REVISTA VERINOTIO  
NOVA FASE  
EDIÇÃO ESPECIAL  
A crítica do Direito  
em Marx  
junho  
2024  
VERINOTIO REVISTA ON-LINE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS  
ISSN 1981-061X v. 29 n. 1 - junho 2024  
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SUMÁRIO  
Editorial: 100 anos depois ou 100 anos atrás? ............................ IX  
Vitor Bartoletti Sartori  
A crítica do Direito em Marx  
Edição Especial  
Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em  
Marx: um embate com Pachukanis ...................................................... 01  
Vitor Bartoletti Sartori  
Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da  
Gazeta Renana .................................................................................... 64  
Murilo Leite Pereira Neto  
A questão judaica e as Glosas Críticas: Estado, direito e crítica  
da economia política na obra de Karl Marx entre 1843 e 1844 .............. 103  
Lucas de Oliveira Maciel  
A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em  
A Ideologia Alemã .............................................................................. 129  
Gabriel Müller de Jesus Pinheiro Machado  
O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória: Marx e  
Engels sobre história em A ideologia alemã ....................................... 154  
Edmundo Barboza Filho  
O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária:  
uma análise da função ideológica do direito nos escritos  
marxianos da Nova Gazeta Renana .................................................... 182  
José Roberto Almeida Sales Júnior  
A batalha pelos significados dos Grundrisse e o labirinto criativo  
de leituras marxistas sobre o direito ............…………………...........213  
Moisés Alves Soares  
Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios  
(18571879) ....................................................................................... 238  
Lucas Almeida Silva  
Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva e mostra  
precisamente o oposto dessa relação: Marx diante do salário e a crítica  
marxiana ao direito .........………...................................................... 267  
João Lucas Sales Prates  
De pré-marxiano a propriamente marxiano: o tratamento do crime  
e da punição em dois momentos da obra de Marx ……………………….. 305  
Nayara Rodrigues Medrado  
Os direitos humanos à luz de O capital  
Elementos para uma aproximação (Parte 01) ……………………………….. 336  
Vinícius Casalino  
Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das glosas marginais ao  
Programa de Gotha …………………………………………………..……………….. 367  
Arthur Bastos Rodrigues  
O terreno do direito achado na renda fundiária: introdução a uma  
crítica jurídica a partir do livro III, de O capital de Marx ………..…….. 388  
Ricardo Prestes Pazello  
O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos  
e debates …………………………………………………….……....................…….. 412  
Thiago Aguiar Simim  
Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia …….. 433  
Gabriella M. Segantini Souza  
A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos Etnológicos  
de Karl Marx: os comentários a Henry Sumner Maine …………..……… 465  
Ana Carolina Marra de Andrade  
Tradução  
Quem escreveu o artigo Socialismo dos juristas? Problemas para  
estabelecer a autoria na edição do Volume I/31 da MEGA-2 ................. 493  
Renate Merkel-Melis  
Resenhas  
A gênese da crítica marxista ao direito: um convite à leitura d’  
O papel revolucionário do direito e do Estado, de Piotr Stutchka ......... 502  
Matheus Daltoé Assis  
Continuando com o direito insurgente ………….………….............……. 514  
Marina Marques de Sá Souza  
Pachukanis e o estreito horizonte do Direito ....................................... 521  
Antonio Ugá Neto  
A reconstrução em construção da crítica do Direito de Karl Marx  
por Vinícius Casalino ......................................................................... 536  
Rayan Thales Araújo Maia  
Honoré Daumier  
Avant Audience [Antes da audiência]  
Tipo: Caneta; Tamanho do desenho: 23cm × 8,9 centímetros  
Data: 1860-1865  
EDITORIAL  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.701  
Editorial  
_____  
100 anos depois ou 100 anos atrás?  
Vitor Bartoletti Sartori*  
Qualquer marxista em sã consciência que se envolva com a temática do direito  
é obrigado a reconhecer a grandiosidade da obra pachukaniana. Certamente ele não  
tem a estatura de autores do século XX como Lênin, Lukács e Rosa Luxemburgo (para  
que mencionemos os grandes marxistas desse século); porém, é um autor de enorme  
importância para o marxismo como um todo, e não só para aqueles que estudam a  
esfera jurídica. Ao analisar a crítica marxista ao direito, não levar em conta a obra do  
autor denota desconhecimento ou, pode-se mesmo dizer, má-fé.  
No mesmo sentido, é preciso deixar claro que a recepção da obra de Pachukanis  
no Brasil deve muito a um autor em específico: Márcio Bilharinho Naves, a quem a  
crítica marxista ao direito brasileira deve muito. Em um momento em que, por aqui, o  
ecletismo teórico e a falta de rigor imperavam no tratamento marxista do tema, Naves  
foi o farol de toda uma geração. Não é exagero dizer que o filósofo althusseriano foi  
o principal responsável pela maior seriedade e compromisso teórico da geração  
presente, na qual grande parte dos autores que escreveram nesse número da Verinotio  
se enquadra. Também é preciso destacar que, ainda hoje, o autor de Direito e  
marxismo é a maior referência na temática.  
Nunca é demais destacar: a dívida dos brasileiros que realizam a crítica marxista  
ao direito diante de Márcio Naves e de sua leitura da obra pachukaniana é enorme.  
Sem isso, nesse campo, talvez estivéssemos ainda patinando em leituras  
instrumentalizadas e absolutamente parciais da obra de Marx. Certas hermenêuticas  
lí(y)ricas talvez ainda dessem a tônica do marxismo jurídico ou, o que acaba sendo o  
mesmo, dos juristas marxistas. Não que seja de estranhar que um professor de filosofia  
* Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Mestre  
em história social pela PUC-SP e doutor em teoria e filosofia do direito pela USP. E-  
mail: vitorbsartori@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
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Vitor Bartoletti Sartori  
(e não do curso de direito) fosse aquele a explicitar a falta de cuidado generalizada  
dos juristas-filósofos ou dos juristas-sociólogos; antes, isso parece bastante óbvio se  
pensarmos no tipo de formação disponível nos vetustos cursos jurídicos. Naves  
explicitamente colocou os marxistas como críticos do direito, e não como juristas  
autoproclamados marxistas, críticos etc. Seu ponto de partida, com isso, parece-nos  
acertado e necessário.  
Nesse cenário, é preciso também assinalar a importância de uma obra como  
Teoria geral do direito e o marxismo, que faz 100 anos em 2024. Desde que Márcio  
Naves se colocou aos estudiosos do direito no Brasil, essa tem sido a obra de cabeceira  
da crítica marxista ao direito. Os méritos dessa tradição (em sua maior amplitude)  
devem muito à obra cuja efeméride motiva o presente número da Verinotio. No  
entanto, também é preciso se perguntar: há algum problema se uma obra centenária  
se configura ainda como ponto de partida (e de chegada) para a crítica marxista ao  
direito? Não falamos de marxismo jurídico aqui; em verdade, em nossa opinião, não  
há como levar a sério essa possibilidade desde que ficou claro que se trata de uma  
crítica ao âmbito jurídico; Engels criticou fortemente o socialismo dos juristas; o  
próprio Pachukanis (e Naves enfatiza a questão) critica enfaticamente o raciocínio  
jurídico. Porém, tal expressão tem ganhado força. Isso não seria preocupante? Essas  
perguntas precisam ser respondidas com algum zelo.  
Para isso, é importante notar que, há 100 anos, a posição de Pachukanis é  
análoga àquela dos grandes autores do marxismo da época. Ele não se curva diante  
dos teóricos oficiais da II Internacional e nem reduz sua teoria às simplificações e  
esquematismos de autores russos como Plekhânov. Trata-se, portanto, de um autor  
com uma envergadura intelectual que não é desprezível. Ele também tal como  
importantes teóricos da época, como Isaac Rubin e György Lukács desenvolve suas  
obras apreendendo elementos muito importantes da obra marxiana, como a relação  
das formas econômicas com a crítica da economia política e, portanto, com o  
tratamento da luta de classes e das diferentes esferas da sociedade. A temática do  
fetichismo da mercadoria (e, de modo menos incisivo, do dinheiro) também é muito  
presente em Teoria geral do direito e o marxismo. Assim, problemas que eram pouco  
abordados na época, e que hoje sabemos ser essenciais para o início da conversa  
sobre qualquer análise da obra de Marx, ganham relevo na grande obra de 1924. Ou  
seja, Pachukanis juntamente com outros autores da década de 1920 abre uma  
porta importante para os marxistas.  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. IX-XIX jan.-jun., 2024  
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Editorial: 100 anos depois ou 100 anos atrás?  
A impossibilidade de uma leitura baseada no entendimento rudimentar da  
famigerada metáfora do “Prefácio” de 1859 é um mérito de autores como Korsch,  
Lukács, Gramsci, Luxemburgo e Bloch, entre outros. Pelo que dizemos, é possível  
colocar Pachukanis em meio a esses pensadores revolucionários. E isso não é pouco.  
Assim, tal qual tais famosos marxistas, é imprescindível ler o autor soviético ainda hoje.  
Mesmo que não se possa pretender que ele tenha a mesma estatura dos mencionados  
autores, pode-se dizer que, como o mencionado Rubin, a leitura pachukaniana ainda  
é relevante.  
A década de 1920, na esteira dos acontecimentos da Revolução Russa de  
outubro de 1917, foi profícua em teorizações marxistas críticas. Aliás, algo que precisa  
ser destacado é: tal complemento pleonástico mostrou-se necessário já na época.  
Diante da formação de um marxismo oficial agora com uma espécie de oxímoro ,  
isso se mostrou imprescindível ao desenvolvimento de uma genuína tradição  
revolucionária. Tratou-se de uma época em que ser marxista trazia como referência  
obrigatória o socialismo e uma posição firme diante da Revolução Russa, mas que já  
precisava de qualificativos tais quais aqueles mencionados acima. Ou seja, a separação  
entre o marxismo vulgar e aquele minimamente digno de tal nome começa a ganhar  
muito destaque na época; tem-se um tempo de grandes expectativas e em que a  
confiança na possibilidade da supressão das sociedades classistas era generalizada,  
mesmo entre os mais evolucionários dos marxistas. Ser marxista trazia claramente um  
sentido colocado, mesmo que de modo meandrado, na realidade objetiva. O básico a  
se dizer e a se colocar era a necessidade da superação do modo capitalista de  
produção. Esse era o primeiro passo na década de 1920, diferenciando-se os  
expoentes sofisticados do marxismo daqueles escolares e vulgares não tanto devido a  
uma questão de princípio (ao menos no sentido que trazemos aqui), mas pelo maior  
rigor, sofisticação, cuidado na análise da realidade e, também, da obra do próprio  
Marx. A leitura correta do autor de O capital e a prática revolucionária caminhavam  
lado a lado nos autores que mencionamos, sendo preciso dizer que Pachukanis  
(principalmente em sua obra do começo da década de 1920) é um desses autores que  
trazem o melhor possível da leitura marxista na época com uma posição decidida na  
prática, em que se colocou como vice-comissário do povo para a justiça na União  
Soviética, tendo como comissário Piotr Stutchka (também autor relevante da área).  
Há dois pontos a serem destacados agora: o primeiro deles diz respeito à  
atuação prática de Pachukanis em meio à Revolução Russa. Ela não se divorcia de sua  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. IX-XIX jan.-jun., 2024 | XI  
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Vitor Bartoletti Sartori  
elaboração teórica. O segundo ponto diz respeito à leitura pachukaniana de Marx e ao  
modo pelo qual a tradição althusseriana a analisou no Brasil, fazendo-se hegemônica  
entre nós.  
Sobre o primeiro ponto, vale destacar aquilo que alguém como Wendy  
Goldmann mostrou de modo bastante convincente: a atuação do autor soviético e  
daquele que hoje é tido (por vezes, de modo absolutamente acrítico) como seu  
antípoda pela grande maioria da crítica marxista ao direito foi bastante convergente.  
Ou seja, o embate teórico de Pachukanis e de Stutchka foi aquele de dois autores  
(segundo eles mesmos) complementares, envolvidos nos rumos da recém-fundada  
União Soviética e profundamente comprometidos com a superação do direito, da  
família patriarcal, do estado e da propriedade privada. Trata-se de teóricos  
revolucionários e cuidadosos.  
Assim, se hoje não é raro que se traga uma brutal oposição entre as teorizações  
desses autores, bem como entre suas práticas, isso talvez precise ser questionado ou,  
ao menos, visto em suas nuances. Ainda sobre esse ponto: até o ano de 2023, os  
textos posteriores a Teoria geral do direito e o marxismo não estavam disponíveis no  
Brasil. Agora, sob o título O marxismo revolucionário de Pachukanis, é possível ler  
diversos artigos que o autor soviético escreveu até o final de sua vida. Trata-se de  
algo essencial para o estudo do próprio Pachukanis; e, assim, se certamente é  
necessário levar em conta a análise histórica realizada por Naves sobre tais textos em  
seu Direito e marxismo, igualmente importante é analisar o material de que o filósofo  
tratou e que, até então, não estava disponível no Brasil. É preciso deixar claro: por  
mais que, de um modo ou de outro, por aqui, sejamos sempre ao menos um pouco  
pachukanianos na crítica marxista ao direito, ainda nos falta muito estudo sobre o  
próprio autor soviético. Também são muito incipientes os estudos sobre sua relação  
com Stutchka, sendo igualmente necessário conhecer com mais desvelo a obra do  
comissário do povo para a justiça, algo propiciado somente agora, quando uma edição  
cuidadosa de sua obra principal (não temos acesso a muitas outras obras do autor) foi  
organizada por Ricardo Pazello e Moisés Soares, também autores de textos para o  
presente número da Verinotio. Ou seja, 100 anos depois da publicação da Teoria geral  
do direito e o marxismo, no Brasil, ainda há muito a desvendar sobre a obra, a posição  
e os embates do próprio Pachukanis.  
Sobre o segundo ponto que mencionamos, é preciso deixar claro que o autor  
soviético passa por obras menos debatidas na época, como Sobre a questão judaica  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. IX-XIX jan.-jun., 2024  
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Editorial: 100 anos depois ou 100 anos atrás?  
e o “Prefácio” de 1857, e dá grande valor à Crítica ao Programa de Gotha. Ele aborda,  
portanto, obras de diferentes momentos do itinerário marxiano. E, nesse ponto,  
precisamos destacar certo percalço na recepção do autor no Brasil: a tradição  
althusseriana não tarda a colocar Sobre a questão judaica como um texto de juventude,  
marcado por uma “problemática ideológica” e “não científica”. Isso, em nossa opinião  
(amparada por autores como Chasin e Lukács), prejudica a leitura da obra do próprio  
Marx, certamente. Porém, também corre o risco de trazer um Pachukanis bastante  
peculiar. Outro problema sobre a obra pachukaniana e sobre a recepção dela no Brasil:  
o autor põe grande ênfase em O capital e, em especial, na relação entre a crítica da  
economia política e a teoria do valor (nesse sentido, traça passos similares aos de  
Rubin). Com isso, relaciona a crítica ao valor com a crítica ao direito, dando bastante  
destaque aos capítulos I e II da obra magna de Marx. Também nesse ponto há certo  
alerta ao se olhar a recepção do autor no Brasil: Althusser não tardou a acusar a  
exposição do Capítulo I de O capital de conter traços hegelianos e, portanto,  
condenáveis. Ao se ter isso em mente, percebe-se que, novamente, a leitura de Teoria  
geral do direito e o marxismo que daí decorre não tem como deixar de ter várias  
particularidades. Em verdade, certas ênfases como aquela no sujeito de direito –  
trazem uma afinidade eletiva muito grande com a crítica althusseriana ao (S)sujeito (e  
não tanto com a relação entre pessoas e coisas, ligada ao fenômeno da reificação); o  
destaque do caráter exclusivamente capitalista do direito, em detrimento da análise  
das formas jurídicas embrionárias, também denota o apego a uma leitura baseada em  
uma espécie de corte (aqui parece não se tratar propriamente de um corte  
epistemológico ainda). Por fim, tem-se a posição segundo a qual Pachukanis teria sido  
o primeiro a aplicar corretamente o método de Marx no tratamento do direito; no  
limite, ele teria sido o primeiro a ler as passagens marxianas sobre a esfera jurídica  
com o mínimo de cuidado (e essa afirmação é absolutamente temerária, diante da obra  
de Stutchka, de 1921). O autor soviético, assim, parece criar o “continente” (para que  
se use a dicção de Althusser sobre Marx e a história) da crítica marxista ao direito,  
trazendo uma descoberta científica que o coloca como o fundador de uma tradição. E,  
assim, no Brasil, a crítica marxista ao direito se tornou a crítica pachukaniana (e  
althusseriana) ao direito.  
Os méritos da tradição iniciada por Naves são enormes. A dívida da crítica  
marxista ao direito diante do filósofo também nunca é demais destacar. Porém, o  
mínimo a se ponderar é que a leitura althusseriana (e maoísta) da obra de Pachukanis  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. IX-XIX jan.-jun., 2024 | XIII  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
pode não ser a única possível. Porém, hoje, com a alcunha de marxismo jurídico (termo,  
no mínimo, problemático, em nossa opinião), as determinações mais gerais da leitura  
de Naves são divulgadas, principalmente, por Alysson Mascaro e por seus seguidores.  
Ao passo que a leitura de Naves é explícita e honesta em suas fundamentações  
althusserianas, Mascaro nem sempre traz suas referências e, com isso, populariza a  
exposição da crítica marxista ao direito, ao mesmo tempo em que dificulta o debate  
teórico, em que as fundamentações mesmas podem e devem ser colocadas em  
questão em um debate franco.  
Ou seja, 100 anos depois da publicação da grande obra pachukaniana, pode-  
se dizer que estamos em um terreno que poderia ser mais sólido e rigoroso. Os  
embates de fundo sobre a crítica ao direito poderiam ser mais ricos e, é preciso dizer:  
a leitura da posição do próprio Marx sobre o direito poderia estar mais desenvolvida.  
Se nos livramos do ecletismo por meio da leitura althusseriana de Pachukanis, na  
ausência de outra tradição sólida nos estudiosos do direito ficamos reféns de uma  
leitura específica.  
Em verdade, 100 anos depois, ainda estamos buscando compreender 100 anos  
atrás e sem sucesso, já que não temos sequer acesso a importantes textos de  
Stutchka e Pachukanis; em verdade, a tarefa básica (mas não suficiente) para qualquer  
marxista não foi realizada: falta muito para que se tenha um terreno suficientemente  
consolidado por debates rigorosos sobre os textos do próprio Marx sobre o direito.  
Isso se dá até mesmo porque há muitas obras do autor de O capital sobre as quais o  
autor da Teoria geral do direito e o marxismo não pôde se debruçar. Algumas delas,  
por uma questão simples: A ideologia alemã e os Grundrisse, só para que fiquemos  
nos exemplos mais marcantes, ainda não haviam sido publicados. Porém, mesmo  
quando olhamos para outros textos importantes de Marx (e que trazem várias  
referências sobre o direito) há, para dizer o mínimo, lacunas: Pachukanis se dedica  
sobretudo ao Livro I de O capital, ao passo que as referências ao direito e às formas  
jurídicas são abundantes nos livros II e III da principal obra de Marx. Ou seja,  
precisamos ainda revolver o passado para que possamos dar passos para a frente no  
presente. Em geral, ficamos repisando temáticas pachukanianas, sendo que muitas  
delas nem sequer foram destacadas pelo autor com ênfase. Mais que isso, pode-se  
mesmo dizer que grande parte delas já estão no próprio Marx, porém, de modo  
distinto. O trabalho de olhar tais temas no autor de O capital ainda é necessário.  
Tanto ao se olhar para 150 anos atrás quanto ao mirar 100 anos atrás percebe-  
Verinotio  
XIV |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. IX-XIX jan.-jun., 2024  
nova fase  
Editorial: 100 anos depois ou 100 anos atrás?  
se: há muito o que fazer. O cenário, nesse sentido, é bom e é ruim. Ruim porque nem  
sequer estamos no ponto em que fomos deixados há um século. Ele é bom porque,  
havendo muito a desenvolver, podem existir possibilidades muito maiores na crítica  
marxista ao direito do que aquelas que hoje são visíveis. O momento presente é  
dúplice. E oferece dificuldades grandes também, as quais, mesmo que desanimadoras,  
precisam ser explicitadas.  
Além daquilo colocado acima, tem-se algumas diferenças muito grandes entre  
a década de 1920 e a de 2020. Para começar, é visível que o projeto de socialismo  
do século XX está morto. Tomar a Revolução Russa como modelo hoje é um disparate;  
e mais: se isso é verdade, o debate entre Pachukanis e Stutchka é importante para que  
se compreenda o mundo de 100 anos atrás; mas não pode ser trazido sem as devidas  
mediações para o presente. Repisar esses dois importantes teóricos pode até ser  
essencial para se pensar as bases da crítica marxista ao direito, mas não é mais que  
isso, um começo. Defender a bandeira de um autor ou de outro como resolutiva para  
hoje beira a insanidade.  
Estudamos dois autores que participaram ativamente da Revolução Russa e  
cujas teorias estiveram ligadas intimamente às suas atividades em meio a tal  
acontecimento do século XX. Ficar remoendo as teorias de tais autores e os eventos  
de 1917 só mostra que, quer se queira, quer não, ainda estamos presos na década de  
1920. 100 anos depois de Teoria geral do direito e o marxismo, não há qualquer  
desenvolvimento superior àquele do começo do século passado. E isso significa que,  
de novo, nada há de novo no front.  
O avanço consistente da crítica marxista ao direito é uma ficção. O melhor que  
se tem nesse campo é a leitura althusseriana de Pachukanis, a qual, como  
mencionamos, pode ser questionada. Precisamos ainda de muito esforço e, para isso,  
é necessário que percamos as ilusões quanto à possibilidade de simplesmente resgatar  
a obra pachukaniana.  
Mesmo os esforços de autores presentes nesse número no sentido de um  
direito insurgente (Moisés Soares e Ricardo Pazello); ou na leitura rigorosa de Marx  
por meio de Ruy Fausto e Jorge Grespan (Vinícius Casalino); ou a partir da análise  
imanente chasiniana (Vitor Sartori, Murilo Pereira Leite Neto e Nayara Medrado, só  
para que se mencionem os mais velhos no presente número) são apenas passos  
iniciais. Ainda estamos presos àquilo desenvolvido há 100 ou 150 anos porque ainda  
não conseguimos explorar os nossos próprios fundamentos de maneira satisfatória.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. IX-XIX jan.-jun., 2024 | XV  
nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
Sem admitir isso, não há como avançar. Imaginar que desenvolvemos tradições  
alternativas no grau de maturidade colocado nesse momento a essas teorizações  
significa buscar aplausos momentâneos por meio de um otimismo, mesmo que  
contagiante, ingênuo, para se dizer o mínimo. É preciso admitir: as razões para esse  
fato não são relacionadas simplesmente às falhas intelectuais (e práticas) de cada um  
desses autores mencionados. Há determinações históricas essenciais ligadas a uma  
mudança significativa dos anos de 1920 para o ano de 2024.  
O projeto socialista do século XX está morto e o melhor da crítica marxista ao  
direito (Pachukanis e Stutchka) esteve ligado a ele. E não temos algo suficientemente  
radical para colocar no lugar desse projeto ou das teorizações do comissário e do vice-  
comissário do povo para a justiça da União Soviética. O socialismo do século XXI de  
que falava Chávez, na melhor das hipóteses, solapou com Maduro. Os governos  
progressistas na América Latina (Morales, Correa, entre outros) não foram muito longe.  
O marxismo, em geral, está desacreditado para o senso comum. Por vezes, é preciso  
dizer: mesmo autores marxistas falam com muito embaraço que é preciso suprimir o  
modo de produção capitalista. Se Korsch, Lukács, Gramsci, Rosa e outros eram autores  
sofisticados, que se colocavam na esteira do acontecimento da Revolução Russa, nós  
nem sequer somos uma sombra desses grandes autores, tanto prática quanto  
teoricamente. Nossas perspectivas, não raro, colocam-se de modo extremamente  
defensivo, de maneira que o terreno para a crítica marxista ao direito parece ser o pior  
possível: aquele do avanço da extrema-direita, inclusive, diante das concessões  
conquistadas pela classe trabalhadora e colocadas na figura dos direitos sociais. Em  
meio a um cenário de perda de direitos, estamos trazendo à tona a necessidade de  
uma crítica radical ao capitalismo, ao estado e ao direito.  
É preciso que se percam as ilusões do passado; para isso, é necessário admitir  
as derrotas que o movimento socialista sofreu. Sem isso, na melhor das hipóteses,  
ficamos presos a um tempo que não existe mais. Mas a situação é muito pior: há o  
risco de fingirmos que vivemos em uma situação análoga àquela do começo do século  
XX e, com isso, deixarmos claro que não compreendemos absolutamente nada do que  
se passa na história. O marxismo, dessa maneira, longe de buscar a apreensão das  
determinações do real, passa a caracterizar-se por um tipo de nominalismo, em que o  
mais “marxista” é aquele que grita mais alto palavras de ordem do passado como se  
elas fizessem algum sentido ainda hoje. Por outro lado, a atitude de Marx diante da  
derrota das jornadas de fevereiro de 1848 não foi a da negação da realidade; ele  
Verinotio  
XVI |  
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nova fase  
Editorial: 100 anos depois ou 100 anos atrás?  
reconheceu que a revolução estava morta. E é preciso que façamos o mesmo,  
urgentemente. Porém, ele também viu que as ilusões também poderiam morrer com a  
revolução de fevereiro. E, por isso, seria preciso deixar claro que a morte da revolução  
de fevereiro é a condição para uma revolução vindoura. O autor já dizia: a revolução  
está morta. Vivas a revolução!  
Sem uma atitude similar, estamos fadados ao nominalismo marxista... à defesa  
de uma teoria que, na melhor das hipóteses, nos ajuda a entender o que se passou na  
década de 1920. Desse modo, tornamo-nos seitas que juntam o pior do romantismo  
com o utopismo. Não se compreende nada do presente e não se abrem perspectivas  
para o futuro sem o reconhecimento da própria derrota e sem uma autocrítica  
constante. Marxismo e, em específico, a crítica marxista ao direito não pode ser a  
defesa de uma teoria de um século atrás contra outra teoria da mesma época. Caso a  
publicação cuidadosa da obra de Stutchka redunde em um fla-flu entre pachukanianos  
e “stutchkianos”, significa que já fomos para a lata de lixo da história, que não temos  
qualquer importância teórica e prática.  
Uma pergunta: seria trazer a necessidade da crítica ao direito em um cenário  
de perda de direitos fundamentais e sociais fazer o jogo da extrema-direita? Seriam  
os comunistas, como quer Jameson, iguais aos neoliberais em diversos aspectos,  
menos os essenciais? A estas perguntas é necessário responder com um retumbante  
não.  
É preciso dizer, porém, que as tarefas que se colocam diante disso são enormes.  
Primeiramente, porque o legado teórico de Marx, na maior parte do tempo, foi  
apropriado em um momento em que as possibilidades de revoluções socialistas  
pareciam estar claramente presentes. Nesse sentido, os marxistas (Anderson e  
Eagleton, só para que citemos alguns célebres), em grande parte, tiveram uma atitude  
de negação diante da crise do marxismo; se alguém como Lukács falava, no final da  
década de 1960 e no começo da década de 1970, da necessidade de renascimento  
do marxismo, podemos dizer que ele raramente foi ouvido, portanto. Em verdade,  
muitos daqueles que admitiram as derrotas do movimento socialista se tornaram  
antimarxistas, geralmente, conformando-se nas piores posições políticas possíveis  
(Coletti), em uma espécie de liberalismo de esquerda, ou buscando teorizações  
próprias de proveito duvidoso (Habermas e Heller, por exemplo). No caso da crítica  
marxista ao direito, no Brasil, isso não ocorreu, pois os autores antimarxistas ou  
supostamente pós-marxistas foram conhecidos antes de Pachukanis. E, com isso, tudo  
Verinotio  
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se passa como se ainda estivéssemos no momento imediatamente posterior à  
Revolução Russa. As leituras ecléticas e pouco rigorosas de Marx já são parte do  
passado quando se fala do debate teórico sério, porém, o marxismo jurídico (sic!)  
aparece como quase uma unanimidade. Nesse sentido, os desafios teóricos são  
enormes ainda; o debate sério sobre o direito em Marx e em grandes autores marxistas  
ainda precisa ser feito com mais cuidado. Mesmo que existam esforços nesse sentido,  
tal qual o que ocorre atualmente na crítica marxista ao direito, ainda se têm somente  
passos iniciais, os quais precisam ser desenvolvidos com cuidado.  
A resposta à questão acima, porém, não envolve somente a elaboração teórica,  
por óbvio. E, nesse ponto, é preciso primeiramente admitir que não pode haver uma  
mente sã que reconheça que não se pode abandonar simplesmente o terreno do  
direito em uma situação em que o avanço do capital se dá retirando direitos sociais.  
Mesmo o mais obstinado crítico das formas jurídicas precisa admitir que é necessário  
que haja um advogado popular em uma situação de reintegração de posse em uma  
ocupação. Ou seja, salvo em raros casos de autores imbuídos de uma espécie de bela  
alma, não está em questão qualquer abstencionismo diante da atividade jurídica. A  
defesa diante do avanço da extrema-direita passa necessariamente pelos juristas, bem  
como pelos sindicatos e pelos partidos políticos. E, com isso, a própria realidade faz  
com que uma crítica ao direito e à política não possa se colocar como uma posição de  
abandono do direito ou da política, simplesmente. O primeiro ponto a ser esclarecido  
é este. E, dessa maneira, estamos em um cenário de necessário uso de mediações  
políticas e jurídicas. Ao mesmo tempo, a elaboração teórica inspirada em Marx,  
também em Pachukanis e em Stutchka, leva à crítica à política e ao direito, tendo por  
base a crítica à economia política.  
E aí tem-se um ponto importante: é possível uma crítica marxista ao direito sem  
uma crítica à economia política? Se formos minimamente coerentes com Marx, não.  
A compreensão do presente leva, assim, à necessidade de abordar com cuidado  
o movimento das formas e das figuras econômicas no capitalismo atual. No que diz  
respeito ao direito, é extremamente necessário ver como as formas jurídicas se ligam  
a este movimento. Sem isso, não é possível começar a se falar de uma crítica marxista  
ao direito que não fique restrita a 100 anos atrás. 100 anos depois, é preciso  
compreender o capitalismo contemporâneo e, em meio a ele, a política e o direito. No  
título das obras de Pachukanis e de Stutchka consta a expressão teoria do direito; em  
nossa modesta opinião, por mais que seja preciso retomar e estudar tais autores, não  
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Editorial: 100 anos depois ou 100 anos atrás?  
há como apoiar-se em qualquer teoria do direito, mesmo que marxista. Marx não  
procurou uma economia política crítica, mas uma crítica da economia política. Não  
podemos procurar desenvolver simplesmente uma teoria crítica do direito, é preciso  
uma crítica ao direito. Isso, porém, não é simplesmente um jogo de palavras. Os passos  
e os desafios teóricos que mencionamos são urgentes. Mas aquilo que os completa (e  
mesmo propicia) é uma análise cuidadosa da realidade, em nosso caso, do capitalismo  
contemporâneo.  
Se a crítica marxista ao direito se isola desses problemas, ela adota certo tom  
quase corporativo; no limite, desenvolve-se uma espécie de socialismo dos juristas  
críticos e autoproclamados marxistas. Há quase 150 anos, Engels já alertou para esse  
problema. E, assim, novamente, ao se ter a hegemonia da denominação “marxismo  
jurídico” em tela, há de se considerar que precisamos pensar a situação teórica e  
prática 100 anos depois de Teoria geral do direito e o marxismo. Porém, talvez ainda  
estejamos, não 100, mas 150 anos atrás sob diversos aspectos. Os textos  
apresentados no presente número, com todas as limitações levantadas acima,  
representam uma tentativa de romper com essa situação. Como disse J. Chasin, a  
esquerda está morta; podemos dizer sem contradizê-lo: vivas à esquerda e ao  
socialismo. E somente é possível adotar essa posição reconhecendo nossas limitações,  
bem como as possibilidades do futuro.  
Como citar:  
SARTORI, Vitor Bartoletti. 100 anos depois ou 100 anos atrás? Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 29, n. 1, pp. IX-XIX; jan-jun, 2024  
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ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. IX-XIX jan.-jun., 2024 | XIX  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.702  
Sobre as formas e figuras econômicas diante das  
formas jurídicas em Marx: um embate com  
Pachukanis  
Economic forms and figures towards juridical forms in  
Marx: a discussion with Pachukanis  
Vitor Bartoletti Sartori*  
Resumo: A partir da correlação existente entre a  
forma-mercadoria e a forma jurídica do  
contrato, analisaremos o tratamento marxiano  
do Direito. Procuramos demonstrar que essa  
ligação mencionada está presente no autor, mas  
não basta para a crítica marxiana. São essenciais  
ao tratamento de Marx sobre a esfera jurídica a  
relação existente entre as formas econômicas da  
mercadoria, do dinheiro e do capital, bem como  
seus respectivos fetichismos. Também se tem  
que a análise, principalmente no livro III de O  
capital, das figuras econômicas, como a renda e  
os juros, e de seu papel na distribuição do mais-  
valor. Nesse momento, aparecem menções às  
formas jurídicas, que somente podem ser  
compreendidas ao se trazer a ligação entre o  
processo imediato de produção e as figuras que  
aparecem no tratamento marxiano do processo  
global de produção. Desse modo, pode-se dizer  
que o tratamento clássico da crítica marxista ao  
Direito, aquele de Pachukanis, é, no mínimo,  
insuficiente quando se trata da compreensão da  
obra de Marx.  
Abstract: From the correlation between the  
commodity form and the legal form of the  
contract, we will analyze the Marxian treatment  
of Law. We try to show that this connection is  
present in the author, but it is not enough for  
the author's criticism of Law. Essential to Marx's  
treatment of the legal sphere is the relationship  
between the economic forms of commodity,  
money and capital, as well as their respective  
fetishisms. There is also an analysis, especially  
in book III of Capital, of economic figures, such  
as income and interest, and their role in the  
distribution of surplus value. At that moment,  
mentions of legal forms appear, which can only  
be understood by bringing the connection  
between the immediate process of production  
and the figures that appear in the Marxian  
treatment of the global process of production.  
Thus, it can be said that the classic treatment of  
the Marxist critique of Law, that of Pachukanis,  
is, at the very least, insufficient when it comes  
to understanding Marx's work  
Keywords: Marx; The Capital; Juridical Forms;  
Marxist Critic of Law; Pachukanis.  
Palavras-chave: Marx;  
O
capital; Formas  
jurídicas; Crítica marxista ao Direito, Pachukanis.  
Introdução  
Aquilo de mais consolidado na tradição de crítica marxista ao Direito está  
certamente caracterizado na obra de Pachukanis. Seu Teoria geral do Direito e o  
marxismo (2017), de 1924, é um marco e vem sendo tomado como ponto de partida  
* Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Mestre  
em história social pela PUC-SP e doutor em teoria e filosofia do direito pela USP. E-mail:  
vitorbsartori@gmail.com.  
Verinotio  
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Vitor Bartoletti Sartori  
por importantes estudiosos de Marx e do marxismo no Brasil. Por aqui, Naves (2000,  
2014), Mascaro (2012, 2018), Kashiura (2009, 2014), Almeida (2016), Casalino  
(2011, 2019), Pazello (2021), entre outros, têm como ponto de partida a teorização  
pachukaniana sobre a forma jurídica e sua relação com a forma-mercadoria. E, assim,  
seja com autores de inspiração althusseriana como Naves, Mascaro, Kashiura e  
Almeida, ou com formações filosóficas bastante diversas, como Casalino (mais ligado  
às teorizações uspianas sobre Marx, como aquelas de Jorge Grespan e de Ruy Fausto)  
e Pazello (próximo da crítica marxista à dependência e à leitura latino-americana do  
marxismo, em que prevalecem Dussel e Marini), o horizonte pachukaniano se afirma  
de modo decisivo. Todos esses autores mesmo que com divergências entre si na  
interpretação da obra do próprio autor soviético trazem em suas teorizações o ponto  
de partida na abordagem delineada em Teoria geral do Direito e o marxismo: a relação  
entre a forma jurídica e a mercantil.  
Assim, parece haver uma espécie de consenso sobre a correlação existente  
entre a forma jurídica e a forma-mercadoria, o que estaria presente já em Marx, como  
afirmam, com ênfases diversas, os autores mencionados acima. Aqui, a partir do que  
José Chasin chamou de análise imanente1, pretendemos demonstrar que tal ponto de  
partida pode ser questionado. A análise pachukaniana, focada, sobretudo, no livro I de  
O capital, traz uma menção importante de Marx à forma jurídica. Na correlação entre  
circulação mercantil, forma-mercadoria, proprietários, relação jurídica, pessoa e  
contrato ter-se-ia a chave para a crítica marxista ao Direito. Como pretendemos  
mostrar aqui, porém, além dessa menção de Marx à forma jurídica há outras, e cujo  
significado é distinto. Também há uma relação mais mediada do que parece haver à  
primeira vista entre o Direito e as formas econômicas. Aqui, tentaremos remeter a uma  
compreensão mais ampla das formas jurídicas que aquela consolidada no Brasil;  
tentaremos fazer isso ao mostrar que a análise marxiana traz por central a correlação  
entre forma-mercadoria, dinheiro e capital.  
Para tratar de fenômenos centrais a Pachukanis, como a consolidação da  
1 Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto – a formação ideal em  
sua consistência autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto  
positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais  
lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos  
modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de  
produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se  
todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados  
destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26)  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
igualdade entre as pessoas na sociedade capitalista, seria essencial primeiramente  
passar por uma análise mais detida da correlação existente entre as próprias formas  
econômicas. Ao tratar das formas jurídicas, pretendemos demonstrar, é preciso  
remeter às figuras econômicas do processo global de produção capitalista, vistas,  
sobretudo, no livro III de O capital.  
Formas econômicas e formas jurídicas  
Uma primeira ressalva a ser feita é que Pachukanis fala também de formas  
jurídicas no plural. Ele menciona as formas jurídicas da propriedade, do contrato, por  
exemplo. Porém, sua ênfase está certamente no que chama de “forma jurídica geral”,  
que estaria ligada intimamente à forma-mercadoria. E, assim, ele diz que se tem a  
formação da “forma jurídica como tal”: “a evolução histórica traz em si não apenas  
uma modificação no conteúdo das normas jurídicas e uma modificação das instituições  
do Direito, mas também o desenvolvimento da forma jurídica como tal” (PACHUKANIS,  
2017, p. 86). Ou seja, tratar-se-ia de considerar, não só as mudanças de conteúdo do  
Direito, mas também da própria especificidade dessa esfera social, que, segundo o  
autor soviético, conforma-se somente na sociedade capitalista. Nessa última, ainda de  
acordo com Pachukanis, haveria uma correlação entre trabalho abstrato incorporado  
nas mercadorias a partir da produção baseada na autovalorização do valor, a igualação  
dos trabalhos no mercado e a troca equivalente. Daí, resultaria que a especificidade  
do Direito se desenvolveria somente com o valor, e na vigência do modo de produção  
capitalista.  
De acordo com o autor, “Marx revela a condição fundamental, enraizada na  
própria economia, da existência da forma jurídica” (PACHUKANIS, 2017, p. 79); no que  
se nota: aquilo que estamos trazendo aqui como especificidade da esfera do Direito  
Pachukanis chama de forma jurídica, mais precisamente, de “forma jurídica como tal”  
(PACHUKANIS, 2017, p. 86). No que ele continua ao comentar sobre a condição  
fundamental para a existência da “forma jurídica como tal” de acordo com Marx: “que  
é justamente a igualação dos dispêndios do trabalho segundo o princípio da troca de  
equivalentes, ou seja, ele descobre o profundo vínculo interno entre a forma do Direito  
e a forma da mercadoria” (PACHUKANIS, 2017, p. 79). Direito e valor (ligado por  
Pachukanis e por Marx às mercadorias), portanto, seriam indissociáveis; sendo a  
vigência da lei do valor algo específico do capitalismo (Cf. RUBIN, 1987). De acordo  
com o autor soviético, somente no sistema capitalista de produção haveria Direito,  
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portanto.  
Antes disso, não haveria, para que se use a dicção pachukaniana, “existência da  
forma jurídica” (PACHUKANIS, 2017, p. 79). É verdade que, em Teoria geral do Direito  
e o marxismo, diz-se sobre a forma jurídica: “uma forma desenvolvida e acabada não  
exclui formas embrionárias e rudimentares; pelo contrário, pressupõem-nas”  
(PACHUKANIS, 1988, p. 9). Ou seja, seria preciso tratar da gênese do Direito também  
quanto à sua forma e, assim, continua o autor: “na sociedade burguesa, a forma  
jurídica, em oposição ao que ocorre nas sociedades edificadas sobre a escravatura e a  
servidão, adquire uma significação universal” (PACHUKANIS, 1988, p. 9). No que se  
vê: a posição do autor é meandrada. Fala-se, inclusive de graus em que se coloca a  
forma jurídica. Não há, portanto, uma maneira única pela qual essa forma tenha sempre  
se apresentado.  
A menção às formas jurídicas embrionárias e rudimentares leva à necessidade  
de se estudar aquilo que, segundo o autor, viria a se tornar a esfera do Direito. Ao se  
falar da significação universal da forma jurídica, também se admite sociedades em que  
isso não se dá, mas há algo similar a essa forma, mesmo que sem o alcance presente  
no capitalismo. O vínculo interno entre a forma do Direito e aquela da mercadoria,  
portanto, precisaria ser desenvolvido e estudado também em seus elementos  
transicionais. E, com isso, a posição de Pachukanis não é aquela que traz a forma  
jurídica como algo pronto e acabado; antes, tem-se o oposto, mesmo que o autor não  
tenha podido desenvolver tal aspecto de sua teoria. Isso levaria a uma análise em que  
a vigência da lei do valor é estudada também em seus elementos transicionais e na  
íntima relação existente entre as formas econômicas tratadas no livro I de O capital,  
mercadoria, dinheiro e capital.  
O trabalho pachukaniano, assim, talvez precise ser complementado, até mesmo  
porque, de acordo com o próprio ator soviético: “foi preciso um longo processo de  
desenvolvimento, no qual as cidades foram o principal palco, para que as facetas da  
forma jurídica pudessem cristalizar-se em toda a sua precisão” (PACHUKANIS, 1988,  
p. 23). Um estudo sobre a relação e o desenvolvimento da ligação entre a cidade, o  
dinheiro, as mercadorias, o capital e o Direito seria necessário para tratar da forma  
jurídica de modo cuidadoso. E, com isso, não há como tomar a obra pachukaniana  
como um ponto de partida acabado e consolidado; a própria obra do autor é  
incompleta e lacunar.  
Assim, ao tratar da obra do autor soviético, tanto é preciso reconhecer seus  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
méritos e rigor quanto se deve dizer que sua obra magna não tem o grau de  
acabamento que muitas vezes se supõe. Diz-se em Teoria geral do Direito e o  
marxismo que “o presente trabalho não pretende ser de jeito nenhum fio de Ariadne  
marxista no domínio da teoria geral do Direito; ao contrário, pois em grande parte foi  
escrito objetivando o esclarecimento pessoal” (PACHUKANIS, 1988, p. 1). Ou seja,  
tomar, sem as mediações necessárias, Pachukanis como referência pode ser  
equivocado. O próprio autor, ao tratar da teoria geral do Direito, diz que não há como  
tomar seu livro como a única referência, ou como o guia único. E, assim, a concepção  
pachukaniana sobre a ligação entre forma jurídica e forma-mercadoria precisa ser vista  
nesses meandros, em que se tem descobertas importantes, mas que não esgotam a  
crítica marxista ao Direito. Essa última precisaria de desenvolver, pelo que vemos,  
inclusive, ao tratar de outras formas econômicas que a forma-mercadoria e de outras  
formas jurídicas que o contrato, amplamente abordado.  
O contrato vem a ser central no livro do autor soviético, bem como para a  
tradição pachukaniana que se desenvolveu no Brasil. Porém, se é verdade o que  
dizemos, a partir do que diz o próprio Pachukanis, seriam necessários estudos  
complementares.  
Assim, por mais que a categoria forma jurídica apareça também no plural em  
Pachukanis, há uma ênfase maior do autor no singular ao tratar do tema. Isso se dá,  
inclusive, ao passo que a “forma jurídica como tal” somente se desenvolveria no  
capitalismo, ou seja, sob a vigência da lei do valor. O autor soviético trata das formas  
jurídicas distintas, como contrato e propriedade (que são analisadas por Marx no livro  
I de O capital). Porém, geralmente, ao analisar a forma jurídica, está falando de algo  
diferente: daquilo que caracteriza a esfera jurídica como tal, tanto no conteúdo quanto  
em sua forma. Daí, o autor falar da “forma jurídica como tal”. O enfoque pachukaniano,  
assim, está no ato de troca, em que a forma jurídica em geral apareceria de modo mais  
claro a partir da forma jurídica do contrato. Para ele, “somente em situações de  
economia mercantil nasce a forma jurídica abstrata, ou seja, a capacidade geral de  
possuir direitos se separa das pretensões jurídicas concretas” (PACHUKANIS, 2017, p.  
125)2. E, assim, a autonomização relativa do Direito, e dos direitos, diante da economia  
já se coloca na própria troca mercantil, de acordo com o autor. Ao falar dos conceitos  
do Direito, ele diz:  
2 Aqui há de se notar que, tal qual Rubin (1987), Pachukanis fala de algo como uma economia mercantil  
quase que como sinônimo de economia capitalista. Para uma crítica a tal posição, Cf. SARTORI, 2020b.  
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No contrato, esses conceitos recebem seu movimento autêntico e, ao  
mesmo tempo, no ato da troca, recebem seu fundamento material, a  
forma jurídica em seu aspecto mais puro e simples. O ato de troca,  
consequentemente, constitui o momento mais essencial tanto da  
economia política quanto do Direito. (PACHUKANIS, 2017, p. 127)  
Na leitura do autor soviético, a troca acaba sendo o momento fundamental tanto  
da economia política quanto do Direito; a forma jurídica se expressaria nesse campo  
de modo mais acabado, portanto. Ela receberia sua conformação mais clara por meio  
do contrato manifestando-se em sua figuração mais pura e simples. E sobre esse ponto  
são necessários alguns comentários, já que Pachukanis atribui tal posicionamento a  
Marx.  
O primeiro aspecto a ser destacado é que, para o autor de O capital, não é a  
troca o momento mais essencial. Marx sempre deixou claro em textos como o  
prefácio de 1857, que Pachukanis conhecia e menciona em seu Teoria geral do Direito  
e o marxismo que a produção que se encontra em tal situação. Segundo o autor dos  
Grundrisse, produção, distribuição, circulação, troca e consumo certamente se  
relacionam. Porém, todas essas esferas “aparecem em todo caso como momentos de  
um processo no qual a produção é o ponto de partida efetivo, e, por isso, também o  
momento predominante [übergreifende Moment]” (MARX, 2011, p. 68). A produção,  
nesse sentido, “é o ponto de partida da realização e, por essa razão, também seu  
momento predominante, o ato em que todo o processo transcorre novamente” (MARX,  
2011, p. 68). Ou seja, creditar a Marx o posicionamento segundo o qual a troca é o  
momento essencial da (crítica da) economia política e do Direito é equivocado. Em  
verdade, o autor alemão critica tal posicionamento, típico da crise da economia política  
clássica (Cf. MARX, 1980).  
Outro ponto a ser levantado quanto a isso é que Marx está a criticar tanto o  
Direito como a economia política. E, assim, no autor, não se tem tanto a busca por  
categorias jurídicas, como sujeito de direito, em meio ao funcionamento concreto da  
circulação.  
O autor alemão sempre está a mostrar como que a circulação não pode ser  
explicada por si mesma; ela traz, ao mesmo tempo, o modo pelo qual as categorias  
aparecem na troca e a maneira pela qual essas formas de aparecimento são ilusórias  
e precisam ser explanadas a partir doutras esferas, que remetem à produção.  
No que é preciso deixar claro: Pachukanis procura correlacionar teoria geral do  
Direito com a crítica da economia política e, mesmo concebendo a teoria geral do  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
Direito como uma disciplina3, traz a crítica à economia política e à teoria geral do  
Direito. Porém, os meandros de seu texto, por vezes, denotam certa proximidade com  
termos centrais da teoria jurídica. Claro que o autor está criticando o modo pelo qual  
tais categorias funcionam na teoria do Direito; ele também está trazendo uma crítica à  
própria teoria do Direito e ao Direito mesmo (Cf. SARTORI, 2015). Porém, ao atribuir  
a Marx certa centralidade da crítica ao sujeito de direito, talvez o autor eclipse alguns  
elementos essenciais da correlação entre a categoria pessoa, o processo de produção  
capitalista, o “sujeito automático” do capital e a reificação. Na esteira de Rubin (1987),  
Pachukanis considera esses fenômenos. Porém, a centralidade da categoria sujeito de  
direito, bem como a atribuição a Marx dessa centralidade, deixa parte substancial da  
análise marxiana presente em O capital oculta (Cf. SARTORI, 2019a). Ali, o autor  
alemão fala da relação jurídica. Ele trata da vontade comum das pessoas na compra e  
venda na medida em que há reconhecimento das pessoas como proprietárias: “apenas  
mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia  
enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como  
proprietários privados” (MARX, 1996a, p. 79). Porém, Marx não menciona a categoria  
sujeito de direito (Cf. SARTORI, 2019a).  
Dizemos isso porque a teorização sobre a forma jurídica em Pachukanis tem  
por central justamente a categoria sujeito de direito: ele fala sobre “a crítica de Marx  
do sujeito de direito, que deriva imediatamente da análise da forma-mercadoria”  
(PACHUKANIS, 2017, p. 61). E é preciso destacar: esse caráter imediato, bem como a  
ligação direta entre sujeito de direito e forma-mercadoria precisa, no mínimo, ser  
questionada. Mesmo pachukanianos inteligentes como Casalino (2019) acreditam ser  
necessário complementar tal análise do autor sobre o sujeito de direito. Ou seja,  
estamos diante de um ponto em que o consenso que parece pairar na crítica marxista  
ao Direito brasileira precisa ser colocado em xeque para que se possa avançar.  
3 Para o autor soviético, “não se pode objetar à teoria geral do Direito, como a concebemos, que esta  
disciplina trate unicamente de definições formais, convencionais e de construções artificias. Ninguém  
duvida de que a economia política estuda uma realidade efetivamente concreta, ainda que Marx tenha  
chamado a atenção a fatos como o Valor, o Capital, o Lucro, a Renda, etc. não podem ser descobertos  
‘com ajuda de microscópios e da análise química’. A teoria do Direito opera com abstrações que não  
são menos ‘artificiais’: a ‘relação jurídica’ ou o sujeito de direito’ não podem igualmente ser descobertos  
pelos métodos de investigação das ciências naturais, embora por detrás destas abstrações escondam-  
se forças sociais extremamente reais” (PACHUKANIS, 1988, pp. 23-24). Para a correlação, em  
Pachukanis, entre teoria do Direito e marxismo, Cf. SARTORI, 2015. Para essa ligação em Marx, Cf.  
SARTORI, 2017.  
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nova fase  
 
Vitor Bartoletti Sartori  
Continuemos.  
Para o autor soviético, “o vínculo social da produção apresenta-se,  
simultaneamente, sob duas formas absurdas: como valor de mercadoria e como  
capacidade do homem de ser sujeito de direito” (PACHUKANIS, 2017, p. 121). Ou seja,  
o Direito, bem como a categoria sujeito de direito, seriam, no limite, essencial para a  
própria crítica da economia política de Marx. Tal posicionamento tem um aspecto  
dúplice, que precisa ser visto com calma: de um lado, mostra que, de modo algum,  
Pachukanis é um circulacionista, como querem alguns autores como Poulantzas  
(2000). Assim, fica claro que, por mais que o autor enfoque, e tome como essencial a  
esfera da troca, ele remete à produção.4 Trata-se, inclusive, de alguém que, tal qual  
Isaac Rubin (1987), é bastante atento para a necessidade da crítica do valor. Ou seja,  
o autor de Teoria geral do Direito e o marxismo coloca-se a tratar de algo essencial à  
crítica marxiana da economia política entendida com rigor. Por outro lado, o que se vê  
é que da crítica ao valor deriva-se quase que imediatamente a crítica ao sujeito de  
direito, que é, por sua vez, trazido ao centro da conceituação pachukaniana sobre a  
forma jurídica como tal.  
Nesse sentido específico, acreditamos poder dizer que tal ênfase é uma  
inovação do autor soviético (Cf. SARTORI, 2015). E, o que pretendemos demonstrar é  
que algo muito similar se dá quando Pachukanis fala da “forma jurídica como tal”. Para  
passa continuamente de uma forma  
Marx, no modo de produção capitalista, o valor “  
para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito  
automático” (MARX, 1996a, p. 273). Ou seja, a referência marxiana ao sujeito em O  
capital está noutro campo que o destacado pelo autor de Teoria geral do Direito e o  
marxismo.5 Os meandros do valor passam não só pela relação entre mercadoria e  
Direito, mas pelas formas econômicas e pelas metamorfoses dessas formas, como  
mercadoria, dinheiro e capital. Ao tratar do valor, e das metamorfoses das formas  
econômicas, não há uma relação imediata com o Direito; o essencial aqui é o papel do  
valor e das metamorfoses das formas econômicas. E é em meio a tal análise que Marx  
fala da relação e das formas jurídicas.  
4
Naves destaca esse aspecto, utilizando a categoria althusseriana de sobredeterminação. (Cf. NAVES,  
2000)  
5
Aqui não trataremos do tema com cuidado, mas há menções de Marx à categoria sujeito nos  
Grundrisse, obra não analisada pelo autor de Teoria geral do Direito e o marxismo, publicada  
posteriormente. Também nesse caso a categoria se desenvolve modo distinto do que em Pachukanis.  
