e solidariedade.  
Keywords: funk, suburban youth, violence and  
solidarity.  
A música popular, no Brasil, é uma produção discursiva muito forte e  
presente; talvez a mais forte em um país marcado pelo analfabetismo.  
A música popular aqui assumiu esta função de produzir sentido para  
a vida em sociedade, para as nossas diferenças, para as misérias e  
riquezas humanas desse país (KEHL, 2004, p. 142).  
Contexto  
O estudo que trazemos aqui teve origem numa tese de doutoramento na qual o  
ponto de partida é o exame da expansão nacional das organizações criminosas  
Comando Vermelho (CV/RJ) e Primeiro Comando da Capital (PCC/SP). Nela nos  
detivemos especificamente na gênese das facções criminosas emergentes nos  
1 Artigo baseado na tese de doutoramento Trilha sonora da guerra. Análise das facções maranhenses e  
da formação da sensibilidade da juventude faccionada a partir do proibidão defendida em 2019 no  
PPGE-UFF sob a orientação do Professor Doutor Ronaldo Rosas Reis.  
* Doutor em Educação (UFF). Professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Coordena a Rede  
de Estudos Periféricos (REP) luiz.silva@ufma.br.  
**  
Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com Estudos Pós-  
Doutorais em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires e em Educação pela Universidade Federal de  
Minas Gerais. Professor Titular aposentado da Universidade Federal Fluminense. Pintor e desenhista –  
Instagram @ronaldorosa63 ronaldorosas.uff@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2 jul-dez, 2023  
nova fase  
     
Estética, violência e solidariedade  
presídios maranhenses na primeira década do atual milênio, sendo elas Primeiro  
Comando do Maranhão (PCM), Bonde dos 40 (B40) e Comando Organizado do  
Maranhão (C.O.M). Na tese buscávamos apreender como se deu e de certo modo ainda  
se dá o engajamento sociocultural da juventude pobre da periferia de São Luiz, capital  
do estado do Maranhão, às respectivas facções surgidas nos presídios. No sentido  
dessa busca identificamos no funk, especialmente em sua vertente conhecida como  
proibidão, o principal elo mediador entre os detentos e os jovens da periferia, motivo  
pelo qual um dos pressupostos do presente artigo é de que a música vem sendo  
utilizada processionalmente como veículo de sensibilização estética/conscientização  
comunitária . Isto é, como um modelo funcional de educação dos sentidos (MARX,  
2004) dos jovens faccionados.  
Somado a esse aspecto fenomênico do campo estético, o outro pressuposto  
adotado é o que se revela no campo ético e moral quando a existência opressiva das  
facções maranhenses no cárcere as levou a assumir o duplo papel de, por um lado,  
criar redes de solidariedade e, por outro, de zelar pela regulação dos conflitos internos.  
Para tanto, impondo seus regimes normativos de acordo com valores e regras por elas  
estabelecidas, tomaram para si o monopólio do uso legítimo da força com o bloqueio  
da violência entre os detentos. Alimentados tematicamente pelas letras dos funks, os  
papéis assumidos pelas lideranças e disseminados internamente pelos respectivos  
membros das facções, tal circunstância específica das relações sociais no interior dos  
presídios alcançou as periferias da Grande São Luís, levando a palavra de solidariedade  
e de união como afeto e valor a preencher os roteiros da produção cultural periférica  
onde as pequenas gangues passaram a adotar regras idênticas das facções  
aprisionadas .  
Com a finalidade de auxiliar o leitor a compreender a dimensão estética e  
sociocultural do contexto de violência em que o fenômeno se destacou nacionalmente,  
cabe aqui destacar na forma de parêntese dois aspectos centrais. Primeiramente que  
no proibidão o eu lírico do MC assume o ponto de vista do bandido e toda a sua visão  
2
Na sua origem, o proibidão era simplesmente o então popular gênero musical rap, mais conhecido  
nos bailes das quebradas ou favelas cariocas como funk. Em meados da década de 1990, buscando  
reprimir a violência na cidade, o Estado proibiu a realização das festas, o que evidentemente revoltou  
os frequentadores que resistiram criando os bailes proibidões, encurtando dessa forma o caminho para  
que os DJs adotassem a denominação para o gênero musical.  
3 Cabe ressaltar, no entanto, que por mais amplas que sejam tais regras não contemplam os indivíduos  
socialmente estigmatizados como os estupradores, os delatores, os pedófilos etc.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 44-70 - jul-dez, 2023| 45  
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Luiz Eduardo Lopes da Silva; Ronaldo Rosas Reis  
de mundo. A crueza de suas letras pode impressionar os não iniciados. O batidão  
quase sempre acelerado é criativamente mixado com rajadas de fuzis e pistolas. Não  
é rara a presença de trechos de notícias jornalísticas que são colocadas de maneira  
irônica, normalmente no início dos funks, ora para debochar do discurso corporativo  
midiático em torno do mundo do crime, ora para “documentar” feitos dos quais se  
orgulham. Em segundo lugar que não é por outro motivo que sendo os sujeitos que  
compõem a facção apenas uma fração da juventude pobre periférica, que a pacificação  
entre eles significa ao mesmo tempo guerra, não com todos que estão fora das facções,  
mas com todos aqueles que negam ou obstaculizam a consolidação do poder delas.  
Assim, no universo das facções, a paz é construída em uma escala enquanto a guerra  
se recoloca em outra, por isso a guerra se estabelece enquanto fator constitutivo  
permanente dessas organizações, seja a guerra contra tudo o que venha a ser  
apreendido como o Sistema (Estado), seja a guerra contra o Alemão (inimigo de outra  
facção).  
O proibidão, dessa maneira, se constitui como veículo de socialização de  
experiências dessas organizações coletivas, o que no mundo do crime (FELTRAN,  
2008; 2011) representa a encarnação de “tradições, sistemas de valores, ideias e  
formas institucionais” (THOMPSON, 1987, p. 10) dessa fração de classe. Dada essas  
circunstâncias, temos em conta que o proibidão é, conforme dissemos antes, o elo  
mediador de experiências entendida nos termos thompsonianos instrumentalizado por  
uma fração da juventude periférica atingida por políticas estatais de encarceramento e  
extermínio. Tais experiências dessa juventude veiculam nas letras o seu próprio  
cotidiano organizado em torno de uma luta por ascensão social se conectando através  
de processos violentos a mercados ilegais. Nesse sentido, o proibidão captura numa  
forma estética a estrutura de sentimento (WILLIAMS, 1965; 1979; 2013) da luta dessa  
fração de classe internamente (entre as facções) e também contra o Sistema. Esses  
sujeitos se organizam forjando suas próprias formas institucionais de regulação da  
vida social produzindo uma conexão inédita entre a cadeia e a favela.  
Se numa primeira leitura, o proibidão aparece imediatamente apenas como uma  
representação apologética da violência, o exame aprofundado de mais de mil e  
quinhentos proibidões produzidos em todas as regiões do país ao longo dos quatro  
anos da pesquisa, levou-nos a perceber a riqueza de um universo no qual a violência  
que aparece na superfície dissimula uma teia complexa de afetos e relações que ficam  
submersos e que se articulam entre si contraditoriamente. O proibidão ao passo que  
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sintetiza símbolos de identidades coletivas, representando relações e papéis sociais  
no mundo do crime, também engendra novas relações sociais, ajudando a transformar  
aquele universo. Afinal,  
O funk pode ser compreendido como um meio de comunicação  
popular com grande influência sobre a juventude pobre. Expressando  
realidades múltiplas, servindo como diversão, transmitindo  
mensagens e, sobretudo, transformando em registro artístico a  
linguagem da favela, cheia de gírias e sentidos diversos da língua culta  
[...] Num contexto no qual cada vez mais as favelas são guetificadas  
por uma política de (in)segurança pública que é marcada pela  
criminalização da pobreza, o funk ganha uma importância  
comunicacional ainda maior, espécie de “jornal popular”, no dizer de  
MC. Catra (FACINA; LOPES, 2012, p. 197).  
Com efeito, para além do ódio e da violência presente na guerra de facções rivais  
representadas nas letras, também estão presentes no proibidão uma série de outras  
temáticas: solidariedade, sensualidade, amor, amizade, luto, crítica social e outros  
tantos temas, como não poderia ser diferente, já que todos são sentimentos universais  
da vida humana. Da mesma forma como está presente o sexismo, a homofobia, o  
bairrismo e o consumismo desenfreado e outras tantas mazelas que assolam nossa  
época e que também são facilmente encontradas nas suas letras. Assim, quando se  
toma um objeto complexo como o funk proibidão para análise, é preciso tomá-lo em  
sua totalidade contraditória, sem pesar a mão para este ou aquele aspecto, e sem  
escorregar nas armadilhas da aparência. Desta forma, ao examinar o funk proibidão,  
mesmo quando tomamos a ótica da guerra de facções, tomamos essa violência  
representada não como faceta única desse complexo fenômeno, mas como locomotiva  
de uma narrativa daquela cuja sobrevivência é uma luta diária de vida e de morte. Esse  
modo de vida (WILLIAMS, 2013), ou modo de luta (THOMPSON, 1987) pela  
sobrevivência (seja no cárcere, na favela ou na vida como um todo), parece ter na  
violência sua centralidade, entretanto, essa luta violenta só ganha sentido à medida  
que se articula com inúmeros outros sentimentos e aspirações. Não sendo a simples  
manifestação de uma irracionalidade bestial, como às vezes se supõe, essa violência,  
resultante de relações sociais marcadas pela desigualdade, é significada e  
ressignificada de diversas maneiras pelos próprios atores sociais desse universo e o  
funk proibidão parece ser o veículo primordial de tal representação para estes setores,  
configurando-se assim como uma fonte privilegiada de análise, afinal a música popular  
pode ser tomada exemplarmente “como sintoma da eficácia de certas formas sociais  
gerais de auto representação” (SOUZA, 2004, p. 41).  
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Antes de concluirmos essa introdução contextualizadora, é importante mencionar  
que a pesquisa que realizamos ao longo de quatro anos levantou e catalogou 120  
títulos musicais que tematizam as facções criminosas e a vida do crime, sendo a maior  
parte deles produzidos no Maranhão (incluindo aqueles feitos no interior dos presídios  
maranhenses), e em segundo lugar os originados nas favelas do Rio de Janeiro4, os  
demais espalhados em outros 12 estados contemplando as 5 regiões do país. Some-  
se a esse trabalho a leitura crítica de uma vasta literatura de textos das ciências sociais  
cujo grau da dificuldade encontrada se deveu basicamente ao esforço de conciliar os  
métodos de abordagem, especialmente da área de antropologia, cujos referenciais  
epistemológicos se chocam frontalmente com os referenciais dominantes em Karl Marx,  
Raymond Willians, Lukács e Edward Thompson. Ainda assim, esses textos continham  
contribuições relevantes para dar conta da complexidade daquilo que chamamos de  
dialética cadeia-favela, que tomou forma no Brasil nos últimos anos com a política  
vigente de encarceramento em massa. Por fim uma breve palavra sobre a organização  
do texto. Com a finalidade de darmos conta das dimensões estética da violência e da  
rede de solidariedade, o artigo está desenvolvido em duas seções temáticas, sendo a  
primeira uma abordagem crítica dos temas musicais mais recorrentes nos proibidões  
e a segunda seção uma exposição igualmente crítica das relações sentimentais neles  
presentes.  
Temas musicais  
A solidariedade interna ao mundo do crime conecta rua e cadeia e, portanto, se  
coloca como um afeto central no âmbito faccional, sem perder de vista a mobilização  
constante para a guerra, que parece ser um sentimento igualmente importante, pois  
como é possível ouvir e sentir nos proibidões, o choque entre inimigos parece ser algo  
permanentemente iminente. Por isso, há no universo do proibidão uma tendência à  
representação da “paz perpétua como uma guerra perpétua”, sentimento da juventude  
faccionada perfeitamente alinhado com as tendências geopolíticas da guerra do nosso  
tempo, nos termos delineados por Paulo Arantes (2007). O desejo da paz alcançada  
mediante a guerra está imiscuído de uma série de outras afetações típicas da  
sociabilidade da juventude faccionada e compõem aquilo que chamamos de estrutura  
4
Todos os funks aqui citados estão disponíveis nos anexos da tese de doutorado depositados no  
repositório  
institucional  
da  
Universidade  
Federal  
Fluminense  
em  
/riuff/handle/1/16215.  
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de sentimento, nos termos categoriais estabelecidos por Raymond Willians (2013). Em  
termos sensíveis, esse estado de guerra permanente se traduz em ódio permanente  
aos inimigos, especialmente aos integrantes de facções rivais e à parte mais visível do  
Sistema: a polícia. De fato, a polícia é tematizada em 29 proibidões dos 120 por nós  
catalogados, representando 24% do total. Em todos estes proibidões a juventude  
faccionada retrata apenas uma relação alternativa à guerra permanente com a polícia:  
a mediação monetária na forma do que eles chamam de arrego. Nos proibidões,  
somente o dinheiro é capaz de frear a violência entre polícia e bandidos, nada mais  
parece capaz de parar esse enfrentamento, nem mesmo a fé cristã. Se o ódio está  
presente quando se trata dos inimigos, quando se trata dos aliados, outros  
sentimentos tomam conta da situação: união, solidariedade, amizade, respeito, entre  
outros. Raramente o amor é citado em relação aos aliados, a única exceção é para os  
amigos que morreram, nem mesmo com as parceiras sexuais, esposas ou namoradas  
o amor costuma ser tematizado. “Amor só de mãe”, esse é um dos ditados mais  
comuns e populares da vida do crime. As mães ocupam um lugar de destaque na  
sociabilidade e nos afetos da juventude faccionada e está presente em 10 proibidões  
catalogados.  
Destacou-se também o lugar que a morte ocupa nessa teia de afetos na estrutura  
de sentimento. A morte, personagem constante nas narrativas dos enfrentamentos  
faccionais, está presente em 39 proibidões, e é significada de diversas maneiras. Para  
as facções a forma de vencer a morte, assombro sempre iminente, reside na garantia  
assegurada reciprocamente entre os companheiros que, caso venham a ser  
assassinados, os irmãos sobreviventes guardam a obrigação de que a morte será  
vingada, ou, como dizem no jargão do crime, a morte será cobrada. A lógica da  
cobrança, que alimenta os ciclos de vingança e contribui para estender ainda mais o  
conflito de facções, aparece como um paliativo para o medo da morte que se faz  
onipresente no mundo do crime, quando cada irmão faccionado passa a ter certeza  
que seu sangue não será derramado em vão, pois seus companheiros irão vingá-lo se  
necessário. A concepção de Deus e da fé cristã está presente em 33 proibidões  
catalogados e normalmente aparece correlata a essa concepção de morte, ela também  
aparece articulada à ética e ao proceder do crime (tema abordado em 44 proibidões),  
que demarca esse nova postura ético-política no mundo do crime representada pelas  
facções.  
Ao vivenciar situações de opressão extrema nas cadeias, essa juventude  
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periférica impulsionada pelo encarceramento massivo presente desde o início dos anos  
1990, pôde “perceber a si mesma enquanto classe” (THOMPSON, 2001) e, desde  
então, passou a se objetivar sob a forma organizativa daquilo que ficou popularmente  
conhecido como facção. Essa instituição forjada em anos de massacres carcerários  
toma para si a ascensão social pelas armas, parte indispensável de seu programa  
político, estando presente em 90 proibidões dentre os 120 catalogados. Quando  
observamos a teia de alianças que o PCC e o CV formaram por todo o país, percebemos  
que a instituição facção hoje é uma realidade nacional, deste modo, argumentamos  
que existem aspectos sensíveis correlatos a ela segundo a mesma abrangência  
nacional, que parece alcançar os rincões periféricos mais longevos onde há a presença  
da juventude faccionada. É perceptível ao analisar essas manifestações estéticas, que  
o proibidão deu “forma semântica” à experiência vivida nesse decurso, isto é, conferiu  
a esta experiência um sentido coletivo mediante uma forma de expressão e  
comunicação amplamente compartilhada, afinal a “emergência de uma nova estrutura  
de sentimento pode ser mais bem relacionada ao surgimento de uma classe”  
(WILLIAMS, 2013, p. 155). O proibidão, dessa maneira, se constitui como veículo de  
socialização de experiências dessas organizações coletivas, que no mundo do crime  
(FELTRAN, 2008; 2011) representam a encarnação de “tradições, sistemas de valores,  
ideias e formas institucionais” (THOMPSON, 1987, p. 10) dessa fração de classe.  
Todos os aspectos compõem facetas da estrutura de sentimento: “é tão firme e  
definido como sugere a 'estrutura', mas opera nas partes mais delicadas e menos  
tangíveis de nossa atividade” (WILLIAMS, 1965, p. 64) . Esta estrutura de sentimento  
foi plasmada no proibidão e expressa a sensibilidade da juventude organizada em  
facções. O conceito de Williams (1965; 1979; 2013) é lido sob a luz da descoberta  
marxiana que compreende a natureza histórico-social dos sentidos humanos (MARX,  
2003). Partindo desse quadro de referências teóricas da estética marxista,  
investigaremos como se articulam os sentimentos mobilizados por essa juventude que  
habita as periferias e os presídios e que encontra no proibidão “sua forma semântica  
compartilhada” (WILLIAMS, 2013, p. 64).  
5 Levamos em conta a assertiva de Thompson, que o papel do historiador ao investigar a luta de classes,  
é desvendar os mecanismos desta luta tal qual ela aconteceu, e não “em uma forma comum, geralmente  
leninista”, que tende a analisar a luta de classes “não nos termos que se deu [...] mas nos termos daquilo  
que deveria ter sido” (THOMPSON, 2001, p. 279).  
6 No original: “is structure of feelings: it is as firm and definite as 'structure' suggests, yet it operates in  
the most delicate and least tangible parts of our activity” (WILLIAMS, 1965, p. 64).  
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Sabemos que a expansão do encarceramento em massa e dos mercados ilegais  
conformou os pilares fundamentais dessas instituições. As transformações estruturais,  
políticas e econômicas ocorridas a partir da década de 1990 (ANTUNES, 2006),  
trouxeram consigo uma série de convulsões sociais, amplamente registradas na  
produção cultural periférica. Tais mazelas sociais que se evidenciaram a partir dessa  
época, são, a rigor, imanentes à ordem capitalista, mas sua radicalização contribui para  
aumentar ainda mais suas consequências sociais nefastas. A contenção e  
criminalização dessa enorme massa de trabalhadores pobres excedentes, gerada pelas  
“deslocalizações selvagens” e pela “fragmentação planetária das cadeias produtivas”  
(ARANTES, 2008, p. 8), se espraiou junto às expressões culturais da juventude  
periféricas, que passam a ser criminalizadas, como é o caso do funk:  
A perseguição aos ritmos negros não é uma novidade histórica entre  
nós. Mesmo o samba, hoje largamente aceito e incorporado à cultura  
oficial, foi acusado de incivilizado e ameaçador, sofrendo perseguições  
policiais, preocupando os defensores da ordem pública. No entanto,  
o samba integrou-se a chamada cultura brasileira num momento em  
que as elites nacionais ainda tinham projeto de nação, impossível de  
se concretizar sem se levar em conta, ainda que de forma  
subalternizada e domesticada, o povo e as suas manifestações negras.  
Como uma forma de incluir hierarquizando, cria-se o mito da  
democracia racial. O funk surge como expressão cultural popular em  
outro momento histórico, o da devastação neoliberal, no qual a  
incorporação da classe trabalhadora ao mercado via emprego e as  
ilusões da democracia racial são jogadas água abaixo. Sem nada a  
oferecer como miragem aos subalternizados, a sociedade de mercado  
transforma a maioria da humanidade em potenciais inimigos, em seres  
humanos supérfluos que nem mesmo como exército de reserva de  
mão de obra servem para ela. Nesse contexto, ainda mais numa  
sociedade profundamente desigual como a nossa, conter as classes  
subalternizadas se torna agenda prioritária dos governos, seja por  
intermédio da institucionalização do extermínio, seja por meio da  
criminalização cotidiana dos pobres e suas expressões culturais  
(FACINA; LOPES; 2012, p. 195-196, grifo nosso).  
As transformações estruturais que marcaram a história do país a partir dos anos  
1990 proporcionaram um contexto onde, por um lado, na perspectiva das classes  
dominantes “a incorporação da classe trabalhadora ao mercado via emprego e as  
ilusões da democracia racial são jogadas água abaixo”, restando-lhes promover o  
encarceramento e o extermínio a nível de política pública estatal, por outro lado, no  
seio de parte da juventude periférica, cresce um sentimento correspondente que  
entende que somente por meios violentos e se conectando a mercados ilegais será  
possível romper com a situação de miséria e invisibilidade social a qual foram  
submetidos: “Enquanto o cifrão falar mais alto e fizer parte da autoestima, vai ter uma  
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Faixa de Gaza sempre em uma nova esquina” (MC Orelha, Faixa de Gaza 2). Esse  
choque entre uma classe dominante que promove uma devastação em tempos  
neoliberais e a juventude empobrecida que daí decorre, conforma uma oposição  
centrada no ódio e no apagamento do outro, no qual o único vínculo social entre as  
classes se resume à violência e ao dinheiro, como é a relação entre polícia e mundo  
do crime. O choque dessas posições socialmente opostas, um Estado assassino e  
punitivista contra uma juventude armada e com perspectiva de ascensão social pelo  
crime dividida em rivalidades internas, fabrica a sensibilidade da guerra faccional  
vigente, que o proibidão, por sua vez, captura em suas crônicas de guerra.  
Esta estrutura de sentimento plasmada nos proibidões e que alcança hoje todo  
o território nacional, atravessa as distintas siglas e organizações, mesmo que algumas  
delas se coloquem como rivais. Os proibidões maranhenses, assim como as facções,  
trazem consigo profundas marcas das influências importadas de Rio de Janeiro e de  
São Paulo . Aqui tratamos de aspectos que julgamos chave desse fenômeno e que  
resulta de uma articulação de afetos e relações que se dão cada vez mais a nível  
nacional. Como a guerra plasmada nas letras dos proibidões é modeladora de  
sentimentos e sociabilidades? Como ela mobiliza e remodela afetos e relações? Quais  
elementos estéticos, presentes nos proibidões, são acionados para expressar o  
universo das facções?  
Neste ponto consideramos fundamental a assertiva de Lukács sobre a  
especificidade do reflexo estético da realidade, em sua distinção da ciência. Segundo  
ele, ambos se colocam como reprodução da mesma realidade objetiva, porém a ciência  
é tanto mais elevada e universal quanto mais for fiel à realidade objetiva, à sua lógica  
interna para além de sua aparência fenomênica, isto é, segue no sentido da  
desantropomorfização. A arte, pelo contrário, é tanto mais genuína quanto mais revelar  
em um determinado conteúdo o aspecto humano, o gênero humano, como raiz de sua  
forma, isto é, vai no sentido da antropomorfização, diferentemente da forma científica,  
“a obra de arte, é ao contrário, em primeiro lugar, algo criado pelo homem, que jamais  
pretende ser uma realidade do mesmo modo que é real a realidade objetiva” (LUKÁCS,  
1978, p. 176-177). Recorremos também aos pressupostos de Candido (2000) ao  
analisar a relação da obra de arte e o meio social, articulando apropriadamente os dois  
7 Ver nota 4.  
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momentos da pesquisa, um que visa desvendar o meio social onde as facções  
emergem; e outro que toma o proibidão como expressão sensível desse universo, sem,  
no entanto, encará-los como momentos separados e estanques.  
Por essa razão que os temas aqui selecionados estão presentes na realidade e  
na obra de arte, não os tomando como idênticos, mas compreendendo sua natureza  
articulada. Assim, o papel que a cadeia passava a exercer na realidade nacional a partir  
dos anos 1990 e como suas transformações foram capturadas pela produção cultural  
periférica, desde a desunião à solidariedade nascente, da qual o próprio proibidão  
também contribui para consolidá-la de maneira ativa. Presumimos, portanto, que a  
estrutura de sentimento que aqui abordamos está presente tanto na realidade quanto  
nos proibidões. O proibidão tanto reflete esses aspectos do real, como ele mesmo é  
também produtor dessa estrutura de sentimento ao dar a ela a “forma semântica”, isto  
é, sentido coletivo, nos termos descritos por Williams (1965; 1979; 2013). Desde o  
batidão frenético que dá vazão à enxurrada de emoções que permeiam a vida loka, em  
ritmo acelerado, marcando os passos de uma vida marcada pela velocidade de  
acontecimentos e reviravoltas, à pulsão frenética inerente às atividades criminosas  
típicas desse universo, como assaltos ou troca de tiros com inimigos e com a polícia.  
A adrenalina é sem dúvida uma face marcante da vida do crime.  
Nós é cria da favela  
Estilo neuroticão  
Por isso nosso som é sempre pesadão  
E sempre na atividade até na hora do lazer  
Porque na favela a bala não tem hora pra comer  
(MC Sadrak, 2017)  
No mundo do crime a atmosfera de permanente desconfiança e a constante  
vigilância para não ser surpreendido pelos inimigos produzem o que eles chamam de  
neurose: um comportamento desconfiado e sempre atento a detalhes. Sadrak diz em  
sua letra acima que esse estilo neuroticão das crias da favela explica o som pesadão  
dos proibidões. A música acelerada e agitada reflete uma vida conturbada e permeada  
de conflitos, onde o inimigo está sempre à espreita e contra o qual expressa-se o ódio  
sempre que possível, porém revela ao mesmo tempo, contraditoriamente, uma posição  
convicta de suas escolhas e muitas vezes bem-humorada, que transparece uma postura  
ativa perante a vida. Se seguirmos esta linha de interpretação do estilo neuroticão  
lançada por Sadrak, isto é, que o som pesadão reflete um estado permanente de  
neurose, podemos conjecturar que a superação do funk de 130 batidas por minuto  
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(130 BPM) pelo funk de 150 batidas por minuto (150 BPM) pode significar a  
aceleração, ainda maior, dos embates inerentes a vida do crime na atualidade, podendo  
possivelmente ser uma reverberação estética do recrudescimento do conflito social  
neste âmbito. O funk de 150 BPM surgido recentemente, já se tornou hegemônico no  
proibidão carioca e ainda divide espaço com o funk de 130 BPM no proibidão  
maranhense. O batidão pulsante também estimula à dança e ao uso sensual do corpo,  
dando vazão à pulsão sexual sempre presente no mundo do crime e nas letras dos  
proibidões. No mundo do crime a exaltação ao prazer em forma geral e com mais  
ênfase ao prazer sexual, traduz angústias de uma vida de incertezas, onde os  
indivíduos se veem impelidos a aproveitarem o máximo possível de determinados  
prazeres efêmeros, pois eles podem se tornar impossíveis de maneira abrupta, seja  
pelo encarceramento ou pela morte, ambos sempre iminentes.  
O proibidão mesmo estando presente em todas as regiões do país, absorve  
características próprias em cada região. Se observarmos os proibidões do Bonde do  
Maluco da Bahia, perceberemos claramente a influência de ritmos da música baiana  
neles. No Rio de Janeiro, o estado onde localizamos a maior quantidade de produção  
de proibidões, com dezenas de canais ativos postando funks novos quase diariamente  
com vasta diversidade. A mudança de frequência acima indicada é exemplo notório do  
papel da cidade carioca nesta fecundidade produtiva, pois a predominância atual do  
funk de 150 BPM lá, só começou a ter alguma penetração na produção maranhense a  
partir de 2018. Além disso, funks do Rio de Janeiro como os de MC FL que tematizam  
a facção Terceiro Comando Puro: “Tropa do Raro” e “Medley para o Morro do Macaco”,  
dentre outros, transparecem no seu ritmo uma clara inspiração do samba tipicamente  
carioca. Em São Luís os MCs mais antigos como Sadrak, carregam consigo a influência  
do ritmo Miami Bass, que foi uma verdadeira febre em São Luís, nos 1990 e início dos  
anos 2000. Assim como em proibidões como os de MC BL é possível perceber  
influências do reggae, muito difundido na periferia da Ilha. Os proibidões da Paraíba  
(MC Maguinho, Okaida e MC Descubra, PCC), e do Acre (Bonde dos 13), todos  
catalogados, estão muito mais próximos do rap que do funk.  
Assim vemos que o universo do proibidão é heterogêneo e que mesmo sendo  
considerando uma vertente do funk, ele muitas vezes adentra por outros ritmos e  
outras formas de experimentações da linguagem. Uma das manifestações mais  
interessantes dessa experimentação é a forma improvisada presente em diversos  
proibidões. A oralidade e o improviso são características marcantes da musicalidade  
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periférica ligada à diáspora negra, como o rap, o funk, o samba e até mesmo o reggae  
nos seus primórdios. Presenciamos esta forma criativa de experimentação da  
linguagem em inúmeras ocasiões de batalhas de MCs em São Luís nos últimos anos,  
realizadas, quase sempre no centro da cidade, mas também em diversas periferias da  
Grande São Luís como Maiobão, Cooperativa Habitacional dos Trabalhadores do  
Comércio (Cohatrac), Bairro de Fátima, dentre outras. Tanto o proibidão, como o rap  
especialmente, são ritmos presentes nestas batalhas. Elas se realizam com dois MCs  
rimando de maneira improvisada no meio de uma roda, acompanhado de um bit (uma  
sequência de batida eletrônica) que o acompanha numa caixa de som ao fundo, os MC  
se alternam em forma de duelos, que podem versar sobre temas sorteados na hora,  
como foi o caso de uma batalha que observada em um desses bairros onde foram  
sorteados temas como: corrupção, machismo, cadeia, violência policial, dentre outros.  
Os MCs rimavam sobre estes temas de maneira improvisada, elaborando os versos na  
hora. Ao final de cada batalha o MC mais aplaudido pela plateia classificava para a  
próxima fase até que no fim da noite se coroou um campeão. Nas batalhas de São  
Luís, entretanto, os mais comuns são aqueles que deixam as temáticas para livre  
escolha do MC. Contudo, independente se se trata de batalhas com temáticas livre ou  
com temas sorteados, sempre que os MCs faziam uma rima criativa sobre o proceder  
do mundo do crime eram aplaudidos com bastante ênfase pela plateia, em todas as  
inúmeras ocasiões que tive a oportunidade de presenciar. Numa noite de batalhas  
observadas no Cohatrac, o vencedor foi um MC que não escondia nas suas rimas sua  
vinculação simbólica à sigla B40. Numa batalha decisiva, que lhe credenciou ao título  
de campeão, este MC mandou uma rima advertindo que “se roubar na quebrada vai  
levar tiro na perna” e foi aplaudido por uma plateia em êxtase formada quase na sua  
totalidade por uma juventude periférica que absorve e legitima uma parte significativa  
do “regime normativo” das facções e também se apropria do seu repertório simbólico.  
Ao final de cada batalha o DJ que organizava os duelos conferia os votos da plateia e  
decretava o vencedor, sempre afirmando: “aqui é o certo pelo certo” ou “o certo  
prevalece” e outras expressões típicas da ética e do proceder do mundo do crime.  
A improvisação também é amplamente presente, principalmente, nos proibidões  
da cadeia. Num espaço onde tudo é improvisado, reaproveitado e ressignificado não  
8 Sobretudo no modo como diferentes objetos são improvisados e reaproveitados. Um pedaço de metal  
aquecido por um fio elétrico ligado na tomada pode virar um fogão, uma escova de dente pode virar  
uma faca, um garfo transformado em uma espécie de soco inglês, dentre outas inúmeras possibilidades.  
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poderia deixar de apresentar essa característica em uma de suas principais expressões  
estéticas. Por isso em proibidões do sistema pro mundão, isto é, aqueles gravados nas  
cadeias maranhenses e lançados na internet, como o de MC Bolado, a ausência de um  
bit eletrônico não inviabiliza a produção musical, baldes viram tambores e atabaques  
de onde se retira um som grave, objetos de metal são utilizados para se alcançar o  
som agudo, e o próprio corpo: mãos, peito e boca viram instrumentos que  
complementam a batida. Se o proibidão para os seus críticos se trata de um ritmo  
pobre, pela sua estrutura aparentemente simples de uma rima acompanhada de uma  
batida repetitiva, por esses mesmos motivos, ele se torna um veículo acessível, posto  
que sua aparente simplicidade é o que convida qualquer amante do ritmo a improvisar  
uma rima e uma batida de maneira experimental, seja para descontrair os tediosos  
dias na tranca, como faz MC Bolado e seus companheiros de cela no vídeo supracitado,  
seja para reforçar a união interna do coletivo fazendo ameaça para os inimigos, como  
os proibidões do C.O.M gravados na antiga CDP, ou mesmo para vociferar contra o  
governo e a imprensa, como faz Sadrak. Os motivos que levam alguns a rejeitar o  
proibidão são muitas vezes os mesmos que o fazem ter uma penetração e hegemonia  
em lugares que outros ritmos musicais jamais tiveram. O que para uns é falta ou  
defeito, para outros é potência. Os proibidões das cadeias maranhenses são forjados  
artesanalmente como são os chuços, estoques e facas, como tais, o proibidão se  
mostra igualmente um instrumento de sobrevivência num ambiente adverso, e também  
uma arma de guerra contra os inimigos.  
Se os proibidões da cadeia têm como elemento predominante o improviso e a  
sua fabricação artesanal, nem sempre podemos dizer o mesmo dos proibidões do  
mundão. Os proibidões gravados fora do ambiente precário das celas possuem muito  
mais recursos disponíveis e os DJs se utilizam deles de uma maneira cada vez mais  
criativa. Os primeiros proibidões maranhenses (2013-2015), mesmo aqueles feitos  
fora do mundo prisional apresentavam as mesmas características dos proibidões  
improvisados das prisões. Entretanto, a facção Bonde dos 40 que é a organização  
amplamente hegemônica no proibidão maranhense, uma nova geração de DJs que  
surgiu principalmente a partir de fins de 2017: DJ Diego, DJ Alma, DJ Phelipe Sousa,  
DJ Arley, dentre outros, significou um salto qualitativo na produção dos proibidões da  
Grande São Luís.  
Essa geração de DJs ludovicenses, a exemplo do que ocorre em outros estados  
como o Rio de Janeiro, são responsáveis pela mixagem das músicas e também muitas  
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vezes pelos clipes que as acompanham. Ao contrário dos primeiros proibidões  
maranhenses, que eram feitos com bits improvisados ou mesmo cantados a palo seco,  
e lançados de maneira crua na internet. Atualmente, nos proibidões produzidos por  
essa nova geração de DJs estão presentes mixagens engenhosas onde mesclam-se  
batidas de funk com notícias jornalísticas, rajadas de fuzis e pistolas, trechos de outros  
funks ou trechos de vídeos (ou apenas dos áudios) de invasões a territórios inimigos,  
filmados pelas próprias facções que depois passam a compor os proibidões (ou os  
seus clipes) lançados na internet. Também são utilizados trechos de filmes, como Tropa  
de Elite, Cidade de Deus, entre outros , que são recortados, editados e utilizados nos  
clipes, ou mesmo nas músicas. A técnica de produção desses DJs claramente segue a  
linha daquilo que artistas e revolucionários de uma vanguarda radical francesa,  
organizada na Internacional Situacionista nos anos 1950 e 1960, caracterizou como  
detournement: o uso desviado de determinados elementos artísticos, que são  
instrumentalizados à revelia da sua origem e que passam a ser utilizados para novos  
fins. A técnica do uso desviado é regra no mundo dos proibidões e de maneira geral,  
está bastante presente na linguagem atual dominante na internet. Os MCs e DJs se  
apropriam de imagens, trechos de música, filmes e notícias e dão a elas novo  
significado. Assim no universo do proibidão uma foto do jogador Neymar fazendo um  
4 e um 0 com as mãos para uma foto, provavelmente em referência a uma vitória em  
uma partida de futebol, é recortada por esses DJs e passa a compor um clipe do Bonde  
dos 40. Uma notícia jornalística que fala de um atentado a uma delegacia, feita com o  
intuito de denunciar uma facção, pode ser recortada e colocada para abrir um  
proibidão, sendo celebrada como motivo de orgulho - como acontece no funk de MC  
Rusk. No funk de MC Neurótico, produzido por essa nova geração do proibidão  
maranhense, há um longo trecho que abre o funk com notícias sobre as situações das  
cadeias no Maranhão, em seguida, para contrastar, o DJ emenda com notícias de  
denúncias sobre as regalias concedidas a empresários e políticos presos na chamada  
“Operação Lava a Jato”, alcançando um efeito crítico engenhoso:  
O desvio, ou seja, a reutilização em uma nova unidade de elementos  
artísticos pré-existentes, é uma tendência permanente da vanguarda  
atual, antes e depois da constituição da I.S. As duas leis fundamentais  
do desvio são a perda de importância - atingindo a perda de seu  
significado original - de cada elemento autônomo desviado e a  
organização ao mesmo tempo de outro conjunto significativo que dá  
9 No funk “Partido” do PCC está presente trechos do filme Salve Geral.  
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a cada elemento seu novo significado (Internationnale Situacioniste,  
1959, p. 10, tradução dos autores).  
O uso desviado é de tal maneira difundido no universo dos proibidões que nem  
os funks das facções inimigas escapam. Quando há um funk que alcança grande  
sucesso (como Faixa de Gaza de MC Orelha), ele tende a ser amplamente  
instrumentalizado até mesmo por facções inimigas. Seu ritmo é “roubado” e uma nova  
letra é colocada em cima. Assim, funks famosos como “Todas as quebradas” de MC  
Daleste que tematiza periferias paulistas e apresenta uma vinculação simbólica com o  
PCC, é parodiado por um funk da facção Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte,  
organização inimiga do PCC, substituindo os nomes das quebradas paulistas pelos  
nomes das quebradas potiguares dominadas pelo Sindicato. Não existe propriedade  
privada no proibidão que não seja violada. Os MCs se apropriam de versos um dos  
outros e até mesmo de clipes. Nada disso (até onde pude perceber) costuma ser visto  
negativamente nesse universo, que parece ter claro que essas apropriações criativas  
compõem a sua essência.  
A importância da oralidade no funk, apontada como “jornal das favelas” (FACINA;  
LOPES, 2012), se radicaliza ainda mais nestes proibidões aqui analisados, onde a  
música é repetidamente reivindicada como instrumento de expressão dessa fração de  
classe. Todos estes aspectos que descrevemos atravessam todas as organizações aqui  
analisadas, independentes se rivais ou aliadas. Neste passo, percebo nesta estrutura  
de sentimento a face sensível do fenômeno político que tratamos ao longo deste  
trabalho: a institucionalização do mundo do crime a nível nacional. Volto a afirmar que  
discorrer sobre a abrangência nacional desse fenômeno não é negar os contornos  
singulares que ele ganha em cada região, estado, cidade ou quebrada. Apenas  
salientamos os aspectos sensíveis que são comuns e estão presentes nos proibidões  
das distintas regiões, refletindo a existência de uma fração de classe que está ligada  
por laços organizativos, ideológicos, sensíveis e indentitários, que interage e consolida  
sua coesão cada vez mais a nível nacional, apesar das dissidências internas.  
Outra referência recorrente nos proibidões é a busca pela prosperidade que  
organiza e condiciona afetos, simbolizada pelas roupas de marcas e cordões de ouro,  
carros de luxo , etc. Essa temática que no funk se convencionou chamar de  
10 “Tamo banhado de ouro com várias roupas de marca/ Reserva e Armani, Tommy, essa que é a parada”  
(MC Segal, Bonde dos 40).  
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“ostentação”, está presente em 26 proibidões do nosso levantamento e formata uma  
representação que atrai a juventude periférica. No entanto essa vida de ostentação em  
geral não se confirma na prática: basta assistir aos vídeos que são expostos na internet  
por alguns MCs do Maranhão que são diretamente envolvidos com as facções, os locais  
onde os MCs aparecem cantando seus funks são feitos com paredes sem rebocos, as  
roupas são comuns, não aparecem os carros de luxo e os “quilos de ouro”. O que deixa  
claro que a maioria dos jovens que se engaja prematuramente nas facções no sonho  
de ascensão pelo crime, acaba por servir apenas de mão de obra barata e descartável,  
dado que a maior parte do capital que circula nos mercados ilegais, muito rentáveis  
sem dúvida, não se encerra nas comunidades onde são recrutados os operadores de  
base do varejo do tráfico.  
Esse sonho de ascensão a qualquer custo tem a ver com o lugar que o dinheiro  
passou a ocupar na nossa sociabilidade. Sabemos que o dinheiro é uma invenção  
humana com uma longa trajetória histórica. Acompanhando os florescimentos  
comerciais das grandes cidades, ganhou penetração e importância social em distintos  
modos de produção pré-capitalistas, mas nunca ao ponto de se generalizar como  
representante universal da riqueza, como aconteceria modernamente. Vale lembrar,  
que outrora, naqueles modos de produção, o dinheiro era rejeitado como fator de  
sociabilidade, na medida em que era visto como fonte de corrupção econômica e  
degeneração moral11. Embora presente desde há muito nas relações sociais, o  
desvendamento de sua natureza só se tornou possível com o amadurecimento de um  
tipo específico de relação social de produção, aquela “em que a forma mercadoria é a  
forma geral do produto do trabalho, e, em consequência, a relação dos homens entre  
si como possuidores de mercadorias é a relação social dominante” (MARX, 1989, p.  
68). Na estrutura de sentimento das facções, o poder do dinheiro e das armas se  
entrelaçam e se personificam em poucas figuras de destaques, que por sua história de  
“sucesso”, exercem papel de liderança nesse universo e se tornam quase lendários,  
mesmo que, em regra, suas vidas tenham fins prematuros e violentos. As referências  
a esses personagens marcantes são inúmeras, e sempre se exalta a imagem de uma  
liderança que impõe terror aos inimigos, que tem o respeito das quebradas e que  
protege os moradores, num contexto onde a vida do crime aparece como uma  
11  
“A sociedade antiga denuncia o dinheiro como elemento corrosivo da ordem econômica e moral”  
(MARX, 1989, p. 147).  
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alternativa para a juventude empobrecida, atraída pela promessa de prosperidade e  
de ascensão social pelas armas, que deseja alcançar uma vida de ostentação e riqueza  
que muitas vezes não se confirma, mas que é almejada a qualquer custo. O funk  
proibidão nos revela a estrutura de sentimento dessa juventude, que submetida a uma  
brutal condição de pauperização e segregação social e racial da era neoliberal,  
apresenta nas letras dos proibidões a consciência de que qualquer outra via de  
ascensão econômica para eles está bloqueada ou (no mínimo) extremamente  
dificultada.  
Para Marx, o modo de produção capitalista e suas relações de produção e  
circulação eleva um elemento específico a ser o núcleo e fio condutor na costura do  
tecido social capitalista, este elemento é o dinheiro, ou, dito de maneira mais rigorosa,  
a forma do valor: “entendo por valor o nexo social dominante em uma sociedade  
produtora de mercadorias” (ARANTES, 2007, p. 95) . Muito embora o dinheiro não  
seja uma invenção produzida pelo capitalismo, possuindo uma origem muito anterior,  
apenas sob o modo de produção capitalista ele foi alçado à condição de centro da  
vida social, à condição de objetivo primeiro e último da reprodução social, à qualidade  
de fim em si mesmo, num processo social que abrange os indivíduos das diversas  
classes.  
O modo de vida capitalista na busca pelo dinheiro como fim em si mesmo, e  
neste ponto, a fração da juventude engajada no crime não se difere em nada dos  
valores dominantes. Entretanto, a particularidade (relativa) de sua empreitada -  
amplamente questionada na sociedade - residiria na via das armas e na via do  
extermínio dos inimigos: práticas eleitas como maneiras de alcançar um padrão de vida  
confortável, cuja representação nas letras se dá pelo acesso a roupas de marca, carros  
de luxo, cordões de ouro, armas automáticas e de grosso calibre, etc. Quando o  
dinheiro assume o papel de mercadoria especial que monopoliza a função de medida  
dos valores, das coisas ou dos homens, reduzindo tudo ao “laço do frio interesse”, às  
“duras exigências do ‘pagamento à vista’”, ele absorve a sociabilidade “nas águas  
geladas do cálculo egoísta”, reduzindo tudo a meras relações monetárias, mediante a  
proclamação de “uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio” e ao fazer “da  
12  
Para Marx, no capitalismo o valor apresenta três formas de manifestação: a forma dinheiro, a forma  
capital e a forma mercadoria. No presente artigo nos ocupamos da forma dinheiro por ser ela a mais  
evidente no contexto imediato do presente estudo.  
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dignidade pessoal um simples valor de troca” (MARX; ENGELS, 2005, p. 42). Já  
ressaltamos que para estes jovens, esses bens não são simples itens de consumo, são  
signos que lhes conferem esta “dignidade” enquanto seres humanos. A imagem do  
despossuído, do zé ninguém, do derrotado, é o pesadelo que todos desejam escapar.  
Mais do que ânsia consumista, a posse desses signos, e, portanto, a posse do dinheiro,  
tem a ver com respeito e autoestima, com aceitação pelos seus e com a conquista das  
mulheres. Em suma, para eles significa escapar da invisibilidade social, que a condição  
de jovens pobres e favelados lhes confere. “Enquanto o cifrão falar mais alto e fizer  
parte da autoestima/ vai ter uma faixa de gaza sempre em uma nova esquina” (MC  
Orelha, Faixa de gaza 2).  
Relações sentimentais  
Mãe, perdoa esse filho seu  
Peço perdão por tudo que aconteceu  
Também chorei na despedida  
Não te escutei entrei pra vida bandida  
Ô mãe!  
Desculpe se eu te fiz chorar  
Homem não chora  
Não deu pra aguentar  
E no massacre do cotidiano  
Eu tô numa cela eu e 90 mano  
Avisa pra rapaziada que um dia eu volto  
Nos campos de terra eu boto a pipa no alto  
Eu e a rapaziada tipo: força irmão  
27 de setembro São Cosme e Damião  
Ô mãe!  
Avisa o pai que eu tô bem  
Dá um abraço na minha irmã também  
Avisa lá  
Que eu tô na luta  
Breve, breve eu tô com o meus amigo todo na rua  
Eu olho pro horizonte e só vejo muralha  
É triste de refletir vivendo na carceragem  
Eu tô pedindo perdão para a sociedade  
Mas breve, breve eu tô de volta com a minha liberdade.  
Divulga DJ! Liberdade pro Samuca, faz o “L” geral.  
(MC Menor B, Desculpa mãe)  
Todo o aspecto da banalização da violência presente na sociedade em geral e na  
guerra faccional, representada nas letras analisadas até aqui não impossibilita que  
esteja presente no proibidão uma série de outros afetos que também compõem a  
estrutura de sentimento do mundo do crime. Mostramos a solidariedade e a união  
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circunscrita ao mundo do crime. Anteriormente também abordamos a sensualidade,  
amizade, e a rejeição a uma realidade social deteriorada, a morte abordaremos o luto,  
a memória e a saudade dos entes queridos que tombam na guerra. Estes e outros  
tantos aspectos dessa sensibilidade estão presentes no proibidão e no mundo do  
crime, ainda que, contraditoriamente, conforme temos argumentado, estejam  
presentes também a violência, a indiferença, e o apagamento do outro a que alcança  
a brutalidade da negação aos ritos fúnebres dos inimigos, como veremos a seguir.  
Esse emaranhado de sentimentos contraditórios revela a complexidade de uma  
comunidade humana, como não poderia ser diferente. A caricatura de seres inumanos,  
maníacos sanguinários que não possuem nenhum sentimento a não ser a vontade de  
matar, seria uma abordagem fácil em relação ao mundo do crime e que provavelmente  
encontraria bastante audiência, porém a realidade contraditória das relações humanas  
está longe de ser esgotada por estes esquemas simplistas. Nessa abordagem  
metodológica tomamos um objeto complexo como o funk proibidão para análise, é  
preciso enxergá-lo em sua totalidade contraditória, sem pesar na análise sobre este  
ou aquele aspecto, e sem escorregar nas armadilhas da aparência. Assim, abordaremos  
o amor presente no mundo crime de acordo como ele aparece nos proibidões: na  
forma do amor recíproco entre mãe e filho.  
Utilizamos as palavras: Mãe/família, para catalogarmos quando os proibidões  
fazem referência à família que normalmente aparece sob a imagem quase exclusiva da  
mãe. As mães dos indivíduos que estão no mundo do crime são temas recorrentes nos  
proibidões. As mães, em regra, são retratadas como personagens que despertam  
respeito e admiração, como portadoras de um sofrimento legítimo de ter um filho  
preso ou assassinado: “Mas coração de mãe é difícil de entender/ E esquecer da morte  
de um filho”. No mundo do crime sempre são as mães que choram e velam pelos  
mortos na guerra: “mais uma mãe que tá chorando, comove até a Deus” (MC DD),  
assim como são elas, na maioria dos casos, quem visitam seus filhos no cárcere,  
situação que quando abordada, sempre é carregada de uma atmosfera de tristeza e  
arrependimento. As mães ou a família de maneira geral estão presentes em 10 funks,  
isso representa 8,3% dos proibidões catalogados.  
O funk acima de MC Menor B retrata um diálogo de um filho encarcerado com  
sua mãe. Esse diálogo é marcado por sentimentos como saudade, amor, tristeza,  
esperança, arrependimento (perdão). O forte tom de melancolia do funk, mesclado com  
essa gama de sentimentos citados anteriormente, transmite bem a angústia e o  
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sofrimento de viver no cárcere: “Eu tô numa cela eu e 90 mano”. Estes sentimentos  
descritos nessa relação entre mãe e filho no mundo do crime, especialmente se se  
tratando de uma mãe que tem seu filho encarcerado. O funk de MC Sadrak descrito  
abaixo em homenagem à sua mãe também traz elementos muito parecidos com o funk  
carioca de MC Menor B.  
Essa música aqui eu fiz pra mulher que eu mais amo no mundo, Mas  
eu tenho certeza que todo mundo que é vida loka vai se identificar  
com esse som aqui ó! É mais ou menos assim:  
Pra mim é mais que tudo (2x)  
É a mulher que eu mais amo nesse mundo  
Divulga direito DJ Latró!  
Com todo amor essa é pra você mamãe  
Tem meu amor dito em forma de canção  
Me perdoa tudo que eu te fiz sofrer  
Vou falar pra você  
Sou vida loca mas amo a senhora  
E de saudade meu coração chora  
Você é o que de bom existe em mim  
O sofrimento um dia vai ter fim  
Pra mim é mais que tudo  
É a mulher que eu mais amo nesse mundo  
Chora seu pobre coração  
O filho que mais ama hoje tá na prisão  
Graças a Deus cuida de ti os meus irmãos  
E o meu Pai que te ama de coração  
Mamãe não tem culpa pelo que hoje me tornei  
E aonde for sempre te levarei  
Nunca se esqueça que eu sempre te amarei (2x)  
Pra mim é mais que tudo (3x)  
É a mulher que eu mais amo nesse mundo  
Tento, tento viver  
A solidão no peito me fez entender  
Dô glória à Deus porque sempre foi comigo  
Graças a Deus hoje eu tenho o meu filho  
Ó mãe! Eu deixo um cheiro no teu coração  
Infelizmente hoje eu tô na prisão  
Mas aqui é passageiro  
Pra mim, pra mim cê vale ouro  
Pra mim cê vale ouro  
Pra mim cê vale ouro  
A joia rara de todo o meu tesouro (2x)  
Queria aproveitar e homenagear hoje a cada mãe que tem no seu  
coração a tristeza de ter um filho Encarcerado no regime de opressão.  
Queria homenagear hoje, dona Joana Rainha, Dona Índia, Dona  
Lourdes, Dona Lindalva, Dona Catarina que Deus a tenha no céu bem  
guardadinha no seu Coração. E agradecer a todo mundo que curte o  
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som de Sadrak MC, porque só fortalece moleque. Pode divulgar!  
(MC Sadrak. 2017)  
O funk de Sadrak tem o objetivo de homenagear não apenas a sua própria mãe,  
mas “cada mãe que tem no seu coração a tristeza de ter um filho encarcerado no  
regime de opressão”. Esse elemento merece destaque pois expressa a percepção por  
parte do MC de que o funk é um instrumento capaz de expressar sentimentos que  
ultrapassam a esfera individual e são comuns a pessoas em condições de vida  
semelhante, de acordo com o que temos argumentado até aqui. Este proibidão revela  
que os sentimentos acionados na relação com sua mãe estão presentes na experiência  
de outras famílias que tem um ente querido encarcerado. Desta forma, apesar de  
compor o funk para sua mãe, Sadrak sentencia: “Essa música aqui eu fiz pra mulher  
que eu mais amo no mundo, mas eu tenho certeza que todo mundo que é vida loka  
vai se identificar com esse som aqui ó!”. Cabe destacar que na imagem do vídeo está  
a frase “Chega de opressão”, escrita no chão de uma cela com trapos do uniforme  
laranja usado pelos presos em Pedrinhas. Esta imagem, juntamente com a data da  
postagem (outubro de 2016) parecem fazer menção à rebelião unificada de todas as  
facções ocorrida em finais do mês de setembro do mesmo ano, contra a opressão em  
Pedrinhas.  
Percebemos tanto no funk de MC Menor B do Rio de Janeiro, como no funk  
de MC Sadrak vários elementos em comum, dentre ele, o pedido de perdão para suas  
mães por terem entrado na vida do crime. Isso em geral é um momento raro nos  
proibidões. Geralmente nos proibidões os envolvidos no mundo do crime fazem  
questão de transparecer convicção sobre sua escolha e para sustentar tal postura,  
costumam se orgulhar da sua longeva caminhada no crime, alguns se empenham em  
demonstrar uma propensão à vida loka desde menor, como veremos adiante.  
Entretanto, quando essa escolha gera sofrimento à pessoa que eles mais amam, isto  
é, seus familiares e principalmente sua mãe, essa convicção se desvanece e até mesmo  
a masculinidade, organizada pela virilidade anteriormente descrita, cede espaço para  
um comportamento emotivo.  
Mãe, perdoa esse filho seu  
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Não te escutei entrei pra vida bandida  
Ô mãe!  
Desculpe se eu te fiz chorar  
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[...]  
Diferente da mãe muitas vezes a figura do pai é retratada como violenta:  
Desde pequeno eu via meu pai  
Sem dinheiro chegando em casa  
Nem podia nem chorar  
Senão eu apanhava  
Desde criança aprendi uma lei  
A nunca falar demais  
Vi que a paz é contra lei  
E a lei é contra a paz  
Na realidade da vida  
Fui crescendo a cada momento  
Hoje no Maranhão  
Sou patrão do movimento  
(MC Copinho)  
No funk de MC Copinho a imagem do pai é construída de maneira diferente  
daquela ligada a mãe que mostramos até aqui. Se por um lado a mãe oferece amor e  
carinho, o tratamento conferido pelo pai, acima retratado como violento “não podia  
nem chorar/ senão eu apanhava”, fornece à dureza necessária a vida do crime, que,  
conforme dito anteriormente, muitas vezes no proibidão aparece como propensão  
desde muito cedo: “Desde criança aprendi uma lei/ A nunca falar demais/ Vi que a paz  
é contra lei/ E a lei é contra a paz”. Em seguida, como resultado desse duro  
aprendizado e do engajamento da vida do crime, MC Copinho celebra o que seria o  
objetivo da empreitada criminosa: a prosperidade e ascensão social: “Na realidade da  
vida/ Fui crescendo a cada momento/ Hoje no Maranhão/Sou patrão do movimento”.  
Como vemos, a imagem do MENOR é recorrente quando investigamos o universo das  
facções a partir da produção de seus funks. O termo menor é utilizado para crianças e  
jovens que se engajam no mundo do crime, diz respeito na maioria dos casos à sua  
condição de inimputabilidade penal, garantida pelo Estatuto da Criança e do  
Adolescente (ECA), que busca garantir em teoria tratamento diferenciado para pessoas  
menores de 18 anos que cometem atos previstos no código penal brasileiro. Por isso,  
escolhemos esta palavra para catalogar os proibidões que abordam os adolescentes  
no universo das facções, aspecto presente em 19 funks, que representa 15,8% do  
total de funks catalogados. O termo menor na maioria das vezes é utilizado por MCs  
para se referirem a crianças e adolescentes que se engajam no mundo do crime, apesar  
que, em relação aos proibidões cariocas, este termo pode ter uma conotação ambígua,  
pois não raramente é um termo utilizado para se referir a qualquer pessoa, por isso  
cabe sempre examinar o contexto.  
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Os funks abordam a vida desses jovens adolescentes que se engajam em regra  
no varejo do tráfico por não encontrar em outras atividades econômicas formas de se  
reproduzir socialmente. O engajamento dessa juventude é vital para a perpetuação  
dessa atividade visto a alta rotatividade de mão de obra devido aos altos índices de  
homicídios e encarceramento. Entretanto, as relações entre bandidos mais velhos mais  
jovens nem sempre são pacíficas. Esta relação foi descrita de maneira esclarecedora  
no romance Cidade de Deus, onde verifica-se que a consolidação do poder armado de  
um grupo criminal em determinado território, passa também pela imposição do poder  
dos bandidos mais velhos mediante a instrumentalização e disciplinamento dos  
bandidos mais jovens Esse conflito é representado na obra pelo embate entre a  
quadrilha do Zé Pequeno e a Caixa Baixa - um pequeno grupo de crianças e  
adolescentes que praticavam crimes dentro e fora da Cidade de Deus. Esse conflito  
que resulta na vitória dos mais velhos, que vencem devido ao seu poder bélico,  
financeiro e organizacional. A partir daí estabelecem seus interesses ao conseguir  
engajar de maneira subordinada uma parte dessa juventude e fazê-la obedecer normas  
como as que proibiam roubos na favela, pois atrapalhavam o andamento do tráfico.  
Nesta mesma trama, Zé Pequeno quando criança, junto com seu parceiro Biné, teve  
relações conflituosas com os bandidos mais velhos da Cidade de Deus, aos quais se  
associou de maneira subordinada para ter acesso a armas e conhecimento da atividade  
criminosa. Porém, depois que as obteve os suplantou com violência alimentando o  
ciclo de superação contínuo de relações entre bandidos mais jovens que se associam  
subordinadamente aos mais velhos para depois substituir aqueles que acabam mortos  
ou presos. Essa ascensão obviamente acontece para aqueles adolescentes que  
conseguem sobreviver por muito tempo nesse meio altamente hostil. Esse ciclo de  
substituição/superação conflituosa de gerações engajadas em atividades criminosas,  
pode ser observado na história de lideranças importantes das facções brasileiras, como  
a do traficante Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê. Jovem e ambicioso, Uê se associa com  
Orlando Jogador e depois assassina-o numa emboscada para tomar ele mesmo o  
controle do tráfico naquela região.  
Dessa maneira podemos dizer, grosso modo, que as facções ao se imporem como  
instituições de autorregulação e autodeterminação do mundo do crime, passam  
também a ter que mediar conflitos entre gerações distintas de indivíduos engajados  
em atividades criminosas em seus territórios. Esta dinâmica parece indicar que as  
facções acabam por consolidar que os mais novos sejam subordinados pelos mais  
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velhos, como acontece em Cidade de Deus, pois os bandidos mais velhos possuem  
dinheiro, armas, conhecimento e organização que os mais jovens não possuem. Os  
mais jovens, no entanto, se engajam nas facções através de um consenso ativo (ainda  
que subordinado) em vista de um retorno financeiro imediato ainda que pequeno  
(porém satisfatório visto o horizonte de expectativa). Além disso, possuem viva a  
esperança da ascese, mediante a substituição das lideranças mais velhas, caso  
consigam sobreviver à brutal violência da guerra perpétua do mundo faccional. Por  
esse motivo à figura do menor nos funks de facção sempre é associada aqueles que  
estão na linha de frente dos conflitos. Eles compõem o grosso da infantaria das  
facções, normalmente ocupados em funções na chamada contenção, cotidianamente  
preparados para “largar o aço” em polícia ou Alemão. Como em qualquer guerra no  
mundo, os mais jovens sempre estão nas trincheiras fazendo o serviço mais perigoso  
e pesado enquanto os mais velhos estão na retaguarda ocupando seus postos de  
comando, fazendo serviços de cunho mais administrativo e intelectual, ainda que  
também não escapem da violência da guerra de facções. MC Orelha, em diversos dos  
seus funks, aborda essa temática do menor como poucos no universo do proibidão:  
Desde menor aprendi, aprendi fechar com o certo  
E nunca falar demais e só mandar o papo reto  
Desde menor aprendi a conquistar minha liberdade  
E que a essência da vida sempre foi a humildade  
Comando por ideal, vermelho de natureza  
Eu represento Niterói, eu sou MC Orelha  
Tô fechado com Coqueiro, Nova Brasília, Fazendinha, Grota  
Esse é o Bonde dos 50, quer rajada no Gol Bola  
Pesadão na moral, você sabe como tá  
É o Complexo, oi bonde fiel de fechar  
Mas se correr o bonde derruba, se ficar o bonde picota  
É o Coqueiro, Nova Brasília, Fazendinha e o Bonde da Grota (2x)  
Na frequência do walk-talk, os menor tão na atividade  
Fazendo a contenção, pulando de laje em laje  
O bonde atravessa a pista com as mochila cheio de bomba  
Morador já tá ciente, é os cria fazendo a ronda  
O Complexo é CV e a bala come de repente  
Arrego é o caralho, o bonde descarrega o pente  
Em cada beco e viela, tu vai encontrar um Falcão  
Torrando um baseado, de fuzil G3 na mão  
E aqui só menor revoltado, tudo boladão com a vida  
Vacilão bate de frente, quando vê o bonde trepida  
Não adianta caguetar pensando em passar batido  
Vacilou aqui na Grota, neguinho fica fodido  
(MC Orelha, Desde Menor Aprendi, 2011)  
É mister apontar, face ao exposto acima acerca do processo de assimilação  
Verinotio  
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Luiz Eduardo Lopes da Silva; Ronaldo Rosas Reis  
subordinada no tempo dessa faixa geracional e social, os aspectos que lhe conformam  
no momento presente e como são enunciados e posicionados na estrutura de  
sentimento do proibidão. Neste mundo, espera-se do menor, sentimentos como  
“humildade”, no sentido de internalização da subordinação no interior da hierarquia  
faccional ou da empresa do tráfico (no caso maranhense parece não haver uma  
identidade entre elas), sem deixar, no entanto, de dar expectativas para um possível  
evolucionar no interior desta mesma cadeia hierárquica, sob o signo esperançoso da  
ascese social, em especial para os que urgem superar a gigantesca margem contrária  
de pauperização e condições desumanas de vida. Assim, nesse ideário, espera-se do  
menor envolvido no crime uma dedicação para a aprendizagem dos saberes  
necessários: “Todo gerente um dia já foi vapor/E o menor fechou com o certo e olha  
onde ele chegou”, cantam os versos de “Esse menor sou eu”, outro funk também de  
MC Orelha, icônico por trazer a primeiro plano a promessa de ascensão social a  
qualquer custo, mediante o poder das armas e do dinheiro alcançado pelo  
engajamento no crime.  
Concluindo  
Na contrafação da promessa da ascese, está o penoso e escarpado caminho para  
que ela se realize, visto que, também tidos como valores intimamente relacionados, o  
perene risco de morte ou encarceramento fazem parte da compreensão desta  
sensibilidade do mundo do crime. O realismo estatístico evidencia que a morte  
prematura ou encarceramento massivo dessa juventude são a tônica. Entretanto,  
apesar de precária a promessa, sua sustentação deriva, do ponto de vista imediato, de  
uma efetiva melhora econômica no rebaixado padrão de vida imposto a essa fração de  
classe, algo que se reconhece nas letras de funk – como a celebrada tríade: “mulher,  
ouro e poder” em sua síntese da defesa da “ostentação” – nos termos descritos  
anteriormente. Não é demais frisar que somente sob condições crescentes de  
pauperização se produz uma massa social que informa, com a peculiaridade própria  
de sua atual manifestação, que somente jovens em condições precárias de vida  
encontram num fuzil, o respeito e a dignidade por eles almejada. Neste sentido, a  
crítica e análise estéticas deste vasto material cultural produzido por essa juventude,  
do qual o funk parece ser um veículo privilegiado, passa pelo lugar da morte, sempre  
presente nesta realidade e tema recorrente nos proibidões.  
Verinotio  
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Estética, violência e solidariedade  
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Luiz Eduardo Lopes da Silva; Ronaldo Rosas Reis  
Como citar:  
SILVA, Luiz Eduardo Lopes da REIS, Ronaldo Rosas. Estética, violência e solidariedade:  
juventude faccionada no proibidão. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp. 44-70;  
jul-dez, 2023.  
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dossiê  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.686  
Partidarismo e crítica literária: alguns elementos  
para a compreensão da “estética comunista” de  
Georg Lukács  
Partisanship and literary criticism: some elements to understanding  
Georg Lukács' “communist aesthetics”  
Elisabeth Hess*  
Paula Alves**  
Resumo: O presente artigo busca refletir sobre a  
especificidade da crítica literária desenvolvida  
por Georg Lukács. A literatura sempre foi um  
objeto privilegiado em toda sua trajetória  
Abstract: This article aims to address the  
specific nature of the literary criticism  
developed by Georg Lukács. Literature was  
always a privileged object throughout his  
intellectual career. However, there are  
considerable differences in the way he  
approaches it, which respond largely to political  
and historical injunctions. We begin with more  
intelectual.  
No  
entanto,  
há diferenças  
consideráveis no modo como ele a aborda,  
diferenças que respondem, em larga medida, a  
injunções políticas e históricas. Partimos de  
considerações mais gerais sobre a relação de  
Lukács com a literatura, em que se coloca o  
problema a respeito do papel da história como  
história literária e como reconciliação entre as  
general  
considerations  
about  
Lukács'  
relationship with literature, in which the  
problem arises of the role of history as literary  
history and as a reconciliation between artistic  
needs and those of the historical development.  
We then present some aspects of Lukács'  
"communist aesthetics" in more detail. At this  
point, this article will focus on the controversy  
against the vulgar sociologism, which marked  
the development of Soviet aesthetic thought  
necessidades  
artísticas  
e
aquelas  
do  
desenvolvimento  
histórico.  
Em seguida,  
apresentamos mais detidamente alguns aspectos  
da “estética comunista” de Lukács. Nesse ponto,  
esse artigo focará na controvérsia contra o  
sociologismo  
vulgar,  
que  
marcou  
o
desenvolvimento do pensamento estético  
soviético e teve um papel fundamental na  
constituição da crítica literária de Lukács. Alguns  
traços da maneira como Lukács se coloca como  
and played  
a
fundamental role in the  
constitution of Lukács' own literary criticism.  
Some traces of the way Lukács positions himself  
as a historian and literary critic appear clearly in  
his intervention in the debate on the novel, one  
of the episodes in the confrontation with vulgar  
sociologism, which will be commented on at the  
end.  
historiador  
e
crítico literário aparecem  
claramente na sua intervenção no debate sobre  
o romance, um dos episódios do enfrentamento  
do sociologismo vulgar, que será comentado ao  
final.  
Palavras-chave: Georg Lukács; crítica e história  
literária marxista; exílio moscovita; debate sobre  
o sociologismo vulgar.  
Keywords: Georg Lukács; Marxist literary  
criticism and history; Moscow exile; debate on  
vulgar sociologism.  
O desenvolvimento de uma crítica literária marxista percorre encadeamentos  
teóricos mais ou menos refinados. Um dos grandes expoentes dessa vertente é, sem  
*
Doutora em Literatura e práticas sociais pela Universidade de Brasília e integra a Comissão editorial  
do Anuário Lukács. E-mail: eishess@yahoo.com.br.  
** Mestre em Teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo e integra a Comissão  
editorial do Anuário Lukács. E-mail: paulaama@hotmail.com.  
Verinotio  
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Elisabeth Hess e Paula Alves  
dúvida, Georg Lukács. Se, de início, o filósofo húngaro se mostrava bastante reticente  
quanto ao que denominava como uma “sociologia marxista da arte”, a partir dos anos  
30, pelo contrário, ele não medirá esforços para reconstruir e desenvolver e isso até  
o fim de sua vida - uma estética marxista autônoma. Nesse longo percurso, o crivo  
constantemente reavaliado e deslocado é aquele que equaciona dois parâmetros. Por  
um lado, há aquilo que distingue a função da arte em relação a outras esferas de  
atividades humanas, tendências que apontam para as conquistas da estética  
autônoma, colocada como uma atividade relativa à generidade do ser humano. Por  
outro, reconhecê-las pressupõe algum conhecimento das condições materiais que as  
determinam, de maneiras mais ou menos perceptíveis. Tal equação parte sempre em  
Lukács da percepção e busca de uma síntese objetivamente verdadeira entre essas  
duas medidas de um mesmo fenômeno na arte em geral e, em especial, na literatura.  
Assim, a formulação de uma estética em dia com os dilemas do indivíduo na sociedade  
de seu tempo precisa levar em conta as relações sociais que mediam a atividade  
artística e a história dessa atividade de modo tal que elas sejam mais do que um  
panorama e alcancem uma compreensão aprofundada da relação entre a sociedade e  
a atividade artística concreta.  
No jovem Lukács, a busca por uma relação autêntica com o mundo passa pela  
reconstituição do fenômeno estético. Mas esse impulso de reconstituição, que diz  
respeito à própria tentativa de enfrentar as deformações da personalidade  
características do estágio avançado do capitalismo monopolista, não sugere para o  
filósofo uma atitude de defesa arbitrária da subjetividade artística. Pelo contrário, a  
relação entre vida e poesia assumiria a dimensão mais complexa dos problemas  
científicos, de modo que sua inicial disposição para a escrita fosse direcionada à busca  
de respostas para as contradições do capitalismo e de sua hostilidade à arte. Para Jörg  
Kammler, a aproximação aos problemas estéticos pelo jovem Lukács se desenvolve em  
dois níveis: em um, como análise histórico-sociológica e, em outro, como busca por  
uma visão de mundo que, nessa fase, assume o aspecto de crítica literária (cf.  
KAMMLER, 1973, p. 8). Tal relação ética com o objeto estético coloca em xeque a  
perspectiva da crítica literária como uma disciplina isolada em função de uma pretensa  
defesa da autonomia artística.  
Já então, Lukács não desconsidera a dimensão do social que se manifesta no  
fenômeno literário. Ainda que de maneira negativa, o próprio filósofo, em textos de  
juventude, coloca questões para as quais os estudiosos mais críticos aos escritos da  
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Partidarismo e crítica literária  
maturidade chamariam atenção, pois neles aparecem elementos que poderiam  
fundamentar de modo contundente suas ressalvas à abordagem marxista da forma  
pelo velho Lukács. Vale a pena tomarmos em particular o texto “Zur Theorie der  
Literaturgeschichte [Para uma teoria da história literária]”, que se ocupa de problemas  
da relação entre estética, sociologia e história. Estes serão constantemente  
recolocados, mesmo que em chave diferente, nos escritos marxistas do filósofo a partir  
da Revolução de Outubro, em 1917. Escreve o Lukács de 1910:  
É possível que o aspecto histórico-literário mencionado no início, a síntese  
dos aspectos sociológicos e estéticos, surja por si só. É uma síntese que  
conecta os conceitos mais pertinentes e profundos das duas áreas e constrói  
uma conexão entre sua essência mais íntima. A sociologia marxista da arte  
de fato consequente é inútil, devido às suas tentativas de fazer conexões que  
são demasiado simples e demasiado diretas. Uma ligação que reúna as  
condições econômicas com o conteúdo da literatura deve permanecer  
infrutífera. Por um lado, porque a suposição de que o “conteúdo” é mais real  
do que a forma é uma ilusão, pois a investigação das verdadeiras causas e  
consequências nele provocadas sempre levaria de volta às formas, e porque  
permanecer com o conteúdo seria apenas persistir na superfície. Por outro  
lado, porque as condições econômicas só têm sentido num quadro amplo  
(exemplo: o efeito dos preços baixos na distribuição de livros e as  
repercussões deste processo na literatura), mas também aqui - e ainda mais  
que em qualquer outra parte - apenas na medida em que influenciam a  
capacidade de vivência do produtor ou a receptividade do público. Mesmo  
um fato que parece puramente econômico, tal como o modo pelo qual a  
literatura evoca uma classe numa época, qual é a estrutura desta classe etc.,  
só tem significado na medida em que todas as relações sociais desta classe  
existem nela, por exemplo, evocam uma certa receptividade (ou seja, na  
medida em que se tornam fatos psicológicos), que então repercutem na  
literatura da maneira descrita acima (LUKÁCS, 2017, p. 147).  
Para além da referência ao que entende por “sociologia marxista da arte”, o  
jovem Lukács faz referência à questão da primazia da forma sobre o conteúdo e à  
criação de uma vivência formal cujo efeito se coloca essencialmente fora do alcance  
das condições econômicas. Essas referências bastante críticas a qualquer visão  
materialista da história sofrerão rápidas transformações. À época, contudo, elas fazem  
eco à reação contra o positivismo. Admitindo que há aspectos sociológicos que podem  
ser estudados nas determinações do fenômeno artístico, Lukács quer demonstrar  
nesse texto que um tratamento sociológico, ou puramente sociológico, não poderia  
alcançar a questão essencial à criação artística a avaliação, cujo objeto é a forma. Ele  
exemplifica:  
Uma literatura não avaliada, independente dos valores, não existe, é  
inimaginável. Não podemos imaginar um drama ou poema sem valoração;  
conhecemos um drama bom ou mau, não qualquer coisa de que, pelas  
características, podemos deduzir que é um drama e que pode ser apreendido  
com o conceito de drama. Algo só se torna um drama devido ao seu poder  
de desencadear sentimentos e vivências específicos (LUKÁCS, 2017, pp.  
137-8).  
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Apesar de que a sociologia só poderia ter contribuições parciais, reduzindo a  
objetividade estética a uma abstração, como sucederia nas ciências naturais (em  
oposição às ciências do espírito), a capacidade de vivenciar o efeito estético, em  
contrapartida, é para Lukács um fato sociológico. Tais relações entre formas e efeitos  
aparecem determinadas pelas mudanças que ocorrem na vida social, afetando a vida  
mental e, só a partir daí, o estilo de comunicação das vivências entre produtor e leitor  
de literatura em cada época:  
É aqui que emerge a primeira unificação de importância crucial das  
categorias estéticas e sociológicas. A sociologia - segundo Simmel, a  
ciência das "formas de socialização" - determina o tipo de andamento,  
sotaques e ritmos, que surgem através das relações econômicas e  
sociais e estão presentes no mundo emocional das pessoas e nas  
relações desses mundos uns com os outros etc. A sociologia também  
determina como se estabelecem os elementos sensoriais e outros  
elementos, que alternam certezas e as incertezas, como se  
estabelecem seus polos. Em uma palavra, a sociologia é responsável  
por tudo o que o marxismo chama de ideologia e pelo que chamamos  
da vida que está em questão para a literatura. Os trabalhos  
sociológicos de Simmel, principalmente A filosofia do dinheiro,  
provam que tal sociologia, embora não exista muito dela até hoje, não  
representa uma utopia. O primeiro grande aspecto da história literária  
é a vida, dado que ela é vista como material do ponto de vista das  
formas, em que, à primeira vista, emergem, por si mesmas,  
possibilidades de desenvolvimento, enquadramentos e direções,  
positivas e negativas (LUKÁCS, 2017, pp. 144-5).  
Dado que o texto literário se depuraria de suas relações com o entorno para ser  
lido de maneiras diversas nos diversos momentos, a relação da forma com o tempo  
não seria objetiva. A história literária seria apenas um método, ainda limitado, de  
captar um movimento que não é compreensível sem apreensão racional da posição da  
personalidade na obra. Assim, de um modo geral, o trabalho teórico que Lukács  
desenvolve então o levará a investigar justamente as consequências do pensamento  
marxista para a estética, na tentativa de embasar a relação entre as formas elegíveis  
em cada tempo e sua repercussão social de dissonância ou efetivo efeito.  
Ao se empenhar por superar o idealismo subjetivo, que distanciava fundamento  
econômico e sociologia, como se esta ciência fosse apenas um preâmbulo da história  
das formas, Lukács tende a reposicionar a questão do valor e da relação das formas  
com a sociedade, numa formulação dialética objetiva e, por fim, a perceber a existência  
de um materialismo dialético em oposição a um não dialético (cf. LUKÁCS, 1970a, p.  
9).  
Então, e particularmente a partir dos anos 1930, Lukács inicia uma investigação  
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Partidarismo e crítica literária  
sobre o movimento histórico tornado presente na própria forma da grande obra  
artística. A tentativa de formular de maneira dialética as contradições que envolvem a  
relação subjetividade-objetividade no capitalismo atravessarão seus estudos de Hegel  
e de Marx, com crescente concretização mediante a análise dos conflitos da vida. Ele  
procura, então, compreender a relação entre o homem e a sociedade como atividade  
e autoatividade. Isso permite que ele relacione conteúdo, forma e história, como por  
exemplo ao compreender o valor e permanente efeito da arte antiga por seu acordo  
simultâneo com as leis da beleza e da verdade, sem a dicotomia entre o mundo da  
representação artística e o conhecimento da verdade, que se intensifica nas teorias  
estéticas do capitalismo.  
Tal objetividade da ligação entre valor estético e relação dialética de forma e  
conteúdo só poderia ser fundamentada corretamente, segundo Lukács, com o  
desenvolvimento de uma estética marxista que colocasse em perspectiva a arte como  
autoconsciência do desenvolvimento humano. Ele divide essencialmente sua Estética  
(1963) em três partes, das quais apenas a primeira foi concluída. Esta, A peculiaridade  
do estético, trataria da determinação de seus princípios e categorias teóricas; A obra  
de arte e o comportamento estético, prevista como o segundo volume, de concretizar  
a estrutura específica das obras em suas específicas determinações mediante as  
categorias antes deduzidas. Ambas as partes teriam por método principal o  
materialismo dialético. Por fim, a terceira parte teria uma abordagem centrada no  
materialismo histórico. Com o título previsto de A arte como fenômeno histórico social,  
Lukács observa que, contrário ao que eventualmente acontecia com a rigidez da  
sistematização hegeliana,  
la complicada interacción entre materialismo dialéctico e materialismo  
histórico es ya en sí misma señal relevante de que el marxismo no  
pretende deducir fases históricas de desarollo partiendo del  
despliegue interno de la idea, sino que (...) tiende a captar el proceso  
real en sus complicadas determinaciones histórico-sistemáticas. La  
unidad de determinaciones teoréticas (en este caso estéticas) e  
históricas se realiza, en última instancia, de un modo sumamente  
contradictorio y, consiguientemente, no puede aclararse, ni en el  
terreno de los principios ni en el de los casos concretos, sino mediante  
una colaboración ininterrumpida del materialismo dialéctico con el  
materialismo histórico (LUKÁCS, 1966, p.13).  
E apesar de Lukács não ter escrito as duas últimas partes, essa relação dinâmica  
entre as obras concretas e o materialismo histórico pode talvez ser acompanhada e  
abstraída em seus vários escritos. Não apenas nas obras concebidas como apanhados  
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nova fase  
Elisabeth Hess e Paula Alves  
históricos, mas também naquelas em que a defesa de princípios se liga ativamente às  
possibilidades de desenvolvimento histórico e ético relevantes para uma construção  
autoconsciente da sociabilidade. Em linhas gerais, são esses os traços que  
caracterizam a “estética comunista” de Lukács.  
Com essa formulação, László Sziklai define de modo preciso sua atividade no  
campo da teoria literária a partir dos anos 1930. Nessa época, dirá ele, Lukács  
desenvolve uma “estética comunista”, já que “a força motriz da história da teoria  
filosófica e estética do marxista Lukács é a revolução socialista” (SZIKLAI, 1990, p.  
126). Sziklai procura dar conta de uma questão aparentemente paradoxal e que diz  
respeito à especificidade, ao caráter propriamente estético do que ele considera como  
uma das maiores realizações da estética marxista do século XX (cf. SZIKLAI, 1990, p.  
124). O que à primeira vista parece ser paradoxal no empenho do filósofo húngaro é  
que se trata de uma produção no campo da estética que, por ser ao mesmo tempo  
marxista, não se desenvolve de maneira estrita dentro dos paradigmas dessa  
disciplina. Sua estética dos anos 1930 e 1940 exigiria, para ser corretamente aferida,  
um “parâmetro histórico-mundial” (SZIKLAI, 1990, p. 125), cuja determinação concreta  
remete, como elucida Sziklai, justamente ao “movimento revolucionário prático”  
(SZIKLAI, 1990, p. 125).  
Desenvolvimento desigual e crítica literária  
Segundo Erich Auerbach, a forma da crítica estética moderna deriva do  
desmoronamento da antiga, rígida e aristocrática, com o advento do sentido histórico  
a partir do fim do século XVIII. Nas palavras do filólogo,  
[e]stá claro que diante dos fatos novos e do horizonte alargado, a  
antiga crítica estética não podia mais ser mantida e é indubitável que  
o sentido histórico que permite compreender e admirar a beleza das  
obras de arte estrangeiras e os monumentos do passado constitui  
uma aquisição preciosa do espírito humano (AUERBACH, 1987, p. 30).  
Essa transição é compreendida por Auerbach como desdobramento de múltiplos  
fatos sociais e filosóficos, que produzem irresistível efeito sobre os estudos linguísticos  
e a pesquisa literária, que se veem então livres da dominação das regras antigas e  
abertos ao diverso. A rigidez da crítica estética não tinha parâmetros para  
compreender Shakespeare senão como “feio, sem gosto e bárbaro”. Esse parâmetro  
aplicado na França ao bardo estrangeiro seria também inclemente com fenômenos  
literários do passado dados como primitivos. Tal anti-historicismo é entendido por  
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Partidarismo e crítica literária  
Auerbach como um fenômeno característico de diversas épocas, fossem relativos à  
Antiguidade, à Idade Média, à Renascença ou ao século XVII, apesar das divergências  
de modelos pertinentes a cada uma.  
Devemos assinalar também a importância que as contradições do  
desenvolvimento europeu tiveram para que a disciplina de crítica estética fosse  
submetida ao escrutínio do historicismo romântico e tratada por Auerbach como um  
processo de evolução científica. Para entender essa possibilidade de desenvolvimento  
da qualidade da crítica estética de modo geral, precisamos indagar a validade da  
avaliação objetiva das obras de arte em relação a sua transformação e permanência  
diante da atividade dos povos.  
A questão da racionalidade das formas e ao mesmo tempo a de sua historicidade  
concreta é posta em perspectiva mais dinâmica por Lukács em obras como O Romance  
histórico, quando ele compreende o historicismo romântico, contraditoriamente  
reacionário, em oposição à determinação histórica espontânea1 de fenômenos então  
estabelecidos como fatos naturais e necessários pelos escritores e filósofos do  
Iluminismo. Portanto, a deliberada defesa da história pode partir de seus mais  
enérgicos opositores práticos:  
A desumanidade do capitalismo, o caos da concorrência, a eliminação  
do pequeno pelo grande, o rebaixamento da cultura pelo fato de todas  
as coisas se tornarem mercadoria, tudo isso é contrastado, em geral  
de forma reacionária e tendenciosa, com o idílio social da Idade Média,  
como o período da cooperação pacífica de todas as classes, como a  
era do crescimento orgânico da cultura. Mas, se em geral a tendência  
reacionária predomina nesses escritos polêmicos, não devemos  
esquecer que é apenas nesse período que surge a primeira  
representação do capitalismo como um período historicamente  
determinado do desenvolvimento da humanidade, e isso não nos  
grandes teóricos do capitalismo, mas em seus oponentes (LUKÁCS,  
2011b, p. 41).  
Diferentemente dos românticos, os defensores da Revolução Burguesa podem,  
não obstante, defender o imobilismo em matéria de arte, como caracterizado nesse  
trecho a respeito da teoria do romance em “O romance como epopeia burguesa”:  
esta falta de atenção para o que é especificamente novo no  
desenvolvimento burguês da arte não é casual. O pensamento teórico  
1
Espontânea pela representação e investigação também histórica das formas antigas nos vínculos de  
legalidade em comum com as possibilidades modernas de realização da racionalidade humana. Guiados  
por esse interesse ativo, “a antiguidade se situa no centro da teoria e da práxis do Iluminismo. A  
investigação das causas da grandeza e do declínio dos Estados antigos é um dos mais importantes  
pressupostos teóricos para a futura reconfiguração da sociedade” (LUKÁCS, 2011b, p. 35).  
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da burguesia nascente, em todas as questões da estética e da cultura,  
tinha forçosamente de se manter o mais próximo possível de seu  
modelo antigo, no qual encontrara uma poderosa arma ideológica em  
sua luta pela cultura burguesa contra a cultura medieval. [...] Todas as  
formas de criação artística que haviam crescido organicamente da  
cultura medieval, assumindo um aspecto popular e até mesmo plebeu  
foram ignoradas pela teoria e, frequentemente, rechaçadas como “não  
artísticas” (LUKÁCS, 2011a, p.194).  
Não há, no quadro histórico de um tempo presente, possibilidade de estabelecer  
uma equiparação entre o desenvolvimento das formas e o das ideias revolucionárias.  
Também estas, por mais sôfregas de apreensão da realidade que estivessem, não  
conseguiam administrar todas as determinantes que atuam objetivamente sobre a  
realidade a ponto de conceber tão antecipadamente sua relação com aquelas formas.  
Assim, ainda que as condições sociais para o surgimento do sentimento histórico como  
“abertura seminal para a realidade”(LUKÁCS, 2011b, p. 34) se reflitam efetivamente  
nos grandes realistas do século XVIII, a teoria do romance que terá possibilidade de  
articular sua forma ao novo conteúdo da vida burguesa será posta na segunda metade  
do século XIX, segundo Lukács, mas já então desvinculada de sua linha de continuidade  
em relação às aspirações populares e revolucionárias que lhe deram origem e  
especificidade.  
Portanto, apesar da marca deixada pela história literária nas tendências da crítica  
estética, podemos dizer, acompanhando Lukács, que essa mudança de repertório fica  
sem suas consequências máximas em termos dos avanços atingidos. Somente a crítica  
materialista, notadamente possibilitada pelas contradições do desenvolvimento  
desigual na Alemanha, poderia dar as condições para a compreensão da relação entre  
o antigo e o moderno nas formas do romance. O fato dessas tendências  
intrinsecamente historicistas não aparecerem nas teorizações críticas ou passarem por  
elas sem serem aprofundadas em suas verdadeiras interações não significa que as  
contradições que possibilitam o gênero épico romanesco deixassem de produzir o  
efeito que segue dos horizontes abertos pelos desdobramentos revolucionários, assim  
como das novas e consequentes contradições do capitalismo em expansão global,  
como é o caso na formação de uma literatura brasileira em país colonial e ainda  
escravocrata. Para exemplificar esse ponto bastante mal compreendido, tratemos da  
percepção do “desenvolvimento desigual e combinado” e de sua conclusão crítica  
sobre a teoria do realismo de Lukács formulada por Roberto Schwarz:  
seria impensável no século XIX um fazendeiro escravista dar uma  
interpretação da Inglaterra em termos de relações escravistas. Se ele  
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fosse suficientemente maluco poderia tentar, é óbvio, mas seria algo  
sem nenhuma perspectiva histórica. Ao contrário, pareceria óbvio aos  
contemporâneos que ele tentasse explicar a sua fazenda com as  
categorias do capitalismo inglês. O que também conduz a um erro,  
mas, de qualquer maneira, fazendo isso, ele guarda contato com as  
evoluções ideológicas de seu tempo. Estas são as “ideias fora do  
lugar”, e esse é, mais ou menos, o âmbito da questão: o deslocamento  
de ideologias no interior da expansão histórica do capitalismo  
(SCHWARZ, 2019, p. 43).  
Não teremos condições de desenvolver aqui as diferenças da concepção de  
desenvolvimento uno e desigual de Lukács e a referência dessa contradição objetiva  
referida por Schwarz. Basta por enquanto considerar que a relação implícita com o  
caráter universal das categorias será diferente para cada uma, como percebemos na  
seguinte entrevista sobre Lukács:  
Lukács construiu um modelo para a história europeia das ideias e do  
romance que depende da evolução histórica geral do feudalismo para  
o capitalismo e para o socialismo. É uma construção poderosa. Ele  
mostra como esse desenvolvimento funciona ativamente na obra de  
filósofos e romancistas. Se nos voltarmos para a América Latina,  
observaremos que essa sequência não existe aqui e que, portanto, ela  
não é universal (SCHWARZ, 2019, p.128, grifo nosso).  
E, em outra passagem do mesmo texto, Schwarz chama atenção para a  
contradição de que “Lukács continuou um classicista (i.e., defensor da norma clássica)  
em meio à revolução social” e arremata com “isto é realmente intrigante e  
surpreendente, vindo de uma inteligência histórica tão notável, de um homem que  
entendeu e explicou melhor do que a maioria dos outros o caráter histórico das formas  
literárias” (2019, p.147).  
Essa contradição pode ser compreendida apenas se as relações entre as  
determinações sócio-históricas e a representação dos dramas humanos não forem  
colocadas em termos de modelo ideológico. Tais termos se formam a partir de uma  
falsa polêmica acerca da noção de progresso estar baseada em uma forma racional  
definitiva ou doutrinária, como acusaria Schwarz de história, e não na dinâmica do  
desenvolvimento uno e desigual. Tal relação não se resume à de infra e superestrutura,  
tampouco a um relativismo histórico. Significa antes uma dialética engendrada pela  
materialidade histórica a ser cuidadosamente observada.  
Claro, apesar do sentimento histórico da modernidade ser um fato filosófico  
amplamente reconhecido como elemento influenciador de avanços para além das  
fronteiras das revoluções burguesas, as conexões que tal percepção estabelece para a  
história da literatura não são simples ou diretas, nem em termos ideológicos, nem de  
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crítica, nem de produção literária. Negar isso seria uma proposição logicista disposta  
a deduzir consequências absolutas de uma legalidade apreendida em determinada  
situação histórica, ou seja, uma proposição mistificadora mascarada de materialismo  
histórico. A teorização do desenvolvimento clássico do capitalismo estudado por Marx  
apresentou fissuras em seu desdobramento, com consequências e contradições  
inesperadas, mas já era claro que seu desenvolvimento não poderia seguir em todos  
os percalços a mesma exemplaridade em relação a sua gênese, da qual Marx  
apreendeu leis determinantes em condições concretas. Ironicamente, Marx publica em  
uma revista russa uma crítica às tentativas de aplicação da legalidade descoberta por  
ele em circunstâncias específicas, ainda que típicas, ou particularmente favoráveis à  
abstração do fenômeno observado:  
Isso é tudo. Mas é pouco para o meu crítico. Ele tem absoluta  
necessidade de transformar o meu esboço histórico da gênese do  
capitalismo na Europa ocidental numa teoria histórico-filosófica do  
caminho geral do desenvolvimento, ao qual todos os povos estariam  
sujeitos, quaisquer que sejam as condições históricas em que eles se  
encontram, para chegar finalmente a essa formação econômica que  
assegura, com o maior desenvolvimento das capacidades produtivas  
do trabalho social, o desenvolvimento mais abrangente possível do  
homem (MARX apud LUKÁCS, 2018, p. 371).  
Voltando à oposição crítica entre estética antiga e historicismo, aquela  
desenvolve não unicamente conceitos eternos, mas tendências que permaneceram  
significativas diante das necessidades expressionais da complexificação posterior. Essa  
validade relativa coloca as formas e gêneros confirmados pelo presente em novos  
conflitos e possibilidades de inteligibilidade do que é, ao mesmo tempo, essencial à  
representação artística e reconhecível em um conteúdo particular que não foi reduzido  
à forma, mas iluminado por ela por uma relação que pode ser tanto causal, quanto  
casual. De qualquer forma, a conexão das duas legalidades, a estética e a do conteúdo  
humano novo, não é primeiramente uma coincidência de formas de apreensão  
desprovidas de necessidade. A forma estética e o gênero tradicional eleito para ampliar  
o sentido de determinado conteúdo são eles mesmos históricos em sua validade.  
Tomemos novamente o paralelo com o desenvolvimento clássico do capitalismo:  
Marx diz sobre o desenvolvimento capitalista: “Até agora, sua  
localização clássica é a Inglaterra”. Nessa determinação, merece  
destaque particular a restrição “até agora". Ela indica que a  
classicidade de um período econômico é uma caracterização  
puramente histórica: os componentes entre si heterogêneos do  
edifício social e de seu desenvolvimento produzem casualmente essas  
ou outras circunstâncias e condições (LUKÁCS, 2018, p.376).  
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Dessa maneira, podemos entender que esse edifício social pode mudar, tornando  
uma forma ou gênero improdutivos ou foscos para organizar determinado problema  
humano tomado pela arte por seu possível valor de generalidade naquele momento.  
Sua classicidade pode sumir e reaparecer em outra forma, como acontece com a  
epopeia e o romance. As leis do desenvolvimento desigual propõem uma nova  
colocação para a questão epistemológica da análise dos fenômenos como formas  
subjetivas apriorísticas. A relação ontológica de sujeito e objeto não se reduz à uma  
necessidade pura de um ou de outro, mas a uma combinação em vários níveis das  
atividades humanas, isto é, dos “componentes entre si heterogêneos do edifício social”  
que produzem não apenas consequências interiores a cada complexo de atividade,  
mas também entrecruzamentos acidentais, de modo a se desenvolverem daí  
necessidades e subjetividades novas que participarão da análise das condições dadas.  
Assim, mais do que uma casualidade ter um caráter marginal e desprezível para a  
compreensão das leis próprias de cada fenômeno específico, ela pode produzir  
respostas para as contradições essenciais ao desenvolvimento do todo, sem as quais  
as causalidades posteriores não poderiam ser compreendidas.  
No momento em que usamos o termo “casualmente”, devemos mais  
uma vez recordar o caráter dessa categoria: um caráter ontológico,  
objetivo e determinado em sentido rigorosamente causal. Como a  
presença da casualidade resulta sobretudo da natureza heterogênea  
das relações entre complexos sociais, só post festum é possível  
entender como rigorosamente fundado, como necessário e racional, o  
modo pelo qual ela se torna válida. E, tendo em vista que, nessa inter-  
relação entre complexos heterogêneos, o peso deles, o dinamismo, as  
proporções etc. sofrem contínuas modificações, as interações causais  
resultantes podem, em determinadas circunstâncias, afastar da  
classicidade do mesmo modo que haviam levado até ela. É por isso  
que o caráter histórico dessas constelações faz com que a  
classicidade, em primeiro lugar, não possa ser representada por um  
tipo “eterno”; ela o é, ao contrário, pelo modo de manifestação mais  
puro possível de determinada formação, e o modo possibilitador de  
uma fase determinada dela (LUKÁCS, 2018, p. 376).  
É interessante ressaltar que a dialética aqui descrita por Lukács não é baseada  
em uma autonomia, fundada epistemologicamente, nas quais se filiam a imanência  
lógica de cada disciplina sobre o fundo coercitivo de um grande tecido histórico  
caótico. Os acasos fundados, produzidos na interação dos diversos complexos  
heterogêneos, são compreendidos pela ação histórica, e, em longo termo, pelo ser  
social, não como um espírito supraindividual, mas como um acúmulo resultante de  
necessidades humanas que não retroagem simplesmente, sem vestígios, na  
objetividade una e desigual do desenvolvimento.  
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Mas, ainda que não seja possível nesse espaço observar a contento as  
consequências que essa dinâmica ontológica propõe para a configuração de novas e  
ricas relações entre sujeito e objeto, basta citar como exemplo as descobertas do  
Idealismo alemão, frente ao Idealismo francês, a respeito da atividade do sujeito na  
história, possibilitadas justamente pelo descompasso do desenvolvimento político  
entre os dois países. Esse descompasso político possui causalidades próprias que se  
entrecruzam com as causalidades do avanço científico incontestável da física e da  
filosofia na França. Aqui, para nossos objetivos, as consequências do desenvolvimento  
desigual se manifestam em uma constante mudança de pesos entre os vários campos  
de atividade, como reflexo contínuo da interação sujeito objeto.  
Diante desse movimento histórico, a depuração das forças motrizes de  
determinados fenômenos demanda a seleção correta da disposição clássica, já que  
diferentemente das leis naturais, as interações sociais, as quais incluem a natureza,  
não permitem um isolamento de laboratório dos fatores considerados externos ao  
fenômeno. Ainda partindo das comparações entre o desenvolvimento das contradições  
do capitalismo e as possibilidades de uma revolução em um país onde esse  
desenvolvimento avançado não impusesse políticas estranhas àquela necessidade  
interna, Lukács observa sobre o caso da difícil manutenção da revolução na Rússia e  
as distintas avaliações de Lênin e de Stalin:  
É preciso observar, porém, que Lênin via no comunismo de guerra  
uma medida de emergência imposta pelas circunstâncias e  
considerava a NPE [Nova Política Econômica] uma forma transitória  
provocada por uma situação particular. Stálin, ao contrário, atribui a  
todas as suas tentativas de reestruturar violentamente a distribuição  
da população, num país de capitalismo atrasado, o valor de modelo  
universal para todo desenvolvimento socialista. Assim em oposição  
a Lênin ele declarou que o desenvolvimento da União Soviética era  
o desenvolvimento clássico. Desse modo, enquanto vigorou essa  
concepção, foi impossível avaliar em termos teóricos corretos o  
desenvolvimento soviético e, portanto, tornar fecundas as importantes  
experiências desse período (2018, p. 380).  
Portanto, a compreensão dos desvios do clássico pode representar a correta e  
consciente posição de forças progressistas ou reacionárias para a superação das  
formas de conflito humano, a depender de como se trate a realidade objetiva  
investigada: como estranha à ação humana ou prenhe das contradições dela. Qualquer  
enrijecimento dos aspectos que a compõem coloca a perder a compreensão de suas  
possibilidades democráticas. Na crítica literária, as formas também podem ser vistas  
como construtos clássicos, próprios a uma certa necessidade interna, ou característicos  
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de uma nova configuração. Essa aproximação ou distanciamento não trazem uma  
escala de valor embutida, mas tratam também das tendências de desenvolvimento em  
condições de estranhamento da ação humana ou de apropriação de suas novas formas  
e tensões na elaboração artística e no trabalho do crítico. Como a história, como ciência  
unitária e a história literária estão emaranhadas nesses tipos de intervenção é algo  
que pode ser mais bem destrinchado em cada caso.  
Como tratamos anteriormente, a relação entre as diversas formas de elaboração  
e intervenção sobre a realidade não se justapõem mecanicamente, mas se integram  
em múltiplas relações de necessidade. Portanto, para estabelecer um marco mais claro,  
é interessante ter em vista dois polos. De um lado, assinalemos que a crítica da obra  
tem caráter objetivo, não sendo tão indefinível que reste a pura arbitrariedade genial  
ou sofisma. Os saltos e arrancadas interpretativas podem enriquecer de imagens o  
esforço analítico, mas não isentam o crítico da observação atenta das leis particulares  
de cada campo, tal como de cada gênero e obra. Assim, há aqui uma escuta atenta  
aos modos clássicos de representar certo conteúdo desenvolvido historicamente. Por  
outro lado, a relação entre cada campo de análise apresenta a necessidade de adoção  
de uma perspectiva. Essa perspectiva pode ser materialista ou idealista, mas as várias  
disputas que se impõem para o posicionamento do crítico terão necessariamente  
caráter histórico concreto. Suas descobertas podem produzir avanços inquestionáveis,  
mas volta e meia, as disputas podem voltar a ser travadas sob condições em que esteja  
em jogo uma necessidade mais básica e estratégica. Para Lukács, coloca-se a  
necessidade da correta compreensão da realidade em uma perspectiva mais ampla e  
essa perspectiva tem na arte sua mais inteira abrangência. E o caráter popular da forma  
artística entra aqui como possibilidade produtiva de compreensão desse valor  
amplificador da realidade humana, que se desenrola pelas leis da beleza; não uma  
perda de posição, como na política mais imediata:  
A oposição entre os modos de composição de Tolstói e Erckmann-  
Chatrian que concordam em certos pontos sobre a concepção  
histórica do papel das massas pode defender, por conseguinte, uma  
nova confirmação para a correção do modo clássico de construção do  
romance histórico. Nesse caso, trata-se mais uma vez da  
personalidade histórico-mundial como figura coadjuvante. Dissemos  
antes que, do ponto de vista abstrato, seria possível figurar a  
Revolução Francesa no romance histórico sem a inclusão de Danton e  
Robespierre. Isso está correto. Resta saber apenas se o escritor, ao  
tentar substituir os princípios políticos e sociais de Danton e  
Robespierre por personagens populares livremente inventadas, não  
se veria diante de uma tarefa ainda mais difícil de cumprir que aquela  
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colocada pelas tradições dos clássicos do romance histórico, pois tais  
personagens dão ao romance histórico a possibilidade e a medida  
para elevar a figuração dos movimentos populares à sua dimensão  
intelectual e politicamente consciente. Enquanto o “indivíduo  
histórico-mundial” como personagem central da figuração concreta,  
histórica e humana dos movimentos populares reais acaba por se  
tornar um estorvo para sua própria figuração, como figura coadjuvante  
ele ajuda o escritor a elevar sua personagem à sua elevação histórica  
concreta (LUKÁCS, 2011b, p. 259, grifos nosso).  
Do ponto de vista dessa “elevação histórica”, Lukács pode conceber a posição  
estética do escritor, que insere uma visão abstrata na continuidade do elemento  
representado. Porém, se essa visão abstrata pode ser objetivamente fundada nas  
tendências próprias da realidade representada, ela pode ser também uma posição  
subjetiva sem aderência verdadeiramente íntima com os problemas colocados em seu  
tempo. Lukács trata em seu livro sobre o romance histórico de como o  
desenvolvimento da sociedade em seu movimento desigual produz na vida das massas  
efeitos que não são diretos, mas tampouco lhes são indiferentes. Portanto, a  
interpretação imediatista de escritores sobre o caráter reacionário de determinada  
postura das massas e de sua desconfiança em relação às concepções vindas “do alto”  
acaba caindo em uma abstração sem respaldo no íntimo desenvolvimento político das  
necessidades progressivamente conscientes. Nesse sentido, Lukács esclarece:  
[à] diversidade das etapas singulares da evolução tem de  
corresponder, na vida das massas, um grau ainda maior de  
diversidade de reações a essa evolução, pois tais reações podem ser  
verdadeiras ou falsas do ponto de vista sócio-histórico. E justamente  
porque o eco dos grandes acontecimentos é necessariamente mais  
imediato entre as massas politicamente pouco desenvolvidas, as mais  
diversas reações falsas são o caminho inevitável que essas massas  
encontram para, a partir de suas próprias experiências, chegar ao  
ponto de vista que realmente corresponde aos interesses do povo  
(2011b, p. 256).  
Frente a essa desconfiança, Lukács percebe os diferentes tratamentos que  
ganham obras como a de Tolstói referido como o mais desconfiado escritor em  
relação a tudo que vem do alto , e a de Erckmann-Chatrian, que, ao extraírem  
quaisquer figuras históricas como as de Danton e Robespierre, rebaixam de maneira  
apolítica a vida do povo por procurarem manter a máxima proximidade com essa vida  
imediata, sem atenção a qualquer concretização dos movimentos “do alto”. Tolstói, ao  
contrário, não se detém nos personagens de “baixo”, ele “também retrata esse mundo  
do ‘alto’ e, com isso, dá à desconfiança e ao ódio do povo um objeto concreto, visível.”  
Para Lukács, diferentemente de Erckmann-Chatrian, a visão que emana da obra de  
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Tolstói não concebe o autêntico caráter popular como excludente do discurso  
histórico-universal, impossibilitando assim a elevação da percepção de baixo inclusive  
com vantagem possível sobre tal perspectiva. Tal movimento próprio é possível  
quando se representa, como Tolstói, “a existência concreta do objeto odiado já  
introduz, em si e para si, uma gradação, uma comparação, uma paixão no retratar dos  
sentimentos do povo em relação a esse mundo do ‘alto’” (LUKÁCS, 2011b, p.259).  
Assim, as posições que partem politicamente da mera espontaneidade das  
massas não se associam ao caráter popular típico do romance histórico em sua forma  
clássica. Essa forma faz com que a figuração própria do desenvolvimento desigual  
alcance os problemas concretos da vida dos personagens, enquanto a sua  
desconfiança responde de maneira formal ao processo histórico que produz nas várias  
realizações do romance sua continuidade peculiar: “Homero não mostra nenhum meio  
pelo qual o povo (ou uma parte do povo) possa ser obrigado a fazer algo contra sua  
própria vontade”, enquanto, no romance, a “unidade da vida do povo se tornou  
contraditória, pode ser representada apenas por meio da apreensão correta das  
oposições que a constituem, ou seja, como unidade dessas oposições” (LUKÁCS,  
2011a, p.206).  
O caráter “classista” de algumas das formulações de Lukács acerca do romance  
tem ligação com sua análise concreta das determinações históricas que alcançam mais  
concreção problemática nos achados formais, como o deslocamento dramático do  
herói mediano no romance histórico de Walter Scott ou a elevação do sentimento  
conservador em paixão por Tolstói. Apesar da necessária posição prosaica reafirmada  
pela passividade própria ao épico (cf. LUKÁCS, 2011a, p. 198), a organização realista  
dos elementos em movimento do romance depende de que o escritor estabeleça uma  
perspectiva “de fora” a partir de sua própria concepção como sujeito criador.  
Disso [aceitação tácita da reificação capitalista] resulta que, no  
domínio da arte e da teoria artística e, portanto, também no campo  
do romance , o romantismo não pode nem mesmo tentar superar o  
caráter prosaico da vida mediante um método criativo que permita  
descobrir na realidade social os elementos de uma atividade humana  
espontânea, que essa realidade ainda conserva, e de torná-los assim  
objeto de uma ampla figuração realista (LUKÁCS, 2011a, p. 223).  
O momento em que Lukács começa sua produção teórica é um momento em que  
se aprofunda a decadência ideológica de que ele trataria em detalhe mais tarde. A  
relação entre crítica literária, sociologia e história da literatura entram em  
desagregação acentuada, passível de combinações variadas, a depender de sua  
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finalidade mais circunstancial até o ponto de o próprio objeto estético não raro  
aparecer como pura abstração estruturalista. Erich Auerbach observa a aparição dessa  
forma de crítica liberada da rigidez antiga, a qual chama de “explicação” ou “análise  
de textos”, vendo nisso um ganho tanto pedagógico como das investigações  
científicas:  
esse método foi consideravelmente desenvolvido e enriquecido por  
alguns filólogos modernos [...] e serve-lhes para finalidades que  
ultrapassam a prática escolar; serve para uma compreensão imediata  
e essencial das obras; não se trata mais, como nas escolas, de um  
método de averiguar e ver confirmado o que já se sabia de antemão,  
mas de um instrumento de pesquisas e de novas descobertas. Várias  
correntes do pensamento moderno contribuíram para favorecer-lhe o  
desenvolvimento científico: a estética “como ciência da expressão e  
linguística geral”, do Sr. B. Croce; a filosofia “fenomenológica” de E.  
Husserl (1859-1936), com seu método de partir da descrição do  
fenômeno específico para chegar à intuição de sua essência; o  
exemplo de análises da história da arte conforme as levou a cabo um  
dos mestres universitários de maior prestígio da última geração H.  
Wölfflin (1864-1945); e muitas outras correntes, outrossim  
(AUERBACH, 1987, p.40).  
Com essa tendência historicamente relativista de separar as formas clássicas do  
efeito persistente que possuem obras como as de Homero e Shakespeare nos nossos  
dias, a crítica literária termina por perder de vista a correlação entre o valor e a  
manifestação antropomorfizada do conteúdo histórico condensado na forma, seu apelo  
como parte de uma linha de desenvolvimento progressivo da humanidade. Tal linha  
não se articula de forma unidirecional, mas percorre um rio de múltiplas correntes.  
A busca teórica que Lukács empreende para articular a riqueza do efeito  
objetivo e racional das obras de arte faz com que ele acompanhe pari passu a  
conjunção das grandes questões da filosofia, sociologia, história e economia política  
com os desenvolvimentos mais ou menos conscientes da forma literária em seu tempo.  
Os limites que podem ser depreendidos daí não lhe serão indiferentes, mas não serão  
mais considerados como meros problemas da cognição geral. A possibilidade de  
compreender o entrecruzamento de causalidades e sua repercussão para reviravoltas  
da subjetividade, não mais vista como consequência trágica de uma determinação da  
consciência, faz com que Lukács proponha uma nova posição do crítico literário. Uma  
que se sirva, observando o trabalho criador, dos elementos casuais, que aparecem  
como mero expediente da verossimilhança no trabalho artístico, para entender as  
encruzilhadas que o artista constrói para desvendar ações que não estão disponíveis  
nem para si, apesar de serem uma realidade tendencial.  
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Partidarismo e crítica literária  
Evidentemente, sem abstração não há arte de outra forma, como  
poderia surgir o típico? Mas o processo de abstração tem, como  
qualquer movimento, um direcionamento, e é dele que pretendemos  
falar aqui. Todo realista significativo elabora também com os meios  
da abstração o material das suas vivências, para alcançar as  
legalidades da realidade objetiva, as conexões mais profundas, ocultas  
mediatizadas, não imediatamente perceptíveis, da realidade social.  
Como essas conexões não se encontram imediatamente à superfície,  
como essas legalidades se concretizam de forma intrincada, apenas  
tendencialmente, daí resulta, para o realista significativo, um trabalho  
gigantesco, um duplo trabalho, tanto artístico como filosófico, a saber:  
em primeiro lugar, descobrir intelectualmente e revelar artisticamente  
essas conexões; em segundo lugar, porém, e inseparável da relação  
anterior, recobrir artisticamente as conexões a que chegou por meio  
da abstração a superação da abstração (LUKÁCS, 2016b, pp. 259-  
260).  
A aparente conformidade da posição do escritor com a lógica formal não se  
confirma no segundo momento desse seu duplo trabalho, no qual suas determinações  
abstratas precisam se curvar às relações imanentes entre o caráter de seus  
personagens e as situações desenvolvidas pela necessidade social do romance. Ao  
crítico também cabe uma percepção de partido que o leva a apreender na imanência  
da obra os sinais de seu tempo nos desvios que se tornam formalmente necessários  
para um vislumbre sensível da relação entre necessidade e liberdade, ou para seu  
apagamento antipopular.  
A “estética comunista” de Lukács: crítica literária nos anos 1930  
A época em que Lukács se põe a desenvolver sua “estética comunista” é aquela  
de seu exílio em Moscou. Ele chega na União Soviética em 1929, onde irá viver com  
uma interrupção entre 1931 e 1933, quando residiu em Berlim – até 1945. “Esses  
quinze anos”, comenta Sziklai (1991, p. 132), “são o período de construção do  
socialismo em um só país, simultaneamente também a época do fascismo”. Durante  
esse tempo, Lukács exerceu de modo intenso a atividade de crítico literário, publicando  
muitos textos em diversos periódicos comunistas (e sobretudo na Literaturnyi kritik e  
na Literaturnaja gazeta). Muitos atribuem esse “recuo para a estética” ao fracasso de  
suas Teses de Blum, mas essa interpretação que encontra, aliás, respaldo em  
afirmações do próprio Lukács tem qualquer coisa de lendária (cf. SZIKLAI, 1991, pp.  
136-7).  
Mesmo sendo um emigrado, e ainda por cima, um emigrado com fortes ligações  
com a tradição alemã, o que fazia com que fosse visto com certa desconfiança até  
mesmo nos círculos comunistas, Lukács marca posição em relação aos debates que  
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Elisabeth Hess e Paula Alves  
movimentavam a vida cultural e busca se situar na opinião pública literária soviética,  
embora evitasse intervir de maneira muito direta (cf. SIEGEL, 1981, p. 172). Isso talvez  
seja um dos aspectos que particulariza nessa fase seu interesse por problemas de  
método e de teoria da literatura, os quais, contudo, como observa J. Keleman (2011,  
p. 111), já o interessavam desde sempre. Através de suas publicações, ele procura  
contribuir, como dirá no posfácio a um dos volumes de Problemas do realismo, para a  
discussão em torno de “problemas práticos e atuais de cultura” (LUKÁCS, 1971, p.  
677). G. Oldrini nota que no conjunto da produção dessa fase há ensaios que têm  
natureza polêmica, outros que surgem sob demanda, enquanto outros se destinam a  
contribuir em ocasiões como conferências e debates públicos (cf. OLDRINI, 2017, p.  
178). Uma série de gêneros textuais, portanto, que evidencia o aspecto circunstancial  
dessas publicações. Pois a intervenção em debates integra a dimensão tática da  
“estética comunista” de Lukács.  
Como reconhece Sziklai (1991, p. 135), “a observância da tática abre tanto  
possibilidades positivas quanto negativas para a estética orientada para o movimento”.  
No entanto, isso não significa que, por se ligarem a circunstâncias mais ou menos  
contingentes, as intervenções de Lukács estejam presas a elas. Ainda que ela incorpore  
em sua armação um esforço tático, em consonância com as tendências e as  
necessidades políticas do movimento revolucionário – o que constitui seu “caráter  
partidário” (SZIKLAI, 1991, p. 1334) –, a “estética comunista” de Lukács não se  
compõe de elementos desconexos, como se fosse determinada apenas pela luta  
política cotidiana. E isso não acontece porque, mesmo naqueles textos em que está se  
situando no interior de um debate específico, há uma concepção que embasa o modo  
como ele lida com os problemas do dia. Os textos sobre questões literárias diferentes,  
afirma Sziklai, “são nós de um mesmo caminho”. Lukács visa, afinal, “a conscientização  
histórico-filosófica dos conflitos decorrentes dos problemas da época [do fascismo e  
do socialismo conduzido à vitória em um só país] [...], incluindo o destino e as  
perspectivas da arte e da cultura” (SZIKLAI,1978, p. 128).  
Reconhecer as perspectivas que se abrem para a arte e para a cultura, em uma  
determinada época, pressupõe que se realize, ao mesmo tempo, uma análise das  
contradições que estruturam a vida social naquele momento. Nesse sentido, a teoria  
literária marxista cumpre um papel fundamental. A essa altura, Lukács percebe que a  
estética faz parte de maneira orgânica do sistema marxiano, diferente do que vinha  
sendo defendido por figuras de grande importância no debate estético soviético, como  
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Plekhânov ou Mehring. É essa concepção uma das razões que pode sustentar a  
afirmação de que “sua crítica específica está relacionada a toda uma teoria estética e  
não pode ser derivada das circunstâncias políticas do momento” (KELEMAN, 2011, p.  
124), embora se relacione estreitamente a elas. Esse modo particular com que tática  
e teoria se ligam na “estética comunista” de Lukács, a tensão entre partidarismo, de  
um lado, e universalidade, de outro, cristalizam-se em seu método crítico e  
interpretativo. O debate sobre o romance, que apresentaremos mais detalhadamente  
a seguir, é um bom exemplo disso.  
O início dos anos 1930 é marcado por uma guinada na teoria e política literárias  
na União Soviética (cf. SIEGEL, 1981, p. 137). Trata-se do momento em que ocorre  
uma transição da sociologia da literatura que até então havia sido bastante influente  
e passa a ser amplamente criticada para uma teoria literária marxista-leninista. E  
Lukács participa na construção desse novo aporte teórico, junto de M. Lifschitz e outras  
figuras que integram o círculo entorno da revista Literaturnyi kritik. Essa revista, na  
qual Lukács publicava regularmente suas contribuições, ficou conhecida, entre outras  
coisas, pelo papel que teve na controvérsia com a sociologia vulgar. Para K. Clark e E.  
Dobrenko, o fato de que os integrantes dessa revista produziram um extenso material  
desde antologias a monografias sobre as declarações de Marx, Engels e Lênin  
sobre literatura teria revestido de autoridade as investidas contra o sociologismo  
vulgar. Mas, como gostaríamos de mostrar, o empenho na reconstrução dos  
fundamentos de uma estética marxista e os debates contra a sociologia vulgar são, na  
verdade, “dois lados de um mesmo processo” (SZIKLAI,1978, p. 95).  
Dobrenko, em seu estudo sobre as polêmicas estéticas que ajudaram a formar a  
cultura soviética, afirma que os anos 1930 foram a “era da luta contra a sociologização  
vulgar” (DOBRENKO, 2005, p. 59). Era considerado como sociologia vulgar, como ele  
e Clark explicam (CLARK, DOBRENKO, 2007, p. 210), aquele tipo de análise da  
literatura baseada apenas em critérios socioeconômicos. Até o final da década de  
1920, as abordagens de orientação sociológica haviam sido uma das principais linhas  
de análise de obras de arte no cenário da crítica soviética. A outra, que partia de  
premissas opostas, era o método formal que sem concentrava “na investigação da  
organização interna da obra de arte e seus vários componentes” (FRIDLENDER, 1990,  
p. 516).  
Na medida em que uma e outra corrente pareciam perseguir programas de  
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pesquisa contrários, fala-se em linhas gerais de uma oposição entre sociologismo e  
formalismo na crítica literária soviética dessa época2. A despeito das divergências entre  
elas, não seria ilegítimo, de acordo com Siegel, agrupar as tendências que seguiam  
uma orientação sociológica sob uma noção comum, a de sociologismo, pois elas  
compartilhavam uma “compreensão primariamente funcional dos fenômenos literários,  
bem como de todos os fenômenos artísticos” (SIEGEL, 1981, p. 44). Isso se  
manifestaria, por exemplo, na noção de que as obras literárias seriam “expressão da  
‘psicoideologia’ de uma classe social ou grupo”, o que coloca o crítico diante de uma  
tarefa específica. Não se trata de “analisar a natureza social da arte”, antes, seu papel  
seria o de realizar uma “crítica de seu caráter ideológico (em sentido estritamente  
pragmático, de sua consciência ‘invertida’, ‘falsa’)” (SIEGEL, 1981, p. 44).  
V. Pereversev, por exemplo, é um dos representantes mais influentes dessa  
vertente, embora ele mesmo compreendesse seus trabalhos na direção do  
materialismo histórico (cf. SIEGEL, 1981, p. 59). Ele procura estabelecer seu modo de  
explicação da literatura com base no método de Plekhânov, opondo às concepções  
histórico-culturais, que concebiam os fenômenos de maneira mais ampla a partir de  
uma combinação de fatores, uma forma de monismo teórico3, que é como ele  
interpretava o materialismo histórico. De acordo com Siegel (1981, pp. 61-2), em  
alguns pontos, como na explicação da passagem do jogo para a arte, Pereversev vai  
mais longe do que Plekhânov4. Enquanto para o último a dimensão do jogo, enquanto  
“origem genética da arte”, só tinha validade para as formações sociais em que não  
2 De acordo com Siegel, essa “polarização” entre sociologismo e formalismo se manifesta apenas de um  
ponto de vista que generaliza as “principais tendências científicas da época” e, ao mesmo tempo, não  
leva em conta as diferenças ao longo dos anos 1920, já que a oposição tende a se enfraquecer. A teoria  
literária sociológica era um agrupamento de tendências, que não chegaram a constituir “uma direção  
homogênea, unitária, do ponto de vista metodológico” (SIEGEL, 1981, p. 44). Essa divergência, contudo,  
é importante para se compreender as controvérsias acirradas entre essas tendências, que, a despeito  
disso, ao menos no que diz respeito aos seus representantes que formaram escola, como Fritsche,  
Sakulin ou Pereversev, reivindicavam-se todas como materialistas e constituíam o campo da reflexão  
marxista sobre estética.  
3 “O conceito ‘monismo’”, explica Siegel (1981, p. 22), “remete ao contexto da história teórica em que  
Plekhânov desenvolve sua concepção de história e arte. Em seus trabalhos filosóficos [...] a crítica se  
dirige sobretudo contra três orientações filosóficas: contra a filosofia iluminista materialista francesa do  
século XVIII, contra o positivismo filosófico-sociológico de Taine e contra a concepção subjetivista-  
voluntarista dos ‘populistas’ russos”.  
4 Embora a relação de Plekhânov e a teoria literária de orientação sociologizante tenha sido enfatizada  
durante a mudança de curso no pensamento estético soviético, essa relação deveria ser matizada.  
Städtke (1977, p. 11) alerta, em sua apresentação desse teórico, para a necessidade de não se reduzir  
a recepção de Plekhânov às suas limitações sociologizantes. Tanto Siegel (1981, p. 25) quanto Lifschitz  
(1988, p. 501), comentando em momentos históricos diferentes as relações entre Plekhânov e o  
sociologismo, também apontam nessa direção.  
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havia antagonismo de classe, Pereversev entende que o “jogo dos seres humanos deve  
ser visto como a reprodução de seu próprio comportamento social, sua ‘psicologia’ ou  
[...] seu ‘caráter social’” (SIEGEL, 1981, p. 61). A partir desse conceito do “caráter  
social”, Pereversev generaliza “a concepção da arte como ‘jogo’ em um princípio  
universal e confere a esse pensamento uma coloração biológica” (SIEGEL, 1981, p.  
62).  
Nesse tipo de consideração, já se manifestam traços do “rigoroso determinismo”  
que caracteriza sua teoria:  
[...] para Pereverzev, o artista só pode reproduzir em uma forma  
esteticamente "válida" o caráter social da classe ou grupo social e da  
época a que pertence. Dentro dos limites estabelecidos por seu "ser"  
social, o artista só pode variar as imagens artísticas que se movem  
dentro dessa estrutura. Tentativas de transcender os limites do estilo  
de sua classe e época determinados sociopsicologicamente tem por  
consequência a suspensão do teor de verdade estético da obra de  
arte (SIEGEL, 1981, p. 64).  