(Cf. SARTORI, 2020a)  
Verinotio  
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nova fase  
   
Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
Com isso, a conceituação pachukaniana da forma jurídica em geral,  
supostamente presente já em Marx, fica extremamente dependente da centralidade do  
sujeito de direito em O capital. Seria necessário que a categoria de pessoa, que Marx  
utiliza em O capital, ou que a categoria de sujeito, que o autor traz nos Grundrisse,  
bem como em sua obra magna, correspondessem imediatamente à categoria jurídica  
de sujeito de direito. A questão, no entanto, como estamos mostrando, é passível de  
discussão (Cf. SARTORI, 2019a, 2020). Para os fins do presente escrito, basta a nós  
explicitar que fica claro, primeiramente, que o percurso da crítica da economia política  
à crítica ao Direito é mais mediado em Marx do que parece a Pachukanis. Também se  
pode afirmar que, para que a teorização sobre uma forma jurídica como tal, ou geral,  
seja possível, é central que Marx tenha por essencial o contrato, o sujeito de Direito e  
a troca na caracterização do Direito.  
passa continuamente de uma  
Marx diz em O capital, como vimos, que o valor “  
forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito  
automático” (MARX, 1996a, p. 273). Ou seja, em meio à produção capitalista, a  
metamorfose das formas econômicas se dá com a autovalorização do valor impondo-  
se.  
Isso vale para o processo capitalista compreendido como um todo. Na troca, no  
entanto, não é tanto o valor ou o valor de troca que domina as pessoas de imediato.  
Como diz Marx ao criticar Wagner:  
“sr. Wagner também esquece que nem ‘o valornem  
o valor de troca’ são para mim os sujeitos, mas sim a mercadoria” (MARX, 2017, p.  
255). Ou seja, já que a vontade das pessoas reside nas mercadorias e já que os homens  
são dominados pelas coisas em meio ao processo de circulação, o sujeito aqui não é  
tanto a pessoa, mas a mercadoria. O autor de O capital, portanto, traz a categoria  
sujeito à tona. Porém, isso não ocorre ao se valorizar o aspecto jurídico da relação,  
mas ao tratar da maneira pela qual há uma inversão entre pessoas e coisas no processo  
capitalista. E mais: dependendo da esfera que se trata, aquilo que aparece como sujeito  
é distinto. E, assim, de modo algum é possível trazer uma centralidade da categoria  
sujeito de direito.  
Nesse sentido específico, somos obrigados a discordar de autores como  
Vinicius Casalino, que, ao tratar de O capital de Marx, pretende trazer mais dimensões  
ainda para o sujeito de direito. Para o autor paulista, no limite, o próprio capital  
apareceria como sujeito de direito em determinado momento (Cf. CASALINO, 2019).  
Continuemos.  
Verinotio  
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nova fase  
Vitor Bartoletti Sartori  
Nos Grundrisse, o autor alemão fala, no contexto da troca, das “pessoas cuja  
vontade impregna suas mercadorias” e logo depois menciona que “aqui entra de  
imediato o momento jurídico da pessoa e da liberdade” (MARX, 2011, p. 296). E,  
assim, ele traz à tona elementos que também foram importantes no capítulo II de O  
capital e que foram tomados por base para a concepção pachukaniana de forma  
jurídica e de sujeito de direito (Cf. PACHUKANIS, 2017). E mais: ao tratar da troca e  
da propriedade, diz Marx que  
“pelo próprio ato da troca, o indivíduo, cada um dos  
indivíduos, está refletido em si mesmo como sujeito exclusivo e dominante  
(determinante) do ato da troca” (MARX, 2011, p. 297). Desse modo, a remissão à  
categoria pessoa é acompanhada da referência ao sujeito. Nos Grundisse, obra cujo  
prefácio de 1857 Pachukanis conhecia, parece haver de imediato proximidade da  
análise marxiana com a pachukaniana. Um olhar rápido manifesta uma proximidade  
grande entre o texto que o autor de Teoria geral do Direito e o marxismo não pode  
conhecer (pois ainda não havia sido publicado) e a sua abordagem.  
Porém, se olharmos com cuidado, notamos que o essencial nas citações acima  
não está em qualquer relação direta com a categoria sujeito de direito. O primeiro  
aspecto a ser deixado claro é que não há uma equivalência entre a categoria pessoa e  
a categoria sujeito de direito. Mesmo que fosse verdade que o momento jurídico da  
pessoa e da liberdade fossem equivalentes ao sujeito de direito, há de se notar que  
existem outros momentos que o jurídico que permeiam a pessoa (Cf. SARTORI, 2020a).  
Ou seja, não se pode, em hipótese alguma, trazer uma relação imediata e direta entre  
a forma-mercadoria e aquilo que Pachukanis chama de forma jurídica como tal. E mais:  
nos próprios Grundrisse, Marx traz a categoria sujeito; e isso se dá noutro contexto  
que o tematizado e destacado pela tradição pachuakaniana brasileira (Cf. KASHIURA,  
2014).  
Ao falar da relação das pessoas com as mercadorias, Marx explicita como que  
há uma subordinação das primeiras às últimas. As coisas no caso, as mercadorias,  
que se colocam como tais em meio a determinadas relações sociais de produção –  
dominam os homens. Para que se utilize a dicção das Notas sobre Wagner, a  
mercadoria é aqui o sujeito. Quando o autor de O capital vai falar dos indivíduos que  
se reconhecem como proprietários e trocadores na circulação mercantil, ele também  
traz outro ponto importante para nós: o indivíduo está refletido em si mesmo como  
sujeito exclusivo e dominante do ato de troca. Ou seja, como proprietário e como  
trocador, ele representa a si mesmo como sujeito. O modo de representação capitalista  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
(Cf. GRESPAN, 2019), portanto, traz uma inversão aos indivíduos: na medida mesma  
em que têm suas vontades residindo nas mercadorias, acreditam dominá-las como  
proprietários livremente.  
A representação dos indivíduos que se colocam como proprietários e  
trocadores (note-se que Marx não fala de sujeitos de direito) é o inverso do que se dá  
Fala-se da  
na realidade efetiva do funcionamento do modo de produção capitalista.  
sua relação social como trocadores”, bem como do modo pelo qual “a forma  
econômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, o conteúdo, a  
matéria, tanto individual como objetiva, que impele à troca, põe a liberdade” (MARX,  
2011, p. 297). E, assim, não é a forma jurídica que traz os atributos da representação  
do indivíduo como sujeito, mas a própria forma econômica. A troca, assim, traz as  
pessoas em sua equiparação como proprietários e trocadores, ao passo que o  
conteúdo em meio ao qual a vontade dos indivíduos é efetiva é trazido pelo grau  
de desenvolvimento das relações de produção.  
Perceba-se: por mais que Marx trate do Direito nos meandros desse processo  
econômico, o conteúdo das relações econômicas é dado pelo movimento econômico  
mesmo. A forma pela qual as pessoas relacionam-se com as coisas também é  
engendrada a partir das metamorfoses diversas formas econômicas. Assim, como  
mencionado, não há como partir diretamente da forma-mercadoria para o que  
Pachukanis chama de forma jurídica como tal. Em Marx, o Direito está ligado ao  
movimento das categorias econômicas, certamente. Porém, as mediações para que isso  
se dê são muitas.  
Nesse sentido, vale remeter a outros textos que os Grundrisse e O capital. Ainda  
para que se remeta ao processo de circulação de mercadorias, diz Marx ao criticar o  
Manual de economia política de Adolf Wagner, em um texto muito caro a Althusser6:  
Mostrei na análise da circulação de mercadorias que no escambo  
desenvolvido as partes se reconhecem tacitamente como pessoas  
iguais e como proprietários dos respectivos bens a serem por eles  
trocados; eles já o fazem ao oferecer uns para os outros seus bens e  
ao entrar em acordo uns com os outros sobre o negócio. Essa relação  
fática que se origina primeiro na e através da própria troca adquire  
mais tarde forma jurídica no contrato etc.; mas essa forma não cria  
nem o seu conteúdo, a troca, nem a relação nela existente das pessoas  
entre si, mas vice-versa. (MARX, 2017, p. 273)  
6 Como mencionamos, em grande parte, os pachukanianos brasileiros são althusserianos. E, assim, vale  
mencionar que o texto que utilizamos é bastante respeitado pelo próprio Althusser.  
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Vitor Bartoletti Sartori  
Note-se que Marx fala da relação fática que se estabelece entre os indivíduos,  
entre as partes da troca, a qual, por sua vez, dá-se na circulação de mercadorias. Nesse  
campo, os indivíduos se reconhecem como pessoas iguais e como proprietários. O  
caráter fático destacado pelo autor alemão remete àquilo que já mencionamos: o  
movimento das próprias formas e dos conteúdos econômicos é que engendra as  
formas de aparecimento na circulação capitalista de mercadorias. Marx, inclusive, é  
explícito na Miséria da filosofia ao dizer que “o Direito nada mais é que o  
reconhecimento oficial do fato” (MARX, 2004, p. 84). Aqui, isso permanece válido,  
sendo, inclusive, recorrentes as menções de Marx ao reconhecimento sempre que trata  
das relações jurídicas (Cf. SARTORI, 2016). O Direito, bem como as formas jurídicas,  
reveste e reconhece as relações fáticas, que são trazidas oficialmente pelo Estado.  
Somente a posteriori, portanto, é que tais relações fáticas adquirem uma forma jurídica,  
de modo que, como diz Marx em O capital, “o conteúdo dessa relação jurídica ou de  
vontade é dado por meio da relação econômica mesma” (MARX, 1996a, p. 79). Para  
que fiquemos nos termos das Glosas sobre Wagner, podemos dizer que a forma  
jurídica do contrato não cria o conteúdo, nem mesmo a troca ou a relação existente  
entre as pessoas. Antes, tem-se o oposto, de modo que fica claro que, em Marx, a  
categoria pessoa não é principal e essencialmente uma noção jurídica.  
E, com isso, mesmo ao se tratar somente da esfera de circulação de  
mercadorias, nota-se que a concepção pachukaniana pode ser questionada. As  
relações fáticas colocadas no processo global de produção remetem à relação entre  
produção, distribuição, circulação, troca e consumo. A metamorfose das formas  
econômicas, bem como os processos de produção e realização do mais-valor é  
essencial nessa configuração. A correlação existente entre as formas da mercadoria,  
do dinheiro, do capital, bem como entre as diversas figuras econômicas (como lucro,  
juros e renda, por exemplo) entre si e com as formas econômicas, é algo bastante  
complexo e que precisa ser estudado com cuidado. E, assim, tratar da relação das  
formas jurídicas com as formas econômicas é mais complexo do que pode parecer.  
Pelo que vemos, mesmo ao analisar a relação entre a circulação e o processo imediato  
de produção isso fica claro.  
Porém, é preciso que se destaque algo mais: ao passo que Pachukanis centra  
sua análise no livro I de O Capital, há menções às formas jurídicas sobretudo no livro  
III (Cf. SARTORI, 2021a, b). Ou seja, também nesse sentido, no mínimo, é necessário  
certo complemento quanto à análise presente em Teoria geral do Direito e o marxismo.  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
Caso se vá além da produção de mercadorias e da circulação como se coloca  
de imediato7, trazendo-se, por exemplo, a relação do Direito com a distribuição do  
mais-valor, com a renda, com os juros e com a chamada justiça das transações temas  
esses presentes, sobretudo, no livro III de O capital é preciso mitigar a posição  
pachukaniana.  
Isso ocorre, inclusive, porque em Teoria geral do Direito e o marxismo, o  
contrato aparece como essencial à forma jurídica em geral. Como mencionamos:  
mesmo que Pachukanis chegue a falar das formas jurídicas no plural, o que prevalece  
nele é a tematização da questão em termos da “forma jurídica como tal”, que se dá a  
partir de uma forma jurídica específica, aquela colocada no contrato e na troca. Ou  
seja, não só é preciso falar das formas econômicas e das figuras econômicas para se  
tratar do Direito na obra marxiana; algo que acompanha tal requisito é o caráter plural  
das formas jurídicas.  
Quando o autor soviético fala de um tema decisivo, como a compra e venda da  
mercadoria força de trabalho, ele traz a ligação entre contrato, sujeito de direito e  
forma jurídica. E, assim, a proximidade dessa forma jurídica de elementos essenciais  
da produção, tal como ocorre nos primeiros capítulos de O capital, é marcante. Ou  
seja, para Pachukanis, a crítica ao Direito parece ser importantíssima porque haveria,  
já em Marx, uma ligação imediata entre a compra e venda de mercadorias, e em  
especial da mercadoria força de trabalho, com a produção de mais-valor. Ou seja, em  
Teoria geral do Direito e o marxismo, a mediação da forma jurídica aparece  
essencialmente ligada à conformação da sociedade capitalista e do valor. No limite, o  
Direito estaria a engendrar a própria relação de troca, que só seria possível ao se  
colocar como algo fático e jurídico:  
O trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor  
de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é  
mediada pela forma jurídica do contrato. Acredita-se que esses  
exemplos sejam suficientes para se admitir o significado decisivo da  
categoria de sujeito para a análise da forma jurídica. (PACHUKANIS,  
2017, p. 118)  
Na visão de Pachukanis, o Direito, mais precisamente a forma jurídica do  
contrato, é responsável pela forma pela qual aparece o trabalhador assalariado no  
mercado. A mediação jurídica seria aquela que faria com que a exploração, bem como  
7 Casalino aponta que Pachukanis trata, sobretudo, do nível de abstração em que se coloca a chamada  
circulação simples, sendo preciso remeter à reprodução ampliada do capital. (Cf. CASALINO, 2011)  
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a compra e venda da mercadoria força de trabalho, fosse atributo do sujeito de direito,  
colocado como livre vendedor. E, assim, a concatenação entre a categoria sujeito e a  
forma jurídica como tal estaria evidente ao autor soviético. Ao olharmos para Marx, no  
entanto, percebemos que a mediação da forma jurídica do contrato, como já  
mencionamos, encaminha as relações jurídicas ao passo que o conteúdo dessas  
relações está nas relações econômicas. Diz o autor de O capital sobre o tema: “essa  
relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma  
relação de vontade, em que se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa  
relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma” (MARX,  
1996a, p. 79). Marx, portanto, traz por central a relação econômica, que, como deixa-  
se claro no capítulo XXIV de O capital, depende do processo de expropriação dos  
trabalhadores, ou seja, da constituição da relação-capital.  
Assim, pode-se dizer com Pachukanis que o trabalhador assalariado surge no  
mercado como um livre vendedor de sua força de trabalho” (PACHUKANIS, 2017, p.  
118). Porém, a relação de vontade que aparece na relação jurídica depende, não tanto  
da mediação do contrato, mas do próprio processo da assim chamada acumulação  
originária. Ele origina-se a partir das próprias formas econômicas e de suas mútuas  
relações, portanto. A relação de produção que media a relação social entre as pessoas  
e as coisas é que é enfatizada por Marx. As coisas não são por natureza mercadorias,  
nem a vontade humana aparece subsumida às coisas sempre. Os homens aparecem  
na esfera de circulação de mercadorias como guardiões de mercadorias, e são  
subordinados às próprias mercadorias, de modo que, em especial na relação de  
concorrência, há uma inversão entre sujeito e objeto, que é efetiva no modo de  
produção capitalista (Cf. GRESPAN, 2019).  
Ou seja, Marx está tratando da relação entre forma-mercadoria, forma-dinheiro  
e capital; aquilo que dá a tônica dessa relação é a autovalorização do valor. E, assim,  
ele está explicitando que os pressupostos da relação-capital se conformam  
concretamente, ao mesmo tempo em que aparecem apagados na circulação bem como,  
em um grau maior de concretude, na concorrência. Esse jogo entre formas de  
aparecimento e essência da relação capitalista é muito importante para o autor, que  
sempre deixa claro: a relação econômica mesma traz consigo essas inversões e esse  
caráter ilusório. Para que deixemos claro: não é o Direito, ou a forma jurídica, que  
trazem mistificação às relações capitalistas. As formas jurídicas somente reconhecem  
tal caráter mistificado das relações econômicas capitalistas como sua base natural e  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
como algo que não pode ser questionado.  
Em Marx, portanto, as relações jurídicas apenas reconhecem tal caráter como  
um pressuposto natural. Na circulação de mercadorias, tem-se a conformação das  
pessoas a partir de relações reificadas oriundas das próprias relações econômicas, em  
que a vontade das pessoas é efetiva, ao passo que vem a ser subordinada justamente  
às coisas. Assim, enfatiza Marx que para que essas coisas se refiram umas às outras  
como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como  
pessoas, cuja vontade reside nessas coisas” (MARX, 1996a, p. 79). Assim, não é o  
Direito, ou a forma do contrato, que trazem o trabalhador assalariado como livre para  
dispor de sua força de trabalho; as formas jurídicas somente encaminham o conteúdo  
econômico que é determinado pela correlação entre produção, distribuição, circulação,  
troca e consumo em meio à metamorfose das formas econômicas e suas relações com  
as figuras econômicas.  
Na troca, as vontades se encontram em reciprocidade porque os guardiões das  
mercadorias se colocam como trocadores e proprietários das mercadorias (com a  
vontade residindo nas coisas, portanto). Porém, isso também se dá porque a forma-  
dinheiro tem uma função essencial ao trazer o poder social como algo inerente às  
pessoas privadas:  
Como no dinheiro é apagada toda diferença qualitativa entre as  
mercadorias, ele apaga por sua vez, como leveller radical, todas as  
diferenças. O dinheiro mesmo, porém, é uma mercadoria, uma coisa  
externa, que pode converter-se em propriedade privada de qualquer  
um. O poder social torna-se, assim, poder privado da pessoa privada.  
(MARX, 1996a, p. 252)  
O nivelamento que é trazido na igualdade entre as pessoas tem relação com a  
equiparação, bem como a medida do trabalho abstrato, que Marx menciona ao tratar  
da forma-mercadoria. Porém, é preciso notar que a igualdade que se coloca na  
sociedade capitalista não decorre somente da mercadoria, nem mesmo da relação  
entre a forma-mercadoria e a forma jurídica. É preciso tratar com mais cuidado das  
formas econômicas mesmas antes de se estabelecer uma relação direta entre Direito  
e circulação mercadoria.  
Após tratar da mercadoria, Marx fala do dinheiro, rumando a um grau maior de  
concretude em sua exposição (Cf. ROSDOLSKY, 2001). Nessa forma econômica, a  
diferença qualitativa é apagada e o poder social é colocado no sentido de se ter, não  
só a posse de uma mercadoria específica, mas ao haver a possibilidade de compra de  
mercadorias em abstrato. Nos Grundrisse, Marx traz esse fato ao dizer sobre a  
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circulação que “o dinheiro aparece aqui como material, como mercadoria universal dos  
contratos, toda diferença entre os contratantes é, ao contrário, apagada” (MARX, 2011,  
p. 300). Fica claro: não é a forma jurídica do contrato, ou alguma forma jurídica como  
tal, que faz com que sejam apagadas as diferenças, e que seja possível se relacionar  
como um proprietário em abstrato diante das mercadorias. A correlação entre as  
formas econômicas da mercadoria com o dinheiro é que aparece como central aqui. E  
mais: os contratantes, bem como a forma jurídica do contrato, dependem justamente  
dessa correlação entre dinheiro e mercadoria. Há, de um lado, o poder social colocado  
como poder da pessoa privada possuidora de dinheiro e, doutro, um guardião de  
mercadorias, também conformado como proprietário. O dinheiro pode ser propriedade  
privada de qualquer um e, assim, todas as pessoas são niveladas do ponto de vista do  
poder social que se coloca no bolso.  
A igualdade entre as pessoas, que aparecem mediadas pela forma jurídica do  
contrato e, portanto, também, como contraentes, precisa ser vista ao se pensar a que  
o dinheiro é um leveller radical. E, assim, vai-se da mercadoria ao dinheiro.  
Tal nivelamento traz a possibilidade de a propriedade privada não ser um  
privilégio de qualquer grupo, mas uma possibilidade se concreta ou abstrata é outra  
questão8 para todas as pessoas. Por meio do dinheiro, o poder social se torna um  
poder privado da pessoa privada. Tem-se a apropriação privada da riqueza social  
produzida no processo global de produção. E aqui é preciso notar: por meio da ligação  
entre dinheiro e mercadoria, mostra-se mesmo que de modo incipiente a  
contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção,  
inerente ao modo de produção capitalista; tem-se o fato de que a produção da riqueza  
envolve a sociedade como um todo, trazendo inclusive uma espécie de trabalhador  
coletivo (MARX, 1986a, b), ao passo que a apropriação dessa riqueza é realizada de  
modo privado. Ou seja, quando Marx fala do poder privado da pessoa privada, não  
está falando finalmente da categoria do sujeito de direito, central à análise  
pachukaniana. O autor alemão trata das contradições que marcam o modo capitalista  
de produção e aparecem por meio da relação entre as formas econômicas em suas  
relações contraditórias entre si. Marx, portanto, trata do dinheiro ao remeter já à  
8 Aqui a nossa exposição está em um grau de abstração em que a diferença concreta entre os indivíduos  
e, mais precisamente entre as classes sociais, não pode ser abordada. No entanto, é claro que, tanto ao  
tratar das mercadorias quanto do dinheiro e do capital, tem-se em mente que há uma oposição basilar  
ao sistema capitalista de produção, colocada na oposição entre a classe dos capitalistas e dos  
trabalhadores.  
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nova fase  
 
Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
existência do capital, bem como de seu caráter contraditório que aparece aqui na  
correlação entre produção social e pessoa privada.  
Algo semelhante ao que se dá quando olhamos para o dinheiro em Marx,  
mostrando-se quando o autor alemão fala da forma do capital. Ao tratar da  
dependência da competição capitalista diante das condições colocadas pelo processo  
imediato de produção, a menção ao leveller é trazida novamente, de modo que se diz:  
Como o capital, porém, é um leveller por natureza, isto é, exige, em  
todas as esferas da produção, como um direito humano inato,  
igualdade nas condições de exploração do trabalho, a limitação legal  
do trabalho infantil em um ramo da indústria torna-se causa de sua  
limitação em outro. (MARX, 1996b, p. 30)  
Marx está a falar da limitação do trabalho infantil. No livro I de O capital, em  
que está a passagem, ele menciona que os agentes da produção (que seriam tratados  
com mais cuidado no livro III) temiam pelas condições desiguais de produção que  
decorreriam dessa limitação num local e não noutro. As esferas da produção, desse  
modo, colocar-se-iam de modo distinto. Porém, de acordo com Marx, não é só o  
dinheiro que é um leveller.  
Também o capital, em seu movimento, traz o nivelamento das condições de  
produção. Ou seja, para que se trate da igualdade entre os as pessoas, os trocadores,  
os proprietários e, em um nível mais concreto, os agentes da produção, é preciso que  
se compreenda a correlação existente entre as formas econômicas tratadas em O  
capital.  
A mercadoria pode mesmo trazer certa equiparação e equivalência; porém, sua  
medida está, de certo modo, fora dela. Isso se dá de modo dúplice: em primeiro lugar  
porque a substância que se coloca como uma espécie de gelatina em meio às  
condições de produção capitalistas do valor não está no próprio valor de uso, valor  
de troca ou no valor considerado como tais. Antes, ela coloca-se no trabalho, mais  
precisamente, no trabalho abstrato (Cf. MARX, 1996a, b)9. Em segundo lugar, em  
correlação com o caráter simultaneamente social e estranhado do trabalho da  
sociedade capitalista, tem-se uma mercadoria específica que vem a se autonomizar e  
ter como função específica trazer certa medida de valor. Trata-se do dinheiro. Ou seja,  
a passagem da mercadoria ao dinheiro é marcada por certa autonomização das formas  
sociais. Não se tem somente o fetichismo da mercadoria, mas também o fetichismo do  
9 Para um tratamento cuidadoso do tema, Cf. RUBIN, 1989, 2020, bem como SAAD FILHO, 2011.  
Verinotio  
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Vitor Bartoletti Sartori  
dinheiro, bem como, como mostra Marx posteriormente no livro III, em especial ao falar  
da chamada fórmula trinitária, o fetichismo do capital. Aqui, ao se tratar do nivelamento  
das condições de produção, há a necessidade de se compreender tanto o  
funcionamento da mercadoria quanto do dinheiro e do capital. E, assim, destaca-se na  
principal obra de Marx que o capital aparece como um leveller por natureza, e isso  
tem uma correlação com a forma de aparecimento de uma espécie de direito inato.  
Marx precisa falar da correlação entre mercadoria, dinheiro e capital, bem como do  
modo pelo qual decorrem as lutas de classe em meio a essas formas econômicas, para  
poder tratar da limitação do trabalho infantil. Só então ele pode falar da limitação  
legal, bem como de como a forma de aparecimento dos direitos humanos depende da  
própria igualdade e do próprio nivelamento trazidos pela dinâmica do capital.  
Não se tem, portanto, uma relação imediata e direta entre forma-mercadoria e  
forma jurídica. Antes, as menções de Marx deixam claro que a mediação das formas  
econômicas, a correlação entre elas, bem como as formas de aparecimento delas é  
essencial para que se possa falar do Direito, das formas jurídicas e da concepção  
jurídica. Se Pachukanis é bastante perspicaz ao tratar do fetichismo da mercadoria e  
de sua relação com o Direito, não se pode dizer o mesmo ao se olhar para o fetichismo  
do dinheiro e do capital, que não são enfocados pelo autor de Teoria geral do Direito  
e o marxismo.  
As figuras econômicas e as formas jurídicas: o caso da justiça das transações e  
o mundo invertido da concorrência  
Marx, portanto, passa pelas formas jurídicas ao correlacionar as formas  
econômicas, bem como os seus respectivos fetichismos. Ocorre, porém, que o  
tratamento marxiano do Direito remete não só às formas econômicas, que permeiam  
o núcleo essencial do modo de produção capitalista; tem-se, além da correlação entre  
mercadoria, dinheiro e capital, a ligação do Direito com figuras econômicas, que não  
podem ser entendidas antes da análise do processo de produção e de extração do  
mais-valor.  
Figuras como renda, juros, lucro, em verdade, são parcelas do mais-valor (Cf.  
MARX, 1986a, b). Em Marx, elas aparecem, sobretudo, no livro III de O capital. E, assim,  
não estão somente em meio a autonomização das formas econômicas, que  
mencionamos acima referindo-nos, sobretudo, ao livro I. Ao tratar desse tema, também  
se tem uma peculiar reificação de figuras que aparecem como uma espécie de fórmula  
trinitária aos agentes da produção, bem como à economia vulgar: capital-juros, terra-  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
renda e trabalho-salário parecem ser as fontes dos rendimentos da sociedade  
capitalista somente na medida em que se tem a “ossificação dos diferentes elementos  
sociais da riqueza entre si, essa personificação das coisas e essa reificação das relações  
de produção, essa religião da vida cotidiana” (MARX, 1986b, p. 280). Portanto, não  
só o processo de extração do mais-valor está oculto; categorias irracionais e carentes  
de conceito são efetivas na realidade ao mesmo tempo em que só podem ser  
explanadas com referência àquilo que está ausente em sua forma de aparecimento.  
Tais figuras não são claramente visíveis no livro I, em que se trata do processo imediato  
de produção. No livro III, por outro lado, o processo global de produção traz figuras  
econômicas que se apresentam muito mais próximas da superfície da sociedade  
capitalista, bem como da prática cotidiana dos agentes da produção (Cf. GRESPAN,  
2019, 2011; SARTORI, 2021a, b). Lucro, renda, juros, mas também ganho empresarial,  
custo de produção, e outras figuras econômicas são partes do cotidiano daqueles  
envoltos na imediaticidade aparencial da produção capitalista.  
Marx diz sobre a concretude imediata da sociedade capitalista que é normal  
que “os agentes reais da produção se sintam completamente à vontade nessas formas  
alienadas e irracionais de capital-juros, terra-renda, trabalho-salário” (MARX, 1986a,  
p. 280); e, assim, o cotidiano mesmo do sistema capitalista de produção traz consigo  
figuras econômicas que têm uma existência reificada, e que parecem ser absolutamente  
autônomas. Mais que isso: elas parecem independer de qualquer processo social de  
produção. Figuram para os agentes da produção como se tivessem uma existência  
eterna e transistórica. Segundo Marx, isso ocorre “pois elas são exatamente as  
configurações da aparência em que eles se movimentam e com as quais lidam cada  
dia” (MARX, 1986b, p. 280). E, assim, ali onde aparecem com mais força as formas  
jurídicas em meio a tais figuras econômicas tratadas no livro III (Cf. SARTORI, 2021a)  
está-se na superfície mais imediata do sistema capitalista de produção. Ou seja, ao  
contrário do que se dá em Pachukanis, o modo como aparecem as formas jurídicas em  
Marx, em geral, está bastante distante da produção de mais-valor. O autor de Teoria  
geral do Direito e o marxismo passa principalmente pelo livro I de O capital, buscando  
relacionar a circulação (determinada pela produção do valor) com o Direito. Com isso,  
traz como central a compra e venda das mercadorias e salienta a mercadoria força de  
trabalho. Na imediaticidade do capitalismo, bem como no livro III, tem-se algo muito  
diverso, portanto: a referência às formas jurídicas é acompanhada de categorias como  
juro, renda, lucro, ou seja, figuras econômicas que parecem ser autônomas ao passo  
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que somente podem ser explanadas ao se remeter ao processo de exploração da força  
de trabalho.  
Assim, para tratar das formas jurídicas em Marx, também é preciso remeter à  
conformação daquilo que já mencionamos: a “ossificação dos diferentes elementos  
sociais da riqueza entre si, essa personificação das coisas e essa reificação das relações  
de produção, essa religião da vida cotidiana” (MARX, 1986b, p. 280). É necessário  
passar pelo movimento, bem como pela metamorfose das formas econômicas que  
trazem como algo subjacente o processo de produção de mais-valor. Mas também é  
preciso mostrar como surgem figuras econômicas as quais, na medida mesma em são  
irracionais, são efetivas. E, com isso, compreender o Direito em O capital passa pelo  
entendimento do modo pelo qual as formas jurídicas encaminham o movimento dessas  
figuras econômicas que mencionamos ao passo que dependem do conteúdo concreto  
das relações econômicas, que, de acordo com Marx, determina-as (Cf. SARTORI,  
2019b).  
No que é preciso destacar que, ao se remeter aos debates hegelianos, fica claro  
que o autor de O capital está a trazer um embate com o autor da Fenomenologia ao  
citar o jogo entre o racional e o real. Tanto é assim que ele diz: “aqui é válido o que  
Hegel diz em relação a certas fórmulas matemáticas, ou seja, o que o bom senso  
considera irracional é racional e o que considera racional é a própria irracionalidade”  
(MARX, 1986b, p. 241). Se para o autor da Filosofia do Direito, “o racional é real e o  
real é racional” (HEGEL, 2003, p. XXXVI), aqui na vida cotidiana, bem como na  
concretude nas relações capitalistas como apresentadas imediatamente tem-se algo  
totalmente diverso. Em verdade, há uma espécie de antítese direta ao que se passa na  
compreensão hegeliana do processo de desenvolvimento do espírito na consolidação  
da sociedade civil-burguesa. Destacamos tais aspectos porque são abundantes as  
referências de Marx ao Direito ao tratar das figuras econômicas que são analisadas no  
livro III de O capital. Ou seja, analisar o posicionamento de Marx sobre as formas  
jurídicas nos leva a certas considerações sobre a arquitetura da principal obra de Marx,  
bem como sobre a correlação entre as diversas formas de fetichismo que se  
manifestam em meio à tessitura dessa arquitetura mesma (Cf. FINE; SAAD FILHO,  
2021; DE DEUS, 2014). E, também nesse sentido, pode-se dizer que não há uma  
correlação direta entre forma-mercadoria e forma jurídica.  
O fetichismo da mercadoria está presente em toda a obra magna do autor.  
Porém, destaca-se, sobretudo, no livro I. O fetichismo do dinheiro já mostra as caras  
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no livro I, in nuce. Mas a autonomização do dinheiro na circulação somente é pungente  
no livro II. Já o fetiche do capital é enunciado no livro I, quando se fala da  
autovalorização do valor, bem como do sujeito automático, como vimos. Ele, porém,  
só se realiza plenamente nas figuras econômicas que mencionamos, como os juros na  
fórmula D-D´. Marx diz que o lucro é uma figura que não pode ser explicada por si;  
no lucro, fica sempre uma lembrança, quanto à sua origem”; ao falar de tal lembrança,  
ele continua sobre ela: “nos juros, não só é apagada, mas é colocada numa forma firme  
oposta a essa origem” (MARX, 1986b, p. 279). E, assim, tem-se a reificação  
aparecendo de modo muito mais pungente nessas figuras econômicas que na  
circulação de mercadorias.  
Ou seja, ao contrário do que ocorre na tradição pachukaniana, não é suficiente  
que se destaque a correlação existente entre forma-mercadoria e Direito. Passa-se  
tanto por outras formas econômicas (bem como pelos seus fetichismos  
correspondentes) quanto por figuras econômicas que aparecem aos agentes da  
produção como algo natural.10 E isso se dá mesmo que tais figuras sejam o inverso  
daquilo essencial à produção capitalista e correspondente ao próprio conceito do  
modo de produção capitalista:  
Na concorrência aparece, pois, tudo invertido. A figura acabada das  
relações econômicas, tal como se mostra na superfície, em sua  
existência real, portanto, também nas concepções mediante as quais  
os portadores e os agentes dessas relações procuram se esclarecer  
sobre as mesmas, difere consideravelmente, sendo de fato o inverso,  
o oposto, de sua figura medular interna, essencial, mas oculta, e do  
conceito que lhe corresponde. (MARX, 1986a, p. 160)  
Na religião da vida cotidiana, mencionada por Marx, há uma inversão patente.  
Tanto na concepção dos agentes da produção quanto na superfície das figuras  
econômicas que mencionamos, o essencial parece estar transparente. Porém, o que  
ocorre é o oposto.  
E isso se dá, inclusive, na medida e que a concorrência dá a tônica da vida dos  
agentes da produção. A fórmula D-D´ é, em si, absolutamente irracional, e, diz Marx  
nas Teorias do mais-valor, “em sua simplicidade, essa relação já é na perversão,  
10  
Diz Marx sobre essa situação que “as mediações das formas irracionais em que determinadas  
condições econômicas aparecem e praticamente se acoplam não importam nem um pouco aos  
portadores práticos dessas condições econômicas em sua ação econômica diuturna; e já que eles estão  
acostumados a se movimentar no meio delas, não ficam nem um pouco chocados com isso. Uma perfeita  
contradição não tem nada de misterioso para eles. Nas formas fenomênicas que perderam a coerência  
interna e que, tomadas em si, são absurdas, eles se sentem tão à vontade quanto um peixe na água”  
(MARX, 1986b, p. 241)  
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personificação da coisa, e coisificação da pessoa” (MARX, 1980, p. 385-386). Tal  
inversão entre pessoas e coisas que tratamos acima ao remeter ao fetiche da  
mercadoria aparece aqui de modo ainda mais forte, portanto. A figura acabada das  
relações econômicas em que, no livro III, atuam as formas jurídicas é aquela que  
está marcada por uma reificação mais pungente. Ou seja, em Pachukanis a forma  
jurídica (usualmente tratada no singular) está muito próxima do processo de extração  
de mais-valor, relacionando-se com a forma mercadoria e, em especial, com a  
mercadoria força de trabalho. Em Marx, isso ocorre também: o autor alemão, como o  
autor de Teoria geral do Direito e o marxismo enxergou bem, trata da forma jurídica  
do contrato também no processo de circulação, que está intimamente ligado ao  
processo imediato de produção. Porém, o que se tem é que as remissões de Marx às  
formas jurídicas aparecem, sobretudo, ao tratar de figuras acabadas de relações  
econômicas que se mostram na concorrência, e que se apresentam de modo mais  
reificado do que no capítulo I do livro I de O capital.  
Ao tomar a concorrência como medida e, ao se supor o assalariamento, bem  
como a propriedade privada dos meios de produção como uma espécie de segunda  
natureza, por exemplo, pode-se trazer, inclusive, um clamor por justiça. No próprio  
movimento socialista, na pessoa de Lassalle, mas também com Proudhon, buscou-se  
uma espécie de distribuição justa (Cf. MARX, 2012, 2004). Marx, ao contrário, não  
deixou de ironizar a “fraseologia da 'distribuição justa'” (MARX, 2012, p. 28), típica  
dos lassallianos. Também atacou Proudhon, que acreditava que a equalização moderna  
era fruto de uma espécie de justiça, e não dos processos que tratamos acima. Diz Marx  
sobre o que chamará em O capital de trabalho abstrato que esta equalização do  
trabalho não é obra da justiça eterna do Sr. Proudhon; é simplesmente o fato da  
indústria moderna(MARX, 2004, p. 49). No livro III, Marx deixa claro que a equação  
da concorrência com a concepção de justiça não leva muito longe na crítica ao capital.  
E mais, isso ocorreria na medida em que justamente as formas políticas e jurídicas  
pareceriam ter um poder demiúrgico diante de seu conteúdo econômico. E, assim,  
Marx critica a justiça das transações, bem como as formas jurídicas:  
E claro que a posse das 100 libras esterlinas dá a seu proprietário o  
poder de atrair para si o juro, certa parte do lucro produzido por seu  
capital. Se não desse as 100 libras esterlinas ao outro, este não  
poderia produzir o lucro, nem funcionar ao todo como capitalista, com  
relação a essas 100 libras esterlinas. Falar aqui de justiça natural,  
como o faz Gilbart, é um contra-senso. A justiça das transações que  
se efetuam entre os agentes da produção baseia-se na circunstância  
de se originarem das relações de produção como consequência  
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natural. As formas jurídicas em que essas transações econômicas  
aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões  
de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser  
imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como  
simples formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o expressam.  
Esse conteúdo será justo contanto que corresponda ao modo de  
produção, que lhe seja adequado. E injusto, assim que o contradisser.  
A escravatura, na base do modo de produção capitalista, é injusta; da  
mesma maneira a fraude na qualidade da mercadoria. (MARX, 1986a,  
p. 256)  
A figura dos juros traz certo poder ao prestamista. Trata-se, inclusive, de um  
poder reconhecido juridicamente, que, tal qual no caso da renda, traz uma espécie de  
“poder jurídico” (MARX, 1986b, p. 124). Os juros, assim, colocam-se em oposição ao  
lucro até certo ponto. E, nesse sentido, alguns, como James Gilbart, cuja obra sobre  
os bancos é criticada por Marx em O capital, pretenderam fazer desse fato algo que  
se opõe a uma espécie de justiça natural, que deveria se colocar nas transações  
econômicas.  
O poder mencionado advém da propriedade que, reconhecida juridicamente,  
permite a execução forçada dos contratos por meio do Estado. Segundo o autor de O  
capital, porém, a atuação estatal, bem como o reconhecimento jurídico, depende do  
movimento das formas econômicas. Tanto é assim que, ao tratar dos juros e do lucro,  
Marx é obrigado a remeter ao modo de produção, em que a forma capital está  
plenamente desenvolvida e preside o movimento da mercadoria e do dinheiro. E, nesse  
ponto, há algo importante a ser destacado quando Marx trata do assunto acima no  
livro III de O capital: a determinação dos agentes da produção ocorre a partir do  
próprio modo de produção. E, com isso, o autor alemão diz que, para esses agentes,  
as próprias relações de produção capitalistas aparecem fetichizadas, como uma  
espécie de segunda natureza.  
Os agentes econômicos se movem em meio às figuras econômicas que se  
mostram de imediato e apagam o seu processo constitutivo. Esse último, por sua vez,  
remete às formas econômicas mencionadas e, portanto, ao processo de extração do  
mais-valor. O dia a dia dos agentes econômicos, desse modo, traz uma situação em  
que “uma perfeita contradição não tem nada de misterioso para eles” (MARX, 1986b,  
p. 241). No limite, é possível que, nas “formas fenomênicas que perderam a coerência  
interna e que, tomadas em si, são absurdas, eles se sentem tão à vontade quanto um  
peixe na água” (MARX, 1986b, p. 241). Porém, há uma alternativa distinta, que  
igualmente pressupõe determinado modo de produção como algo intocável, aquela  
que traz um contraposto às transações econômicas como se dão diuturnamente. E, de  
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acordo com Marx, essa contraposição está, não raro, na noção de justiça. Assim, a  
oposição ao poder decorrente da propriedade, e reconhecido pelo Direito, acaba por  
se colocar, não na busca pela supressão do modo de produção capitalista e das  
relações de produção capitalistas, mas na busca por uma espécie de justiça natural  
vista como uma justiça das transações. Diante das figuras econômicas como juros e  
renda, na imediatidade das relações sociais da produção capitalista, segundo Marx, os  
agentes da produção trazem à tona o ideal de justiça como algo que supostamente se  
opõe aos vícios das transações econômicas. É possível se voltar contra a fraude nas  
mercadorias, ou em sua qualidade, por exemplo. Porém, os agentes da produção  
aparecem necessariamente como produtores de mercadorias; as coisas aparecem  
como naturalmente mercadorias e os indivíduos como produtores de mercadorias,  
possuidores de dinheiro e artífices das relações capitalistas de produção.  
Nesse sentido, Marx diz que a justiça traz consigo a pressuposição das relações  
sociais de produção como uma espécie de consequência natural. Os agentes da  
produção, portanto, perpassam por formas jurídicas (e Marx traz o termo no plural  
aqui) ao passo que essas formas, como diz o autor nos Grundrisse, expressam o valor.  
Eles também operam por meio da liberdade e da igualdade dos contratos e, nesse  
âmbito: “igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca  
baseada em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real,  
de toda igualdade e liberdade” (MARX, 2011, p. 297). O valor, tal qual destaca  
Pachukanis, tem um papel decisivo também aqui. Porém, Marx complementa dizendo  
o seguinte: “como ideias puras, são simples expressões idealizadas dessa base;  
quando desenvolvidas em relações jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base  
em uma outra potência(MARX, 2011, p. 297). E, assim, é necessário considerar como  
que as formas jurídicas e políticas elevam a base do valor a outra potência. E, pelo que  
vemos, isso passa pela compreensão não só das formas econômicas que se  
metamorfoseiam em meio ao processo de autovalorização do valor. Tem-se também  
as figuras econômicas, que aparecem aos agentes da produção como algo natural e  
evidente ao passo que se toma como pressuposto as relações de produção de uma  
época. As formas jurídicas, assim, trazem uma forma de aparecimento das relações  
econômicas, as quais se mostram de modo invertido e como se categorias como juros,  
lucro e renda tivessem uma existência autônoma. No máximo, elas seriam frutos do  
capital e da terra (e não de relações sociais específicas de uma época e, como tais,  
suprimíveis). A contraposição àquilo que é incômodo nas transações econômicas,  
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desse modo, acaba por se colocar como uma demanda por justiça. E é preciso destacar:  
ela acaba por tratar da distribuição como algo autônomo diante dos distintos modos  
de produção. Mais que isso: somente ao passo que toma o modo de produção como  
algo natural é que a noção de justiça consegue expressar a base do valor em outra  
potência.  
Nesse sentido específico, há de se notar que o tratamento marxiano das formas  
jurídicas é bastante mais amplo que o pachukaniano. Em verdade, essa abordagem  
tem como consequência que a religião da vida cotidiana tem uma colocação jurídica  
também.  
Assim, há tanto uma forma de aparecimento jurídica das relações de produção  
burguesas quanto a possibilidade de contraposição à conformação imediata das  
transações econômicas por meio da justiça. Marx analisa as formas jurídicas como algo  
que também se destaca de modo proeminente para além da correlação colocada entre  
o processo imediato de produção e o processo de circulação. Ao tratar dos juros, da  
renda e do lucro, o autor de O capital destaca as figuras econômicas que aparecem na  
imediatidade da sociedade capitalista e mostra como diversas formas jurídicas operam  
nesse âmbito.  
E, nesse sentido específico, levanta-se também um tema bastante importante  
ao tratamento engelsiano (e marxiano) do Direito: aquele da correlação entre Direito  
e religião e entre visão de mundo jurídica e visão de mundo teológica (Cf. ENGELS,  
2015, 2002, 1982, 1979; ENGELS; KAUTSKY, 2012). No livro III de O capital em  
especial, o modo de aparecimento das relações econômicas cotidianas e concretas na  
sociedade capitalista é perpassado pelo Direito assim como as relações econômicas  
da produção servil era mediada pela religião. E as formas jurídicas estão envoltas nesse  
modo de representação específico da sociedade capitalista. Os atos de vontade dos  
participantes, bem como as suas vontades em comum, parecem presidir esse processo,  
ao passo que não se tem somente a vontade dos homens residindo nas mercadorias.  
Tem-se o dinheiro autonomizado de tal modo que os juros (cuja fórmula aparece como  
D-D´) são tomados pelos agentes da produção, não raro, como algo absolutamente  
racional e razoável.  
Melhor dizendo, usualmente, os juros são tomados dessa maneira; mas há uma  
contraposição que pode ser colocada a eles, e que não consegue resolver as oposições  
sobre as quais se soergue: aquela colocada na noção de justiça. Para que tragamos  
uma analogia: as diferentes teologias, e em especial as versões heréticas delas,  
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poderiam mesmo se contrapor à igreja oficial. Porém, a igreja e a teologia se colocam  
no terreno da religião. As distintas noções de justiça podem também se opor ao Direito  
oficial e às formas de aparecimento das relações jurídicas. Em ambos os casos, porém,  
pressupõem-se limitações que são inerentes àquilo contra o que se marca posição, a  
igreja e o Direito.  
A justiça acaba aceitando as formas econômicas da mercadoria, do dinheiro e  
do capital como um pressuposto inabalável. No máximo, vem a buscar um balanço  
distinto entre juros, renda, lucro etc. E, com isso, as formas jurídicas dependem da  
correlação das formas econômicas, ao mesmo tempo em que também são o próprio  
modo pelo qual essas formas se apresentam de imediato na sociedade. O poder que  
menciona Marx também se mostra como poder jurídico e aqui as pessoas não  
aparecem somente como “sujeito exclusivo e dominante (determinante) do ato da  
troca” (MARX, 2011, p. 297). As pessoas figuram como proprietárias e agentes da  
produção e, nesse nível de abstração do livro III, isso significa que se tem a lida,  
sobretudo, com figuras econômicas como juros, renda e lucro. A relação entre as  
formas econômicas oculta-se de imediato e aparece como algo bastante distante. O  
Direito, assim, aparece com pretensões bastante grandes, por exemplo, ao tentar  
ajustar as transações a um ideal de justiça; ao mesmo tempo, porém, isso só pode  
ocorrer ao passo que o conteúdo econômico não pode ser determinado pelas formas  
jurídicas. Como disse Marx, “elas apenas o expressam” já que essas formas, “não  
podem, como simples formas, determinar seu conteúdo” (MARX, 1986b, p. 256),  
Escravidão e fraude aparecem como injustas pois podem contrariar, por vezes,  
o modo de produção capitalista. E, com isso, Marx traz uma relação de adequação  
entre a justiça, o conteúdo concreto das relações econômicas e o modo de produção.  
E, pelo que vimos, isso se dá ao passo que quando as preocupações com a justiça das  
transações vêm à tona, já se tem como pressuposto e natural aos agentes da produção  
as relações de produção específicas, no caso tratado em O capital, no sistema  
capitalista de produção.  
Aqui, as formas jurídicas trazem uma correlação entre o poder social ligado à  
autonomização do dinheiro e da propriedade, bem como com a pressuposição do  
modo de produção capitalista como algo eterno. Ou seja, tem-se, mesmo que de modo  
bastante mediado, tanto o fetiche da mercadoria quanto do dinheiro e do capital  
correlacionados.  
Pachukanis, ao criticar a noção de justiça, pelo contrário, tende a trazer uma  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
correlação direta com a troca e com a forma-mercadoria. Veja-se o que diz o autor:  
Eis que o próprio conceito de justiça deriva da relação de troca e fora  
dela não tem sentido. No fundo, o conceito de justiça não contém,  
essencialmente, nada de novo com relação ao conceito de igualdade  
de todos os homens anteriormente analisado. Eis a razão por que é  
ridículo ver contido na ideia de justiça qualquer critério autônomo e  
absoluto. (PACHUKANIS, 1988, p. 112-113)  
Ao mesmo tempo em que o autor soviético traz pontos importantes em sua  
crítica, ele acaba por deixar de lado elementos essenciais da crítica de Marx. Ao  
estabelecer diretamente a relação entre forma jurídica e forma-mercadoria, também ao  
analisar a justiça, ele deixa de abordar com o devido cuidado os fetiches do dinheiro  
e do capital.  
Pelo que mencionamos, os meandros dos textos que Pachukanis trata  
diretamente são mais complexos do que o tratamento pachukaniano parece supor. No  
que é preciso ainda destacar outro aspecto: para que mencionemos o outro lado da  
falta de cuidado do autor soviético com outras formas econômicas (e com as figuras  
econômicas), tem-se também expressões jurídicas que são trazidas por Marx e que  
acabam por não ter tanta importância na formulação pachukaniana. O autor de O  
capital, por exemplo, fala de ficções jurídicas no livro I ao dizer que “na sociedade  
burguesa domina a fictio juris, que cada pessoa, como comprador, possui um  
conhecimento enciclopédico das mercadorias” (MARX, 1996a, p. 166). E, assim, a fictio  
juris mencionada por Marx acaba aparecendo tanto no processo de circulação quanto  
no nível mais concreto, em que estão os agentes da produção. São esses últimos,  
inclusive, que, por meio do clamor a uma espécie de justiça das transações, reivindicam  
a partir de seu poder jurídico algo como a vedação na fraude na qualidade da  
mercadoria. Uma mediação importante para que se possa equacionar a reivindicação  
por justiça nas transações é a ficção mencionada acima, que tem um papel importante  
na crítica marxiana ao Direito e no modo pelo qual as formas jurídicas encaminham as  
relações econômicas na imediaticidade da sociedade capitalista.  
Formas e figuras econômicas diante da concepção jurídica e da ficção jurídica:  
o caso propriedade fundiária e da renda da terra  
Quando Marx está falando da propriedade da terra, novamente, ele traz a  
necessidade de uma ficção jurídica. Ali, também se fala explicitamente do poder  
jurídico e das formas jurídicas, de modo que os meandros do próprio Direito acabam  
por aparecer em Marx de modo mais elaborado quanto mais está-se diante das figuras  
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Vitor Bartoletti Sartori  
econômicas:  
A propriedade fundiária pressupõe que certas pessoas têm o  
monopólio de dispor de determinadas porções do globo terrestre  
como esferas exclusivas de sua vontade privada, com exclusão de  
todas as outras. Isso pressuposto, trata-se agora de expor o valor  
econômico, ou seja, a valorização desse monopólio na base da  
produção capitalista. O poder jurídico dessas pessoas de usar e  
abusar de porções do globo terrestre em nada contribui para isso. A  
utilização dessas porções depende inteiramente de condições  
econômicas que são independentes da vontade desses proprietários.  
A própria concepção jurídica quer dizer apenas que o proprietário  
fundiário pode proceder com o solo assim como com as mercadorias  
o respectivo dono; e essa concepção - a concepção jurídica da livre  
propriedade do solo - só ingressa no mundo antigo à época da  
dissolução da ordem social orgânica e, no mundo moderno, com o  
desenvolvimento da produção capitalista. Na Asia, ela foi introduzida  
pelos europeus apenas em algumas regiões. Na seção sobre a  
acumulação primitiva Livro Primeiro, cap. XXIV, viu-se como esse  
modo de produção pressupõe, por um lado, que os produtores diretos  
se libertem da condição de meros acessórios do solo na forma de  
vassalos, servos, escravos etc. e, por outro, a expropriação da massa  
do povo de sua base fundiária. Nessa medida, o monopólio da  
propriedade fundiária é um pressuposto histórico e continua sendo o  
fundamento permanente do modo de produção capitalista, bem como  
de todos os modos de produção anteriores que se baseiam, de uma  
maneira ou de outra, na exploração das massas. Mas a forma em que  
o incipiente modo de produção capitalista encontra a propriedade  
fundiária não lhe é adequada. Só ele mesmo cria a forma que lhe é  
adequada, por meio da subordinação da agricultura ao capital; com  
isso, então, a propriedade fundiária feudal, a propriedade do clã ou a  
pequena propriedade camponesa combinada com as terras comunais  
são também transformadas na forma econômica adequada a esse  
modo de produção, por mais diversas que sejam suas formas jurídicas  
(MARX, 1986b, p. 124-125)  
Novamente, Marx fala dos pressupostos para a expressão jurídica das relações  
econômicas. A propriedade fundiária traz tanto uma relação jurídica quanto uma  
relação econômica. Desse modo, o autor de O capital destaca que a vontade privada  
para que usemos a dicção marxiana doutros momento, da pessoa privada , no caso,  
exclui todas as outras vontades e pessoas conformando a relação jurídica de  
propriedade.  
Trata-se, não só de uma relação jurídica, mas de uma forma jurídica específica.  
E são possíveis diversas formas jurídicas da propriedade de uma parcela específica do  
globo terrestre, de acordo com O capital. Assim, as pessoas aparecem como  
proprietárias, cujo reconhecimento se dá pelo Direito na forma da exclusividade de  
uma esfera específica.  
Marx, portanto, está tratando de uma relação econômica que adquire certa  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
forma jurídica de aparecimento. Ao analisar o capitalismo, remete-se à assim chamada  
acumulação originária (ou primitiva, como aparece na tradução), de modo que o poder  
jurídico se coloca como algo importante na mediação da forma jurídica da propriedade.  
Porém, deve-se ressaltar: o essencial está noutro campo, aquele das relações  
econômicas, as quais são encaminhadas juridicamente pela vontade das pessoas ao  
mesmo tempo em que, como diz Marx, depende inteiramente de condições  
econômicas que são independentes da vontade desses proprietários” (MARX, 1986b,  
p. 124). O Direito, com suas formas jurídicas, portanto, leva ao reconhecimento oficial  
do conteúdo das relações econômicas, bem como das formas e figuras econômicas a  
elas relacionadas. No caso da propriedade fundiária capitalista, isso se dá ao passo  
que se tem a correlação entre as formas mercadoria e dinheiro subordinada à  
autovalorização do valor e, portanto, à reposição da relação-capital; no caso, para que  
se tenha a figura da renda capitalista, é justamente necessário que a forma econômica  
adequada se coloque nessa correlação entre mercadoria, dinheiro e capital. Assim, é  
possível compreender a figura da renda em sua especificidade capitalista, decorrente  
do monopólio da terra subsumida ao capital.  
Há um poder jurídico, colocado na propriedade privada, que, por sua vez, tem  
consigo a exclusão das demais pessoas privadas e de seus respectivos poderes  
jurídicos. A forma jurídica da propriedade aqui, portanto, tem alguma importância.  
Porém, Marx é claro no sentido de que ela não é o essencial. O uso e o abuso inerentes  
ao poder jurídico, por exemplo, não são vistos como aquilo fundante da valorização  
do monopólio mencionado sob a base da produção capitalista. No limite, como diz o  
autor acima, “o poder jurídico dessas pessoas de usar e abusar dessas porções do  
globo terrestre em nada contribui para isso” (MARX, 1986b, p. 124). Da propriedade  
da terra advém certo poder, certamente. E a concepção jurídica dá-se por satisfeita ao  
dizer que esse poder jurídico traz o direito de usar e fruir de uma porção do globo,  
inclusive, tendo-se em conta a figura da renda. Porém, o fundamental, como acima, é  
o conteúdo econômico. Como visto, as formas jurídicas “não podem, como simples  
formas, determinar seu conteúdo” (MARX, 1986b, p. 256). Portanto, a concepção  
jurídica tende a trazer diversas categorias específicas da esfera do Direito, contendo  
diversos meandros, presentes, inclusive, na teoria do Direito. Porém, pelo que vemos,  
Marx não está a analisar a concepção jurídica em sua concatenação “jurídica” interna,  
em que categorias como sujeito de direito, por exemplo, são relevantes. Ele aborda a  
efetividade do Direito em meio às figuras e formas econômicas presentes em sua crítica  
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da economia política. Por isso, não é a definição jurídica da renda que explica a  
especificidade dessa no sistema capitalista de produção, mas a maneira pela qual o  
poder mencionado acima decorre da forma especificamente capitalista de monopólio  
da terra, tratado, em suas linhas gerais, no capítulo XXIV de O capital e,  
posteriormente, ao se analisar a subordinação do campo à cidade e ao valor.  
No que se tem um ponto muito importante para o que destacamos sobre a  
correlação entre as formas jurídicas e as econômicas: Marx não analisa a fundo a  
anatomia interna da concepção jurídica. Ele não está destacando o funcionamento de  
uma teoria do Direito, ou das categorias que se apresentam no funcionamento interno  
do Direito. Antes, ele passa pela concepção jurídica dizendo que ela tem uma  
efetividade na condução das relações econômicas, ao mesmo tempo em que é incapaz  
de entendê-las realmente.  
Para o autor, “a própria concepção jurídica quer dizer apenas que o proprietário  
fundiário pode proceder com o solo assim como com as mercadorias o respectivo  
dono” (MARX, 1986b, p. 124). Há, assim, não tanto uma ênfase no poder jurídico do  
proprietário, ou na definição jurídica desse poder no que diz respeito à renda, mas no  
fato de que parcelas da terra são tratadas como mercadorias e, como tais, passíveis  
de apropriação pelas pessoas privadas. A concepção jurídica, assim, é uma mediação  
importante na propriedade fundiária, certamente. Mas a explanação da especificidade  
da propriedade fundiária capitalista escapa completamente a essa concepção, que –  
tal qual a economia vulgar repete “a confusão entre diferentes formas de renda,  
correspondentes a fases diversas de desenvolvimento do processo de produção social”  
(MARX, 1986b, p. 137). Aquilo que Marx diz sobre os economistas, assim, também é  
válido para a concepção jurídica: “os economistas necessariamente exprimem sempre  
como atributo das coisas o que é atributo, característica do modo de produção  
capitalista, isto é, do próprio capital enquanto expressa determinada relação dos  
produtores entre si e para com seu produto” (MARX, 1980, p. 1318). Tem-se, assim,  
uma religião da vida cotidiana, de acordo com autor. E a reificação e o fetichismo  
alcançam patamares altíssimos aqui. Na concepção jurídica, tal reificação e  
naturalização são tomadas como pressuposto.  
Tal como ocorre com as definições religiosas, aliás, as definições decorrentes  
da concepção jurídica apagam as especificidades das formas e das figuras econômicas,  
trazendo um claro-escuro em que todos os gatos são pardos. Há, muitas vezes, um  
método típico dessa concepção, que, de acordo com Marx, consiste em separar as  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
categorias jurídicas para fins classificatórios retirando de campo toda a história,  
especificidade e determinações sociais, tal como ocorreria nos juristas analíticos  
(Austin e Bentham, por exemplo). Ao falar de Maine, bem como sobre a concepção de  
soberania desse autor, diz Marx que se tem quanto aos “conceitos jurídicos” “a  
operação de separá-los com um fim classificatório 'se legitima perfeitamente'. Por este  
procedimento de abstração que conduz à noção de soberania, deixa-se de fora...toda  
a história de cada comunidade...o modo como se alcançou o resultado” (MARX, 1988,  
p. 289-290). Desse modo, as formas jurídicas acabam por pressupor as determinações  
econômicas de uma época de modo inelutável; essas formas, bem como a concepção  
jurídica, trazem certa naturalização do cotidiano colocado aos agentes da produção.  
E, com isso, ao mesmo tempo em que a concepção jurídica pretende apreender as  
determinações da realidade objetiva, ela não pode fazê-lo; por isso, Marx não adentra  
tanto nos meandros internos da concepção jurídica. Ele a critica veementemente e  
mostra que as formas jurídicas se relacionam com o movimento das formas e das  
figuras econômicas em uma formação social específica.  
A concepção jurídica é somente um elo no reconhecimento do concatenamento  
das relações econômicas cuja gênese, no caso do capitalismo, remete ao processo da  
assim chamada acumulação originária, passa pela subordinação do campo à cidade e  
pelo processo de reprodução ampliada do capital e, portanto, pela autovalorização do  
valor.  
Em outras palavras, trata-se de encontrar a “forma econômica adequada a esse  
modo de produção, por mais diversas que sejam suas formas jurídicas” (MARX, 1986b,  
p. 124-125). A concepção jurídica tem como resultado prático o tratamento da terra  
como uma mercadoria, porém, no modo de produção capitalista, o essencial para a  
propriedade fundiária remete à produção de valor. E, assim, o autor de O capital está  
longe de trazer uma ênfase, como aquela pachukaniana, na “forma jurídica como tal”.  
As formas jurídicas podem ser diversas, desde que tragam consigo o reconhecimento  
da relação econômica.  
Outra questão importante a ser destacada é que, para Marx, tanto as formas  
jurídicas quanto a concepção jurídica, não são necessariamente capitalistas. E nisso, é  
bom dizer: tem-se tanto uma convergência quanto uma dissonância quanto a  
Pachukanis.  
O autor soviético relaciona a forma jurídica à forma-mercadoria e, nesse caso,  
há, nos termos que trouxemos acima, convergência em Marx. Porém, esse elemento se  
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coloca ao passo que a concepção jurídica se liga à forma-mercadoria mesmo em  
sociedades pré-capitalistas; e isso é distinto do que se dá para o autor da Teoria geral  
do Direito e o marxismo. Em Marx, para que se compreenda a concepção jurídica típica  
do modo de produção capitalista, é preciso que se remeta à relação existente entre as  
formas jurídicas e o concatenamento da mercadoria e do dinheiro como momentos da  
reprodução ampliada do capital e, portanto, do valor. A equação pachukaniana entre  
Direito e valor é correta, portanto. Porém, como já mencionamos, ela precisa de mais  
elos, que passam pela correlação entre as formas e figuras econômicas, a imposição  
da autovalorização do valor e as formas jurídicas. Para analisar a ligação entre o Direito  
e o capitalismo, isso é essencial a Marx, até mesmo porque a ligação entre a mercadoria  
e a forma jurídica da propriedade existe em outras sociedades que não a capitalista. E  
isso faz com que a mencionada ligação direta entre forma-mercadoria e forma jurídica  
(mencionada por Pachukanis) precise, no mínimo, ser complementada e revista à luz  
do que trazemos.  
De acordo com Marx, a concepção jurídica pressupõe o desenvolvimento do  
próprio estrato dos juristas. E isso não se dá somente no capitalismo, como mostram  
Marx e Engels na Ideologia alemã (Cf. MACHADO, 2022), bem como Marx nas Teorias  
do mais-valor (Cf. SARTORI, 2020c). E mais: algo que vem aparecendo em nossa  
análise a ligação entre a religião e o Direito também se relaciona com esse ponto,  
já que, para o autor de O capital, há uma correlação entre o domínio do Estado por  
sacerdotes e clérigos em determinado momento com o ganho de espaço dos juristas  
no seio do Estado (MARX, 1980). Tem-se religião e Direito relacionados também no  
que diz respeito ao procedimento dos juristas e dos sacerdotes; no caso do Direito  
antigo, por exemplo, havia, de acordo com Marx, um apego formalista muito forte ao  
procedimento de modo que “este tecnicismo exagerado do Direito antigo mostra que  
a jurisprudência é uma pluma do mesmo pássaro que as formalidades religiosas”  
(MARX, 1988, p. 281).  
Com isso, Marx abre um campo em nossa opinião ainda não explorado de  
modo devido que diz respeito à correlação entre religião e Direito, teologia e teoria  
do Direito, clérigos e juristas etc.11 O desenvolvimento da concepção jurídica se dá,  
também, em sua oposição à concepção religiosa, embora se tenham continuidades  
consideráveis sob diversos aspectos. E, nesse ponto também, talvez seja necessário  
11 Uma tentativa inicial desse estudo, em Engels, foi realizada por Gabriel Perdigão. (2018)  
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dizer que Engels traz algo no mínimo interessante e importante para a crítica  
marxista ao Direito quando diz sobre a visão de mundo jurídica da sociedade  
capitalista: “tratava-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino  
eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado” (ENGELS; KAUTSKY,  
2012, p. 17).12 Assim, concepção jurídica, juristas e a relação entre Direito e religião  
são um tema importante da crítica marxista ao Direito, bem como da abordagem  
marxiana sobre a esfera jurídica.  
Na passagem mencionada acima, no entanto, o que se destaca é que a  
concepção jurídica veicula relações econômicas ligadas à circulação de mercadorias no  
mundo antigo, por exemplo. Tal concepção traz consigo uma mercantilização da terra  
também por lá. E isso ocorre ao passo que se tem a dissolução da comunidade antiga,  
da ordem social orgânica. Ou seja, a circulação de mercadorias, bem como a concepção  
jurídica, possui um papel importante na dissolução das comunidades orgânicas. Tal  
tema, que também tem grande importância nos Grundrisse (Cf. CHASIN, 2012),  
destaca-se em nosso estudo, porque fica claro que circulação de mercadorias passa  
longe de ser sinônimo de capitalismo. A concepção jurídica tem uma função no mundo  
antigo, de modo que os apontamentos de Marx são essencialmente diferentes  
daqueles de Pachukanis, que tende a ligar sociedade mercantil com o valor e com o  
Direito.  
Outra questão importante sobre esse ponto é o desenvolvimento desigual  
existente entre as formas jurídicas, a concepção jurídica e o desenvolvimento  
econômico.  
Isso ocorre porque, principalmente a partir de uma leitura sui generis do Direito  
romano, desenvolve-se a concepção jurídica moderna da sociedade capitalista. A  
12 Engels continua a passagem trazendo uma correlação já analisada por Marx entre a circulação de  
mercadorias, contratos distintos (ou seja, formas jurídicas distintas), o Direito, bem como figuras  
econômicas ligadas como os juros creditícios: as relações econômicas e sociais, anteriormente  
representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam  
fundadas no direito e criadas pelo Estado. Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de  
mercadorias em escala social isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos engendra  
complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser  
estabelecidas pela comunidade normas jurídicas estabelecidas pelo Estado , imaginou-se que tais  
normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do Estado. Além disso, uma  
vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a  
grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia” (ENGELS;  
KAUTSKY, 2012, p. 17-18) A análise engelsiana tem muitos elementos da crítica marxiana, porém, tem  
também certas dissonâncias, que não podem ser tratadas aqui. Para uma análise desses aspectos, Cf.  
SARTORI, 2020 d.  
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concepção jurídica ingressa no mundo moderno com a produção capitalista trazendo  
formas jurídicas que já haviam sido desenvolvidas até certo ponto no mundo antigo.  
Para Marx, “propriedade fundiária é um pressuposto histórico e continua sendo o  
fundamento permanente do modo de produção capitalista, bem como de todos os  
modos de produção anteriores que se baseiam, de uma maneira ou de outra, na  
exploração das massas” (MARX, 1986b, p. 125). E, assim, a concepção jurídica  
formada na antiguidade traz consigo a propriedade fundiária em oposição à  
comunidade e à ordem social orgânica antiga (inclusive, com a preponderância do  
campo sobre a cidade). As diferenças da economia antiga, bem como do Direito antigo  
diante do moderno Direito e da economia da sociedade capitalista são claras a Marx.  
E, assim, ele destaca que, com a dissolução da comunidade romana, tem-se as  
determinações jurídicas que aparecem na pessoa (tratada abaixo como pessoa  
jurídica13), bem como a correlação entre a troca e o desenvolvimento dessa dimensão.  
Nos Grundrisse, diz o autor sobre o tema:  
No Direito romano o servus é corretamente determinado como aquele  
que não pode adquirir nada para si pela troca (ver Institut). Por essa  
razão, é igualmente claro que esse Direito, embora corresponda a uma  
situação social na qual a troca não estava de modo algum  
desenvolvida, pôde, entretanto, na medida em que estava  
desenvolvido em determinado círculo, desenvolver as determinações  
da pessoa jurídica, precisamente as do indivíduo da troca, e antecipar,  
assim, o Direito da sociedade industrial (em suas determinações  
fundamentais); mas, sobretudo, teve de se impor como o Direito da  
sociedade burguesa nascente perante a Idade Média. Mas seu próprio  
desenvolvimento coincide completamente com a dissolução da  
comunidade romana. (MARX, 2011, p. 299)  
O servus não era considerado propriamente uma pessoa por estar diretamente  
ligado ao solo, tal qual um instrumento que o acompanha. Para que a dimensão jurídica  
da pessoa apareça de modo dominante, de acordo com o autor de O capital, é preciso  
que os “produtores diretos se libertem da condição de meros acessórios do solo na  
forma de vassalos, servos, escravos etc. e, por outro, a expropriação da massa do povo  
de sua base fundiária” (MARX, 1986b, p. 125). Na sociedade antiga, a expropriação  
da massa do povo marca tanto o declínio da comunidade antiga (da ordem social  
orgânica) quanto o desenvolvimento da troca mercantil em determinados círculos. Com  
13 Note-se que Marx não está se referindo aos termos como aparecem na teoria do Direito. Caso fosse  
esse o caso, a noção de pessoa jurídica se oporia às pessoas físicas e, aqui, não é isso que ocorre.  
Antes, ele está a destacar a dimensão jurídica que está presente na categoria pessoa, embora essa  
última categoria não possa de modo algum ser reduzida à sua dimensão jurídica. Sobre o assunto, Cf.  
SARTORI, 2020a.  
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isso, bem como com a função concreta do estrato de juristas ainda de modo não  
plenamente autonomizado surge o Estado antigo. E, assim, a concepção jurídica  
pode ser desenvolvida e pode ser efetiva já na Antiguidade. A dualidade entre o servus  
e a pessoa marca o Direito romano, que caracteriza, ao mesmo tempo, a dissolução  
da comunidade antiga e a força adquirida pela propriedade fundiária, pela escravidão  
antiga e pela política da república romana.  
As condições sociais do Direito antigo, portanto, não podem ser transplantadas  
para a moderna sociedade capitalista. Porém, como destaca Marx, aspectos  
importantes dela foram, e tiveram importância decisiva na consolidação do capitalismo  
diante da Idade média. Trata-se da afirmação do direito igual diante do privilégio, bem  
como do processo em que se impõe o Direito da sociedade burguesa nascente  
perante a Idade Média” (MARX, 2011, p. 299). É verdade que só com as revoluções  
políticas burguesas, com as “revoluções do tipo europeu” (Revolução Inglesa de 1689  
e Revolução Francesa de 1789), consolida-se “o triunfo da burguesia” que, dentre  
outras coisas, “foi então o triunfo de uma nova ordem social, o triunfo do direito  
burguês sobre os privilégios medievais” (MARX, 2020, p. 324). Porém, antes da vitória  
plena dessa ordem social, a concepção jurídica tem uma função concreta na derrocada  
da ordem medieval.  
A afirmação da dimensão jurídica da pessoa reconhece o avanço das trocas,  
bem como da produção capitalista, essa última que somente se colocaria sobre os  
próprios pés na sociedade industrial. Tanto no caso da Roma antiga quanto da  
emergente sociedade capitalista, a dissolução de relações comunitárias (em um caso,  
da ordem social orgânica, noutro, da ligação imediata do homem à terra que  
caracteriza a servidão) joga um papel fundamental. E, assim, a propriedade fundiária e  
a expropriação dos produtores diretos é de enorme relevo. A concepção jurídica, bem  
como diversas formas jurídicas, traz os indivíduos das trocas mercantis, tanto na  
antiguidade como na moderna sociedade capitalista. Em Marx, portanto, o modo pelo  
qual a mercadoria (presente nas trocas) e o Direito se relacionam pode ser bastante  
diverso. Nos dois casos que mencionamos, isso ocorre ao se trazer a propriedade  
fundiária, bem como a expropriação da massa do povo.  
Em um caso, tem-se a escravidão de base social; noutro o assalariamento. Ou  
seja, um ponto essencial para o tratamento marxiano do Direito é a especificidade das  
figuras econômicas de cada época: a renda da terra é uma figura anterior ao  
capitalismo; ela se coloca já na antiguidade. Porém, nesse momento, ela tem  
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características muito distintas daquela que viria a adquirir no modo capitalista de  
produção. Em ambos os casos, tem-se a mercadoria como um elemento importante,  
porém, o modo pelo qual isso se dá é muito diferente. A concepção jurídica, bem como  
os juristas, possui um papel importante nos dois casos. Mas, como destaca Marx, falar  
da renda e da propriedade fundiária típica do capitalismo leva para além do poder  
jurídico, da ficção jurídica e da concepção jurídica: passa pela compreensão da assim  
chamada acumulação originária, bem como pela forma adequada de concatenação da  
propriedade fundiária, o que demanda um desenvolvimento específico, já que “a forma  
em que o incipiente modo de produção capitalista encontra a propriedade fundiária  
não lhe é adequada” (MARX, 1986b, p. 125). E, assim, de acordo com o autor de O  
capital, é necessário ainda que as mais diversas formas de propriedade sejam  
“transformadas na forma econômica adequada a esse modo de produção, por mais  
diversas que sejam suas formas jurídicas” (MARX, 1986b, p.125).  
Há, portanto, um desenvolvimento desigual entre o Direito e as relações  
econômicas de produção. Isso ocorre, inclusive, na medida em que a introdução da  
produção capitalista na Ásia, via colonialismo, também se dá com uma feição jurídica.  
Alguém como Maine, por exemplo, é visto por Marx como um agente do  
colonialismo britânico na Índia. O autor traz diversos temas do Direito romano como  
o Pater familias, por exemplo para justificar a empreitada colonial, a apropriação  
privada da terra, bem como o domínio do patriarcado nos moldes burgueses (MARX,  
1988). O colonialismo, assim, pode levar a produção capitalista a outras áreas do  
globo e, de acordo com o autor alemão, a afirmação da concepção jurídica acaba por  
ser importante nesse processo. Nele, expropria-se a massa do povo e se traz a  
propriedade fundiária moderna do capitalismo como algo que tem ares de  
naturalidade. Sempre, no entanto, o essencial não é a forma jurídica; antes, está na  
transformação de uma forma de propriedade naquela que expressa a conformação  
econômica adequada ao modo de produção capitalista.  
O caso da Roma antiga, da moderna produção capitalista e do colonialismo que  
acompanha a reprodução ampliada do capital trazem especificidades importantes de  
serem destacadas. E, também nesse sentido, as formas jurídicas que reconhecem as  
relações econômicas são bastante diferentes. O que Marx está a afirmar de modo mais  
explícito, no entanto, é o caso da produção capitalista: nela, de início, a propriedade  
fundiária ainda não tem uma forma adequada ao capitalismo. Isso somente viria a  
ocorrer com a subordinação da agricultura ao capital, bem como com o domínio da  
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cidade sobre o campo (Cf. SARTORI, 2021c). Trata-se da conformação econômica  
adequada ao modo de produção capitalista. Essa conformação, inclusive, pode vir de  
deferentes formas de propriedade, como a feudal, a do clã, da pequena propriedade  
camponesa combinada com terras comunais; em cada caso, tem-se um processo  
diferente pelo qual são trazidas as formas econômicas da do modo de produção  
capitalista. E, com isso, também podem ser diversas as formas jurídicas pelas quais se  
reconhece esse processo econômico de subordinação da agricultura ao capital. Pelo  
próprio caráter desigual da relação do Direito com as relações de produção, tem-se  
que as formas jurídicas precisam aparecer no plural em Marx. Os processos de  
passagem ao modo de produção capitalista são diversos. Podem ser distintas as  
formas jurídicas pelas quais se reconhece as relações econômicas.  
Em cada caso, a correlação entre as formas econômicas entre si, bem como  
diante das figuras econômicas, é diferenciada. E, assim, pode haver formas jurídicas  
diferentes.  
Com isso, tem-se também diversas formas de ficção jurídica. Anteriormente,  
como dissemos, no livro I de O capital, Marx falou que “na sociedade burguesa domina  
a fictio juris, que cada pessoa, como comprador, possui um conhecimento  
enciclopédico das mercadorias” (MARX, 1996a, p. 166). E vimos como que isso tem  
uma importância tanto para a concepção jurídica quanto para a conformação da forma  
jurídica do contrato, bem como da justiça. Ao falar da figura econômica da renda, bem  
como da propriedade fundiária, diz-se que a concepção jurídica mencionada acaba por  
trazer uma espécie de ficção por meio da qual se dá a realização econômica da  
propriedade fundiária, a ficção jurídica por força da qual diversos indivíduos detêm de  
modo exclusivo determinadas partes do globo terrestre” o que, segundo Marx, “faz  
com que se esqueçam as diferenças” (MARX, 1986b, p. 137) sobre as funções  
econômicas da terra e da renda em diferentes modos de produção, em que a  
propriedade fundiária tem características diversas:  
A confusão entre diferentes formas de renda, correspondentes a fases  
diversas de desenvolvimento do processo de produção social.  
Qualquer que seja a forma específica de renda, todos os seus tipos  
têm em comum: a apropriação da renda é a forma econômica em que  
a propriedade fundiária se realiza, e, por sua vez, a renda fundiária  
pressupõe propriedade fundiária, propriedade de determinados  
indivíduos sobre determinadas frações do globo terrestre. E  
indiferente que o proprietário seja a pessoa que representa a  
comunidade, como na Asia, no Egito etc., ou que essa propriedade  
fundiária seja apenas um tributo acidental de propriedade de  
determinadas pessoas sobre as pessoas dos produtores diretos, como  
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no sistema escravocrata ou de servidão, ou que seja pura propriedade  
privada de não-produtores sobre a Natureza, mero título de  
propriedade sobre o solo ou, por fim, que seja uma relação com o  
solo, a qual, como no caso de colonos e pequenos proprietários  
camponeses, parece encontrar-se diretamente compreendida - no  
sistema de trabalho isolado e socialmente não desenvolvido - na  
apropriação e produção dos produtos de determinadas frações de  
terra pelos produtores diretos. Esse denominador comum das  
diferentes formas de renda - ser a realização econômica da  
propriedade fundiária, a ficção jurídica (juristiche Fiktion) por força da  
qual diversos indivíduos detêm de modo exclusivo determinadas  
partes do globo terrestre faz com que se esqueçam as diferenças.  
(MARX, 1986b, p. 137)  
Por mais que a renda da terra sempre diga respeito à propriedade fundiária,  
sua configuração econômica pode ser distinta. A concepção jurídica, com o uso de  
ficções jurídicas, por outro lado, traz um claro-escuro indiferenciado e confuso.  
E, assim, há de se perceber que uma condição importante para que se possa  
apropriar de uma concepção jurídica já desenvolvida na dissolução da comunidade  
antiga é que a correlação entre as formas econômicas e a titularidade jurídica seja  
apagada. Na concepção jurídica e, em especial, em meio às ficções que permeiam a  
esfera do Direito, traz-se uma classificação e uma forma de abstração da realidade que  
não apreende a diferença específica de diferentes formações sociais e modos de  
produção. Tal aspecto também é levantado por Engels que, de modo similar a Marx,  
diz o seguinte:  
Como, em cada caso concreto, os fatos econômicos precisam tomar  
forma de motivos jurídicos para serem sancionados na forma de lei, e  
como, para isso, é necessário, também, logicamente, considerar todo  
o sistema jurídico, pretende-se que a forma jurídica seja tudo, e o  
conteúdo econômico, nada. (ENGELS, 1962, p. 129)  
Engels também enfatiza a correlação entre as formas jurídicas e o conteúdo  
econômico, como Marx. Ele traz a inversão peculiar que é efetiva na sociedade  
capitalista, em que se pretende que a forma jurídica presida o processo em que se  
coloca o conteúdo econômico. Em O socialismo jurídico, ele critica profundamente a  
concepção jurídica (Cf. ENGELS; KAUTSKY, 2012). A autonomização dos movimentos  
jurídicos também é levantada pelo autor do Anti-Düring. Ou seja, aspectos que, como  
vimos, são enfatizados por Marx aparecem de modo proeminente aqui também.  
Há de se notar, porém, que a maneira pela qual o autor de O capital se endereça  
a essas questões traz consigo não só uma correlação entre o conteúdo econômico e  
as formas jurídicas; tem-se também considerações extensas sobre a especificidade de  
cada maneira pela qual a apropriação da terra se dá. Se Engels alude a elas, Marx  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
enfatiza esse elemento para mostrar, ao mesmo tempo, a diferença específica existente  
entre cada caso em que se apresenta a renda da terra, bem como entre a concatenação  
das formas econômicas entre si. Em O capital, a correlação entre formas e figuras  
econômicas diante das formas jurídicas adquire considerável proeminência. E, nesse  
sentido, Marx critica a confusão entre diferentes figuras de renda, que se relacionam a  
fases diversas da produção social. Enquanto a ficção jurídica só consegue se referir ao  
elemento comum das diferentes figurações da renda, é preciso trazer a especificidade  
de cada uma delas.  
Anteriormente, já mencionamos como que a propriedade fundiária típica do  
modo de produção capitalista pode ser trazida em processos distintos. Vimos também  
que isso pode redundar em formas jurídicas diversas. Aqui, percebe-se que o autor  
alemão enfatiza também a ficção jurídica que é necessária para que se possa  
considerar as parcelas do globo como algo passível de apropriação privada. Ele faz  
isso simultaneamente à diferenciação que traz entre os distintos modos pelos quais as  
pessoas e as coisas se relacionam em cada modo de produção. Começa a apontar a  
representação da comunidade na pessoa de um soberano, como na produção asiática  
do Egito ou da Ásia. Depois, fala da escravidão, em que a propriedade fundiária, em  
verdade, é um tributo acidental da propriedade das próprias pessoas. Nesse último  
caso, portanto, a ênfase está mais na mercantilização das pessoas do que das porções  
do globo terrestre. Ou seja, por mais que a forma jurídica que reveste a renda  
eventualmente possa ser similar, ou que a ficção jurídica consiga trazer uma abstração  
homogeneizante, tem-se figuras econômicas absolutamente diversas. Ainda se tem o  
caso em que a propriedade fundiária, bem como a renda, coloca-se a partir da  
propriedade privada de não produtores sobre a natureza, como mero título jurídico de  
propriedade por meio do qual se apropria da riqueza social.  
Ou seja, a figura da renda tipicamente capitalista precisa ser destacada, de um  
lado, pelo que vimos acima: por meio da compreensão da especificidade da  
propriedade fundiária capitalista, com a subordinação do campo à cidade, bem como  
da produção agrária ao capital. Porém, há uma afinidade grande entre a abstração  
homogeneizante14 da ficção jurídica e a imediatidade do funcionamento da renda no  
sistema capitalista de produção: por meio da renda, apropria-se de parte da riqueza  
produzida socialmente. Aparentemente, a simples titularidade da propriedade dá  
14 Para um tratamento dessa forma de abstração, que é recorrente no Direito, Cf. LUKÁCS, 2013.  
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direito a parcela do mais-valor produzido, como se o domínio exclusivo dessa origem  
como fonte de rendimento a esse direito à renda. Algo similar ocorreria com o  
capital: a titularidade do capital daria direito aos juros (por vezes, coloca-se o lucro).  
Por fim, a titularidade do próprio trabalho renderia ao trabalhador o salário. Essa  
fórmula trinitária, criticada por Marx no capítulo 48 de O capital, traz consigo, como  
mencionado, uma forma de reificação muito mais desenvolvida que aquela analisada  
no capítulo I da obra magna de Marx. A representação dessas figuras reificadas,  
mediadas por esse elemento da titularidade da propriedade, acaba por ter um modo  
de aparecimento jurídico também. E, também nesse ponto, é preciso destacar o caráter  
mais amplo do tratamento de Marx se comparado a Pachukanis.  
Com isso, deve-se ressaltar: as formas jurídicas, a concepção jurídica, bem como  
as ficções jurídicas operam de modo bastante destacado em meio às figuras mais  
estranhadas das relações econômicas. Tem-se, assim, uma ligação das formas jurídicas  
com os fetichismos da mercadoria e do dinheiro, certamente. Porém, quando se olha  
para o fetichismo do capital, as relações jurídicas ganham bastante destaque e se tem  
o momento em que, de modo mais proeminente, para que se diga com Engels,  
pretende-se que “a forma jurídica seja tudo, e o conteúdo econômico, nada” (ENGELS,  
1962, p. 129).  
Marx ainda trata do caso dos colonos e dos pequenos camponeses, os quais,  
não raro, como já dito, podem ser afetados pela reprodução ampliada do capital, seja  
na forma do colonialismo, ou de algo similar à assim chamada acumulação originária.15  
Também aqui o essencial não está na forma jurídica, mas na conformação das relações  
econômicas.  
O autor de O capital é claro no sentido de que a mera propriedade jurídica do  
solo não gera nenhuma renda fundiária para o proprietário” (MARX, 1986b, p. 225).  
Como vimos, é preciso voltar os olhos à correlação da figura econômica da renda com  
o processo de extração do mais-valor. Isso se dá mesmo que seja preciso enfatizar a  
correlação entre as formas jurídicas no caso, aquelas ligadas à propriedade fundiária  
e o poder econômico, refletido pela concepção de mundo jurídica como poder  
15  
Aqui não podemos discorrer sobre o tema de maneira aprofundada. Porém, vale destacar que há  
autores que trazem uma concepção mais ampla sobre a assim chamada acumulação originária, como  
Federici (2017). Tem-se também uma teorização sobre o modo pelo qual a expropriação opera  
ciclicamente no processo de acumulação de capital, como ocorre na conceituação de Harvey (2004,  
2005) sobre a acumulação por despossessão. A relação entre expansão capitalista, colonialismo e a  
acumulação de capital também foi tratada por Rosa Luxemburgo (1985).  
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jurídica. E, assim, Marx continua dizendo: “entretanto, lhe dá o poder de subtrair suas  
terras à exploração até que as condições econômicas permitam uma valorização que  
lhe proporcione um excedente” o que poderia se dar ao se considerar, seja o solo  
destinado à agricultura propriamente dita, seja a outros fins de produção, como  
construções etc” (MARX, 1986b, p. 225). Ou seja, ao mesmo tempo em que se tem  
conformações distintas da propriedade da terra em diversos modos de produção, e  
em que a produção capitalista depende de um processo que se não se mostra de  
imediato, há, do ponto de vista dos agentes da produção, uma indiferença frente à  
“fonte dos rendimentos”. E, nesse sentido específico, a concepção jurídica é bastante  
adequada às concepções práticas dos agentes mencionados. Aqui também, a forma  
aparencial das relações econômicas têm um aspecto jurídico, sendo preciso trazer a  
correlação entre o fetiche do capital e as formas jurídicas.  
Os juros, o fetichismo do capital e as formas jurídicas  
Ao tratar da fórmula trinitária, remete-se também aos juros, uma figura  
econômica bastante relacionada com a religião da vida cotidiana, mencionada por  
Marx. Para o autor, os juros representam a “figura mais fantástica” (MARX, 1980, p.  
1507) de aparecimento do capital. Trata-se da relação-capital elevada a um grau de  
fetichismo gigantesco, em que, da simples titularidade jurídica de propriedade do  
dinheiro, parece advir o direito de se apropriar de mais dinheiro. E, com isso, o  
fetichismo do capital é patente: “no capital portador de juros, a relação-capital atinge  
sua forma mais alienada e mais fetichista.” No que continua Marx: “temos aí D - D',  
dinheiro que gera mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o processo que  
medeia os dois extremos” (MARX, 1986a, p. 293) Essa figura se apresenta como se a  
propriedade do dinheiro colocado como capital pudesse, por si só, gerar mais dinheiro;  
o processo social é apagado, ao mesmo tempo em que, como já dito, “é, no entanto,  
igualmente natural que os agentes reais da produção se sintam completamente à  
vontade nessas formas alienadas e irracionais de capital-juros, terra-renda, trabalho-  
salário” (MARX, 1986b, p. 280). Na figura dos juros, o processo de extração do mais-  
valor está oculto, de modo que a oposição entre capital e trabalho também não dá as  
caras; como diz Marx, nos juros “se dissimula e se apaga por completo seu caráter  
contraditório, desaparecendo a oposição ao trabalho” (MARX, 1980, p. 1507).  
O processo de extração do mais-valor, bem como o caráter de relação social do  
capital desaparecem. A relação-capital aparece como uma coisa, como algo que por si  
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só é capaz de produzir juros. Em verdade, “o capital é trabalho morto, que apenas se  
reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto  
mais trabalho vivo chupa” (MARX,1996a, p.345). Na religião da vida cotidiana, porém,  
sua reificação é efetiva: tem-se a inversão e reificação das relações de produção em  
sua potência mais elevada” (MARX, 1986b, p. 294). As formas jurídicas que  
encaminham as relações econômicas que trazem consigo a figura do capital portador  
de juros tomam essa reificação como um pressuposto inabalável. Pelo Direito, tem-se  
algo bastante importante para a conformação do cotidiano e do imediatismo que se  
colocam aos agentes da produção: o reconhecimento de relações sociais estranhadas  
(Cf. SARTORI, 2016).  
A transação jurídica aparece aqui com um elo que, ao mesmo tempo, possibilita  
a relação econômica e apaga o processo objetivo das formas e das figuras econômicas,  
essencial para a compreensão dessa figura mesma. A relação econômica apresenta-se  
como jurídica mas ela decorre do contraditório processo global de produção. E, assim,  
complementa Marx: “mas no caso do capital portador de juros, o retorno bem como a  
entrega são apenas resultados de uma transação jurídica entre o proprietário do  
capital e uma segunda pessoa.” No que continua o autor de O capital: “vemos somente  
entrega e reembolso. Tudo o que ocorre de permeio é apagado” (MARX, 1986b, p.  
263). E, assim, o elo jurídico trazido pela relação jurídica parece ser o essencial ao  
passo que, como já mencionamos, nunca pode ser. O Direito, bem como as formas  
jurídicas, parecem ser capazes de muito nesse ponto: em verdade, tudo se dá como  
se essas formas pudessem conduzir o processo econômico, determinar esse conteúdo.  
Porém, como disse Marx, “elas apenas o expressam” já que essas formas, “não podem,  
como simples formas, determinar seu conteúdo” (MARX, 1986b, p. 256). Elas se  
mostram como o essencial. Porém, isso ocorre somente ao passo que não podem ser  
e porque a mistificação do capital se dá de modo brutal no capital portador de juros.  
As formas jurídicas parecem ser dominantes justamente quando atuam em meio às  
a relação social está consumada como  
figuras mais estranhadas e reificadas do capital: “  
relação de uma coisa, do dinheiro consigo mesmo” (MARX, 1986a, p. 294).  
Como diz  
Marx sobre o assunto, envolto no fetichismo do capital e perpassado pela mistificação  
das figuras econômicas:  
Aqui a figura fetichista do capital e a concepção do fetiche capital está  
acabada. Em D - D' temos a forma irracional do capital, a inversão e  
reificação das relações de produção em sua potência mais elevada: a  
figura portadora de juros, a figura simples do capital, na qual este é  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
pressuposto de seu próprio processo de reprodução; a capacidade do  
dinheiro, respectivamente da mercadoria, de valorizar seu próprio  
valor, independentemente da reprodução - a mistificação do capital  
em sua forma mais crua. (MARX, 1986b, p. 294)  
Vê-se, novamente, que o tratamento do Direito em Marx precisa levar em conta  
a relação das formas econômicas entre si, com as figuras econômicas e com as formas  
jurídicas. E, para isso, é necessário tratar também do fetichismo do capital. Ficar no  
nível em que se trata somente da relação das formas jurídicas com o fetichismo da  
mercadoria é insuficiente, mesmo ao se ter em mente a tematização do próprio Marx.  
Também nesse sentido, para se dizer o mínimo, é preciso complementar o  
posicionamento pachukaniano.  
No que se chega em um ponto bastante importante para a crítica marxista ao  
Direito: o autor de Teoria geral do Direito e o marxismo traz a categoria sujeito à tona  
ao falar da “forma jurídica como tal”, bem como de sua relação com a forma-  
mercadoria. Pelo que vemos, porém, há uma relação muito forte da categoria sujeito,  
não tanto com o fetichismo da mercadoria (mesmo que isso ocorra também, como  
mostrou Marx nas Notas sobre Wagner, citadas acima), mas com o fetichismo do  
capital. O sujeito automático, bem como a autovalorização do valor se mostram aqui  
de modo mais cru.  
O que Marx chama de mistificação do capital também aparece de modo  
pungente. O próprio capitalista, colocado mais diretamente no processo de produção  
como um agente (seja como capital comercial, seja como capital produtivo), está oculto  
na fórmula do capital portador de juros, que, por outro lado, parece ter por central a  
transação jurídica.  
A transação jurídica, assim, reconhece a relação econômica, mas explicitamente  
acaba por trazer à tona somente a parte mais superficial dela, tomando-a como algo  
dado, naturalizado e mistificado. A concepção jurídica e as ficções jurídicas a ela  
relacionadas operam apagando qualquer processo constitutivo e historicidade das  
figuras econômicas. E, assim, em verdade, elas operam em meio às figuras irracionais  
da economia, as quais, por sua vez, somente podem ser entendidas remetendo-se ao  
fetichismo do capital.  
Para analisar esse tema, deve-se voltar ao livro III de O capital, pouquíssimo  
abordado por Pachukanis (Cf. SARTORI, 2021a). Ao tratar das transações jurídicas que  
encaminham o movimento do capital portador de juros, Marx diz “sem dúvida, essas  
transações são efetivamente determinadas pelos refluxos reais. Mas isso não aparece  
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na própria transação” (MARX, 1986a, p. 262). É o conteúdo econômico, colocado no  
movimento das formas econômicas, das figuras econômicas e ligado ao processo de  
extração de mais-valor, que determina a relação econômica. Porém, ao se tomar as  
figuras econômicas do modo reificado, parece ser o Direito a determinar as relações  
sociais de produção. O fetichismo do capital se manifesta ao passo que “no capital  
portador de juros [...] apresenta-se o caráter autoreprodutor do capital, o valor que se  
valoriza, a produção de mais-valia como qualidade oculta, em estado puro” (MARX,  
1986a, p. 118). A mediação do Direito nesse campo é importante também porque as  
transações jurídicas parecem determinar o movimento das categorias econômicas, as  
quais aparecem aqui subordinadas às distintas expressões do valor; tal processo, como  
passa continuamente de uma forma para outra,  
dito, traz o valor de tal modo que ele “  
sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático”  
(MARX, 1996a, p. 273).  
A inversão presente nesse processo é patente: o fetichismo do capital se  
apresenta também ao passo que  
“as forças produtivas subjetivas do trabalho se  
apresentam como forças produtivas do capital” (MARX, 1986a, p. 35-36). O Direito,  
pelo que vemos, toma isso como suposto. No capital portador de juros, enquanto se  
“o capital  
tem como pressuposto a exploração da força de trabalho, isso é apagado e  
aparece como fonte misteriosa, autocriadora do juro, de seu próprio incremento”  
(MARX, 1986a, p. 293). A transação jurídica, mediada pela vontade, parece ser a  
origem dessa figura econômica.  
Aqui, deve-se destacar que, na sociedade capitalista, e no caso dos juros em  
especial, problemas atinentes à autovalorização do valor parecem poder ser resolvidas  
juridicamente, por meio de uma justiça das transações ou pela regulamentação das  
transações jurídicas. E mais: em verdade, a distribuição do mais-valor parece ser o  
problema principal, ao passo que, efetivamente, ela está determinada pela forma da  
produção desse mesmo mais-valor. Com figuras econômicas como aquelas movidas  
pelo capital portador de juros, a esfera da distribuição mostra-se autonomizada, ao  
passo que ela nunca pode ser e, com isso, coloca-se em ação a  
“fraseologia da  
'distribuição justa'“ (MARX, 2012, p. 28). Nela, parece que é a mudança da transação  
ao  
jurídica que determina o conteúdo econômico. No que é preciso que se destaque:  
se olhar para o resultado dos juros, tem-se, inclusive, o aviltamento da classe  
trabalhadora, certamente. Porém, para compreender isso, é preciso o entendimento da  
correlação entre a produção de mais-valor e a distribuição desse mais-valor por meio  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
das figuras econômicas, como os juros. Ou seja, de imediato, cotidianamente, também  
parece ser possível resolver os problemas da classe trabalhadora juridicamente. Marx  
destaca o seguinte sobre o assunto:  
Que a classe trabalhadora também dessa forma é fraudada e de  
maneira escandalosa, é um fato claro; mas, o mesmo é feito pelo  
varejista que lhe fornece os meios de subsistência. Esta é uma  
exploração secundária, que corre paralela com a original, que se dá  
diretamente no próprio processo de produção. A diferença entre  
vender e emprestar é aqui completamente indiferente e formal, a qual,  
conforme já mostramos, só parece essencial aos que desconhecem  
por completo a conexão real. (MARX, 1986a, p. 118).  
Tanto na circulação, com o comerciante (ou com a grande empresa comercial),  
quanto na distribuição realizada por meio dos juros tem-se uma exploração da classe  
trabalhadora. Ou seja, em esferas que não aquela da produção também há aviltamento  
dos trabalhadores. Isso, inclusive, pode acontecer por meio da fraude, como destaca  
Marx.  
Nesses campos, por meio das transações jurídicas, encaminham-se relações  
econômicas que se mostram imediatamente como algo engendrado pela livre vontade.  
A venda e o empréstimo são realizados, não raro, com fraude. E, assim, a exploração  
secundária do trabalho bem como as distintas maneiras pela qual ela se coloca  
precisam ser levadas em conta. No nosso caso, isso se dá, inclusive, porque muitas  
das formas jurídicas atuam nesse meandro. Porém, o que destaca Marx é que, por mais  
que possa haver formas jurídicas diversas, existe uma conexão real entre a produção  
de mais-valor e esse processo, sendo isso aquilo de mais importante em sua análise.  
Tem-se diferentes maneiras pelas quais a exploração secundária mencionada é  
encaminhada. Isso reverbera no campo do Direito com distintas formas jurídicas. O  
essencial, porém, não está no embate entre o capital portador de juros e o capital  
comercial. Ambos dependem, de acordo com O capital, da exploração da mercadoria  
força de trabalho, que se coloca como “a original, que se dá diretamente no próprio  
processo de produção” (MARX, 1986a, p. 118). Há modos distintos de distribuição do  
mais-valor entre a própria burguesia; todos eles, porém, dependem da exploração da  
força trabalho da classe trabalhadora. Como já dito, “o capital é trabalho morto, que  
apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto  
mais quanto mais trabalho vivo chupa” (MARX,1996a, p. 345). Esse caráter vampiresco  
do capital é essencial à crítica de Marx, de tal forma que é possível, a partir de certa  
propriedade jurídica, ter-se diferentes distribuições do mais-valor produzido no  
processo imediato de produção. Para a classe trabalhadora, tanto o capital comercial  
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quanto o portador de juros trazem uma forma de exploração secundária. Nesse  
sentido, são obstáculos. Porém, Marx é bastante claro ao dizer que “a diferença entre  
vender e emprestar é aqui completamente indiferente e formal”; ela “só parece  
essencial aos que desconhecem por completo a conexão real” (MARX, 1986a, p. 118).  
Para o que nos diz respeito aqui, isso é importante, pois as transações jurídicas se  
colocam justamente em meio àquilo que é indiferente e formal ao se considerar o  
processo de extração de mais-valor.  
O Direito, portanto, quando enxergado na distribuição do mais-valor, tem uma  
função, até certo ponto, proeminente no encaminhamento do conteúdo econômico que  
o determina. E nesse campo as formas jurídicas são abundantes. Elas, portanto, não  
estão tão próximas do processo produtivo como quando se olha para a esfera de  
circulação de mercadorias, como acontece em Pachukanis. Marx traz à tona algo  
bastante interessante sobre esse aspecto: a propriedade jurídica acaba por trazer uma  
influência na distribuição da riqueza colocada entre as diferentes camadas da  
burguesia. E, nesse sentido, o Direito vem a reconhecer o resultado das disputas  
internas entre os capitalistas. Ao tratar dos juros, bem como da venda, o autor alemão  
mostra que essas oposições resultam em maneiras diferentes pelas qual se dá a  
exploração secundária mencionada. Porém, tais elementos, de certo modo, trazem  
certa indiferença à classe trabalhadora, bem como ao essencial do movimento do  
próprio capital. Como diz o autor, “se o capitalista é proprietário do capital com que  
funciona, então embolsa todo o lucro ou a mais-valia inteira; para o trabalhador é  
inteiramente indiferente que ele faça isso ou tenha de pagar uma parte a uma terceira  
pessoa, como proprietária jurídica(MARX, 1986b, p. 284).  
O essencial está na extração do mais-valor (traduzido acima por mais-valia).  
Lucro, renda e juros são parcelas do mais-valor e não há como criticá-los sem atacar  
a própria relação-capital. Esse seria justamente a falha de análises como as de  
Proudhon, por exemplo: “Proudhon combate o juro e não compreende o nexo causal  
entre juro e sistema de trabalho assalariado” (MARX, 1980, p. 1558). As transações  
jurídicas, bem como a justiça, trazidas como essenciais por um autor como Proudhon,  
operam em meio às figuras econômicas que dependem do próprio sistema do trabalho  
assalariado.  
As formas jurídicas, as transações jurídicas, bem como a concepção jurídica,  
“o verdadeiro  
tomam esse sistema como um pressuposto e, com isso, nos juros,  
movimento circulatório do dinheiro como capital é, portanto, pressuposto da transação  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
jurídica, pelo qual o mutuário tem de devolver o dinheiro ao prestamista.” (MARX,  
1986a, p. 263). A ligação dos juros com o processo global de produção, que se  
ampara no processo em que se extrai o mais-valor, é apagado na concepção jurídica.  
Nela, tem-se somente um nexo imediato sendo apreendido: diante de um empréstimo,  
há a obrigação de devolver-se o mesmo quantum somado de juros. A ficção jurídica  
que se coloca no capital portador de juros traz essa abstração homogeneizante e  
aparece absolutamente descolada do processo de produção, que, no capitalismo, é  
produção de mais-valor. Os juros, tal qual a renda, possuem diferentes configurações.  
E, na concepção jurídica, isso é apagado. Tudo isso ao passo que as formas jurídicas  
parecem ser capazes de determinar o conteúdo econômico que veiculam. A transação  
jurídica entre prestamista e mutuário só pode ocorrer caso se tenha no horizonte a  
produção do mais-valor e, nesse sentido, como diz Marx,  
“o movimento real do  
dinheiro emprestado como capital é uma operação situada além das transações entre  
prestamistas e mutuários. Nestas, essa mediação é apagada, invisível, não está  
diretamente implícita” (MARX, 1986a, p. 262).  
As formas jurídicas parecem ser o determinante somente ao passo que tomam  
esse apagamento da mediação como um ponto de partida. A figura econômica dos  
juros coloca-se de modo reificado e estranhado, sendo essa reificação e estranhamento  
reconhecidos pelo Direito que, também aqui, “nada mais é que o reconhecimento  
oficial do fato” (2004, p. 84). Ele encaminha relações econômicas por transações  
jurídicas, porém as formas jurídicas não são capazes de determinar o conteúdo  
econômico.  
O primeiro dispêndio, que transfere o capital das mãos do prestamista  
para as do mutuário, é uma transação jurídica, que nada tem a ver  
com o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha. O  
reembolso, que transfere novamente o capital refluído das mãos do  
mutuário para as do prestamista, é uma segunda transação jurídica, o  
complemento da primeira; uma encaminha o processo real, a outra é  
um ato posterior a esse processo. Ponto de partida e ponto de  
retorno, entrega a restituição do capital emprestado, aparecem assim  
como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas e  
que ocorrem antes e depois do movimento real do capital, e que nada  
têm a ver com o próprio. Para este, seria indiferente se o capital  
pertencesse de antemão ao capitalista industrial e, por isso  
simplesmente refluísse para ele como sua propriedade (MARX, 1986a,  
p. 262)16  
16 Aqui não podemos falar detalhadamente desse processo tratado por Marx. No entanto, vale citarmos  
uma passagem em que ele detalha um pouco mais a questão: “nas mãos de B, o dinheiro é realmente  
transformado em capital, percorre o movimento D - M - D' para voltar a A como D', como D + AD, em  
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Nos juros, uma transação jurídica encaminha o processo real, a outra nada tem  
a ver com ele. Há, assim, de um lado, uma relação jurídica que remete à produção  
futura de mais-valor. Doutro, tem-se outra em que o mais-valor já foi produzido e  
realizado.  
Nota-se que sem a primeira transação jurídica o próprio processo produtivo  
não pode se dar. O empréstimo é necessário para que o capitalista industrial possa  
realizar o investimento. Nesse sentido específico, as formas jurídicas são  
imprescindíveis para que o próprio conteúdo econômico possa tomar seu rumo.  
Porém, é preciso notar que aquilo que assegura o ressarcimento dos juros não pode  
ser inferido dessa relação jurídica, que, por si só, não traz consigo o próprio processo  
real; ela apenas o encaminha. Há uma espécie de duplicação que ocorre com essas  
transações jurídicas. Diz Marx nas Teorias do mais-valor que “o capitalista existe em  
dois níveis o jurídico e o econômico. Por isso, o capital como propriedade reflui  
também para o capitalista jurídico, príncipe de um consórcio morganático” (MARX,  
1980, p. 1499). O modo de manifestação do capital como propriedade se dá tanto  
jurídica como economicamente, de modo que há dois níveis do capitalista. E mais:  
esses dois níveis são autonomizados entre si até certo ponto.  
Nada garante que o encaminhamento do processo real resulte no sucesso desse  
processo. Pode ocorrer de o mais-valor não poder ser produzido na esfera da  
produção, assim como pode acontecer de ele não se realizar na esfera da circulação.  
Em cada um desses casos, o descolamento relativo do jurídico e do econômico se  
manifesta; a segunda transação jurídica aquela que é posterior ao processo real –  
não se dá, ou ocorre mediante outros artifícios, como um novo empréstimo para pagar  
que AD representa o juro. Para simplificar abstraímos aqui, por enquanto, o caso em que o capital  
permanece por tempo mais longo nas mãos de B e os juros são pagos periodicamente. O movimento  
é, portanto: D-D-M-D'-D'. O que aparece aqui duplicado é 1) o dispêndio do dinheiro como capital e 2)  
seu refluxo como capital realizado, como D' ou D + AD. No movimento do capital comercial D - M - D',  
a mesma mercadoria muda 2 vezes ou - se um comerciante vende a outro - mais vezes de mãos; mas  
cada uma dessas mudanças de lugar da mesma mercadoria indica uma metamorfose, compra ou venda  
da mercadoria, por mais vezes que esse processo possa se repetir até sua queda definitiva no consumo.  
Em M - D - M, por outro lado, ocorre dupla mudança de lugar do mesmo dinheiro, mas indica a  
metamorfose completa da mercadoria, que primeiro se transforma em dinheiro e, em seguida, de  
dinheiro em outra mercadoria. No caso do capital portador de juros, ao contrário, a primeira mudança  
de lugar de D de modo algum constitui um momento seja da metamorfose de mercadorias, seja da  
reprodução do capital. lsso ele só se torna no segundo dispêndio, nas mãos do capitalista funcionante,  
que com ele comercia ou o transforma em capital produtivo. A primeira mudança de lugar de D expressa  
aqui apenas sua transferência ou remessa de A a B; uma transferência que costuma realizar-se sob  
certas formas e garantias jurídicas” (MARX, 1986a, p. 257) Para o tratamento da relação entre capitalista  
funcionante, a separação entre propriedade e função na produção, bem como da relação entre Direito  
e juros, Cf. SARTORI, 2019b.  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
o primeiro empréstimo, ou a renegociação dos prazos e das dívidas sob diversas  
formas jurídicas.17 Ou seja, o encaminhamento do conteúdo econômico realizado pela  
primeira transação jurídica leva para o futuro a apropriação de uma riqueza que ainda  
não foi produzida propriamente. E, com isso, a autonomização das formas jurídicas  
diante do conteúdo econômico é destacada por Marx. Em verdade, tal autonomização  
é um pressuposto para o curso do capital portador de juros, não se podendo, de modo  
algum, reduzir as formas jurídicas à sua correlação com a forma-mercadoria e com o  
fetichismo da mercadoria. Aqui, as formas bem como as expectativas jurídicas são  
inseparáveis do fetiche do capital.  
O reembolso traz o complemento do empréstimo ao passo que remete ao  
processo real já concluído e, de imediato, oculto e mistificado. Ali, as transações  
jurídicas complementam-se por meio da vontade que remete ao conteúdo econômico.  