Para Siegel (1981, p. 66), essa concepção de Pereversev da relação entre ser e  
consciência quase não se distingue daquela dos demais sociólogos da literatura. Trata-  
se de uma concepção mecanicista, que estabelece uma identidade, na qual não há  
qualquer possibilidade de contradição, entre o ser social do artista e as possibilidades  
de que ele dispõe, caso almeje realizar obras com qualidade estética:  
O ponto de partida para a aplicação de Pereversev do método  
marxista [...] era o axioma: a existência determina a consciência. [...]  
existência significava o processo socioeconômico que condiciona  
todos os aspectos da vida humana, incluindo a atividade literária. A  
tarefa do estudioso marxista era verificar o processo socioeconômico  
lendo a base econômica diretamente de uma superestrutura [...]. A  
obra literária era concebida por Pereversev como uma “imagem” que  
incorporava a psicologia e o “comportamento de um homem,  
conforme determinado por sua posição no processo de produção” [...]  
(ERMOLAEV, 1963, p. 93).  
Nesse sentido é possível falar de “estilo de classe”, o qual não implica, contudo,  
assumir conscientemente uma posição de classe. Pereversev é veementemente contra  
uma “funcionalização consciente e político-ideológica da arte e da literatura” (SIEGEL,  
1981, p. 65). O “estilo de classe” comporta antes uma dimensão inconsciente, que  
reproduz “o caráter social de sua própria classe social” (SIEGEL, 1981, p. 65).  
Em seus textos, Lukács não se refere nominalmente a Pereversev. Mas nesse  
período ele realiza uma crítica bastante contundente das tradições legadas pela  
Segunda Internacional. Sua posição é que elas seriam responsáveis pela situação  
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lamentável da literatura marxista no campo da estética. É verdade que no ensaio que  
escreve sobre Franz Mehring em 1935, Lukács o distancia da visão do sociologismo  
vulgar sobre a arte que vigorava nesse período, pois ele estaria acima disso. Mas, ele  
conclui, sua concepção da relação entre a base econômica e as formas ideológicas  
também é rasa, o que o leva a um tipo de ecleticismo, no qual se misturam elementos  
de sociologia e psicologia:  
A inadmissível simplificação na análise da relação entre a base e a  
superestrutura, a falta de compreensão da desigualdade do  
desenvolvimento, a negligência da teoria do reflexo da realidade na  
estética, tiveram por consequência que, em Mehring, seu esforço bem-  
intencionado e justificado para ir além do sociologismo vulgar se  
convertessem em formulações idealistas (LUKÁCS, 1969, p. 398).  
Nesse quesito de um uso da psicologia para fazer as vezes de mediação entre a  
análise sociológica e as artes, Lukács nota que Mehring se aproxima, partindo de  
pressupostos bastante diferentes, de Plekhânov (cf. LUKÁCS, 1969, p. 351). Mehring  
ocupava, a seu lado, o lugar dos “primeiros grandes críticos de arte de orientação  
marxista” (KONDER, 1967, p. 39). Mas, embora Plekhânov fosse uma referência  
importante do sociologismo vulgar afinal, como lembra Leandro Konder (1967, p.  
39-40), ele foi considerado “em certa fase o verdadeiro criador da teoria estética do  
marxismo” e, assim, era tido como a grande autoridade nessas questões –, em seus  
artigos da época Lukács em geral comenta sua obra apenas de passagem.  
Provavelmente, a razão é que ele considerava as limitações de Mehring ainda mais  
problemáticas do que as de Plekhânov5, no que diz respeito às distorções que ele  
trazia para a teoria marxista e que contribuíam para sua vulgarização.  
Mehring possui vínculos evidentes com o sociologismo literário soviético.  
Sobretudo a sua delimitação da tarefa de um crítico marxista, que consistiria na  
“análise do posicionamento do artista quanto às lutas de classe de sua época,  
objetivado no conteúdo da obra” (SIEGEL, 1981, p. 143), faz com que seus trabalhos  
sejam paradigmáticos para essa corrente teórica6. Em razão da maneira como concebe  
a relação entre economia e ideologia, na primeira fase de sua recepção pelo  
5 Bastante sintomática nesse sentido é uma passagem do ensaio sobre Mehring, em que Lukács cita um  
comentário de Thalheimer a seu respeito. Este afirma que a concepção problemática de Plekhânov do  
materialismo dialético, criticada por Lênin, torna-se para Mehring como que de praxe (cf. LUKÁCS, 1969,  
p. 428).  
6
Pereversev, no entanto, tem uma outra concepção da tarefa do crítico literário, pela qual ele foi  
igualmente criticado: Cf. SIEGEL, 1981, p. 67.  
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pensamento estético soviético, a “abordagem genético-funcional” de Mehring esteve  
no centro do interesse, sendo apropriada e desenvolvida em solo soviético. Já a  
segunda, a partir dos anos 1930, ocorre no contexto da “consideração histórica e a  
avaliação dos resultados teóricos e dos limites da Segunda Internacional, bem como  
[d]a referência atual à prática política da social-democracia alemã” (SIEGEL, 1981, p.  
142).  
De acordo com Sziklai, o “objetivo de destituir os teóricos da Segunda  
Internacional e seus discípulos das fileiras dos fundadores da estética marxista” seria  
o que moveu os “esforços táticos de Lukács” naquele momento. O que resulta desse  
esforço é o estabelecimento de uma linhagem, da “continuidade correta entre a época  
de Marx e a de Lênin” (SZIKLAI, 1990, p. 130). De fato, como mencionamos, o filósofo  
húngaro vê de modo bastante crítico a “situação ideológica da Segunda Internacional”:  
as correntes dominantes da Segunda Internacional conheciam apenas  
estes dois extremos, banalizados e contaminados pela burguesia:  
revisão idealista, "refinamento" do marxismo, ou derivação  
grosseiramente mecanicista, vulgar, não dialética e direta dos  
fenômenos ideológicos, da literatura, a partir dos fatos econômicos  
simplificados de modo banal (LUKÁCS, 2016a, p. 87).  
Essa “simplificação na análise da relação entre a base e a superestrutura” é o  
que levava os representantes da teoria literária de orientação sociológica, como  
Pereversev, a sustentarem uma compreensão mecanicista da relação entre visão de  
mundo e representação artística. Na medida em que estabeleciam uma  
correspondência direta entre ser e consciência, o que implicava uma determinação  
social, sem qualquer brecha, da consciência de classe que seria, portanto,  
homogênea , não havia nessas teorias propriamente espaço para escritores que se  
posicionassem foram do esquadro da literatura proletária. Esse era o caso, por  
exemplo, dos “companheiros de viagem” (em russo, poputčik), aqueles escritores não  
proletários que em geral estavam ao lado da Revolução de outubro, mas não se  
engajavam politicamente e defendiam uma autonomia da arte em relação à política.  
No entanto, a partir de 1928, constata Siegel, começam a ganhar mais expressão as  
tendências que, ao invés do conceito de literatura proletária, sustentam um programa  
mais sintético em torno da ideia da literatura socialista. Por isso, de acordo com esse  
autor, não foram apenas as suas insuficiências e contradições que levaram a teoria de  
um Pereversev, que até então possuía uma “autoridade quase indiscutível” (SIEGEL,  
1981, p. 60), a ser alvo de intensa crítica por parte dos órgãos oficiais. Foram, antes,  
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as implicações que ela tinha para a política literária7, que àquela altura começava a ser  
redesenhada (cf. SIEGEL, 1981, p. 66).  
A partir “das posições da teoria literária soviética desde o início dos anos 1930,  
as abordagens sociologicamente orientadas de interpretação da literatura e da arte  
foram constantemente desacreditadas” (SIEGEL, 1981, p. 84). Essa mudança responde  
a fatores políticos, ligados às etapas de consolidação de uma nova política cultural sob  
Stálin, mas não se trata só disso. Como observa Siegel (1981, p. 137), “a reorientação  
da teoria literária soviética, que começou em 1931, deve ser entendida como o  
resultado de um processo complexo no qual o momento político é apenas um  
componente”. Assim, além desse componente, que no período stalinista de fato parece  
sobredeterminar os outros campos da vida social (cf. SIEGEL, 1981, p. 147), é preciso  
considerar também fatores de ordem econômica e ideológica. Dando continuidade à  
sua ressalva, Siegel é bastante preciso em sua colocação:  
Não se deve, contudo, ignorar que em particular a discussão teórica  
no campo dos estudos literários seguiu sua lógica própria, específica  
e, portanto, não pode ser denunciada como uma ‘exegese formalizada  
de textos clássicos canonizados’ (H. M. Enzensberger), desvinculada  
de seu contexto imanente de referência [...] (SIEGEL, 1981, p. 148).  
Há, na conclusão de Siegel, um “entrelaçamento mútuo de problemas científicos  
individuais e a crítica, refletida metodologicamente, do sociologismo” (SIEGEL, 1981,  
p. 148). Nesse sentido, esse autor nota a contrapelo do que fazem muitos dos  
comentadores da teoria literária soviética nesse período que um dos fatores que  
tornou possível a ruptura no pensamento estético soviético nos anos 1930 foi o fato  
de que a base textual a partir da qual se podia reconhecer os posicionamentos  
estéticos de Marx e Engels ampliou-se enormemente nesse período. Desde o final da  
década anterior, vinham sido conduzidos trabalhos filológicos e editoriais que  
trouxeram à tona muito material inédito. Pela primeira vez, com a publicação de cartas  
de Engels (com P. Ernst, M. Kautsky e M. Harkness), dos Manuscritos econômicos-  
filosóficos, além do restante da correspondência de Engels, Marx e Lassalle sobre o  
7 Siegel cita um trecho da resolução da presidência da Academia comunista ao final do debate em torno  
da teoria de Pereversev, ocorrido em janeiro de 1930: “essa teoria é particularmente prejudicial e  
perigosa porque [...] se dirige objetivamente contra a política literária relativa à literatura de escritores  
camponeses e poputčiki e porque basicamente exclui qualquer possibilidade dos escritores camponeses  
e poputčiki de passar para a posição da consciência proletária” (apud SIEGEL, 1981, p. 67). O resultado  
da controvérsia, travada em duas ocasiões com uma “contundência sem precedentes na discussão sobre  
teoria literária até então”, foi que a “concepção de Pereversev foi qualificada como ‘um sistema estranho  
como um todo ao marxismo-leninismo” (SIEGEL, 1981, p. 61).  
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drama Franz von Sickingen, os escritos sobre arte dos revolucionários alemães são  
tornados integralmente acessíveis. Isso permite que suas concepções sobre as artes  
sejam incorporadas às discussões contemporâneas não só como afirmações pontuais  
e arbitrárias, ou a partir de considerações metodológicas mais gerais (como sobre a  
relação entre base e superestrutura), mas como um “componente integrante do  
método dos fundadores do socialismo científico” (SIEGEL, 1981, p. 144). Desse modo,  
sua importância é enfatizada a partir de uma perspectiva sistêmica.  
Os textos de Lênin sobre Tolstói, que integram o quadro das discussões a  
propósito do jubileu do escritor russo em 1908 (cf. SIEGEL, 1981, p. 153), são  
importantes para a fundamentação do ponto de vista de que não há uma relação direta  
entre visão de mundo e método. Tendo em vista que Plekhânov à época também havia  
escrito sobre Tolstói, concentrando-se na contradição, e não na unidade, entre suas  
concepções morais e artísticas, é possível até mesmo reconhecer uma analogia entre  
essas posições da crítica literária marxista pré-revolucionária e os termos do debate  
que se desenrola depois, durante os anos 1930, entre a crítica literária marxista-  
leninista e aquela de orientação sociológica. Mas, mais do que esses trabalhos de  
Lênin, é decisivo para a mudança no compasso teórico do pensamento estético  
soviético o fato de que os trabalhos de Deborin sobre a dialética materialista foram  
colocados em revista, ao mesmo tempo em que sua visão de Lênin como apenas um  
grande “político, líder” (DEBORIN apud SIEGEL, 1981, p. 136) cede lugar a uma  
abordagem mais compreensiva, que destaca também o papel de seus escritos  
filosóficos8. A partir de então, esses conhecem uma intensa recepção e Lênin se torna  
a tal ponto uma referência nas discussões teóricas sobre literatura que Siegel  
denomina a transição para a década de 1930 como “etapa leniana” (SIEGEL, 1981, p.  
136).  
Assim, é possível compreender de que modo o combate das visões da sociologia  
vulgar sobre a literatura e o estabelecimento de uma estética marxista orgânica a partir  
das visões dos clássicos sobre as artes constituem “dois lados de um mesmo  
processo”:  
Para que o legado estético de Marx, Engels e Lênin fosse reconhecido,  
era necessário, por um lado, combater o ponto de vista dos sociólogos  
vulgares que representavam os teóricos da Segunda Internacional e,  
8 Lukács comenta o debate filosófico um pouco mais detidamente em 2021, p. 81.  
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por outro lado, fazer valer os princípios da estética de Marx e Lênin e  
elaborar criativamente a teoria do realismo com base em análises  
concretas, para poder avaliar a literatura e cultura clássicas de uma  
maneira condizente com elas (SZIKLAI, 1978, p. 95).  
Décadas depois, ao comentar o que o levou a alimentar “grandes esperanças”  
no início dos anos 1930, Lukács menciona, justamente, a possibilidade de que com a  
“libertação da ortodoxia de Plekhânov” fossem esclarecidas “as relações Hegel-Marx,  
Feuerbach-Marx, Marx-Lenin” (LUKÁCS, 1970, p. 161). Parece-nos que é esse tipo de  
motivação que atravessa, como um fio condutor, as suas publicações ao longo dos  
anos 1930 e 1940 sobre literatura.  
As posições críticas de Lukács enquanto teórico da literatura: o debate sobre  
o romance  
De acordo com Illés, o debate sobre o romance teria sido “em essência, um dos  
primeiros confrontos entre o círculo em torno da Literaturnyi kritik e os sociólogos  
vulgares que se reuniam em torno de Pereverzev” (ILLꢀS, 1993, p. 255)9. Por ocasião  
desse debate, historiadores, estetas, críticos literários e filósofos se reuniram para  
discutir problemas atuais da teoria do romance. Isso poderia parecer algo quase  
natural, tendo em vista que o romance foi o gênero dominante no realismo socialista10.  
O problema do romance, em virtude de sua atualidade, “estava por assim dizer no ar”,  
como nota Sziklai (1978, p. 130), que recorda ainda outras duas discussões que  
tangenciaram esse tema11. A julgar, contudo, pelo que afirma P. Keßler (1988, p. 287),  
9 Vittorio Strada também destaca esse aspecto da confrontação entre esses mesmos atores, cf STRADA,  
1987, p. 167.  
10  
Isso é notável, e pelo seguinte motivo: à literatura era atribuído um papel de proa na educação das  
massas, mas, a certa altura, foi o drama, e não o romance, que foi considerado como o gênero literário  
mais adequado para realizar essa função. De acordo com Gronsky, virtualmente o diretor da União dos  
escritores, já que era o secretário da facção comunista, Stálin teria até mesmo declarado o drama como  
o “gênero mais importante” (ERMOLAEV, 1963, p. 229). Assim, em uma plenária convocada pelo Comitê  
organizacional da União dos escritores soviéticos em 1933, os escritores de prosa são instados a  
também escreverem peças (cf. ERMOLAEV, 1963, p. 142). Mas que o romance fosse o gênero  
privilegiado no período pós-revolucionário não é nada fortuito, como sintetiza Sziklai (1978, p. 131):  
“enquanto a década de 1920 foi a época da ‘lírica revolucionária’, no sentido de que então a relação  
do sujeito com a revolução estava no centro de todos os ramos e gêneros artísticos [...], o gênero  
predominante dos anos 1930 foi a literatura e, dentro dela, o romance. O avanço das ‘grandes’ formas  
pode ser igualmente encontrado na arquitetura soviética, que experimentou seu auge nessa época, bem  
como nos romances, que resumiam o material de vivências e da NPE, representavam o romantismo e o  
páthos da construção socialista e nos quais o ponto de vista esteticamente objetivo é de modo legítimo  
o fator determinante”.  
11  
Sziklai (1978, p. 130) menciona a discussão sobre o romance histórico, a que Lukács também faz  
alusão a certa altura de sua obra homônima. Essa discussão aconteceu na redação da revista Oktjabr,  
levando o título “O realismo socialista e o romance histórico”. Foi I. Friedland, um historiador (e não um  
historiador da literatura, como ressalta Sziklai), quem realizou a fala de abertura, defendendo, entre  
outras coisas, que o cerne do romance histórico seria uma representação “epocal” de uma era,  
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havia um descompasso entre a importância prática que o romance tinha na vida  
cultural soviética e as tentativas de compreendê-lo teoricamente do ponto de vista dos  
estudos literários. É o que também havia ressaltado F. Schiller, em sua fala que  
provavelmente abriu o debate sobre o romance12 (cf. WEGNER et al., 1988, p. 373).  
Quando não era negligenciada, a discussão sobre os gêneros acabava por descambar  
em “discussões sobre questões metodológicas de uma ciência histórico-materialista,  
isto é, marxista-leninista, da literatura e da arte” (KEßLER, 1988, p. 287), o que, tendo  
em vista a reorientação por que passa o campo dos estudos literários a partir dos anos  
1930, não deve ter sido nada fortuito. Assim, o fato de que a teoria e a história dos  
gêneros tinham merecido pouca atenção nas décadas anteriores teria sido uma das  
razões que motivou as três rodadas de discussão13 sobre o romance, na passagem de  
1934 para 1935.  
As sessões teriam sido presididas por M. Lifschitz. Em sua fala, ele dá a entender  
que os participantes haviam sido convidados para discutir o verbete sobre o romance  
que Lukács havia escrito14 para a Literaturnaya enciklopedija [Enciclopédia literária],  
sob a direção de Lunacharsky15. Lukács foi, portanto, uma figura central nesse debate.  
Sua fala16 retomou de maneira resumida os principais pontos do verbete e encontrou  
bastante resistência da parte de Pereversev e alguns outros participantes. Como  
anuncia já de saída, ele considera o romance como o gênero literário típico da vida  
sob o capitalismo. Para a época burguesa, seria típica uma arte que parte da “vida do  
homem privado, da prosa do cotidiano burguês” (WEGNER et al., 1988, p. 469). Desse  
modo, dirá o filósofo húngaro, o romance ocupa um lugar privilegiado em meio aos  
outros gêneros artísticos nessa etapa do desenvolvimento e estudá-lo também é  
baseando-se nos “dados da atividade de uma personalidade histórica”. À leitora e ao leitor de O  
romance histórico não escapa que Lukács argumenta longamente contra esse tipo de concepção. A  
outra discussão sobre o romance foi realizada em torno de uma obra pensada como um livro didático,  
escrito por F. Schiller (cf. SZIKLAI, 1978, p. 130).  
12 Os protocolos autorizados da discussão foram publicados na Literaturnyi Kritik, 1935, n. 2 e 3. Eles  
se encontram publicados também em WEGNER et al., 1988, p. 373-489, em alemão, e em CHASIN, J.,  
1999, em português.  
13 De acordo com Sziklai, Lukács realiza a palestra no dia 20 de dezembro de 1934, quando tem lugar  
a primeira rodada de discussão. Ela continua, então, em 28 de dezembro e é concluída no começo do  
ano seguinte, em 3 de janeiro.  
14  
LUKÁCS, 1981a. Tihanov (2000, p. 126) comenta as diferenças entre os textos em alemão e em  
russo. Sziklai (1978, p. 129) observa ainda que a entrada que foi publicada na Enziklopedija foi  
complementada com um “tipo de posfácio” escrito por uma outra pessoa.  
15  
Lunacharsky também teria convidado a G. Pospelov, um aluno de Pereversev, para escrever uma  
entrada sobre o romance para a enciclopédia.  
16 A fala de Lukács, na versão preparada para publicação, encontra-se em LUKÁCS, 1981b.  
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central para um pensamento estético à altura de seu tempo. Assim, a importância do  
gênero romanesco nas reflexões de Lukács sobre as relações entre literatura e  
sociedade não deriva da sua predominância no realismo socialista, mas do  
entendimento de que o romance é a forma literária burguesa por excelência e se torna,  
como aponta G. Tihanov (2000, p. 7), o “pináculo [...][dos] esforços [de Lukács] para  
problematizar as conexões entre cultura e sociedade”.  
Sendo o romance, por um lado, uma “forma de expressão da sociedade  
burguesa”, é nele, por outro, que “as contradições específicas da sociedade burguesa”  
encontram sua figuração mais adequada. Para determiná-lo, tanto do ponto de vista  
de sua forma como de seu conteúdo, Lukács parte como nota Y. Usievich, que era  
editora na Literaturnyi Kritik – de “traços determinantes da ideologia [...], que se  
desenvolvera sobre a base das relações produtivas da sociedade antiga e da sociedade  
burguesa” (cf. WEGNER et al., 1988, p. 403). Isso porque ele não só localiza o romance  
no desenvolvimento do capitalismo, mas, com base em um fundamento duplo, o  
compara com a epopeia, a forma típica de uma outra formação social. A comparação  
do romance com a epopeia se assenta tanto na consideração de que se trata dos  
gêneros representativos da literatura de seu tempo (WEGNER et al., 1988, p. 412),  
como no fato de que ambos pertencem a uma mesma linhagem, a da grande épica, na  
qual ocupam posições polares, cada um em uma extremidade em uma, o romance  
como a “forma típica da última sociedade de classes” e, na outra, a epopeia homérica,  
“a primeira grande forma da figuração épica de toda a sociedade” (WEGNER et al.,  
1988, p. 360).  
Essa sua avaliação da importância do romance enquanto forma literária típica da  
sociedade burguesa rendeu a Lukács muitas críticas, as quais podem ser agrupadas  
sob as rubricas de ahistoricismo e abstração que dão conta, aliás, da maior parte  
das críticas que foram dirigidas a ele naquela ocasião. Faltaria à sua exposição  
concretude histórica, porque a especificidade do romance só poderia ser apreendida  
a partir de seus diversos subgêneros, como o romance de aventura ou o romance  
psicológico (Timofeiev); porque o romance surgiria ao longo de “períodos de longa  
duração” sob a influência de diferentes classes, e não só a burguesa (Focht); porque  
ele não analisa concretamente as contradições de classe em cada período (Bespalov);  
ou ainda porque Lukács estaria preso na relação entre indivíduo e sociedade,  
superestimando a degradação da personalidade sob o capitalismo e assim deixaria de  
ver que já existiam romances de alto valor estético paralelamente à epopeia na  
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Antiguidade (Pereversev). Nem mesmo seria possível afirmar que o romance seria o  
principal gênero literário na sociedade burguesa: “quanto ao papel de liderança  
[Führungsrolle], como já disse, pode-se levantar dúvidas, pois ele só se aplica a  
períodos determinados de tempo” (WEGNER et al., 1988, p. 415), pontua Pereversev  
em suas intervenções.  
Mas parece que Usievich tem razão ao afirmar que essas posições diferentes  
remontariam, por sua vez, a diferentes concepções do que é a concretude histórica, a  
diferentes métodos de pesquisa (cf. WEGNER et al., 1988, pp. 403-4). No que concerne  
a Pereversev, ele reivindica seu lugar como historiador, e não como teórico da  
literatura (cf. WEGNER et al., 1988, pp. 417-8). E nessa divisão do trabalho, que não  
seria possível contornar, caberia ao teórico contemplar todos os fatos que o historiador  
levantou com base na exaustividade. Assim, caracterizar o romance como a forma que  
surge a partir de uma contradição entre indivíduo e sociedade não faz sentido,  
afirmava Pereversev, porque essa seria apenas uma contradição entre outras do  
capitalismo.  
Algumas lacunas que Pereversev, bem como outros participantes apontam no  
argumento de Lukács como, por exemplo, a ausência do romance antigo ou do  
medieval , e que deveriam ser complementadas, não são propriamente falhas que o  
desmereçam. Lukács nem mesmo se propõe a ser exaustivo, e isso não por causa das  
limitações impostas pela circunstância trata-se, afinal, de uma palestra , mas, nem  
no espaço relativamente maior do verbete, Lukács pretende dar conta do  
desenvolvimento do romance a partir do critério de exaustividade. As razões para  
tanto dizem respeito a uma questão de posicionamento metodológico, que determina,  
também, a maneira como ele concebe e concretiza a relação entre literatura e história.  
A história não se apresenta para Lukács como um contínuo de acontecimentos,  
cujo sentido só poderia ser apreendido quando todos eles estivessem catalogados,  
pois, do contrário, essa teoria estaria comprometida por seu pendor à abstração. Claro,  
ele dirá em suas teses que serão posteriormente apensas aos registros do debate, a  
“história deve ser pesquisada in extenso”, mas a questão aqui é outra: “em que  
devemos nos orientar no tratamento teórico da história?” (WEGNER et al., 1988, p.  
488). Lukács remete então à linha histórico-sistemática marxista, que fundamenta o  
seu modo de entender a questão dos gêneros literários: trata-se de desentranhar  
aqueles “momentos socialmente substantivos [gesellschaftlich-inhaltlichen Momente]  
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que determinam o surgimento e o desenvolvimento das formas singulares específicas  
do gênero” (WEGNER et al., 1988, p. 488)17.  
Nesses momentos, nas formas clássicas ou típicas, os processos que são  
pertinentes para a compreensão de um determinado fenômeno aparecem de uma  
forma mais nítida. É o que Lukács já havia apontado em suas considerações finais:  
“suas [de Marx] pesquisas histórico-sistemáticas se orientam sempre pelas formas de  
manifestação típicas desse ou daquele ordenamento social. Ele analisa as formas  
típicas e clássicas do capitalismo na Inglaterra” (WEGNER et al., 1988, p. 484). Mas  
isso não é um apelo para que as formas atípicas permaneçam esquecidas em um canto,  
desdenhadas: antes, estabelecer a legalidade de um desenvolvimento em seus  
aspectos mais gerais permite que se mostre quais relações de mútua determinação e  
diferenciação se estabelecem entre suas partes constitutivas. Nesse sentido, Lukács  
observa, ao final, que elaborações posteriores da teoria do romance deveriam dar  
conta, também, “das diversas formas de transição e intermediárias” (WEGNER et al.,  
1988, p. 489).  
Na medida em que entende como concretos “apenas os fatos empíricos”  
(WEGNER, 1988, p. 488), observa Lukács, Pereversev repete o “método histórico” de  
um Ranke e realiza uma “suprahistoricização”, um “nivelamento histórico”, ou ainda,  
na formulação de Hegel que Grib recupera e cita de passagem, ao concordar com  
Lukács quanto a sua escolha de fundar suas reflexões sobre a historicidade da forma  
épica, ele torna todos os gatos pardos (cf. WEGNER et al., 1988, p. 427). Embora os  
“desejos de complementação [...] sejam metodologicamente interessantes”, Lukács  
conjetura que Pereversev queria, na verdade, uma outra coisa”: “um artigo de  
enciclopédia burguesa, complementado pela adição de ‘epítetos’ sociológicos  
(pequeno-burguês etc.) para cada escritor” (WEGNER et al., 1988. P. 487). Esse é um  
dos poucos momentos em suas intervenções em que é possível notar uma referência  
direta ao confronto com o sociologismo vulgar, que marcou o campo dos estudos  
literários nos anos 30. Outros participantes já haviam apontado para o vínculo entre  
as posições de Pereversev e as do Instituto de língua e literatura do RANION18, da qual  
17Nesse sentido de uma “dialética viva da história” (LUKÁCS, 1964, p. 707), Bespalov cita o Marx da  
“Introdução” dos Grundrisse: “O dito desenvolvimento histórico se baseia acima de tudo no fato de que  
a última forma considera as precedentes como etapas até si mesma” (Marx apud WEGNER et al., 1988,  
p. 459).  
18  
RANION é a sigla em russo para Associação russa de institutos de pesquisa científica de ciências  
sociais, que foi fundada em 1924. No quadro de suas atividades ligadas à política acadêmica, Fritsche  
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tanto ele como Fritsche haviam sido membros19. Se, contudo, Lukács não insiste em  
demarcar de forma direta o contraste entre sua posição e a do sociologismo vulgar,  
por ocasião desse debate ele emerge, como demonstra Sziklai, justamente no seu  
posicionamento sobre o método, que envolve, também, uma determinada concepção  
sobre a relação entre forma e conteúdo nas obras literárias:  
Lukács avaliou o método de maneira diferente nos diferentes períodos  
de sua atuação; entretanto, ele nunca o viu como uma questão  
secundária, meramente técnica [...]. Na sua conferência sobre o  
romance emerge de modo mais concreto justamente a questão sobre  
o método da periodização. Lukács contrapõe ao modo de ver vulgar-  
histórico e ao empírico seu método histórico-sistemático, que parte  
das classes e do desenvolvimento de sua luta recíproca e da lei do  
desenvolvimento desigual. Lukács consegue validar o método  
histórico na periodizac  
romance, ao investigar a relac  
sócio-economicas. As formas típicas são rebentos dos tipos formais  
sociais e, assim, não podem ser separadas de seu conteúdo histórico  
concreto. As relacões entre os “fatos” literário-históricos (romance  
antigo, epopeia artística etc.) e as categorias da teoria dos generos  
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não são análogas àquelas entre líquido e recipiente (à la Pereverzév),  
pois a forma é sempre a forma de um conteúdo sócio-histórico e não  
a soma de procedimentos artísticos individuais e concretos [...] que,  
como o corpo ou o material, possibilitariam ao artista adaptá-los com  
maestria ao espírito da ideia que, em relação a isso, é externa. As  
transformac  
da posio de classe dos artistas individuais. O método histórico se  
contrapõe ao modo de ver vulgar-sociológico precisamente porque  
este último institui forcosamente essa relao externa entre forma e  
̧ões históricas da forma também não podem ser deduzidas  
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conteúdo que acabamos de descrever (SZIKLAI, 1978, p. 130).  
A consequência do nivelamento operado pelo “modo de ver vulgar-histórico”  
para a reflexão sobre os gêneros literários é que forma e conteúdo são concebidos de  
maneira independente, sem uma relação intrínseca um com o outro, tal como um  
“líquido” e um “recipiente”, de modo que qualquer matéria pode ser representada à  
maneira de Homero e isso sem qualquer prejuízo artístico. “A suprahistorização, o  
nivelamento histórico suspende a historicidade dos gêneros, motivo pelo qual, Lukács  
retruca, para seus contendores “desde ‘sempre’ existiu uma epopeia, um romance etc.”  
(WEGNER et al., 1988, p. 488). A perspectiva histórica de Lukács se revela, portanto,  
já no momento em que ele adota o contraste entre epopeia e romance como uma das  
contribuiu para a fundação de diversas instituições, dentre elas, o RANION (cf. SIEGEL, 1981, p. 46).  
19  
Pereversev, por seu turno, reitera que deixou o período do RANION para trás (cf. WEGNER et al.,  
1988, p. 413. Isso não surpreende, tendo em vista que suas posições teóricas haviam sido  
consideradas, como foi dito, contrárias ao marxismo-leninismo.  
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chaves que permite compreender o desenvolvimento deste último:  
as leis da forma do romance podem ser depreendidas da maneira mais  
segura e clara a partir dessa contraposição, pois, justamente nela, os  
problemas sociais últimos e decisivos, que determinaram a forma da  
epopeia e do romance, emergem muito mais claramente do que nas  
formas intermediárias e estruturas mistas, nos “romances” antigos ou  
nas “epopeias” modernas. (WEGNER et al., 1988, p. 360).  
Ao se ocupar desse arco histórico que vai da epopeia ao romance, em nenhum  
momento Lukács mobiliza, contudo, uma concepção de gênero literário tal como a que  
é defendida por Rozenfeld durante o debate: “o gênero é uma categoria ligada à  
classe” (WEGNER et al., 1988, p. 441). No caso, o fator que é determinante para a  
análise de Lukács não é esse, não é a classe, cuja manifestação nos fenômenos  
literários não se dá diretamente. Ele se volta para o desenvolvimento histórico-social  
como um todo, atentando-se para a maneira específica como ele se reflete nas formas  
artísticas. Mesmo que não esteja explicitada, a concepção de gênero com que Lukács  
opera ao longo de sua argumentação é a mesma que será retomada em O romance  
histórico: “cada gênero é um reflexo [Widerspiegelung] peculiar da realidade” (LUKÁCS,  
1964, p. 293). Seu surgimento não está ligado de maneira direta ao curso da luta de  
classes, mas remete de maneira mediada a um certo descompasso entre a vida social  
ou a realidade e a forma artística: “os gêneros só podem surgir quando fatos da vida  
que são típicos, legitimamente recorrentes e universais [...] [possuem uma]  
peculiaridade quanto ao conteúdo e à forma [que] não pode ser refletida  
adequadamente nas formas até então disponíveis” (LUKÁCS, 1964, p. 293).  
Sendo assim, a história dos gêneros literários também não segue apenas uma  
dialética interna própria, como se o surgimento de novas formas respondesse tão  
somente a necessidades puramente artísticas ou, ainda, como se ele pudesse ocorrer  
de forma independente, emergindo como uma novidade absoluta. Sem negar sua  
autonomia relativa, enquanto um ramo particular da vida espiritual o das artes ,  
Lukács coloca o surgimento e desenvolvimento da literatura sob o signo do processo  
social visto como um todo, e, nele, as relações materiais do processo de produção  
desempenham o papel de um nexo fundamental. Os gêneros literários possuem, assim,  
um caráter objetivo, ligado ao conjunto das relações sociais, que, por sua vez,  
transformam-se no curso do tempo por meio da ação humana.  
A comparação entre o romance e a epopeia evidencia, ao mesmo tempo, um  
outro complexo de problemas, ligados ao caráter específico da esfera artística. Por  
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meio do contraste entre essas duas formas, Lukács também pode explicitar porque, de  
um ponto de vista estético, o trânsito pela esfera da vida cotidiana, privada, é  
problemático para as formas épicas, e, ao mesmo tempo, necessário para o romance.  
Nisso se evidencia a hostilidade do capitalismo às artes, sua aversão à poesia, a qual,  
por sua vez, seria um elemento constitutivo das epopeias homéricas.  
A unidade da vida pública e privada no início da sociedade antiga é a  
base do páthos da poesia antiga: da conexão imediata de uma paixão  
individual configurada realisticamente com os problemas decisivos da  
comunidade. Na realidade da sociedade capitalista falta essa conexão  
(LUKÁCS, 1988b, p. 363).  
Essa oposição entre prosa e poesia, Lukács toma emprestado de Hegel, que é  
uma referência importante na sua concepção sobre o romance. Ele retoma diversas  
vezes a expressão “prosa da vida moderna”, a qual condensa um problema formal cuja  
origem não é imanente ao desenvolvimento artístico, mas decorre da matéria com a  
qual o artista se depara. A prosa, diz Lukács, é algo que distingue o desenvolvimento  
burguês moderno (cf. WEGNER et al., 1988, p. 361). Ela consiste, por um lado, no  
caráter abstrato das forças com que luta o indivíduo e, por outro, na trivialidade da  
vida cotidiana. O problema, então, é: como dar figuração literária a essa realidade, à  
realidade capitalista? “Os criadores dos grandes romances”, diz o filósofo,  
devem escavar bem profundamente as razões sociais do agir  
individual e deixar aparecer as paixões das pessoas individuais, eles  
devem recuperar sensivelmente, por meio de desvios complicados, os  
nexos econômico-sociais realmente existentes, para atingir o páthos  
do romance, o páthos do “materialismo da sociedade burguesa”  
(Marx) (WEGNER et al., 1988, p. 363).  
O romance surge em uma situação por vezes mais, por vezes menos –  
desfavorável, o que coloca os artistas diante de problemas diversos formais, inclusive  
e faz com que, em um sentido clássico, essa forma nunca possa reivindicar o caráter  
de completude. A forma específica do romance representa um fracasso com relação à  
epopeia. Para Lukács, contudo, isso não diminui a sua grandeza artística, pelo  
contrário; afinal, ela consiste, justamente, em que “ela [forma romanesca] reflita e  
configure artisticamente a contraditoriedade da última sociedade de classes em uma  
forma que seja adequada a ela” (WEGNER et al., 1988, p. 364). Desse modo, a história  
do desenvolvimento da forma romance poderia ser vista pela chave de “uma luta  
heroica, que é bem-sucedida por variados desvios, contra esse desfavorecimento da  
vida moderna burguesa à figuração artística” (WEGNER et al., 362).  
Note-se, assim, que as reflexões de Lukács sobre o romance se armam a partir  
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da “fusão” de dois pontos de vista: um que leva em consideração o desenvolvimento  
histórico-social e o outro, o dos processos literários. Isso é o que constitui, de acordo  
com Nicolas Tertulian, “a originalidade do [seu] método da análise literária”:  
O que faz a originalidade do método de análise literária de Georg  
Lukács é a perfeita fusão do ponto de vista sócio-histórico com o  
ponto de vista estritamente estético. [...]. Mas, nos estudos de Lukács,  
as conclusões estéticas adquirem espontaneamente um fundamento  
social e histórico. (...) O que impressiona em Lukács é o modo com o  
qual os conceitos estéticos fundamentais se fundem em toda uma  
filosofia da história e em toda uma dialética filosófica da relação  
subjetividade-objetividade. A morfologia das formas literárias aparece  
sempre rigorosamente ligada à dialética dos processos sócio-  
históricos (TERTULIAN, 2008, pp. 49-50).  
Cabe ressaltar: “perfeita fusão”. Embora isso fique claro em diversos passos da  
argumentação, talvez seja na maneira como Lukács realiza a periodização do  
desenvolvimento do romance que esse entrelaçamento entre um ponto de vista sócio-  
histórico e um outro estético se manifeste com mais força. Ele o subdivide em 5 etapas,  
levando em conta não as escolas ou outro tipo de divisão cronológica. O critério que  
o orienta é a maneira como, em cada momento, a matéria social se sedimenta em uma  
forma específica de representação da realidade. Vejamos, de modo exemplar, como  
isso acontece na primeira etapa. O “romance in statu nascendi”, isto é, o romance no  
momento de seu surgimento e do qual seriam paradigmáticos Cervantes e Rabelais,  
combina elementos plebeus com uma remodelagem dos romances de cavalaria, já  
deixando, contudo, que afluam elementos da prosa da vida burguesa, à maneira de  
uma “sombra crítica”. Lukács denomina isso em sua palestra como “fantasia realista”  
ou “realismo fantástico” (LUKÁCS, 1988b, p. 367). Essa forma, em que os nexos do  
enredo são estabelecidos de maneira mais frouxa, liga-se a uma situação histórica  
específica, como pode ser lido na entrada escrita para a enciclopédia:  
A unidade de majestade e comédia na figura de Dom Quixote, que no  
desenvolvimento subsequente nunca mais foi alcançada, baseia-se  
precisamente no fato de que Cervantes uniu organicamente em seu  
personagem, de forma engenhosa, a dupla luta contra os  
determinantes decisivos das duas épocas que se substituíam, ou seja,  
a luta contra o heroísmo vazio da cavalaria e contra a baixeza da prosa  
da sociedade burguesa, que já era bastante evidente em seu início  
(LUKÁCS, 1988a, p. 330).  
Assim, em cada fase da periodização, o romance responde a um problema que  
tem natureza social, ou seja, está, por assim dizer, fora dele, mas tem implicações  
internas, ao desempenhar um certo papel em sua fatura. Mas essa forma de tratamento  
da historicidade depende, por sua vez, justamente do reconhecimento daqueles  
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momentos socialmente substantivos que determinam o surgimento e o  
desenvolvimento das formas singulares específicas do gênero” (WEGNER et al., 1988,  
p. 488). Esse reconhecimento é de onde parte, de acordo com Lukács, a linha histórico-  
sistemática, que é aquela defendida pelo marxismo. Por meio dele, seria possível  
superar o “dualismo metodológico da concepção burguesa-socialdemocrata”, que  
separa tratamento da história e arcabouço teórico. Essa é a linha seguida por  
Pereversev, o que Lukács nesse momento indica nominalmente. Contra o sociologismo  
vulgar, que dá continuidade aos métodos e abordagens dominantes no período da  
Segunda Internacional, ele sustenta que se trata de tornar “a história (periodização)  
um momento integral do desenvolvimento teórico da peculiaridade dos gêneros”  
(WEGNER et al., 1988, p. 488). E, de fato, essa é uma ótima descrição do que ele  
realiza em sua palestra. Justamente a historização permite ver os desdobramentos  
formais a forma como a matéria (social) se sedimenta internos ao desenvolvimento  
do romance.  
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Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 71-107 - jul-dez, 2023  
nova fase  
Partidarismo e crítica literária  
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WEGNER, M. et al. (orgs.) Disput über den Roman. Berlin; Weimar: Aufbau, 1988.  
Como citar:  
HESS, Elisabeth; ALVES, Paula. Partidarismo e crítica literária: alguns elementos para a  
compreensão da “estética comunista” de Georg Lukács; Verinotio, Rio das Ostras, v.  
28, n. 2, pp. 71-107; jul-dez, 2023.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 71-107 - jul-dez, 2023| 107  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.694  
EPÍLOGO  
a Por que Lukács?1  
Epilogue  
to Why Lukács?  
Nicolas Tertulian*  
Resumo: Trata-se de manuscrito inédito enviado  
Abstract: This is an unpublished manuscript sent  
by the author to Juarez Torres Duayer and Ester  
Vaisman in 2009, which was part of the initial  
provisional version of the book Why Lukács?  
still in preparation at the time. We don't know  
the reasons why the author deleted the  
epilogue, which was conceived, at least initially,  
as the final chapter of the version that was  
finally published in Paris by the Maison des  
sciences de l'homme in 2016. The Portuguese  
translation, recently published by Boitempo  
editorial, follows the original French version, but  
does not include what Tertulian provisionally  
called the epilogue. The fact is that Tertulian  
dealt with the subject in two chapters of the  
published edition. They are: "Romanian  
ideological cauldron" and "Encounters with  
Cioran", but neither of them dealt with the  
subject with the depth and sharpness of the  
manuscript now published by Verinotio. The  
journal's editorial committee decided to make it  
public because of the importance of the analysis  
and denunciation it contains, and because it  
deals with a subject that is currently of the  
pelo autor para Juarez Torres Duayer e Ester  
Vaisman no ano de 2009, e que fazia parte da  
versão inicial provisória do livro Por que Lukács?,  
ainda em elaboração naquela época. Não se  
conhecem as razões que fizeram com que o autor  
suprimisse o epílogo, concebido, pelo menos  
inicialmente, como capítulo final da versão que,  
finalmente, veio a ser publicada em Paris pela  
editora da Maison des sciences de l’homme no  
ano de 2016. A tradução para o português,  
recém-publicada pela Boitempo editorial, ao  
seguir o original francês efetivamente publicado,  
também não traz o que Tertulian intitulou  
provisoriamente de epílogo. O fato é que  
Tertulian tratou do tema em dois capítulos da  
edição publicada. São eles: “Caldeirão ideológico  
romeno” e “Encontros com Cioran”, mas nenhum  
deles tratou o assunto com a profundidade e a  
agudeza do manuscrito, ora publicado pela  
Verinotio. O comitê editorial da revista resolveu  
levá-lo a público dada a importância da análise e  
da denúncia ali contidas, e por se tratar de  
assunto que atualmente é da mais alta  
importância do ponto de vista teórico-ideológico,  
não apenas nos países do leste europeu.  
utmost importance from  
a
theoretical-  
ideological point of view, not only in Eastern  
European countries.  
Palavras-chave:  
Tertulian, autobiografia, filosofia romena  
György  
Lukács,  
Nicolas  
Keywords: György Lukács, Nicolas Tertulian,  
autobiography, Romanian philosophy  
1 Tradução de Juarez Torres Duayer e revisão técnica de Ester Vaisman  
*
Nicolas Tertulian (1929-2019), pseudônimo de Nathan Weinsten foi um filósofo de origem romena,  
radicado na França desde 1980, em função das perseguições que sofreu pelo regime neostalinista de  
Ceausescu. Exerceu o cargo de professor de filosofia na Universidade de Bucareste e, já exilado na  
França, diretor de estudos na Ecole des hautes études em Sciences Sociales de Paris. Foi editor de  
revista literária, autor de inúmeros artigos, sobretudo, a respeito da obra lukácsiana. Foram publicados  
três livros seus no Brasil: Georg Lukács: etapas de seu pensamento estético, pela Editoria da UNESP,  
Lukács e seus contemporâneos, pela editora Perspectiva e, finalmente, sua autobiografia intitulada Por  
que Lukács? Pela Boitempoeditorial.  
Verinotio ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, jul.-dez. 2023  
nova fase  
   
Epílogo a Por que Lukács?  
A linha de pensamento hegeliano-marxista, da qual a obra de Lukács é uma  
conquista de peso, está hoje lançada na obscuridade na Europa do Leste. Querem  
fazer crer que o colapso dos países dos sistemas do “socialismo real” deve arrastar  
em sua queda, não somente a ideologia do “marxismo-leninismo” oficial (mais  
precisamente o travestimento staliniano do marxismo), mas também o próprio  
pensamento econômico e filosófico dos fundadores da doutrina. Linhas acima2,  
lembramos os avatares de Karel Kosik - antigo protagonista da Primavera de Praga -,  
filosofo marxista que sofreu repressão dura do regime staliniano na Tchecoslováquia  
e se viu obrigado a deixar a universidade, na qual havia retomado seu posto após a  
“revolução de veludo”, porque seu curso foi considerado muito “à esquerda” pelos  
bem-pensantes da restauração neoliberal. Entretanto, Leszek Kolakowski pôde  
recuperar triunfalmente sua cadeira na Universidade de Varsóvia após 1989, já que  
seus anátemas contra o marxismo justificavam plenamente tal acolhida, enquanto Karel  
Kosik foi excluído da universidade pelo regime neoliberal. O objetivo desta operação  
de travestimento ideológico, acompanhada de uma maré montante de livros e artigos  
que inundavam a praça pública, era o de se fazer crer que essa linha de pensamento  
tinha sido um “enxerto” funesto na vida social romena (no início do século XX, a  
primeira figura importante do socialismo romeno, Constantin Dobrogeanu-Gherea, já  
indagava se o socialismo não seria uma “planta exótica” nos países pouco  
desenvolvidos), e que era preciso, a qualquer preço, jogá-la a lixeira da história.  
Entretanto, tentamos mostrar que a esquerda intelectual, que se afirmou na  
Romênia após o colapso do fascismo e o início de um processo de transformação  
democrática (usurpado pela política do Partido Comunista Romeno), extraía, no terreno  
filosófico, seus instrumentos conceituais nas obras de Hegel e de Marx, mas também  
em Lukács, Gramsci, Sartre ou dos teóricos da Escola de Frankfurt, não surgiu ex nihilo,  
mas encontrava apoio importante em uma certa tradição progressista e emancipatória  
do pensamento romeno, do qual inúmeras figuras eminentes foram mestres da geração  
que surgiu após 1945. A “monocultura de direita” que invadiu as mídias romenas após  
1989 se silenciou a respeito dessa tradição de pensamento, da qual restam apenas os  
escritos filosóficos de um hegeliano admirável como D.D. Rosca ou de um ensaísta e  
um refinado estudioso da moral como Mihai Ralea, ou os trabalhos de sociólogos como  
2
Aqui como em outras partes do texto, Tertulian faz referência a questões desenvolvidas por ele no  
livro Por que Lukács?, S.P.: Boitempoeditorial, 2023.  
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Nicolas Tertulian  
Petre Andrei, Henri H. Stahl ou Alexandru Claudian, como também os escritos teóricos  
de um escritor original como Camil Petrescu, desempenharam um papel de ponta na  
afirmação de uma linha de pensamento racionalista para a geração em questão.  
Quando li o livro escrito por uma jovem pesquisadora romena, visivelmente  
marcada em sua formação intelectual pela onda do pós-modernismo e pela restauração  
das correntes anti-racionalistas, que preconizava seguir a linha de Gilbert Durand e  
não a de René Guénon, Carl Gustav Jung e não a de Georg Lukács3, para a cultura de  
seu país, é possível medir os efeitos da onda dos escritos de autores como René  
Guénon, Carl Gustav Jung ou justamente de Gilbert Durand (sem falar de Julius Evola)  
sobre a forma mentis de certos representantes da atual juventude intelectual romena.  
O que pode significar exatamente para a cultura romena se engajar na via de um  
pensamento ultraconservador, que enraizava a vida social nos pretensos mitos  
fundadores de caráter intemporal, voltando as costas para um pensamento  
eminentemente dialético, o único apto a abraçar o movimento histórico em sua  
complexidade e seus ardis?  
Ao me encontrar com Emile Cioran em Paris nos anos setenta por diversas vezes,  
e, sobretudo após ele ter publicado na Quinzaine Littéraire [Quinzena literária] um  
artigo sobre seu período romeno, por ocasião de seu aniversário de setenta anos (o  
artigo foi publicado em julho de 1981 e Cioran, visivelmente satisfeito com minha  
abordagem de seus escritos de juventude, me enviou uma carta de agradecimento  
para Heidelberg, onde me encontrava à época), pensei ter visto uma atitude crítica  
muito forte em relação ao que ele considerava ser as aberrações políticas e ideológicas  
de sua juventude, já que ele foi um dos representantes mais brilhantes de sua geração,  
que apoiou no entre guerras, a escalada da extrema direita romena. Cioran publicou  
em 1952 na Preuves, revista dirigida por François Bondy, em um número que reunia  
várias contribuições sobre a Romênia e sua situação histórica (em que figurava também  
a enviada por Mircea Eliade, amigo próximo de Cioran), um texto em que, pela primeira  
vez, ele formulou um julgamento muito crítico sobre a Guarda de Ferro e seu credo  
político (lembremos que ele glorificou em 1940, em uma conferência radiofônica, em  
termos exaltados, a figura de seu chefe, Corneliu Codreanu, durante a ditadura exercida  
por este movimento de extrema direita). Descobri esse texto em uma coleção da  
3 Raluca Dunà, “Posfácio” ao livro Mihail Sadoveanu sau Utopia càrtii de autoria de Nicolae Manolescu,  
Editura Institutul cultural român, 2005.  
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Epílogo a Por que Lukács?  
Preuves e, ao relembrar para Cioran de sua existência, ele observou que, logo após a  
sua publicação, recebeu uma carta expedida da Argentina por um antigo membro da  
Guarda de Ferro, refugiado naquele país, que o advertia violentamente a respeito de  
seu julgamento severo sobre um movimento que ele havia anteriormente apoiado.  
Aproveitei a ocasião para lembrar ao autor do célebre opúsculo Schimbarea la fatà a  
Romîniei [A transfiguração da Romênia], em que levantou com intensidade rara a  
questão do destino histórico do povo romeno, ao apresentar soluções mais do que  
questionáveis, que, por ocasião da publicação de sua primeira edição, em 1937, a  
acolhida por parte de uma certa ortodoxia legionária (a Guarda de Ferro se chamava  
a Legião do Arcanjo Miguel) não deixou de expressar fortes reservas. Fiz alusão a um  
artigo, publicado no semanário de Bucareste chamado Vremea, escrito por Arsavir  
Acterian, amigo próximo de Cioran, que criticava as teses do livro consideradas por  
ele como desviantes do credo tradicionalista e cristão-ortodoxo do movimento. Cioran  
me confessou que não se recordava desse artigo, mas a lembrança de sua existência  
estava longe de desagradá-lo.  
Ao final de uma de nossas entrevistas, ocorridas por ocasião de uma caminhada  
no jardim de Luxemburgo (que o autor de Histoire et utopie apreciava particularmente),  
encorajado pelo tom irônico com o qual Cioran começou a traçar o retrato de Nae  
Ionescu, o mestre de sua geração, elogiado sobretudo por Mircea Eliade (Cioran  
lembrou d os laços estreitos que o futuro chefe ideológico da Guarda de Ferro teve  
com Aristide Blank, banqueiro judeu muito conhecido na Romênia da época), me  
permiti lembrar ao meu interlocutor a campanha, liderada desde o final dos anos vinte  
nas páginas de Viata Romîneascà por Mihai Ralea, pensador profundamente enraizado  
nas ideias da esquerda democrática, contra os representantes da “nova geração”,  
mística e ortodoxa, incluindo Nae Ionescu, fundador com outros do Instituto Romeno  
para a Ação Nacional em 1926, criado segundo o modelo do fascismo mussoliniano.  
A ação ideológica de Ralea tinha um caráter premonitório, pois ele denunciou a  
ideologia que, uma década mais tarde, iria conduzir a Romênia à catástrofe. Mesmo  
que a “nova geração” tenha sido o partido que ele próprio havia se filiado no início  
dos anos trinta, Cioran me ouviu com atenção, contudo, quando mencionei o fato que  
Ralea tinha intitulado um de seus textos de “rasputinismo”, designando assim a mistura  
de misticismo, de culto da violência e da sexualidade em certos representantes da  
“nova geração”, ele protestou, rebelando-se contra essa qualificação considerada por  
ele obviamente como infame. Senti que havia ali um limite, que ele não queria  
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Nicolas Tertulian  
ultrapassar na sua visão crítica sobre o passado.  
Na carta que me enviou após a publicação do artigo na La Quinzaine, Cioran me  
contou, em particular, de sua satisfação pelo fato do texto ter focalizado os aspectos  
filosóficos de sua atividade juvenil, e não sobre suas derrapagens políticas, que ele  
qualificava retrospectivamente de “desagradáveis” e “na verdade, desinteressantes”.  
“Você conhece o constrangimento quase insuportável que eu sinto ao lembrar das  
extravagâncias que fiz em minha vida pregressa. Reajo a elas como uma mulher que  
tem um certo passado” (carta de 3 de agosto de 1981). Ao concentrar meus  
propósitos sobre a orientação filosófica de seus escritos do período romeno  
(completamente desconhecidos à época na França e no Ocidente, a ponto de Susan  
Sontag ter escrito que Cioran não tinha nada publicado na Romênia), com uma ênfase  
particular sobre a influência da Lebensphilosophie alemã, de Simmel a Klages, sobre  
o jovem Cioran, tentei iniciar um diálogo entre a geração filosófica à qual eu pertencia  
e a do meu ilustre compatriota. Recolhi em seus artigos de juventude, testemunhos  
reveladores sobre suas experiências filosóficas em Berlim, onde ele chegou em 1933  
como bolsista, sobre a forte sedução exercida, entre outros, pela personalidade de  
Ludwig Klages, do qual ele havia assistido a uma conferência, em que exaltava a figura  
de um verdadeiro condottiere do espírito, opondo-o a Nicolai Hartmann, titular da mais  
importante cadeira de filosofia em Berlim, cujo discurso muito acadêmico sobre os  
valores, sobre a questão da felicidade, etc. não era nem um pouco do agrado do jovem  
e impetuoso filósofo romeno. Tendo estado imerso longamente nos escritos de  
ontologia e ética de Hartmann, inspirado pela estima que o último Lukács lhe dedicara,  
evidentemente eu não compartilhava do julgamento do jovem Cioran (mesmo  
compreendendo a reação dele), e, de outra parte, do julgamento de Klages, filósofo  
do ritmo (conceito que marcou muito Cioran, que encontrava nele um apoio para  
celebrar o “frenesi”) e bajulador da pré-história, que chegou a apoiar o nacional-  
socialismo, o antissemitismo e - em um escrito publicado em 1940, sobre Alfred  
Schuler, altamente valorizado por Carl Schmitt - a suástica nazista. Em uma de nossas  
entrevistas parisienses, após a publicação de meu artigo, observei que Cioran não ficou  
indiferente à recordação de seu entusiasmo juvenil pela figura de Klages: a questão o  
incomodava e fez questão de me apontar que na Nouvelle Revue Française havia um  
artigo recente que tratava das relações de Walter Benjamin com o pensamento de  
Klages, subentendendo assim que este pensamento, de reputação tão duvidosa, pôde  
seduzir também um pensador firmemente vinculado à esquerda.  
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Os diálogos com Cioran foram facilitados pelo fato de que no debate, ao lembrar  
os nomes de pensadores romenos que, no período entre guerras, pertenciam a um  
campo ideológico oposto àquele da geração do autor de Sur les cimes du désespoir  
[Nos cumes do desespero], como Mihai Ralea ou Eugène Lovinescu, pude constatar  
que meu interlocutor, longe de rejeitá-los, falava deles com deferência. Foi assim que  
Cioran me confessou que o ensaio de Ralea intitulado “Le phénomène roumain” [“O  
fenômeno romeno”] (publicado em 1927 na Viata Româneascà), tentativa refinada e  
original de definir as características da psiquê romena, não deixou de marcá-lo em  
suas próprias interrogações sobre o destino romeno, como l’Histoire de la civilisation  
roumaine moderne [História da civilização romena moderna] (1924-25) de E.  
Lovinescu, que demandava a “sincronização” da vida social romena com a civilização  
ocidental, teve um certo efeito sobre suas invectivas anti-tradicionalistas (que  
suscitaram as críticas de seus amigos legionários). Em meu artigo de La Quinzaine  
insisti sobre esse ponto, onde me parecia possível indicar uma convergência com uma  
orientação que me era próxima (mencionei um “Keadaeev romeno”, aludindo às  
célebres cartas do escritor russo dirigidas contra o conservantismo dos eslavófilos) e  
Cioran se reconheceu totalmente nessa imagem. Alexandra Laignel-Lavastine, autora  
de um livro muito pertinente sobre o trio Cioran-Eliade-Ionesco intitulado L’oubli du  
fascisme. Trois intellectuels roumains dans la tourmente du siécle [O esquecimento do  
fascismo. Três intelectuais na tormenta do século] (2002, PUF), cometeu um grave erro  
ao interpretar meu texto como “o mais duro golpe” já dirigido contra Cioran, produto  
de algum “acerto de contas entre emigrados” (p. 125). O mal-entendido é flagrante,  
pois a finalidade do artigo era efetivamente, como ela mesma reconhece, “levantar  
partes importantes do véu” que cobria o período romeno de Cioran, mas com a  
finalidade de restituir o perfil filosófico do pensador, sua verdadeira estatura intelectual  
(na Romênia ele continuava a ser coberto de injúrias, de acordo com as páginas que  
lhe eram dedicadas na L’Histoire de la philosophie roumaine [História da filosofia  
romena] publicada à época), sem evidentemente evitar as críticas. A carta de Cioran  
mencionada abaixo mostra o quanto ele ficou grato pelo meu texto. A carta começava  
assim: “Meu caro amigo, agradeço o seu artigo tão objetivo e compreensivo”. E eu até  
me diverti ao mencionar uma pequena descoberta em meu artigo: o jovem Cioran  
certamente leu o ensaio de juventude de Lukács intitulado “A metafísica da tragédia”,  
pois ele utiliza em um de seus textos, sem citar o nome do autor, a fórmula pela qual  
o autor do ensaio publicado em 1911 na revista Logos definiu a vida cotidiana: uma  
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Nicolas Tertulian  
“anarquia de claro-escuro”. Em maio de 1984, quando fui convidado a proferir uma  
conferência na Sociedade Francesa de Filosofia, em Paris, na qual falei da Ontologia  
de Georges Lukács, Cioran veio assistir e, ao final, me aconselhou a publicá-la (uma  
versão resumida foi realmente publicada no número de abril de 1985 da revista alemã  
Merkur, antes da publicação do texto integral e da discussão que se seguiu no Boletim  
da Sociedade).  
Por recomendação insistente de Cioran, a quem entreguei, no início dos anos  
setenta, em um de nossos primeiros encontros, meu volume de Ensaios publicado em  
1968 em Bucareste (que incluiu o relato de minha conversa com Heidegger). Mais  
tarde, Cioran me aconselhou a divulgar a publicação para apoiar minha candidatura ao  
cargo de professor na Ecole des hautes études en sciences Sociales-Ehess, enviei então  
um exemplar para Mircea Eliade, cujo endereço em Chicago ele me havia fornecido. De  
volta a Bucareste, encontrei um envelope com vários impressos remetidos por Eliade,  
que me agradeceu pelo envio de meus “ensaios provocadores”! Minha hesitação inicial  
em enviar para Eliade os textos, cuja orientação ideológica, para dizer o mínimo, estava  
na antípoda da linha de pensamento que ele vinha desenvolvendo desde a juventude  
na Romênia, foi reforçada. Cioran tentou dissipar esses temores, eu o ouvi, mas ao  
registrar a reação de Eliade, me perguntei sobre o que poderia ter lhe parecido  
“provocador” em meus ensaios, dizendo a mim mesmo que era realmente um bom  
eufemismo. Bastava, de fato, dar uma olhada em um texto onde eu questionei  
fortemente a orientação filosófica e ideológica de Nae Ionescu, para entender que  
Mircea Eliade, que devia a maior parte de sua formação ao seu venerado mestre Nae  
Ionescu, poderia se sentir ofendido pelo tom fortemente crítico dessas considerações.  
Esse episódio me fez compreender que uma lacuna intransponível separava minha  
geração da chamada geração Kriterion, antes da guerra, da qual Mircea Eliade era  
considerado o líder. Não havia pontes possíveis entre aqueles que identificavam  
Stalingrado com a “agonia da Europa” (cf. Le Journal portugais de Eliade), e a vitória  
dos aliados como um dos maiores desastres da história (idem), que buscavam com  
avidez a amizade de um Carl Schmitt e alegavam que a Guarda de Ferro era um  
“movimento puramente espiritual” (minhas lembranças da infância e adolescência me  
deixaram uma imagem completamente diferente, pois Iasi era o berço do movimento  
que, desde o início, praticou assassinatos e crimes políticos) e a geração que  
considerou como sua a vocação de tornar fenômenos como o fascismo ou o nacional-  
socialismo impossíveis para sempre. Lembro-me que Geo Bogza, um dos escritores  
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Epílogo a Por que Lukács?  
mais estimados e amados de minha geração, antigo combatente contra o franquismo  
no front republicano na Espanha, gostava de dizer que reivindicava para si apenas um  
único título: o de “antifascista”. Se, seguindo o conselho de Cioran, decidi enviar a  
coletânea de Ensaios para Eliade, foi porque ela continha textos, como aquele sobre o  
"Substancialismo de Camil Petrescu", que eu imaginava ser do interesse para alguém  
que estivesse familiarizado com o papel importante desempenhado por esse escritor  
na cultura romena da época. Meu ensaio se propunha a interpretar a obra literária de  
Camil Petrescu à luz de sua doutrina filosófica. Talvez fosse uma ilusão de minha parte  
que houvesse aqui um terreno possível de diálogo com Eliade, pois eu deveria me  
lembrar que já desde o final dos anos vinte Camil Petrescu, que era um defensor  
ardoroso dos direitos imprescritíveis da intelligentsia e um crítico vigoroso do anti-  
intelectualismo e de toda forma de misticismo (ele chamava sua doutrina de  
“noocracia”4 e transformou-se em um partidário fervoroso da fenomenologia de  
Husserl, assimilando de modo pessoal o pensamento das “essências”) e havia  
polemizado fortemente com Mircea Eliade, atacando suas inclinações para o  
esoterismo e o misticismo indiano (pode-se encontrar essa polêmica nas páginas do  
semanário Literatura Universal, onde o formidável polemista que era Petrescu zombava  
do pensamento “dervixe”5 do líder da “nova geração”).  
Confrontado com a grande audiência que os escritos de Eliade, de Cioran e de  
seu amigo Constantin Noica conheceram na Romênia depois de 1989 (as livrarias  
estavam inundadas tanto pela reedição ou edição de seus escritos, como em geral  
pelos textos pertencentes à emergência da antiga extrema direita romena, por  
exemplo, os de Ernest Bernea, Mircea Vulcànescu ou Petre Tutea, sem falar de escritos  
de Nae Ionescu, iniciativa pela qual a editora Humanitas em particular foi a precursora,  
com o pretexto que estes autores teriam sido ostracizados sob o regime comunista),  
fui obrigado a constatar que a linha de pensamento muito diferente, mesmo oposta,  
representada pelos filósofos e escritores formados na escola do racionalismo ocidental,  
foi relegada a um quase-esquecimento. Seus escritos representavam, portanto na  
minha visão, conquistas das mais fecundas e mais avançadas do pensamento romeno.  
É válido indagar por que as novas gerações teriam que ser privadas do contato com  
livros como L’existence tragique de D.D. Rosca ou Explication de l’homme de Mihai  
4 Aristocracia dos sábios.  
5 Dervixe é um praticante do islamismo sufista, adepto da extrema pobreza.  
Verinotio  
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Nicolas Tertulian  
Ralea (as duas obras existem em tradução francesa), e nenhuma editora romena pensou  
em reeditá-los após 1989, e de modo mais geral, por que a tradição racionalista e  
democrática da cultura romena e europeia não foi valorizada e levada ao primeiro  
plano da vida intelectual do país? É motivo de orgulho para uma editora recusar a  
publicação dos escritos filosóficos de Sartre ou de Adorno, por causa de seu  
engajamento à esquerda, enquanto a praça pública é inundada por uma abundância  
de publicações pertencentes à antiga extrema direita?  
Há de fato um hegelianismo romeno (basta se reportar a um texto como O  
renascimento do hegelianismo publicado, durante a segunda guerra mundial, por D.D.  
Rosca e reproduzido em sua coletânea Puncte de sprijin [Pontos de apoio], publicada  
pela editora Sibiu em 1943) e tal linha de pensamento não deve ser ocultada. Qual o  
valor de um Petre Tutea, ou mesmo de Nicolae Steinhardt (judeu convertido não  
somente à religião ortodoxa, mas também à sabedoria do catecismo da Guarda de  
Ferro, a Carticica sefului de cuib) ou de Petre Pandrea (uma verdadeira síntese de  
confusão intelectual, oscilando da extrema direita à extrema esquerda para acabar no  
mais rasteiro nacionalismo) - autores que se beneficiaram de uma ampla difusão em  
um mercado intelectual dominado pela “monocultura de direita”- ao lado de um  
Alexandru Claudian, de um Henri H. Stahl ou de um Zevedei Barbu, antigo assistente  
de Lucian Blaga na universidade, professor de boa formação hegeliana, autor de uma  
obra redigida durante o último período da guerra e publicada em Paris em 1947,  
intitulada Le Développement de la pensée dialectique [O desenvolvimento do  
pensamento dialético] (ed. Alfred Costes)?  
No entanto, seria em vão procurar pelo nome de Zevedei Barbuno no inventário  
do hegelianismo romeno, publicado recentemente na França, com a assinatura de Virgil  
Ciomos na coletânea intitulada Hegel et le droit naturel moderne [Hegel e o direito  
natural moderno], publicado pela editora Vrin em 2006, como também não é possível  
encontrar - coisa ainda mais surpreendente - a lista das contribuições hegelianas do  
mais importante filósofo hegeliano romeno, D. D. Rosca (com pelo menos uma dezena  
de textos de primeira linha, a maior parte publicados nos anos 1950-1970), sem falar  
no silêncio em torno da publicação em romeno do importante capítulo sobre Hegel da  
Ontologia do ser social de Lukács, traduzido pelo filósofo da transilvano Radu  
Stoichita, excelente conhecedor de Hegel, ele mesmo ausente da lista dos hegelianos  
romenos. Os que não cessam de denunciar o sectarismo comunista mostram uma face  
nada amigável ao praticarem, por sua vez, omissões condenáveis e distorções sectárias  
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as mais flagrantes.  
Sem o contato com as traduções de obras como a Critique de la raison dialectique  
[Crítica da razão dialética] de Sartre, a Dialectique Négative [Dialética negativa] ou os  
cursos de Adorno, ministrados na universidade, os escritos filosóficos do primeiro  
Horkheimer ou do último Habermas, não será possível suscitar, na filosofia romena, o  
interesse por um pensamento da história e da sociedade, cuja necessidade é vital para  
apreender os problemas do mundo contemporâneo. A tradução pela editora Iassy do  
livro de Jacques D’Hondt Hegel secret [Hegel secreto] e de sua coletânea Hegel et  
l’hégélianisme é uma iniciativa muito boa, mas a publicação de sua tese Hegel  
philosophe de l’histoire vivante [Hegel filósofo da história vivente] daria um grande  
impulso à reflexão sobre a estrutura e as articulações do processo histórico, que  
referimos mais acima. A regeneração da reflexão crítica sobre os problemas da história  
e da sociedade foi, durante muito tempo, travada e silenciada por preconceitos e  
reflexos do pensamento, que por seu caráter obsoleto, e mesmo provinciano, se  
transformaram em obstáculos consideráveis para a sincronização do pensamento  
romeno com as conquistas importantes da filosofia contemporânea. Publicar  
monografias sobre Wittgenstein, Habermas ou sobre a ontologia analítica é uma coisa  
excelente, adquirir instrumentos intelectuais para decifrar o funcionamento da  
sociedade e da história contemporânea é outra.  
O acerto de contas com o marxismo, assimilado sem escrúpulos como endosso  
ideológico do “socialismo real”, assumiu muitas vezes, durante as duas últimas  
décadas após a revolta de 1989, formas caricaturais e grotescas. Sartre, por exemplo,  
se transformou em figura odiada pelos intelectuais obcecados pelo ódio ao  
pensamento de esquerda, os mesmos que, após 1989, se instalaram em postos de  
comando da vida pública (editoras, fundações, revistas, emissoras de televisão etc.).  
Fomos informados que o autor da Critique de la raison dialectique teria sido o  
inspirador ideológico do entorno de Pol Pot, que perpetrou os massacres de milhões  
de pessoas no Camboja, o mesmo que teria “beijado a mão de Cohn Bendit” em 1968,  
e teria sido o promotor de um “racismo negro”, conclamando, em seu prefácio ao livro  
de Franz Fanon, o extermínio dos brancos. O autor dessas propostas assombrosas,  
que tem o cuidado de não mencionar o combate exemplar de Sartre contra a guerra  
da Argélia ou do Vietnã, ou seus textos memoráveis sobre a insurreição de Budapeste,  
ou sobre o “socialismo que vem do frio”, escrito após a repressão da primavera de  
Praga, é o mesmo que fez de tudo para silenciar o debate na Romênia, sobre o passado  
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de Heidegger (um livro como o de Hugo Ott, ou mesmo o de Farias, ficaram  
completamente desconhecidos pelos leitores romenos). E quando, ele chegou a ceder  
com relutância que tal engajamento existiu, se apressou a reduzi-lo a um lapso de  
tempo muito breve: “dez meses” (mantendo silêncio, por ignorância, sobre os textos  
que contradizem seus fantasmas apologéticos); quanto ao famoso Discurso do  
reitorado, ele considera que se trata de um texto obscuro (!?), fórmula reveladora de  
uma rara cegueira, pois para todo o mundo, a começar com Benedetto Croce, o  
primeiro a reagir muito severamente à publicação do Discurso, o texto é de uma clareza  
inequívoca quanto à seriedade do engajamento nacional-socialista de seu autor.  
Um outro intelectual, pertencente à mesma família espiritual, revelou aos seus  
leitores que Sartre foi um “imbecil político”, autor de “dezenas e dezenas de páginas  
irrespiráveis”, ou ainda “histéricas”, visto que ele teria apoiado, entre outros, a  
violência e os crimes dos revolucionários de 1793; o autor em causa se pergunta  
então, inspirado pela enorme lucidez política e ideológica de um Jean-François Revel,  
com que direito se é rigoroso com o passado fascista ou nazista de Heidegger ou de  
Mircea Eliade, ao mesmo tempo em que se recusa a colocar no pelourinho Sartre,  
Marcuse ou Althusser por seu engajamento à esquerda? Esse amálgama entre a  
“direita” e a “esquerda”, mais exatamente entre a extrema direita e a extrema esquerda,  
que apaga, sob o rótulo da “crítica do totalitarismo”, o abismo entre a democracia  
radical e a repressão fascista, é igualmente familiar claro! - do leitor ocidental. A  
nuance introduzida pela intelligentsia romena que assume, sem complexos, seu  
pertencimento à “direita” mais radical (felizmente ela está longe de ser uma  
unanimidade a julgar pelas reações cada vez menos tímidas suscitadas entre os jovens  
intelectuais romenos) é o caráter antiquado, e mesmo primitivo, de sua ação de  
demonização da esquerda. A imagem de Marx, por exemplo, evocada por essa gente,  
é extraída de escritos como os do pastor Richard Wurmbrand, figura mais que duvidosa  
da “resistência anticomunista” (trânsfuga do comunismo, ele desempenhou um papel  
mais do que ambíguo por ocasião de um processo contra os comunistas romenos em  
1934), autor entre outros de um opúsculo, cujo título fala por si: Marx e Satã, ou em  
um livro de Leopold Schwarzschild The Red Prussian : the Life and the Legend of Karl  
Marx. Pode-se imaginar a perplexidade, e mesmo a ira, desses personagens quando  
descobriram em um livro póstumo de Constantin Noica, mentor de todos eles, obra  
publicada em 1990, intitulada Rugati-và pentru fratele Alexandru [Ore pelo irmão  
Alexandre], um elogio baseado no pensamento de Marx, em que o autor tinha  
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descoberto com surpresa a profundidade da crítica da alienação, quando de suas  
leituras na prisão onde o regime no poder o havia encarcerado, no início dos anos  
sessenta. Semelhante reação de despeito e estupor foi suscitada pela publicação na  
França do livro de Jacques Derrida Spectres de Marx [Espectros de Marx]: idolatrado  
até então por aqueles que enxergaram nele um eminente heideggeriano, subitamente  
desapareceu da nomenclatura dos pensadores adulados, e foi para o esquecimento  
devido ao pecado imperdoável de ter demonstrado estima pelo The Red Prussian.  
Se Marx e seus discípulos são condenados ao inferno (nos asseguram que ele e  
seu amigo Engels foram os protagonistas de crime político e do extermínio dos  
adversários, de verdadeiros antecipadores do gulag), Heidegger passou a ser objeto  
de uma admiração beata: basta ver o texto de apresentação que acompanha a tradução  
romena de Sein und Zeit [Ser e tempo] para descobrir a mistura de exaltação e de  
vazio especulativo que caracteriza a hagiografia6 romena de Heidegger. A ênfase do  
comentador, que é também um dos tradutores, mal esconde a total inconsistência da  
proposta: ele diz aos leitores que “cada página (do livro) é um formidável (!) esforço  
de entender o subentendido”, que o famoso ser-derrelito - a Geworfenheit - é um  
“enigma” ... fenomenologicamente inabordável (!?) e outras platitudes pretenciosas do  
mesmo gênero. Portanto, não é surpreendente que apesar da adoração mística  
demonstrada ao filósofo de Friburgo (o relato de uma visita à Todtnauberg, onde se  
encontra a cabana do filósofo, assemelha-se fortemente a uma peregrinação a lugares  
santos) a contribuição efetiva destes aduladores de sua obra para sua exegese  
filosófica é quase nula; o debate internacional sobre Heidegger não registrou a menor  
contribuição notável vinda desses fanáticos.  
O espectro ideológico romeno destes últimos anos oferece também o espetáculo  
de uma forte escalada do discurso religioso, acompanhado dos piores anátemas  
lançados sobre o espírito laico, pois o “ateísmo” é apontado como o cavalo de Tróia  
da bolchevização do país. Lê-se sob a pena dos porta-vozes dessas tendências,  
promovidos aliás pelo atual presidente romeno a postos-chave da vida cultural,  
imprecações contra a “secularização agressiva” da qual a Europa tem sido vítima desde  
decênios, senão séculos. São os mesmos que denunciam a Constituição Europeia de  
ter ocultado as “raízes cristãs” em seu preâmbulo, mas sobretudo são os mesmos que,  
6 Estudo sobre a biografia de santos.  
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em seu conservadorismo de outros tempos, não hesitam em falar da Revolução  
Francesa como um “horror”, pois “roubou” da França profunda (a França de Joana  
d’Arc) “o cristianismo”, o que explicaria que a continuidade da dominação da França  
pelo “esquerdismo intelectual”, que “secretamente” é incubador da utopia comunista.  
O autor destas linhas, batizado por seus pares de “Kierkegaard romeno”, sonha fundir  
a religiosidade ortodoxa com a física quântica: os amálgamas desse gênero parecem  
tomados por uma intelligentsia que escolhe seus modelos em livros como os de Frank  
Tipler, promotor do “princípio antrópico cosmológico”, livros cuja maior proeza parece  
ser a demonstração da convergência entre as conquistas da física moderna e a doutrina  
cristã da ressurreição dos mortos...7 Esses espíritos, que não podem pronunciar  
palavras como “esquerda”, sem lhe acrescentar instantaneamente o epíteto  
“totalitária”, e trazem à tona sua aversão para com a Revolução francesa, que teria  
introduzido o “igualitarismo totalitário”, partidários, é claro, da tese de Nietzsche,  
retomada por Max Scheler, segundo a qual o “ressentimento” estaria na base das  
reivindicações democráticas - “estes cavaleiros da fé”, que exibem descaradamente seu  
antimodernismo e sua nostalgia da Idade Média, ocupam o espaço público romeno  
com suas pregações a favor de uma revivescência da ontologia religiosa.  
Nós insistimos bastante sobre o progresso decisivo alcançado no terreno da  
especulação ontológica pelo triunfo de um pensamento da imanência, evocando não  
apenas a posição de um Nicolai Hartmann, soberanamente indiferente à toda  
especulação religiosa, mas, também, a de um filósofo idealista por excelência, como  
Benedetto Croce, crítico incomplacente de toda contaminação teológica da filosofia,  
ou a de um fenomenólogo como Roman Ingarden, que, no entanto, desenvolveu sua  
educação em um país aprofundamento católico como a Polônia. As críticas de Lukács  
contra a mistura do neopositivismo com a fé religiosa, em particular a sua rejeição das  
posições, de um lado de Pascual Jordan e, de outro, dos partidários de Jaspers,  
permanecem relevantes e eficazes.  
Um jovem intelectual romeno, que defendeu e publicou na França uma tese de  
doutorado sobre Carl Schmitt, escolheu um tema de forte inspiração teológica como  
eixo de sua pesquisa: trata-se do katechon, designação da ação retardadora frente à  
7 Frank J. Tipler The Physics of Immortality . Modern Cosmology. God and the Resurrection of the Dead,  
1994, New York Doubleday. Frank J. Tipler and John D. Barrow The Anthropic Cosmological Principle,  
1986, Oxford University Press e Frank J. Tipler The Physics of Christianity, 2007, New York, Doubleday.  
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ascensão do poder do Anticristo. O autor da tese parece muito marcado pelas ideias  
desenvolvidas por Alain Besançon em seu livro sobre La falsification du bien: Soloviev  
et Orwell (1985), pois a partir da proximidade que ele estabelece entre as posições  
de Schmitt e as dos pensadores ortodoxos russos, ele se propõe a afirmar a ação  
“katechônica” como freio e obstáculo à expansão das forças que encarnam a subversão  
do cristianismo. O objetivo ideológico de uma tal operação é transparente: o Anticristo  
contra o qual age o katechon é o movimento humanista e socialista universal, a  
ascensão da secularização; Schmitt e os teólogos ortodoxos russos eram mobilizados  
para encarnar o contramovimento salutar destinado a salvar a civilização europeia. O  
entusiasmo pelo pensamento de Carl Schmitt, paralelamente ao da teologia ortodoxa  
russa, mostra bem o estado de espírito de uma certa intelligentsia romena em uma  
época muito parecida àquela da Restauração. Não surpreende que o livro em questão,  
Sous l’oeil du grand inquisiteur - Carl Schmitt et l’héritage de la théologie politique  
[Sob o olhar do grande inquisidor - Carl Schmitt e a herança da teologia política]  
(2004, Les Editions du Cerf, Passages) minimize completamente, até à banalização, a  
dimensão do engajamento nacional-socialista de Schmitt. A minimização é efetuada  
com argumentos derrisórios (o “orgulho intelectual” teria levado o jurista a se aliar à  
causa de Adolf Hitler, da mesma forma que “a neutralização da tendência mais radical  
do nacional-socialismo” - alusão ao assassinato de Röhm, que justificaria o apoio  
prestado por Schmitt à “noite das facas longas”)8. A profundidade da conexão entre  
o pensamento do autor de Concept du politique e seu engajamento ideológico e  
político, a partir de 1933, foi ocultado. O autor do livro é Théodore Paléologue,  
(nomeado ministro da cultura do último governo do regime Basescu), acreditava na  
possibilidade de negar a relação interna entre a teoria dos “grandes espaços”,  
desenvolvida por Schmitt a partir de 1937, que fundamenta sua apologia do Reich, e  
a política expansionista do Reich hitleriano na mesma época, embora seja evidente que  
Schmitt, com sua teoria Raum gegen Universalismus [espaço contra o universalismo],  
atacava tanto o universalismo liberal-democrático, quanto o universalismo comunista,  
portanto a política das democracias ocidentais, assim como da Rússia soviética, com o  
8
Sobre o assunto cf. nos textos Le concept du “peuple politique” dans la révolution conservatrice no  
volume Penser la souveraineté à l’époque moderne et contemporaine, sob a direção de Gian Mario  
Cazzaniga e Yves-Charles Zarka, II, 2002, Paris/Pisa, Edizioni ETS, coedição com a Librairie  
Philosophique Vrin, pp.485-487 e Scènes de la vie philosophique sous le Troisième Reich. Steding,  
Schmitt, Heideggerno volume organizado por Yves-Charles Zarka Carl Schmitt ou le mythe du politique  
(2009, PUF, « Débats philosphiques »), pp. 157.  
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objetivo de legitimar, no plano ideológico, a ação das potências do Eixo, a Anschluss,  
a ocupação pela Alemanha hitleriana da Tchecoslováquia, a guerra da Itália contra a  
Abissínia e a guerra desencadeada pelo Japão em Pearl Harbour, com objetivo de  
afirmar a supremacia de seu Império no “grande espaço” asiático.  
A poderosa ressureição da religião e da especulação teológica na Romênia pós-  
comunista (neste sentido, também podem ser citados os colóquios organizados em  
Bucareste pelo New Europe College, entre os últimos o sobre “Les pères de l’Eglise  
dans le monde d’aujourd’hui” [“Os padres da Igreja no mundo de hoje”], cujas atas  
foram publicadas em 2006 pelas Edições Beauchesne), vem acompanhada, é claro, de  
uma verdadeira cruzada contra o pensamento de Marx, denunciando-o como o ápice  
da perversa secularização que invadiu o mundo desde o humanismo da Renascença.  
Nós já mencionamos os anátemas contra a Revolução francesa que podem ser lidos  
sob a pena dos protagonistas dessa onda medieval. As ironias contra os partidários  
do “humanismo” pertencem ao mesmo registro. Os aduladores do renascimento da  
religião formam uma boa dupla com os apóstolos do “paradigma liberal”, em uma  
santa aliança contra o marxismo ímpio e contra o horror da “utopia coletivista”.  
No entanto, se olharmos mais de perto no plano especulativo a consistência  
desta literatura neo-ortodoxa, ficaremos impressionados com a indigência dos  
conceitos utilizados. Um livro de estudos sobre anjos refere uma “ética do intervalo”,  
que situaria o homem entre a “precariedade” e a “transcendência”, propondo  
definições do seguinte tipo: “no intervalo, os homens são uma espécie de mistura, de  
crescimento, um dia fascinados pela retórica da pureza e do absoluto, um outro dia  
mergulhados na mais negra das angústias corporais, espiritual e mental”9. É de se  
perguntar como os autores de tais pregações típicas de padres interioranos, cuja  
verborragia e as fórmulas enfáticas mal escondem a pobreza do conteúdo, não se dão  
conta que uma antropologia ou uma ontologia religiosas, fundadas sobre as  
“verdades” desse tipo, pertencem a um capítulo definitivamente obsoleto da história  
das ideias, e que, uma época que conheceu avanços tão importantes no campo da  
antropologia filosófica (basta pensar nos escritos de Gehlen, de Helmuth Plessner, de  
9
Andrei Plesu, Actualité des anges, 2005, Buchet-Chastel, tradução de Laure Hinckel, p. 21. Despre  
îngeri, 2003, Bucuresti, Humanitas, p. 21, O texto romeno tem um sabor tal, que merece ser citado no  
original: os homens são „un soi de mismasuri, de corcituri, cînd halucinati de retorica puritàtii si  
absolutului, cînd pràbusiti în cea mai neagrà mizerie trupeascà, spiritualà si mentalà”! [“uma espécie de  
descompasso, de convulsões, quando alucinados pela retórica da pureza e do absoluto, quando caem  
mais na mais negra miséria corporal, espiritual e mental”, NT: tradução do romeno].  
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Clifford Greetz e em tantos outros), quando o método ontológico-genético permitiu  
uma explicação puramente imanente, a exclusão de toda “transcendência”, a  
emergência da humanidade do homem, o retorno às verdades desgastadas da  
antropologia religiosa significa pura e simples um retorno a uma era devoniana do  
pensamento.  
Quanto às imprecações contra Marx e contra a ideia comunista, que são o fundo  
comercial dessa intelligentsia, pode -se notar que não se trata, em nenhum momento,  
de um verdadeiro exame crítico dos fundamentos filosóficos do pensamento dos  
autores de A Ideologia Alemã. O mais prolífico detrator do marxismo, um trânsfuga  
deste pensamento, pois começou com um trabalho sobre a Escola de Frankfurt (e que,  
como todos os trânsfugas, é de uma implacabilidade particular para denunciar hoje o  
que ele abraçou ontem) continua despejando caminhões de acusações contra um  
pensamento que ele caracteriza como “liberticida” e “totalitário”, que legitimaria, por  
sua natureza, os piores crimes da história, uma “utopia coletivista” que conduz  
diretamente ao gulag. Não se encontra, no entanto, nessas obras lamentáveis a menor  
consideração por textos fundamentais da doutrina que se quer colocar no pelourinho,  
e é necessário notar que essa literatura silencia completamente a crítica radical da  
perversão staliniana do marxismo e de práticas dela decorrentes naqueles pensadores  
que continuaram fiéis aos ensinamentos fundamentais de Marx, como Lukács e Bloch,  
Adorno, Marcuse ou o segundo Sartre. E por boas razões, pois é muito mais fácil  
recolher algumas ideias nos escritos dos neoconservadores americanos (Kristol,  
Podhoretz, etc.) ou na tendenciosa e tão pouco confiável Histoire du marxisme de  
Kolakovski, do que se confrontar com o discurso filosófico de Lukács na Ontologia do  
ser social ou na Estética, com Bloch em Experimentum Mundi, com Adorno na  
Dialectique Négative ou com Sartre em seus escritos filosóficos. Mas não podemos  
pedir tanto a caixeiros viajantes do antimarxismo, que tentam inundar o espaço  
mediático romeno, beneficiários dos mais altos níveis de apoio (felizmente é possível  
registrar, na nova geração de intelectuais romenos, reações salutares contra os ultras  
e suas ideias arcaicas). Não se pode abusar por muito tempo dos leitores que, cedo  
ou tarde, encontrarão os meios para formarem por si próprios uma imagem objetiva  
da história das ideias e de suas implicações políticas.  
Como citar:  
TERTULIAN, Nicolas. Epílogo a Por que Lukács?. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2,  
pp. 108-123; jul-dez. 2023.  
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ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 108-123 - jul-dez, 2023 | 123  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.698  
As formas jurídicas em O capital  
Juridical forms in The Capital  
Vitor Bartoletti Sartori*  
Resumo: Apesar da força e difusão da teoria  
pachukaniana segundo a qual a forma jurídica é  
Abstract: Despite the strength and diffusion of  
the Pachukanian theory according to which the  
legal form derives from the mercantile form, we  
intend to demonstrate that the category legal  
form is not as central to Marx as it seems to be  
at first sight. Forms like contract, property,  
justice, juridical transactions are criticized by  
Marx, certainly. However, we try to prove, from  
the analysis of The Capital, mainly from book III,  
that the correlation of these forms with the  
commodity form, as a rule, is much more  
mediated and indirect than what Marxist  
criticism of Law, within Pachukanis as a main  
influence, seems to suggest.  
uma  
decorrência  
da  
forma  
mercantil,  
pretendemos demonstrar que a categoria forma  
jurídica não é tão central a Marx quanto parece  
ser à primeira vista. Formas como o contrato, a  
propriedade, a justiça, as transações jurídicas, as  
garantias jurídicas, são criticadas por Marx,  
certamente. No entanto, procuraremos explicitar,  
a partir da leitura de O capital, principalmente do  
livro III, que isto se dá ao passo que a correlação  
destas formas com  
a
forma-mercadoria,  
geralmente, é muito mais mediada e indireta do  
que parece sugerir a crítica marxista do Direito,  
cuja principal referência ainda é Pachukanis.  
Palavras-chave: Marx, Pachukanis, formas  
jurídicas, O capital  
Keywords: Marx, Pachukanis, juridical forms, The  
Capital  
No Brasil, a concepção mais recorrente sobre a crítica marxista ao Direito é  
aquela segundo a qual o ponto de partida inafastável desta posição está em  
Pachukanis, cujo livro Teoria geral do Direito e o marxismo teria trazido um autêntico  
retorno a Marx. Os méritos desta posição, bem como do jurista soviético não são  
poucos, certamente. (Cf. SARTORI, 2015; GOLDMANN, 2014; HEAD, 2004) Há, no  
entanto, um pressuposto essencial nesta tradição que talvez possa ser questionado.  
Ao dar a tônica no debate marxista brasileiro sobre o Direito, diz Márcio Naves:  
Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às  
referências ao Direito encontradas em O capital e não seria exagero  
dizer que ele é o primeiro que verdadeiramente as lê mas,  
principalmente, ele retorna à inspiração original de Marx, ao recuperar  
o método marxiano. (NAVES, 2000, p. 16)  
* Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Mestre  
em história social pela PUC-SP e doutor em teoria e filosofia do direito pela USP. E-mail:  
vitorbsartori@gmail.com.  
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As formas jurídicas em O capital  
O ponto de partida básico do melhor da tradição de crítica marxista ao Direito  
é aquele segundo o qual Pachukanis é fiel a Marx, tanto no que toca o método, quanto  
no que diz respeito à exegese das passagens do autor, principalmente de O capital.  
Segundo autores como Naves (2000, 2014) e Mascaro (2012, 2013), Pachukanis  
estaria certo ao trazer, já em Marx, uma correlação entre a forma jurídica e a forma  
mercantil; o autor soviético também estaria correto na leitura segundo a qual a  
mediação essencial para que a circulação de mercadorias se desse, principalmente ao  
se ter em conta a venda da força de trabalho, seria aquela da igualdade jurídica.  
Partindo do postulado segundo o qual “não deixa de existir um vínculo interno  
indissociável entre as categorias da economia mercantil e monetária e a própria forma  
jurídica” (PACHUKANIS, 1988, p. 7), tais autores vêm como central à crítica marxista  
do Direito a contraposição, não só ao conteúdo classista do Direito, mas também à  
sua forma, que seria essencialmente capitalista. (Cf. MASCARO, 2018)  
Ou seja, o ponto de abertura para o marxismo tratar da esfera jurídica estaria  
tanto na categoria forma jurídica quanto no método marxiano, ambos, corretamente  
apreendidos pelo autor de Teoria geral do Direito e marxismo, que, assim, seria  
inafastável ainda hoje.  
Tem-se, assim, um papel bastante proeminente do Direito na extração de mais-  
valor: sem ele a própria compra e venda da mercadoria força de trabalho não poderia  
se dar; sendo assim, no limite, “o mundo da mercadoria é jurídico; a equivalência a  
tudo preside. Não há outro direito que não o capitalista.” (MASCARO, 2018, p. 63)  
Deste modo, mesmo que autores como Naves e Mascaro não tenham perspectivas  
idênticas, ambos dão bastante importância com Pachukanis ao modo pelo qual  
seriam as relações jurídicas, em meio à forma jurídica, a possibilitar o intercâmbio de  
mercadorias na esfera de circulação mercantil a partir da constituição objetiva da  
relação-capital.  
Aqui, a partir do que José Chasin chamou de análise imanente1, pretendemos –  
1 Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação ideal em  
sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto  
positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais  
lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos  
modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de  
produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se  
todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados  
destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26)  
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mesmo que reconheçamos os méritos dos autores mencionados acima questionar  
estes pontos de partida; intentamos demonstrar também que, a partir de O capital e  
da análise das formas jurídicas, é possível trazer teorizações que, não obstante não  
refutem a totalidade da posição pachukaniana, colocam-se para além dela. A partir da  
leitura de O capital, obra principal da qual Pachukanis parte, buscaremos analisar a  
categoria forma jurídica, bem como sua posição na exposição marxiana. Procuraremos  
demonstrar que o caminho “clássico” da crítica marxista ao Direito no Brasil diante do  
principal texto de Marx passa longe de ser evidente, por mais que existam passagens  
de O capital que pareçam ratificá-la. Após isto, mostraremos que a tessitura das formas  
jurídicas é diferente daquilo consolidado no Brasil pela leitura que é feita do livro I,  
principalmente do capítulo II.  
Os grandes indícios a favor da concepção pachukaniana de forma jurídica: será  
possível um ponto de partida diverso?  
A análise pachukaniana, embora parta também de obras como Sobre a questão  
judaica – texto considerado “de juventude” pela tradição althusseriana, na qual Márcio  
Naves se insere (Cf. ALTHUSSER, 1979) tem por essencial O capital, em especial, o  
livro I desta obra. A correlação entre a lei do valor, o trabalho abstrato e a circulação  
de mercadorias vêm à tona em Teoria geral do Direito e marxismo a partir de uma  
leitura bastante sofisticada, que tem por central na esteira de Rubin (1987) o  
caráter fetichista da mercadoria. Com isto, Pachukanis passa longe do marxismo vulgar.  
E, em meio a tal debate, tem-se, para autor, o desenvolvimento da categoria forma  
jurídica.  
Parte-se da seguinte passagem marxiana, localizada no capítulo II, do livro I de  
O capital:  
As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar.  
Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores  
de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não  
opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa  
vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, tomá-las. Para  
que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é  
necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como  
pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um,  
somente de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas  
mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da  
mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto,  
reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa  
relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou  
não, é uma relação de vontade, em que se reflete uma relação  
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econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado  
por meio da relação econômica mesma. (MARX, 1996 a, p. 79)  
Segundo a mencionada tradição brasileira de crítica marxista ao Direito, nesta  
passagem, a partir da noção de forma e de pessoa, tem-se a conformação da forma  
jurídica e de sua correlação com a categoria sujeito de direito. (Cf. KASHIURA, 2009,  
2014) A troca de mercadorias necessitaria de sujeitos iguais, sendo a vontade destes  
equacionada pela forma jurídica colocada no contrato. A conformação dos guardiões  
de mercadorias em proprietários, portanto, traria consigo um elo essencial: a igualdade  
jurídica, equacionada pela relação jurídica, que, por sua vez, traria consigo a  
conformação da relação econômica mesma. Há, inclusive, uma passagem nas Glossas  
sobre Wagner que parece corroborar com Pachukanis, trazido ao Brasil pelas lentes  
althusserianas:  
Mostrei na análise da circulação de mercadorias que no escambo  
desenvolvido as partes se reconhecem tacitamente como pessoas  
iguais e como proprietários dos respectivos bens a serem por eles  
trocados; eles já o fazem ao oferecer uns para os outros seus bens e  
ao entrar em acordo uns com os outros sobre o negócio. Essa relação  
fática que se origina primeiro na e através da própria troca adquire  
mais tarde forma jurídica no contrato etc.; mas essa forma não cria  
nem o seu conteúdo, a troca, nem a relação nela existente das pessoas  
entre si, mas vice-versa. (MARX, 2017, p. 273)  
Também aí, Marx fala de forma jurídica, de contrato, de circulação de mercadorias  
e de pessoas iguais que se colocam na circulação de mercadorias.2 De imediato,  
portanto, parece haver confluência perfeita entre o texto de Marx e a leitura  
pachukaniana.3 Porém, talvez seja necessário analisar as coisas mais de perto.  
Primeiramente, isto precisa se dar tendo em conta uma análise um pouco mais detida  
das passagens que citamos, que estão no nível de abstração do livro I de O capital,  
2
Haveria ainda necessidade de analisar a questão nos Grundrisse. No entanto, como Pachukanis não  
chegou a conhecer tal obra e como, aqui, nos propomos a analisar, sobretudo, O capital, não poderemos  
realizar a mencionada análise. Ela pode ser de grande relevo, pois na obra de 1857 é muito mais  
abundante a categoria sujeito. Cf. SARTORI, 2022.  
3
Há a impressão de haver completa convergência com Engels: “tratava-se da secularização da visão  
teológica. O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As  
relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja,  
porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado. Visto que  
o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social isto é, por meio da  
concessão de incentivos e créditos engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige  
regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade normas jurídicas  
estabelecidas pelo Estado , imaginou-se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas  
dos decretos formais do Estado. Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das  
relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se  
o principal brado de guerra da burguesia.” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 17-18) Para a análise da  
igualdade jurídica em Engels, Cf. SARTORI, 2016, 2018.  
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que é essencial a Pachukanis. Depois, porém, é necessário analisar como que a  
categoria forma jurídica aparece efetivamente na obra magna marxiana, já que as  
referências explícitas a ela estão, em sua maioria, no livro III desta obra. Vejamos,  
portanto, como que as coisas se delineiam.  
Forma jurídica, forma mercadoria e os distintos níveis de abstração de O capital  
Uma primeira observação a ser feita é: o capítulo II de O capital, analisado com  
bastante cuidado por Pachukanis e pela tradição que bebe em Teoria geral do Direito  
e marxismo, situa-se na primeira sessão do livro I, que passa pela mercadoria, pelo  
processo de troca, pelo dinheiro e pelo dinheiro colocado na circulação; a sessão II,  
por sua vez, fala justamente da transformação do dinheiro em capital. Há de se notar  
dois pontos, portanto: primeiramente, no capítulo I de O capital, Marx termina falando  
do caráter fetichista da mercadoria e da reificação, ou seja, há um “antes” a ser  
abordado na exposição de Marx; o segundo ponto diz respeito à existência de um  
“depois”, que se coloca na análise marxiana da própria colocação do dinheiro como  
capital, na sessão II. Levantar este ponto pode parecer bastante óbvio e até mesmo  
desnecessário; porém, acreditamos, não é.  
Na exposição marxiana, parte-se da mercadoria, mas essa só é compreensível ao  
se analisar o dinheiro e o capital, que são as principais formas econômicas tratadas no  
livro I. É necessário que se diga isto porque, para Marx, “é, sem dúvida, necessário  
distinguir o método de exposição formalmente do método de pesquisa.” E, assim, “a  
pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de  
evolução e rastrear sua conexão íntima.” A exposição, por conseguinte, só se coloca  
depois da apreensão das determinações da materialidade: “só depois de concluído  
esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real.” (MARX, 1996  
a, p. 140) Ao se falar de “método” em Marx, portanto, é indispensável tanto o modo  
de pesquisa (Forsuchungweise) quanto o modo de exposição (Darstellungweise)4; e,  
assim, tanto no capítulo da mercadoria estão pressupostos o dinheiro e o capital  
quanto nos capítulos sobre estas formas econômicas está pressuposta a mercadoria.  
Ou seja, ao se tratar do capítulo II de O capital, não há como deixar de abordar sua  
relação tanto com o capítulo I quanto com os capítulos subsequentes. Isto parece e  
4
Utilizamos aqui tradução diversa àquela colocada nas passagens que citamos por acreditarmos que  
nossa tradução é mais literal e precisa. Sobre esta questão, Cf. ALVES, 2013.  
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até certo ponto é bastante óbvio. No entanto, há algumas consequências importantes  
a serem destacadas a partir deste truísmo que procuramos ressaltar agora. Tais  
truísmos parecem ser desnecessários, mas, segundo importantes autores e diversos  
entre si como Lukács (2013), Rosdolsky (2001), Reicheld (2013), Grespan (2019),  
entre outros, são essenciais.  
No final do capítulo I, diz Marx sobre os trabalhadores: “aos últimos aparecem  
as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como  
relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos” e diz algo  
essencial para nosso tema ao complementar: “senão como relações reificadas entre as  
pessoas e relações sociais entre as coisas.” (MARX, 1996 a, p. 199) A forma pela qual  
se dá a apresentação dos produtos do trabalho humano, portanto, é aquela em que  
há uma inversão entre coisas e pessoas, inversão esta que faz parte da própria  
efetividade (Wirklichkeit) do modo de produção capitalista. A apresentação  
(Darstellung) e a representação (Vorstellung) não são simples erros ou acertos dos  
indivíduos concretos, mas parte da própria conformação da realidade efetiva da  
sociedade capitalista. (Cf. GRESPAN, 2019) Assim, um primeiro apontamento sobre a  
noção de pessoa que aparece na passagem que é chave para Pachukanis é: ela não  
pode ser dissociada daquilo que Marx trazia imediatamente antes, no final do capítulo  
I. O primeiro parágrafo do segundo capítulo do livro de Marx, ao trazer a relação entre  
mercadorias e guardiões de mercadorias, está remetendo diretamente a este processo  
real e efetivo em que, no capitalismo, os homens são dominados pelas coisas; tanto é  
assim que os guardiões só se referem a si mesmos como pessoas na medida em que  
suas vontades residem nas coisas.  
Marx, em grande parte, dá continuidade à temática anteriormente tratada, e que  
envolve a reificação. Há acréscimos de determinações na exposição, certamente.  
Porém, isto se dá com uma continuidade considerável. E, assim, o autor mostra como  
a apresentação e a representação das relações sociais se dá de modo invertido, porque  
a própria realidade traz esta inversão em seu ser-proprimamente-assim. (Cf. LUKÁCS,  
2013) Os indivíduos, assim, aparecem como guardiões de mercadorias e, como tais,  
representam a si mesmos e se apresentam a si mesmos como pessoas, reconhecendo-  
se como proprietários privados. (Cf. RUBIN, 1987) No que, neste ponto, tem-se algo  
de grande importância para nosso tema, que passa pela função ativa das formas  
jurídicas.  
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Em meio a este reconhecimento, o Direito é efetivo. A relação jurídica se coloca  
a partir da vontade dos agentes da produção (no caso, da troca de mercadorias) na  
medida mesma em que suas vontades passam a residir nas coisas. A noção de pessoa  
que aqui aparece, portanto, está permeada pelo Direito, certamente. No entanto, pelo  
que vemos, seria bastante equivocado reduzir a noção de pessoa a uma categoria  
jurídica, como a categoria sujeito de direito.5 Antes, tem-se toda a questão sobre a  
relação entre pessoas e coisas se colocando em ato no processo de troca de  
mercadorias, processo este que, na exposição de Marx, pressupõe a conformação das  
coisas como mercadorias e também as relações de produção como aquelas da  
produção capitalista de mercadorias.6 Ou seja, mesmo ao se tratar da circulação  
simples, a reprodução ampliada está pressuposta na exposição.  
Assim, há claramente uma oposição entre pessoas e coisas, que é central a Marx,  
não só na passagem, mas, acreditamos, em todo O capital7. Marx fala da relação  
jurídica, cuja forma é o contrato, mas está enfatizando o conteúdo desta relação, que  
seria dada pela relação econômica mesma. Pode-se ver, portanto, que a ênfase de  
Marx não está nesta forma jurídica (e muito menos “na” forma jurídica), que se coloca  
no contrato; antes, o autor alemão está tratando da conformação das relações  
econômicas, em que há uma correlação objetiva e contraditória entre as formas  
econômicas da mercadoria, do dinheiro e do capital, desenvolvidas no livro I. O  
tratamento marxiano desta forma jurídica passa pelo reconhecimento como pessoas  
iguais e como proprietários, certamente. E, quanto a isto, a tradição pachukaniana está  
5
Aqui não dizemos que a compreensão e a crítica à categoria sujeito de direito não seja importante.  
Ela é. E um dos grandes méritos da tradição pachukaniana é trazer isto à tona. Dizemos somente que,  
em Marx, a categoria pessoa não corresponde imediatamente ao sujeito de direito, que é uma categoria  
essencial, não à economia política ou à crítica à economia política, mas à teoria jurídica. (Cf. SARTORI,  
2015)  
6
É importante destacar que, para Marx, a produção de mercadorias e a produção capitalista de  
mercadorias são coisas diversas: “as mesmas circunstâncias que produzem a condição básica da  
produção capitalista a existência de uma classe de trabalhadores assalariados requerem a passagem  
de toda a produção de mercadorias para a produção capitalista de mercadorias. À medida que essa se  
desenvolve, tem o efeito de decompor e de dissolver cada forma antiga de produção, a qual, orientada  
preferencialmente para o autoconsumo direto, só transforma o excedente do produto em mercadoria.  
Ela faz da venda do produto o interesse principal, primeiro sem aparentemente atacar o próprio modo  
de produção, como foi, por exemplo, o primeiro efeito do comércio mundial capitalista sobre povos  
como os chineses, indianos, árabes etc. Mas, em segundo lugar, onde tenha fincado raízes, ela destrói  
todas as formas de produção mercantil que se baseiem seja no trabalho do próprio produtor, seja  
apenas na venda do produto excedente como mercadoria. Ela generaliza primeiro a produção de  
mercadorias e transforma depois gradualmente toda a produção de mercadorias em produção  
capitalista.” (MARX, 1985, p. 32)  
7 Para uma análise detida da questão, e de sua relação com a religião em O capital, Cf. SARTORI, 2019 a.  
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certíssima, e vem destacando tal aspecto acertadamente. (Cf. CASALINO, 2019) No  
entanto, há de se enfatizar que Marx está tratando de uma relação fática; ele está  
trazendo à tona como que a faticidade econômica, em suas diversas determinações,  
vem se tornando efetiva e sendo encaminhada com o auxílio de formas jurídicas como  
o contrato, mas tendo por essencial o movimento das relações econômicas mesmas.  
Marx, por isso, é enfático ao dizer que esta forma contratual não cria seu conteúdo,  
somente o reconhece; antes, seria a troca e a relação entre as pessoas que, por mais  
que o oposto se apresente como verdadeiro, é que criam esta forma jurídica.8 E, em  
meio a este processo que se impõe sobre os indivíduos por relações reificadas, tem-  
se as pessoas aparecendo como iguais.  
Até aqui, portanto, notam-se grandes acertos da tradição pachukaniana, bem  
como do próprio Pachukanis. No entanto, há de se perceber que o que está em debate  
na passagem marxiana que é central para a Teoria geral do Direito e o marxismo não  
é o Direito, mas a correlação entre as diversas formas econômicas, cujo conteúdo é  
somente operacionalizado por uma forma jurídica (no caso, o contrato), que  
substancialmente depende da conformação objetiva da relação econômica mesma.  
A aquilo que é veiculado pela forma jurídica em tela, diz Marx, origina-se,  
primeiramente, da própria troca. Esta última parece ser por si só subsistente ao passo  
que, em verdade, traz consigo uma complexa relação entre produção, distribuição,  
troca, circulação e consumo. (Cf. MARX, 2011) Ou seja, há formas econômicas que  
aparecem como coisas, ao passo que são conformadas por meio de relações sociais,  
que se impõem às pessoas. A categoria pessoa, que é trazida à tona por Marx, só pode  
ser compreendida em meio a estes meandros. E há de se notar algo que o autor  
menciona ao falar do capital, e que conflui com o que estamos dizendo: o “capital não  
é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas intermediada por coisas.” (MARX,  
1996 b, p. 384) Ou seja, tanto ao se olhar aos capítulos precedentes à passagem que  
Pachukanis toma por central quanto ao se analisar os subsequentes, há uma  
compreensão muito mais ampla sobre a categoria pessoa. E, no entendimento  
marxiano, a relação entre pessoas e coisas vem a ser central. (Cf. SARTORI, 2019 a)  
No entanto, há de se destacar outra questão importante para a tradição  
8
Para um estudo do modo pelo qual a crítica a esta inversão se mostra bastante presente na obra  
marxiana, principalmente no livro III de O capital, Cf. SARTORI, 2019 c, b.  
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pachukaniana.  
Sobre a conformação da relação-capital, há um elo importante a ser visto no  
Direito também. Isto se dá, não só pelo papel que as leis sanguinárias exerceram na  
assim chamada acumulação primitiva ou na regulamentação da atividade fabril9 (algo  
que não foi enfatizado por Pahukanis), mas ao passo que a compra e venda da  
mercadoria força de trabalho perpassa por formas jurídicas: primeiramente, porque,  
segundo Marx, “o capitalista comprou a força de trabalho pelo seu valor de 1 dia. A  
ele pertence seu valor de uso durante uma jornada de trabalho. Obteve assim o direito  
de fazer o trabalhador trabalhar para ele durante 1 dia.” (MARX, 1996 a, p. 345-346)  
Ou seja, o direito do capitalista de se apropriar do mais-valor produzido pelo  
trabalhador, diz Marx, não é “de modo algum, uma injustiça contra o vendedor.” (MARX,  
1996 a, p. 311)10 Antes, é algo que perpassa a sociabilidade capitalista como tal. E,  
assim, o Direito, como bem destacaram Pachukanis e seus seguidores, vem a ter uma  
função ativa na compra e venda da força de trabalho, que é exercida na esfera da  
circulação de mercadorias. Porém, há uma ressalva que deve ser feita: ao se ter em  
conta a arquitetura de O capital, bem como aquilo que está pressuposto na exposição  
marxiana, há de se ir além. É necessário averiguar, ao se analisar não só a circulação  
simples, mas a “acumulação de capital, isto é, a acumulação capitalista real” (MARX,  
1985, p. 378) e a reprodução ampliada, como que o capital, em meio às formas  
econômicas, coloca-se como tal11 ao se ter a compra e venda da mercadoria força de  
trabalho. Assim, em um nível maior de concretude, aquele da acumulação de capital,  
da reprodução ampliada (tratados no livro II, e praticamente deixado intacto tanto por  
9 Para uma análise destes aspectos em Marx, Cf. SARTORI, 2019 d.  
10 Na passagem na íntegra, diz Marx: “o valor de uso da força de trabalho, o próprio trabalho, pertence  
tão pouco ao seu vendedor, quanto o valor de uso do óleo vendido, ao comerciante que o vendeu. O  
possuidor de dinheiro pagou o valor de um dia da força de trabalho; pertence-lhe, portanto, a utilização  
dela durante o dia, o trabalho de uma jornada. A circunstância de que a manutenção diária da força de  
trabalho só custa meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder operar, trabalhar um  
dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização cria durante um dia é o dobro de seu próprio valor de  
um dia, é grande sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o vendedor.”  
(MARX, 1996 a, p. 311) Sobre a questão da justiça em Marx, Cf. SARTORI, 2017.  
11  
Diz Marx: “se na circulação simples o valor das mercadorias adquire no máximo, em confronto com  
seu valor de uso, a forma autônoma de dinheiro, aqui ele se apresenta subitamente como uma  
substância em processo e semovente, para a qual mercadorias e dinheiro são ambos meras formas. Mas  
ainda mais. Em vez de representar relações mercantis, ele entra agora, por assim dizer, numa relação  
privada consigo mesmo. Ele se distingue, como valor original, de si mesmo como mais-valia, assim como  
Deus Pai se distingue de si mesmo como Deus Filho,” (MARX, 1996 a, p. 274) Para uma análise da  
referência marxiana à religião, e de sua relação com o sujeito automático do capital, Cf. SARTORI, 2019  
a.  
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Pachukanis quanto pela tradição pachukaniana), diz Marx sobre o assunto:  
Embora portanto, no ato D - FT, o possuidor do dinheiro e o possuidor  
da força de trabalho só se relacionem reciprocamente como  
comprador e vendedor, confrontando-se como possuidor de dinheiro  
e possuidor de mercadorias, por esse lado portanto só se encontrem  
um com o outro em mera relação monetária ainda assim, o  
comprador de antemão aparece simultaneamente como possuidor dos  
meios de produção, que constituem as condições objetivas do  
dispêndio produtivo da força de trabalho por seu possuidor. Em  
outras palavras: esses meios de produção se contrapõem ao  
possuidor da força de trabalho como propriedade alheia. Por outro  
lado, o vendedor de trabalho se confronta com seu comprador como  
força de trabalho alheia, que tem de passar a seu domínio e ser  
incorporada a seu capital, para que este funcione efetivamente como  
capital produtivo. A relação de classe entre capitalista e trabalhador  
assalariado já existe, já está pressuposta no momento em que ambos  
se defrontam no ato D - FT FT - D, da perspectiva do trabalhador. E  
compra e venda, relação monetária, porém uma compra e uma venda  
em que se pressupõem o comprador como capitalista e o vendedor  
como trabalhador assalariado, e essa relação está dada pelo fato de  
que as condições para a realização da força de trabalho meios de  
subsistência e meios de produção estão separadas, como  
propriedade alheia, do possuidor da força de trabalho. (MARX,1985,  
p. 29)  
A citação acima é extraída do livro II, que, juntamente com o livro III de O capital,  
praticamente não são analisados pela tradição pachukaniana. Isto faz com que seja  
preciso mitigar um pouco os acertos do autor da Teoria geral do Direito e o marxismo  
na leitura, bem como no “método” de Marx. Primeiramente, porque o autor soviético  
vem a deixar de lado em sua análise muitas passagens sobre o Direito de O capital (e  
de outras obras também); em segundo lugar, há de se destacar que os diferentes níveis  
de concretude12 da exposição marxiana não são analisados com todo o cuidado pelo  
jurista soviético.13 E, ao se notar isto, há de se destacar que na esfera de circulação de  
mercadorias de imediato há reconhecimento tácito das pessoas como iguais, como  
destacou Marx no livro I e nas Glossas sobre Wagner. Porém, em um nível de  
concretude maior, as coisas se dão, até certo ponto, de outro modo. A igualdade entre  
as pessoas permanece pressuposta, mas coloca-se no processo de circulação de  
mercadorias a partir da conformação destas pessoas como portadores de relações  
sociais estranhadas, como individualidades subsumidas à reprodução do capital e do  
12 Sobre os diferentes níveis de concretude da obra, Cf. ROSDOLSKY, 2001.  
13  
O próprio Pachukanis sabe que sua obra não é exaustiva nem traz a palavra final sobre a Direito e  
marxismo: “o presente trabalho não pretende ser de jeito nenhum fio de Ariadne marxista no domínio  
da teoria geral do Direito; ao contrário, pois em grande parte foi escrito objetivando o esclarecimento  
pessoal.” (PACHUKANIS, 1988, p. 1)  
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valor. Ou seja, na exposição do livro II, bem como na realidade imediata da circulação,  
o grau de fetichização das relações econômicas é ainda maior que aquele que Marx  
traz à tona no capítulo II de O capital. E isto traz diferenças quanto à função do Direito.  
A partir do momento em que há uma mais substantiva reificação e uma  
autonomização das formas econômicas, os indivíduos sequer aparecem como pessoas  
diante do movimento do capital; antes, eles se apresentam como funções econômicas,  
havendo muita diferença entre aquele que possui dinheiro que opere como capital e  
aquele que é portador da mercadoria força de trabalho. No livro II, e na passagem que  
trazemos acima, há, não só o modo pelo qual o fetiche da mercadoria é efetivo, mas  
também o fetiche do dinheiro colocado em ato. É verdade que “o enigma do fetiche  
do dinheiro é, portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria, tornado visível e  
ofuscante.” (MARX, 1996 a, p.216) No entanto, é igualmente verdadeiro que são  
diferentes níveis de concretude aqueles em que, de um lado, a relação entre pessoas  
e coisas traz certa tensão na figuração da mercadoria e, doutro, há certo ofuscamento  
mais pungente e em que os homens aparecem, não só como guardiões de mercadorias,  
mas como possuidores de dinheiro, dinheiro este que já funciona real e efetivamente  
como capital, como valor que gera valor. Tem-se também neste nível de abstração a  
conformação do capital industrial como algo que já traz relações essenciais com o  
capital monetário. Este último, por sua vez, embora sempre tenha relação com o  
primeiro no modo de produção capitalista, aparece na esfera da circulação como algo  
subsistente por si. Ou seja, ao tratar da compra e venda da força de trabalho é preciso  
trazer à tona a igualdade entre as pessoas, mas também é necessário mostrar como  
que esta igualdade é superada na circulação de mercadorias na medida em que aos  
indivíduos é atribuída uma função precisa na divisão social do trabalho.  
Assim, Marx traz claramente diferentes funções dos indivíduos, funções estas  
caracterizadas pelas coisas que, de um modo ou doutro, os dominam: trata-se de  
possuidores de dinheiro e da mercadoria força de trabalho. Esta relação social aparece  
como uma relação monetária, em que são pressupostos todos os atributos da relação-  
capital. Tanto o dinheiro como a mercadoria força de trabalho estão subordinados a  
um movimento, aquele em que a acumulação de capital se coloca.  
Trata-se do modo pelo qual mercadoria e dinheiro subordinam-se ao movimento  
do capital que, na reprodução ampliada, precisa tornar-se produtivo, em outras  
palavras, tem a necessidade de produzir mais-valor. (Cf. COTRIM, 2013) Aqui, Marx  
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enfatiza como que a relação entre capitalista e trabalhador já existe e é pressuposta  
na esfera da circulação de mercadorias. Esta última, assim, é marcada por uma peculiar  
reificação: ao mesmo tempo em que tal esfera parece ser autônoma, ela traz por trás  
de si uma configuração específica das relações sociais de produção. Para que as coisas  
apareçam como mercadorias, as pessoas se reconhecem como proprietários,  
certamente. Mas isto só se dá ao passo que a mediação mais importante na compra e  
venda de mercadorias não é tanto a igualdade jurídica que se dá entre pessoas iguais,  
mas o dinheiro14; o material e o conteúdo da relação jurídica são dados pela relação  
econômica mesma na medida em que, como se diz nos Grundrisse, “como o dinheiro  
aparece aqui como material, como mercadoria universal dos contratos, toda diferença  
entre os contratantes é, ao contrário, apagada.” (MARX, 2011, p. 300)15  
Ou seja, não é só a forma-mercadoria que tem um papel importante na  
conformação da igualdade, que é reconhecida pelo Direito a partir da faticidade da  
economia. A forma dinheiro é essencial e, deste modo, a relação entre formas jurídicas  
e forma mercantil certamente passa pela forma dinheiro, e pelo fetichismo do dinheiro.  
Para que tragamos uma passagem do livro I de O capital, “como no dinheiro é apagada  
toda diferença qualitativa entre as mercadorias, ele apaga por sua vez, como leveller  
radical, todas as diferenças.” (MARX, 1996 a, p. 252) Assim, os meandros daquilo que  
leva à posição pachukaniana ficam mais destacados quando, ao trazer à tona a  
categoria pessoa, diz Marx, também no livro I: “o dinheiro mesmo, porém, é uma  
mercadoria, uma coisa externa, que pode converter-se em propriedade privada de  
qualquer um. O poder social torna-se, assim, poder privado da pessoa privada.” (MARX,  
1996 a, p. 252) Vê-se: o poder privado da pessoa privada diz muito menos respeito  
à relação entre forma-mercadoria e forma jurídica que à relação entre a primeira e a  
forma econômica do dinheiro, que funciona como um leveller. Mesmo que o autor de  
Teoria geral do Direito e o marxismo traga um ponto digno de destaque,  
definitivamente, há de se ir além.  
Pachukanis, assim, mesmo que tenha ressaltado importantes aspectos do livro I  
de O capital em sua leitura de Marx, ao analisar a forma jurídica do contrato, não trata  
14  
Destacamos tal aspecto ao tratar do livro II de O capital. A importância da forma econômica do  
dinheiro para a análise do Direito, bem como para que se remete para além de Pachukanis, também foi  
destacada por Casalino (2019), que faz uma análise do livro I da obra magna de Marx.  
15  
Também nos Grundrisse, que não podemos tratar aqui com detalhes, parece haver em Marx um  
tratamento do Direito que o coloca de modo mais mediado do que aquele trazido pela tradição  
pachukaniana. Cf. SOARES, 2018.  
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com cuidado, ao menos não com o cuidado devido, a dialética entre forma-mercadoria  
e forma dinheiro.16 Ele vem, assim, a enfatizar a categoria sujeito de direito de um  
modo que, embora possa ser importante para a crítica interna à teoria do Direito (Cf.  
SARTORI, 2015, 2019 a), não é condizente com o texto marxiano.  
Sejamos claros: se há correspondência entre a categoria pessoa tratada por Marx  
e o sujeito de direito pachukaniano, trata-se de uma inovação do autor de Teoria geral  
do Direito e o marxismo, e não de algo que já estivesse no texto de Marx. No texto  
marxiano, a noção de sujeito está presente, no entanto, mas não na figura do sujeito  
de direito. Isto ocorre, não ao tratar do Direito, da forma jurídica contratual e da relação  
jurídica, mas ao trazer à tona a peculiar relação entre as mercadorias, o dinheiro e o  
capital. Este último e é valor que gera valor. E, no modo de produção capitalista, o  
passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento,  
valor “  
e assim se transforma num sujeito automático.” (MARX, 1996 a, p. 273)17  
Ou seja, em  
O capital, as referências de Marx à categoria sujeito18 colocam-se, em geral, noutro  
contexto, aquele em que a autovalorização do valor preside as formas mercadoria e  
dinheiro:  
Como sujeito usurpador de tal processo, em que ele ora assume, ora  
se desfaz da forma dinheiro e da forma mercadoria, mas se conserva  
e se dilata nessa mudança, o valor precisa, antes de tudo, de uma  
forma autônoma, por meio da qual a sua identidade consigo mesmo  
é constatada. E essa forma ele só possui no dinheiro. Este constitui,  
16 Em sua análise do livro I, Casalino (2019) parece ter se dado conta disto também. O mesmo pode ser  
dito sobre a análise de Soares (2018) sobre os Grundrisse.  
17  
Diz Marx, remetendo, inclusive à fantasmagoria que se coloca como efetiva no modo de produção  
capitalista: “as formas autônomas, as formas dinheiro, que o valor das mercadorias assume na circulação  
simples mediam apenas o intercâmbio de mercadorias e desaparecem no resultado final do movimento.  
Na circulação D M D, pelo contrário, ambos, mercadoria e dinheiro, funcionam apenas como  
modos diferentes de existência do próprio valor, o dinheiro o seu modo geral, a mercadoria o seu modo  
particular, por assim dizer apenas camuflado, de existência. Ele passa continuamente de uma forma para  
outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático. Fixadas as formas  
particulares de aparição, que o valor que se valoriza assume alternativamente no ciclo de sua vida,  
então se obtêm as explicações: capital é dinheiro, capital é mercadoria. De fato, porém, o valor se torna  
aqui o sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro  
e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, enquanto mais-valia se repele de si mesmo, enquanto  
valor original, se autovaloriza. Pois o movimento, pelo qual ele adiciona mais-valia, é seu próprio  
movimento, sua valorização, portanto autovalorização. Ele recebeu a qualidade oculta de gerar valor  
porque ele é valor. Ele pare filhotes vivos ou ao menos põe ovos de ouro.” (MARX, 1996 a, p. 273-  
274) Para uma análise detida da passagem, Cf. SARTORI, 2019 a.  
18  
Nos Grundrisse, obra que Pachukanis não chegou a conhecer, a categoria sujeito é muito mais  
abundante. Alguns, como Soares (2018) buscam nesta obra as origens da crítica marxista (e, ao ver do  
autor, marxiana) do sujeito de Direito. De nossa parte, acreditamos que, também nos Grundrisse, mesmo  
quando Marx fala de uma concepção jurídica de pessoa, tem-se um contexto muito mais amplo que  
aquele em que ganha destaque a categoria sujeito de direito. Aqui, porém, não podemos tratar desta  
questão, sendo preciso somente apontar sua pertinência.  
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por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo processo de  
valorização. (MARX, 1996, p. 274)  
Por isso, a partir de Marx não há de se destacar, ao menos sem mediações, que  
o correlato do fetichismo da mercadoria é o fetichismo do Direito. (Cf. PAÇO CUNHA,  
2015) É também um pouco apressado trazer uma correlação entre a forma-mercadoria  
e “a” forma jurídica. (Cf. PAÇO CUNHA, 2014) Pelo que vimos, a forma jurídica do  
contrato medeia as diferentes metamorfoses da forma mercadoria, as quais, por sua  
vez, colocam-se como um elo no ciclo do capital social:  
O movimento do capital social consiste na totalidade dos movimentos  
de suas frações autonomizadas, das rotações dos capitais individuais.  
Tal como a metamorfose da mercadoria individual é um elo da série  
de metamorfoses do mundo das mercadorias da circulação de  
mercadorias , assim a metamorfose do capital individual, sua rotação,  
é um elo no ciclo do capital social. (MARX, 1985, p. 261)  
A íntima relação entre as formas econômicas autonomizadas é essencial para  
Marx. E isto se dá porque formas como o dinheiro, por mais que se relacionem  
intimamente com a mercadoria e com o capital, têm uma espécie de fetichismo próprio.  
Ele é trazido à tona ao passo que o fetichismo da mercadoria, no movimento do capital,  
é elevado a um nível de estranhamento superior, nível este que é tratado por Marx nos  
livros II e III com mais cuidado, mas que aparece já no livro I de O capital. Somente  
para que mencionemos a questão, que aqui fugiria de nosso escopo que é analisar  
a conformação da categoria forma jurídica em Marx , vale dizer que, ainda no livro  
que é analisado com mais cuidado por Pachukanis, ao tratar dos empréstimos, diz  
Marx que “a mercadoria do vendedor circula, mas realiza seu preço somente sob a  
forma de um título de crédito de direito privado.” (MARX,1996 a, p. 256)19 E, assim,  
nota-se que há um papel proeminente do Direito não só no capital industrial e na  
produção de mais-valor (aspectos estes destacados por Pachukanis), mas também no  
19 Na íntegra da passagem, Marx aponta: “apenas ao vencer o prazo fixado para o pagamento, o meio  
de pagamento entra realmente em circulação, isto é, ele passa realmente das mãos do comprador para  
as do vendedor. O meio circulante converteu-se em tesouro, ao interromper o processo de circulação  
em sua primeira fase ou ao ser subtraída da circulação a forma transformada da mercadoria. O meio de  
pagamento entra na circulação, porém depois que a mercadoria já se retirou dela. O dinheiro já não  
media o processo. Ele o fecha de modo autônomo, como existência absoluta do valor de troca ou  
mercadoria geral. O vendedor converte sua mercadoria em dinheiro para satisfazer a uma necessidade  
por meio do dinheiro, o entesourador, para preservar a mercadoria em forma de dinheiro, o comprador  
que ficou devendo, para poder pagar. Se não pagar, seus bens são vendidos judicialmente. A figura de  
valor da mercadoria, dinheiro, torna-se, portanto, agora um fim em si da venda, em virtude de uma  
necessidade social que se origina das condições do próprio processo de circulação. O comprador  
retransforma dinheiro em mercadoria antes de ter convertido mercadoria em dinheiro ou realiza a  
segunda metamorfose da mercadoria antes da primeira. A mercadoria do vendedor circula, mas realiza  
seu preço somente sob a forma de um título de crédito de direito privado.” (MARX, 1996 a, p. 256)  
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modo como vem a figurar o capital monetário, que Marx aborda com mais cuidado no  
livro II. Ou seja, se formos tomar a leitura de O capital como guia para os acertos do  
autor de Teoria geral do Direito e o marxismo, notamos, ao mesmo tempo, grandes  
acertos (mesmo que estes precisem ser matizados em diversos pontos) e lacunas  
consideráveis. Sobre a fidelidade de Pachukanis às passagens de Marx não se pode  
silenciar acerca disto.  
Deste modo, pretendemos ter demonstrado que a fidelidade do autor soviético  
ao “método” de Marx também precisa ser vista em seus meandros. Talvez haja uma  
ênfase exagerada na relação entre forma jurídica e mercantil, bem como no papel do  
Direito como mediador na produção do mais-valor. Isto se dá porque o autor vem a  
tratar com menos cuidado do que deveria dos diversos níveis de concretude de O  
capital (e do sistema capitalista). Acertadamente, destaca a relação entre o modo pelo  
qual opera o Direito e o fetichismo da mercadoria; porém, não dá o mesmo destaque  
ao fetichismo do dinheiro, à autonomização do capital monetário e ao papel do direito  
na distribuição do mais-valor em meio à operacionalização de figuras econômicas  
como lucro, renda e juros, questão que trataremos no próximo tópico deste artigo. (Cf.  
SARTORI, 2019 b, c) Também se tem que a compreensão da categoria pessoa vem a  
ser excessivamente ligada ao capítulo II do livro I, deixando de analisar a dialética  
peculiar que se coloca entre a função dos indivíduos como agentes da produção e da  
circulação no movimento do capital social e o modo pelo qual estes indivíduos, real e  
efetivamente, nunca podem ser reduzidos a meras funções, mesmo que suas  
individualidades estejam em grande parte subsumidas ao movimento do capital social.  
Pachukanis começa pala mercadoria e, assim, acredita estar seguindo o “método”  
de Marx. Porém, ao partir da mercadoria, talvez, ele não diferencie com todo o cuidado  
o modo de exposição e o modo de pesquisa marxiano, deixando de perceber-se das  
correlações e pressuposições de cada um dos níveis de abstração do texto de O capital.  
Para uma leitura rigorosa da obra de Marx, isto também é essencial. Mesmo que o  
autor soviético traga conquistas essenciais, também traz lacunas.  
Em O capital, tem-se que “a riqueza das sociedades em que domina o modo de  
produção capitalista aparece como uma 'imensa coleção de mercadorias' e a  
mercadoria individual como sua forma elementar.” (MARX, 1996 a, p. 165) A partir  
disto, o autor soviético, ao invés de trazer à tona a dialética das formas econômicas  
tratadas por Marx, e, assim, analisar a função do Direito em meio ao sistema capitalista  
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de produção, vem a trazer uma analogia (Cf. PAÇO CUNHA, 2014) como ponto de  
partida: “assim como a riqueza da sociedade capitalista tem a forma de uma enorme  
acumulação de mercadorias, a sociedade em seu conjunto apresenta-se como uma  
cadeia ininterrupta de relações jurídicas.” Então, complementa ao dizer: “a troca de  
mercadorias pressupõe uma economia atomizada. Os vínculos entre as diversas  
unidades econômicas privadas e isoladas são mantidos a cada vez que os contratos  
são firmados.” (PACHUKANIS, 1988, p. 55) Pelo que dissemos, seriam necessárias  
algumas outras mediações para que fosse possível, a partir do texto de Marx, tratar  
das relações jurídicas. As conquistas de Pachukanis na leitura de Marx são  
significativas, mas também são os lapsos nesta interpretação, que, como dissemos, fez  
escola no Brasil. A essa luz, talvez seja necessário rever a relação entre forma jurídica  
e forma mercadoria, não para invalidar a obra pachukaniana, mas para que seja  
possível, com a leitura de Marx, ir para além dela.  
As formas jurídicas no livro III de O capital  
Um ponto central sobre o nosso tema passa pelo fato de que, se a noção de  
forma jurídica aparece, de modo indireto, embora efetivo, no livro I, analisado por  
Pachukanis, o mesmo não se dá no livro III, em que a expressão aparece explicitamente.  
Na passagem analisada pelo autor soviético, Marx fala da relação jurídica cuja forma é  
o contrato; e vimos, a partir das Glossas sobre Wagner, que não é simples exagero de  
Pachukanis retirar a categoria forma jurídica da passagem. Porém, a alegada fidelidade  
com o texto e com o “método” de Marx fica muito prejudicada se não se analisa as  
passagens em que a categoria forma jurídica aparece explicitamente, no caso, no livro  
III.  
Como mencionamos, há todo um cuidado a ser tomado quando se trata dos  
graus de abstração em que as passagens da obra marxiana se colocam, a rigor, sendo  
preciso passar pelas determinações essenciais da relação-capital (livro I), pelo processo  
de circulação de mercadorias em meio à acumulação de capital (livro II) e pelo processo  
global de produção (livro III). Ou seja, o trabalho pachukaniano contribui muito na  
análise dos temas do livro I (mesmo que não se trate de uma análise exaustiva e que  
se apoia excessivamente no modo pelo qual as coisas se apresentam na circulação  
simples). Por vezes, o autor soviético deixa também a desejar na análise de elementos  
inerentes à própria constituição da relação-capital, como a conformação do circuito D-  
M-D´. (Cf. CASALINO, 2011) Assim, para uma análise do Direito em O capital, seria  
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relevante passar pela maneira pela qual o capital monetário aparece representado,  
também, em títulos jurídicos, trazendo consigo uma espécie de existência dúplice.  
Aqui, porém, não poderemos tratar deste importante tema de modo exaustivo. Mas é  
possível que analisemos mesmo que rapidamente e a partir deste aspecto como  
que o papel ativo do Direito se apresenta, pelas formas jurídicas, no processo global  
de produção, em que juros, renda e lucro são figuras bastante importantes ao mesmo  
tempo em que isto diz respeito à mencionada existência dúplice do capital monetário  
e do dinheiro.  
Um primeiro aspecto a ser destacado diz respeito às transações econômicas que,  
por meio de formas jurídicas como o contrato, são operacionalizadas. Segundo Marx,  
por meio das formas jurídicas, os agentes da produção representam as suas situações  
concretas como aquelas que poderiam ser iguais ao passo que não são. Ou seja, ao  
mesmo tempo em que a igualdade entre as pessoas, trazida à tona no livro I, é efetiva,  
também o é a desigualdade entre os diferentes agentes da produção (analisada no  
livro II), como aqueles que são detentores do capital monetário e do capital industrial,  
como os agentes da circulação e os agentes da produção. Ou seja, no livro III, tem-se  
o modo pelo qual a efetividade do sistema capitalista, ao mesmo tempo, traz a  
igualdade entre as pessoas e a negação do status de pessoa dos indivíduos concretos.  
Sem que se perceba deste aspecto, é bastante difícil compreender como que se  
colocam as formas jurídicas em Marx.  
A categoria formas jurídicas aparece no livro III ao se tratar dos juros e da renda.  
Tem-se no capital portador de juros “a mistificação do capital em sua forma mais  
crua” (MARX, 1986 a, p. 294) e, de acordo com o autor, a questão não pode ser  
resolvida voltando-se simplesmente ao capital produtivo, como faziam, segundo Marx,  
os socialistas vulgares. (Cf. SARTORI, 2019 b) Estes últimos fariam algo muito similar  
ao autor da Miséria da filosofia, que, depois de 1847, sempre foi duramente criticado:  
“Proudhon combate o juro e não compreende o nexo causal entre juro e sistema de  
trabalho assalariado.” (MARX, 1980, p. 1558) E, assim, tanto com os filantropos, como  
com os socialistas vulgares, em meio à naturalização das formas e das figuras  
econômicas do capitalismo, haveria, também a partir de uma tensão que permeia o  
Direito, certa contestação do modo pelo qual se dão as transações na sociedade  
capitalista. Se, no livro I, Marx havia dito que a extração do mais-valor diante do  
trabalhador não é uma “injustiça” - não se constitui “de modo algum, uma injustiça  
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contra o vendedor” (MARX, 1996 a, p. 311) da força de trabalho –, agora, no livro III,  
Marx traz a crítica à justiça (Cf. SARTORI, 2017):  
A justiça das transações que se efetuam entre os agentes da produção  
baseia-se na circunstância de se originarem das relações de produção  
como consequência natural. As formas jurídicas em que essas  
transações econômicas aparecem como atos de vontade dos  
participantes, como expressões de sua vontade comum e como  
contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio  
do Estado não podem, como simples formas, determinar esse  
conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo será justo  
contanto que corresponda ao modo de produção, que lhe seja  
adequado. E injusto, assim que o contradisser. A escravatura, na base  
do modo de produção capitalista, é injusta; da mesma maneira a  
fraude na qualidade da mercadoria. (MARX, 1986 a, p. 256)  
A primeira questão a se notar é que se tem, de imediato, agentes da produção,  
e não mais pessoas iguais atuando. As individualidades dessas aparecem subsumidas  
ao processo social de reprodução ampliada do capital e suas existências como algo  
que diz respeito somente ao processo global de produção; ao mesmo tempo, porém,  
a estes indivíduos parece ser possível questionar as consequências da produção  
capitalista. Tem-se uma situação em que se pressupõe as relações de produção  
capitalistas ao mesmo tempo em que se busca uma espécie de justiça das transações.  
E este aspecto é bastante importante para que se compreenda a especificidade  
do Direito.  
É importante notar: as transações são uma consequência natural das relações de  
produção, mas se apresentam e são representadas como se fossem, em grande parte,  
contingentes diante destas. E, deste modo, parece ser possível, por meio das formas  
jurídicas, modificar substancialmente as transações e a distribuição do mais-valor que  
se dá com a mediação destas.  
No que é preciso que destaquemos algumas questões. A primeira delas diz  
respeito ao fato de Marx falar aqui de formas jurídicas, e não “da” forma jurídica; antes,  
o autor havia mencionado o contrato. Aqui, esse aparece também. Porém, há algo mais  
que o contrato, que é a própria categoria justiça, que Marx trata, também, como uma  
forma jurídica. Ou seja, por meio das formas jurídicas, e com a mediação da noção de  
pessoas iguais, há certo apelo à equivalência, como já havia sido destacado em obras  
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como Miséria da filosofia.20 Diante de tal aspecto, há um acerto de Pachukanis sobre  
a questão, na medida em que ele traz a correlação entre justiça e equivalência:  
Eis que o próprio conceito de justiça deriva da relação de troca e fora  
dela não tem sentido. No fundo, o conceito de justiça não contém,  
essencialmente, nada de novo com relação ao conceito de igualdade  
de todos os homens anteriormente analisado. Eis a razão por que é  
ridículo ver contido na ideia de justiça qualquer critério autônomo e  
absoluto. (PACHUKANIS, 1988, p. 112-113)  
O autor soviético acerta, sobretudo, ao questionar a possibilidade de a ideia de  
justiça se colocar como um critério normativo diante da realidade efetiva; antes, ela  
deriva desta última. No entanto, há de se notar que o conceito de igualdade que traz  
Pachukanis não constitui “a” forma jurídica; antes, tem-se formas jurídicas distintas e  
com funções distintas, como o contrato e a noção de justiça. Elas certamente estão  
correlacionadas, mas não são o mesmo. Trazem consigo um solo comum, a  
autovalorização do valor, que subordina as formas econômicas da mercadoria e do  
dinheiro. Porém, trazem diferenças entre si. O elemento comum se coloca ao passo  
que, como simples formas, contrato e justiça não podem determinar seu conteúdo;  
mas a diferença específica entre o papel do contrato na compra e venda da força de  
trabalho, bem como no estabelecimento de transações econômicas, de um lado e a  
ideia de justiça noutro existe. O contrato tem uma relação muito mais imediata com as  
relações econômicas, inclusive, ao passo que esta forma jurídica se coloca próxima das  
relações de produção, em que se tem a exploração do trabalhador: diz Marx sobre o  
“o contrato pelo qual ele vendeu sua força de trabalho ao capitalista  
trabalhador que  
comprovou, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo.”  
E, após trazer esta relação entre a forma contratual e a compra e venda da força de  
trabalho, diz ainda: “depois de concluído o negócio, descobre-se que ele não era  
‘nenhum agente livre’, de que o tempo de que dispõe para vender sua força de trabalho  
20 Aqui, Marx diz que Proudhon procura a produção social em uma ligação entre aquilo que é “justo” e  
a própria noção de “equalização”. Marx diz sobre a relação que estabelece Proudhon entre "justiça  
eterna" e "equalização”: “o trabalho simples tornou-se o eixo da indústria. Ela supõe que os trabalhos  
se equalizam pela subordinação do homem à máquina ou pela divisão extrema do trabalho; supõem  
que os homens se apagam diante do trabalho; que o trabalho tornou-se o balanço do pêndulo e tornou-  
se a medida exata da atividade relativa de dois operários, como o é da rapidez de duas locomotivas.  
Então, não é preciso dizer que uma hora de um homem vale uma hora de outro homem, mas sim que  
um homem de uma hora vale outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem não é mais nada;  
ele é no máximo a carapaça do tempo. Não mais existe a questão da qualidade. A quantidade sozinha  
decide tudo: hora por hora, jornada por jornada. Mas esta equalização do trabalho não é obra da justiça  
eterna do Sr. Proudhon; é simplesmente o fato da indústria moderna.” (MARX, 2004, p. 49)  
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é o tempo em que é forçado a vendê-la.” (MARX, 1996 a, p. 414)21 Ou seja,  
primordialmente, a forma jurídica do contrato se coloca em contato com as relações  
de produção e a ideia de justiça exerce uma função secundária neste ponto. Já, ao se  
tratar da forma jurídica da justiça, tem-se o oposto: com as relações de produção  
capitalistas tomadas como algo natural, tratar-se-ia de buscar a justiça das transações,  
em que o que importa é a distribuição da riqueza, e não mais a própria relação que  
constitui o assalariamento. Em ambos os casos, Marx traz uma correlação entre a  
reprodução do capital, o contrato, a justiça e certa concepção de igualdade. As ênfases,  
porém, são bastante diferentes: no livro I, tem-se o modo pelo qual com a venda da  
mercadoria força de trabalho, a extração de mais-valor, de modo algum é algo injusto  
para o vendedor desta mercadoria. No livro III, traz-se justamente as ilusões que  
decorrem da ideia de justiça e do modo pelo qual parece ser possível realizar uma  
inversão entre sujeito e objeto por meio do contrato ao se trazer a oposição entre  
formas jurídicas e relações econômicas.  
Também neste ponto, o autor da Teoria geral do Direito e o marxismo traz  
contribuições importantes. (Cf. KASHIURA, 2009) Porém, acaba não apreendendo a  
questão em seus diversos níveis de concretude. No essencial, fazendo uma leitura  
bastante benevolente com o autor, é possível dizer que ele ainda acerta em sua  
colocação, bem como em sua interpretação da obra marxiana.  
Ocorre, porém, que Marx não trata só do contrato e da ideia de justiça como  
formas jurídicas. Após ter trazido à tona no livro II a maneira pela qual o capital  
monetário se autonomiza diante do industrial, o autor traz no livro III as transações  
jurídicas diante dos juros e da renda; diz que “sem dúvida, essas transações são  
efetivamente determinadas pelos refluxos reais. Mas isso não aparece na própria  
21  
Veja-se a íntegra da passagem: “é preciso reconhecer que nosso trabalhador sai do processo de  
produção diferente do que nele entrou. No mercado ele, como possuidor da mercadoria “força de  
trabalho”, se defrontou com outros possuidores de mercadorias, possuidor de mercadoria diante de  
possuidores de mercadorias. O contrato pelo qual ele vendeu sua força de trabalho ao capitalista  
comprovou, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Depois de  
concluído o negócio, descobre-se que ele não era “nenhum agente livre”, de que o tempo de que dispõe  
para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, de que, em verdade, seu  
explorador não o deixa, “enquanto houver ainda um músculo, um tendão, uma gota de sangue para  
explorar”. Como “proteção” contra a serpente de seus martírios, os trabalhadores têm de reunir suas  
cabeças e como classe conquistar uma lei estatal, uma barreira social intransponível, que os impeça a  
si mesmos de venderem a si e à sua descendência, por meio de contrato voluntário com o capital, à  
noite e à escravidão! No lugar do pomposo catálogo dos “direitos inalienáveis do homem” entra a  
modesta Magna Charta...” (MARX, 1996 a, p. 414) Para uma análise da passagem, bem como do papel  
da regulamentação fabril em Marx, Cf. SARTORI, 2019 d.  
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transação.” (MARX, 1986 a, p. 262) Os títulos jurídicos, que representam riqueza  
socialmente produzida, parecem, assim, ter vida própria, de tal modo que tem-se o  
fetichismo do dinheiro colocado em um nível de estranhamento (Entfremdung) ainda  
mais alto, por exemplo, no capital portador de juros22; Diz-se, assim, que, nas  
transações jurídicas que encaminham as relações econômicas, “o verdadeiro  
movimento circulatório do dinheiro como capital é, portanto, pressuposto da transação  
jurídica” (MARX, 1986 a, p. 263) de tal maneira que ela “é uma transação jurídica,  
que nada tem a ver com o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha.”  
(MARX, 1986 a, p. 262) Assim, ao tratar do capital portador de juros, tem-se também  
uma função importante do Direito. Ela é exercida entre diferentes parcelas do capital,  
bem como entre estas parcelas e os trabalhadores; porém, o processo real de produção  
está eclipsado.  
E, assim, nota-se que o nível de abstração que é tratado no livro III é ainda mais  
concreto que aquele do livro II. Têm-se, dentre outras coisas, da análise do modo pelo  
qual figuras econômicas como lucro, renda e juros operam na própria realidade como  
se fossem por si só subsistentes. Para o que diz respeito ao nosso tema, deve-se  
apontar: aqui, as relações de produção são determinadas pelas interrelações entre as  
diversas formas econômicas em meio à reprodução ampliada do capital, mas aparecem  
e são representadas como se pudessem ser determinadas pelas formas jurídicas, que,  
segundo Marx, apenas encaminham tais relações econômicas. (Cf. SARTORI, 2019 b,  
c)  
A produção de mais-valor está pressuposta, e é tomada como um dado natural,  
ao contrário do que acontece, em grande parte, aos agentes da produção em grande  
parte do livro I. Ali, destaca-se que “não basta que as condições de trabalho apareçam  
num polo como capital e no outro polo, pessoas que nada têm para vender a não ser  
sua força de trabalho.” E complementa Marx de modo incisivo: “não basta também  
forçarem-nas a se venderem voluntariamente.” No que o autor conclui: “na evolução  
da produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por  
educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção  
como leis naturais evidentes.” (MARX, 1996 b, p. 358) No livro III, e na realidade  
22 Segundo Marx, “no capital portador de juros, a relação-capital atinge sua forma mais alienada e mais  
fetichista. Temos aí D - D', dinheiro que gera mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o  
processo que medeia os dois extremos.” (MARX, 1986 a, p. 293)  
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As formas jurídicas em O capital  
efetiva imediata da sociedade capitalista, tem-se algo bastante distinto: tal processo  
está apagado e as exigências da produção capitalista já são tomadas como leis naturais  
pelos agentes da produção; aquilo que foi fruto de uma luta multissecular aparece  
como dado e como algo natural, como uma coisa e de modo fetichizado. E, somente  
neste contexto é que Marx enfatiza as formas jurídicas e o modo pelo qual elas  
encaminham relações de produção ao passo que, na representação dos agentes da  
produção e da circulação, tudo se passa como se as criassem. (Cf. GRESPAN, 2019;  
SARTORI, 2019 c)  
E, assim, também aqui, não é por simples interesse filológico que é preciso trazer  
à tona os diferentes graus de concretude em que o sistema capitalista de produção é  
explicitado em O capital.  
Um outro momento em que Marx vai trazer a categoria formas jurídicas  
(novamente, no plural) é ao tratar da relação entre o capital industrial e o capital  
portador de juros:  
Nas mãos de B, o dinheiro é realmente transformado em capital,  
percorre o movimento D - M - D' para voltar a A como D', como D +  
AD, em que AD representa o juro. Para simplificar abstraímos aqui,  
por enquanto, o caso em que o capital permanece por tempo mais  
longo nas mãos de B e os juros são pagos periodicamente. O  
movimento é, portanto: D-D-M-D'-D'. O que aparece aqui duplicado e  
o dispêndio do dinheiro como capital e seu refluxo como capital  
realizado, como D' ou D + AD. No movimento do capital comercial D  
- M - D', a mesma mercadoria muda 2 vezes ou se um comerciante  
vende a outro mais vezes de mãos; mas cada uma dessas mudanças  
de lugar da mesma mercadoria indica uma metamorfose, compra ou  
venda da mercadoria, por mais vezes que esse processo possa se  
repetir até sua queda definitiva no consumo. Em M - D - M, por outro  
lado, ocorre dupla mudança de lugar do mesmo dinheiro, mas indica  
a metamorfose completa da mercadoria, que primeiro se transforma  
em dinheiro e, em seguida, de dinheiro em outra mercadoria. No caso  
do capital portador de juros, ao contrário, a primeira mudança de  
lugar de D de modo algum constitui um momento seja da  
metamorfose de mercadorias, seja da reprodução do capital. lsso ele  
só se torna no segundo dispêndio, nas mãos do capitalista  
funcionante, que com ele comercia ou o transforma em capital  
produtivo. A primeira mudança de lugar de D expressa aqui apenas  
sua transferência ou remessa de A a B; uma transferência que costuma  
realizar-se sob certas formas e garantias jurídicas (juristichen Formem  
und Vorbehalten). (MARX, 1986 a, p. 257)  
No livro III está pressuposta a autonomização do capital em capital monetário e  
em capital industrial, trazida à tona no livro II. O dinheiro coloca-se como um  
correspondente ao montante de riqueza produzida socialmente, ao mesmo tempo em  
que, por vezes, pode aparecer como um simples título, cujo curso forçado se dá pelo  
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reconhecimento estatal de sua força vinculante.  
Ou seja, ao mesmo tempo em que o dinheiro, ao operar como moeda, traz uma  
equivalência, é um grande nivelador, ele não tem só a função de moeda, mas também  
de capital, colocando-se como uma representação de um quantum determinado  
decorrente do investimento que pode gerar produção futura. Ou seja, o dinheiro,  
colocado na esfera da circulação e da troca, ao mesmo tempo, corresponde e não  
corresponde a determinado montante de mercadorias. Sua correlação se dá, de um  
lado, com a forma econômica da mercadoria, doutra, com a forma econômica do  
capital.  
O capital monetário, assim, tem uma existência dúplice: uma como simples título,  
que, por exemplo, no caso das sociedades por ações, coloca-se como “ações. À medida  
que não constituem fraude, são títulos de propriedade sobre um capital real  
pertencente a uma corporação e de direito sobre a mais-valia que dele flui  
anualmente.” (MARX, 1985, pp. 256-257)23 Doutro lado, é equivalente daquilo  
efetivamente colocado na produção real. Trata-se de uma existência real e doutra, por  
assim dizer, fictícia. Nesta última, tem-se, inclusive, a titularidade jurídica como algo  
que dá direito à apropriação de parcela da riqueza, seja ela presente, futura, existente  
ou inexistente. Tem-se, com esses títulos, a possibilidade de simples fraude, assim  
como se tem a potencialidade de investimento produtivo. Títulos jurídicos e créditos  
monetários, assim, têm uma correlação íntima.24  
23 Na passagem na íntegra, Marx menciona outros títulos, que dão direito à apropriação de parcelas do  
mais-valor: “se se considera a coisa como ela se verifica na realidade, então o capital monetário latente  
que é acumulado para uso posterior consiste em: 1) Depósitos em bancos: e é uma soma de dinheiro  
relativamente reduzida da qual o banco realmente dispõe. Aqui a acumulação de capital monetário é  
apenas nominal. O que realmente está acumulado são créditos monetários, que só são conversíveis em  
prata à medida que chegam a ser convertidos em prata porque ocorre um equilíbrio entre o dinheiro  
sacado e o dinheiro depositado. O que se encontra como dinheiro nas mãos do banco é apenas uma  
soma relativamente pequena. 2) Títulos públicos. Estes não são capital ao todo, mas meros créditos  
sobre o produto anual da nação. 3) Ações. À medida que não constituem fraude, são títulos de  
propriedade sobre um capital real pertencente a uma corporação e de direito sobre a mais-valia que  
dele flui anualmente.” (MARX, 1985, pp. 256-257)  
24 Como diz Marx no livro II: “a forma mais simples em que esse capital monetário latente adicional pode  
apresentar-se é a de tesouro. E possível que esse tesouro seja ouro ou prata adicionais, obtido direta  
ou indiretamente no intercâmbio com os países que produzem metais nobres. E só desse modo cresce  
de maneira absoluta o tesouro monetário dentro de um país. Por outro lado, é possível - e esta é a  
maioria dos casos - que esse tesouro seja apenas dinheiro retirado da circulação interna que, na mão  
de capitalistas individuais, assumiu a forma de tesouro. Além disso, é possível que esse capital  
monetário latente consista apenas em signos de valor - aqui ainda fazemos abstração do dinheiro  
creditício -, ou também em meros direitos constatados por documentos legais, títulos jurídicos! do  
capitalista contra terceiros. Em todos esses casos, qualquer que seja a forma de existência desse capital  
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As formas jurídicas em O capital  
Em meio a este tema é que aparece, agora, a categoria formas jurídicas. Ela, aliás,  
vem relacionada com garantias jurídicas, essa última que opera justamente em meio a  
esta correlação entre capital monetário e capital industrial (seria possível também uma  
relação com o capital comercial); O movimento D-M-D´ traz o dinheiro como capital;  
mas, de um lado, tem-se D-D e doutro D`-D` de modo que a produção aparece sendo  
que nunca pode ser como um simples elo evanescente e, por vezes desnecessário,  
à acumulação capitalista. As metamorfoses da mercadoria, no processo de circulação  
(livro II), parecem efetivamente apagar o processo produtivo; aqui, na superfície das  
figuras econômicas do processo global de produção (livro III), porém, no capital  
portador de juros, ele já está apagado, não aparecendo, seja como um momento da  
metamorfose das mercadorias, seja como parte da reprodução do capital. O capital  
portador de juros está no polo oposto do capitalista funcionante (que investe  
produtivamente o capital ou com ele comercializa); o movimento essencial da economia  
se dá neste polo funcionante. As formas jurídicas, porém, juntamente com as garantias  
jurídicas, operam em meio à transferência de dinheiro ao capital portador de juros.  
Para que explicitemos algo que diz respeito ao tema deste artigo: as formas jurídicas  
(no plural, novamente, e em correlação com garantias jurídicas de diversos tipos)  
cumprem um papel importante na distribuição do mais-valor produzido no polo  
funcionante da relação no caso, no capital industrial, por meio da extração do mais-  
trabalho da classe trabalhadora. Mas, assim, é preciso destacar: elas vêm a cumprir um  
papel bastante secundário na extração do mais-valor.  
Se é verdade que as formas jurídicas, no caso o contrato, encaminham a relação  
de assalariamento, aqui, elas pelas garantias, transações e expectativas jurídicas (Cf.  
MARX, 1986 a, b) encaminham transações que não dizem diretamente respeito à  
produção necessariamente.  
No polo do capitalista funcionante, isto pode se dar, mas, no caso do capital  
portador de juros, tem-se simples transferência de titularidade de propriedade. A  
riqueza, assim, é distribuída, não mais somente de acordo com o trabalho dos agentes  
da produção, mas de acordo com o princípio da propriedade privada. (Cf. GRESPAN,  
2011, 2019) As formas jurídicas, como a propriedade privada reconhecida  
monetário adicional, ele representa, à medida que é capital in specie apenas títulos jurídicos adicionais,  
mantidos em reserva por capitalista, sobre a produção anual adicional, futura, da sociedade.” (MARX,  
1985, pp. 238-239)  
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juridicamente, aqui, são bastante importantes no encaminhamento destas relações  
sociais. Ganham uma proeminência bastante grande. E, com isto na superfície da  
sociedade capitalista as transações jurídicas parecem ser essenciais. E até certo  
ponto, são: sem elas, muitas vezes, o encaminhamento de relações econômicas seria  
muito dificultado. Mas, também aqui, o essencial está na produção do mais-valor e na  
correlação, em primeiro lugar, das formas econômicas da mercadoria, do dinheiro e do  
capital e, secundariamente, na relação e na tensão entre figuras econômicas como  
lucro, juros e renda. As formas e as garantias jurídicas, em grande parte, conseguem  
operar tomando como pressuposto a relação-capital e a sua conformação específica.  
Elas, em meio aos conflitos entre as diversas classes e parcelas de classes (ligadas ao  
capital bancário, comercial, industrial, por exemplo), operam na distribuição da riqueza  
em meio às figuras concretas da economia capitalista, como juros, lucro e renda,  
trazendo diferentes combinações no que toca a distribuição do mais-valor entre estas  
diferentes figuras. (Cf. SARTORI, 2019 c, b) As transações, as expectativas e garantias  
jurídicas são formas pelas quais tomando o essencial da produção capitalista –  
parcelas do mais-valor são distribuídas. E, assim, o papel das formas jurídicas, aqui,  
está muito mais na esfera da distribuição do que na esfera da circulação, como em  
Pachukanis. Elas encaminham a distribuição de parcelas do mais-valor, de modo que,  
mesmo não sendo, seu movimento parece arbitrário.  
Este aspecto dúplice do capital monetário, bem como o papel que as formas  
jurídicas têm na esfera da distribuição, estão em uma posição, para se usar um  
eufemismo, secundária, tanto em Pachukanis, quanto na tradição pachukaniana.  
Ocorre, porém, que mesmo que esta função do Direito não seja a essencial para se  
pensar a transformação do modo de produção capitalista (Cf. SARTORI, 2019 b, c) é  
neste meandro que a categoria formas jurídicas aparece. Ela é explicitada, não tanto  
ao conformar a especificidade do Direito ou do terreno do Direito (Rechtsboden), mas  
ao encaminhar, de diversas maneiras técnico-jurídicas (contrato, garantia, expectativa,  
transação) figuras econômicas. Assim, tanto no que diz respeito à análise e leitura das  
passagens de O capital sobre o Direito, quanto no que toca o “método” de Marx (em  
verdade, o modo de exposição e de pesquisa), é necessário criticar e complementar o  
tratamento do autor de Teoria geral do Direito e o marxismo.  
Se os juros são uma figura na qual não se tem o essencial da relação-capital, isso  
também se dá com a renda, em que, também, a categoria formas jurídicas aparece em  
O capital:  
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As formas jurídicas em O capital  
A propriedade fundiária pressupõe que certas pessoas têm o  
monopólio de dispor de determinadas porções do globo terrestre  
como esferas exclusivas de sua vontade privada, com exclusão de  
todas as outras. Isso pressuposto, trata-se agora de expor o valor  
econômico, ou seja, a valorização desse monopólio na base da  
produção capitalista. O poder jurídico dessas pessoas de usar e  
abusar de porções do globo terrestre em nada contribui para isso. A  
utilização dessas porções depende inteiramente de condições  
econômicas que são independentes da vontade desses proprietários.  
A própria concepção jurídica quer dizer apenas que o proprietário  
fundiário pode proceder com o solo assim como com as mercadorias  
o respectivo dono; e essa concepção a concepção jurídica da livre  
propriedade do solo só ingressa no mundo antigo à época da  
dissolução da ordem social orgânica e, no mundo moderno, com o  
desenvolvimento da produção capitalista. Na Ásia, ela foi introduzida  
pelos europeus apenas em algumas regiões. Na seção sobre a  
acumulação primitiva Livro Primeiro, cap. XXIV viu-se como esse modo  
de produção pressupõe, por um lado, que os produtores diretos se  
libertem da condição de meros acessórios do solo na forma de  
vassalos, servos, escravos etc.! e, por outro, a expropriação da massa  
do povo de sua base fundiária. Nessa medida, o monopólio da  
propriedade fundiária é um pressuposto histórico e continua sendo o  
fundamento permanente do modo de produção capitalista, bem como  
de todos os modos de produção anteriores que se baseiam, de uma  
maneira ou de outra, na exploração das massas. Mas a forma em que  
o incipiente modo de produção capitalista encontra a propriedade  
fundiária não lhe é adequada. Só ele mesmo cria a forma que lhe é  
adequada, por meio da subordinação da agricultura ao capital; com  
isso, então, a propriedade fundiária feudal, a propriedade do clã ou a  
pequena propriedade camponesa combinada com as terras comunais  
são também transformadas na forma econômica adequada a esse  
modo de produção, por mais diversas que sejam suas formas jurídicas  
(juristichen Formen). (MARX, 1986 b, p. 124-125)  
Também aqui Marx traz como central a conformação objetiva das relações de  
produção, que já precisam ter passado pelo processo da acumulação primitiva para  
que se tenha a renda em seu sentido capitalista. Ao tratar das formas jurídicas, o autor  
também vem a criticar a concepção jurídica: ela não diria muito e, em verdade, não  
compreenderia as formas econômicas sob as quais se coloca. A concepção jurídica da  
livre propriedade pressupõe o que precisa ser explicado.  
Ela atua ao trazer uma relação mercantilizada com o solo, seja no caso da  
dissolução da ordem social orgânica, seja com a chegada da produção capitalista. No  
que precisamos destacar que, na esteira do que diz Pachukanis, há uma relação entre  
imposição da forma mercantil e a concepção jurídica. Porém, ao contrário do que diz  
o autor da Teoria geral do Direito e o marxismo, isto não se dá somente no sistema  
capitalista de produção. A dissolução de relações orgânicas, por exemplo, pode  
acontecer por meio da supressão dessas relações em relações capitalistas. Mas  
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também pode se dar de outro modo, antes do mundo moderno, como Marx destaca  
na passagem. Ou seja, também sob este aspecto, é essencial destacar que a relação  
entre a forma-mercadoria e as formas jurídicas é bastante mais mediada do que parece  
supor a tradição pachukaniana. O Direito se liga, no caso da terra, à imposição da  
vontade privada; no entanto, esta vontade pode operar com a valorização do  
monopólio sobre a terra com base na produção capitalista ou doutro modo, como na  
Roma antiga, por exemplo, sendo bastante presentes as referências de Marx ao antigo  
Direito romano.  
Aquilo que figura como de grande relevo para a exploração capitalista no campo  
é a subordinação da agricultura ao capital. Ela pressupõe a acumulação primitiva, bem  
como a consequente expropriação da massa do povo diante de suas condições de  
produção; o poder jurídico das pessoas (categoria que, também aqui, não pode ser  
reduzida à noção de sujeito de direito), mencionado por Marx, por sua vez, encaminha  
as relações econômicas por meio de diversas e variadas formas jurídicas. E, deste  
modo, também de modo contrário ao que traz Pachukanis, “a” forma jurídica não é  
central para a conformação da relação capitalista; antes, as formas jurídicas são, em  
verdade, bastante secundárias diante do desenvolvimento da forma econômica  
adequada ao modo de produção capitalista. O contrato, as transações jurídicas, as  
expectativas e as ficções jurídicas certamente têm um papel ativo no modo como figura  
a relação-capital em cada formação social. Porém, aquilo que é primordial aqui é tanto  
a dissolução da propriedade fundiária feudal, da pequena propriedade camponesa, da  
propriedade do clã ou das terras comunais.  
A forma econômica adequada ao modo de produção capitalista pode decorrer  
da superação de todas estas formas de propriedade; e é certo que diferentes formas  
jurídicas podem se combinar de diversos modos neste processo econômico. Porém, a  
consolidação da relação-capital passa pela dissolução destas formas econômicas em  
meio à imposição da produção capitalista de mercadorias, que traz consigo a forma-  
mercadoria, a forma dinheiro e estas duas formas econômicas subordinadas ao  
processo de acumulação de capital. Ou seja, as formas jurídicas, em Marx, são variadas  
e não são propriamente elas que trazem a especificidade do Direito capitalista, mas,  
como reconhece também Pachukanis, o reconhecimento que a esfera dá à propriedade  
privada dos meios de produção que trazem a produção capitalista de mercadorias, no  
caso em tela, por meio da terra.  
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As formas jurídicas em O capital  
Marx, portanto, critica duramente a concepção jurídica, que vem a deixar de lado  
a diferença específica no que diz respeito ao modo pelo qual a vontade privada se  
impõe no poder jurídico. Se o essencial para tratar da renda em sua figura capitalista  
é a subordinação da agricultura ao capital, esse processo é absolutamente  
desconhecido pela concepção jurídica. Ela opera por ficções, que parecem decorrer de  
formas jurídicas específicas ao passo que, em verdade, estas formas somente  
encaminham um processo essencialmente econômico. Tem-se, assim, diversas formas  
de renda, que partem da propriedade fundiária, mas seria muito equivocado deixar de  
lado a diferença específica da renda capitalista, que, por meio de ficções jurídicas,  
parece ser igual a toda a forma de renda.  
Qualquer que seja a forma específica de renda, todos os seus tipos  
têm em comum: a apropriação da renda é a forma econômica em que  
a propriedade fundiária se realiza, e, por sua vez, a renda fundiária  
pressupõe propriedade fundiária, propriedade de determinados  
indivíduos sobre determinadas frações do globo terrestre. É  
indiferente que o proprietário seja a pessoa que representa a  
comunidade, como na Ásia, no Egito etc., ou que essa propriedade  
fundiária seja apenas um tributo acidental de propriedade de  
determinadas pessoas sobre as pessoas dos produtores diretos, como  
no sistema escravocrata ou de servidão, ou que seja pura propriedade  
privada de não-produtores sobre a Natureza, mero título de  
propriedade sobre o solo ou, por fim, que seja uma relação com o  
solo, a qual, como no caso de colonos e pequenos proprietários  
camponeses, parece encontrar-se diretamente compreendida no  
sistema de trabalho isolado e socialmente não desenvolvido na  
apropriação e produção dos produtos de determinadas frações de  
terra pelos produtores diretos. Esse denominador comum das  
diferentes formas de renda ser a realização econômica da  
propriedade fundiária, a ficção jurídica (juristiche Fiktion) por força da  
qual diversos indivíduos detêm de modo exclusivo determinadas  
partes do globo terrestre faz com que se esqueçam as diferenças.  
(MARX, 1986 b, p. 137)  
Há, portanto, diversas formas de renda. Se é verdade que todas elas têm em  
comum o fato de ser uma forma de apropriação de riqueza que decorre da propriedade  
fundiária, e se a concepção jurídica só enxerga na renda algo que decorre da  
titularidade jurídica da propriedade da terra, o essencial na compreensão desta figura  
econômica está na especificidade do modo de produção sob o qual se coloca. No caso  
da renda na sociedade capitalista, trata-se de uma forma social que, a partir da  
propriedade da terra, traz consigo a apropriação, na esfera da distribuição, de uma  
parcela do mais-valor, produzido na esfera da produção. Esta produção por sua vez,  
coloca-se também na agricultura com a produção capitalista de mercadorias, e não  
simplesmente com a produção mercantil, que, a rigor, existe em outros modos de  
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produção. A renda, assim, é uma ficção jurídica à primeira vista, mas um olhar mais  
cuidadoso traz renda, lucro e juros como figuras econômicas que são dependentes da  
produção de mais-valor. Ou seja, por mais que, tal qual o capital portador de juros, a  
renda tenha especificidades, essa figura econômica, bem como as ficções jurídicas, não  
podem ser estudadas por si mesmas, são carentes de conceito. A representação da  
renda traz diversas formas jurídicas, que passam por situações como a titularidade da  
comunidade, a tributação sobre produtores diretos, a mera titularidade sobre a  
natureza; e aí também as formas jurídicas não se explicam por si mesmas, mas pelas  
peculiaridades da produção e do decorrente sistema de apropriação de cada época e  
local. Marx, assim, critica aqueles que esquecem as diferenças que se interpõem para  
cada forma de renda e com isso, traz, também neste ponto, uma crítica decidida à  
concepção jurídica.  
Ao tratar da justiça, dos juros e da renda, a significação que Marx dá à categoria  
formas jurídicas é bastante diversa daquela de Pachukanis. Se para o último, a ligação  
entre a “forma mercantil” e a jurídica é o essencial, no autor de O capital, percebe-se  
que as formas jurídicas têm uma importância muito menor do que aquela atribuída  
pelo autor de Teoria geral do Direito e o marxismo. O contrato, as transações jurídicas,  
as expectativas e garantias jurídicas, a noção de justiça encaminham processos, formas  
e figuras econômicas. E, embora o Direito tenha um papel ativo, o essencial está, não  
na relação entre forma mercadoria e forma jurídica, mas no desenvolvimento  
concatenado e contraditório das distintas formas e figuras econômicas.  
Apontamentos finais  
Por mais que as contribuições da vertente pachukaniana de crítica ao Direito  
sejam consideráveis, e acreditamos que isto, de certo modo, não pode ser contestado,  
o ponto de partida desta tradição – a fidelidade de Pachukanis ao “método” e ao texto  
de Marx precisa ser questionada.  
Com isto, chega-se, para dizer o mínimo, à necessidade de complementar as  
leituras do autor da Teoria geral do Direito e o marxismo. Tem-se, somente no que  
toca a análise do texto marxiano, a necessidade de compreender o papel do Direito e  
das formas jurídicas na distribuição do mais-valor; é preciso também tratar da relação  
entre fetiche da mercadoria, do dinheiro, o capital monetário e os títulos jurídicos; a  
aparente arbitrariedade dos juros e o caráter até certo ponto fictício dos direitos  
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As formas jurídicas em O capital  
advindos da propriedade das ações também precisam ser vistos ao se ter em conta  
aspectos jurídicos. A renda capitalista, a justiça das transações e as expectativas e  
garantias jurídicas também precisam estar na agenda de pesquisa daqueles dedicados  
à crítica marxista do Direito. O papel do Direito na conformação da dupla existência  
do dinheiro e do capital monetário está para ser analisado com mais cuidado também.  
Se formos levar em conta só aquilo já trazido por Marx e nada impede que existam  
outros pontos importantes que aparecem na realidade , estes são assuntos que, com  
o tema clássico pachukaniano da mediação contratual na circulação de mercadorias,  
precisam ser tratados de modo rigoroso. Portanto, o caminho da crítica marxista ao  
Direito talvez esteja somente em seu começo.  
O mínimo para que ela tenha uma base sólida é a compreensão da esfera jurídica  
na obra do próprio Marx, e ainda há muito a se fazer sobre este aspecto.  
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As formas jurídicas em O capital  
e práxis. N. 3 V. 9. Rio de Janeiro: UERJ, 2018.  
Como citar:  
SARTORI, Vitor Bartoletti. As formas jurídicas em O capital. Verinotio, Rio das Ostras,  
v. 28, n. 2, pp. 124-155; jul-dez, 2023.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 124-155 - jul-dez, 2023 | 155  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.684  
A força de trabalho como forma de ser:  
protoforma da individualidade do Capital em Marx  
The workforce like form of being:  
protoforme of capital’s individuality in Marx  
Antônio José Lopes Alves*  
Resumo: No presente artigo se apresenta uma  
análise do conceito marxiano de força de  
trabalho como uma categoria, um referente ideal  
geral de natureza teórica, cuja elaboração por  
Marx potencialmente faculta o rastreamento de  
traços essenciais para a compreensão crítica do  
caráter particular assumido pela individualidade  
nos contornos das formas de sociabilidade do  
capital. Nesse sentido, a discussão dos textos  
marxianos, bem como de obras de outros  
autores que abordam o tema ou questões  
conexas a este, tem como objetivo enumerar  
analiticamente, de modo indiciário, as  
determinações que fazem da força de trabalho  
livre individual existente como mercadoria do  
capital uma verdadeira protoforma ou  
“paradigma” da individuação a partir da  
modernidade. Para tanto serão tratados quatro  
conjuntos conceituais, vetores da trajetória desse  
tipo histórico de elaboração social da  
individualidade, conforme pode se depreender  
do estudo das obras de Marx aqui abordadas: 1)  
a força de trabalho como Daseinsform do capital  
e força de sua produção; 2) o modo particular de  
alienação da força de trabalho (Veräußerung); 3)  
o caráter complexo do “objeto” do qual o capital  
se apropria; e 4) a relação que o indivíduo tem  
consigo mesmo como proprietário privado de  
força de trabalho.  
Abstract: This article presents an analysis of the  
Marxian concept of workforce as a category, a  
general ideal referent of a theoretical nature,  
whose elaboration by Marx potentially provides  
the tracing of essential traits for the critical  
understanding of the peculiar character  
assumed by individuality in the contours of  
forms of sociability of capital. In this sense, the  
discussion of Marxian texts, as well as works by  
other authors who address the theme or issues  
related to it, aims to analytically enumerate in  
an evidentiary way the determinations that  
make the individual free workforce existing as a  
commodity of capital a true protoforme or  
“paradigm” of individuation from modernity. To  
do so, four conceptual sets that vectors of the  
trajectory of this historical type of social  
elaboration of individuality will be treated, as  
can be deduced from the study of Marx's works  
discussed here: 1) the workforce as a  
Daseinsform of capital and the force of its  
production; 2) the particular mode of alienation  
of the workforce (Veräußerung); 3) the complex  
character of the “object” which capital  
appropriates; and 4) the relationship that the  
individual has with himself as a private owner of  
workforce.  
Keywords: Workforce, Capital, Individuality,  
Marx, Categorical Criticism.  
Palavras-chave: Força de Trabalho, Capital,  
Individualidade, Marx, Crítica Categorial.  
Introdução  
O presente artigo tem por tema o caráter de paradigma ou de protoforma que  
apresenta a categoria marxiana força de trabalho para o entendimento das  
determinações mais essenciais da forma social de existência da individualidade no  
*
Doutor em Filosofia, professor titular da UFMG, onde atua como docente no COLTEC, PPGE-FaE e  
PROMESTRE-FaE: ajlopesalves@gmail.com.  
Verinotio  
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A força de trabalho como forma de ser  
contexto da interatividade produtiva do capital e das formas de sociabilidade que lhe  
são correspondentes.  
Esta explicitação filosófico-categorial da força de trabalho, conceito-chave para a  
compreensão tanto do itinerário de elaboração do pensamento de Marx quanto da  
estruturação objetiva da realidade social, está vinculada a desenvolvimento de projeto  
de pesquisa. Intitulada Força de Trabalho, Individualidade e Capital, a ampla proposta  
de investigação conceitual e empírica é efetivada no contexto da atuação do autor  
como docente e orientador acadêmico no Programa de Pós-Graduação em Educação  
da Universidade Federal de Minas Gerais. Ao projeto, por sua vez, relacionam-se outras  
iniciativas na forma de pesquisas de estudantes de ensino médio, graduação e pós-  
graduação, bem como de pesquisadores associados, cujos trabalhos se realizam sob  
os auspícios da universidade acima referida. Este projeto, inclusive por seu objeto  
inicial e principal de estudo e interrogação, a existência das potências de objetivação  
humana na forma de ser social da mercadoria capitalista força de trabalho, é uma  
iniciativa de caráter eminentemente transdisciplinar, abrangendo diversos campos de  
saber e conhecimento da área de humanas e sociais, tais como, além de educação e  
filosofia, antropologia, direito, economia e psicologia, ademais possui interface de  
contato com disciplinas de outras áreas do conhecimento e da prática, tanto das  
ciências da natureza (biologia e medicina social, em especial) quanto das tecnologias  
(como engenharia de produção, por exemplo).  
O esforço teórico que se leva a efeito neste trabalho possui um caráter conceitual,  
de identificação rigorosa de bases conceituais que podem servir ao desdobramento  
de questões teóricas relacionadas e de arrimo à aproximação empírico-crítica da  
realidade social cujos temas lhe são atinentes. Assim, o que se intenta aqui é discutir  
o caráter categorial da força de trabalho, em sua espessura de Daseinsform,  
Existenzbestimmung, conforme indicação fornecida pela própria obra marxiana (MARX,  
1983, p. 39-40, 80-81). No contexto delineado pelos parâmetros marxianos, as  
categorias, no que se refere ao conhecimento da realidade objetiva, têm um duplo  
estatuto de existência, existem tanto no cérebro, como Gedankenformen ou  
Gedankenkonkretum, formas de ideação, que são, precisam ser, apreensões de  
Daseinsformen objetivamente dadas na realidade “fora cabeça” (MARX, 1983, p. 36-  
40). Por conseguinte, o tratamento não é do termo conceitual como puro elemento  
teórico pertencente primeira e, menos ainda, unicamente ao escopo de uma elaboração  
ideal. Trata-se de tomá-la de maneira a que apareça, segundo a particularidade própria  
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de cada dimensão, ambos os aspectos em articulação, por isso, o termo categorial. A  
categoria tem assim sua medida para-além e para-aquém do conceito particular de um  
domínio qualquer do conhecimento. É um referencial geral, um delineamento teórico,  
um parâmetro, que obviamente, dentro de uma configuração que se pretenda  
materialista, tanto a de Marx quanto a que se intentará exercitar, exige também seu  
reexame constante à luz da diversidade dinâmica e histórica do objetivamente  
existente, o particular e o finito que define o ente e as formas objetivas de ser.  
Por isso, não se trata, contrariamente, em abstrato, de “extrair” ou “deduzir”  
formações particulares da categoria força de trabalho, mas de considerar seu estatuto  
de referente geral para o entendimento da particularidade da forma de individuação  
específica ao capital. É neste sentido bem delimitado que se dá a remissão às noções  
de “paradigma” ou protoforma (LUKÁCS, 2013, p. 88-89), como um referente genérico  
que apresenta em si, de modo sintético, articulado numa totalidade unitária de  
diferentes determinações, um conjunto de traços que caracterizam um ente em uma  
forma de ser particular, uma forma objetiva de existência ou uma inflexão processual.  
No caso, a categoria marxiana de força de trabalho, ao examiná-la analiticamente,  
parece facultar a aproximação crítica para a necessária compreensão do caráter  
peculiar que a individualidade humana assume no contexto do modo de produção  
capitalista e da sociabilidade que preponderantemente corresponde a este modo de  
produzir a vida.  
A elaboração dessa categoria, ademais, se revestiu de importância decisiva para  
o desenvolvimento teórico de Marx (MORILHART, 2017, p. 67-81), (NAPOLEONI,  
1978, p. 128-142). Uma vez que somente a distinção entre a) força de trabalho viva,  
b) trabalho como atuação e c) o resultado em valor desta atuação, permite entender  
como se dá o fenômeno da produção do excedente como riqueza. A riqueza não é  
mais um excedente da produção em relação a um consumo geral e sim com relação a  
um consumo de valor despendido no ato de alienação/aquisição de um usufruto de  
capacidade. Esta aquisição dá direito de factum ao proprietário capitalista dos meios  
de produção à apropriação de mais-tempo/mais-valor produzido em relação àquele  
pago pelo acesso ao valor de uso da Arbeitskraft em todas as suas dimensões  
facultado pela alienação de tipo Veräußerung.  
Essa operação específica de alienação na qual o sujeito que aluga suas  
Arbeitsvermögen constitui o fundamento de sua pessoalidade potencial e efetiva, daí  
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a liberdade "de" trabalho ser também uma pressuposição que se expressa inclusive  
juridicamente; a existência como pessoa de forças de trabalho que se encontram enfim  
"libertadas" de suas condições de objetivação (como Marx ironicamente frisa "livres  
como os pássaros") (MARX, 1993, p. 803-808). Apesar da ironia objetiva da situação,  
as novas modalidades de estranhamento para com as condições de objetivação  
existentes como capital constitui uma liberação relativa porquanto as personæ do  
trabalho existiam predominantemente submergidas e submersas no conjunto das  
condições objetivas de produção em formas anteriores e diferentes daquelas do  
capital. À esta liberação frente às condições corresponde a separação essencial e  
inescapável em relação a elas, a existência do trabalho objetivado como trabalho  
estranhado, como capital. A existência da pessoalidade como atributo em geral  
somente é possível de viger porquanto seja também um apanágio daqueles sem  
propriedade, muito embora sua aparição no mercado se travista com as indumentárias  
dos livres cambistas. O trabalhador, mais precisamente a força de trabalho viva que  
ele representa, existe num ato só então em-si, para-si, por-si e contra-si. Em-si como  
imanência corpórea imediata de suas qualidades cujo movimento pode se expressar  
em efeitos produtivos. Para-si como sujeito que dispõe de si na forma de um ente  
humano cuja atribuição de atividade não é mais, a princípio, assunto de mais ninguém.  
Por-si porquanto possua nessa condição objetiva a faculdade concreta e primária de  
continuar a existir. Contra-si porque a realização de sua livre disposição significa  
cessão de direito à atuação objetiva de suas potências e a criação de riqueza  
estranhada em sua máxima potenciação, um mais-tempo de trabalho que é apropriado  
sem troca e convertido num poder sobre ele próprio, sob a mediação de sua própria  
atuação.  
Apesar de uma aparência de “datação” do tema da força de trabalho e de suas  
relações dentro do complexo capitalistas de relações sociais de produção, de sua  
existência mesma como um elemento do processo social de produção do capital, é  
possível constatar, tanto na realidade social quanto no interior da academia um  
renovado interesse por sua dimensão conceitual, bem como das temáticas que podem  
ser relacionadas a ela. E isto, não somente na tradição circunscrita pelo pensamento  
que declara herdeiro daquele de Marx, mas mesmo no contexto de correntes e  
pesquisas que retomam a aparência livre da subsunção do trabalho ao capital como  
fundamento da sociabilidade e da própria liberdade dos indivíduos. Em especial, pode-  
se referir aqui a duas obras recentes, produzidas no âmbito acadêmico germânico que  
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ora flertam com a forma liberal de abordagem da temática ora remetem,  
implicitamente, à interpretação hegeliana da pessoa livre proprietária privada de si  
como fundamento insuperável da pessoalidade. Jürgen Ritsert em seu Gerechtigkeit,  
Gleichheit, Freiheit und Vernunft (2012) toma a igualdade em seu aspecto moderno  
como a realização de si dos indivíduos, não obstante tenha de ser complementada  
pela atuação da razão como política. Christian Schmitd, em sua obra de 2006,  
Individualität und Eigentum, pretende estatuir explicitamente o terreno da  
individualidade, e das formas pelas quais essa figura humana pode se realizar no  
mundo, expressando-se, objetivando-se, a partir de sua conexão com a propriedade  
privada como forma social essencial, inclusive referindo a propriedade de si mesmo  
como força de criação sob a forma de um fundamento irreversível do indivíduo. Contra  
o que pode ser considerado um tipo de desvio utópico do século, caberia recuperar  
de maneira diferenciada, “crítica”, esse fundamento da liberdade como tal.  
Entendimento de seu empreendimento teórico que é, ademais, anunciado pelo  
subtítulo da própria obra: Zur Rekonstruktion zweier Grundbegriffe der Moderne, Para  
reconstrução dos conceitos fundamentais da modernidade. Frente a isso, a retomada  
da forma pela qual Marx originalmente apreende e pensa a efetividade da  
individualidade produtora de si e de seu mundo nas formas correlatas da alienação e  
do estranhamento, bem como a exprime categorial e teoricamente, para compreender  
o caráter real da individualidade do capital, evidencia-se como uma tarefa necessária.  
Tanto teórica quanto praticamente. Teoricamente, para patentear seu potencial  
heurístico e no nível da prática, para subsidiar aproximações à particularidade  
contraditória atual da sociedade capitalista que não reduzam seu escopo a uma mera  
forma “corretiva” de supostas “anomias” de natureza “funcional” ou “pragmática”.  
Iniciando o tratamento das questões relativas à categoria marxiana força de  
trabalho é importante situar, antes de tudo, o que se entende pelo próprio termo  
conceitual em sua contextura propriamente categorial. Ou seja, para aquém e para  
além de um conceito ou ideia-chave de um approach particular, cabe delimitar o seu  
sentido como referencial ideal de caráter geral, que permite o remetimento de  
problemas e desafios teóricos específicos ao quadro da totalidade da produção social.  
Categoria como acima se referiu é, no pensamento marxiano, Daseinsform,  
Existenzbestimmung, suscintamente, forma de ser, determinação de existência, a qual  
sempre em relação a outras, portanto, no quadro de uma miríade de formas sociais de  
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existência, participa da articulação que delimita um dado real finito; no nosso caso,  
uma totalidade de relações sociais de produção e produção da vida humana  
historicamente determinado. Nesse sentido, a força de trabalho, simultaneamente à  
sua função heurística circunscrita pela crítica teórico-ontológica de Marx às  
formulações da economia política, em especial, no que se refere à questão da  
determinação da natureza do excedente, possui igualmente uma outra, aquela de  
remeter o problema como tal às diversas dimensões da totalidade social. Por  
conseguinte, como categoria, a força de trabalho pode ser abordada também a partir  
do tratamento marxiano, ela mesma como um referencial que auxilia na apreensão e  
no entendimento de diversos níveis e graus de constituição dos indivíduos vivos e  
ativos, que em torno de seu intercâmbio social se elaboram como tais. A força de  
trabalho, assim, permite vislumbrar um conjunto de nódulos ônticos ou determinações  
essenciais que delimitam a forma mesma da individualidade a ela remetida (seja de  
seu vendedor, seja a de seu comprador), iluminando certas mediações constitutivas  
dessa figura no contexto societário do capital.  
Para tanto, as análises e discussões da Arbeitskraft intentarão descortinar o  
caráter peculiar desta forma de ser em sua tipicidade concreta, conforme sua existência  
e vigência sociais no processo de produção do capital e das formas de sociabilidade  
que lhe correspondem.  
De início, ressalte-se já sua desconcertante forma social imediata de aparecer no  
processo de produção como mercadoria, uma mercadoria ou valor cuja peculiaridade  
a torna também um tanto desconcertante ao entendimento comum. A força de trabalho  
é, neste contexto, uma forma de aparição imediata e sintética de um conjunto de forças  
e disposições individuais existentes numa corporeidade humana real. Seu existir,  
conquanto venha a revestir-se da forma mercadoria, seja tratada e transacionada por  
este padrão social, apresenta uma differentia specifica decisiva: em momento nenhuma  
essa “mercadoria” como forma real de existência pode ser materialmente destacada  
de seu proprietário/alienador. É um ponto ontológico problemático e complexo que a  
determina objetivamente frente a todas as demais mercadorias.  
A potência de trabalho ou força de trabalho possui essa dupla particularidade  
dentre todas os demais elementos que aparecem na forma mercadoria. Esta assume a  
forma de ser social das condições objetivas da produção, não obstante ela seja uma  
forma objetiva de uma corporeidade subjetiva viva. Ela não possui uma realidade plena  
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e materialmente exterior aos indivíduos que a transacionam. Não por acaso, a  
cunhagem mesma de um termo conceitual não foi uma tarefa fácil ao próprio Marx  
quando, a partir da elaboração de seus Grundrisse, passa a se assenhorar teoricamente  
da distinção entre trabalho e força de trabalho como elemento central para a  
construção de sua crítica da economia política. Em diversos momentos e escritos  
anteriores e preparatórios a O Capital, seu autor oscila entre a utilização de  
Arbeitsvermögen (potências de trabalho) e Arbeitskraft (força de trabalho). Por exemplo,  
tanto em Theörien über den Mehrwert quanto no intitulado Kapitel VI – “inédito”, ele  
trata ambos os termos como sinônimos para a categoria que aparece na circulação  
como uma mercadoria sui generis: pelo fato de não ser produzida, social e  
tecnicamente, como mercadoria e ser a única a criar valor. A dificuldade teórico-  
conceitual deriva exatamente desse caráter real complexo observado, típico da força  
de trabalho como forma de ser, em cada momento constitutivo da totalidade do  
processo social de produção.  
Somente a partir da publicação do Livro I de O Capital, o termo força de trabalho  
vai assumir o papel de nomeador do conceito examinado por Marx na composição da  
primeira parte da crítica da economia política, que é a análise do processo de produção  
do próprio capital. Marx não se dedica a uma exposição categorial do próprio conceito  
em sua multilateralidade de modo autônomo em nenhuma parte de sua principal obra  
sobre a crítica da economia política. E isso por dois motivos. Por um lado, a obra não  
tem como alvo proceder a este tipo de análise, mas de compor analiticamente o quadro  
de determinações categoriais que articuladamente perfazem o modo de produção  
capitalista. Por outro lado, consequentemente, somente no contexto da análise dos  
momentos em que se dá a aparição da força de trabalho como determinante  
importante do processo é que possível remetê-la. Nesse sentido, a análise proposta  
da categorial da força de trabalho será empreendida a partir da apresentação que dela  
se configurou no capítulo IV (Transformação do Dinheiro em Capital) da segunda seção,  
em seu subcapítulo 3 Compra e Venda da Força de Trabalho. De certo modo, busca-  
se esquadrinhar os principais traços que a delimitam como categoria, a partir da  
análise da própria argumentação marxiana ali desenvolvida, remetendo, com o fito de  
auxílio ao esclarecimento de certos aspectos, tanto a alguns estudiosos quanto a  
outros escritos marxianos, anteriores à publicação do Livro I.  
Da pesquisa daquele momento específico da obra em remetimento crítico à  
totalidade da exposição marxiana, bem como em cruzamento com outros textos  
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anteriores, resultou a identificação de pelo menos quatro temas-chave que podem  
auxiliar na construção de uma compreensão da forma de ser da individualidade  
capitalista a partir da discussão da categoria força de trabalho: 1) a força de trabalho  
como Daseinsform do capital e força de sua produção; 2) o modo particular de  
alienação da força de trabalho (Veräußerung); 3) o caráter complexo do “objeto” do  
qual o capital se apropria; e 4) a relação que o indivíduo tem consigo mesmo como  
proprietário privado de força de trabalho. Cada um desses pontos será tratado  
pormenorizadamente nas seções que se seguem.  
Definição categorial da força de trabalho como Daseinsform do capital  
Como se indicou, somente no interior do exame da relação de troca entre  
capital e trabalho, a qual, por sua vez consta como um momento integrante da  
análise marxiana da transformação da forma dinheiro em forma capital, é que se  
encontra esboçada, em traços espargidos, a fisionomia da força de trabalho. Ali,  
Marx a define, no correr do exame da forma pela qual se dá a alienação do trabalho  
ao capital, e o início de sua subsunção à totalidade deste, como um epítome –  
Inbegriff – (1962, p. 181). Um “resumo” ou sumário social no qual se articulam imediata  
e sinteticamente todas as capacidades físicas e intelectuais existentes na  
corporeidade real do sujeito vivo. Figura sintética essa que se situa no próprio  
indivíduo vivo como concatenação de qualidades ou propriedades objetivamente dadas  
em seu corpo1 (MARX, 2013 p. 242). É deste último inseparável, é um momento  
concreto da subjetividade viva e particular coincidente com seu corpo. É uma potência  
de realização posta como virtualidade nas propriedades corporais (cabeça e mãos,  
pernas e pés) que podem ser mobilizadas na efetuação de uma atividade produtiva de  
valor de uso. Sediada, "dada", no corpo é uma potência virtual, realizando movimentos  
produtivos é atuação efetuadora de valor de uso e no contexto da produção do  
capital, simultaneamente, efetiva valores portando mais-valor.  
Este peculiar caráter, material concreto, desta “mercadoria” particular  
imediatamente a remete ao corpo efetivo, existente como tal do indivíduo do qual é  
uma síntese de potências. O ente vivo humano, em seu Gegenstand, seu ser  
1 Na tradução brasileira mais recente (Boitempo, 2013) usa-se o termo complexo para verter Inbegriff.  
A presente argumentação julga o vocábulo epítome como o mais adequado e fiel ao sentido original da  
caracterização marxiana, na medida em que sua significação, abrangendo o caráter de síntese imediata  
ou de forma resumida de um complexo de potências, parece aglutinar as acepções e aspectos da  
categoria real exprimidos por Marx em sua definição da força de trabalho.  
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materialmente configurado e concretamente existente frente a todos os demais  
existentes (entes físicos e/ou formas objetivas de existência), é o locus efetivo desta  
mercadoria. Por definição, é este ente, genealógica e ontologicamente um ser de  
carecimentos determinados, cujo ser aberto de natureza histórica (e histórica de si) faz  
continuamente no tempo aumentar e diversificar o sistema de carências. Carecimentos  
os quais, não obstante sua diversificação e complexidade crescentes em termos de sua  
existência histórico-social, perseveram em sua materialidade como de natureza  
essencial e eliminável para a sua existência como ente vivo. Determinação positiva,  
permanente, de sua existência real, a qual passa, contudo, pela mediação objetiva de  
cada forma social na qual produz os meios de satisfazer seus carecimentos. Por  
conseguinte, “e tal como nos primeiros dias de sua aparição sobre o palco da Terra, o  
homem tem de consumir a cada dia, tanto antes como no decorrer de seu ato de  
produção. Se os produtos são produzidos como mercadorias, eles têm de ser vendidos  
depois de produzidos, e somente depois de sua venda eles podem satisfazer as  
necessidades dos produtores” (MARX, 2013 p. 243). As condições sociais objetivas da  
existência da força de trabalho na forma mercadoria são originadas no processo  
histórico, o qual é sempre particular em seus eventos, dependendo da realidade da  
economia que transita para a produção de mais-valor.  
Analogicamente, é ela, como toda e qualquer mercadoria, o resultado do consumo  
determinado de valores de uso, de objetos que cumprem alguma finalidade humana;  
sua produção equivale a uma operação específica de consumo. Deste lado, aparece  
como outra qualquer. Entretanto, este consumo não é como tal um consumo de valor  
de uso como aquele que se dá no processo de produção das outras mercadorias. É a  
produção ela mesma de um valor de uso, a ser socialmente movimentado por meio do  
intercâmbio social até o local da atividade produtiva capitalista, que não transcorre  
como um consumo produtivo de caráter imediatamente capitalista. O que acentua e  
determina um pouco mais sua peculiaridade como Daseinsform do capital. Tal  
mercadoria ela mesma não é imediatamente produzida como um objeto mercantil, cujas  
determinidades de sua produção a façam aparecer como item simplesmente entre  
outros da ungeheure Warensammlung. Sua contabilidade dentro do conjunto de  
elementos que compõem aquela coletânea de riquezas em forma imediata de coisas e  
efeitos ponderáveis somente é possível pela própria existência social determinada de  
seu indivíduo. Indivíduo cuja determinação traveja sua forma de ser individual segundo  
uma relação ela também determinada histórica e socialmente. Assim, para que o resumo  
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A força de trabalho como forma de ser  
sintético vivo de potências de objetivação tome lugar no processo de produção “seu  
possuidor, em vez de poder vender mercadorias em que se trabalho se objetivou, tenho  
antes, de oferecer como mercadoria à venda sua própria força de trabalho, que existe  
apenas em sua corporeidade viva” (MARX, 2013 p. 243). Ou seja, conquanto seja  
produzida pelo consumo orgânico e individualizado de valores de uso que permitem a  
continuidade da vida do sujeito real do qual é força, o processo social, sob  
determinadas condições históricas pôs, situou, um conjunto de indivíduos em uma  
situação na qual se veem obrigados a dar a sua força de trabalho a figuração de uma  
mercadoria. Deste modo, passam eles a se comportarem também frente a um momento  
de si mesmos como um “proprietário privado”. As implicações existenciais e sociais  
desta operação processual de natureza formal tanto para o indivíduo quanto para a  
determinação da própria alienação serão mais bem desdobradas em outro momento;  
por ora cabe reter como a força de trabalho assume socialmente essa figura  
determinada. Trata-se não de uma forma de existência imanente a seu processo de  
produção como tal, ainda que praticamente todos os valores de uso nela organicamente  
incorporados sejam dum modo outro produzidos como mercadoria, mas de uma  
operação de caráter social formal.  
Não por acaso, Marx se serve da conjunção modal “como” (als) para delinear e  
reforçar essa diferença. Frequentemente, a partícula de ligação como em Marx, não é  
apenas um recurso estilístico, mas demarcação de uma flutuação de sentido objetivo  
de uma categoria; do modo como ela na efetividade da produção assume um  
determinado caráter preponderante. A força de trabalho, um epítome real sediado na  
corporeidade do trabalhador, parte integrante e essencial de sua pessoalidade viva  
não é em sua produção mercadoria, não obstante ele as utilize em sua determinação  
de valor de uso para sua produção e reprodução sociais. O deslizamento de sentido,  
para o qual Marx aponta é exatamente o fato de esta se apresentar no mercado  
assumindo a forma de ser social mercadoria, mesmo que a rigor não o seja. Não por  
acaso, em diversos momentos faz uso também do verbo gelten, que significa vigorar  
ou passar por, e não tanto o werten que é valer no sentido do trabalho abstrato.  
De certo modo, a força de trabalho assume aqui de modo fantasmagórico, por  
analogia, a forma de existir das condições objetivas, as quais já estarão dispostas frente  
a ela ao modo do valor/mais-valor, como momentos do capital. É nessa função que ela  
se apresenta, por isso, seu próprio valor de uso será cifrado, traduzido, também nos  
termos da lógica da mercadoria. Portando valor e valor de uso, ainda que este último  
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igualmente deva ser apreendido a partir da cisão que a própria realidade econômica  
nele opera, em dois aspectos, distintos ainda que ontologicamente conexos: o material  
e o formal. O pôr valor numa forma determinada, como valor de uso produzido por  
trabalho de trabalho concreto e, principalmente, por ao fazê-lo, simultaneamente,  
ponha também um valor que excede o seu próprio valor. O seu uso se dá em termos  
imediatamente capitalistas no sentido de valorizar os valores, as condições objetivas,  
produzindo um excedente que se expresse como valorização do próprio capital  
invertido em relação ao capital variável. Uma vez que se trata, como Marx asseverará  
bem mais à frente, de uma força natural real, corpórea, fisicamente fundada na  
objetividade da biologia humana e condicionada por seus vários e variáveis  
carecimentos vitais.  
Tal determinação de caráter possui uma série de consequências impactantes para  
a compreensão crítica da própria forma segundo sua vigência na particularidade  
concreta dum determinado momento do processo de produção. No que se refere à  
força de trabalho como mercadoria do capital, a ser integrada no conjunto de suas  
condições reais, o valor da força de trabalho, embora dado nas mercadorias que  
garantam sua reprodução, não é senão valor mediado pela existência viva do indivíduo  
que a tem. Deste modo, “o tempo de trabalho necessário à produção da força de  
trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de  
subsistência, ou, dito de outro modo, o valor da força de trabalho é o valor dos meios  
de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor” (MARX, 2013 p 245).  
Nota bene, não é valor diretamente produzido como individualidade, mas do que é  
necessário ao indivíduo ser como seu portador. Caso não fosse, não teríamos o  
indivíduo alienando sua força, mas alienado por outrem como uma força individual. O  
que determina novamente a individualidade viva do sujeito que trabalha ele igualmente  
como proprietário privado. Por isso, a força de trabalho é qualificada por Marx de  
eigentümliche Ware, mercadoria peculiar (MARX, 1962, p.190).  
Apesar de ser seu proprietário, para o indivíduo sua própria força de trabalho  
somente possui vigência de fato na medida em que se a ofereça como mercadoria. Na  
ausência desta relação é tão somente um conjunto potencial de virtualidades radicadas  
nas propriedades funcionalmente existentes em sua corporeidade pessoal. Nada  
realiza, nem permite sequer a sua sobrevivência no contexto social da propriedade  
privada capitalista. Porquanto sua falta de propriedade exterior, em especial (mas não  
somente), das condições de sua atividade, coaja-o à relação de troca com o capital, é  
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esta alienação específica, um ato formal de assumir o ser da mercadoria, uma  
necessidade exterior tornada pressuposto essencial. O que importa na força de  
trabalho como uma das Daseinsformen do capital, aparecendo aqui como uma  
condição real, mas subjetiva, da produção é sobretudo seu valor de uso específico.  
Uma vez tendo assumido a forma mercadoria, passando a valer (gelten) assim no  
processo de intercâmbio social específico, a mobilização produtiva de seu valor de uso  
é a finalidade pressuposta à relação de aparente troca simples. De tal modo que  
somente na utilização real, existe como ato de consumo produtivo “Por meio de seu  
acionamento, o trabalho, gasta-se determinada quantidade de músculos, nervos,  
cérebro etc. humanos que tem de ser reposta. Esse gasto aumentado implica uma  
renda aumentada” (MARX, 2013 p. 245). Atividade de produção, consumo produtivo  
da força de trabalho que é, entre outras coisas também, resultado relativo, aberto a  
transformações, da história de vida, aprendizado e atividade de cada indivíduo vivo. O  
predicado biológico humano pressuposto ao exercício da força de trabalho, em seu  
consumo, precisa ser continuamente mantido e reproduzido. Trata-se de um gasto  
objetivo de energia e do desgaste consequente de órgãos, tecidos, funções etc. Como  
se trata também de um exercício que deve ser cumprido de modo reprodutivo,  
segundo o contrato de aluguel de seu usufruto, a força de trabalho é uma mercadoria  
que necessita de permanente reconstituição, a não ser que se a dispense de modo  
definitivo.  
Em sua determinidade econômica mais imediata, pela qual defronta o capital, a  
força de trabalho viva é também valor. Valor que na aparência imediata da troca  
simples serve de mediação à apropriação do valor de uso particular da força de  
trabalho viva. Valor que abrange, como já se viu, a tautologia da soma dos valores dos  
itens de consumo que participam da produção reprodutiva da força de trabalho. Os  
quais são comumente identificados aos víveres, objetos de uso e meios de viver em  
geral e de reprodução da vida, tais como alimentação, vestimenta, moradia, transportes  
etc. Esses elementos possuem numa dada sociedade valores, cuja grandeza em tempo  
socialmente necessário de trabalho, exprimem dadas condições sociais objetivas nas  
quais se produz a vida numa dada quadra histórico-social. Entretanto, o conteúdo de  
tais valores de uso podem variar de modo bastante ponderável de uma sociedade ou  
de uma época para outra, em função dos costumes e de suas transformações no tempo,  
da fixação de tradições e das particularidades mais locais. Por conseguinte, “a extensão  
das assim chamadas necessidades imediatas, assim como o modo de sua satisfação, é  
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ela própria um produto histórico e, por isso, depende em grande medida do grau de  
cultura de um país, mas também depende, entre outros fatores, de sob quais condições  
e, por conseguinte, com quais costumes e exigências de vida se formou a classe dos  
trabalhadores livres num determinado local” (MARX, 2013 p. 245). Obviamente, a  
expressão Kulturstufe eines Landes remete a aspectos gerais do desenvolvimento  
particular de cada sociedade, assim como àqueles atinentes ao modo de exploração  
da própria força de trabalho; do quanto este modo efetive ou não as determinações  
formais específicas da força de trabalho como mercadoria moderna. Essa série de  
aspectos, que existem sempre de maneira articuladamente sintética na vida das  
populações reais, definem também parte ponderável da peculiaridade da força de  
trabalho, uma vez subsumida como mercadoria alugada pelo capital. As possibilidades  
de contornar a totalidade particular, ou alguns de seus aspectos que tendencialmente  
a tornam onerosa ou complexa a subsunção, são também variáveis, correspondendo a  
circunstâncias particulares espaciotemporais, nacionais e universais de cada economia  
na qual prepondera a forma capital. A relação de subsunção, em função desse caráter  
complexo específico, não é unívoca, nem estática, mas se realiza como totalidade cuja  
dinamicidade é aberta ao desdobramento histórico de certas contradições próprias.  
Entretanto, esse valor não reduz apenas àquele dos valores representados pelos  
objetos de consumo direto do indivíduo. O valor da força de trabalho igualmente  
abarca os custos com sua formação, geral ou específica, para seu uso num determinado  
ramo da produção. Da natureza complexa desse epítome de forças resulta igualmente  
que este não se identifique à mera existência imediata e abstrata de um indivíduo vivo.  
Ainda que seja ontologicamente força de um indivíduo vivo, a Arbeitskraft não se dá  
imediatamente na corporeidade dos indivíduos como seu mero corpo biológico  
inicialmente configurado. Tem-se aqui uma diferença importante entre propriedades  
corpóreas e potências de objetivação, onde a corporeidade concreta e efetiva do  
indivíduo somente se confirma como potência efetiva quando as virtualidades inscritas  
nas propriedades do corpo devêm movimento hábil. Deste modo, como mercadoria já  
disposta, a produção da força de trabalho pressupõe igualmente um conjunto de  
operações que a tornem potência sintética de produção. Por isso, “Para modificar a  
natureza humana de modo que ela possa adquirir habilidade e aptidão num  
determinado ramo do trabalho e se torne uma força de trabalho desenvolvida e  
especifica, faz-se necessária uma formação ou um treinamento determinados, que, por  
sua vez, custam uma soma maior ou menor de equivalentes de mercadorias” (MARX,  
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2013 p. 246). Não por acaso, a educação, assim como a saúde, deve ser um assunto  
tão "político" (relacionado agora concretamente à reprodução da vida social) quanto  
as questões da produção econômica, na modernidade. A educação se conta entre as  
componentes de valor da força de trabalho, bem como delimitam, ao menos  
inicialmente, o aspecto material e concreto, particular e sintético, de seu valor de uso.  
O que, por suposto, também tem repercussão para o aspecto formal, capacidade de  
pôr mais-valor ao pôr valor, do valor de uso da força de trabalho, porquanto a  
qualifique como potência a ser absorvida pelas condições objetivas de produção em  
sua valorização.  
Os termos da produção da própria força de trabalho, seja em seu sentido mais  
abstrato, geral, como produção de potência de objetivação humana, de realização de  
atividade produtiva, seja naquele mais determinado, como potência de produção de  
mercadorias, de valores de uso que portam valor/mais-valor evidenciam seu caráter  
eminentemente social. De uma parte, a corporeidade biológica humana possui ou  
comporta propriedades funcionais que virtualmente abrem ou podem abrir caminho à  
mobilização produtiva, na medida em que,  
(...) o trabalho implica, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar:  
gestos, saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da  
inteligência, a capacidade de refletir, interpretar e reagir às situações,  
é o poder de sentir, pensar, inventar etc. Em outros termos, para o  
clínico, o trabalho não é antes de tudo uma relação salarial ou o  
emprego, mas “o trabalhar”, isto é, um certo modo de engajamento  
da personalidade para fazer frente a uma tarefa enquadrada por  
coações (materiais e sociais)2 (DEJOURS, 2013, p. 20).  
Assim, esse conjunto real corpóreo é um pressuposto ineliminável, uma condição  
necessária, da existência real da força de trabalho. Entretanto, não é por si mesmo  
uma condição suficiente para que haja força de trabalho como tal. Na medida em que  
a atividade produtiva é um pôr em movimento forças corporalmente situadas em um  
contexto particular qualquer (levantar uma pedra ou conduzir uma sonda espacial à  
distância), trata-se sempre de esforço e mobilização particular de virtualidades  
convertidas em potências reais de produção. Trata-se de uma força num contexto  
2 (…) le travail est ce qu’implique, du point de vue humain, le fait de travailler : des gestes, des savoir-  
faire, un engagement du corps, la mobilisation de l’intelligence, la capacité de réfléchir, d’interpréter et  
de réagir à des situations, c’est le pouvoir de sentir, de penser, d’inventer, etc. En d’autres termes, pour  
le clinicien, le travail n’est pas avant tout la relation salariale ou l’emploi, mais le « travailler », c’est-à-  
dire un certain mode d’engagement la personnalité pour faire face à une tâche encadrée par des  
contraintes (matérielles et sociales).  
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especificado de atividade, o corpo que a executa já é ele mesmo, por assim dizer, um  
corpo trabalhado. Inteligência de movimento que é da alçada do movimento  
inteligente, da execução de finalidades, da atividade como ato e não como  
consequência de si, de sua conformação biológica diretamente natural. O que ato ou  
atuação não somente de um outro órgão sob padrões evolucionários, nem muito  
menos de um “cérebro” tomado em isolamento kantiano, como um sujeito  
transcendental. A este respeito, como igualmente observa Dejours:  
Uma longa discussão seria necessária para explicitar as relações entre  
a inteligência no trabalho e o corpo. A habilidade, a destreza, a  
virtuosidade e a sensibilidade técnicas passam pelo corpo,  
capitalizam-se e se memorizam no corpo e se desdobram a partir do  
corpo. O corpo inteiro, e não somente o cérebro, é a sede da  
inteligência e da habilidade no trabalho. O trabalho revela que é no  
próprio corpo que reside a inteligência e a habilidade no trabalho. O  
trabalho revela que é no corpo mesmo que reside a inteligência do  
mundo, e que é inicialmente por seu corpo que o sujeito investe o  
mundo para fazê-lo seu, para o habitar3 (DEJOURS, 2009, p. 23).  
Indicação que é tanto mais importante quanto mais se verifica uma tendência a  
tratar a totalidade da corporeidade ativa como uma mera consequência de um sistema  
nervoso central abstratamente considerado. De fato, grande parte dos representantes  
e pesquisadores das chamadas neurociências tendem a interpretar de maneira  
neotranscendental as conexões complexas de via dupla entre partes da corporeidade  
ativa.  
Umas vezes, tratam cada um destes "momentos" (em sentido hegeliano) como se  
fossem dois corpos em separado, abstraindo a atividade sensível daquela de  
coordenação do cérebro, como se este último pudesse ser o que é em autonomia das  
afecções que lhe chegam e provocam determinadas respostas do sistema  
neurotransmissores/hormônios. Outras vezes, transformam este órgão de coordenação  
ativa geral em uma versão biológica do sujeito transcendental kantiano, com todos os  
traços que aquele carrega na tradição idealista da modernidade à contemporaneidade:  
inatismo, formalismo, destinação genética, autonomia em relação às experiências  
sensíveis, poder de fundamentação das próprias experiências da sensibilidade,  
3 Une longue discussion serait nécessaire pour expliciter les rapports entre l’intelligence au travail et le  
corps. L’habileté, la dextérité, la virtuosité et la sensibilité technique passent par le corps, se capitalisent  
et se mémorisent dans le corps et déploient à partir du corps. Le corps tout entier, et non le seul le  
cerveau, est le siège de l’intelligence et de l’habileté au travail. Le travail révèle que c’est dans le corps  
lui-même que réside l’intelligence du monde, et que c’est d’abord par son corps que le sujet investit le  
monde pour le faire sien, pour l’habiter.  
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estrutura a-histórica (tanto no nível de cada individualidade quanto naquele das  
determinações sociais compartilhadas em dada momento) etc. (VIANA, 2010).  
Amiúde afirma-se sem muito cuidado ou ponderação a absurdidade de que "o"  
senhor "Cérebro" engendra, não somente as condições internas da experiência no  
mundo, mas "a própria realidade". Neste sentido, a absurdidade reside em diferentes  
níveis que repisam o pior da tradição do transcendentalismo kantiano. Confunde-se  
condicionamento com origem, distorcem a interação complexa entre atuação  
sensível/sensibilidade ativa/coordenação em uma causalidade unívoca. Daí resultam  
várias aporias algumas divertidas outras canhestras. Por exemplo, a abstração do fato  
de que o cérebro está num corpo real que já está imerso na própria realidade objetiva  
como corpo objetivo; a tendência a formalizar o cérebro que é um órgão vivo como  
qualquer outro, malgrado suas funções específicas, em uma fantasmagoria incorpórea;  
e, por fim, a pôr questões bizarras tais como se existiria ou não um "livre arbítrio" em  
termos de suposto "eu" frente aos disparos neuronais que "antecederiam" –  
temporalmente as decisões daquele self4. Sobre esta última questão, é curioso, mas  
não surpreendente, o quanto toda forma de transcendentalismo, às vezes na forma,  
mas outras também no conteúdo, retoma pseudoquerelas de caráter teológico. Ora,  
não há um "eu" que possa ser separado dos disparos, que existiria em autonomia. O  
eu real é este corpo consciente cuja atividade de seu cérebro, deste corpo humano, é  
em seus pressupostos materiais corpóreos, ontologicamente, eletricidade e  
bioquímica. Mas uma eletricidade e bioquímica que sinteticamente se expressam e  
suportam formas teleológicas de atividade. Não haveria um suposto self autônomo em  
relação ao corpo do qual é forma individual social e historicamente conformada senão  
nas diabruras falaciosas da especulação teológica! O cérebro, por assim dizer, "está"  
no corpo como um todo e o corpo em sua totalidade age cerebralmente (VIDAL;  
ORTEGA, 2020).  
O que é decisivo é indicar esse teor eminentemente corpóreo da força de  
trabalho, não obstante esta não se confunda com a existência imediata do corpo, uma  
vez que se trata sempre de potências reais de elaboração material e objetiva da  
realidade. Corporeidade que é ela mesma modificada pelo exercício que converte,  
inicialmente, virtualidades em potências, e estas em movimento real de alteração da  
4
Cf., por exemplo, SHARIFF, Azim F.; VOHS, Kathleen D. What Happens to a Society That Does Not  
Believe in Free Wıll?. Scientific American, 310, 6, 76-79 (June 2014).  
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forma de existência da materialidade natural em materialidade socialmente configurada  
(MARX, 2013 p. 255-256). Tema este também ressaltado por Dejours ao salientar a  
produção de um segundo corpo produzido a partir do aprendizado e do próprio  
trabalho (DEJOURS 2013, p. 26-28). Entretanto, dele se discorda aqui porquanto  
pareça remeter imediata e necessariamente a uma instância de interioridade do sujeito  
corporal concreto. Do modo como o processo de co-apropriação é apreendido e  
concebido, seguindo as trilhas conceituais de Michel Henry, pode soçobrar-se de um  
golpe na instauração de uma fenomenologia do corpo que trabalha e não de uma  
análise do corpo humano trabalhando (DEJOURS 2013, p. 26-27). Uma apreciação que  
pressupõe a priori a existência de uma subjetividade qualquer pronta (ou elaborada  
como tal) independentemente das relações que o indivíduo vivo e ativo, este corpo  
humano real em sua integralidade, possa ter com os objetos de sua afecção e atividade.  
Um corpo que soçobre na fantasmagoria. Quando o que se trata, talvez, é da  
elaboração do corpo humanizado a partir de biologia inicialmente não humana, de  
uma reelaboração da própria biologia em termos humanos, uma biologia que se  
comporta humanamente; um biológico não necessariamente mais natural. Ressoa  
especialmente a pressuposição silenciosa de que o corpo biológico seja  
irredutivelmente pura naturalidade, ou não humanizado ou passível de devir humano  
de si. Algo que, aliás, a parte não transcendentalista dos estudos em neurociências  
desmentem veementemente, ao aportar o conhecimento como tanto as terminações  
nervosas da musculatura por assim dizer “pensam” (NEUWEILLER, 2005), quanto são  
os padrões cerebrais como tais também resultado de formas particulares de atividade  
(STOUT, 2016). O que não invalida a posição do segundo corpo, mas pondera-o num  
sentido mais materialista, o qual, evidentemente, conhece uma série de expressões  
internas à subjetividade, as quais impactam igualmente a objetividade do corpo.  
A aproximação ainda inicial, e necessariamente abstrata, da força de trabalho  
como Daseinsform do processo de produção, conquanto sua generalidade consigna o  
apontamento de problemas que se desdobram em forma de determinação mais  
particularizada. É de certo modo, igualmente impressionante como a categoria força  
de trabalho na forma da mercadoria possui uma importância central, tanto para o  
desenvolvimento da realidade social capitalista quanto para o entendimento teórico  
dela. Algo que Marx assinala numa nota (41) interna à seção em análise, nos seguintes  
termos: O que caracteriza a época capitalista é, portanto, que a força de trabalho  
assume para o próprio trabalhador a forma de uma mercadoria que lhe pertence, razão  
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pela qual seu trabalho assume a forma do trabalho assalariado. Por outro lado, apenas  
a partir desse momento universaliza-se a forma-mercadoria dos produtos do trabalho”  
(MARX, 2013 p. 245). Pois, a instauração desta relação do trabalhador consigo  
mesmo, como proprietário, como pessoa livre, possui o caráter de eine historische  
Bedingung umschließt eine Weltgeschichte, uma condição histórica que encerra uma  
história universal. Ou seja, é um ponto de inflexão de monta dentro do itinerário que  
das diferentes formas de propriedade privada. É somente aqui que o próprio indivíduo  
em geral pode assumir a posição do quem como indivíduo se refere apenas a si mesmo  
(er als Vereinzelter nur mehr sich auf sich bezieht), está ocupado somente consigo  
próprio (cf. MARX, 1983, p.404). De certa maneira, reaparece a mesma tese marxiana  
que é possível inferir do estudo das Formen: todas os modos sociais de organização  
da produção anteriores e/ou diferentes do capitalista, em especial aqueles já de  
propriedade privada de alguma condição essencial de produção, principalmente da  
terra e de seus elementos, são caracterizados ainda por um desenvolvimento limitado  
da individuação. O processo de formação da individualidade ocorre na forma duma  
subsunção absoluta em relação à generidade imediata (famílias, clãs, tribos, póleis,  
reinos, feudos, corporações etc.), na medida em que correspondem também a uma  
subsunção do principal elemento vivo de sua reprodução no processo social, o  
produtor efetivo, como uma coisa ou subsumido a uma coisa ou complexo de coisas  
(cf. MARX, 1983, p.409-421). Já no capital, é um momento do produtor real que se  
converte formal e objetivamente numa "coisa" da qual ele pode dispor e negociar seu  
usufruto. Nesse sentido, é essencial para se aprofundar na determinação da própria  
categoria força de trabalho como mercadoria capitalista a delimitação da forma  
específica de sua alienação ao capital, do modo efetivo pelo qual se dá a cessão da  
força de trabalho, e consequentemente de sua utilização in actu, no processo de  
produção do capital.  
O caráter particular da Veräußerung da força de trabalho  
Partindo da configuração altamente complexa da força de trabalho como epítome  
de potências vivas de objetivação que assume a forma mercadoria frente ao capital, é  
importante agora compreender o tipo de alienação pela qual passa essa mercadoria  
peculiar para que se tenha o entendimento de outros tantos problemas. Porquanto  
não seja materialmente separável de seu proprietário privado, a força de trabalho como  
mercadoria deve possuir igualmente uma forma determinada de cessão que a  
particulariza. Assim, ante às formas mais genéricas de alienação das demais  
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mercadorias do processo de produção do capital, aquela da condição subjetiva da  
riqueza apresenta, como se verá, uma configuração de complexidade peculiar  
correspondente em termos de contradição interna entre suas determinações. Algo que  
terá um impacto importante no que se refere à determinação da relação da própria  
individualidade sujeito com as demais figurações da forma capital. Ver-se-á emergir  
uma duplicação, diferente daquela tradicionalmente identificada entre homem e  
cidadão, na medida em que é imanente à vida mesma da sociedade civil, e não mais  
na relação desta com sua instância expressiva de poder, a política e o Estado.  
Tema espinhoso da marxologia em termos históricos porquanto repouse sobre  
a determinação de conteúdo de termos conceituais cujo itinerário, tanto em Marx  
quanto no marxismo, conheceu vários e diferentes percalços. Preponderantemente  
vertidos do alemão por um só vocábulo em grande parte de traduções e de  
tematizações, o problema categorial assim nomeado e conhecido como tal e o conjunto  
de questões que lhe são pressupostas e por este implicadas, em geral é “resolvido”  
por estratagemas de caráter epistêmico que o reduzem ou bem ao nível de  
esquematismo ou bem ao de simples palavras. Refere-se aqui à “dupla” problemática  
composta pelos conceitos de Entfremdung e Entäußerung, os quais como acima  
aludido não são normalmente tomados sequer como par, quanto mais por conceitos  
diferentes, embora, evidentemente conexos.  
Tais categorias são dominantemente renegadas pelo recurso da denegação de  
sua suposta invalidade conceitual. Pelo concurso de duas circunstâncias diferentes,  
uma acadêmica, outra pertencente à história da formação do próprio pensamento  
marxiano. Por um lado, apresenta-se uma tradição de leituras e interpretações  
consagradas a partir da fixação da posição althusseriana como um verdadeiro ponto  
de partida auto-evidente, as quais, independentemente de se filiarem ou não às linhas-  
mestras do autor de Pour Marx e Lire Le Capital, tomam como ponto pacífico uma  
oposição qualquer entre “o jovem” Marx e o Marx da maturidade. O primeiro, “jovem”,  
epiteto normalmente tomado de igual maneira como auto-evidente, “ainda”  
demasiadamente “filosófico”, curiosamente filiado a um tempo à dialeticidade  
hegeliana e ao naturalismo feuerbachiano. O que é tanto mais estranho quanto mais  
excludentes o são ambos referenciais um ao outro. O outro, “o cientista”, rapidamente  
identificado este último com o da crítica da economia política dos três livros publicados  
de O Capital. E isso sem que se consiga muito bem ajustar as visões dominantes de  
“ciência” nas epistemologias da moda em cada momento à espécie mesma à qual Marx  
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A força de trabalho como forma de ser  
identifica seu empreendimento teórico crítica anunciada como subtítulo geral de  
toda a obra. Quando muito, também seguindo as trilhas de Althusser, põe-se o acento  
sobre a crítica que Marx dirige à economia política como disciplina e como linha  
teórica. Todos os problemas são colocados aqui sob as lentes da epistemologia e da  
metodologia, pelas interrogações de como e a partir de quando Marx começa a fazer  
“sua ciência”5. Frente a tal dominância, poucas vozes são dissonantes, em especial,  
destacam-se as de Lukács (2013, p. 577-636) e de Sève (1974). A primeira não sem  
problemas, logrou encontrar eco nas páginas de Para uma Ontologia do Ser Social,  
sob uma forma que aproxima demasiadamente Marx a Hegel, ao tentar fazer ressoar  
a diferenciação entre alienação e estranhamento, em termos de positividade e  
negatividade ontológicas de imanência em relação à atividade produtiva.  
Suscintamente, a alienação seria o nome conceitual a remeter universalmente a  
quaisquer formas de objetivação humana, já estranhamento remeteria ao caráter que  
tais formas ganham nos contornos da propriedade privada capitalista6. A segunda voz,  
a de Sève, buscou emitir o rastro de diferenças peculiares das elaborações marxianas  
em relação ao seu léxico, dando, de um modo que parece bastante acertado, destaque  
ao fato de que Entäußerung, por sua contextura demasiadamente geral, cederá lugar  
progressivamente à Veräußerung, uma vez este termo aglutinar articuladamente certos  
traços particularizados da operação de alienação própria à força de trabalho ao  
capital7. De outra parte, como circunstância histórica, o problema se torna escabroso  
também pelas dificuldades inerentes e imanentes ao texto marxiano no qual aparecem  
pela primeira vez (Ökonomisch-philosophische Manuskripte aus dem Jahre 1844), a  
primeira incursão marxiana pelo terreno minado pelas contradições da economia  
capitalista expressas em contradições e aporias da economia política como disciplina.  
O que mormente se traduz, em consonância com a hermenêutica dominante, na  
consideração de que tais conceitos pertenceriam exclusivamente a este texto ou  
somente àqueles de quadra histórica próxima. Coisa não infirmada por estudos mais  
recentes junto à própria obra de maturidade. Não somente os termos continuam a ser  
5
Com relação a esse conjunto de problemas implicados pela tradição que se tornou dominante, uma  
vez que este artigo não tem o escopo de se aprofundar nesta discussão, remete-se o leitor novamente,  
aqui a: ALVES, A. J. L. Marx e a analítica do capital: uma teoria das Daseinsformen. 1. ed. Saarbrücken,  
Alemanha: Novas Edições Acadêmicas - OmniScriptum GmbH & Co. KG, 2013, p. 349-371.  
6
Cf. HALLAK, M.: “Alienação do trabalho em Marx: dos Manuscritos de 1844 a O capital”. Verinotio –  
Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 24, n. 1, pp. 58-73, abr./2018; bem  
como “De como Lukács chegou à distinção entre alienação e estranhamento para depois abandoná-la”.  
Verinotio Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Rio das Ostras, v. 14, pp. 58-73, out./2012.  
7 SÈVE, L. Marxisme et théorie de la personnalité. Paris : Éditions Sociales, 1974.  
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usados pós-1857, quanto sua ocorrência, não obstante as alterações importantes, que  
mais à frente serão indicadas, dá-se com relação aos mesmos problemas levantados  
na economia política entre 1844-1848 (ALVES, 2017).  
Trate-se de uma preponderância hermenêutica cujo peso é tão portentoso e a  
consistência inercial tão robusta que obsta mesmo as tentativas de maior fôlego de  
alcançar um discernimento mais imanente ao texto marxiano. Tome-se, de maneira  
igualmente sumarizada um caso recente. Stéphane Haber em uma de suas obras de  
grande fôlego teórico, L'aliénation: vie sociale et expérience de la dépossession,  
termina ele repisando também os mesmos limites de entendimento, conquanto sua  
proposta inicial de recuperação do conceito de “alienação” (HABER, 2007, p. 9-40).  
Livro que contempla um pormenorizado apanhado crítico em termos da história das  
elaborações terminológicas das quais Marx seria tributário (HABER, 2007, p. 47-58).  
Entretanto, malgrado a importância arqueológica da questão, acaba servindo  
sintomaticamente para reduzir a querela mesma à produção de esquemas conceituais  
e/ou metodológicos de aproximação a problemas particulares. No caso de Marx,  
daqueles levantados na e pela economia política ilustrada. Toma para tanto, nas sendas  
de Althusser, incialmente Entfremdung e Entäußerung sob o signo da indistinção e  
partir daí procura rastrear a permanência relativa ou não do “esquematismo da  
alienação” e das heranças malcozidas de Feuerbach e Hegel na composição de um viés  
crítico de feitio antropológico (HABER, 2007, p. 43-44, 50-51, 64-65 e 72-93). Algo  
que denomina, ao longo do texto, de modelo da alienação (HABER, 2007, p. 41-96).  
Esta forma de procedimento crítico, inclusive faz com Haber conquanto acerte  
em seu diagnóstico de aspectos mais pontuais com relação a 1844, por exemplo, as  
frequentes ambiguidades quando Marx busca discernir tanto o objeto real da  
Entäußerung quanto as diversas modalidades particulares que dela resultam no  
complexo social objetivo do entfremdete Arbeit, da riqueza estranhada, o motivo de  
tais lacunas parece escapar-lhe. Em geral, o estudioso termina por responsabilizar o  
peso da filosofia e de seus esquemas (filosofemas) pelas insuficiências. Tal modo de  
abordar não mais será sumarizado aqui, por duas razões básicas: 1) escapa ao escopo  
limitado do presente trabalho e 2) esta obra merece, inclusive pela seriedade e  
erudição com a qual é elaborada, uma interlocução crítica imanente e comparativa para  
com o texto de Marx, algo impossível de se proceder neste momento, mas que fica  
desde já fixada como compromisso para futuro próximo.  
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O que pode tirar-se desse itinerário complicado acima sumarizado? Que, talvez,  
fosse mais produtivo, do ponto de vista compreensivo, ao invés de remeter  
imediatamente a heranças reais ou aparentes às quais Marx pagaria tributo, tomar  
a analítica marxiana em sua imanência problemática, pela propositura crítica que  
enuncia e pelo resultado ainda necessariamente insatisfatório que alcança. Marx  
pretende tracejar o caráter mais essencial da vida social, tarefa anunciada em 1843 na  
forma do entendimento crítico da anatomia da sociedade civil (MARX, 1976, p. 380).  
Para tanto, precisa discernir as relações sociais que a constituem em totalidade e cada  
uma delas em sua particularidade. E é neste particular que a insuficiente aproximação  
crítica da economia política exercitada neste primeiro momento deixa transparecer o  
peso real de sua natureza lacunar. O que a analítica marxiana ainda não consegue  
lograr é essencialmente a determinação do objeto real que sich entäußert, que se  
aliena, bem como, por conseguinte, a natureza particular mesma da principal relação  
de alienação do processo capitalista de produção. Tomando a economia política em  
seus próprios termos, de um modo ainda demasiadamente positivo, imediato, Marx  
ainda trafega conceitualmente pelo que poderia se denominar de polissemia do  
trabalho. Afinal, o que é “vender” ou “alienar” “trabalho”? A coisa produzida no  
trabalho? Um direito sobre os materiais de trabalho? A atividade trabalho? (O que  
Marx mesmo denunciará depois como puro non sense) O controle sobre o trabalho? É  
desta indeterminação que parece provir grande parte das oscilações, ambiguidades e,  
mesmo certas aporias, marxianas que, por exemplo, Haber corretamente aponta em  
seu tratamento (HABER, 2007, p. 58-65), e não propriamente de um suposto excesso  
“de filosofia” com sua contraparte de lacunosidade cientifica.  
Neste sentido, os textos da maturidade incluem esse momento essencial de  
determinação, representado pela aparentemente singela diferença conceitual entre  
trabalho e força de trabalho. Esta distinção possui um caráter simultaneamente  
conceitual (atinente a um problema teórico particular) e categorial (na medida em que  
possibilita o manejo adequado das referências mais gerais), pois possibilita a Marx  
concomitantemente à determinação do objeto da alienação igualmente o  
discernimento da forma particular desta operação de cessão, cuja referência categorial  
não será mais a generalidade da Entäußerung, uma alienação que pode referir-se a  
coisas em geral que são por si totalmente exteriores ao proprietário. Emerge o uso  
recorrente e meandrado de Veräußerung (SÈVE, 1974) para indicar a especificidade  
de uma relação na qual se transaciona não uma coisa, mas o direito de usufruto, o  
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aluguel do uso produtivo, de um conjunto sintético de potências de objetivação, da  
força de trabalho do indivíduo vivo, ativo e socialmente existente em relações  
determinadas.  
A este respeito, em seu estudo sobre a formação do conceito de força de trabalho  
no pensamento de Marx, Claude Morilhart ressalta também este mesmo aspecto  
essencial da relação específica de alienação da força de trabalho. Em especial quando  
comenta uma passagem de um texto posterior aos Grundrisse, no qual Marx analisa a  
forma da relação de troca entre capital e trabalho em sua peculiaridade8, ele observa  
que:  
Nenhuma ambiguidade subsiste, o trabalho não é mercadoria, o  
operário não vende seu trabalho, mas a capacidade de trabalho  
existente em “seu corpo vivo”, a única propriedade da qual ele é  
mestre, da qual é “o livre proprietário”. Do artesão pode ser dito que  
vende seu trabalho na medida em que através de seu produto é  
indiretamente seu trabalho que ele vende, não se pode dizer o mesmo  
do operário. Este não dispõe das condições objetivas de sua atividade  
laboriosa, as condições de materialização de seu trabalho que lhe  
fazem frente como propriedade de outrem. Também essa atividade  
laboriosa não existe antes da ativação desta capacidade, da força de  
trabalho, pelo capital, aquela não seria vendida pelo trabalhador9  
(MORILHART, 2017, p. 104).  
O que, como se trata de uma força ou potência de fazer algo, é da alçada do  
acesso ao uso de capacidade de trabalho, de realização de movimento produtivo.  
Daí que Marx será forçado a caracterizar sinteticamente essa relação não tanto  
mais fazendo recurso à Entäußerung e sim propriamente ao termo Veräußerung.  
É um contrato cujo objeto de posse é o controle disciplinado de uma potência de  
8
O valor de uso pelo qual o dinheiro, capital virtual, pode se trocar apenas pode ser aquele do qual  
nasça o próprio valor de troca, a partir do qual este se engendra e se se acresce. Este é unicamente o  
trabalho. [...] A condição para que o dinheiro se transforme em capital é que o possuidor de dinheiro  
possa trocar dinheiro pela capacidade de trabalho de outrem, enquanto mercadoria. [...] é preciso que  
ele [o trabalhador] não tenha mais para trocar seu trabalho sob a forma de uma outra mercadoria, sob  
forma de trabalho materializado, mas que a única mercadoria que tenha a oferecer, vender, seja  
precisamente sua capacidade de trabalho viva [...]. No quadro desta circulação [simples], e considerando  
a troca capital-trabalho, tal qual existe como simples relação de circulação não se trata da troca de  
dinheiro e de trabalho, mas entre dinheiro e capacidade de trabalho viva. Valor de uso, a capacidade  
de trabalho se realiza apenas na própria atividade laboriosa. (tradução do autor). MARX, K. fragment  
de la version primitive « de la Contribution à la critique de l’économie politique. In Contribution à la  
critique de l’économie politique. Paris : Éditions sociales, 1972, p. 222-224.  
9 Nulle ambiguïté ne subsiste, le travail n’est pas marchandise, l’ouvrier ne vend pas son travail mais la  
capacité de travail existant dans « son corps vivant », la seule propriété dont il est maître, dont il est «  
le libre propriétaire ». Si l’artisan peut être dit vendre son travail dans la mesure où à travers son produit  
c’est indirectement son travail qu’il vend, il n’en est pas de même de l’ouvrier. Celui-ci ne dispose pas  
des conditions objectives de son activité laborieuse, les conditions de matérialisation de son travail lui  
font face comme propriété d’autrui. Aussi cette activité laborieuse n’existe pas avant la mise en œuvre  
de la capacité, de la puissance de travail par le capital, elle ne saurait donc être vendue par le travailleur.  
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movimento, de realização de trabalho, para se apoiar no jargão da física. Claro,  
não se trata de um movimento qualquer, mas do movimento de produzir  
valor/mais-valor de alguma forma particular na produção capitalista. E mesmo  
assim, nem se trata propriamente de uma "venda", mas de uma forma peculiar de  
arrendamento, de cessão de usufruto, sobre capacidades de objetivação. Trata-se  
de um "direito" de acesso ou de controle de uso - um usufruto. O exercício deste  
“direito” pelo comprador redunda necessariamente na reprodução de sua  
propriedade na forma de capital, portanto excluindo da relação de apropriação o  
vendedor da força de trabalho. A riqueza resulta capital, propriedade privada,  
riqueza estranhada, ou... entfremdete Arbeit, riqueza na forma de condições  
objetivas, elas mesmas originadas de algum tipo de processo de produção social  
(processo de trabalho/valorização) que as põe como mercadorias.  
Como se viu anteriormente, é um dos pressupostos sociais objetivos a existência  
de uma forma de individualidade configurada em uma situação na qual o sujeito real  
tenha de alienar, de ceder, como mercadoria a sua força de trabalho. A ocorrência  
desta coação e sua reprodução no tempo como contrato com o capital, por meio de  
sua persona, faz com que a força de trabalho apareça objetiva e socialmente como  
uma mercadoria “qualquer”, apesar dela não o ser. O seu aparecer como mercadoria  
é uma determinação imediata da própria relação na qual ela é transacionada e assim  
se oferece aos seus operadores vendedor e comprador, na aparente simplicidade de  
figuras de cambistas que permutam valores dados: dinheiro e “trabalho”. Trata-se do  
terreno cuja topografia da circulação imediata das mercadorias, no qual se dá a “troca  
de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é,  
de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da  
liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (MARX, 2013 p. 251). O  
terreno o qual aos agentes econômicos se sentem em casa, como em seu meio  
ambiente ecossistêmico próprio e natural. É onde as suas Gedankenformen parecem  
espelhar de maneira fiel e adequada a própria essência real das suas relações (MARX,  
1962, p. 90). É o espaço da movimentação pragmática e operatória em sua dimensão  
mais imediata, por isso também a referência explícita a Jeremy Bentham. Porquanto a  
única coisa que os une num todo seja exatamente o exercício egoísta e em isolamento  
de suas igualdade e liberdade naturais de transacionar mercadorias. Isto constitui o  
fundamento da "fraternidade" peculiar à sociabilidade diária do capital: fazer parte de  
uma totalidade orgânica de relações sociais de interdependência cuja démarche é  
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travejada pela indiferença recíproca entre entes humanos autocentrados. O nível mais  
imediato da própria aparência da produção capitalista, no qual as determinidades se  
exibem numa clareza que é ao mesmo tempo patente e enganosa.  
O terreno no qual os valores em jogo estão como que dados, não carregando em  
sua fisionomia visível senão traços fugidios e embaçados das determinações que os  
definem. Como proprietários cada qual de sua mercadoria, defrontam-se na esfera mais  
aparente, a da circulação simples, como perfeitamente iguais em substância e direitos.  
Vontades livres isoladas que apenas se encontram em virtude da efetividade desta  
mesma essência, seu encontro, embora necessário, tem, no fundo, o caráter de uma  
necessidade puramente externa. A fraternidade da interdependência recíproca  
indiferente ou a indiferença recíproca interdependente.  
Na medida em que a meta aqui é a compreensão da relação em sua determinação  
essencial, aquilo que a define em sua contextura própria, pura, sem a interveniência de  
outros elementos que, conquanto possam interferir, não alteram a forma de ser, toma-  
se como pressuposição a equivalência entre os valores de face da força de trabalho e  
aquele pago pelo seu usufruto. Algo que já se depreende na aproximação crítico-  
imanente, categorial, da forma mesma da alienação mercantil em sua aparência, uma  
vez que nessa relação “o dinheiro funciona como meio de compra ou meio de  
pagamento, isso é algo que não altera em nada a natureza da troca de mercadorias.  
O preço da força de trabalho está fixado por contrato, embora ele só seja realizado  
posteriormente, como o preço do aluguel de uma casa” (MARX, 2013 p. 250). Um  
primeiro indício, uma determinidade, condicional da particularidade da alienação: não  
se trata de uma venda na qual o vendedor se desfaz permanentemente de sua  
mercadoria. Por razões de ordem ontológica, mas também econômicas em sentido  
lato. Primeiramente, não é uma coisa materialmente externa a si. Em segundo lugar, a  
venda não reprodutível significaria uma relação de alienação do próprio vendedor em  
pessoa. Neste sentido, a venda é limitada a um período de tempo determinado e  
precisa ser reproduzida a cada ciclo temporal de produção das coisas que a atuação  
da força de trabalho produz. Não por acaso, Marx utiliza o termo Mietpreis (preço de  
aluguel). Diversamente do que pretendia o compromisso de Schylock aqui não é  
possível tirar uma lasca, como de um pedaço do corpo, ter a posse da atuação, sem  
denegar tanto o ente quanto a forma da relação. O trabalhador não tem outra forma  
de dar objetividade material ao objeto transacionado senão a da sua atuação, uma vez  
que se trata de uma potência, de uma força, por definição sintética, um epitomado de  
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virtualidades de atuação produtiva; e não de uma parte do corpo. Braços e pernas,  
cabeça e mãos, nada produzem senão como corpo vivo e funcionalmente atuante.  
Esta forma determinada de cessão da força de trabalho, a sua posição como uma  
mercadoria externa, conquanto apenas formalmente exterior, auxilia também na  
compreensão da relação os próprios indivíduos têm para com as condições objetivas  
de produção. O caráter estranhado, capital, é uma contraparte necessária da cessão  
mercantil de um momento de si que passa a ser ele mesmo, como tal, sem deixar de  
ser momento pessoal corpóreo seu, um componente do capital, força do capital. Assim,  
é possível discernir, em parte, a origem do caráter de estranhamento, Entfremdung,  
das coisas produzidas e daquelas que são meios de produção, do modo objetivo pelo  
qual tanto a riqueza quanto suas condições defrontam os indivíduos no processo  
social. Esse caráter é também ressaltado em Teorias do Mais-valor, quando Marx  
observa que:  
(…) a unidade na cooperação, a combinação na divisão do trabalho,  
o emprego, para a produção, das forças naturais e da ciência,  
igualmente dos produtos do trabalho no mecanismo, tudo isso  
defronta os próprios trabalhadores individuais como ente também  
estranho [fremd] e coisificado [sachlich], simples forma de ser  
[Daseinsform] do meio de trabalho independente deles e os  
dominando, enquanto esse meio de trabalho mesmo que, sob sua  
simples figura visível de material, de instrumento etc., [lhes] fazem  
frente como funções do capital e, por conseguinte, do capitalista  
(MARX, 1974, p. 457-458).  
Os próprios nexos e comportamentos técnicos e de interdependência produtiva,  
o conjunto de relações e processos de interatividade social, apresentam-se frente à  
força de trabalho livre como formas de existência do capital, trabalho pretérito  
estranhado. Não somente pela de sua objetivação em coisas, mas acima de tudo pela  
qualidade estranhada destas próprias coisas, a qual exprime a Entfremdung específica  
do capital. As coisas, e relações/processos, são estranhadas porque o nexo social no  
contexto do qual são produzidas e vivenciadas se origina de uma relação de alienação,  
de uma cessão de usufruto em troca de uma parte do capital (a parte variável). O  
aluguel (Miet), Veräßerung, da força de trabalho faz com que esta, ao assumir  
formalmente o modo de ser da mercadoria, seja assimilada e subsumida ao capital  
total. Daí que suas relações práticas com os elementos objetivos e demais subjetivos  
do processo de trabalho sejam demarcadas pelo estranhamento, pelo não  
pertencimento ou não remetimento a si como sujeito humano, mas como força de  
trabalho alienada, alugada, cedida, penhorada, no processo de produção capitalista.  
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Algo que em 1844, seria impossível de se determinar adequadamente, uma vez que  
a categoria força de trabalho não havia ainda sido elaborada em distinção de trabalho  
tout curt.  
A outra determinidade indiciária importante se refere à forma determinada da  
relação. Não é da posse de um ser humano na forma da coisa, o que significaria a  
denegação de uma differentia specifica pertencente ao trabalho assalariado em seu  
modo especificamente moderno, capitalista (MARX, 2013 p. 242). Ademais, a compra  
do escravo significaria o pagamento de todo o trabalho por ele feito, não obstante a  
um terceiro. Um terceiro indício determinativo: é uma cessão provisória. Trata-se de  
uma alienação parcial no tempo e no objeto. No tempo, a princípio, apenas pela  
duração da jornada de trabalho, e no objeto, somente da força de trabalho em seu uso  
capitalisticamente produtivo. Essa determinidade aparece como um momento de  
desdobramento categorial da própria definição de pessoa, agora extensível ao  
indivíduo que trabalha. As condições objetivas de trabalho, os elementos que são  
transformados e que medeiam a transformação têm de estar já apartados da força de  
trabalho viva, esta não figura mais, ao início formal do processo, dentro do conjunto  
das condições gerais. É uma differentia specifica do capital que o modo de existência  
do trabalhador vivo não seja mais nem o do escravo nem aquele comum nas diversas  
formas de servidão. Menos ainda que o trabalhador os possua ou tenha com estes  
uma relação direta e livre. Mas ele, como tal, isoladamente, é "livre" frente aos  
conjuntos de produção que possam existir, ao mesmo tempo em que estes existem  
autonomamente frente a ele. Sua liberdade está fundada na sua despossessão da  
objetividade, reduz-se então à posse subjetiva da objetividade de suas potências de  
objetivação, mas somente se efetiva pondo-as formalmente ao modo das mercadorias.  
A categoria força de trabalho sofre uma modulação ontológica de natureza  
histórica, o que, evidentemente, traz consequências reais para o sujeito de carne e  
osso, socialmente determinado, do qual ela é uma força sintética. O indivíduo que  
efetivamente produz também ascende ao nível da pessoa, entretanto, sob a  
determinação essencial que passa a circunscrever a existência da pessoalidade no  
capital: a de vontade livre que se efetiva na posse de algo, que por meio disto afirma  
o seu próprio ser. À sua afirmação de ser pessoa corresponde a conversão de um  
aspecto essencial à forma social de ser da mercadoria em geral. Essa cessão livre de  
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A força de trabalho como forma de ser  
usufruto temporalmente definido, alugar10, e, portanto, sob condições bem específicas,  
de uma parte de mim, configura uma exteriorização por meio de ein äußerliches  
Verhältnis para com essa parte (MARX, 1962, p.182), como uma propriedade minha,  
entre outras, o que impediria de remeter a totalidade à mesma relação e de me tornar  
escravo, subsumindo-me de maneira integral e indistinta a outrem, o que me negaria  
absolutamente como vontade livre.  
Tal relação conquanto sua aparência simples e imediata não é um dado primário  
da sociabilidade humana historicamente configurada, pois, “a natureza não produz  
possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas  
próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação histórico-natural  
[naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os períodos  
históricos” (MARX, 2013 p. 244). Não é nem dação natural biológica, nem é um traço  
antropológico de todas as culturas humanas. É antes resultante do processo histórico  
e societário que produziu e reproduz continuamente a força de trabalho como  
mercadoria, conforme os parâmetros acima descritos, é uma realidade objetiva,  
independentemente das representações ideais das ideologias científicas ou  
pragmáticas que façam as personæ da economia do capital.  
Relação que em sua trama contraditória entre corporeidade socialmente  
individual e forma social de relação de produção entre os indivíduos, na medida em  
que os cinde em, de um lado, unidade materialmente viva e insuprimível, e, de outro,  
individualidade que formalmente dá exterioridade a um momento, funda-se na própria  
contextura ontológica do ente humano. Ente que é como tal corporeidade viva e ativa,  
da qual as forças de objetivação são, por assim dizer, “uma função” ou “atribuição”  
concreta de si. Assim, “A força de trabalho existe apenas como disposição do indivíduo  
vivo. A sua produção pressupõe, portanto, a existência dele” (MARX, 2013, p. 245). A  
força de trabalho não é ente, mas uma potência sintética, algo que se determina como  
um tipo de disposição, Anlage, cuja conexão com o ente efetivo, o ser humano vivo, é  
ineliminável. Não é um “sujeito” real senão na seu defrontamento com uma relação  
10  
É ao mesmo tempo instrutivo das dificuldades, quanto mesmo curioso, notar que anteriormente a  
reflexão filosófica, mesmo não materialista, de certo modo, “pressentia” este caráter mais complexo.  