E esse processo econômico aparece apagado. Desse modo, todo movimento parece  
ser arbitrário e fruto da vontade daqueles que operacionalizam as transações jurídicas.  
Há uma ficção jurídica presente na primeira transação, aquela de acordo com a qual a  
segunda e, portanto, o processo real transcorrerá como desejado. Em meio a esse  
movimento da figura econômica dos juros, tem-se a distribuição do mais-valor. As  
formas jurídicas atuam aqui encaminhando processos econômicos e reconhecendo-os  
quando bem-sucedidos. O movimento inerente ao próprio conceito do capital, seu  
processo real, no entanto, não se dá tanto em meio às figuras econômicas que são  
mencionadas por Marx ao tratar das formas jurídicas, mas, no essencial, movimento  
das formas econômicas.  
No que, nesse ponto, tem-se uma diferença significativa entre o tratamento  
marxiano e o pachukaniano: o processo de extração de mais-valor, tratado no livro I  
de O capital, e tido em conta por Pachukanis, traz consigo a oposição entre a burguesia  
e o proletariado ao passo que os juros, o lucro e a renda são figuras que passam por  
oposições entre o capital portador de juros, o capital industrial, o capital comercial e  
os proprietários fundiários. Esses embates dizem respeito à classe trabalhadora apenas  
de modo secundário e, como estamos mostrando, é justamente em meio a eles que as  
referências de Marx às formas jurídicas se dão no livro III. Ou seja, nesse ponto, o  
tratamento marxiano é muito diferente daquele presente em Teoria geral do Direito e  
17  
Por vezes, esses processos envolvem formas jurídicas que sequer possuem um lastro na própria  
produção, como ocorre muitas vezes na dívida pública e em alguns casos nas empresas por ações. Esse  
assunto remete ao que Marx chama de capital fictício, que não pode ser tratado nesse artigo. (Cf. MARX,  
1986b)  
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o marxismo.  
Em O capital, o processo de distribuição por meio das figuras econômicas,  
assim, é de grande importância para a compreensão da concretude da sociedade  
capitalista, da oposição entre as diversas classes. Para explanar essas figuras, porém,  
é necessário remeter às formas econômicas, bem como do modo pelo qual essas  
oposições mencionadas levam à contradição colocada entre o caráter vampiresco do  
capital e o modo pelo qual o trabalho se põe. Ou seja, os meandros do tratamento  
marxiano do Direito e das formas jurídicas são muito maiores do que usualmente se  
supõem.  
E, com isso, há uma importante crítica ao modo de aparecimento das transações  
jurídicas na distribuição do mais-valor já produzido. Sem abordar esse elemento, a  
crítica marxiana ao Direito deixa de se mostrar em seus meandros e complexidade.  
O processo de distribuição parece ser determinado pelas transações jurídicas.  
O seu movimento parece ser arbitrário ao passo que, em verdade, não é e nem pode  
ser.  
Ele remete à oposição entre trabalho e capital, a qual está apagada em meio às  
figuras econômicas como juros e renda. Do ponto de vista do processo real, como  
disse o autor, “seria indiferente se o capital pertencesse de antemão ao capitalista  
industrial e, por isso simplesmente refluísse para ele como sua propriedade” (MARX,  
1986a, p. 262). E, assim, o campo em que as formas jurídicas, as transações jurídicas,  
as ficções jurídicas, o poder jurídico e as garantias jurídicas se colocam de modo  
proeminente é aquele que pressupõe que o essencial transcorre naturalmente. A  
mediação do Direito, pelo que vemos, é proeminente e influente de modo decisivo  
justamente na distribuição do mais-valor entre classes que trazem consigo uma relação  
de oposição diante da classe trabalhadora. Na primeira transação jurídica, tem-se “uma  
transferência que costuma realizar-se sob certas formas e garantias jurídicas” (MARX,  
1986a, p. 257). Porém, o essencial está no processo real, que não se mostra aí e que  
precisa de diversas mediações para que possa ser relacionado à distribuição por meio  
das figuras econômicas.  
No que se nota: o processo de distribuição da riqueza por meio das figuras  
econômicas como juros e renda tem por mediação essencial as formas jurídicas. A  
compreensão do processo social subjacente a essa distribuição precisa ligar a  
produção à distribuição no processo global de produção. Porém, o que se percebe é  
que as formas de aparecimento nas quais atuam os agentes da produção no que Marx  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
chamou de religião da vida cotidiana trazem o Direito como um elemento importante  
e que parece ser o decisivo. Para que remetamos ao embate com Pachukanis: é certo  
que a relação entre as formas jurídicas e a circulação é importante. O próprio processo  
imediato de produção necessita de formas jurídicas como o contrato e, assim, uma  
crítica marxista ao Direito não pode deixar de lado tal aspecto. Porém, igualmente  
verdadeiro é que a relação das formas jurídicas com as figuras econômicas e o  
processo de distribuição do mais-valor deve fazer parte de um estudo da obra de  
Marx, em especial, em O capital.  
Tal qual Rubin, Pachukanis traz por central o fetiche da mercadoria. Pelo que  
estamos mostrando, porém, também é essencial passar pelo fetiche do dinheiro e do  
capital. Isso se dá até mesmo porque a autonomização das ficções jurídicas, por meio  
da abstração homogeneizante da concepção jurídica, é ainda mais forte nos meandros  
das figuras econômicas. Os juros parecem ser e, de imediato, na religião da vida  
cotidiana, são – “apenas resultados de uma transação jurídica entre o proprietário do  
capital e uma segunda pessoa” (MARX, 1986b, p. 293). A crítica a essas formas  
aparenciais é parte importante de uma crítica marxista ao Direito, e ela já está presente  
no próprio Marx.  
Dizer que o Direito está colocado somente na esfera da circulação é um erro  
grave, portanto. Pelo que vemos, ele aparece, até certo ponto, de modo mais  
proeminente na distribuição. É verdade que ele está também na circulação de  
mercadorias, porém, isso não pode obscurecer o fato de Marx ter tratado dele em meio  
às figuras econômicas, as quais estão ligadas ao processo de distribuição do mais-  
valor já produzido e realizado.  
O interessante, no entanto, não é só perceber a necessidade de tal crítica, mas  
o modo pelo qual uma figura como a dos juros precisa do reconhecimento jurídico  
para operar na própria realidade. Trata-se justamente de figuras econômicas que são  
irracionais, mas são efetivas, para que se utilize o que Marx diz em embate com a  
concepção hegeliana: “o que o bom senso considera irracional é racional e o que  
considera racional é a própria irracionalidade” (MARX, 1986b, p. 241). Se para o autor  
da Filosofia do Direito, “o racional é real e o real é racional” (HEGEL, 2003, p. XXXVI),  
aqui se tem o oposto e as categorias irracionais são efetivas no dia a dia, sendo  
utilizadas pelos agentes da produção e colocando-se como algo transposto para as  
relações jurídicas.  
As figuras econômicas, assim, aparecem também por formas jurídicas e, nesse  
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sentido, como dito, são o resultado de uma transação jurídica (Cf. SARTORI, 2019b).  
O movimento dos juros, assim, é determinado pela concorrência, bem como pela  
correlação existente entre as diversas manifestações do capital (aqui, mencionamos  
capital portador de juros, comercial e industrial); porém, ele depende também da  
própria produção do mais-valor, colocada no processo imediato de produção. Ou seja,  
o reconhecimento jurídico, bem como as transações jurídicas, atuam na ligação do  
processo imediato de produção com o processo de circulação e o processo global de  
produção. E a maneira pela qual as relações jurídicas se colocam em cada um desses  
processos precisa ser estudada em sua diferença específica, bem como com a ligação  
com as formas e as figuras econômicas. Tem-se como importantíssima a análise da  
ligação entre os distintos livros de O capital, bem como das implicações dessa ligação  
no que diz respeito ao Direito.  
No processo global de produção, as figuras econômicas aparecem revestidas  
pelo fetichismo do capital. O fetiche do dinheiro, por sua vez, tende a ser mais  
proeminente no processo de circulação, ao passo que o processo imediato de  
produção se relaciona mais diretamente ao fetichismo da mercadoria. As formas  
jurídicas ganham mais centralidade em meio ao fetiche do capital, e isso precisa ser  
destacado e analisado, como pretendemos ter feito aqui. A autonomização do dinheiro,  
bem como a correlata autonomização do Direito e do poder jurídico também não  
podem ser deixadas de lado (Cf. SARTORI, 2020b). Sem que se passe por essas  
análises de Marx, seu tratamento sobre o Direito acaba sendo levado somente à  
relação entre forma-mercadoria ligada ao fetichismo da mercadoria e as formas  
jurídicas. Essa vem sendo a opção da crítica marxista ao Direito, que se coloca na  
esteira de Pachukanis e que, acreditamos, deixa de considerar diversos meandros e  
consequências da crítica marxiana à economia política.  
Crítica ao Direito e crítica à economia política: juros, economia vulgar e  
socialismo vulgar  
No capital portador de juros, tem-se uma transação jurídica em que ocorre “uma  
transferência que costuma realizar-se sob certas formas e garantias jurídicas” (MARX,  
1986a, p. 257). Em meio ao fetiche do capital, o terreno do Direito, assim, parece ser  
decisivo. A busca por uma regulamentação jurídica racional da distribuição, bem como  
por uma justiça das transações também vem à tona nesse meandro. E, assim, tem-se  
algo muito importante no tratamento de Marx sobre o Direito: a arbitrariedade que  
aparece na vontade privada, bem como na propriedade privada, operacionalizadas  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
pelo Direito, não traz só a aceitação incondicional de relações sociais dadas. Tal  
aceitação é proeminente na circulação, e foi tratada por Pachukanis e por outros.  
Porém, o que não se tratou com o devido cuidado é do modo pelo qual tal  
arbitrariedade aparece no processo de distribuição do mais-valor, ilusoriamente e em  
meio à aceitação das figuras e das formas econômicas, ao trazer aquilo que parece ser  
a possibilidade de as formas jurídicas assujeitarem o conteúdo econômico, com base  
na justiça e na regulamentação das transações jurídicas e econômicas. Ou seja, ao  
analisar o tratamento marxiano do Direito, percebe-se que a própria configuração da  
esfera jurídica traz consigo a possibilidade de ilusões sobre a potencialidade da  
resolução dos problemas sociais por meio de uma regulamentação jurídica e justa das  
figuras econômicas da produção capitalista.  
Nos juros, como visto, “ponto de partida e ponto de retorno, entrega a  
restituição do capital emprestado, aparecem assim como movimentos arbitrários,  
mediados por transações jurídicas” (MARX, 1986a, p. 262). Essa forma de  
aparecimento é ilusória, claro. Porém, a representação dos agentes da produção, bem  
como daqueles que se colocam a analisar o processo global de produção sem a  
compreensão de sua essência, traz um ímpeto jurídico de modificação da distribuição  
por meio da justiça, bem como da vontade. Tratar-se-ia de intervir na conformação das  
formas e das garantias jurídicas para que a justiça das transações fosse possível por  
meio do que Marx chamou, na Crítica ao programa de Gotha, de “fraseologia da  
'distribuição justa'(MARX, 2012, p. 28).  
Em meio ao fetichismo do capital, pode-se ter uma contraposição às  
consequências do processo de autovalorização do valor. Isso, porém, se dá aceitando  
as formas e as figuras econômicas que se desenvolvem no modo de produção  
capitalista.  
Na concorrência, bem como em meio ao fetichismo do capital, tudo aparece  
invertido. No capital portador de juros, as formas jurídicas parecem ser capazes de  
determinar o conteúdo econômico. Segundo Marx, isso traz consigo uma inversão  
entre o jurídico e o econômico. Ela é tamanha que “o retorno não aparece neste caso  
como resultado e consequência de uma série de processos econômicos”, no que  
continua o autor nas Teorias do mais-valor, “mas por causa de uma transação jurídica  
especial entre comprador e vendedor, em virtude da circunstância de haver  
empréstimo e não venda, de haver portanto alienação apenas temporária” (MARX,  
1980, 1499). Ou seja, parece que a forma jurídica é o essencial e o conteúdo  
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econômico é nada. E, assim, parece ser possível manipular o conteúdo por meio do  
Direito. Com base em um ideal de justiça, poder-se-ia fundamentar o próprio uso das  
formas, ficções e garantias jurídicas para a transformação justa da realidade da  
sociedade capitalista. Nos juros, em especial, isso seria proeminente, sendo uma figura  
bastante criticada. Em verdade, porém, essa figura é anterior à sociedade capitalista,  
sendo subsumida à relação-capital a partir de suas determinações já existentes. No  
capitalismo, os juros aparecem, inclusive, em meio ao fetichismo do capital; trata-se de  
uma figura que aparece na imediatidade da vida das pessoas. Assim, de acordo com  
o autor de O capital, ele seria um alvo muito mais fácil que o lucro industrial e que o  
próprio mais-valor. Ou seja, a maneira imatura de crítica à sociedade capitalista  
geralmente passaria por uma crítica ao capital portador de juros:  
O capital portador de juros existe como forma acabada e tradicional,  
e portanto o juro como subforma acabada da mais-valia produzida  
pelo capital, muito antes de existirem o modo de produção capitalista  
e as concepções de capital e lucro que lhe correspondem. Por isso, na  
imaginação popular, o capital monetário, o capital portador de juros,  
continua sendo capital como tal, capital par excellence. (MARX, 1986a,  
p. 281)  
Na imaginação popular, o capital portador de juros aparece como o capital  
como tal. Pelo que vemos, porém, a produção de mais-valor (traduzido acima por mais-  
valia) está pressuposta para que se tenha o capital portador de juros. E, assim, o alvo  
inicial da crítica ao capitalismo atinge somente uma forma secundária de exploração.  
E mais: em meio a essa forma secundária, e às transações jurídicas que a  
acompanham, parece ser possível uma regulamentação jurídica eficaz. Ou seja, tanto  
o modo de aparecimento do capital quanto a crítica às figuras econômicas que aí se  
mostram trazem consigo o Direito. Parece que, ao se regulamentar as transações  
econômicas que são encaminhadas pelas transações jurídicas tem-se a  
possibilidade de controlar a irracionalidade do capital. Isso, porém, acaba por não  
tocar o movimento das formas econômicas, bem como a produção do mais-valor. E,  
portanto, tal crítica é extremamente superficial e unilateral, tratando a esfera da  
distribuição à moda da economia vulgar.  
A produção capitalista de mais-valor é tomada como um suposto  
imutável, ao passo que “na distribuição, em troca, a humanidade deve ter se permitido  
de fato toda a espécie de arbítrio” (MARX, 2011, p. 59). As figuras econômicas, bem  
como as formas jurídicas que encaminham essas figuras parecem subsistir por si sós.  
E, com isso, a vontade, bem como o Direito, parecem ser capazes de uma  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
transformação substancial.  
O pressuposto dessa maneira de oposição ao capital, portanto, é aquele da  
economia vulgar. De acordo com Marx, “a economia vulgar não faz nada mais que  
traduzir, sistematizar e louvar baseada numa doutrina as concepções dos agentes  
presos dentro das relações burguesas de produção” (MARX, 1986b, p. 271). Aqui,  
porém, tem-se uma peculiaridade. A partir das relações burguesas de produção, não  
se tem só uma apologia a essa ordem, como na economia vulgar. Tem-se uma crítica  
superficial a essa.  
E, assim, Marx traz em O capital a centralidade que o Direito tem para aqueles  
que se se opõem aos sintomas mais imediatos da sociabilidade capitalista. Ele diz que  
essas pessoas têm uma ligação com a economia vulgar, mas estão mais claramente  
colocadas em um campo que se contrapõe somente aparentemente a essa economia,  
aquele do socialismo vulgar: diante das “contradições totais e absurdas” (MARX,  
1986b, p. 271) que são naturalizadas pela economia vulgar, o socialismo vulgar  
protesta. Porém, tal qual para aqueles que querem a justiça das transições ou uma  
distribuição justa, tem-se uma crítica superficial. E, pelo que vemos, nela o Direito  
parece ser o essencial.  
Nessa figura mais fantástica [a figura dos juros], e ao mesmo tempo  
mais próxima da representação mais popular, o capital é a "forma  
fundamental" dos economistas vulgares e, além disso, o alvo mais ao  
alcance do ataque de uma crítica superficial; é a forma desses  
economistas seja porque aí o nexo causal se manifesta o menos  
possível e o capital se patenteia numa forma que lhe dá a aparência  
de fonte autônoma do valor, seja porque nessa forma se dissimula e  
se apaga por completo seu caráter contraditório, desaparecendo a  
oposição ao trabalho. E aquele ataque decorre de ser a forma em que  
o capital atinge o máximo de irracionalidade e constituí o alvo mais  
fácil para os socialistas vulgares. (MARX, 1980, p. 1507)  
A mistificação bem como a reificação e o caráter fantástico dos juros e, em  
geral, das figuras que aparecem de imediato na sociedade capitalista possuem dois  
lados. De um deles, tem-se a naturalização apologética das relações sociais que dão  
base à sociedade capitalista. Aí, há uma aproximação muito maior com a economia  
vulgar. As relações capitalistas de produção são tomadas como base e a atuação  
deveria ser cínica diante das figuras econômicas como renda, juros e lucro.  
Cotidianamente, tem-se tanto os agentes da produção como a economia política na  
seguinte situação: “as mediações das formas irracionais em que determinadas  
condições econômicas aparecem e praticamente se acoplam não importam nem um  
pouco aos portadores práticos dessas condições econômicas em sua ação econômica  
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diuturna” (MARX, 1986b, p. 241). No caso, as formas aparentes, as figuras econômicas,  
são tomadas por si sós; de acordo com Marx, aí, de imediato, parece não haver  
problema algum porque “nas formas fenomênicas que perderam a coerência interna e  
que, tomadas em si, são absurdas, eles se sentem tão à vontade quanto um peixe na  
água” (MARX, 1986b, p. 241). Porém, pelo que estamos vendo, por vezes, é possível  
que essa perda de coerência interna leve a críticas superficiais. E, nessas críticas, o  
papel do Direito aparece de modo proeminente.  
Os juros parecem com a “forma fundamental” dos economistas vulgares porque,  
na fórmula trinitária são eles que correspondem ao capital. A irracionalidade do D-D´  
não mostra o nexo com a relação-capital e traz o fetichismo do capital de modo  
bastante claro: tem-se o capital como algo capaz de gerar valor por si mesmo. Tem-  
se, não só uma reificação pungente, mas uma inversão em que, como já mencionado,  
“as forças produtivas subjetivas do trabalho se apresentam como forças produtivas do  
capital” (MARX, 1986a, p. 35-36). E, assim, a oposição entre capital e trabalho é  
apagada.  
A crítica ao capital portador de juros, a aquele em que o capital é mais irracional,  
assim, seria uma crítica superficial se não acompanhada da crítica à própria relação-  
capital. Tratar dos juros, para Marx, significa, ao mesmo tempo, explicitar o nexo dessa  
figura econômica com as formas econômicas e com o próprio sistema do trabalho  
assalariado. Segundo o autor, porém, os socialistas vulgares passam longe de fazer  
isso. Voltam-se principalmente contra aquela figura do capital em que “o capital atinge  
o máximo de irracionalidade e constituí o alvo mais fácil para os socialistas vulgares”  
(MARX, 1980, p. 1507). As contraposições ao capital portador de juros, assim, não  
raro aparecem numa busca por distribuição justa, por justiça das transações e pelo  
clamor pela regulamentação jurídica das figuras mais irracionais do capital. Tudo se  
passa como se o próprio sistema capitalista de produção não fosse o problema, sendo  
possível uma crítica ao capitalismo que fosse absolutamente superficial e que, no  
limite, poderia redundar em uma forma estatista de socialismo e em uma espécie de  
crítica jurídica ao capitalismo.  
Se formos analisar a crítica marxiana, notamos que parte importante de suas  
formulações sobre o Direito voltam-se contra esses tipos de ilusão. Passar pelos  
meandros da crítica ao Direito e, em especial, pelo modo pelo qual a esfera jurídica é  
tratada no livro III de O capital pode ser essencial ao desenvolvimento da crítica  
marxista ao Direito.  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
Conclusão  
Aqui, não pretendemos ter esgotado o assunto sobre o Direito em Marx, ou  
mesmo em O capital. Para isso, seria preciso passar por praticamente todas as obras  
do autor, bem como pela relação existente entre essas obras entre si. Em verdade,  
propusemos como ponto de partida uma análise das formas jurídicas e suas relações  
com as formas econômicas em O capital. Fizemos isso a partir daquilo consolidado na  
tradição de crítica marxista ao Direito e que, hoje, traz como fundamentação principal  
a obra de Pachukanis.  
Ao trazer esse ponto de partida, no entanto, propusemo-nos a questioná-lo, ao  
passo que normalmente se presume que a análise pachukaniana de Marx está no  
que diz respeito ao assunto em tela plenamente correta. Pelo que vimos, não é o  
que acontece.  
Primeiramente, isso se dá porque seria preciso ir além da correlação colocada  
entre a forma-mercadoria e o Direito. A forma dinheiro, bem como o fetichismo do  
dinheiro, assim como o capital e o fetichismo do capital, possui uma importância  
decisiva na crítica ao Direito como colocada em O capital. Ou seja, Pachukanis  
apreende parte importante da crítica marxiana ao Direito, mas, de modo algum, é  
possível tomar acriticamente a obra do autor soviético como aquela que guia a crítica  
marxista ao Direito.  
Como vimos, ao se levar o marxismo a sério, certamente é preciso conhecer e  
estudar Teoria geral do Direito e o marxismo. Porém, o ponto de partida da crítica  
marxista precisa estar no próprio Marx, que, pelo que dissemos, traz outros elementos  
à tona. Eles não foram abordados por Pachukanis ou pela tradição pachukaniana com  
o devido cuidado. Ou seja, o cenário em que se está é o seguinte: sequer a obra de  
Marx foi compreendida com o rigor necessário e ainda há muito trabalho pela frente.  
Um diálogo bem como um embate com a tradição pachukaniana são proveitos, não há  
dúvidas sobre isso. Porém, é preciso assumir que há muito mais em Marx sobre o  
Direito do que normalmente se supõe. Ao olharmos para a principal temática  
pachukaniana, pudemos perceber isso, trazendo também outras temáticas, em Marx,  
correlatas às formas jurídicas.  
Marx, principalmente no livro III de O capital, aborda as formas jurídicas em  
correlação com as figuras econômicas como lucro, renda e juros. Com isso, se passa  
da esfera da circulação de mercadorias para a esfera de distribuição do mais-valor.  
Em tal meandro, que não foi aprofundado por Pachukanis, está a maior parte  
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das menções marxianas às formas jurídicas. No mínimo, portanto, é preciso se tratar  
da correlação existente entre o livro I de O capital, abordado mais cuidadosamente  
pelo autor soviético principalmente no que toca a relação entre valor e troca, e o livro  
III. Ou seja, caso sejamos extremamente bondosos, é preciso complementar a  
interpretação pachukaniana sobre Marx, bem como sobre as formas econômicas e  
jurídicas.  
Ao analisar as figuras do processo global de produção, Marx ainda destaca  
algumas outras expressões sobre o Direito que não podem ser desconsideradas. Ao  
lado das formas jurídicas e das relações jurídicas (centrais para a análise de  
Pachukanis), o autor alemão menciona o poder jurídico, a concepção jurídica, a ficção  
jurídica, as garantias jurídicas, por exemplo. E, com isso, abre-se outro flanco  
importante de análise da obra do próprio Marx. Procuramos dar os primeiros passos  
aqui nesse sentido, embora tenha sido impossível esgotar tais temas. Um ponto  
importante, porém, ficou claro: ao trazer tais expressões sobre o Direito, o autor  
alemão não está dialogando com a teoria do Direito, nem mesmo tentando criticá-la  
passando por dentro dela. Antes, está destacando o modo pelo qual a esfera jurídica  
é efetiva em meio às formas e às figuras econômicas da sociedade capitalista,  
analisadas em suas determinações mais gerais em O capital.  
No caso que destacamos acima sobre a peculiar duplicação que ocorre entre o  
jurídico e o econômico no capital portador de juros, isso ficou evidente. A consideração  
das transações jurídicas e de suas correlações com o processo econômico real é  
bastante importante à crítica do autor. Isso se dá também ao se deparar com a  
compreensão mais geral do papel das garantias jurídicas, das ficções jurídicas e da  
concepção jurídica. Uma análise do Direto no funcionamento do capital fictício (um  
tema muitíssimo atual, principalmente depois da crise de 2008), por exemplo, pode  
ser bastante interessante em pesquisas futuras que passem por essa chave. Ou seja,  
olhar para O capital, e para o modo pelo qual a regulamentação jurídica é tratada  
nessa obra, talvez possa levar a crítica marxista ao Direito a ir muito mais longe e  
muito mais a fundo do que o patamar em que ela está hoje. Também por isso, tratar  
do Direito em Marx é ir para além de Pachukanis.  
Vimos também que a autonomização do Direito aparece de modo mais claro  
quando Marx trata das figuras econômicas, tendo-se tanto as bases o desenvolvimento  
da concepção jurídica (bem como das teorias do Direito) quanto certa tentativa de  
utilizar essa autonomização e a aparência arbitrária que dela decorre na crítica  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
superficial ao próprio capitalismo. Ao se passar para a seara jurídica, e ao se ter as  
formas de aparecimento das figuras econômicas, depara-se também com relações  
jurídicas. E tanto para a economia vulgar quanto para o socialismo vulgar, elas parecem  
dar a tônica do movimento econômico somente ao passo que não podem fazê-lo. A  
autonomização do Direito, portanto, é um tema central tanto para se falar da aceitação  
mais ou menos cínica da apresentação imediata do capitalismo quanto da crítica  
superficial dessa apresentação.  
Assim, tem-se um modo de aparecimento que, no campo da distribuição, acaba  
por oscilar entre uma apreensão acrítica daquilo que conforma o que Marx chamou de  
fórmula trinitária (capital-juros, trabalho-salário, terra-renda) e crítica superficial às  
figuras econômicas concretas, em especial, aos juros. Para que coloquemos as coisas  
em termos teóricos: de um lado, tem-se a concepção da economia vulgar, de que  
decorre, de acordo com Marx, a teoria do Direito, bem como a concepção jurídica da  
sociedade capitalista. Doutro, tem-se uma crítica superficial que oscila entre o clamor  
por uma espécie de justiça das transações, de distribuição justa e uma espécie de  
socialismo vulgar, em que o viés estatista e o Direito são centrais. Ambos os casos  
não conseguem avançar para além de uma apreensão superficial da realidade efetiva.  
Ao tratar da efetividade das figuras econômicas no processo global de produção, bem  
como da ligação das formas, das garantias e das ficções jurídicas com esse processo,  
Marx explicita a maneira pela qual isso ocorre, bem como o peculiar modo de  
representação que é trazido nesses meandros. Marx tenta demonstrar, não só que a  
concepção jurídica, o Direito da sociedade capitalista e a justiça aí conclamada supõem  
a produção capitalista como um dado natural. Ele mostra como que uma peculiar  
religião da vida cotidiana, colocada em meio às figuras econômicas concretas do  
sistema capitalista, dá forte sustentação a isso.  
Pachukanis e a tradição pachukaniana criticam tais posições analisadas em O  
capital. Eles mostram como que em ambos os casos, na aceitação cínica e na crítica  
superficial à efetividade do domínio do capital, há uma ausência de compreensão sobre  
o processo de produção capitalista. Principalmente trazendo a ligação entre o valor, a  
mercadoria e o Direito, e passando pelo fetichismo da mercadoria, reitera-se como que  
a circulação de mercadorias (e a produção a ela subjacente, que é a produção de mais-  
valor) são pressupostos por aqueles que procuram um tratamento do Direito. Marx,  
como vimos, poderia estar, em grande parte embora não em todo de acordo com  
tal análise. Isso, porém, seria trazer um enfoque exacerbado na relação entre os  
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Vitor Bartoletti Sartori  
capítulos I e II de O capital. E isso pode ser extremamente unilateral na leitura da obra  
marxiana. Isso ocorre porque, mesmo no livro I, Marx já passa pelo fetichismo do  
dinheiro, bem como pela autonomização do poder que advém do dinheiro e que é  
reconhecido como poder jurídico. O dinheiro também se coloca como um grande  
nivelador, trazendo uma forma de igualdade que, colocada na sociedade capitalista,  
não pode ser explanada somente a partir da ligação entre a forma-mercadoria e o  
Direito. Mais que isso: já no livro I, nosso autor mostra como que o valor aparece como  
uma espécie de sujeito automático, que traz consigo uma espécie de autovaloração e  
de nivelamento. Ou seja, é verdade que o fetichismo do dinheiro estará tratado de  
modo muito mais cuidadoso no livro II, e que o fetichismo do capital será abordado  
de modo decisivo no livro III; porém, já no livro I, e com correlações importantes com  
o Direito, tais temas dão as caras. Ou seja, aquilo que será essencial a Marx ao tratar  
das figuras econômicas e da distribuição do mais-valor já está presente mesmo que  
não plenamente desenvolvido no texto a que Pachukanis e a tradição pachukaniana  
mais se atentam, o primeiro livro de O capital. Tomar a análise pachukaniana de modo  
acrítico como ponto de partida não pode ser uma opção, portanto.  
Os desdobramentos e consequências dessa análise de Marx, porém, estão  
presentes em textos que não são analisados normalmente na tradição pachukaniana,  
como o mencionado livro III. Lá, como demonstramos, Marx explicita a base de algumas  
ilusões bastante recorrentes na crítica às consequências do modo de produção  
capitalista.  
O autor demonstra como que certo modo de representação se desenvolve e  
como que, concretamente, as críticas superficiais ao domínio do capital as quais  
talvez sejam a quase totalidade daquelas que vêm sendo desenvolvidas à esquerda  
hoje estão presas a esse peculiar modo de representação. Acreditamos, assim, que,  
para aqueles que pretendem o desenvolvimento de uma crítica marxista ao Direito,  
bem como de uma análise da possibilidade de crítica ao próprio capitalismo, o  
posicionamento de Marx sobre o Direito ainda parece poder trazer muito de  
proveitoso. A crítica de Pachukanis, com a qual procuramos dialogar, certamente  
levanta pontos importantíssimos. Porém, caso se queira um marxismo consequente  
nos dias de hoje, é preciso, no mínimo, compreender a obra de Marx, também, nos  
elementos que não foram enfocados pelos clássicos. Isso não se coloca contra a  
apreensão marxista da realidade atual ou contra a leitura dos clássicos do marxismo;  
pelo contrário. Aquilo analisado pelo autor e que precisa ser desenvolvido em  
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Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas jurídicas em Marx  
pesquisas futuras pode ser um bom ponto de partida para que se possa apreender,  
e criticar, a conformação atual do capitalismo. Como já foi dito em um momento muito  
diferente do que vivemos: por vezes, é necessário dar um passo para trás para poder  
dar dois para frente. Hoje, voltar a Marx, e questionar a tradição pachukaniana, são um  
requisito para avançar na crítica marxista ao Direito.  
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Verinotio: Revista Online de Filosofia e Ciências Humanas, n. 19. Belo Horizonte:  
2015. (Disponível em www.verinotio.org)  
Como citar:  
SARTORI, Vitor Bartoletti. Sobre as formas e figuras econômicas diante das formas  
jurídicas em Marx: um embate com Pachukanis. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n.  
1, pp. 01-63; jan.-jun., 2024.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 01-63 jan.-jun., 2024 | 63  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.703  
Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos  
da Gazeta Renana  
State and Law in Marx: an analysis of the writings of the  
Rhenish Gazette  
Murilo Leite Pereira Neto*  
Resumo: Este artigo apresenta uma análise  
acerca do Estado e do direito nos escritos  
jornalísticos de Marx dos tempos da Gazeta  
Renana. Procuramos mostrar, a partir da leitura  
imanente, que Marx, como redator do citado  
periódico, desenvolveu uma crítica ao Estado e  
ao direito então existentes na Alemanha do  
Vormärz, contudo manteve uma posição de  
defesa frente ao Estado e ao direito que,  
segundo ele, minimamente correspondem ao seu  
conceito. A exposição precisa dos termos da  
defesa do Estado e do direito na Gazeta Renana  
envolveu apreender a posição de Marx frente aos  
seguintes pares: Estado estamental/Estado  
moderno, direito animal/direito humano,  
privilégio/direito, religião/política, teologia/  
filosofia, bem como a relação do direito racional  
com a lei positiva, com a liberdade e com a  
igualdade. Ao final, analisamos a defesa de Marx  
da codificação, vistas pelo autor alemão como  
reconhecimento legal da liberdade.  
Abstract: This article presents an analysis of the  
State and law in Marx's journalistic writings from  
the time of Rhenish Gazette. We seek to show,  
from the immanent reading, that Marx, as editor  
of the aforementioned periodical, developed a  
critique of the State and law then existing in  
Vormärz Germany, however he maintained a  
defensive position against the State and law  
which, according to him, minimally correspond  
to their concept. The precise exposition of the  
terms of the defense of the State and law in the  
Gazeta Renana involved understanding Marx's  
position in relation to the following pairs:  
theocratic State/modern State, animal law/  
human law, privilege/law, religion/politics,  
theology/philosophy, as well as the relationship  
between rational law and positive law, freedom  
and equality. In the end, we analyze Marx's  
defense of codification, seen by the German  
author as legal recognition of freedom.  
Keywords: Marx; Rhenish Gazette; Rational  
State; Rational law.  
Palavras-chave: Marx; Gazeta Renana; Estado  
racional; direito racional.  
Algumas recordações de Marx e Engels sobre os tempos da Gazeta Renana  
Marx, quando escrevia o “Prefácio de 1859” (Marx, 2008), preparava o passo  
decisivo rumo à sua obra-prima inacabada1 O capital (Marx, 2013). No primeiro  
parágrafo desse prefácio, o autor estabelece o seu plano de publicação, que ainda  
* Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é professor efetivo  
do curso de Direito, na Universidade do Estado de Minas Gerais, campus Ituiutaba. O autor agradece  
ao Programa Institucional de Apoio à Pesquisa (PAPq) da Universidade do Estado de Minas Gerais  
(UEMG) pela concessão da Bolsa de Professor Orientador (BPO), referente ao Edital PAPq/UEMG nº  
01/2022.  
1
Sobre a escrita de O capital, bem como do caráter incompleto das obras de Marx, cf. Musto (2018;  
2011).  
Verinotio  
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nova fase  
   
Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
sofrerá alterações ao longo do tempo. Em 1859, o plano envolvia o exame “[d]o  
sistema da economia burguesa na seguinte ordem: capital, propriedade, trabalho  
assalariado; Estado, comércio exterior, mercado mundial”, assim como estudar “as  
condições econômicas de existência das três grandes classes nas quais se divide a  
sociedade civil-burguesa moderna” (MARX, 2008, p. 45). A obra Contribuição à crítica  
da economia política, para a qual o prefácio foi escrito, não marca sua entrada na  
crítica da economia política. Antes dela, Marx já havia publicado, por exemplo, A  
miséria da filosofia (Marx, 2017b) e, juntamente com Engels, o Manifesto Comunista  
(Marx; Engels, 2010), textos que já a pressupõem, sendo eles mesmos a exposição do  
desenvolvimento dessa crítica. Além desses textos, publicados em vida, há também  
aqueles, póstumos, que apontam outros desenvolvimentos da sua crítica da economia  
política, e que foram escritos antes e depois de 1859, referimo-nos aos livros 2 e 3  
d’O capital (Marx, 2014, 2017a), à volumosa Teorias da mais-valia (Marx, 1987),  
publicada no Brasil em três volumes, aos famosos Manuscritos de 1857-1858, os  
chamados Grundrisse (Marx, 2011), aos Manuscritos de 1861-1863 (Marx, 2010a) e  
aos Manuscritos de Paris de 1844, os célebres Manuscritos econômico-filosóficos  
(Marx, 2010b). Com este último, Marx inaugurou sua crítica da economia política,  
crítica, é verdade, iniciada por Engels naquele “genial esboço” (Marx, 2008, p. 49), e  
essas são as palavras de Marx para se referir ao texto engelsiano intitulado Esboço  
para uma crítica da economia política (Engels, 2021), publicado em 1844 nos Anais  
franco-alemães (Marx et al., 1970), periódico que não passou da primeira edição e foi  
dirigido por Marx e Ruge. Nos Manuscritos econômico-filosóficos (Marx, 2010b),  
segundo Vitor Sartori (2017), há um deslocamento no pensamento do autor, da crítica  
ao direito à crítica da economia política. Esse e outros textos de 1844 serão analisados  
em um próximo trabalho, pois aqui nos interessa compreender como Marx, antes de  
se tornar crítico ao direito e, portanto, de transitar dessa crítica para a crítica da  
economia política, fizera a defesa do direito nos tempos da Gazeta Renana. Nosso  
foco, neste trabalho, é analisar o pensamento de Marx sobre o direito e o Estado  
naquele momento de sua produção imediatamente anterior à formação do pensamento  
propriamente marxiano (Chasin, 2009), isto é, anterior a todas aquelas obras citadas  
acima e que, justamente, fizeram do autor alemão um vértice do pensamento social.  
Voltando ao texto de 1859, o assim chamado “Prefácio de 1859”, notamos  
que mais que ser, como dissemos, o texto de abertura da primeira exposição pública  
da crítica da economia política de Marx, trata-se de um texto memorial do autor  
Verinotio  
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nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
alemão, um texto de acerto de contas com seu passado intelectual, e nesse acerto de  
contas, Marx é explícito quanto a importância da sua experiência como redator da  
Gazeta Renana, pois foi neste posto que Marx se viu na obrigação de se posicionar  
diante de questões às quais ele teria que encarar durante toda a vida: interesses  
materiais, questões econômicas e comunismo. Dito de outra maneira: podemos dizer  
que as grandes preocupações teóricas, políticas e sociais de Marx, expostas no trecho  
que citamos acima, foram despertadas nos tempos da Gazeta Renana. Portanto, o  
próprio Marx, no aludido prefácio nos conduz aos escritos jornalísticos dos anos de  
1842 e 1843, levando-nos à investigação da sua fisionomia intelectual naqueles  
tempos e sobre a qual este texto trata. Citamos, assim, o trecho do prefácio:  
Em 1842-1843, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung  
(Gazeta Renana), encontrei-me, pela primeira vez, na embaraçosa  
obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os  
debates do Landtag [parlamento - alemão] renano sobre os delitos  
florestais e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica  
oficial que o sr. Von Schaper, então governador da província renana,  
travou com a Gazeta Renana sobre as condições de existência dos  
camponeses do Mosela, as discussões, por último, sobre o livre-  
câmbio e o protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos  
para que eu começasse a me ocupar das questões econômicas (MARX,  
2008, p. 46).  
No caso da citação acima, ela fornece uma valiosa rota de entrada para a obra  
de Marx. Pois foi exatamente nesses escritos jornalísticos que o autor alemão tomou  
seus primeiros contatos com os “chamados interesses materiais”, passando, assim, a  
encarar como uma necessidade o estudo das “questões econômicas”. Essa passagem  
também desvenda o preciso momento em que isso ocorreu, quando, diante da  
“embaraçosa obrigação de opinar”, teve que tratar dos “debates do Landtag  
[parlamento - alemão] renano sobre os delitos florestais e o parcelamento da  
propriedade fundiária”, bem como das “condições de existência dos camponeses do  
Mosela”.  
A relevância desse momento é ainda sobrelevada por Engels, em carta dirigida  
a Richard Fischer, datada de 15 de abril de 1895. Nela, ele escreve que, apesar de  
não ter lido os “artigos de Mosela”, pois “já estava na Inglaterra”, tem certeza já ter  
ouvido de Marx que, “através do seu grau de envolvimento com a lei referente ao furto  
de madeira e com a situação dos camponeses de Mosela é que ele foi lançado da mera  
política para as condições econômicas e, assim, chegado, ao Socialismo” (Engels,  
1968, p. 466, tradução nossa). É importante considerar que o relato de Engels é uma  
lembrança de certa conversa que teve com Marx, por isso, não se pode esperar  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
precisão desses testemunhos memoriais. As memórias dos autores precisão ser  
confrontadas, pois é preciso analisar as correspondências por aquilo que são e não  
como textos teóricos acabados. Em outras palavras, as correspondências não têm um  
estatuto teórico equivalente ao dos textos teóricos, isto é, textos voltados para a  
exposição de certo pensamento.  
Esse primeiro contato com os “chamados interesses materiais” e com a  
necessidade de se “ocupar das questões econômicas” não resultaram imediatamente  
na mudança substantiva do pensamento de Marx, a sua posição frente ao Estado e ao  
direito, como veremos neste trabalho, por exemplo, manteve-se inalterada durante  
todo o período em que esteve dirigindo, “como redator-chefe”, a Gazeta Renana e  
publicou para o periódico. Também há imprecisão de Engels quanto à chegada de  
Marx ao socialismo. Essa chegada não ocorreu na Gazeta Renana. Na chamada  
polêmica sobre o comunismo, a posição de Marx foi de desconfiança quanto a  
aplicação daquelas teorias de fora, inglesas e francesas, na Alemanha:  
Somos liberais contra todos, e isso é mais do que as massas podem  
dizer de algum liberalismo até agora. Mas já dissemos que o  
comunismo não pode encontrar uma base conosco, mas que é um  
fenômeno natural na França e na Inglaterra. Por fim, acrescentamos  
que não tínhamos nada contra os esforços comunistas na Alemanha,  
mas nos declaramos decididamente contra qualquer confraternização  
clubista do tipo em que se diz ter surgido na Silésia (Marx, 1975a, p.  
242, tradução nossa).  
Mesmo quando Marx criticou os interesses privados que rebaixavam o Estado  
e o direito trataremos dessa crítica neste trabalho , como naquele caso famoso da  
lei sobre o furto de madeira, mencionado por Engels na carta supracitada, ou da  
censura à imprensa, ele o fez em defesa não da eliminação dos interesses egoístas do  
puro cálculo, mas da sua suprassunção2 pela esfera estatal. A sociedade civil-burguesa  
é mantida, ainda que como um reino de devassidão e miséria, conforme Hegel a  
caracteriza na sua Filosofia do direito (2022), e o Estado que corresponde  
minimamente ao seu conceito se mantêm acima desses interesses e até certo ponto é  
seu pressuposto. Veremos adiante como ocorreu essa crítica ao Estado e ao direito  
então existentes e sua defesa do Estado e do direito que “correspondem minimamente  
ao conceito” (Marx, 1975e, p. 140, tradução nossa).  
2 Optamos pelo termo “suprassunção”, que traduz Aufhebung, seguindo a tradução de Paulo Meneses  
da obra hegeliana, pois consideramos que o uso da categoria em Marx nos escritos da Gazeta Renana  
é semelhante ao de Hegel. Suprassumir retém a ambiguidade de um “desaparecer conservante”  
(Meneses, 1995, p. 10).  
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Se Mnemósine faltou a Engels ao referir a tomada de posição comunista de  
Marx nos escritos da Gazeta Renana, ela não faltou a esse último. No “Prefácio de  
1859, quando recorda o passado longínquo do início dos anos 1840, ele se refere à  
“situação embaraçosa” de ter que se posicionar frente às acusações, cada vez mais  
frequentes, de comunismo e, também, de certo eco de comunismo que começava a se  
escutar das páginas do periódico renano. Nesse trecho, escreve Marx: “no momento  
em que a boa vontade de ‘avançar’ muitas vezes compensava o conhecimento da  
matéria, um eco de fraco colorido filosófico do socialismo e do comunismo francês se  
fez ouvir na ‘Rheinische Zeitung’”, mas, segue Marx, “declarei-me contra essa  
trapalhada” (Marx, 1961, p. 8, tradução nossa). Contudo, finaliza nosso autor, “ao  
mesmo tempo confessei [...] que meus estudos até aquele momento não me permitiam  
arriscar qualquer julgamento sobre o conteúdo das próprias orientações francesas”  
(Marx, 1961, p. 8, tradução nossa). O confronto das recordações engelsiana e marxiana  
com as fontes da época, isto é, com os textos da Gazeta Renana, especialmente aquele  
intitulado Zur Polemik über den Kommunismus, publicado 23 de outubro de 1842,  
no número 296 do período renano, revela a justeza da memória de Marx.  
Voltemo-nos, então, aos textos dos tempos da Gazeta Renana, momento  
importante da inflexão do pensamento marxiano, como exposto pelo próprio autor em  
1859 e, também, por Engels naquele relato epistolar, para procurar elucidar a  
verdadeira posição de Marx frente ao Estado e ao direito. Marx formulou um certo  
diagnóstico de época, naqueles tempos, que o levou a se posicionar em defesa do  
verdadeiro Estado e do verdadeiro direito, por conseguinte, nosso autor criticou certo  
Estado e certo direito. Elucidar com precisão esse diagnóstico e sua posição diante do  
Estado e do direito são fundamentais para a devida compreensão da autocrítica  
avassaladora pela qual passará seu pensamento nos anos posteriores à sua saída da  
Gazeta Renana, marco de inflexão do itinerário intelectual de Marx3.  
Nosso objetivo com o presente trabalho é não mais que expor o suporte  
categorial com o qual Marx empreende essa defesa e essa crítica nas páginas do  
“periódico democrático” (Engels, 2010, p. 530). O caminho que levou o pensamento  
de Marx da defesa do direito à sua crítica e, posteriormente, à crítica da economia  
política, como bem demonstrou Vitor Sartori, precisa ser compreendido em sua  
totalidade, logo, é fundamental elucidar os motivos que fizeram do nosso autor, em  
3 Cf. Chasin (2009).  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
certo momento de sua trajetória intelectual, um defensor do Estado e do direito na  
Alemanha do Vormärz, esclarecendo o modo pelo qual se deu essa defesa.  
Compreender tal posição diante do Estado e do direito é, também, compreender os  
seus limites e, portanto, compreender os motivos que o levaram a dar o passo  
seguinte, a sua crítica ao direito.  
A exposição precisa dos termos da defesa do Estado e do direito na Gazeta  
Renana será feita por meio da leitura imanente (Chasin, 2009) e envolve apreender a  
posição de Marx frente aos seguintes pares: Estado estamental/Estado moderno,  
direito animal/direito humano, privilégio/direito, religião/política, religião/filosofia,  
bem como a relação do direito com a lei, com a liberdade e com a igualdade. E isso  
tudo envolto em um certo diagnóstico de época que explicitaremos nas próximas  
páginas.  
Marx, um redator à serviço da crítica  
Marx, na sua tese doutoral e nos cadernos preparatórios a essa mesma tese,  
afirmou que havia, naquele momento na Alemanha, dois partidos filosóficos em  
oposição. Um que luta pelo conceito e que, portanto, é crítico da realidade [Realität]4,  
entendendo por crítica o medir “a existência individual pela essência e a realidade  
particular pela ideia”. Esse é chamado por Marx de “partido liberal”, campo no qual  
nosso autor se colocou. O outro partido é chamado por ele de “filosofia positiva”, que  
não assume a tarefa da crítica e se coloca como defensor daquilo que existe, e a  
consequência é a eternização do “momento da Realität”. A tarefa da crítica, para Marx,  
colocava-se como uma tarefa filosófica, pois a crítica é o tornar-se mundana a filosofia  
a fim de tornar filosófico o mundo (Marx, 1975j; 1976). Marx encarava seu trabalho  
jornalístico e sua atuação, como redator, na Gazeta Renana a partir dessa tarefa. Nos  
jornais, filosofia e mundo se encontravam. Nos jornais, a crítica retirava a filosofia dos  
sistemas filosóficos fechados e antipopulares, tornando-a mundana e, também, com  
isso, ensinava o mundo a ser filosófico.  
Vejamos, então, como Marx encarou sua tarefa como redator, pois, desse  
modo, também veremos que a crítica ao Estado e ao direito realizada por Marx nas  
folhas da Gazeta Renana é uma crítica filosófica no sentido exposto na tese e nos  
4 Remetemos à distinção entre Wirklichkeit e Realität, que está presente em Hegel e que é mantida por  
Marx nos escritos desse período. Por “realidade”, então, entendemos ser aquilo que contrasta com o  
ideal, que tem uma existência e, por isso, pode ser medido pela ideia. Cf. Inwood (1997, pp. 128-130).  
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trabalhos preparatórios, portanto, que mede “a existência individual” do Estado e do  
direito então existente na Alemanha de seu tempo “pela essência” do Estado e do  
direito e a “realidade particular” deles “pela ideia”. A crítica não será ao Estado e ao  
direito tout court, visto que Marx ainda luta, como redator, pelo conceito.  
Marx encarava a sua prática jornalística como o despir a filosofia de sua “batina  
ascética” (Marx, 1975b, p. 183, tradução nossa), e a filosofia alemã, em especial, lemos  
na Gazeta Renana, custa a largá-la e não o faz sem resistência, posto que essa filosofia  
“tem uma inclinação para a solidão, para o isolamento sistemático, para a introspecção  
desapaixonada” (Marx, 1975b, 1975, p. 182, tradução nossa). Marx estava resolvido  
a combater o caráter “antipopular” que essa filosofia adquire “no seu desenvolvimento  
sistemático” (Marx, 1975b, p. 182, tradução nossa). Naquele momento, a filosofia  
necessitava retornar ao mundo de onde ela partira, pois, escreve Marx, “os filósofos  
não brotam da terra como cogumelos [Pilze], são frutos de seu tempo, de seu povo,  
cujos sucos mais sutis, preciosos e invisíveis circulam nas ideias filosóficas” (Marx,  
1975b, p. 183, tradução nossa), o que resulta na sua responsabilidade e no seu  
compromisso com este mundo, mais precisamente com o seu tempo e o seu povo. O  
compromisso do filósofo saltará mais aos olhos do leitor quando este notar a  
semelhança, embora em sentido oposto, da dicção de Marx com certa passagem da  
obra hobbesiana, Do cidadão, na qual o autor inglês, eivado do seu característico  
individualismo, recorre à famosa metáfora do cogumelo, e ele pede que “retornemos  
agora ao estado de natureza, e consideremos os homens como se nesse instante  
acabassem de brotar da terra, e repentinamente (como cogumelos [mushrooms])  
alcançassem plena maturidade, sem qualquer compromisso entre si” (Hobbes, 2002,  
p. 135) e, poderíamos completar, com seu tempo, com seu povo, portanto, com o  
mundo. O filósofo, portanto, para Marx, é a antípoda do indivíduo imaginado por  
Hobbes. E esse compromisso do filósofo resulta na sua obrigação de mundanizar a  
filosofia para que o mundo se torne filosófico, o que ele, Marx, procura fazer como  
redator.  
Falando em semelhanças, a concepção de Marx nessa passagem se aproxima  
de certo trecho da Filosofia do direito, quando Hegel escreve: “no que concerne ao  
indivíduo, cada um é de toda maneira um filho do seu tempo; assim, a filosofia também  
é o seu tempo apreendido em pensamento” (Hegel, 2020, p. 142), no entanto, há  
diferenças que precisam ser ditas. Enquanto Marx, como redator da Gazeta Renana,  
procura mundanizar a filosofia, jogando-a para fora do seu desenvolvimento  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
sistemático, havendo um impulso prático-pedagógico, a “própria práxis da filosofia  
[seja] teórica”; em Hegel, o fato de todo indivíduo, incluso, obviamente, o filósofo, ser  
“um filho de seu tempo” não impede a filosofia de vestir sua “batina ascética” que  
impossibilita o “tornar-se filosófico do mundo” e o “tornar-se mundano da filosofia”,  
pois, em Hegel, a filosofia segue o curso do “desenvolvimento sistemático”, portanto,  
impopular. Sem fazer, aqui, de Hegel um espantalho, precisamos considerar que:  
A tese de que a filosofia ‘é o seu tempo apreendido em pensamento’  
não conflita com a tarefa atribuída à filosofia pouco antes (parágrafo  
13), a de ‘conhecer na aparência do temporal e do passageiro a  
substância que é imanente e o eterno que é presente’. Com efeito, O  
Presente que ela tem de conhecer é o presente afetivo, isto é, o teor  
de racionalidade ele é imanente como uma atualidade que é pura  
‘manifestação’ do presente absoluto, de sorte que a ‘externação’  
(Äusserung) Na essência enquanto fundamento na efetividade é  
identicamente a ‘sua reflexão dentro de si’. ‘Por isso, o efetivo é  
manifestação [Manifestation], ele não é atraído por sua exterioridade  
na esfera da alteração, [...] é ele mesmo na sua exterioridade e  
somente nela, a saber, é ele mesmo somente enquanto movimento  
que se diferencia de si e se determina’. Essa manifestação da  
efetividade, subtraída à alteração, ‘é o eterno que é presente’. Ao  
mesmo tempo, essa racionalidade atuante nesse presente efetivo  
contém o impulso e o critério que leva a ir além da sua realidade  
temporal e contingente e, assim, a ultrapassar suas figurações  
limitadas em direção à sua formação completa enquanto ideia. É esta  
que então permite à filosofia, uma vez que ‘a efetividade completou o  
seu processo de formação’ (parágrafo 19), se contrapor como um ideal  
as limitações e contradições do presente histórico” (Müller, 2022, p.  
148-149).  
Marx, assim como Hegel, reconhece a determinação temporal da filosofia, no  
entanto, ao contrário do segundo, postula uma tarefa a mais ao filósofo, que é a práxis  
pedagógica da crítica pública do existente na luta pelo conceito, concepção explicitada  
nos escritos preparatórios à tese, na qual ele também postula sua relação refletida  
com o pensamento do mestre. Essa concepção marca as intervenções jornalísticas de  
Marx como redator. Se em Hegel, a “racionalidade atuante nesse presente efetivo  
contém o impulso e o critério que leva a ir além da sua realidade temporal e  
contingente e, assim, a ultrapassar suas figurações limitadas em direção à sua  
formação completa enquanto ideia”; em Marx, os filósofos, como portadores  
intelectuais dessa racionalidade, devem atuar pedagogicamente e ensinar como o  
mundo dever ser conforme o conceito:  
O mesmo espírito que constrói os sistemas filosóficos nos cérebros  
dos filósofos, também, constrói as ferrovias com as mãos dos  
construtores. A filosofia não está fora do mundo, assim como o  
cérebro não está fora do ser humano porque não está no estômago;  
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mas é claro que a filosofia está com seu cérebro no mundo antes de  
colocar os pés no chão, enquanto muitas outras esferas humanas há  
muito fincam os pés na terra e colhem os frutos do mundo com as  
mãos antes de suspeitar que a “cabeça” também é deste mundo, ou  
que este mundo é o mundo da cabeça (Marx, 1975b, p. 183, tradução  
nossa).  