Hegel usa a forma verbal veräußern quando aborda a relação de alienação, cessão mercantil, por  
dinheiro dos usos das capacidades (Cf. HEGEL, G. Grundlinien der Philosophie des Rechts Oder  
Naturrecht und Staatswissenschafl im Grundrisse. Georg Wilhelm Friedrich Hegel Werke 7. Frankfurt:  
Suhrkamp-Taschenbuch Wissenschaft, 1989, p. 103). Como aliás Marx faz indicar em nota ao texto de  
O Capital (MARX 2013, p. 243).  
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social assumida como forma de ser das condições objetivas de produção, meios de  
produção como capital. E mesmo assim, onticamente, um sujeito por figuração de  
linguagem, como um conjunto de potenciais que somente vige no mundo em sua  
atuação, seu movimento produtivo. Por isso, a única forma de relação do capital (e sua  
persona) com ela é pela mediação do indivíduo real da qual é força. Ou seja, o capital  
como tal é uma forma objetiva de relação de produção decorrendo entre indivíduos,  
os quais são determinados por seu remetimento ao controle social da propriedade das  
condições objetivas de produção. Não é uma “coisa”, nem uma forma eidética pura,  
flutuando acima do processo de vida social real ou mesmo “animando-o” como sua  
“alma”.  
Daí que seja falso, ou no mínimo uma ilusão especulativa, que o desvendamento  
da forma de ser das relações precise levar a uma denegação do entendimento dos  
antagonismos de classes. Tal como parece ser o caso de algumas das asserções de  
Moishe Postone, por exemplo, para quem a dominância sobre o tempo exercida pela  
relação capital como que se desprende das próprias personæ do capital; em particular  
em sua interpretação dos Grundrisse (POSTONE, 1993, p. 21-42). Postone parece ser  
traído pela questão representada pelo ponto de partida da exposição analítica  
marxiana, uma elaboração que não se concluiu como tal, ademais, a forma dinheiro.  
Forma derivada da mercadoria que existe imediatamente na esfera da circulação, por  
isso a aparência de tratar-se ali da análise de uma forma desprovida de material. O  
que equivaleria a uma versão semipoética, sui generis, especulativa, de estruturalismo,  
agora, fantasmagórico. Neste, "os homens" em geral enfrentam "potências estranhas"  
igualmente em geral. Um tipo de logicismo ontológico embebido de criticismo de  
conceitos. Ora, essas potências “têm”, por assim dizer, “suas” pessoas, conquanto  
essas últimas também não tenham para com as potências que manejam na exploração  
das pessoas do outro tipo, uma relação de simples "pessoas". O estranhamento, apesar  
de ser um caráter geral do resultado do trabalho, como processo de valorização, não  
tem os mesmos conteúdo e forma dos dois lados da relação (trabalhador e capitalista;  
trabalho e capital).  
Não se trata de ter de escolher entre "paradigmas" conceituais: luta de classes  
ou produção de mais-tempo fora do controle dos produtores, mas de capturar estas  
duas delimitações como aspectos de uma mesma efetividade. E não afeta em nada a  
natureza do problema o fato de que os proprietários entabulem relações com os meios  
de produção somente na assunção necessária dessa forma e não de simples indivíduos.  
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A força de trabalho como forma de ser  
Isso não altera o fato de que tais grupos efetivamente se comportem como  
proprietários reais, estão sempre, assim como os trabalhadores, num dado Standpunkt  
real em relação às condições de produção de riqueza. O combate contra a acumulação  
de mais-tempo que sempre um acumular-se em perpétua reprodução é  
simultaneamente um combate contra os acumuladores do mais-tempo. Por isso, trata-  
se de luta de classes e não apenas das classes. Por isso também sua resolução é a  
abolição dessa forma social e não o aniquilamento físico de grupos.  
Essas especificidades da relação, desdobramentos da forma mesma de  
existência da força de trabalho como forma de ser no processo de produção do capital,  
afeta também o modo como a dimensão temporal vige na relação econômica como tal.  
Pois, “Se os produtos são produzidos como mercadorias, eles têm de ser vendidos  
depois de produzidos, e somente depois de sua venda eles podem satisfazer as  
necessidades dos produtores” (MARX, 2013 p. 243-244). A temporalidade aqui se  
complexifica para a própria forma mercantil uma vez assumida objetivamente pela  
força de trabalho. Não é somente o tempo social de produzir os meios de subsistir  
dos indivíduos que efetivamente produzem e sim também aquele da realização destes  
na forma mercadoria. A temporalidade do tempo social é igualmente tão aberta e  
desdobrável quanto a vivência do e no tempo que a do ente vivo humano. E isso de  
modo objetivo, não obstante formalmente configurado. Assim, para a compreensão da  
estrutura do Dasein humano não cabe falar em die Zeit, assim em generalidade, em  
termos absolutos, e sim em des Zeiten. Tempos que são desdobrados pelo processo  
real de vida social e, principalmente, pelas variações das condições reais - materiais e  
formais - de sua produção. Não é o tempo em sua aparente uniformidade dada e  
natural, mas como instância na qual transcorre a atividade, em suas diversas formas  
de atividade, que é também trabalhado ou desdobrado diferentemente segundo as  
operações e suas condições objetivas de realização. Tempo socialmente necessário de  
produção, que é ele mesmo também de existência peculiar, como tempo de  
reprodução.  
De todas essas delimitações resulta que, além de não ser alienação direta do  
indivíduo, de sua corporeidade total, não se trata igualmente da venda de algo  
produzido pelo trabalho dele e da qual ele possa seja desfrutar ou se alienar. Portanto,  
é necessário que ele seja “uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como  
sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para  
vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à  
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realização de sua força de trabalho” (MARX, 2013 p. 244). Porque senão ao invés da  
Veräußerung de um usufruto de um conjunto de potências teríamos uma comum  
Entäußerung de um produto feito. Que de certa maneira, esteja o proprietário de força  
de trabalho completamente desembaraçado de tudo o que carece, seja para viver seja  
para produzir. O que corresponde à contraparte da relação também uma forma  
bastante específica de atuação, aquela do papel que desempenha como proprietário  
das condições de produção e, aqui, um sujeito que adquire uma mercadoria. Ao  
possuidor de dinheiro, na função de capitalizá-lo, diz respeito apenas as questões das  
tratativas de aquisição do usufruto dessa "mercadoria", não, a princípio, o modo como  
aparece no mercado (MARX, 1993, p. 244). Trata-se do típico positivismo prático e  
pragmático dos negócios, nível no qual, os elementos aparecem em sua figuração  
funcional como dados por sua natureza, ou até mesmo pela natureza. A formatação na  
qual se apresentam corresponde a maneiras naturais, dadas, sem história, de existir.  
Ao comprador da força de trabalho, como adquirente de mercadorias interessa  
sobretudo, e antes de tudo, suas qualidades estabelecidas em conteúdo e forma, seu  
valor pelo qual terá de pagar e seu valor de uso do qual poderá desfrutar, aqui  
como capitalista. Trata-se mais uma vez de uma differentia specifica da produção do  
capital, não é nem uma forma determinada pela naturalidade, nem é um modo trans-  
histórico de existência.  
O que é abstraído pela economia política, uma vez que é ciência situada no limite  
do Standpunkt do capital. Esse posicionamento, no que refere à produção das ideias,  
articula de modo contraditório uma intentio recta para com a realidade objetiva com  
uma visão natural e positivista da realidade social como dada. Ou seja, a afirmação da  
objetividade se dá na forma duma coisa naturalmente estabelecida, por meio da  
indiferença teórica para com seu processo de gênese histórica. Quando muito, a  
história como processo é reduzida a rumo mais ou menos linear ou acidentado de  
afirmação da natureza humana dentro de um lapso temporal. Como se o  
desenvolvimento da história desse azo à afirmação do que já estaria estabelecido pela  
natureza, não obstante as negações que o próprio fizesse de sua natureza. É uma  
história para a natureza, ou uma história natural da natureza humana. A realidade  
objetiva peculiar às relações de produção, relações sociais, é tomada de modo  
positivista por seu valor de face, aparente e imediato, como um pressuposto aquém  
de qualquer entendimento teórico- crítico. A abstração é tomada como existência total  
e natural da relação. Portam todas as relações de produção essa geschichtliche Spur,  
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A força de trabalho como forma de ser  
marcação histórica11.  
É importante nesse sentido fixar que a mercadoria como forma celular do capital  
não é ela mesma um modo de existência mercantil idêntico em todos os contextos  
históricos de produção social. Certamente, essa possui como determinação geral e  
abstrata o não ser não é imediatamente valor de uso senão no remetimento à troca.  
Entretanto, chama a atenção Marx para o fato de existir uma peculiaridade no capital:  
“Ele só surge quando o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra  
no mercado o trabalhador livre como vendedor de sua força de trabalho, e essa  
condição histórica compreende toda uma história mundial. O capital anuncia, portanto,  
desde seu primeiro surgimento, uma nova época no processo social de produção”  
(MARX, 2013 p. 245). Não se trata, nota bene, da forma mercadoria em geral, mas  
uma vez integrando o modo de produção do capital, um modo histórico-social  
particular e bem determinado de produção. A forma mercadoria em sua figuração  
genérica, unidade de valor de uso e de troca, pode ser identificada em diversos  
momentos e configurações histórico-sociais diferentes daquele do capital. É tributária  
genealogicamente do próprio desenvolvimento da produção configurando um  
excedente material e do incremento do sistema de trocas, sem que necessariamente o  
mercado e a circulação dentro delas exista como necessidade interna e efetiva. Uma  
mesma categoria, mediando relações aparentemente idênticas, pode fazer parte de  
modos de produção e configurações sociais bem variados e essencialmente diferentes.  
O centro do problema reside em como essa forma é modulada segundo a  
preponderância de outra dentro da totalidade do processo social de produção,  
segundo o que defina a particularidade da forma de ser das próprias relações sob as  
quais transcorre o processo social de produção.  
A especificidade do modo do capital é exatamente aquela condição formal  
objetiva da força de trabalho existir em separação total para com as condições de  
produção, nem ser ela mesma como tal uma condição objetiva entre outras (como na  
11 Expressão que é vertida inadequadamente na tradução mais recente do Livro I de O Capital publicada  
no Brasil por: marcas da história (cf. MARX, 2013 p.). O equívoco se patenteia uma vez que o termo  
referido à historicidade não é um substantivo e sim adjetivo. O substantivo é Spur, marca ou marcação.  
Por conseguinte, Marx não parece estar remetendo a um desenvolvimento histórico, empírico, da  
categoria e sim à differentia specifica que as categorias apresentam segundo o modo de produzir a vida  
no qual se encontram particularizadamente no tempo, em cada tipo de sociedade. A marcação histórica  
é exatamente a diferença ou particularidade que define sua existência como forma de um modo finito,  
atual e peculiar de produzir a vida.  
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escravidão, por exemplo). Em outras formas de sociabilidade, a emergência da forma  
mercadoria se dava mesmo na vigência circunstancial da circulação, Anders mit dem  
Kapital, outra coisa se dá com o capital. A mercadoria é como tal mercadoria, mas o é  
de modo diverso. Assim, as formas possuem variação histórica, uma vez que são  
objetivas Daseinsformen. São antes formas, ou categorias sociais da produção,  
determinadas e não determinantes da existência do capital, muito embora sejam uma  
necessidade interna à sua efetivação.  
Como mercadoria, formalmente apresentada no cenário social da circulação, a  
força de trabalho aparece ela mesma também portando valor, em referência ao qual  
certos preços também se dão. Imediatamente, como grandeza de valor, não se  
diferencia das demais: “O valor da força de trabalho, como o de todas as outras  
mercadorias, é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a produção - e,  
consequentemente, também para a reprodução desse artigo específico. Como valor,  
a força de trabalho representa apenas uma quantidade determinada do trabalho social  
médio nela objetivado” (MARX, 2013 p. 245). É esta relação que determina no fundo  
a differentia specifica para a existência da força de trabalho em sua forma capitalista,  
bem como torna possível a capitalização, ou seja, a produção como produção de  
excedente em valor. O excedente em valor se origina como diferença em grandeza do  
tempo social que requer a produção/reprodução da força viva que produz e aquele  
objetivado na mercadoria produzida. Fornecendo ao capital sua differentia specifica  
frente aos demais modos anteriores e/ou diferentes de produzir. Por isso, também,  
segundo Marx, somente a forma mercadoria pode ser aquela preponderantemente  
atribuível a todas as produções, na medida em que tudo que é produzido o é para ser  
mediação de realização de seu valor/mais-valor gerado pela única "mercadoria" capaz  
de tudo valorizar.  
Uma questão importante é que ao contrário das demais mercadorias, que são  
criadas no processo de produção, o valor da força de trabalho como se apresenta na  
relação de Veräußerung é no fundo uma determinação tautológica. Sim, aqui valor =  
valor, porquanto não se pressuponha que a força de trabalho seja uma mercadoria  
como qualquer outra, que seja inclusive produzida como as demais que assim  
aparecem no mercado, mas que apenas funcione socialmente assim, faça as vezes,  
valha, geltet, por uma mercadoria. Somente na sua aparência imediata a força de  
trabalho é igual às demais, sua diferença, entretanto, se patenteia tão logo ela  
apresente ou não seu valor de uso frente às demais que compõe a forma material do  
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capital. A tautologia não é da teoria marxiana, é antes uma redundância prática real. A  
mercadoria, como toda categoria no pensamento de Marx, não é uma forma unívoca,  
mas um complexo de identidade/desidentidade. Não se trata de definir de antemão o  
que é mercadoria "em geral" e depois reduzir tudo a um conceito idêntico, mas de  
capturar as nuances da diferenciação finita nas profundezas da aparência imediata e  
abstrata, na identidade.  
Assim, o entendimento da força de trabalho não é traduzido pela sua redução  
simples a uma definição dada de mercadoria, mas na captura e discussão do seu  
caráter peculiar como mercadoria. Inclusive explicitando o teor de sua incompletude,  
daquilo que não se subsume absoluta e de maneira incontrastável à forma mercadoria.  
Por isso, é essa forma extremamente desconcertante, e de um tal modo que mesmo  
as aproximações anteriores na história do pensamento a apreenderam de maneira  
distorcida, por exemplo, imputando à forma geral o que vale apenas para a força de  
trabalho. Isso pode ser observado, por exemplo, na nota 42, na qual Marx cita Hobbes  
(MARX, 2013 p. 245). O mais divertido é que Hobbes somente acerta para o caso dos  
homens errando, cum grano salis, para as demais coisas, em termos modernos.  
O valor da força humana de produzir é realmente o quanto custa para usá-la,  
pois trata-se exatamente do quanto em valor é necessário para mantê-la operante  
como tal, o quanto custa para reproduzi-la continuamente. Não é, pois, o quanto é  
necessário de trabalho para produzi-la, como valor dado, mas como valor operando,  
ainda que ela se apresente como um valor dado frente ao seu comprador: “O valor da  
força de trabalho se reduz ao valor de uma quantidade determinada de meios de  
subsistência e varia, portanto, com o valor desses meios de subsistência, isto é, de  
acordo com a magnitude do tempo de trabalho requerido para a sua produção” (MARX,  
2013 p. 247). É um valor o qual, conquanto apareça como “dado”, realizado,  
corresponde na verdade à grandeza em valor do tempo necessário para reproduzi-la,  
para mantê-la operante. Por isso trata-se de um valor pelo uso, não de um valor  
simplesmente cristalizado. É um valor de reprodução da coisa usada e em vista de seu  
uso, por isso é uma cessão de direito, de usufruto e não, a rigor, uma aquisição que  
se resolva no momento formal da troca como tal. Nesse sentido, o ato mesmo deve  
ser reproduzido, porquanto se considere a continuidade de sua utilização.  
Para o comum das mercadorias, em sentido estrito, o valor é medido pelo quanto  
se gasta para a sua produção e não para seu uso, não é o valor de uso que se paga,  
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mas este mediado pelo valor. Valor de uso que é também tão dado quanto o valor. O  
seu uso não pressupõe, não obstante tecnicamente garanta, a sua reprodução útil no  
tempo.  
A forma mercadoria força de trabalho exibe-se em sua identidade/desidentidade  
essencial de valor dado/valor de uso a ser continuamente reproduzido por meio de  
seu valor. Exatamente porque ela não é a rigor produzida como mercadoria, mas  
assume esta forma. O que a forma de ser das mercadorias em sentido estrito não  
comporta, uma vez que sua existência de valor é valor posto, cuja variação temporal e  
espacial é compreendida entre as possibilidades de sua realização mercantil, de um  
lado, e a sua depreciação econômica relativa e/ou advindas das entropias de cada  
materialidade que suporta o valor, por outro lado. A composição do valor,  
sumariamente, se reduz ou se resolve (löst sich), é composto e pode ser analiticamente  
decomposto, naquela dos meios que traduzem em efetividade a existência da força de  
trabalho e de seu proprietário, sob a condição do trabalho assalariado. Sua produção  
coincide com a produção do seu proprietário como proprietário livre unicamente de  
sua própria força, daí que a grandeza do salário, variável não somente por conta de  
cada composição de valor, mas também em razão da necessidade interna do  
assalariamento: remuneração unicamente do usufruto da força de trabalho que aparece  
"casualmente", do Standpunkt do capital, sediada num indivíduo vivo e ativo que  
precisa ser reproduzido intensiva e extensivamente.  
A efetividade da Veräußerung não é imediatamente posse do efeito de  
valorização por seu uso. A temporalidade específica que decorre do caráter peculiar da  
existência da força de trabalho como mercadoria também se explicita como mais uma  
differentia specifica. Por isso, Marx utiliza aqui o termo Veräußerung para nomear o  
conceito desta relação e não simplesmente Entäußerung, que seria o caso de uma  
alienação na qual o ato formal de ceder já configura o acesso do comprado ao valor  
de uso, uma vez que mercadoria discreta, materialmente exterior a ambos, é transferida.  
No caso específico, a mercadoria não possui a virtus de ser fisicamente desligada de  
seu proprietário. Por analogia aproximativa, configura essa cessão um aluguel, uma vez  
que a propriedade transacionada persevera em seu vínculo essencial com o  
proprietário. O caráter de “aluguel” está definido reine Auffassung des  
Verhältnisses.  
Deste modo, a transação pela qual o trabalho, como força de trabalho,  
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A força de trabalho como forma de ser  
potência de produção, é assimilado pelo seu aluguel ao capital, corresponde à sua  
entrada no rol de condições reais da riqueza material. Somente sob essa rubrica,  
como produtor/reprodutor de valor valorizado, o trabalhador atua, põe valor por  
meio do pôr em atividade de suas capacidades de trabalho, conforme Marx  
desdobra em outro lugar:  
Pela primeira transação, o trabalho mesmo tornou-se uma porção  
da riqueza material. É o trabalhador que efetua o trabalho, mas  
aquele pertence ao capital e deste é tão somente uma função. Isto  
porque se cumpre diretamente sob seu controle e sua direção e o  
produto no qual se objetiva é a nova forma sob a qual o capital  
aparece, ou antes, sob a qual se realiza [em ato] como capital.  
Neste processo, o trabalho se objetiva, portanto, diretamente,  
transforma-se imediatamente em capital, após ter sido já  
incorporado formalmente ao capital pela primeira transação  
(MARX, 1974, p. 466).  
A atividade de objetivação somente é possível ao trabalhador pela mediação  
da negação determinada do controle sobre sua própria atuação. A afirmação de  
sua pessoa, de si como vontade livre sobre a porção do mundo que o pertence,  
realiza-se como assujeitamento ao capital pela mediação do controle do  
capitalista. O ato de autodeterminação da vontade redunda no final do processo  
em negação determinada, delimitada, particularizada, de sua própria autonomia. A  
autonomia contingente como cambista mascara a sujeição necessária como  
produtor. A realização ou efetivação da força de trabalho, o pôr-se como  
objetivação, o devir em forma ente da forma de seu movimento, somente se dá  
sob a condição de que esta objetivação se dê numa forma estranhada, decorrência  
categorial da própria forma social de relação pela qual ela acessa o contexto  
socialmente determinado da produção de riqueza. A mediação necessária da  
atividade, posta pela alienação do usufruto da força de trabalho, seu aluguel, é o  
estranhamento para com suas condições objetivas, de seus produtos e de si  
mesma como capital, como momentos determinados do capital. A evidenciação  
desta determinação contraditória remete, por sua vez, à necessária compreensão  
daquilo que constitui o objeto ao qual o capital tem acesso ao obter a cessão de  
controle do uso da força de trabalho; o valor de uso em sua especificidade  
socialmente eficiente: o trabalho produzindo riqueza na forma capital.  
O usufruto determinado do capital: dimensões material e formal do valor de  
uso da força de trabalho  
Considerando as delimitações até aqui feitas, a determinação da força de trabalho  
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tanto em sua integração como elemento do processo de produção do capital quanto  
em sua forma de alienação particular ao capital, o desdobramento seguinte diz respeito  
à natureza particular do “objeto” ao qual o capital tem acesso ao adquirir o direito do  
usufruto desta mercadoria particular. Trata-se, por conseguinte, do processo de  
consumo, mas de um ato de utilização bem específico se cotejado àquele das demais  
mercadorias, mesmo daquelas que se destinam à produção do próprio capital. Com  
relação a isto, Marx observa que: “O processo de consumo da força de trabalho é  
simultaneamente o processo de produção da mercadoria e do mais-valor. O consumo  
da força de trabalho, assim como o consumo de qualquer outra mercadoria, tem lugar  
fora do mercado ou da esfera da circulação” (MARX, 2013 p. 250). Um momento não  
somente diferente, mas que transcorre sempre a posteriori e num espaço, material e/ou  
formalmente, diverso daquele no qual se deu a operação de troca pela qual se inicia a  
operação de subsunção ao capital, pela troca com a parte variável do capital. Assim  
como em Orfeu, às portas dos infernos se estampava lasciate qui ogni speranza, o No  
admittance except on businessadverte que não se trata mais das tratativas entre  
pessoas formalmente livres e iguais, vontades que se afirmam reciprocamente em sua  
natureza de proprietários de mercadorias (MARX, 2013 p. 250). É neste terreno  
lúgubre, o qual a partir do posicionamento (Standpunkt) da vida imediata das  
mercadorias é não visível, uma depressão no relevo do processo social aparente, é  
que transcorre o uso efetivo da força de trabalho não apenas em seu caráter  
diretamente empírico, como criação de algo de uso real, mas, sobretudo, pela  
determinação de sua forma de ser social como força capitalisticamente utilizada.  
Neste sentido, na apreensão desse processo se pode observar não só como o capital  
produz, “mas como ele mesmo, o capital, é produzido. O segredo da criação de mais-  
valor [Plusmacherei]12 tem, enfim, de ser revelado” (MARX, 1993, p. 197). Agora, o  
terreno do entendimento, longe das luzes se encontra nas profundezas do processo de  
produção do capital, do qual o resultado é em sua forma de aparição a imensa coleção  
de mercadorias. Produção que é concreta e simultaneamente elaboração do mais-valor,  
engendramento do excedente em valor frente àquele desembolsado na aquisição do  
usufruto da força de trabalho. Por isso, trata-se também pari passu processo de  
12  
Observe-se que, para ser fiel à marcha da argumentação marxiana, não se pode ainda aqui nomear  
diretamente o mais-valor como tal, Mehrwert, mas sim usa-se, no original, uma fórmula mais abrangente,  
simples, abstrata, Plusmacherei, um fazer a mais ou fazer um plus, enfim, o excedente buscado pelo  
“comprador”, locatário, o “inquilino”, da força de trabalho.  
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A força de trabalho como forma de ser  
produção continuada do capital e de sua reprodução como tal, do incremento da  
grandeza de valor cristalizada nas condições objetivas, nos meios de produção.  
Ademais, essa passagem, conquanto sua curta extensão, é decisiva para nosso  
problema, porque não se trata apenas de valor de uso material e particular das  
potências individuais de objetivação. Muito embora a aquisição desta mercadoria  
central se dê por uma propriedade cujas dimensões são material e formal que é  
realizar uma atividade produtiva; a produção de um novo valor num corpo de valor de  
uso. No entanto, como o valor de uso é tido em vista de saída para assumir a forma de  
valor, ou seja, trata-se de produzir valor de uso que se expressará ao final do processo  
de trabalho como valor de troca frente a outros.  
Ainda que transcorram em lapsos temporais sequenciais e separados, do  
Standpunkt da determinação da forma social, o artigo não é mercadoria apenas quando  
depois que adentra à troca, já o é para adentrar. É produzido sob a determinidade  
essencial da forma mercadoria, tanto extensiva quanto intensivamente; seja na  
quantidade discreta de itens, seja no modo técnico-administrativo como se organiza a  
sua produção. Apesar de ser imediatamente valor de uso, e ser vendável apenas sob  
essa condição, o artigo discreto, o objeto ou efeito produzido, somente vale para o  
processo de produção do capital na função de sua forma social mercadoria completa,  
cujo momento preponderante é o valor. E isso no nível da determinidade, porque para  
a produção do capital, a determinação essencial é o mais-valor, a qual se expressa no  
valor da própria mercadoria. Porquanto não se tenha em vista o valor de uso desta  
mercadoria específica e peculiar senão por essa característica de produzir valor novo  
frente aos demais que compõem o capital (dinheiro e meios de produção) antes desta  
troca. Esses elementos não apenas têm valor, mas são valores dados a priori, cujo uso  
necessita resultar em novos valores para que não se percam.  
Nessa mediação se antecipa de certa forma que não é compra propriamente "de  
trabalho", mas aquisição de um elemento real que se objetiva como trabalho, numa  
atuação que cria valor. Na medida em que não é como as demais mercadorias o  
produto de um processo específico de trabalho/ valorização, a força de trabalho  
somente é o que é como potência em movimento, em produção, em uso. É Kraft de  
uma coisa viva, por conseguinte, efetivamente somente se dá porquanto se a utilize.  
Em função da determinação pela forma de ser social da própria produção, o  
princípio diretivo e o alvo do processo social não é como tal, tão somente, a produção  
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de mercadorias. É a criação produtiva do mais-valor, que somente se realiza pela  
mediação necessária da existência desta relação social capital numa outra forma  
efetiva de existir, algo que se configure como um Dasein de fato. Entretanto, este  
Dasein factual tem de possuir a virtude de ser transformável em valor em sua forma  
pura, na coincidência imediata entre valor e valor de uso dinheiro. Por seu  
fundamento, este dinheiro mesmo precisa aparecer ao final relativo do processo de  
circulação, quando a mercadoria de uso pessoal é adquirida, num montante que supere  
em valor àquele desembolsado, ao menos, na aquisição do usufruto da força de  
trabalho. Portanto, a mercadoria, conquanto seja um caráter necessário que os  
produtos do trabalho tenham de assumir, pois é nesta existência que são possíveis o  
intercâmbio social privado e a objetivação final de seu valor em valor autonomizado,  
dinheiro, não é por si mesma o fundamento e a meta da produção capitalista. A  
mercadoria é a forma de mediação multilateral do capital, mas o é sempre em  
subsunção determinada ao ditame da valorização do valor das condições objetivas de  
produção.  
Este ponto possui um peso categorial considerável e têm implicações inclusive  
para a compreensão de uma série de fenômenos determinados da sociabilidade  
capitalista em geral. Por exemplo, o fato de a mercadoria ser uma forma transiente do  
capital, de transição e ela mesma transitória, impacta o entendimento que se deve  
alcançar das modalidades típicas de fetichismo da vida social capitalista. O fetiche da  
forma mercadoria não é o único, nem é o mais decisivo dentro da totalidade de  
relações societárias, apesar de ser aquele mais vivaz no nível do cotidiano. Pode-se  
apontar também aquele ligado à forma juros, em que o dinheiro, capital ou meio de  
acumulação individual, aparece fantasmagoricamente “se reproduzindo” numa cópula  
mística com o tempo, o plus em dinheiro aparece como filho de um casal inusitado: o  
vil-metal e Chronos. Ou ainda, um que tem relação direta com o uso da força de  
trabalho no processo de produção do capital (simultaneamente trabalho e valorização),  
aquele ligado à própria forma capital como tal. A forma de ser social da atividade e de  
seus produtos, uma vez remetidos ao incremento do valor das condições objetivas da  
produção e determinados em sua existência como elementos do capital.  
O uso da força de trabalho aqui aparece então em sua dimensão particular  
multilateral e especificada em função da valorização do valor inicialmente dado no  
corpo dos meios de produção (corpo que pode ser tanto material, uma máquina ou  
um polímero, quanto formal, um processo tecnológico ou um algoritmo). O capital  
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A força de trabalho como forma de ser  
defronta a força de trabalho imediatamente como coisa material ou forma objetiva de  
existência (normalmente nas duas modalidades) que existem como propriedade da  
qual está excluído o proprietário da força de trabalho. Objetos físicos e formais,  
materiais e meios de trabalho, conquanto perseverem em sua existência empírica  
concomitantemente são objetivamente o capital in rebus, dado como pressuposto ao  
exercício da força de trabalho. E este é um dos traços de sua determinação como  
momento preponderante do processo e engendra ele mesmo um fetiche próprio.  
Com pelo menos duas frontes: 1) aparece como coisa ou forma objetiva, neste sentido,  
em determinação reflexa, coisas e formas objetivas aparecem também como sendo por  
si capital; 2) aparece a relação capital nessa forma objetiva como ela mesmo tendo em  
si as condições de sua produção.  
Em Teorias do Mais-Valor, Marx, ao discutir a natureza da própria relação pela  
qual no processo de produção a força de trabalho é assumida, caracteriza com mais  
detalhamento este aspecto determinante do qual se revestem as condições objetivas  
que defrontam o sujeito e a sua força de trabalho. Servindo-se da expressão  
gesellschaftliche Bildungen, formações sociais, intenta determinar a duplicidade de  
determinação social das condições. Estas são como tais resultado também de  
atividades socialmente determinadas, mas aparecem frente à força de trabalho viva,  
igualmente delimitadas em essência pela sua forma de ser capital, uma vez,  
“subsumidos ao capital, os trabalhadores tornam-se os elementos dessas formações  
sociais, mas tais formações sociais não lhes pertencem. Elas os defrontam, portanto,  
como figuras do próprio capital, como combinações que, diferentemente de sua  
potência de trabalho isolada pertencem ao capital, nascem dele e a este são  
incorporadas” (MARX, 1974, p. 458). O capital aparece aqui como a forma social da  
totalidade dos elementos materiais e formais (relacionais) da produção de riqueza. O  
processo de trabalho é despido de sua operosidade real, ou é esta mesma subsumida  
à forma abstrata do processo de produção. Esta subsunção dos construtos (Bildungen)  
socialmente criados e determinados apresenta, por sua vez, implicações também para  
a própria forma de ser real da força de trabalho, uma vez este operando na produção  
capitalista de mercadorias. Nesse sentido, a “potência de trabalho é ela própria antes  
de tudo modificada por essas formas a tal ponto que, em autonomia, por conseguinte,  
fora desta relação capitalista, torna-se impotente, sua capacidade de produção  
autônoma está denegada [gebrochen wird]” (MARX, 1974, p.458). A subsunção do  
trabalho se completa categorialmente na medida em que este passe a aparecer não  
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somente como subordinado e determinado, mas igualmente como um elemento não  
essencial da relação, tomado evidentemente em sua forma de ser imediata, no  
trabalhador individual, na força de trabalho assimilada ao processo. Vale apenas  
porquanto esteja já submetida aos nexos da produção de mais-valor. A inversão se  
consuma na medida em que o meio de trabalho se transubstancia em forma objetiva  
do capital, convertendo suas mediações tecnológicas em modos de controle e de  
substituição do trabalho vivo. E isso, não apenas no que diz respeito ao modo de sua  
alocação burocrática ou formal no local de trabalho, mas acima de tudo no aspecto da  
redução de sua operosidade de controle dos construtos, que seria a princípio aquele  
do acompanhamento, à dimensão mais abstrata dele, como “apêndice” à atividade  
“da” máquina, por exemplo: “com o desenvolvimento do maquinismo, as condições do  
trabalho aparecem dominando o trabalho também tecnologicamente e ao mesmo  
tempo o substituem, o suprimem [unterdrücken], fazendo dele supérfluo em suas  
formas autônomas” (MARX, 1974, p.458). A subsunção também se traduz como  
expulsão potencial do processo: substituição da força de trabalho, sua transformação  
em elemento virtualmente dispensável. O resultado da força de trabalho como potência  
real in actu é no fundo a potencialização de sua indigência ontológica originária e a  
consequentemente virtual miserabilidade multiforme do indivíduo do qual é potência:  
o desemprego.  
É exatamente desta virtualidade constante convertida em possibilidade é que se  
nutre o capital em sua investida de subsunção submissiva da força de trabalho a si.  
Uma vez que engendra em dois movimentos uma indigência social real, conquanto não  
necessariamente dada sempre empiricamente. Por um lado, tende continuamente a  
transformar a força de trabalho concreta, materialmente disposta segundo uma  
particularidade de uso, em força de trabalho formal ou socialmente abstrata. O que  
realiza tendencialmente a preponderância da dimensão abstrata de seu valor de uso –  
a produção de mais-valor em relação àquela de caráter material a produção de um  
Warencorps particular que é da alçada da especificidade de um dado conjunto de  
operações concretas.  
A produtividade da força de trabalho, seu uso, o que o capital acessa é por isso  
um complexo contraditoriamente posto em termos sociais. Contraditoriedade  
imanente, que tem na coexistência imediata das duas dimensões na atuação produtiva,  
na qual reside a efetividade da mercadoria força de trabalho. Assim, a força de trabalho  
é produtiva quando opera a “metamorfose do dinheiro ou da mercadoria em capital,  
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isto é, que conserva ou acresce o valor do trabalho objetivado devindo autônomo  
frente à potência de trabalho, é o trabalho produtivo. Trabalho produtivo é apenas  
uma abreviação para designar o conjunto da relação e do modo segundo os quais a  
potência de trabalho figura no processo de produção capitalista” (MARX, 1974, p.  
463). Por isso, trabalho produtivo corresponde a um determinado comportamento, ao  
Verhalten, das capacidades de trabalho atuando produtivamente no contexto em que  
foram inseridas formalmente pela troca com a parte variável do capital. É importante  
notar como a valorização não é, em Marx, uma atividade substantivada como ocorre  
normalmente na forma especulativa de analítica , mas um comportamento real de uma  
entidade corporalmente configurada, o conjunto teleologicamente articulado de atos  
pelos quais a força de trabalho viva, que somente é efetivamente como individualidade  
em movimento, atua e produz valores. Mais uma vez que o pôr, não é o sujeito (so ist  
nicht das Setzen Subjekt) (MARX, 1962, p. 577), o sujeito é um ente real com uma  
atuação igualmente real e corporalmente condicionada que age duma ou doutra forma  
socialmente determinada pondo outros tantos entes ou formas de existência  
igualmente objetivas. Que sua atividade exista como atividade estranhada não a torna  
por isso sujeito efetivo senão na criticidade discursiva. É a forma dum ato, uma forma  
social e historicamente configurada de agir; mas, não uma suposta ação "pura", sem  
sujeito. É uma maneira determinada de ser do indivíduo real vivo e ativo, não obstante  
contraditoriamente resulta na sua sujeição no ato mesmo. Aqui, novamente, não há  
espaço para fantasmagorias, seja aquelas do estruturalismo, por exemplo. O domínio  
do tempo mediado pela produção privatizada do mais-tempo ou do tempo  
potencialmente disponível privadamente apropriado e controlado, riqueza capitalista,  
decorre necessariamente entre grupos reais que, certamente, incorporam ou assumem  
formas de ser, mas que ao fazerem, continuam sendo.  
Como apropriação de força de produção humana numa relação social  
determinada, o uso capitalista da força de trabalho se configura na sua efetividade  
como o exato oposto da tratativa aparente de intercâmbio de equivalentes. O valor de  
uso da força de trabalho, como o de qualquer mercadoria, não se resolve no seu valor,  
mas na sua mobilização concreta, num consumo real. Ocorre que o consumo real é,  
neste contexto, criação de valor em grandeza superior àquela pela qual seu uso foi  
adquirido. Deste modo, o processo de trabalho é que passa a aparecer como uma  
forma circunstancial do processo de valorização, e este último, conquanto seja tão  
somente de caráter real formal, aparece como o elemento condicionante efetivo do  
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processo de produção. Trata-se de uma inversão dada de forma concretamente  
imanente e objetiva ao processo como tal. Não é uma inversão subjetiva, um logro ou  
uma “falsa consciência”. Invertem-se socialmente ordens de determinação ontológica  
do próprio ato humano de produzir. A forma social, uma relação que organiza o  
processo de realização de trabalhos, torna-se a determinação preponderante frente à  
efetividade material e da multidiversidade dos trabalhos. A este respeito, Marx é levado  
a afirmar a certa altura da análise do trabalho produtivo capitalisticamente  
determinado, por exemplo, o do alfaiate trabalhando para uma alfaiataria, o seguinte:  
“que isto se passe sob a forma de confecção de calças apenas dissimula a relação real.  
Isto porque, na medida em que se possa, o merchant-tailor busca retransformar as  
calças em dinheiro, isto é, em uma forma na qual o caráter determinado do trabalho  
do alfaiate completamente tenha desaparecido” (MARX, 1974, p. 472). Ou seja,  
engendra-se uma inversão característica da forma capital, é o processo de trabalho  
real, a utilização concreta e particular da força de trabalho num sentido objetivo  
determinado, que passa a figurar como mera forma de aparição, uma existência  
aparente, a qual “dissimula” (versteckt) empiricamente a relação efetiva.  
Por conseguinte, é sempre importante levar em conta que se trata de um  
processo social unitário de produção socialmente efetivado, o do capital, de um modo  
histórico-social de produzir, cujos momentos, no caso, produção e circulação de  
valores, constituem uma unidade diferenciada. São momentos constitutivos e  
constituintes que se remetem. Nesse caso em específico, malgrado a distinção real, as  
distintas operações de subsunção possuem uma conexão interna, a forma  
preponderante capital, que faz da força de trabalho em sua vigência operativa um  
elemento que efetiva seu caráter de figura também do próprio capital, a condição  
subjetiva de sua produção. Essa maneira unitarista de existir dos momentos é a típica  
de uma totalidade orgânica, não necessariamente sistêmica em sentido “forte”, como  
derivação unívoca de um ou dum conjunto de princípios autônomos à sua própria  
existência real; como se decorressem por algum tipo de “dedução” ontológica.  
Diversamente, é uma tessitura cuja trama das malhas depende das condições –  
inclusive “exteriores” e mesmo casuais – de seu tecer. É uma totalidade de relações  
sociais que se remetem e se expressam em níveis e figurações variadas, por vezes sob  
o modo de espelhamentos, de referenciamentos que refletem até de modo invertido  
determinações de umas formas às outras. Assim, é também que o uso da força de  
trabalho espelha de maneira invertida a relação inicial de subsunção na medida em  
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que simultaneamente continua a reproduzir a forma determinante da própria relação,  
o capital. O desigual, o mais-valor, espelha de maneira peculiar a equivalência abstrata  
pela qual a força de trabalho é assumida no processo.  
Na primeira operação que se situa no terreno da circulação simples decorre um  
ato de cessão formal de usufruto ou de empenhamento da força de trabalho. É o acerto  
por meio do qual a força de trabalho assume efetivamente sua figuração de  
mercadoria, uma vez que seu possuidor explicitamente cede por aluguel  
(Veräußerung/Miet) acesso ao valor de uso. Já a segunda, a de uso concreto da  
mercadoria peculiar (processo de trabalho/valorização), está localizada no âmbito do  
processo de produção do capital, simultaneamente trabalho e valorização, e dista no  
tempo em relação àquela primeira transação. Primeiramente, em razão de sua  
particularidade de residir no corpo vivo de uma pessoalidade individualmente  
configurada, materialmente discreta, singularizada como esse ou aquele sujeito. A  
exterioridade em relação ao proprietário, por um limite ontológico, possui um caráter  
formal e não material.  
Nesse sentido, o capital configura na exploração da força de trabalho livre, cujo  
indivíduo trabalhador se apresenta imediatamente como proprietário privado e, por  
isso, também pessoa, instaura historicamente uma relação de domínio particular. Um  
domínio que não é, senão muito mediatamente, político, ainda que se expresse, por  
exemplo, em várias das formas democráticas (de certo modo, a igualdade perante a lei  
exprime igualmente, entre outras coisas, a abstração em que se encontram as figuras  
do trabalho e do capital na aparência imediata da troca simples). E não se trata de um  
domínio pessoal ou individual, não obstante seja sempre de indivíduos ou grupos de  
indivíduos uns sobre os outros. Porquanto, “o que distingue, com efeito, esta forma  
de todas as precedentes, é que o capitalista não domina o trabalhador em virtude de  
uma qualidade qualquer de sua pessoa, mas unicamente na medida em que ele seja  
‘capital’, sua dominação é somente aquela do trabalho objetivado sobre o trabalho  
vivo, do produto do trabalhador sobre o próprio trabalhador” (MARX, 1974, p. 457).  
A differentia specifica do capital como Produktionsweise = o domínio de sujeito sobre  
o outro do capitalista sobre o trabalhador não se dá mediado por uma qualidade  
pessoal sua, mas por sua determinação social como personificação do capital  
objetivado como condições objetivas e materiais de produção, de produção do mais-  
valor. O capitalista é uma função social, antes de o ser uma identidade pessoal. Aliás,  
só se torna identidade pessoa, uma forma de existência individual, sendo assumida de  
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modo socialmente objetivo. Por isso, é, a princípio e no limite, absolutamente  
indiferente qual individualidade singular venha a personificar a propriedade privada  
capitalista; assim como qual seria, do outro lado, o indivíduo que se apresenta como  
força de trabalho viva a ser subsumida no processo social. Essa determinação posta  
tanto pela troca aparente, mas, principalmente, pelo controle sobre o uso produtivo  
da força de trabalho apresenta uma gama diversificada de consequências potenciais e  
efetivas para o desenho da individualidade que se elabora na gravitação em torno da  
força de trabalho como força produtiva do capital.  
Nesse sentido, a análise marxiana, muito embora não ignore as dimensões morais  
postas pela exploração do mais-valor/mais-tempo-de-trabalho, não assume uma  
posição moral na crítica imanente das relações sociais. Pois, não se trata de avaliar  
simples opções dos indivíduos ou escolhas entre valores a serem acatados ou  
denegados, segundo uma regra supostamente universal, senão já num dado  
posicionamento social objetivo em relação à produção do valor valorizado. A tarefa é  
antes a compreensão crítica da totalidade e dos posicionamentos sociais nas quais os  
indivíduos estão situados nas escolhas e ações. Por isso, nunca se trata de ponderar  
moral ou eticamente “o trabalho’, por exemplo, com referência ao salário. O que pode  
ser observado claramente quando Marx critica o sentimentalismo barato wohlfeile –  
da objeção moralista de Rossi às implicações que Natur der Sache fließende se funda  
na distinção categorial central para a compreensão marxiana da economia entre  
trabalho e força de trabalho. Quem "diz um" não "diz o outro", senão pela mediação da  
existência do operador em proprietário de uma mercadoria específica e da operação de  
seu valor de uso necessariamente subsumido à valorização (MARX, 1974, p. 194-195).  
Na medida em que se trata de uma força, de uma potência de ação, de produção,  
sediada no irredutível corpo de um outro, e não de uma coisa, a simples operação de  
compra e venda não põe imediatamente o valor de uso efetivamente em posse do  
comprador.  
Outra peculiaridade contraditória da força de trabalho como mercadoria que  
simultaneamente a põe como não idêntica a todas as demais: ser valor posto não é  
imediatamente ser valor de uso posto em efetividade. Não há uma identidade nem  
temporal nem formal, e muito menos material, naqueles dois pôres. O pôr em  
efetividade de seu valor de uso, para o capital, somente devem porquanto a força se  
exteriorize em movimento concreto de produção, no contexto de um processo de  
trabalho determinado e particular. O que se encontra assim delineado em O Capital:  
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Da natureza peculiar dessa mercadoria específica, a força de trabalho,  
resulta que, com a conclusão do contrato entre comprador e  
vendedor, seu valor de uso ainda não tenha passado efetivamente às  
mãos do comprador. Seu valor, como o de qualquer outra mercadoria,  
estava fixado antes de ela entrar em circulação, pois uma determinada  
quantidade de trabalho social foi gasta na produção da força de  
trabalho, porém seu valor de uso consiste apenas na exteriorização  
posterior dessa força (MARX, 2013 p. 248).  
Uma curiosidade categorial é que a aparência mesma da relação, a troca simples  
de equivalentes, no qual o trabalho assim indistintamente figura como uma das  
mercadorias, abre às avessas um espaço à compreensão crítica. Porquanto somente se  
tenha acesso ao dinheiro uma vez se entregue a coisa transacionada, neste acaso,  
aparentemente "o trabalho", apenas após transcorrida a atividade é que se paga por  
ela. Ora, como se pode comprar uma atividade? Esse é o contrassenso ontológico no  
qual acriticamente a economia política, em alguns casos de boa-fé por suas diferentes  
dimensões limitantes , já em outros de má-fé, acaba por incorrer. Uma atividade não  
é uma coisa senão formalmente ou por liberdade poética. Hegel, que era um exímio  
transformador de atividades e processos em entes ou formas autossustentadas de  
entificação, não caiu nessa esparrela, ao perceber corretamente que se tratava da  
cessão de direito a um ganho advindo de uma atividade e não da venda da atividade.  
O que ainda é incompleto, na medida em que não se tematiza toda complexidade  
envolvida na cessão de um usufruto de atividade realizada por um indivíduo que o  
cede monetariamente a outrem.  
Outro aspecto decisivo do problema é que o ato formal de posse não se  
identifica necessariamente ao caráter do uso que se faça de uma mercadoria, nem  
decorre obrigatoriamente dele. O que no caso da especificidade da força de trabalho,  
a peculiar alienação de seu usufruto, de certo modo, provoca outra inversão relacional  
à troca simples: o vendedor somente recebe o que, em tese, seria o equivalente em  
valor após seu uso. Logo, “o trabalhador adianta ao capitalista o valor de uso da força  
de trabalho; ele a entrega ao consumo do comprador antes de receber o pagamento  
de seu preço e, com isso, dá um crédito ao capitalista” (MARX, 2013 p.248-249). De  
uma parte, reforçando a natureza da apropriação muito específica do trabalho pelo  
capital, tudo transcorre aproximativamente à maneira de um aluguel do uso de um  
bem, paga-se após decorrido certo lapso periódico de tempo de seu emprego ou gozo.  
De outra parte, na análise do uso em correspondência àquela específica forma de  
alienação, Marx delineia analiticamente um tipo curioso de "usura" de usufruto. A  
função do proprietário de si da sua força de trabalho assume formalmente a figura  
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de alguém que fornece antecipadamente um valor, mas em função de seu valor de uso,  
para poder receber pela utilização a posteriori em relação ao usufruto. A analogia  
usurária, contudo, cessa ao se perceber que o trabalhador não receberá mais que o  
valor cedido pela sua face dada. Por esta aparência real, de valor cristalizado numa  
individualidade viva e ativa, receberá, em tese, um preço correspondente. No entanto,  
la mise en œuvre de seu valor de uso engendrará um valor que suplanta em grandeza  
o quantum de trabalho incorporado no epítome de capacidades. Aqui, os juros são  
pagos pelo "agiota"; trata-se de uma agiotagem às avessas, porquanto a troca de  
equivalentes seja apenas a forma de aparição formal, mero primeiro passo, da  
subsunção da força de trabalho ao capital. O passo meramente formal, mas necessário,  
da subsunção. O comprador tem acesso ao valor/valor de uso antes de sua  
remuneração, seu proprietário original somente vê esse a grandeza desse valor em  
dinheiro somente após seu uso. E mesmo assim, o valor que chega a seu bolso não  
corresponde ao valor gerado pelo uso da cessão de controle que efetuou. No fundo, o  
tomador de crédito é que curiosamente embolsa os juros. Uma usura sui generis, usura  
de tolo. Usura às avessas à qual, em função de sua situação de ontologicamente pauper,  
o proprietário da força de trabalho não tem como se furtar.  
Não por acaso, dentre as que Marx enumera em nota (MARX, 2013 p. 249-250)  
a essa passagem, o assalariamento mensal deveio um procedimento que traduzira  
praticamente uma suposta regra universal de uma aparência tal, que porta hoje o  
caráter de forma axiomática, que prescinde de demonstração prévia de sua  
procedência, portadora de um caráter auto-evidente e natural. O pagamento mensal,  
aliás, desnuda à contrapelo de sua aparência inversão dos termos entre quem se  
apropria da valorização sem gerá-la e daquele que a gera sem dela se apropriar. No  
nível em que se passa a efetividade do capital desfazem-se todas as aparências da  
igualdade e da liberdade próprias ao capital, revelando o conteúdo da fraternidade de  
interdependência que conecta os indivíduos assim socialmente determinados: “O  
antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de  
força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância,  
confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que  
trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da ...  
despela” (MARX, 2013, p. 251). Neste âmbito, onde se dá a sua produção real como  
resultado do trabalho/valorização, a mobilização do caráter material ao valor de uso da  
força de trabalho em vista de seu formal, enfim, as duas personagens abandonam a  
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máscara abstrata e passam a portar aquelas correspondentes às particularidades reais  
de suas funções econômicas. À uma, cabe o controle do processo, seu regramento,  
como pessoa do capital, a realização de seu negócio próprio: zelar para que a  
valorização transcorra sem maiores sobressaltos. À outra, efetivar a potencialidade de  
sua liberdade como subsunção formal ou real de suas força e atividade ao capital.  
Objetivar-se em sua atuação produtiva, criando uma mercadoria estrito senso, assim  
produzida desde o início, para portar valor/mais-valor a ser realizado ulteriormente. A  
submissão do tempo de vida como tempo de produção, o tempo de sua (re)produção  
como tempo de sua exploração, a despensa do tempo pessoal como tempo socialmente  
determinado, como criação do sobretempo. Temporalidade social na qual sua pele  
entregue ao Gerberei do capital.  
Desempenhar seu papel als sein Arbeiter, pontua criticamente também o fato de  
que, não obstante o assujeitamento do trabalho assalariado seja essencialmente  
diverso daquele no qual o próprio indivíduo do qual a força de trabalho é uma potência  
sintética seja o objeto da alienação, instaura-se uma forma peculiar, nova, de  
submissão econômica, que se expressa também numa modalidade de dependência  
distinta das anteriores, do trabalhador em relação ao mestre das condições objetivas  
de produção. Os termos aqui não têm, comme d'habitude, em Marx, função apenas  
estilística, ou a têm na exata medida em que podem ser mediações explicitadoras de  
conteúdo. Ele é seu trabalhador, essa condição vai, na infinitude da duração temporal  
do contrato, defini-lo em essência, moldando igualmente as demais dimensões de sua  
vivência real como sujeito concreto. O ser proprietário de força de trabalho em  
efetividade, negociá-la, alugá-la, no contexto real das relações mercantis, dar a ela não  
somente a forma da mercadoria, mas realizar essa forma, cedendo de facto o usufruto  
de sua atuação, resultará na negação determinada, obviamente delimitada, de sua  
personalidade livre. Eis que o exercício da liberdade privada, pela qual "afinal" agora  
em termos de história universal todos são livres, redunda na sua denegação  
determinada como efetividade contraditória.  
A evidenciação desse conjunto complexo de inversões socialmente objetivas,  
algumas delas na inerência das relações e até das atuações produtivas, atinentes à força  
de trabalho unicamente se torna possível na medida em que a análise da anatomia da  
sociedade civil, o conjunto de relações de produção do capital, pode arrimar-se no  
entendimento distintivo da categoria força de trabalho. Não se configuraria, ademais,  
indicar essa distinção como um ponto nevrálgico da inflexão verificada na tematização  
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marxiana tanto do capital como totalidade orgânica quanto da sociabilidade capitalista,  
e da individuação a esta correspondente, que emergem a partir de 1857 e se espraia  
de maneira diversificada pelos diferentes registros problemáticos aos quais aquela se  
voltou. Explicitando essa importância imanente à construção do pensamento de Marx,  
discutindo uma passagem dos Manuscritos de 1861-63, Morilhart observa,  
acertadamente:  
Assim sendo, “as condições objetivas da realização de sua potência  
de trabalho, as condições da objetivação de seu trabalho” lhe são  
estranhas, fazem-lhe face como propriedade de outrem. Portanto, a  
força de produtiva social nascida da cooperação das potências de  
trabalho operada por meio da divisão do trabalho aparece aos  
operários “como uma potência exterior, que os domina e os engloba,  
e, em realidade, como potência e forma do capital mesmo, sob o qual  
eles são individualmente subsumidos e ao qual pertence a relação  
social de produção deles” (p. 290). Essa submissão do trabalho ao  
capital se revelando “como processo de alienação do trabalho como  
processo que o torna estranho a si mesmo, evidenciando formas  
sociais do trabalho como potências estranhas” (p. 328). A potência  
produtiva do trabalho social aparece aos membros da sociedade  
capitalista como potência produtiva do capital13 (MORILHART, 2017,  
p. 105-106).  
Veja-se como Marx retoma aqui o problema de 1844, obviamente, já totalmente  
mediado de modo diferente, pela distinção crucial entre Arbeit und Arbeitskraft, que  
torna possível expor de forma também mais precisa a conexão entre a Entäußerung  
des Arbeit, relação social de apropriação, como cessão de usufruto (Veräußerung), e o  
entfremdet Arbeit, como capital, as condições objetivas de produção, e a resultante  
riqueza produzida pela transformação delas na atividade produtiva, na forma do  
estranhamento. Um mérito deste autor reside no fato de que em boa parte de sua  
exploração do conceito particular de força de trabalho, ele termine por explicitar, muito  
embora sem o destacar, a diferença fundamental existente entre os diferentes termos  
(notadamente, estranhamento e alienação, e suas variações) que gravitam em torno da  
força de trabalho conforme sua existência no capital. Morilhart não os trata na ligeira  
13  
Ceci étant, « les conditions objectives de la réalisation de sa puissance de travail, les conditions de  
l’objectivation de son travail » lui sont étrangères, lui font face comme propriété d’autrui. Partant, la  
force productive sociale née de la coopération des puissances de travail mise en œuvre à travers la  
division du travail apparaît aux ouvriers « comme une puissance extérieure, qui les domine et les  
englobe, et, en réalité, comme puissance et forme du capital lui-même, sous lequel ils sont  
individuellement subsumés et auquel appartient leur rapport social de production » (p. 290). Cette  
soumission du travail au capital se révélant « comme processus d’aliénation du travail, comme un  
processus qui le rend étranger à lui-même, comme mise en évidence des formes sociales du travail  
comme d’autant de puissances étrangères » (p. 328). La puissance productive du travail social apparaît  
aux membres de la société capitaliste comme puissance productive du capital.  
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e enganosamente simploriedade de uma aparente sinonímia, maneira pela qual parte  
considerável da tradição marxista, acadêmica e politicamente dominante, o fez e ainda  
o faz, ao abordar de tais questões. Somente sob a vigência da intelecção das distinções  
é possível compreender as inversões de determinação, que Marx evidencia no decorrer  
de sua análise, em seu sentido ao mesmo tempo objetivo e multifacetado. O  
entendimento de todos esses processos de inversão se torna tanto mais urgente  
quanto mais se demande, enquanto complemento necessário, o tratamento das  
questões atinentes ao modo como essa totalidade de relações sociais se expressa na  
forma do remetimento do indivíduo vivo e ativo a si mesmo.  
Da relação social determinada do indivíduo para com sua própria força de  
trabalho  
Com a finalidade de delimitar de maneira mais explícita o esforço teórico que se  
vislumbra como tarefa a ser cumprida, é necessário situar desde o início seu escopo  
analítico e o grau de amplitude que dele deriva. A problemática da relação determinada  
do indivíduo de si a si, mediada pela sua forma de existência como proprietário privado  
de força de trabalho, de suas próprias forças de objetivação, não remete  
imediatamente nem reduz àquelas de caráter psicológico ou existencial. Não obstante,  
a forma de existência de si do indivíduo como proprietário livre e privado de si tenha,  
evidentemente, um conjunto de implicações reais que se exprimem também naquelas  
instâncias, a discussão do texto marxiano que se efetiva não tem essa natureza. Frise-  
se isso, conquanto de maneira alguma se negue a possibilidade de que a partir de  
certos traços daquela relação social e objetiva de si a si, que podem ser de maneira  
indiciária levantados na argumentação marxiana, tenham a potencialidade de devir  
parâmetros categoriais pelos quais se enfrentem certos problemas teóricos (e até  
práticos) de disciplinas como a psicologia ou as ciências sociais14. Aqui, trata-se, pois,  
de algo diferente.  
De saída, a pretensão seria classificável como uma exploração filosófico-  
categorial da individuação do proprietário privado de si mesmo. Classificação que  
ironicamente já indicaria uma duplicidade dessa forma de remetimento do indivíduo  
14  
E mais uma vez vale aqui referir o trabalho empreendido por Stéphane Haber em sua obra, da qual  
antes se referiram algumas poucas questões. Tome-se a este respeito, os momentos em que o autor se  
volta aos aspectos desafiadores de possíveis relações conceituais a serem elaboradas relações entre  
conteúdo e forma das categorias marxianas, por um lado, e determinados problemas teóricos e práticos  
de diferentes disciplinas científicas das humanidades. Particularmente, a argumentação analítica  
desenvolvida em seu extenso e denso terceiro capítulo. Cf. HABER, 2007, pp. 239-320.  
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aos diversos momentos reais que o constituem. O termo “privado”15 possui, ademais,  
uma equivocidade semântica a qual, no presente contexto teórico, mais auxilia que  
obsta o entendimento da complexidade efetiva da conexão do indivíduo do capital  
consigo mesmo e com as formas diferenciadas de expressão desta individualidade. A  
ironia reside no fato de que, em relação à sua própria força de trabalho, ser  
proprietário privado redunda, pelo que se pode depreender daquilo que até o  
momento se desdobrou, dois sentidos objetivamente cravados na forma de  
individuação humana típica do capital. Por um lado, fato sempre bem documentado  
por toda tradição moderna da filosofia e das ciências do social, o ser proprietário único  
de si emerge claramente como forma de ser social imediatamente dada, a qual se  
expressa com clareza resplandecente no trato que mesmo o indivíduo sujeito a  
trabalhar para outrem pode estabelecer para si mesmo. A real universalização da figura  
da pessoa, do referir-se e responder-se livremente a si e por si, é certamente uma das  
diferenças específicas da época histórica do capital. Isso, tanto em sua consideração  
como um fato, em boa parte das primeiras versões filosóficas disso, até “natural”,  
quanto em sua consagração como princípio, retomado e reelaborado estatal e  
juridicamente nas mais diversas declarações de princípio, políticas e legais. Entretanto,  
por outro lado, o que veio se esboçando na presente análise imanente dos textos  
marxianos é que essa forma de relação de si a si é o fato deste exercício de propriedade  
sobre as forças de objetivação de si como mercadoria somente se efetiva na cessão  
radical de controle sobre o próprio exercício. Exercício que, como regra, amiúde,  
resulta em diversas formas e níveis de objetivação estranhada, de riqueza estranhada,  
de realização humana na forma do estranhamento. Algo por si desconcertante, uma  
vez que essa forma de ser, consagra em um sem-número de fórmulas filosóficas e  
jurídicas, matriza inclusive as figurações, pertinentes ou puramente ilusórias, acerca da  
natureza e dos graus de autodeterminação da pessoalidade dos indivíduos a partir da  
modernidade. Na posição objetiva de si a si como proprietário, único, de si mesmo,  
resulta na livre disposição que a dá o capital, na realidade potencial da despossessão  
de si mesmo, do controle social sobre as objetivações que sua atividade engendra.  
Aparecer como capital é imediatamente aparecer como estranhamento, como  
entfremdete Arbeit.  
15  
Equivocidade vernacular que, desconfia-se aqui, não seja um apanágio somente das línguas latinas,  
mas que nestas, certamente, é possível flagrar-se com uma rápida consulta aos verbetes dos dicionários  
vocabulares.  
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A força de trabalho como forma de ser  
O rastreamento dos traços fundamentais desta relação de remissão a si como  
proprietário será a seguir empreendido a partir também da argumentação marxiana  
constante do mesmo subcapítulo de O Capital no qual trata da operação de compra e  
venda da força de trabalho. Frise-se, de passagem, algo que normalmente nunca é  
meramente casual ou estilístico em Marx: a ordem em que se põe as determinidades  
da operação de troca, inclusive no título desta passagem da obra. A compra  
antecedendo na explicitação sumária à venda, um procedimento contraintuitivo,  
exprime nessa simplicidade mesma a determinação real da demanda do capital pela  
força de trabalho, uma vez que os elementos objetivos os quais assumem sua forma,  
somente o são capital em efetividade na condição de fazerem frente, de modo  
estranhado, à força de trabalho, ao trabalho vivo. Em outras palavras, é a atuação da  
força de trabalho que faz com que as condições de objetivação em qualidade de  
capital, e não somente de meios de produção em geral, possam se exprimir na prática,  
na efetividade, como elementos do capital. Uma determinação concreta que, contudo,  
na sua própria efetuação, como se viu apareça objetivamente invertido: a força de  
trabalho é que aparece no contexto das forças do capital como elemento dependente  
e subordinado. Quais as consequências desta, e outras tantas, inversões reais para a  
elaboração da individualidade? Como o indivíduo se comporta consigo mesmo no  
quadro de relações contraditórias deste naipe?  
Em segundo lugar, importa, por conseguinte, explicitar como Marx entende a  
conexão determinada entre formas de relações e formas de individuação. Os modos  
pelos quais os indivíduos tomam lugar, segundo certas formas de atuação, dentro de  
um quadro particular de relações sociais depende, ou corresponde, ao caráter  
preponderante da própria relação. A atuação, ou o comportamento, sociais não é uma  
derivação natural de simples disposições supostamente inatas aos indivíduos, mas  
expressam de seus posicionamentos sociais objetivos, relativos à propriedade que se  
tenha ou não dos meios de se produzir. Desta maneira, “A troca de mercadorias por  
si só não implica quaisquer outras relações de dependência além daquelas que  
resultam de sua própria natureza. Sob esse pressuposto, a força de trabalho só pode  
aparecer como mercadoria no mercado na medida em que é colocada à venda ou é  
vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de trabalho”  
(MARX, 2013 p. 242). Relações sociais que, por sua vez, são correspondentes à  
existência do indivíduo produtor, o trabalhador vivo, na figura de um proprietário  
apenas de sua força de trabalho. Não se tratando mais da sua subsunção como uma  
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dentre várias condições objetivas de trabalho; nem na forma em que vale como coisa  
de valor, na escravidão, nem naquela em que um nexo extraeconômico de caráter  
societário real ou imaginário o ligue às condições objetivas, nas formas servis de  
sujeição do trabalho. A forma social de ser objetiva de existência da força de trabalho  
viva, entregue a apenas a si mesma, abandonada e liberta de todas as conexões  
essenciais para com as condições de sua objetivação, determinará as relações sob as  
quais se dará essa subsunção particular no processo de produção. Por esta mesma  
determinação se funda a ironia real na qual ser socialmente determinado proprietário  
privado de si e apenas de si, em tese, significa estar privado de todo o resto. O  
remetimento ao self não é positivo senão num ironismo tipicamente spinozista: só se  
assim se determina como único proprietário de si a quem é negado todo resto. Uma  
vez que “Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor dela  
portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa” (MARX,  
2013 p. 242). A força de trabalho somente é mercadoria na medida em que seu  
possuidor, a individualidade corpórea real da qual é momento, tem sobre ela um dado  
controle como pura potência de produzir.  
A força de trabalho em termos abstratos, simples, é, foi e sempre será uma  
potencialidade sintética dada no corpo do indivíduo vivo. Entretanto, nem sempre,  
historicamente, o controle sobre a disposição de seu uso, de sua mobilização produtiva,  
esteve na alçada desse mesmo corpo; quase nunca pertenceu essa decisão à pessoa  
viva. A relação de exterioridade do mando sobre o movimento produtivo do corpo  
individual era, em momentos diferentes daquele da produção capitalista, a de uma  
redução da própria individualidade inteira à natureza objetal, como coisa. Incluindo-se  
aí, evidentemente, esse epítome vivo de capacidades e forças residente nessa  
corporeidade.  
Não tinha ele, o produtor, uma relação de proprietário, de possuidor pessoal,  
também para com essa figura sintética. Não era proprietário de si. A relação de  
alienação de mediação do uso de sua força de trabalho não passava pelo seu próprio  
controle, como pessoa, mas de seu corpo como momento da propriedade privada de  
outrem; seja como propriedade física imediata de outrem, seja como elemento  
constante de uma totalidade de propriedade privada à qual estava atado. A alienação  
fazia de sua totalidade viva inteira seu objeto. Ele não se alienava, mas era, imediata  
ou mediatamente, alienado por outrem. Por isso, a relação de sich entäußert/veräußert  
de se alienar é uma conexão de si a si tipicamente moderna, capitalista. A conversão  
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A força de trabalho como forma de ser  
da pessoalidade em caráter universalmente atribuível tem nesta possibilidade social  
objetiva de autoalienação de momentos de si seu fundamento material. O indivíduo  
que produz põe um momento de sua personalidade real na forma da mercadoria. Ele  
a aliena, a cede, de um modo bem determinado a outrem. E é nessa condição social  
real que a força de trabalho é incorporada pelo capital à sua totalidade por meio da  
sua aquisição privada.  
Natureza privada que comporta, ao menos, dois sentidos. De um lado, é o  
trabalhador um proprietário privado de sua força de trabalho. De outro lado, em  
situações “normais”, como indivíduo ele a cede como um ato seu, que diz respeito  
unicamente a si.  
É essencial aqui o liame determinativo que liga pessoalidade e proprietário  
privado. A pessoalidade deriva de o ter, ou poder ter, pelo menos, a propriedade sobre  
algo, nem que seja sobre si mesmo e tudo que o constitui como indivíduo corpóreo.  
A remissão implícita à definição que pessoa moderna, efetiva. O fundamento da  
pessoalidade em sentido social moderno é a universalização da propriedade,  
universalidade esta que passa em termos extensivos pela existência do trabalhador  
livre e intensivos pela disposição sobre si que ele agora possui. A pessoalidade é uma  
determinação deste indivíduo real, cuja atividade volitiva se dirige a tudo como seu  
conteúdo, nem que esse material se resuma, no fim das contas, ao que somente existe  
nele mesmo, em seu corpo, como resultado do que ele foi e vem sendo. O ser pessoa  
tem arrimo nesta remissão às coisas e, principalmente, a si pela via da mediação do  
ser proprietário privado. Dar inclusive às figuras constituintes de sua existência a forma  
da propriedade objetal, exterior. Como observa Marx, em outro escrito, este mesmo  
caráter ganha expressão de universalidade inclusive filosófica: “A venda da potência  
de trabalho tem lugar, do ponto de vista das ideias ou do direito neste primeiro  
processo, ainda que o trabalho seja pago somente após ter sido efetuado, ao fim da  
jornada da semana etc. Isso não altera nada com relação a esta transação na qual a  
potência de trabalho é vendida” (MARX, 1974, p. 465). Os termos não poderiam ser  
mais evidentes: Der Verkauf des Arbeitsvermögens findet ideell oder juristisch statt in  
diesem ersten Prozeß, A venda da potência de trabalho se dá ideal e juridicamente  
nesse primeiro processo. E é dessa aparência imediata que vivem as doutrinas  
modernas da autodeterminação da vontade. Novamente, o fundamento da  
pessoalidade reside na virtualidade de ser proprietário. Nessa qualidade, inclusive  
juristisch gleiche Personen sind (MARX, 1962, p.182). A distinção reside somente na  
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posição relativa que estes indivíduos tomam um frente ao outro. A igualdade formal  
dos contratantes, expressa igualmente em vários estatutos jurídicos historicamente  
elaborados e transformados no curso do ir-sendo da produção capitalista, é aqui uma  
componente da relação de trabalho que particulariza o capitalismo. Sua abolição, seja  
em termos relativos, seja pelo revolucionamento cabal da própria interatividade,  
portaria o sentido objetivo de negação da própria possibilidade de produção do mais-  
valor.  
A exterioridade que o indivíduo deve fazer assumir um momento seu para se  
efetive como proprietário de si é real conquanto sua natureza puramente formal. Uma  
operação na qual um constituinte-chave de sua pessoalidade adquire certa  
independência com relação a ele mesmo. Independência que não nem é ilusão, nem  
efeito de algum tipo de anormalidade, psíquica ou existencialmente engendrada, mas  
sua forma cotidiana de socialização. A força de trabalho é alienada pelo trabalhador  
como ou na forma de uma coisa dada, materializada, em sua corporeidade. Sua  
grandeza de valor é formalmente estabelecida pelo quantum de tempo de trabalho  
social - necessário e dado - que nela se incorpora, traduz-se economicamente pela  
quantidade de valor das mercadorias necessárias à sua reprodução produtiva, à  
reprodução de seu "proprietário" como trabalhador assalariado. A força de trabalho  
como categoria, Daseinsform, contém sinteticamente a determinação essencial da  
forma pela qual os sujeitos reais, vivos e ativos, são empuxados a se comportar vis a  
vis a si mesmos na época do capital. É a forma preponderante de relação para a quase  
totalidade dos sujeitos humanos.  
O aparecer concreto da atividade humana como ato pelo qual os seres humanos  
criam ser ou dão ser social efetivo ao que era materialidade natural e potencialidade  
subjetiva faz com que no nível da idealidade, das expressões ideológicas do modo de  
ser social, trabalhar aparece, necessariamente de forma abstrata, como sendo a  
dignidade própria ou a própria dignidade individual. Não por acaso, ideologicamente,  
assistir-se-á da exaltação abstrata do ser ativo à laudatio falsificadora do agir em geral  
como estrutura universalmente atribuível à individualidade humana; abrangendo não  
apenas o indivíduo que realmente efetiva o trabalho, mas também as personæ que  
medeiam socialmente a produção na forma privada capitalista.  
A discussão econômica em torno da produtividade em geral, sans phrase, "do  
trabalho", de qualquer atuação que resulte em algo ou alguma coisa, exprime no fundo  
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A força de trabalho como forma de ser  
a forma estranhada da percepção da atividade produtiva como produção e  
autoprodução do humano em seu estranhamento concreto, proveniente da, e  
determinado pela, forma real de sua alienação à propriedade privada. Por esta razão,  
Hegel, em seus Princípios da Filosofia do Direito, nos parágrafos 42 a 46, atina para  
essa questão e a expressa de um modo tipicamente burguês, moderno, ao delimitar a  
forma da liberdade da vontade, que seria a justificação "conceitual" primeira e última  
da propriedade privada moderna (HEGEL, 2013). Como o ato pelo qual a vontade se  
deposita sobre o mundo, nem que seja sobre a efetividade do sujeito do qual é ato de  
vontade, e diz isso é meu. Ser pessoa é, em seu formato mais geral e generalizável,  
poder se dispor e dispor-se de si livremente. Ser livre, na vontade referida a si como  
objeto de si, é, no fundo possuir a condição de alienar-se, e não mais ser alienado.  
Nisto constitui o limite da liberdade no mundo do capital, o que encontra uma  
variedade de expressões políticas, exprimidas tanto em princípios legiferantes quanto  
de pugnas ideológicas (ALVES, 2021, p. 138-155). Desta maneira, “Como pessoa, ele  
tem constantemente de se relacionar com sua força de trabalho como sua propriedade  
e, assim, como sua própria mercadoria e isso ele só pode fazer na medida em que a  
coloca à disposição do comprador apenas transitoriamente, oferecendo-a ao consumo  
por um período determinado, portanto, sem renunciar, no momento em que vende sua  
força de trabalho, a seus direitos de propriedade sobre ela” (MARX, 2013, p. 242-  
243). O conjunto de suas capacidades de trabalho em epítome assume a forma de ser  
da propriedade privada. É a propriedade privada do trabalhador, na medida em que  
este se relaciona, tem para com esta um comportamento de proprietário, de um  
possuidor de mercadoria. Aqui, além da relação de autarquia para com o outro sujeito,  
na qual, a princípio, não seria subsumido como condição objetiva de produção (como  
um meio de produção entre outros), o trabalhador também tem uma peculiar relação  
consigo mediada pela conexão estabelecida com sua própria força de trabalho. A  
delimitação de si como proprietário de si mesmo é como tal uma determinação social  
particular e não uma dação natural ou mesmo de segunda natureza em sentido  
ontológico positivo, como uma forma irreversível. Por esta razão, tanto aquém do  
assalariamento, um retorno à subsunção material do próprio trabalhador ao conjunto  
de condições objetivas, quanto além dele, a transformação revolucionária das relações  
sociais de produção, estar-se-ia por definição fora do âmbito do capital. No primeiro  
caso, dentro do contexto capitalista é possível operar de maneira acessória com  
relações escravistas, como, por exemplo, meio de expropriação original, o que ocorreu  
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nas empresas coloniais. Mas isto, sob o preço de contradições e incompletudes  
econômicas sistêmicas que ganharam expressão política gravosa. O segundo caso,  
significaria na prática a negação do princípio social privado da produção, bem como  
de suas formas corriqueiras e típicas de propriedade de meios de produção e de  
produtos; a socialização livre dos indivíduos em suas atuações interdependentes. Tais  
indivíduos não se elaborariam reciprocamente como sujeitos privados indiferentes uns  
aos outros, conectados somente por suas objetivações estranhadas, e sim como  
individualidades que livremente exercem atividades recíprocas cujo desenvolvimento  
levaria em conta tanto as condições reais quanto as demandas diversificadas de todos  
(MARX, 2013, p. 153-154).  
No contexto da produção social do capital, a liberdade aqui é a da figura isolada  
de tudo, principalmente dos objetos dos quais precisa de modo vital para sua própria  
figuração. É um ente, ou figuração, social despossuído de condições, fora de si, de  
confirmar seu ser e seu saber, tendo apenas a si mesmo como única condição. É o ente  
lançado no mundo, confrontando-o segundo a própria medida de si, em  
correspondência com a maior ou menor estreiteza de seu metro, para se realizar como  
força in actu. Diferentemente da figura clássica do burguês, à qual silenciosa e  
tacitamente eram remetidas as suas posses por natureza, a força de trabalho livre é  
assumida a um dado momento do desenvolvimento das leituras filosóficas a partir do  
século XIX. Principalmente à medida em que vai se tornando patente a particular  
centralidade no horizonte social capital, tanto do ato de pôr, quanto da figura humana  
que a este corresponde. Figura que é estendida e se torna atribuível universalmente  
na abstração que fazem aquelas leituras da própria noção de atividade, seja como  
operar, agir, manusear, fazer, obrar e por aí vai abrindo-se num leque de versões  
bastante numeroso e diverso, mas que contêm todas em maior ou menor medida este  
tipo de mediação conceitual: a abstração para com a atividade sensível e produtiva.  
Assim, todos fazem, acontecem, produzem mundos, mas sempre na pressuposição de  
sua suposta estrutura assentada no apartamento para com o mundo objetivo e suas  
condições, particularidade eminentemente burguesa da forma de existir da força de  
trabalho. Isto já se anuncia até mesmo nos limites do iluminismo alemão do qual Marx  
foi contemporâneo e fazia dele um dos objetos de sua crítica. A relação do indivíduo  
produtor com suas potências corpóreas de objetivação, aqui, ao contrário do que  
ocorria (e ocorre ainda) nas grandes narrativas filosóficas, e mesmo nas tematizações  
da economia política e de mainstream, que bem ou nem aparece, ou aparece de forma  
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A força de trabalho como forma de ser  
abstrata e indeterminada, é explicitada em sua dimensão de categoria central da  
produção e reprodução da vida humana em sua concretude.  
A contraditoriedade imanente à forma de ser da força de trabalho como categoria  
do capital se expressa igualmente pelo fato de que se o indivíduo somente se efetiva  
na medida em que cede o controle do exercício de suas forças, ainda assim ele se  
confirma como produtor, não obstante, de riqueza estranhada. Produção esta que  
requer do próprio indivíduo um dado desenvolvimento qualquer de competência  
efetiva. Neste sentido, o caráter próximo ao aluguel faz pender relativamente também  
para o lado da força de trabalho um certo grau de apropriação do mundo e de suas  
relações a si. Para tanto se retome aqui uma passagem já referida e desdobrada  
anteriormente, mas, agora, num registro diferente: , “a extensão das assim chamadas  
necessidades imediatas, assim como o modo de sua satisfação, é ela própria um  
produto histórico e, por isso, depende em grande medida do grau de cultura de um  
país, mas também depende, entre outros fatores, de sob quais condições e, por  
conseguinte, com quais costumes e exigências de vida se formou a classe dos  
trabalhadores livres num determinado local” (MARX, 2013, p. 246). Há outro ponto  
fundamental: não se trata apenas de (ou mesmo da) sobrevivência física do indivíduo  
imediato senão na medida em que seja o de sua força de trabalho. Não obstante a  
dotação de exterioridade da força de trabalho, como mercadoria, em relação ao si  
próprio seja de natureza formal, esta formalidade não se resume a uma mera  
convenção. Aqui, formal diz respeito à forma social objetiva determinada da relação  
força de trabalho na figura da mercadoria. Ou seja, o trabalhador vivo entra como  
elemento a ser reproduzido na medida de sua força de trabalho, als arbeitendes  
Individuum, daí que o capital não assimile propriamente a individualidade inteira do  
sujeito e nem tenha para com ela, por sua natureza relacional específica, uma conexão  
direta, mas mediada pelo aluguel que paga pelo usufruto da força. Manter um indivíduo  
vivo sem pressupô-lo como indivíduo trabalhando não pertence à alçada da relação  
de produção do capital. Mesmo a dotação de valor em vista de gerações futuras de  
trabalhadores, a reprodução familiar da força de trabalho, somente se dá em função  
desta reprodução de largo tempo de uma potencialidade a ser explorada como  
substituta geracional. O capital não reconhece a humanidade do indivíduo senão na  
medida de sua valorização. Daí que mesmo este tipo de "investimento" virtual em  
futuras forças de trabalho estará sempre na dependência dos fundos gerais de  
exploração e das necessidades internas ao processo efetivo de valorização, as quais  
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podem conhecer uma série de eventualidades e circunstâncias casuais adversas,  
provenientes de diferentes contextos socioambientais. A força de trabalho  
capitalisticamente conta como capital variável, trata-se da parte indefinida e  
infinitamente flutuante do processo em termos de grandeza de valor em proporção ao  
capital como totalidade. É por seu contingente materialmente dado nas populações  
sempre tendencialmente excedente, principalmente segundo o desenvolvimento das  
condições objetivas de produção como capital; especialmente dos meios de trabalho  
em sua configuração tecnológica incrementada.  
A expansão das capacidades expressas sinteticamente na força de trabalho por  
meio de um processo educativo geral ou mesmo especializado passa a contar, no  
desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista, como uma componente  
necessária da elaboração da força de trabalho. O que se dá, de uma parte, em termos  
imanentes ao processo de produção do capital pela inerente expansão da integração  
dos processos tecnológicos, e das ciências neles pressupostas, como suas forças  
produtivas. Por outro lado, igualmente, como impulso dado aos indivíduos na busca  
por sua manutenção como forças empregáveis no processo, na competição a que são  
impelidos pela forma atomizada como o capital dispõe as diversas forças de trabalho  
individualmente dadas. Assim, “se eu compro o serviço de um professor ou que  
outros comprem para mim este serviço não para desenvolver minhas capacidades,  
mas adquirir aptidões graças às quais eu possa ganhar dinheiro, e se aprendo  
efetivamente alguma coisa, o que em si não depende de modo algum do pagamento  
do serviço, esses custos de estudo fazem parte dos custos de produção de minha  
potência de trabalho, assim como meus custos de subsistência” (MARX, 1974, p.474).  
A educação do trabalhador, sua qualificação, geral ou específica, pode ser, e é, uma  
componente de valor da força de trabalho, o que não faz da relação de ensino-  
aprendizagem um trabalho produtivo do Standpunkt social do capital, ainda que ele  
possa ser, dependendo, do estágio de desenvolvimento das forças produtivas,  
materialmente importante para o incremento da produção do valor e extorsão  
aprimorada do mais- valor. Independentemente dos motivos circunstanciais, elevação  
de conhecimento ou competição no mercado, é de todo modo inegável que o processo  
de formação, bem ou mal cumprido, efetiva um conjunto de alterações determinadas  
na existência do indivíduo vivo e ativo e na sua força de trabalho oferecida por ele  
como mercadoria peculiar, força de valorização do valor.  
Ademais, como se trata de uma subsunção mediada de um momento de si, na  
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A força de trabalho como forma de ser  
forma de um aluguel de usufruto, as transformações mesmas, positivas ou negativas,  
trazidas pela integração da força de trabalho viva no processo igualmente se  
cristalizam como alterações objetivas da morfologia biológico-material e subjetiva do  
indivíduo. A atividade não apenas altera a forma da materialidade externa ao sujeito,  
mas igualmente aquela que lhe é inerente e imanente. Algo notado e frisado por Marx  
em uma das seções mais conhecidas de O Capital (MARX, 1993, p. 199), indicação  
essa que é atualmente infirmada tanto no âmbito das ciências sociais (DEJOURS, 2013)  
quanto das ciências biológicas (STOUT 2016; NEWEILLER, 2015). A particularidade de  
tal processo de transformação e de elaboração objetiva de si por meio e na imanência  
da atividade produtiva transcorrer no contexto da propriedade privada capitalista e da  
criação da riqueza em sua forma estranhada não nega, ainda que especifique a forma  
contraditória, pela qual se dá na concretude social o desenvolvimento da força de  
trabalho individual em sua história singularmente vivida. De toda maneira, tais  
alterações morfológicas, nervosas, intelectivas, de habilidade, existenciais etc., são  
objetivadas num corpo humano vivo e ativo e assumem por isso, independentemente  
de seu caráter mais ou menos estranhado, a forma de um “patrimônio” fixado na  
individualidade da força de trabalho e na força de trabalho do indivíduo.  
De certo modo, esse efeito transformativo é um aspecto existente em permanente  
contradição com a indigência ontológica inerente à força de trabalho livre assalariada.  
O fato de ver-se de fato sempre na iminência de ejeção do mercado e  
permanentemente ser movida entre diversos setores de um mesmo ramo ou até  
mesmo em braços muito diversos da produção e realização do capital, traz como  
consequência contraditoriamente vivida um contato mais variado com a diversidade e  
multilateralidade da própria produção. Trata-se aqui, bem entendido, de um processo  
de elaboração altamente complexo por sua contraditoriedade imanente. Não é o  
indivíduo enriquecido pela diversidade integrada do diverso da produção em função  
do desenvolvimento livre de suas potências, mas a individualidade que tem insertada  
em si de maneira, ora desconexa ora exteriormente articulada, uma miríade de vetores  
formativos da própria atividade produtiva. Entretanto, nesta mesma contradição, e por  
meio dela, a individualidade portadora de força de trabalho como propriedade privada  
de fato pode e abrange mais que aquela submetida diretamente a um jugo particular  
e definido de antemão por seu pertencimento a um senhor ou a uma totalidade social  
ainda sem muitas mediações (famílias, clãs, tribos) ou mesmo aquelas cuja sujeição  
social se dava ao modo da aparente dependência técnica e de ofício. O quanto de  
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elementos virtuais de autoconstrução livre da individualidade do produtor da riqueza  
que pode comportar o desenvolvimento social dos sujeitos, mesmo no quadro de  
determinações do estranhamento capitalista de si, era um ponto de reflexão ao qual  
Marx também se voltou em diversas ocasiões. Fato documentado nas diversas  
manifestações por ele expressas quando, principalmente em intervenções de natureza  
prático-política (MARX, 2010, 185-190), porém também em amplos contextos das  
análises da forma social de existência dos processos tecnológicos (MARX, 2013, p.  
443-452/542-550). Em tais formulações as questões do processo formativo, e mesmo  
de autoformação, mediado pela educação institucionalmente organizada é um tema  
central para o entendimento de como a determinação da forma capital vigora nesse  
terreno, tanto com relação à existência da força de trabalho como mercadoria do  
processo de produção, quanto com referência aos seus sentidos objetivos reais e  
possíveis com relação à totalidade da individualidade dos sujeitos. A análise crítica  
marxiana se pauta pela identificação do caráter imanentemente contraditório das  
conexões, indicando como simultaneamente se processa a formação desta  
individualidade humana em seu multiverso de relações na própria forma do  
estranhamento16. É a existência de uma fortuna em potência (Vermögen), no sentido  
de recurso real ou riqueza instalada no e do indivíduo vivo.  
Nesse sentido, é sempre importante ressaltar que o procedimento teórico de  
Marx intenta nas construções de síntese, por vezes difíceis de apreender em seu  
significado preciso, apresentar a complexidade da articulação real que perfaz a  
individualidade. Com relação a este tema particular, mas não apenas, a analítica  
marxiana das formas sociais de ser buscam explicitar como na própria finitude  
estranhada da propriedade privada capitalista, no interior mesmo de suas delimitações,  
dá-se a elaboração de uma individuação tanto mais social quanto mais individualizada  
e isto na imanência mesma dos nexos societários contraditórios, cuja existência é  
histórica e processual, portanto, aberta e em permanente construção e reconstrução  
no devir real do próprio modo de produção social da vida.  
É uma contradição social imanentemente objetiva, por exemplo, que a expansão  
16Para o melhor dimensionamento de como Marx pensa as questões e os desafios da educação formal,  
de maneira determinada pela crítica da economia política e da própria política (supostamente tomada  
pela tradição do pensamento como forma realmente resolutiva dos antagonismos), sugere-se: SILVA,  
M.S.; ALVES, A.J.L. O ofício técnico como mediação educativa em O Capital de Marx. Trabalho &  
Educação, volume 29 nº 2, maio-agosto/2020, p. 29-46.  
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A força de trabalho como forma de ser  
das carências e dos meios de satisfazê-las se dê, em sua imediaticidade, na forma  
indiferente e abstrata, mercantil, e, em sua determinação mais profunda, dê-se sob a  
forma capital das forças produtivas e da elaboração dos indivíduos. Este é outro  
aspecto a ser destacado desta totalidade de determinações contraditoriamente  
articuladas diz respeito à expansão do sistema de carecimentos. O que se dá tanto em  
seu conteúdo ampliado, abrangendo crescentemente em seu círculo uma variedade  
impensável em outros tempos, quanto em termos da fixação das carências como  
carecimentos socialmente essenciais. Uma expansão que não somente se dá  
extensivamente e intensivamente, pela quantidade e pela disponibilidade de  
carecimentos e meios de os satisfazer, mas simultaneamente como sofisticação das  
carências e das satisfações como tais. De uma parte, tomar a forma imediata da  
mercadoria, portanto, de valores que expressam como coisas relações de produção de  
riqueza estranhada baseada na alienação de usufruto da força de trabalho, é existir  
como um item de mercado cuja marca essencial é a de realizar-se como valor/mais-  
valor em forma autonomizada, um “mais-dinheiro”. Suprir e atender carecimentos  
humanos é uma função imanente e real, a qual, contudo, encontra-se subsumida como  
mediação determinada e não momento determinante do processo de intercâmbio  
societário. De outra parte, aparecer como forma celular da riqueza capitalista é  
imediatamente se pôr como mediação de reprodução do processo de produção da  
riqueza estranhada no nível da singularidade do consumo individual. A forma tanto da  
circulação quanto do consumo assume por isso, na articulação imanente e objetiva de  
ambos os aspectos da determinação, o caráter de vida social matrizada pelo capital.  
Daí que o consumo apareça, por vezes, como superconsumo, consumismo,  
desperdício de matéria e de tempo, e principalmente como consumo sem sentido de  
tempo de vida individual, cujo impulso motriz ou estímulo provenha de formas  
derivadas de promoção da mercadoria: publicidade, crédito direto etc. O que não  
significa, ao menos do Standpunkt tomado explicitamente por Marx e por sua  
argumentação, numa recusa do consumo como tal, nem mesmo de sua ampliação  
relativa, por si mesmos. Tem-se ao contrário, a tentativa de apreender nas conexões  
contraditórias entre elaboração concreta da individualidade e forma social objetiva de  
produção da vida virtualidades que possam devir possibilidades de transformação pela  
atuação concreta dentro do próprio contexto do estranhamento (ALVES, 2021, p. 155-  
168). Esse aspecto da argumentação crítica típica de Marx é também ressaltado por  
Morilhart quando discute exatamente o caráter contraditório da expansão do sistema  
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dos carecimentos para a existência da força de trabalho:  
Que a lógica do capital se oponha à verdadeira satisfação do “sistema  
de carecimentos sempre mais rico e sempre ampliado”, que engendra,  
dele resta apenas “os carecimentos físicos, sociais etc.”, os quais  
determinam a reprodução normal da potência de trabalho, encontrem-  
se social e historicamente definidos, que estes se modifiquem  
fortemente com o evolver do capitalismo longe de se limitar à simples  
sobrevivência. A venda da força de trabalho supõe indivíduos livres,  
isto é, liberados dos liames de dependência pessoal tais quais os da  
escravidão ou da servidão característicos de relações sociais de  
produção anteriores, as igualmente desprovidos de meios de  
existência próprios, separados das condições de trabalho. Entretanto,  
malgrado esta situação de dependência, eles não estão condenados à  
passividade, os trabalhadores assalariados se esforçam para opor-se  
ao alongamento da jornada de trabalho, à redução dos salários  
perseguida pelos capitalistas, ou nas conjunturas favoráveis para  
melhorar sua situação, suas lutas intervêm ativamente na  
determinação do que é o nível das subsistências necessárias17 (2017,  
93).  
É a abertura do complexo de carecimentos em termos qualitativos sob a vigência  
das exigências de expansão do círculo de realização do valor/mais-valor se dá  
necessariamente na forma do automatismo da relação de (re)produção da própria  
valorização, com toda a sorte de contradições internas à totalidade do processo e de  
aporias cotidianas. Não se trata da complexidade do valor de uso como princípio, mas  
de seu incremento como Wertträger (portador de valor), como portador imediato de  
valor, cuja determinação preponderante mais interna - oculta - é a de ser mais-valor  
dentro da massa de valor produzido. Portanto, a questão da expansão do complexo  
das carências não tem seu ponto determinante em supostos exageros do círculo de  
consumo, e sim da expansão deste em nome da valorização. A solução social real, para  
além do Standpunkt do capital, não é simplesmente um pretenso "encolhimento" dos  
círculos do consumo, o que equivale à defesa da rusticidade pura para os grandes  
contingentes populacionais, que são tão somente produtores subsumidos. A questão  
17  
Que la logique du capital s’oppose à la satisfaction véritable du « système de besoins toujours plus  
riche et toujours élargi » qu’il engendre, il n’en reste pas moins que « les besoins physiques, sociaux,  
etc. » qui déterminent la reproduction normale de la puissance de travail se trouvent socialement et  
historiquement définis, qu’ils se modifient fortement avec l’essor du capitalisme, loin de se borner à la  
simple subsistance. La vente de la force de travail suppose des individus libres, i.e. affranchis des liens  
de dépendance personnels tels que l’esclavage ou le servage caractéristiques de rapports sociaux de  
production antérieurs, mais également dépourvus de moyens d’existence propres, séparés des  
conditions de travail. Toutefois malgré cette situation de dépendance ils ne sont pas condamnés à la  
passivité, les travailleurs salariés s’efforcent de s’opposer à l’allongement de la journée de travail, à la  
réduction des salaires poursuivis par les capitalistes, ou dans les conjonctures favorables d’améliorer  
leur situation, leurs luttes interviennent activement dans la détermination de ce qu’est le niveau des  
subsistances nécessaires.  
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é encontrar no horizonte de atuação tanto a força quanto o "mandato" sociais  
históricos e concretos de transição para além da organização da própria produção  
como processo de produção total do capital. Somente uma efetiva racionalização  
técnico-tecnológica da produção, sob a base do domínio prático de seus produtores  
livremente associados, poderia também se desenvolver como incremento razoável do  
complexo de carecimentos, expresso em valores de uso correspondentes.  
Conclusões provisórias: para além do “burguês” ou de como “trabalhar” se  
tornou autoimagem do capital...  
O conjunto de elementos que emergiu da análise dos quatro aspectos  
determinantes da força de trabalho para o desenho geral da individualidade típica da  
sociabilidade capitalista permitem em alguma medida situar com mais precisão a  
natureza da propositura de investigação que se intentou desdobrar. A força de  
trabalho, tomada em sua dimensão de Daseinsform do capital, descrição de uma forma  
social objetiva de um dado elemento real do processo de produção, a força de  
valorização, faculta igualmente apreendê-la como um “paradigma” ou “protoforma” da  
própria individuação humana nos termos da propriedade privada capitalista.  
Suscintamente, uma vez sendo o capital não apenas uma forma nova de propriedade,  
de organização e de controle privados social da produção, mas também como tal o  
momento preponderante da produção, que este modo se consolide como tal, a forma  
de individuação que lhe corresponde é exatamente a da força de trabalho livre como  
propriedade privada (privada em si e para si e, ao mesmo tempo, de todo resto).  
Certamente, a anatomia da sociedade civil tanto em seus aspectos mais  
imediatos, “dados”, suas determinidades, quanto no que concerne aqueles mais  
essenciais, não apreensíveis ao nível da interatividade social cotidiana, suas  
determinações, exibe como morfologia peculiar uma divisão principal entre  
proprietários e não-proprietários de meios de produção, das condições objetivas de  
produzir. Essa divisão, que implica necessariamente num antagonismo igualmente  
essencial, indica diretamente que evidentemente nem todos participam do processo  
efetivamente trabalhando, produzindo diretamente o mais-valor, valorizando ao  
trabalhar os meios de produção. Então por que se poderia sustentar ser a força de  
trabalho uma espécie de paradigma ou forma de ser generalizável? Primeiramente, há  
que notar um fato importante assinalado por Marx, em diversos momentos nos quais  
ele evoca a figura do capitalista.  
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O proprietário não é como tal, senão na aparência imediata de sua realidade, um  
simples possuidor individual dos meios de produção. Ele o como tal na função social  
de capitalista, como personificação do capital, como persona do próprio capital (MARX,  
1993, p. 6). Como individualidade não é ele que determina em última instância a  
direção do processo, mas a própria forma capital que modula e sujeita todas as demais  
formas dos elementos reais (objetivos e subjetivos) ao mando da valorização do valor.  
E isto é decisivo, na medida em que Marx observa que, por conseguinte, segundo um  
tal entendimento, “pode menos do que qualquer outro responsabilizar o indivíduo por  
relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que,  
subjetivamente, ele possa se colocar acima delas” (MARX, 2013, p. 80). Proprietário e  
não-proprietário são revelados pela analítica das formas sociais objetivas de ser do  
capital como duas contrapartes, dois “partners” de um mesmo processo de produção  
conectados por liames contraditórios de interdependência produtiva: “o capitalista  
como tal é apenas uma função do capital e o trabalhador, uma função da potência de  
trabalho” (MARX, 1974, p. 478). Os termos são claríssimos: der Kapitalist als solcher  
nur Funktion des Kapitals, der Arbeiter Funktion des Arbeitsvermögens ist. O que os  
torna figurações assimetricamente existentes e distribuídas antagonicamente pela  
relação que cada qual tem para com a propriedade e o controle sobre o uso dos meios  
de produção, no entanto, figuras que se remetem reciprocamente na totalidade e por  
meio desse pertencimento estão obrigatoriamente conectadas. Essa determinação  
objetiva tem consequências importantes não somente no nível teórico, mas igualmente  
o extravasam para o nível prático das lutas sociais inscritas nesse mesmo quadro  
antagônico de relações. Capitalistas e trabalhadores assalariados são duas formas  
sociais de existência da individualidade no contexto do capital. Assim, estão ambas de  
modo essencial determinados por este conjunto de relações e são dele formas  
individuais. Por isso, a superação mesma, a transformação revolucionária da totalidade  
de relações, significou sempre no pensamento marxiano a superação de ambas as  
formas sociais de ser sujeito e de suas figurações cotidianas individuais. A poesia do  
futuro, ao menos em Marx, nunca teve sua métrica e sua rima esboçadas pelo trabalho  
assalariado, o horizonte não é da classe assalariada senão como negação concreta,  
por suas relações negativas para com o capital, em referência à propriedade da qual é  
excluída; nunca como determinação positiva, de conteúdo. Isso é tanto mais importante  
quanto se tem vista que não se trata de simples ligações entre indivíduos e grupos,  
não obstante o sejam conexões determinadas entre estes, mas de relações recíprocas  
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de proporcionalidade contraditória, uma vez mediadas pela forma de ser  
preponderante de coisas, sujeitos, atividades, processos, a forma da valorização do  
valor.  
Neste sentido, conquanto sua inegável dimensão ideal, no limite, falsificadora,  
uma vez que o capital, segundo seu fetiche peculiar, aparece ele mesmo como um  
sujeito social “trabalhando”, amiúde a própria figura de sua persona aparece no limite  
da superfície do processo também “trabalhando”. Por certo, o capitalista como  
personificação do capital possui como tal um tipo específico de atividade (MARX,  
1970, p. 20 e 45), esta figura é também uma negação, conquanto aparente, do ócio;  
a ela pertence é importantíssima função de comandar a totalidade das determinações  
de coação social sobre a figura que lhe é antagônica. Não por acaso, a história do  
modo de produção capitalista em suas dimensões ideológicas18 construções literárias  
e filosóficas que imputavam à figura genérica do burguês a “virtude” do trabalho, de  
Hobbes às tendências liberais, o proprietário de si aparece imediatamente em  
atividade de apropriação de tudo, seja por um impulso quase inercial de sua natureza  
seja operando o “milagre” da transformação do mundo pelo “trabalho de seu corpo e  
pela obra de suas mãos”. Na atualidade inclusive reemergem com forças e fisionomias  
variadas os discursos e práticas vinculados a tal imagem. Como se pode observar, por  
exemplo, nas diversas modalidades de ideologia do empreendedor, em que o ser  
proprietário da riqueza aparece conectado com o “trabalhar” em geral, atividade cuja  
condição necessária e suficiente seria a aquela de ser proprietário de si mesmo e de  
suas forças.  
É bastante instrutivo a este respeito figurações ideais vinculadas ao indivíduo  
burguês de modo antediluviano na história do próprio capitalismo, conquanto sua  
evidente e inegavelmente real função político-ideológica de suavização e falsificação  
dos antagonismos, não são simplesmente imposturas fabricadas sob medida (ainda  
que sua produção on demand também se verifique tanto no ambiente midiático quanto  
18  
Ideologia, aqui não remete necessariamente ao conceito de “falsa consciência” ou de “falsidade”  
contrapostas abstrata e absolutamente ao entendimento científico e conceitual, mas antes às diversas  
formas de ideação nas quais sujeitos e grupos fixam na forma de ideais gerais certos traços de sua  
situação objetiva, de modo que estas lhes sirvam até mesmo como orientações práticas na luta social.  
A ideologia pode ser entendida assim de uma maneira, cum granu salis, também “neutra” em relação  
ao seu conteúdo, ainda que nunca com relação aos indivíduos e grupos dos quais é uma forma ideal  
de identidade social. A este respeito, nos aproximamos aqui um tanto da tematização lukacsiana  
desenvolvida no segundo volume de seu Para uma ontologia do ser social (LUKÁCS, 2013, P. 464-575).  
não obstante não necessariamente se alinhe com esta de modo integral.  
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acadêmico). Curiosamente, mas de maneira alguma casualmente, aquelas autoimagens  
correspondem a uma forma social transitiva da própria força de trabalho moderna;  
àquela do artesão e do camponês recém liberados das conexões de assujeitamento  
imediato às formas de propriedade privada características do mundo feudal em  
dissolução. A este respeito Marx destaca um aspecto desta forma transicional  
rapidamente superada como momento preponderante da força de trabalho no capital  
assinalando acerca do artesão que “ele pode se pagar uma terceira parte como  
proprietário fundiários, assim como o capitalista industrial quando ele trabalho com  
seu próprio capital, paga-se a si mesmo um lucro e considera isso como alguma coisa  
que ele se deve não como capitalista industrial, mas [enquanto] capitalista tout court”  
(MARX, 1974, p. 477). A antiga imagem heroica do burguês dos inícios do capital, não  
obstante expressando na aparência muito do funcionamento do capital comercial  
independente, tem a ver com essa figuração exótica. A aparência expressiva da figura  
burguesa real que se vale do trabalhador capitalista de si como imagem de si mesma.  
Nesse sentido,  
A determinação (econômica) social dos meios de produção na  
produção capitalista que deles faz a expressão de uma relação de  
produção determinada está a tal ponto imbricada com a existência  
material desses meios de produção como meios de produção, e a tal  
ponto inseparável daquela no modo de representação da sociedade  
burguesa, que esta determinação (esta categoria) é igualmente  
utilizada mesma lá onde a relação a contradiz diretamente (MARX,  
1974, p. 477).  
Essa determinação como capital aparece como forma imediata da existência dos  
meios de produção como condições objetivas do trabalho e, por isso, apareça como  
um aspecto imanente delas como coisas ou formas de existências objetivas úteis ao  
trabalho; por efeito reverso a própria persona do capital é transfigurada ideal e  
praticamente na sociabilidade ela mesma trabalhando de forma geral, não obstante  
não seja sua função real a produção objetiva do valor/mais-valor como tal. Conquanto  
não se passe de fato uma relação entre trabalho e capital em sentido estrito, a vigência  
contraditória da gesellschaftliche Bestimmtheit der Produktionsmittel faz com que tal  
aparência tenha igual afirmação.  
Em termos das expressões ideológicas da propriedade privada capitalista, tudo  
se passa, ou é assim apresentado, como se a totalidade dos indivíduos tivesse uma  
relação social deste tipo com as condições de sua objetivação. Como se a sociabilidade  
fosse constituída por indivíduos de uma grande família Robinson, os quais ao final de  
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suas operações de intercâmbio contabilizassem em solidão a grandeza de seus  
despojos. Riqueza que seria obtida por cada em “seu” trabalho. Novamente, a  
figuração artesã desempenha aqui um papel proeminente de referencial:  
Mas, se ele mesmo pode se apropriar do produto inteiro de seu  
próprio trabalho, ao invés de um terceiro, um mestre [patrão] que se  
apropria do excedente em valor de seu produto a partir do preço  
médio, f.i. [por exemplo] de sua jornada de trabalho, ele deve isto não  
a seu trabalho o que não diferencia de outros trabalhadores mas  
à possessão dos meios de produção. É somente graças ao fato de ele  
ser proprietário daqueles é que se ele se apodera de seu próprio  
trabalho, e se comporta assim, frente a si mesmo como trabalhador  
assalariado, como seu próprio capitalista (MARX, 1974, p. 478).  
Nos terrenos expressivos da imediaticidade, objetiva e subjetivamente, ocorre  
uma inversão característica na qual a relação dominante se apresenta por aquela que  
é progressivamente uma exceção econômica em termos da história do  
desenvolvimento do modo de produção. A vigência individual das figuras é  
socialmente determinada, corresponde a um determinado Standpunkt objetivo. Como  
Marx aponta em outro manuscrito importante, Resultate des unmittelbaren  
Produktionsprozesses, ao observar a existência de uma mistificação imanente à relação  
capital como tal: “A força de preservação de valor do trabalho aparece como a força  
de autopreservação do capital, a força de criação de valor do trabalho como a força  
de autovalorização do capital e, em geral, conceitualmente, o trabalho objetivado como  
o usuário do trabalho vivo” (MARX, 2022, p. 89). É bastante elucidativo como Marx  
indica aqui o trabalho a produção como o elemento categorial em torno do qual  
passa a girar a relação entre as figuras pessoais (MARX, 2022, p. 89-90). Trabalho  
evidentemente na forma social determinada de processo de valorização e não em seu  
caráter social de produção de valores de uso ou de atividade de objetivação humana.  
Não obstante, mesmo de maneira subsumida, pela primeira vez a atividade de  
produção da vida toma o lugar central da vida social à luz do dia, como assunto  
principal da ágora. Não mais delimitado como esfera à parte dos assuntos gerais e sim  
como o assunto geral por excelência. É neste sentido que se pode inclusive nomear o  
entendimento da produção como economia política. Coisa que na Antiguidade seria  
necessariamente um oximoro; lá, a produção, como esfera apartada da polis, reduzida  
ao oikos, seria assunto de uma oikonomos que a pensa, claro, submetida à ordem da  
comunidade política, mas como um assunto externo a ela. O capitalista personifica a  
nomos da acumulação como processo que se reproduz no tempo de maneira  
indefinida, ao menos a priori, e determina o ritmo e os modos de organização do  
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trabalho para que nele se verifique a produção do mais-valor. A existência em  
gegenüber da atividade humana e condições objetivas são indicados aqui por Marx  
como jedem historischen und spezifisch gesellschaftlichen Charakter des  
Produktionsprozesses (MARX, 1970, p. 46), uma vez que poderiam verificar-se até  
mesmo nas formas de atividade produtiva mais simples ou próximas à pura  
determinação biológica. Esta unidade interativa diferenciada, uma relação entre termos  
que não se identificam nem perdem seu caráter próprio, poderia ser observada, por  
exemplo, na atuação pragmática de macacos-prego que repetem o mesmo  
comportamento de quebrar o coquinho com a pedra uma vez se dê neles a percepção  
do sucesso operativo. Evidentemente, não se percebe ainda traços propriamente  
teleológicos, mas antes de operações eficientes sobre um material usando outro, sem  
que necessariamente se instaure alguma técnica propriamente dita, o domínio  
consciente e em desenvolvimento de estratégias de utilização.  
A atuação teleológica como tal, que molda material e objetivamente tanto o atuar  
quanto os meios de sua atuação, é uma característica especificamente humana. Nela  
se fundamenta o desenvolvimento histórico diferenciado da própria interatividade  
social. Uma função diretiva que não necessariamente se identifica ou se confunde com  
a administração direta, não obstante, em suas origens históricas, dependendo dos  
ramos da produção capitalistas, tanto remotas quanto mais recentes, a figura do  
"empreendedor" fosse presente de maneira importante. Tanto é que no  
desenvolvimento capitalista, cada vez mais tais funções diretivas imediatas são  
tornadas ofícios intermediários entre o exercício da propriedade capitalista como tal e  
aquele da produção do valor/mais-valor propriamente dita. No seu desdobramento  
histórico mais recente, da passagem do século XIX para o XX, viu-se emergir uma  
figuração um tanto quanto desconcertante: o corretor ou investidor que não é  
propriamente ainda o detentor direto da propriedade, mas nem tampouco é mais o  
simples administrador remunerado academicamente formado. É de certo modo um  
"híbrido" social que vive da administração das finanças e da movimentação dos títulos  
de propriedade - ações - nas bolsas, detendo um dado quinhão da valorização na  
forma quase amorfa dos "bônus". Aqui, o mais-valor, ao menos em parte, passa de  
uma mão a outra: do comprador capitalista da força de trabalho às figuras que  
negociam dinheiro na função capital, na forma de juros.  
Todo este conjunto de determinações intrincadas de remetimento objetivo entre  
indivíduos vivos e ativos em relações sociais determinadas, formas socialmente  
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A força de trabalho como forma de ser  
objetivas de sua atividade e das condições reais desta atuação produtiva e os meios  
de produção em sua materialidade, conforme se articulam como um modo de produção  
da vida histórico específico é também aquele fez emergir a possibilidade de intelecção  
do ente humano como produtor de sua própria existência. E isso como um caráter tão  
universalizável quanto o de pessoa. Como bem nota o estudioso brasileiro da obra  
marxiana, J. Chasin, ao comentar um trecho já referido do capítulo 5 de O Capital, se  
indaga o porquê de Marx considera de saída o trabalho independente de qualquer  
forma social determinada:  
Para não ser perdida a natureza do trabalho, sua positividade  
enquanto atividade humana vital.  
(...) a positividade (sua efetividade ou operosidade) universal do  
trabalho enquanto atributo vital inalienável do homem,  
independentemente de suas formas concretas, que se apresentam na  
forma do trabalho alienado.  
É a determinação universal do trabalho, o traço de sua legalidade  
última, sua determinação mais geral e essencial, dimensão que não  
desaparece nem mesmo sob suas formas concretas mais negativas.  
(CHASIN APUD VAISMAN, 2006, p. 25).  
Deste modo, a sociabilidade capitalista, em e por seus nexos de contraditória  
complexidade é o primeiro modo social no qual emerge como caráter geral o ser ativo  
dos indivíduos humanos frente às forças e aos elementos naturais. Assim, “(...) ao  
trabalhar, ao mudar a forma da natureza, ao construir sua própria mundaneidade, o  
homem, ele próprio, por meio de seu próprio trabalho, transforma a sua própria  
natureza. Ou seja, de ser natural para social (...)” (CHASIN APUD VAISMAN, 2006, p.  
27). O que de modo prático e refletido se torna verdadeiro senso-comum aparece  
caracterizado de maneira realmente determinada na imanência de suas determinações  
contraditórias no pensamento marxiano como entendimento categorial que matriza e  
orienta conceitualmente aqueles das diferentes dimensões e momentos da vida social.  
Categorialmente, a relação humana com o mundo aparece como eminentemente  
prática em seus contornos gerais e particulares, articulados na apreensão crítica de um  
modo histórico-social de produzir a própria vida, um dado conjunto de relações de  
mediação objetiva e sensível da atividade produtiva das coisas e de si mesmo, mesmo  
sob a vigência das formas de estranhamento típicas do capital. Por isso, “(...) dizer,  
pois que o homem e o mundo são atividade sensível, que por criar seu mundo cria a  
si mesmo, é determinar o homem como a criatura criadora de seres (...) na plenitude  
da produção da riqueza, entendida por sua essência subjetiva que é o trabalho”  
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(CHASIN APUD VAISMAN, 2006, p. 30). Deste modo Chasin indica aqui a emergência  
social contraditória a si do ser humano como um ente que cria entes, no contexto da  
emergência da forma capitalista de propriedade privada, o que representou prática e  
cientificamente foi exequível “à reflexão pode se dar conta, potencialmente da  
verdadeira problemática do ser” (CHASIN APUD VAISMAN, 2006, p. 30). Este ente que  
se expressa na sua atividade fundamental, no sentido primário da qual todas as outras  
não existem, que é produzindo e reproduzindo o seu corpo materialmente. Assim foi  
facultado ao pensar uma forma que está, portanto, baseada não em conceitos sobre  
uma concepção genérica, transcendental ou naturalista de ser humano, mas sustentada  
na compreensão crítica da forma social da atividade dos indivíduos humanos  
constituindo-se a si mesmos a partir das suas diversificadas condições objetivas de  
existência.  
O ente humano assim se constrói em sua relação determinada com os elementos  
da natureza, estabelecendo certos padrões de atividade, segundo condições  
socialmente elaboradas e delimitadas em seu remetimento com a organização da  
formação societária particular nos quais vivem e atuam conjuntamente os indivíduos.  
Formas de sociedade que acabaram por se desenvolver consoante a dados modos de  
apropriação e controle privados das condições objetivas de produção, do qual a  
capitalista constitui uma de suas modalidades mais recentes. Neste modo específico  
de propriedade privada se observa como desdobramento bastante característico uma  
forma de expressividade social das relações contraditórias de interpendência societária  
como propriedades das próprias coisas; os produtos materiais espelham relações  
humanas como se fossem características delas mesmas e modulam o comportamento  
dos indivíduos consoante tal espelhamento. Forma de expressividade estranhada que  
se realiza como como uma espécie peculiar de tomar pelo avesso a determinação  
materialmente existente. Assim, retomando uma passagem acima tratada, “Essa relação  
é já, na sua simplicidade, uma inversão: personificação da coisa e coisificação da  
pessoa; o que distingue, com efeito, esta forma de todas as precedentes, é que o  
capitalista não o trabalhador em virtude de alguma qualidade de sua pessoa, mas  
unicamente na medida em que ele é ‘capital’, sua dominação é somente aquela do  
trabalho objetivado sobre o trabalho vivo, do produto do trabalhador sobre o próprio  
trabalhador” (MARX, 1974, p. 457). Como desde 1844, vê-se também na fase madura  
de elaboração da crítica da economia política, o tema da inversão entre os  
comportamentos sociais de sujeito e objeto como expressões da forma peculiar de  
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A força de trabalho como forma de ser  
relação social de produção é uma questão central. Delimitada pelas proposituras de  
apreensão e explicitação da totalidade na qual estão imersos os termos (indivíduo  
produtor e meios de produção), bem como de esclarecimento dos momentos  
particulares dentro dos marcos dos quais concretamente "funcionam", assumindo esta  
ou aquela forma social objetiva de ser. No caso, uma forma preponderantemente  
estranhada, não mais apenas, e primeiramente como se dava para Marx em 1844 –  
, para com a riqueza produzida. Este estranhamento tem origem num outro, fundado  
na relação pela qual o conjunto de capacidades de produção do sujeito vivo  
transmutado em mercadoria, a Arbeitskraft, é alienada num modo bem peculiar em  
comparação com os demais elementos do processo de produção do capital (meios de  
produção, as condições objetivas de realização de processo de trabalho/valorização.  
Quais as consequências para a estrutura da individuação humana são possíveis  
de reconhecer nessa processualidade estranhada? A alienação de si, ou de uma parte  
essencialíssima de si - suas condições reais e corpóreas de interagir no e com o mundo  
-, traz quais implicações para a constituição da forma moderna de ser social dos  
indivíduos vivos e ativos? Esta série de questões reais que se desdobram em  
interrogações em contextos diferentes, ainda que originariamente tributários, dos  
debates em torno das aporias da economia política e de suas consequências de caráter  
geral. É possível mesmo rastrear, de modo indiciário, os ecos dessas questões mesmo  
em formulações que por sua aparência estariam bem distantes deste espaço  
conceitual. Existem determinados elementos que se consubstancial como indicações  
da presença da categoria força de trabalho alienada (veräußertete) e do entfremdete  
Arbeit em algumas das mais importantes formulações filosóficas posteriores a Marx.  
Duas, em especial, situadas no registro teórico-metodológico da fenomenologia,  
que se constituíram em proposituras de construção ontológica das relações entre  
individualidade e mundo. Ambas, não casualmente, abrigaram em alguma medida  
problemáticas que tocam em momentos centrais da integração ativa do humano no  
mundo e na elaboração de um mundo próprio ao humano. Refere-se aqui a Heidegger  
e Sartre, autores que notadamente buscaram abranger também certos aspectos da  
atuação do humano em seu caráter moderno como demarcações, no fundo, existenciais  
e antropológicas. Uma tarefa que o deciframento da força de trabalho como  
Daseinsform do capital implica é igualmente o enfrentamento analítico de tais  
proposituras, tanto em função de sua importância inerente como construções  
filosóficas que se postularam como uma ontologia do humano, quanto também em  
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função de sua influência em cujo enraizamento muito da reflexão e da cientificidade  
sobre o social acabaram encontrando arrimo.  
A abordagem de tais configurações teóricas, como de outras de igual teor e  
consistência, não terá de maneira nenhuma a pretensão de reduzir ambas as  
proposituras a simples expressões filosóficas da força de trabalho como categoria  
filosófica. Esse tipo de procedimento configuraria tanto uma violência conceitual às  
elaborações heideggeriana e sartreana quanto um barateamento da configuração  
conceitual complexa da força de trabalho conforme tematizada por Marx, reduzindo-a  
a uma simples noção. Vislumbra-se, diferentemente, o levantamento de certos pontos  
característicos daquelas elaborações conceituais que, a seu modo e em sua  
consistência discursivos, expressam traços determinantes e essenciais que a categoria  
cunhada e delimitada por Marx permite inferir para a fisionomia dominante da  
individualidade do capital. Nesse sentido, somente como sinalização demasiadamente  
sumárias e ainda abstratas, podemos citar dois aspectos daquelas formulações  
filosóficas que apresentam esse potencial expressivo.  
De uma parte, temos a configuração do existir humano como Dasein em geral,  
ou melhor como considerado como único “ser-aí” lançado no mundo, que a partir de  
sua estruturação existencial, supostamente ontológica, porque apenas sustentada pelo  
um tipo de feeling intuitivo pré-teorético, é analiticamente privilegiado como centro  
de ontologia. Esse ente isolado e solitariamente tomado se articula com o mundo pela  
série de suas relações flagradas no aparecer mesmo dessas conexões existenciais. As  
condições de seu existir são tomadas já na positividade de seu aparecer, como  
fenômenos no fundo para o Dasein. Tal ente, ou forma-ente, estatui ou estabelece suas  
formas de relação a partir de si, tanto mais se afastando de seu sentido originário  
quanto mais se ligue aos entes em sua exterioridade. Como não ver aqui traços de  
uma crítica da inautenticidade, do mundo estranhado em coisas e relações de perda?  
Essa tematização, conquanto até acolha potencialmente a esfera de um imediato do  
existir, na pré-compreensão, o faz, primeiramente tomando-o já como da esfera  
puramente interior da estrutura do ente, como experiência estética, e, em segundo  
lugar, sem uma remissão à praticidade da relação como dado primário, a produção da  
vida comparece por isso no contexto circunscrito daquela interioridade. A existência  
primária desse Dasein, humano, é um tipo de pertencer a si mesmo. A crítica ao  
estranhamento, por não ser histórica ou não compreender a história de  
estranhamentos humanos, é feita com base no esquema genealógico do esquecimento  
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A força de trabalho como forma de ser  
e da recuperação (HEIDEGGER, 1986, p. 64-65 e 79).  
De outra parte, temos uma propositura que toma a estrutura não como  
transcendentalmente dada ao existir, e sim sob a matriz da atuação, da ação situada  
frente à mundaneidade. Aqui, denominada de liberté, essa estrutura existente não é  
definida como ente. É antes uma existência pura, um ato-puro de ser, que define suas  
relações a partir de si como impulso, como pulsão pura, energia em movimento, e por  
meio dessa forma peculiar a ela de estar-aí se define a cada momento. É a ação humana  
o centro da análise do conjunto fenomênico que aparece e parece a esta existência de  
um presente permanente. Por isso, seu ser que não é uma propriamente uma estrutura,  
mas se estrutura ao ir-sendo, remete antes à compulsão por dar seu ser, um nada a  
priori, à esfera do mundo, aqui o terreno propriamente do ser. Até por imputar ao  
ontológico humano uma estrutura em construção e revolucionamento permanentes, a  
reflexão sartreana deixa antever o quanto exprime em alto grau de abstração certos  
traços da individuação típica do capital, convertida em condicionalidade dinâmica do  
humano como tal. Remissão imediata a si, relação de pura exterioridade com as coisas,  
o caráter estranho – “opaco” – do ser com o que se defronta, assim como uma  
Arbeitskraft abstratamente tomada somente pode ser concebida em termos de sua  
atuação e da atualidade de seu agir, a sua interioridade essencial imediatamente  
contraposta à mundaneidade como determinação particular de si (SARTRE, 1943, p.  
9-20 e 29-36).  
Um ponto saliente em ambos é tanto a interioridade radical do auto-fundamento  
do humano, um recesso do feeling, do intuir pré-teorético, pré-compreensão ou  
consciência, quanto, e principalmente, a instância realmente originária de ser corpo é  
reduzida imediatamente à corporeidade, ao sentir-se corpo de um self qualquer. Ser  
Gegenstand materialmente circunscrito só é admitido em segundo potência e a duras  
penas, pagando tributo já ao recurso metodológico à descrição fenomenológica da  
estrutura interiorizada.  
Desta maneira, poder-se-á melhor evidenciar o quanto a determinação da  
individualidade pela forma peculiar de estranhamento engendrado originariamente  
pelo modo peculiarmente moderno de alienação da força de trabalho reverbera em  
âmbitos diferentes e em múltiplas dimensões da vida social. Da maneira pela qual ecoa  
universalmente o caráter necessário da relação de proprietário privado de mercadoria  
em relação a um momento essencial de si é definido, no fundo, por uma penúria  
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essencial. Porquanto apenas sob a disposição de ceder o controle de seu uso, de  
aliená-lo, tem essa propriedade valor para o próprio trabalhador. O que se apresenta  
imediatamente como afirmação de uma livre vontade de si a si se desvela como  
realidade da derrelicção com respeito a sua própria condição real de objetivação. A  
propriedade somente vige como denegação virtual, mas que precisa se efetivar para  
ser ato soberano de proprietário, da posse de suas potências essenciais. O trabalhador-  
livre por isso é uma categoria que se define pela pauperização ontológica, uma  
determinação que, conquanto possa não aparentar esse potencial teor derrelito, por  
conta de variações em termos de grandeza relativa (o quantum de valor comparativo  
se afere de uma para outra força de trabalho), é por sua definição propriedade de sua  
própria pobreza.  