Para Marx, o seu tempo é aquele em que “a filosofia entra em contato com o  
mundo efetivo do presente”, e não o faz apenas “internamente por meio do seu  
conteúdo”, ficando, assim, fechada na forma de sistemas, mas “externamente por meio  
de sua manifestação”, isto é, manifestação pública das ideias por meio da imprensa  
periódica. A defesa de Marx se colocava, justamente, contra aqueles que eram  
contrários, como é o caso do editor Hermes, à veiculação de debates filosóficos em  
jornais. Hermes, editor da Gazeta do Estado Prussiano, contra quem Marx dirigiu sua  
pena afiada diversas vezes, defendia a restrição de certos temas, especialmente os  
filosóficos, à publicação em livros. Marx, por sua vez, parte em defesa dos jornais  
filosóficos, como a Gazeta Renana, que vai além do “interesse imediato do fato  
político”, posto que se volta para o “pensamento político” (Marx, 1975c, p. 333,  
tradução nossa). Isso ajuda a explicar a profundidade com que Marx analisou o Estado  
e o direito na Gazeta Renana.  
Importava ao nosso autor, o confronto da filosofia com o mundo então  
existente e podemos dizer do Estado que corresponde ao conceito, racional, com o  
Estado existente; do direito que corresponde ao conceito, racional, com o direito  
existente. Esse confronto atualizaria o mundo. O voltar-se para fora da filosofia,  
promovido pelo partido do conceito, é o reconhecimento preciso que a “filosofia  
verdadeira é a quintessência espiritual de seu tempo”, e, por ser isto, identifica no  
mundo existente as deficiências que são desse mesmo mundo, e assim, enquanto  
“filosofia em tudo contra o mundo, torna-se a filosofia do mundo atualizado”, isto é,  
que superou as formas anacrônicas, tornando-se conforme o seu conceito.  
Ao passo que não é do seu interesse o confronto da filosofia como sistema  
com outros sistemas filosóficos, afinal, tal atitude não é mais que o “voltar-se para  
dentro da filosofia”, e as deficiências, que são do mundo, passam a ser “algo imanente  
à filosofia” e, assim, pode-se dizer, a filosofia se perde na noite em que todos os gatos  
são pardos, tudo se equivale, se assemelha, não há critério para medir o existente, e  
a razão é, assim, sacrificada. A linha de continuidade entre a defesa da filosofia na  
Gazeta Renana e aquela presente na tese doutoral é tão marcante que Marx volta a  
escrever nos mesmos termos da tese: “a filosofia [...] se torna a alma viva da cultura,  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
[...] a filosofia se torna mundana e o mundo se torna filosófico” (Marx, 1975b, p. 183,  
grifo nosso, tradução nossa). Como redator, Marx uniu filosofia e mundo, portanto a  
defesa de Marx dos jornais filosóficos ocorre no contexto da sua tomada de partido a  
favor da luta pelo conceito, disputa que ocorre fora da filosofia, por assim dizer, no  
mundo que deve ser educado filosoficamente ao passo que retira a filosofia do seu  
ensimesmamento ascético, popularizando-a. A arena própria dessa luta eram os  
jornais.  
Aprofundemo-nos, agora, um pouco mais na concepção de filosofia que  
embala os escritos dos tempos da Gazeta Renana.  
Em defesa da filosofia e da razão: o problema do direito natural  
A luta pelo conceito exige a defesa da filosofia e da razão. E, como redator da  
Gazeta Renana, Marx desferiu inúmeros e contundentes golpes no artigo publicado em  
agosto de 1842, intitulado “Das philosophische Manifest der historischen  
Rechtsschule”, o qual se voltava contra a Escola Histórica do Direito.  
Na crítica à Escola Histórica do Direito, Marx segue defendendo o “partido do  
conceito” em oposição à “filosofia positiva”. Embora o embate imediato de Marx neste  
artigo seja com Gustav Hugo, o pioneiro da Escola Histórica do Direito, nosso autor  
visava atingir Friedrich Carl von Savigny, seu antigo professor dos tempos acadêmicos  
em Berlim. Savigny havia sido conselheiro de Estado e, no período em que Marx  
escreve seu artigo, ocupava o cargo de Ministro para a Reforma da Legislação  
Prussiana. O “manifesto filosófico” ao qual o artigo faz menção é um texto de Savigny,  
publicado em 1838, em homenagem aos cinquenta anos do doutoramento de Hugo,  
“ao chamar o Sr. Hugo de ancestral e criador da escola histórica, estamos a agir no  
seu próprio interesse, como prova o programa de comemorações do mais famoso  
jurista histórico para o aniversário de Hugo” (Marx, 1975d, p. 192, tradução nossa).  
Savigny é o mais famoso jurista histórico e, portanto, o alvo de Marx.  
Marx acusa o caráter retrógrado e conservador das ideias de Hugo ao  
questionar sua filiação à filosofia kantiana, pois “Hugo interpreta mal o mestre Kant”  
(Marx, 1975d, p. 192, tradução nossa). A filosofia deste último “deve ser considerada  
corretamente como a teoria alemã da Revolução Francesa”, ao passo que o “direito  
natural de Hugo como a teoria alemã do antigo regime francês” (Marx, 1975d, p. 194,  
tradução nossa). Hugo, diz Marx, é um “iluminista do ponto de vista do ancien régime”  
(Marx, 1975d, p. 194, tradução nossa). Entrando um pouco mais na argumentação de  
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Marx, identificamos que o fio condutor de sua crítica é a posição da Escola Histórica  
do Direito frente ao problema da racionalidade, o que se desdobra no debate sobre o  
papel da filosofia e no embate entre “partido do conceito” e “filosofia positiva”. Pois  
diz Marx que “o ceticismo do século XVIII, que tratou da razão do que existe, aparece  
para ele [Hugo] como ceticismo sobre a existência da razão” (Marx, 1975d, p. 193,  
tradução nossa). Indo um pouco além da dicção de Marx, mas ainda nos apoiando no  
autor alemão, podemos afirmar que Hugo, ao duvidar da existência da própria razão,  
é um defensor da “filosofia positiva”, logo, do irracionalismo. E não há pior inimigo da  
crítica que o irracionalismo, pois ele torna todo julgamento sem critério, onde não há  
critério, não há crítica; é pior, podemos dizer, que “a noite em que ‘todos os gatos são  
pardos’” (Hegel, 2008, p. 34), censura feita a Schelling por Hegel na sua  
Fenomenologia do Espírito.  
Marx aponta tão somente certa atualização vocabular dos modernos  
defensores da Escola Histórica do Direito, em particular Savigny, com relação a Hugo,  
seu ancestral. No entanto, o espírito é o mesmo, isto é, a falta de espírito, “quando  
Hugo diz: ‘O animal é a característica jurídica distintiva do homem’, ou seja: o direito  
é o direito animal, os modernos cultivados dizem algo como direito ‘orgânico’ para o  
direito ‘animal’” (Marx, 1975d, p. 198, tradução nossa). Mas a base dessa concepção,  
aponta Marx, é “uma ficção corrente do século XVIII que considerava o estado de  
natureza como o verdadeiro estado da natureza humana”. O ataque de Marx mira um  
dos lados da ambiguidade presente na expressão “direito natural”, aquele que  
“imaginou, ao mesmo tempo, um estado de natureza em que devia vigorar o direito  
natural, e oposto a ele, o estado da sociedade e do Estado que antes exigiria e  
traria consigo — uma limitação da liberdade e um sacrifício de direitos naturais”  
(Hegel, 1992, p. 112). E para Marx, assim como para Hegel, ambos foram opositores  
de Gustav Hugo e da Escola Histórica, o Estado e o direito de modo algum estaria  
ligado à limitação da liberdade, mas à sua própria realização, como teremos  
oportunidade de conferir adiante.  
Neste artigo de Marx, encontramos, in nuce, toda a concepção filosófica de  
Marx que embala sua defesa do Estado e do direito naquele momento, pois identifica  
em Hugo, Savigny e sua escola a consagração da animalidade da natureza humana, da  
ausência de um critério capaz de medir o existente e, portanto, o Estado e o direito  
existentes e, por meio da crítica, elevá-los ao nível do direito “minimamente conforme  
o conceito”.  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
Os defensores do direito natural, entre eles os juristas da Escola Histórica do  
Direito, defendem, segundo nosso autor, o direito da animalidade como o verdadeiro  
direito humano, posto que a animalidade é a distinção jurídica do humano, e não a  
razão. Desse modo, apesar da já citada atualização vocabular, “todos bradam com  
igual grosseria”, do ancestral aos discípulos, a favor do “direito à violência arbitrária”,  
pois sem critério. Em clara alusão a Hegel, Marx acusa Hugo de mostrar não que o  
“positivo é racional”, mas “que o positivo não é racional”. Para ele, “nenhuma  
necessidade racional anima as instituições positivas, como a propriedade, a  
constituição do Estado, o matrimônio etc., que elas inclusive contradizem a razão e  
que no máximo permitem tagarelar a favor ou contra elas” (Marx, 1975d, p. 192,  
tradução nossa). Note que a posição de Marx frente à propriedade, ao Estado etc. não  
é “crítica e revolucionária”, para usar a dicção presente em O capital. Trata-se de uma  
crítica que tem por missão não a abolição da propriedade (fundiária), do Estado, do  
matrimônio etc., mas a sua transformação conforme o conceito. Para Marx, o positivo  
vale quando é racional, e não, simplesmente, pelo fato de ser positivo, e isso se aplica  
às leis, como veremos nas próximas páginas deste trabalho.  
Já Hugo joga na noite em que todos os gatos são pardos. Hugo “pensa que a  
chama da razão foi soprada do positivo para reconhecer o positivo sem a chama da  
razão”. Quando Hugo nega a “chama da razão” que deve aquecer o positivo, ele nivela  
tudo que existe, todos os povos, todas as instituições, pois “em um lugar isso é  
positivo, em outro aquilo; um é tão irracional quanto o outro”. Eis que aqui aparece  
nos textos da Gazeta Renana uma “questão central” para a filosofia: “negação ou  
afirmação da razão”, isto é, o “problema filosófico do irracionalismo” (Lukács, 2021,  
p. 15) já aparece nos textos de Marx desde sua tenra idade intelectual.5 E para  
continuar na vereda trilhada pelo marxista húngaro, mais algumas palavras que podem  
iluminar o problema encarado por Marx no seu confronto com Hugo e sua escola:  
Considerar a posição da filosofia em relação à razão como um  
problema imanente à filosofia no domínio da teoria do  
conhecimento, da fenomenologia ou da ontologia é obra de um falso  
academicismo. Todas essas disciplinas são apenas aspectos da  
filosofia geral [...]. Para qualquer problema relevante da teoria do  
conhecimento ou de algum outro ramo da filosofia, os modos de  
colocá-lo e resolvê-lo dependem da maneira como o filósofo concebe  
a relação entre o ser e a razão e diferem conforme, para ele, o núcleo  
5 Vale dizer que encontramos em Hegel essa problemática, seja no seu embate maior contra Schelling,  
presente, por exemplo, na Fenomenologia do Espírito, ou na sua oposição à própria “Escola Histórica”  
e seu fundador, Gustav Hugo, nos parágrafos iniciais da sua Filosofia do Direito.  
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da existência, a essência do ser, seja de natureza racional ou irracional  
(Lukács, 2021, p. 23).  
O irracionalismo de Hugo, que embala os legisladores prussianos,  
representados pela figura maior de Savigny, “profana tudo o que é sagrado para o  
homem legal, ético, político, mas ele apenas esmaga esses santos para poder cultuá-  
los como relíquias históricas, ele os profana diante dos olhos da razão para cultuar  
depois aos olhos da história e, ao mesmo tempo, cultuar os olhos históricos” (Marx,  
1975d, p. 192, tradução nossa). Para a Escola Histórica do Direito, o coração da  
existência não é a natureza racional, humana, em contraposição à natureza animal, mas  
essa última, portanto, irracional. Por isso, Hugo e a Escola Histórica do Direito recorrem  
ao passado – “relíquias históricas”, que não são mais que “fantasias anti-históricas”,  
como a do homem no estado de natureza em substituição da crítica que mede a  
racionalidade daquilo que existe e merece receber o nome de presente.6  
Para Marx, veremos nos próximos tópicos, “tudo o que é sagrado para o  
homem legal, ético e político” é a liberdade, que deve se efetivar no direito, na ética e  
no político, pois, diversamente de Hugo, Marx não “acredita que as falsas flores foram  
arrancadas dos grilhões só para carregar verdadeiros grilhões sem flores” (Marx,  
1975d, p. 193, tradução nossa). Os mais familiarizados com a embocadura marxiana  
devem ter notado a grande semelhança entre o trecho citado acima e certa passagem  
famosa da Crítica da filosofia do direito de Hegel introdução, texto publicado em  
1844, nos Anais franco-alemães. Nesse último texto, Marx escreve: “a crítica arrancou  
as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões  
desprovidos de fantasia ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva  
desabroche” (Marx, 2010c, p. 146). Importante perceber que, quando o olhar se volta  
ao itinerário intelectual de Marx, o pesquisador certamente irá notar a permanência de  
certos temas na obra do autor, como é o caso da defesa da razão, bem como o uso  
de frases idênticas ou bastante semelhantes em textos distintos, escritos em momentos  
diferentes. Essa permanência temática e a identidade ou semelhança frasal não são  
suficientes para se concluir que se trata do mesmo pensamento, mas, tão somente,  
que se trata do mesmo pensador, portanto, do mesmo estilo.7  
6
Para uma visão abrangente acerca da posição reacionária de Savigny, da “Escola Histórica” e da  
chamada filosofia positiva, Cf. Marcuse (2004, pp. 307-317).  
7 Em se tratando do caso acima, é preciso dar relevo à diferença específica entre o pensamento exposto  
na Gazeta Renana e aquele fixado nos Anais franco-alemães. Não podendo aprofundar a questão, pelos  
limites temáticos deste trabalho, remetemos o leitor à obra clássica do marxismo brasileiro, Chasin  
(2009), na qual esse leitor mais disposto encontrará uma análise precisa da diferença por nós aludida.  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
Por ora, interessa apenas acentuar que nosso autor nos tempos da Gazeta  
Renana, como redator, lutou vigorosamente no terreno do “partido do conceito”, que  
procurava medir o existente racionalmente a fim de efetivar a liberdade. Para Marx,  
não é o seu tempo que não tem vocação para a legislação, mas o grupo de seguidores  
de Hugo que não tem vocação para ocupar os cargos de legisladores de nosso tempo.  
Marx não chega a citar nominalmente Savigny neste texto, embora cite outras figuras  
importantes da ala conservadora, como quando diz, no penúltimo parágrafo do artigo,  
que:  
as teorias jurídicas e históricas de Haller, Stahl, Leo e afins são apenas  
como codices rescript! do direito natural de Hugo, que, após algumas  
operações críticas de química, permitem que o antigo texto original  
volte a emergir de forma legível, como queremos mostrar mais adiante  
no momento oportuno” (Marx, 1975d, p. 198, tradução nossa).  
Pois, como redator, Marx tinha que se preocupar com a crítica oficial da crítica, a  
censura. Pensamos ser este o motivo que levou o redator da Gazeta Renana a não citar  
Savigny nenhuma vez sequer ao longo de toda a sua atuação à frente do periódico  
renano.  
Passemos, agora, para a defesa de Marx do direito racional, que se sustenta  
na sua defesa do Estado racional. Desse modo, veremos que a crítica de Marx às leis  
positivas na Prússia não pode ser tomada como crítica ao direito tout court nem,  
simplesmente, como defesa dos despossuídos. O aporte categorial deste momento  
não permite tais conclusões.  
O Estado nos escritos de Marx para a Gazeta Renana  
O Estado, o governo e o povo  
Encontramos nos escritos de Marx dos tempos da Gazeta Renana uma posição  
de fundo com relação ao Estado. E é nela que Marx apoia sua defesa do direito, como  
bem atenta Sartori (2023). O que defendemos aqui é que não há defesa do direito  
sem o pressuposto da existência de um Estado racional. Para o redator-chefe do  
“periódico democrático”, os direitos dos indivíduos, logo, a cidadania, não passam de  
um disparate se, antes, não temos reconhecido o direito do Estado, é isso que nos diz  
Marx quando afirma veementemente que “O direito do cidadão [Bürgers] individual é  
loucura se o direito do Estado não for reconhecido” (Marx, 1975e, p. 161, tradução  
nossa). O que Marx escreve nesse período é algo bastante próximo do que escreve  
Hegel no final da “Introdução” da Filosofia do Direito, imediatamente antes de iniciar  
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sua exposição do “Direito abstrato”, quando aborda de maneira mais detida o direito  
privado, pois, escreve o filósofo alemão, “o direito do Estado é [...] superior ao direito  
dos outros degraus ou estágios” (Hegel, 2022, p. 226), passagem que encontramos  
apenas na edição de Eduard Gans da obra hegeliana e que contém os “adendos” desse  
último. O direito do Estado aparece, então, como pressuposto dos direitos do cidadão  
individual, portanto, o direito privado como subordinado ao direito público.  
Nesse sentido, o Estado é encarado como realizador da liberdade, como “livre  
união [Vereinigung] de homens éticos” (Marx, 1975b, p. 180, tradução nossa), sendo  
sua a tarefa de fazer dos indivíduos do povo “membros do Estado” (Marx, 1975b, p.  
181, tradução nossa), agindo na transformação dos “fins do indivíduo em fins gerais,  
o impulso bruto em tendência ética, a independência natural em liberdade espiritual”,  
afinal, assim, “o indivíduo frui sua vida no todo, e o todo na disposição do indivíduo”  
(Marx, 1975b, p. 181, tradução nossa). Essa é, precisamente, a “existência [Dasein]  
racional e pública do Estado” (Marx, 1975b, p. 181, tradução nossa), que serve de  
medida à realidade [Realität] atual do Estado prussiano. Trata-se de uma defesa  
democrática, a favor do povo, bem à maneira do tiers état, pois, diz Marx quando da  
polêmica sobre o comunismo:  
[...] a profecia de Sieyès se tornou realidade e que o tiers état se tornou  
tudo e quer ser tudo. Que o estamento, que hoje nada possui, exige  
uma participação na riqueza das classes médias, é um fato que [...]  
está circulando nas ruas de Manchester, Paris e Lyon para que todos  
vejam (Marx, 1975f, p. 238, tradução nossa).  
O Estado como “existência racional e pública” aparece como motor do processo, contra  
o governo que rebaixa o seu espírito público ao nível do espírito de facção:  
O Estado ético assume em seus membros a disposição do Estado,  
mesmo que eles se oponham a um órgão do Estado, o governo; mas  
a sociedade na qual um órgão se considera o único e exclusivo  
proprietário da razão e da eticidade do Estado, um governo que se  
opõe fundamentalmente ao povo e, portanto, toma sua disposição  
antiestatal como sendo a disposição geral, normal, a má consciência  
de facção inventa leis tendenciosas, leis de vingança, contra uma  
disposição que tem seu assento apenas nos próprios membros do  
governo (Marx, 1975f, p. 238, tradução nossa).  
O Estado não é o governo, portanto, é possível e aconselhável fazer o combate  
do governo para defender o Estado ético. E as leis de um governo que coloca contra  
o povo e, com isso, adota uma “disposição antiestatal”, são leis que não merecem a  
qualificação de jurídicas, mas de “tendenciosas” e vingativas. São leis com espírito  
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faccioso. No povo, localiza-se a disposição estatal, portanto, geral e normal, capaz de  
produzir leis jurídicas. Não foi como mero advogado dos despossuídos que Marx  
argumentou na Gazeta Renana quando instado a opinar sobre a lei que criminalizava  
a recolha de madeira por parte dos camponeses do vale de Mosela – que “o povo, por  
sua vez, afunda em parte na superstição política, em parte na descrença política ou,  
completamente afastado da vida do Estado, torna-se uma plebe privada [Privatpöbel]”  
(Marx, 1975e, p. 161, tradução nossa), mas como redator de um jornal filosófico  
imbuído da missão de exercer a crítica. A plebe privada, como sabemos, em Hegel, é  
resultado da própria dinâmica da sociedade civil-burguesa, mas, em Marx, ela aparece  
como resultado do afastamento do povo da “vida do Estado” por meio da  
criminalização do povo. Aqui, vale mencionar, ainda, que a expressão usada por Marx  
Privatpöbel não aparece na Filosofia do Direito hegeliana, na qual encontramos tão  
somente Pöbel, o que termina por acentuar a posição privada a que é rebaixado o  
povo quando “afastado da vida do Estado”.  
A criminalização desmedida, sem critério, que se assemelha mais à vingança  
e ao arbítrio que à razão, realizada pela lei que pune a recolha da madeira como roubo  
corta os “mil nervos vitais” que ligam o Estado a “cada um de seus cidadãos [Bürger]”  
(Marx, 1975g, p. 211, tradução nossa). Noutra passagem lapidar, Marx escreve que a  
aprovação de certos parágrafos da lei do furto de madeira “leva necessariamente a  
que uma massa de homens, sem disposição criminosa, seja cortada da verde árvore  
da eticidade e jogada, como madeira caída, no inferno do crime, da infâmia e da  
miséria” (Marx, 1975g, p. 201, tradução nossa). Um Estado que atua desse modo age  
contra o seu próprio conceito, que é ser a “livre união de homens éticos” (Marx, 1975b,  
p. 180, tradução nossa) ou, o que é o mesmo, uma “união de homens livres” (Marx,  
1975b, p. 181, tradução nossa). O Estado racional visa a efetivação da liberdade e  
não da ausência de liberdade por meio da criminalização. Agindo desse modo, como  
efetivação da ausência de liberdade, o Estado atua contra seu povo, que passa a não  
acreditar na política, “afunda em parte na superstição política, em parte na descrença  
política”. Veja que a preocupação de Marx gira em torno de uma defesa da política,  
pois o Estado só é inimigo do povo quando atua, por meio do governo, de maneira  
antiestatal, portanto, de modo contrário à política. O que faz Marx é medir o Estado  
existente, que age contra o povo, pelo Estado que corresponde ao conceito, o Estado  
racional, o qual nunca age contra o povo, pois esse último se liga a ele por “mil nervos  
vitais”. Se de um lado Marx critica duramente o Estado existente, a “existência  
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individual” e a “realidade particular” do Estado prussiano, do outro Marx defende com  
o mesmo ímpeto o que entende ser a essência e a ideia de Estado.  
Voltaremos a abordar o problema da criminalização quando tratarmos  
propriamente do interesse que anima tanto a lei sobre o furto de madeira quanto a  
questão da censura. No momento, é necessário tecer mais alguns comentários sobre  
a concepção de Estado racional, pois, como dissemos, essa concepção é a base da sua  
defesa do direito. Perceber isto é importante para evitar certo enviesamento que  
resulta das ciências parcelares, no nosso caso a chamada ciência do direito, que acaba  
vendo no objeto somente aquilo que sua lente parcial o permite, e termina por trocar  
o determinante pelo determinado, e o direito aparece à luz dessa ciência como uma  
espécie de motor imóvel, o qual tudo move sem nunca ser movido.  
O Estado e a religião  
O ponto de vista político adotado por Marx na Gazeta Renana na sua defesa  
do Estado verdadeiro se firma em oposição radical ao ponto de vista teológico, pois  
“é preciso traduzir a linguagem dos deuses para a linguagem dos homens” (Marx,  
1975e, p. 160, tradução nossa). A filosofia alemã, segundo Marx, foi responsável por  
demonstrar “a grande questão da ideia [...] de um ponto de vista sólido, ordenado  
[reellen]”, contudo, a devoção alemã impede os alemães de realizarem o que eles  
mesmos já sabem, pois “de tanto respeito às ideias, eles não a efetivam” (Marx, 1975e,  
p. 160, tradução nossa). A realização do verdadeiro Estado político é tarefa que  
concerne à crítica do verdadeiro Estado religioso, o Estado teocrático, afinal, “o  
verdadeiro Estado religioso é o Estado teocrático” (Marx, 1975b, p. 187, tradução  
nossa). Mas esse embate não pode ser realizado no interior da teologia ou da religião,  
mas da filosofia, que é “a sabedoria do mundo” e, por isso, “tem mais direito de  
ocupar-se do reino deste mundo, do Estado, do que a sabedoria do mundo do além,  
a religião” (Marx, 1975b, p. 187, tradução nossa). Assim, o terreno da política, que  
trata do Estado, é a esfera própria da filosofia e dos filósofos, e não da religião e dos  
teólogos. É tarefa da filosofia investigar, dizendo agora em léxico hegeliano, a “ciência  
do Estado” e realizar o que outras ciências já fizeram, a separação da sua esfera, a  
política, da religião. Assim escreve Marx:  
A filosofia não fez nada na política que a física, a matemática, a  
medicina, todas as ciências dentro de sua esfera, não tenham feito.  
Baco de Verulam declarou que a física teológica era uma virgem  
consagrada a Deus e era estéril, emancipou a física da teologia e  
tornou-se frutífera. Assim como você não pergunta ao médico se ele  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
é crente, tão pouco você pergunta ao político. Enquanto Copérnico  
fazia a grande descoberta do verdadeiro sistema solar, a lei de  
gravitação do Estado era descoberta; seu peso foi encontrado nele  
mesmo. E, assim como os diversos governos europeus buscaram, com  
a primeira superficialidade da prática [Praxis], empregar esse  
resultado no sistema de pesos dos Estados, assim começaram,  
primeiro Maquiavel, Campanella, depois Hobbes, Spinoza, Hugo  
Grotius, até Rousseau, Fichte até Hegel, a olhar para o Estado com  
olhos humanos e a desenvolver suas leis naturais [Naturgesetze] a  
partir da razão e da experiência, e não a partir da teologia, assim como  
Copérnico não se deixou deter pelo fato de que Josué teria ordenado  
que o sol se detivesse em Gideón, e à lua no vale de Ajalón. A mais  
recente filosofia apenas deu continuidade a um trabalho já iniciado  
por Heráclito e Aristóteles (Marx, 1975b, pp. 188-189, tradução  
nossa).  
Marx insere “a mais recente filosofia” no interior do desenvolvimento histórico  
geral da filosofia, de Heráclito e Aristóteles a Hegel. A filosofia emancipou o Estado da  
religião quando encontrou a sua lei de gravidade nele mesmo e, a partir dessa  
descoberta, procurou sua legalidade na razão e na experiência, portanto, é “a partir  
da essência do Estado mesmo” que se deve “decidir sobre a justiça da constituição de  
um Estado”, isto é, julgá-lo não a partir da religião, mas “da natureza da sociedade  
humana” (Marx, 1975b, p. 188, tradução nossa). Entretanto, Marx não deixa de  
sobrelevar a diferença entre “a mais recente filosofia” e aquela filosofia que a precedeu.  
Os “antigos mestres filosóficos do direito do Estado” se diferenciam daquela filosofia  
mais recente no ponto em que construíram o Estado “dos impulsos, seja da ambição,  
seja da sociabilidade, ou mesmo da razão, mas não da razão da sociedade, e sim da  
razão do indivíduo” (Marx, 1975b, p. 189, tradução nossa). Ao passo que a mais  
recente filosofia constrói o Estado “da ideia do todo”, pois:  
[...] considera o Estado como um organismo no qual a liberdade  
jurídica, ética e política devem alcançar a própria realização, e no qual  
o cidadão singular obedece apenas às leis naturais de sua própria  
razão, a razão humana, nas leis do Estado” (Marx, 1975b, p. 188,  
tradução nossa).  
O Estado é a realização da liberdade e não do dogma. Também não deriva da  
animalidade, mas da liberdade inerente a seres racionais como são os seres humanos.  
É por isso que um Estado teocrático como é o Estado cristão não pode realizar um  
Estado que “corresponde ao conceito”, porque carrega na sua constituição a negação  
da liberdade, no caso, da liberdade religiosa:  
Ou o Estado cristão corresponde ao conceito de Estado, e é uma  
realização da liberdade racional, de maneira que, para ser cristão,  
basta que um Estado seja racional, de forma que é suficiente  
desenvolver o Estado das racionalidades humanas, uma obra que a  
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filosofia realiza; ou então o Estado da liberdade racional não se deixa  
desenvolver pelo cristianismo, então vós mesmos ireis confessar que  
este desenvolvimento não é implícito à tendência do cristianismo,  
porque este não deseja, um Estado imperfeito, e um Estado que não  
é a realização da liberdade racional é um Estado torto (Marx, 1975b,  
p. 188, grifo nosso, tradução nossa).  
Pondo tête-à-tête a posição teológica e a posição política, não há motivos  
para dúvidas, a posição política deve prevalecer, pois é a posição do próprio Estado  
moderno. Segundo Marx, a posição teológica efetiva “no Estado moderno não  
corresponde minimamente ao conceito que eles tem da própria posição”, haja vista  
que habitam não o mundo real, mas o “mundo situado além do mundo real  
[wirklichen]”, portanto, sua teoria é senão a “teoria do mais além” (Marx, 1975e, p.  
140). Já a posição política, filosófica, portanto, é a teoria do mundo real, do Estado  
real, do “Estado das racionalidades humanas”, sendo, então, “a realização da liberdade  
racional” por meio do Estado que corresponde minimamente ao conceito.  
É preciso considerar, também, que Marx, na sua luta pelo conceito, também,  
estava convencido, como ele deixa claro no seu artigo polêmico sobre o projeto de lei  
do divórcio, que “nenhuma existência ética corresponde ou deve [...] corresponder”  
completamente “à sua essência” (Marx, 1975h, p. 288). Ele escreve no artigo que  
discute o projeto de lei sobre o divórcio:  
Segundo o seu conceito, todas as relações éticas são indissolúveis,  
pois podemos facilmente convencer-nos se pressupormos a sua  
verdade. Um verdadeiro Estado, um verdadeiro casamento, uma  
verdadeira amizade são indissolúveis, mas nenhum estado, nenhum  
casamento, nenhuma amizade corresponde inteiramente ao seu  
conceito, e como a amizade real, mesmo dentro da família, o Estado  
real na história mundial, o casamento real pode ser dissolvido no  
Estado (Marx, 1975h, p. 288).  
O Estado está inserido na “história mundial” como “Estado real” e, recordando  
bem a lição hegeliana, “na história mundial, enquanto tribunal do mundo” (Hegel,  
2022, p. 682), ou como cantara Schiller em verso de seu poema “Resignation”, “Die  
Weltgeschichte ist das Weltgericht” (Schiller, 1835, p. 183), a história mundial é o  
tribunal mundial. Para Marx, portanto, na condição de Estado real ele é finito e, por  
isso, objeto de transformação processual, logo, também, torna-se objeto da crítica  
filosófica. Embora enquanto verdadeiro Estado ele seja imortal.  
A luta de Marx, na Gazeta Renana, é a luta da filosofia contra a teologia, pois  
essa última, além de ser incapaz de efetivar no Estado religioso a existência da  
liberdade, do mesmo modo, é incapaz de reconhecer a igualdade entre as confissões.  
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Nega, portanto, a liberdade e a igualdade. Politicamente, o Estado religioso contradiz  
essas duas maiores bandeiras dos tempos modernos. Argumenta Marx que, se um  
Estado reconhece a igualdade [gleichberechtigte] das religiões diversas, ele já “não  
pode mais ser um Estado religioso sem ofender as confissões religiosas particulares”,  
portanto igualdade e liberdade religiosas são mortais à existência do Estado religioso,  
o qual “faz do dogma o vínculo entre os indivíduos e a existência cívica  
[staatsbürgerlichen]” (Marx, 1975b, p. 187, tradução nossa), enquanto, no Estado  
moderno, que se aproxima do conceito de Estado, o vínculo entre os indivíduos é o  
de cidadania, esses se relacionam como cidadãos de um certo Estado, livres e iguais  
juridicamente.  
O Estado moderno não impõe o ateísmo aos cidadãos individuais, nem impede  
aqueles que confessam uma dada religião de lutarem em prol do Estado, contudo,  
nesse instante, a bandeira que tremula nas suas mãos não são as da sua religião  
particular, pois, diz Marx, “pergunte aos habitantes católicos da ‘pobre Irlanda [Erin]  
verde’, pergunte aos Huguenotes de antes da Revolução Francesa, não apelavam à  
religião, porque a sua religião não era a religião estatal, mas apelavam aos ‘direitos  
da humanidade’” (Marx, 1975b, p. 187, tradução nossa). Não custa salientar a forte  
distinção entre a esfera política e teológica, nos textos de Marx desse período, afinal,  
uma luta política não encara o Estado como uma religião, menos ainda se trata de  
encarar teologicamente o Estado, pois este último substitui a religião, assim como a  
filosofia substitui a teologia.  
Marx volta a reivindicar os direitos da filosofia, que “não fez nada na política  
que a física, a matemática, a medicina, todas as ciências dentro de sua esfera, não  
tenham feito”. Comparada à teologia, a filosofia “interpreta os direitos humanos” e  
exige “que o Estado seja o Estado da natureza humana” (Marx, 1975b, p. 187,  
tradução nossa), mas, recordemos, não da natureza humana como impulso da ambição  
ou da razão individual, e sim, da natureza humana como livre no todo que é o Estado,  
“organismo no qual a liberdade jurídica, ética e política devem alcançar a própria  
realização, e no qual o cidadão singular, obedecendo às leis do Estado, obedece  
somente às leis naturais da sua própria razão, da razão humana”. Marx, então, aparece  
aqui como defensor da liberdade e da igualdade, trazidas como pilares dos “direitos  
humanos”, bem ao modo das declarações de direitos fruto do processo revolucionário  
francês. E a efetivação dessa igualdade e dessa liberdade só é possível com a  
realização do Estado político na Alemanha. E sua defesa ocorre enquanto luta a favor  
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da separação entre religião e política, a fim de que o Estado se edifique não no dogma,  
mas na “livre razão” (Marx, 1975i, p. 106, tradução nossa). Enquanto cidadãos do  
Estado o que se exige é que o “Estado seja a realização da razão política e jurídica”  
(Marx, 1975i, p. 105, tradução nossa).  
A existência do Estado político, como dissemos, não nega a religião, mas o  
Estado teocrático nega a existência da cidadania, isto é, da relação dos indivíduos com  
o Estado como livres e iguais. No Estado político, católicos e protestantes “tem iguais  
direitos dentro do Estado, e tem iguais deveres para com ele”, pois, do ponto de vista  
político as diferenças religiosas são superadas. Os interesses individuais, privados,  
como é o caso da confissão religiosa, são suprassumidos na elevação desses interesses  
ao nível do interesse universal, público.  
O Estado e os proprietários  
O cerne da argumentação de Marx sobre a impossibilidade de um Estado  
teocrático realizar as tarefas do Estado político pode ser visto, também, quando nosso  
autor trata da imperfeição de Estado dos proprietários, isto é, da subsunção dos  
interesses dos proprietários fundiários no Estado. Quando os proprietários fundiários  
dominam o elemento governamental, o Estado é reduzido a mero representante do  
interesse privado. Trata-se, como no caso da religião, de um particularismo que  
pretende dominar o Estado e fazer dele seu escravo. Se o Estado teocrático é  
impossível como Estado político, o Estado dos proprietários, como podemos chamar,  
também o é.  
Marx, na Gazeta Renana, identifica a “oposição do Bourgeois” à realização do  
Estado político na Alemanha, “e não a do Citoyen” (Marx, 1975e, p. 157, tradução  
nossa). Nesse momento, o Citoyen é a solução do Bourgeois. Há, diferente do que  
ocorrerá em Sobre a questão judaica (Marx, 2010d), quando Marx registra sua primeira  
crítica à cidadania e ao direito tout court, uma aposta nos escritos jornalísticos da  
Gazeta Renana no embate do cidadão contra o burguês, embora Marx não vislumbre  
como resultado desse embate a eliminação deste último, mas sua superação no  
cidadão.  
O burguês carrega consigo “a concepção de mundo do interesse próprio”  
(Marx, 1975g, p. 217, tradução nossa) e “nada é mais terrível do que a lógica do  
interesse próprio” (Marx, 1975g, p. 219, tradução nossa). E a filosofia, que não faz  
oposição apenas ao elemento teológico, coloca-se acima da “poética individualidade”  
(Marx, 1975g, p. 204, tradução nossa), pois, sendo a investigação da verdade, ela  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
“pergunta o que é verdadeiro, não o que é válido”, e mais, “o que é verdadeiro para  
todos os homens e não para alguns” (Marx, 1975b, p. 179, tradução nossa). Já o  
interesse dos egoístas proprietários fundiários raciocina que uma “determinação legal  
é boa na medida em que [lhe] é útil”, no entanto, a “determinação legal” se torna  
“supérflua, nociva, impraticável, na medida em que se aplica em favor do acusado”  
(Marx, 1975g, p. 204, tradução nossa) e não do proprietário. Nesse sentido, a filosofia  
se opõe à concepção de mundo do egoísmo porque suas verdades são capazes de  
“trocar o horizonte ilusório de uma particular concepção de mundo e de povo pelo  
verdadeiro horizonte do espírito humano” (Marx, 1975b, p. 179, tradução nossa).  
Assim sendo, o Estado político é o ponto de vista da filosofia, que é o ponto de vista  
do direito humano, aquele que é “verdadeiro para todos os homens”, contra o ponto  
de vista da religião e da propriedade.  
A incompatibilidade da filosofia, que é a busca do “verdadeiro para todos os  
homens”, e o interesse egoísta do proprietário fundiário fica bastante aclarada quando  
Marx diz que “o interesse é por sua natureza cego, imoderado, unilateral, numa  
palavra, instinto natural sem lei”. Não é possível, diz Marx, que o sem lei faça leis (Marx,  
1975g, p. 235, tradução nossa). Enquanto a filosofia é o pensamento do todo, “o  
interesse não pensa, calcula” (Marx, 1975g, p. 224, tradução nossa). E quando pensa,  
ele é um pensar desmemoriado que apenas pensa em si.  
Enquanto no ponto de vista do proprietário a “desigualdade é axioma”; no  
ponto de vista político, “a mais minuciosa igualdade tem que ser lei”. A lei sobre o  
furto de madeira não protege igualmente proprietário e contraventor, pois só  
reconhece a igualdade entre os proprietários, seja o grande ou o pequeno proprietário.  
Mas, argumenta Marx, não seriam proprietários e contraventores cidadãos do Estado?  
Portanto, do ponto de vista político, pequeno e grande são iguais para a lei, são ambos  
cidadãos, logo, merecem a proteção do Estado. Conforme já firmamos aqui, ao jogar  
o camponês no terreno do crime e da punição, a lei sobre o furto de madeira  
transformou uma “massa de homens” em plebe privada, o que quer dizer que foram  
excluídos do terreno do direito, pois o Estado dos proprietários negou-lhes a  
possibilidade real [realen] de direitos” (Marx, 1975g, p. 210, tradução nossa). Nesse  
ponto, reside a diferença fundamental entre o interesse privado e o interesse público,  
onde aquele ver apenas o interesse do contraventor, visto como seu inimigo, que  
conflita com o seu interesse, o Estado precisa ver mais, acima dos particularismos, o  
todo. O Estado ver no contraventor um cidadão:  
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O Estado verá, portanto, também no ladrão de madeira um ser  
humano, um membro vivo no qual corre seu sangue vital, um soldado  
que defenderá a pátria, uma testemunha cuja voz será ouvida no  
tribunal, um membro da comunidade que deve ocupar cargos  
públicas, um pai, cuja existência é sagrada, acima de tudo um cidadão,  
e o Estado não excluirá negligentemente um de seus membros de  
todos esses regulamentos, pois o estado se amputa sempre que  
transforma um cidadão em criminoso. Acima de tudo, porém, o  
legislador ético considerará como a obra mais séria, mais penosa e  
mais perigosa a submissão de um ato até então inocente à esfera dos  
atos criminosos (Marx, 1975g, p. 211, tradução nossa).  
Na discussão acerca da lei sobre o furto de madeira, Marx contrapõe a  
“concepção de mundo bárbara” à “moderna concepção de mundo” a partir,  
respectivamente, da oposição entre pena privada e pena pública (Marx, 1975g, p. 226,  
tradução nossa). Essa última nivela o “crime com a razão de Estado” e trata a punição  
como “um direito do Estado” cedido ao particular. Entretanto, a punição pública não  
é vingança, pois, como o direito do indivíduo é uma insanidade sem o reconhecimento  
do direito do Estado, “todo direito do Estado contra o criminoso é ao mesmo tempo  
um direito estatal do próprio criminoso” (Marx, 1975g, p. 226, tradução nossa). O  
direito é afirmado na pena pública quando o Estado reconhece a “caducidade do  
delito”, nesse sentido, a punição pública afirma o direito ao passo que nega o ato  
delituoso, constitui uma negação da negação, para falar em linguagem hegeliana. Já  
na dicção de Marx, temos que “o direito é imortal e com isso demonstro a mortalidade  
do crime, precisamente com o fato de que o suprimo [aufhebe]” (Marx, 1975g, p. 230,  
tradução nossa). O Estado moderno, nesse sentido, não se coloca como executor dos  
interesses privados, ou como instrumento do interesse privado, pois somente garante  
esses interesses na medida em que “possa ser garantido por meio de leis e de normas  
prévias racionais” (Marx, 1975g, p. 230, tradução nossa). Contra as pretensões dos  
proprietários de tornar os pobres camponeses, por meio do delito, em seus servos,  
Marx afirma que isso seria o mesmo que sacrificar a “imortalidade do direito” em prol  
do “finito interesse privado”, ficando demonstrado ao criminoso, o que jamais é  
desejado modernamente, “a mortalidade do direito, cuja imortalidade lhe deveria  
demonstrar por meio da pena” (Marx, 1975g, p. 231, tradução nossa). Agindo dessa  
maneira, o Estado sairia dos “caminhos do direito” e abandonaria “a órbita solar da  
justiça” (Marx, 1975g, p. 231, tradução nossa). Portanto, ao interesse privado, o  
Estado moderno, na defesa de sua propriedade, apenas pode garantir a jurisdição civil,  
um juiz independente, que, embora seja uma vontade subjetiva particular, intenta o  
universal, pois está ligado a um princípio universal, a lei do Estado:  
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O juiz não tem superior, somente a lei. Mas o juiz tem o dever de  
interpretar a lei para a aplicação do caso concreto, tal como o entende  
após cuidadoso estudo. [...] O juiz independente não pertence a mim  
ou ao governo. Com o juiz, no máximo, ocorre a inverossimilhança de  
uma razão singular, a inverossimilhança de um personagem singular  
de uma razão singular [...]. O juiz julga minha ação de acordo com uma  
lei definida; [...]. O juiz avalia minha atividade conforme determinada  
lei [...]. Se eu for levado a um tribunal, serei acusado de infringir uma  
lei existente, e onde uma lei deve ser infringida, ela deve existir (Marx,  
1975e, p. 154, tradução nossa).  
Mas o interesse privado não se contenta com o juiz independente, o seu  
desejo é ele mesmo julgar e punir. O ponto de vista da propriedade privada, não tendo  
“os meios para se elevar ao ponto de vista do Estado”, deseja que esse último desça,  
“contra o direito e a razão, aos meios da propriedade privada, que são contrários ao  
direito e à razão” (Marx, 1975g, p. 215, tradução nossa). A liberdade reconhecida no  
Estado político é “a liberdade sem nome próprio” porque é a unidade na diferença,  
pois garante igualmente a existência da liberdade de ofício, de propriedade, de  
consciência, de imprensa, dos tribunais, o que significa dizer que, do ponto de vista  
político, nenhuma dessas espécies do gênero liberdade é feita de medida para as  
demais liberdades, “a liberdade judicial é liberdade judicial quando os tribunais  
obedecem as próprias leis inatas do direito e não aquelas de uma outra esfera, como  
a religião” (Marx, 1975e, p. 161, tradução nossa) ou a propriedade privada.  
Como pudemos provar, Marx na Gazeta Renana defende a realização do  
Estado político contra o Estado teocrático e proprietário. Se os teólogos elevam o  
Estado para além do seu próprio mundo; os proprietários fundiários, com seu ponto  
de vista rasteiro, ao rés do chão, rebaixam o Estado aquém da sua tarefa, a qual foi  
demonstrada pela filosofia, pois não se trata do direito desse ou daquele estamento,  
não se trata, portanto, de um privilégio, como diz Marx, mas dos direitos da  
humanidade.  
Marx, o direito e a lei  
Tendo em conta aquilo que foi dito acima, podemos passar à compreensão  
precisa da defesa do direito em Marx nos tempos da Gazeta Renana, o que envolve  
sua concepção de direito racional, firmada na oposição entre direito e privilégio e  
direito humano e direito animal, bem como na sua defesa do direito consuetudinário  
dos pobres. Mas sua defesa do direito racional não dispensa, também, certa apreciação  
da lei positiva, afinal, como o próprio autor nos diz, “no Estado deve reinar o espírito  
universal da lei”, em oposição ao que podemos chamar de espírito particular ou  
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estamental da lei. Nessa apreciação, encontramos a crítica da lei existente, isto é, “da  
lei determinada e das instituições positivas do direito” (Marx, 1975b, p. 187, tradução  
nossa). Antes, então, de expor a posição de Marx frente às leis positivas e, também, à  
tarefa dos legisladores, tratemos da sua defesa do direito racional, pois este determina  
“os caminhos do direito” para a legislação.  
Sobre a defesa do direito racional  
O Estado político se relaciona com os indivíduos como cidadãos e não como  
servos, resultando que “o cidadão não quer saber do direito como um privilégio”. Marx,  
assim, contrapõe direito e privilégio, um é a morte do outro. O critério é o  
particularismo do último e o universalismo do primeiro, “todas as formas de liberdade,  
portanto, tem existido sempre, uma vez como prerrogativa particular, outra como  
direito geral” (Marx, 1975e, p. 143, tradução nossa). Portanto, ambos são formas de  
existência da liberdade, em um caso, do privilégio, a liberdade existe como exceção,  
como espécie de vantagem de uns; no outro, do direito, a liberdade existe como lei, e  
podemos dizer, como leis jurídicas. É, pois, bastante próxima da forma como a  
oposição aparece na Filosofia do direito, no seu §252, no qual Hegel escreve que os  
“privilégios propriamente ditos, no sentido etimológico”, são “exceções à lei universal,  
feitas segundo a contingência” (Hegel, 2022, p. 526). No direito, a liberdade se torna  
lei universal e não exceção feita para alguns estamentos:  
Estes senhores [dos estamentos], porque não querem dever a  
liberdade, como dom natural, à razão solar universal, mas como dom  
sobrenatural de uma constelação especialmente favorável das  
estrelas, porque consideram a liberdade como uma qualidade  
puramente individual de certos estamentos ou pessoas, são forçados,  
por consequência, a subsumir a razão e a liberdade universais às más  
disposições e às fantasias dos ‘sistemas logicamente ordenados’. Para  
salvar as liberdades especiais de privilégio, eles proscrevem a  
liberdade geral da natureza humana (Marx, 1975e, p. 139, tradução  
nossa).  
Na Dieta Renana, não estamos diante de uma “Assembleia verdadeiramente  
política”, pois ela não “prospera sob a grande égide do espírito público” (Marx, 1975e,  
p. 139, tradução nossa), promulgando leis jurídicas, mas, tão somente, leis dos  
privilégios, “a razão política da província, tão logo feita a grande invenção das dietas,  
precipita-se toda vez sobre a própria espada, para, no entanto, ressurgir como a fênix  
nas próximas eleições” (Marx, 1975e, p. 138, tradução nossa). Ela não raciocina  
politicamente porque não enxerga nos indivíduos o cidadão, e sim o servo. A liberdade  
não aparece na forma do direito, isto é, da lei universal, mas do privilégio feudal que  
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não enxerga cidadãos, mas somente servos.  
À oposição entre direito e privilégio, liga-se outra oposição, entre direito  
humano e direito animal, cujo “nascimento data do período no qual a história da  
humanidade fazia parte da história natural” e “a humanidade aparecia despedaçada  
em determinadas raças animais, cuja relação não era de igualdade, mas de  
desigualdade, uma desigualdade fixada por leis”, leis que não poderia ser leis jurídicas,  
mas apenas leis do privilégio. Há um critério que faz de uma lei merecedora do  
qualificativo jurídico, e o critério é que essa lei afirma a liberdade de uma maneira  
universal, igual para todos. Ao direito animal corresponde “o mundo da não-  
liberdade”, que “comporta direitos da não-liberdade” porque é a “existência da não-  
liberdade”. Já “o direito humano é a existência da liberdade”. Tanto o direito humano  
quanto o direito animal correspondem a certa forma de existência do mundo, sendo o  
direito animal típico da feudalidade, “reino espiritual animal, o mundo da humanidade  
dividida em oposição ao mundo da humanidade diferenciada, cuja desigualdade nada  
mais é do que a difração da igualdade”. Na ausência de uma crítica da economia  
política, dedicada a descobrir a “anatomia da sociedade civil-burguesa”, Marx acaba  
por localizar todos os problemas na feudalidade, ao passo que a solução aparece  
nesses textos na modernidade, mais precisamente, no Estado moderno. No mundo da  
não-liberdade e da humanidade dividida somente é possível ser igual no interior das  
partes, e não no todo, pois não há Estado verdadeiro, portanto:  
A única igualdade que emerge da efetiva vida dos animais é a  
igualdade animal com os outros da mesma espécie, a igualdade de  
determinada espécie consigo mesma, porém não igualdade do gênero  
humano. O gênero animal por si se manifesta apenas no  
comportamento hostil das diversas espécies animais, que fazem valer  
suas características próprias e diferenciais umas contas as outras. É  
no estômago do animal feroz que a natureza tem preparado o campo  
de batalha da unificação, a forja para a íntima fusão, o órgão de  
conexão das diversas espécies animais. Do mesmo modo, no  
feudalismo cada raça se alimenta da raça inferior, até aquela que, igual  
a um pólipo crescido na leiva, possui apenas os muitos braços para  
colher os frutos da terra para as raças superiores, enquanto ela mesma  
come poeira. Enquanto no reino animal da natureza os zangões são  
mortos pelas abelhas operárias, no reino do espírito animal as abelhas  
operárias são mortas pelos zangões e por meio do próprio trabalho  
(Marx, 1975g, p. 205, tradução nossa).  
O direito animal nega a existência universal da lei, logo, da igualdade, que só  
pode existir nas partes e não no todo, o direito é vivido de maneira precária, como um  
privilégio dos estamentos. O direito humano, racional, portanto, fornece o critério que  
medirá a existência particular das leis positivas, isto é, se podemos chamá-las de leis  
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jurídicas ou não. Nesse julgamento, é preciso considerar a forma e o conteúdo da lei.  
Por exemplo, Marx acusa o interesse privado de mascarar na forma da lei o  
conteúdo animalesco de suas pretensões, “apelam ao próprio direito consuetudinário”  
e impõem, “em vez do conteúdo humano, a forma bestial do direito, que agora é  
degradado à mera máscara animal” (Marx, 1975g, p. 205, tradução nossa). É uma “lei  
tendenciosa”, como é a lei que trata da censura, pois sua “forma legal contradiz o  
conteúdo” (Marx, 1975e, p. 108, tradução nossa). Usa a forma universal da lei para  
encobrir o seu conteúdo animalesco, que não reconhece o gênero humano, mas as  
raças humanas separadas nos estamentos:  
Para assegurar-se que os transgressores florestais não escapem, a  
dieta não apenas quebrou os braços e as pernas do direito, mas,  
inclusive, lhe traspassou o coração. [...] a um conteúdo não livre  
confere uma forma não livre. Se em nosso direito se introduz  
materialmente o interesse privado, que não tolera a luz da  
publicidade, há que dar também sua forma adequada, o procedimento  
secreto, para que ao menos não seja despertada ou nutrida alguma  
perigosa ou vaidosa ilusão. Consideramos como um dever de todos  
os renanos, em especial dos juristas, consagrar neste momento, toda  
sua atenção ao conteúdo do direito, para que, no final, não nos reste  
entre as mãos apenas a máscara vazia. A forma não tem nenhum valor,  
se não é a forma do conteúdo (Marx, 1975g, p. 234, tradução nossa).  
Os olhos filosóficos do periodista Marx se voltam, justamente, ao conteúdo do  
direito consuetudinário dos pobres. Nosso autor, é verdade, sai “em defesa da massa  
pobre, política e socialmente desafortunada” reivindicando “à pobreza o direito  
consuetudinário e não apenas o direito consuetudinário local, mas um direito  
consuetudinário que em todos os países é o direito consuetudinário da pobreza”, e  
vai mais longe em sua defesa, afirmando “que o direito consuetudinário, por sua  
natureza, só pode ser o direito desta massa ínfima, despossuída e elementar” (Marx,  
1975g, pp. 204-205, tradução nossa). Antes de aludir qualquer semelhança entre  
essa defesa dos pobres e as posições já comunista de Marx, em defesa do proletariado,  
é preciso responder: qual a natureza do direito consuetudinário que o liga tão  
fortemente aos pobres? A resposta a essa pergunta nos ajudará na apreensão mais  
precisa do direito racional.  
Para Marx, o direito consuetudinário constitui “um domínio à parte e ao lado  
do direito legal”, sendo, então, “racional apenas ali onde o direito existe externamente  
e ao lado da lei” como “antecipação de um direito legal” (Marx, 1975g, p. 206,  
tradução nossa). Portanto, o direito consuetudinário não é em si mesmo defensável  
como direito racional capaz de existir na forma de leis jurídicas. Assim como a lei  
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positiva, o direito consuetudinário também será medido, sendo “racional” aquele que  
antecipa o direito legal, isto é, aquele direito consuetudinário capaz de aceitar a forma  
universal da igualdade e o conteúdo da liberdade. O direito consuetudinário existe  
fora do universal que é o Estado e tem sua racionalidade apenas onde a liberdade e a  
igualdade existem, ainda que apenas como costume. Por isso, Marx fala em  
“antecipação de um direito legal”, o que significa que os costumes não encontram sua  
validade em si mesmos, como dissemos, enquanto costumes. O critério é racional e  
não histórico, por isso, como veremos adiante, o direito consuetudinário não prescinde  
da positivação, haja vista que ele não vale juridicamente por si, pelo simples fato de  
ser costume.  