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Como citar:  
ALVES, Antônio José Lopes. A força de trabalho como forma de ser: protoforma da  
individualidade do Capital em Marx. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp. 156-  
231, jun-dez. 2023.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 156-231 - jul-dez, 2023 | 231  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.693  
O Irracionalismo e sua Teoria do Conhecimento:  
Reação Agnóstico-relativista de Guerreiro Ramos  
ao Marxismo (1939-1955)  
The Irrationalism and its Theory of Knowledge: Guerreiro Ramos’  
Agnostic-Relativist Reaction to Marxism (1939-1955)  
Leandro Theodoro Guedes*  
Elcemir Paço Cunha**  
Wescley Silva Xavier***  
Resumo: O objetivo do artigo é determinar as  
evidências do irracionalismo nos textos iniciais  
de Alberto Guerreiro Ramos com respeito à  
teoria do conhecimento, considerando o período  
de preparação do autor para seu posicionamento  
posterior na fenomenologia. Para tanto, foi  
realizada análise imanente dos textos  
selecionados (1939-1955). Os resultados  
sugerem que as evidências do irracionalismo  
compareceram pela adesão do autor ao  
agnosticismo relativista presente nas posições  
Abstract: The objective of the article is to  
determine the evidences of irrationalism in  
Alberto Guerreiro Ramos' early texts with  
respect to the theory of knowledge, considering  
the author's preparation period for his later  
positioning in phenomenology. To this end,  
immanent analysis of the selected texts (1939-  
1955) was performed. The results suggest that  
the evidences of irrationalism appear through  
the author's adherence to relativistic  
agnosticism which is found into the positions of  
existentialism and phenomenology, filling a gap  
in the research regarding the Brazilian  
sociologist's thought. This adherence was a  
reaction to Marxism elected as an adversary to  
be fought, just as it had been confronted by  
irrationalist tendencies in philosophy.  
do existencialismo  
e
da fenomenologia,  
preenchendo assim uma lacuna na pesquisa a  
respeito do pensamento do sociólogo brasileiro.  
Tal adesão se deu em circunstância de reação ao  
marxismo elegido como adversário a ser  
combatido, da mesma maneira em que fora  
confrontado por tendências irracionalistas na  
filosofia.  
Keywords: Alberto Guerreiro Ramos. Theory of  
knowledge. Irrationalism. Marxism.  
Palavras-chave: Alberto Guerreiro Ramos. Teoria  
do conhecimento. Irracionalismo. Marxismo.  
Introdução  
Autor de relevante peso nas ciências sociais no Brasil, Alberto Guerreiro Ramos  
(doravante, Ramos) legou obras com significativa audiência no país. Estudos como A  
redução sociológica (1958), Problema nacional do Brasil (1960), Mito e verdade da  
*
Professor do Curso de Tecnologia em Logística da Faculdade de Educação tecnológica do Estado do  
Rio de Janeiro (FAETERJ) e Doutorando em Administração pela Universidade Federal de Viçosa (UFV)  
**  
Professor do Programa de Pós-Graduação em Administração, Universidade Federal de Juiz de Fora  
(UFJF). Pós-doutorando em Economia no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional –  
CEDEPLAR/ UFMG  
*** Professor do Programa de Pós-Graduação em Administração, Universidade Federal de Viçosa (UFV)  
Verinotio  
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nova fase  
     
O Irracionalismo e sua Teoria do Conhecimento  
revolução brasileira (1963) e A nova ciência das organizações (1981), procuraram  
sistematizar as bases para um pensamento político e sociológico nacional. Trata-se de  
um autor frequentemente retomado e exaltado para confrontar os problemas  
hodiernos, tais como o desenvolvimento econômico e social do país, construção de  
modos alternativos de estruturação dos espaços de interação social, tendo por eixo  
“racionalidade substantiva” não convergente ao predomínio do “mercado”, crítica à  
importação de conceitos não coerentes com o contexto brasileiro, entre outros.  
Suas preocupações abrangeram outros temas igualmente importantes e que  
tocam os próprios fundamentos de seu pensamento. A teoria do conhecimento  
(gnosiologia), por exemplo, foi essencial à sua posição no existencialismo de  
inclinações fenomenológicas cujo teor, considerado crítico do pensamento dominado  
pelas tendências funcionalistas e neopositivistas, compareceu com grande vigor em  
suas obras dos anos de 1950, como a coletânea de artigos Introdução crítica à  
sociologia brasileira (1955) e o notório livro A redução sociológica (1958), que  
buscava inserir a perspectiva nacional como um aspecto determinante na produção da  
sociologia.  
Ainda que tenha sido uma marca indelével no pensamento do autor mesmo nas  
suas obras mais tardias, o posicionamento no existencialismo e na fenomenologia teve  
uma trajetória precedente. Não seria exagero dizer que a primeira aproximação de  
Ramos com a teoria do conhecimento (sobretudo ligada às tendências neokantianas)  
foi crucial em obras anteriores tendo em vista a formação das bases das incursões  
posteriores objetivadas naquelas notórias obras. Assim, o período de aproximação  
com a teoria do conhecimento em particular, especialmente entre os anos de 1939 e  
1955, foi fundamental para a preparação do terreno intelectual para a sua posição  
gnosiológica posterior demarcada na fenomenologia.  
Não é acaso certa convergência entre Ramos e algumas tendências denominadas  
“críticas” em matéria gnosiológica. Um dos tangentes debates principais se concentra  
na tentativa de oferecer alternativa ao chamado “paradigma funcionalista” como forma  
cabal das tendências positivistas e neopositivistas dominantes (PAES DE PAULA,  
2016). Esse debate permanece candente na produção nacional e internacional, em que  
as contribuições de Ramos acumulam audiência também fora do país (CANDLER;  
VENTRISS, 2006).  
Essas contribuições, entretanto, não passaram sem algum escrutínio importante,  
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Leandro Theodoro Guedes, Elcemir Paço Cunha, Wescley Silva Xavier  
especialmente atinente às suscitadas problemáticas do campo da teoria do  
conhecimento. Pode-se destacar o apontamento ao aspecto utópico da obra em que  
o autor perfez preferências gnosiológicas que deixaram de lado a possibilidade de  
desvelamento das contradições da sociedade capitalista (FARIA, 2009). Nesse sentido,  
Ramos teria oferecido uma “fenomenologia crítica” cujo “alcance é ao mesmo tempo  
ineficaz, na medida em que acomoda o que é ao que se deve agregar, e ilusória, na  
proporção em que pretende firmar um paradigma de racionalidade substantiva  
descolado do real e concentrado no pensamento” (FARIA, 2009, p. 441). As limitações  
identificadas, como é possível observar, apontam diretamente para os fundamentos no  
plano da teoria do conhecimento.  
Com relação ao aspecto particular do conceito de “homem parentético”, por  
exemplo, o diagnóstico é semelhante, recomendando o seu caráter “hipotético”, como  
escreveram Gurgel e Justen (2020, p. 85). Imergido nas tendências da fenomenologia  
de Husserl, tal homem é “aquele que consegue se colocar em solidão, centrando-se  
em si mesmo, para em mergulho ou salto (Bergson), ou ainda “lançando-se às  
profundezas”, libertar-se das prescrições do mercado de onde chega todos os dias,  
retornando da luta pela sobrevivência” (GURGEL; JUSTEN 2020, p. 84). A remissão aos  
problemas gnosiológicos é, como novamente se vê, persistente nesse escrutínio mais  
recente.  
Ainda nessa direção, já foi sugerido que, em seu estágio nacionalista, além de  
um traço politicista e de uma posição que reitera a incapacidade política na  
participação das camadas populares na formação do Brasil moderno (RAGO, 1992;  
RAGO FILHO, 1998), o pensamento de Ramos operou “uma espécie de tentativa de  
‘reduzir’ o existencialismo do plano do indivíduo para o plano da ‘nação’, isto é uma  
tendência a ‘aplicar’ o existencialismo à nação brasileira, o apelo à constituição do ‘ser  
nacional’ como ‘ser para si’” (PÚBLICA, 1983, p. 83), em flagrante problemática  
metodológica decorrente de seus fundamentos na teoria do conhecimento. Ao  
considerar a participação de Ramos no ISEB, cujo nascimento se deu por meio da  
influência direta dos difusores do existencialismo no Brasil, Paiva (1979, p. 60)  
acrescentou que, quando Ramos defende uma sociologia nacional, o culturalismo se  
combina com o vitalismo orteguiano e com o existencialismo”.  
Muitas correntes teórico-gnosiológicas aludidas (Husserl, Bergson etc.) possuíam  
vínculos claros com a filosofia irracionalista (LUKÁCS, 2020). Aspectos como a crítica  
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O Irracionalismo e sua Teoria do Conhecimento  
romântica e a apologia indireta do capitalismo, a pseudo-objetividade, a criação de  
mitos e a valorização da intuição são traços que perfizeram, por exemplo, o elo entre  
o existencialismo, a fenomenologia e o irracionalismo (LUKÁCS, 1968). Não por menos,  
Gorender chegou a questionar certa combinação de tendências em A redução  
sociológica. O autor anotou que naquela consagrada obra de Ramos uma  
“interpretação de dados estatísticos sobre o crescimento da indústria nacional se  
associa, sem transição, às categorias elaboradas pelo subjetivismo exacerbado de  
Husserl, Heidegger e Jaspers. Pode ser considerada legítima tão estranha simbiose?”  
(GORENDER, 1996, p. 210).  
É importante levar em conta que a trinca imediatamente aludida, e outras  
referências de fundamento das posições de Ramos mencionadas antes, possuem  
aderência às filosofias irracionalistas, sobretudo no tema da teoria do conhecimento  
(LUKÁCS, 2010). Por esse motivo, não é uma indicação que possa ser ignorada a  
sugestão de que, em Ramos, uma tal “utilização da fenomenologia apresenta uma  
característica peculiar, (...) como decadência filosófica do irracionalismo moderno, pois,  
apesar de sua aparência crítica e metódica quanto ao positivismo, eram revestidas pela  
consciência burguesa e seu atomismo individualista” (QUEIROZ, 2016, p. 270).  
Cabe destacar que o problema do irracionalismo não se esgotou com a derrota  
do nazismo. Assim como Lukács (2020), que sublinhou, no epílogo de A destruição  
da razão, a renovação do irracionalismo em sua difusão no pós-guerra, outros autores  
têm chamado a atenção para as suas tendências contemporâneas. É possível destacar,  
nessa direção, as assim chamadas correntes pós-modernas e decolonial que se  
desenvolveram a partir da filosofia irracionalista alemã e que comparecem hoje com  
notória penetração (VAISMAN; FORTES, 2022; FOSTER, 2023; PENNA, 2022/2023;  
WOLIN, 2004). Assim, parece razoável considerar a possibilidade de manifestações da  
filosofia irracionalista também em países como o Brasil, não apenas em razão de sua  
difusão e renovação, como também por decorrências das históricas regressividades  
objetivadas no país (CHASIN, 1978).  
Essas considerações, sem exceção, remetem a atenção para as questões ligadas  
à adesão de Ramos a específicas tendências da teoria do conhecimento. E, nesse  
campo, restaram sugeridas apenas alusões à presença de inclinações de Ramos às  
filosofias irracionalistas. A questão segue aberta e é de suma importância trazer à  
baila, com recursos probantes, as tendências irracionalistas na elaboração do autor em  
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nova fase  
Leandro Theodoro Guedes, Elcemir Paço Cunha, Wescley Silva Xavier  
sua primeira aproximação com a teoria do conhecimento uma vez que tem repercussão  
no posterior itinerário intelectual do sociólogo brasileiro e, por decorrência, no  
enfrentamento de questões contemporâneas para as quais seu pensamento é evocado.  
A contribuição principal, portanto, está associada ao aprofundamento do escrutínio a  
partir da investigação daquelas tendências irracionalistas nos primeiros materiais de  
Ramos em que os problemas do conhecimento se despontaram. Assim, a problemática  
deste artigo é responder à seguinte questão: quais são as evidências do irracionalismo  
presentes na elaboração intelectual de Ramos em sua primeira aproximação com a  
teoria do conhecimento?  
Com efeito, o restante do artigo está dividido em quatro partes. Na parte a seguir  
serão apresentados os aspectos metodológicos fundamentados na “análise imanente”  
dos textos selecionados de Ramos. Na parte seguinte, faremos uma breve  
caracterização histórica do irracionalismo e sua teoria do conhecimento. Na sequência,  
trataremos criticamente de iluminar as tendências do irracionalismo presentes nos  
materiais selecionados. Por fim, apresentaremos as considerações finais do artigo.  
Aspectos metodológicos  
A pesquisa realizada foi fundamentada na tradição materialista do estudo das  
formações ideais ou formas de consciência. Nessa tradição, se localiza também o  
estudo dos “objetos ideológicos” (CHASIN, 1978).  
Esse estudo é geralmente operacionalizado a partir do chamado “tríptico  
metodológico” (CHASIN, 1978; LUKÁCS, 2020) que envolve: 1) a análise da gênese,  
ou a origem histórico-social das formações ideais em suas condições objetivas de  
possibilidade, 2) a análise da função social das formações ideais que podem ou não  
ser convertidas em ideologias em condições adequadas, envolvendo a missão social,  
as finalidades declaradas ou não, e a efetivação prática de tais formações ideais nos  
contextos sócio-históricos, e, por fim, 3) a análise ou crítica imanente.  
Os elementos desse tríptico podem ser considerados separadamente (CHASIN,  
1978; PAÇO CUNHA, 2022/2023). Na presente pesquisa não foram realizadas a  
análise de gênese e da função social tendo em vista as limitações de espaço e escopo.  
Assim, ficou focalizado especificamente o terceiro elemento do tríptico, a análise  
imanente, por atender, sem prejuízos, à problemática colocada anteriormente.  
Por meio da análise imanente é possível tomar as obras como “objeto  
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ideológico”, observando o “conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como  
também as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam” (CHASIN, 2009, p.  
25). Sendo assim, trata-se de um procedimento que não imputa ao autor nada que  
não esteja presente em seus escritos, buscando no interior da obra as respostas para  
as questões que dela podem emergir. Uma vez que “a própria voz dos escritos  
pulveriza as interpretações irrazoáveis desse feitio e desmancha as hipóteses de  
investigação centradas em apriorismos, equações sempre subjetivas” (CHASIN, 2009,  
p. 85), fica mantida a possibilidade de uma análise objetiva dos materiais. Esse tipo  
de análise também procura remeter as formações ideais ao solo objetivo, auxiliando,  
portanto, no estudo da gênese e da função social. Entretanto, como dito, focalizamos  
o tratamento dos textos, deixando tal remissão para outra oportunidade.  
A análise imanente se presta a diferentes finalidades específicas. Chasin (1978),  
por exemplo, procurou estabelecer a natureza do pensamento de Plínio Salgado diante  
da tese de se tratar de um tipo de fascismo. No estudo de Lukács sobre o  
irracionalismo, a análise imanente emergiu como “elemento legítimo e até  
indispensável para a exposição e o desmascaramento das tendências reacionárias na  
filosofia” (LUKÁCS, 2020, p. 11). Há também exemplo que sustenta a aplicação com  
propósito de evidenciar os fatores fundamentais para explicação da origem de  
expressões do pensamento administrativo (PAÇO CUNHA, 2021). É preciso esclarecer,  
portanto, que, de acordo com nossos propósitos estabelecidos, a análise imanente se  
prestou exclusivamente à captura e explicitação das evidências irracionalistas  
presentes na primeira aproximação de Ramos com a teoria do conhecimento, abrindo  
vaga, quando possível, para considerações críticas de suas insuficiências. Não  
obstante, cabe frisar que não se tratou de “aplicar” o irracionalismo como uma espécie  
de “tipo ideal” ao material sob análise, mas do esforço de extrair as evidências do  
irracionalismo ao tomá-lo como objeto ideológico.  
Nesse sentido, e em termos operacionais, a análise foi realizada sobre os textos  
Introdução à cultura, de 1939, e Literatura latino-americana de 1941. Também foram  
considerados os artigos publicados em 1955 em O Jornal, tais como Diálogo com o  
marxismo; Gurvitch e o marxismo; Pluralismo dialético; Historicismo e marxismo; e  
Epocologia e marxismo. Assim, ficou coberto o período entre 1939 e 1955. Esse  
recorte se justifica por se tratar, salvo melhor juízo, das primeiras obras em que o  
autor mais se dedicou ao problema da teoria do conhecimento.  
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É preciso, entretanto, ressalvar a exclusão realizada de outros textos publicados  
no mesmo ano ou anteriormente e que, posteriormente, foram amealhados na  
coletânea Introdução crítica à sociologia brasileira, de 1956, e que possuem alguma  
aproximação com questões da teoria do conhecimento. Mas é importante registrar que  
tais textos foram dedicados mais a outros temas, como a sociologia brasileira e o  
desenvolvimento econômico, sendo as questões sobre o conhecimento muito menos  
desenvolvidas.  
Assim, passaremos à caracterização do irracionalismo que auxiliará na  
identificação de suas evidências principais, adiante, nos materiais selecionados.  
Breve caracterização do irracionalismo e sua teoria do conhecimento  
É importante anotar, logo de partida, que o “irracionalismo” não é um tipo ideal,  
um conceito. Segundo Weber, o tipo ideal é obtido:  
mediante a acentuação unilateral de um ou de vários pontos de vista  
e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos  
isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior  
ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam  
segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se  
formar um quadro homogêneo de pensamento. É impossível encontrar  
empiricamente na realidade este quadro, na sua pureza conceitual,  
pois trata-se de uma utopia (WEBER, 1973, p. 137-138).  
Nesse sentido, “trata-se da construção de relações que parecem suficientemente  
motivadas para a nossa imaginação” (WEBER, 1973, p. 138-139), sem existência real  
em si. Enquanto conceito, o tipo ideal não exprime e não procura expressar coisas da  
realidade concreta. Trata-se de um produto de natureza subjetiva, um recurso  
metodológico específico. Por esse motivo, não se aproxima do fenômeno histórico do  
irracionalismo tal como apreendido por Lukács na filosofia alemã, apresentando  
desdobramentos e renovações em outros tempos e lugares, transformando-se, pois,  
ao longo do tempo, como fenômeno inclusive de efeitos objetivos. O irracionalismo  
(como coisa ideal, mas de existência apreensível) não se extinguiu como uma tendência  
de objetivações variadas e não deve ser equiparado a uma utopia metodológica de  
acentuações de pontos de vista para finalidades heurísticas do trabalho sociológico.  
Tratou-se tal fenômeno de uma tendência histórica inscrita no interior do  
desenvolvimento da filosofia na Alemanha, incluindo a instauração da sociologia como  
ciência especializada, diante das condições objetivas do atraso daquele país (LUKÁCS,  
2020). Por meio do enfrentamento das questões postas, sobretudo a crise societária  
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manifestada na transição entre os séculos XIX e XX, um conjunto de ideias terminou  
por funcionar como uma preparação ideológica, sem que isso significasse uma  
causalidade, para a visão de mundo nacional-socialista do nazismo.  
Lukács (2020) não realizou a análise restrita, como pura imanência, às obras dos  
pensadores alemães que constituíram tal fenômeno. O filósofo magiar mostrou como  
seus principais protagonistas respondiam às questões postas na ordem do dia pela  
realidade concreta, pelo movimento histórico da formação alemã. Tais respostas  
alimentaram, em graus variados, uma espécie de crítica direcionada à expressão  
cultural do modo de produção capitalista e, em certos casos, indicou soluções  
reacionárias ou autoritárias para os problemas da sociedade burguesa, como meio de  
defender, ainda que indiretamente, o próprio capitalismo do acirramento da luta de  
classes.  
O percurso de Lukács até a determinação histórica do irracionalismo tem uma  
referência muito clara na crítica de Marx à decadência ideológica do pensamento  
econômico. Não é sem razão que antecedências marcantes da filosofia irracionalista  
foram encontradas nessa crítica realizada pelo filósofo alemão. A “crítica romântica”  
do capitalismo, por exemplo, já apontada por Marx (2011, p. 110) como tendência  
que acompanharia o pensamento burguês até seus últimos dias, “evolui para uma  
apologética mais complexa e exigente, mas não menos desonesta e eclética, da  
sociedade burguesa, para seu louvor indireto, sua defesa a partir de seus “lados ruins””  
(LUKÁCS, 2016, p. 104). A própria menção de Lukács ao desenvolvimento da  
sociologia como um desdobramento dessa decadência ideológica e o “desejo dos  
ideólogos burgueses de conhecer a legalidade e a história do desenvolvimento social  
separadas da economia” (LUKÁCS, 2016, p. 113), são traços que o autor também  
destaca em A destruição da razão, considerando a relação entre o desenvolvimento  
da sociologia e a referência na filosofia irracionalista (haja vista a posição agnóstica de  
autores como Mannheim e Weber, tributários da filosofia da vida).  
Não é sem propósito insistir que o legado de Marx nesse assunto foi ressaltado  
na medida em que “a crítica marxiana da ideologia decadente” possibilita que se  
encontre, “na mistura eclética de imediaticidade e escolástica, constatada em Mill, a  
chave para a real compreensão de muitos pensadores modernos considerados  
profundos” (LUKÁCS, 2016, p. 110). Dessa forma, “da versão decadente e vulgarizada  
que o anticapitalismo romântico desenvolveu bastante cedo por meio de Malthus  
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brotou, no decurso da putrefação do capitalismo, a demagogia social bárbara do  
fascismo” (LUKÁCS, 2016, p. 105). São bem conhecidas as ligações de Malthus com  
aquilo que Marx (2013) delimitou por “economia vulgar”. É interessante notar que  
Lukács toma a crítica realizada por Marx a certas tendências do pensamento econômico  
para apontar a relação que aquela crítica romântica do capitalismo alimentou com o  
avanço do fascismo ainda que essa relação não indique causalidade imediata. É  
igualmente interessante o fato de que a crítica romântica aparece como um dos  
aspectos caracterizadores da filosofia irracionalista, segundo o próprio Lukács em A  
destruição da razão.  
Ademais, um dos desdobramentos desse processo de decadência ideológica é a  
própria noção da relação entre racionalismo e irracionalismo. Ao tomar ambos como  
consequências da capitulação daquele pensamento decadente diante das questões  
impostas pela realidade concreta, para Lukács (2016, p. 117), “Ideologicamente, a  
tacanhice se expressa (...) no antagonismo entre racionalismo e irracionalismo”. O  
primeiro “é uma capitulação direta, passiva e ignominiosa diante das necessidades da  
sociedade capitalista. O irracionalismo é um ato de protesto contra elas, mas  
igualmente impotente, igualmente ignominioso, igualmente vazio e irrefletido” (p.  
117). Em ambos os casos, a decadência ideológica se manifesta de maneira diferente,  
mas Lukács demarca tanto o racionalismo (neopositivismo e suas variantes formalistas)  
quanto o irracionalismo (reação romântica) como lados irmanados desse terreno da  
decadência. Especialmente o irracionalismo, e suas características mais intrínsecas as  
quais nos interessam mais perto, é destacado pelo autor como um desdobramento  
daquela decadência ideológica. Para o filósofo húngaro, “não existe visão de mundo  
‘inocente’. (...) a tomada de posição a favor ou contra a razão é decisiva quanto à  
essência de uma filosofia enquanto filosofia, no seu papel junto ao desenvolvimento  
social” (LUKÁCS, 2020, p. 10). Uma dada forma de consciência desse tipo “reflete  
sempre a racionalidade (ou irracionalidade) concreta de uma dada situação social, de  
uma dada direção do desenvolvimento histórico e, ao lhe dar clareza conceitual,  
promove ou retarda esse desenvolvimento”. E assim, se “aquilo que se move para  
adiante é considerado razão ou desrazão, se isto ou aquilo é afirmado ou rejeitado,  
constitui justamente um fator essencial e decisivo na tomada de partido, na luta de  
classes na filosofia” (LUKÁCS, 2020, p. 11).  
É decisivo ter claro que Lukács considerou o irracionalismo como um fenômeno  
histórico, não como uma mera repetição daquele pensamento econômico decadente.  
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Considerando os primeiros desdobramentos históricos do irracionalismo (anteriores à  
Segunda Guerra Mundial, e segundo os propósitos deste artigo), Lukács mostrou que,  
se em um “primeiro período importante”, surgiu “em oposição ao conceito histórico-  
dialético idealista de progresso” como no exemplo do “caminho de Schelling a  
Kierkegaard”, o segundo período elegeu o marxismo, então em desenvolvimento,  
como tal adversário a ser severamente combatido. Trata-se de uma reação que  
configura um aspecto importante para as nossas análises posteriores a respeito das  
evidências do irracionalismo nos materiais delimitados do sociólogo brasileiro. Nesse  
sentido, devemos enfatizar que, desse segundo período em diante, cessou, escreveu  
Lukács (2020, p. 273), toda “moralidade científica”, pois tratou-se de difamar tal  
adversário, sem a devida apropriação a “fundo da matéria estudada”, promovendo  
afirmações levianas e infundadas. Esse combate ao marxismo como inimigo ideológico  
aprofundou-se com o acirramento da luta de classes e com a explicitação das  
contradições próprias do capitalismo, acentuando o caráter reacionário daqueles  
intelectuais diante do progresso representado pela alternativa socialista trazida pelas  
mudanças próprias da sociedade burguesa. Como anotou nosso autor:  
A situação muda radicalmente com as Jornadas de Junho [1848] do  
proletariado parisiense e, sobretudo, com a Comuna de Paris [1871]:  
a partir de agora a concepção de mundo do proletariado, o  
materialismo histórico e dialético, passa à condição de adversário, cuja  
natureza essencial determina o desenvolvimento do irracionalismo. O  
novo período terá Nietzsche como o primeiro e mais importante  
representante. Ambas as etapas do irracionalismo dirigem seus  
ataques contra o mais alto conceito filosófico de progresso de seu  
tempo (LUKÁCS, 2020, p. 12).  
Portanto, esse desenvolvimento irracionalista teve como objetivo claro combater  
o progresso e o avanço da luta de classes e das ideologias proletárias, em particular  
o marxismo. A posição diante das contradições, das crises sociais e do adversário a  
ser combatido, promoveu uma espécie de crítica ao modo de produção capitalista por  
suas formas de expressão, sobretudo em sua dimensão cultural. A condenação  
genérica da decadência cultural trazida pelo avanço da “técnica” (unilateralmente  
considerada), favoreceu a constituição de uma “apologia indireta” ao modo de  
produção capitalista que, enquanto não deixava de reconhecer certos problemas  
existentes, evitava ao máximo ligá-los aos fatores essenciais do capitalismo em  
muitos casos, atribuindo tais problemas a uma condição humana universal. Como  
sugeriu Lukács (2020, p. 219), a “meta principal” do irracionalismo é “fornecer uma  
apologia indireta da ordem social capitalista”. Uma das faces mais visíveis dessa  
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filosofia é sua rebeldia e indolência cativantes em sua crítica genérica à condição  
cultural existente, cuja seta, entretanto, apontava explícita ou implicitamente para  
tendências reacionárias.  
Em termos bastante sintéticos, é possível reunir os principais traços  
característicos da filosofia irracionalista, expressando uma unidade comum aos  
diferentes intelectuais: “A depreciação do entendimento e da razão, a glorificação da  
intuição, a gnosiologia aristocrática, a recusa do progresso sócio-histórico, a criação  
de mitos são, entre outros, motivos que encontramos em quase todo pensador  
irracionalista” (LUKÁCS, 2020, p. 15). O trajeto até aqui foi necessário para colocar os  
aspectos gerais que iluminam o mais específico tendo em vista nossos propósitos. Por  
isso, é preciso reter o traço característico dessa filosofia quanto ao aspecto da  
problemática do conhecimento (“depreciação do entendimento e da razão...”). Como  
sugeriu Lukács, os “últimos séculos do pensamento filosófico foram dominados pela  
teoria do conhecimento”. Sua “missão social”, explicou, em termos de sua “finalidade  
principal”, consistiu em “fundamentar e assegurar o direito à hegemonia científica das  
ciências naturais desenvolvidas desde o Renascimento, mas de tal maneira que  
permanecesse preservado para a ontologia religiosa, na medida em que isso fosse  
socialmente desejável, o seu espaço ideológico historicamente conquistado” (LUKÁCS,  
2010, p. 33). Nesse quadro, é possível reconhecer certo lugar da fenomenologia de  
ascendência existencialista, cuja “predisposição fundamental” é a “tendência teórica ao  
enfraquecimento do senso de realidade” (LUKÁCS, 2012, p. 113), sendo chamada a  
“reprimir a objetividade ontológica” (p. 104). As filosofias irracionalistas assim  
predispostas possuem a tendência de fazer hipérbole da incognoscibilidade da  
realidade presente no idealismo subjetivo, redundando no agnosticismo relativista em  
que não apenas a essência da realidade não seria passível de ser conhecida como  
também tal conhecimento estaria sempre dependente de visões de mundo  
imponderáveis entre si.  
Isso é decisivo uma vez que a “base, no plano da teoria do conhecimento, é  
sempre o agnosticismo e o relativismo que o acompanha” (LUKÁCS, 1968, p. 54).  
Cabe levar em conta que “não raramente”, escreveu Lukács (2020, p. 91), o  
“agnosticismo se converte” no irracionalismo e que “quase toda forma moderna de  
irracionalismo se funda mais ou menos sobre a teoria do conhecimento do  
agnosticismo”. Para o agnosticismo, então, “não podemos nada saber da essência  
verdadeira do mundo e da realidade” (LUKÁCS, 1968, p. 33). Admitindo que a  
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realidade é incognoscível, muitas vezes tal filosofia se apresenta, entre outras formas  
(como o positivismo), “sob os traços de um neokantismo” (p. 34). Alimentado nas  
correntes do existencialismo de Dilthey, Nietzsche, Bergson, Spengler e consortes, um  
“agnosticismo relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz em linha reta ao  
mito da filosofia atual, cujo valor central é o antirracionalismo, e até o irracionalismo  
ou, em todo caso, a aceitação de métodos e realidade suprarracionais” (LUKÁCS, 1968,  
p. 55). Completou Lukács, na sequência, ao sugerir que a “crise geral que se seguiu a  
1918, transformou o irracionalismo em uma filosofia concreta da história, a qual  
terminou por levar, através de Spengler, Klages e Heidegger, às visões infernais do  
fascismo” (LUKÁCS, 1968, p. 55). E considerando, como dito, que a finalidade principal  
do irracionalismo é proporcionar uma apologia indireta da ordem social capitalista –  
também como uma variante da reação à posição socialista do marxismo , a teoria do  
conhecimento assim mobilizada teria que, de formas variadas, depreciar o  
entendimento e a razão. Assim, entende-se por que motivo as aspirações de  
objetividade científica e crítica do modo de produção capitalista em seus fundamentos  
que comparecem no marxismo fizeram deste um adversário da posição agnóstica na  
teoria do conhecimento e da apologia indireta que a acompanha por via do  
irracionalismo.  
É possível dizer, portanto, que o irracionalismo, por meio da obstrução direta ou  
indireta à razão, expressou-se como agnosticismo relativista na teoria do  
conhecimento e, no plano econômico social, promoveu a apologia indireta do  
capitalismo, recusando progresso social representado pelo socialismo. Na medida em  
que essa posição na teoria do conhecimento negava a possibilidade da verdade  
objetiva exaltada sobretudo pelo materialismo, que sempre fundamentou as aspirações  
científicas do marxismo, este deveria ser confrontado tanto no plano econômico  
quanto no plano das ideias, incluindo o próprio território da problemática do  
conhecimento em tela.  
Essa filosofia e sua teoria do conhecimento obtiveram considerável difusão na  
Europa, como no exemplo de Bergson e seu intuicionismo como método na França.  
Encontrou também penetração nos Estados Unidos, sobretudo pelas tendências  
agnósticas que fundamentaram James e seu pragmatismo no interior do qual exaltava-  
se de modo idealizado o homem de negócios, o homem prático da rua (LUKÁCS,  
2020). É possível também falar das importantes reminiscências no existencialismo  
francês como hipérbole da filosofia alemã (FERRY e RENAUT, 1988) e das modificações  
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pelas quais passou no pós-guerra para a defesa indireta do capital monopolista de  
talhe estadunidense (LUKÁCS, 2020). Considerando tendências ainda mais  
contemporâneas do irracionalismo, segundo certa linha de continuidade a partir da  
“renovação do idealismo” (LUKÁCS, 1968) do final dos anos de 1960 em diante, cabe  
registrar que o:  
(...) o irracionalismo passou a desempenhar um papel crescente na  
constelação do pensamento. Isso inicialmente assumiu a forma  
relativamente suave de um pós-modernismo e pós-estruturalismo  
desconstrutivos, que, na obra de pensadores como Jean-François  
Lyotard e Jacques Derrida, deixaram de lado todas as grandes  
narrativas históricas enquanto abraçavam um anti-humanismo  
filosófico que emanava principalmente de Heidegger. Em contraste, as  
novas filosofias de imanência de hoje associadas ao pós-humanismo,  
novo materialismo vitalista, teoria ator-rede e ontologia orientada a  
objetos constituem um irracionalismo mais profundo, representado  
por figuras supostamente de esquerda como Gilles Deleuze, Félix  
Guattari, Bruno Latour, Jane Bennett e Timothy Morton (FOSTER,  
2023, s/p).  
Considerando essa permanente renovação do irracionalismo para além das  
fronteiras que o gestaram, seria possível falar de uma difusão da filosofia irracionalista  
para a América Latina, especialmente para o Brasil nas décadas em que Ramos realizou  
sua aproximação com a teoria do conhecimento?  
Posição agnóstico-relativista na teoria do conhecimento como reação ao  
marxismo  
Na problemática do conhecimento é possível encontrar traços do irracionalismo  
que Ramos expressou no Brasil. É curioso o fato de que persiste certa contradição  
entre os enunciados do autor quando tomados textos diferentes do período analisado.  
Em Introdução à cultura, nosso autor escreveu que a “inteligência, propriamente, tem  
por objetivo o ser. Seu fim é conhecer a essência das coisas” (RAMOS, 1939, p. 13).  
Anos depois, essa posição, pouco desenvolvida em 1939, foi, como veremos,  
flagrantemente abandonada em nome das tendências agnósticas e relativistas típicas  
das filosofias irracionalistas. Da forma como sublinhamos antes, a “base [do  
irracionalismo], no plano da teoria do conhecimento, é sempre o agnosticismo e o  
relativismo que o acompanha” (LUKÁCS, 1968, p. 54).  
Uma das expressões do desenvolvimento dessa posição agnóstica e relativista  
na problemática do conhecimento está precisamente no modo de reação de Ramos ao  
marxismo. Essa última corrente tornou-se, pela pena do autor, uma espécie de  
adversário metodológico a ser derrotado. Algo já presente em 1939, sofreu de fato  
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um desenvolvimento ulterior de amplas implicações para o itinerário do pensamento  
de Ramos. É possível averiguar esse aspecto em um texto analítico sobre a literatura  
latino-americana, no qual Ramos (1941, p. 285) considerou que os “corifeus da teoria  
marxista da história” eram incapazes de reconhecer que “num mesmo estádio de uma  
civilização, as massas encarnam a função de consumo e as elites, a função de produção.  
Daí o caráter burguês, reacionário da massa”. Essa passagem, além de sugerir certo  
aristocratismo do sociólogo brasileiro o que não é suficiente para sublinhar haver  
um reacionarismo em seu pensamento , evidencia o embate reativo ao marxismo.  
Essa reação teve maior profusão em um conjunto de textos publicados na década  
de 1950 em O Jornal. O diálogo de Ramos com o materialismo, especialmente  
truncado e pouco informado com Marx, se iniciou no princípio dos anos 1950 num  
texto de nota metodológica, inserido no livro Sociologia de la mortalidad infantil no  
qual elogiou, de maneira protocolar, o “realismo” das análises de Marx, mas condenou  
seu suposto “messianismo político” (RAMOS, 1955a, p. 13).  
Não cabe discutir em detalhes o grau de precisão dos aspectos apontados por  
Ramos a respeito de Marx apesar do fato de encontrarmos no autor baiano poucas  
evidências de estudo rigoroso sobre o autor alemão assim como era praxe entre os  
intelectuais da tradição irracionalista. Interessa mais apontar como, para Ramos, o  
combate ao marxismo no plano da problemática do conhecimento e como esse  
enfrentamento do elegido adversário ajuda a expor as evidências irracionalistas  
imanentes ao seu pensamento. Trata-se de uma peculiaridade interessante nessa etapa  
do itinerário de Ramos, isto é, estabelecer a teoria do conhecimento como terreno para  
o combate às aspirações de objetividade científica representadas no marxismo.  
Nessa direção, na série de artigos publicados por Ramos acerca do marxismo,  
sua principal referência para o debate é o sociólogo Georges Gurvitch. Para Gurvitch  
(1987), o problema da dialética materialista era o alegado dogmatismo das  
contradições e o abandono das outras múltiplas relações dialéticas. Disso resultou a  
posição de defesa de um chamado “pluralismo dialético”. Gurvitch entendia que a  
dialética materialista seria unicamente “ascensional”, no sentido de uma linha reta de  
progresso que levaria a uma espécie de apregoada “salvação da humanidade”. O  
sociólogo francês interditou essas questões consideradas por ele como expressões do  
comprometimento político de Marx. Era preciso, pois, contrapor-se ao dogmatismo e  
ascensionismo alegadamente identificados.  
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Seguindo Gurvitch, Ramos argumentou que o marxismo seria uma boa  
“propedêutica ao conhecimento científico do real” (RAMOS, 1955b, p. 2). Essa corrente  
admitiria “como processo fundamental (e talvez exclusivo) de análise da realidade – o  
das contradições” (RAMOS, 1955c, p. 1) que, por isso, desembocaria num  
desconhecimento da “pluralidade de processos operatórios de dialetização” (RAMOS,  
1955c, p. 1). Desse modo, escreveu o autor, “o marxismo tem sido até agora um  
monismo determinista que considera a antinomia como causação geral, ou seja, que  
tenta explicar o movimento e o desenvolvimento de qualquer fenômeno como  
resultado do conflito de contradições” (RAMOS, 1955c, p. 1). É uma avaliação muito  
visitada no século XX por uma miríade de intelectuais. Para nosso autor, essa postura  
do marxismo é negada pelo processo real, na medida em que a “contradição não é o  
único processo operatório de dialetização nem tampouco é invariavelmente o  
principal” (RAMOS, 1955c, p. 1).  
Com essa consideração, estaria justificada a superioridade do chamado  
“pluralismo dialético” que, em uma notória tendência à indeterminação, “admite a  
possibilidade de n+1 processos de análise dialética do real e, além disso, não atribui  
a nenhum deles um caráter principal a priori. Não é uma dialética fechada, é uma  
dialética aberta” (RAMOS, 1955c, p. 1). Para o autor, esse método aberto repudiaria  
“toda tentativa lógica que pretenda dominar a priori o desenvolvimento do real”  
(RAMOS, 1955c, p. 1). Salta aos olhos como Ramos ignora o fato de que a posição  
materialista do marxismo de extração do movimento próprio da realidade e não como  
apriorismo metodológico foi construída precisamente sobre a crítica à redução da  
realidade objetiva à lógica, conforme a tradição do idealismo objetivo culminante em  
Hegel (MARX, 2010).  
Não obstante, a postura crítica a Marx foi desdobrada em outros textos de  
Ramos. Em Gurvitch e o marxismo (1955), Ramos, seguindo a linha do sociólogo  
francês, afirmou que a dialética de Marx “se exaspera numa escatologia profética e  
promete uma culminação da história em que se elimina toda espécie de alienação e se  
realiza a harmonia social ou desaparição das classes, a cessação dos conflitos”  
(RAMOS, 1955b, p. 1). Sendo uma dialética dogmática, alegadamente no marxismo  
“confundiram um processo lógico com um processo concreto” (RAMOS, 1955b, p. 1).  
Propôs, então, evocando autores da tradição irracionalista, a vinculação entre  
“dialética” e “experiência”, com base no “caráter inconcluso do acontecer histórico que  
já havia sido proclamado por Dilthey, Heidegger e Jaspers” (RAMOS, 1955b, p. 1). O  
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mote é a insuficiência da “dialética” diante da “vivência” exaltada por autores na  
tradição irracionalista:  
A noção marxista de “práxis” é dogmatizante pois implica uma  
apologia dos fatos materiais dados e observados, incompatível com a  
dialética radical. Quero dizer, uma dialética que se define previamente  
como materialista é uma dialética parcial, ainda não liberada do  
positivismo, que não dialetisa [sic] suficientemente a relação entre o  
conhecimento e a experiência. Mais ainda, o marxismo é dogmatizante  
enquanto dialética ascendente positiva (RAMOS, 1955b, p. 1).  
Desse modo, à luz da sustentação de Ramos de que o movimento da história é  
sempre inconcluso, envolvendo, portanto, a inteira ausência de direção “ascendente”  
ou, em verdade, de qualquer direção , parece-lhe que o marxismo é parcial e  
dogmatizante, pois assumiria como pressuposto um movimento dialético progressivo.  
Uma dialética “liberada”, nos termos de Ramos, parece trazer consigo uma  
indeterminação congênita. Fica evidenciado que, a propósito de recusar qualquer  
“teoria do fim da história” – que de resto Marx jamais sustentou , o sociólogo baiano  
eliminou da análise as tendências de avanço efetivamente realizadas no domínio do  
desenvolvimento social. Cabe o registro segundo o qual as tendências de avanço e de  
regressividades coexistem na história, que os avanços realizados no conjunto não  
eliminam os recuos em várias dimensões sociais (LUKÁCS, 2012; 2013). Mas a história  
tem mostrado que esse caráter contraditório de seu desenvolvimento não eliminou a  
tendência do movimento progressivo, isto é, a totalidade avança contraditoriamente.  
A reação ao marxismo nesse aspecto revela a adesão de Ramos às filosofias  
irracionalistas diante da “tensão dialética entre a formação racional dos conceitos e a  
sua matéria real” (LUKÁCS, 2020, p. 91), recuando diante do lugar central das  
contradições no desenvolvimento social. Vê-se, com isso, o quão pouco o sociólogo  
pôde compreender seu eleito adversário.  
Ramos aprofundou essas considerações tendo em mente os avanços do  
conhecimento científico. Para o autor brasileiro,  
Não existe este movimento, ascensional, invariável, do conhecimento,  
de vez que, em qualquer instante, uma nova questão pode colocá-lo  
radicalmente em questão, abrindo-se à inteligência “novos abismos”  
‘inesperados”. Por outro lado, o marxismo levou muito longe a  
polarização entre a prática e a teoria, quando concretamente uma e  
outra se implicam. Existe em toda prática um elemento teórico  
(RAMOS, 1955b, p. 1).  
É importante ter sempre em mente que a “disputa acerca da realidade ou não  
realidade do pensamento que é isolado da prática é uma questão puramente  
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escolástica” (MARX, 2007, p. 533). Tal “polarização entre a prática e a teoria”,  
portanto, não poderia estar mais distante da tradição marxista. Não obstante, a  
passagem de Ramos suspende de modo radical a possibilidade do acúmulo do  
conhecimento. A propósito de reconhecer que o conhecimento científico é  
constantemente atualizado, Ramos solapou as bases desse mesmo conhecimento. É  
um atributo da ciência colocado contra ela mesma. Precisamente nesse sentido, o  
conhecimento não poderia caminhar de forma progressiva. Novamente, está em  
questão sustar os avanços do desenvolvimento social ainda que contraditório. Ramos  
se apoia no entendimento de que o movimento da realidade é ele mesmo um obstáculo  
para o conhecimento. Defende, assim, a proposição metodológica de Gurvitch na qual  
se  
Substitui toda síntese, unificação, elevação e mesmo toda  
reconciliação, harmonia, equilíbrio, por experiências novas,  
imprevisíveis, inesperadas que abrem sempre novos abismos e  
preparam em cada encruzilhada as mais perigosas surpresas em que  
tudo é posto em questão.  
Revela pluridimensionalidade de todo real cognoscível; dialetiza a  
relação entre o objeto de uma ciência e o real; mostra o caráter  
condicional de toda ciência cujo domínio depende do quadro de  
referência escolhido e o torna cada vez mais flexível. (RAMOS, 1955b,  
p. 1-2).  
A luta contra tal suposto dogmatismo e simplificação do marxismo se dá com  
uma alegada sofisticação metodológica, inspirada em Gurvitch, que criaria uma série  
de relações equivalentes infinitas. O flerte com as posições irracionalistas não poderia  
ser mais inconteste, pois o relativismo é um traço comum a elas. O relativismo expressa  
a posição de que o conhecimento é dependente das perspectivas, ou seja, um  
obstáculo claro à aquisição do conhecimento objetivo uma vez que sempre estaria  
limitado à uma perspectiva entre muitas outras, não havendo critérios possíveis para  
diferenciar as corretas das falsas. É o que se destaca, da passagem anterior, quando  
Ramos se referiu ao caráter condicional do conhecimento em relação a um “quadro de  
referência escolhido”.  
Seria mesmo possível algum conhecimento objetivo nesses termos defendidos  
pelo sociólogo baiano? Nos parece que a resposta deve ser negativa. Mas ainda assim  
nosso autor persegue o método adotado de Gurvitch como sendo a produção do maior  
número de operadores “dialetizantes” para capturar aspectos da realidade. Em seu  
próprio léxico, a questão pressupõe um “número ilimitado de processos de  
dialetização” (RAMOS, 1955c, p. 15). O alegado refinamento metodológico “revelou  
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por exemplo que muitos termos que pareciam antinômicos eram na verdade  
complementares” (RAMOS, 1955c, p. 1). Este pluralismo dialético adotado por Ramos  
sugere uma posição que apreende a indeterminação como virtude de uma abordagem  
para o conhecimento da realidade concreta. Ainda que o autor mantenha que é a  
“experiência o critério de adequação do método” (RAMOS, 1955c, p. 1), essa mesma  
experiência é condicional ao antes indicado “quadro de referência escolhido”, refluindo  
na admissão da impotência do conhecimento.  
São acentos frequentemente encontrados nas tendências agnósticas da filosofia  
irracionalista com respeito à teoria do conhecimento. Na análise de Lukács (2020, p.  
91), vemos que o “agnosticismo se converte” no irracionalismo e que “quase toda  
forma moderna de irracionalismo se funda mais ou menos sobre a teoria do  
conhecimento do agnosticismo”. Tendo isso em mente, o agnosticismo deve ser  
apreendido, conforme já sublinhado, como posição que “pretende que não podemos  
nada saber da essência verdadeira do mundo e da realidade e que este conhecimento  
não teria aliás nenhuma utilidade para nós” (LUKÁCS, 1968, p. 33). Como uma forma  
de reiterar a impossibilidade do conhecimento concreto, “o agnosticismo evita  
responder a tais questões [essenciais]; mas ele se limita a declará-las sem respostas e  
recusa a possibilidade dessas respostas” (LUKÁCS, 2020, p. 93). Ressalta-se, portanto,  
um simples enunciado de recusa diante das tarefas prementes do conhecimento  
científico.  
No sociólogo baiano isso se expressou na adoção do alegado método refinado  
de Gurvitch. A propósito de combater espantalhos imaginários na figura dos alegados  
pressupostos fixos apriorísticos, do aludido movimento unidirecional da história, do  
suposto fechamento do método marxista etc., Ramos abriu as portas ao agnosticismo  
e o relativismo, seu companheiro de primeira ordem. A abertura para a indeterminação  
aprofunda, na verdade, o caráter sempre dependente do conhecimento com respeito  
a “quadros de referência escolhidos”. Nisso se vê as armadilhas das reações românticas  
às aspirações de objetividade científica quando colocadas de modo unilateralizado. A  
complexidade das coisas não deve ceder à tentação da indeterminação e o caráter  
condicionado e perfectível do conhecimento não autoriza impedimentos  
intransponíveis de objetividade científica. A objetividade do conhecimento, outrossim,  
é uma resultante possível, uma possibilidade que corresponde a certas condições  
subjetivas e objetivas favoráveis (CHASIN, 2009). Indeterminação e relativismo, nos  
termos escolhidos por Ramos, são notoriamente prejudiciais às tarefas do  
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conhecimento. Trata-se de um dos conhecidos efeitos das filosofias irracionalistas  
nessa seara (BUNGE, 2006).  
Tais aspectos podem ser aprofundados ao seguir a propositura “epocológica”  
(ou faseológica) de Ramos por influência das posições culturalistas. O ponto fulcral é  
a admissão dos condicionantes do conhecimento dados por premissas de uma  
determinada época. Esses condicionantes são uma questão central para a sociologia  
do conhecimento de Scheler e Mannheim a qual ecoou tendências irracionalistas. E  
tudo indica que é reiteradamente refletida pelo sociólogo brasileiro. Segundo Ramos,  
O marxismo não tem verdadeira consciência epocológica e culturalista  
e, por isto, parece não admitir a historicidade das categorias ou das  
formas mentais mesmas do sujeito cognoscente. Para os marxistas há  
sim um progresso ilimitado do conhecimento à maneira de uma  
aproximação do real crescente em exatidão. Mas não há para eles  
mudança categorial. A realidade para eles tem um só sentido e o  
marxismo habilitaria a apropriação desse sentido unívoco e, portanto,  
habilitaria a resolver o enigma último da vida a captar a essência do  
ser. É o marxismo uma doutrina ainda no marco da filosofia do  
progresso e não da epocologia e do culturalismo (RAMOS, 1955d, p.  
15).  
Seguindo o expediente dos autores irracionalistas, o sociólogo brasileiro  
contestou o marxismo, de modo pouco rigoroso, exatamente por este admitir a captura  
do movimento progressivo, ainda que contraditório e repleto de recuos em diferentes  
dimensões, da história e do próprio conhecimento humano. A solução supostamente  
diferenciada daquela do marxismo foi encontrada por Ramos na admissão de que as  
categorias mudam de acordo com o movimento histórico. Ele ignorou o que já fora  
dito, que os “mesmos homens que estabeleceram as relações sociais (...) produzem,  
também, os princípios, as ideias, as categorias de acordo com as suas relações sociais”,  
de tal maneira que “estas ideias, estas categorias são tão pouco eternas quanto as  
relações que exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios” (MARX, 1985, p.  
106). A desconfiguração dos efetivos fundamentos do marxismo serve, no argumento  
do autor, ao recuo diante do progresso contraditório que marca o desenvolvimento  
social.  
O problema central para Ramos está na obstrução que os condicionantes sociais  
impõem ao conhecimento. Quando se muda a “época”, mudam-se as premissas e, por  
conseguinte, as bases do conhecimento. Por isso, não há um movimento ascendente  
ou qualquer movimento, em verdade. As épocas são incomparáveis e o conhecimento  
sempre relativo, segundo o autor, revelando um procedimento que, em que pese as  
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diferenças, aproxima-se das construções de tipologias equivalentes produzidas pela  
filosofia irracionalista: “a impossibilidade de desvendar os nexos reais da história a  
partir destes pressupostos, a negação crescente da legalidade da história, e em  
particular a negação de um progresso demonstrável” (LUKÁCS, 2020, p. 381).  
Seguindo suas colocações críticas ao materialismo, segue o autor na afirmação  
segundo a qual:  
(...) é impossível à inteligência humana postar-se diante do real nas  
condições supostas pela teoria arguida [o marxismo]. Ao postar-se  
diante dos objetos, o homem os vê como um ser implicado em sua  
época, cujas premissas condicionam irresistivelmente sua visão e  
constituem espécie de a priori do mundo (RAMOS, 1955d, p. 1).  
E assim, essas condições “epocológicas” conduzem ao relativismo que  
acompanha as fileiras agnósticas, como antes indicado, que obstrui a possibilidade  
efetiva de apreensão objetiva dos processos reais. Qualquer “visão” é apenas uma  
visão condicionada por premissas de uma época. Nosso autor estabeleceu a  
impossibilidade de desenvolvimento do conhecimento objetivo ao alegar que toda  
Standpunkt, toda posição seria radicalmente “epocológica”, contendo uma  
imponderável perspectiva a priori. Essa condição absoluta e universal limitaria as  
capacidades do conhecimento e de seu desenvolvimento, restringindo aos limites  
epocais:  
É nesse sentido que se pode afirmar com Jaspers que não existe para  
o homem um ponto arquimédico a partir do qual possa ver objetos.  
Toda visão é histórica, ou melhor, epocológica, nisto que não  
transcende a teleologia implícita na existência concreta do sujeito  
cognoscente. Toda pergunta que se faz à natureza dizia Schelling –  
contém um juízo a priori. Não se pode acolher assim a ideia de um  
ilimitado progresso do conhecimento no sentido puramente  
acumulativo e de refinamento crescente (RAMOS, 1955d, p. 1).  
A condição “epocológica” é, portanto, um obstáculo cultural intransponível. Para  
Ramos o fato de haver condicionantes históricos impede o desenvolvimento do  
conhecimento em busca da verdade objetiva das coisas, fazendo com que restem  
apenas visões de mundo relativas à cada época. Cada época teria sua verdade,  
culturalmente estabelecida e intransponível. “Cada época”, explicou o autor, “tem sua  
verdade absoluta e não há como conceber, de maneira iluminista, uma soma  
permanente de verdades relativas, um aproximar crescente da verdade absoluta,  
entendida como termo culminante de um processo contínuo de esclarecimento”. Para  
ele, ao arrematar a questão, os “limites extremos da verdade absoluta existem em cada  
época ou em cada cultura” (RAMOS, 1955d, p. 1). O expediente já aludido  
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anteriormente é repetido como método de trabalho: a propósito de criticar o  
dogmatismo e racionalismo alegadamente identificados, a alternativa culturalista  
apresentada pela posição “epocológica” irmana-se com fundamentos agnóstico-  
relativistas.  
Reiterando tais fundamentos, Ramos encontrou suporte no plano dos valores.  
Para ele, “Cada época é uma totalidade de sentido (...). É uma totalidade de sentido  
que condiciona os modos de compreender e o significado do que acontece. É deste  
condicionamento que o marxismo tem escassa consciência” (RAMOS, 1955d, p. 1). O  
vício do materialismo seria, para Ramos, não se igualar ao seu próprio idealismo  
agnosticamente informado; uma espécie de neokantismo sob o qual a filosofia  
agnóstica se manifestou na história em inúmeras ocasiões. Seguindo em combate ao  
marxismo como adversário intelectual, revela-se, assim, como nosso autor defende, à  
maneira dos filósofos do irracionalismo, a “impensabilidade de uma realidade objetiva  
que independe da consciência” (LUKÁCS, 2020, p. 358). Ao fundo, portanto, é a  
cultura que informa o que é conhecido. E como a cultura é fundamentalmente valores,  
subjetividade, o conhecimento objetivo é consequentemente uma espécie de engodo.  
Nesse sentido, a referida totalidade de sentido terá consequências muito  
profundas para a aquisição do conhecimento. A consideração desse aspecto ilumina  
ainda mais os já notórios traços das tendências agnóstico-relativistas. Segundo Ramos,  
Em cada época existe uma axiomática do saber, constituída de  
determinados postulados implícitos na convivência humana e que  
condicionam inexoravelmente as possibilidades eidéticas. Estes  
postulados, ou melhor, estes axiomas são realmente mais implícitos  
que explícitos e bem assim em larga escala inexprimíveis em termos  
racionais. É certo que tais axiomas não adquirem vigência sem  
determinados suportes objetivos. Uma vez vigentes, porém, tornam-  
se conformadores da visão do mundo tal que os fatos não são  
apreendidos pelo homem senão enquanto ser historicamente  
constituído por tais axiomas. Esses axiomas são o a priori da época, a  
partir dos quais o sujeito organiza os dados da sua percepção  
(RAMOS, 1955d, p. 2).  
Essa colocação do autor revela a busca, comum à filosofia irracionalista, de uma  
posição intermediária (“terceiro caminho”) entre ser e consciência em que, ao final,  
reina a preponderância da consciência. É interessante notar como isso enfraquece a  
posição ao cabo assumida de indeterminação, pois lhe falta coerência. Ao atribuir no  
fundamento os axiomas, resvala para um apriorismo antes reconhecido como vício do  
marxismo. Mas resulta em apriorismo de outro tipo, em oposição ao seu adversário  
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identificado. Sua posição antimaterialista encontra guarida na tradição idealista que,  
como se sabe, fundamenta no plano das ideias as forças primárias do movimento da  
realidade. Na passagem, vemos isso na preponderância encarnada pelos axiomas como  
condicionantes mais fundamentais de cada época, como postulados que condicionam  
“as possibilidades eidéticas”. Tal fundamentação é inexprimível em termos racionais.  
O autor estabeleceu, como no agnosticismo, uma limitação evidente acerca do  
conhecimento da essência das coisas uma vez que qualquer critério pagaria tributo  
aos axiomas. Isso se apresentou ao escrever, na passagem neokantianamente  
inspirada, que os próprios homens surgiram no argumento “enquanto ser  
historicamente constituídos por tais axiomas”; são as ideias, afinal, que forjam os  
homens. Assim, Ramos nos ensina que os homens são produtos das ideias de uma  
época sem esclarecer afinal de onde vieram tais ideias. Entre o ser e a consciência, a  
posição de Ramos se refugia na consciência, revelando aspecto importante de suas  
tendências.  
Em suma, a posição de Ramos sustenta uma impossibilidade, uma condição  
universal que obstrui as possibilidades do conhecimento objetivo, pois os próprios  
homens são constituídos por tais axiomas. Como mostrou Lukács (2020), na filosofia  
irracionalista esse é um processo que remonta de Dilthey a Scheler e Mannheim, que  
seguiam essa argumentação geral segundo a qual as “visões de mundo” limitadas  
eram também limitantes para a apreensão desses condicionantes históricos e levavam  
ao relativismo tal qual a argumentação de Ramos. Toda luta do autor em tela contra o  
materialismo, ao enxergar erroneamente nele um racionalismo tacanho de talhe  
positivista, tem como pano de fundo, o que é decisivo, uma fundamentação  
irracionalista na defesa da limitação do conhecimento. Trata-se de uma variante da  
reação romântica às tendências afeitas à razão, embora sejam tomadas de modo  
embaralhado por Ramos, identificando o racionalismo puramente formal que matrizou  
o positivismo às superficialidades matematizadoras com a postura do marxismo, como  
de outras correntes, de admissão de que a realidade não apenas pode e pôde ser  
efetivamente conhecida como, de resto, os homens estão fadados a conhecê-la para  
transformá-la.  
Novamente, é importante esclarecer que a crítica consequente à alegação, comum  
ao racionalismo formal, de que o conhecimento não sofre qualquer condicionamento  
social não corresponde necessariamente à recusa quanto à possibilidade do  
conhecimento objetivo. Entretanto, a reação que Ramos encarna contra aquela  
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alegação não é adequadamente ponderada, levando o autor a admitir as posições  
comuns às filosofias irracionalistas. Isso implicou em suas considerações sobre a teoria  
do conhecimento, como vimos. Ao cabo, cabe a pergunta: estaria a posição assumida  
por Ramos adequadamente equipada para conhecer as coisas tais como são?  
Parafraseando o próprio sociólogo conforme sublinhamos em um de seus primeiros  
textos, a inteligência que nosso autor promoveu teria de fato “por objetivo o ser”,  
admitiria que seu “fim é conhecer a essência das coisas” (RAMOS, 1939, p. 13)?  
Considerações finais  
O presente artigo teve como objetivo desvelar as evidências do irracionalismo  
na primeira aproximação de Ramos com a teoria do conhecimento no período entre  
1939 e 1955. Para tanto, realizamos análise imanente nos textos selecionados  
conforme os critérios estabelecidos. Foi possível identificar que tais evidências  
compareceram pela adesão ao agnosticismo relativista presente no quadro do  
existencialismo e da fenomenologia.  
Os aspectos destacados em Ramos não são suficientes para alçá-lo ao mesmo  
patamar das tendências reacionárias presentes na filosofia irracionalista analisada por  
Lukács, na medida em que o próprio sociólogo brasileiro assimilou apenas alguns  
traços daquela filosofia, especialmente o agnosticismo relativista evidenciado nos  
achados deste trabalho. Ainda assim, Ramos foi decisivamente influenciado por tal  
forma de consciência filosófica. Na verdade, é possível afirmar que Ramos se mostrou  
como uma espécie de caixa de ressonância das filosofias irracionalistas no contexto  
brasileiro de então, pelo menos isso corresponde aos textos aqui considerados como  
preparatórios do desenvolvimento declaradamente fenomenológico dos anos  
seguintes de seu itinerário intelectual. Vimos que a propósito de se opor ao marxismo  
como adversário metodológico, o sociólogo abraçou a posição agnóstico-relativista  
comum a tais filosofias irracionalistas, de recuo em relação à possibilidade do  
conhecimento objetivo, admitindo obstáculos intransponíveis.  
E isso está em plena concordância com o fato que os autores reverberados pelo  
brasileiro (Jaspers, Heidegger e Mannheim, por exemplo) são os mesmos apontados  
por Lukács como participantes da segunda etapa do irracionalismo, cujo grande  
adversário era o marxismo. Ramos igualmente elegeu o marxismo como contendor e,  
por intermédio desse debate crítico pouco informado, revela os principais traços de  
seu agnosticismo relativista. Assim, ficam iluminadas certas evidências do  
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irracionalismo na teoria do conhecimento adotada por Ramos que são, ao cabo,  
obstrutivas ao próprio conhecimento científico.  
Os apontamentos aqui realizados dizem respeito ao período de primeira  
aproximação do autor. Acreditamos que essa aproximação teve consequências  
posteriores no itinerário intelectual em tela. Uma prova disso é reencontrar posição  
semelhante em textos consagrados posteriores em que o problema da teoria do  
conhecimento se articulou a preocupações de ordem sociológica, política e econômica.  
Quando o autor escreveu, por exemplo, que “sujeito pensante e objeto são faces de  
um mesmo fenômeno” (RAMOS, 1958/1995, p. 36), ou que a “Weltanschauung é  
totalidade transcendente, à qual devem ser referidos os objetos para serem  
compreendidos” (RAMOS, 1957/1996, p. 99), reitera o traçado característico das  
filosofias irracionalistas. Assim, caberia a questão de saber qual estatuto afinal teria tal  
posição, em geral tomada como crítica ao pensamento dominante na figura do  
funcional-positivismo e suas variantes, que segue fundamentada, entretanto, em bases  
irracionalistas.  
Como decorrência dos presentes achados, acreditamos ser necessário avançar  
na análise realizada no sentido de vincular essa formação ideal às condições brasileiras  
de então. Realizamos a caracterização geral das evidências do irracionalismo em  
Ramos com respeito à teoria do conhecimento, mas é necessário explicá-la, remetendo-  
a ao seu solo objetivo. É inquietante a possibilidade de compreender se a tarefa  
original do irracionalismo – “fornecer uma apologia indireta da ordem social  
capitalista” (LUKÁCS, 2020, p. 219) – seria simplesmente repetida nas condições da  
particularidade brasileira ou se os aspectos específicos da objetivação capitalista no  
país teriam jogado papel modificador daquela tarefa na formação ideal de Ramos.  
Cabem, portanto, pesquisas adicionais, inclusive no sentido de aprofundar a difusão  
em geral dessa filosofia irracionalista e suas tendências no país, apreendendo seus  
momentos mais importantes e influências efetivas.  
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2006.  
DOI:  
CHASIN, J. Marx Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 232-258 - jul-dez, 2023 | 255  
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Leandro Theodoro Guedes, Elcemir Paço Cunha, Wescley Silva Xavier  
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Verinotio  
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nova fase  
Leandro Theodoro Guedes, Elcemir Paço Cunha, Wescley Silva Xavier  
WOLIN, R. The seduction of unreason. New Jersey: Princeton University Press, 2004.  
Como citar:  
GUEDES, Leandro T.; CUNHA, Elcemir P.; XAVIER,Wescley S. O Irracionalismo e sua  
Teoria do Conhecimento: Reação Agnóstico-relativista de Guerreiro Ramos ao  
Marxismo (1939-1955). Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp. 232-258; jul-dez,  
2023.  
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ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 232-258 - jul-dez, 2023  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.685  
Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia  
do ser social de G. Lukács: novos comentários  
sobre o tema1  
About “The ideal and ideology” in The ontology of social being by G.  
Lukács: new comments on the topic  
Ester Vaisman*  
Resumo: Ainda que a autora tenha se debruçado,  
em várias ocasiões desde 1984, sobre o  
problema da ideologia na obra postumamente  
publicada por Lukács, o objetivo geral do  
presente artigo é trazer comentários adicionais  
sobre o tema, decorrência de pesquisa mais  
profunda não só da Ontologia do ser social, mas  
também do próprio itinerário intelectual do  
filósofo húngaro. Autores que abordaram o tema  
são revisitados, configurando-se assim um  
quadro geral mais complexo da questão em tela.  
Abstract: Although the author has addressed,  
on several occasions since 1984, the problem  
of ideology in the Lukács’ work posthumously  
published, the general objective of this article is  
to provide additional comments on the topic,  
resulting from deeper research not only about  
The Ontology of social being, but also from the  
Hungarian philosopher's own intellectual  
itinerary. Authors who addressed the topic are  
revisited, thus configuring a more complex  
general picture of the issue at hand.  
Palavras-chave: György Lukács, ontologia,  
ideologia  
Keywords: György Lukács, ontology, ideology  
O capítulo intitulado “O ideal e a ideologia” se reveste de importância ímpar no  
contexto da obra de Lukács postumamente publicada. Muito já se falou desse esforço  
de final de vida, mas ainda o que foi dito e escrito não é suficiente para identificar  
devidamente o sentido que tal empreitada final representou no itinerário intelectual  
do autor. De fato, isolado em seu apartamento em Budapeste, sendo discriminado de  
todos os lados, conseguiu reunir forças tanto físicas quanto intelectuais para elaborar  
uma obra magna que marca de modo definitivo a história do marxismo. Ademais, é  
leitura obrigatória para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se interessam  
pelo tema que dá título ao capítulo, mas também para aqueles que buscam as vias de  
superação de uma série de problemas teóricos e práticos que marcam o mundo  
contemporâneo.  
1 Artigo publicado originalmente em NACIF, C. & KAWAHARA, I.Z. Introdução à ontologia do ser social  
de Georg Lukács. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2022, p. 63-97.  
* Professora titular aposentada do Departamento de filosofia UFMG, e-mail: evaisman@fafich.ufmg.br.  
Verinotio ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2 jul-dez, 2023  
nova fase  
   
Ester Vaisman  
Evidentemente, não será possível, nos limites do presente texto, deslindar todo  
o conjunto de problemas que Lukács enfrenta, nem muito menos evidenciar, por meio  
de uma análise comparativa, as contribuições e avanços do autor em relação a  
estudiosos marxistas e não marxistas que, direta ou indiretamente, se debruçaram  
sobre problemas ontológicos em geral e, em particular, sobre o papel do momento  
ideal e da ideologia. O que se pretende aqui é algo muito mais modesto: traçar em  
linhas gerais as principais características da reflexão lukácsiana sobre o problema, em  
especial a sua tematização sobre a ideologia. É evidente, contudo, que o  
esclarecimento da questão ideológica não teria condições de avançar, sem que Lukács  
não tivesse tratado mais detidamente das especificidades do “momento ideal” e de  
suas relações com o momento material na esfera da prática. Mesmo ciente dessa  
necessidade, a ênfase do presente texto irá recair sobre a ideologia, ficando para outro  
momento uma apresentação mais ampla e profunda sobre o problema do momento  
ideal.  
Nessa direção, as indagações a serem colocadas agora são as seguintes: qual é  
a importância do tema e quais são os traços mais distintivos da análise que Lukács  
oferece ao leitor?  
Em primeiro lugar, é necessário recordar que, desde pelo menos a sua fase de  
transição ao marxismo, com a publicação de História e consciência de classe, Lukács  
esteve às voltas com o estatuto filosófico da subjetividade. De fato, por ter se  
debruçado, ao longo de seu profícuo itinerário intelectual, sobre literatura e estética  
em geral, os problemas atinentes à subjetividade, bem como sua devida relação com  
a objetividade, sempre estiveram presentes, com maior ou menor intensidade. Talvez,  
insatisfeito com o que ele próprio produziu a respeito, ou o que é mais provável –  
retendo os resultados mais expressivos de seus trabalhos anteriores, se dedicou a  
sistematizar tais conquistas, do que resultaram as suas obras de maturidade como a  
Estética e a Ontologia.  
Em segundo lugar, o tratamento que ele dá à questão destoa radicalmente do  
modo com que autores das mais variadas tendências abordaram o tema. Entretanto,  
como se trata de assunto que interessou principalmente aos marxistas, é possível  
constatar no tratamento que Lukács dá ao tema uma linha de análise completamente  
original, e, amparando-se em evidências textuais de Marx, ele acaba por refutar as  
abordagens mais disseminadas nesse campo. Como se poderá observar nas linhas que  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
se seguem, tais abordagens procuraram explicar o fenômeno ideológico a partir do  
critério gnosiológico, ao aproximarem-no, de modo mais ou menos explícito, às  
problemáticas atinentes à teoria do conhecimento e à filosofia da ciência.  
Nesse sentido, é oportuno lembrar que a linha de tematização do problema da  
ideologia a partir do viés gnosiológico tem uma tradição já consolidada entre os  
estudiosos do assunto. Nesse sentido, em artigo publicado no ano de 2010, eu já  
advertia para o fato de que  
autores que procuram constituir uma seriação histórica do problema  
a partir das origens remotas da preocupação filosófica com a questão  
da ideologia, como Kurt Lenk (1971) e Hans Barth (1971), são  
unânimes em indicar que, sob determinado ângulo, esta preocupação  
já está presente no momento em que, a partir das exigências das  
ciências da natureza, a filosofia se volta àqueles elementos tidos como  
exteriores ao campo científico, mas que poderiam exercer perigosa  
influência nos caminhos da investigação científica (VAISMAN, 2010,  
p.41)  
Ou seja, desde seus primórdios, os estudos voltados ao tema, adotaram a ideia  
de que o fenômeno ideológico era algo, senão contraposto radicalmente à ciência,  
pelo menos consistia em um espaço onde se desenvolviam formulações danosas à  
apreensão correta dos fatos, identificando-o, assim, sem mais a algo atinente à  
falsidade.  
O que importa sublinhar aqui, é que esse modo de conceber a ideologia fez  
carreira não apenas nas abordagens de cunho filosófico, mas também, e,  
principalmente, no campo das ciências humanas em geral e, no marxismo, em  
particular. Em suma, o procedimento dominante no enfrentamento da questão tem se  
apresentado, em maior ou menor monta, a partir do estabelecimento de um vínculo  
estreito entre ideologia e a problemática do conhecimento, justamente porque tem se  
valido do critério gnosiológico como orientador analítico básico.  
Na direção oposta a tal tendência, vale ressaltar mais uma vez, Lukács confere  
um tratamento teórico diferencial ao problema ideológico, distinto inclusive, como já  
tivemos oportunidade de salientar, daquele que é possível identificar em História e  
Consciência de Classe. Ou seja, Lukács, nos últimos anos de sua vida se dedica a uma  
empreitada que se nega à utilização do critério gnosiológico na determinação do  
fenômeno ideológico, propondo, em contrapartida, a utilização do critério onto-  
prático.  
Logo no início do capítulo, é possível perceber que os argumentos que Lukács  
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Ester Vaisman  
desenvolve podem, em certa medida, ser considerados como um acerto de contas (no  
fundo, também um acerto de contas com ele mesmo, com a sua trajetória anterior) de  
um lado, com o marxismo vulgar, com o stalinismo, e, de outro, com as vertentes  
idealistas. Ao se contrapor contra uma e outra, ele coloca sua própria formulação  
como um tertium datur. Ou seja, ele rejeita o marxismo vulgar, que consagrou o  
mecanicismo, o economicismo, e, simultaneamente, as vertentes idealistas, que,  
também teriam unilateralizado o problema, ao conceberem o homem como  
fundamentalmente um ser abstrato, um mero produtor de ideias, para colocar a coisa  
em termos breves.  
Essa dupla rejeição, tanto do marxismo vulgar quanto do idealismo pode ser  
vislumbrada já no início do capítulo em que, não por acaso, aparece o subtítulo “O  
ideal na economia”, em que Lukács retoma de modo sintético os resultados  
desenvolvidos nos capítulos anteriores da obra. Ele diz: “Nossas investigações até aqui  
mostraram que o fato básico mais material, mais fundamental, da economia, o trabalho,  
possui o caráter de um pôr teleológico” (LUKÁCS, 2013, p.355) para, em seguida,  
depois de buscar amparo textual em uma famosa passagem de O Capital, sublinhar  
que o fato mais fundamental da esfera econômica, isto é, o trabalho, só se realiza  
enquanto tal a partir do movimento de uma cadeia causal posta em ação no interior  
de uma intrincada relação indissolúvel com a teleologia.  
A esse respeito, o que importa ressaltar aqui, é o completo distanciamento de  
Lukács no que diz respeito ao modo como tradicionalmente a esfera econômica, bem  
como suas relações com a esfera ideológica foram concebidas pelos marxistas.  
Segundo suas próprias palavras, no marxismo predominou um  
certo dualismo metodológico, pelo qual o campo da economia foi  
apresentado como uma legalidade, necessidade etc., formulada de  
modo mais ou menos mecânico, ao passo que o da superestrutura, da  
ideologia, revelava-se como uma área em que começavam a aflorar as  
forças motrizes ideais, com muita frequência concebidas em termos  
psicológicos (LUKÁCS, 2013, pp.356-7).  
A denúncia acima é clara: de acordo Lukács o uso da fórmula base e  
superestrutura, em que pese a existência de exceções e/ou abordagens até certo ponto  
válidas, levou a uma deformação da própria natureza da sociabilidade por meio de  
uma aproximação demasiada com a esfera biológica, como é o caso específico de  
Kautsky. Mas, a avaliação crítica lukácsiana não para por aí, ao contrário, ela acerta  
precisamente o que parece ser o ápice do “dualismo metodológico”, nomeadamente  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
a economia e a teoria social stalinista operam em parte com categorias  
idealistas subjetivas, voluntaristas, sendo que a objetividade social  
aparece, em última análise, como resultado das resoluções do partido,  
e em parte, onde a pressão dos fatos impôs certo reconhecimento da  
validade objetiva da teoria dos valores, com um dualismo de  
"necessidade" mecânico-materialista e resoluções voluntaristas. De  
qualquer modo, todas essas teorias não fizeram jus nem à  
unitariedade e peculiaridade dinâmico-estrutural do ser social, nem às  
diferenciações e contradições que surgiram dentro desse âmbito  
(LUKÁCS, 2013, p. 357).  
Não será a primeira nem a última vez, que o filósofo húngaro ataca  
explicitamente o modo como a esfera ideológica foi (des)tratada no interior do  
chamado “marxismo oficial” ou marxismo vulgar, como queiram. De fato, comentários  
como os acima referidos, parecem revelar a magnitude dos antagonistas, que podem,  
em certos momentos, como é o caso específico de Stalin, assumir a proeza de combinar  
o “necessitarismo” com o voluntarismo político.  
Portanto, o embate do autor assume dificuldades de grande monta, pois se volta  
contra um certo número de abordagens amplamente disseminadas e que usufruem de  
prestígio, contando com isso, com grande adesão, tanto no meio acadêmico quanto  
no interior dos “guetos ideológicos”.  
Em síntese, retomando os achados expostos nos capítulos anteriores, em que o  
empenho foi demonstrar à exaustão o caráter teleológico da atividade laborativa, no  
capítulo sobre o momento ideal e a ideologia, como o próprio título indica, o objetivo  
principal do autor é demonstrar que a prática social, em sua imensa diversidade,  
compartilha de certas características comuns com a atividade que se põe no âmbito  
do trabalho.  
Mas o desafio teórico não para por ai, ou seja, se no seu empenho de abordar  
a sociabilidade a partir do critério ontológico, Lukács desvelou o pôr teleológico do  
trabalho, a tarefa agora é expor a tese de que os vários tipos da prática social, mesmo  
aquelas mais evanescentes, como a prática moral por exemplo, apresentam aspectos  
semelhantes, ou seja, são também pores teleológicos que, do mesmo modo que no  
trabalho, implicam na presença de uma prévia-ideação, como também, - que é o outro  
lado da mesma moeda - no desencadeamento de determinadas cadeias causais  
específicas, resultantes típicas da prática humana. Ou seja, são práticas que  
apresentam a interveniência de um momento ideal, tanto no sentido de um pôr de fins  
seja no sentido receptivo, sob forma cognitiva.  
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Ester Vaisman  
Ainda em outras palavras “tanto no trabalho, no intercâmbio orgânico com a  
natureza, quanto nas outras esferas da prática social, o que há de comum nessas ações  
é o fato de que em todas elas se encontra uma tomada de decisão entre alternativas,  
o que implica a existência de um momento ideal, de uma prévia-ideação como  
denominador comum a todas elas” (Vaisman, 2010, p.46).  
Mas, atenção! Lukács ressalta várias vezes no decorrer do livro que a dimensão  
ideal, sempre como algo cuja gênese se dá no âmbito da prática humana, e o  
consequente desencadeamento de cadeias causais, não constituem dois atos  
autônomos. Ao contrário, do ponto de vista ontológico, são dimensões inseparáveis  
no interior de um só e único complexo e o seu isolamento apenas pode ser cogitado  
no pensamento, jamais se apresentando de modo dissociado na realidade efetiva ela  
mesma. A mesma advertência vale para a tomada de decisão entre alternativas, pois  
além de se constituírem “fundamentos insuprimíveis do tipo de práxis humano-social  
e somente de modo abstrato, nunca realmente, podem ser separadas da decisão  
individual”. (LUKÁCS, 2013, 123).  
Vale a pena insistir: não é possível separá-los, na medida em que  
ontologicamente, de fato, na realidade, um depende do outro para existir. "Isso quer  
dizer que o ato do pôr teleológico só se torna um ato teleológico autêntico através da  
efetuação real de sua realização material” (LUKÁCS, 2013, p. 356).  
Entretanto, vale lembrar também um outro aspecto decisivo da relação indivíduo  
que trabalha e o meio como também o objeto em que recai a sua ação. Lukács já no  
capítulo I enfatiza que  
que a necessária ocorrência de decisões entre alternativas não implica  
conhecimento e controle completos do indivíduo sobre as  
circunstâncias da sua vida e do meio circundante. Examinando, pois,  
o processo global do trabalho, tem-se que o homem, que põe  
determinados pores teleológicos, sempre o faz de modo, sem dúvida,  
consciente, mas nunca em condições de um conhecimento pleno de  
todos os aspectos e características envolvidas. Para a realização do  
trabalho ele deve conhecer a legalidade fundamental do processo,  
caso contrário, a sua ação não atingiria o fim proposto. Um trabalho  
só pode ser frutífero se posto em movimento por uma colocação  
teleológica compatível com a ordem causal real. O sujeito do trabalho  
conhece, mas não se encontra em condições de dominar todo o  
complexo de determinações e circunstâncias que marcam o campo  
sobre o qual atua, restando sempre um espaço desconhecido.  
(Vaisman, 2010, p.47)  
Como veremos mais à frente, a dimensão do desconhecido, no contexto dos  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
pores teleológicos secundários, assume proporções distintas do que ocorre na esfera  
do trabalho, adquirindo amplitude, conotações e, em suma, características bem  
diversas.  
De todo modo, no capítulo em questão, Lukács se dedica a reconhecer e a  
analisar um certo tipo de pôr teleológico que, diferentemente do que ocorre no  
trabalho, não se volta à objetividade natural. Trata-se de analisar os pores teleológicos  
que têm como objeto uma outra pessoa, um outro homem, uma outra consciência. Em  
outros termos, têm como objeto modificar e intervir no comportamento de outrem, e  
é justamente esse conjunto de problemas que, em verdade, interessa ao autor.  
Entretanto, será útil observar que gradativamente, Lukács, ao longo de sua  
cuidadosa argumentação, vai se afastando do âmbito específico do trabalho, ou seja,  
do pôr teleológico primário, para se dedicar, até o final do livro, à análise dos  
processos que se dão, com grau de complexidade cada vez maior, no terreno do que  
ele denomina de pores teleológicos secundários. Justamente aí, diante de um tipo  
específico de objetividade, que é de natureza puramente social, aquilo que Marx  
denominou em O Capital, referindo-se ao valor, de "sensível-suprassensível". Esse fato  
indica, por seu turno, que Lukács se depara com um problema muito mais intrincado  
do que aqueles sobre os quais ele voltou a atenção no início da chamada parte  
“sistemática” de sua Ontologia. E por quê? Porque o objeto sobre o qual recaem os  
pores teleológicos secundários, que ele quer agora identificar e apresentar, é o  
comportamento humano em todas as suas variantes. Ora, se está diante de algo que  
é mais oscilante e mais imprevisível do que objetividade sobre a qual o trabalho incide  
sua ação, algo, portanto, mais difícil de agarrar ou mesmo reconhecer sua presença.  
Nesse sentido, me atrevo a dizer que o capítulo sobre o trabalho, não obstante a sua  
importância por si evidente, pode ser considerado o grande momento inicial e  
preparatório, para que Lukács pudesse chegar ao ponto que realmente lhe importava.  
É evidente, que não é esse o lugar para se discutir o que seria a Ética, que Lukács  
acabou por não escrever, mas há indícios razoáveis que sua preocupação girou em  
torno do tema, nunca tomado de modo isolado e autônomo, em alguns momentos de  
seu itinerário. Ou seja, em princípio, pode ser considerada como uma indagação  
pertinente, se levarmos em conta, o caminho teórico que ele mesmo percorreu.  
Ainda mais, se avaliarmos o modo como ele introduz o vínculo entre o momento  
real e o momento ideal no início do capítulo em destaque, onde se vale de passagens  
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nova fase  
Ester Vaisman  
específicas de O capital, a partir das quais Lukács avança suas considerações sobre os  
aspectos similares entre os dois tipos de pôr, o primário e o secundário, mas,  
sobretudo, para poder afirmar a peculiaridade do último. Ele diz:  
O desdobramento da esfera econômica da produção no seu sentido  
mais estrito e próprio, desde o metabolismo da sociedade com a  
natureza até as formas mais mediadas e complexas nas quais e pelas  
quais se dá a socialização da sociedade, torna essa relação do ideal e  
do real cada vez mais dinâmica e dialética. Já vimos que os atos  
teleológicos que se reportam de modo apenas mediato ao  
metabolismo com a natureza têm por fim influenciar diretamente a  
consciência, as resoluções de outros. Aqui, portanto, o ideal está  
contido como motivo e objeto tanto no pôr quanto no objeto por ele  
intencionado; o papel do ideal se intensifica, portanto, em comparação  
com os pores originais do trabalho, cujo objeto por necessidade é  
puramente e ideal (LUKÁCS, 2013, PP.359-60).  
Vê-se que, nesse momento do livro, o acento recai sobre o aumento do elenco  
de mediações na relação com objetos puramente naturais, que vão se apartando da  
prática, à medida em que a sociedade vai se tornando cada vez mais social. Isto é, se  
diversifica e se amplia o elenco de mediações de caráter eminentemente sociais no  
metabolismo com a natureza. Como resultado, tem-se, sempre de acordo com Lukács,  
a intensificação e o alargamento do papel do momento ideal. Ou seja, a partir de um  
determinado momento do processo de socialização da sociedade, (o que, de fato,  
ocorre muito cedo) um pôr teleológico passa a ser objeto para outro pôr, o que torna  
a relação entre momento real e ideal mais complexa do que se vista apenas sob o  
prisma do pôr teleológico primário. Neste, analisado isoladamente, o objeto do pôr,  
como já visto, tem caráter eminentemente material, ao passo que, agora, sob o prisma  
da diversificação ampliação dos pores teleológicos secundários, a relação não é mais  
material-ideal, mas, ideal-ideal, visto que a objetividade social, para utilizar os termos  
de Marx, se torna sensível-suprassensível como resultado do afastamento das barreiras  
naturais.  
Evidentemente, não há por parte de Lukács o intento de estabelecer uma linha  
do tempo, em que os pores teleológicos secundários teriam surgido, hipoteticamente  
na sequência de um amplo aprimoramento dos atos envolvidos no complexo do  
trabalho. Muito ao contrário, os pores teleológicos secundários se manifestam  
no nível mais incipiente do desenvolvimento das forças produtivas, na  
medida em que o processo laborativo coloca aos homens tarefas que  
só podem ser cumpridas se elas forem acompanhadas por posturas e  
afetividades adequadas à sua execução. Essa função desempenhada  
pelos pores teleológicos secundários é tanto mais fundamental quanto  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
mais complexa for a divisão do trabalho (VAISMAN, 2010, p.47)  
A título de exemplificação, com o objetivo de caracterizar a natureza daqueles  
pores, a partir dos quais se abre o caminho para a determinação da ideologia, vale a  
pena mencionar que se trata  
das atividades não econômicas, “organizadoras da sociedade”, que  
constituem a superestrutura social, particularmente a esfera jurídico-  
política, cujo conteúdo pode estar voltado tanto para a manutenção  
quanto para o desenvolvimento ou destruição do status quo, mas cuja  
existência é determinada, através de múltiplas mediações, pelas  
necessidades postas pelo desenvolvimento material da sociedade  
(VAISMAN, 2010, p. 47).  
Feito esse esclarecimento, é necessário atentar para o que está em jogo nesse  
momento da exposição de Lukács. Trata-se, a meu ver, de algo de vital importância  
para se compreender a linha analítica do autor, bem como o devido papel que o  
momento ideal assume em sua reflexão. Nesse sentido, o autor adverte:  
Por conseguinte, se a esfera econômica for analisada ontologicamente  
sem preconceitos, facilmente se revela como é importante tomar  
complexos de funcionamento elementar como ponto de partida para  
compreender sua totalidade e seus complexos parciais maiores, em  
vez de querer apreender as leis da economia com o auxílio de  
"elementos" artificialmente isolados e de seu contexto metafísico-  
mecânico (LUKÁCS, 2013, p. 362).  
Fica evidenciado assim, o “roteiro metodológico” (na falta de outra expressão  
para designar o procedimento utilizado) do autor: o fato de ter iniciado a parte  
“sistemática” da Ontologia valendo-se de uma “abstração isoladora”, e tomando o  
Trabalho, como ponto de partida, “como complexos de funcionamento elementar”, mas  
sem deixar de inseri-los em complexos, que embora parciais, são de maior  
envergadura.2 É exatamente no que consiste o procedimento de Lukács ao desfazer a  
abstração isoladora, que lhe permitiu delimitar e identificar no pôr teleológico primário  
o modelo da prática social, mas que, em seguida, deve ser reconhecido enquanto  
complexo parcial de uma totalidade mais abrangente, ou seja, o complexo da  
reprodução. Vencida essa etapa, trata-se de tomar complexos que se constituíram no  
processo de “afastamento das barreiras naturais”, ou seja, no interior complexos ainda  
mais abrangentes, em cujo seio as interrelações entre ideal e material ganham novas  
e diferentes configurações.  
Mais à frente, pode-se identificar no texto, um argumento de talhe conclusivo  
2 Referir artigo de Ronaldo sobre a descentralidade do trabalho.  
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Ester Vaisman  
que parece validar o destaque atribuído ao “momento ideal”, justamente quando é  
reconhecido de maneira enfática que, embora seu “campo de ação” apenas pode se  
dar no ser social e não fora dele, simultaneamente, é afirmado que o momento ideal  
“constitui o pressuposto insubstituível de tudo o que surge e existe socialmente”  
(LUKÁCS, 2013, p. 406). E de fato, ele mesmo reconhece, que “para chamar a atenção  
do leitor para essa factualidade, nem sempre reconhecida, tentamos mostrar,  
exatamente com relação à esfera econômica, que tudo o que nela acontece tem como  
pressuposto momentos ideais” (LUKÁCS, 2013, p. 406).  
O argumento acima confirma a ponderação que fizemos no início do presente  
artigo, isto é, o objetivo de Lukács é o de evidenciar o caráter decisivo do momento  
ideal no processo de constituição e desenvolvimento da sociabilidade, reconhecendo,  
ao mesmo tempo que esta última é o único “lugar” em que sua atuação pode se dar.  
Em outros termos, distanciando-se dos modos prevalentes com que o problema foi  
abordado ao longo de séculos, o critério ontológico permitiu ao nosso autor tematizar  
a relação efetivamente existente entre momento real e momento ideal, ao se afastar  
de modo decidido e convincente do modo unilateral com que o tema tem sido tratado,  
sobretudo no interior do marxismo. Consequentemente, parece claro que essa  
conquista teórica irá repercutir decisivamente no modo que o tema da ideologia será  
abordado nas páginas seguintes.  
Nesse sentido, na sequência de sua argumentação, o autor recupera momentos  
de sua análise desenvolvidos no primeiro e no segundo capítulos com o objetivo de,  
mais uma vez, esclarecer o que está em jogo quando o foco recai sobre a natureza do  
momento ideal característico dos pores teleológicos secundários. Tudo,  
evidentemente, com a pretensão de preparar o caminho para a determinação  
ontológica da ideologia. Na citação abaixo, Lukács reafirma uma das teses mais  
importantes que nasceram da sua empreitada de final de vida. Ele diz:  
Assim, o conjunto do ser social, nos seus traços ontológicos  
fundamentais, está construído em cima dos pores teleológicos da  
práxis humana, formalmente sem levar em conta em que medida os  
conteúdos teóricos de tais pores, em termos gerais, captam  
corretamente o ser, bastando que estejam em condições de realizar  
suas finalidades imediatamente almejadas, obviamente tampouco  
levando em conta se suas consequências causais ulteriores  
correspondem às intenções dos sujeitos dos pores. (LUKÁCS, 2013,  
p.368)  
A dimensão do momento ideal dos pores teleológicos secundários, que entra em  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
cena agora, diz respeito àquilo que tem sido, entre os estudiosos do assunto, o critério  
básico para se avaliar se algo é ideologia ou não: a sua correção ou falsidade. Lukács,  
no sentido oposto a tais tendências, já adianta que a avaliação de tipo gnosiológica,  
ou seja, se o conteúdo dos momentos ideais é correto ou falso, não tem maior  
importância, tendo em vista que o que importa, pelo menos nesse momento de sua  
argumentação, isto é, no instante em que o interesse é determinar o “ser” desse  
fenômeno, é a verificação se esses momentos são capazes de orientar a ação no  
sentido de efetivá-las.  
Preparando o caminho para o devido tratamento do problema da ideologia, como  
é característico do modo como Lukács articula sua argumentação, ele dirige o foco não  
apenas a categoria da liberdade, remetendo-a ao campo das decisões alternativas,  
contido já no pôr teleológico primário, mas também um outro par categorial de suma  
importância: essência e fenômeno. Também, nesse caso específico, procura evidenciar  
que sua análise se distancia do modo como a tradição filosófica procurou contemplá-  
la, ainda que reconheça em Hegel, a despeito de todas as suas limitações de caráter  
idealista, um grande avanço, sobretudo no reconhecimento da autonomia relativa do  
mundo fenomênico em relação à essência, da qual o fenômeno não pode emergir como  
um produto mecânico, mas, além disso, é preciso notar que  
essa autonomia existe exclusivamente no quadro da interação com a  
essência; mesmo que seja como campo de ação de amplo alcance,  
multiestratificado e multifacetado, o é apenas como campo de ação  
do auto desdobramento dentro de uma interação na qual a essência  
possui a função do momento predominante (Lukács, 2013, p. 396)  
Mais uma vez, Lukács, ao trabalhar do ponto de vista ontológico com pares  
categoriais de larga tradição na história da filosofia, procura mostrar que sua análise  
se distancia do modo como foram tratados, sobretudo no interior de tendências  
idealistas, mas não isenta, quanto a isso, o materialismo vulgar, ainda que, em seus  
próprios termos, “mesmo que ele se chame de marxismo”, ao denunciar a “completa  
caducidade das duas concepções” (idem).  
Depois de demonstrar as semelhanças entre os dois tipos de pores teleológicos,  
o primário e o secundário, e referir as categorias mais decisivas que entram em jogo  
nesse âmbito da existência humana, Lukács se apressa, mais uma vez, com o objetivo  
de evitar distorções a respeito, em retomar aquilo que diferencia ambos os tipos de  
prática, pois nunca é demais repetir. Enquanto “os pores direcionados imediatamente  
para o metabolismo entre sociedade e natureza se diferenciam em essência, tanto  
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subjetiva como objetivamente, daqueles cuja intenção direta é a mudança de  
consciência de outros homens” (LUKÁCS, 2013, p. 399). Ou seja,  
ao lado da identidade abstrata entre os pores teleológicos primários  
e aqueles que compõem a base sobre a qual se estruturam os  
fenômenos ideológicos, que se verifica pelo fato de que os dois tipos  
são rigorosamente teleologias, tomadas de decisão entre alternativas,  
deve-se ressaltar sua diferença básica, pois não constituem pores do  
mesmo gênero (VAISMAN, 2010, p. 48).  
Ressaltando, entre outros aspectos decisivos, também o papel da linguagem3,  
principalmente na produção e aprimoramento das condições e relações com o meio  
ambiente, por meio da “autonomização” da imagem e da representação, Lukács chega  
a um momento crucial de sua reflexão, mas sobre o qual não temos como contemplar  
com o devido detalhe nesse instante, ainda que seja necessário referi-lo mesmo que  
rapidamente: trata-se das noções de “objetivação [Vergegenständlichung] do objeto e  
a alienação [Entäußerung] do sujeito, [que] como processo unitário compõem o  
fundamento da práxis e teoria humanas.” (LUKÁCS, 2013, p.417). O que Lukács tem  
em mente nessa altura do texto, é despojar da noção de objetivação todo e qualquer  
resquício da forma como Hegel tratou do tema, de modo a compreender devidamente,  
não apenas a crítica que Marx lhe dirige nos afamados manuscritos de Paris, mas,  
sobretudo, do reconhecimento que  
a objetivação perfaz a essência realmente objetivada real e, por isso,  
a essência realmente objetiva do ser social, de toda praxis social, e ao  
mesmo tempo, de modo inseparável dela, revela uma atividade dos  
sujeitos sociais, que - exatamente em sua atividade - não só atuam de  
modo objetivador sobre o mundo objetivo, mas, ao mesmo tempo, de  
modo inseparável, reformam o seu próprio ser enquanto sujeitos que  
põem objetivações. (LUKÁCS, 2013, p. 422).  
A recuperação da crítica marxiana a Hegel, bem como o seu devido  
entendimento, acerca da relação das duas categorias acima referidas, proporcionou ao  
nosso autor avançar em um terreno particularmente sinuoso e difícil: o das complexas  
relações indivíduo e gênero (de vital importância, como veremos a seguir, para a  
determinação das formas puras de ideologia), mas, também do par categorial sujeito-  
objeto, sempre presente nas reflexões lukácsianas desde o capítulo sobre o trabalho.  
Nesse momento, no entanto, a retomada dessa discussão se apresenta como crucial  
para agregar novos elementos analíticos, o par objetivação-alienação (sempre  
3 Não é possível nos deter nessa análise, mas é interessante observar que se trata de um dos momentos  
mais fecundos e originais da reflexão do filósofo de Budapest.Ver dissertação de Myreli  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
concebidas como elementos de um ato unitário), de modo a ampliar e adensar o papel  
das objetivações ideais, o que permite ao nosso autor afirmar que  
na relação "sujeito-objeto" enquanto relação típica entre o homem e  
o mundo, o seu mundo, constitui uma inter-relação, na qual o sujeito  
atua permanentemente sobre o objeto, o objeto sobre o sujeito,  
conferindo nova forma, produzindo coisas novas, na qual nenhum dos  
dois componentes pode ser compreendido isoladamente separado  
por antagonismos e, portanto, de modo independente (LUKÁCS,  
2013, pp. 422-23)  
Embora não seja o caso aqui de nos determos mais longamente sobre o tema,  
fica claro, entretanto, que o esforço de Lukács, nesse momento de sua exposição, é o  
de demonstrar, de um lado, o caráter inextrincável da relação indivíduo-gênero e, de  
outro, como tal relação, marcada pela reciprocidade entre seus polos, se modifica  
permanentemente na medida em que os pores teleológicos retroagem sobre os  
sujeitos que os põem.  
Vejamos agora como a caracterização dos vários papéis desempenhados pelo  
“momento ideal” no âmbito do ser social é crucial para a determinação ontológica da  
ideologia e como, a contribuição de Lukács a respeito coloca em suspenso as análises  
que o precederam ou que lhe são contemporâneas.  
Desde logo, Lukács é enfático ao afirmar que  
é errôneo compreender o conceito de ideologia em seu uso pejorativo,  
que representa uma realidade social indubitavelmente existente, como  
formação arbitrária do pensamento de pessoas singulares. Antes de  
qualquer coisa: enquanto alguma ideia permanecer o produto do  
pensamento ou a alienação do pensamento de um indivíduo, por mais  
que seja dotada de valor ou de desvalor, ela não pode ser considerada  
como ideologia. Nem mesmo uma difusão social relativamente mais  
ampla tem condições de transformar um complexo de ideias  
diretamente em ideologia. Para que isso aconteça, é necessária uma  
função determinada com muita precisão, a qual Marx descreve de  
modo a fazer uma diferenciação precisa entre as revoluções materiais  
das condições econômicas de produção e "as formas jurídicas,  
políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, ideológicas, nas  
quais os homens se conscientizam desse conflito e o enfrentam até  
solucioná-lo” (LUKÁCS, 2013, p. 464).  
Tomando como ponto de apoio os dizeres de Marx, e reafirmando o lugar  
fundamental que a vida cotidiana ocupa no ser social, pode-se afirmar que a tese de  
Lukács a respeito da ideologia se assenta na constatação de que a  
cotidianidade social apresenta problemas que continuamente devem  
ser conscientizados e resolvidos: de modo que a presença das formas  
ideológicas não se manifesta apenas em momentos de crise, mas  
permanentemente no próprio cotidiano. Estando sempre vinculada à  
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existência do ser social, /.../, ela é o momento ideal da ação prática  
dos homens, expressando o seu ponto de partida e destinação, bem  
como sua dinamicidade. (VAISMAN, 2010, p. 49)  
Ou nas palavras do próprio autor, “a ideologia é sobretudo a forma de  
elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente  
e capaz de agir”, e, ademais,  
toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem  
sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos  
homens que agem socialmente em sociedade. Essa determinidade de  
todos os modos de exteriorização [Auflerungsweisen] humanos pelo  
hic et nunc do ser-propriamente-assim histórico-social de seu  
surgimento tem como consequência necessária que toda reação  
humana ao seu meio ambiente socioeconómico, sob certas  
circunstâncias, pode se tornar ideologia. Essa possibilidade universal  
de virar ideologia está ontologicamente baseada no fato de que o seu  
conteúdo (e, em muitos casos, também a sua forma) conserva dentro  
de si as marcas indeléveis de sua gênese (LUKÁCS, 2013, p. 465).  
A citação acima é de fundamental importância, na medida em que, entre outros  
aspectos, revela como o critério ontológico na determinação do que é ideologia  
permitiu ao autor vislumbrar o problema de um modo mais fecundo que as abordagens  
tradicionais, reafirmando para tanto a sua reflexão sobre a determinação social do  
pensamento. Nesse sentido, Lukács reconhece, sobretudo,  
que a ideologia só tem existência social e que ela se refere a um real  
específico, que é por ela pensado e sobre o qual atua. A existência  
social dos homens é implicada pela consciência, ou seja, por seres  
sociais que medeiam suas ações pela consciência, portanto, a  
ideologia tem sua gênese determinada pela atividade social dos  
homens e nasce exatamente aí. Ela surge do aqui e imediatamente  
que coloca problemas. Nesse processo, entre o lócus social específico  
da atividade humana e o homem sempre socialmente entendido, a  
forma consciência é a mediação da própria prática social. Do ponto  
de vista ontológico, estamos, pois, diante do seguinte: o produzido é  
determinado pela sua produção, o que significa que o ser da ideologia  
é determinado pela sua produção, que é e só pode ser social.  
(VAISMAN, 2010, p. 50).  
O reconhecimento da cotidianidade social como âmbito marcado por problemas  
que devem, de algum modo, receber uma resposta resolutiva, e, nesse sentido  
também, como lócus em que a ideologia tem sua gênese e seu campo de operações,  
oferece ao autor a possibilidade de caracterizar o fenômeno ideológico de modo  
amplo. Entretanto, essa caracterização é necessária, mas não suficiente. Tendo em vista  
que intuito de Lukács é seguir a caracterização marxiana de 1859, Lukács se volta  
então à sua caracterização restrita, tendo em vista que  
a existência social da ideologia parece pressupor os conflitos sociais,  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
que precisam ser travados, em última instância, em sua forma  
primordial, isto é, socioeconômica, mas que desenvolvem formas  
específicas em cada sociedade concreta: justamente as formas  
concretas da respectiva ideologia (LUKÁCS, 2013, p. 471).  
E conclui, “Em síntese: o surgimento e a disseminação de ideologias se  
manifestam como a marca registrada geral das sociedades de classes” (LUKÁCS, 2013,  
p.472). Em outras palavras, na medida em que o conflito social se apresenta “como  
problemática vital, a ideologia volta-se à resolução dos problemas agora  
transpassados por este conflito básico, ou seja, a ideologia passa a se manifestar como  
um instrumento ideal através do qual os homens e as classes se engajam nas lutas  
sociais, em diversos planos e níveis. (VAISMAN, 2010, p. 50).4  
As considerações realizadas por Lukács acerca de determinados  
comportamentos, atitudes, comportamentos e procedimentos, que provavelmente  
tiveram lugar antes mesmo que o conflito de classes tenha se tornado o problema  
social central, levam à conclusão que  
alguns tipos de produção de ideologias remontam aos primórdios do  
desenvolvimento social. Isso não contradiz o fato de que os problemas  
propriamente ditos da ideologia, oriundos da luta de classes, sejam  
resultados de tempos posteriores, mas requer, ao mesmo tempo, que  
sua função social e, por isso, sua gênese e seu efeito sejam  
determinados de modo um pouco mais amplo (LUKÁCS, 2013, P.  
478).  
É claro, no entanto, que as diferenciações que Lukács estabelece entre a  
concepção ampla e a restrita de ideologia “devem ser entendidas apenas como  
generalidade e particularização, seja como dimensões, estados ou momentos de um  
mesmo fenômeno” (VAISMAN, 2010, p.50), tendo em vista que diversos tipos de  
embates de natureza distinta que provocam respostas mediadas pela ideologia - não  
podem ser deduzidos mecanicamente da esfera econômica sem mais, mesmo que a  
luta entre as classes tenha se tornado o problema ideológico central.  
4
Em relação ainda à caracterização ampla de ideologia, é necessário assinalar que Lukács se dedica  
longamente a esclarecer que a ideologia não surge apenas em sociedades marcadas pelo antagonismo  
de classe, ao contrário. Segundo ele, ainda nas sociedades originárias, devem ter existido situações que  
requeriam a interveniência de pores teleológicos secundários. Ademais, esclarece também que “toda  
atividade assume uma forma objetivada, uma forma alienada, de modo que a esfera de vida abrangida  
de modo meramente pragmático-empiricista, por mais ampla que seja, é muito maior e mais diferenciada  
do que se poderia supor em razão da mera existência de instrumentos materiais de trabalho etc.”  
(LUKÁCS, 2013, p. 474). Ademais, em função da magnitude do desconhecido, é bem provável que  
tenham sido utilizados procedimentos como a analogia, por exemplo, como “forma elementar do  
espelhamento ideal da realidade”, diante dos desafios de sobrevivência. (Cf. LUKÁCS, 2013, p.475 e  
ss).  
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Esclarecidos os níveis em que as ideologias podem se manifestar, Lukács se  
dedica a demonstrar os equívocos gerados pelo uso do critério gnosiológico na  
determinação do que é ideologia5. Outrossim, reconhece que “a esmagadora maioria  
das ideologias se baseia em pressupostos que não conseguem resistir a uma crítica  
rigorosamente gnosiológica, especialmente quando esta toma como ponto de partida  
um intervalo vasto de tempo” (LUKÁCS, 2013, p. 480), mas, em seguida, aponta para  
um esclarecimento fundamental, qual seja,  
em primeiro lugar, há muitas realizações da falsa consciência que  
jamais se converteram em ideologias e, em segundo lugar, aquilo que  
se converteu em ideologia de modo algum é necessária e  
simplesmente idêntico à falsa consciência. Por essa razão, só é  
possível compreender o que realmente é ideologia a partir de sua  
atuação social, a partir de suas funções sociais. (LUKÁCS, 2013, p.  
480).  
Por via de consequência, “a condição eventual de produto de falsa consciência  
não identifica um pensamento à ideologia” (VAISMAN, 2010, p. 51), em contraste,  
para identificar um pensamento à ideologia, é necessário, inicialmente, avaliar se este  
desempenha uma função social precisa, um poder realmente operante. Ou seja, é  
necessário livrar “a existência e a atuação das ideologias de sua subordinação a juízos  
de valor gnosiológicos e histórico-filosóficos” para proceder uma investigação  
adequada do problema (LUKÁCS, 2013, p. 482).  
Como sublinhado anteriormente, é no interior de uma abordagem que reconhece  
o papel do momento ideal dos vários níveis em que se coloca a prática social,  
sobretudo, no que concerne às decisões entre alternativas na efetivação de  
possibilidades objetivas posta pela essência econômica, que Lukács elabora sua  
análise sobre as formas específicas de ideologia. Nesse contexto, a divisão do trabalho  
devém um importante campo para a especificação das ideologias de caráter restrito,  
na medida em que implica num movimento que autonomiza uma atividade peculiar,  
distante da produção material, mas por esta exigida a propósito de sua própria  
efetivação. Nesse sentido, o que caracteriza o movimento da essência coloca aos  
indivíduos eu agem as “possibilidades objetivas” sobre as quais recaem as decisões  
alternativas. Longe de tomar, portanto, a base da sociedade como uma “necessidade  
5
Observe-se que Engels é objeto da crítica lukácsiana justamente por ter não apenas por ter  
considerado a vigência da analogia em sociedades originárias como “asneira em estado primitivo”, mas,  
sobretudo por ter abordado o fenômeno ideológico da perspectiva gnosiológica.  
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fatal, que determina tudo de antemão”, mas como “campo de ação real para a práxis  
humana, que é o que existe em cada caso concreto” LUKÁCS, 2013, p. 494).  
Em suma, a relação essência e fenômeno assim entendida, ou seja, enquanto par  
categorial, desfaz a visão, muito disseminada entre os marxistas, que no mais das  
vezes concebem a tanto possibilidade objetiva quanto a necessidade como polos de  
uma relação antagônica”, na qual uma e outra se contrapõem, anulando-se toda e  
qualquer possibilidade de interrelação, ou seja, de acordo com o modo prevalente  
entre marxistas, ambas existem e permanecem de modo estanque e em constante  
oposição, sem nenhuma possibilidade de contato, ainda que contraditório.  
O primeiro tipo de ideologia específica analisada por Lukács é justamente o  
Direito, a prática jurídica, o que pressupõe a existência de um processo de  
complexificação da produção material que demanda operações que parecem ter pouco  
ou nada que ver com ela, mas que são indispensáveis para a sua consecução”  
(VAISMAN, 2013, p. 51). Ou em outras palavras, o regramento jurídico não é uma  
esfera de atividade inserida na produção econômica, mas seu andamento não poderia  
se dar sem a existência de normas jurídicas, assim, como da formação de um grupo de  
especialistas voltados à elaboração e fiscalização de tal regramento. Desse modo, a  
esfera jurídica e os juristas de profissão surgem para ordenar e regulamentar  
atividades materiais decisivas, cuja natureza dista muito do próprio universo jurídico  
(VAISMAN, P. 51)  
Ademais, considerar o direito como uma forma específica de ideologia não deriva  
do fato de se constituir em um reflexo deformado da realidade social conflituada. Ou  
seja, não é pelo fato de produzir enunciados falsos é que ela deve ser considerada  
uma ideologia. Lukács esclarece que  
nesse campo, não se trata de fazer uma separação abstrata de  
verdadeiro e falso na imagem ideal do econômico, mas de verificar se  
o ser-propriamente-assim de um espelhamento eventualmente falso é  
constituído de tal maneira que se torna apropriado para exercer  
funções sociais bem determinadas. Os critérios do processo de  
abstração objetivante que o pôr jurídico efetua no conjunto da  
realidade social consistem em se ele é capaz de ordenar, definir,  
sistematizar etc. os conflitos socialmente relevantes de tal maneira  
que seu sistema possa garantir a otimização relativa do respectivo  
estado do desenvolvimento da sua própria formação, visando ao  
enfrentamento e à resolução desses conflitos. (É óbvio que isso só  
pode ser efetuado em conformidade com os interesses da classe  
dominante em cada caso.) (LUKÁCS, 2013, p.499)  
De acordo com Lukács, a esfera jurídica emerge a um dando instante do processo  
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de complexificação da atividade econômica e da divisão social do trabalho, de modo  
a satisfazer a necessidade de regulação de certas operações econômicas e das próprias  
relações de trabalho. Para responder adequadamente às necessidades postas,  
sobretudo a partir dos conflitos que a cada momento se tornam mais drásticos, se dá  
a formação de grupos profissionais dedicados a essa tarefa.  
Ainda a respeito do tema, ou seja, da formação de grupos de especialistas que  
vivem da atividade jurídica, Lukács, a partir de considerações de Engels, afirma:  
justamente porque essa atividade retroage "novamente " sobre a  
base econômica, podendo modificá-la dentro de certos limites, o  
ponto de vista especificamente ideológico experimenta intensificações  
ininterruptas, a tal ponto que, na autoapresentação das  
especializações ulteriores que surgem nesse âmbito (ciência do  
direito, filosofia do direito etc.), o conteúdo e a forma do direito muitas  
vezes aparecem petrificadas de modo puramente fetichista como  
forças da humanidade. (LUKÁCS, 2013, p. 501)  
A análise lukácsiana do direito, enquanto forma específica de ideologia, também  
se detém em uma das operações que essa esfera de especialistas promove em relação  
às explicações por ela produzidas sobre o próprio fenômeno ideológico. Diz ele  
Notável nisso tudo continua sendo que as maiores resistências contra  
uma apreensão ontologicamente correta das ideologias costumam ser  
desencadeadas exatamente por esses estratos de especialistas. Por  
um lado, defende-se o ponto de vista de que o comportamento que  
determina o pôr teleológico como ideologia seria uma parte  
integrante do ser do homem enquanto homem e não um mero  
fenômeno decorrente da divisão social do trabalho em determinados  
estágios. Por outro lado, todavia em estreita conexão com isso, o  
vínculo real entre essência e fenômeno é posto de lado como não  
existente, devendo os comportamentos ideológicos "puramente  
espirituais" vigorar como essências, ao passo que a luta real dos  
homens reais por sua existência é posta em segundo plano como  
desprezível submundo da existência. Só assim as determinações de  
valor do direito se convertem em ideologia no sentido pejorativo. O  
caráter real do direito só pode ser evidenciado, portanto, quando se  
compreende essa deformação glorificadora como aquilo que ela de  
fato é, a saber, uma ideologização da ideologia que surge  
necessariamente quando a divisão social do trabalho delega sua  
manutenção a um estrato de especialistas. (LUKÁCS, 2013, pp. 501-  
02).  
Interessante observar ainda, de acordo com a análise crítica da esfera jurídica  
que  
Nessa operação escamoteadora da esfera jurídica, é sintomático que  
a escamoteada seja a dimensão ontológica do fenômeno e de sua  
análise. Para logo em seguida retornar acriticamente a uma  
“ontologia” meramente imputada, em que a mundaneidade real passa  
a “desprezível submundo da existência”, e uma pura espiritualidade  
passa à condição de essência real e explicativa. É dessa forma,  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
segundo Lukács, que o direito se transforma “em ideologia no sentido  
pejorativo” (VAISMAN, 2010, p.53).  
Os procedimentos abstrativantes típicos da área jurídica, com vistas a criação de  
normas e leis, procuram generalizar também normas espontaneamente produzidas,  
sobre as quais, inclusive, se apoia. É evidente, entretanto que tal processo ocorre na  
realidade por meio de múltiplas mediações, não podendo ser concebido de forma  
linear e mecânica. Ademais, a generalização abstrativante que lhe é típica tem por  
função tornar os regramentos aplicáveis, por princípio, a todos e em toda e qualquer  
circunstância.  
O direito como corpo coerente e sistemático, instrumento de  
resolução dos conflitos sociais cotidianos, reflete de forma  
aproximada as características da vida econômica, sem, no entanto,  
configurar um reflexo mecânico e deliberado desta; mas, precisamente  
para ser instrumento de resolução dos conflitos, cuja direção é dada  
pelos interesses da classe dominante, para sua real eficiência na  
resolução daqueles, deve pretender o máximo de universalidade  
possível naquele momento. Neste contexto, o direito não pode  
configurar uma reprodução fiel da realidade econômica. (VAISMAN,  
2010, p. 53).  
No caso da ideologia do direito, o que importa, de acordo com Lukács não é sua  
correção ou falsidade, em relação ao modo como retrata a vida, mas sim, se ainda que  
que falso, desempenha com eficiência a sua função regulatória dos conflitos.  
Ou dito em outros termos,  
O direito é um corpo coerente e sistemático, que serve de instrumento,  
pois, para a resolução dos conflitos sociais (em sentido amplo)  
cotidianos imediatos, derivados do contexto produtivo. Resolução  
essa que é dada a partir da perspectiva da classe dominante, numa  
expressão, todavia, maximamente generalizante, ao limite da  
sociabilização concreta alcançada. Assim, o direito, dentre as formas  
específicas de ideologia, é aquela que desempenha a função mais  
restrita, ou seja, mais colada à imediaticidade da vida cotidiana. Basta  
pensar que está voltado precisamente à regulagem dos conflitos  
cotidianos mais restritos e restringíveis, derivados dos processos de  
reprodução material (VAISMAN, 2010, p. 53)  
Além da análise do direito, outra forma específica de ideologia abordada por  
Lukács é a prática política. Desde logo, o autor reconhece a dificuldade de delimitar  
com exatidão seu âmbito como ideologia. Isso porque “Não pode haver nenhuma  
comunidade humana, por menor que seja, por incipiente que seja, na qual e em torno  
da qual não aflorassem ininterruptamente questões que, num nível desenvolvido,  
habituamo-nos a chamar de políticas” (LUKÁCS, 2013.p 502). Ou seja, trata-se de um  
modo de conscientizar e intervir junto a problemas que concernem à globalidade da  
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Ester Vaisman  
existência social. De acordo com as palavras do próprio autor “a política é uma práxis  
que, em última análise, está direcionada para a totalidade da sociedade, contudo, de  
tal maneira que ela põe em marcha de modo imediato o mundo fenomênico social  
como terreno do ato de mudar, isto é, de conservar ou destruir o existente em cada  
caso”. (LUKÁCS, 2013, p. 502).  
No caso da política, nosso autor se vale do par categorial essência-fenômeno  
com o objetivo de evidenciar que a “união indissolúvel e a unidade de essência e  
fenômeno são tanto seu ponto de partida inescapável como seu fim necessariamente  
posto” (LUKÁCS, 2013, p.503). Mas é claro, que tal união/unidade não pode ser  
tomada de forma simplista, pois nela podemos encontrar elementos contraditórios,  
caraterística já indicada por Lukács linhas acima, momento em que o autor sublinhou  
a impossibilidade de lidar com esse par categorial, como houvesse uma total  
autonomia do mundo fenomênico em relação à essência ou se a relação entre ambos  
fosse matrizada de maneira mecânica.  
Sendo a política um tipo de pôr que incide na esfera fenomênica permeada pelo  
conflito social, a situação que daí advém para o autor é a seguinte:  
Em todas as decisões políticas há dois motivos objetivamente  
distintos, ainda que, na realidade, muitas vezes estejam interligados,  
que podem servir de critérios. O primeiro é o que Lenin costumava  
chamar de o elo mais próximo da corrente, a saber, aquele ponto  
nodal de tendências atuais, cuja influência resoluta é capaz de ter um  
efeito decisivo sobre o acontecimento global (LUKÁCS, 2013, p. 505).  
Ao examinar dois casos concretos, em que a questão do “elo mais próximo da  
corrente” se colocou historicamente, isto é, a revolução russa e a unificação alemã,  
Lukács indica o critério da eficácia, ou seja, “eficácia imediata de uma decisão política  
não pode ser o único critério para avaliar se efetivamente uma prática ideológico-  
política se identifica como política e se atinge o ser-precisamente-assim das tendências  
sociais; necessita-se, para tanto, de outro mais, que é justamente o da duração”  
(VAISMAN, 2010, p. 55). Tal cuidado na investigação se justifica, na medida em que  
a práxis política de fato está direcionada simultaneamente para a  
unidade de fenômeno e essência da realidade social como um todo,  
mas só pode apreender essa realidade em sua imediatidade, o que ao  
menos comporta em si a possibilidade de que tanto o objeto  
intencionado como o objeto atingido pelo pôr teleológico permaneça  
direcionado para o mundo do fenômeno que mais encobre que revela  
a essência. (LUKÁCS, 2013, p. 507)  
De acordo com a propositura lukácsiana, caso a análise ficasse limitada ao critério  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
da eficácia, sem levar em consideração o segundo critério, que é o da duração, se  
cairia numa posição típica da Realpolitik, o que implica, por seu turno, em uma análise  
superficial do problema. No entanto, ao fazer referência à duração,  
naturalmente não tínhamos em mente nenhum lapso de tempo  
abstrato, quantitativamente determinável, mas a questão referente a  
se os novos momentos causais postos em marcha no pôr teleológico,  
não importando com que grau de consciência isso seja feito, influem  
efetivamente nas tendências econômicas decisivas que entraram em  
crise (LUKÁCS, 2013, p. 507).  
Feito esse tipo de esclarecimento, “o critério da duração junta-se ao da eficácia,  
no sentido de que não entendido como um intervalo de tempo abstrato, mas sim em  
termos da profundidade da ação pode indicar se realmente a cadeia causal posta em  
movimento pela práxis política atingiu, no nível essencial, o desenvolvimento social  
(VAISMAN, 2013, p. 54).  
No caso específico da prática política, torna-se imprescindível a constatação de  
algo para o qual Lukács já havia advertido anteriormente, quando procurou  
estabelecer, ao lado das semelhanças, as diferenças entre os pôr teleológico primário  
e o pôr teleológico secundário, nomeadamente, o fato de que no pôr teleológico  
secundário, o campo do desconhecido se revestir de uma magnitude maior do que no  
primário. De fato, “o coeficiente de incerteza, como sabemos, não só é bem maior no  
segundo grupo, como também de uma grandeza que reverte para o plano qualitativo”  
(LUKÁCS, 2013, p. 509).  
Como resultado, tem-se o reconhecimento por parte do autor da existência de  
um processo contraditório, que permeia toda a práxis de tipo político, ou seja, a  
necessidade de dirimir o conflito, a crise em nível global, sem que se possa, na decisão  
política, no seu conteúdo ideológico, ter certeza acerca da eficácia e da duração  
daquelas séries causais postas em movimento” (VAISMAN, 2010, p. 55).  
Assinale-se, no entanto, que, embora o conhecimento que permitiria conferir  
certeza acerca da eficácia e da duração no momento da decisão política, ser algo  
possível apenas post festum, não significa que o fator subjetivo tenha sido  
subestimado pelo autor. Muito ao contrário. Já vimos qu ao rejeitar as postulações  
mecanicistas, típicas do marxismo vulgar, Lukács atribui ao fator subjetivo, ou seja, à  
prática social ideologicamente orientada, um papel de destaque ao afirmar com todas  
as letras que “A grande lição histórico-mundial das revoluções é que o ser social não  
só se modifica, mas reiteradamente é modificado”. (LUKÁCS, 2013, p. 524). Ou seja,  
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Ester Vaisman  
a argumentação desenvolvida por Lukács, ao mesmo tempo em que rejeita a visão  
determinista, afirma a possibilidade histórica de surgirem situações potencialmente  
revolucionárias, que só se efetivam graças à intervenção de pores teleológicos  
secundários, o que implica sempre em uma tomada de decisão entre alternativas.  
Dando continuidade à análise de formas específicas de ideologia, Lukács avança  
para um terreno que lhe é particularmente caro: a arte e a filosofia como formas “puras”  
de ideologia. Para o leitor desavisado, identificar a filosofia e arte como formas de  
ideologia, ainda que puras, pode causar estranheza e até certo tipo de rejeição, tendo  
em vista a existência no interior do marxismo, não apenas de uma visão mecanicista  
da relação infra e superestrutura (já mencionada linhas atrás), mas sobretudo de uma  
tendência igualmente nefasta de “politicizar” todo evento no campo filosófico e  
artístico de maneira desabrida e equivocada.  
Evidentemente, por tudo que aqui assinalamos, definitivamente não é o caso de  
Lukács. O que ocorre nesse ponto do argumento, é que o autor retoma a relação  
indivíduo-gênero como o âmbito das preocupações da arte e da filosofia.  
Evidentemente que, pelo menos desde a Estética de 1963, o autor aponta para a vida  
cotidiana, com todos os seus problemas e dilemas, como espaço genético de onde  
surgem e ganham autonomia as chamadas formações ideais, como a filosofia, a arte,  
a ciência e a religião. Mas adverte também que, com processos de autonomização  
distintos, a destinação de suas formulações é a própria cotidianidade, para o bem ou  
para o mal. Não é possível, nesse texto, recuperar minimamente a forma como Lukács  
mostra quais os processos que intervém nessa dinâmica. O que é possível aqui, assim  
como fizemos com o direito e a política, é simplesmente indicar os aspectos mais  
gerais da gênese e destinação dos produtos filosóficos e artísticos e quais foram as  
razões para que o filósofo húngaro das denominasse de formas puras de ideologia.  
Tomando para exame inicialmente o caso da filosofia, Lukács adverte o leitor  
para o seguinte esclarecimento acerca das relações entre filosofia e ciência. Diz ele:  
Ao voltar agora o nosso interesse para a gênese da filosofia, devemos  
tomar ciência, de início, que a priori não existe nenhum limite que  
possa ser traçado com precisão entre generalizações científicas e  
generalizações filosóficas; ainda hoje, numa época em que a divisão  
do trabalho leva à tendência de erigir barreiras artificiais, fetichizantes,  
entre os diversos ramos do saber, muitas vezes é difícil constatar, no  
caso de certas generalizações, se elas possuem um caráter científico  
ou filosófico (LUKÁCS, 2013, p. 540).  