Além do direito consuetudinário, o direito legal, também, relaciona-se com o  
hábito, posto que é o costume de um povo, “o direito não deixa de ser costume porque  
se constituiu em lei, mas deixou de ser apenas costume” (Marx, 1975g, p. 206,  
tradução nossa). Além disso, em segundo lugar, o próprio direito legal constitui um  
costume do seu tempo. No entender de Marx, vivemos “no tempo das leis universais”,  
por isso, o direito consuetudinário racional “nada mais é do que o costume do direito  
legal”, desse modo, nosso autor defende o maior dentre todos os hábitos, o hábito  
moderno do direito legal. Como tal, “o direito não depende mais do acaso de o  
costume ser racional, mas sim, o costume se torna racional porque o direito é legal”,  
isto é, porque sua forma e seu conteúdo existem como direito do Estado enquanto lei  
universal e como efetivação da liberdade. Na dicção de Marx, lemos: “porque o próprio  
costume se tornou costume do Estado” (Marx, 1975g, p. 206, tradução nossa). O  
periodista alemão segue bem próximo da posição de Hegel, quando este aborda o  
“direito como lei”, pois consta na Filosofia do direito que os direitos consuetudinários  
“são sabidos de uma maneira subjetiva e contingente, por isso são mais  
indeterminados e a universalidade do pensamento está neles mais enturvada”, desse  
modo, fica mais sujeito às contingências. Marx, seguindo próximo a Hegel, firma  
posição pela necessidade de positivação do direito, isto é, a produção legislativa de  
um código de leis, no qual o direito existe como lei universal de um Estado, afinal de  
contas, diz Marx, “um código é a bíblia da liberdade de um povo” (Marx, 1975e, p.  
150, tradução nossa).  
Mas, antes de passar à exposição da posição de Marx frente à produção  
legislativa, é importante frisar que Marx inova completamente, em relação a Hegel, no  
tratamento do direito consuetudinário quando resolve analisar o direito  
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consuetudinário dos pobres e o direito consuetudinário dos nobres, isto é, quando faz  
o que prometera nos textos preparatórios à sua tese doutoral: “mede a existência  
individual pela essência e a realidade particular pela ideia”, na sua luta pelo conceito.  
Na escala da crítica de Marx, os direitos consuetudinários do estamento dos nobres  
possuem um conteúdo que se opõe à forma exigida pelo seu tempo, a forma da lei  
geral, universal e necessária. Por isso, diversamente do direito consuetudinário dos  
pobres, não são, por sua natureza, direito racional. Não antecipam nenhum direito,  
pois existiram até então pela “falta de lei”, são produtos da força e do arbítrio. São,  
no fundo, diz Marx, “ilegalidades consuetudinárias” (Marx, 1975g, p. 206, tradução  
nossa). A defesa que Marx faz do direito consuetudinário dos pobres se fundamenta  
no fato desse direito estar livre dos interesses egoístas que marcam o proprietário, na  
forma do proprietário fundiário, é sempre bom destacar. Os pobres se relacionam com  
o mundo do único modo que é possível, como gênero humano, ligados que estão pelo  
órgão unificador, o estômago, “campo de batalha da unificação”. Diz Marx:  
Há, portanto, um senso instintivo de direito nesses costumes da classe  
pobre; sua raiz é positiva e legítima, e a forma da lei consuetudinária  
aqui é tanto mais natural quanto a própria existência da classe pobre  
foi até agora um mero costume da sociedade civil-burguesa, que ainda  
não encontrou um lugar apropriado no círculo da estrutura consciente  
do Estado (Marx, 1975g, p. 209, tradução nossa).  
É preciso destacar que as duas únicas aparições da expressão bürgerlichen  
Gesellschaft na Gazeta Renana ocorre no artigo que debate a lei sobre o furto de  
madeira. Não parece fortuita a necessidade que Marx teve de utilizar a expressão  
hegeliana saída da economia política inglesa8 nesse artigo, pois se trata do texto que  
levou nosso autor a opinar sobre os interesses materiais e sobre as chamadas questões  
econômicas, como destacamos no início deste trabalho. Tematizou a pobreza que é  
produto da sociedade civil-burguesa, “um mero costume” dela e que ainda não  
encontrou solução no Estado então existente. No entanto, nesse momento, Marx  
acreditava ser possível encontrar “um lugar adequado no âmbito da articulação  
consciente do Estado”, o governo e seus legisladores. Na Gazeta Renana, a solução  
passava pela realização de um Estado político na Alemanha.  
8
A "bürgerlichen Gesellschaft” é a tradução alemã da “civil society” inglesa. Sobre a relação do  
pensamento hegeliano com a economia política inglesa, Cf. o clássico Lukács (2018) e, também, a  
dissertação bastante informativa de Müller (2011).  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
A lei e os legisladores  
E, então, somos levados à crítica daqueles chamados, por Marx, de  
“legisladores iluministas”. Dizemos levados, pois Marx, ainda no debate sobre o direito  
consuetudinário, diz-nos que “enquanto os direitos consuetudinários dos nobres são  
costumes contra o conceito de direito racional, os direitos consuetudinários da  
pobreza são direitos contra o costume do direito positivo”. E aqui vemos que Marx faz  
uma clara distinção entre direito racional e direito positivo. E a partir dessa distinção,  
nosso autor se coloca contra os legisladores iluministas que não reconheceram que “o  
conteúdo [do direito consuetudinário dos pobres] não se opõe à forma legal”, mas,  
antes, “resiste muito mais contra a própria ausência de forma” (Marx, 1975g, p. 206,  
tradução nossa). Assim, os pobres, hábito da sociedade civil-burguesa, não encontram  
seu lugar no Estado porque eles ainda não foram elevados à forma da lei.  
Para Marx, as “legislações iluministas”, isto é, aquelas legislações que fizeram  
a transição do feudalismo para o tempo moderno, agiram com “parcialidade” quando  
trataram do direito consuetudinário dos pobres. No terreno do direito privado, “as  
legislações mais liberais se limitaram a formular os direitos existentes e a elevá-los ao  
universal”, contudo, “onde não encontravam direitos também não os criavam” (Marx,  
1975g, p. 207, tradução nossa). O resultado é que os sem-estamento foram excluídos  
do direito, da “possibilidade real de ter direitos”. Nessas legislações, as quais Marx  
chama de “mais liberais”, houve a abolição dos costumes particularistas, contudo elas  
não consideraram a diferença entre “o não-direito dos estamentos” e “o direito dos  
sem-estamento”, que no período medieval assumiam a forma de “arrogância  
arbitrária”, no caso do primeiro, ao passo que o segundo “assume a forma de  
concessões fortuitas”. Sendo assim, essas legislações acertaram pela metade, pois  
agiram com correção “contra aqueles que tinham costumes fora do direito”. No  
entanto, não procederam corretamente quando atuaram “contra aqueles que tinham  
costumes sem o direito”, no caso, os pobres (Marx, 1975g, p. 207, tradução nossa).  
O exemplo fornecido por Marx é bastante elucidativo:  
Os mosteiros foram abolidos, suas propriedades foram secularizadas  
e eles agiram corretamente. Mas o sustento incidental que os pobres  
encontravam nos mosteiros não se converteu de modo algum em  
outra fonte positiva de riqueza. Ao transformar a propriedade  
monástica em propriedade privada e, por exemplo, ao compensar os  
mosteiros, os pobres que viviam dos mosteiros não eram  
compensados. Pelo contrário, uma nova fronteira foi traçada para eles  
e eles foram cortados de um antigo direito. Isso ocorreu em todas as  
transformações de prerrogativas em direitos (Marx, 1975g, p. 207,  
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tradução nossa).  
Essas legislações venceriam sua parcialidade e agiriam melhor se tivessem  
transformado, como o fizeram, “arrogâncias arbitrárias” em “direitos legais”, desde  
que “encontrassem nelas um conteúdo de direito racional”, mas, também,  
transformassem “em obrigações as concessões fortuitas”. Desse modo, desde o início,  
os pobres encontrariam um lugar no Estado. O caráter próprio da propriedade no  
medievo tornava difícil o trabalho do legislador, “na medida em que todos os direitos  
consuetudinários dos pobres se baseavam no fato de que uma dada propriedade  
apresentava um caráter equívoco”, isto é, nem propriedade privada nem propriedade  
comunitária, era uma espécie de híbrido de direito público e privado (Marx, 1975g, p.  
207, tradução nossa). O problema, na visão de Marx, não estava apenas nesse caráter  
contraditório da propriedade medieval, pois a unilateralidade dessas legislações foi  
garantida pela faculdade intelectual utilizada pelos legisladores no momento de  
proceder a legislatura. E nesse momento, podemos recordar a crítica que Marx realizou  
na carta ao pai à sua empreitada na filosofia do direito, que resultara em divisões  
arbitrárias, uma “escrivaninha com gavetas que eu, mais tarde, enchi de areia”, numa  
possível crítica à faculdade do entendimento [Verstand], a qual Marx, agora na Gazeta  
Renana, diz ter sido “o órgão com o qual as legislações concebiam estas ambíguas  
figuras” (Marx, 1975g, p. 207, tradução nossa). O modo de proceder do entendimento,  
que Marx não deixa de valorizar como um “trabalho grande e admirável”, embora  
aponte seus limites, pois o entendimento “não só é unilateral, mas é seu trabalho  
essencial fazer o mundo unilateral”. Assim, as legislações iluministas fizeram do mundo  
moderno unilateral ao positivar apenas o interesse dos estamentos nobres,  
esquecendo-se dos pobres. Marx não chega a recriminar em si essas legislações, haja  
vista que cumpriram sua função no momento anterior ao estágio da razão:  
[...] visto que só a unilateralidade forma e extrai o particular da  
nebulosa inorgânica do todo. O caráter das coisas é um produto do  
entendimento. Cada coisa, para ser algo, deve isolar-se e ser isolada.  
Precisamente enquanto fixa cada conteúdo do mundo numa sólida  
determinação e, por assim dizer, petrifica o ser mutante, o  
entendimento produz a multiplicidade do mundo, porque o mundo  
não seria multilateral sem as muitas unilateralidades (Marx, 1975g, p.  
208, tradução nossa).  
Trata-se, então, para Marx, de superar essa unilateralidade, obra necessária  
do entendimento, que excluiu uma “massa de homens” do Estado moderno e da  
“possibilidade real de ter direitos”. Dito de outro modo: a tarefa que nosso autor  
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projetava para a nova legislatura era precisamente elevar os pobres, um costume da  
sociedade civil-burguesa, ao reconhecimento da sua existência para o Estado por meio  
do direito positivo. É nesse sentido que apreendemos a função dos “direitos  
consuetudinários dos pobres” como “direitos contra o costume do direito positivo”,  
isto é, contra a prática habitual da legislatura iluminista. O direito consuetudinário dos  
pobres reaviva na memória esse caráter contraditório do direito privado alemão, pois  
aí havia dois direitos, “um direito privado do proprietário e um do não-proprietário,  
ainda que prescindindo de que nenhuma legislação abolia os privilégios do direito  
público da propriedade, mas só os despojava de seu caráter aventureiro para lhes  
conferir um caráter burguês” (Marx, 1975g, p. 208, tradução nossa). O caráter burguês  
do qual nos fala Marx é caráter de propriedade privada ainda ligado à propriedade da  
terra. E Marx defende que a nova legislação deve reconhecer que há objetos que, por  
sua própria natureza, não possuem o caráter de propriedade privada, estando  
excluídos do direito de propriedade porque são racionalmente objetos do direito de  
ocupação, por meio desse direito os pobres encontrariam o seu lugar no Estado:  
Se, porém, toda forma medieval do direito, portanto, também da  
propriedade, era, sob todos os lados, de essência híbrida, dualista e  
discordante, e o entendimento fazia valer, com toda a razão,  
justamente o seu princípio de unidade contra esta contraditória  
determinação, não viu, porém, que há objetos de propriedade que  
jamais podem, por sua natureza, adquirir o caráter de propriedade  
privada de antemão; objetos que, por sua essência elementar e  
existência fortuita, caem sob o direito de ocupação da classe que pelo  
mesmo direito de ocupação é excluída de todos os direitos de  
propriedade; a classe que na sociedade burguesa ocupa o mesmo  
posto que aqueles objetos do mundo natural (Marx, 1975g, p. 208,  
tradução nossa).  
A tarefa do legislativo, no “Estado moderno, por pouco que corresponda ao  
próprio conceito”, é não se deixar levar pela “arrogância do interesse privado, cuja  
alma mesquinha nunca foi penetrada e iluminada pela ideia de Estado”, pois, “quando  
o Estado, mesmo num só ponto, se rebaixa tanto que, ao invés de agir à sua própria  
maneira, age à maneira da propriedade privada”, a consequência é o seu confinamento  
nos “limites da propriedade privada”, isto é, do seu egoísmo. O Estado se degrada ao  
se tornar o instrumento do interesse privado do proprietário, agindo contra uma  
“massa de homens”, legisla criando “leis tendenciosas” e “leis de vingança”, leis  
contrárias ao direito e à razão. Portanto, diante desse quadro, os legisladores, em um  
Estado moderno que corresponda minimamente ao conceito, precisam dizer aos  
proprietários que o rebaixam e degradam: “teus caminhos não são os meus caminhos  
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nova fase  
Murilo Leite Pereira Neto  
e teus pensamentos não são os meus pensamentos!” (Marx, 1975e, p. 127, tradução  
nossa).  
Em defesa da codificação  
Marx estava convencido que o caminho para a Alemanha se aproximar de um  
Estado político que realize, ainda que pouco, o conceito passava pela codificação,  
desse modo, a sua crítica às leis positivas não exclui, ainda assim, da positivação do  
direito, posição oposta àquela do jurista Savigny. O seu interesse é, justamente, tornar  
racional o direito positivo. No debate sobre a liberdade de imprensa, tal posição fica  
exposta de maneira límpida. Antes, contudo, importa dizer, que há uma unidade no  
pensamento de Marx nesse período, prova disso é que sua argumentação contra os  
interesses privados particularistas, unilaterais, estamentais, seja qual for o termo que  
se queira usar, todos são possíveis, pois todos eles foram utilizados pelo nosso autor  
, cujo conteúdo não aceita a forma da lei geral, repete-se em vários dos seus artigos,  
de maneira que, para o debate sobre a liberdade de impressa, tudo que se falou até  
aqui se mantém. Para que não reste dúvida, citamos:  
Nós, certamente, não encontramos expresso, de forma mais clara, mais  
resoluta e plena, o espírito estamental específico do que no debate  
sobre a liberdade de imprensa [...]. O espírito de uma esfera  
determinada, o interesse individual de estamento particular, a  
unilateralidade natural do caráter, se manifestam da maneira mais  
áspera e impiedosa, ou, como se diria, mostram os seus dentes (Marx,  
1975g, p. 216, tradução nossa).  
E ainda:  
As leis baseadas nas intenções não são leis do Estado ditadas para os  
cidadãos, mas leis de um partido contra outro. As leis tendenciosas  
suprimem a igualdade dos cidadãos frente à lei [...]. Não são leis, mas  
privilégios. Uns podem fazer o que a outros está vedado, mas não  
porque esses careçam de uma determinada qualidade objetiva, como,  
por exemplo, os menores de idade, para poder celebrar contratos, mas  
porque se suspeita de suas opiniões, de suas intenções (Marx, 1975i,  
p. 108, tradução nossa).  
É possível encontrar, ainda, nos debates sobre a liberdade de imprensa, com  
maior clareza, diga-se, o critério para a positivação do direito. E podemos apreender  
esse critério pela oposição entre “sanção positiva da arbitrariedade” e “existência  
positiva da liberdade” (Marx, 1975i, p. 107, tradução nossa).9 Para Marx, a censura,  
9
Marx também usa a expressão Sanção geral do positivo [allgemeine Sanction des Positiven], quando  
critica o Estado religioso. A palavra Sanction tem origem no latim sancire, que é santificar. Cf. Marx  
(1975i, p. 106).  
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Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
assim como o interesse dos proprietários fundiários, não pode ser lei pelo fato do seu  
conteúdo contradizer a forma da lei geral. As leis que legalizam a censura são leis  
tendenciosas e terroristas, pois seu “critério fundamental, não são os atos enquanto  
tais, mas a intenção de quem realiza”. Essas leis tendenciosas “não castigam somente  
o que faço, o que foram meus atos, mas o que penso”, portanto, insultam o cidadão  
porque são “leis vexatórias contra minha existência” (Marx, 1975i, p. 108, tradução  
nossa). São leis da não-liberdade, positivam a ausência de liberdade, pois. São uma  
agressão à natureza humana que é a liberdade, e ao legislador, assim como “a lei não  
está isenta do dever universal de dizer a verdade”, não é permitido positivar uma  
mentira sobre a natureza humana em forma de lei universal. A lei, fala-nos Marx, “é o  
orador geral e autêntico da natureza jurídica das coisas”, e não o contrário, isto é, “a  
natureza jurídica das coisas que se atém à lei” (Marx, 1975g, p. 202, tradução nossa).  
A legislatura, portanto, reconhece a natureza jurídica das coisas, que, sim, é anterior à  
lei, afinal, admite a forma e o conteúdo do direito racional. Sendo-lhe proibido  
promulgar mentiras legais ao preço de ser “a sanção positiva da arbitrariedade”,  
portanto, positivar a animalidade como condição natural do ser humano.  
Por outro lado, a lei de imprensa não pune a liberdade, pois reconhece a  
liberdade como normal. É, portanto, uma “lei efetiva” porque a liberdade existe nela  
como lei positiva. Encara a punição como uma exceção ao direito, fazendo dos delitos  
da imprensa aquilo que são de fato, negação do direito, pois “a lei de imprensa declara  
a liberdade como a natureza do criminoso”, é “reconhecimento da própria liberdade”  
(Marx, 1975e, p. 150, tradução nossa). Desse modo, a lei efetiva, digna de tal nome,  
é o reconhecimento positivo da liberdade contra o arbítrio e o acaso. Na lei de  
impressa, temos a inclusão da liberdade de imprensa, que é uma espécie da “liberdade  
sem nome próprio”, na “esfera da liberdade legal, porque a liberdade legalmente  
reconhecida existe no Estado como lei”.  
O contraste entre a censura e a lei de censura revela, in nuce, a defesa do  
direito em Marx nos tempos da Gazeta Renana, visto que o direito aparece como  
reconhecimento, no Estado, da liberdade, que passa a existir legalmente como lei geral,  
portanto, universalizado. O direito racional mede a existência positiva da lei,  
distinguindo o que é apenas uma lei formal, que sanciona o arbítrio, conteúdo que  
nega a sua forma, da lei efetiva, em cujo conteúdo se conecta essencialmente à forma.  
Na lei efetiva, temos o reconhecimento na forma e no conteúdo da igualdade do gênero  
humano e da liberdade que lhe é natural. Sobre o que foi dito, lemos nas folhas da  
Verinotio  
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Murilo Leite Pereira Neto  
Gazeta Renana:  
As leis não são medidas repressivas contra a liberdade, como  
tampouco a lei da gravitação é uma medida repressiva contra o  
movimento, só porque, enquanto lei gravitacional, impele o eterno  
movimento dos corpos do mundo, mas, enquanto lei da queda, me  
derruba quando a infrinjo, querendo dançar no ar. Muito mais, as leis  
são as normas positivas, claras e universais, nas quais a liberdade  
adquiri existência impessoal, teórica e independente do arbítrio  
individual (Marx, 1975e, p. 150, tradução nossa).  
É somente nesse sentido que somos capazes de apreender a defesa de Marx  
da codificação do direito, pois “um código é a bíblia da liberdade de um povo” (Marx,  
1975e, p. 150, tradução nossa). Na passagem, apreende-se a superação da teologia  
pela filosofia na mudança da bíblia para o código, da religião para o Estado político,  
que se expressa não por dogmas, mas por leis. A codificação não é mera compilação  
de leis ou do direito consuetudinário. É a existência da liberdade universal e  
determinada no âmbito do Estado político. Na Gazeta Renana, a luta de Marx, ainda  
no partido do conceito, é pela realização na Alemanha do Estado político e do direito  
racional.  
Considerações finais  
Procuramos neste artigo apreender a posição precisa de Marx em relação ao  
Estado e ao direito nos escritos jornalísticos da Gazeta Renana. É sabido que a  
produção intelectual marxiana desses tempos não encontra, por parte da crítica e dos  
marxistas, o mesmo reconhecimento da produção posterior e, principalmente,  
daquelas obras escritas na dita maturidade, o que acaba resultando em estudos  
apressados que não fazem jus ao pensamento de Marx. Este pensamento é detentor  
de um desenvolvimento próprio que só pode ser bem compreendido a partir do seu  
itinerário, o qual contempla, sem dúvidas, continuidades e rupturas.  
Este trabalho ilumina os primeiros passos intelectuais de Marx, um “vigoroso  
andarilho”, como ele se autointitulou na carta ao pai de 1837, que, não temendo o  
cansaço de seguir as veredas escarpadas da ciência, alcançou seus picos iluminadas e  
nos legou um pensamento original, crítico e revolucionário. Toda caminhada precisa  
começar por algum lugar e em algum momento, ainda que o caminho seja incerto ou  
necessite reparos. O próprio Marx, no prefácio de 1859, ao recordar o seu caminho,  
remete à produção dos tempos da Gazzeta Renana, como momento em que, pela  
primeira vez tomou contato com os chamados interesses materiais, com as questões  
econômicas e com o comunismo; e foi o que abordamos no tópico introdutório deste  
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nova fase  
Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da Gazeta Renana  
trabalho.  
Tendo em vista que a caminhada de Marx no debate público começou na  
Gazeta Renana “como redator”, procuramos esclarecer melhor a maneira pela qual  
Marx encarava essa posição e, portanto, a tarefa empenhada nos jornais. Isso é  
fundamental para o nosso estudo, pois os textos de Marx analisados aqui foram todos  
veiculados na imprensa periódica alemã, o que deve ser considerado pelo intérprete.  
Marx encarava que o trabalho jornalístico era capaz de unir filosofia e mundo, haja  
vista que nos jornais a crítica filosófica se populariza ao tratar das coisas do mundo.  
Como redator de um periódico filosófico, ele poderia exercer a crítica do que existe e  
lutar pelo conceito, no caso o conceito de Estado e de direito. A crítica filosófica nos  
jornais atualizaria o mundo, fazendo o Estado e o direito então existentes se  
aproximarem minimamente do Estado e do direito que correspondem ao conceito.  
Depois, percebendo que havia, em Marx, uma concepção de filosofia a  
fundamentar o conjunto das suas posições quanto ao Estado e ao direito, cujos jornais  
filosóficos seriam veículos apropriados para essa concepção, a qual passava pela  
necessidade de popularizar a filosofia, indo além de Hegel e, portanto, ensinando como  
o mundo teria de ser, passamos à exposição dessa concepção como defesa da filosofia  
e da razão no embate contra a Escola Histórica.  
Marx identifica em Hugo, Savigny e sua escola a consagração da animalidade  
da natureza humana, da ausência de um critério capaz de medir o existente e, portanto,  
a consagração do Estado e do direito existentes. Na esteira da escola de Hugo, a crítica  
é impossível, o que fica explicitado quando nosso autor acusa Hugo de mostrar não  
que o “positivo é racional”, mas “que o positivo não é racional”, eliminando, assim, a  
razão da existência. Tudo é nivelado. Nesse tópico, também revelamos a posição de  
Marx na querela da codificação, pois para Marx, não é o seu tempo que não tem  
vocação para a legislação, mas o grupo de seguidores de Hugo que não tem vocação  
para ocupar os cargos de legisladores de nosso tempo.  
Caminhamos neste trabalho em acordo com Vitor Sartori quando este defende  
que nos escritos de Marx dos tempos da Gazeta Renana há uma posição de fundo com  
relação ao Estado, na qual se sustenta a defesa do direito racional. Dedicamos o quarto  
tópico deste trabalho ao detalhamento dessa posição. O Estado é, para Marx, o  
realizador da liberdade, sendo uma “livre união [Vereinigung] de homens éticos”. No  
reconhecimento estatal, os indivíduos elevam sua existência, tornam-se povo e se  
afastam da possibilidade de se tornarem mera plebe privada. O Estado como  
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“existência racional e pública” aparece como motor do processo, inclusive contra o  
governo que rebaixa o seu espírito público ao nível do espírito de facção.  
No povo, localiza-se a disposição estatal, portanto, geral e normal, capaz de  
produzir leis jurídicas. Nessa toada, mostramos que as preocupações de Marx neste  
momento estavam localizadas na separação entre Estado e religião, assim como na  
separação entre Estado e interesses privados, sejam esses interesses provenientes da  
religião ou da propriedade. Portanto, em Marx aparecem a distinção entre Estado e  
governo; povo e plebe privada; política e religião; filosofia e teologia.  
A defesa de Marx do direito aparece, então, apoiada nessa posição de fundo  
quanto ao Estado, pois o Estado político é aquele que reconhece os indivíduos como  
cidadãos, detentores de direitos, e não como servos, detentores de privilégios. Marx,  
assim, contrapõe direito e privilégio, um sendo a morte do outro. Essa distinção apoia  
a diferenciação que Marx faz entre lei jurídica e lei do privilégio. A primeira encara os  
indivíduos como cidadãos, portanto, livres e iguais; enquanto para a segunda os  
indivíduos são servos, cuja existência corresponde à não-liberdade e à desigualdade,  
típicas da feudalidade. Se é possível falar em direito na feudalidade, esse direito é o  
direito animal e não o direito humano. O primeiro é a negação da existência universal  
da lei, por isso, o direito é vivido de maneira precária, apenas como um privilégio dos  
estamentos. Ao passo que o segundo é racional, pois fornece o critério que medirá a  
existência particular das leis positivas, isto é, se podemos chamá-las de leis jurídicas  
ou não. Nesse julgamento, é preciso considerar a forma e o conteúdo da lei. Sendo a  
modernidade o tempo das leis gerais, a forma da lei jurídica é a da lei geral; e o  
conteúdo desse tipo de lei que atende ao critério do direito racional e que, por isso,  
merece o reconhecimento do Estado, é a liberdade.  
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1835. Disponível em  
08/02/2024.  
Como citar:  
PEREIRA NETO, Murilo Leite. Estado e Direito em Marx: uma análise dos escritos da  
Gazeta Renana. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 64-102; jan.-jun., 2024  
Verinotio  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 64-102 jan.-jun., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.704  
A questão judaica e as Glosas Críticas: Estado,  
direito e crítica da economia política na obra de  
Karl Marx entre 1843 e 1844  
The Jewish question and the Critical Notes: State, Law  
and critique of political economy in Karl Marx’s work  
between 1843 and 1844  
Lucas de Oliveira Maciel*  
Resumo: Entre 1843 e 1844, em dois textos  
polêmicos, Sobre a questão judaica e Glosas  
críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma  
social”. De um prussiano, Karl Marx empreende  
sua crítica ao Estado e à sociedade civil-  
burguesa, após seu acerto de contas com o  
pensamento de Hegel, mas antes de seu estudo  
mais profundo de economia política. De um lado,  
o pensador faz a crítica da política, ainda que  
sem condições de fazer uma profunda crítica da  
economia política. De outro, ele reconhece a  
impossibilidade de analisar o Estado sem  
adentrar a sociedade que lhe confere base, de  
maneira que não se furta de tentar compreender  
as determinações da sociedade civil-burguesa,  
esforço que tem início já nos textos em questão.  
Abstract: Between 1843 and 1844, in two  
polemical texts, On the Jewish question and  
Critical Notes on the article: “The King of Prussia  
and Social Reform. By a Prussian”, Karl Marx  
undertook his critique of the state and civil-  
bourgeois society, after his reckoning with  
Hegel's thought, but before his more in-depth  
study of political economy. On the one hand, the  
thinker critiques politics, even though he is yet  
unable to make a profound critique of political  
economy. On the other hand, he recognizes the  
impossibility of analysing the state without  
going into the society that underpins it,  
therefore, he doesn't shy away from trying to  
understand the determinations of civil-  
bourgeois society, an effort that begins in the  
texts in question.  
Palavras-chave: Karl Marx; Crítica da política;  
crítica da economia política.  
Keywords: Karl Marx; critique of politics; Critique  
of political economy.  
Introdução  
Entre 1843 e 1844, o pensamento de Karl Marx se encontra em estágio de  
transição. Por um lado, o autor redige, em meados de 1843, sua Crítica da filosofia do  
direito de Hegel (2013a), com o que rompe em definitivo com a perspectiva segundo  
a qual o Estado é sujeito do qual a sociedade civil-burguesa [bürgerliche Gesellschaft]  
é predicado. Desse modo, abre o caminho para a compreensão do segundo polo dessa  
relação, o qual possui primazia sobre o outro. A vida privada é, na verdade, o sujeito  
*
Mestre em Direito pela UFMG. Bacharel em Direito e em Filosofia pela UFMG. E-mail:  
lucas.maciel@gmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
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Lucas de Oliveira Maciel  
do qual a vida política é predicado.  
Por outro lado, seria necessário esperar a ida do autor a Paris em 1844 até  
que se começassem seus estudos mais detidos em economia política, na qual, diria  
posteriormente (2008, p. 47), encontra-se a anatomia da sociedade civil-burguesa.  
Desse modo, Marx, no referido intervalo, coloca a relação entre Estado e sociedade  
civil-burguesa em termos distintos dos de Hegel e do hegelianismo, uma vez que  
reconheceu a preponderância desta sobre aquele. Ao mesmo tempo, não se vê em  
condições plenas de apreensão das determinações desse objeto que agora constituiria  
seu foco. A sociedade civil-burguesa só seria adequadamente analisada a partir de  
uma crítica da economia política. Esse é o ponto da trajetória intelectual de Marx no  
período em questão, e é isso que se deve levar em conta na análise dos textos  
publicados pelo autor nessa época1.  
O objeto do presente trabalho são artigos redigidos e publicados entre 1843  
e 1844: Sobre a questão judaica e Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a  
reforma social”. De um prussiano. Em ambos, Marx analisa a relação entre Estado e  
sociedade civil-burguesa nos termos ressaltados, ou seja, além de tomar os dois polos  
como lados da mesma moeda, afirma a primazia da sociedade civil-burguesa sobre o  
poder político, o qual se subordina à primeira.  
Os escritos são textos polêmicos, em que o pensador responde a dois neo-  
hegelianos, Bruno Bauer e Arnold Ruge. Localizados na Prússia absolutista, em que  
não ocorreu um revolucionamento da sociedade como na França ou na Inglaterra, os  
dois autores referidos restringem seus horizontes, no que diz respeito às suas posições  
políticas, à instauração do Estado moderno.2  
Marx, por sua vez, possui concepção distinta. Sua crítica, ver-se-á, recai não  
sobre uma forma específica de Estado, ao qual opõe outra, mas sobre o Estado  
enquanto tal. Estado e sociedade civil-burguesa, como dois lados de uma mesma  
relação, devem ser, ambos, suprimidos. No que toca à sua exposição, o autor parte,  
1 O texto empregará a análise imanente, a qual, nos termos de Chasin (2009, p. 25-26), caracteriza-se  
pelo seguinte: “Tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto — a formação ideal em  
sua consistência autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto  
positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais  
lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos  
modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses”.  
2
Sobre a especificidade do desenvolvimento capitalista alemão e de suas consequências políticas, cf.  
LUKÁCS, 2020, p. 37-83. Sobre a relação entre o Estado prussiano e os neo-hegelianos ao longo da  
primeira metade do século XIX, cf. HEINRICH, 2018, 304-342; PALU, 2019, p. 23-37. Sobre as relações  
pessoais e intelectuais de Marx com os dois autores criticados, no período anterior aos textos  
analisados, cf. HEINRICH, 2018, p. 342-365, sobre Bauer; cf. PALU, 2019, p. 90-97, sobre Ruge.  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 103-128 jan.-jun., 2024  
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A questão judaica e as Glosas Críticas  
sempre, da questão colocada pelos pensadores a que responde. No entanto, uma vez  
que estes se limitam à crítica das condições alemães, contra a qual defendem a  
realização plena do Estado político, Marx precisa, em cada caso, remeter de tal crítica  
à crítica ao Estado e à sociedade civil-burguesa como um todo.  
Em Sobre a questão judaica, Marx debate com Bruno Bauer a possibilidade de  
emancipação judaica diante do Estado absolutista prussiano, que impunha limites ao  
exercício de atividades privadas e ao ingresso na esfera pública a quem professasse a  
referida religião (HEINRICH, 2018, p. 58). Bauer (2016, p. 106) afirma que a  
reivindicação judaica por cidadania é incompatível com a religião, uma vez que as  
exigências da vida religiosa entrariam em conflito com as demandas da vida do  
cidadão. O autor reivindica a instauração do Estado moderno, mas acredita que isso  
só é possível com a supressão da religião, incompatível com a cidadania moderna, e,  
desse modo, um obstáculo a ser removido.  
Nas Glosas, Marx debate com Arnold Ruge a revolta tecelã ocorrida na Silésia,  
duramente esmagada pela monarquia prussiana. O neo-hegeliano atribui ao caráter  
atrasado, não político, do Estado prussiano, a insensibilidade com a miséria dos  
trabalhadores, questão que, em virtude de seu caráter universal, só se resolveria por  
meio do Estado moderno (RUGE apud MARX, 2010a, p. 29).  
Nos dois casos, identifica-se dada contradição social, a qual se busca solucionar  
pela via política. Marx procura mostrar a seus interlocutores o caráter não resolutivo  
de tal caminho. Não bastaria, pois, a realização do Estado moderno e da plenitude da  
política, mas a supressão do Estado e da política. Este, porém, só existe em relação  
com a sociedade civil-burguesa, sua base, a qual, por conseguinte, também se deve  
suprimir.  
A caracterização do Estado por Marx entre 1843 e 1844 se dá em momento  
em que seus estudos econômicos ainda estão bastante incipientes. Não obstante, sua  
crítica à política e ao direito são indissociáveis de suas reflexões sobre a sociedade  
civil-burguesa. Ainda que o autor não adentre as determinações desta com o grau de  
sofisticação com que o faria nos anos e décadas seguintes, ele reconhece a  
necessidade de desvelar seus traços fundamentais, sem o que não se pode realizar a  
crítica do Estado e do direito, esferas intimamente conectadas com a primeira.  
O intuito do presente trabalho é, pois, mostrar não só como Marx aponta a  
insuficiência do Estado político na resolução de conflitos sociais, mas como a crítica a  
este, bem como ao direito moderno, remete à crítica da sociedade civil-burguesa.  
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Ainda que, como adiantado, o pensador não esteja em condições de apreender  
adequadamente a anatomia desta, não obstante, ele dá os primeiros passos no sentido  
de adentrar suas determinações. A crítica marxiana ao Estado e ao direito só faz  
sentido diante de sua crítica à sociedade civil-burguesa, a qual se torna, após o período  
em questão, foco de suas preocupações, o que o leva à crítica da economia política.  
O texto se divide em quatro seções: na primeira, trata-se da elucidação de  
caráter mais geral relativa à emancipação política, ou seja, que esta consiste em uma  
separação entre Estado e sociedade civil-burguesa, a partir do que Marx insere o  
debate em termos propriamente políticos, e coloca em questão não uma forma  
específica de Estado, mas este enquanto tal; na segunda, analisa-se o caráter  
subordinado do Estado diante da vida privada, sua base real, à qual, assim como o  
direito, submete-se, e a partir do que se esclarece a primazia da sociedade civil-  
burguesa e a necessidade de apreender suas determinações; na terceira, averígua-se  
como Marx caracteriza a sociedade civil-burguesa no período em questão, e quais os  
avanços teóricos e limites de suas reflexões em tal ponto; por fim, trata-se do processo  
que o pensador enxerga como realmente resolutivo das contradições sociais, a  
emancipação humana, que exige não só a supressão do Estado, mas também de sua  
base, a sociedade civil-burguesa, a partir do que se engendra o socialismo.  
Uma última observação, de cunho, digamos, metodológico: os textos ora  
analisados se encontram em período da trajetória intelectual de Marx denominada, por  
autores variados (cf. ALTHUSSER, 2015; DRAPER, 2011; FREDERICO, 2009; LÖWY,  
2012), como a do “jovem Marx”, que se contraporia, de um modo ou de outro, à sua  
obra posterior, a qual romperia, de modo brusco, com suas posições anteriores. Para  
os fins do presente trabalho, basta afirmar, como premissa, que não nos filiamos a tais  
vertentes. Aproximamo-nos, antes, de José Chasin (2009, p. 57), segundo o qual, a  
partir de 1843, Marx desenvolve uma nova posição ontológica com a qual não rompe,  
ainda que sua obra posterior possua não só continuidades, mas também  
descontinuidades, naturais a qualquer pensamento em desenvolvimento.  
Emancipação política  
A crítica marxiana tem por ponto de partida a posição de autores que creem na  
possibilidade de que o Estado moderno resolva contradições sociais. Começar-se-á  
pela resposta a Bruno Bauer, e ver-se-á como Marx remete ao solo político debate  
inicialmente teológico, com o que desvela a relação entre Estado e sociedade civil-  
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burguesa.  
Em Sobre a questão judaica, Bauer afirma que a emancipação judaica, em  
termos de aquisição de cidadania, requer a supressão do judaísmo e da religião em  
geral, em virtude da incompatibilidade entre os deveres do indivíduo religioso e do  
cidadão. O autor de O capital coloca a questão em outros termos, pois defende que  
se deve sair do terreno teológico e adentrar o terreno político, ou, nos termos da  
famosa Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução, deve-se converter “a crítica  
da teologia [...] na crítica da política” (MARX, 2013b, p. 152). Não basta investigar a  
relação entre um Estado cristão e a religião judaica, pois o comportamento de um em  
relação ao outro é ainda teológico. Interessa, na verdade, a relação do Estado político  
com a religião (MARX, 2010b, p. 37), ou, como se verá a seguir, com o indivíduo  
privado em geral.  
A escolha terminológica não é por acaso. Fala-se no “Estado político pleno”  
(MARX, 2010, p. 40), que “se comporta como Estado, isto é, politicamente, para com  
a religião” (MARX, 2010b, p. 37). A política como esfera de existência do ser social se  
conforma em seu maior grau de desenvoltura com o Estado moderno, que se liberta  
das amarras da particularidade de âmbitos como a religião, a família e a propriedade  
privada (MARX, 2010, p. 39-40). Ele passa a se comportar propriamente “como  
Estado” (MARX, 2010b, p. 37), e é esse comportamento que deve ser investigado.  
Note-se, pois, que a crítica marxiana recai não sobre uma ou outra forma de Estado,  
mas sobre o “Estado como tal” (MARX, 2010b, p. 36). Ainda, o pensador associa a  
esfera política como um todo ao desenvolvimento estatal, de modo que o Estado que  
age enquanto tal diante da religião é o Estado em que a política se desvela de modo  
pleno. A plenitude da política se conforma pela via estatal.  
O processo acima descrito, qual seja, de libertação do Estado das esferas  
particulares da religião, da propriedade, da família, entre outras, é denominado por  
Marx (2010b, p. 36) emancipação política3, e é desse tipo de emancipação que trata  
a questão judaica. Ela se caracteriza não pela supressão da religião, como postula  
Bauer, mas por sua separação de tal esfera, realocada para o âmbito privado. A religião  
não desaparece, mas ela própria se liberta da atuação política, e passa a se comportar  
somente como religião. Como adiantado, o mesmo vale para outras esferas da vida  
humana, como propriedade e família, que se tornam todas assunto privado, e podem,  
3 A emancipação política se distingue da emancipação humana, que será tratada adiante.  
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desse modo, comportar-se de modo independente do Estado. A emancipação política:  
não só não leva à anulação da propriedade privada, mas até mesmo  
a pressupõe [Dennoch ist mit der politischen Annullation des  
Privateigentums das Privateigentum nicht nur nicht aufgehoben,  
sondern sogar vorausgesetzt]. [...] o Estado permite que a propriedade  
privada, a formação, a atividade laboral atuem à maneira delas, isto é,  
como propriedade privada, como formação, como atividade laboral, e  
tornem efetiva a sua essência particular. Longe de anular essas  
diferenças fáticas, ele existe tão somente sob o pressuposto delas, ele  
só se percebe como Estado político e a sua universalidade só se torna  
efetiva em oposição a esses elementos próprios dele (MARX, 2010b,  
p. 39-40).  
O que caracteriza, pois, a emancipação política é a separação entre público e  
privado, ou entre o Estado, de um lado, e os elementos da vida privada, de outro, que  
se tornam, um diante do outro, autônomos. Não se trata de acidente de percurso: a  
universalidade do Estado só é possível uma vez que ele se eleva acima dos elementos  
da vida particular, a qual, por sua vez, só se move livremente assim que se dá essa  
separação.  
A oposição entre universal e particular própria da emancipação política se  
coloca em termos de uma “divisão entre o Estado político e a sociedade [civil-]  
burguesa” (MARX, 2010b, p. 40). A esfera da vida privada é, desse modo, a da  
sociedade civil-burguesa, expressão que, como o autor indicaria na década seguinte  
(MARX, 2008, p. 47), fora empregada por Hegel e pelos economistas do século XVIII.  
No texto ora em análise, ela indica a contraparte do Estado político. Se este representa  
a libertação da política diante da vida particular, a sociedade civil-burguesa representa  
o oposto, ou seja, o livre movimento dos elementos da vida privada diante do Estado.  
Trata-se, desse modo, de dois lados de uma mesma moeda: a sociedade civil-burguesa  
pressupõe a elevação, acima de si, do Estado político, o qual, por sua vez, é  
condicionado pela particularidade acima da qual se caracteriza como âmbito universal.  
Estado e sociedade civil-burguesa são, pois, indissociáveis, e a crítica marxiana não  
pode recair sobre um sem, ao mesmo tempo, recair sobre o outro.  
O autor aprofunda sua caracterização da referida oposição quando afirma: “o  
Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em  
oposição à sua vida material” (MARX, 2010b, p. 40). A separação entre Estado e  
sociedade civil-burguesa implica uma cisão na própria existência humana, em que vida  
em comunidade se opõe à vida particular. O Estado representa a primeira, na forma  
do gênero humano elevado acima da vida privada, e a sociedade civil-burguesa, a  
segunda, na forma dos interesses materiais dissociados de qualquer preocupação com  
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a comunidade.  
A essa cisão corresponde a distinção entre bourgeois e citoyen, caracterizados  
por Marx (2010b, p. 41) como a ocorrência de uma “vida dupla”. O primeiro  
corresponde à existência na sociedade civil-burguesa, voltada, pois, à particularidade,  
e o segundo, à vida política no seio do Estado. Ambos são dois lados da existência  
humana, que, com a emancipação política, divide-se nessas duas figuras, que cada  
indivíduo incorpora.  
O autor ressalta, porém, a relação variada do ser humano com as duas facetas  
de sua vida: o bourgeois, mais próximo da concretude da vida cotidiana, parece mais  
verdadeiro que o citoyen, restrito à abstração que é a vida política:  
Na sua realidade mais imediata, na sociedade [civil-] burguesa, o  
homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para  
outros um indivíduo real, ele é um fenômeno inverídico. No Estado,  
em contrapartida, no qual o homem equivale a um ente genérico, ele  
é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado  
de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal  
(MARX, 2010b, p. 40-41).  
A vida comunitária se mostra, pois, como universalidade irreal, pois que distante  
dos anseios mais concretos de cada indivíduo. O citoyen se conforma como indivíduo  
“abstraído, artificial” (MARX, 2010b, p. 53), oposto ao real e palpável bourgeois.  
Marx (2010b, p. 43) afirma que é a essa relação que “acaba se reduzindo toda  
a questão judaica”. O judeu não é senão uma das várias figuras que caracterizam a  
vida particular, e, pois, o bourgeois. O essencial não é a religião, mas a sociedade civil-  
burguesa como um todo, composta de diversas esferas que se tornaram autônomas  
diante do Estado e que passaram não só a se mover livremente, mas a fazerem-no  
como esfera da vida humana voltada aos interesses concretos dos indivíduos opostos  
à sua vida comunitária, que se tornou âmbito abstrato e ilusório. Ressalta-se, pois, que  
o autor vê como necessário remeter para além da crítica teológica, para que se possa  
entender a questão tal como ela de fato é, ou seja, como algo que diz respeito à  
relação entre Estado e sociedade civil-burguesa a partir da emancipação política. O  
pensador resume o ponto do seguinte modo:  
o bourgeois, como o judeu, só permanece na vida do Estado mediante  
um sofisma, assim como o citoyen [cidadão] só permanece judeu ou  
bourgeois sofismando; mas essa sofística não é pessoal. É a sofística  
do próprio Estado político. A diferença entre o homem religioso e o  
cidadão é a diferença entre o mercador e o cidadão, entre o diarista e  
o cidadão, entre o proprietário de terras e o cidadão, entre o indivíduo  
vivo e o cidadão. A contradição que se interpõe entre o homem  
religioso e o homem político é a mesma que existe entre o bourgeois  
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e o citoyen, entre o membro da sociedade [civil-] burguesa e sua pele  
de leão política (MARX, 2010b, p. 41).  
O essencial para se compreender a questão judaica é, pois, a relação entre Estado  
e sociedade civil-burguesa. O processo em questão é o de autonomização e oposição  
entre as duas esferas. Isso implica a distinção entre bourgeois e citoyen, que revelam  
a cisão da vida humana em, de um lado, existência particular concreta, determinada,  
e, de outro, vida comunitária abstrata e ilusória. A seguir, ver-se-á que isso tem por  
consequência a subordinação de uma à outra.  
O Estado como “organização da sociedade”  
As figuras do bourgeois e do citoyen desvelam não só a oposição entre vida  
pública e vida privada, mas também que estas se relacionam de modo subordinado  
uma com a outra. Verificar-se-á em que consiste essa submissão, e quais as  
consequências políticas e jurídicas desta.  
A relação entre bourgeois e citoyen traz consigo a subordinação do segundo  
ao primeiro. Dada a maior concretude deste, e o caráter abstrato e ilusório daquele, o  
Estado se vê reduzido a esfera de conservação da vida privada. Por ser mais concreta,  
esta é tida pela vida humana real, da qual a vida comunitária se torna mero  
instrumento:  
Ela [a emancipação política,] encara a sociedade [civil-] burguesa, o  
mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do  
direito privado, como o fundamento de sua subsistência, como um  
pressuposto sem qualquer fundamentação adicional, e, em  
consequência, como sua base natural. (MARX, 2010b, p. 53).  
A sociedade civil-burguesa, em sua autonomia diante do Estado, é, ao mesmo  
tempo, seu fundamento. Ele responde a ela, a qual, enquanto âmbito dos interesses  
humanos materiais, torna legítima sua reivindicação de submeter a si a vida política.  
Esta, por sua vez, ainda que seja expressão da vida humana em comunidade, uma vez  
que se encontra em oposição aos interesses individuais concretos, torna-se âmbito  
aparentemente despido de conteúdo, que existe, pois, somente para a conservação da  
sociedade civil-burguesa.  
O tema retorna nas Glosas (2010a), em que a discussão se coloca nos seguintes  
termos: o Estado politicamente emancipado é incapaz de solucionar mazelas inerentes  
à sociedade civil-burguesa, como é o caso do pauperismo, pois esta é base do poder  
político. Trata-se de resposta a Arnold Ruge, para o qual o universalismo do Estado é  
o que se requer para o tratamento adequado das anomalias sociais. Segundo Marx, o  
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caráter universal do poder político é somente a contraparte da particularidade própria  
da sociedade civil-burguesa, base real do Estado. Se a miséria é inerente a esta, o  
poder público é incapaz de solucionar a questão.  
Enfatiza-se, pois, o caráter subordinado do público ao privado, e a isso se  
acrescenta a impotência do primeiro diante do segundo. Uma vez que o Estado tem  
por fim a manutenção da vida do bourgeois, é ele também incapaz de intervir de modo  
resolutivo diante de traço inerente a essa existência.  
Nesse sentido, Marx afirma: “Do ponto de vista político, Estado e organização  
da sociedade não são duas coisas distintas. O Estado é a organização da sociedade”  
(2010a, p. 38). O Estado se relaciona com a sociedade civil-burguesa como sua  
organização. Desse modo, um é indissociável do outro, ao mesmo tempo que o  
primeiro se submete às necessidades do segundo.  
Dada tal relação, a possibilidade de atuação do poder público diante da miséria  
presente na sociedade civil-burguesa se limita:  
Na medida em que o Estado admite a existência de anomalias sociais,  
ele procura situálas no âmbito das leis da natureza, que não recebem  
ordens do governo humano, ou no âmbito da vida privada, que é  
independente dele, ou ainda no âmbito da impropriedade da  
administração, que é dependente dele (MARX, 2010a, p. 38).  
As mazelas sociais são elementos próprios da sociedade civil-burguesa, sobre  
a qual se ergue o Estado. Este, por sua vez, identifica o pauperismo como um problema  
a solucionar. Porém, porque se encontra subordinado à esfera privada, o poder público  
a reconhece, necessariamente, como dado sobre a qual atua, e que é incapaz de  
colocar em questão. Desse modo, a miséria é tomada não como o que é, figura inerente  
a uma forma específica de sociedade, mas, das duas, uma: lei natural, em relação à  
qual nada se pode fazer, ou objeto de gestão administrativa, que se pode solucionar  
a partir de uma ou outra medida política. Chasin (2013a, p. 56) denomina a reflexão  
marxiana, nesse ponto, “crítica da razão política”, uma vez que expõe os limites de um  
tipo de entendimento que considera inquestionável a existência da sociedade civil-  
burguesa, e que sempre a toma como premissa de sua atuação.  
Se o Estado afirma a possibilidade de resolução da miséria pela via  
administrativa, ele pode tomar medidas de assistência social. Marx toma a Lei dos  
Pobres inglesa como exemplo:  
A atual legislação inglesa referente aos pobres data da lei constante  
do Ato nº 43 do governo de Elizabeth. Em que consistem os meios  
de que dispõe essa legislação? Na obrigação das paróquias de prover  
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auxílio aos seus trabalhadores pobres, no imposto para os pobres, na  
beneficência legal4. (2010a, p. 33)  
Em primeiro momento, a Inglaterra procura, pois, auxiliar seus pobres por meio  
das paróquias e de impostos voltados para sua assistência. Após dois séculos, as  
medidas não mostram eficácia, e se chega ao ponto em que o pauperismo se torna  
instituição nacional” (MARX, 2010a, p. 35).  
Se o Estado, porém, afirma o caráter natural da miséria, então pode postular lei  
“segundo a qual a população constante e obrigatoriamente extrapola os meios de  
subsistência” (MARX, 2010a, p. 38). O exemplo, nesse ponto, é a adoção, por parte  
do poder público inglês, das ideias de Thomas Malthus, após o fracasso da Lei dos  
Pobres. Com isso, o pauperismo se funda em traço inevitável da natureza das  
sociedades, e o Estado nada pode fazer quanto à questão, ou melhor, pode considerar  
“que o pauperismo seria a miséria infligida a si mesmo pelo trabalhador, não devendo,  
em consequência, ser prevenido como um infortúnio, mas reprimido e punido como  
um crime” (MARX, 2010a, p. 34). Na Inglaterra surgem as workhouses, e o tratamento  
da miséria se torna questão policial.  
Em ambos os casos, revelam-se os limites da atuação política. O pauperismo é  
tomado por objeto de gestão administrativa, com o que sua base real, a sociedade  
civil-burguesa, permanece intocada. Uma vez que a esta é inerente a miséria, o Estado  
se vê limitado no tocante à questão. Subordinado à vida privada, é incapaz de colocá-  
la em xeque, e o entendimento político se restringe a medidas administrativas, ora  
beneficentes, ora repressivas, mas jamais resolutivas.  
Tal tipo de atuação é inevitável, pois:  
O Estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa  
vontade da administração, por um lado, e seus meios e sua  
capacidade, por outro, sem suprimir a si próprio, pois ele está baseado  
nessa contradição. Ele está baseado na contradição entre a vida  
pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e  
os interesses particulares (MARX, 2010a, p. 39).  
A impotência do Estado diante da sociedade civil-burguesa se explica, pois,  
pelo caráter subordinado do primeiro à segunda. Independentemente das boas  
intenções deste ou daquele que porventura se encontre em posição de poder, a vida  
4 O Ato dos Pobres é analisado, antes de Marx, por Adam Smith (2016, p. 174), que o vê como limitado  
porque obstrui a livre circulação de trabalho, uma vez que dificulta a aquisição de domicílio por parte  
dos pobres. Os problemas de tal legislação: “Consistem na dificuldade que o homem pobre encontra  
para se instalar, ou mesmo para obter a permissão para exercer seu ofício numa outra paróquia que  
não aquela a que pertence”.  
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pública é incapaz de suprimir algo inerente à vida privada, pois aquela tem esta por  
base. O Estado não pode suprimir as condições de sua própria existência, portanto,  
não pode eliminar elemento próprio a seu fundamento, a sociedade civil-burguesa.  
Subordinação implica impotência (nesse sentido, cf. MUSETTI, 2014, p. 60-61;  
ENDERLE, 2000, p. 76).  
É a partir do caráter submisso do Estado que se compreendem, ainda, além de  
sua impotência diante da sociedade civil-burguesa, os direitos humanos. Em Sobre a  
questão judaica, o pensador trata da questão a partir da Constituição francesa de  
1793, que considera a mais avançada. Os assim chamados direitos do homme se  
tornam objeto de seu escrutínio, e o autor é explícito quando afirma que tais direitos  
não são senão direitos do bourgeois, do indivíduo egoísta desconectado da vida  
comunitária (MARX, 2010b, p. 48). Tais direitos estão, pois, intimamente conectados  
com a emancipação política, e sancionam a distinção entre Estado e sociedade civil-  
burguesa.  
Os direitos humanos são quatro: liberdade, igualdade, propriedade e  
segurança. O pensador analisa todos, a começar pela liberdade:  
A liberdade equivale, portanto, ao direito de fazer e promover tudo  
que não prejudique a nenhum outro homem. O limite dentro do qual  
cada um pode moverse de modo a não prejudicar o outro é  
determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre dois terrenos  
é determinado pelo poste da cerca. Tratase da liberdade do homem  
como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (MARX, 2010b,  
p. 49).  
A liberdade é tomada em termos individuais. É livre quem atua sem interferência  
alheia, e sem prejudicar os demais. Trata-se, pois, de uma liberdade no isolamento, em  
que não se é livre com os outros, mas contra eles. Diz Marx: “[...] o direito humano à  
liberdade não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao  
contrário, na separação entre um homem e outro. Tratase do direito a essa separação,  
o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo” (MARX, 2010b, p. 49). A  
liberdade é, pois, o agir individual desconectado de qualquer referência à vida  
comunitária.  
A igualdade é descrita do seguinte modo: “A égalité, aqui em seu significado  
não político, nada mais é que igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada  
homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesma” (MARX,  
2010b, p. 49). Assim como a liberdade é a atuação do indivíduo isolado, a igualdade  
é a consideração de cada indivíduo como indivíduo isolado, desvinculado dos demais.  
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Se cada sujeito é livre porque age como mônada fechada em si mesma, cada um é  
igual ao outro porque todos são igualmente atomizados.  
O terceiro direito:  
O direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de  
desfrutar a seu bel prazer (à son gré), sem levar outros em  
consideração, independentemente da sociedade, de seu patrimônio e  
dispor sobre ele, é o direito ao proveito próprio. Aquela liberdade  
individual junto com esta sua aplicação prática compõem a base da  
sociedade [civil-] burguesa. Ela faz com que cada homem veja no outro  
homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua  
liberdade (MARX, 2010b, p. 49).  
Uma vez mais, trata-se de direito que se exerce não com os demais, mas contra  
eles. Marx o associa explicitamente à liberdade, uma vez que se trata do livre gozo e  
disposição dos próprios bens. O outro é, uma vez mais, o limite do direito, pois  
qualquer intervenção de sua parte sobre a propriedade alheia configura violação legal.  
Por fim, a segurança: “a segurança é o conceito social supremo da sociedade  
[civil-] burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só  
existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus  
direitos e de sua propriedade” (MARX, 2010b, p. 50). Trata-se, desse modo, da  
asseguração dos demais direitos, que requerem coerção estatal para sua manutenção.  
Explicita-se, novamente, a subordinação do Estado à vida privada, o qual existe  
somente para a garantia do livre exercício dos direitos do indivíduo egoísta  
desconectado dos demais e contra eles. Em relação ao bourgeois, pois: “a segurança  
é [...] a asseguração do seu egoísmo” (MARX, 2010b, p. 50).  
Os direitos do homme, portanto, remetem à relação entre Estado e sociedade  
civil-burguesa, e dizem respeito à conservação da existência do bourgeois, levada a  
cabo pelo poder público. Tais direitos sancionam não só a oposição própria da  
emancipação política, mas também a relação de subordinação que desta advém. Eles  
confirmam que o único papel da esfera de exercício da vida comunitária é a  
manutenção das condições de existência do indivíduo isolado. Dada a maior  
concretude deste, nada mais natural que o Estado, âmbito abstrato e ilusório, seja  
chamado a nada fazer além de conservar a vida humana tida por real. Marx resume o  
processo:  
Portanto, nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende  
o homem egoísta, o homem como membro da sociedade [civil-]  
burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado  
e ao seu capricho privado e separado da comunidade. [...] esses  
direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes  
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A questão judaica e as Glosas Críticas  
como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua  
autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural,  
a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e  
de sua pessoa egoísta. (2010b, p. 50)  
A relação entre Estado e sociedade civil-burguesa só se compreende, pois,  
quando se aponta que o primeiro se subordina à segunda. O poder político existe  
somente para a conservação da vida do indivíduo privado, e, diante de anomalias  
sociais, é impotente, pois que estas são inerentes à referida sociedade. Os direitos  
humanos não dizem respeito senão à manutenção da existência do bourgeois, cuja  
vida egoísta deve ser protegida pela coerção estatal. Marx reconhece, com isso, a  
importância de se adentrar a sociedade civil-burguesa e suas determinações, o que  
busca fazer, mesmo que de modo limitado, ainda nos textos em análise.  
A sociedade civil-burguesa: dinheiro e estranhamento  
Dada sua primazia sobre assuntos políticos, o interesse de Marx recai sobre a  
sociedade civil-burguesa. Interessa-lhe não somente o Estado, mas aquilo sobre o qual  
ele repousa e a que ele obedece. Não por acaso, ainda em Sobre a questão judaica, o  
autor adentra, ainda que de modo insuficiente, as determinações dessa sociedade. Não  
obstante, sua investigação sobre o Estado o levou à relação entre este e a sociedade  
civil-burguesa, e o pensador nota que se trata de tomar esta por foco.  
Não se trata, como afirma Althusser (2015, p. 43), de fazer uma leitura  
teleológica da obra marxiana, que procura em seu início os elementos de seu final,  
mas de compreender o teor do percurso de Marx, entender quais questões o guiaram  
e a que suas investigações e reflexões o levaram. Nos textos da virada de 1843-44, o  
pensador alemão se posiciona sobre questões religiosas e políticas, as quais, porém,  
conduzem-no ao que se apontou: a relação entre Estado e religião o levou à  
emancipação política, a qual, por sua vez, abriu o caminho para a investigação entre  
Estado e sociedade civil-burguesa, e para a constatação da primazia desta sobre  
aquele. De tal ponto em diante, torna-se necessária a compreensão das determinações  
da sociedade civil-burguesa, cuja anatomia, o autor diria posteriormente, encontra-se  
na economia política (MARX, 2008, p. 47).  
Na polêmica com Bauer, como adiantado, Marx trata de alguns dos traços da  
sociedade civil-burguesa, e o faz, como antes, diante de debate teológico para além  
do qual remete. Ainda sobre a emancipação judaica, o neo-hegeliano discute qual  
religião, se o judaísmo ou o cristianismo, é mais apta a se emancipar. Trata-se,  
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evidentemente, da emancipação política, a qual, segundo Bauer, envolve a supressão  
da religião. A pergunta colocada é, pois, qual religião é mais capaz de abolir a si  
mesma para que se possa engendrar o cidadão. Marx afirma, sobre tal modo de  
proceder: “[...] era de se esperar que a emancipação dos judeus fosse transformar-se  
também em um ato teológico-filosófico” (2010b, p. 55). Ao neo-hegeliano interessa  
investigar a essência religiosa a partir de si mesma, ou seja, de, mediante análise das  
teologias judaica e cristã, verificar qual religião, em virtude de seus preceitos, é mais  
apta a se emancipar.  
Bauer toma a emancipação como questão teórica, que se resolve pela leitura  
de textos filosóficos e teológicos. Para o neo-hegeliano, a emancipação política  
consiste na investigação da relação de cada religião com a universalidade própria do  
cidadão. Este, como visto, surge de sua separação dos elementos particulares da vida  
civil-burguesa. Ele se eleva acima destes e se integra à esfera dos interesses universais  
própria do Estado político. O judaísmo é pouco apto a esse movimento, pois consistiria  
no apego à localidade: “para o judeu, somente outro judeu é seu irmão e vizinho, e  
todas as outras nações aparecem a ele, e precisam aparecer a ele, de acordo com a  
Lei, como fora da lei e sem justificação” (BAUER, s/d, p. 34, tradução nossa5). O  
cristianismo, por sua vez, “cancela a crença em qualquer nacionalidade [...]; ele se  
rebela contra toda condição estatal e nacional” (BAUER, s/d, p. 49, tradução nossa6).  
Ele, pois, relaciona-se de modo mais harmonioso com aquilo que é próprio da  
cidadania, a universalidade, e é, pois, mais apto a se emancipar.  
Marx procede do mesmo modo que antes: a questão deve ser retirada do  
âmbito teológico e remetida a seu solo social. O fundamental não é, desse modo, a  
investigação dos meandros das teologias cristã e judaica, as quais, por sua vez,  
forneceriam a resposta para o problema da emancipação. De maneira diversa, cabe  
penetrar a base a partir da qual se é possível explicar a existência real de judaísmo e  
cristianismo. Como visto, a emancipação política aloca a religião para a esfera da vida  
privada, oposta à vida comunitária representada pelo Estado. A existência religiosa  
real é, pois, indissociável do bourgeois, figura própria da individualidade que vigora  
na sociedade civil-burguesa. O sujeito atomizado, cujo interesse particular se opõe ao  
5
“To the Jew only another Jew is his brother and neighbor, and all other nations appear to him, and  
must appear to him according to the Law, as outside the law and without justification” (BAUER, s/d, p.  
34).  
6 “[...] cancels the belief in any nationality [...]; it rebels against all state and national conditions” (BAUER,  
s/d, p. 49).  
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da comunidade, fornece a chave para a compreensão do fundamento sobre o qual se  
assenta a religião.  
Nesses termos, o autor começa a caracterização dos elementos da sociedade  
civil-burguesa a partir dos quais se explica a religião. Ele afirma: “qual é o fundamento  
secular do judaísmo? A necessidade prática, o interesse próprio. Qual é o culto secular  
do judeu? O negócio. Qual é o seu deus secular? O dinheiro” (MARX, 2010b, p. 56).  
Tais elementos não se elucidam somente a partir da exegese dos escritos sagrados da  
tradição judaica, mas remetem também à sociedade que engendra e torna possível tal  
existência do judeu. Nesse sentido, só é lícito relacionar o interesse próprio ao  
judaísmo porque se trata de um dos princípios que rege a sociedade civil-burguesa,  
marcada pela oposição entre interesses particulares e interesses gerais, com o que o  
interesse do indivíduo se torna a vontade egoísta de um sujeito isolado dos demais  
(cf. MACIEL, 2021, p. 59).  
Note-se, ainda, que o pensador inicia a busca pelas determinações da sociedade  
civil-burguesa, uma vez que menciona o dinheiro como um de seus traços. Afirma:  
O judeu se emancipou à maneira judaica, não só por ter se apropriado  
do poder financeiro, mas porque, com ou sem ele, o dinheiro assumiu  
o poder sobre o mundo e o espírito prático do judeu se tornou o  
espírito prático dos povos cristãos. Os judeus se emanciparam na  
mesma proporção em que os cristãos se tornaram judeus (MARX,  
2010b, p. 56).  
O dinheiro, “com ou sem” o judeu, assumiu o controle da sociedade, e é ele,  
pois, que engendra não só o judeu, mas também o cristão, e, pode-se dizer, a religião  
em geral. Esta não se compreende somente em seus próprios termos, mas inserida em  
dado mundo com o qual se relaciona. No caso, a religião, com a emancipação política,  
torna-se elemento da sociedade civil-burguesa, a qual é governada pelo dinheiro. Este,  
por sua vez, rege a religião em sua existência real.  
Ao tratar do dinheiro, pois, Marx tem em vista retirar a discussão do terreno  
teológico, do qual parte Bauer, e adentrar o terreno político, indissociável da relação  
entre Estado e sociedade civil-burguesa, fruto da emancipação política. Mais  
especificamente, o autor afirma que compreender a religião real exige que se adentrem  
as determinações da vida privada emancipada.  
Não se trata, nesse sentido, de qualquer associação rasa, ou pior, antissemita,  
entre judaísmo e dinheiro. O autor trata daquele porque é o ponto de partida de seu  
adversário, Bruno Bauer, e também porque, como indica Mészáros (2016, p. 33): “em  
seu realismo ‘rude’, o judaísmo reflete de modo muito mais imediato o real estado de  
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coisas [...]”. Porém, o intuito é sempre mostrar que judaísmo e religião não são o  
fundamental para a discussão da questão. Como visto, Marx é claro quando afirma  
que, por trás do judeu, encontra-se o bourgeois, indivíduo privado em geral, oposto  
ao citoyen e à vida humana em comunidade encarnada pelo Estado. Desse modo, tratar  
do dinheiro é contribuir para a caracterização da sociedade civil-burguesa, um dos  
polos da relação própria da emancipação política. Já se colocou que, na oposição entre  
público e privado, a primazia é deste diante daquele, e que a vida comunitária se  
subordina aos imperativos da vida individual, mais concreta e, desse modo, real.  
Compreender o dinheiro, nesse ponto, é adentrar o núcleo da relação que caracteriza  
o mundo moderno.  
Sobre o referido procedimento marxiano, afirma Netto: “[...] ao contrário de  
Bauer, ele, metodologicamente, não pensa o judeu a partir de sua particularidade  
religiosa: pensa a realização de sua particularidade religiosa a partir das condições  
próprias da vida empírica dos indivíduos na sociedade civil [-burguesa]” (2020, p. 73).  
O autor brasileiro, porém, acrescenta que Marx “entende o judaísmo como o espírito  
do capitalismo” (NETTO, 2020, p. 74), no que descreve as reflexões do pensador  
alemão em termos weberianos. De modo semelhante, Mészáros afirma:  
É muito importante enfatizar aqui que a questão em jogo não é  
simplesmente a realidade empírica das comunidades judaicas na  
Europa, mas “o espírito do judaísmo”; isto é, o princípio interno dos  
desenvolvimentos sociais europeus que culminaram na emergência e  
consolidação da sociedade capitalista. “O espírito do judaísmo”, por  
conseguinte, deve ser entendido, em última análise, no sentido de “o  
espírito do capitalismo”. (MÉSZÁROS, 2016, p. 34)  
Por um lado, ambos os autores acertam quando afirmam que o acento da crítica  
marxiana está não no judaísmo, mas na sociedade que este pressupõe. Por outro,  
colocar que o judaísmo é o espírito do capitalismo ofusca a relação com a sociedade  
civil-burguesa que também o cristianismo possui. O foco parece se voltar para o  
judaísmo, o qual, como visto, é somente o ponto de partida de investigação mais ampla  
acerca da relação entre Estado e sociedade civil-burguesa e das determinações desta.  
Sobre a relação entre judaísmo, cristianismo, e emancipação política, Marx  
afirma:  
O judaísmo atinge o seu ponto alto com a realização plena da  
sociedade [civil-]burguesa; mas a sociedade [civil-]burguesa só se  
realiza plenamente no mundo cristão. Somente sob a dominação do  
cristianismo, que torna todas as relações nacionais, naturais, morais e  
teóricas exteriores [äußerlich] ao homem, a sociedade [civil-]burguesa  
foi capaz de separarse completamente da vida do Estado, romper  
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todos os laços que prendiam o homem ao seu gênero, substituir esses  
laços de gênero pelo egoísmo, pela necessidade egocêntrica e  
dissolver o mundo humano em um mundo de indivíduos atomizados,  
que se hostilizam mutuamente (MARX, 2010b, p. 59).  
Cristianismo e judaísmo são dois lados de um mesmo movimento, ligado à  
consolidação da emancipação política e da oposição entre Estado e sociedade que daí  
advém. Por um lado, o localismo próprio da religião judaica faz com que esta se realize  
plenamente uma vez consolidada a sociedade civil-burguesa. Por outro, esta só  
emerge em oposição ao Estado político, com o que se relaciona também com o  
cristianismo, cuja universalidade requer que o gênero humano se separe das demais  
relações sociais. Avessa à particularidade, a religião cristã engendra uma esfera  
universal que retira da vida humana individual qualquer relação com o gênero. Desse  
modo, abre caminho para que a esfera privada se caracterize, como visto, pelo  
interesse mesquinho e egoísta próprio do bourgeois, figura que perdeu o vínculo com  
a vida comunitária.  
Evidentemente, não se trata de afirmar que é a partir do cristianismo que se  
compreende a emancipação política. Tal erro seria equivalente ao de atribuir ao  
judaísmo tal papel. O que ocorre é que ambas as religiões não se explicam por si sós,  
mas a partir de dada base social, aqui colocada pelo processo de separação entre  
Estado e sociedade civil-burguesa, dentro da qual os dois sistemas de fé se inserem.  
Se o localismo do judeu se adequa às relações monetárias, de um lado, o universalismo  
cristão, de outro, é adequado a sociedade em que o comunitário perdeu o vínculo com  
o genérico. O acento se encontra, nos dois casos, na emancipação política, e na  
dominação da vida privada e do dinheiro sobre os interesses gerais.  
Afirmações de cunho weberiano, como a de que o judaísmo seria o espírito do  
capitalismo, não se sustentam, pois, à luz da letra marxiana. Cristianismo e judaísmo  
são dois lados de um mesmo processo. Mészáros, apesar de se pronunciar em tais  
termos, aponta corretamente a relação entre as religiões: “Judaísmo e cristianismo  
expressam as contradições de ‘parcialidade versus universalidade’ [...]: isto é,  
contradições internas do que se tornou conhecido como ‘o espírito do capitalismo’”  
(MÉSZÁROS, 2016, p. 34). Também são adequadas, nesse sentido, as colocações de  
Vieira: “Marx indicou que o dinheiro é o verdadeiro Deus do judeu num sentido prático,  
real, mas que, para além dos judeus, o dinheiro é o Deus dos homens modernos [...].  
A prática dos cristãos também é o culto do dinheiro, tal como o é a prática dos  
modernos em geral” (VIEIRA, 2017, p. 192, 193-194).  
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Cabe ainda, porém, adentrar as determinações do dinheiro, para além da mera  
indicação de sua relação com a sociedade civil-burguesa. Marx, nesse sentido, afirma  
o seguinte:  
O dinheiro é o deus zeloso de Israel, diante do qual não pode subsistir  
nenhum outro. O dinheiro humilha todos os deuses do homem e os  
transforma em mercadoria. O dinheiro é o valor universal de todas as  
coisas, constituído em função de si mesmo. Em consequência, ele  
despojou o mundo inteiro, tanto o mundo humano quanto a natureza,  
de seu valor singular e próprio. O dinheiro é a essência do trabalho e  
da existência humanos, alienada [entfremdete] do homem; essa  
essência estranha [fremde Wesen] a ele o domina e ele a cultua.  
(MARX, 2010b, p. 58)  
O dinheiro é descrito como essência alienada, ou estranhada, do ser humano7.  
Ele se caracteriza pela permutabilidade universal, ou seja, por sua capacidade de  
adquirir todos os produtos do trabalho humano, e, em virtude disso, estranha do ser  
humano sua própria existência. Tudo que os indivíduos produzem pode ser trocado  
por dinheiro, e, desse modo, toda a existência humana pode adquirir forma monetária.  
Esta, porém, não se confunde com os próprios objetos do trabalho, ainda que se possa  
converter neles. O dinheiro é, pois, algo distinto do ser humano, que, entretanto,  
condensa sua vida.  
O tema, ainda que presente em Sobre a questão judaica, é mais bem  
desenvolvido nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004), redigidos em 1844, após  
a publicação dos Anais franco-alemães. Não obstante, algumas das determinações do  
estranhamento já são descritas no texto ora em análise, e adiantam pontos  
desenvolvidos somente posteriormente pelo pensador.  
Marx diz que o dinheiro transforma todos os deuses em mercadoria. Ainda que  
suas reflexões sobre esta sejam, no período em questão, ainda incipientes, já se  
ressalta o caráter generalizado da troca mercantil, o que se nota pela afirmação de  
que todo o produto do trabalho humano pode se tornar mercadoria. O dinheiro não  
poderia ser a essência do trabalho humano se os produtos deste não pudessem, todos,  
converter-se em dinheiro, o que, por sua vez, quer dizer que a produção humana se  
tornou produção mercantil. O autor nota, pois, o caráter generalizado da troca de  
mercadorias, e, por conseguinte, o caráter alienado do dinheiro.  
Ressalte-se a relação estreita entre tal caracterização do dinheiro e o direito à  
7
Não se diferenciará, aqui, alienação de estranhamento. Ambas as expressões serão utilizadas como  
sinônimos de Entfremdung, o que vale para o substantivo, bem como para verbos e adjetivos que a ele  
remetam.  
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propriedade (cf. MACIEL, 2021, p. 67). Este se define pela possibilidade de dispor dos  
próprios bens como bem se entender, o que não consiste senão na faculdade de  
comprar e vender. O direito pressupõe o bourgeois, o indivíduo egoísta, o que é dizer  
que ele tem por base a sociedade civil-burguesa e suas determinações. Vê-se agora  
que esta é o reino do dinheiro e da troca mercantil, sem a qual não se pode falar em  
livre disposição dos próprios bens, e, assim, em direito à propriedade.8  
Como encarnação estranhada do trabalho humano, o dinheiro se torna fim em  
si mesmo. Em virtude de sua permutabilidade universal, não é necessário desejar este  
ou aquele objeto de consumo. Basta perseguir o dinheiro, o qual se pode trocar por  
qualquer coisa que se queira. Como alienação da existência humana, ele se torna aquilo  
pelo qual o ser humano vive e trabalha.9  
Cabe ressaltar, ainda, que Marx afirma que o dinheiro despoja tanto os objetos  
produzidos pelo ser humano quanto os da natureza de seus valores próprios. Tal  
apontamento deve ser compreendido nos termos do culto ao dinheiro, já descrito, ou  
seja, no fato de que o dinheiro, como encarnação alienada da vida humana, torna-se  
fim em si mesmo. Entretanto, a colocação da questão em termos de valor mostra a  
incipiência dos estudos econômicos de Marx, uma vez que tal palavra, no contexto da  
economia política e de sua crítica, adquire sentido distinto, não aplicável à discussão  
em questão.  
Nos termos de O capital, qualquer sociedade, independentemente “de todas as  
formas sociais” (MARX, 2017, p. 120), requer trabalho útil, que produz valores de uso,  
ou seja, que produz algo que “por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades  
humanas de um tipo qualquer” (MARX, 2017, p. 113). Sob condições capitalistas, em  
8
Em O capital (2017, p. 250-251), Marx relaciona, explicitamente, a troca mercantil aos direitos  
humanos: “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e  
venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino  
da liberdade, da igualdade, da propriedade, e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e  
vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-  
arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado,  
em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se  
relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadoria e trocam equivalente por  
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha  
somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade  
própria, de sua vantagem pessoa, de seus interesses privados”.  
9 Nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004, p. 157), o caráter universal da dominação do dinheiro  
e o seu tornar-se fim em si mesmo são descritos nos seguintes termos: “O dinheiro, na medida em que  
possui o atributo de tudo comprar, na medida em que possui o atributo de se apropriar de todos os  
objetos, é, portanto, o objeto enquanto possessão eminente. A universalidade de seu atributo é a  
onipotência de seu ser; ele vale, por isso, como ser onipotente. ... O dinheiro é o alcoviteiro entre a  
necessidade e o objeto, entre a vida e o meio de vida do homem”.  
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que a riqueza “aparece [erscheint] como uma ‘enorme coleção de mercadorias’” (MARX,  
2017, p. 113), a mercadoria individual, encarnação da produção, possui, além do valor  
de uso, valor, a partir do qual ela pode se trocar por outras mercadorias em dadas  
proporções.  
Não importam aqui os meandros da reflexão marxiana madura. O que se deve  
ressaltar é que em nenhum desses dois sentidos de valor é válido afirmar que o  
dinheiro despoja as coisas de seus valores (cf. MACIEL, 2021, p. 65-66). Por um lado,  
sem valor, o objeto não se troca, e, pois, não se torna dinheiro. Por outro, sem valor  
de uso, a coisa não é útil para ninguém, e não pode ser permutada. Nota-se, pois, que  
Marx, no período em análise, ainda não se expressa nos termos do arcabouço teórico  
que só viria a adquirir com o desenvolvimento de seus estudos econômicos. Nesse  
sentido, diz Netto: “Deixemos claro que, em Para a questão judaica, Marx não tem as  
condições teóricas e políticas para analisar a ‘relação do Estado político com seus  
pressupostos’; tais condições, ele começará a reuni-las no ano seguinte” (NETTO,  
2020, p. 73).  
Portanto, ao remeter da crítica teológica à existência real do judeu, Marx tem  
por foco a vida privada, a qual se conforma nos termos da sociedade civil-burguesa,  
reino da existência separada do Estado político e a ele oposto. O autor vê, então, a  
necessidade de adentrar as determinações dessa sociedade, o que o leva ao dinheiro.  
Este se caracteriza como essência humana estranhada, pois, em virtude de sua  
permutabilidade universal, encarna toda a produção humana, com o que sua aquisição  
se torna finalidade de toda a vida individual.  
Emancipação humana  
A argumentação marxiana é toda no sentido de empreender a crítica ao Estado  
político e à sociedade civil-burguesa, contra concepções que creem na possibilidade  
de que, por meio do primeiro, solucionem-se contradições sociais. Dado o caráter não  
resolutivo da emancipação política, o autor de O capital a ela opõe a emancipação  
humana.  
Esse segundo tipo de emancipação, evidentemente, não envolve a manutenção  
da oposição entre Estado e sociedade civil-burguesa. Pelo contrário, exige sua  
supressão. Marx o descreve da seguinte maneira:  
Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o  
homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e  
se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua  
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vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações  
individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas  
forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em  
consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma  
da força política. (MARX, 2010b, P. 54)  
A emancipação humana consiste na abolição da oposição operada por sua  
contraparte política. Se esta se define pela separação entre vida individual e vida  
comunitária, a tarefa da emancipação humana, é, por sua vez, reatar esses dois polos.  
Desse modo, engendrar-se-ia cenário em que o indivíduo particular já não vive em  
situação atomizada, desconectada de sua relação com os demais. Por conseguinte, ele  
recuperaria sua vida social, que dele se havia separado, e não mais haveria oposição  
entre indivíduo e gênero.  
Como visto, à oposição entre bourgeois e citoyen, ou seja, entre existência  
individual e vida genérica, corresponde a separação entre Estado político e sociedade  
civil-burguesa. Estes, pois, são, também, levados a termo. O Estado só existe como  
encarnação dos interesses gerais separados dos interesses particulares a ele opostos.  
Do mesmo modo, a sociedade civil-burguesa só existe como vida individual  
desconectada da vida comunitária. A recuperação, por parte do indivíduo, de suas  
forças sociais, acarreta, pois, a supressão dessas suas esferas. Nesse sentido,  
compreende-se que as forças sociais já não se separam do homem empírico na forma  
da política. Assim resume Sartori:  
O autor alemão [...] defende uma forma de emancipação que traga  
consigo a superação da oposição entre indivíduo e suas vidas e  
atividade genéricas. Tratar-se ia da emancipação que Marx chamou de  
humana e que consistiria no fato de o indivíduo real, o homem  
individual da vida empírica estar colocado em uma relação de mútuo  
enriquecimento com as suas próprias potências sociais, tornando-se,  
assim, um ser genérico. Isto só seria possível quando as forças sociais  
não se colocassem mais como políticas. (SARTORI, 2020, p. 32)  
Como visto, Marx se refere, ao tratar da emancipação política, ao Estado político  
pleno. A expressão não é casual. O autor vê a conformação de um poder público que  
se autonomiza diante de sua base como a realização plena da política.10 Sua supressão  
implica, portanto, a supressão da própria política enquanto tal. Por isso, ainda, a  
referência à reassunção das forças sociais humanas, que continuam a existir, mas não  
mais se conformam como esfera política. É nesse sentido que Mészáros fala em uma  
“definição predominantemente negativa de política” (MÉSZÁROS, 2015, p. 116) na  
10 Sobre a conformação da esfera política enquanto âmbito estranhado, cf. CHASIN, 2013b.  
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obra de Marx, e Chasin (2013a), em uma determinação ontonegativa da politicidade.  
O caráter ontonegativo de tal esfera, na obra do autor alemão, decorre do fato de que  
este “exclui o atributo da política da essência do ser social, só o admitindo como  
extrínseco e contingente ao mesmo, isto é, na condição de historicamente  
circunstancial” (CHASIN, 2009, p. 64). A política não seria, pois, inerente à existência  
humana, mas acidente do qual o ser social pode se libertar. Enquanto força separada  
do indivíduo particular e a ele oposta, a política deixa de encarnar a vida comunitária  
assim que esta é recuperada pelo homem empírico. Marx afirma que, conforme se  
consolida, “o socialismo se desfaz do seu invólucro político(MARX, 2010a, p. 52).  
Com isso, além de se expressar em termo a que é mais associado, qual seja, socialismo,  
o pensador é claro ao afirmar que este tem por condição a supressão da esfera política  
como âmbito das relações humanas.  
O mesmo vale para a sociedade civil-burguesa. Esta só existe enquanto vida  
particular descolada da vida genérica. Sobre tais bases, ela se caracteriza pelo livre  
movimento do bourgeois, figura definida pela existência não com os demais, mas  
contra eles. Como visto, o homme, titular dos direitos humanos, só o é enquanto  
mônada isolada, que goza de sua liberdade e propriedade na ausência dos demais  
homens.  
A emancipação humana requer, porém, que o indivíduo isolado recupere suas  
forças sociais. Desse modo, suprimem-se, também, as condições de existência do  
bourgeois, que pressupõe a separação em relação à vida comunitária. A crítica  
marxiana da política é indissociável da crítica à sociedade civil-burguesa, e não se  
suprime uma dessas esferas sem fazer o mesmo com a outra, uma vez que elas só  
existem em relação. A emancipação humana implica, pois, além da supressão da  
política, a supressão da particularidade sem vínculo com o gênero, a partir do que se  
engendra “o ser humano liberto da dominação do interesse próprio bruto e  
individualista” (MÉSZÁROS, 2016, p. 36).  
Como visto, a sociedade civil-burguesa é caracterizada, nesse ponto da  
trajetória intelectual de Marx, como âmbito de domínio do dinheiro e da troca,  
pressupostos da existência concreta do judeu e do cristão. Desse modo, a supressão  
de tal sociedade traz consigo também a abolição de tais elementos:  
No momento em que a sociedade conseguir superar a essência  
empírica do judaísmo, o negócio e seus pressupostos, o judeu terá se  
tornado inviável, porque sua consciência não terá mais nenhum  
objeto, porque a base subjetiva do judaísmo, a necessidade prática,  
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A questão judaica e as Glosas Críticas  
terá sido humanizada, porque o conflito entre a existência sensível  
individual e a existência do gênero terá sido superado (MARX, 2010b,  
p. 60).  
A base sobre a qual se funda o judeu,11 a sociedade civil-burguesa e seu  
atomismo, deixa de existir com a emancipação humana. O dinheiro e o negócio,  
elementos próprios de tal sociedade, são, também, suprimidos. Eles só operam uma  
vez dada a separação do indivíduo particular de seu gênero. Só sob as condições do  
homme egoísta, desconectado dos demais, cada um goza de sua propriedade sem  
considerar os demais, e produz-se, em geral, para o mercado e para a troca. A  
emancipação humana coloca fim, pois, a tal estado de coisas.  
Marx diz mesmo que “a comunidade, em relação à qual o trabalhador está  
isolado, possui uma realidade e uma dimensão bem diferentes daquelas que são  
próprias da comunidade política(MARX, 2010a, p. 50). O essencial, desse modo, não  
é, como queriam os neo-hegelianos, que se realize a plenitude política. Esta é incapaz  
de solucionar as contradições sociais, e mantém o isolamento humano diante da  
comunidade. Aquilo que se deve reassumir é “a vida mesma, a vida física e espiritual,  
a moralidade humana, a atividade humana, o usufruto humano, a condição humana”,  
sendo que “a vida humana é infinitamente maior do que a vida política(MARX, 2010a,  
p. 51). O que se perdeu, e que se quer recuperar, é, nesse sentido, a própria atividade  
humana, reduzida, sob as condições da sociedade civil-burguesa, à troca e ao dinheiro  
sob condições atomizadas. O socialismo permite que o ser humano reassuma para si  
suas relações com os demais, sem a referência a algo estranho que encarne sua vida12.  
Marx, portanto, opõe à emancipação política a emancipação humana, capaz de  
solucionar as contradições sociais. Diante da oposição entre Estado e sociedade civil-  
burguesa, o único processo de caráter resolutivo é o que requer a supressão dessa  
relação, e, assim, desses dois polos. A emancipação humana exige que se leve a cabo  
a abolição da vida comunitária separada da vida individual, com o que exige a  
11  
O presente trabalho não poderá aprofundar a crítica marxiana da religião, presente nos escritos do  
período, e, em especial, na Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução (2013b). Cabe ressaltar  
que, a nosso ver, há, na obra de Marx, uma concepção negativa de religião, que permanece em seu  
pensamento. Em 1878, o autor diz: “Segundo nossas concepções, a religião desaparecerá à medida  
que o socialismo se fortalecer. A evolução social vai, infalivelmente, favorecer esse desaparecimento, no  
qual cabe à educação um papel importante” (MARX, 2018, p. 13).  
12 Vieira (2017, p. 191) vê, nesse ponto, o adiantamento de argumentos que só seriam desenvolvidos  
com os Manuscritos econômico-filosóficos, os quais tematizam, em mais detalhes, o tópico do  
estranhamento em relação ao trabalho: “o Vorwärts traz à tona para a centralidade uma análise lançada  
embrionariamente em A questão judaica de indicação do significado da emancipação prática como  
libertação dos homens da alienação do trabalho”.  
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supressão tanto da esfera política quanto da sociedade civil-burguesa. De um lado,  
pois, o autor defende a abolição do Estado político. De outro, esta é igualmente  
indissociável da supressão da sociedade civil-burguesa, com o que se leva a termo  
âmbito governado pelo atomismo social, pelo dinheiro e pela troca, a partir do que se  
pode iniciar o socialismo.  
Considerações finais  
A crítica de Marx ao Estado o remete à sociedade civil-burguesa. O pensador,  
uma vez que não se prende à realidade do Estado prussiano de então, um regime  
absolutista e religioso, é capaz de tratar as contradições sociais em seu solo  
propriamente político. Desse modo, o autor empreende a crítica ao Estado político  
pleno, mas também à sua base, a sociedade civil-burguesa.  
A emancipação política, segundo Marx, consiste na oposição entre vida  
comunitária e vida individual, categorias às quais correspondem Estado e sociedade  
civil-burguesa, respectivamente. Tal processo emancipatório é incapaz de suprimir a  
contradição entre a particularidade da existência do bourgeois, de um lado, e a  
universalidade do citoyen, de outro. Antes, ambas as esferas aparecem como a  
contraparte necessária da outra. Porém, a sociedade civil-burguesa se conforma como  
base do poder político, à qual este se subordina.  
Marx percebe a primazia da vida privada sobre a vida pública, e se põe a  
investigar os traços da primeira. A sociedade civil-burguesa é esfera em que vige o  
indivíduo atomizado, cuja liberdade pressupõe não a conexão com os demais, mas,  
justamente, o afastamento em relação a eles, situação reconhecida pelos direitos  
humanos. A propriedade se exerce como livre gozo e disposição dos próprios bens, e  
a vida individual é governada pelo dinheiro e pela troca. Este se torna a essência  
alienada da vida humana, uma vez que é objeto externo ao ser humano, ao qual, no  
entanto, este se submete, em virtude de sua possibilidade de ser trocado por qualquer  
produto. O pensador alemão nota, pois, a natureza mercantil da produção na  
sociedade moderna, e o dinheiro se torna fim em si mesmo porque, em um mundo em  
que o acesso ao fruto do trabalho se dá pela mercadoria, o dinheiro é via de acesso a  
esta.  
À emancipação política Marx contrapõe a emancipação humana, que suprime a  
oposição entre Estado e sociedade civil-burguesa, e, desse modo, abole essas duas  
esferas. De um lado, a reassunção, por parte do indivíduo, de suas forças sociais,  
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implica a supressão da política. De outro, também a sociedade civil-burguesa perde  
sua base, dada por sua oposição diante da vida comunitária, e desaparecem,  
igualmente, seus elementos, e com o que se conforma o socialismo.  
Mesmo que o autor de O capital ainda tivesse muito o que estudar em termos  
econômicos, seus primeiros passos no sentido de uma crítica da sociedade civil-  
burguesa são dados ainda em 1843-44. Sua crítica do Estado atinge, necessariamente,  
também a sociedade em que este se baseia, e o pensador empreende esforços, mesmo  
que ainda incipientes no período analisado, de análise de sua anatomia.  
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Como citar:  
MACIEL, Lucas de Oliveira. A questão judaica e as Glosas Críticas: Estado, direito e  
crítica da economia política na obra de Karl Marx entre 1843 e 1844. Verinotio, Rio  
das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 103-128; jan.-jun., 2024.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.705  
A posição dos juristas na divisão do trabalho e  
suas ilusões em A ideologia alemã*  
The jurists position in labor division and their illusions  
in The German Ideology  
Gabriel Müller de Jesus Pinheiro Machado**  
Resumo: A partir das considerações de José  
Chasin acerca da análise imanente dos objetos,  
este breve artigo intenta abordar o tratamento  
dado por Karl Marx e Friedrich Engels aos juristas  
em sua obra A Ideologia Alemã, redigida em  
1845-6. Com ênfase na configuração que a  
divisão do trabalho adquire na sociedade civil-  
burguesa, demonstra-se como a posição social e  
a subsequente vida prática dos juristas estão na  
base das ilusões nas quais eles creem, sobretudo  
com relação à categoria da vontade e suas  
potencialidades. O artigo encerra suas reflexões  
com a exposição da perspectiva comunista de  
como suprimir tais ilusões, não por um combate  
hipostasiado das mesmas, mas pela supressão  
das relações materiais que necessariamente as  
engendram, processo este que corresponde à  
construção das bases reais para a existência de  
indivíduos multifacetados mediante a supressão  
da divisão do trabalho.  
Abstract: This paper aims to expose, through  
José Chasin’s lessons about immanent analysis,  
Karl Marx and Friedrich Engels’ treatment of the  
jurists in their oeuvre The German Ideology  
(1845-6), emphasizing the form the labor  
division acquires in the civil-bourgeois society,  
in which the social position and the subsequent  
practical life of the jurists provide a materialistic  
explanation to their particular illusions, strongly  
tied to a creed on the powers of will. The paper  
concludes with the exposition of the marxian  
communist position on how to suppress not  
only those juridical illusions on will but precisely  
those social relations that produce, as a  
necessity, such illusions, thus creating, with the  
suppression of labor division, the material basis  
to the existence of multifaceted individuals.  
Keywords: Labor division; Jurists; Will; Illusions.  
Palavras-chave: Divisão social do trabalho;  
Juristas; Vontade; Ilusões.  
Introdução  
Embora tenha ocupado um espaço significativo no início do percurso de Marx1  
que culminou na construção de uma "concepção das coisas tal como realmente são e  
tal como se deram” (Marx, 2007, p. 94), de cariz ontológico2 e materialista, a crítica  
*
Artigo originalmente publicado na revista REVICE (DOI: https://doi.org/10.35699/2525-  
8036.2022.39334).  
**  
Graduado em Direito (UEA), mestre em Direito (UFMG), ORCID https://orcid.org/0000-0003-2588-  
591X. E-mail: muller_machado@hotmail.com.  
1 Por economia, utiliza-se o adjetivo ‘marxiano’ para referir a obra e o pensamento de Karl Marx.  
2
Em termos simples e esquemáticos, pode-se dizer que concepção de mundo instaurada por Marx é  
‘ontológica’ em um sentido muito singelo: a análise de Marx se dá sobre a realidade efetiva [Wirklichkeit]  
em sua lógica específica, despida de quaisquer pré-ordenamentos arbitrários da subjetividade,  
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Gabriel Müller de Jesus Pinheiro Machado  
ao Direito nunca foi central em sua análise da sociedade civil-burguesa3, seja porque  
desde cedo, quando colocado “na embaraçosa obrigação de opinar sobre os interesses  
materiais(Marx, 2009, p. 46), Karl Marx percebera a limitação das relações jurídicas  
para compreender a lógica e funcionamento internos dessas relações jurídicas mesmas,  
seja porque, ao encontrar na sociedade civil-burguesa a raiz para compreender tanto  
tais “relações jurídicas” quanto “as formas de Estado”, dedicou o resto de sua vida à  
análise crítica daquilo que constituía, em suas palavras, a “anatomia” dessa sociedade,  
a saber: a “Economia Política” ” (Marx, 2009, p. 47). Não por acaso, a grande obra de  
sua vida, O Capital, é acompanhada pelo subtítulo “Crítica da Economia Política”4: a  
razão disso não é qualquer idiossincrasia pessoal, por suposto. Os ciosos estudos de  
Marx o permitiram compreender que é na economia política que a sociedade civil-  
burguesa se estrutura, logo, é onde esse organismo social pode ser visto em suas  
determinações mais puras daí se falar em anatomia5.  
Tudo isso é verdadeiro, basilar, até, e, no entanto, seria uma incorreção  
grosseira dizer que Marx não tem nada a dizer sobre o Direito. Na verdade, o beabá  
da crítica de Marx ao Direito, que não é central, mas perpassa reiteradamente sua obra  
(afinal, o Direito é parte necessária à reprodução da totalidade social que Marx analisa,  
logo, seria absurdo simplesmente ignorar a análise dessa forma social), remete-nos  
precisamente à necessidade de apreender o Direito não como algo que se explique  
característica geral de concepções de mundo com caráter gnosiologizante.  
3 O sentido de crítica aqui utilizado não tem precisamente o sentido usual, corriqueiro. Criticar, em Marx,  
tem o sentido de “capturar "a lógica específica da coisa específica' e de esclarecê-la por sua gênese e  
necessidade” (In: CHASIN, José. Marx. Estatuto ontológico e resolução metodológica, 2009, p. 80).  
Nesse sentido, registre-se que uma análise realmente competente da obra de Marx e Engels demandaria  
sua apreensão e exposição em sua imanência histórica, missão que somente seria possível por meio  
daquilo que José Chasin denomina “tríptico metodológico” lukácsiano (CHASIN, 1978, p. 23): “crítica  
imanente [...] gênese social e função” do objeto investigado (LUKÁCS, 1984, p. 6). Entre esses eixos há  
um “enlaçamento íntimo, substantivo [...] dado a nível ontológico, e que o procedimento metodológico  
simplesmente separa para efeitos analíticos” (1978, p. 67).  
4 Retome-se aqui o sentido de “crítica” em Marx, exposto na nota 5, acima, para reiterar que em nenhum  
momento de seu desenvolvimento o mesmo teve a pretensão de escrever uma “economia política  
comunista”, o que, aliás, seria uma contradição em termos, já que uma sociedade comunista pressupõe  
a superação da economia política e da própria política. Marx buscou, em verdade, demonstrar a  
necessidade de superação da economia política enquanto tal, o que, no estágio de desenvolvimento  
social em que nos encontramos, só pode ser alcançado por uma revolução comunista. Para além do  
subtítulo de sua obra magna, sua própria estrutura, que se encerra com a necessidade da “negação da  
negação” mediante a “expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo” (MARX, 2013, p. 832-  
3), não deixa margem para dúvidas quanto à necessidade da supressão da economia política, em vez  
da criação de uma economia política de novo tipo.  
5 Quando, portanto, Marx se propõe a realizar a “crítica da economia política”, trata-se de uma espécie  
de dupla crítica: tanto à totalidade das relações de produção que constituem a base real da sociedade  
capitalista quanto à expressão teórica dessas relações, a qual se observa naquele ramo do saber  
denominado “Economia Política”, que tem como seus representantes clássicos, por exemplo, William  
Petty, Adam Smith, David Ricardo etc.  
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“pela chamada evolução geral do espírito humano” ou algo que o valha, mas por sua  
relação concreta com outras formas ideológicas, como a política, a religião, filosofia,  
arte etc., e, doutra parte e simultaneamente, pela imbricação necessária de todas essas  
formas ideológicas com as “condições materiais de existência” (Marx, 2009, p. 47-9).  
Quando Marx e Engels afirmam, a certa altura da obra à qual nos dedicaremos  
aqui, que “a consciência [Bewusstsein] não pode ser jamais outra coisa do que o ser  
consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real” ” (Marx,  
2007, p. 94), alerta precisamente para o equívoco de autonomizar as diferentes formas  
de consciência humana, o que se fez e faz sempre que se as desconecta dos indivíduos  
reais que, ironicamente, pensaram essas ideias. A concepção de mundo e da história  
formulada Marx e Engels, e da qual partiremos aqui, vai de encontro a toda uma  
milenar tradição idealista de pensamento que encontra em Georg F. W. Hegel seu  
cume, e segundo a qual as ideias, a consciência, os conceitos etc. não são produtos  
da mente humana em suas expressões social e individual, mas sim seus produtores6.  
Ou seja, não se trataria da consciência de Pedro, ou da consciência da classe  
trabalhadora, da classe burguesa etc., sim da Consciência, da Ideia, com letra  
maiúscula, que pensariam a si mesmas e se efetivariam materialmente em Pedro, nas  
classes trabalhadora, burguesa etc. Noutras palavras, segundo a concepção idealista,  
em suas diferentes expressões, a consciência é que produziria o ser. Já a concepção  
materialista de Marx e Engels, a nosso ver melhor amparada em fatos históricos e  
mesmo nas descobertas das ciências exatas a respeito do desenvolvimento do ser  
humano a partir do desenvolvimento da vida orgânica7 (que, por sua vez, adveio do  
desenvolvimento da vida inorgânica), impugna essa e quaisquer outras concepções  
idealistas, porém, mais do que isso, compreende-as e as explica a partir das condições  
reais de vida dos indivíduos que conceberam tais idealismos, inclusos todos os seus  
interesses e necessidades concretos: “a produção de ideias, de representações, das  
consciência” afirmam nossos autores, “está, em princípio, imediatamente entrelaçada  
com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens(Marx, 2007, p.  
6
Evidentemente, não é nossa pretensão aqui senão aludir ao milenar embate entre concepções  
materialistas e concepções idealistas de mundo. No que concerne especificamente à superação de Hegel  
por Marx, que no início de sua formação teve forte afinidade com Hegel, embora nunca tenha sido  
propriamente um hegeliano, cf. SARTORI, 2014.  
7
A esse respeito, vale remeter à obra posterior de um de nossos autores, Friedrich Engels, que, no  
Anti-Dühring (1876-8), reafirma, nos tópicos VI, VII e VIII da Seção 1, a necessidade de capturar a  
diferença específica entre essas duas formas de ser, orgânico e inorgânico. Cf. ENGELS, 2015, pp. 87-  
116.  
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94). Não se trata, portanto, de caçar com certa dose de credulidade ideias pensadas  
por indivíduos reais ao longo da história para compreender o modo de vida desses  
indivíduos mesmos, mas precisamente o inverso: há de se entender o modo de vida  
concreto destes, as relações sociais reais pelas quais produzem e reproduzem sua vida  
material, para, então, compreender com um olhar sóbrio sua produção espiritual. Ou,  
para dizê-lo em termos menos prosaicos: “Tendo a história sido, por tempo suficiente,  
dissolvida em superstição, passamos agora a dissolver a superstição em história”  
(Marx, 2010, p. 38).  
A divagação introdutória um tanto extensa, mas possivelmente não vã, justifica-  
se na medida em que o objetivo nuclear deste artigo compreender como aparecem  
os juristas na obra A Ideologia Alemã coincide com levar às últimas consequências  
tais considerações dos autores sobre sua concepção de mundo de bases materialistas,  
a fim de compreender uma posição social específica na divisão social do trabalho, a  
dos juristas. Em outras palavras, busca-se essencialmente explicitar o jurista segundo  
aquilo que ele é na sociedade capitalista, segundo aquilo que faz e o modo como faz,  
em vez de dar-lhe o injustificável privilégio de julgá-lo pelo que ele, seja por ilusão ou  
por cinismo, pensa e diz de si mesmo.  
Nota sobre a estrutura e o contexto da obra  
O movimento argumentativo que Marx e Engels percorrem na obra Ideologia  
Alemã, que ora tomamos por objeto central de análise, merece uma explanação prévia.  
Como o nome sugere, trata-se de obra destinada a explicitar precisamente a “ideologia  
alemã” de seu tempo, mas, pode-se indagar, no que consiste exatamente essa  
ideologia? A Alemanha da década de 1840 vivia no plano intelectual um período de  
dissolução do hegelianismo, no qual a obra de Hegel, morto em 1831, começara a  
perder força, mas ainda gozava de consideráveis adeptos, sobretudo no círculo  
intelectual berlinense, este fortemente marcado por um ponto de vista pequeno-  
burguês, um dos sintomas do desenvolvimento tardio alemão. Dentre seus resilientes  
adeptos houve em linhas gerais, segundo Marx e Engels, uma bifurcação: de um lado  
entrincheiraram-se os “velhos-hegelianos”, que tomavam as categorias hegelianas  
como absolutas e inquestionáveis, aplicando-as a todo e qualquer fenômeno da  
realidade e, assim, obtinham uma resposta míope a todo e qualquer problema. No  
outro lado da disputa pequeno-burguesa pelo espólio espiritual de Hegel estavam  
pensadores mais originais, os “jovens-hegelianos”. Enquanto aqueles “compreenderam  
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A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
tudo” com muita facilidade quando fizeram da lógica hegeliana sua varinha de condão,  
“os jovens-hegelianos criticavam tudo, introduzindo furtivamente representações  
religiosas por debaixo de tudo ou declarando tudo como algo teológico” (Marx, 2007,  
p. 83-4).  
Na transposição da reflexão teórica para a sua postura prática diante da  
realidade, os velhos-hegelianos consubstanciavam tendências políticas explicitamente  
reacionárias e genufletoras ante o Estado Prussiano cristão. Os jovens-hegelianos, por  
sua vez, atribuíam a si mesmos a de revolucionários, criticando a Coroa Prussiana e  
defendendo a necessidade da realização do “verdadeiro Estado”, o Estado racional,  
político. Para eles, “as representações, os pensamentos, os conceitos – em resumo, os  
produtos da consciência por eles autonomizada” são “os autênticos grilhões do  
homem”, logo, segundo sua concepção de mundo, trata-se “de lutar apenas contra  
essas ilusões da consciência” (Marx, 2007, p. 84).  
Substancialmente, é essa concepção dos jovens-hegelianos, amparada de modo  
contraditório na filosofia especulativa de Hegel, que Marx e Engels denominam “a  
ideologia alemã” de seu tempo, e se propõem a investigá-la criticamente em obra  
homônima, redigida entre os anos de 1845/6. O porquê de um tratamento tão  
minucioso dos autores que conformam a ‘ideologia alemã’, além de “acertar as contas  
com nossa consciência filosófica da época” (Engels, 2020, p.15), deve-se tanto à  
repercussão que os jovens-hegelianos passaram a assumir em círculos progressistas  
alemães, com forte presença em periódicos intelectuais e populares, quanto ao fato de  
que os mesmos se autoproclamavam revolucionários, mas, em verdade, Marx e Engels  
demonstram que a perspectiva desses legatários de Hegel é pronunciadamente  
reacionária, pequeno-burguesa, pois limita sua luta a uma luta contra ideias,  
representações, conceitos, quando, segundo a perspectiva de nossos autores, não se  
trata de combater ideias simplesmente, mas suprimir as relações reais que carecem  
necessariamente de tais ideias. E não se combate relações reais com ideias, mas com  
atos: “só é possível conquistar a libertação real [wirkliche Befreiung] no mundo real e  
pelo emprego de meios reais”. Eis aí um dos grandes pontos dessa obra seminal. Por  
trás da fraseologia revolucionária, os jovens-hegelianos, mesmo com suas nuances  
internas, expressavam de modo geral os interesses dos “pequeno-burgueses de hoje  
que almejam ser os burgueses de amanhã” (Marx, 2007, p. 397), e, por isso, eram  
revolucionários exclusivamente na sua imaginação e no seu discurso. Efetivamente,  
eram o oposto do que clamavam e criam ser. Na feliz expressão do prólogo de Marx:  
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“O primeiro volume desta obra tem o objetivo de desmascarar esses cordeiros que  
consideram a si mesmos e são considerados por outros como lobos(Marx, 2007, p.  
523).  
Marx e Engels, por sua vez, já representavam, com suas elaborações teóricas,  
os interesses do proletariado, isto é, interesses realmente revolucionários, e, assim,  
viram no combate a tal “ideologia alemã” uma necessidade premente, a fim de  
demonstrar, no plano teórico, a superioridade do seu específico e original ponto de  
vista materialista ante qualquer idealismo, e mesmo ante outros materialismos8, e, no  
que concerne a questões práticas, a superioridade da posição comunista diante de  
outros partidos de oposição aos poderes estabelecidos9.  
A divisão social do trabalho: gênese e expansão  
Da aurora do ser humano à gênese histórica da divisão social do trabalho: a  
polêmica contra Feuerbach  
Na seção nomeada “Feuerbach e história”, que abre a exposição da obra ora  
analisada, Marx e Engels polemizam com a posição de Ludwig Feuerbach  
essencialmente no que respeita ao modo como este concebe o mundo e a história.  
Embora esse autor seja materialista em diversos pontos e traga em suas formulações  
alguns “embriões capazes de desenvolvimento”, trata-se, ainda, de um materialismo  
incapaz de enxergar o ser humano como atividade humana sensível, isto é, como ser  
que subsiste mediante um agir prático, como indivíduos em movimento constante que  
só sobrevivem um dia sequer na medida em que produzem seu próprio mundo através  
de um insuprimível metabolismo com a natureza. Dessa deficiência resulta que “a  
‘concepção’ feuerbachiana do mundo sensível limita-se, por um lado, à mera  
contemplação deste último, e, por outro, à mera sensação; ele diz ‘o homem’, em vez  
de os ‘homens históricos reais’. ‘O homem’ é, na realidade, ‘o alemão’” (Marx, 2007,  
p. 30). Por consequência direta, Feuerbach “enxerga, n’A Essência do Cristianismo,  
8
Ludwig Feuerbach, por exemplo, era um dos “jovens-hegelianos” criticados por Marx e Engels n’A  
ideologia alemã, porém parte significativa de suas formulações tinha caráter materialista, e o mesmo  
foi, inclusive, uma influência decisiva sobre Marx em sua fase de transição do idealismo hegeliano (com  
as ressalvas já referida na nota n. 9, acima) para o materialismo. Marx sintetiza os limites da concepção  
materialista de Feuerbach: “Na medida em que Feuerbach é materialista, nele não se encontra a história,  
e na medida em que toma em consideração a história ele não é materialista. Nele, materialismo e história  
divergem completamente, o que aliás se explica pelo que dissemos até aqui.” (2007, p. 32)  
9 Marx e Engels detalham esse último ponto de forma didática na última seção do Manifesto do partido  
comunista (2020), escrito em período muito próximo (aproximadamente um ano e meio depois) à  
redação d’A Ideologia Alemã.  