Pelo menos desde a obra intitulada História e consciência de classe, Lukács  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
rejeita a separação entre as chamadas “ciências parcelares”, erigida como o dito acima  
de forma artificial, respondendo a requisitos acadêmicos fortemente questionáveis,  
mas também e, sobretudo, entre a filosofia e a ciência, num sentido contrário às  
tendências contemporâneas, sobretudo, as de caráter irracionalista.6  
Assim, de acordo com o autor em tela, longe de serem áreas do saber apartadas  
uma da outra,  
a filosofia aprofunda as generalizações das ciências, antes de tudo,  
por estabelecer uma relação inseparável com o nascimento histórico  
e o destino do gênero humano, com a essência, o ser e o devir  
humanos. Enquanto o método da generalização nas ciências se torna  
cada vez mais desantropomorfizador, a sua culminância na filosofia  
representa simultaneamente um antropocentrismo. Nesse caso, a  
palavra "simultaneamente" deve ser sublinhada. Porque em  
contraposição à tendência básica antropomorfizante das artes, o  
método da filosofia nunca representa uma ruptura com o das ciências  
(LUKÁCS, 2013, p.540).  
Fica, assim, esclarecido o motivo que levou o autor a se recusar estabelecer uma  
muralha divisória entre a filosofia e a ciência. Muito embora, a filosofia se aproxime de  
forma decida das preocupações que norteiam a atividade artística, que são  
essencialmente de caráter antropomorfizador, a filosofia se articula com os produtos  
da atividade científica, na exata medida em que, a partir do patamar científico, ela  
generaliza suas conquistas, sem desprezá-las, elevando-as ao nível do gênero humano.  
Mas, afinal, por que razão a filosofia e arte, cada uma à sua maneira, têm na  
relação indivíduo-gênero o seu campo de atuação? Como vimos, Lukács, em várias  
oportunidades do livro em questão, procura explicitar  
um aspecto ontológico fundamental do desenvolvimento humano-  
social. Este processo é um complexo dotado de dois polos em relação  
recíproca: de um lado, a universalidade do gênero, a generidade  
concreta de um dado momento, plataforma das possibilidades dos  
complexos singulares; de outro lado, o complexo constituído pelo  
indivíduo humano, a individualidade que forma a unidade mínima do  
processo. E ambos os polos, através de sua ação recíproca, enformam  
o processo no qual se realiza a humanização do homem. Além disso,  
no texto lukacsiano expressa-se uma tese fundamental do ponto de  
vista ontológico: o homem, na medida em que é homem, é um ente  
social, e em todo ato de sua vida, consciente ou inconscientemente,  
ele efetiva, simultaneamente embora, às vezes, de modo  
contraditório a si próprio e o nível de desenvolvimento humano  
possível naquele momento (VAISMAN, 2010, pp. 55-56).  
6 Como é sabido, no livro A destruição da razão, Lukács se debruça criticamente sobre essas tendências,  
denunciando o fato de que o irracionalismo tem como cerne a rejeição tout court da ciência e da técnica.  
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A longa citação acima é útil, tendo em vista que sintetiza uma conquista  
fundamental de Lukács em termos ontológicos e porque também evidencia a dimensão  
real, efetiva da relação dos dois polos do ser social (ou seja, não se trata de algo  
“imaginário”) e, ao mesmo tempo, explica as razões que a levam colocar problemas,  
cuja resolução cai no âmbito filosófico e artístico.  
Na citação abaixo, Lukács expõe o objeto de cada uma das formas de ideologia  
pura:  
O objeto central da filosofia é o gênero humano, isto é, uma imagem  
ontológica do universo e, dentro desta, da sociedade a partir do  
aspecto de como ela realmente foi, veio a ser e é para que produzisse  
como necessário e possível cada um dos tipos atuais de generidade;  
ela une, portanto, sinteticamente os dois poios: mundo e homem na  
imagem da generidade concreta. Em contraposição, no centro da arte  
se encontra o homem como ele se configura em individualidade  
genérica nos conflitos com o seu mundo e o seu meio ambiente. No  
meu livro A peculiaridade do estético, tentei expor e analisar as  
determinações gerais essenciais do modo artístico de pôr. Só o que  
interessa aqui são as suas relações com a ontologia do ser social.  
Nesse tocante, é importante, antes de tudo, que a antropomorfização  
da esfera estética constitua um pôr consciente, em contraposição à  
antropomorfização espontânea da vida cotidiana (LUKÁCS, 2013, p.  
543).  
Desse modo, pode-se compreender a importância das formas puras de ideologia,  
muito embora, como bem assinala Lukács, elas não disponham dos meios próprios  
necessários para colocar em prática de modo imediato seus conteúdos, ao contrário  
do que se passa no terreno do direito e da política. Mas ainda assim, ela são de  
fundamental importância para o desenvolvimento ao nível genérico e individual, pois  
São elas que podem conscientizar e mobilizar para a possibilidade da  
passagem do em-si da realização humana em seu para-si, ademais de  
representarem  
a
condição  
para  
que  
a
relação  
individualidade/generidade atinja seu ponto de autenticidade. Desse  
modo, as formas mais puras de ideologia relacionam-se com questões  
fundamentais do ser social, isto é, do homem: refletem um  
determinado nível evolutivo da relação individualidade/generidade –  
os dois polos fundamentais do ser social , ao mesmo tempo em que  
desempenham importante função subjetiva no processo de  
socialização enquanto tal (VAISMAN, 2010, p.56)  
Lukács procura deixar claro, é bom que se diga, que não pretende, por meio de  
suas considerações, pintar um quadro em que o filósofo ou o artista seriam  
configurados como “militantes políticos”. De fato, não o seriam, visto que não se  
debruçam sobre conflitos sociais imediatos, (que é o âmbito do direito e da política)  
mas sobre dilemas mais gerais que, embora se manifestem em termos históricos-  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
sociais de modo específico, dizem respeito a problemas universais atinentes às  
necessidades das individualidades e do gênero humano no seu conjunto. Assim sendo,  
A filosofia perfaz o exame e especificação da generidade, estando  
implicado, pois, a própria socialização da sociedade, o que  
compreende intelecções e posse de mundo. É sobre o que se  
pronuncia a filosofia, como prévia-ideação dos embates do homem em  
seu ‘de-onde para-onde’, enquanto generalidade humana no mundo.  
(VAISMAN, 2010, p.57)  
Ou nos termos do próprio autor:  
toda filosofia significativa está empenhada em oferecer um quadro  
geral do estado do mundo, que da cosmologia até a ética procura  
sintetizar todas as conexões de tal maneira que, a partir delas,  
também as decisões atuais se revelam como momentos necessários  
das decisões que determinam o destino do gênero humano (LUKÁCS,  
2013, p. 555).  
Se a filosofia tanto para o bem quanto para o mal desempenha seu papel de  
ideologia pura ao orientar tomadas de decisão, que se verificam na vida cotidiana, que  
de um modo ou de outro se refletem no nível do gênero, a arte, por seu turno,  
formula as suas questões num patamar parecido de intenção voltada  
para a generidade, com a diferença de que nela vêm para o primeiro  
plano, como polo oposto complementar concretizador, aqueles tipos  
de individualização do homem cujas atitudes e ações na crise atual  
podem liberar em termos histórico-universais a intenção voltada para  
generidade (LUKÁCS, 2013, P.555).  
Para chegar a tais conclusões, como lhe é típico, Lukács desenvolveu rica análise  
acerca de exemplos tanto no caso da filosofia quanto na arte que validam suas  
postulações a respeito das formas puras de ideologia. Dado o espaço que aqui  
dispomos, não será possível percorrer com detalhe todo esse trajeto analítico, nem  
mesmo aqueles passos em que as formulações de Marx a respeito são referidas.7  
Mas antes de passar para o outro tópico, em que o autor desenvolve  
considerações a respeito do marxismo enquanto ideologia e ciência, é fundamental  
citar uma passagem que tem estreita ligação com as teses desenvolvidas por Lukács  
no livro A destruição da Razão8. À certa altura do texto, em que o autor se põe a  
demonstrar a influência exercida pela filosofia na “ontologia da vida cotidiana”, é dito:  
7 Nesse sentido, recomendamos vivamente a leitura do capítulo “O ideal e a ideologia”.  
8
Cf LUKÁCS, G. A destruição da razão, São Paulo, Instituto Lukács, 2020 (trad. Bernard Hess, Rainer  
Patriota e Ronaldo Vielmi Fortes)  
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Os homens enredados em conflitos geralmente agem, antes, de modo  
espontâneo, motivados diretamente pelo que chamamos de a  
ontologia da vida cotidiana. Mas como surge esta? Indubitavelmente  
são decisivas nela as vivências primordialmente imediatas dos  
homens. O seu conteúdo e a sua forma, contudo, são influenciadas em  
ampla medida pelas ideologias - não por último também pelas  
ideologias puras -, cujas objetivações confluem para essa área. Não é  
preciso ter lido Marx para reagir em termos de classe aos  
acontecimentos do dia; não é preciso vivenciar artisticamente e Dom  
Quixote e ou Hamlet t para ser influenciado por eles em resoluções  
éticas. Isso é assim tanto no bem quanto no mal - o que, no campo  
ideológico, nem pode ser diferente; tampouco foi necessário estudar  
Nietzsche ou Chamberlain para tomar decisões s fascistas (LUKÁCS,  
2013, p. 561).  
Embora sejam sempre necessários estudos de fenômenos concretos para  
esclarecer de que modo esse “retorno” das produções filosóficas influenciam nas  
decisões humanas em plena vida cotidiana, aparentemente, tão distante do universo  
filosófico, não é possível subestimar ou mesmo desconhecer a presença, ainda que  
não seja possível também aqui pensar que tais efeitos se deem de forma automática  
ou mecânica. De todo modo, o que importa ressaltar “ao contrário do que é propalado  
nos ambientes acadêmicos, a influência ideológica da filosofia se faz presente na  
própria vida cotidiana, na medida em que as formulações filosóficas acabam  
inevitavelmente desaguando nessa esfera da vida, ainda que seu fazer  
pressuponha um certo tipo de distanciamento” (VAISMAN, 2021, p. 304).  
Consequentemente, a determinação ontológica da filosofia como  
forma de ideologia pura não a reduz, nem a desqualifica. Ao contrário,  
desvela sua eficácia própria, ao dar por conhecida sua gênese e sua  
finalidade, indissoluvelmente ligadas à humanidade urdida pela  
sociabilidade, as quais, a seu modo, mas de fato, ajuda a construir  
(VAISMAN, 2021, p. 305).  
Também no caso das relações entre ciência e ideologia, não se constatam  
considerações semelhantes ao modo como o tema é geralmente tratado. Longe de  
estabelecer uma muralha instransponível entre uma e outra, Lukács realiza um exame  
cuidadoso das formas específicas de cientificidade as ciências naturais e as ciências  
sociais e conclui que é possível encontrar vínculos entre ambas e a ideologia, sem,  
no entanto, reduzir uma à outra. Ou seja, não há uma muralha intransponível entre  
ciência e ideologia, mas também não há uma ideologização da ciência, em que tudo é  
considerado ideológico ou seja, o autor não reconhece o pan-ideologismo, que afirma  
que tudo é ideologia, muito comum naquelas abordagens que consideração a  
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Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
sociabilidade como fundamentalmente simbólica.9  
Para Lukács, tais constatações se tornam possíveis, tendo em vista que “ser  
ideologia de modo algum constitui uma propriedade social fixa das formações  
espirituais, sendo, muito antes, por sua essência ontológica, uma função social e não  
um tipo de ser” (LUKÁCS, 2013, p. 564). Por via de consequência, “mais pura das  
verdades objetivas pode ser manejada como meio para dirimir conflitos sociais, ou  
seja, como ideologia” (Idem). Vê-se claramente aqui que o critério ontológico na  
determinação do fenômeno ideológico permite ao autor vislumbrar que os requisitos  
para um determinado tipo de conhecimento ser considerado científico não exclui, do  
corpo da ciência assim edificado, a possibilidade de que em algum momento ele venha  
a ser utilizado nos embates sociais. E essa utilização não o transforma em algo  
necessariamente falso. Em suas próprias palavras,  
Da neutralidade ontológica das ideologias perante a objetividade  
gnosiologicamente exigida não decorre nem que a correção científica  
deva inibir o poder de persuasão da ideologia como ideologia, nem  
que algo surgido de modo puramente científico não possa  
desempenhar um grande papel ideológico (LUKÁCS, 2013, p.565).  
Mais uma vez, Lukács demonstra a plausibilidade dessa tese ao referir inúmeros  
episódios históricos em que, tanto argumentos provindos das ciências naturais,  
quanto, principalmente, das ciências sociais, tanto na sua gênese quanto na ação no  
tempo, podem se transformar em ideologia. No caso dessas últimas, tendo em vista  
que seu campo de investigação é constituído pelos pores teleológicos secundários,  
aqueles que, como vimos, objetivam provocar mudanças no comportamento de  
outrem, a interrelação com a ideologia é quase inevitável.  
Com isso, Lukács passa a examinar as relações entre ciência e ideologia no campo  
do marxismo, pois aí desde o início assumiu o seu comprometimento, ou seja,  
jamais escondeu a sua gênese e função ideológicas: é possível  
encontrar em seus clássicos frequentes formulações no sentido de que  
ele justamente seria a ideologia do proletariado. Por outro lado, e  
simultaneamente, em todas as suas exposições teóricas, históricas e  
sociocríticas, ele sempre levanta a pretensão da cientificidade  
(LUKÁCS, 2013, p. 569).  
De acordo com a avaliação certeira de Lukács, sempre houve, por parte de Marx,  
a adoção de padrões científicos de investigação, inclusive na crítica dos erros e defeitos  
9 Cf. RICOEUR, R. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1977. (trad.  
Hilton Japiassú)  
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das teorias adversárias, ou seja, “a sua polêmica contra concepções falsas (por  
exemplo, as de Proudhon, Lassalle etc.) sempre se mantém, pela própria essência da  
coisa, num plano puramente científico, consistindo na comprovação racional e  
programática de incoerências na teoria, de imprecisões na exposição de fatos  
históricos etc” (LUKÁCS, 2013, pp. 569-70).  
Mas para além da denúncia de acusações de teor altamente questionável ao  
marxismo, professadas por intelectuais como Weber, defensor da “neutralidade  
axiológica da ciência”10, Lukács chama a atenção para a “peculiaridade do marxismo  
autêntico”, em que é possível identificar uma determinada relação entre ciência e  
ideologia. A esse respeito, o autor comenta acerca do princípio metodológico dessa  
relação que é  
por sua essência metodológica, uma crítica ontológica recíproca de  
filosofia e ciência, isto é, a ciência geralmente controla "a partir de  
baixo" se as generalizações ontológicas nas sínteses filosóficas se  
encontram em consonância com o movimento real do ser social, se  
elas não se distanciam do ser social de modo abstrativo. Por outro  
lado, a filosofia exerce uma crítica ontológica permanente das ciências  
"a partir de cima" , ao controlar continuamente em que medida cada  
questão singular é tratada, tanto no plano estrutural como no plano  
dinâmico, ontologicamente no lugar correto, no contexto correto, se e  
em que medida a submersão na riqueza das experiências concretas  
singulares não confunde, mas aumenta e aprofunda o conhecimento  
das tendências contraditórias e desiguais de desenvolvimento da  
totalidade do ser social (LUKÁCS, 2013, p. 570)  
De acordo com a análise encetada por Lukács a respeito dos vínculos e filosofia  
em Marx e no que ele denomina de “marxismo autêntico”, não haveria um  
antagonismo, descontinuidade ou mesmo ruptura entre essas esferas da produção  
ideal. Para justificar tal avaliação, afirma que, ao contrário, do que acontece com outras  
tendências no campo da produção de conhecimento, se instala uma crítica recíproca,  
de caráter ontológico, entre essas duas esferas da produção espiritual.  
Ou seja, cada uma, a partir das suas características específicas a  
ciência ao voltar-se diretamente à contraditoriedade do real, controla  
a filosofia para que esta não se distancie demasiadamente desta  
realidade, e a filosofia, por seu turno, exerce sobre a ciência um  
controle para que ela não se perca nesta mesma contraditoriedade e  
nem perca de vista a própria totalidade do ser social , persegue, ao  
se criticarem mutuamente, os contornos e os conteúdos decisivos do  
ser social. E é justamente por isso que estas críticas não estão apenas  
uma voltada à outra, mas ambas consideram também a ontologia da  
10  
Cf. WEBER, M. Ciência e política: duas vocações. São Paulo, Editora Cultrix, 1972. (trad. Leonidas  
Hegenberg e Octany Silveira da Mota)  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 259-287 - jul-dez, 2023  
nova fase  
 
Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G. Lukács  
vida cotidiana (VAISMAN, 2010, p. 63).  
Ademais, levando em conta momentos históricos, relevantes em que a filosofia  
chegou a exercer sua influência, como é o caso da Revolução francesa e o Iluminismo,  
Lukács conclui que  
O caráter peculiar da ligação entre a filosofia e a ciência instituída pelo  
marxismo tem para Lukács um significado decisivo não só no plano  
gnosiológico, mas também no plano ontológico prático. Isso porque  
essa ligação reflete toda uma trajetória evolutiva da filosofia /.../, e  
enquanto forma pura de ideologia, voltada que está aos problemas  
centrais do gênero humano, encontra agora na medida em que está  
fundada no mundo da materialidade social condições de  
possibilidade para dirimir de modo resolutivo problemas, na base de  
uma verdadeira cientificidade, atinentes à superação da pré-história  
da humanidade. Essa possibilidade, naturalmente, de um lado, só  
existe enquanto tal na medida em que o próprio desenvolvimento  
econômico coloque as condições para tanto; mas, de outro, é  
imprescindível um autêntico ontologismo social: para Lukács o  
marxismo é essa expressão ideológica e científica (VAISMAN, 2010,  
p.63).  
Referências bibliográficas:  
LUKÁCS, G. “O ideal e a ideologia”. Para uma ontologia do ser social. (trad. Nélio  
Schneider). São Paulo: Boitempoeditorial, 2013, vol.II.  
VAISMAN, E. “A ideologia e sua determinação ontológica”. Verinotio Revista de  
filosofia e ciências humanas. n. 12, Ano VI, out./2010 Publicação semestral ISSN  
1981-061X.  
VAISMAN, Ester. O que é possível dizer sobre as relações entre filosofia e sociedade  
em pleno século XXI?. Verinotio, Rio das Ostras, v. 27, n. 1, pp. 277-307,  
jan./jun2021  
Como citar:  
VAISMAN, Ester. Sobre “O ideal e a ideologia” em Para a ontologia do ser social de G.  
Lukács: novos comentários sobre o tema. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp.  
259-287; jul-dez, 202.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 259-287 - jul-dez, 2023 | 287  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.690  
Marx e o cardápio da taberna do futuro:  
sobre os caminhos para uma revolução russa no  
século XIX  
Marx and the meal plans of the tavern of the future:  
on the paths to a Russian revolution in the 19th century  
Gabriella M. Segantini Souza*  
Resumo: a questão russa na obra de Marx nos  
oferece importantes materiais para as discussões  
sobre as diferentes vias de entificação do  
capitalismo e sobre os rumos da história na obra  
do autor. No presente trabalho, o propósito é  
analisar alguns escritos do autor renano sobre a  
Rússia, com destaque para a correspondência  
com a revolucionária russa Vera Zasulitch, a fim  
de compreender a perspectiva do autor sobre a  
possibilidade de uma revolução na Rússia no  
século XIX.  
Abstract: the russian issue in Marx’s work offer  
important materials to the discussion on the  
different ways of capitalist entification and the  
courses of history in the author’s work. In the  
present work, the aim is to analyse the writing  
of the rhenish author with emphasis on the  
correpsondence with the russian revolutionary  
Vera Zasulitch — in order to understand Marx’s  
perspective on the possibility of revolution in  
19th century Russia.  
Palavras-chave: Rússia; comuna agrária russa;  
regeneração social; narodniks; marxistas russos;  
Vera Zasulitch.  
Keywords: Russia; russian agrarian commune;  
social regeneration; narodniks; russian marxists;  
Vera Zasulitch.  
Introdução  
Em seu autoexílio na Suíça, a revolucionária russa Vera IvanovnaZasulich buscava  
solucionar a questão que dividia seus compatriotas revolucionários, uma questão que  
Zasulich asseverou ser “de vida ou morte” para o partido socialista na Rússia  
(ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 146). A disputa entre os socialistas russos será  
analisada de forma pormenorizada na devida oportunidade, bem como seus principais  
atores, mas por enquanto basta esclarecer que o cisma” entre os revolucionários  
russos tinha como cerne o futuro da comuna agrária russa e seu potencial  
revolucionário. Um dos lados da disputa, os autointitulados marxistas russos,  
preconizavam que a comuna agrária era uma forma arcaica de produção e que estaria  
condenada a desaparecer pela história” (ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 147),  
*
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestranda em Direito pela  
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: gabriella.segantini.souza@gmail.com  
Verinotio ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, jul-dez. 2022  
nova fase  
 
Marx e o cardápio da taberna do futuro  
fundamentando sua posição no que acreditavam que Marx concluiria sobre a comuna  
agrária russa. Assim, o mais lógico para resolver a contenda do que solicitar que aquele  
a quem recorriam para dar o veredicto sobre o futuro da comuna agrária desse seu  
posicionamento de uma vez por todas.  
Em virtude disso, em 16 de fevereiro de 1881 Vera escreveu sua carta a Marx,  
na qual conta ao autor como ele provavelmente sequer imaginava o quanto sua obra  
era importante na Rússia, ressaltando como seu O Capital havia adquirido na Rússia  
grande relevância, sendo que as poucas cópias que não foram confiscadas pelas  
autoridades russas eram “lidas e relidas pela massa de pessoas mais ou menos  
instruídas(ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 147). Zasulich explica ainda como a crítica  
à economia política de Marx havia ganhado particular interesse entre os russos  
principalmente “nas discussões sobre a questão agrária na Rússia e nossa comuna  
rural” (ZASULICH In. SHANIN, 2017, p. 147), e que por isso havia se proposto a  
escrever ao autor renano, esperando que sua resposta pudesse solucionar a discussão  
de uma vez por todas.  
Quando Marx recebeu a carta de Vera Zasulich, o autor começou logo a tentar  
elaborar a resposta solicitada por Vera, dedicando-se por cerca de três semanas para  
confeccionar um texto definitivo a ser enviado. Nesse processo, Marx elaborou três  
esboços e a resposta enviada, sendo os rascunhos em si consideravelmente mais  
longos e complexos que a carta enviada a Vera.  
Além do evidente interesse historiográfico e biográfico que possui essa  
correspondência entre Marx e Zasulich, a importância dessas cartas (sobretudo dos  
rascunhos de Marx) não para aí. Esses escritos não só nos permitem um acesso a  
‘“cozinha do pensamento de Marx” (SHANIN, 2017, p. 42), mas ao tratarem da  
questão agrária russa, também temos levantada uma das mais relevantes discussões  
no contexto do marxismo, a da possibilidade da revolução em países que  
experimentaram um desenvolvimento econômico distinto da via clássica1. Como será  
demonstrado mais à frente, o cerne da disputa entre os socialistas russos na época  
era justamente acerca da possibilidade de revolução socialista na Rússia agrária, sendo  
1
Tratamos por via clássica do desenvolvimento capitalista aquela experimentada sobretudo pela  
Inglaterra. Como Marx esclarece no prefácio da Primeira edição de O Capital, é na Inglaterra que vemos  
o “modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação” (Marx,  
2017, p. 78) em sua “localização clássica” (Marx, 2017, p. 78), razão pela qual o autor se dela serve  
como ilustração para a exposição teórica de O Capital.  
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Gabriella M. Segantini Souza  
que o lado que defendia que a revolução comunista seria possível apenas em  
sociedades de economia capitalista clássica [madura”], como a Inglaterra, defendiam  
seu ponto a partir do que acreditavam que Marxhavia escrito em O Capital. Assim, ao  
escrever a Marx, Zasulich buscava a resposta sobre essa questão, isto é, se Marx  
defendia de fato que a revolução só seria possível onde já havia se havia passado  
pelos processos que engendram o capitalismo, ou se havia outras vias possíveis.  
Trata-se de ponto bastante controversa nos debates marxistas, dado que a  
questão da possibilidade de uma revolução socialista em um país como a Rússia, onde  
no final do século XIX ainda conviviam o modo de produção asiático e o modo de  
produção comunal, parecendo contradizer o que vemos em O Capital. Isso porque no  
vigésimo quarto capítulo do primeiro livro de O Capital, que trata da assim chamada  
acumulação originária, vemos que, para se colocar sobre seus próprios pés, o modo  
de produção capitalista pressupõe a separação dos produtores e os meios e condições  
de produção, de modo que o camponês antes ligado à terra se torne trabalhador  
assalariado e as pequenas propriedades rurais deem lugar à propriedade privada2. Por  
conseguinte, a ideia de uma revolução socialista em um país que não havia passado  
por esse processo pareceria materialmente impossível, dado que o comunismo nasce  
do ventre do capitalismo. Como seria então possível uma sociedade agrária comunal  
ser suplantada por uma revolução comunista se sequer capitalista ela é, mas sim um  
país agrícola?  
Para discutir esse aspecto na teoria marxiana, serão tocados importantes debates  
na teoria marxista, como a crítica à linearidade da história, a importância da questão  
da particularidade nacional e à crítica ao que nos referiremos por etapismo, os quais  
cabem ser analisados mais a fundo mais a seguir. Mas o que nesse momento importa  
ressaltar é que para os que veem na obra marxiana uma filosofia da história,  
transformando-a em uma teoria histórico-filosófica, ou seja, que vêm ali uma noção de  
progresso linear e necessário, de fato não seria possível uma revolução socialista na  
Rússia agrária comunal3. Essa posição (ou leitura”, poderíamos dizer) aparece já  
durante a vida de Marx, como vemos no caso de seus seguidores russos, mas ela se  
2
Trataremos dos diferentes tipos de propriedade da terra que havia na Europa Ocidental quando da  
assim chamada acumulação originária e na Rússia no século XIX mais a frente  
3 Sobre isso, cf. SARTORI, V. Marx diante da revolução social na Rússia do século XIX. Verinotio, v. 23,  
n. 1, abril de 2017. pp. 126-153; e MACHADO, G. Sobre a possibilidade de uma revolução russa nos  
escritos de Marx . Verinotio, v. 23, n. 1, abril de 2017, pp. 247-267.  
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Marx e o cardápio da taberna do futuro  
fortalece sobretudo após a morte do autor em 1883. O evolucionismo se tornou um  
forte traço do marxismo no final do século XIX e no século XX, principalmente no bojo  
da II Internacional Comunista, em que a noção de que a história humana para Marxera  
basicamente uma sucessão de etapas necessárias aparece de forma proeminente.  
Aparece também no marxismo (stalinismo) da União Soviética, em que as discussões  
sobre a especificidade nacional são sufocadas pelo pensamento stalinista4.  
Contudo, não está presente essa interpretação apenas dentre certos marxistas,  
mas também dentre os críticos de Marx, principalmente no século XX. Grosso modo,  
podemos dizer que uma das principais críticas feitas ao autor renano seria de que  
considerava a via de desenvolvimento europeia como parâmetro do desenvolvimento  
humano como um todo, fazendo de Marx um evolucionista, além de eurocêntrico.  
Como exemplo dessas críticas, podemos citar o conhecido livro de Edward Said,  
Orientalism, publicado em 1978, bem como os trabalhos de autores do chamado  
pensamento decolonial, como Walter Mignolo e Ramón Grosfoguel.5  
Por outro lado, uma leitura mais cuidadosa e completa da obra de Karl Marx nos  
mostra uma pintura bastante diferente do que tanto os detratores quanto seus  
supostos seguidores esboçaram. Naquilo que o autor nos deixou de escrito, com  
destaque aos escritos de sua maturidade intelectual, como os próprios rascunhos de  
resposta à carta de Zasulich (que serão nosso principal objeto, embora não sejam os  
únicos textos pertinentes), essa aparente contradição se dissolve, revelando um  
complexo teórico muito mais refinado do que a interpretação que lhe foi dada por  
muito tempo sugere.  
Nesse sentido, partindo da análise da carta enviada por Karl Marxem resposta à  
questão de Vera Zasulich, esse trabalho busca investigar a questão do  
desenvolvimento histórico na obra marxiana a fim de demonstrar a incompatibilidade  
entre o tecido compositivo do pensamento marxiano e a posição que encontra em o  
4 Sobre isso, cf. SAWER, Marian. Marxism and the Question of the Asiatic Mode of Production. Hague:  
Martinus Nijhoff, 1977; CLAUDÍN, Fernando. A crise o movimento comunista. Trad. José Paulo  
Netto. São Paulo: Expressão Popular, 2013; DEUTSCHER, Isaac. Stálin: uma biografia política. Trad.  
Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.  
5
Sobre isso, cf. SAID, Edward. Orientalism. Nova York: Vintage Books, 1979. GROSFOGUEL, Ramón.  
Descolonizando los universalismos occidentales: el pluriversalismo transmoderno decolonial desde Aimé  
Césaire hasta los zapatistas. In. CASTRO-GOMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón, El giro decolonial:  
reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre,  
2007, pp. 6378; MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina (la derecha, la izquierda y la opción  
decolonial). In.: Revista Crítica y Emancipatión, n. 02, 2009, pp. 251276.  
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O Capital um esquema do movimento inevitável do desenvolvimento humano, sem  
considerações quanto à especificidade geográfica e histórica. Assim, buscaremos  
contrapor as leituras que transformamMarxem um etapista histórico e aquilo que o  
autor nos deixou de escrito sobre a Rússia, sobretudo nos esboços de resposta à carta  
de Zasulich, pois nesse escrito sobre uma sociedade de desenvolvimento atípico  
encontramos diversas considerações sobre a especificidade do contexto russo e a  
importância de as considerar ao estudarmos a Rússia.  
No presente artigo, intenciona-se fazer uso do que ficou conhecido por análise  
imanente ou estrutural(CHASIN, 2009, p. 25), a qual se trata da busca pela apreensão  
do sentido mesmo do texto, independentemente das preferências do intérprete,  
rejeitando, portanto, premissas impostas de antemão pelo leitor para dar primazia ao  
texto-objeto. Sobre a leitura/análise imanente, esclarece o autor que  
Tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto a  
formação ideal em sua consistência autossignificativa, aí  
compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto  
positivos como negativos:o conjunto de suas afirmações, conexões e  
suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o  
perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos  
modos pelos quais é encarada, de frenteou por vieses (CHASIN, 2009,  
pp. 25-26).  
Assim, propõe-se, pois, a uma leitura [imanente] dos textos, ou seja, investigá-  
los em suas próprias determinações, deles extraindo seu sentido próprio na tarefa de  
investigação do objeto de pesquisa aqui proposto. Isto é, busca-se “apreender o texto  
na forma própria à objetividade de seu discurso enquanto discurso, ou seja, na  
efetividade de uma entificação peculiar” (CHASIN, 2009, p. 25), não pelo que dele foi  
dito por outros intérpretes, dado que “independe para ser discurso […] dos olhares,  
mais ou menos destros, pelos quais os analistas se aproximam dele e o abordam”  
(CHASIN, 2009, p. 25).  
Marx e a Rússia antes de 1870: a questão da emancipação dos servos e  
movimentações internas na Rússia  
No que concernia o tratamento da Rússia, na década de 1840 e no começo da  
década de 1850, o principal foco de Marx (e também de Engels) parecia ser  
principalmente o governo tzarista, o qual era especial objeto de fortes críticas do autor  
sobretudo em razão de seu papel na reação europeia aos movimentos da década de  
1840. Em 1848/1849, a Rússia e sua autocracia aparentemente estável e resistente  
haviam restado imune aos fogos revolucionários que correram pela Europa Ocidental  
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Marx e o cardápio da taberna do futuro  
(MARX, 2010c, p. 259), tendo em 1849 avançado com suas forças armadas contra  
essas revoluções (HOBSBAWM, 1982, p. 176), razão pelas quais a Rússia era naquele  
momento um espectro da velha sociedade europeia, espreitando ameaçadoramente  
contra as revoluções no Ocidente. A Rússia era o centro da contrarrevolução em  
1848/49, a alma da “aliança dos senhores ‘pela graça de Deus e do chicote’” (MARX,  
2020, p. 359). Como Marx (2010, p. 454) escreveu na última edição da Nova Gazeta  
Renana, em 18 de Maio de 1849, o exército russo coalizionava e representava a  
aliança da velha Europa, que se opunha às forças da nova Europa revolucionária.6 A  
Rússia era, portanto, um enorme empeço no caminho da revolução europeia naquele  
momento, na medida que constituía a última grande reserva da reação europeia”  
(MARX & ENGELS, 2005, p. 72).  
Nos anos 1850, nos artigos jornalísticos que Marx escreveu para o New York  
Daily Tribune sobre a Guerra da Crimeia também transpareciam as fortes críticas do  
autor à Rússia. Por exemplo, em um artigo sobre a Guerra da Crimeia escrito para o  
New York Daily Tribune em 29 de julho de 1853, Marx se posiciona favoravelmente  
pela Turquia contra a expansão russa, referindo-se à Rússia como “a demoníaca Roma  
do Leste” (MARX, 2010c, p. 231), bem como uma bárbara autocracia que representava  
o cajado do conservadorismo na Europa. Marx aponta ainda que, embora França e  
Inglaterra aparecessem como aliadas da Turquia contra a Rússia, o verdadeiro inimigo  
da Rússia não eram os países europeus, mas sim a Revolução, pois enquanto a  
“iluminadaaristocracia e burguesia inglesas prostravam-se diante da Rússia e a rainha  
da Inglaterra oferecia banquetes para princesas russas, era o proletariado quem se  
revoltava diante dessa degradação e impotência das classes dominantes, colocando-  
se firmemente contra as pretensões russas e contra a complacência inglesa com a  
Rússia.  
Em função do foco nas relações externas da Rússia nesses textos, neles não  
aparecem muitos comentários de Marx sobre as relações internas russas, com exceção  
de comentários sobre a natureza autocrática de seu Estado e a natureza retrógrada de  
sua produção (MARX, 2010b, p. 486). Isso de certa forma muda aproximadamente em  
6
“Como despedida, recordamos a nossos leitores as palavras de nosso primeiro número de janeiro:  
“insurreição revolucionária da classe trabalhadora francesa, guerra mundial eis o sentido do ano de  
1849”. E no oriente um exército revolucionário composto de combatentes de todas as nacionalidades  
já enfrenta a velha Europa representada e coalizionada no exércitorusso, de Paris já ameaça a “república  
vermelha”!" (MARX, 2020, p. 557)  
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1858, com três peças jornalísticas sobre os planos para a abolição da servidão pelo  
Czar Alexandre II, escritas por Marx em 1848, oportunidade na qual o autor analisou  
mais diretamente as tensões internas que marcavam a Rússia naquele momento.  
Em 1º outubro de 1858, Marx escreveu um artigo intitulado The question of the  
abolition of serfdom in Russia7, o qual foi publicado no dia 19 de outubro daquele ano  
no New York Daily Tribune. Nesse texto, Marx analisa as movimentações por parte do  
tzar Alexandre II no sentido de levar a cabo a abolição na servidão na Rússia, com  
destaque para o contexto em que se dava a discussão da emancipação dos servos,  
bem como que a havia provocado. Antes do filho ressuscitar a emancipaçãodos servos,  
o pai de Alexandre II, Nicolau I (assim como seu antecessor, Alexandre I), já havia  
ventilado a ideia da emancipação, tendo tentado colocar em efeito uma transformação  
pacífica da situação dos servos na Rússia (em função de questões do Estado, não por  
qualquer tipo de sentimento de humanidade”), mas logo abandonou os planos da  
abolição da servidão diante das revoluções de 1848-1849, ali tendo se tornando um  
ansioso adepto do conservadorismo” (MARX, 2010e, p. 52). Afinal, como escreveu  
Marx em 31 de dezembro de 1858, na segunda parte de The Emancipation Question,  
publicada 17 de janeiro de 1859 no Tribune, o governo russo possuía o hábito de,  
desde Alexandre I, conjurar a fata morgana da liberdade” (MARX, 2010e, p. 145)  
perante os servos8. Em 1858, o czar Alexandre II retornou às discussões sobre a  
emancipação dos servos, mas, assim como seu pai antes dele, fê-lo não por qualquer  
tipo de sentimento humanitário”, sim diante da inquietação crescente dos servos em  
razão da guerra com os turcos.  
De certa forma, a abolição da servidão na Rússia era uma questão que não podia  
mais ser ignorada, razão pela qual Alexandre II se viu forçado a dar início ao processo  
de supressão da servidão. Como Marx escreve, “with Alexander II, it was hardly a  
question of choice whether or not to awaken the sleeping elements9(MARX, 2010e,  
p. 52). Marx escreve no Tribune que  
the peasantry, with exaggerated notions even of what the Czar  
7 [A questão da abolição da servidão na Rússia] (tradução livre)  
8 Interessante remarcar como nesse período, a Rússia possuía um modo de produção bastante peculiar,  
no qual conviviam uma produção de contornos feudais como vemos nessestextos do New York Daily  
Tribune e da Nova Gazeta Renana , baseada na servidão, uma produção que Marx se refere como  
asiática, baseada no despotismo asiático (cf. MARX, 2011) e uma produção baseada na propriedade  
comunal da terra (cf. MARX, 2013)  
9
[com Alexandre II, dificilmente se tratava de uma questão de escolha acordar ou não os elementos  
adormecidos]. (Tradução livre)  
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Marx e o cardápio da taberna do futuro  
intended doing for them, have grown impatient at the slow ways of  
their seigneurs. The incendiary fires breakingout in several provinces  
are signals of distress not to be misunderstood. It is further known  
that in Great Russia, as well as in the provinces formerly belongingto  
Poland, riots have taken place, accompanied by terrible scenes, in  
consequenceof which the nobility have emigratedfrom the country to  
the towns, where, under the protection of walls and garrisons, they  
can bid defiance to their incensed slaves. (MARX, 2010e, p. 53)  
[grifo meu]  
No final da década de 1850, a questão dos servos não poderia mais ser  
postergada, tendo se tornado particularmente polvorosa diante dos levantes  
camponeses que eclodiam em diversas províncias russas: os camponeses russos  
estavam cada vez mais impacientes pela abolição da servidão. Os “fogos incendiários”  
que estouravam por diversas regiões da Rússia pressionavam Alexandre II a olhar com  
seriedade o velho flerte dos czares com a abolição da servidão embora as  
expectativas do campesinato em relação aos planos de abolição não correspondessem  
exatamente aos modos morosos e reticentes do czar para com a questão.  
É bastante evidente nesses textos como a abolição da servidão na Rússia  
levantava considerável entusiasmo em Marx, pois o autor percebia como o fim da  
servidão traria inevitavelmente grandes transformações no contexto interno russo. Isso  
na medida que, como explica o autor renano, “it is impossible to emancipate the  
oppressed class without injury to the class living upon its oppression, and without  
simultaneously discomposing the whole superstructure of the State reared on such a  
dismal social basis11(MARX, 2010e, p. 52). Isto é, a supressão da servidão provocaria  
uma considerável transformação no modo de produção russo e decomporia a  
superestrutura do Estado russo que se fundava nas bases sociais da servidão, bem  
como inevitavelmente prejudicaria a classe aristocrática que vivia da opressão dos  
servos, os quais seriam os mais diretamente afetados pelos planos de Alexandre II para  
a abolição da servidão.  
Nota-se, pois, como a questão russa já era de interesse nos escritos de Marx a  
10 [o campesinato, com ideias exageradas até mesmo do que o czar pretendia fazer por eles, tonaram-  
se impacientes com as maneiras lentas de seus senhores. Os fogos incendiários eclodindo em diversas  
províncias são sinais de agitação inconfundíveis. É sabido ainda que na Grande Rússia, bem como em  
províncias que antes pertenciam à Polônia, revoltas têm acontecido, acompanhadas por cenas terríveis,  
em razão das quais a nobreza emigrou do campo para as cidades, onde, sob a proteção de muros e  
guarnições, podem oferecer resistência aos seus escravos enfurecidos] (tradução livre)  
11[é impossível emancipar a classe oprimida sem ferir a classe que vive dessa opressão e sem  
simultaneamente decompor a superestrutura do Estado gerada sob uma base social tão sombria]  
(tradução livre)  
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Gabriella M. Segantini Souza  
partir da década de 1860, pois em diversos textos das décadas de 1840 e 1850 a  
Rússia aparece com certa frequência, com tratamento de questões tanto afeitas à sua  
política externa e seu papel de bastião da tradição europeia, quanto às suas tensões  
internas, com destaque para as discussões afeitas à servidão na Rússia. Contudo, como  
escreveu em uma carta a Engels em 29 de abril de 1858, “the movement for the  
emancipation of the serfs in Russia strikes me as importantin so far as it indicates the  
beginning of an internal development that might run counter to the country's  
traditional foreign policy12(MARX, 2010f, p. 310), em 1858 as transformações  
internas na Rússia interessavam Marxprincipalmente pelo impacto delas na tradicional  
política externa russa, dado que, conforme delineado acima, a intervenção russa havia  
sido a salvação dos príncipes e da burguesia europeus contra o proletariado que se  
despertara em 1848-1849 (MARX & ENGELS, 2005, p. 73).  
Nesse sentido, podemos inferir desse trecho da correspondência entre Marx e  
Engels - sempre com o devido cuidado ao tratar de documentos como cartas que,  
embora a dissolução da servidão traria o desmoronamento das estruturas de produção  
e de exploração que nela tinham sua base, nesse momento essa transformação  
nas relações produtivas na Rússia parecia importante mais no que isso poderia  
representar para as revoluções na Europa Ocidental, isto é, pelos impactos na política  
internacional russa, não tanto ainda pelo impacto de uma revolução no seio da própria  
Rússia.  
Todavia, isso não significa de forma alguma que Marxignoravaas movimentações  
dos servos russos e dos impactos desses levantes para o contexto russo. Pelo  
contrário, como vemos na segunda parte do artigo The emancipation question, escrita  
em 31 de dezembro de 1858, bem como em The question of the abolition of serfdom  
in Russia, escrito em 1º de outubro de 1858. Esses artigos foram escritos em um  
contexto bastante peculiar na história russa, em que profundas transformações sociais  
pareciam iminentes na Rússia, como Marx nesses artigos não deixa de notar, como  
veremos mais a frente. Sobre esse contexto, HOBSBAWM (2012) ilustra bem como  
Depois da guerra da Crimeia, uma revolução russa parecia não mais  
apenas desejável, mas cada vez mais provável. Esta era a maior  
inovação da década de 1860. O regime que, por mais reacionário e  
ineficiente que pudesse parecer, tinha aparecido até então como  
12 [o movimento de emancipação dos servos me parece importante na medida em que indica o começo  
de um desenvolvimento interno que pode ir no sentido contrário da política externa tradicional do país  
[Rússia]] (tradução livre)  
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estável e poderoso externamente, imunetanto àrevolução continental  
de 1848 como capaz de fazer marchar seus exércitos contra ela em  
1849, revelava-se agora internamente instável e externamente mais  
fraco do que parecia. Suas maiores fraquezas eram políticas e  
econômicas, e aí reformas de Alexandre II (1855-81) poderiam ser  
vistas mais como um sintoma do que remédio para estas fraquezas.  
Na realidade, como veremos […], a emancipação dos servos (1861)  
criara as condições para um campesinato revolucionário, enquanto  
que as reformas administrativas, jurídicas e outras do tzar (1864-70)  
fracassaram em remover as fraquezas da autocracia tzarista, ou  
mesmo em compensar aaceitação tradicional queagorase encontrava  
ameaçada. (HOBSBAWM, 2012, p. 176)  
Ciente dessas circunstâncias, em The emancipation question e em The question  
of the abolition of serfdom in Russia, Marx aponta como a principal razão que forçou  
Alexandre II a retomar os projetos de abolição da servidão foram as insurreições dos  
servos, as quais se espalhavam pela Rússia desde 1842 e que haviam se intensificado  
após a Guerra da Crimeia. Por demais, ao avaliar o conteúdo do plano do Comitê  
Imperial Central para a emancipação dos servos, Marx indicava também que os planos  
do czar para a libertação dos servos certamente haveriam de insatisfazer os  
camponeses russos, sobretudo diante do fato de que o plano de Alexandre II para dar  
fim à servidão despiria a comunidade das vilas de suas faculdades de auto-governo  
para dar lugar a um sistema de governo patrimonial, introduzindo a figura do landlord.  
Esse plano traria um sistema que seria absolutamente repulsivo para os camponeses  
russos, para quem era a comunidade a proprietária da terra em que vivia, inexistindo  
a concepção de propriedade individual da terra.  
Assim, Marx considerava que, ao invés de efetivamente pacificar os servos, o  
plano de abolição da servidão certamente inflamaria ainda mais os camponeses,  
trazendo novas revoltas. As pressões da história se assomavam sobre o tzar:  
encurralado de um lado pelos nobres e de outro pelos servos, Alexandre II, postula  
Marx, certamente falharia em cumprir de forma satisfatória com as reformas por ele  
pretendidas, e os servos que de um lado possuíam altas expectativas para os planos  
do czar e consideravam que Alexandre II era seu aliado, de outro estavam convencidos  
de que a nobreza era quem impedia o imperador de fazer avanços mais significativos  
inevitavelmente se revoltariam. Marx percebe, pois, que se estava diante de uma  
segunda virada na história russa, com potencial para reais e profundas transformações  
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na tessitura social da Rússia13. Dessa forma, ao fim da década de 1850, a Rússia não  
era mais apenas a prima conservadorada Europa Ocidental, uma força impermeável  
aos fogos revolucionários de 1848. Como aponta Marx nos artigos do Daily Tribune,  
a Rússia continha em si um potencial para profundas transformações na Rússia,  
tratando-se da força transformadora das rebeliões dos camponeses e das pressões  
que elas provocavam sobre a aristocracia russa.  
Importante ressaltar, contudo, que embora nesse momento Marx considerava  
ainda que fosse iminente uma guerra dos servos na Rússia14 e, portanto, que era  
iminente uma profunda transformação na tessitura social russa , não aparece ainda  
a possibilidade efetiva de se levar a cabo uma revolução na Rússia partindo da  
propriedade comunal da terra, tampouco de uma revolução iniciada na própria Rússia.  
Como vemos em uma carta que Marx escreveu a Engels em dezembro de 1859, Marx  
escreve que o movimento revolucionário na Rússia progredia como em nenhum outro  
país europeu e que, com a vinda da próxima revolução, diferentemente do que ocorreu  
em 1848, a Rússia se juntaria à ela. Ressalte-se, portanto, que a revolução não partiria  
da Rússia, mas ela dessa vez não resistiria a ela diferente de como a questão  
aparece no prefácio à edição russa de O Capital, em que Marx e Engels escrevem que  
uma revolução na Rússia seria um sinal para a revolução proletária no Ocidente (MARX  
& ENGELS, 2013, p. 103).  
Marx e seus estudos russos: 1860-1880  
Desde outubro de 1869 Marx se dedicava avidamente ao estudo da questão  
agrária russa, incentivado por Nikolai Danielson, que lhe havia presenteado uma cópia  
de A situação da classe operária na Rússia, de V. V. Bervi-Flerovsky. Para que pudesse  
ler o livro de Flerovsky em sua língua original, Marx se dedica a aprender a língua  
russa, o que faz em alguns meses (WADA, 2017, p. 81). Com isso, Marxpassa a estudar  
13  
Isto é “and finally place real and general civilization in the place of that sham and show introduced  
by Peter the Great”. (MARX, 2010e, p. 178) [“E finalmente instituir uma civilização real e geral no lugar  
da farsa e espetáculo introduzidos por Pedro, O Grande”] (tradução livre), ou seja, finalmente poderiam  
ocorrer transformações reais na Rússia, ao invés das reformas de Pedro, o Grande, que Marx aforma  
não terem sido nada mais que uma farsa e um espetáculo  
14 Sobre esse período, Marx escreve que “the symptoms of a servile war are so visible in the interior of  
Russia, that the Provincial Governors feel themselves unable otherwise to account for the unwonted  
fermentation than by charging Austria with propagating through secret emissaries Socialist and  
revolutionary doctrines all over the land” (MARX, 2010d, p. 568) [“Os sintomas de uma guerra servil  
são tão visíveis no interior da Rússia, que os Governadores Provinciais se sentem incapazes de explicar  
a fermentação extraordinária senão culpando a Austria de propagar emissários socialistas secretos e  
doutrinas revolucionárias por todo o campo.”]  
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a comuna agrária russa a partir de textos de autores russos em sua língua original,  
como, além de Bervi-Flerovsky, Tchernichevski autor extremamente importante para  
a tradição revolucionária russa (SILJAK, 2013) , Skaldin, A. I. Koshelev, A. N.  
Engelgardt, A. I. Vasilchakov, P. A. Sokolovsy, N. O. Kostomarov e Maksim Kovalevsky  
amigo pessoal de Marx (WADA In. SHANIN, 2017), bem como diversos outros  
autores russos cujos artigos e livros Danielson lhe enviava, como se lê nas  
correspondências entre Marx e Danielson (MARX, DANIELSON & ENGELS, 1981, pp.  
85-86). Assim, partindo desses extensos estudos acerca da situação russa e da  
questão agrária com destaque para N. Tchernichevski, autor populista por quem Marx  
possuía grande admiração, conforme vemos no Posfácio à Segunda Edição de O  
Capital (MARX, 2017, p. 86) que o autor da crítica à economia política constrói o  
posicionamento acerca da comuna agrária russa que exporemos em seguida, sendo  
marcante a influência de autores populistas (ou narodniks) em sua argumentação,  
como ainda será tratado aqui.  
Antes de partirmos à análise das cartas de Vera Zasulich e Marx propriamente  
ditas, parece-nos importante ressaltar como o que Marx escreve em 1881 sobre a  
Rússia não é sinal de uma virada no pensamento do autor, mas sim o resultado de  
anos de estudo acerca da questão agrária na Rússia e dos movimentos que se  
colocavam na sociedade russa. Ao contrário do que postula Michel Löwy15, os escritos  
sobre a Rússia principalmente da década de 1880 não se colocam como uma ruptura  
em relação ao que havia escrito antes por Marx, mas sim inseridos no mesmo esforço  
teórico, qual seja, a crítica à economia política. Como bem coloca MUSETTI (2018),  
esses textos não revelariam, por fim, uma  
virada metodológica, políticae estratégica” na trajetória intelectual  
dos dois autores, mas a radicalidade da crítica ontológica  
desenvolvida por Marx desde 1843, quando rompeu com a  
concepção hegeliana de ser para constituir um novo patamar de  
15  
Conforme adiantado acima, Michael Löwy afirma haver uma “‘virada metodológica’, política e  
estratégica” (LÖWY In. MARX & ENGELS, 2013, p. 8) a partir dos estudos principalmente de Marx sobre  
a Rússia. Defende o autor que há uma ruptura com interpretações unilineares, etapistas, eurocêntricas  
do materialismo histórico que outrora deixaram suas marcas na obra marxiana; ele defende que “o  
conjunto de escritos sobre a Rússia nos anos 1877-1894 sugere uma hipótese que rompe com o  
economicismo, o eurocentrismo e o progressista” evolucionista: as revoluções sociais poderiam  
começar não nos países mais industrializados, nas grandes metrópoles capitalistas onde supostamente  
as condições estariam maduras” (como se a história fosse uma laranjeira) , mas na periferia do sistema  
capitalista, nos países atrasados” – “semifeudais”, coloniais e semicoloniais”, ou subdesenvolvidos”,  
segundo uma terminologia do século XX. Esta hipótese sim é que se realizou no curso do século XX,  
desde a Revolução Russa de 1917 até a Cubana de 1959-1961.” (LÖWY In. MARX & ENGELS, 2013,  
p. 14)  
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racionalidade, que redirecionava a crítica filosófica para a apreensão  
do objeto em seu significado específico”, rejeitando todo  
procedimento que dissolva a heterogeneidade dos processos  
históricos a partir da subsunção destes a uma lógica autônoma  
(MUSETTI, 2018, p. 219)  
Isso quer dizer que os estudos de Marx acerca de sociedades não capitalistas  
(sociedades nas periferias do capitalismo, nos termos de SHANIN (2017), ou às  
margens do capitalismo (ANDERSON, 2019)) nas décadas de 1870 e 1880 não são  
desvios em relação ao trabalho desenvolvido anteriormente, mas sim uma  
consequência da natureza da teoria marxiana, como será evidenciado a frente.  
Diferentemente do proposto por Löwy (LÖWY In. MARX & ENGELS, 2013), os estudos  
dessas sociedades têm direta continuidade com a teoria marxiana de antes do 1880-  
1870 (bem como descontinuidades, como é natural do desenvolvimento intelectual do  
autor), constituindo parte integrante dos esforços de Marxpara empreender sua crítica  
à economia política, sempre tendo em vista o objeto de investigação em suas  
determinações concretas e específicas.  
Como bem coloca MUSTO (2018), Marx nas décadas de 1870 e 1880 não só  
deu continuidade às pesquisas que vinha conduzindo desde a década de 1840 –  
contrariando autores como David Riazanov, que supunham que na década de 1880  
a saúde fragilizada de Marxhavia desacelerado o ímpeto intelectual do autor (MUSTO,  
2018, p. 30) , mas, ambicionado por finalizar o segundo volume de O Capital,  
também as extende a novos campos, com intuito de ampliar seu conhecimento sobre  
os períodos históricos, as áreas da geográficas e as temáticas que considerava  
essenciais para a crítica à economia política, sobretudo no que concerne à  
acumulação16 de capital no âmbito da produção global capitalista. Tais estudos  
permitem, inclusive, avanços na área. Portanto, os estudos russos empreendidos de  
1867 a 1881 por Marx não foram impulsionados por simples curiosidade intelectual,  
mas sim com uma intenção rigorosamente teórico-política. Dessa forma, tratar os  
estudos do velho Marx como uma virada em relação aos estudos anteriores é  
desconsiderar a natureza da própria teoria marxiana, que não se propõe como um  
sistema fechado em si, hermético a mudanças e desenvolvimentos e que é sempre  
propulsionada pela radicalidade do pensamento do autor e pela busca da apreensão  
16 Que aqui não pode ser confundida com a assim chamada acumulação originária, que se refere a um  
processo distinto  
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dos objetos em suas determinações próprias.17  
A disputa entre narodniks e os chamados marxistas russos  
Antes de tudo, são necessárias duas advertências. Como coloca SHANIN (2018,  
p. 33), o uso dos rótulos “marxistas russos” e “populistas” / “narodniks” pode se  
demonstrar enganoso por algumas razões. Primeiro, acerca do uso do termo marxistas  
russos para denominar um dos grupos do debate do qual trataremos, apesar de que  
os chamados marxistas russos se denominarem como tal deriva do fato de que esses  
russos baseavam sua posição revolucionária na leitura que fizeram da obra marxiana,  
alegando que sua posição era a de Marx, como será melhor exposto, isso não é um  
equívoco. Em verdade, a posição postulada pelos chamados marxistas russos em nada  
se parece com a posição do próprio Marx, como o próprio autor faz questão de  
ressaltar para Vera Zasulich, quando escreve que “os marxistasrussos de que falais  
me são desconhecidos” (MARX, 2013, p. 85), utilizando-se de aspas irônicas ao se  
referir aos russos que Zasulich trata como marxistas. Assim como Marx um dia disse a  
Paul Lafargue sobre o chamado marxismo da França, aplica-se aqui também que, se  
esses russos era os marxistas, Marx provavelmente teria reiterado que “Ce qu'il y a de  
certain c'est que moi, je ne suis pas Marxiste” (MARX, 2010g, p. 356). [O que há de  
certo é que eu não sou marxista] (tradução livre)  
Em segundo lugar, sobre os narodniks ou populistas, o termo se demonstra  
enganoso na medida que se refere a um grupo que abrangia desde revolucionários,  
liberais reformistas a grupos de extrema direita, sendo os narodniks aos quais Zasulich  
se refere em sua carta são aqueles da vertente revolucionária, por assim dizer. Nessa  
eiva, não podemos nos confundir populistas como Piotr Lavrov e Nikolai  
Tchernishevski ambos pelos quais Marx possuía grande respeito, sendo inclusive  
Lavrov amigo pessoal de Marx e Tchernichevski enormemente admirado pelo próprio  
Lenin —– estes que, conforme explica Theodor Shanin, eram os populistas que se  
colocavam na extrema direita do que se denominava narodniks na época (SHANIN,  
17  
A questão que tocamos aqui é de enorme complexidade e a mencionamos aqui simplesmente para  
deixar clara nossa posição no debate aqui colocado, embora não nos seja possível explorar de forma  
pormenorizada a razão pela qual discordamos de Löwy e Shanin quanto à existência de uma ruptura  
no Marx tardio em relação aos textos de antes da década de 1880. Tal trabalho demanda uma análise  
que não cabe no espaço do qual aqui dispomos, mas para uma introdução no debate, cf. SAYER &  
CORRIGAN, In. SHANIN, 2017  
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1983, p. 8).18  
No começo da década de 1880, quando uma já exilada Vera Zasulitch escreve a  
Karl Marx, dois grupos revolucionários russos de um lado, os autoproclamados  
marxistas russos, dentre os quais, em certa medida, incluíam-se Plekhanov e a própria  
Zasulich19, militantes da Partilha Negra (cf. SHANIN, 1983); de outro, os narodniks,  
conhecidos também como populistas (HOBSBAWM, 1977, p. 255)20 travavam uma  
acirrada disputa acerca da questão agrária russa, de quais seriam os rumos de sua  
propriedade comunal agrícola e, consequentemente, de qual deveria ser a estratégia  
para uma revolução na Rússia21. Os narodniks (ou populistas) defendiam a  
possibilidade de “uma comuna camponesa revolucionada […]constituir a base de uma  
transformação socialista direta da Rússia, poupando o país dos horrores do  
desenvolvimento capitalista(HOBSBAWM, 1988, p. 256), ao passo que “os marxistas  
russos acreditavam que isso não era mais possível, porque a comuna já estava se  
dividindo em dois grupos mutuamente hostis, burguesia e proletariado rurais”  
(HOBSBAWM, 1988, p. 256).  
Em meio a esse debate no qual O Capital de Marxdesempenhava papel central  
, a jovem revolucionária buscava as palavras do autor alemão na forma de uma carta  
que pudesse ser traduzida e publicada na Rússia, a fim de solucionar uma questão que  
ela afirma ser de “vida ou morte, sobretudo para o nosso partido socialista [a Partilha  
Negra]” (ZASULICH In. MARX & ENGELS, 2013, p. 66), bem como que do  
posicionamento de Marx nesse debate dependeria “até mesmo o nosso destino  
pessoal como socialistas revolucionários” (ZASULICH In. MARX & ENGELS, 2013, p.  
66). Dessa forma, é com extrema urgência que Zasulich escreveu a Marx, pedindo-lhe  
que expusesse suas “ideias sobre o possível destino de nossa [da] comuna rural e  
sobre a teoria da necessidade histórica de que todos os países do mundo passem por  
todas as fases da produção capitalista” (ZASULICH In. MARX & ENGELS, 2013, p. 66).  
18 Sobre essas distinções, cf. Tvardovskaia, El populismo ruso, 1978  
19  
Como SILJAK (2013) aponta, é no mínimo curiosa a interessante contradição entre o conteúdo da  
resposta que Marx envia à carta de Zasulich e a posição que Zasulich e seus companheiros da Partilha  
Negra defendiam na década de 1890, aproximando-os aos chamados marxistas russos e, ironicamente,  
do pensamento do próprio Karl Marx  
20  
Sobre a crítica de Lenin sobre os narodniks, Cf. em Lenin, Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia,  
1982. Sobre essa polêmica, cf. também Hobsbawm, A Era do Capital, 1977; cf. também Coggiola,  
Realidade e lenda do bolchevismo, 2017  
21 Conforme vemos em WADA (2017, pp. 107-108), o contexto exato desse debate é também objeto  
de discussões. Sobre isso, cf. WADA In. Shanin, 2017  
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Assim, Vera Zasulich propõe a Marx em sua carta uma questão de alta complexidade,  
tratando-se de um marcado dilema para os revolucionários na Rússia naquele  
momento: a revolução na Rússia dependeria da dissolução da terra comunal? O que  
deveriam fazer os russos que desejavam a regeneração social na Rússia?  
Na carta a Marx, Vera Zasulitch afirma haver apenas duas interpretações acerca  
da comuna que permeavam os debates russos na época. A primeira, defendida pelos  
narodniks, em linhas gerais tinha que a comuna agrária russa deveria ser a base para  
a regeneração social russa, dado que já se tratava de uma forma de produção baseada  
na posse comum da terra. Nesse sentido, os revolucionários na Rússia deveriam focar  
na libertação da comuna agrária e da transição para o comunismo a partir dela.  
A comuna rural, liberada das exigências desmesuradas do fisco, dos  
pagamentos aos donos das terras e da administração arbitrária, é  
capaz de se desenvolver pela via socialista, quer dizer, de organizar  
pouco a pouco sua produção e distribuição de produtos sobre bases  
coletivistas. Nessecaso, o socialistarevolucionário deve envidar todos  
os seus esforços em prol da libertação da comuna e de seu  
desenvolvimento. (ZASULICH, 2013, p. 52)  
De acordo com os partidários dessa posição, a revolução na Rússia deveria se  
voltar contra os inimigos da comuna agrária o Estado russo para libertá-la das  
amarras que a impediam de se desenvolver, o que possibilitaria à obchtchina russa  
(comuna agrária) tornar-se a base da transição da Rússia para um modo de produção  
socialista — sua “regeneração social” (MARX, 2013, p. 94). Em outras palavras, os  
narodniks entendiam que a transição para o modo de produção socialista era possível  
na Rússia sob as bases da obchtchina russa e, com isso, sem que fosse forçoso que a  
Rússia passasse pelo regime de produção capitalista e seus “fourches caudines”  
(MARX, 2013, p. 94), isto é, que antes da revolução precisasse desenvolver sua  
produção de forma capitalista. Ou seja, tratava-se justamente da defesa do socialismo  
em um país de desenvolvimento não clássico, rejeitando a ideia de que o socialismo  
só era possível onde já se tinha um modo de produção capitalista classicamente  
consolidado. Contestava-se a tese segundo a qual: (i) o passado da Europa Ocidental  
revelaria o futuro da Rússia, de maneira que os processos de expropriação das terras  
comunais e das pequenas propriedades pelos quais os países europeus passaram —  
isto é, os processos de que Marxtrata no Capítulo XXIV de O Capital, na assim chamada  
acumulação primitiva ocorreria inevitavelmente na Rússia; (ii) uma revolução  
socialista só seria possível em um país que, com a Inglaterra, já tivesse um modo de  
produção capitalista consolidado, pois se trataria de uma etapa necessária antes do  
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socialismo (ou seja, o capitalismo em si seria necessário, e não o desenvolvimento de  
forças produtivas que ele enseja).  
No outro polo da controvérsia acerca do papel da obchtchina na regeneração  
social da Rússia estavam os autoproclamados “marxistas” russos, cuja tese se opunha  
frontalmente a dos narodniks nessa questão. Segundo “marxistas russos”, a obchtchina  
estava fadada ao fracasso, restando apenas como um resíduo de uma forma produtiva  
fadada à superação capitalista. Chegaram a essa conclusão a partir do exemplo  
histórico da acumulação primitiva na Inglaterra, conforme trazidopor MarxnOCapital.  
Defendiam que a comuna agrária “é uma forma arcaica, condenada à morte, como  
se fosse a coisa mais indiscutível, pela história, pelo socialismo científico” (ZASULICH,  
2013, p. 66), argumentando que, embora em O Capital a Rússia não seja o objeto de  
análise de Marx, o autor certamente o teria dito. A partir da via inglesa de  
desenvolvimento capitalista, arguiam que as terras comunais na Rússia, tal qual  
ocorreu com as commons inglesas, seriam fatalmente desintegradas e os camponeses  
russos, necessariamente, proletarizados. Marxnos explica muito bem a argumentação  
desses chamados marxistas em sua carta à redação da revista Otechestvenye Zapiski  
[Notas Patrióticas], colocando em linhas diretas o que se segue:  
se a Rússia tende a tornar-se uma nação capitalista a exemplo das  
nações da Europa ocidental e durante os últimos anos ela se  
esforçou muito nesse sentido , não será bem-sucedida sem ter  
transformado, de antemão, uma boa parte de seus camponeses em  
proletários; e, depois disso, uma vez levada ao âmago do regime  
capitalista, terá de suportar suas leis impiedosas como os demais  
povos profanos. (MARX, 2013, p. 45)  
Percebe-se, pois, que segundo essa explicação, o desenvolvimento do  
capitalismo na Rússia seria um desenrolar necessário da história, bem como que, para  
que se desenvolvesse um modo de produção ali, a Rússia inevitavelmente haveria de  
percorreria uma via necessariamente análoga à que engendrou o modo de produção  
capitalista na Europa ocidental, não obstante as diferenças históricas que separam os  
dois contextos. Assim, a Rússia vivenciaria os mesmos processos violentos de  
expropriação dos produtores dos meios e condições de produção e de criação leis  
sanguinárias que submetem os trabalhadores ao novo modo de produção, de forma  
semelhante ao processo da assim chamada acumulação originária pelo qual em  
maior ou menor medida passaram os países da Europa Ocidental. E,  
consequentemente, a comuna agrária seria desintegrada, tal como ocorreu no resto da  
Europa Ocidental, de modo que uma revolução na Rússia que partisse da comuna  
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Marx e o cardápio da taberna do futuro  
jamais poderia levar ao socialismo, uma vez que a comuna deveria ser sucedida pelo  
capitalismo e este pelo socialismo, tal como fases necessárias. Com isso  
ao socialista como tal não resta outra coisa senão dedicar-se a  
cálculos mais ou menos mal fundamentados para descobrir em  
quantas dezenas de anos a terra do camponês russo passará de suas  
mãos para as da burguesia, em quantas centenas de anos, talvez, o  
capitalismo atingirána Rússiaum desenvolvimento comparável ao da  
Europa ocidental. Eles deverão, portanto, fazer a propaganda apenas  
entre os trabalhadores das cidades, que por sua vez serão  
continuamente inundadas pela massa de camponeses, a ser lançada  
em seus paralelepípedos em buscade salário, como consequênciada  
dissolução da comuna. (ZASULICH, 2013, p. 66)  
É importante aqui um breve adendo sobre a assim chamada acumulação  
originária. No Capítulo XXIV de O Capital, que trata da assim chamada acumulação  
primitiva/originária, Marx descreve como nos capítulos anteriores  
vimos como o dinheiro é transformado em capital, como por meio do  
capital é produzido mais valor e do mais-valor se obtém mais capital.  
Porém, a acumulação do capital pressupõe o mais valor, o mais valor,  
a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas  
relativamentegrandes de capital e de força de trabalho nas mãos de  
produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto,  
gerar num círculo vicioso do qual só podemos escapar supondo uma  
acumulação primitiva(originária), prévia acapitalista, umaacumulação  
que não é o resultado do modo de produção capitalista, mas seu  
ponto de partida.” (MARX, 2017, p. 785).  
Assim, Marx começa a exposição explicitando como o dinheiro historicamente foi  
transformado em capital, sendo que o capital pressupõe o mais valor e este, por óbvio,  
pressupõe a produção capitalista. Contudo, como a produção capitalista só pode se  
colocar sobre seus próprios pés na medida que existem grandes massas de capital e  
força de trabalho para ser comprada, chega-se nesse ponto em uma explicação cíclica,  
na medida que a acumulação de capital pressupõe a produção capitalista, a qual, por  
sua vez, pressupõe a acumulação de capital. Adam Smith resolve esse círculo  
pressupondo uma acumulação prévia à acumulação capitalista, a qual possibilitou o  
modo de produção de se instaurar e, então, iniciar-se a acumulação capitalista.  
Como Marx aponta, a acumulação originária desempenha um papel de certo  
cunho religioso desempenhado pela acumulação primitiva na economia política, na  
medida que, assim como o pecado original teológico explica como o homem foi  
condenado a comer o pão molhado com o suor de seu rosto, o pecado original da  
economia política nos mostra como pode haver gente hoje que não possui nenhuma  
necessidade disso, de trabalhar para sobreviver, contando que, no passado, uns  
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trabalhavam e foram inteligentes para guardar, ao passo que outros gastavam tudo.  
Essa elite laboriosa e prudente acumulou riquezas, poupou o produto de seu trabalho,  
e os últimos, por sua insensatez e imprudência, foram obrigados a vender sua própria  
pele para sobreviver esse foi seu pecado original, que explica a razão pela qual  
hoje trabalha para sobreviver. E é daí que vem a necessidade ainda existente da venda  
da força de trabalho para um e a riqueza dos poucos, que continua crescente, embora  
há muito tenha deixado de trabalhar” (MARX, 2017, p. 786).  
Porém, na história real, como Marxnos mostra no Capítulo XXIV, o papel principal  
nessa parábola econômica não é da virtude de uns e do vício de outros, mas sim da  
conquista, subjugação, assassinato, em suma, da violência. Portanto, se para a  
economia política direito e trabalho foram fontes de enriquecimento, na história real a  
violência teve esse papel. Isto é, nesse capítulo, o autor visa pôr por terra a justificativa  
ética do capitalismo, de que o que explica porque uns têm que trabalhar para  
sobreviver enquanto alguns poucos não têm essa necessidade não é que uns  
pouparam e outros não, mas sim o roubo e a violência, da apropriação privada do  
trabalho alheio. Isto é, o autor no Capítulo XXIV da obra visa desafiar a ideia de que  
“numa época muito remota, havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e  
sobretudo perniciosa e por outro vadios que gastavam tudo” - uma explicação que,  
além de diversos outros equívocos que serão explorados mais a frente, situa a origem  
das classes burguesa e proletária na esfera de circulação, colocando aqueles como os  
que, com parcimônia e prudência, apropriaram-se da riqueza universal (poupando-a),  
ao passo que estes usufruíram da riqueza real ao invés de poupá-la, razão pela qual  
têm que trabalhar para sobreviver. O objetivo de Marx com esse Capítulo é provar  
que, em verdade, o capitalismo não é engendrado pela acumulação primitiva, isto é,  
pelo fato de que, num passado distante, alguns se apropriaram da riqueza universal  
enquanto outros usufruíam da riqueza real, ou seja, que una pouparam enquanto  
outros gastavam, mas sim da expropriação, da separação do produtor direto dos meios  
e condições de produção.  
Prossigamos na exposição.  
Os “marxistas” russos, portanto, acreditavam que, antes e para que ocorresse  
uma revolução socialista na Rússia, era preciso, em primeiro lugar, que a comuna fosse  
destruída e os camponeses fosses transformados em proletariado, segundo o modelo  
da Europa ocidental. Sem que isso ocorresse, a regeneração social russa não seria  
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possível. Desse modo, os esforços dos revolucionários russos estariam desperdiçados  
se fossem voltados para a preservação da comuna russa, uma vez que, segundo esse  
ponto de vista, estaria fadada à desintegração. Seu principal argumento para sustentar  
sua posição:Foi Marx quem disse isso” (ZASULICH, 2013, p. 66)  
Diante do exposto, poderíamos colocar a questão sobre a qual Vera Zasulich  
propõe que Marx se pronuncie nos seguintes termos: era possível que, na Rússia do  
final do século XIX uma economia predominantemente rural , fosse levada a cabo  
uma revolução? Ou a comuna agrária russa estava fadada à desintegração e a  
revolução deveria, necessariamente, partir do proletariado urbano? Fosse essa a  
resposta, seria necessário um maior amadurecimento da indústria russa e de seu  
proletariado, de forma que na época em que Zasulitch escrevia a Marx a revolução  
comunista não era ainda viável22.  
Sobre a relevância das cartas  
Em 1917, um mês após a tomada do Palácio de Inverno de Nikolai II pelos  
bolcheviques, um jovem Antônio Gramsci escreveu um curto artigo para a Revista  
Avante! comentando sobre a Revolução na Rússia, texto intitulado A Revolução contra  
O Capital. Nesse artigo, Gramsci afirma que a Revolução na Rússia era  
a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capital de Marx era, na  
Rússia, mais o livro dos burgueses que dos proletários. Era a  
demonstração crítica da necessidade inevitável que na Rússia se  
formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se  
instaurasse umacivilização de tipo ocidental, antes que o proletariado  
pudesse sequer pensar nasua insurreição, nas suas reivindicaçõesde  
classe, na sua revolução. Os factos ultrapassaram as ideologias. Os  
factos rebentaram os esquemas críticos de acordo com os quais a  
22  
Sobre as circunstâncias nas quais as cartas foram encontradas, sabe-se que Marx escreveu sua  
resposta definitiva à Vera em 8 de março de 1881, desculpando-se pela brevidade da carta, bem como  
pela sua relativa demora na escrita, pois havia se agravado uma doença nervosa que o acometia há  
mais de 10 anos. Curiosamente, embora Vera tenha pedido a Marx que fizesse uma resposta que  
pudesse ser traduzida para o russo e publicada para seus compatriotas, a promessa de publicação não  
foi cumprida por Zasulich e seus companheiros. A carta caiu na obscuridade até 1911, quando David  
Riazanov cuidava de uma série de escritos de Marx que estavam sob cuidado do genro do autor renano,  
Paul Lafargue. Em meio aos vários textos que estavam com Lafargue, Riazanov encontrou várias cartas  
em formato de oitava, escritas com sua letra manuscrita, bem pequena. Elas eram cheias de supressões  
e continham várias inserções e adendos, também muito riscadas” (RIAZANOV In. SHANIN, 2017, p.  
181). Após uma classificação inicial, Riazanov percebeu que tinha em suas mãos vários rascunhos de  
respostas à carta enviada por Vera Zasulich, de 16 de fevereiro de 1881. Lembrou-se ainda de ter  
ouvido falar de uma quase mítica correspondência entre Vera Zasulich e Karl Marx, mas nunca havia  
visto as cartas em si. Curioso sobre essa correspondência, Riazanov escreveu a Gueorgui Plekhanov,  
indagando sobre a resposta de Marx, mas Plekhanov disse que Marx nunca havia respondido à carta de  
Vera. Após escrever à própria Vera, também perguntando sobre a carta de Marx, Riazanov recebeu a  
mesma negativa: não havia recebido resposta alguma a sua carta a Marx.  
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história da Rússia devia desenrolar-se segundo os cânones do  
materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx quando  
afirmam, com o testemunho da ação concreta, das conquistas  
alcançadas, que os cânones do materialismo histórico não são tão  
férreos como se poderia pensar e se pensou. (GRAMSCI, 1976, p.21)  
Gramsci afirma, portanto,que a Revolução Bolchevique de 1917 renegava Karl  
Marx e O Capital, na medida que a obra do autor traria cânones do materialismo”  
segundo os quais a Rússia estaria ainda demasiadamenteimatura para a ser palco de  
uma revolução comunista em virtude de sua economia agrária e pelo fato de não  
possuir uma classe burguesa. O autor afirma que O Capital significaria para a Rússia  
que, antes de uma revolução nos moldes marxianos, era necessário que a Rússia  
desenvolvesse uma estrutura produtiva semelhante à dos países da Europa Ocidental,  
de modo que a Revolução de 1917, ao não seguir os supostos cânones do  
materialismo histórico(GRAMSCI, 1976, p. 21), seria a rejeição por parte dos  
revolucionários do caminho que Marx teria proposto nO Capital.  
A Revolução de 1917 teria significado para Gramsci, portanto, a rejeição à  
doutrina de Marx de que a história humana segue etapas necessárias, de modo que  
seria possível a revolução comunista em um lugar tal como a Inglaterra, onde se tinha  
um capitalismo maduro e uma burguesia estabelecida. Assim, os bolcheviques, ao  
tentarem fazer uma revolução comunista na Rússia, atuavam no sentido contrário ao  
de Marx e aos “cânones do materialismo” (GRAMSCI, 1976, p. 21) histórico, pois o  
país não havia passado pelo processo histórico de desenvolvimento do modo de  
produção capitalista como o da Europa Ocidental. Gramsci afirma: “Eles não são  
marxistas, é tudo; não retiraram das obras do Mestre uma doutrina exterior feita de  
afirmações dogmáticas e indiscutíveis” (GRAMSCI, 1976, p. 22), ou seja, rejeitavam a  
ideia de que a Rússia não poderia ser palco de uma revolução, o que, para Gramsci  
em 1917, era uma rejeição a Marx.  
Embora muito menos sofisticado do que o texto de Gramsci, podemos ver uma  
interpretação semelhante nos escritos de Joseph Stálin, com destaque a Sobre o  
Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico, de 1938. No ensaio em questão,  
Stálin utiliza-se da obra de Marx para defender a existência de um modelo teórico dos  
momentos da história humana, os quais se sucederiam de forma inevitável o  
comunismo primitivo, a antiguidade escravista, o feudalismo, o capitalismo e o  
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socialismo (STALIN, 1938)23. Em verdade, ao longo do século XX uma leitura etapista  
de Marx tornou-se bastante comum, sendo muitos os autores que liam na obra  
marxiana um esquema da história humana. Conforme essa leitura etapista, poder-se-ia  
identificar na obra do autor - com destaque para O Capital - uma teoria acerca do  
curso imposto aos povos pela História de forma inevitável.  
Com base no uso por parte de Marx do desenvolvimento capitalista inglês como  
pano de fundo para a análise da produção capitalista, fez-se do “esquema histórico da  
gênese do capitalismo na Europa ocidental(MARX, 2013, p. 45)uma teoria histórico-  
filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos, independente das  
circunstâncias históricas nas quais eles se encontram” (MARX, 2013, p. 45). Dessa  
forma, utilizando o desenvolvimento do capitalismo na Europa ocidental –  
principalmente na Inglaterra24 – como uma “chave-mestra uma teoria histórico-  
filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra histórica(MARX, 2013, p.  
46), cria-se uma fórmula geral a ser seguida necessariamente, a despeito das  
condições materiais e históricas de dada lugar.  
O etapismo do marxismo do século XX sendo etapismo a interpretação da  
teoria marxiana como uma leitura teleológica da história, despreocupada com a análise  
concreta e desatenta às especificidades de cada povo e momento histórico , subsiste  
ainda hoje, embora em graus mais atenuados. Por exemplo, a italiana Silvia Federici  
critica Marx por considerar que o autor renano vê no modo de produção capitalista  
uma necessidade histórica, interpretação que denota tons de etapismo. Como afirma  
a autora, embora Marx fosse profundamente consciente do caráter criminoso do  
desenvolvimento capitalista […], não cabe dúvida de que considerava isso como um  
passo necessário no processo de libertação humana” (FEDERICI, 2017, p. 27) [grifo  
meu]. Federici considera que quando Marxtrata dos avanços produtivos trazidos pelo  
capitalismo, ele vê o modo de produção capitalista como um passo necessário na  
evolução humana,isto é, a autora identifica em Marxuma leitura teleológica da história.  
Principalmente com relação aos estudos sobre colonialismo e os escritos que  
Marx sobre o assunto, a ideia de que Marx era um etapista histórico, bem como um  
determinista e evolucionista também se fazem fortes. A ideia de que para o autor  
23  
“A história conhece cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a  
escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo” (STALIN, 1938)  
24 Cf. Marx, 1996a, p.130  
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existem leis econômicas inexoráveis que regem a vida humana de forma homogênea,  
fazendo da história humana um caminho linear, em que todos os povos passam por  
momentos necessários de desenvolvimento. Por exemplo, KATZ (1990) afirma que  
Marx, embora reconhecesse a brutalidade do colonialismo, assinalava à exploração das  
metrópoles um papel historicamente necessário, bem como que o capitalismo nas  
colônias teria um papel progressista. Em sentido semelhante, HOBSBAWM (2011)  
argumenta que a sugestão de eurocentrismo  
surge na obra de Marx em suacrençade que as sociedades europeias  
se autogeram por meio de uma via de desenvolvimento linear  
endogenamente determinada, conforme suas características  
excepcionais, de modo que o Milagre Europeu foi previsto ou  
preordenado ou foi, simplesmente, o destino manifesto da Europa  
(HOBSBAWM, 2011, p. 155)  
Embora esses autores consigam encontrar em certos textos de Marx elementos  
que podem ser usados para corroborar essa visão de que o autor era um etapista  
histórico, uma leitura mais atenta e completa da obra marxiana torna mais difícil esse  
intento, sobretudo diante dos textos aos quais o presente trabalho se dedica.  
Conforme é evidente nos textos sobre a Rússia, há uma profunda rejeição da parte de  
Marx à ideia de uma leitura teleológica da história, sendo evidente no autor uma clara  
preocupação em assinalar o caráter historicamente específico da via inglesa de  
desenvolvimento25, sendo que o processo da assim chamada acumulação originária  
aparece de formas diferentes em cada local e momento histórico.  
Ademais, nas obras do chamado Marxtardio26, encontramos de forma ainda mais  
evidente elementos que nos permite colocar em dúvida a acusação de que o autor era  
um etapista histórico. Por exemplo, nos chamados Cadernos Etnológicos estudos  
de Karl Marxsobre as obras de autores como Lewis Morgan, James Money, John Phear,  
Henry Maine e John Lubbock o autor trata de temas como a pré-história, o  
desenvolvimento dos vínculos familiares (com interessantes notas sobre a historicidade  
25  
A qual aparece de forma proeminente em O Capital, na medida que era na Inglaterra onde o  
capitalismo aparecia em sua via clássica, permitindo a percepção das leis imanentes da produção  
capitalista de forma mais evidente do que em outras formações sociais, conforme já aludido  
anteriormente.  
26 “Marx tardio” é como Teodor Shanin se refere ao Marx da década de 1872-1882, de modo a sugerir  
uma descontinuidade entre a obra do Marx desse período e do Marx de antes da década de 1870, pois  
naquela haveria uma suposta ruptura com o evolucionismo e unilinearidade que teriam marcado a obra  
de Marx desde as décadas de 1840 a 1860 (cf. SHANIN, 2017). A ideia de que há uma ruptura interna  
na obra de Marx, entre sua juventude e sua maturidade também aparece em autores como Louis  
Althusser e Michel Löwy, embora com cada qual com certas particularidades. Conforme já apontado,  
não coadunamos com essa cisão.  
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da família patriarcal burguesa), a origem da propriedade privada, bem como a questão  
das mulheres na história e o colonialismo27. Especificamente sobre a civilização  
burguesa e a tendência evolucionista de autores da época de coroar a sociedade  
europeia como o ápice do desenvolvimento humano,Marxrejeita fortemente tal ideia,  
reforçando sua convicção de que a luta consciente da classe trabalhadora superaria  
essa sociabilidade por uma melhor. Marxtambém rejeita acidamente o uso de termos  
de forte conotação racista pelos autores que lia, além de rejeitar suas teorias  
apologéticas ao colonialismo. Além dos Cadernos, os estudos do velho Marx sobre a  
situação russa trazem importantes contribuições para o debate sobre o suposto  
etapismo histórico do autor, com destaque para a correspondência de Marx com a  
revolucionária russa Vera Zasulich, objeto desse trabalho.  
Reflexões sobre o futuro da comuna agrária e o destino dos povos: a(s)  
resposta(s) de Marx  
Para responder a complexa questão de Vera Zasulich, Marx escreveu quatro  
esboços antes de enviar sua resposta final em 8 de março de 1881 três longos  
esboços, contendo explicações extensas sobre a questão e um quarto não terminado28.  
A partir do primeiro, segundo e terceiro esboços que Marx escreveu para responder  
Zasulich, nos propomos a compreender se, para Marx, seria ou não possível uma  
revolução comunista que não partisse de uma economia industrial capitalista, isto é,  
se uma Rússia rural estava ‘pronta’ ou não para passar por uma revolução.29 Ressalte-  
se que ao colocar tais questionamentos não nos dedicamos a um exercício de  
divinação, tentando adivinhar uma resposta correta para questão tão controversa do  
passado. Não se trata então de elaborar “e se’s”, mas de analisar a posição marxiana  
acerca da possibilidade de uma revolução comunista em países com desenvolvimentos  
27 sobre a questão dos chamados Cadernos Etnológicos de Marx, cf. ÁLVARES, Lucas Parreira. Flechas  
e Martelos: Marx e Engels como leitores de Lewis Morgan. Orientador: Vitor Bartoletti Sartori.  
Dissertação (Mestrado) Direito e Justiça, Faculdade de Direito e Ciências do Estado da Universidade  
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019  
28 Acerca da ordem cronológica em que foram escritos os quatro esboços, WADA (In. SHANIN, 2017, p.  
108) adere à suposição de Hinada Shizuma de que Marx escreveu os esboços I, II, III e IV não nessa  
ordem, como organizou Riazanov na publicação original, mas sim na seguinte ordem: II, I e III. Shizuma,  
como explica Haruki Wada, supõe que a ordem teria sido essa mencionada e não a ordem feita por  
Riazanov na medida que o conceito da “comuna agrária” só aparece no meio do esboço I e aparece em  
todo o esboço III, ao passo que estaria ausente no esboço II. Além disso, o esboço I parece mais  
desenvolvido do que o esboço II, sugerindo que aquele teria sido escrito depois desse.  
29  
Sobre isso, vale a pena conferir o Prefácio que Marx e Engels escreveram para a Edição Russa do  
Manifesto Comunista. Cf. Marx, 2013, p. 81, do qual trataremos mais a frente  
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econômicos distintos do inglês a partir do que o autor escreveu acerca dos possíveis  
caminhos de uma revolução na Rússia.  
O ponto principal é que caso a posição de Marxfosse realmente a que é creditada  
a ele pelos “marxistas” russos, a resposta que se deveria esperar era que a segunda  
alternativa trazida por Zasulitch era a correta, de modo que mais próximos de Marx  
estariam os “marxistas” russos. Marx haveria então que responder sobre o destino  
maldito da obchtchina, a qual estaria fadada a perecer tal qual havia ocorrido na  
Inglaterra e que os revolucionários russos deveriam direcionar seus esforços ao  
amadurecimento do proletariado urbano, dado que seria dali que partiria a revolução  
na Rússia. A Rússia rural fatalmente seria suplantada por uma Rússia urbana industrial,  
tal como se observou em outros países da Europa Ocidental. Seria, pois, um  
desperdício de esforços e energia por parte dos revolucionários buscar uma revolução  
que partisse do seio da comuna, dado que o desenvolvimento histórico-material de  
Europa Ocidental nos mostrava que esta estava fadada a sucumbir perante o motor da  
história, destinada a ser suplantada por uma economia industrial.  
Essa não foi, contudo, a resposta de Marx aos questionamentos de Vera  
Zasulitch. Marx não só considerava possível que essa revolução partisse da  
propriedade comunal, mas considerava que essa era a melhor alternativa. A Rússia não  
precisava destruir a comuna agrária: ela era “a alavanca da regeneração social da  
Rússia” (Marx, 2013, p. 74) – e, por isso, poderia atuar complementarmente à  
revolução no Ocidente. Portanto, para a regeneração social russa, não era a comuna  
que deveria perecer para abrir caminho para a revolução, mas “as influências deletérias  
que a assaltam de todos os lados e, então, assegurar-lhe as condições de um  
desenvolvimento natural” (Marx, 2013, p. 74).  
Aqui se faz necessário um breve parêntesis. Quando Marx trata da revolução na  
Rússia como “regeneração social”, é importante notar que o autor não faz nem um  
elogio unilateral ao progresso, nem à forma primitiva comunal. Como bem adverte  
Sartori (2017),  
Marx não valorizava a comuna russa” por esta se colocar em uma  
forma de comunidade” (Gemeinschaft) emoposição àcivilização” ou  
à
sociedade (Gesellschaft): não há nenhum romantismo  
revolucionário” (cf. LÖWY; SAYRE, 1995) no autor; também neste  
ponto, sua análise nada tem de romântica; o aspecto coletivo da  
comunarural” se evidenciavano momento em que, enquanto maior  
força produtiva da Rússia”, estatinha “a superioridade econômicada  
propriedade comunal, como base do trabalho cooperativo e  
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combinado” (MARX, 1985a, p. 132) frente àatomização da produção.  
Marx fazia justamente o contrário de uma idealização romântica da  
comunarussa” e não era porque não aceitava a solução dos novos  
pilares da sociedade” – a imposição brutal do capitalismo que se  
voltava para o passado (SARTORI, 2017, pp. 146-147)  
Não se trata, pois, de um retorno um retorno ao passado da comuna, tanto  
porque se fala em apropriar os desenvolvimentos das forças produtivas do Ocidente.  
Tampouco se fala também em um progresso que destrói tudo e nada deixa para trás,  
afinal o autor claramente trata a questão como uma de regenerar a comuna agrária  
russa, de preservar seus elementos progressivos e de desenvolvê-la.30  
Marxafirma, então, que a revolução na Rússia não dependia da transição de uma  
economia rural, baseada na propriedade comunal da terra, para uma industrial  
burguesa, baseada na propriedade privada nas mãos de poucos e na exploração do  
trabalho assalariado. Tampouco dependia do desenvolvimento de uma burguesia  
urbana, mas sim da derrubada do czarismo na Rússia, que pressionava a comuna e a  
impedia de se desenvolver31. Ou seja, seria necessário que a Revolução se posicionasse  
contra o czarismo e aristocracia russa. Tratava-se, portanto, de eliminar “a opressão  
por parte do Estado e a exploração pelos intrusos capitalistas que se tornaram  
poderosos, à custa dos camponeses, com a ajuda do próprio Estado” (MARX, 2013,  
p. 62), bem como o elemento de propriedade privada que existe na obschina, na  
medida  
que hoje a própria existência da comuna russa corre perigo advindo  
de uma conspiração de interesses poderosos; esmagada pelas  
exações diretas do Estado, exploradafraudulentamente pelosintrusos  
capitalistas”, mercadores etc., e pelos proprietários” de terras, ela,  
ainda por cima, enfrentao mercado minado pelos usurários dacidade,  
pelos conflitos de interesses provocados em seu próprio seio pela  
situação em que ela foi colocada. (MARX, 2013, p. 83)  
Importante ressaltar que não se trata, contudo, de uma defesa de um socialismo  
agrário sob as bases da comuna tal como ela existia na Rússia naquele momento, mas  
da possibilidade de uma vez eliminadas as amarras que ameaçavam a existência da  
obstchina e a impediam de se desenvolver serem apropriadas as riqueza que o  
capitalismo no Ocidente produz sem ser necessário passar pelo regime capitalismo –  
30  
Não é possível desenvolver de forma pormenorizada o debate sobre o suposto romantismo de Marx  
na presente ocasião. Sobre isso, cf. SARTORI, 2018 e SARTORI, 2019.  
31  
A apropriação das riquezas do Ocidente estaria envolvida nesse processo de desenvolvimento da  
comuna agrária sua transformação em comuna para uma forma de produção comunista. Cf. MARX,  
2013, p. 68  
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algo que só era possível graças ao desenvolvimento das forças produtivas nos países  
da Europa ocidental a partir do modo de produção capitalista, para que então se  
desenvolvesse a comuna agrária. A revolução na Rússia deveria, portanto, primeiro  
voltar-se contra o despotismo dos czares, uma vez que se tratava do principal inimigo  
da comuna russa32. Marx coloca nos seguintes termos:  
Falando em termos teóricos, a comuna rural russa pode, portanto,  
conservar-se, desenvolvendo suabase, apropriedade comum daterra,  
e eliminando o princípio da propriedade privada, igualmente  
implicado nela; ela pode tornar-se um ponto de partida direto do  
sistemaeconômico parao qual tende a sociedade moderna, ela pode  
trocar de pele sem precisar se suicidar; ela pode se apropriar dos  
frutos com que a produção capitalistaenriqueceu ahumanidade sem  
passar pelo regime capitalista, regime que, considerado  
exclusivamente do ponto de vista de sua duração possível, conta  
muito pouco na vida da sociedade. (MARX, 2013, p. 78)  
Marx fala aqui de como a Rússia não precisava atravessar os estágios do  
desenvolvimento dos modos de produção pelos quais os países da Europa ocidental  
passaram antes de realizar uma revolução que visasse a implantação do socialismo,  
justamente porque o lhe eram acessíveis naquele momento os frutos com que a  
produção capitalista havia enriquecido a humanidade, quais sejam: um  
desenvolvimento de forças produtivas sem precedentes na história humana33. Ou seja,  
devia-se às suas circunstâncias históricas extremamente específicas, que permitiram  
que a comuna agrária houvesse sobrevivido por toda a Rússia e que fosse  
contemporânea à produção capitalista. Assim, o único argumento histórico em favor  
de sua dissolução perde seu fundamento, na medida que, diferentemente de outras  
32 Como ressalta Hobsbawm, desde a Guerra da Crimeia, o czar tentava impulsionar a “modernização”  
da Rússia. Para isso, a comuna agrária deveria ser substituída pela agricultura parcelar em outras  
palavras: a propriedade comunal do campo deveria ser substituída pela privada. (HOBSBAWM, A Era  
dos Impérios, 1988)  
33  
Ao atribuir um papel ao modo de produção capitalista na luta pela emancipação humana, Marx  
sustenta não que a emancipação humana existe dentro do capitalismo, mas sim que provoca o  
amadurecimento dos “elementos criadores de uma nova sociedade” (MARX, 2017, p. 571) ao  
amadurecer “as condições materiais e a combinação social do processo de produção” (MARX, 2017, p.  
571). Um dos elementos centrais dessa questão está no papel que o capital tem em criar “tempo  
disponível” na medida reduz o tempo de trabalho necessário (MARX, 2011, p. 506), o que, para Marx  
é imprescindível para a emancipação do trabalho (MARX, 2011, p. 585). Dessa forma, conforme  
assinalado por Marcello Musto em O Velho Marx, Marx via “alguns elementos potencialmente  
progressistas” (MUSTO, 2018, p. 65) no capital, sendo importante, todavia, ressaltarmos a dimensão  
potencial desses elementos, eis que ainda não efetivados no modo de produção capitalista. Ou seja, de  
fato, Marx vê no capitalismo a gênese dos elementos para uma sociabilidade superior, mas esses  
elementos aparecem de forma potencial e que tal “síntese superior” (MARX, 2013, p.) só é atingida “por  
meio da luta consciente da classe trabalhadora” (MUSTO, 2018, p. 37), rejeitando o autor qualquer  
ideia de uma evolução mecânica. Todavia, esse “levantamento” de forma alguma obstrui a compreensão  
em Marx do preço cobrado em carne humana por tal amadurecimento das forças produtivas no  
capitalismo.  
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formas comunais de propriedade da terra, a obschina encontrava-se em circunstâncias  
únicas.  
A Rússia poderia, pois, partir para um modo de produção desenvolvido, baseado  
na posse comum dos meios de produção, a partir da comuna agrária teria, inclusive,  
maior facilidade do que os demais países europeus, nesse sentido, pela vitalidade com  
a qual a comuna havia sobrevivido. A comuna russa não precisaria ser destruída e a  
Rússia não precisaria passar pelo regime capitalista para poder passar para o  
socialismo, graças ao fato de a comuna ter sobrevivido tempo suficiente para ser  
contemporânea ao capitalismo no resto da Europa um capitalismo que havia chegado  
próximo de seu ponto de ruptura.  
Do ponto de vista histórico, o único argumento sério a favor da  
dissolução fatal da comuna de camponeses russos é este: quando  
muito, se encontra em toda parte na Europa ocidental um tipo mais  
ou menos arcaico de propriedade comum;eladesapareceu totalmente  
com o progresso social. Por que ela escapariaa esse mesmo destino  
tão somente na Rússia? Respondo: porque na Rússia, graças a uma  
combinação de circunstâncias únicas, a comuna rural, ainda  
estabelecidaem escalanacional, pode se livrar gradualmente de suas  
características primitivas ese desenvolver diretamentecomo elemento  
da produção coletiva em escala nacional. É justamente graças à  
contemporaneidade daprodução capitalistaque elapode se apropriar  
de todas as conquistas positivas e isto sem passar por suas  
vicissitudes desagradáveis. A Rússia não vive isolada do mundo  
moderno, tampouco foi vítima de algum conquistador estrangeiro,  
como o foram as Índias Orientais. (MARX, 2013, p. 74)  
Mas como seria possível que uma economia agrária como a russa passasse  
“diretamente” para uma transição entre capitalismo e comunismo, sendo que ela não  
havia passado por um desenvolvimento capitalista industrial propriamente dito? Ora,  
como foi mencionado, a Rússia não se encontrava congelada em uma placa de âmbar,  
isolada do resto da Europa. Ela não só era contemporânea às transformações trazidas  
pelo modo de desenvolvimento capitalista europeu ocidental, mas também interagia  
com o resto da Europa, como parte de um mercado mundial. Ela era, portanto,  
permeável às mudanças ocorridas na Europa ocidental e ao capitalismo (MARX, 2013,  
p. 59). Por um acaso, ela já não desfrutava de linhas ferroviárias, de um sistema  
bancário, de sociedades de crédito e das máquinas a vapor? Isto é  
para explorar as máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, a Rússia  
foi forçada, a exemplo do Ocidente, a passar por um longo período  
de incubação da indústriamecânica? Que eles me expliquem de novo  
como fizeram para introduzir entre eles num piscar de olhos todo o  
mecanismo de trocas (bancos, sociedades de crédito etc.), cuja  
produção custou séculos ao Ocidente? (MARX, 2013, 74)  
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A comuna poderia, portanto, se desenvolver apropriando-se das conquistas  
positivas do capitalismo, sem precisar a Rússia se tornar capitalista. Não sendo ela  
isolada do resto da Europa capitalista, era possível que se aproveitasse das  
transformações positivas trazidas pelo modo de produção capitalista como o já  
aludido desenvolvimento sem precedentes das forças de produção , sem precisar se  
submeter às suas leis exploratórias e aos sofrimentos que ele impõe (MARX, 2013, p.  
59) ou seja, poderia “trocar de pele sem se suicidar” (MARX, 2013, p. 74). Assim, o  
modo de produção russo baseado nas terras comunais poderia ser desenvolvido e se  
tornar a base de um modo de produção coletivo e social e para isso o elemento da  
propriedade privada que se desenvolvia deveria ser extirpado , livrando-se das  
características arcaicas que ainda possuía e chegando a uma forma mais desenvolvida  
da comuna.  
Caso a Rússia fosse, de fato, totalmente vedada às mudanças e transformações  
que ocorreram desde a dissolução das terras comunais europeias ocidentais com a  
consequente consolidação de uma economia capitalista após a Revolução Industrial –  
, poderíamos até admitir a afirmação de que antes de uma transição do capitalismo  
para o comunismo por meio de uma revolução a Rússia deveria vivenciar o  
desenvolvimento capitalista em si. Nesse caso, uma revolução que partisse da comuna  
provavelmente seria inviável teríamos não uma comunidade de riquezas, mas sim a  
comunidade da miséria, afinal, a comuna agrária certamente não era marcada pelo  
mais elevado desenvolvimento dos meios de produção ou pelo uso das técnicas mais  
avançadas no solo. Mas isso não se deveria a uma suposta necessidade das fases em  
si, de um curso inexorável da história humana, mas decorreria das transformações  
históricas e materiais que elas produzem e que foram essenciais no desenvolvimento  
do capitalismo, bem como das contradições internas que são a origem de sua própria  
destruição.  
O que se fazem essenciais para Marx para uma eventual sociedade comunista  
são as forças produtivas gestadas pelo capitalismo as quais, tendo em vista a  
tendência do capitalismo enquanto modo de produção de se colocar mundialmente,  
eram acessíveis aos países com vias de desenvolvimento atípico como a Rússia ,  
mas não o da formação social capitalista em si esta de forma alguma é uma fase  
necessária da história humana, mas um fruto da atividade humana ao longo da história.  
Importante ressaltar como tal ideia de instrumentalidade entre períodos, considerando  
o passado apenas como um passo necessário para chegarmos a um futuro  
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determinado isto é, ver no desenvolvimento do modo de produção capitalista  
apenas um ingrediente para o futuro comunista já era criticada pelo autor desde a  
Ideologia Alemã, em que coloca o que se segue:  
A histórianada mais é do que o suceder-sede gerações distintas, em  
que cada uma delas explora os materiais, os capitais34 e as forças de  
produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por  
um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente  
alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente  
diferente as antigas condições, o que então pode ser  
especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na  
finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui à descoberta  
da Américaa finalidade de facilitar a irrupção da Revolução Francesa,  
com o que a históriaganhafinalidades àparte e torna-se umapessoa  
ao lado de outras pessoas” (tais como: “Autoconsciência, Crítica,  
Único” etc.), enquanto o que se designacom as palavras “destinação”,  
“finalidade”, “núcleo”, “ideia” da históriaanterior não é nada além de  
umaabstração da históriaposterior, umaabstração da influênciaativa  
que a históriaanterior exerce sobre a posterior. (MARX, 2007, p. 40)  
Isso quer dizer que, embora a história seja fruto da sucessão de gerações, em  
que o trabalho da geração anterior é transmitido para a sua sucessora e que seus  
frutos modificam e são modificados pelo trabalho da geração seguinte, disso não se  
pode extrair que esses momentos se sucedem necessariamente e que encontram um  
no outro sua finalidade. Como bem adverte LUKÁCS (2009), se por um lado o trabalho  
humano é movido por pores teleológicos, “o processo global da sociedade é um  
processo causal, que possui suas próprias leis, mas não é jamais dirigido objetivamente  
para a realização de finalidade(LUKÁCS, 2009, p. 236), de maneira que, embora seja  
possível encontrar certas tendências nesse processo causal, este não é guiado por uma  
finalidade que o conduz a um fim específico, mas sim por relações causais postas em  
movimento pela atividade consciente dos homens.  
Assim, ainda que Marx postule que o comunismo (e a emancipação humana)  
sucederia historicamente o capitalismo, isso não significa que é o capitalismo o  
caminho para o comunismo ou que o comunismo seja o resultado natural do  
capitalismo. Simplesmente quer dizer que o modo de produção capitalista nos fornece  
as condições materiais que possibilitam o comunismo, no sentido colocado acima, de  
que as sociabilidades que se sucedem exploram as condições materiais das que lhe  
antecederam. Afirmar que a o regime de produção capitalista observado nos países da  
34  
É importante notar que aqui a noção de “capitais” não é a mesma que Marx emprega posteriormente.  
Aqui “capitais” parece referir-se a uma coisa, e não a uma relação, ao passo que em O Capital, “capital”  
significa um conjunto de relações sociais e históricas  
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Europa Ocidental é o único caminho para o comunismo ou que é a formação necessária  
para que seja possível uma revolução que reivindique o comunismo é falacioso,  
sobretudo imputar tal leitura a Marx, que não só a todo momento frisa a influência das  
sociabilidades anteriores ao mesmo tempo que ressalta o absurdo que seria considerar  
o presente a finalidade do futuro, mas também é bastante claro quanto à possibilidade  
de apropriação pela Rússia das riquezas propiciadas pelo modo de produção  
capitalista sem que seja necessário passar pelas vicissitudes associadas a uma  
sociedade capitalista.  
É verdade que entre o nascimento da produção capitalista e a dissolução das  
terras comunais na Europa ocidental há um grande lapso temporal, mas isso não se  
deve a uma necessidade do lapso temporal em si ou da consolidação de uma formação  
social semelhante à europeia na Rússia em si. Em outras palavras: a Rússia não  
precisava passar por todas essas transformações pelas quais a Europa ocidental  
passou, por conta própria, ao longo de uma longa série de evoluções, uma vez que as  
conquistas econômicas que consolidaram o capitalismo são a ela acessíveis sem que  
precisasse passar por todos aqueles processos e evoluções que produziram tais  
transformações nos demais países europeus. “Ela [estava] […] em condições de  
desenvolver e transformar a forma ainda arcaica de sua comuna rural em vez de  
destruí-la(MARX, 2013, p. 62), podendo “se apropriar dos frutos com que a produção  
capitalista enriqueceu a humanidade sem passar pelo regime capitalista(MARX, 2013,  
p. 62).  
Se os adeptos russos do sistema capitalista negam a possibilidade  
teórica de tal evolução, eu lhes proporia a seguinte questão: para  
explorar as máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, a Rússia foi  
forçada, a exemplo do Ocidente, a passar por um longo período de  
incubação da indústria mecânica? Que eles me expliquem de novo  
como fizeram para introduzir entre eles num piscar de olhos todo o  
mecanismo de trocas (bancos, sociedades de crédito etc.), cuja  
produção custou séculos ao Ocidente? (MARX, 2013, p. 59)  
A Rússia encontrava-se em uma situação deveras particular a produção comunal  
era contemporânea de um sistema capitalista que chegava ao ponto de ruptura , de  
modo que a revolução na Rússia deveria se aproveitar dessa curiosa circunstância,  
apropriando-se das riquezas que o amadurecimento dos meios de produção  
capitalistas permitiu, sem ser necessário passar por todos os processos infernais que  
conduziram até esse ponto. Marxobserva a situação bastante particular da Rússia, na  
qual ela poderia passar diretamente de um sistema rural para a transição ao  
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comunismo, sem que fossem necessários todos os estágios do desenvolvimento  
capitalista observados na Inglaterra. Tratava-se de uma situação única, na qual poderia  
utilizar-se da própria comuna rural para instalar um modo de produção baseado na  
posse comum da terra e isso poderia ser feito partindo do seio da própria comuna,  
dado que seu esteio é justamente a terra comunal.  
Ademais, como Marx alerta, “o capítulo sobre a acumulação primitiva visa  
exclusivamente traçar a rota pela qual, na Europa ocidental, a ordem econômica  
capitalista saiu das entranhas da ordem econômica feudal.” (MARX, 2013, p. 44), de  
modo que daí não se pode extrair um modelo trans-histórico do curso do  
desenvolvimento dos povos. Isso porque a história de formação do modo de produção  
capitalista “assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases  
em sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, que, por  
isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica(MARX, 1996, p. 342).  
Por essa razão que Marx deixa claro que quando alerta seus leitores alemães no  
prefácio à primeira edição de O Capital de que “de ti fala a fábula!” (MARX, 1996, p.  
130), que “o modo de produção capitalista e as suas relações correspondentes de  
produção e de circulação observados na Inglaterra(MARX, 1996, p. 130) configuram  
a imagem do futuro de países industrialmente menos desenvolvidos, ele não quer dizer  
que o modo como se chegou a essa conformação na Inglaterra será repetido os  
processos, os movimentos e transformações que levarama esse específico , tampouco  
que esse arranjo é o futuro de todos os povos.  
Não só isso, mas como. Marx deixa bem claro que a Inglaterra nos fornece uma  
imagem (aproximada) do futuro de países da Europa Ocidental, uma vez que eles  
possuem um desenvolvimento similar ao inglês, mas não para todos os povos. Além  
disso, não seria possível que o desenvolvimento histórico do capitalismo inglês fosse  
repetido para todos os povos, afinal a forma como se deu esse processo é produto  
das condições históricas e materiais específicas da Inglaterra. A história de um povo  
não pode se repetir em tempos distinto para povos distintos. Isso quer dizer que a  
maneira como se deu o processo de acumulação originária na Inglaterra é impossível  
de ser replicada, naqueles moldes, na Rússia35. Ao analisar o desenvolvimento  
35 Uma vez que o mundo sensível é “o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso  
precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de  
gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indústria e seu  
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capitalista da Europa ocidental, Marxnão visa chegar a uma “teoria histórico-filosófica  
de como o desenvolvimento histórico de todos os povos inevitavelmente seria(MARX,  
2013, p. 45).  
A criação de tal modelo inevitável seria impossível, dado que cada lugar vivencia  
um desenvolvimento distinto, de tal forma que cada formação social possui suas  
especificidades. Não se poderia esperar que o desenvolvimento histórico russo  
passasse por todas as fases do desenvolvimento histórico inglês, porque Inglaterra e  
Rússia possuíam condições materiais e histórica extremamente distintas. Não há como  
o desenvolvimento do capitalismo na Rússia se dar do mesmo modo como o  
desenvolvimento do capitalismo que Marxanalisa n’O Capital, uma vez que Marx toma  
como base o desenvolvimento do capitalismo inglês, sendo essa formação social  
particular às condições histórico-materiais específicas observadas na Inglaterra. O  
mesmo vale para a França, a Alemanha, os Estados Unidos cada um deles observa  
um desenvolvimento capitalista particular as suas condições materiais e históricas, de  
modo que não podemos esperar que as fases do desenvolvimento capitalista tratadas  
por Marx n’O Capital sejam observadas de forma literal e exata nesses lugares.  
Podemos dizer: esperar que o desenvolvimento capitalista em dois lugares distintos  
se desse da mesma forma seria tão absurdo como que esperar que duas pessoas  
pintassem uma figura da mesma forma, sendo que a elas foram fornecidos tipos  
diferentes de tintas, papeis e pincéis.  
Uma diferença específica que Marx ressalta entre as formas pré-capitalistas da  
Europa Ocidental e a propriedade comunal da Rússia torna isso bastante claro. Marx  
explica que quando trata da “fatalidade histórica(MARX, 2013, p. 84), ele fez questão  
de a restringir aos países da Europa ocidental” (MARX, 2013, p. 84). Isso por uma  
razão fundamental: a forma de propriedade da terra da qual Marx trata no Capítulo  
XXIV e que é suplantada não é a mesma que a existente na Rússia ao final do século  
XIX. Esta era uma forma de propriedade comunal, não privada, ao passo que aquela  
era uma forma de propriedade privada da terra, mas ao invés de pertencer a não  
trabalhadores (como na produção capitalista), era pertencente aos produtores diretos.  
Ou seja, tratam-se de formas de propriedade da terra essencialmente distintas.  
Nesse sentido, o processo da assim chamada acumulação originária consiste na  
comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas.” (MARX, 2007, p.  
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substituição “de uma forma da propriedade privada e particionada dos trabalhadores  
pela propriedade capitalista de uma ínfima minoria (p. 342), ou seja, levou à  
substituição de um tipo de propriedade por outro” (MARX, 2013, p. 85), de modo que  
não podemos esperar que na Rússia se passasse o mesmo que ocorreu na Inglaterra  
nos séculos XIV-XVI, afinal, “como isso poderia se aplicar à Rússia ou à terra que não  
é e jamais foi propriedade privada” do agricultor?” (MARX, 2013, p. 85). Assim,  
quando fala sobre a “separação radical entre o produtor e seus meios de produção”  
(MARX, 2013, p. 85) como algo que se repete fatalmente nos países europeus36, Marx  
explicita que se referia aos países europeus ocidentais, sendo que na Inglaterra foi o  
único deles em que esse movimento se deu “de um modo radical”37. Ele continua:  
E por quê? Verificai, por favor, o capítulo 32, no qual se lê: [O]  
movimento de eliminação que transforma os meios de produção  
individuais e esparsos em meios de produção socialmente  
concentrados e que, por conseguinte, converte a propriedade nanica  
de muitos em propriedade gigantesca de poucos, essa expropriação  
dolorosa e terrível do povo trabalhador, aí estão as origens, aí está a  
gênese do capital. [...] A propriedade privada, fundada no trabalho  
pessoal [...] é suplantadapelapropriedade privada capitalista, fundada  
na exploração do trabalho de outrem, sobre o trabalho assalariado.  
(MARX, 2013, p. 58)  
Isso demonstra, portanto, que o curso da história na Europa Ocidental não serve  
para prever o futuro da Rússia e, caso os liberais russos fossem bem sucedidos em  
dissolver a terra comunal e expropriar os camponeses, isso não ocorreria pois no  
Ocidente se deu assim, mas sim graças às circunstâncias particulares do caso russo.  
Nesse sentido, Marx deixa bem claro a razão pela qual o movimento de  
expropriação agrária, observado na Inglaterra e em outros países embora, se  
comparados com aquela, em bem menor grau nestes , não pode ser tido como um  
processo que será observado em todos os povos. A acumulação primitiva tratada por  
MarxnOCapital38 é uma “fatalidade histórica(MARX, 2013, p. 58)restrita “aos países  
da Europa Ocidental(MARX, 2013, p. 58), de modo que não poderíamos afirmar, com  
segurança, que tal movimento se repetiria na Rússia, justamente em função das  
36  
Ressalte-se ainda que ele não trata isso como uma previsão do futuro, dado que esse processo já  
havia se dado ou já havia pelo menos se iniciado em maior ou menor medida nos países da Europa  
Ocidental. Trata-se, portanto, de um palpite razoável, não uma previsão, na medida que observava uma  
tendência já existente.  
37 Marx deixa bem claras suas razões pela escolha da Inglaterra n’O Capital. Podemos encontrar essas  
razões no Prefácio da primeira edição (cf. MARX, 1996a, p. 130) e uma breve referência a elas no  
capítulo sobre a [assim chamada] Acumulação Originária (cf. MARX, 1996b, p. 330).  
38 Cf. MARX, 1996, p. 339-381  
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particularidades que a tornavam tão distinta dos outros países europeus.  
O movimento de expropriação da propriedade do produtor rurale a concentração  
dos meios de produção nas mãos de uma minoria se dá, portanto, no sentido de  
suplantação de uma propriedade privada “fundada no trabalho pessoal(MARX, 2013,  
p. 58) em pequenas propriedades rurais que se baseiam na pequena agricultura de  
subsistência e no trabalho familiar, sem haver, portanto, o emprego de mão de obra  
assalariada – pela grande “propriedade privada capitalista, fundada na exploração do  
trabalho de outrem” (MARX, 2013, p. 58) isto é, nos grandes latifúndios, baseados  
numa produção de cunho capitalista e emprego de mão de obra assalariada. É a  
substituição de uma produção agrícola baseada em pequenas propriedades para uma  
capitalista e latifundiária, havendo a proletarização dos pequenos agricultores. Marx  
prossegue:  
Assim, em última análise, ocorre a transformação de uma forma de  
propriedade privada em outra forma de propriedade privada. A terra  
nas mãos dos camponeses russos jamais foi a sua propriedade  
privada; então, como se aplicaria esse desenvolvimento? (MARX,  
2013, p. 58)  
O processo de acumulação primitiva que ele descreve n’O Capital é, pois,  
baseado na expropriação das pequenas propriedades [privadas] rurais e no acúmulo  
de terras por uma minoria. Trata-se, portanto, da substituição de pequenas  
propriedades privadas familiares por grandes latifúndios que exploram a mão de obra  
assalariada. Os pequenos agricultores abandonam suas terras e são obrigados, então,  
a vender sua força de trabalho para sobreviver.  
Com isso, nos indagamos: como esse movimento ocorreria dessa forma se o  
camponês russo nunca foi proprietário das terras que ele cultiva? O camponês, na  
Rússia, deixou de ser servo em uma terra que não lhe pertence para cultivar em  
propriedades que são de posse comum a terra comunal que lhe é atribuída não lhe  
pertence39. Assim, não é possível que o mesmo movimento observado na Europa  
ocidental seja observado na Rússia, uma vez que o campo russo não era baseado em  
pequenas propriedades privadas, mas na terra comunal seu modelo produtivo era  
distinto do que é suplantado na Europa Ocidental na assim chamada acumulação  
originária.  
39  
Sobre a questão da comuna russa, arrendamento e propriedade, Cf. Lenin, A desintegração do  
campesinato russo, 1982, p. 35-121  
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A forma como a gênese e o desenvolvimento da produção capitalista ocorreu na  
Europa Ocidental não poderia ser esperada igualmente na Rússia, justamente porque  
a forma como as forças produtivas e as condições materiais se arranjam são  
completamente distintas. Não se poderia esperar que a mesma forma pela qual se deu  
a gênese do capitalismo na Inglaterra se repetisse na Rússia e nem que o resultado do  
desenvolvimento das forças produtivas fosse o mesmo para os dois países, uma vez  
que as forças que estão em jogo não são as mesmas. Não há como haver “a separação  
radical entre o produtor e seus meios de produção” (MARX, 1996, p.340)se os meios  
de produção nunca pertenceram ao produtor russo; os camponeses russos não  
poderiam ser expropriados quando a propriedade da terra jamais foi sua de forma  
individual.  
Tendo isso em vista, cai por terra o argumento utilizado por autores como  
Antônio Gramsci em 1917 para afirmar que a Revolução bolchevique seria contra O  
Capital, que na Rússia seria  
mais o livro dos burgueses que dos proletários. Era a demonstração  
crítica da necessidade inevitável que na Rússia se formasse uma  
burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma  
civilização de tipo ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer  
pensar na sua insurreição, nas suas reivindicações de classe, na sua  
revolução (GRAMSCI, 1976, p. 21)  
Isso porque, como vemos nos esboços de Marx, o autor renano de forma alguma  
defender que a Rússia não estaria ainda pronta para uma revolução que tivesse como  
fim a transição para o comunismo, dado que ela própria não possuía um modo de  
produção capitalista como o que é analisado por Marx em sua obra. Pelo contrário,  
Marx critica abertamente os que postulavam que a Rússia deveria antes passar por  
todas aquelas transformações que aconteceram ao longo de vários séculos em países  
como a Inglaterra e que desenvolveram “de forma maravilhosa as forças produtivas da  
sociedade, mas, de outro lado, trouxeram consigo sua própria incompatibilidade com  
as forças que elas engendram” (MARX, 2013, p. 62) – em outros termos, a completa  
desintegração da comuna russa, a consolidação de uma burguesia industrial e de um  
proletariado urbano, às semelhanças de sistemas capitalistas como o inglês.  
Se Marx fosse realmente de acordo com essa posição a ele atribuída, teria  
concordado com os “marxistas russos”, os quais acreditavam que concentrar seus  
esforços na comuna russa seria desperdício. Teria também aconselhado Vera Zasulitch  
e seus companheiros a concentrarem seus esforços nas cidades, dado que a comuna  
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agrária estaria fadada a padecer e os camponeses russos se tornariam, com o tempo,  
parte de um proletariado urbano industrial. Mas, como podemos ver nos esboços de  
respostas à carta enviada por Zasulitch, Marx não estava preocupado em determinar  
um modelo de desenvolvimento inevitável pelo contrário, ele se preocupou muito  
mais em criticar esses modelos. A Rússia não precisava perder sua comuna agrária  
para poder tornar-se comunista Marx defende o oposto: com a dissolução da  
comuna agrária “para suportar todas as vicissitudes fatais do regime capitalista”  
(MARX, 2013, p. 54) que a Rússia perderia a melhor oportunidade já oferecida a um  
povo para sua regeneração social.  
Marx rejeita a interpretação de que apenas em países cuja via de  
desenvolvimento fosse a observada na Europa ocidental que ele usa como substrato  
para suas análises n’O Capital seria possível uma transição para o comunismo. Ele  
analisa a Inglaterra por seu desenvolvimento capitalista permitir uma análise clara  
acerca do modo de produção capitalista, não porque aquela é a única forma possível  
de arranjo das forças de produção ou porque a Inglaterra necessariamente seria o  
berço da revolução proletária.40 Jamais se poderia apoiar em Marx e afirmar que a  
comuna russa iria inevitavelmente ser desintegrada e o camponês russo proletarizado  
porque foi a forma como aconteceu na Inglaterra e na Europa Ocidental. Como Marx  
escreve em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, “não é no passado, mas unicamente  
no futuro, que a revolução social do século XIXpode colher sua poesia(MARX, 2011b,  
p. 28), ou seja, os caminhos da revolução na Rússia não podem ser retirados do  
passado [da Europa].  
Com efeito, isso não quer dizer que estamos impossibilitados de fazer analogias  
entre dois lugares ou dois períodos históricos distintos trata-se de um exercício  
comum de ser feito. Por exemplo, ao longo de O Capital, o autor faz recorrentes  
menções ao destino dos plebeus na Roma Antiga quando da expropriação de suas  
pequenas parcelas de terra no decurso da história romana, de forma semelhante ao  
que ocorreu com os camponeses ingleses entre os séculos XVI e XVII. Assim como os  
ingleses, os plebeus “eram originalmente camponeses livres que cultivavam, cada qual  
pela própria conta, suas referidas parcelas. No decurso da história romana, acabaram  
40  
“A expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o  
processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases em  
sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, que, por isso, tomamos como  
exemplo, mostra-se em sua forma clássica.” (MARX, 1996, p. 342)  
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expropriados” (MARX, 2013, p. 56), surgindo também “de um lado homens livres,  
desprovidos de tudo menos de sua força de trabalho, e do outro, para explorar o  
trabalho daqueles, os detentores de todas as riquezas adquiridas” (MARX, 2013, p.  
56).  
Todavia, uma vez expropriados, não só os plebeus não se tornaram trabalhadores  
assalariados tal como se deu com os camponeses expropriados da Europa nos séculos  
XVI e XVII, mas também a produção romana não se desenvolveu de forma capitalista.  
Os romanos expropriados se tornaram uma “mob [turba]’ desocupada […] e ao lado  
deles se desenvolve um modo de produção que não é capitalista, mas escravagista”  
(MARX, 2013, p. 56). Assim, embora tenham sido acontecimentos de uma  
surpreendente analogia, o fato de terem se passado em ambientes historicamente  
distintos, produziram resultados igualmente diferentes. Como Marx escreve, “quando  
se estuda cada uma dessas evoluções à parte, comparando-as em seguida, pode-se  
encontrar facilmente a chave desse fenômeno(MARX, 2013, p. 56), mas dessa análise  
comparativa de forma alguma se chegará a uma “chave-mestra uma teoria histórico-  
filosófica geral, cuja virtude suprema consiste em ser supra histórica”. (MARX, 2013,  
p. 57).  
Ou seja, podemos até comparar o desenvolvimento histórico russo com o inglês  
e encontrar certas determinações em comum entre as duas formas, mas sempre de  
forma cautelosa e com consciência das diferenças específicas que as separam. Isso está  
claro nos Grundrisse, quando Marx trata acerca da questão da produção geral. Ele  
escreve que  
A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável,  
na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum,  
poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o  
comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente  
articulado, cindido em diferentes determinações. Algumas  
determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns  
apenas a algumas. [Certas] determinaçõesserão comunsàépocamais  
moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem  
elas; todavia, se as línguas mais desenvolvidas têm leis e  
determinações em comum com as menos desenvolvidas, a diferença  
desse universal e comum é precisamente o que constitui seu  
desenvolvimento. As determinações que valem para a produção em  
geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da  
unidade decorrente do fato de que o sujeito, a humanidade, e o  
objeto, a natureza, são os mesmos , não seja esquecida a diferença  
essencial. Em tal esquecimento repousa, por exemplo, toda a  
sabedoria dos economistas modernos que demonstram a eternidade  
e a harmonia das relações sociais existentes. (MARX, 2011a, p. 36)  
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[grifo meu]  
Ou seja, é possível que sejam abstraídas determinações que existem em comum  
na produção humana de forma geral, que constituirão o que Marx se refere como a  
produção geral ou o comum isolado por comparação, tratada por Marx como uma  
abstração razoável. Isto é, o que faz da produção geral uma abstração razoável é o  
fato de que não se trata de algo “produzido por um volteio autônomo da mesma  
[abstração], pois seu mérito é operar subsumida à comparação dos objetos que  
investiga”, mas sim uma abstração ação que “retém e destaca aspectos reais, comuns  
às formas temporais de entificação dos complexos fenomênicos considerados”  
(CHASIN, 2005, p. 124), ou seja, trata-se de um geral “extraído das formações  
concretas, posto à luz pela força de abstração” (CHASIN, 2005, p. 124). Ademais, Marx  
faz questão de ressaltar que, embora a partir dessas determinações comuns exista  
uma unidade, um universal, essa produção geral possui diversas determinações  
distintas que a cindem, existindo aspectos dessa unidade que não são comuns a todos  
os momentos da história humana, uma vez que “os traços comuns não são substâncias  
puras, mas texturas complexas” (CHASIN, 2005, p. 125) — nisso também reside a  
razoabilidade dessa abstração: a compreensão de que, assim como as realidades são  
complexas, as abstrações de seus elementos comuns também o são.  
De forma semelhante ao que ocorre com a linguagem, em que existem certos  
aspectos que são comuns a línguas das mais desenvolvidas e complexas às mais  
simples, existem aspectos que podem ser comuns a formas das mais às menos  
desenvolvidas da produção humana,sendo que que o que constitui o desenvolvimento  
das formas mais complexas a diferença essencial do universal e comum. Isso faz com  
que que, embora abstração de elementos comuns às diferentes formas de produção  
seja razoável e útil, não podemos a partir disso tentar chegar a uma chave geral para  
o desenvolvimento humano, uma vez que é marcado por particularidades e  
circunstâncias específicas que nos impossibilitam de fazê-lo, de tal maneira que um  
esforço como tal perde toda sua razoabilidade. Isso na medida que “ignorar a diferença  
essencial é perder de vista os objetos reais e com isso o horizonte do pensamento de  
rigor, tal como os economistas que naturalizam e perenizam a sociedade capitalista,  
pondo de lado exatamente o que nela é específico” (CHASIN, 2005, p. 125).  
Não existe em O Capital o modelo do desenvolvimento humano, isto é, uma  
prescrição para o cardápio da taverna do futuro(MARX, 2017, p. 88). Primeiramente,  
a obra em questão sequer se propõe a ser um estudo historiográfico da Inglaterra:  
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embora no Capítulo XXIV os acontecimentos da história inglesa sejam usados, ali Marx  
busca analisar as tendências da assim chamada acumulação primitiva e dos processos  
que engendraram o capitalismo. Em segundo lugar, utilizar-se dessas tendências da  
Europa Ocidental para prever a história russa acaba por  
metamorfosear totalmente o […] esquema histórico da gênese do  
capitalismo na Europa ocidental em uma teoriahistórico-filosóficado  
curso geral fatalmente imposto atodos os povos, independentemente  
das circunstâncias históricas nas quais eles se encontrem, paraacabar  
chegando à formação econômicaque assegura, com o maior impulso  
possível das forças produtivas do trabalho social, o desenvolvimento  
mais integral possível de cada produtor individual. (MARX, 2013, p.  
45)  
Tentar criar um modelo geral de como a história de todos os povos irá correr vai  
muito além das pretensões de Marx. Ele afirma com ironia que se sentia tão honrado  
como ofendido pela suposição. Honrado, talvez, por suporem que ele fosse capaz de  
prever como o desenvolvimento histórico ocorreria independente das condições fáticas  
e particularidades de cada povo, de efetivamente prever “o cardápio da taberna do  
futuro(MARX, 2017, p. 88) – nem mesmo Marxseria capaz de tal exercício. Ofendido,  
provavelmente, pelo fato de interpretarem seus esforços de forma tão absurda,  
julgando que o velho mouro havia intentado um esforço de uma arrogância e  
presunção sem precedentes (MARX 2013, p. 45).  
O prefácio ao Manifesto Comunista  
Parte das discussões relacionadas à correspondência entre Marx e Zasulich  
aparecem no prefácio à edição russa do Manifesto Comunista, escrita por Marx e  
Engels41 em janeiro de 1882. Nesse prefácio, os autores trazem uma breve reflexão  
de como estavam diferentes as circunstâncias nos Estados Unidos e na Rússia que  
não aparecem no Manifesto Comunista na época em que o Manifesto foi escrito  
41 É importante ressaltar que existem discussões quanto a autoria desse prefácio. Alguns autores como  
Haruki Wada creditam a escrita do texto a Engels, sugerindo que Marx teria pedido ao amigo que  
rascunhasse um prefácio para a edição russa de O Manifesto Comunista e que teria apenas feito  
correções mínimas e assinado, de forma que o prefácio expressaria a opinião de Engels e não a de Marx  
sobre a questão russa. O objetivo deste trabalho não é adentrar na questão de forma pormenorizada  
na discussão, mas consideramos que, caso realmente não tenha sido um texto de autoria conjunta de  
Marx e Engels, o fato de Marx ter lido e assinado o texto é um forte indício de sua concordância com o  
que teria sido escrito por Engels. O argumento de Wada de que Marx não teria ficado satisfeito com o  
rascunho escrito por seu amigo não parece possuir muitos indícios textuais que o sustente, pois a uma  
carta de Marx a Lavrov que Wada usa para comprovar sua tese na qual Marx escreve sobre o prefácio  
“Se esta peça, que é para tradução para russo, for para ser publicada como está, em alemão, ainda  
precisa de toques de estilo” (MARX apud. WADA In. Shanin, 2017, p. 116) não permite concluir que  
Marx não estava de acordo com o conteúdo do texto, apenas que acreditava serem necessários ajustes  
estilísticos para publicação. Sobre isso, cf. WADA In. Shanin, 2017.  
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(final da década de 1840) e na década de 1880.  
Sobre a Rússia na década de 1840, Marxe Engels escrevem que “naquela época  
[em 1848], a Rússia se constituía na última grande reserva da reação europeia(MARX  
& ENGELS, 2013, p. 102), constituindo-se (junto aos EUA à época embora cada um  
por razões distintas), pilares da ordem europeia vigente, sendo que “durante a  
revolução de 1848-1849, a burguesia e os monarcas europeus viam na intervenção  
russa a única maneira de escapar do proletariado que despertava. O czar foi  
proclamado chefe da reação europeia(MARX & ENGELS, 2013, p. 102). Marxe Engels  
fazem aqui referência ao fato de que, como já aludido anteriormente, enquanto na  
Europa Ocidental fogos revolucionários acendiam o proletariado, a Rússia e o tzar  
pareciam a única salvação da burguesia, tendo a Rússia sido o bastião do  
conservadorismo à época.  
Contudo, em 1882, o contexto russo era completamente distinto. Se em 1848-  
49, o czar Nicolau I aparecia para a burguesia como o chefe da reação europeia contra  
as revoltas proletárias, em 1882, o czar Alexandre III sucessor de Alexandre II,  
morto por revolucionários do grupo Vontade do Povo em 1º de março de 1881  
(SILJAK, 2013, p. 336) era prisioneiro de seu próprio medo: enclausurado em no  
palácio Gatchina, temendo ser alvo da revolta do povo. Em 1882, o czar era “em  
Gatchina, prisioneiro de guerra da revolução, ao passo que a Rússia forma a vanguarda  
da ação revolucionária na Europa” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102).  
As circunstâncias haviam mudado radicalmente desde 1848-49 e 1882: a Rússia  
não mais era a prima conservadora da Europa, a salvação da burguesia europeia: ela  
mantinha o czar (outrora símbolo do poder reacionário da Rússia) refém de seu medo  
medo da revolução e era um dos países com uma das atuações revolucionárias  
mais proeminentes da Europa, sendo que a própria Vera Zasulich, após ter cometido  
um atentado de assassinato contra prefeito de São Petesburgo, Feodor Trepov em  
1878, havia se tornado por toda a Europa um símbolo do movimento revolucionário  
russo do final do século XIX42.  
42  
Vê-se aqui mais um indício da tese defendida anteriormente de que, ao contrário do que autores  
como Teodor Shanin e Michel Löwy sustentam acerca do caso russo na teoria marxiana, de que se  
trataria de uma ruptura com relação aos trabalhos anteriores a 1880, as mudanças que vemos entre os  
escritos de Marx sobre a Rússia em 1840 e 1880 devem-se muito mais a desenvolvimentos do contexto  
russo e de um amadurecimento gradual e crescente no pensamento do autor do que uma mudança  
abrupta. No livro de Shanin, o artigo de Derek Sayer e Philip Corrigan (cf. SAYER & CORRIGAN In.  
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Por demais, no prefácio Marxe Engels ainda tocam a questão da comuna agrária  
na Rússia. Escrevem os autores que “o Manifesto Comunista tinha como tarefa a  
proclamação do desaparecimento próximo e inevitável da moderna propriedade  
burguesa” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102), mas que na Rússia, “vemos que, ao lado  
do florescimento acelerado da velhacaria capitalista e da propriedade burguesa que  
começa a desenvolver-se, mais da metade das terras é posse coletiva dos camponeses”  
(MARX & ENGELS, 2013, p. 102), ressaltando a particularidade do caso russo, em que  
a comuna agrária permanecia uma das maiores forças produtivas na Rússia ou seja,  
ali a moderna propriedade burguesa não havia se colocado sobre os próprios pés,  
sendo a forma comunal a forma de propriedade de metade das terras na Rússia , de  
maneira que não haveria como o caminho da revolução russa poderia ser o mesmo do  
da Europa Ocidental.  
Diante dessas circunstâncias extremamente peculiares,Marxe Engels aludindo  
diretamente ao dilema do narodniks e marxistas russos discutido na carta a questão  
na Rússia se colocava nos seguintes termos: “poderia a obchtchina russa – forma já  
muito deteriorada da antiga posse em comum da terra transformar-se diretamente  
na propriedade comunista?” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102), como defendiam os  
populistas, “ou, ao contrário, deveria antes passar pelo mesmo processo de dissolução  
que constitui a evolução histórica do Ocidente?” (MARX & ENGELS, 2013, p. 102), tal  
como pontuavam os autoproclamados marxistas russos. Marx e Engels respondem a  
questão da seguinte maneira:  
Hoje em dia, a única resposta possível é a seguinte: se a revolução  
russa constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente,  
de modo que uma complemente aoutra, a atual propriedade comum  
da terra na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma  
evolução comunista. (MARX & ENGELS, 2013, p. 103)  
Aqui, assim como Marx já havia feito na sua resposta à indagação de Zasulich,  
vemos Marx e Engels não só defender a possibilidade da regeneração social na Rússia  
partindo de sua base agrária comunal mais uma vez rejeitando a visão etapista de  
que o desenvolvimento mento russo haveria de seguir a evolução ocorrida no Ocidente  
, mas também defendendo que a revolução na Rússia poderia ser o sinal para a  
SHANIN, 2017) traz uma visão muito mais nuanceada sobre a questão, apontando como o pressuposto  
de que Marx havia sido evolucionista e etapista até a década de 1880 é um equívoco, sustentando que,  
diferentemente do que postula Shanin, os textos do Marx tardio seriam mais uma clarificação de sua  
teoria do que uma ruptura.  
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revolução proletária no Ocidente, a qual deveria ser complementar à revolução na  
Rússia. Nessa eiva, esse texto reforça a posição expressa por Marx nas respostas à  
carta de Zasulich, reiterando sua rejeição à uma filosofia da história.  
Conclusão  
A resposta final que Marx escreveu a Vera Zasulich datada de 8 de março de  
1881 foi bastante mais sucinta do que os esboços que o autor de O Capital havia  
elaborado (com exceção do quarto esboço, que parece inacabado), embora a essência  
seja a mesma. Embora de forma menos pungente (e talvez menos irônica do que nos  
esboços I, II e III), Marx escreve que  
Nesse processo ocidental [da assim chamada acumulação originária],  
o que ocorre é a transformação de umaforma de propriedade privada  
para outra forma de propriedade privada. Já no caso dos camponeses  
russos, ao contrário, seria preciso transformar sua propriedade  
comunal [propriété commune] em propriedade privada. Desse modo,  
a análise apresentadanO capital não oferece razões nemafavor nem  
contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que fiz  
dessa questão, para o qual busquei os materiais em suas fontes  
originais, convenceu-me de que essa comuna é a alavanca [point  
dappui] da regeneração social da Rússia; mas, para que ela possa  
funcionar como tal, seria necessário, primeiramente, eliminar as  
influências deletérias que a assaltam de todos os lados e então  
assegurar-lhe as condições normais de um desenvolvimento  
espontâneo. (MARX, 2013, p. 94)  
Assim, apesar da brevidade, percebe-se que Marx não deixa de ressaltar para  
Vera Zasulich que O Capital não apresenta respostas para o caso da comuna agrária  
na Rússia: somente o estudo do caso particular russo poderia permitir qualquer  
diagnóstico sobre a vitalidade da obschina. E mais, pelo que ele havia estudado da  
questão agrária na Rússia, a comuna deveria ser para os revolucionários russos a  
alavanca para a regeneração da Rússia (não um obstáculo), desde que as influências  
deletérias que a assaltavam de todos os lados fossem eliminadas, i.e., o estado russo.  
Ele ressalta, portanto, que não era a fatalidade da história que ameaçava a comuna  
agrária na Rússia: era a opressão do estado russo e o ingresso dos intrusos capitalistas  
(conduzido pelo próprio estado). Dessa forma, em sua resposta, Marx faz questão de  
apontar para Vera Zasulich que o caminho da revolução na Rússia não era aquele  
defendido pelos autoproclamados marxistas russos, mas sim algo muito mais próximo  
defendido pelos populistas russos, na medida em que aqueles buscavam a solução da  
questão “o que fazer?dentro da Rússia, na concretude objetiva de suas circunstâncias  
históricas, não em um esquema histórico que prescreve o destino dos povos  
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Marx e o cardápio da taberna do futuro  
independente de suas particularidades.  
Diante do exposto, percebe-se a relevância dos textos tratados acima não por  
demonstrarem uma virada no pensamento marxiano, mas sim por deixarem  
extremamente clara a natureza da teoria de Karl Marx. Como bem colocam Derek Sayer  
e Philip Corrigan, o Marx tardio que vemos nos textos sobre a Rússia nos oferece  
acima de tudo, uma reflexão consistente a culminância de uma reflexão de toda  
uma vida de reflexão modelada por um profundo compromisso com as lutas políticas  
do momento” (SAYER & CORRIGAN, 2017, p. 139), bem como uma clarificação de  
como seus textos madurosdeveriam ser lidos” (SAYER & CORRIGAN, 2017, p. 123),  
pois nesses textos, vemos de forma bem desenvolvida e evidente a importância da  
questão das particularidades das diferentes formas de desenvolvimento humano na  
obra marxiana como um todo.  
Não só isso: o estudo da questão russa em Marx nos permite ainda perceber  
como em nada se aproxima o Marx verdadeiro o Marx que lemos naquilo que o  
próprio autor nos deixou escrito daquilo que a II Internacional Comunista e a  
“vulgata stalinista43 (CHASIN, 2013, p. 37) fizeram dele. Como já aludido, o  
“marxismo” do século XX — com destaque para o “marxismo” do stalinismo — era  
marcado pela “negligência acerca da especificidade do desenvolvimento nacional de  
cada forma distinta mediante a qual o capitalismo se objetiva” (SARTORI, 2017, p.  
127), na medida que utilizava-se de uma suposta filosofia marxiana da história que  
organizaria o desenvolvimento humano em etapas necessárias, a fim de criar uma  
espécie de modelo geral, uma “teoria histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema  
consiste em ser supra-histórica”. Tendo isso em vista, perceber a óbvia e aguda  
rejeição de Marxà uma leitura linear e reducionista da história humana que vemos nos  
escritos sobre a Rússia não só nos permite evidenciar o quanto o marxismo do XX se  
afastou de Marx, mas também é um importante passo nos esforços de recuperar o  
pensamento do autor alemão em toda sua complexidade.  
E, por fim, a preocupação de Marx no que concerne à Rússia de buscar um  
caminho para a revolução social a partir da própria Rússia e não, como supunham  
seus seguidores russos, a partir da Europa Ocidental e partindo de uma forma  
43 Importa ressaltar que, embora Gramsci tenha se equivocado em sua interpretação acerca da natureza  
da teoria marxiana no texto que aqui abordamos e que a leitura que o autor faz de Marx, de forma  
alguma colocamos o autor junto a essa “vulgata stalinista”.  
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primitiva de propriedade da terra nos oferece um importante arsenal crítico nas  
discussões sobre um suposto eurocentrismo e um evolucionismo em Marx. Se por um  
lado existem certas instâncias por exemplo, no Manifesto Comunista ou em alguns  
textos do New York Daily Tribune da década de 1840 e do começo da década de  
1850 sobre a Índia e a China, segundo ANDERSON (2010) em que parece haver  
em Marx um certo tom elogioso ao papel do capitalismo na dissolução de formas  
produtivas arcaicas, com base nas quais alguns autores sustentam uma tese de que  
Marx via na formação social capitalista da Europa Ocidental uma fase necessária no  
desenvolvimento humano e que dava centralidade à forma europeia de entificação do  
capitalismo, o estudo do caso russo nos é bastante esclarecedor nessa discussão.  
Conforme exposto neste trabalho, Marx propõe que, ao invés de um obstáculo  
para a revolução social na Rússia, a sobrevivência da comuna agrária seria para os  
russos uma enorme vantagem no caminho da regeneração social naquele país, pois  
permitiria a apropriação das riquezas produzidas pelo capitalismo sem ser necessária  
a consolidação desse modo de produção na Rússia ou seja, seria possível apropriar  
do aumento das forças de produção engendrados pelo capitalismo sem que, como  
ocorreu na Europa Ocidental, a forma comunal de produção fosse dissolvida. Ele  
esclarece, portanto, que quando fala em O Capital das “tendências que atuam e se  
impõem com férrea necessidade” (MARX, 2017, p. 114), ele trata especificamente das  
leis naturais da produção capitalista, bem como que quando afirma que “o país  
industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos  
desenvolvido a imagem de seu próprio futuro” (MARX, 2017, p. 114), refere-se aos  
países da Europa Ocidental, nos quais as tendências de desenvolvimento capitalista  
são bastante semelhantes, não sendo possível extrapolar essas tendências específicas  
a países como a Rússia, que experimentam condições bastante distintas.  
Dessa forma, percebe-se nos trabalhos aqui analisados a profunda rejeição por  
parte de Marx de leituras lineares e reducionistas acerca do desenvolvimento humano  
e das formações sociais, demonstrando o quão equivocado é ver na obra do autor  
uma teoria histórico-filosófica que busca ser um oráculo do destino dos povos  
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Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 288-334 - jul-dez, 2023 | 333  
nova fase  
Gabriella M. Segantini Souza  
_____. O 18 de Brumário de Luis Bonaparte. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo:  
Boitempo, 2011b.  
_____. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. Tradução: Jesus Ranieri. São Paulo:  
Boitempo, 2004.  
_____. Nova Gazeta Renana. Tradução: Lívia Cotrim. São Paulo: Expressão Popular,  
2020.  
_____. O Capital. Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Rubens  
Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017a.  
_____. O Capital. Livro III: OProcesso Global da Produção Capitalista. Tradução: Rubens  
Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017b.  
MUSETTI, F. Marx e Engels sobre a particularidade das lutas de classes na Rússia.  
Verinotio, v. 20, n.1, Outubro de 2015, pp. 216-219  
MUSTO, M. O velho Marx. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo. 2018  
SARTORI, V. Marx diante da revolução social na Rússia do século XIX. Verinotio, v. 23,  
n. 1, Abril de 2017. pp. 126-153.  
_____. Acerca da individualidade, do desenvolvimento das forças produtivas e do  
“romantismo” em Marx Parte I: O desenvolvimento de cada um e o de todos.  
Revista Práxis Comunal, v. 1, n. 1, Dezembro de 2018, pp. 32-70.  
_____. Acerca da individualidade, do desenvolvimento das forças produtivas e do  
“romantismo” em Marx Parte II: revolução e indivíduos universalmente  
desenvolvidos. Revista Práxis Comunal, v. 1, n. 2, Janeiro de 2019, pp. 170-201.  
SILJAK, A. O Anjo da Vingança. Tradução: Dinah Azevedo. Rio de Janeiro: Editora  
Record, 2013  
SHANIN, T. (org). Marx Tardio e a Via Russa. São Paulo: Editora Expressão Popular,  
2017  
STALIN, J. Sobre Materialismo Dialético e MaterialismoHistórico.Rio de Janeiro: Editora  
Horizontes, 1945  
VEDDA, M. Ubi Lenin, ibi Jerusalem? Ernst Bloch sobre la Revolución de Octobre.  
Verinotio, v. 23, n. 2, outubro de 2017. pp. 9-21.  
Como citar:  
SOUZA, Gabriela M. Segantini. Marx e o cardápio da taberna do futuro: sobre os  
caminhos para uma revolução russa no século XIX. Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n.  
2, pp. 288-334, mar. 2023.  
Verinotio  
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DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.695  
Romantismo ou Regeneração?  
Romanticism or Regeneration?  
Lucas Parreira Álvares*  
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo,  
dentro de seus limites, compreender a relação  
existente entre o pensamento de Karl Marx e a  
tradição romântica. Para tanto, utilizará dos  
debates deste teórico sobre a situação das  
comunas rurais na Rússia e da interpretação que  
o sociólogo brasileiro/francês Michael Löwy faz  
desses escritos de Marx associando-os a uma  
espécie de “romantismo revolucionário”. No  
plano de fundo desse objetivo central, o presente  
Abstract: This work has as its objective, within  
its limits, to understand the relation existing  
between the thought of Karl Marx and the  
romantic tradition. To do so, he will use Marx's  
debates about the situation of rural communes  
in Russia and the interpretation that the  
Brazilian/French sociologist Michael Löwy  
makes of these writings of Marx associating  
them with a kind of "revolutionary romanticism."  
In the background of this central objective, the  
present work also includes the development of  
Marx's interest in the literature on Russian rural  
communes and also on the social aspects of that  
country.  
trabalho  
compreende  
também  
o
desenvolvimento do interesse de Marx tanto pela  
literatura sobre as comunas rurais russas quanto  
pelos aspectos sociais daquele país.  
Palavras-chave: Marxismo; Romantismo; Pré-  
Capitalismo; Via Russa.  
Keywords: Marxism, Romantism, Pré-capitalism,  
Russian Road.  
Introdução  
Não que seja suficiente a ponto de preencher prateleiras, mas já é possível  
notarmos boas investigações sobre a relação de Marx com a controvérsia acerca do  
desenvolvimento ou não do capitalismo na Rússia e sua relação com as comunas  
rurais1. Algumas edições de livros publicados no Brasil contribuíram para fornecer,  
tanto aos leitores quanto aos intérpretes, um arsenal de leitura que tornou possível a  
compreensão dessa temática. Em especial podemos mencionar a precursora  
*
Professor Substituto do Departamento de Ciências Sociais UFJF, doutorando em Antropologia  
Cultural UFRJ e pesquisador do Programa Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais UFMG,  
e-mail - lucasparreira1@gmail.com.  
1 Quando a versão original deste texto foi escrita, ainda não havia sido publicado o importante estudo  
de Vitor Bartoletti Sartori intitulado “Acerca da Individualidade, do desenvolvimento das forças  
produtivas e do ‘romantismo’ em Marx” (2018; 2019). Ou o estudo de Sartori poderia ser integrado à  
argumentação deste artigo, ou manteríamos este artigo em sua primeira versão. Optamos pela segunda  
opção. Vale ressaltar, no entanto, que os diálogos com Sartori foram fundamentais para que este artigo  
fosse escrito, e, suponho, inversamente também para a escrita e publicação do supracitado estudo de  
sua autoria.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2 jul-dez, 2023  
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Lucas Parreira Álvares  
publicação da obra Dilemas do Socialismo: a controvérsia entre Marx, Engels e os  
Populistas Russos, editada por Rubem César Fernandes e publicada pela editora Paz  
e Terra ainda em 1982, relevante especialmente pela tradução de diversas cartas  
através das quais Marx e principalmente Engels se corresponderam com os  
chamados “populistas russos”; além disso, essa organização de Fernandes trouxe ao  
leitor brasileiro a tradução de textos de autores russos que lidam com questões como  
“progresso”, “desenvolvimento” e “análise econômica” naquele país, como  
Mikhailovski, Danielson, Lavrov, entre outros.  
Na literatura em língua portuguesa, essa obra foi somada a Marx Tardio e a Via  
Russa: Marx e as periferias do capitalismo - publicada originalmente em 1883 e  
traduzida ao público brasileiro somente em 2017 - sob organização de Teodor Shanin  
que forneceu, além de textos clássicos de autores consagrados como Nikolai  
Tchernichevski, interpretações de autores marxistas que abriram novos caminhos de  
leituras e apresentaram informações preciosas através de textos de autores como  
Haruki Wada, Derek Sayer, Philip Corrigan e do próprio Teodor Shanin. Nesses livros  
supracitados, também estão contidos os rascunhos e a correspondência de Marx com  
a revolucionária russa Vera Ivanovna Zasulitch.  
Entretanto, foi com a publicação da obra Lutas de Classes na Rússia, pela editora  
Boitempo, em 2013, que o leitor brasileiro pôde ter em mãos uma tradução mais  
precisa desse material; além disso, essa obra tem a virtude de apresentar a Literatura  
de Refugiados, importante compilado de textos de Friedrich Engels sobre o assunto  
em questão; por fim, e não menos importante, essa edição também é prefaciada pela  
introdução Dialética revolucionária contra a ideologia burguesa de progresso, escrita  
por Michael Löwy.  
Não é do nosso interesse, tampouco aos objetivos deste texto em específico,  
propor uma espécie de “exegese” acerca dessa temática na obra de Marx – trabalho  
esse que foi desempenhado por outros intérpretes (a esse propósito, conferir o  
extenso trabalho de DIAS DE FARIA, 2017). Também não seria adequado tratar dessa  
temática sem expor, minimamente, a nossa interpretação. Entretanto, a inquietação  
que motivou a elaboração desse trabalho se deu a partir de alguns elementos  
apresentados pela Introdução de Michael Löwy na edição da obra Lutas de Classes na  
Rússia, em especial, a relação estabelecida pelo autor brasileiro/francês entre o  
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pensamento de Marx e o que ele entende por “romantismo”2.  
É importante mencionar que não se trata de propor uma crítica à totalidade das  
formulações desse autor, reconhecendo seu lócus de importância no campo do  
pensamento social crítico, mas sim e nesse momento às formulações que estão  
presentes nessa Introdução. Para além de Löwy, não podemos negar que esse texto  
se apresenta também como um esforço inicial de propor uma outra compreensão da  
relação entre Marx e o pensamento romântico, embora o objetivo em questão leve em  
conta uma abrangência mínima diante do modo pelo qual essa tradição apresenta não  
uma influência, mas sim, uma presença no decorrer da obra de Marx.  
1. A sedução romântica ao marxismo  
A publicação da obra Lutas de classes na Rússia pela Editora Boitempo,  
organizada por Michael Löwy, contém alguns dos textos mais importantes dos últimos  
anos de vida de Marx3, a saber, os rascunhos elaborados para confecção de uma carta  
em resposta a questionamentos da revolucionária russa Vera Ivanovna Zasulitch4.  
Adiante, voltaremos nossa atenção tanto para a carta de Vera Zasulitch, quanto para  
os rascunhos e a resposta de Marx. No momento, porém, analisaremos uma passagem  
da introdução de Michael Löwy cujo título é Dialética revolucionária contra a  
ideologia burguesa de “Progresso” à obra Luta de Classes na Rússia. Para Löwy, a  
partir dos textos de Marx sobre a Rússia é possível encontrar  
uma dialética tipicamente romântico-revolucionária entre o passado e  
o futuro, inspirada pelos trabalhos sobre o comunismo primitivo de  
historiadores e antropólogos (românticos) como Georg Maurer e Lewis  
Morgan, frequentemente citados por Marx e Engels. (LÖWY; 2015,  
p.13)  
2 Uma primeira tentativa de estabelecer a crítica a essa relação se deu por meio do texto Os perigos da  
sedução romântica ao marxismo, publicado nos anais do evento Crítica da economia política e do direito  
(2018).  
3 A primeira publicação dos rascunhos e das cartas está na obra Dilemas do Socialismo: Marx, Engels e  
os Populistas Russos, de 1982 sob organização de Rubem César Fernandes pela editora Paz e Terra.  
Recentemente, foi publicada também na recém-publicada Marx e a via Russa, de Teodor Shanin, que  
contém, dentre outros textos, os rascunhos e cartas de Marx a Zasulitch.  
4 “Podemos dividir a organização da obra Lutas de Classes na Rússia em três partes: a primeira com a  
Literatura de Refugiados V, que reúne textos de Engels publicados em 1875 (...) A segunda parte da  
obra podemos atribuir à Carta à redação da Otechestvenye Zapiski relevante revista de São  
Petersburgo alinhada aos populistas russos de autoria de Karl Marx, com a intenção de ser enviada à  
redação da revista. (...) A terceira parte de Lutas de Classe na Rússia diz respeito ao debate de Marx  
com a revolucionária Vera Ivanovna Zasulitch, integrante do grupo revolucionário russo “Emancipação  
do Trabalho”. Na edição, o texto que antecede a discussão entre os revolucionários é uma introdução  
produzida por David Riazanov com o título “Vera Zasulitch e Karl Marx” (ÁLVARES, 2015).  
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Lucas Parreira Álvares  
Atentaremos às determinações postas nesse trecho de Löwy e as utilizaremos  
como fio condutor que guiará a exposição do presente trabalho. Contudo, para o  
devido entendimento dessa passagem de autoria do brasileiro/francês, é antes  
necessário compreender os pressupostos teóricos que o conduzem a conceber tal  
interpretação a partir dos rascunhos de Marx à Vera Zasulitch,  
O primeiro passo é compreender a noção de “romântico” para esse autor. No  
ano de 1992 veio a público a obra Révolte et Mélancolie: le romantisme à contre-  
courant de la modernité, de autoria do sociólogo aqui em questão, Michael Löwy,  
juntamente com o linguista Robert Sayre5. Tal obra consagra a formação de um  
desenvolvimento teórico que acompanhava Löwy pelo menos desde a década de 70.  
Ela propõe uma interpretação mais abrangente do romantismo não o reduzindo a uma  
corrente literária-artística como também o apresentando como um movimento de  
resistência e reação ao modo de vida na sociedade capitalista moderna (LÖWY; SAYRE,  
2015, p.38). Löwy e Sayre elaboraram uma extensa tipologia desse movimento,  
“variando da direita para a esquerda do espectro político” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.85-  
86), distinguindo-o entre: 1) Romantismo Restitucionista; 2) Romantismo Conservador;  
3) Romantismo Fascista; 4) Romantismo Resignado; 5) Romantismo Reformador; 6) e  
Romantismo Revolucionário e/ou Utópico6.  
A peculiaridade dessa tipologia foi também estabelecer, no interior do  
romantismo “Revolucionário e/ou Utópico”, suas diversas tendências: a) Jacobino-  
democrática; b) Populista; c) Socialista utópico-humanista; d) Libertária; e) Marxista7.  
Para Löwy (2015, p.112-113) e Sayre, embora certamente essa é uma  
abordagem do sociólogo, afinal está presente em outras de suas obras precedentes –  
o que distingue o intitulado romantismo-revolucionário-marxista de outras correntes  
com sensibilidade romântica é, dentre outros aspectos, a preocupação central com  
alguns problemas essenciais do marxismo, a saber: “a luta de classes, o papel do  
proletariado como classe universal emancipadora, a possibilidade de utilizar as forças  
5 As edições brasileiras são duas: em 1995 pela Paz e Terra; e em 2015 uma reimpressão pela Editora  
Boitempo.  
6 Com exceção do tipo “Revolucionário e/ou Utópico”, o presente artigo não se aprofundará nas demais  
tendências, afinal, a análise do romantismo como um todo não é o objeto desse artigo. Para mais, vide:  
LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015, p.85-112.  
7 Com exceção do tipo “Revolucionário e/ou Utópico”, o presente trabalho não pretende se aprofundar  
nas demais tendências do romantismo de Löwy e Sayre, afinal, a análise desse movimento como um  
todo não é o objeto desse trabalho. Para mais, vide: LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e  
Melancolia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015, p.85-112.  
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Romantismo ou Regeneração?  
produtivas modernas em uma economia socialista”. Assim, cita alguns autores que  
acredita terem compartilhado dessa abordagem romântica-revolucionária-marxista,  
dentre eles: E. P. Thompson, Raymond Williams, György Lukács, Ernest Bloch, Walter  
Benjamin, Marcuse, Lefebvre, e William Morris (esse que seria seu exemplo mais  
autêntico). Para além desses intelectuais, Löwy e Sayre dedicam todo um capítulo de  
Revolta e Melancolia a um suposto romantismo de Marx.  
Os primeiros expoentes da tradição marxista consideraram a existência de um  
tríplice “amálgama original” que teria influenciado o pensamento de Marx. Para fins de  
compreensão e somente para esse propósito suponhamos8 que exista um  
amálgama no que se refere às assim chamadas “fontes do marxismo”. A literatura  
marxista, a partir de Kautsky em As três fontes do marxismo e posteriormente com  
Lênin em As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo, atribuiu a três os  
pilares importantes que influenciaram o pensamento de Marx: o Idealismo Alemão, o  
Socialismo Utópico Francês e a Economia Política Inglesa. Para Michael Löwy, existe  
uma quarta fonte que teria influenciado o pensamento de Marx, o Romantismo9.  
Essa influência do pensamento romântico teria ocorrido desde os primeiros  
trabalhos do mouro10, embora Löwy admita que “após converter-se à dialética  
hegeliana, ao materialismo e à filosofia da práxis (1840-1845), Marx rompe com esse  
primeiro romantismo juvenil” (2015, p.120). Até mesmo Löwy sabe muito bem que  
“no Manifesto Comunista (1848), Marx taxa de “reacionário” qualquer sonho de voltar  
ao artesanato ou a outros modos pré-capitalistas de produção” (p.120). Entretanto,  
independentemente dessa análise dos primeiros anos de produção teórica de Marx,  
Löwy ainda admite uma influência do pensamento romântico em Marx:  
8
“Suponhamos”, pois, Chasin (1995) foi responsável por uma crítica certeira a esse “amálgama de  
origem tríplice”.  
9
Em Revolta e Melancolia, Löwy afirma que “o romantismo é uma das fontes esquecidas de Marx e  
Engels, uma fonte que talvez seja tão importante para o trabalho deles quanto o neo-hegelianismo  
alemão ou o materialismo francês” (2015, p.120-121). Além dessa passagem, Löwy afirma  
categoricamente em um vídeo que considera o Romantismo como a quarta fonte de Marx, Engels e do  
pensamento marxista. Vide: https://www.youtube.com/watch?v=oIT1Oho1srk. Teodor Shanin também  
não escapa desse “amálgama” em apontar que, em sua visão, existe também uma quarta influência ao  
pensamento de Marx, mas, diferente de Löwy, Shanin se refere ao populismo russo (SHANIN, 2017,  
p.52).  
10  
Era comum àqueles próximos de Marx o tratarem como “mouro”. Em uma carta a Friedrich Theodor  
Cuno, o apelido foi comentado por Engels: “Jamais era chamado de Marx, tampouco de Karl, mas apenas  
Mouro, assim como cada um de nós tinha um apelido; onde terminavam os apelidos, terminava também  
a intimidade mais estreita. Mouro era seu apelido desde os tempos da universidade; e também na Nova  
Gazeta Renana foi sempre chamado assim. Se eu dirigisse a ele de outro modo, ele certamente  
acreditaria haver algum mal-entendido a ser esclarecido” (cf. Musto, 2018, p. 97).  
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Numa atitude tipicamente dialética, [Marx] vê o capitalismo como um  
sistema que transforma todo o progresso econômico em uma  
calamidade pública. É na análise das devastações sociais provocadas  
pela civilização capitalista bem como em seu interesse pelas  
comunidades pré-capitalistas que ele se junta, pelo menos em certa  
medida, à tradição romântica (LÖWY, 2015, p.120).  
Seguindo a exposição do autor, Löwy apresenta alguns “críticos românticos” que  
teriam influenciado a obra de Marx, como o economista Sismondi; o populista russo  
Danielson; escritores como Dickens e Balzac; filósofos como Carlyle; e claro, não  
poderiam faltar os historiadores e antropólogos caracterizados de “românticos” por  
Löwy como os já supracitados George Maurer e Lewis Morgan. Todavia, o ponto central  
aos nossos propósitos é que, em sua introdução à Lutas de Classes na Rússia, o que  
Löwy associa àqueles escritos de Marx ao tratar da comuna rural russa com o  
pensamento romântico é exatamente o “seu interesse pelas comunidades pré-  
capitalistas”. Analisemos brevemente o desenvolvimento do interesse e dos estudos  
de Karl Marx sobre a Rússia a fim de que possamos compreender o sentido em que  
essas investigações foram realizadas. E, por fim, se é correto ou não atribuir a  
característica de romântico ao interesse de Marx pelas formas sociais que precederam  
o modo de produção capitalista.  
2. Os perigos da sedução romântica ao marxismo  
A seção IV do Manifesto Comunista é dedicada à “posição dos comunistas diante  
dos diversos partidos de oposição”. Naquele momento, os comunistas lutavam “pelos  
interesses e objetivos imediatos da classe operária”, mas, ao mesmo tempo, defendiam  
e representavam “no movimento atual, o futuro do movimento” (MARX; ENGELS, 2010,  
p.68-72). Assim, através do Manifesto, os comunistas se posicionaram de acordo com  
o contexto de alguns países da Europa, que se conformava como “um campo limitado  
do movimento proletário” da época: na França se aliaram ao partido social-democrata;  
na Suíça apoiaram os radicais; na Polônia os democratas revolucionários; e na  
Alemanha o partido comunista. Percebam que a Rússia sequer foi mencionada nessa  
seção. Existe, entretanto, um motivo.  
O prefácio à edição russa do Manifesto Comunista de 1882, assinado por Marx  
e Engels, é um documento especialmente interessante. Esse trabalho de apenas seis  
parágrafos, o último publicado por Marx em vida, constitui, para Kevin Anderson  
(2010, p.197), a única publicação de Marx que estava em consonância com os  
trabalhos que o velho mouro vinha desenvolvendo no decorrer da década de 70 e  
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início da década de 80 do Século XIX até sua morte sobre sociedades pré-capitalistas  
para além da Europa ocidental11.  
A Rússia passou por transformações significativas desde a publicação do  
Manifesto em 1848 até o prefácio à edição russa do Manifesto, já em 188212. Essas  
transformações foram ressaltadas pelo prefácio, que exprimia o fato de que, na época  
da publicação original do Manifesto, “a Rússia se constituía na última grande reserva  
da reação europeia”; era a Rússia um dos países que “proviam a Europa de matérias-  
primas, sendo ao mesmo tempo mercado para venda de seus produtos industriais” e,  
de uma maneira ou de outra, era pilar da ordem europeia vigente (MARX; ENGELS,  
2010, p.73). Mas foi após a publicação do Tomo I de O Capital que a Rússia figurou  
como um elemento determinante na vida de Marx, não apenas pelo interesse teórico  
que aquele país de dimensões continentais possuía, como também um interesse  
político, afinal, Marx era o responsável dentro do Comitê Geral da Associação  
Internacional dos Trabalhadores de estabelecer relações com esse país.  
Teodor Shanin aponta para quatro eventos que marcam experiência política e  
intelectual para o pensamento de Marx no período pós publicação de O Capital (ou  
seja, após 1867): O primeiro, a Comuna de Paris, de 1871, que ofereceu uma lição  
dramática e um tipo de poder revolucionário nunca visto antes; segundo um grande  
avanço no campo da produção de conhecimento, que foi a descoberta da “pré-  
história”, que trouxe as sociedades “primitivas” para dentro de um espaço de estudos  
históricos e etnológicos; terceiro a ampliação do conhecimento das sociedades rurais  
11 Mesmo assim, com uma peculiaridade que não pode deixar de ser notada, como demonstra o japonês  
Haruki Wada: “o manuscrito do prefácio, marcado ‘Londres, 21 de fevereiro de 1881, foi rascunhado  
por Engels; Marx fez apenas uma correção mínima e colocou sua assinatura. Diante do fato de que o  
manuscrito que temos hoje tem uma passagem no fim que foi escrita uma vez, rasurada, e não reescrita,  
é possível vê-lo como uma cópia limpa que Engels transcreveu ainda de outro manuscrito. Todos esses  
fatores nos levam a concluir que Marx, que estava desanimado na época, pediu a Engels para fazer um  
rascunho e o assinou. Que Marx não ficou totalmente satisfeito com o resultado pode ser deduzido da  
carta que ele mandou a Lavrov com o manuscrito: ‘se esta peça, que é para a tradução do russo, for  
para ser publicada como está, em alemão, ainda precisa de toques finais em seu estilo’” (2017, p.116).  
Mesmo o único texto produzido por Marx como resultado das investigações finais de sua vida é dotado  
de uma complexidade quanto à sua produção. Em conversa particular com Marcello Musto, que estudou  
intensamente os aspectos teóricos e biográficos dos anos finais da vida de Marx (cf. Musto, 2018), o  
marxista italiano/canadense afirmou não corroborar com a interpretação de Wada, e me confidenciou  
que não encontrou, em nenhum momento durante suas investigações, indícios que pudessem endossar  
tal interpretação.  
12 Interessante adensar a esse ponto, o fato de que os estudos russos que Marx avançou até ali, “foram  
interrompidos por um tempo considerável pela Comuna de Paris e, depois da derrota, pela luta interna  
dentro da internacional. Foi só depois do congresso de Haia de setembro de 1872 que ele voltou à  
teoria e à questão russa” (WADA, 2017, p.84)  
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não capitalistas inseridas em um mundo capitalista; e quarto a Rússia e os russos  
deram a Marx uma potente combinação: a rica evidência sobre as comunidades rurais  
e a experiência revolucionária direta, tudo isso junto com a teoria e a prática do  
populismo revolucionário russo (SHANIN, 2017, p.31).  
O desenvolvimento dos estudos de Marx sobre a Rússia se deu,  
concomitantemente, ao desenvolvimento do capitalismo naquele país.  
Naquela época, ao passo em que Marx desenvolvia suas investigações, por volta  
de 3/5 das terras cultiváveis da Rússia europeia estavam nas mãos das comunas  
camponesas. Shanin (2017, p. 38-39) explica que o modo de funcionamento da  
divisão da propriedade nessas comunas era realizado da seguinte maneira: cada família  
detinha apenas um pequeno pedaço de terra, que concernia a uma casa e um jardim,  
além de seus animais e equipamentos. O uso da terra cultivável era atribuído para uma  
família pela comuna em termos de longo prazo, os prados eram redefinidos todo ano  
e com frequência eram trabalhados coletivamente. Já os pastos e florestas eram de  
uso comum. Muitos serviços vitais eram realizados coletivamente: o pastoreio da  
aldeia, as guardas locais, o cuidado com os órfãos, entre tantos outros. A divisão dos  
cargos era decidida através de uma assembleia dos chefes de família. Em grande parte  
dessas comunas, essa assembleia era também responsável por dividir, periodicamente,  
as terras cultiváveis entre as famílias13.  
Durante toda a década de 70, bem como do início da década de 80 do Século  
XIX até sua morte, Marx investigou extensamente a literatura russa - sobretudo no que  
concerne à questão da propriedade comunal da terra. O próprio Marx relatou que em  
sua biblioteca continha aproximadamente 200 livros no idioma russo14, o que  
impressiona, considerando o fato de que no início do ano de 1870 Marx sequer tinha  
algum domínio sobre tal idioma. O ponto de partida para que Marx aprendesse russo  
foi a ocasião de que seu amigo Nicolai Danielson (1844-1918), importante populista  
russo e um dos principais expoentes do socialismo naquele país, o presenteou com a  
obra A situação da classe operária na Rússia, de autoria de Flerovsky, em outubro de  
1869, inspirada na quase homônima obra de Engels de 1844. Relatos datam que em  
fevereiro do ano seguinte Marx já iniciara suas investigações sobre o livro russo. Em  
13 Também sobre os aspectos locais da Rússia na segunda metade do século XX, cf. Siljak (2013).  
14 “[após Marx retornar a] Londres, compila a lista dos ‘livros russos em minha estante’ – perto de 200  
títulos” (SAYER, 2017, p.241).  
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carta a Engels no dia 10 de fevereiro de 1870, Marx afirma que “em qualquer  
circunstância, esse é o livro mais importante que apareceu desde o seu A situação da  
classe trabalhadora na Inglaterra”, (MARX apud SAYER, 2017, p.211-212). Também  
em uma carta a Engels, nessa mesma época, a esposa de Marx mencionou que “ele  
começou a estudar russo como se fosse uma questão de vida ou morte”, e, assim,  
aliando “o útil ao agradável”, o modo pelo qual se deu o aprimoramento de Marx junto  
ao idioma foi através de leituras de autores que debatiam tais temas, como Herzen e  
principalmente Tchernichevski.  
Na edição francesa de O Capital, algumas modificações ocorreram na exposição  
final da obra, provavelmente em função dessas novas leituras. Foi retirado, por  
exemplo, o “assim chamado” do título do capítulo 24 de O Capital, constando apenas  
o Acumulação Primitiva. Além disso, foi suprimida uma nota na qual Marx criticava  
Herzen, autor russo que se alinhava com as perspectivas do conhecido grupo  
Populistas Russos. Também, uma das passagens clássicas do capítulo 24 foi  
substituída. Onde se lia que:  
A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao  
camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume  
tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em  
sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na  
Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal  
expropriação se apresenta em sua forma clássica (MARX, 2013a,  
p.963)  
Passou-se a ler:  
No cerne do sistema capitalista está, portanto, a separação radical do  
produtor e dos seus meios de produção (...) A base de toda essa  
evolução é a expropriação dos camponeses. Isso só se realizou até  
sua forma final na Inglaterra (...), mas todos os outros países na Europa  
ocidental estão seguindo o mesmo movimento (MARX, 1872-1875;  
p.315).  
Uma implicação óbvia dessa correção é que a forma inglesa de expropriação  
dos camponeses é aplicável apenas à Europa ocidental, ou seja, a Europa oriental e a  
Rússia poderiam ter um desenvolvimento diferente (WADA, 2017, p.88). No ano de  
1877 veio a acontecer a guerra russo-turca, o que deu aos socialistas a esperança de  
que ela pudesse ser a alavanca para a revolução na Rússia. Essa expectativa pode ser  
notada, por exemplo, em uma carta que Marx enviou a Sorge, no dia 27 de setembro  
daquele ano, dizendo:  
Essa crise é um novo momento decisivo na história da Europa. A  
Rússia eu estudei a situação desse país com base em fontes oficiais  
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e não oficiais em russo esteve por um longo período à beira da  
revolução. Todos os fatores para isso já estavam presentes (...) Se a  
mãe natureza não for extraordinariamente dura conosco, talvez nós  
possamos viver o suficiente para ver o dia maravilhoso da cerimônia.  
A revolução, neste tempo, começa do Leste, esse mesmo Leste que  
nós por tanto tempo consideramos como o apoio invencível da  
contrarrevolução (MARX, apud WADA, 2017, p.96).  
Em fevereiro de 1881, Vera Zasulitch, populista russa ligada à ramificação  
Repartição Negra enviou a Marx uma carta cujo interesse estava em consonância com  
o desenvolvimento das pesquisas que o velho mouro desenvolvia. Zasulitch queria a  
análise de Marx sobre o destino da comuna rural russa e sobre “a teoria da necessidade  
histórica de que todos os países do mundo passem por todas as fases de produção  
capitalista” (ZASULITCH, 2013, p. 80). Marx, naquele mesmo mês, elaborou alguns  
extensos rascunhos como respostas a serem enviadas à Vera. Mas sua resposta  
definitiva, em contrapartida, se resumiu a uma pequena carta que tinha como cerne a  
noção de que a assim chamada “fatalidade histórica” desse processo “estava restrita  
aos países da Europa ocidental” e que os estudos que desenvolveu o convenceram de  
que “essa comuna é a alavanca da regeneração social na Rússia” (MARX, 2013b,  
p.114-115).  
O entusiasmo de Löwy junto a essa carta, bem como os rascunhos que a  
antecederam, reside no fato de que, para o sociólogo brasileiro/francês, esses escritos,  
“significam uma ruptura profunda com qualquer interpretação unilinear, evolucionista,  
“etapista” e eurocêntrica do materialismo histórico” (LÖWY, 2013, p.9). Löwy continua:  
a partir de 1877, eles sugerem, ainda que não de forma  
desenvolvida, uma perspectiva dialética, policêntrica, que admite uma  
multiplicidade de formas de transformação histórica, e, sobretudo, a  
possibilidade que as revoluções sociais modernas comecem na  
periferia do sistema capitalista e não, como afirmavam alguns de seus  
escritos anteriores, no centro15. E termina: “trata-se de uma  
verdadeira “virada” metodológica, política e estratégica”.  
Ao tratar de Marx, parece-nos correto afirmar que esses textos estão em  
desacordo com uma interpretação “unilinear, evolucionista, etapista e eurocêntrica” do  
assim chamado materialismo histórico. Entretanto, isso não se configura como uma  
15  
Diante da constatação de que há pelo menos 50 anos a literatura marxista tem estabelecido  
contrapontos convincentes contra uma eventual perspectiva unilinear da história, tenho tomado como  
pressuposto a visão de uma multilinearidade da história no pensamento de Marx. Acredito que essa  
mudança de perspectiva expositiva não é só importante na medida em que reconhece a autenticidade  
de trabalhos previamente realizados, como também suprime a necessidade de apresentar, em todos os  
textos que tratam desse assunto, pelo menos um capítulo para demonstrar o óbvio ao leitor rigoroso  
de Marx.  
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novidade no pensamento de Marx. Já em 1857, cerca de 20 anos antes, o capítulo  
dos Grundrisse intitulado Formas que precederam a produção capitalista deixava essa  
abordagem implícita, e no capítulo A assim chamada acumulação primitiva, na citação  
que mencionamos a pouco, essa perspectiva aparece de maneira explícita16. É  
importante mencionar que Marx não mudou o seu juízo crítico sobre as comunas rurais  
da Rússia a partir dos novos trabalhos que a ele foram apresentados. Não há nenhum  
rompimento drástico – uma espécie de “inflexão” – no pensamento de Marx nos  
esboços preliminares da carta a Vera Zasulitch em relação a suas convicções anteriores  
(MUSTO, 2018, p.76-77; ÁLVARES, 2017; 2019). É tautológico que a leitura de novos  
autores e investigações abrem novos horizontes, não só para Marx, como também para  
qualquer autor17. Mas os elementos de novidade em relação ao passado dizem  
respeito, antes, à abertura teórica graças à qual Marx passou a considerar outras vias  
possíveis para a transição ao socialismo, vias que até então jamais haviam sido  
avaliadas ou, ao contrário, tinham sido consideradas irrealizáveis (MUSTO, 2018,  
p.77).  
Sob a ótica de Sayer (1977, p.67), na esteira dessas interpretações, o que  
ocorreu, no decurso dos anos 1870, “não foi que Marx tivesse mudado de opinião  
sobre o caráter das comunas rurais nem que tivesse decidido que estas, na forma como  
existiam, poderiam tornar-se a base do socialismo”, ao contrário, “o que ele passou a  
considerar foi, antes, a possibilidade de as comunas serem revolucionadas não pelo  
capitalismo, mas pelo socialismo”, e assim, “com a intensificação da comunicação social  
e a modernização dos métodos de produção, o sistema de comunas rurais poderia ser  
incorporado numa sociedade socialista”. Mas voltemos, para retomarmos nosso fio  
16 Por existir, somente no Brasil, mais de 80 anos de literatura marxista que lida com essa questão, não  
desviaremos de nosso propósito principal. Para um aprofundamento que representa “o ponto final” na  
discussão sobre Marx a um suposto etapismo da história, cf. Machado (2018). Para uma crítica à relação  
entre Marx e o evolucionismo social, cf. Álvares (2019).  
17 Por exemplo: é notório que a teoria do valor-trabalho de Marx ainda não estava constituída em sua  
obra Miséria da filosofia (1847), o que se concretizaria de maneira primorosa em O capital (1867) duas  
décadas depois. Mas será que é possível falar de uma “inflexão” no pensamento de Marx da publicação  
de Miséria da filosofia para O capital? Do ponto de vista do aperfeiçoamento das ideias econômicas de  
Marx, Miséria da filosofia constitui a primeira obra na qual Marx concebe “uma visão de conjunto das  
origens, do desenvolvimento, das contradições e da queda do regime capitalista” (MANDEL, 1968,  
p.55). A mudança de Marx para Londres poucos anos depois da publicação da Miséria da  
filosofia favoreceu demasiadamente suas investigações. Dentre outros motivos como o próprio autor  
menciona no prefácio da Contribuição à crítica da economia política , com a mudança para a capital  
inglesa, Marx teve acesso à “prodigiosa quantidade de materiais para a história da economia política  
acumulada no Museu Britânico” (MARX, 2008, p.51). Parece-me, portanto, que não há uma “inflexão”  
(“nova ótica, nova abordagem”) no pensamento de Marx de uma obra para outra” (ÁLVARES, 2017).  
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condutor, à interpretação levada a cabo por Michael Löwy.  
Parece-nos que a proximidade com que Löwy associa o interesse de Marx junto  
as formas pré-capitalistas e ao pensamento romântico se dá através de um desarranjo  
que não se configura no desenvolvimento teórico de Marx. Esse “desarranjo”, que se  
constitui enquanto ponto central desse trabalho, se conforma da seguinte maneira:  
Löwy associa a “romantismo” o que Marx tratou sob o termo de “regeneração”. Marx  
afirma que a “regeneração” que levaria a Rússia ao “novo sistema para o qual tende a  
sociedade moderna, será uma reinvenção, em uma forma superior, de um tipo social  
arcaico” (MARX, 2013b, p.91). A citação é clara, mas é fundamental ressaltar que Marx  
não propõe um retorno ao modo arcaico de sociabilidade, mas sim, a uma reinvenção  
desse modo, principalmente no que concerne as suas características comunais.  
Se não houvesse uma reinvenção superior desse modo, não se trataria de uma  
perspectiva revolucionária, afinal, como o próprio Marx (2011, p.28) menciona, “não  
é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social do Século XIX pode  
colher a sua poesia”, embora Löwy tenha afirmado, em entrevista ao autor deste  
trabalho, que a revolução social deve colher sua poesia também no passado (cf. LÖWY,  
2017). É verdade que essa passagem de Marx sobre a “poesia do futuro”, contida no  
18 Brumário de Luís Bonaparte, antecede algumas das principais experiências de  
tomada de poder do trabalhador, como por exemplo, a Comuna de Paris, que trouxe  
ensinamentos importantes para a tradição socialista18. Contudo, a revolução socialista  
não pode ser compreendida tal como se compreende uma hipótese (cf. BADIOU,  
2012), o que, evidentemente, implicaria em uma visão teleológica da história.  
A compreensão do romantismo em Löwy não parte do modo pelo qual esse  
movimento se conforma na realidade, mas sim de uma suposição ideal do que o autor  
acredita que esse movimento é.  
O movimento romântico, em Löwy, aparece como um modelo sociológico  
acabado na medida em que, a partir dos pressupostos ideias deste, são incluídos, ou  
não, autores que estudam determinados assuntos ou que, em seus textos, apresentam  
determinadas influências que se aproximam da sua proposta de romantismo. É  
18 No prefácio à edição alemã do Manifesto Comunista, assim como nos textos que compõem a coletânea  
Guerra Civil na França, Marx enfatiza a importância da Comuna de Paris, sobretudo por ter demonstrado  
que “não basta que a classe trabalhadora se apodere da máquina estatal para fazê-la servir a seus  
próprios fins” (Marx; Engels, 2010, p. 72).  
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importante mencionar, nesse aspecto, como já salientava Marx e Engels (2010, p.119),  
que “o método materialista se converte em sua antítese quando é utilizado não como  
fio condutor na investigação histórica, mas como um modelo acabado a que há que  
adaptar os fatos históricos”. Nunca foi e nunca poderia ser um infortúnio para a  
tradição marxista o interesse por formas sociais que precederam o modo de produção  
capitalista. Marx, mais do que qualquer outro, nos convidou a enxergar a história como  
indispensável para qualquer investigação que resulte em compreensões do movimento  
real. A proposição de Löwy, por outro lado, compreende que o interesse por  
investigações sobre formas sociais pré-capitalistas se calca no registro de um  
romantismo.  
Ao considerar como prática romântica o mero interesse de investigação sobre  
formas sociais que precederam o modo de produção capitalista, Löwy abre o  
precedente para considerarmos não apenas que existe uma vertente romântica no  
pensamento de Marx como também, o próprio marxismo, que é caudatário dessa busca  
pela gêsese do objeto ao rastrear o seu nexo interno, também sofreria esta influência  
romântica.  
A antropologia, que até a década de 60 do século XX se caracterizava pelo “quê”  
pesquisar, a saber, povos e modos de vida não ocidentais, poderia ser considerada  
como um campo inteiramente dedicado às pretensões do romantismo. É verdade que  
houve uma intensa influência romântica na antropologia para com os interlocutores  
investigados, o que pode ser observado pelo título da obra-prima de Bronislaw  
Malinowski, que não se chama “Os trobriandeses da Nova-Guiné”, mas sim, Os  
Argonautas do Pacífico Ocidental. Todavia, desde sua origem a antropologia também  
esteve vinculada a contradições inerentes a sua própria existência (cf. ÁLVARES, 2018).  
Ainda que sejamos críticos ao modo como desenvolveu a história do pensamento  
antropológico, não podemos reduzi-la a uma teoria social.  
Se a antropologia fosse reduzida ao romantismo, teríamos ainda mais elementos  
para demonstrar um afastamento de Marx da perspectiva romântica, afinal, Marx foi  
um autêntico crítico ao pensamento de Lewis Morgan, o pai da antropologia americana,  
que caracterizava a distinção entre formas sociais por elementos como cerâmica e a  
escrita, ao passo que, para Marx (2013a, p.257), o que as diferencia “não é ‘o que’ é  
produzido, mas ‘como’, ‘com que meios de trabalho’”. Ainda que tenha sido  
materialista, e mesmo que tenha tido a história como pressuposto teórico, Lewis  
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Morgan jamais foi adepto a uma “concepção materialista da história” – e, sejamos  
justos, Morgan também nunca aderiu uma concepção romântica de mundo.  
Quando Löwy caracteriza toda a extensão dos movimentos que diferem e que se  
opõem à modernidade como “românticos”, ele se assemelha à ironia que Jorge Luis  
Borges (2000, p.76) traz ao mencionar a enciclopédia chinesa do doutor Franz Kuhn,  
um modo curioso de classificação dos animais que se dividiriam em categorias, dentre  
elas, “os que estão incluídos nessa classificação” e os “etcétera” (os que pertencem ao  
imperador, e os que de longe parecem moscas). Se toda crítica ao capitalismo é,  
portanto, uma crítica romântica, nenhuma crítica ao capitalismo é romântica, pois um  
conceito que serve caracterizar tudo, por óbvio, não se distingue de absolutamente  
nada.  
Embora Marx constate que Sismondi o mais renomado dos economistas  
românticos clássicos ou mesmo Carlyle tenham identificado contradições importantes  
no modo de produção capitalista, essas constatações não impossibilitaram que, no  
Manifesto Comunista, Marx tenha criticado especificamente o denominado “socialismo  
pequeno-burguês” especialmente através da figura de Sismondi. É interessante notar  
que na seção “literatura socialista e comunista” do Manifesto, o tópico que mais se  
assemelha à crítica romântica é esse mencionado, o “socialismo pequeno-burguês” –  
mesmo porque é o tópico em que o nome de Sismondi é citado. Porém a abrangência  
que Löwy deu a sua concepção de Romantismo faz com que o assim chamado  
“socialismo feudal”, também criticado por Marx, esteja incluído nas concepções de  
romantismo revolucionário do sociólogo brasileiro/francês, afinal, a partir da “velha  
fraseologia da restauração”, Marx e Engels (2010, p.59-60) apresentam que o  
surgimento do socialismo feudal se deu “em parte lamento, em parte pasquim; em  
parte ecos do passado, em parte ameaças ao futuro” e “se por vezes a sua crítica  
amarga, mordaz e espirituosa feriu a burguesia no coração, sua impotência absoluta  
em compreender a marcha da história moderna terminou sempre produzindo um efeito  
cômico”.  
Ao tempo em que Löwy agrega o socialismo pequeno-burguês ao socialismo  
feudal como se ambos fizessem parte do assim chamado “romantismo revolucionário”,  
Marx e Engels, em uma seção do Manifesto na qual o intuito era exatamente criticar a  
literatura socialista, atribuiu a essas duas formas a alcunha de “socialismo reacionário”.  
Marx produziu intermináveis passagens críticas ao romantismo. Nos limitaremos  
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a uma dos Grundrisse, passagem que é importante a Lukács para sua crítica ao  
anticapitalismo romântico. Marx diz que:  
A conexão é um produto dos indivíduos. É um produto histórico. Faz  
parte de uma determinada fase de seu desenvolvimento. (...) O grau e  
a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa  
individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção  
sobre a base dos valores de troca, que, com a universalidade do  
estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro produz a  
universalidade e multilateralidade de suas relações e habilidades. Em  
estágios anteriores de desenvolvimento, o indivíduo singular aparece  
mais completo precisamente porque não elaborou ainda a plenitude  
de suas relações e não as pôs diante de si como poderes e relações  
sociais independentes dele. É tão ridículo ter nostalgia daquela  
plenitude original: da mesma forma, é ridícula a crença de que é  
preciso permanecer naquele completo esvaziamento. O ponto de vista  
burguês jamais foi além da oposição a tal visão romântica e, por isso,  
como legítima antítese, a visão romântica o acompanhará até seu bem-  
aventurado fim. (2011, p.164-165)  
Quando Marx fala que “é tão ridículo ter nostalgia daquela plenitude original”,  
ele não está fazendo coro a uma crítica unicamente negativa às formas sociais que  
historicamente precederam o modo de produção capitalista. Em carta a Engels no dia  
25 de março de 1868, por exemplo, Marx afirma que uma das reações à Revolução  
Francesa e ao Iluminismo foi olhar para dentro da era primitiva de cada povo, “e essa  
corresponde a uma tendência socialista”, ainda que não houvesse uma conexão  
consciente entre os ideais socialistas e as sociedades comunais da Europa (MARX,  
2020).  
É interessante notar que ao mesmo tempo em que Marx demonstra um certo  
entusiasmo com as descobertas realizadas acerca dessas formas sociais o que motiva  
inclusive um aprofundamento dos estudos do velho mouro sobre essa questão nos  
anos seguintes verificado nos assim chamados Cadernos Etnológicos19 em momento  
19  
Sob o título de Ethnological Notebooks of Karl Marx (1972), Lawrence Krader editou e publicou os  
cadernos em que Marx supostamente tratou de assuntos “etnológicos”. Porém, “dos quatro autores  
dos Cadernos etnológicos, Phear e Maine eram juristas de formação, inclusive fizeram carreira na área;  
já Lubbock é um dos percussores da produção de conhecimento arqueológico, sendo um dos  
responsáveis por conceber a arqueologia como uma disciplina científica; e Morgan, esse sim, mesmo  
tendo sua formação enquanto jurista, destinou sua carreira para os temas etnológicos. As notas desses  
quatro autores, na verdade, constituem aproximadamente apenas metade dos cadernos de Marx de  
1879 a 1882 que contém informações sobre sociedades não ocidentais e pré-capitalistas. Além dos  
editados por Krader (...) e nesse bojo incluo aqui também os Cadernos Kovalevsky (p.35) , ainda  
constam anotações dos seguintes autores: o funcionário público colonial Robert Sewell e seus escritos  
sobre a história indiana; os historiadores e juristas alemães Karl Bücher, Ludwig Friedländer, Ludwig  
Lange, Rudolf Jhering e Rudolf Sohm sobre a formação do Estado, classe e gênero em Roma e na Europa  
medieval, o advogado britânico J.W.B. Money e seus estudos sobre a Indonésia; dentre outros trabalhos  
acerca do que hoje entendemos como antropologia física e paleontologia (Anderson, 2010, p.197-  
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algum ele as apresenta como um modelo a ser referenciado, ou seja, deixa implícito  
que atrás da montanha a se escalar não estaria nem o progressismo iluminista nem  
tampouco uma aclamação do passado o que o afasta, novamente, de uma abordagem  
“romântica”.  
Diante do exposto, embora preliminar, temos elementos o suficiente para afirmar  
que “romantismo-revolucionário” nada mais é que um oxímoro.  
O que apresentamos aqui não é mais do que algumas palavras preliminares para  
compreender o distanciamento de Marx do pensamento com as proposições de Löwy  
acerca de seu romantismo. Desse modo, a compreensão das críticas e distanciamentos  
de Marx da concepção romântica é um trabalho ainda a ser feito. E será árduo a quem  
o realizar, afinal, suas considerações críticas partem desde seus textos de juventude,  
como O manifesto filosófico da escola histórica de direito, de 1842, até as formulações  
críticas que podem ser extraídas em suas últimas investigações. Mas, por hora, algumas  
observações já podem ser acumuladas.  
Considerações finais  
A Rússia esteve presente em três aspectos da vida final do pensamento de Marx:  
a primeira como fruto de investigações teóricas; a segunda como uma localidade na  
qual Marx era responsável por se corresponder dentro da Associação Internacional do  
Trabalho; e a terceira através da preocupação que Marx tinha com o modo pelo qual  
seus textos repercutiriam naquele país. Esse último aspecto é importante na medida  
em que na última carta em que trata da Rússia, em dezembro de 1882, ou seja, meses  
antes de sua morte, Marx (apud WADA, 2017, p.117) diz a sua filha Laura Lafargue:  
“algumas publicações russas recentes (...) mostram o grande avanço de minhas teorias  
nesse país. Em nenhum lugar meu êxito é mais agradável. Me dá satisfação saber que  
eu prejudico um poder que é, ao lado da Inglaterra, o verdadeiro baluarte da antiga  
sociedade”. O seu interesse pela Rússia, embora não estivesse investigando  
especificamente com essa questão, nos oferece provas de sua relação com o  
198). É notória a intenção de Krader, como antropólogo, em selecionar os textos assim chamados  
‘etnológicos’ de Marx para a edição que organizou. Entretanto, me parece que da mesma forma um  
jurista poderia ter selecionado textos e seu critério e organizado os “Cadernos jurídicos” de Marx, ou  
que um geólogo pudesse editar os “Cadernos paleontológicos”. A constatação é: apesar dos esforços  
de Krader (...) os anos finais da vida de Marx não foram destinados apenas aos estudos assim chamados  
‘etnológicos’.” (Álvares, 2017). Para uma visão mais aprofundada e específica sobre os chamados  
Cadernos Etnológicos de Marx, cf. Álvares (2019).  
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pensamento romântico. Essas “provas”, por sua vez, denotam o afastamento de Marx  
dessa tradição crítica. Foi a partir dessa suposição que esse trabalho se originou.  
A conclusão, nessa altura, já é evidente: ao ponto em que Löwy buscou aproximar  
a perspectiva romântica da obra de Marx, esse, em contrapartida, procurou se  
distanciar, em toda a extensão de sua obra, dessa perspectiva. Nesse aspecto,  
nenhuma outra evidência no que diz respeito à diferença de abordagem desses  
autores, fica tão bem expressa quanto nos textos em que Marx tratou da Rússia, e na  
interpretação que Michael Löwy faz desses textos de Marx.  
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Como citar:  
ÁLVARES, Lucas Parreira. Romantismo ou Regeneração?. Verinotio, Rio das Ostras, v.  
28, n. 2, pp. XX-XX; jul-dez, 2023.  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 28, n. 2, pp. 335-352 - jul-dez, 2023  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.1.673  
O novo irracionalismo*  
The New Irrationalism  
John Bellamy Foster**  
Mais de um século após o início da Grande Crise de 1914-1945, representada  
pela Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial,  
estamos vendo um súbito ressurgimento da guerra e do fascismo em todo o mundo.  
A economia mundial capitalista, como um todo, é agora caracterizada pelo  
aprofundamento da estagnação, pela financeirização e pela crescente desigualdade.  
Tudo isso é acompanhado pela probabilidade de homicídio planetário em uma forma  
dupla: holocausto nuclear e desestabilização climática. Nesse contexto perigoso, a  
própria noção de razão humana tem sido frequentemente posta em causa. Portanto, é  
necessário abordar, mais uma vez, a questão da relação do imperialismo, ou  
capitalismo monopolista, com a destruição da razão e as ramificações disso para as  
lutas de classe e anti-imperialistas contemporâneas.  
Em 1953, Georg Lukács, cujo livro História e Consciência de Classe, de 1923,  
inspirou a tradição filosófica Marxista Ocidental, publicou sua obra magistral, A  
Destruição da Razão, a respeito da estreita relação do irracionalismo filosófico com o  
capitalismo, o imperialismo e o fascismo1. A obra de Lukács provocou uma tempestade  
entre os teóricos da esquerda ocidental que buscavam se acomodar ao novo império  
americano. Em 1963, George Lichtheim, um autodenominado socialista que operava  
dentro da tradição geral do Marxismo Ocidental, embora se opusesse virulentamente  
ao marxismo soviético, escreveu um artigo para a Encounter Magazine, então  
*
Translated and reprinted by permission of Monthly Review magazine. (c) Monthly Review. All rights  
reserved. The New Irrationalism by John Bellamy Foster (February 2023, Volume 74, Number 9).  
Tradução de Lara Nora Portugal Penna. Revisão técnica de Elcemir Paço Cunha.  
**  
Professor americano de sociologia da Universidade de Oregon e editor da Monthly Review. Escreve  
sobre economia política do capitalismo e crise econômica, ecologia e crise ecológica e teoria marxista.[4]  
Ele deu várias entrevistas, palestras e conferências convidadas, além de escrever comentários, artigos e  
livros sobre o assunto.  
1
Georg Lukács, Die Zerstörung der Vernunft (Berlin: Aufbau-Verlang, 1953), Ed. Inglesa: The  
Destruction of Reason (London: Merlin Press, 1980) [Ed. brasileira: Georg Lukács, A Destruição da  
Razão. Instituto Lukács, 2020].  
Verinotio ISSN 1981-061X, v. 28.2, jul-dez; 2023  
nova fase  
     
John Bellamy Foster  
secretamente financiada pela Agência Central de Inteligência {CIA, na sigla em inglês}***,  
no qual atacava veementemente A Destruição da Razão e outras obras de Lukács.  
Lichtheim acusou Lukács de gerar um “desastre intelectual” com sua análise da virada  
histórica da razão para a irracionalidade na filosofia e literatura europeias, e da relação  
disso com a ascensão do fascismo e do novo imperialismo sob a hegemonia global  
dos EUA2.  
Essa não foi a primeira vez, é claro, que Lukács foi submetido a condenações tão  
fortes por parte de figuras associadas ao Marxismo Ocidental. Theodor Adorno, um  
dos teóricos dominantes da Escola de Frankfurt, atacou Lukács em 1958, quando este  
ainda estava em prisão domiciliar por apoiar a revolução de 1956 na Hungria.  
Escrevendo no Der Monat, jornal criado pelo exército de ocupação dos Estados Unidos  
e financiado pela CIA, Adorno acusou Lukács de ser “redutivo” e “não dialético”, de  
escrever como um “comissário cultural” e de estar “paralisado desde o início pela  
consciência de sua própria impotência”3.  
No entanto, o ataque de 1963 a Lukács por Lichtheim na Encounter assumiu um  
significado adicional devido à sua condenação absoluta de A Destruição da Razão, de  
Lukács. Nesta obra, Lukács mapeou a relação do irracionalismo filosófico que surgiu  
pela primeira vez no continente europeu, particularmente na Alemanha, com a derrota  
das revoluções de 1848, e que se tornou uma força dominante perto do fim do século  
com a ascensão do estágio imperialista do capitalismo. Para Lukács, o irracionalismo,  
incluindo sua coalescência final com o nazismo, não constituiu um desenvolvimento  
fortuito, mas, sim, um produto do próprio capitalismo. Lichtheim respondeu acusando  
Lukács de ter cometido um “crime intelectual” ao traçar ilegitimamente uma conexão  
entre o irracionalismo filosófico (associado a pensadores como Arthur Schopenhauer,  
***  
No texto, as inserções entre parênteses e colchetes são da autoria de Foster, e as inserções entre  
chaves são da tradutora e/ou do revisor.  
2 George Lichtheim, “An Intellectual Disaster”, Encounter (May 1963): 74-79. Lichtheim estava revisando  
ostensivamente The Meaning of Contemporary Realism (London: Merlin Press, 1963), de Georg Lukács.  
3
Rodney Livingston, Perry Anderson, e Francis Mulhern, “Presentation IV,” in Theodor Adorno, Walter  
Benjamin, Bertolt Brecht, e Georg Lukács, Aesthetics and Politics (London: Verso, 1977), 142-150;  
Theodor Adorno, “Reconciliation Under Duress,” in Adorno, Benjamin, Brecht, e Lukács, Aesthetics and  
Politics, 152-154; István Mészáros, The Power of Ideology (New York: New York University Press, 1989),  
118-119 [Ed. bras.: Mészáros, I. O poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, pp. 181-182].  
Adorno afirmou que “A Destruição da Razão... revelou muito claramente a destruição da razão do  
próprio” Lukács. Ele falsamente alegou que no livro “Nietzsche e Freud são simplesmente rotulados  
como Fascistas”, – apesar do fato de que Nietzsche é abordado por Lukács em termos do irracionalismo  
filosófico, o que não constitui em si mesmo fascismo, enquanto Freud mal é mencionado no livro, e,  
quando o é, não é de forma negativa. Adorno, “Reconciliation Under Duress”, 152.  
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Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, Georges Sorel, Oswald Spengler, Martin Heidegger  
e Carl Schmitt) e a ascensão de Adolf Hitler4.  
Lukács, de forma provocativa, iniciou seu livro afirmando que “o tema que se nos  
apresenta é, pois, este: o caminho seguido pela Alemanha, no terreno da filosofia, até  
chegar a Hitler”. Mas sua crítica era, de fato, muito mais ampla, vendo o irracionalismo  
como relacionado ao estágio imperialista do capitalismo de modo geral. Logo, o que  
mais indignou os críticos de Lukács no Ocidente no início dos anos 1960 foi sua  
sugestão de que o problema da destruição da razão não havia desaparecido com a  
derrota histórica do fascismo, mas que continuava nutrindo tendências reacionárias,  
ainda que mais veladamente, na nova era da Guerra Fria dominada pelo império dos  
EUA. “Os pesadelos de Franz Kafka”, acusou Lichtheim, foram tratados por Lukács  
como evidência do “’caráter diabólico do mundo do capitalismo moderno’”, agora  
representado pelos Estados Unidos5. No entanto, o argumento de Lukács a esse  
respeito era irrefutável. Assim, ele escreveu, em termos significativos ainda hoje:  
A Constituição dos Estados Unidos foi desde o princípio, ao contrário  
da alemã, uma Constituição democrática, e a classe dominante havia  
conseguido ali, especialmente durante o período imperialista,  
consolidar as formas democráticas de tal modo que se pudesse  
assegurar, com os meios da legalidade democrática, uma ditadura do  
capital monopolista pelo menos tão vigorosa quanto a que Hitler havia  
conquistado com seus procedimentos tirânicos. As prerrogativas do  
presidente dos Estados Unidos, o poder de decisão da Suprema Corte  
em matéria constitucional (e depende sempre do capital monopolista  
que um problema seja ou não considerado como tal), o monopólio  
financeiro sobre a imprensa, o rádio etc., os enormes gastos eleitorais  
que impedem eficazmente a formação e o funcionamento de partidos  
democráticos reais, ao lado dos já tradicionais que representam o  
monopólio capitalista e, finalmente, o emprego de meios terroristas (o  
sistema de Lynch), tudo isso contribui para criar uma “democracia”  
que funciona dentro da normalidade, e que pode obter de fato, sem  
romper formalmente com a democracia, tudo aquilo a que Hitler  
aspirava. Acrescente-se a isso a base econômica incomparavelmente  
mais extensa e mais sólida do capitalismo monopolista nos Estados  
4
Lichtheim, “An Intellectual Disaster”, 78-79; Lichtheim citado em Árápad Kadarkay, “Introduction:  
Philosophy and Politics,” in Georg Lukács, The Lukács Reader, ed. Árápad Kadarkay (Oxford: Blackwell,  
1995), 215. Deve-se salientar que, ao passo que Kadarkay cita Lichtheim aqui e também em sua  
biografia de Lukács referindo-se à Destruição da Razão enquanto um “crime intelectual”, não é possível  
encontrar esta afirmação na página do volume da Encounter que Kadarkay cita nas duas ocasiões, e  
que outros citam por meio de Kadarkay. Entretanto, como Lichtheim claramente se refere, em outro  
volume da Encounter, ao trabalho de Lukács desse período como um “desastre intelectual” e uma  
“catástrofe intelectual”, o “crime intelectual” possui um toque de verdade.  
5
Lichtheim, “An Intellectual Disaster”, 76. Apesar da impressão deixada por Lichtheim, Lukács não  
aludiu a “pesadelos de Kafka” em seu livro. As temidas citações em torno da frase mencionada são do  
próprio Lichtheim, já que Lukács não fez tal declaração.  
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Unidos6.  
Nestas circunstâncias, o irracionalismo e os “pontos culminantes do desprezo  
cínico pelo homem”, insistia Lukács, eram “uma consequência ideológica necessária da  
estrutura e das possibilidades de ação do imperialismo americano”7. Esta afirmação  
chocante a respeito da existência de uma continuidade na relação entre imperialismo  
e irracionalismo, estendendo-se ao longo de um século inteiro, desde o fim do século  
XIX, passando pelo fascismo e continuando no novo império da OTAN dominado pelos  
Estados Unidos, foi fortemente rejeitada na época por muitos dos associados a  
tradição filosófica do Marxismo Ocidental. Foi sobretudo isso, portanto, que levou à  
quase completa rejeição da obra posterior de Lukács (depois de História e Consciência  
de Classe, de 1923) pelos pensadores de esquerda que trabalhavam em conjunto com  
o novo liberalismo pós-Segunda Guerra Mundial.  
Entretanto, A Destruição da Razão não foi objeto de uma crítica sistemática por  
parte de seus opositores, o que teria significado confrontar as questões cruciais que  
o livro levantava. Em vez disso, a obra foi rejeitada de forma difamatória pela esquerda  
Ocidental, segundo a qual constituía uma “perversão deliberada da verdade”, uma  
“diatribe de 700 páginas” e um “tratado estalinista”8. Como um comentador observou  
recentemente, “a sua recepção poderia ser resumida por algumas sentenças de morte”  
emitidas contra a obra por importantes Marxistas Ocidentais9.  
Ainda assim, era inegável a dimensão do empreendimento representado por A  
Destruição da Razão enquanto uma crítica das principais tradições do irracionalismo  
ocidental feita pelo, então, mais estimado filósofo marxista do mundo. Em vez de tratar  
os vários sistemas de pensamento irracionalistas de meados do século XIX a meados  
do século XX como se tivessem simplesmente caído do céu, Lukács relacionou-os com  
os desenvolvimentos históricos e materiais dos quais emergiram. Nesse caso, o seu  
argumento baseou-se, em última análise, em Imperialismo, estágio superior do  
6 Lukács, The Destruction of Reason, 770 [Ed. bras.: p. 667].  
7 Lukács, The Destruction of Reason, 792-93 [Ed. bras.: p. 686].  
8
Árápad Kadarkay, Georg Lukács: Life, Thought and Politics (Oxford: Blackwell, 1991), 421-423;  
Lichtheim, “An Intelectuall Disaster”, 76.  
9
Enzo Traverso, “Dialectic of Irrationalism,” introdução in Georg Lukács, The Destruction of Reason  
(London: Verso, 2021), 10. A introdução de Traverso à recém reimpressa edição da Verso de A  
Destruição da Razão leva adiante, ao invés de romper com, esses ataques iniciais feitos por marxistas  
ocidentais ao livro, fazendo com que sua introdução seja, em grande medida, uma anti-introdução, mais  
característica da época inicial da Guerra Fria.  
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capitalismo, de V. I. Lênin10. O irracionalismo foi, portanto, identificado, como em Lênin,  
principalmente com as condições histórico-materiais da era do capitalismo  
monopolista, a divisão do mundo inteiro entre as grandes potências e as lutas  
geopolíticas pela hegemonia e por esferas de influência. Isto manifestou-se numa  
rivalidade econômico-colonial entre vários Estados capitalistas, colorindo todo o  
contexto histórico no qual emergiu o novo estágio imperialista do capitalismo.  
Hoje em dia, essa realidade material fundamental persiste em muitos aspectos,  
mas foi de tal forma modificada sob o império global dos EUA que se pode dizer que  
surgiu uma nova fase, a do imperialismo tardio, que remonta ao fim da Segunda Guerra  
Mundial, incorporando-se imediatamente à Guerra Fria e perpetuando-se, após um  
breve interregno, na Nova Guerra Fria dos nossos dias. O imperialismo tardio, neste  
sentido, corresponde cronologicamente ao fim da Segunda Guerra Mundial, à  
emergência da era nuclear e ao início da Época do Antropoceno da história geológica,  
que marcou o advento da crise ecológica planetária. A consolidação do capital  
monopolista global (mais recentemente do capital monopolista-financeiro) e a luta dos  
Estados Unidos apoiado pelo imperialismo coletivo da tríade Estados Unidos/Canadá,  
Europa e Japão pela supremacia global em um mundo unipolar correspondem a essa  
fase do imperialismo tardio11.  
Para a própria esquerda ocidental, a história do imperialismo tardio tem sido  
marcada, sobretudo, pela derrota das revoltas de 1968, seguida pelo desaparecimento  
das sociedades de tipo soviético após 1989, o que teve como uma de suas principais  
consequências o colapso da social-democracia ocidental. Tais acontecimentos  
colocaram o conjunto da esquerda ocidental em uma posição enfraquecida, definida,  
em última análise, pela sua subordinação geral aos parâmetros mais amplos do projeto  
imperialista centrado nos Estados Unidos e pela sua recusa em alinhar-se com a luta  
anti-imperialista, garantindo, assim, a sua irrelevância revolucionária12.  
10  
V. I. Lenin, Imperialism, the Highest Stage of Capitalism (New York: International Publishers, 1939)  
[Ed. bras.: Lênin, V. I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021]. O  
argumento de Lênin não foi diretamente analisado no livro de Lukács, mas, contudo, constituiu a base  
concreta de todo o argumento, já que o imperialismo, nos termos de Lênin, foi um ponto de referência  
constante.  
11  
Sobre imperialismo tardio, ver John Bellamy Foster, “Late Imperialism,” Monthly Review 71, no. 3  
(July-August 2019): 1-19; Zhun Xu, “The Ideology of Late Imperialism,” Monthly Review 72, no. 10  
(March 2021): 1-20. Sobre o imperialismo coletivo da tríade, ver Samir Amin, “Contemporary  
Imperialism,” Monthly Review 67, no. 3 (July-August 2015): 23-36.  
12  
Ver Xu, “The Ideology of Late Imperialism; Paweł Wargan, “NATO and the Long War on the Third  
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John Bellamy Foster  
Nesse ponto, é essencial reconhecer que o principal campo de batalha do império  
americano ao longo de todo esse período, que remonta ao fim da Segunda Guerra  
Mundial, tem sido o Sul Global. As guerras e intervenções militares principalmente  
instigadas por Washington têm sido quase incessantes em resposta a revoluções e  
lutas de libertação nacional, a maioria das quais inspiradas pelo marxismo, que  
ocorreram ao longo do período neocolonial/pós-colonial. Embora o desenvolvimento  
econômico tenha emergido nas últimas décadas em algumas partes do Terceiro  
Mundo, a intensidade da exploração/expropriação das economias da periferia do  
sistema, no seu conjunto, aumentou sob o capital monopolista-financeiro globalizado,  
por meio da arbitragem global do trabalho* e da peonagem por dívida, com o resultado  
de que a polarização do sistema mundial entre países ricos e pobres também  
aumentou. A atual luta imperial ou Nova Guerra Fria iniciada por Washington,  
destinada a assegurar o mundo unipolar liderado pelos EUA, continua centrada no  
controle do Sul Global, o que hoje também exige o enfraquecimento fatal das grandes  
potências euroasiáticas Rússia e China, que ameaçam uma ordem multipolar rival,  
contestando o sistema unipolar dos EUA.  
Nesse clima perigoso e destrutivo do imperialismo tardio, o irracionalismo  
passou a desempenhar um papel crescente na constelação do pensamento.  
Inicialmente, isso assumiu a forma relativamente branda de um pós-modernismo e pós-  
estruturalismo desconstrutivistas, que, na obra de pensadores como Jean-François  
Lyotard e Jacques Derrida, puseram de lado todas as grandes narrativas históricas, ao  
mesmo tempo que abraçaram um anti-humanismo filosófico que emanava  
principalmente de Heidegger. Em contraste, as novas filosofias da imanência –  
associadas ao pós-humanismo, ao novo materialismo vitalista, à teoria do ator-rede e  
à ontologia orientada para o objeto constituem um irracionalismo mais profundo,  
representado por figuras supostamente de esquerda como Gilles Deleuze, Félix  
Guattari, Bruno Latour, Jane Bennett e Timothy Morton. Estes pensadores recorrem  
diretamente a uma linhagem intelectual irracionalista e antimodernista que remonta ao  
antimodernismo reacionário de Nietzsche, Bergson e Heidegger. O filósofo lacaniano-  
World,” Monthly Review 74, no. 8 (January 2023): 16-32.  
*
O sentido geral da expressão “global labor arbitrage” é a busca que as empresas empreendem no  
mercado mundial para obter vantagens baseadas no diferencial de preço da força de trabalho entre  
diferentes regiões do planeta por meio, por exemplo, de subcontratações, migração de trabalhadores  
sob contratos especiais de trabalho entre outros expedientes.  
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hegeliano Slavoj Žižek acabou por tomar partido pela tradição anti-humanista  
proveniente do heideggerianismo de esquerda, o que gerou em sua obra um carnaval  
de irracionalismo. Todas essas várias tendências estão associadas ao ceticismo, ao  
niilismo e a uma perspectiva pessimista de fim do mundo.  
Escrevendo sobre “O Sistema Irracional” no capítulo final de Capitalismo  
Monopolista (1966), Paul A. Baran e Paul M. Sweezy exploraram a destruição da razão  
que tinha passado a impregnar todos os aspectos do capitalismo monopolista, desde  
a irracionalidade do sistema econômico até à sua destrutividade elementar da vida  
social. Apontaram, assim, para “a contradição entre a crescente racionalidade dos  
métodos de produção da sociedade e as organizações que os encerram, de um lado,  
e a inalterada elementaridade [e irracionalidade] no funcionamento e percepção do  
todo, de outro”13. “O ponto crucial dos pontos cruciais” do “insight marxiano”,  
escreveu Baran numa carta a Sweezy, era que a força motriz da revolução de classes  
era sempre “a identidade dos interesses e necessidades materiais de uma classe com...  
a crítica por meio da RAZÃO à irracionalidade existente”14. O irracionalismo na cultura  
burguesa tinha, portanto, como principal objetivo separar qualquer classe  
potencialmente revolucionária do domínio da crítica racional, substituindo-a pelo  
instinto, pelo mito e pelo contínuo vômito da razão, como no Homem Subterrâneo de  
Fiódor Dostoiévski (em Notas do Subterrâneo)15. Tudo isso estava ligado material e  
ideologicamente ao imperialismo, à barbárie e ao fascismo.  
Na concepção de Baran, as análises que perseguiam a razão uma vez divorciada  
de conexões com a realidade material e a classe assumiam uma forma puramente  
"ideacional". Disso resultou que a defesa da razão não em um sentido puramente  
ideacional, mas ligada às forças materiais reais indicadas era uma parte indispensável  
da luta socialista; uma parte que era mais importante do que nunca na era irracional  
do capitalismo monopolista e do imperialismo. Por isso, expor a dialética do  
13  
Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 1966), 338,  
341 [Ed. bras.: Baran, P.; Sweezy, P. Capitalismo Monopolista: ensaio sobre a ordem econômica e social  
americana. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 337].  
14  
Paul A. Baran to Paul M. Sweezy, February 03, 1957 in Paul A. Baran and Paul M. Sweezy, The Age  
of Monopoly Capital (New York: Monthly Review Press, 2017), 154.  
15  
Fyodor Dostoevsky, Notes from Underground (New York: Vintage, 1993), 13; Paul A. Baran, The  
Longer View (New York: Monthly Review Press, 1969), 104. A frase “vômito da razão” é extraída da  
interpretação de Baran sobre a rejeição pelo Homem do Subsolo das “leis da natureza” e “duas vezes  
dois é quatro”, por meio da qual o protagonista da novela de Dostoievsky, segundo Baran, “vomita  
razão”.  
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irracionalismo e do imperialismo que se desenrola no nosso tempo uma época em  
que o desenvolvimento das forças produtivas já não serve para disfarçar a  
destrutividade do sistema capitalista global que agora ameaça toda a humanidade –  
tem de ser um objetivo primordial da esquerda.  
O irracionalismo na história  
O irracionalismo no final do século XIX e início do século XX foi uma corrente  
bem conhecida da filosofia europeia, inspirando-se numa ênfase na vontade de  
vida/vontade de poder, nos instintos, na intuição, nos mitos e nos princípios da  
filosofia da vida*, bem como em um profundo pessimismo social em oposição à  
anterior ênfase iluminista no materialismo, na razão, na ciência e no progresso. A  
corrente assumiu a forma de um movimento profundamente reacionário que era  
virulentamente anti-humanista, antidemocrático, anticientífico, antissocialista e  
antidialético, bem como, frequentemente, racista e misógino. Algumas das principais  
figuras da virada irracionalista no período 1848-1932 incluíam Schopenhauer, Eduard  
von Hartmann, Nietzsche, Sorel, Spengler, Bergson, Heidegger e Schmitt16.Tal  
irracionalismo filosófico representava a generalização intelectual de influências  
históricas mais amplas em ocorrência na sociedade dominante. Por isso, muitas vezes  
faltam relações de causalidade diretas entre tal corrente e os movimentos reacionários.  
No entanto, é inegável a conexão geral entre essas tendências ideais e a eventual  
emergência do fascismo, e particularmente do nazismo, na Europa. Sorel professou a  
sua admiração por Benito Mussolini17. Heidegger e Schmitt foram ideólogos e  
funcionários nazistas. Ninguém menos do que Hitler capturou o espírito da  
irracionalidade presente à época, quando declarou: “Estamos no fim da Idade da  
Razão... Surge uma nova era de explicação mágica do mundo, uma explicação baseada  
na vontade, em vez de no conhecimento. Não há verdade, nem no sentido moral nem  
* Na tradução para o inglês de A destruição da razão, Lebensphilosophie recebeu o equivalente vitalism.  
Para acompanhar o sentido empregado por Lukács, adotou-se preferencialmente filosofia da vida,  
conforme edição brasileira. O mesmo se aplica a filósofo da vida para vitalist e variantes. Em alguns  
casos, nos quais Foster estabelece um diálogo com o chamado “novo materialismo” e remete ao sentido  
da atribuição de “poderes vitais” à totalidade dos seres, foi mantido vitalismo e variantes. No entanto,  
Foster emprega os termos sem diferenciação.  
16  
Sobre irracionalismo, ver Lukács, A Destruição da Razão; Herbert Aptheker, “Imperialism and  
Irrationalism,” Telos 4 (1969): 168-75; Étienne Balibar, “Irrationalism and Marxism,” New Left Review  
I:107 (January-February 1978): 3-18; Frederick Copleston, A History of Philosophy, vol. 7, Part II,  
Modern Philosophy: Schopenhauer a Nietzsche (Garden City, New York: Doubleday, 1963);  
Irrationalism,” [Encyclopedia] Britannica, sem data, britannica.com.  
17 James H. Meisel, “A Premature Fascist? Sorel and Mussolini,” The Western Political Quarterly 3, no. 1  
(March 1950): 26; H. Stuart Hughes, Consciousness and Society (New York: Vintage, 1958), 162.  
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O novo irracionalismo  
no científico”18.  
Ao abordar o problema do irracionalismo em uma perspectiva marxista, Lukács,  
em A Destruição da Razão, traçou as suas raízes históricas na derrota das revoluções  
burguesas de 1848, seguida pela emergência do estágio imperialista do capitalismo  
no último quarto do século XIX, que conduziu à Primeira e Segunda Guerras Mundiais.  
“A própria razão”, argumentou, “não é algo que paira acima do desenvolvimento social  
de modo apartidário e neutro; pelo contrário, ela reflete sempre a racionalidade (ou  
irracionalidade) concreta de uma dada situação social, de uma dada direção do  
desenvolvimento histórico e, ao lhe dar clareza conceitual, promove ou retarda esse  
desenvolvimento”19. Trata-se da crítica imanente, baseada no escrutínio das moventes  
condições históricas, que constitui a essência do método dialético marxiano na análise  
do desenvolvimento do pensamento.  
Para Lukács, Schopenhauer foi o criador da “modalidade puramente burguesa do  
irracionalismo”20. A sua magnum opus, O Mundo como Vontade e Representação,  
publicada em 1819, foi dirigida contra a filosofia hegeliana. Schopenhauer tentou opor  
o seu idealismo subjetivo da vontade ao idealismo objetivo da razão de G. W. F. Hegel.  
Ao fazê-lo, chegou até a programar, na década de 1820, as suas conferências em  
Berlim em oposição às de Hegel, mas em vão, pois foi incapaz de atrair audiência. Foi  
apenas com a derrota das revoluções de 1848 na Alemanha que o clima geral se  
alterou a seu favor. A este ponto, a burguesia alemã modificou seu alinhamento  
intelectual, deixando Hegel e Ludwig Feuerbach e passando a Schopenhauer, que, na  
última década de sua vida, alcançou uma aclamação generalizada21.  
A genialidade de Schopenhauer, segundo Lukács, consistiu em ter sido o pioneiro  
do método da “apologética indireta”, mais tarde aperfeiçoado por Nietzsche. As  
anteriores apologéticas da ordem burguesa haviam procurado defendê-la diretamente,  
apesar de suas múltiplas contradições. Já no novo método de Schopenhauer da  
apologética indireta, o lado mau do capitalismo (e até mesmo as suas contradições)  
18  
Hitler citado por Herman Raushning, Gespräche mit Hitler (New York: Europa Verlag, 1940), 210,  
traduzido em Gerald Holton, “Can Science Be at the Centre of Modern Culture?, Public Understanding  
of Science 2 (1993): 302. Para uma tradução ligeiramente diferente, ver Herman Raushning, Voice of  
Destruction (New York: G. P. Putnam’s Sons, 1940), 222-223.  
19 Lukács, The Destruction of Reason, 5 [Ed. bras.: p. 11].  
20 Lukács, The Destruction of Reason, 192 [Ed. bras.: p. 172].  
21  
Copleston, Schopenhauer to Nietzsche, 27; Lukács, The Destruction of Reason, 193-198 [Ed. bras.:  
pp. 173-178].  
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podia ser trazido à tona. Estes elementos nunca eram atribuídos ao sistema capitalista,  
mas, sim, ao egoísmo, aos instintos e à vontade, percebendo a existência humana, em  
termos profundamente pessimistas, como um processo de autodissolução conduzido  
por vícios22. O conceito de Schopenhauer de vontade, ou vontade de vida, atribuído  
por ele à toda a existência, tomava, assim, a forma de um egoísmo cósmico. Ao reduzir  
tudo, em última instância, à pura vontade, a filosofia de Schopenhauer, escreveu  
Lukács, “antropomorfiza a natureza em seu todo”. A vontade, para Schopenhauer,  
englobava as coisas-em-si (numenon) de Immanuel Kant, para além da percepção  
humana. “Tenho de reconhecer”, declarou Schopenhauer, [que a vontade] “Aparece em  
cada força da natureza que faz efeito cegamente, na ação ponderada do ser humano;  
se ambas diferem {vontade e objetividade}, isso concerne tão somente ao grau da  
aparição, não à essência do que aparece”23  
A noção de vontade de Schopenhauer foi, talvez, mais bem revelada pela sua  
resposta à famosa afirmação de Baruch Spinoza de que uma pedra em queda, se fosse  
consciente, pensaria que era dotada de livre-arbítrio e que o seu impulso era um  
produto da sua própria vontade um argumento concebido para refutar a noção de  
livre-arbítrio. Schopenhauer inverteu o sentido dado por Spinoza e declarou: “A pedra  
teria razão. O choque é para ela o que para mim é o motivo. O que nela aparece como  
coesão, gravidade, rigidez no estado adquirido é, segundo essência íntima, o mesmo  
que reconheço em mim como vontade, e que a pedra, se adquirisse conhecimento,  
também reconheceria como vontade”24. Para Schopenhauer, o “materialismo vulgar”  
simplesmente negava a imanência dessas “forças vitais” que eram idênticas à vontade  
de vida, para além das quais não existia “nada25.  
O fim do século XIX foi um período associado, em parte, ao crescimento do  
22 Lukács, The Destruction of Reason, 204-208 [Ed. bras.: pp. 181-185].  
23  
Arthur Schopenhauer, The World as Will and Idea, vol. 3 (London: Trübner, 1883), 164 [Ed. bras.:  
Schopenhauer, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005, pp. 168-  
9]; Lukács, The Destruction of Reason, 225 [Ed. bras.: p. 198]. A atribuição de Schopenhauer da vontade  
à toda a existência pareceria menos fantástica a seus leitores, em seus dias, do que é o caso hoje. Como  
notou criticamente o grande geólogo Georges Curvier no seu famoso “Preliminary Discourse” em seu  
Researchers on Fossil Bones, de 1812, alguns cientistas do início do século XIX, incluindo o  
mineralogista Eugène Patron, atribuíram a “mais elementar molécula... um instinto, uma vontade”  
Georges Curvier, Fossil Bones, and Geological Catastrophes, ed. Martin J. S. Rudwick (Chicago: University  
of Chicago Press, 1997), 201.  
24  
“From Baruch Spinoza’s ‘Letter to G. H. Schuller’ (1674),” Explanitia (blog), October 3, 2018,  
explanatia.wordpress.com; Schopenhauer, The World as Will and Idea, vol. 3, 164 [Ed. bras.: p. 187].  
Lukács, The Destruction of Reason, 225-27 [Ed. bras.: pp. 198-200].  
25  
Schopenhauer, The World as Will and Idea, vol. 3, 159, 165-166, 531-532 [Ed bras.: p. 163, pp.  
170-173, pp. 537-538]; Lukács, The Destruction of Reason, 225 [Ed. bras.: p. 198].  
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neokantismo na filosofia, começando com a obra The History of Materialism and  
Critique of Its Present Importance (1866), de Friedrich Lange, que procurou derrubar  
todas as tendências materialistas particularmente, o materialismo histórico de Karl  
Marx26. Porém, ainda mais influente e voltado a nova era imperialista foi o  
irracionalismo enquanto tendência filosófica geral. O principal seguidor de  
Schopenhauer (para além de Nietzsche, sobre quem exerceu uma influência  
considerável), e uma figura dominante do irracionalismo filosófico no fim do século  
XIX, foi Eduard von Hartmann, com o seu enorme volume, The Philosophy of the  
Unconscious (1869). Pensador mais eclético do que Schopenhauer, Hartmann  
professava reunir o otimismo de Hegel com o pessimismo de Schopenhauer. Mas foi  
o profundo pessimismo e irracionalismo da obra de Hartmann que mais impressionou  
os leitores da época, marcado especialmente pela sua noção de suicídio cósmico.  
Na visão de Hartmann, este era o melhor dos mundos possíveis, mas a não  
existência era superior à existência. Consequentemente, ele acreditava que, em algum  
momento, a vontade, ou “Espírito Inconsciente”, ficaria tão envolta na espécie humana  
“no auge de seu desenvolvimento” que levaria a um suicídio cósmico, levando a um  
“fim temporal” todo o processo mundial, resultando no “último dia”. A este ponto, “a  
negação humana da vontade” iria “aniquilar toda a volição atual do mundo sem  
resíduos e faria desaparecer todo o cosmos em um só golpe pela retirada da volição,  
a única que lhe dá existência”. O fim da humanidade não tomaria a forma de um  
“apocalipse” tradicional, vindo de fora, mas emanaria do suicídio da vontade,  
estendendo-se ao universo como um todo27.  
Nietzsche morreu em 1900. A data era significativa, uma vez que, na visão de  
Lukács, Nietzsche foi o “fundador do irracionalismo no período imperialista”, que  
estava, então, apenas a começar. O estágio imperialista ou monopolista do capitalismo,  
na teoria marxista, começou no último quarto do século XIX, mas, em termos da vida  
e da obra de Nietzsche, apenas eram visíveis “os germes e princípios daquilo que  
estava por vir” a esse respeito. A genialidade de Nietzsche consistiu em,  
instintivamente, antecipar o que estava por vir, e em desenvolver o método do  
26 Friedrich Lange, The History of Materialism (New York: Humanities Press, 1950).  
27  
Eduard von Hartmann, Philosophy of the Unconscious, vol. 3 (London: Kegan, Paul, Trench, and  
Trübner, 1893) 131-36; Copleston, Schopenhauer to Nietzsche, 57-59; Thomas Moynihan, X-Risk: How  
Humanity Discovered Its Own Extinction (Falmouth, UK: Urbanomic Media, 2020), 273-78; Lukács, The  
Destruction of Reason, 409 [Ed. bras.: p. 356]; Frederick C. Beiser, After Hegel: German Philosophy,  
1840-1900 (Princeton: Princeton University Pres, 2016), 158-216.  
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irracionalismo para a nova era do império a partir de análises cuja “forma mistificadora”  
tornava-se ainda mais obscura pelo uso frequente de aforismos. É isso que explica a  
natureza hipnotizante do estilo literário de Nietzsche, que era ao mesmo tempo um  
meio de aperfeiçoar a apologética indireta28. Tudo em Nietzsche é apresentado de  
forma nebulosa, de modo que, ao mesmo tempo em que o todo da orientação político-  
social de sua filosofia não é posto em dúvida, também originam-se discussões  
intermináveis decorrentes do seu carácter mítico, convidando a imitadores e  
estabelecendo a forma dominante pela qual o irracionalismo filosófico é levado a cabo  
até hoje.  
Resumindo a caracterização principal da filosofia de Nietzsche, Lukács escreveu:  
Quanto mais ficcional e subjetiva for a origem de um conceito, tanto  
mais elevado seu status, tanto mais será visto como “verdadeiro”  
dentro da hierarquia mítica. O ser, por mais imperceptíveis que sejam  
os traços de sua relação com  
a
realidade existente  
independentemente da nossa consciência, deve ser necessariamente  
substituído pelo devir (que é uma representação). O ser, entretanto,  
depois de depurado de todas essas impurezas, concebido como pura  
ficção, como puro produto da Vontade de Poder, também pode se  
tornar, para Nietzsche, uma categoria superior ao devir enquanto  
expressão da pseudo-objetividade intuitiva do mito. A função  
particular dessa determinação do devir e do ser, em Nietzsche, serve  
para preservar a pseudo-historicidade indispensável à sua apologética  
indireta e, ao mesmo tempo, para superá-la, para confirmar,  
filosoficamente, o fato de que o devir da história não pode produzir  
nada de novo e para além do capitalismo29.  
No entanto, apesar de todo o brilhantismo e mesmo atração da filosofia de  
Nietzsche, o seu carácter sistematicamente reacionário e irracionalista não pode ser  
negado. No final de seu O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer tinha  
declarado que a vontade de viver era tudo, para além da qual não havia nada.  
Nietzsche, em uma passagem sobre Schopenhauer, pronunciou-se de forma célebre:  
Este mundo é a vontade de poder e nada além disso! E também vós mesmos sois  
essa vontade de poder e nada além disso”30.  
Em Além do Bem e do Mal (1886), Nietzsche, em oposição ao marxismo,  
escreveu:  
A vida é essencialmente uma apropriação, uma violação, uma sujeição  
28 Lukács, The Destruction of Reason, 309, 319-21 [Ed. bras.: p. 280, pp. 300-304].  
29 Lukács, The Destruction of Reason, 388-89 [Ed. bras.: p. 344].  
30  
Friedrich Nietzsche, The Will to Power (New York: Vintage, 1967), 550 [Ed. bras.: Nietzsche, F.  
Vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 513].  
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de tudo aquilo que é estranho e fraco, significa opressão, rigor,  
imposição das próprias formas, assimilação, ou pelo menos, na sua  
forma mais suave, um aproveitamento... [se] represente um corpo vivo  
e não um corpo moribundo... essa deverá ser a vontade de dominação,  
desejará crescer, aumentar, atrair, adquirir predomínio não já pela  
moralidade ou imortalidade, mas unicamente porque vive e porque a  
vida é a vontade de potência. Mas em nenhum outro ponto além disso  
a consciência dos europeus é geralmente mais esquiva a toda  
sugestão, desvanece-se, assim, até mesmo sob roupagens científicas,  
de um estado social vindouro que não terá o “caráter da fruição”* –  
ouço isso, como se alguém prometesse inventar uma vida que devesse  
abster-se das funções orgânicas. A "fruição" não é um indício, o caráter  
de uma sociedade corrupta ou imperfeita e primitiva; isto é uma parte  
íntima da essência de tudo aquilo que vive, porque não é uma função  
orgânica, uma consequência da verdadeira vontade de dominar, que  
não é outra coisa que a vontade de viver31.  
Aqui, Nietzsche mistura a apropriação que, na teoria política clássica e na obra  
de pensadores tão diversos quanto John Locke, Hegel e Marx, significava o processo  
de aquisição de propriedade (e que, para Marx, envolvia, em última análise, a produção)  
com a exploração efetiva. Não obstante, no emprego de Nietzsche, exploração não  
era diferente de expropriação (isto é, apropriação sem equivalente ou reciprocidade).  
Assim, como em um truque de mágica, a apropriação, que é a base da vida, passa a  
ser equiparada à exploração/expropriação, que não é essencial à existência, fechando,  
assim, qualquer noção de um futuro igualitário ou humano. Além disso, Nietzsche  
acaba por fundamentar a sua visão num determinismo biológico, que, como nos diz,  
constitui a “essência” da “vontade de poder”. Deste modo, o seu essencialismo em  
relação à natureza humana difere do de Thomas Hobbes apenas na medida em que  
este último, no contexto histórico do século XVII, era um pensador progressista ao  
invés de regressivo32.  
Os escritos de Nietzsche exibem ataques intermináveis ao socialismo e até  
mesmo à democracia. “O socialismo”, escreveu ele, era “a tirania pensada até as últimas  
consequências dos mais miúdos, dos mais tolos, dos mais superficiais, dos invejosos,  
*
Na edição brasileira, exploitation ganhou o sentido de “aproveitamento” e “fruição”, e exploitative  
aspect o de “caráter da fruição” – o que prejudica o argumento de Foster, uma vez que, no parágrafo  
seguinte, o autor retoma o termo exploitation, no sentido de “exploração”. Optamos por seguir a edição  
brasileira, mas fazer a ressalva.  
31  
Friedrich Nietzsche, Beyond Good and Evil (New York: Vintage, 1966), 203 [Ed. bras.: Nietzsche, F.  
Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras (edição de bolso), 2005, pp. 194-5].  
32  
Lukács, The Destruction of Reason, 361 [Ed. bras.: p. 331]. Sobre Hobbes, ver István Mészáros,  
Beyond Leviathan (New York: Monthly Review Press, 2022), 42-44 [Ed. bras.: Mészáros, I. Para Além  
do Leviatã. São Paulo: Boitempo, 2021, pp. 74-77].  
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dos setenta e cinco por cento atores – é de fato a conclusão das “ideias modernas”33**.  
Em uma deturpação do darwinismo, do qual se apropriou na forma de um mero clichê  
a partir das linhas do darwinismo social, o autor argumentou que, em vez da  
sobrevivência dos mais aptos, a sociedade europeia era caracterizada pela  
sobrevivência dos inadequados. Segundo esse ponto de vista, as massas medíocres  
ou “animais de rebanho”, fortalecidos por constituírem a maioria, estavam a tomar  
conta da sociedade, retirando desta seus elementos mais “nobres”, de modo que eram,  
justamente, os espíritos nobres que precisavam ser protegidos por meio da força34.  
Nietzsche escreveu que “mesmo sendo verdade que os gregos sucumbiram por causa  
da escravidão, não é menos verdade que nós sucumbiremos pela falta de escravidão”.  
Detestando a sociedade burguesa, mas detestando ainda mais a democracia e o  
socialismo, Nietzsche declarou: “Fantasmas como os da dignidade do homem, da  
dignidade do trabalho, são os produtos miseráveis da escravidão que se esconde de  
si mesma”35.  
A sociedade moderna, para Nietzsche, interferiu na hierarquia natural das raças:  
“a nossa Europa é em nossos dias teatro de uma tentativa insensatamente repentina  
de mistura radical ... de raças36. Isso exigiu a reafirmação da “raça superior”, que ele  
descreveu em termos “arianos”, como ligada à “besta germânica loira” que se encontra  
“no centro de toda raça nobre”. Em contraste, “hoje é até evidente, estes ''heróis'' da  
baixeza e do ódio, estes resíduos da escravidão europeia e não europeia,  
principalmente da população pre-ária, representam o retrocesso da humanidade!”37.  
Regozijando-se com a derrota da Comuna de Paris, Nietzsche referiu-se a ela  
como a “forma social mais primitiva”, uma vez que representava os interesses do  
33 Nietzsche, The Will to Power, 25, 77 [Ed. bras.: pp. 43-44, pp. 87-88]. Nietzsche, Beyond Good and  
Evil, 118 [Ed. bras.: p. 117].  
** Esta citação está maior do que a usada originalmente por Foster para que seja possível seguir a edição  
brasileira sem prejudicar o argumento do autor.  
34 Nietzsche, The Will to Power, 33, 78, 364-65, 397-98 [Ed. bras.: pp. 50-1, pp. 88-9, pp. 346-8, pp.  
376-8]; Nietzsche, Beyond Good and Evil, 11011, 115 [Ed. bras.: pp. 110-11, p. 115]; Friedrich  
Nietzsche, Twilight of the Idols (Indianapolis: Hackett Publishing Co., 1997), 41 [Ed. bras.: Nietzsche, F.  
Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 46-7].  
35 Nietzsche quoted in Lukács, The Destruction of Reason, 327 [Ed. bras.: p. 286].  
36 Nietzsche, Beyond Good and Evil, 111 [Ed. bras.: p. 127].  
37  
Friedrich Nietzsche, On the Genealogy of Morality (Cambridge: Cambridge University Press, 2007),  
23-24, 33 [Ed. bras.: Nietzsche, F. Genealogia da moral. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, pp. 43-4, pp.  
55-6]. Estranhamente, Deleuze vê a concepção de Super-Homem de Nietzsche como o triunfo final  
deste sobre a dialética de Hegel. Gilles Deleuze, Nietzsche and Philosophy (New York: Columbia  
University Press, 1983), 147-94 [Ed. bras.: Deleuze, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora  
Rio, 1976, pp. 123-161].  
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O novo irracionalismo  
rebanho. Preocupava-se com o destino trágico que aguardava a “raça dominadora e  
conquistadora dos ruivos ários” na era democrática e socialista. Essa “humanidade  
ariana” conquistadora era caracterizada como originalmente loira e “nobre, pura,  
verdadeira”, em oposição aos anteriores “habitantes nativos de cor morena e cabelos  
negros” da Europa e de outros lugares38. Em A Vontade de Poder, ele declarou  
abertamente: “A grande maioria dos homens não tem direito à vida e serve apenas  
para desconcertar os eleitos de nossa raça. Ainda não concedo esse direito aos  
incapazes. Existem até povos incapazes” – sem o direito de existir39.  
Na noção de Nietzsche de “eterno retorno”, os espíritos “nobres” e a raça  
superior voltariam a experimentar o triunfo da vontade nas oscilações cíclicas da  
história. No entanto, o eterno retorno significava uma falta de progresso geral, de  
modo que o resultado cumulativo era “O Nada (‘o que não tem sentido’) eterno!”.  
Embora Nietzsche quisesse superar o niilismo através do super-homem como a  
personificação da vontade de poder, foi ao niilismo que tudo sempre retornou  
eternamente, uma vez que o genuíno progresso foi excluído40.  
A filosofia da vida ou Lebensphilosophie, foi, na concepção de Lukács, a filosofia  
dominante de todo o período imperialista na Alemanha. Entretanto, a filosofia da vida  
teve seu maior representante desse período na obra de Bergson, na França. A filosofia  
de Bergson baseava-se em duas formas de consciência: o intelecto e a intuição. O  
intelecto relacionava-se com o mundo mecânico da ciência natural, e a intuição com a  
metafísica e, portanto, com o reino da filosofia. Ele acreditava que, ao olhar para o  
íntimo do reino intuitivo, era possível resolver problemas tais como o caráter do tempo  
e da evolução, de maneiras que complementavam senão indo além delas a ciência  
e a razão. Assim, ele desafiou, como colocou Lukács, “a objetividade e a verdade do  
conhecimento das ciências da natureza”, criando uma “contraposição abstrata e brusca  
entre racionalidade e intuição irracional”41.  
38 Nietzsche, On the Genealogy of Morality, 14-15 [Ed. bras.: pp. 37-38]; Nietzsche, Twilight of the Idols,  
41 [Ed. bras.: pp. 52-53].  
39  
Esta tradução segue a de Michael Scarpitti, “The Perils of Translation, or Doing Justice to the Text,”  
38, academia.edu. A tradução de Kaufman de The Will to Power omite as duas últimas sentenças.  
Nietzsche, The Will to Power, 467 {as duas sentenças referidas por Foster também foram omitidas na  
edição brasileira}. Ver também Ronald Beiner, Dangerous Minds: Nietzsche, Heidegger, and the Return  
of the Far Right (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2018), 4, 137.  
40 Lukács, The Destruction of Reason, 392 [Ed. bras.: p. 347]; Deleuze, Nietzsche and Philosophy, 198.  
[Ed. bras.: p. 164].  
41 Lukács, The Destruction of Reason, 25, 403 [Ed. bras.: pp. 27-28, p. 351].  
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Os dois conceitos mais importantes de Bergson foram os de tempo, enquanto  
duração subjetiva, e o élan vital, ou impulso vital. Com base nesses conceitos, ele  
propôs uma espécie de terceira via na filosofia, que existiria fora do materialismo  
mecanicista e do idealismo/teleologia. “O tempo”, afirmou, “ou é invenção ou não é  
nada”. No momento em que confrontamos a “duração, vemos que ela significa criação”.  
Nossas próprias vidas nos deram as pistas para desvendar o segredo do tempo, ou a  
capacidade de perdurar, já que a duração “pode não ser o apanágio da própria matéria,  
mas da Vida que nada à contracorrente dela”42. O élan vital era o impulso criador da  
vida, iluminando a matéria, o que explicava a evolução. Sobre tais bases  
essencialmente místicas, Bergson prosseguiu para desafiar a teoria de Charles Darwin  
que tratava a evolução enquanto seleção natural, bem como a concepção de espaço-  
tempo de Albert Einstein por não conseguir capturar as bases subjetivas, intuitivas e  
criativas da existência.  
Bergson nasceu em 1859, ano da publicação de A Origem das Espécies de  
Darwin, mas nunca pôde aceitar a teoria da seleção natural de Darwin, argumentando  
que a ciência natural era inadequada nessa área e que deveria haver algum impulso  
vital e criativo, um élan vital cósmico subjacente a toda evolução. Utilizando  
argumentos que agora são empregados pelos defensores do Design Inteligente por  
exemplo, que a evolução do olho não pode ser explicada pela seleção natural ele  
atribuiu a “evolução criadora” a um poder vital independente da matéria e da  
Os ataques de Bergson à teoria darwiniana da seleção natural e à razão em geral  
fizeram com que E. Ray Lankester, protegido de Darwin e Thomas Huxley, amigo íntimo  
de Marx e o principal biólogo britânico de sua época, se rebelasse contra a  
apresentação de Bergson da “intuição como guia verdadeiro e do intelecto como guia  
errôneo”. Ao avaliar a contribuição de Bergson, Lankester, um materialista rigoroso,  
escreveu: “Para o estudioso das aberrações e monstruosidades da mente do homem,  
as obras de M[onsieur] Bergson sempre serão documentos de valor”, análogo ao  
interesse que “um colecionador pode manifestar em uma curiosa espécie de  
42  
Henri Bergson, Creative Evolution (New York: Henry Holt, 1911), 340-342 [Ed. bras.: Bergson, H. A  
Evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 367-369].  
43 Frederick Copleston, A History of Philosophy, vol. 9, Maine de Biran to Sartre; Part I: The Revolution  
to Henri Bergson (New York: Doubleday, 1974), 216-223. Sobre a relação entre o argumento de  
Bergson a respeito do olho e o dos teóricos do design inteligente, ver John Bellamy Foster, Brett Clark,  
and Richard York, Critique of Intelligent Design (New York: Monthly Review Press), 14-15, 158-61.  
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O novo irracionalismo  
besouro”44. (Os biólogos socialistas, subsequentemente, transcenderam o debate entre  
mecanicistas e vitalistas por meio da dialética materialista, o que constituiu uma  
importante contribuição para a ciência.)45.  
Bergson ficou escandalizado com a teoria da relatividade de Einstein, que  
interpretava o tempo (ou o espaço-tempo) em termos físicos e que ganhava  
reconhecimento gradualmente. Em um famoso confronto em abril de 1922, Bergson  
argumentou, em oposição a Einstein, que uma noção física do tempo professada pelo  
intelecto era inadequada e que o tempo só poderia ser plenamente compreendido  
quando abordado, também, subjetiva e intuitivamente, em termos de duração. Einstein  
respondeu que “o tempo dos filósofos [que confunde tempo psíquico e tempo físico]  
não existe, resta apenas um tempo psicológico que difere do tempo dos físicos”. Para  
Einstein, nem o élan vital de Bergson nem a sua duração tinham qualquer significado  
em termos de ciência física46.  
Para Lukács, não existe nenhuma “filosofia ‘inocente’”. Isto se aplica claramente  
ao caso de Heidegger, apesar de seu aspecto rarefeito47. Na obra-prima de Heidegger  
O Ser e O Tempo, de 1927, a consideração dos seres individuais é minimizada na  
busca pela “ontologia fundamental” do Ser metafísico. O autor propôs que o Ser pode  
ser abordado com base em uma análise existencial focalizada no Dasein, isto é, na  
existência humana, que, como explicou mais tarde, pode ser concebida como o habitar  
e performar o papel de “pastor do Ser”. Logo, embora o Ser, para Heidegger, não  
possa ser apreendido diretamente, ele pode ser parcialmente revelado fenomenológica  
e existencialmente por meio do escrutínio do Dasein no contexto de seu "tornar-se-  
com" o mundo48. Todas as filosofias anteriores, desde Platão até à era moderna, foram  
consideradas por Heidegger como superficiais e estritamente metafísicas, na medida  
44  
Ray Lankester, Preface in Hugh S. R. Elliot, Modern Science and the Illusions of Professor Bergson  
(New York: Longmans, Green, and Co., 1912), vii-xvii.  
45 Ver B. Sadoski, “The ‘Physical’ and ‘Biological’ in the Process of Organic Evolution,” in Nikolai Bukharin  
et. al., Science at the Crossroads (London: Frank Cass and Co., 1971), 69-80; Joseph Needham, Time:  
The Refreshing River (London: Georg Allen and Unwin, 1943), 241-246.  
46  
Bergson, Creative Evolution, 342 [Ed. Bras.: p. 369]; Jimena Canales, The Physicist and the  
Philosopher (Princeton: Princeton University Press, 2015), 46-47; “Einstein vs. Bergson: The Struggle  
for Time,” Faena Aleph, faena.com.  
47 Lukács, The Destruction of Reason, 5, 496 [Ed. Bras.: p. 10, p. 434].  
48 Martin Heidegger, Basic Writings (New York: HarperCollins, 1993), 53-57, 234 [Ed. bras.: “O primado  
ontológico da questão do ser” in Heidegger, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 34-38;  
Heidegger, M. Carta sobre o humanismo. Revista Centauro, 2005, p. 24]; Michael Wheeler, “Martin  
Heidegger,” Enciclopédia de filosofia de Stanford, 12 de outubro de 2011, plato.stanford.edu.  
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em que não se centravam no problema ontológico fundamental do Ser49. Uma  
consequência da filosofia de Heidegger foi a descentralização do ego consciente  
(transcendental) e o deslocamento da filosofia das questões de relações sujeito-objeto  
para autenticidade e inautenticidade50.  
Dado que a apreensão do Ser em si é o eixo principal da analítica existencial de  
Heidegger, poder-se-ia pensar que ela não teria muita relação com a política e a ética.  
No entanto, os elementos reacionários, irracionalistas e de tendências da filosofia da  
vida de Heidegger, embora não estivessem presentes na superfície, revelaram-se de  
diversas maneiras, exibindo a verdadeira natureza de sua lógica irracionalista. Isso  
ocorreu não apenas em seu período oficialmente nazista, mas também em seu trabalho  
posterior, no pós-guerra, e, seguramente, estava implícito no todo de sua posição  
filosófica desde o início. Desse modo, em suas palestras publicadas sobre Ser e  
Verdade, apresentadas na Universidade de Freiburg no inverno de 1933-1934, logo  
após sua adesão ao Partido Nazista e apenas alguns anos após a publicação de O Ser  
e o Tempo, Heidegger declarou:  
Inimigo é quem e todo aquele de quem sai e provém ameaça para a  
presença do povo e sua integridade. O inimigo não precisa ser externo  
e o inimigo externo nem sempre é o mais perigoso. Pode parecer não  
haver a presença de um inimigo. Então, a exigência fundamental é  
identificar o inimigo, colocá-lo à luz ou até iluminá-lo, a fim de dar-se  
e acontecer o estar contra e resistir ao inimigo e a presença não se  
tornar obtusa... [O desafio é] {que} muitas vezes é bem mais difícil e  
longo espreitar-se o inimigo como inimigo, levá-lo a desenvolver-se,  
não se deixar enganar em nada, manter-se de prontidão, cultivar e  
aumentar contínua vigilância e desencadear o ataque em ampla escala,  
visando ao completo aniquilamento51.  
Os papéis de Heidegger como funcionário do Partido Nazista, ideólogo e,  
durante seus anos como reitor da Universidade de Freiburg, o mais proeminente  
acadêmico apoiador de Hitler são, agora, bem conhecidos. Ajudou a instituir o  
Gleichschaltung, ou sistema de uniformização, dentro da academia alemã,  
desempenhando um papel de liderança na purificação da universidade de colegas e  
alunos que falharam em obedecer aos ditames do regime nazista. Ele também  
49 Heidegger abriu uma exceção a alguns filósofos pré-Socráticos, particularmente Heráclito.  
50  
Richard Wolin, Labyrinths (Amherst, Massachusetts: University of Massachusetts Press, 1995), 184  
[Tradução livre]. Lukács, The Meaning of Contemporary Realism, 20-21, 26-27 [Ed. bras.: Lukács, G.  
Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada-editora de Brasília, 1969, pp. 38-39, pp. 48-49].  
51 Martin Heidegger, Being and Truth (Bloomington: Indiana University Press, 2010), 73 (italics added)  
[Ed. Bras.: Heidegger, M. Ser e verdade. Petrópolis: Vozes, 2012, pp. 104-5 (ênfase adicionada)]; Beiner,  
Dangerous Minds, 4-5, 137.  
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trabalhou em estreita colaboração com o teórico jurídico [Karl] Schmitt, o principal  
autor do notório Führerprinzip, promovendo a ideologia nazista e presidindo a queima  
simbólica de livros52. Sua Introdução à Metafísica, de 1935, não apenas prestou uma  
homenagem ao nazismo, mas também apresentou um argumento ao triunfo do “Volk  
[povo] histórico… e assim à história do Ocidente”, acionando “novas energias  
espirituais”. Em uma conversa com Karl Löwith em Heidelberg em 1936, Heidegger  
concordou “sem reservas” com a sugestão de que seu “partidarismo pelo nacional-  
socialismo estava na essência de sua filoosfia”53.  
Heidegger frequentemente elogiava Mussolini e Hitler, apresentando Nietzsche  
como um precursor de ambos os líderes fascistas. No livro de Heidegger sobre  
Friedrich Schelling, uma longa frase da palestra original foi omitida na edição de 1971,  
mas foi posteriormente reinserida a pedido do próprio Heidegger. Dizia: “Como é  
notório, ambos os homens na Europa os quais inauguraram, ao modo nacional-político  
de seus respectivos povos, os contramovimentos [Gegenbewegungen] ao niilismo,  
nomeadamente Mussolini e Hitler, foram por sua vez, cada qual a sua maneira,  
essencialmente determinados por Nietzsche; sem que com isso o autêntico domínio  
metafísico de Nietzsche tenha se constituído”. Heidegger explicou em suas palestras  
que Nietzsche havia demonstrado que a democracia leva a “uma forma degenerada de  
niilismo” e, portanto, demandava um movimento mais autêntico do Povo. Em um curso  
sobre lógica em 1934, Heidegger declarou que “Negros são homens, mas não  
possuem história... A natureza não possui história... Quando a hélice de um avião gira,  
nada realmente ‘acontece’. Por outro lado, quando este avião leva Hitler à Mussolini,  
então a história acontece”54. “A falsa cultura” da civilização Ocidental, ele explicou, só  
será suplantada pelo “mundo espiritual” do Povo baseado na “mais profunda  
preservação das forças da terra e do sangue”55.  
Em seus infames Black Notebooks (um diário filosófico que Heidegger solicitou  
a inclusão no final de sua Collected Works), ele deu repetidas evidências de seu  
52  
Emmanuel Faye, Heidegger: The Introduction of Nazism into Philosophy in Light of the Unpublished  
Seminars of 1933-1935 (New Haven: Yale University Press, 2009), 39-58 [Ed bras.: Faye, E. Heidegger:  
a introdução do nazismo na filosofia. São Paulo: É Realizações, 2015, pp. 103-136]; Richard Wolin, ed.,  
The Heidegger Controversy (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1993); Richard Wolin,  
Labyrinths,103-22.  
53  
Citações de Heidegger de Wolin, Labyrinths, 126, 138. Ver também Wolin, The Heidegger  
Controversy, 30.  
54 Briner, Dangerous Minds, 105-8; Wolin, Labyrinths, 134-35.  
55 Heidegger citado em Wolin, Labyrinths, 131.  
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profundo antissemitismo. Assim, ele atribuiu as falhas da modernidade e do  
racionalismo ocidental ao “judaísmo mundial”, um termo usado no Mein Kampf de  
Hitler que se referia a uma conspiração judaica de dominação mundial. “O judaísmo  
mundial”, escreveu Heidegger nos Black Notebooks, “é inapreensível em todos os  
lugares [por causa de seu domínio do pensamento racionalista] e não precisa se  
envolver em ação militar enquanto continua a desenvolver sua influência, ao passo que  
nós [Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial] somos deixados para sacrificar o  
melhor sangue do melhor de nosso povo"56. Após a publicação dos Black Notebooks,  
o estudioso de Heidegger Tom Rockmore observou que “parece cada vez mais claro  
que a filosofia de Heidegger, sua virada para o nacional-socialismo e seu  
antissemitismo não são nem independentes nem separáveis, mas, sim,  
inseparavelmente ligados”57.  
Está claro que Heidegger nunca se afastou, ou mesmo pretendeu se distanciar,  
de suas visões extremamente reacionárias, que sustentavam todo o seu esforço  
filosófico. Em sua famosa Carta sobre o humanismo, publicada em 1947, ele promoveu  
um ataque sistemático ao humanismo, depreciando pensadores do Iluminismo alemão  
como Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller. Ao contrário do pós-  
humanismo de hoje, no entanto, Heidegger estava, sobretudo, preocupado em negar  
a noção de seres humanos como seres primariamente materiais ou corpóreos,  
portadores de uma “racionalidade animal”. Para Heidegger, a verdade reside na  
analítica existencial do Dasein, concebendo a existência humana real como uma  
aproximação do Ser. Na sua habitual linguagem velada, Heidegger anunciou um  
“destino” ainda por vir, baseado numa historicidade “mais primordial” – mais próxima  
do Dasein – “do que o humanismo”. O humanismo, que ele identificava com o  
racionalismo, devia ser sempre combatido, “porque ele não instaura a humanitas do  
ser humano numa posição suficientemente alta" ao promover a ôntica empirista de  
meros seres individuais e materiais, em oposição à ontologia fundamental do Ser, na  
qual o ego consciente é descentrado58. Heidegger insinuou que, devido à linguagem,  
que ele via como o centro do Dasein, havia uma relação próxima entre a antiga cultura  
56 Philip Oltermann, “Heidegger’s ‘Black Notebooks’ Reveal Antisemitism at the Core of His Philosophy,”  
Guardian, 12 de março de 2014.  
57  
Tom Rockmore, “Heidegger After Trawny,” in Heidegger’s Black Notebooks, ed. Andrew J. Mitchell  
and Peter Trawny (New York: Columbia University Press, 2017), 152.  
58  
Heidegger, Basic Writings, 225, 234, 241-247 [Ed. bras.: Heidegger, M. Carta sobre o humanismo.  
Revista Centauro, 2005, p. 33]; Lukács, The Destruction of Reason, 833-836 [Ed. bras.: pp. 721-724].  
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grega e a alemã (no sentido do que era geralmente concebido como a linha Ariana)  
que tornava a Alemanha única na promoção da autêntica historicidade do Ocidente59.  
Em sua Carta sobre o Humanismo, Heidegger reconheceu o poder da crítica de  
Marx à alienação, antes de proceder à crítica do materialismo ingênuo e de reduzir a  
teoria da alienação de Marx à questão da tecnologia. Como Lukács afirmou, não havia  
dúvidas sobre o que Heidegger apontava, que claramente via "o marxismo como o  
inimigo fundamental de que se trata de combater60.  
O retorno do irracionalismo  
Lukács identificou o desenvolvimento do irracionalismo com o estágio  
imperialista do capitalismo. Este foi concebido, em primeiro lugar economicamente, na  
linha de Lênin e Rosa Luxemburgo, como um sistema de capitalismo monopolista  
caracterizado em termos de rivalidade inter-imperialista e de guerra na luta pelas  
colônias e esferas de influência. Mas foi sobretudo Lênin, segundo Lukács, quem  
traduziu a concepção econômica do imperialismo em uma “articulação concreta (...) do  
imperialismo com todas as questões políticas do presente”, centradas na política de  
classes e nos alinhamentos entre nações61. Além disso, Lênin reconheceu que os  
acordos de paz no estágio imperialista “só podem ser, inevitavelmente, “tréguas” entre  
guerras”, no âmbito de uma luta geopolítica mais ampla, inerente ao capitalismo  
monopolista62. Os aspectos políticos do imperialismo permeavam, assim, a cultura de  
nações inteiras, gerando aquilo a que Raymond Williams, em outro contexto, chamaria  
de “estruturas de sentimento”63. Foi isso que levou à interface do imperialismo com o  
irracionalismo na história da Europa de 1870-1945.  
O imperialismo tardio, com início em 1945, pode ser visto como dividido em três  
períodos:  
(1) A Guerra Fria imediata, de 1945 a 1991, na qual os Estados Unidos, enquanto  
potência hegemônica da economia mundial capitalista, procurou dominar o Sul Global  
engajado em revoltas anticoloniais ao mesmo tempo em que travava uma luta global  
59 Wheeler, “Martin Heidegger”.  
60  
Heidegger, Basic Writings, 243-244 [Ed. bras.: Heidegger, M. Carta sobre o humanismo. Revista  
Centauro, 2005, pp. 47-48]; Lukács, The Destruction of Reason, 836-837 [Ed. bras.: pp. 721-722].  
61 Georg Lukács, Lenin (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1971), 41-43 [Ed. bras.: Lukács, G. Lenin:  
um estudo sobre a unidade de seu pensamento. Boitempo Editorial, 2012, p. 61].  
62  
Lenin, Imperialism, the Highest Stage of Capitalism,119 [Ed. bras.: Lênin, V. I. Imperialismo, estágio  
superior do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2021, pp. 260-1].  
63 Raymond Williams, The Long Revolution (Cardigan, UK: Parthian, 2012), 69.  
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contra a União Soviética e a China.  
(2) O período de 1991 a 2008, no qual Washington tentou consolidar um mundo  
unipolar permanente no vazio deixado pela remoção da União Soviética da cena  
mundial e pela abertura da China à economia mundial.  
(3) De 2008 (a Grande Crise Financeira) até à atualidade, marcada pela  
reemergência da China e da Rússia como grandes potências e pela designação oficial  
de Washington desses dois países como seus principais inimigos, conduzindo a uma  
Nova Guerra Fria, marcada pelo conflito entre o mundo unipolar centrado nos EUA e  
uma ordem mundial multipolar emergente.  
Durante todo este tempo, a esquerda ocidental ocupou uma posição  
enfraquecida no seio do capitalismo monopolista a nível interno, ao mesmo tempo em  
que adotou uma abordagem ambígua do imperialismo a nível externo, com o  
consequente arrefecimento da luta de classes. Além disso, sofreu uma grande derrota  
em 1968. Com o advento da Nova Guerra Fria, veio à luz do dia a guerra híbrida do  
imperialismo coletivo da tríade contra o Sul Global, incluindo as principais economias  
emergentes.  
Nessas circunstâncias, o irracionalismo burguês passou a definir o clima  
intelectual dominante do imperialismo tardio, refletindo uma contínua destruição da  
razão. Hoje é amplamente reconhecido que o pensamento reacionário alemão,  
associado à “ligação Nietzsche-Heidegger-Carl Schmitt”, junto ao renascimento do  
bergsonismo, está presente nas obras de pós-marxistas, pós-modernistas e pós-  
humanistas, de Derrida a Deleuze e Latour64. Nas palavras de Keti Chukhrov, um  
“fascínio pela negatividade e pelo niilismo”, caraterístico das filosofias irracionalistas  
do final do século XIX e início do século XX, pode ser visto na obra de Deleuze “e  
Guatarri ou na distopia aceleracionista e nas teorias pós-humanistas do presente”65.  
Em Nietzsche e a Filosofia, de Deleuze, nos é dito que o caráter “resolutamente  
antidialético” do pensamento de Nietzsche, os seus conceitos de “vontade de poder”,  
do “eterno retorno” e do sonho do Super-Homem representaram um triunfo sobre a  
dialética de Hegel, conduzindo à “identidade criativa do poder e do querer” como a  
64 Wolin, Labyrinths, 1.  
65 Keti Chukhrov, Practicing the Good (Minneapolis: e-flux/University of Minnesota Press, 2020), 20.  
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consumação da vontade de poder66. Há um “elo secreto” que liga vários pensadores  
que se opõem à filosofia de Estado. Este elo secreto, nos diz Deleuze, inclui Spinoza  
(reinterpretado como um vitalista) Nietzsche e Bergson, que devem ser vistos como  
filósofos da imanência, representantes de uma tradição “nômade” oposta não só ao  
racionalismo europeu em geral, mas, também, diretamente oposta a Hegel e Marx67. A  
posição de Bergson em seu debate com Einstein é defendida por Deleuze no seu livro  
de 1966, Bergsonismo, em um esforço para privilegiar, mais uma vez, a noção  
subjetiva e intuitiva do tempo, separada da física e também do tempo histórico68.  
São muitas as reviravoltas irracionalistas e reacionárias a que assistimos no seio  
do que continua a ser suposto como uma análise de esquerda. Como observa  
Chukhrov:  
Em Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari consideram o  
capital monstruoso, mas, ao mesmo tempo, um terreno desejável a  
partir do qual a subversão e o seu potencial emancipatório podem  
surgir. [No entanto,] a aceitação da contemporaneidade capitalista  
viciosa é inevitável, dada a condição da impossibilidade da sua  
sublimação.... Um aspecto muito importante desta aberração reside no  
seguinte: a corrente capitalista subjacente a essas teorias  
emancipatórias e críticas funciona não como um programa para sair  
do capitalismo, mas, antes, como a radicalização da impossibilidade  
dessa saída69.  
Esse deslumbramento com a impossibilidade de saída pode ser visto no principal  
confronto de Deleuze e Guattari com Marx. No início da sua influente obra de 1972,  
O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, os autores propõem uma relação “indústria-  
natureza” que resulta em “esferas relativamente autônomas que se chamam produção,  
distribuição e consumo”. Essas esferas separadas, afirmam, foram demonstradas por  
Marx como sendo apenas um produto da divisão capitalista do trabalho e da falsa  
consciência que ela produziu. Mas a partir daí, eles saltaram para a proposição trans-  
histórica:  
Há menos ainda a distinção homem-natureza: a essência humana da  
natureza e a essência natural do homem [frase de Marx] se identificam  
na natureza como produção ou indústria, isto é, na vida genérica do  
66  
Deleuze, Nietzsche and Philosophy, 8-10, 198 [Ed. bras.: Deleuze, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de  
Janeiro: Editora Rio, 1976, pp. 7-8, p. 89].  
67 Gilles Deleuze, “I Have Nothing to Admit,” Semiotexte 2, no. 3 (1977), 112; Brian Massumi, introdução  
in Gilles Deleuze e Félix Guattari, A Thousand Plateaus (Minneapolis: University of Minnesota Press,  
1983), x [Ed. bras.: Deleuze, G; Guattari, F. Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995].  
68  
Gilles Deleuze, Bergsonism (New York: Zone Books, 1991), 79-85 [Ed. bras.: Deleuze, G.  
Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999, pp. 75-82].  
69 Chukhrov, Practicing the Good, 20.  
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homem, igualmente. Assim, a indústria não é mais considerada numa  
relação extrínseca de utilidade, mas em sua identidade fundamental  
com a natureza como produção do homem e pelo homem... Homem e  
natureza não são como dois termos postos um em face do outro...  
mas são uma só e mesma realidade essencial do produtor e do  
produto70.  
Com base nisso, a natureza e a humanidade são vistas como uma unidade ideal  
inescapável o que Marx, que segue citado na passagem, chamou de “a essência  
humana da natureza e a essência natural do homem”. Esse é o resultado inevitável da  
indústria, enquanto fenômeno abstrato e trans-histórico, que, em vez de ser concebida  
como alienada sob o capitalismo, tal como em Marx, é concebida como o meio direto  
e imediato de unificação da natureza e da humanidade. Todo o conceito de alienação,  
ou o auto-estranhamento da humanidade, como a realidade material central do  
capitalismo (que Marx tinha apresentado como uma “falha” trágica a ser superada), é,  
assim, eliminado logo de partida71. Natureza e humanidade, para Deleuze e Guattari,  
são “uma realidade essencial”, gerada pela indústria tratada em abstrato.  
Tendo, efetivamente, eliminado o fenômeno histórico da alienação, Deleuze e  
Guattari passam imediatamente à caraterização da produção como um “princípio  
imanente” das máquinas desejantes, causando uma esquizofrenia universal. A  
“esquizofrenia”, neste sentido, é definida como “o universo das máquinas desejantes  
produtoras e reprodutoras, [representando] a universal produção primária como  
“realidade essencial do homem e da natureza”72. A alienação em Marx, resultante de  
relações sociais estranhadas, é, assim, substituída por um sistema universal de  
máquinas desejantes, ou um “inconsciente maquínico”, que produz uma realidade  
esquizofrênica mais vasta, da qual o capitalismo é uma mera manifestação. Essa  
realidade esquizofrênica-desejante situa-se no plano da imanência, ultrapassando a  
própria humanidade73. Somos, assim, confrontados com um universo de energia  
libidinal, de forças vitais e de impulsos por desejos maquinários dos quais não há fuga  
possível74. O irracionalismo reacionário de Nietzsche triunfa sobre a práxis  
70  
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia (Minneapolis: University  
of Minnesota Press, 1983), 3-5 [Ed. bras.: Deleuze, G; Guattari, F. O Anti-Édipo: Capitalismo e  
esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 15].  
71 Karl Marx, Early Writings (London: Penguin, 1974), 349-50 (citado de acordo com Deleuze e Guattari,  
op. cit.), 398-99 [Ed. bras.: op. cit., p. 15, nota 4].  
72 Deleuze and Guattari, Anti-Oedipus, 5 [Ed. Bras.: p. 16].  
73  
Félix Guattari, The Machinic Unconscious (Los Angeles: Semiotext(e), 2011); Karl Marx e Frederick  
Engels, The Communist Manifesto (New York: Monthly Review Press, 1964), 1 [Ed. Bras.: Marx, K. Engels,  
F. O manifesto comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998, p. 39].  
74 Na filosofia vitalista de Deleuze, as essências são imanentes em coisas móveis e materiais e, portanto,  
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revolucionária de Marx.  
Uma inversão semelhante pode ser vista em Derrida, na famosa obra Espectros  
de Marx, revelada mais uma vez em relação a Marx. Nesta e em outras obras, Derrida  
desenvolveu uma perspectiva pós-estruturalista associada a um heideggerianismo de  
esquerda. A reação pública imediata a Espectros de Marx, escrito pouco depois do  
desaparecimento da União Soviética, foi a de que se tratava de uma reafirmação de  
Marx. No entanto, isso ocorreu sob a forma de uma apologética indireta que sublinhava  
“a espectrologia de Marx”. Derrida centrou-se na famosa frase de abertura do  
Manifesto Comunista, em que Marx e Engels escreveram: “Um espetro ronda a Europa,  
o espetro do comunismo”75. O marxismo, argumentou, continuava a rondar a Europa,  
ainda que apenas num sentido fantasmagórico, pelo qual desempenhava um papel  
indispensável na continuidade do desafio ao monolito capitalista. No entanto, o Marx  
de Derrida ou o Marx que ele desejava reter era, nas palavras de Richard Wolin,  
um “Marx tornado heideggeriano”, empobrecido pela noção de que o principal inimigo  
é agora simplesmente a modernidade tecno-científica. Aqui, os “preconceitos  
ontológicos do anti-humanismo filosófico, uma herança heideggeriana”, excluem toda  
a substância da teoria de Marx, incluindo as forças sociais subjacentes à práxis  
revolucionária. De fato, “a espectrologia de Marx”, explicou Derrida, não se limitou ao  
próprio Marx, “mas pisca e cintila por debaixo dos nomes próprios de Marx, Freud e  
Heidegger”. Assim, Marx continua a assombrar o capitalismo, não simplesmente como  
a aparição de si mesmo, mas também como o fantasma de Heidegger, cujo  
“pensamento epocal... cancela a historicidade”76.  
As novas filosofias da imanência produziram, assim, todo o tipo de teorias  
aparentemente radicais, mas, na realidade, reacionárias. Isso é evidente nos  
tratamentos pós-humanistas da crise ecológica, particularmente na forma do que é  
chamado de “novo materialismo”. Muito disso é informado pela reapropriação  
questionável de Spinoza por Deleuze como um teórico vitalista, principalmente através  
do conceito de conatus do primeiro, que é interpretado como que imputando  
vistas como distintas do essencialismo no sentido de ideias fixas e transcendentes.  
75 Jacques Derrida, Specters of Marx (London: Routledge, 1994), 219-20 [Ed. bras.: Derrida, J. Espectros  
de Marx. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 18]. Se o livro de Derrida Spectres of Marx almeja  
desconstruir a práxis marxiana, outros trabalhos usaram a metáfora do espectro de Marx para reconstruir  
uma práxis revolucionária. Ver especialmente China Miéville, A Spectre Haunting: On the Communist  
Manifesto (Bloomsbury: Head of Zeus, 2022).  
76 Derrida, Specters of Marx, 93, 219 [Ed. bras.: pp. 104-5, p. 232]; Wolin, Labyrinths, 238-39.  
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intenções, consciência e até alegria aos próprios objetos, por exemplo, uma pedra77.  
Isso abriu caminho a uma onda de novas obras vitalistas (o chamado “novo  
materialismo”) de figuras como Bennett e Morton, muitas vezes em nome da ecologia,  
nas quais o resultado é um animismo universal. Nesta visão, um pedaço de carvão, um  
micróbio, o conjunto de dinossauros de plástico de Adorno, uma pedra etc., são todos  
tratados como se possuíssem “poderes vitais”, sendo colocados no mesmo plano  
ontológico da humanidade78. Tal como Schopenhauer (em sua resposta a Spinoza),  
Bennett argumenta que uma pedra em queda, se fosse consciente, teria razão em  
pensar que tinha vontade e que se movia por esta própria vontade79. O resultado é a  
demolição de quaisquer distinções significativas entre a natureza humana e a não-  
humana.  
Uma estratégia comum encontrada em Latour, Bennett e Morton é negar a  
famosa crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria, pondo-a simplesmente de pernas  
para o ar ao apresentar todas as coisas/objetos como agentes ou atores vitais. Isto  
equivale a uma universalização do fetichismo da mercadoria e da reificação (a  
coisificação do mundo) e, por conseguinte, à diminuição de qualquer noção de sujeito  
humano. Isso constitui a eliminação da concepção clássica de crítica80.  
A conhecida rejeição de Latour ao “moderno” procurou negar, à maneira da  
esquerda heideggeriana, toda a validade dos conceitos de natureza e humanidade,  
apresentando-os como uma falsa dualidade introduzida pela modernidade iluminista.  
Fez desta rejeição do dualismo natureza-sociedade o coração da sua “ecologia  
política”, que substituiu os atores humanos por conjuntos de "atuantes81. Mas quando,  
tardiamente, sentiu a necessidade de considerar a verdadeira emergência ecológica  
planetária representada pela nova época do Antropoceno na história geológica, Latour  
77  
Baruch Spinoza, Ethics (London: Penguin,1996), 75 (III, prop. 6); “From Baruch Spinoza’s ‘Letter to  
G. H. Schuller’ (1674)”; Gilles Deleuze, Spinoza: Practical Philosophy (San Francisco: City Lights, 1988),  
97-104 [Ed. bras.: Deleuze, G. Cursos sobre Spinoza. Fortaleza: EdUECE, 2019, 3a ed, pp. 119-123].  
78  
Jane Bennet, Vibrant Matter (Durham: Duke University Press, 2010), xiv-xv, 1-4; Timothy Morton,  
Humankind (London: Verso, 2019), 33, 55, 61-63, 71, 97, 166-71. Ver John Bellamy Foster, “Marx’s  
Critique of Enlightenment Humanism,” Monthly Review 74, no. 8 (January 2023): 1-15.  
79 Bennet, Vibrant Matter, 1-4.  
80 Foster, “Marx’s Critique of Enlightenment Humanism,” 10-12.  
81 Bruno Latour, The Politics of Nature (Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2004), 75-  
80 [Ed bras.: Latour, B. Políticas da natureza. Bauru: EDUSC, 2004, pp. 137-148]. Bruno Latour,  
Reassembling the Social (Oxford: Oxford University Press, 2007), 54-55 [Ed bras.: Latour, B.  
Reagregando o social. Salvador-Bauru: UFBA-EDUSC, 2012, pp. 82-83]; Bruno Latour, We Have Never  
Been Modern (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1993) [Ed. bras.: Latour, B. Jamais fomos  
modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de janeiro: Editora 34, 1994].  
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nova fase  
         
O novo irracionalismo  
viu-se desprovido de todos os pontos de referência uma vez que até a ecologia tinha  
sido posta em causa na sua filosofia e retornou a conceitos mistificadores como Gaia  
e aquilo a que chamou Earthbound (uma reformulação e personificação da noção de  
terrestre). Mais importante ainda, dada a natureza da destruição planetária, foi  
confrontado com a questão de como conceber isso do ponto de vista da ordem  
política. Logo, recorreu à obra de Schmitt O nomos da Terra no direito das gentes do  
jus publicum europaeum, escrita na Alemanha nazista. A obra de Schmitt procurava  
enraizar o direito na terra (não no sentido de ecologia, mas sim de territorialização),  
concebendo-o como a base do estado de guerra permanente que fundamentava o  
direito internacional82.  
A avaliação feita por Lukács do Schmitt deste período é, naturalmente, muito  
mais dura do que a feita por Latour. O teórico jurídico nazista Schmitt, argumenta  
Lukács, tinha-se adaptado rapidamente ao novo clima imperial após a queda do  
Terceiro Reich. “A ele Schmitt é indiferente que a ditadura sans phrase do  
monopolismo capitalista seja assegurada por Hitler, por Eisenhower ou por um novo  
imperialismo alemão”83.  
Ainda assim, baseando a sua análise em Schmitt, Latour nos diz que a resposta  
está em um “novo estado de guerra” em nome do Earthbound. Termina o seu Diante  
de Gaia, de 2015, elogiando o espírito de Cristóvão Colombo84. Apesar das suas  
críticas aos “modernos”, Latour aliou-se, pelo menos durante algum tempo, aos ultra-  
ecomodernistas capitalistas do Breakthrough Institute, pedindo às pessoas que “amem  
os vossos monstros [Frankenstein]”85.  
O irracionalismo está, agora, completamente na moda novamente. É evidente  
uma nova “radicalização da impossibilidade de... saída”, uma vez que o mundo do  
imperialismo tardio enfrenta duas formas de extermínio: a guerra nuclear e a  
emergência ecológica planetária. Em uma conferência e um livro que abordaram o  
antissemitismo e o nazismo nos Black Notebooks de Heidegger, representando um  
82 Bruno Latour, Facing Gaia (Cambridge: Polity, 2017), 220-54, 285-92 [Ed bras.: Latour, B. Diante de  
Gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. Ubu editora, 2020. pp. 257-300, pp. 335-  
43, pp. 257-300]; Bruno Latour, Down to Earth (Cambridge: Polity, 2018).  
83 Lukács, The Destruction of Reason, 839-840 [Ed. bras.: pp. 726-727].  
84 Latour, Facing Gaia, 285-92 [Ed. bras.: pp. 335-343].  
85 Bruno Latour, “Love Your Monsters,” Breakthrough Institute, February 14, 2012, org. Latour deu um  
passo mais progressista e menos irracionalista em seu último livro pós-humanista, mas não foi um passo  
radical. Ver Bruno Latour e Nikolaj Schultz, On the Emergence of an Ecological Class (London: Polity,  
2022).  
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John Bellamy Foster  
esforço desesperado para salvar de alguma forma a filosofia de Heidegger, apesar das  
revelações de que o nazismo era parte integrante de toda a sua perspectiva, foi dada  
ao filósofo lacaniano-hegeliano Žižek a palavra final, sem dúvida devido à sua  
reputação de pensador de esquerda. Žižek procurou defender a importância de  
Heidegger para a filosofia, apesar do seu nazismo, com base na importância da sua  
ontologia fundamental da “diferença ontológica”, ou a relação dos seres com o Ser, a  
partir da qual a análise de Heidegger do Dasein e a sua desconstrução do ego  
consciente tinham surgido. Isso, então, é tomado como separável das especificidades  
da trajetória política de Heidegger. Mesmo que não tenha se afastado dos seus pontos  
de vista de extrema-direita, que não tenha repudiado o seu passado nazista,  
Heidegger, nos dizem, continua a ser louvável pela fundamental ontologia do seu Ser  
e Tempo e pelas suas críticas à civilização científico-tecnológica, vistas como  
distinguíveis da sua cumplicidade com o Terceiro Reich86.  
Na obra de Žižek Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético,  
Heidegger é elogiado ainda mais fortemente. Não só Heidegger é, em tal obra,  
apresentado como uma figura que opera “contra a corrente” dentro de uma prática  
“estranhamente próxima do comunismo”, como também nos é dito que o Heidegger  
“de meados da década de 1930”, quando era membro do Partido Nazista, pode ser  
visto como “um futuro comunista” mesmo que ele próprio nunca tenha chegado a  
esse destino. O nazismo de Heidegger, declara Žižek apologeticamente, “não foi um  
simples erro, mas antes um ‘passo certo na direção errada’”. Assim, “Heidegger não  
pode ser simplesmente descartado como um völkisch reacionário alemão”. No seu  
período nazista, Heidegger, postula Žižek, abria “possibilidades que apontam... para  
uma política emancipatória radical”. Para esclarecer, isso foi escrito antes da publicação  
dos Black Notebooks embora bem depois de muitos dos escritos nazistas de  
Heidegger terem aparecido. Mas, como vimos, os Black Notebooks, com o seu virulento  
antissemitismo, pouco fizeram para alterar a defesa geral que Žižek faz da filosofia de  
Heidegger87.  
A lealdade de Žižek ao projeto anti-humanista de Heidegger é evidente na sua  
86 Slavoj Žižek, “The Persistence of Ontological Difference,” in Heidegger’s Black Notebooks, ed. Mitchell  
and Trawny, 186-200.  
87  
Slavoj Žižek, Less Than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism (London: Verso,  
2013), 6, 878-879 [Ed. bras.: Žižek, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético.  
São Paulo: Boitempo, 2013, p. 629, pp. 632-633].  
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O novo irracionalismo  
atual posição pós-humanista, na qual argumenta (ao mesmo tempo em que elogia  
Bennett) que a natureza e a ecologia, bem como a humanidade, já não são categorias  
significativas. Nesta perspectiva, até mesmo a defesa indígena da terra deve ser  
menosprezada. Em um artigo centrado na discussão do conceito de ruptura metabólica  
de Marx, Žižek respondeu ao apelo do presidente boliviano Evo Morales, socialista e  
indígena, por uma defesa da Mãe Terra, com o gracejo de que “a isto somos tentados  
a acrescentar que, se há uma coisa boa no capitalismo, é que, sob ele, a Mãe Terra já  
não existe”. O que se pretendia dizer com isto, como em grande parte dos escritos de  
Žižek, não ficou imediatamente claro, mas se encaixa nas suas outras declarações,  
refletindo um desdém semelhante pelos problemas ecológicos e uma apologética  
indireta do sistema, como a sua declaração de que “a ecologia é um novo ópio para  
as massas”88.  
De fato, tanto a desnaturalização da natureza quanto a desumanização da  
humanidade estão embutidas na perspectiva anti-humanista geral de Žižek, que se  
conforma com o princípio da radicalização da impossibilidade de saída. Assim, ele  
declara, em tom niilista: “O poder da cultura humana não é apenas construir um  
universo simbólico autônomo além do que experimentamos como natureza, para  
produzir novos objetos naturais “não naturais” que materializam o conhecimento  
humano. Nós não apenas “simbolizamos a natureza”; nós [também], por assim dizer, a  
desnaturalizamos por dentro... A única maneira de enfrentar os desafios ecológicos é  
aceitar totalmente a radical desnaturalização da natureza”. Mas isso também implica  
na radical desumanização da humanidade, uma vez que, como ele também afirma: “Só  
há seres humanos na medida em que existe uma natureza inumana impenetrável (a  
'terra' de Heidegger)”. O problema de todas as discussões sobre o “enraizamento da  
humanidade na natureza” e as análises da ruptura metabólica, afirma, é que tendem a  
regredir para uma “ontologia geral dialético-materialista”, referindo-se ao naturalismo  
dialético de Engels e Lênin.  
De acordo com a abordagem idiossincrática, idealista e irracionalista do próprio  
Žižek ao “materialismo dialético”, que pretende “regressar de Marx a Hegel e decretar  
88 Slavoj Žižek, “Ecology Against Mother Nature,” Verso Blog, May 26, 2015; Slavoj Žižek, “Censorship  
Today: Violence, or Ecology as a New Opium for the Masses,” 2007, lacan.com; Slavoj Žižek, Absolute  
Recoil: Toward a New Foundation of Dialectical Materialism (London: Verso, 2016), 7-12. Embora crítico  
do novo materialismo, Žižek simpatiza com a perspectiva virulentamente anti-humanista e antirrealista  
daquele.  
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John Bellamy Foster  
uma 'inversão materialista' do próprio Marx” através do puro idealismo, tanto o  
naturalismo-materialismo quanto o humanismo crítico devem ser rejeitados, em  
conformidade geral com o heideggerianismo de esquerda89. A realidade material cede,  
assim, o lugar ao Real abstrato. Essas visões conduzem a um afastamento de qualquer  
práxis significativa, a um profundo pessimismo e a uma dialética do irracionalismo.  
Sem nunca abordar seriamente a crise ecológica global ou a luta de classes contra o  
capitalismo, necessária para evitar a ultrapassagem dos pontos de ruptura planetários,  
Žižek declara alegremente que “Temos de assumir a catástrofe como o nosso  
destino90.  
Tal irracionalismo em relação à crise ambiental do capitalismo também é evidente  
na resposta de Žižek à atual ameaça crescente de um conflito nuclear entre a OTAN e  
a Rússia no contexto da Guerra da Ucrânia. De fato, assistimos hoje a uma nova  
destruição da razão, produto de um anti-humanismo confuso misturado com fervor  
nacionalista. Isso é evidente na insistência de Žižek para que a OTAN continue a apoiar  
a guerra na Ucrânia e se afaste das negociações de paz, apesar dos perigos crescentes  
de uma disputa {exchange} termonuclear global que quase certamente aniquilaria toda  
a humanidade, simplesmente para “salvar a pele”. Outros, como Noam Chomsky, que  
levantaram a questão da relação com a crescente ameaça exterminadora global, são  
erroneamente descartados por Žižek como apoiadores da Rússia de Putin. Em vez  
disso, ele apela a uma OTAN global mais forte, capaz de combater tanto a Rússia  
quanto a China. Nos é dito que a mesma “lógica” que governa a insistência da Rússia  
89 Slavoj Žižek, “Where Is the Rift?: Marx, Lacan, Capitalism, and Ecology,” Los Angeles Review of Books  
20 (January 2020); Žižek, Less than Nothing, 207. Žižek afirma que existem quatro formas relevantes  
de materialismo hoje: (1) o materialismo vulgar reducionista (psicologia cognitiva, neo-Darwinismo), (2)  
o ateísmo (Christopher Hitchens), (3) o materialismo discursivo (Michel Foucault), e o (4) “novo  
materialismo” (Deleuze). O Marxismo é excluído da lista deliberadamente. A única rota para um  
“materialismo dialético” viável, ele alega, contra Engels e Lênin, é por meio do “materialismo sem  
materialismo”, via idealismo hegeliano levado a seus limites e reinterpretado por Jacques Lacan e  
Heidegger. A “nova fundação do materialismo dialético”, de Žižek, enquanto uma filosofia niilista do  
“menos que nada”, encontra sua justificação final não em Hegel ou Marx, mas em Heidegger. Slavoj  
Žižek, Absolute Recoil, 5-7, 413-414.  
90 Žižek, Less Than Nothing, 983-984, 207; Žižek, Absolute Recoil, 31, 107. Žižek apresenta a projeção  
da catástrofe como nosso destino enquanto uma “solução radical”, em termos de uma jogada filosófica.  
Contudo, a projeção não pode ser vista nem como “radical”, nem como uma “solução”, mas, sim,  
simplesmente como uma projeção do suicídio cósmico como destino, dado que, em sua análise, não é  
feita nenhuma tentativa de apontar um caminho de lutar contra esse “destino”. Para uma crítica da  
abordagem idiossincrática e idealista de Žižek’s à dialética, ver Adrian Johnston, A New Dialectical  
Idealism: Hegel, Žižek, and Dialectical Materialism (New York: Columbia University Press, 2018); ver  
também Adrian Johnston, “Materialism without Materialism: Slavoj Žižek and the Disappearance of  
Matter,” in Slavoj Žižek and Dialectical Materialism, ed. Agon Hamza e Frank Ruda (London: Palgrave  
Macmillan, 2016), 3-22. Como aponta Johnston, a obra de Žižek constitui uma “traição, em vez de uma  
reinvenção, do materialismo dialético” Johnston, “Materialism without Materialism,” 11.  
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O novo irracionalismo  
para que a Ucrânia não seja integrada na OTAN e para que as armas nucleares não  
sejam colocadas em solo ucraniano, o que representaria uma “crise existencial para o  
Estado russo... dita que a Ucrânia também deve ter armas [fornecidas, neste caso, pelo  
Ocidente] e mesmo armas nucleares – para alcançar paridade militar” com a Rússia91.  
Aqui vemos o “suicídio cósmico” de Hartmann como a manifestação suprema do  
intelecto e da vontade que reemerge subitamente em nosso tempo. Mais uma vez, o  
irracionalismo, cultivado nos mais altos níveis intelectuais, que dominou as  
perspectivas do Ocidente no início da Primeira Guerra Mundial, atua para sufocar todas  
as alternativas racionais. Apoiar de forma acrítica os objetivos da tríade imperial  
Estados Unidos/Canadá, Europa e Japão, ou apoiar uma OTAN global no contexto do  
imperialismo tardio, é identificar-se com a irracional vontade de poder no centro  
imperial da economia mundial, conduzindo ou ao eterno retorno da  
exploração/expropriação, ou ao suicídio cósmico de Hartmann.  
Hoje, a Razão exige que tanto a exploração quanto a expropriação, bem como as  
associadas tendências exterminadoras de nosso tempo, sejam ultrapassadas. Isto só  
pode ser realizado, como observou Baran na década de 1960, com base na  
“identidade dos interesses materiais de uma classe [ou forças sociais baseadas em  
classes] com... a crítica da Razão à irracionalidade existente”. A fonte de tal identidade  
de “interesses materiais com uma classe” atualmente reside, principalmente, no Sul  
Global, e com aqueles movimentos revolucionários que, por toda a parte, procuram  
derrubar todo o sistema capitalista-colonial-imperialista, para o bem da humanidade e  
da Terra.  
Como citar:  
FOSTER, John Bellamy. O novo irracionalismo. Tradução por Lara Nora Portugal Penna.  
Verinotio, Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp. 383-413, 2023.  
91 Slavoj Žižek, “The Ukraine Safari,” Project Syndicate, October 13 2022; Slavoj Žižek, “Pacifism Is the  
Wrong Response to the War in Ukraine,” Guardian, June 21 2022; “Ukraine and the Third World,” Kurtay  
Academics, March 4, 2022, kurtayacademics.com; Jonathan Cook, “A Lemming Leading the Lemmings:  
Slavoj Žižek and the Terminal Crisis of the Anti-War Left,” MintPress News, June 23, 2022. Sobre os  
riscos nucleares da Nova Guerra Fria, ver John Bellamy Foster, John Ross, e Deborah Veneziale,  
Washington’s New Cold War (New York: Monthly Review Press, 2022).  
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nova fase  
 
ENTREVISTA  
DOI 10.36638/1981-061X.2023.28.2.691  
Itinerário e encontros com  
Marcuse, Lukács, Adorno1  
por Nicolas Tertulian  
Mikaï Dinu Gheorghiu: Nicolas Tertulian, você é um dos maiores conhecedores da obra  
de Georg Lukács. Poderia relembrar em primeiro lugar sobre suas atividades, ainda  
quando estava na Romênia, que o levaram a se interessar por sua obra [de Lukács]?  
TERTULIAN: No verão de 1969, o ministro da Educação nacional, Miron  
Constantinescu, decidiu fundar um Centro de Estética na Faculdade de Filosofia da  
Universidade de Bucareste. Uma vaga para professor titular e duas para assistente  
foram abertas para concurso. O Centro fazia parte do Departamento de Estética, cujo  
diretor era Ion Ianoși. Eu me apresentei para o concurso e, uma vez sendo candidato  
único, fui contratado sem nenhuma dificuldade para o cargo de professor titular. Foi-  
me pedido que ministrasse aos membros do departamento e aos estudantes uma aula  
tratando sobre “o problema do estilo”, temática à qual eu já havia dedicado diversos  
artigos. No decorrer dos meus oito anos como professor, eu organizei dois colóquios  
científicos, durante os quais apresentei palestras sobre a estética de Schopenhauer —  
o texto dessa palestra foi publicado em 1977 na minha obra Experiență, artă, gîndire2  
[Experiência,  
arte,  
pensamento]  
e
sobre  
“Antropomorfização  
e
desantropormofização”, cujo texto foi retomado em meu livro Critică, estetică, filozofie  
[Crítica, estética, filosofia], publicado em 1972. Em 1972, eu defendi minha tese de  
doutorado no Instituto de Filosofia da Academia, sobre o tema Benedetto Croce e  
Georg Lukács ou sobre as relações entre estética e filosofia, publicada no mesmo  
1Tradução feita a partir da edição em francês publicada em TERTULIAN, N. Itinéraire et rencontres avec  
Marcuse, Lukács, Adorno. [Entrevista concedida a] Mihaï Dinu Gheorghiu. Tradução para o francês de  
Lucie Guesnier. Revue Actuel Marx, Paris, v. 65, 2019, p. 135-148. Disponível em:  
Gabriella Segantini (mestranda em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)). Revisão  
técnica por Ester Vaisman (Professora Titular aposentada do Departamento de Filosofia da Universidade  
Federal de Minas Gerais (UFMG)).  
2 As obras cujos nomes aparecem em francês ou na língua original não possuem ainda tradução para o  
português. Tomamos a liberdade de fazer a tradução livre dos títulos, que aparecem entre colchetes  
depois do título em língua estrangeira (N.T.)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2 jul-dez, 2023  
nova fase  
   
Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
ano sob o título Critică, estetică, filozofie.  
Durante os anos 1974-1975, ministrei um curso de estética e sociologia da  
literatura para os estudantes da Faculdade de Filosofia. Tive a sorte de desfrutar de  
uma audiência de ótima qualidade durante o curso. Eram todos excelentes estudantes,  
o mais notável dentre eles foi certamente George Voicu, que dedicou sua monografia  
de conclusão de curso a Lucien Goldmann e, mais tarde, publicou alguns livros muito  
valiosos, dos quais um dentre eles é uma impactante radiografia crítica dedicada a Nae  
Ionescu, o mentor da “nova geração”3. Um outro aluno, Râpeanu, demonstrou reais  
qualidades de sociólogo. Para minha enorme surpresa, minha proposta de prosseguir  
com esse curso no ano seguinte foi recusada. A decisão partiu de um militante do  
Partido cuja função era exercer um controle ideológico na Faculdade de Filosofia. Eu  
pedi explicações a Petre Constantin, secretário da Propaganda na Prefeitura de  
Bucareste, sobre os motivos da interdição que acabava de ser anunciada. A resposta  
que me deu soou como um veredito: “Você não tem aprovação do Partido para  
ministrar esse curso”. Esse conflito teve lugar durante o outono de 1975. Lutei em  
vão para obter o direito de continuar a partilhar com meus alunos os resultados de  
minhas pesquisas na área de estética e de sociologia literária: eu havia publicado  
alguns livros e uma tese de doutorado cujos temas tratavam dessas temáticas, eu havia  
participado do Congresso Internacional de Estética de Upsala (1968), com uma  
palestra que constava nos Anais do Congresso, assim como no Congresso de  
Bucareste (1972), no qual, na qualidade de relator, eu havia sintetizado oito a dez  
comunicações. Mas foi uma causa perdida. Petre Constantin tomou nota de todos os  
meus argumentos e até mesmo me prometeu não sem ironia que leria minhas  
obras. Mas manteve-se firme em sua posição. Dois anos mais tarde, em 1977, foi-me  
anunciado que eu deveria deixar a Universidade, pois a vaga que eu ocupava até então  
seria suprimida. Em troca, ofereciam-me como única alternativa um cargo de  
3
A Nova Geração romena (Geração de 1927, também conhecida como geração Criterion, embora  
existam distinções entre a geração Criterion e a Nova Geração) era composta por jovens intelectuais  
progressistas romenos, unidos por amizade e curiosidade intelectual. Apesar das tendências  
inicialmente progressistas do grupo, principalmente em 1932-33, diversos membros da Nova Geração  
foram atraídos pelo fascismo da Garda de Fier (Guarda de Ferro, também conhecida como Legião do  
Arcanjo Miguel) fundada em 1927 por Corneliu Cordreanu, gerando distensões internas e o eventual  
rompimento da geração Criterion. Exemplo disso foi o a hostilidade entre Mihail Sebastian e seu amigo  
Mircea Eliade, ambos integrantes da Nova Geração, em razão do envolvimento deste com a extrema-  
direita e de suas simpatias pela Guarda de Ferro e por Cordreanu. Os jovens da Nova Geração foram  
profundamente influenciados por Nae Ionescu, conhecido antissemita e apoiador da Legião do Arcanjo  
de São Miguel. (CALINESCU, M. The 1927 generation in Romania: Friendships and Ideological Choices  
(Mihail Segastian, Mircea Eliade, Nae Ionescu, Eugène Ionescu, E. M. Cioran), 2002). (N.T.)  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 28 n. 2, pp. 414-428 - jul-dez, 2023 | 415  
nova fase  
 
Entrevista com Nicolas Tertulian  
pesquisador em um dos institutos da Academia (a saber, o Instituto de História da  
Arte, seção de teatro).  
M.D.G.: A área de pesquisa foi utilizada pelas sociedades que operam sob o regime do  
“socialismo real” como isolamento dos elementos indesejáveis, que o regime gostaria  
de excluir do contato com os estudantes. Você estava nessa situação?  
TERTULIAN: Lutei ferozmente para salvar o meu cargo na universidade, pois eu estava  
profundamente convencido de que a supressão de uma vaga preenchida por meio de  
concurso era um ato totalmente ilegal, mas eu lutava contra moinhos de vento. Fui  
várias vezes recebido em audiência, por Paul Niculescu-Mizil, ministro da Educação  
Nacional, depois por Suzana Gâdea, ministra do Ensino Superior. Fui também recebido  
pelo diretor de gabinete de Cornel Burtică, então secretário da Propaganda no Comitê  
Central e enviei uma mensagem a Olivie Clătici, secretária do Centro Universitário de  
Bucareste. Mas, toda vez, recebi invariavelmente a mesma resposta, que era um  
pretexto que permitia justificar meu afastamento da universidade. Eu até mesmo apelei  
ao reitor Ciucu, que também, participou dessa farsa. O motivo invocado se baseava na  
declaração de Ion Ianoși, diretor do Departamento de Estética, que atestava que a  
carga horária disponível do curso era insuficiente para permitir a continuidade de  
minhas atividades. É necessário destacar que estética não era lecionada somente na  
Faculdade de Filosofia, mas também em diversas Faculdades de Filologia: a Faculdade  
de Língua e Literatura romena e a Faculdade de Línguas Estrangeiras. Toda  
argumentação montada pelos meus adversários não teria jamais resistido sem a  
participação ativa de Ianoși.  
Durante o período em que eu fui objeto de medidas vexatórias e  
discriminatórias que me afastavam de minhas atividades universitárias habituais,  
qualificando-me como persona non grata na Universidade, paradoxalmente, eu recebi  
do exterior convites para participar de colóquios de estética, assim como de  
conferências, nas quais eu apresentaria os resultados de minhas investigações. Assim,  
em 1975, eu realizei uma conferência introdutória em um colóquio internacional de  
estética em Amersfoort (Holanda) “sobre a autonomia e heteronomia da arte”. No  
princípio do ano de 1977, depois do terrível terremoto que atingiu o centro do país,  
recebi um telegrama do Japão que me havia sido endereçado por Tomonobu Imamichi,  
diretor do Instituto de Estética de Tóquio (nós nos tínhamos conhecido em Upsala). Ele  
me colocou a par das notícias sobre as consequências do terremoto e, ao mesmo  
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nova fase  
Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
tempo, me convidou para participar de um colóquio internacional de filosofia da arte,  
para o qual Paul Ricœur havia sido também convidado, assim como o esteta Helmuth  
Kuhn, de Munique. Mencionei um “paradoxo”: de fato, quando fui recebido pelo  
secretário Cornel Burtică, ele queria me assegurar que eu receberia sem dificuldades  
meu visto para o Japão, salientando, ao mesmo tempo, que minha saída da  
universidade seria irreversível, e que dali em diante seria inútil levantar de novo a  
questão no futuro. Anos mais tarde, me deparei com um livro de Mihail Pelin, um  
personagem de caráter duvidoso que teve acesso aos dossiês da Securitate4. Ali  
descobri um relatório da Securitate endereçado ao Comitê Central, no qual uma  
discussão em nosso apartamento da Rua Ştirbei Vodă foi relatada, em que minha  
esposa e eu próprio havíamos mencionado a possibilidade de juntar-nos ao movimento  
de solidariedade à Carta 77 tcheca5. Compreendi então o que se ocultava por trás da  
decisão de minha expulsão da universidade.  
Foi-me então arranjado sem dificuldade o visto para Tóquio, do qual me  
beneficiei muito, pois graças ao convite de Imamichi, passei um mês na capital do  
Japão, onde participei de seminários e apresentei uma palestra intitulada Critică și  
valore [Crítica e valor] em um colóquio organizado pelo próprio Imamichi; uma síntese  
dessas atividades se encontra no texto Interferența culturilor [A Interferência de  
Culturas], reproduzido no meu livro Perspective contemporane [Perspectiva  
contemporânea] Nesse período, fui então definitivamente afastado do ensino  
universitário. Meu encontro com Paul Ricœur (em Tóquio eu assisti à sua conferência  
“Psicanálise e hermenêutica”) me foi de grande ajuda: ele publicou na Revue  
4
Departamentul Securității Statului, a polícia secreta romena, criada em 1948 com ajuda da unidade  
de contrainteligência do Narodniy Komissariat Vnutrennikh Diel (Comissariado do Povo de Assuntos  
Internos ou NKVD) segundo o modelo soviético. A Securitate foi uma das maiores (proporcionalmente  
à população romena) e mais brutais dentre as polícias secretas do chamado Bloco Socialista. O D.S.S.  
foi dissolvido depois da deposição Nicolae Ceaușescu em 1989 e suas atividades foram transferidas  
para outras instituições. (DELETANT, D. The Securitate Legacy in Romania. In. WILLIAMS, K. & DELETANT,  
D. Security Intelligence Services in New Democracies: The Czech Republic, Slovakia and Romania.  
Londres: Palgrave Macmillan, 2001. pp. 159-210) (N.T.)  
5
A Charta 77 (Carta 77) foi uma declaração demandando aos dirigentes comunistas da República  
Socialista da Checoslováquia o respeito não só às leis do país, mas também os princípios de direitos  
humanos declarados nos Acordos de Helsínquia, dos quais o governo checo era parte. A Carta 77 foi  
publicada em janeiro de 1977 e foi assinada por 241 personalidades da vida cultural da  
Checoslováquia, incluindo o futuro presidente da República Checa, Václav Havel, proeminente figura na  
chamada Revolução de Veludo. A divulgação da Carta 77 e [a]os signatários da declaração sofreram  
forte retaliação do regime tcheco. (TAMKIN, E. In Charter 77, Czech Dissidents Charted New Territory.  
Foreign Policy. 3 fev. 2017. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2017/02/03/in-charter-77-czech-  
dissidents-charted-new-territory/. Acesso em: 14 de junho de 2023. Charter 77. Economic and Political  
Weekly, v. 12, n. 21, 21 mai. 1977, pp. 831-833. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/4365612.  
Acesso em: 14 de junho de 2023) (N.T.)  
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Entrevista com Nicolas Tertulian  
métaphysique et de morale, da qual ele era o diretor, um texto sobre a Ontologia6 de  
Lukács que eu havia-lhe confiado em Tóquio, e mais tarde ele apoiou minhas tentativas  
para conseguir um cargo de professor na França7.  
M. D. G.: Você teve a oportunidade de encontrar personalidades tais como Jean  
Starobinski, Gaëtan Picon e Herbert Marcuse. Poderia nos falar sobre as impressões  
que foram deixadas por eles em tais encontros?  
TERTULIAN: Certo dia, Georges Schlocker, um amigo suíço crítico de teatro, cuja mãe  
era de origem romena, conseguiu para mim uma viagem à Suíça. Em Zurique, fui ao  
famoso alfarrábio de Theos Pinkus, que era um bom amigo de Lukács e de Ernst Bloch  
(que conheci mais tarde em sua casa em Tübingen). À ocasião desse périplo na Suíça  
eu também conheci Konrad Farner, um eminente crítico de arte, grande conhecedor da  
arte moderna, autor de uma coletânea de textos prefaciada por Lukács, publicado nas  
Edições Luchterhand. Foi ainda em Zurique que conheci Hans Heinz Holz, um discípulo  
de Ernst Bloch, importante especialista da obra de Leibniz e formidável dialético, que  
eu encontraria de novo mais tarde, por ocasião de diversos colóquios.  
O acontecimento central dessa viagem à Suíça, que se desenrolou na segunda  
metade dos anos 1960, foi o encontro com Jean Starobinski em Genebra.  
Personalidade proeminente na crítica literária francesa, Starobinski presidia os  
Encontros Internacionais de Genebra, inaugurados em 1946, aos quais ele  
regularmente me convidou a participar entre 1969 e 1979.  
Starobinski me presenteou com sua obra La Relation critique [A relação crítica],  
na qual os princípios de seu método de análise crítica de obras literárias foram  
expostos com clareza e refinamento exemplares. Seu magistral estudo sobre Leo  
Spitzer e a crítica estilística particularmente chamaram minha atenção, dado que eu  
mesmo dediquei um ensaio sobre o assunto em dois números da Viața românească  
(2-3, 1957). Por ocasião de uma discussão com Starobinski, eu expressei meu desejo  
de conhecer seu ponto de vista acerca da crítica sociológica de Lucien Goldmann  
(aquilo que o autor da notável obra sobre Pascal e Racine, Le Dieu Caché8 [Deus  
6
A Ontologia foi publicada no Brasil em dois volumes sob o título Para uma ontologia do ser social.  
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Editora Boitempo.  
7
Esse texto foi publicado em português como TERTULIAN, N. György Lukács e a reconstrução da  
ontologia na filosofia Contemporânea. In. VAISMAN, E. & VEDDA, M. (org.). Lukács - Estética e Ontologia.  
São Paulo: Alameda, 2014. pp. 15-76  
8 Referência ao deus absconditus de Blaise Pascal. (N.T.)  
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Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
abscôndito], chamou de “estruturalismo genético”). Compreendi então o teor de suas  
reservas em relação ao “sociologismo” de Goldmann. Eu partilharia em grande parte  
suas reservas, que o próprio Lukács havia também expressado, como eu iria descobri-  
lo mais tarde. Quis então saber mais sobre seu ponto de vista em relação à Estética [A  
peculiaridade do estético] de Lukács, pois eu sabia que ele havia lido. Starobinski me  
confidenciou que estava em desacordo com o juízo negativo do esteta marxista sobre  
a psicanálise freudiana. Aliás, o último tomo de sua obra La relation critique foi, nesse  
sentido, dedicada à fecundidade da psicanálise para a compreensão da literatura.  
M.D.G.: Seu encontro com Gaëtan Picon foi tão proveitoso como foi o com Starobinski?  
TERTULIAN: Visitei Picon na segunda metade dos anos 1960, em seu gabinete de  
trabalho do Ministério da Cultura em Paris (sendo próximo de André Malraux, o  
ministro o havia nomeado Diretor Geral das Artes e das Letras). Na metade dos anos  
1960, escrevi um artigo publicado na Viața românească que tratava de seu livro O  
escritor e sua sombra9. Nessa obra, Picon pretendia dissociar os “juízos de existência”  
dos “juízos de valor”, sua tese foi a seguinte: as obras literárias, em sua especificidade  
estética, são objeto de juízos de valor (elas são “valores”), de modo que todos os  
sistemas da estética (de Hegel a Taine e de Volkelt a Utitz) consideram-nas como  
“existências”, ocultando assim sua dimensão propriamente estética, que apenas o  
verdadeiro ato crítico pode atingir. Picon se situava assim na linhagem da tradição  
crítica impressionista francesa, manifestando ao mesmo tempo um certo conhecimento  
dos trabalhos da estética sistemática, que ele fundamentalmente rejeitava. No artigo  
que escrevi sobre seu livro, defendi a estética filosófica, embora não conhecesse ainda  
os textos de estética de referência, como aqueles de Ingarden ou de Dufrenne, por  
exemplo.  
Durante minha discussão com Picon, fiz referência à Estética de Lukács, e, em  
seguida, o crítico francês, diretor de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences  
Sociales, convidou-me a expor as principais ideias da estética lukácsiana em seu  
seminário da EHESS. No decorrer do inverno de 1970-1971, aproveitei, assim, por  
três meses, o convite. Era a primeira vez que eu entrava em contrato com essa  
instituição, que depois iria me oferecer a possibilidade de instalar-me na França. É ao  
finado Gaëtan Picon (falecido em 1976) que eu devo esse primeiro passo decisivo.  
9 PICON, G. O escritor e sua sombra. São Paulo: Editora Edusp, 1969.  
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Entrevista com Nicolas Tertulian  
Graças a Jean de Beer, fiquei hospedado, por toda a duração da minha estada  
parisiense, em um quarto no apartamento do PEN-club francês. Foi ali que eu redigi  
minuciosamente minha intervenção, que eu iria também apresentar em outro seminário  
da EHESS, o de sociologia literária, conduzido por Jacques Leenhardt, o sucessor de  
Lucien Goldmann. Para minha enorme surpresa, Gaëtan Picon, tomando a palavra para  
comentar minha intervenção, insistiu especialmente no conceito de mimesis e nos  
valores heurísticos. Sua assistente, Geneviève Bollème, mostrou-se particularmente  
sensível à influência de Vico sobre Lukács e aos elogios que este fazia à grande obra  
do pensador italiano, Ciência Nova10. Picon mencionou o livro de Lukács dedicado ao  
romance histórico, no qual ele via um exemplo, por excelência, dos métodos do esteta  
húngaro.  
M.D.G.: Gostaríamos de saber como você conheceu Herbert Marcuse, e o que o levou  
a editar, em 1977 na Romênia, um volume reunindo seus escritos filosóficos nas  
edições Editura Politică.  
TERTULIAN: Conheci Herbert Marcuse em 1966 durante o Fórum d’Alpbach, em uma  
estância dos Alpes do Tyrol, onde anualmente, durante o verão, ocorriam os encontros  
internacionais, reunindo participantes do Leste e do Oeste. A Áustria era o centro do  
debate Leste-Oeste e, junto de D. R. Popescu, havíamos participado do Fórum de  
Alpbach na qualidade de delegados da União de Escritores11. Foi nesse contexto que  
encontrei Hans Mayer, historiador e literato, que havia deixado a República  
Democrática da Alemanha em 1963 para se instalar na Alemanha Federal, assim como  
George Steiner, a quem eu iria encontrar de novo alguns anos mais tarde em Genebra,  
onde ele ensinava literatura comparada na Universidade. Herbert Marcuse, professor  
em São Diego, na Califórnia, havia sido convidado a apresentar um seminário dedicado  
ao seu primeiro livro sobre Hegel, Hegels Ontologie und die Theorie der  
Geschichtlichkeit [A ontologia de Hegel e a teoria da historicidade], escrito a partir de  
sua tese de doutorado orientada por Heidegger e publicado em 1932 (ainda que  
10 VICO, G. Ciência Nova. São Paulo: Editora Ícone, 2017  
11  
A Uniunea Scriitorilor din România é uma associação profissional de escritores romenos fundada em  
março de 1949 pela República Socialista da Romênia. A União foi criada pelo regime romeno para  
substituir a antiga Societatea Scriitorilor Români (Sociedade de Escritores Romenos) (Disponível em:  
https://en.m.wikipedia.org/wiki/Writers%27_Union_of_Romania. Acesso em: 10 de junho de 2023)  
(N.T.)  
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Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
pareça que o autor de Ser e Tempo12 não tenha na realidade verdadeiramente  
orientado esse trabalho).  
O seminário de Marcuse em Alpbach era frequentado, principalmente, por  
jovens universitários da Alemanha Ocidental. Eu tive a oportunidade de conversar com  
Marcuse no terraço do hotel onde os convidados do Fórum se hospedavam, bem como  
de abordar com ele a Estética de Lukács, que o filósofo americano parecia conhecer.  
Marcuse disse-me que tinha um projeto de elaborar, por sua vez, uma síntese de suas  
reflexões estéticas, depois da publicação de seu livro O Homem unidimensional13 (obra  
que não conhecia ainda seu sucesso planetário, mas que, dois anos mais tarde, o  
tornaria famoso). Ele estava, contudo, insatisfeito com o hábito dos autores de tratados  
de estética de elaborar uma teoria diferente para cada tipo de arte. Lukács não era  
exceção, muito pelo contrário: na Estética, ele não somente tinha dividido seu tratado  
em diversos estudos sobre a música, a arquitetura e o cinema, mas ele analisava  
também as artes decorativas e mesmo a jardinagem! Marcuse realizaria seu projeto,  
publicando em 1977 não um tratado ou “sistema” de estética, mas um ensaio  
intitulado A dimensão estética14, situado nos antípodas da estética marxista normativa  
(nisso, ele se aproximava de Adorno).  
Eu revi Marcuse alguns anos mais tarde, em 1969, nos “Encontros  
internacionais de Genebra”, onde o filósofo, já famoso (ele havia se tornado o ídolo  
doas estudantes contestadores de maio de 1968), havia sido convidado a proferir,  
junto com Paul Ricœur, Raymond Aron, o cardeal Daniélou e Ignacy Sachs, uma das  
conferências do programa “a liberdade e a ordem social”. No dia de sua conferência,  
eu lhe telefonei no hotel onde estava hospedado (Hotel des Bergues, conhecido por  
ter sido o hotel favorito de Nicolae Titulescu, personagem central da democracia  
romena do entre guerras), e sugeri uma entrevista, durante a qual eu tencionava  
propor-lhe algumas questões acerca dos fundamentos filosóficos de seu pensamento.  
Ele me encontrou no dia seguinte no hotel e eu pude, de certa forma, satisfazer minha  
curiosidade em relação à síntese original que ele havia feito em seu magistral Eros e  
civilização15 entre a filosofia de Marx e a metapsicologia de Freud. De volta à Romênia,  
publiquei na Gazeta literara [A gazeta literária] uma resenha e um comentário sobre  
12 HEIDDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.  
13  
MARCUSE, H. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São  
Paulo: Editora EdiPro, 2015.  
14 MARCUSE, H. A dimensão estética. São Paulo: Edições 70, 2007.  
15 MARCUSE, H. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2017  
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Entrevista com Nicolas Tertulian  
os encontros de Genebra, retomado também em meu livro Critică, estetică, filozofie e,  
mais recentemente, em uma nova versão, no volume Pourquoi Lukács.  
A edição em língua romena dos textos filosóficos (Scierior filosofice) de Herbert  
Marcuse, na qual eu escrevi uma ampla biografia intelectual, foi recebido como um  
acontecimento editorial: depois de 1989, Editura Trei publicou a tradução de Eros e  
civilização, a fim de continuar o que havia sido iniciado em 1977.  
Autor de um livro extremamente severo intitulado O Marxismo Soviético16,  
Marcuse era muito malvisto pelos ideólogos stalinistas e neosstalinistas. Na Romênia,  
Marcuse não era apreciado, particularmente no seio da Escola do partido “Stefan  
Gheorghiu”. Os representantes do establishment se mostravam ostensivamente  
indispostos com sua tendência libertária, assim como pelo poderoso caráter  
emancipador de seus escritos.  
M.D.G. Você teceu estreitas relações com Georg Lukács, frequentou sua casa em  
Budapeste e dedicou a ele diversos livros e estudos publicados em Bucareste, Paris,  
Roma, São Paulo. Você dedicou a ele uma grande parte de sua tese de doutorado em  
1972. Quais lembranças você guarda da personalidade daquele que, em seus escritos  
culminando com a Estética ou a Ontologia do ser social, sem esquecer dos  
memoráveis Teoria do Romance17 (1916) e História e Consciência de Classe18 (1923)  
profundamente marcou o pensamento do século?  
TERTULIAN: É necessário sublinhar o papel do notável germanista italiano Cesare Cases  
na minha aproximação com Lukács. Conheci Cases em Roma em 1965, onde eu havia  
sido convidado por Giancarlo Vigorelli. Ele se mostrou sensível à minha curiosidade  
apaixonada por nosso mestre comum e escreveu uma carta ele sugerindo  
calorosamente que me conhecesse, sobretudo porque eu passaria por Budapeste no  
caminho de volta. Lukács, que muito estimava Cases e que tinha grande respeito por  
suas qualidades humanas e intelectuais, recebeu-me em sua casa durante minha escala  
em Budapeste imediatamente depois de minha ligação telefônica. A partir desse  
momento, todos os anos, quando chegava na capital húngara, eu era recebido para  
uma conversa de algumas horas com o velho filósofo, durante as quais, discutíamos  
suas obras e minhas interpretações diversas. Eu ouço ainda hoje a voz grave e  
16 MARCUSE, H. O Marxismo Soviético. [S.I]: Editora Saga, 1969  
17 LUKÁCS, G. Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2009  
18 LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.  
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Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
profunda daquele que atendia o telefone para responder às minhas ligações: “Ah! Es  
ist schön, dass Sie gekommen sind!” [Ah! Que bom que você veio!]. Aconselhado por  
Lukács, eu também conheci seus discípulos: Agnes Heller, Ferenc Fehér, György  
Markus, os membros da “Escola de Budapeste”, dentre os quais alguns, depois de  
1989, e sem dúvida mesmo antes, foram progressivamente se afastando de sua  
herança espiritual. Lukács insistia que eu redigisse minha tese de doutorado sobre sua  
estética. Infelizmente, eu a terminei a defendi após sua morte (em junho de 1971).  
Contudo, meu primeiro trabalho de síntese sobre sua obra (antes da publicação da  
Ontologia) foi publicada em 1969. Tratava-se de uma introdução a uma seleção de  
seus estudos de história literária, publicada na Edições Univers e traduzida do húngaro  
no periódico Kortars (um fragmento) e em versão integral no periódico Magyar  
Filozofiai Szemle (3-4, 1970). Na França, o texto foi publicado no periódico L’Homme  
et la Société no número de abril de 197119. Lukács o leu em sua versão em húngaro  
e durante minha última visita, em março de 1971 (ele faleceu em junho do mesmo  
ano), fez questão de dizer, quando nos cumprimentávamos, que meu estudo situava  
com justiça a virada na evolução filosófica e política de seu ensaio Tática e Ética,  
publicado em 1919.  
As conversas com Lukács eram sempre um verdadeiro festim intelectual e, como  
observaria o poeta Stephan Spender em um texto publicado no periódico Encounter,  
Depois de uma visita à casa de Lukács, sua voz soava como a de um “milionário do  
saber”, possuído por “die Bildung”, um demônio da “cultura”, como certa vez  
constatou Thomas Mann em seu texto de homenagem publicado por ocasião do  
septuagésimo aniversário do crítico e filósofo.  
Conversávamos em francês, mas durante uma visita que fiz com minha esposa,  
Georgeta Horodincă, em um certo momento ele interrompeu seu inesgotável discurso  
e, pedindo licença a Georgeta, continuou sua exposição em alemão, língua na qual ele  
escrevia, julgando que assim poderia expressar suas ideias filosóficas de maneira mais  
adequada.  
Seu ponto de vista sobre seus contemporâneos muito me interessava,  
sobretudo aqueles da Escola de Frankfurt, como Adorno ou Marcuse, bem como sua  
opinião sobre Martin Heidegger, e particularmente sobre a possível influência de seu  
19  
Esse texto foi publicado no Brasil como capítulo do livro Georg Lukács: Etapas de seu pensamento  
estético, São Paulo, Editora Unesp, 2003, pp 23-65 (N.T.)  
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Entrevista com Nicolas Tertulian  
famoso livro História e consciência de classe (recentemente traduzido em romeno por  
uma editora de Cluj) sobre os principais escritos do filósofo alemão: Ser e tempo (de  
a tese favorita Lucien Goldmann). Eu me interessava também pela evolução de suas  
opiniões sobre Sartre e Merleau-Ponty etc.  
Um dia, em uma conversa com Lukács, mencionei as posições de Adorno. Eu  
tinha em mente o ataque virulento do pensador da Escola de Frankfurt em seu famoso  
texto Erpresste Versöhnung [Uma reconciliação extorquida] contra as teses de Lukács  
expostas em seu opúsculo Significado presente do realismo crítico (1957). Discutindo  
a obra de Beckett, celebrada por Adorno urbi et orbi, mas ao mesmo tempo alvo  
principal das críticas de Lukács (ele visava sobretudo o romance Molloy20), referi a  
afirmação de Adorno em relação ao caráter “objetivo-polêmico” dos personagens  
beckettianos. O semblante de Lukács se tornou grave e ele murmurou: “mas onde  
ele vê a polêmica?”. Na Estética, há uma passagem muito eloquente que traduzia a  
expressão de seu próprio ponto de vista, em que Lukács opõe O Processo21 de Kafka,  
dessa vez objeto de um vibrante elogio, ao romance de Beckett citado acima, rejeitado  
por ele. Permita-me citar essa passagem, que a literatura crítica dedicada ao ponto  
de vista de Lukács sobre a obra de Kafka frequentemente omite a menção: [“Isto  
distingue […] O processo de Kafka do Molloy de Beckett; em O processo, o incógnito  
absoluto do homem particular aparece como uma anormalidade indignante, evocadora  
de indignação, da existência humana, ou seja, ainda que negativamente, sobre a base  
do destino e a sorte da espécie, enquanto Beckett se instala auto satisfeito na  
particularidade fetichizada e absolutizada”]22. Nas páginas finais de Um dia na vida  
de Ivan Denissovich23, o estudo elogioso dedicado ao livro de Soljenitsyne, Lukács  
retorna à oposição que ele estabeleceu entre Kafka e Beckett (em um outro contexto,  
ele estabelecerá uma filiação ideal e surpreendente! entre Swift e Kafka), em  
oposição total com a posição de Adorno, que, no estudo da peça de Beckett, Fim de  
Partida24, afirma que existe uma continuidade entre Kafka e Beckett.  
M.D.G.: Como evoluíram as relações entre Adorno e Lukács?  
20 BECKETT, S. Molloy. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2014.  
21 KAFKA, F. O Processo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2005.  
22  
A tradução desse trecho foi feita utilizando como referência a edição espanhola, cf. LUKÁCS, G.  
Estetica I: la particularidad de lo estetico. Tomo 2: problemas de la mímesis. Barcelona: Ediciones  
Grijalbo, 1966 (N.T.)  
23 SOLJENITSYNE, A. Um dia na vida de Ivan Denissovich. São Paulo: Editora Siciliano, 1995.  
24 BECKETT, S. Fim de Partida. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2010.  
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Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
TERTULIAN: É possivelmente a ocasião para eu mencionar que Adorno, na juventude,  
considerava Lukács como o pensador mais influente (por muito tempo, ele não faltava  
com elogios em relação à Teoria do Romance e História e consciência de classe). Com  
os anos, as coisas mudaram. Um pequeno episódio poderia ilustrar essa virada de  
opinião. Na Itália, eu procurava o livro de um ensaísta e filósofo, Tito Perlini, intitulado  
Utopia e prospettiva in György Lukács [Utopia e prospectiva em György Lukács],  
publicado em 1968. Eu o comprei com a ideia de presenteá-lo a Lukács, pensando  
que poderia interessá-lo. Com efeito, ao folheá-lo, ele modestamente exclamou: “uma  
obra tão grande sobre mim!”. Contudo, ao saber por meio de Cases que Perlini havia  
sido discípulo e admirador de Adorno, ele se retratou: “nesse caso, não há muito o  
que se esperar!”. De qualquer forma, ele não conhecia suficientemente italiano para lê-  
lo.  
M.D.G.: Sei que você teve oportunidade de conhecer Adorno. Você abordou com ele a  
questão de suas relações com Lukács?  
TERTULIAN: No outono de 1966, depois de ter participado das excelentes jornadas  
Teilhard de Chardin em Vézelay25, aproveitei minha viagem ao Ocidente para ir à  
Alemanha Federal e conhecer a famosa Feira do Livro de Frankfurt, uma verdadeira  
revelação para um jovem filósofo como eu, proveniente do outro lado da cortina de  
ferro. Mas Frankfurt era também a sede do Instituto de pesquisa social fundado por  
Horkheimer e Adorno. Reuni coragem e telefonei à sede do Instituto para solicitar uma  
reunião com Adorno. Foi-me concedido o encontro e, no dia seguinte, fui recebido  
pelo autor da Dialética negativa26, trabalho de síntese filosófica cuja publicação havia  
sido anunciada concomitantemente à Feira do Livro.  
M.D.G.: Como se passou a discussão com Adorno?  
25  
Organizadas nos anos 1960 pela Associação Teilhard de Chardin, as journées Teilhard de Chardin  
ocorriam na cidade de Vézelay na França e propunham aos participantes o estudo e discussão da obra  
do padre jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin. Esses eventos atraíam um grupo dos mais variados  
de franceses e estrangeiros (sobretudo estrangeiros provenientes do outro lado da Cortina de Ferro,  
como o próprio Tertulian), contando com a presença de clérigos católicos de diversas ordens (jesuítas,  
dominicanos, franciscanos, carmelitas,…), de teólogos protestantes, judeus e ortodoxos, bem como de  
marxistas e cientistas de diversos campos. (MADAULE, J. Des conférenciers hongrois et polonais  
soulignent l'intérêt de l'œuvre de Teilhard pour les catholiques vivant derrière le rideau de fer. Le Monde,  
20 set. 1963. Disponível em: https://www.lemonde.fr/archives/article/1963/09/20/des-conferenciers-  
hongrois-et-polonais-soulignent-l-interet-de-l-uvre-de-teilhard-pour-les-catholiques-vivant-derriere-le-  
rideau-de-fer_2204067_1819218.html) (N.T.)  
26 ADORNO, T. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009  
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nova fase  
   
Entrevista com Nicolas Tertulian  
TERTULIAN: Em razão de meu atraso, a discussão durou menos tempo do que eu teria  
desejado… Eu estava hospedado em Darmstadt e Frankfurt havia sido tomada de  
assalto por visitantes, e avaliei mal a duração do trajeto de trem entre Darmstadt e  
Frankfurt... Adorno imediatamente chamou atenção para minha falta de pontualidade.  
Entrei então imediatamente in media res: seus embates com Lukács. Eu me permiti  
perguntar se a publicação de seu texto fortemente polêmico Uma conciliação  
extorquida (publicado pela primeira vez em 1958 em um periódico de Berlim Ocidental  
Der Monat) havia sido oportuna. Lukács havia retornado à Budapeste em 1957, depois  
de sua deportação de seis meses com Imre Nagy para Snagov, na Romênia. Foi então  
alvo de ataques por parte do establishment stalinista por ter participado do círculo  
Petöfi e do governo insurgente de Nagy, como ministro da Cultura. Adorno respondeu  
que o conflito com o filósofo marxista tinha sido provocado pelo próprio Lukács, que  
o havia mencionado em um texto publicado em 1956 sob o título A luta entre o  
progresso e a reação na cultura contemporânea27. Essa havia sido a primeira vez, que  
eu saiba, que Lukács mencionava Adorno, que ele definia como “importante crítico e  
teórico alemão”, adicionando: “um campeão (ein Vorkämpfer) da música decadente”.  
Pode-se compreender que tal formulação pudesse ter provocado uma reação violenta  
da parte de Adorno. Foi a isso que ele se referia na resposta que me deu. Na verdade,  
em sua palestra, Lukács fez referência a um texto de Adorno do volume Dissonanzen  
(1956), intitulado Das Altern der neuen Musik [o envelhecimento da nova música], que  
ele usava de argumento em prol de sua tese acerca do esgotamento presumido dos  
recursos da vanguarda. Adorno estava verdadeiramente pouco disposto a conceder  
qualquer crédito às formulações de Lukács do tipo “música vanguardista decadente”,  
que situavam desde o início Schönberg no centro dessa corrente, de igual modo que  
ele [Adorno] recusava seu argumento sobre a decadência (“envelhecimento”) da música  
de vanguarda.  
Quando perguntei se ele conhecia a Estética de Lukács, obra que sintetizava a  
evolução mais recente da visão estética do filósofo húngaro (os dois volumes foram  
publicados em 1963 pelas edições Luchterhand na Alemanha Federal), Adorno  
respondeu ter tomado conhecimento do livro. Pareceu-lhe ser de fato uma grande obra  
do autor, mas, estando assoberbado pela redação da Dialética negativa, obra que o  
27  
Publicado em português na coletânea COUTINHO, C. & NETTO, J. (org.). György Lukács, socialismo e  
democratização escritos políticos (1956-1971). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.  
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Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
havia completamente absorvido no decorrer dos últimos anos, ele não tinha tido tempo  
de mergulhar meticulosamente na Estética lukácsiana.  
Eu teria apreciado saber mais sobre a Dialética negativa, essa síntese de sua  
evolução filosófica, mas o pouco tempo que nos restava não me permitiu satisfazer  
minha curiosidade.  
Mais tarde, na minha casa, comecei a estudar atentamente a Dialética negativa.  
Nesse meio tempo, sua obra póstuma Teoria Estética (1970)28 foi publicada: foi o  
primeiro estudo publicado na Romênia sobre os escritos fundamentais de um dos  
fundadores da Escola de Frankfurt. Mais tarde, na França, eu iria publicar em 1983 no  
periódico L’Homme et la société um artigo intitulado Réflexions sur la Dialectique  
négative [Reflexões sobre a Dialética Negativa], que atrairia a atenção de Jean-François  
Lyotard, ele próprio interessado pela obra filosófica de Adorno.  
Como revela sua correspondência, Lukács, de sua parte também, postergou a  
leitura da Dialética negativa, que lhe havia sido recomendada por Agnes Heller. Por  
volta do fim do ano de 1969, por ocasião de minha visita anual, eu descobri, não sem  
surpresa, que ele havia decidido ler esse livro. Digo “surpresa” porque, apesar de sua  
idade avançada (ele acabava de completar 84 anos), ele não recuou diante da leitura  
desse texto árduo e às vezes muito entediante. “Adorno nega aquilo que constitui a  
essência do ato livre: a escolha de caráter alternativo”, confiou-me Lukács. Quando lhe  
perguntei onde se manifestava uma tal recusa da alternativa, Lukács tirou da estante  
de sua biblioteca o volume e indicou a manifestação dessa recusa adorniana da  
alternativa na página 233, em uma nota de rodapé. Em uma das páginas seguintes,  
na qual Adorno analisava “a morte depois de Auschwitz”, ele anotou uma só palavra:  
Semprún. Lukács opunha ao pessimismo abissal de Adorno o exemplo de Semprún, A  
grande viagem29, no qual, a atitude corajosa do herói confrontada com a situação limite  
de sua deportação para os campos de concentração, era edificante aos seus olhos  
(contrariamente a Cesare Cases, que não partilhava de seu entusiasmo). Relembrei esse  
episódio de minha visita a Lukács em uma página de meu artigo Correspondance  
inédite de Georg Lukács [Correspondência inédita de Georg Lukács], publicado no  
periódico austríaco Neues Forum, depois na França no periódico Europe.  
Sobre minha apreciação mais global sobre Lukács, eu remeto à obra  
28 ADORNO, T. Teoria Estética. São Paulo: Edições 70, 2008.  
29 SEMPRÚN, J. A Grande Viagem. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 1973.  
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Entrevista com Nicolas Tertulian  
recentemente publicada em francês Pourquoi Lukács?.30  
Como citar:  
GHEORGHIU, Mikaï Dinu. Itinerário e encontros com Marcuse, Lukács, Adorno  
Entrevista com Nicolas Tertulian. Verinotio. Rio das Ostras, v. 28, n. 2, pp. 414-428;  
jul-dez, 2023.  
30  
Edição brasileira Tertulian, N. Por que Lukács? Tradução de Juarez Torres Duayer. São Paulo:  
Boitempo editorial, 2023.  
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RESENHA  
DOI 10.36638/1981-061X.2022.27.2.696  
RESENHA  
Os porquês de “Por que Lukács?”  
Gabriella Segantini*  
TERTULIAN, Nicolas. Por que Lukács?. Tradução de Juarez Torres Duayer; revisão  
técnica de Ester Vaisman. São Paulo: Editora Boitempo, 2023. 351 p.  
Em “Por que Lukács?”, Nicolas Tertulian nos oferece, a partir de sua autobiografia  
intelectual, fundamental estudo retrospectivo de sua frutífera relação com a obra e o  
pensamento do filósofo húngaro György Lukács. O livro trata em toda sua extensão  
dessa provocativa questão que lhe dá nome: “por que Lukács?”, esclarecendo ao leitor  
as razões pelas quais Tertulian se dedicou tanto à obra e ao pensamento de Lukács,  
trabalhando arduamente em prol de sua divulgação, bem como da recuperação de  
Lukács e sua filosofia do ostracismo intelectual do qual foi alvo nos países do Leste  
Europeu. Por que Lukács? dedica-se também à recuperação das razões pelas quais a  
obra de Lukács ocuparia (e ainda ocupa) lugar de relevância no contexto do marxismo,  
oferecendo-nos um poderoso antídoto contra a degeneração e vulgarização sofrida  
pelo marxismo nas mãos dos regimes do assim chamado socialismo real. Tertulian nos  
mostra ainda algumas das razões pelas quais Lukács foi durante sua vida (e até mesmo  
na morte) tão vilipendiado no Leste acusado tanto de revisionismo e dissidência, e no  
Oeste de dogmatismo exacerbado e de conciliação e capitulação em relação ao  
stalinismo.  
Respondendo à questão que tem por título, o livro de Tertulian acaba por  
elaborar um retrato essencial da vida intelectual nos países do Leste submetidos ao  
chamado ‘socialismo real’. As experiências de Tertulian na Romênia oferecem um relato  
de primeira mão sobre a vida nos países do “socialismo real” (dentre os quais a  
*
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Direito pela  
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: gabriella.segantini.souza@gmail.com.  
Verinotio  
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Gabriella Segantini  
Romênia é um caso especial e eloquente dos efeitos da deturpação staliniana das  
ideias de Marx), assim como o fazem as experiências de Lukács nos países do Leste  
incluindo a própria União Soviética. Narrando as vexações e perseguições sofridas por  
ele na Romênia e por Lukács na Hungria e na União Soviética, Tertulian mostra a  
situação de intelectuais que buscavam o verdadeiro Marx em meio à maré montante  
do marxismo” oficial uma situação que era, como dizia Lukács, semelhante à dos  
primeiros cristãos de Roma, forçados a viver nas catacumbas.  
A narrativa biográfica de Tertulian nos conta sobre o seu percurso da Romênia  
desde o fascismo de 1938 a 1944, o começo do regime ‘socialista’ romeno até a  
virada nacionalista entre as décadas de 60 e 70 da ditadura de Ceaușescu (1965-  
1989). Durante o período fascista na Romênia, Tertulian, de família judaica em um país  
de fortes tradições antissemitas, foi forçado a usar a estrela amarela e a abandonar  
seus estudos no liceu. Em poucos anos, o pogrom de Iasi (cidade natal de Tertulian)  
levou à morte de mais de 10 mil judeus, condensando “os traços mais sórdidos e  
repugnantes de uma conduta e de uma mentalidade forjadas durante os anos de  
propaganda nacionalista” (Tertulian, 2023, p. 28). Testemunha desses acontecimentos  
brutais, Tertulian conta como ficaria marcado por esses eventos pelo resto da vida,  
nunca tendo deixado de buscar as razões que possibilitaram a barbárie fascista. Trata-  
se inclusive uma das origens da atração do romeno pelo pensamento de Lukács, pois  
viu em Lukács um dos intelectuais europeus que mais se dedicou a compreender e  
elucidar as origens ideológicas do nacional-socialismo e do fascismo de forma geral.  
O fim da ditadura de Ion Antonescu e o começo da instalação no poder do Partido  
Comunista foram recebidos, inicialmente, com alívio por grande parte dos romenos.  
Depois de anos de sofrimento sob o fascismo, a população via o comunismo, que seria  
implementado com a ajuda da URSS, como uma fagulha de esperança e um  
rompimento com o passado fascista. É extremamente evocativa a passagem em que  
Tertulian conta sobre o alívio que ele e o pai sentiram quando, no agosto de 1944,  
viram a retirada dos soldados alemães e a chegada dos soviéticos. Um verdadeiro e  
potente impulso democrático animava os romenos depois de anos de opressão  
fascista, mas logo esse impulso seria confiscado pelo Partido Comunista.  
Embora alguns romenos tenham se alinhado com o comunismo por puro  
oportunismo, grande parte da intelectualidade romena da época via com real  
esperança as ilusões comunistas da época. Como diz Tertulian de forma eloquente “o  
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fato de um ideal emancipador e universal ter sido desviado não retira nada nem da  
força de atração desse ideal nem das motivações daqueles que dentre nós  
sinceramente aderiram à causa da esquerda” (Tertulian, 2023, p. 30), sobretudo  
porque na época não se sabia a extensão do abismo que separava as práticas dos  
regimes do “socialismo real” e os ideais que declaravam serem os seus. Naquela época,  
os romenos desconheciam o gulag, a censura e a natureza repressiva e policial da vida  
sob o stalinismo eram o extremo oposto daquilo que fora propugnado pelo  
marxismo.  
No final da década de 40, Tertulian decidiu se dedicar à causa do proletariado,  
fazendo, segundo ele, a escolha “filosófica e ideológica” de se dedicar ao estudo de  
Marx e seus continuadores entretanto, no plano político, optou por não se engajar  
no Partido ou na Juventude Comunista. Mas foi também nessa mesma época que ia se  
tornando óbvia a pressão do stalinismo sobre os intelectuais romenos, bem como a  
distância crescente entre “as práticas do partido e o espírito da doutrina da qual ele  
usurpou o nome” (Tertulian, 2023, p. 34). Foram sendo cada vez mais endurecidas a  
vigilância e a repressão do partido, a qual se voltara inclusive contra seus próprios  
partidários: militantes, intelectuais e combatentes comunistas que tiveram atuação  
durante a guerra foram perseguidos e reprimidos por divergências mínimas com o  
Partido, ou até mesmo por divergências inexistentes. Tertulian nota ainda o marcado  
antissemitismo das diretivas do Partido quanto aos professores das universidades,  
tomando medidas para melhorar a “composição nacional” do corpo docente,  
substituindo por “arianos puros” aqueles que eram de origem judaica.  
Era dolorosamente evidente como o “espírito vivo do pensamento de Marx, seu  
caráter crítico, desmistificador e emancipador” (Tertulian, 2023, p. 50) foi  
progressivamente abandonado pelo regime romeno da época, afinal, a natureza do  
pensamento marxiano não só era estranha às orientações do Partido romeno, como  
também lhe causava receios de várias ordens. Toda a prática do regime “comunista”  
romeno constituía uma afronta absurda ao pensamento de Marx, que era totalmente  
contrário à censura, à autocracia e ao despotismo do Estado (e ao próprio Estado, na  
verdade).  
À medida que essa dissonância entre as práticas do partido romeno e o  
pensamento marxiano ficava cada vez mais clara, também se tornava mais evidente a  
importância de autores como Lukács para aqueles que, mergulhados nas vulgarizações  
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e distorções do marxismo oficial do Leste, buscavam o ‘verdadeiro Marx’. Nesse  
sentido, Tertulian aponta como seu encontro com a obra de Lukács, que se dedicava  
justamente a esse projeto, não foi de forma alguma fortuito: o jovem intelectual romeno  
encontrou o filósofo húngaro quando buscava um verdadeiro filósofo marxista”  
(Tertulian, 2023, p. 24), aquele que poderia fazê-lo sair da pobreza intelectual que  
caracterizava as interpretações tão triunfalistas quanto simplistas de um pensamento  
que eu imaginava vivo de outra forma” (Tertulian, 2023, p. 24). Foi movido por esse  
desejo que Tertulian encontrou Lukács em 1954, nele conhecendo um Marx diferente  
daquele do “camarada Stálin, das resoluções do camarada Zhdanov ou das brochuras  
do esteta Kamenev” (Tertulian, 2023, p. 24), além de um marxismo que realmente  
propunha um real projeto de emancipação universal, em contraposição àquele  
socialismo realque sufocava o indivíduo sob o aparelho burocrático. Encontrar a  
obra de Lukács na década de 50 teve então sobre Tertulian um efeito que o romeno  
descreve como catártico, enchendo-lhe de entusiasmo.  
Passados alguns anos, quando em 1964 Nicolae Ceaușescu assume o leme do  
regime romeno, convertendo-o em um nacionalismo linha dura que combinava com as  
antigas práticas stalinistas como a glorificação do “ideal comunista” e do Partido.  
Como nota Tertulian, apesar do fato de que o regime se reivindicasse comunista, não  
era possível deixar de notar a clara continuidade entre o regime de Ceaușescu com  
práticas da antiga extrema direita romena nacionalista, tendo em vista o apelo ao  
orgulho nacional e o antissemitismo que marcaram esse período terrível da história  
romena. O “comunismo” de Ceaușescu mostrava-se ainda mais distante do marxismo,  
dado seu desprezo por todo e qualquer tipo de pensamento crítico. Em razão disso,  
qualquer um que buscasse no próprio Marx ou em pensadores verdadeiramente  
marxistas soluções para a prática social romena tornava-se objeto de desconfiança e  
de desprezo dos ideólogos oficiais.  
No período de virada nacionalista, é interessante notar a grande receptividade  
de parte dos intelectuais romenos ao pensamento de Heidegger, apontada por  
Tertulian no capítulo dedicado ao “caldeirão” ideológico romeno. Vivia-se na Romênia,  
na segunda metade do século XX, um clima de nacionalismo exacerbado e de  
proliferação de tendências de restauração, fazendo renascer ideologias conservadoras  
do passado romeno em um contexto de marginalização e rejeição do pensamento  
crítico. Tertulian sublinha a sinergia que havia naquele momento entre o comunismo  
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nacional” romeno e os intelectuais que há tempos nutriam desconfiança em relação ao  
ocidente, de modo que a megalomania nacionalista do regime” (Tertulian, 2023, p.  
195) encontrou ali amplo substrato intelectual. Nesse contexto, o pensamento  
heideggeriano e sua crítica à modernidade ocidental, ao “frenesi da técnica e da razão  
instrumental” (Tertulian, 2023, p. 192) floresceu e certos intelectuais romenos  
passaram a buscar no “culto heideggeriano do Ser a salvação diante das anomalias e  
das malformações da civilização ocidental” (Tertulian, 2023, p. 192).  
Em meio a isso, no pensamento de intelectuais como Theodor Adorno, Jean-Paul  
Sartre e, principalmente, Lukács, Tertulian via um poderoso antídoto contra tanto o  
“marxismo” distorcido do partido, quanto à tendência que se observava de rejeição da  
“análise lúcida das contradições da sociedade” (Tertulian, 2023, p. 191) em prol de  
uma ressurreição das ideologias conservadoras, cuja moeda corrente era a crítica  
romântica da modernidade, com seu cortejo de representações religiosas e místicas”  
(Tertulian, 2023, p. 191). Em razão disso, dedicava-se à divulgação do pensamento  
desses autores na Romênia, tanto por meio de traduções quanto de cursos que  
ministrava na Faculdade de Filosofia da Universidade de Budapeste. Esse projeto de  
divulgação foi recebido com grande satisfação por Lukács, com quem Tertulian  
desenvolveu forte amizade, tendo o autor húngaro expressado em uma carta ao jovem  
romeno seu grande contentamento com a dedicação de Tertulian em divulgar sua obra  
e seu pensamento para o público romeno.  
O fato de Tertulian ter conseguido publicar diversas obras de Lukács na Romênia  
de Ceaușescu pode parecer contraditório, mas, ironicamente, foi possibilitado  
justamente pela própria política do regime romeno. Buscando afirmar o nacionalismo  
e a independência da Romênia em relação à linha da URSS, o regime era marcado por  
certa tolerância na política editorial, a fim de mostrar a aparência de trilhar em um  
caminho distinto dos países do Pacto da Varsóvia, assegurando, assim, sua desejada  
autonomia nacional”, e, o mesmo tempo, não perder o controle absoluto sobre o país,  
por meio de uma “ditadura do mais puro tipo neostaliniano” (Tertulian, 2023, p. 48).  
Todavia, ainda que a obra de Lukács fosse recebida entre os ideólogos oficiais com  
silêncio e desprezo, Tertulian obteve grande sucesso na publicação de várias obras de  
Lukács, como O romance histórico, A teoria do romance, Para uma ontologia do ser  
social e A peculiaridade do estético. Entretanto, não havia como defender um  
pensamento que não só se opusesse ao marxismo stalinista, mas também ao  
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nacionalismo que se expandia, sem sofrer consequências. Foi assim que em 1977  
Tertulian foi ilegalmente expulso da Faculdade de Filosofia de Bucareste. E essa não  
seria a última vez que sofreria com as práticas do regime, sendo que até mesmo depois  
de Tertulian ter deixado definitivamente a Romênia pela França no começo da década  
de 1980, ele se viu alvo das vexações do regime de Ceaușescu (sua esposa e o filhos  
foram impedidos de se juntarem a ele em Paris por mais de um ano).  
Além de se aproveitar da relativa abertura da Romênia para divulgar o  
pensamento de Lukács, Tertulian conseguiu também ter contato pessoal com autores  
que marcariam a história intelectual do século XX, como Theodor Adorno, Martin  
Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Herbert Marcuse e Pierre Bourdieu. Nesses  
encontros, Lukács e sua obra estavam sempre presentes nas discussões às vezes  
inclusive para grande incômodo de alguns dos interlocutores de Tertulian, como  
Heidegger (o alemão não conseguiu esconder não só sua aversão a Lukács, mas  
também a Adorno e a todo pensamento dialético) , fornecendo-nos prova da  
controversa recepção da obra de Lukács no Oeste. Para esses encontros, Tertulian  
dedica vários capítulos de Por que Lukács?, nos quais trata de seus contatos pessoais  
com esses os autores e alguns aspectos de suas obras. Contudo, esses capítulos  
servem sobretudo para tratar das relações desses autores com Lukács e das diversas  
discussões e controvérsias relacionadas à obra do filósofo húngaro, esclarecendo  
diversos pontos e equívocos surgidos sobre o seu pensamento. Tertulian argumenta  
que muitas das controvérsias em torno das posições de Lukács decorrem do fato de  
que seus críticos não se preocuparam em se debruçar com profundidade sobre a sua  
obra madura, com destaque para a A peculiaridade do Estético ou Para uma Ontologia  
do ser social, a fim de compreender os fundamentos filosóficos sobre os quais se  
assentavam as considerações do autor húngaro. Em função disso, Tertulian se propõe  
em Por que Lukács? em esclarecer alguns pontos desses debates.  
Tertulian trata, por exemplo, de algumas controvérsias relacionadas a A  
destruição da razão, dadas as críticas contidas na obra a vários autores importantes  
da tradição filosófica alemã. As teses de Lukács em A destruição da Razão foram  
extremamente mal-recebidas por autores como Theodor Adorno e Leszek Kołakowski,  
indispostos com o fato de Lukács relacionar a obra de autores como Schelling,  
Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzche, Dilthey, Bergson, ou Scheler a um pensamento  
que, se levado aos extremos, chegaria ao nacional-socialismo. Por exemplo, Adorno  
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Os porquês de “Por que Lukács?”  
escreveu em seu ensaio Erpreßte Versöhnung [Uma reconciliação extorquida] que  
Lukács, o “dialético oficial” teria de forma não dialética agrupado todas as tendências  
irracionalistas da história recente sob a categoria de reação e fascismo, afirmando que  
o que A destruição da Razão marcava era a destruição da razão de Lukács1.  
Até mesmo um autor mais próximo da orientação de Lukács como Ernst Bloch  
expressava reservas em relação a A destruição da razão, eis que fora muito ligado à  
filosofia de Schelling na juventude, e influenciado por Nicolai Hartmann, que era grande  
tributário de Schelling e Schopenhauer. Em uma carta a Lukács, Bloch indagava  
ironicamente se haveria realmente “um caminho que leve diretamente da ‘intuição  
intelectual’ a Hitler?” (Bloch apud Tertulian, 2023, p. 89), pois isso conferiria à “latrina  
hitleriana” um brilho desmerecido2.  
Tertulian traz ainda como o apelo à “razão” que Lukács traz em A destruição da  
razão atraiu muitas críticas que acusavam o filósofo húngaro de ‘logocentrismo’ e  
dogmatismo (isso sem falar naqueles que viram na obra uma homenagem a Stalin…).  
Mas como Tertulian bem nota, diversas dessas críticas e acusações derivavam-se do  
fato de que a razão da qual Lukács trata em A destruição da razão estaria implícita na  
obra, devendo ser buscada em obras como O jovem Hegel, Para uma ontologia do ser  
social e na Estética a fim de compreender os fundamentos ontológicos do que Lukács  
trata por “razão” (algo que diversos de seus críticos não fizeram). O autor romeno  
esclarece que longe de trazer ‘razão’ como o ‘entendimento’ kantiano, sendo que  
“razão” ou “racionalidade” na obra de Lukács possuem fundamento “na coesão ou na  
coerência das categorias, […] em seu encadeamento rigoroso” (Tertulian, 2023, p. 94)  
categorias como Daseinsformen, Existenzbestimmungen [formas de ser,  
determinações de existência], como colocado por Marx e reiterado por Lukács. Como  
esclarece o autor romeno, ao contrário do que vários dos críticos de A destruição da  
razão colocavam, Lukács não era um absolutista da razão, não submetia “o devir do  
real ao tribunal da razão” (Tertulian, 2023, p. 94) — expressão que Tertulian empresta  
1
Am krassesten wohl manifestierte sich in dem Buch ›Die Zerstörung der Vernunft‹ die von Lukács'  
eigener. Höchst undialektisch rechnete darin der approbierte Dialektiker alle irrationalistischen  
Strömungen der neueren Philosophie in einem Aufwaschen der Reaktion und dem Faschismus zu, ohne  
sich viel dabei aufzuhalten, daß in diesen Strömungen, gegenüber dem akademischen Idealismus, der  
Gedanke auch gegen eben jene Verdinglichung von Dasein und Denken sich sträubte, deren Kritik  
Lukács' eigene Sache war. (Adorno, 1973, pp. 153-154)  
2Von der "intellektuellen Anschauung" geht ein gerader Weg zu Hitler? Three cheers for the little  
difference. Und kommt damit nicht ein höchst ungemässes Glänzen an die Fahne, besser in das  
Aborthaua Hitler? (Bloch, E. 1984. pp. 139-140)  
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de Heidegger —, na medida que Lukács ancora a razão em seu “único fundamento  
incontestável: o ser na multiplicidade de suas determinações” (Tertulian, 2023, p. 96).  
Como lembra Tertulian, a questão do romantismo em Lukács também gerou  
muita controvérsia, dado que reconstruindo as origens da ideologia nacional-socialista  
em A destruição da razão, o autor húngaro atribuía ao romantismo e à sua crítica  
regressiva à modernidade papel central. Acerca disso, Tertulian traz importantes  
aspectos da crítica do autor aos românticos, como a crítica lukácsiana uso hipertrófico  
desse nome e as especificidades do romantismo para Lukács, aspectos que são a  
origem de muitas das críticas equivocadas feitas a Lukács. Tertulian aponta como  
Lukács recusa a abordagem que situa o romantismo no conflito entre razão e  
sentimento ou no privilégio da imaginação sobre o entendimento, situando-o de forma  
histórica.  
As posições estéticas lukácsianas costumavam gerar forte desaprovação,  
sobretudo pela sua rejeição das obras de vanguarda, bem como da defesa de Lukács  
do grande realismo clássico. Por exemplo, em 1964, George Steiner escreveu um  
artigo sobre a Estética no qual fala em um suposto isolamento de Lukács com a arte  
moderna, uma crítica que Lukács mesmo contestou, afinal o autor húngaro diversas  
vezes argumentou sobre a permanência do ‘grande realismo’ em vários autores de seu  
tempo. Tratando dessas controvérsias, Tertulian traz como várias das posições  
estéticas de Lukács que tanto atraíram críticas de filósofos e artistas eram muito mais  
nuançadas do que foi atribuído, sugerindo que ao invés de serem indícios de um  
dogmatismo ultrapassado da parte de Lukács, seriam posições fundamentadas em uma  
compreensão da história que possui lógica e coerência.  
É conhecida também a controvérsia entre Lukács e Adorno sobre as vanguardas,  
eis que nelas Lukács via uma forte regressão em relação aos autores realistas do século  
XIX, marcada por uma perda de substância humana, ao passo que o fundador da Escola  
de Frankfurt apreciava enormemente, por exemplo, as inovações de forma do teatro  
de Strindberg em detrimento do teatro de Górki3. Mas como conta Tertulian de uma  
ocasião em que discutiam algumas obras literárias, Lukács se dizia “o menos  
3 Daß Strindberg die bürgerlich-emanzipatorischen Intentionen Ibsens repressiv auf den Kopf stellte, ist  
evident. Andererseits sind seine formalen Innovationen, die Auflösung des dramatischen Realismus und  
die Rekonstruktion traumhafter Erfahrung, objektiv kritisch. Den Übergang der Gesellschaft zum Grauen  
bezeugen sie authentischer als die tapfersten Anklagen Gorkis. (Adorno, 1970, p. 353)  
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Os porquês de “Por que Lukács?”  
lukácsiano de todos os seus discípulos” (Lukács apud. Tertulian, 2023, p. 252),  
importando para ele os critérios do julgamento estético e as questões de princípio,  
isto é, a conexão entre a estrutura estética das obras e a “visão de mundo” que lhes  
subjazem, não tanto suas visões quanto a obras específicas ou autores, as quais estaria  
sempre ponto a mudar.  
Tertulian também trata de uma das principais controvérsias envolvendo Lukács,  
a saber, suas relações com o stalinismo. O autor romeno trata das acusações dos  
muitos críticos de Lukács que denunciavam a obra madura do filósofo húngaro como  
stalinista, algo que marca principalmente os críticos trotskistas de Lukács, que  
pareciam nunca terem conseguido processar as duras críticas lukácsianas à corrente  
fundada por Trotski. Tertulian ilustra suas considerações com as críticas de Isaac  
Deutscher a Lukács, que tratava o período posterior à publicação de História e  
Consciência de Classe como uma renúncia de Lukács de suas posições revolucionárias  
da juventude e uma submissão, ainda que sutilmente, aos “cânones do ‘stalinismo’”  
(Tertulian, 2023, p. 103). O autor da biografia de Trotski via ainda no apreço de Lukács  
à obra de Mann uma evidência da “estética conservadora” de Lukács e seu  
compromisso com os valores burgueses, bem como um alinhamento à linha staliniana  
de conciliação com as forças burguesas, reduzindo-o a “um grande crítico literário  
staliniano” (Tertulian, 2023, p. 103), ignorando completamente como a defesa de  
Lukács do “grande realismo” se opunha diretamente às práticas stalinianas de  
manipulação da arte, bem como a forma como Lukács foi atacado e isolado pelos  
ideólogos soviéticos da política cultural staliniana.  
Tertulian também desafia a tese de Michel Löwy segundo a qual o elogio  
prestado por Lukács ao “realismo hegeliano” na contraposição entre Fichte e Hegel —  
em que o primeiro se mantém confinado nas ilusões jacobinas de seu primeiro período,  
ao passo que o segundo avança em direção à uma “reconciliação com a realidade”, a  
fim de enfrentar a realidade pós-revolucionária da sociedade burguesa, ao invés de  
manter a nostalgia pela restauração da polis grega que marcou seu período de Berna  
indicaria uma reconciliação por parte do autor húngaro em relação à realidade do  
stalinismo, uma conciliação com a prosaica realidade pós-revolucionária (cf. LÖWY,  
1998, pp. 235-236). O filósofo romeno contesta fortemente a ideia desses autores  
segundo a qual o distanciamento de Lukács em relação ao utopismo que marcou  
História e Consciência de Classe e sua assimilação do “realismo hegeliano” não  
significou uma submissão à realidade do Termidor staliniano.  
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Tertulian rechaça ainda a ideia de que O Jovem Hegel seria uma alegoria para o  
caminho de Lukács na Rússia de Stalin, vendo na apologia lukácsiana ao realismo de  
Hegel, isto é, sua reconciliação com o Termidor pós-revolucionário, uma tentativa de  
legitimar o alinhamento de Lukács ao Termidor staliniano. Essa foi a posição defendida  
por Lucien Goldmann, que via no elogio de Lukács ao napoleonismo de Hegel uma  
justificativa implícita da ditadura de Stalin.Tertulian busca mostrar como que, apesar  
do apoio de Lukács em 1926 à via staliniana em detrimento à de Trotsky, um abismo  
separa o pensamento lukácsiano e os esquemas do marxismo stalinista, remarcando  
no que concerne as análises de Hegel feitas por Lukács, Tertulian indaga “qual  
staliniano teria sido capaz de uma reflexão tão fina sobre a ‘tragédia na ética’”  
(Tertulian, 2023, p. 224). O autor de Por que Lukács? nota ainda como durante a  
publicação de O jovem Hegel, Hegel já havia sido anatemizado por Zhdanov por  
supostamente representar a reação da aristocracia contra o espírito da Revolução  
Francesa, representando em sua forma mais pura o stalinismo e sua tendência de  
manipulação da filosofia como instrumento de propaganda manipular. Há de fato  
passagens em O Jovem Hegel com menções positivas a Stalin, como Tertulian não  
pôde deixar de trazer, mas elas devem ser lidas como meras concessões de caráter  
‘protocolar’ ao regime, sendo que uma leitura minimamente atenta da obra de Lukács  
sobre Hegel mostra como ela se situa na antípoda dos dogmas oficiais do stalinismo.  
Tertulian trata ainda sobre o famoso “Caso Naphta”, emblemático da imagem que  
se pintava de Lukács no Ocidente. O “Caso Naphta” refere-se à tese de alguns  
intérpretes segundo a qual Lukács teria servido de modelo para Thomas Mann criar  
Léo Naphta em A montanha mágica, tentando traçar uma relação direta entre as teorias  
de Naphta, que misturavam desde doutrina comunista ao pensamento místico  
medieval. Autores como Yvon Bourdet consideravam que Naphta personificaria uma  
conjunção entre o intelectual comunista de tipo “leninista-staliniano” subserviente aos  
dogmas de seu partido e o fanático medieval, proponente da submissão do  
pensamento à Igreja e aos dogmas religiosos (cf. Bourdet, 1972). Transformando  
Lukács no modelo a partir do qual Mann criou Naphta, fazia-se um retrato de Lukács  
a partir de Naphta, pintando o húngaro como “um protótipo do intelectual sectário,  
fanático, porta-voz por excelência de uma doutrina totalitária” (Tertulian, 2023, p. 76).  
Tertulian considerava que essa aproximação fazia parte da guerra friacontra Lukács  
e seu pensamento, possuindo um caráter ideológico disfarçado, não só se  
transformando Lukács em um símbolo dodescaminho totalitário do pensamento”  
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Os porquês de “Por que Lukács?”  
(Tertulian, 2023, p. 76), mas também totalmente ignorando o humanismo de influência  
hegeliana e marxista que eram fundamentais para o pensamento de Lukács.  
À essa aproximação inclusive o próprio Thomas Mann se opôs duramente quando  
tomou conhecimento do fato de que havia se tornado comum entre seus intérpretes  
ver em Naphta um retrato de Lukács, inclusive porque o escritor alemão possuía  
grande apreço pelo filósofo húngaro. Depois de ler um artigo de Georg Gerster  
defendendo a suposta filiação Naphta-Lukács, Mann teria se irritado a ponto de  
considerar escrever uma réplica, desaprovando de forma absoluta o uso de seu livro  
para pintar tal retrato de Lukács. Contudo, ainda que o próprio Mann desaprovasse a  
ideia de uma filiação entre Lukács e Naphta, essa leitura continuou se proliferando  
enquanto a verdadeira relação entre Mann e Lukács ficou oculta4.  
Ao longo de todo o livro, Tertulian busca se contrapor àqueles que acusavam  
Lukács de conformismo e de capitulação diante dos dogmas do partido, mostrando  
como as últimas obras de Lukács dedicavam-se à uma crítica contínua às distorção e  
simplificação do pensamento marxiano. Por exemplo, as famosas autocríticas de Lukács  
sobre a obra da juventude e seu afastamento em relação a História e Consciência de  
Classe muito exploradas pelos críticos e detratores do húngaro , Tertulian mostra  
que, como o próprio Lukács esclareceu, o filósofo húngaro foi movido por uma  
“necessidade tática” de não se deixar ser acusado pelos partidários do regime oficial  
por seus erros, em uma concessão necessária da parte de um intelectual para que  
pudesse continuar a exercer suas atividades na “longa noite” staliniana e poder  
prosseguir com seu combate dentro do movimento. Entretanto, Lukács também  
afirmou que foi com sinceridade e sem hipocrisia alguma que se afastou das teses  
desenvolvidas na juventude e do que considerava como os maiores erros filosóficos  
ali contidos.  
Não podemos nos esquecer ainda dos impactos da participação de Lukács nos  
eventos de 1956 na Hungria. Além de ter sido preso por sua participação no  
movimento de 56, principalmente em razão de suas conferências e suas intervenções  
no Círculo Petoffi, nas quais Lukács fazia duras críticas ao stalinismo e à desvirtuação  
4 Por exemplo, os textos de Daniel Bell sobre Lukács, que tiveram grande audiência nos Estados Unidos,  
na Inglaterra e na França, tentavam iluminar Lukács a partir de Naphta, no intento de mostrar que a  
“dialética perversa”, o fanatismo, o obscurantismo de Naphta tinham sua origem na fisionomia de Lukács  
(cf. Kadarkay, 1991).  
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do marxismo pelo partido, Lukács foi vítima de um severo ostracismo intelectual e  
político. Lukács se tornou o símbolo do destino reservado a um pensamento  
autenticamente marxista pela burocracia reinante nos partidos comunistas no poder”  
(Tertulian, 2023, p. 44) e a simples menção ao nome do intelectual húngaro provocava  
comentários virulentos por parte dos ideólogos oficiais, inclusive alguns expressando  
descontentamento em relação ao fato de Lukács não ter sido executado por sua  
participação no movimento húngaro de 56. Lukács havia se tornado a personificação  
do espírito do círculo Petoffi e foi considerado o grande iniciador das contestações  
ideológicas ao partido, de tal modo que se tornou objeto de todo o rancor e medo  
que o levante húngaro havia gerado nos dirigentes partidários do leste europeu.  
Evidência disso é como pela simples associação com Lukács, Tertulian tornou-se  
também alvo da ira que tinham os marxistas stalinianos pelo filósofo húngaro.  
Em virtude dessas tensões com a ideologia reinante no Leste, Lukács foi tachado  
de “dissidente”, assim como os outros (poucos) intelectuais que, como ele, “buscavam  
no pensamento de Marx o fermento da resistência contra o que aparecia como um  
desvio patológico de seu pensamento” (Tertulian, 2023, p. 23). É interessante notar  
que, como bem coloca Tertulian, nenhum desses intelectuais eram realmente  
dissidentes, ao menos não no sentido clássico do termo, vez que não questionavam o  
pensamento de Marx em si, apenas a interpretação que lhe foi dada pelos regimes do  
‘socialismo real’, preconizando a crítica dos esquematismos reducionistas do  
stalinismo e uma reforma radical do pensamento corrente em prol de uma reflexão  
mais profunda e fiel à teoria marxiana.  
Apesar dos vários tormentos que afetaram sua vida, desde a prisão e exílio até  
o ostracismo acadêmico, mencionados aqui apenas en passant, podemos dizer que,  
parafraseando o filósofo húngaro, Lukács sempre viveu sob a recusa de continuar a  
contribuir com sua própria alienação, ainda que isso significasse para ele um fim  
trágico. Como escreveu Lukács, citando Lutero, a József Révai, seu ex-discípulo que se  
tornou seu promotor no caso Lukács”, “Hier steh ich, ich kann nicht anders” [Aqui  
estou eu. Não posso agir de outra maneira] (Lukács apud Tertulian, 2023, p. 325).  
Fato é que, como Tertulian aponta, nos vários textos de Lukács publicados depois  
de 56 (data do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e do Relatório  
Kruschev) era marcante como o autor húngaro expressava a necessidade  
imprescindível para uma regeneração do socialismo de um acerto de contas  
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Os porquês de “Por que Lukács?”  
intransigente com o stalinismo, projeto ao qual Lukács dedicou os últimos dez anos  
de sua vida. Lukács “estava convencido de que, sem tal esclarecimento destinado a  
especificar as categorias que estruturaram esse pensamento, a esquerda se encontraria  
desarmada nos grandes confrontos ideológicos da época” (Tertulian, 2023, p. 322). A  
Ontologia e a Estética são produtos desse projeto lukácsiano, inspirado pela convicção  
de que o pensamento marxiano não se confinava na economia ou em uma teoria da  
sociedade, possuindo uma vocação universal. Esses textos são marcados pelo  
rompimento de Lukács com o marxismo stalinista e seus esquemas deterministas e  
teleológicos, no que Tertulian se refere por um “retorno à grande tradição do  
pensamento especulativo” (Tertulian, 2023, p. 55).  
A renovada interpretação de Marx de Lukács traz o gênero humano em sua  
historicidade e em sua universalidade como único sujeito da história, desmitologizando  
o proletariado como o sujeito-objeto idêntico da história trazido em História e  
Consciência de Classe e indo contra o sectarismo do marxismo oficial de sua época.  
Tertulian nota ainda como o “último Lukács” tampouco não hesitou em buscar  
contribuições a seu pensamento nos trabalhos de intelectuais não marxistas, como  
Nicolai Hartmann, Arnold Gehler, Werner Jaeger, Charles Wright Mills, David Riesman,  
William H. Whyte e John Galbraith, indo em sentido oposto à arrogante (e suposta)  
autossuficiência do pensamento stalinista e zhdanovista.  
Por exemplo, ainda que não poupasse críticas ao pensamento de Hartmann5,  
Lukács amparou-se no antiteleologismo de Hartmann na busca de desmistificar o  
necessitarismo e providencialismo do marxismo oficial, que tomava o socialismo não  
como uma possibilidade, mas como momento inevitável da história humana, além de  
combater o monolitismo staliniano, que assumia a via soviética como absoluta. Assim,  
com Lukács, Tertulian afirma que o marxismo do século XX deixa de ser uma “simples  
ideologia de legitimação, destinada a justificar a política dos partidos no poder”  
(Tertulian, 2023, p. 59) para se afirmar como “uma ontologia crítica, chamada a  
interrogar as relações complexas entre a economia, direito, política e ética, o estatuto  
da ideologia, a dialética da alienação e da desalienação” (Tertulian, 2023, p. 60).  
Assim, em Por que Lukács? e, em verdade de todo o trabalho fundamental  
desenvolvido por Nicolas Tertulian de trazer o pensamento de Lukács das sombras em  
5 Ver o capítulo II do volume I Para uma Ontologia do ser social.  
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que foi jogado por seus críticos e detratores, a fim de mostrar Lukács em sua  
verdadeira feição intelectual temos um livro importante para aqueles que desejam  
conhecer a obra de Lukács sem os preconceitos que circundam a obra do autor  
húngaro.  
Referências bibliográficas  
ADORNO, T. “Erpreßte Versöhnung”. In. Notes zur Literatur 2. Frankfurt am Main:  
Editora Suhkamp, 1973  
ADORNO, T. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Editora Suhkamp, 1970  
BLOCH, E. & LUKÁCS, G. Ernst Bloch und Georg Lukács: Dokumenten zum 100.  
Gerburtstag. Budapeste: Archivum Lukács, 1984  
BOURDET, Y. Figures de Lukács. Paris: Éditions Anthropos, 1972  
KADARKAY, A. Georg Lukács: life, thought and politics. Cambridge, Oxford: Editora  
Basil Blackwell, 1991  
KOLAKOWSKI, L. Main currents of marxism: its origins, growth and dissolution. Volume  
III: The Breakdown. Oxford: Clarendon Press, 1978  
LÖWY, M. A Evolução política de Lukács (1909-1929). São Paulo: Editora Cortez, 1998  
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social. Volume I. São Paulo: Editora Boitempo,  
2012  
TERTULIAN, N. Por que Lukács? São Paulo: Editora Boitempo, 2023  
Como citar:  
SEGANTINI, Gabriella. Os porquês de “Por que Lukács?”, Verinotio, Rio das Ostras, v.  
28, n. 2, pp. 429-442; jul-dez, 2023.  
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Volume 28.2  
dossiê  
Arte:  
prática e crítica  
MarxÊreivindicaÊaÊorganizaçãoÊdaÊcabeçaÊregidaÊpeloÊ mundo,Ê masÊ  
nãoÊoÊmundoÊdasÊnotasÊouÊmanchasÊempíricas,ÊeÊsimÊcomoÊtodoÊexistenteÊ  
eÊsignificanteÊporÊsiÊporqueÊéÊ(nãoÊdiscutimosÊaquiÊaÊquestãoÊdaÊgênese).Ê  
OÊpensamentoÊdeixaÊdeÊfalarÊsobreÊsiÊmesmoÊparaÊfalarÊsobreÊasÊcoisas,ÊouÊ  
seja,ÊdeixaÊqueÊasÊcoisasÊ“falem”ÊeÊ“façam”ÊoÊpensamento,ÊpoisÊeste,ÊemÊ  
Marx,ÊéÊhistóricaÊeÊsocialmenteÊconstituído,ÊcomoÊaludimosÊacima.ÊNesseÊ  
sentido,ÊaÊrazãoÊéÊtranscendidaÊpeloÊmundo,ÊcondicionaÊaÊvisãoÊsobreÊele,Ê  
porqueÊéÊcondicionadaÊantesÊpeloÊpróprioÊmundo.ÊOuÊmelhor,ÊnesseÊpro-  
cesso,ÊoraÊtranscende,ÊoraÊéÊtranscendidaÊÊcondicionaÊporÊterÊsidoÊcondi-  
cionada,ÊistoÊé,ÊquandoÊoÊfaz,ÊjáÊoÊfazÊcomoÊresultado.ÊAtente-seÊque,ÊparaÊ  
Marx,ÊqualquerÊdisjunçãoÊaquiÊéÊumaÊformaÊdeÊrenúnciaÊdaÊrazãoÊhistóricaÊ  
eÊdasÊformasÊpelasÊquaisÊelaÊpodeÊserÊedificada.  
NumÊmundoÊinamovívelÊeÊondeÊgraçaÊaÊinamovibilidade,ÊestaÊdeso-  
brigaçãoÊconforta,ÊumÊreconfortoÊutópicoÊsubjetivo.ÊEmÊoutrasÊpalavras,Ê  
quandoÊoÊmundoÊapareceÊincapazÊdeÊseÊmexer,ÊaÊúnicaÊcoisaÊqueÊseÊagitaÊéÊ  
oÊespírito.ÊAquiÊoÊespíritoÊvoltaÊaÊserÊaÊrevoluçãoÊdoÊmundo,ÊtalÊcomoÊosÊ  
neo-hegelianosÊ deÊquemÊMarxÊnosÊfalaÊcriticamenteÊnãoÊapenasÊemÊA ideologia