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A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano” e “não entende,  
por isso, o significado da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’” (Marx, 2007, p.  
533).  
Existe, portanto, um caráter fortemente contemplativo na concepção de mundo  
feuerbachiana, o que se explica facilmente pelas conhecidas condições miseráveis do  
desenvolvimento alemão, com sua “práxis mesquinha, própria de mercadores e  
manufatureiros(Marx, 2007, p. 453). A própria posição social do autor e seu ponto  
de vista pequeno-burguês restringiram sua teorização a certos lampejos materialistas,  
brilhantes e fundamentais ao desenvolvimento de Marx e Engels, sem dúvida, mas que  
se limitavam a tomar apenas a produção teórica como uma atividade humana, ao passo  
que a atividade sensível, o agir prático dos indivíduos que modificam a natureza  
conforme suas necessidades e, assim, constroem seu mundo e novas necessidades,  
era completamente apagada por Feuerbach. Mesmo quando seu aparecimento era  
inevitável, tomava-o como atividade inferior, de modo que era inevitável que  
Feuerbach olhasse para o mundo existente não como aquilo que é, a saber, um  
resultado da atividade sensível de incontáveis gerações do passado (afinal, para ele, a  
única atividade humana era a atividade dos pensadores atividade este que ele,  
enquanto teórico, curiosamente realizava), mas sim como algo plasmado, sempre  
existente, estático. Nas palavras de Marx e Engels,  
Ele [Feuerbach] não vê como o mundo sensível que o rodeia não é  
uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual  
a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da  
sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto  
histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações,  
que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram  
sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de  
acordo com as necessidades alteradas. Mesmo os objetos da mais  
simples ‘certeza sensível’ são dados a Feuerbach apenas por meio do  
desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial.  
Como se sabe, a cerejeira, como quase todas as árvores frutíferas, foi  
transplantada para a nossa região pelo comércio, há apenas alguns  
séculos e, portanto, foi dada à ‘certeza sensível de Feuerbach apenas  
mediante essa ação de uma sociedade determinada numa  
determinada época. (Marx, 2007, p. 30-1)  
“Aliás”, arrematam, “nessa concepção das coisas tal como realmente são e tal  
como se deram, todo profundo problema filosófico é simplesmente dissolvido num  
fato empírico” (Marx, 2007, p. 31). Ou seja, mesmo a atividade daqueles indivíduos  
que creem estar completamente apartados da atividade sensível do homens em cada  
época histórica por exemplo, filósofos, livres pensadores, juristas, artistas etc. , da  
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prática que visa à satisfação de necessidades concretas (a qual é determinada  
necessariamente pelo grau de desenvolvimento da indústria de cada época) é, ao fim  
e ao cabo, determinada por disputas atinentes à realidade concreta, que carecem ser  
estudados a fundo caso de queira explicar também a produção espiritual de cada  
época. Isso ficará mais claro quando tratarmos especificamente da posição social dos  
juristas e sua respectiva forma de consciência, bastando demarcar, neste passo, que  
tão pouco quanto o Direito é determinado pelo “desenvolvimento geral do espírito  
humano” (Marx, 2009, p. 46) é a prática dos juristas determinada pela justiça, razão  
ou qualquer abstração que o valha.  
Ainda em sua polêmica contra Feuerbach, Marx e Engels veem-se obrigados a  
retomar, nas suas determinações mais abstratas, a gênese do ser humano, a fim de  
explicitar como as concepções idealistas do mundo e da história cambaleiam  
atabalhoadamente quando tentam explicar a história real, profana, da espécie humana,  
concebendo, quando muito, uma história sagrada, fruto da crença especulativa dos  
ideólogos, sem qualquer respaldo em fatos positivos.  
Em oposição aos ideólogos alemães, “que se consideram isentos de  
pressupostos [vorausetzunglosen]” (Marx, 2007, p. 32) nossos autores explicitam 4  
pressupostos a partir dos quais a espécie humana pôde, no passado, e pode, hoje,  
“fazer história”. O enfoque deste trabalho não nos permite tratar tais pressupostos  
com a mínima minúcia, mas podemos sintetizá-los, em termos bastante esquemáticos,  
nos seguintes pontos: i) o 1º pressuposto está no singelo fato de que “os homens  
precisam estar em condições de viver para fazer história”, ou seja, precisam satisfazer  
suas necessidades fisiológicas e físicas básicas, de modo que “o primeiro ato histórico  
é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da  
própria vida material, [...] condição fundamental de toda a história, que ainda hoje,  
assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente  
para manter os homens vivos” (Marx, 2007, p. 33); ii) o 2º pressuposto consiste em  
que “a satisfação da primeira necessidade dos homens e o instrumento de satisfação  
já adquirido conduzem a novas necessidades”, na medida em que a espécie humana  
precisa não apenas produzir materialmente seu mundo, mas também reproduzi-lo  
continuamente; iii) dessa renovação diária da própria vida decorre o 3º pressuposto,  
isto é, os humanos, por necessidade, criam laços entre si: “a relação entre homem e  
mulher, entre pais e filhos, a família”. Esta, que “no início constitui a única relação  
social, torna-se mais tarde, quando as necessidades aumentadas criam novas relações  
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sociais e o crescimento da população gera novas necessidades, uma relação secundária  
(salvo na Alemanha)”; iv) o quarto e último pressuposto está no fato de que essa  
relação entre os indivíduos produz, em cada época histórica, uma cooperação para  
atuar sobre a natureza: “segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma  
determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de  
cooperação [...], que a soma das forças produtivas acessíveis ao homem condiciona o  
estado social e que, portanto, a ‘história da humanidade’ deve ser estudada e  
elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas” (Marx, 2007,  
p. 33).  
Trata-se, portanto, partindo de tais pressupostos, de apreender a existência da  
“conexão materialista dos homens entre si, conexão que depende das necessidades e  
do modo de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens uma conexão  
que assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma ‘história’, sem que  
precise existir qualquer absurdo político ou religioso que também mantenha os  
homens unidos” (Marx, 2007, p. 34).  
Anote-se oportunamente que tais pressupostos não são criações arbitrárias da  
cabeça de Marx e Engels, mas pressupostos reais, empiricamente constatáveis, que  
tanto foram necessários para a gênese e desenvolvimento do gênero humano a partir  
do ser natural quanto o são para a produção cotidiana da vida na particular forma de  
sociabilidade hoje em voga.  
Assim, as primeiras sociedades, que por milênios se relacionaram de forma  
muito próxima ao animalesco com a natureza, a qual se lhes apresentava como “um  
poder totalmente estranho”, começaram a vencer paulatinamente os limites naturais,  
tanto da natureza externa quanto de sua natureza interna, o que faziam precisamente  
pela crescente modificação histórica do mundo natural. O paulatino desenvolvimento  
populacional demandou “produtividade aumentada” e “incremento das necessidades”  
(Marx, 2007, p. 35) sociais, e a complexificação das relações sociais advinda do  
crescimento das necessidades e, consequentemente, das forças produtivas, demandou  
o surgimento de uma divisão social do trabalho. Essa trouxe consigo um potencial  
progressivo gigantesco em relação ao modo de cooperação e produção precedente,  
ainda marcado por uma relação fortemente animalizada com a natureza, mas,  
simultaneamente, uma autonomização tal das relações sociais face aos indivíduos que,  
quanto mais desenvolvida a divisão do trabalho, mais faz dos indivíduos reféns de  
suas próprias relações sociais.  
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Desenvolvimento da divisão do trabalho e autonomização das relações sociais  
O desenvolvimento da divisão social do trabalho e a consequente  
autonomização das relações sociais são elementos fundamentais à nossa exposição,  
sem os quais provavelmente seria inviável compreender a posição social dos juristas  
e, no limite, de qualquer tipo de trabalho em qualquer época social particular em que  
já exista uma divisão social do trabalho.  
Vimos, até aqui, que a última nasce como resposta a uma necessidade social  
de agrupamentos humanos (ainda na forma de tribos) cuja expansão exigiu um novo  
modo de cooperação para realizar satisfatoriamente seu metabolismo com a natureza.  
Marx e Engels anotam que tal divisão “originalmente nada mais era do que a divisão  
do trabalho no ato sexual e, em seguida, divisão do trabalho que, em consequência  
de disposições naturais (por exemplo, a força corporal), necessidades, casualidades  
etc. etc., desenvolve-se por si própria ou ‘naturalmente’”. Contudo, a divisão do  
trabalho “só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão  
entre trabalho material e [trabalho] espiritual” (Marx, 2007, p. 35).  
Dessa forma já consolidada da divisão social do trabalho decorre uma  
consequência decisiva a todo o desenvolvimento histórico posterior, e, quanto a nosso  
objeto, à compreensão da posição social dos juristas, qual seja: “com a divisão do  
trabalho está dada a possibilidade, e até a realidade, de que as atividades espiritual e  
material de que a fruição e o trabalho, a produção e o consumo caibam a indivíduos  
diferentes” (Marx, 2007, p. 36).  
Com a divisão do trabalho, na qual todas essas contradições estão  
dadas e que, por sua vez, se baseia na divisão natural do trabalho na  
família e na separação da sociedade em diversas famílias opostas  
umas às outras, estão dadas ao mesmo tempo a distribuição e, mais  
precisamente, a distribuição desigual, tanto quantitativa quanto  
qualitativamente, do trabalho e de seus produtos; portanto, está dada  
a propriedade, que já tem seu embrião, sua primeira forma, na família,  
onde a mulher e os filhos são escravos do homem. A escravidão na  
família, ainda latente e rústica, é a primeira propriedade, que aqui,  
diga-se de passagem, corresponde já à definição dos economistas  
modernos, segundo a qual a propriedade é o poder de dispor da força  
de trabalho alheia. (Marx, 2007, p. 36-7, negrito nosso)  
A heterogeneidade entre aqueles que executam o trabalho e aqueles que fruem  
de seus produtos, exercendo poder sobre a força de trabalho alheia, identifica-se com  
a propriedade privada enquanto tal. Daí o porquê nossos autores afirmarão, em  
seguida, que “divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas –  
numa é dito com relação à própria atividade aquilo que, noutra, é dito com relação ao  
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produto da atividade”. Ainda, a referida “distribuição desigual” engendra patrimônios  
desiguais, com o que se tem, simultaneamente, a gênese histórica das classes sociais.  
Assim, propriedade privada e divisão social do trabalho se colocam como dois lados  
da mesma moeda, e têm como efeito necessário e concomitante a produção de classes  
sociais. Por essa razão a divisão do trabalho traz em seu bojo “a contradição entre o  
interesse dos indivíduos ou das famílias singulares e o interesse coletivo de todos os  
indivíduos que se relacionam mutuamente” (Marx, 2007, p. 37), e, ademais, em  
qualquer sociedade calcada nessa oposição entre os interesses individuais e o  
interesse coletivo, oposição inerente à divisão social do trabalho, “a própria ação do  
homem torna-se um poder que lhe é estranho e que a ele é contraposto, um poder  
que subjuga o homem em vez de por este ser dominado” (Marx, 2007, p. 37, grifo  
nosso).  
Toca-se, aqui, em problema fundamental: o processo de autonomização das  
relações sociais condicionadas pela divisão social do trabalho. O grau de  
autonomização é proporcional ao grau de expansão da divisão social do trabalho, de  
modo que, quão mais desenvolvida esta última, menos controle os indivíduos exercem  
sobre suas próprias relações sociais e mais subjugados ficam ao poder autonomizado  
de relações que eles próprios protagonizam. A divisão do trabalho torna-se, assim,  
uma potência estranha, que não apenas se descola do controle e da vontade dos  
indivíduos, mas volta-se contra os mesmos, controlando-os e determinando seu  
destino:  
Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter  
um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e  
ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou  
crítico crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio  
de vida. [...] Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação do  
nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que  
foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila  
nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento  
histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção  
multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos  
condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos,  
porque a própria cooperação não é voluntária mas natural, não como  
seu próprio poder unificado, mas sim como uma potência estranha,  
situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para  
onde vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e  
que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de fases  
e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos  
homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir. (Marx, 2007,  
p. 37-8, negrito nosso)  
A potência estranha em que as relações sociais se convertem a partir da divisão  
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do trabalho inverte o processo de desenvolvimento histórico, de modo que os  
indivíduos passam a ser assujeitados pela objetividade social que eles mesmos  
produziram e produzem cotidianamente por meio de sua atividade sensível. E, ao  
impor uma posição social específica aos indivíduos, a divisão social do trabalho não  
apenas os subjuga contra sua vontade, mas, ao fazê-lo, unilateraliza-os: a própria  
vontade e as ações dos indivíduos passam a ser dirigidas não por um ímpeto interno  
e subjetivo, mas por esse “poder objetivo situado acima de nós, que foge do nosso  
controle que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas”,  
determinando a cada um “um campo de atividade exclusivo e determinado [...] O  
indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico crítico, e assim deve permanecer se  
não quiser perder seu meio de vida” (Marx, 2007, p. 37-8).  
Num momento mais adiante da exposição, nossos autores expõem de forma  
ainda mais clara a causa desse processo de autonomização de suas relações sociais  
em face deles mesmos:  
Os indivíduos sempre partiram de si mesmos, sempre partem de si  
mesmos. Suas relações são relações de seu processo real de vida.  
Como ocorre que suas relações venham a se tornar autônomas em  
relação a eles? Que os poderes de sua própria vida se tornem  
superiores a eles?  
Em uma palavra: a divisão do trabalho, cujo grau depende sempre do  
desenvolvimento da força produtiva. (Marx, 2007, p. 78)  
As relações sociais de produção e intercâmbio calcadas na divisão social do  
trabalho, cuja configuração, por sua vez, depende do estágio de desenvolvimento das  
forças produtivas em cada época social, aparecem aos indivíduos tal como Deus  
aparece à consciência religiosa: Deus criou o homem e determina seus passos, embora,  
sob uma perspectiva marxista, Deus não passe de uma criação da consciência humana  
ainda presa a um nível pouco desenvolvido, e consequentemente sem controle  
consciente, da produção. As relações de produção e intercâmbio são fruto da ação dos  
indivíduos, “relações de seu processo real de vida” (Marx, 2007, p. 78), mas adquirem  
aparência de vida própria, “independente do querer e do agir dos homens e [...] até  
mesmo dirige esse querer e esse agir” (Marx, 2007, p. 38). Ocorre, pois, uma “inversão  
entre Sujeito e Predicado”, onde o predicado usurpa a posição de sujeito e subjuga o  
elemento que originalmente é sujeito, reduzindo-o à mera posição de predicado. O  
sujeito torna-se predicado de seu predicado, criador torna-se criatura.  
E por que, afinal, esse ponto a inversão entre sujeito e predicado é tão  
necessário para a compreensão da divisão do trabalho e da posição dos juristas nela?  
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A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
Primeiramente, trata-se de inversão que existe na própria realidade, na medida  
em que relações sociais de produção e de intercâmbio condicionadas pela divisão  
social do trabalho autonomizam-se dos indivíduos que as encenam e, como já vimos,  
aparecem como relações que controlam o movimento desses indivíduos mesmos à  
revelia de seu querer e seu agir.  
Ademais, tais inversões produzidas na própria realidade frequentemente não  
são percebidas pelos indivíduos que observam essa realidade mesma; pelo contrário,  
são tomadas como pressupostas, naturalizadas como algo dado, sempre existente e  
inevitável, em vez daquilo que de fato são: inversões aparentes historicamente  
produzidas e historicamente suprimíveis. O resultado da apreensão dessa realidade  
invertida de modo acrítico, tomando a totalidade social por sua aparência imediata e  
a partir de pressupostos idealistas, é uma produção intelectual ao estilo dos  
“ideólogos” que Marx e Engels criticam: filósofos, políticos e juristas colocam todas as  
relações empíricas “de cabeça para baixo [auf den Kopf]10(Marx, 2007, p. 343), donde  
cada filósofo, político ou jurista busca explicar o funcionamento da relações sociais a  
partir, de modo geral, da filosofia, da política ou do direito. O resultado, nocivo,  
embora pouco surpreendente, é o reflexo, produzido na cabeça desses ideólogos, da  
referida inversão entre sujeito e predicado existente na própria realidade efetiva:  
“como em geral ocorre com os ideólogos, é de se notar que eles necessariamente  
colocam a questão de cabeça para baixo [auf den Kopf] e veem na sua ideologia tanto  
a força motriz como o objetivo de todas as relações sociais, enquanto ela é tão  
somente sua expressão e seu sintoma [Ausdruck und Symptom]” (Marx, 2007, p. 405,  
grifo nosso). Como expressão e sintoma de relações estranhadas, calcadas na ausência  
de controle consciente de uma produção social ainda agrilhoada à divisão do trabalho,  
criam-se, por óbvio, formas ideológicas estranhadas: do direito à política, da religião  
à filosofia. O quanto cada um dos agentes que operam a partir de tais formas  
10 Um breve esclarecimento quanto à tradução faz-se necessário. Tradicionalmente, verte-se a expressão  
auf den Kopf como “de cabeça para baixo”, em alusão à conhecida inversão entre sujeito e predicado  
captada por Marx e Engels. Não rechaçamos integralmente essa tradução, a qual se compreende diante  
do sentido do original, contudo, deixe-se anotado que a tradução literal, e, por isso mesmo, talvez mais  
desejável, para auf den Kopf é “sobre a cabeça”, com a qual se capta perfeitamente a alusão crítica à  
ilusão idealista segundo a qual a consciência é que determina o ser, de modo que o desenvolvimento  
histórico da humanidade é colocado, nessa concepção que perverte as coisas, “sobre a cabeça”, isto é,  
como um desenvolvimento d’A Ideia, ao qual corresponde o desenvolvimento social, e não, como  
querem Marx e Engels, “sobre seus pés”, enquanto um desenvolvimento da produção, da indústria e do  
intercâmbio, o qual, por suas contradições, é a “causa material” do “sintoma idealista” (MARX; ENGELS;  
2007, p. 140), ou, em outras palavras, de qualquer “absurdo político ou religioso” (idem, p. 34) pelo  
qual se deturpe a real conexão material entre todas as gerações humanas do passado e do presente.  
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ideológicas (juristas, políticos, filósofos, religiosos etc.) tem consciência de tais  
inversões, é questão cientificamente secundária. Como dito acima, se por cinismo ou  
ilusão, as consequências práticas de replicar e agir conforme a ilusões são  
integralmente as mesmas. E, conquanto comuns aos ideólogos de modo geral, tais  
ilusões são particularmente agudas entre os juristas. Cabe explicitarmos o porquê.  
A posição do jurista na divisão social do trabalho capitalista: as ilusões  
necessárias  
Exposto em termos mais gerais e sintéticos o movimento sempre contraditório  
de “expansão da divisão social do trabalho” (Marx, 2007, p. 54) impulsionado pelo  
desenvolvimento das forças produtivas, torna-se, agora, possível, dedicarmos atenção  
específica aos juristas tal como estes são tratados na obra em vista, a fim de  
compreender a gênese de seu modo de conceber o mundo e sua função prático-social.  
Trata-se, como enfatizamos até aqui, de compreender o jurista não pelo que diz ou  
pensa de si mesmo, mas pelo que e como efetivamente faz no seio das relações sociais,  
sobre as quais, como já vimos, não exercem qualquer tipo de controle. Uma vez situado  
em sua posição na divisão social do trabalho, o jurista tem tanta obrigação de ‘agir  
como jurista’ quanto o filósofo tem a obrigação de ‘filosofar’, ou o frentista, de  
abastecer automóveis11, na medida em que a divisão do trabalho não se dobra à  
vontade dos indivíduos, mas, antes, faz esta dobrar-se àquela: “Logo que o trabalho  
começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e  
determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar” (Marx, 2007, p. 37-8,  
negrito nosso).  
A certa altura da obra investigada, no capítulo de polêmica com Max Stirner,  
Marx e Engels caracterizam o jurista como “o ideólogo da propriedade privada” (Marx,  
2007, p. 225). Mas o que, precisamente, quer-se dizer com isso? Avancemos com  
cuidado. Por ora, diga-se apenas que entre os juristas, a inversão especulativa  
característica dos filósofos, que creem com fervor no “predomínio do espírito na  
história”, e veem a própria história “apenas como o produto de pensamentos  
abstratos” (Marx, 2007, p. 174-5), assume uma forma específica, determinada por sua  
11  
Utilizamos este exemplo mais prosaico apenas para realçar o caráter objetivo com que a divisão do  
trabalho se opõe aos indivíduos que trabalham, mas há diversos dados pelo próprio Marx mesmo em  
formulações em suas produções mais maduras. Pelo caráter de síntese, registramos trecho dos  
manuscritos preparatórios a’O Capital dos anos de 1861-3, no qual Marx realiza uma digressão sobre  
o trabalho produtivo: “Um filósofo produz ideias, um poeta, poemas, um pastor, sermões, um professor,  
compêndios etc. Um criminoso produz crimes.” (MARX, 2010, p. 355).  
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A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
vida prática e sua posição na divisão do trabalho, que, por sua vez, não é idêntica  
àquelas dos filósofos, embora ambos guardem certas ilusões em comum. Sobre essa  
diferença específica das crenças e ilusões dos juristas, algumas anotações esparsas de  
nossos autores nas páginas finais da seção Feuerbach e história, abaixo transcritas,  
trazem-nos elementos valiosos:  
Por que os ideólogos colocam tudo de cabeça para baixo. [auf den  
Kopf] [...]  
Políticos, juristas, políticos (homens de Estado, em geral), moralistas,  
religiosos.  
Para essa subdivisão ideológica numa classe, 1) autonomização dos  
negócios [Geschäfts] por meio da divisão do trabalho; cada um toma  
seu próprio ofício como o verdadeiro ofício [das Wahre]. No que diz  
respeito à relação entre seu ofício e a realidade, eles criam ilusões tão  
mais necessárias quanto isso já é condicionado pela natureza do  
ofício. As relações, na jurisprudência, na política, convertem-se em  
conceitos na consciência; por não estarem acima dessas relações,  
também os conceitos dessas relações são, na cabeça de religiosos,  
juristas, políticos e moralistas, conceitos fixos; o juiz, por exemplo,  
aplica o código, e por isso a legislação vale, para ele, como o  
verdadeiro motor ativo. Respeito por sua mercadoria, pois seu  
negócio [Geschäft] tem a ver com o geral [Allgemeine]. (Marx, 2007,  
p. 77-8, negrito nosso)  
Portanto, longe de ser uma distorção mental de indivíduos, a ilusão dos juristas  
é ilusão necessária e determinada objetivamente pela natureza mesma de seu ofício e  
pela mercadoria com a qual trabalha e é obrigado, enquanto jurista, a respeitar: a  
legislação. “Seu negócio tem a ver com o geral/universal [Allgemeine]” (idem, ibidem)  
justamente na medida em que a lei, na qual “os burgueses devem fornecer uma  
expressão geral de si mesmos, precisamente porque dominam como classe” (Marx,  
2007, p. 77, negrito nosso) e não meramente como estamento, traz em si um caráter  
de generalidade necessário para que possa expressar os interesses médios do  
conjunto da classe burguesa, dos proprietários privados, como o “interesse geral”, a  
vontade geral, de toda a sociedade. Apaga-se, com isto, o conflito real de classes  
antagônicas entre si e com interesses particulares em nome de um interesse geral, de  
modo que, ao fim e ao cabo, interesses particulares (da classe dominante) são  
expressos sob a forma de interesses gerais (de toda a sociedade), sob a forma da lei.  
Nesse sentido, começa a ficar mais claro por que e em que sentido o jurista é  
“o ideólogo da propriedade privada” (Marx, 2007, p. 225), como mencionado acima.  
Descobrimos que a crença necessária dos juristas de que a lei “se baseasse na vontade  
e, mais ainda, na vontade separada de sua base real [realen], na vontade livre(Marx,  
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2007, p. 76) revela-se como a caixa de Pandora de onde escapam todos os seus  
pecados:  
No direito privado, as relações de propriedade existentes são  
declaradas como o resultado da vontade geral. O próprio jus utendi  
et abutendi [direito de uso e consumo/abuso G. M.] denota, por um  
lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se plenamente  
independente da comunidade e, de outro, a ilusão de que a própria  
propriedade privada descansa na simples vontade privada, na  
disposição arbitrária das coisas. Na prática, o abuti traz consigo  
limites econômicos muito bem determinados para o proprietário  
privado, se este não quiser ver sua propriedade, e com ela o seu jus  
abutendi, passando para outras mãos, já que a coisa, considerada  
simplesmente em relação com a sua vontade, não é absolutamente  
uma coisa, mas é apenas no comércio e independentemente do direito  
que ela se torna uma coisa, uma verdadeira propriedade. [...] Essa  
ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, resulta  
necessariamente, no desenvolvimento ulterior das relações de  
propriedade, no fato de que alguém pode ter um título jurídico de  
uma coisa sem ter a coisa realmente. [...] A partir dessa mesma ilusão  
dos juristas explica-se que, para eles e para todos os códigos jurídicos  
em geral, seja algo acidental que os indivíduos estabeleçam relações  
uns com os outros, contratos por exemplo, que essas relações sejam  
consideradas como relações que [podem] ser estabelecidas ou não a  
depender da vontade, e cujo conteúdo [rep]ousa inteiramente sobre  
o [arb]ítrio individual dos contratantes. (Marx, 2007, p. 76-7, negrito  
nosso)  
Na medida em que a divisão do trabalho lhe obriga a enxergar seu ofício como  
“o verdadeiro ofício” e a prestar respeito por sua mercadoria, a qual considera “o  
verdadeiro motor ativo” dos processos sociais, o jurista crê que as relações reais de  
comércio são tal como elas dizem ser: relações voluntárias, livres, contingenciais. Tal  
ilusão, aliás, é o único meio pelo qual o jurista pode manter-se firme em sua fé  
resignada no Direito. Fosse confrontado com a realidade efetiva, teria de descobrir  
que na sociedade civil-burguesa, calcada na propriedade privada em sua forma  
capitalista, firmar um contrato de compra e venda é condição necessária para ter  
acesso a toda a produção social, e, assim, descobriria que a liberdade contratual que  
subjaz seus contratos, na qual crê caninamente, é, na verdade, a liberdade de escolher  
entre vender sua força de trabalho em troca de um salário ou a mendicância, a  
criminalidade etc.  
Caso tomasse gosto pela apreensão da realidade tal como ela de fato é, uma  
investigação mais profunda conduziria nosso já aflito jurista à descoberta de que o  
“desenvolvimento propriamente dito do direito” (Marx, 2007, p. 76) está  
historicamente vinculado ao e determinado pelo desenvolvimento da classe burguesa,  
sobretudo a partir do “aparecimento da concorrência” universal e da consequente  
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“abolição das restrições locais, implementação de comunicações, divisão do trabalho  
evoluída, intercâmbio mundial, máquinas” (Marx, 2007, p. 358), numa palavra, uma  
série de pré-condições materiais para a supressão da ordem feudal mediante  
revolucionamentos burgueses, em cuja consolidação, mediante o “reconhecimento  
oficial do fato” (Marx, 2017, p. 84) o Direito, com sua expressão geral da classe  
burguesa, já enquanto classe dominante, teve papel fundamental. A universalidade da  
lei, expressão geral dos interesses da classe que personifica o capital moderno, cujo  
domínio econômico pressupõe uma “concorrência universal”, é a forma necessária e  
adequada do reconhecimento da supressão dos particularismos feudais e seu direito  
localista e francamente irracional. Por sua vez, os juristas, tanto aqueles práticos  
quanto os teóricos, não são senão a nova posição social demandada por uma divisão  
do trabalho já calcada na concorrência universal e na progressiva generalização da  
relação-capital, que, quanto mais se expande, tanto mais vê na forma geral da lei a  
forma necessária de expressão dos interesses da burguesia ascendente.  
Assim, começamos a identificar a gênese social da “ilusão jurídica, que reduz o  
direito à mera vontade” e crê que “seja algo acidental que os indivíduos estabeleçam  
relações uns com os outros, contratos por exemplo, que essas relações sejam  
consideradas como relações que [podem] ser estabelecidas ou não a depender da  
vontade, e cujo conteúdo [rep]ousa inteiramente sobre o [arb]ítrio individual dos  
contratantes(Marx, 2007, p. 77, negrito nosso). Fosse isso verdade, ter-se-ia como  
consequência prática que bastaria uma modificação da vontade dos indivíduos ou na  
vontade geral supostamente consubstanciada em lei para que as relações sociais  
pudessem ser modificadas ou mesmo revolucionadas, conclusão que, já sabemos a  
essa altura da exposição, ignora por completo o processo de autonomização e  
estranhamento das relações sociais em face dos indivíduos, sua objetividade hostil e  
independente da mera volição. Em algumas passagens mais longas, porém essenciais,  
pelas quais nos desculpamos ao leitor, Marx e Engels explicitam esse processo de  
gênese social do direito como produto do poder nucleado no Estado e das relações  
materiais nas quais se apoia esse poder, e não, como precisam crer os juristas, de  
certa vontade mais ou menos livre.  
Na história real, aqueles teóricos que consideravam o poder como o  
fundamento do direito formavam a oposição frontal àqueles que  
encaravam a vontade como a base do direito [...] Se o poder é suposto  
como a base do direito, como fazem Hobbes etc., então direito, lei etc.  
são apenas sintomas, expressão de outras relações nas quais se apoia  
o poder do Estado. A vida material dos indivíduos, que de modo  
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algum depende de sua mera "vontade", seu modo de produção e as  
formas de intercâmbio que se condicionam reciprocamente são a base  
real do Estado e continuam a sê-lo em todos os níveis em que a  
divisão do trabalho e a propriedade privada ainda são necessárias, de  
forma inteiramente independente da vontade dos indivíduos. Essas  
condições reais de modo algum foram criadas pelo poder do Estado;  
elas são, antes, o poder que o cria. Os indivíduos que dominam nessas  
condições, abstraindo do fato de que seu poder deve se constituir  
como Estado, têm de conferir à sua vontade condicionada por essas  
condições bem determinadas uma expressão geral como vontade do  
Estado, como lei - uma expressão cujo conteúdo sempre é dado pelas  
condições dessa classe, do que o direito privado e o direito criminal  
são a prova mais cabal. (Marx, 2007, p. 317-8, negrito nosso)  
Como já aludimos, as relações sociais condicionadas pela divisão do trabalho  
tornam-se potências estranhas que dirigem o próprio querer e o agir dos indivíduos  
e, nessa passagem, comprova-se que são precisamente tais relações sociais  
estranhadas as potências que servem de base para o Estado, e que esse “anel  
autoperpetuador12 entre relações sociais moldadas pela divisão do trabalho,  
especificamente a relação-capital, de um lado, e, de outro, o Estado, é um produto  
social necessário a certo nível ainda pouco desenvolvido da produção, fato que foge  
por completo ao mero querer dos indivíduos e mesmo à ação do Estado, que é produto  
dessas relações sociais, não produtor. E a lei, com determinação universal, tal como o  
Estado é a forma necessária de constituição do poder da classe dominante, é a forma  
necessária para exprimir a vontade da classe dominante, que não é, por sua vez, de  
modo algum arbitrária, mas materialmente condicionada pelas próprias condições de  
seu domínio classista.  
Assim como não depende de sua [da classe dominante G. M.]  
vontade ou arbitrariedade idealista o fato de seus corpos serem  
pesados, tampouco depende dela impor a sua própria vontade na  
forma da lei, pondo-a, ao mesmo tempo, fora do alcance da  
arbitrariedade pessoal de cada indivíduo entre eles. Seu domínio  
pessoal deve se constituir simultaneamente como um domínio médio.  
Seu poder pessoal se apoia em condições de vida que se desenvolvem  
como condições comuns a muitos, cuja continuidade eles, na condição  
de dominadores, devem afirmar contra outras [condições de vida G.  
M.] e, ao mesmo tempo, como válidas para todos. A expressão dessa  
vontade condicionada por seu interesse comum é a lei. Justamente a  
imposição dos indivíduos independentes uns dos outros e da sua  
própria vontade, que sobre essa base é necessariamente egoísta em  
seu comportamento recíproco, torna necessária a autorrenúncia na lei  
e no direito, autorrenúncia como exceção, autoafirmação de seus  
interesses na média dos casos (que, em consequência, não é  
considerada como autorrenúncia por eles [...]). (Marx, 2007, p. 317,  
12 CHASIN, 2013.  
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negrito nosso)  
A analogia feita pelos autores é significativa: tanto quanto é independente das  
vontades e arbítrios idealistas da classe dominante o fato de sua massa corporal ter  
um peso, assim também o é a necessidade de impor sua vontade de classe (isto é, a  
vontade condicionada pelas condições materiais de seu domínio) na forma de uma  
objetividade independente, autônoma e alheia às vontades e arbítrios individuais dos  
membros da classe dominante isto é, na forma da lei. Esta não se presta a afirmar  
os interesses particulares de certa fração específica da classe dominante, mas  
precisamente os interesses comuns do conjunto dela, mediante o reconhecimento de  
um domínio médio assentado “em condições de vida que se desenvolvem como  
condições comuns a muitos” e, justamente por isso, tal reconhecimento legal pode ser  
e é a “expressão dessa vontade condicionada por seu interesse comum” (ibidem).  
Tem-se, então, que a vontade geral que a ilusão dos juristas, de modo mais ou  
menos ferrenho, crê plasmar-se na lei e no direito é, em verdade, a vontade da classe  
social dominante, a expressão geral das condições médias de seu domínio, e o direito  
mesmo aparece como uma potência estranha em face da sociedade que o produziu, à  
medida que é sintoma idealista dessas relações estranhadas mesmas.  
Um dos corolários desse estranhamento imanente ao Direito se expressa no  
fato de que seus especialistas, os juristas, tenham precisamente nessa determinação  
“geral” da lei e do direito a sua “mercadoria” e seu “negócio” (Marx, 2007, p. 78) em  
sua vida prática, donde fica ainda mais claro em que sentido os juristas são, ainda que  
não o saibam ou o queiram conscientemente, os “ideólogos da propriedade privada”:  
o são na medida em que hipostasiam as leis e relações jurídicas de sua base real e  
professam sem peias a lei como expressão (se não efetiva, ao menos em potência) da  
vontade geral e as relações jurídicas como resultados contingentes de vontades livres  
e autônomas, com o que simultaneamente naturalizam e glorificam as relações de  
produção e propriedade que efetivamente dão o conteúdo da lei e demais  
manifestações do direito.  
Em outros termos, a consequência prática de partilhar dessas ilusões jurídicas  
é, necessariamente, uma posição no mínimo conservadora diante da realidade  
presente, uma vez que, mesmo quando subjetivamente os indivíduos que partam dessa  
perspectiva dos juristas imaginem-se revolucionários, as determinações objetivas da  
lei e do direito (em quaisquer “sociedades onde reina o modo de produção capitalista”)  
(Marx, 2013, p. 113) restringem qualquer luta neste âmbito a uma luta para alterar  
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pontualmente, mas de modo algum suprimir, as condições médias de vida da  
dominação burguesa. A aposta cega na onipotência da vontade, seja a individual, seja  
a ‘geral’, por incompreensão ou ignorância das relações materiais que condicionam  
essas vontades, redunda obrigatoriamente em posições que transitam entre certo  
reformismo pela via jurídica e exortações morais aos bons sentimentos humanos ou à  
revolução.  
Sobre esse aspecto, o esclarecimento e alerta dos autores às classes dominadas  
quanto ao risco de hipertrofiar a vontade também é altissonante:  
O mesmo vale para as classes dominadas, de cuja vontade tampouco  
depende a existência da lei e do Estado. Por exemplo, enquanto as  
forças produtivas não tiverem se desenvolvido a ponto de tornar  
supérflua a concorrência e, por essa razão, reiteradamente  
provocarem a concorrência, as classes dominadas quererão algo  
impossível se tiverem a "vontade" de eliminar a concorrência e, junto  
com ela, Estado e lei. [...] Portanto, não é o Estado que subsiste por  
meio da vontade dominante, mas o Estado que procede do modo de  
vida material dos indivíduos tem também a forma de uma vontade  
soberana. Se esta perde o domínio, então se modificou não só a  
vontade, mas também a existência e a vida material dos indivíduos, e  
só por causa disso a sua vontade. (Marx, 2007, p. 318, negrito nosso)  
Estado, direito e as condições materiais do domínio burguês (aqui, na forma da  
concorrência) são elementos indissociáveis e codeterminantes entre si e têm nas  
condições materiais a base dessas relações, de modo que a vontade que se volta  
contra os primeiros sem ter em conta a objetividade social estranhada destas últimas,  
resulta em uma apoteose da impotência, seja, reiteramos, pela via da pregação moral,  
seja pela via das reformas jurídicas. A vontade dominante na sociedade civil-burguesa  
não é causa, sim produto e reflexo das condições materiais de vida, e só é expressão  
geral da vontade da burguesia na exata medida e até o momento em que a burguesia  
detiver a propriedade privada dos meios de produção material e espiritual, que dão a  
base real àquela vontade dominante, soberana.  
Ademais, vale acrescentar que tal como uma posição quanto aos conflitos do  
presente calcada nessas ilusões jurídicas há de ser uma posição conservadora ou  
reacionária, também a interpretação que se tem do passado e do processo de  
desenvolvimento histórico é contaminada por essas inversões de sujeito e predicado:  
Da mesma maneira se pode, aqui, separar, por sua vez, o direito de  
sua base real [realen], com o que então se consegue extrair uma  
"vontade soberana" que se modifica diferentemente nas diferentes  
épocas e que em suas criações, as leis, possui uma história própria,  
independente. Desse modo, a história política e burguesa se dissolve  
ideologicamente numa história do domínio de leis sucessivas. Esta é  
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a ilusão específica de juristas e políticos, a qual Jacques le bonhomme  
[Max Stirner G. M.] adota sans façon. [...] Ele [Max Stirner G. M.]  
nutre a mesma ilusão que, por exemplo, Frederico Guillerme IV, que  
também considera as leis como simples ideias repentinas da vontade  
soberana e, em consequência, sempre acha que elas fracassam diante  
do "Algo tosco" do mundo. [...] O exame mais superficial da legislação,  
por exemplo da legislação para os pobres em todos os países,  
mostrará o quanto os dominadores avançaram quando imaginaram  
poder impor algo mediante sua simples "vontade soberana", isto é,  
apenas como querentes. (Marx, 2007, p. 319, negrito nosso)  
Com este modo dos juristas de compreender o mundo e a história, eliminam-  
se quanto ao passado e ao presente os conflitos e contradições sociais nos quais se  
deu o desenvolvimento social, transformando-o em um suceder de ideias jurídicas e  
documentos legislativos frutos da vontade geral ou do Volksgeist de cada tempo –  
que são tomados como “o verdadeiro motor ativo” da história (Marx, 2007, p. 78). E  
se as leis forem tomadas como esse motor da história, não haverá nenhuma surpresa  
se um indivíduo embebido dessas ilusões jurídicas propugnar que a luta por novas leis  
ou novas interpretações das leis seja o grande cerne das lutas sociais de seu tempo.  
Seria, antes, a mais lógica das consequências.  
Nossas investigações nos conduzem, então, a um duplo ponto de chegada: se  
há de ser reconhecido, de um lado, o caráter revolucionário que o Direito da moderna  
sociedade civil-burguesa – na qual se teve o “desenvolvimento propriamente dito do  
direito” (Marx, 2007, p. 76) exerceu para a supressão dos privilégios feudais e do  
direito do mais forte [Faustrecht] vigente no Medievo, há que se reconhecer com igual  
necessidade a outra face da moeda, qual seja, sua vinculação necessária com o domínio  
da classe burguesa e a consequente função social necessária de seus especialistas, os  
juristas, na manutenção e reprodução desse domínio.  
Exatamente na época entre o domínio da aristocracia e o da burguesia,  
quando colidiram os interesses de duas classes, quando o intercâmbio  
comercial entre as nações europeias começou a ganhar importância e,  
em consequência, a própria relação internacional assumiu um caráter  
burguês, o poder dos tribunais começou a ter mais relevância,  
chegando ao seu ápice sob o domínio burguês, para o qual essa  
divisão consumada do trabalho é incontornavelmente necessária.  
(Marx, 2007, p. 331, negrito nosso)  
Sublinha-se aqui, novamente, a relação indissociável entre a consolidação de  
relações de produção e intercâmbio de “caráter burguês” e o crescimento e  
consolidação da classe dos juristas, os valiosos ideólogos da propriedade privada. E  
quanto a seu papel na reprodução da sociabilidade burguesa e seu grau de consciência  
disso, Marx e Engels destacam que “é totalmente indiferente o que os servos da divisão  
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do trabalho, os juízes, e até mesmo os professores juris [professores da ciência jurídica]  
imaginam sobre isso” (Marx, 2007, p. 331). Sob essa perspectiva, é plenamente  
extensível aos juristas a afirmação de Marx sobre os portadores de mercadorias na  
sociedade civil-burguesa, que diuturnamente trocam seus distintos produtos como  
valores: “eles não sabem disso, mas o fazem” (Marx, 2013, p. 149). Acrescentaríamos  
apenas: a insciência dos juristas acerca da função social real que exercem na  
reprodução das condições da dominação burguesa é momento necessário à  
reprodução cotidiana da mesma, pois condição indispensável à criação e preservação  
das ilusões inerentes a seu ofício.  
Considerações finais  
Que a causa das ilusões sociais aqui analisadas não se encontra no Direito ou  
nos juristas, que a existência do Direito e dos seus especialistas não é senão uma  
consequência de um estágio específico da produção social, no qual os indivíduos não  
a controlam, mas são por ela controlados, e que este processo de estranhamento  
decorre da própria gênese e expansão da divisão social do trabalho, é algo, a essa  
altura da exposição, já demonstrado.  
Contudo, útil repisar que, enquanto esfera particular de uma sociabilidade que  
reproduz, também com a mediação do Direito, relações sociais estranhadas, o  
fenômeno jurídico torna-se, também, potência estranhada em relação aos indivíduos,  
e os juristas, por sua vez, conscientes disso ou não, protagonizam todo o mise en  
scène pelo qual se reproduz tal estranhamento. Nesse sentido, Marx e Engels são  
explícitos quanto a sua posição, enquanto comunistas, ante o complexo no qual os  
jurista atuam:  
No que se refere ao Direito, afirmamos, entre muitas outras coisas, a  
contraposição do comunismo ao direito tanto em sua modalidade  
política quanto na privada, como também na sua forma genérica como  
Direito do Homem. Ver os Anais Franco-Alemães (p. 206 ss.), onde o  
privilégio e a prerrogativa são concebidos como correspondentes à  
propriedade privada vinculada ao estamento, e o direito é concebido  
como correspondente à situação da concorrência, da propriedade  
privada livre; da mesma forma, o próprio Direito do Homem é visto  
como privilégio e a propriedade privada como monopólio. (Marx,  
2007, p. 205, negrito nosso)  
Ressalte-se novamente como a expansão da divisão social do trabalho na época  
capitalista determina a conexão existente entre o Direito, em sua forma moderna, e a  
forma que a propriedade privada assume na particularidade da produção capitalista,  
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A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
diferentemente daquela que assumia no modo de produção feudal, escravista, asiático  
etc.  
A superação desse estado de coisas, isto é, do caráter estranhado que as  
relações sociais assumem nas sociedades condicionadas pela divisão do trabalho, pra  
sermos coerentes com tudo que se expôs até aqui, não pode se dar simplesmente  
“arrancando-se da cabeça” a representação geral dessas potências estranhadas. Isso,  
com maior ou menor refinamento, é o que sustentaram os jovens-hegelianos e os  
idealistas em geral, impiedosamente criticados por nossos autores. Na perspectiva  
destes, dado o caráter objetivo, real, dessas relações estranhadas, sua superação há  
de se dar também por meios reais: o processo de libertação só pode ocorrer, pois, “se  
os indivíduos voltarem a subsumir essas forças reificadas a si mesmos e superarem a  
divisão do trabalho”, processo este que “não é possível sem a comunidade. É somente  
na comunidade [com outros que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver suas  
faculdades em todos os sentidos; somente na comunidade, portanto, a liberdade  
pessoal torna-se possível” (Marx, 2007, p. 64). Enquanto o indivíduo encontra-se em  
uma sociedade calcada na divisão social do trabalho, isto é,  
quando as circunstâncias sob as quais vive esse indivíduo só lhe  
permitem o desenvolvimento [uni]lateral de uma quali[dad]e às custas  
de todas as demais, [se] elas lhe proporcionam material e tempo para  
desenvolver só uma qualidade, então esse indivíduo logra apenas um  
desenvolvimento unilateral, aleijado. Não há pregação moral que  
ajude.  
E
o
modo como se desenvolve essa qualidade  
preferencialmente favorecida depende, por sua vez, de um lado, do  
material de formação que lhe é oferecido, de outro lado do grau e do  
modo como as demais qualidades permanecem reprimidas. (Marx,  
2007, p. 257, negrito nosso)  
Em uma palavra, a unilateralidade da personalidade dos indivíduos até hoje  
existentes não é e não pode ser tomada como atributo inerente à sua natureza, sim  
algo historicamente condicionado pela configuração específica da divisão social do  
trabalho de suas respectivas épocas e localidades e, portanto, só pode ser superada  
mediante a superação da divisão social do trabalho enquanto tal. Seja jurista, filósofo,  
burguês, sociólogo, biólogo, camponês, jornalista... Enquanto o indivíduo estiver  
subsumido à posição que ocupa na divisão social do trabalho, que lhe é independente  
e dirige sua vontade com sua objetividade estranhada, estará, na melhor das hipóteses,  
sufocado em um “desenvolvimento unilateral, aleijado”. Somente na forma de  
organização social onde a divisão social do trabalho foi suprimida, isto é,  
onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode  
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aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade  
regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje  
fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite  
dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de  
acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador,  
pescador, pastor ou crítico. (Marx, 2007, p. 38)  
Somente em uma forma de sociabilidade, já não mais condicionada pela divisão  
social do trabalho e por sua outra face, a propriedade privada, será, enfim,  
objetivamente possível viver uma vida que “abarca uma grande esfera de atividades  
variadas e relações práticas com o mundo”, isto é, uma “vida multifacetada”, onde a  
atividade humana do pensar, em vez de ser tomada (tal como o fazem os idealistas  
em geral) como única atividade humana ou atividade humana superior (lembre-se a  
crítica de nossos autores a Feuerbach) e que, autonomizada dos indivíduos reais, guia  
o desenvolvimento histórico, passa a ter apenas “o mesmo caráter de universalidade  
de cada uma das demais manifestações vitais desse indivíduo”. Desse modo, tal pensar  
“não se fixa como pensar abstrato, nem há necessidade de artifícios reflexivos  
rebuscados quando o indivíduo passa do pensar para alguma outra manifestação vital.  
Trata-se, sempre, desde o início, de um momento que desaparece e se reproduz de  
acordo com a necessidade no todo da vida do indivíduo” (Marx, 2007, p. 257).  
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São Paulo: Expressão Popular, 2009.  
_____. Crítica à filosofia do Direito de Hegel Introdução. In: MARX, Karl. Crítica à  
filosofia do Direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 3. Ed. São  
Paulo: Boitempo, 2013.  
_____. Para a crítica da economia política. Manuscrito de 1861-63. Belo Horizonte:  
Autêntica, 2010.  
_____. Miséria da filosofia. [tradução de José Paulo Netto]. São Paulo: Boitempo,  
2017.  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 129-153 jan.-jun., 2024  
nova fase  
A posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões em A ideologia alemã  
_____. O Capital. Crítica da economia política. Tradução de Rubens Enderle. São  
Paulo: Boitempo, 2013.  
_____. Manifesto Comunista. Trad. Marcus Mazzari. 2. ed. São Paulo: Hedra, 2017.  
_____. Ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007.  
_____. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010.  
SARTORI, Vitor Bartoletti. De Hegel a Marx: da inflexão ontológica à antítese direta. In:  
Kriterion n.130. Belo Horizonte: 2014.  
_____. Os juristas nas Teorias do mais-valor de Karl Marx: produtividade e  
desenvolvimento capitalista diante da concepção marxiana de socialismo. Verinotio:  
Belo Horizonte, 2020.  
Como citar:  
MACHADO, Gabriel Müller de Jesus Pinheiro. A posição dos juristas na divisão do  
trabalho e suas ilusões em A Ideologia Alemã. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1,  
pp. 129-153; jan.-jun., 2024.  
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ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 129-153 jan.-jun., 2024 | 153  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.706  
O direito sem história e o Estado como  
comunidade ilusória: Marx e Engels sobre história  
em A ideologia alemã  
The law without history and the State as an illusory  
community: Marx and Engels about history in The  
German Ideology  
Edmundo Barboza Filho*  
Resumo: Pela análise imanente dos manuscritos  
conhecidos como A ideologia alemã, procuramos  
esclarecer a relação entre direito, Estado e  
história. O caminho traçado pelos autores, que  
parte das condições práticas colocadas pela  
produção material da vida, revela o Estado e o  
direito como formas delas derivadas, que tem  
seu engendrar histórico delas totalmente  
dependente.  
Abstract: Through the immanent analysis of the  
manuscripts known as The German Ideology, we  
seek to clarify the relationship between law,  
State and history. The path traced by the  
authors, which starts from the practical  
conditions posed by the material production of  
life, reveals the State and the law as forms  
derived  
from  
them,  
whose  
historical  
engendering is completely dependent on them.  
Palavras-chave: Ideologia; História do direito;  
Estado; Trabalho.  
Keywords: Ideology; History of law; State; Work.  
A ideologia alemã e suas questões de leitura  
Em 1848 lançavam Marx e Engels seu Manifesto Comunista, texto no qual  
aparece uma dura consideração sobre o direito: “o vosso direito não passa da vontade  
de vossa classe erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições  
materiais de vossa existência como classe” (MARX; ENGELS, 1998, p. 54-55). Não  
valendo mais a reivindicação do direito contra a abolição da propriedade burguesa,  
ficamos assim sabendo que o direito tem uma determinação de classe, enraizado nas  
condições de existência dos dominantes, assim como as “próprias ideias são produtos  
das relações de produção e de propriedade burguesas” (Idem).  
Em 1847 Marx lançava Miséria da Filosofia, livro que responde diretamente ao  
Filosofia da Miséria de Proudhon (1846). Nele, Marx afirma ser o direito civil “apenas  
*
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com bolsa CAPES. Graduado em  
direito pela mesma instituição. E-mail: edbarbozafilho@hotmail.com.  
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O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória  
uma expressão de dado desenvolvimento da propriedade, isto é, da produção” (MARX,  
2017, p. 53); além da famosa afirmação de que o direito não é mais que o  
“reconhecimento oficial do fato” (Ibid., p. 84)1. Tais afirmações são bem contundentes  
e críticas à noção de um direito que toma a dianteira dos valores de uma sociedade2.  
Ao contrário dela, para Marx o desenvolvimento do direito parece estar diretamente  
atrelado ao estado de desenvolvimento das relações materiais de produção em  
especial, da propriedade -, como quem as reitera ou consolida.  
Nos manuscritos conhecidos como A ideologia alemã (1845-1847)3  
encontramos afirmações bem parecidas com isso; como, por exemplo, a de que:  
Sempre que, por meio do desenvolvi[mento] da indústria e do comércio, surgiram  
novas formas de [in]tercâmbio, [por] exemplo companhias de seguros etc., o direito  
foi, a cada vez, obrigado a admiti-las entre os modos de adquirir a propriedade”  
(MARX; ENGELS, 2011, p. 77). Vê-se, desde já e mais calmamente à frente -, que o  
direito se desenvolve junto com as relações de propriedade, em reconhecimento e em  
relação com elas. Nestes manuscritos os autores vão ainda além, com esta interessante  
anotação: “Não se pode esquecer que o direito, tal como a religião, não tem uma  
história própria(MARX; ENGELS, 2011, p. 76). Tal afirmação encontra justificativa nas  
próprias condições históricas pelas quais o direito e a religião vieram se  
desenvolvendo na sociedade civil-burguesa: a partir da dissolução da comunidade  
natural, vão progressivamente tomando forma de acordo com o alterar das condições  
da produção material da vida. Nesse sentido, como poderemos ver melhor à frente,  
tais esferas não estão apartadas dessas condições colocadas para a sociedade e,  
portanto, não têm um engendrar histórico autônomo. Conclusão essa que apenas é  
possível pois: tendo a sociedade civil-burguesa como fundamento, Marx e Engels  
percorrem seus diferentes estágios desenvolvendo o processo real de produção a  
partir da produção material da vida imediata, sempre concebendo aí a forma de  
1 Gyorgy Lukács foi o primeiro a chamar a atenção para esta passagem, entendendo, a partir dela, que  
o direito constitui uma forma de reprodução consciente dos fatos da vida econômica. Portanto, para  
ele, a passagem “expressa com exatidão a condição de prioridade ontológica do econômico” (LUKÁCS,  
2013, p. 238).  
2 Em A ideologia alemã, como veremos, Marx e Engels estarão combatendo diretamente discursos como  
esse. Max Stirner teria incorrido nesse erro, de forma que para ele as relações jurídicas aparecem apenas  
como domínio do conceito do direito. Assim, para ele “o direito não surge a partir das condições  
materiais dos homens e do conflito que surge entre eles em virtude disso, mas do conflito deles com a  
representação que têm dele, a qual eles devem ‘tirar da cabeça’” (MARX; ENGELS, 2011, p. 307).  
3
Gerald Hubmann, editor da Marx-Engels Gesamtausgabe 2 (MEGA²) - projeto que organiza e editora  
os escritos deixados por Marx e Engels -, diz haver indícios de que os dois autores teriam trabalhado  
nos manuscritos até meados de 1847, e não até junho de 1846, como comumente se veicula  
(HUBMANN; PAGEL, 2022, p. 38).  
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intercâmbio conectada a esse modo de produção que ele engendra. Podemos dizer  
que tal concepção da história subsiste “não de explicar a práxis partindo da ideia, mas  
de explicar as formações ideais a partir da práxis material” (Ibid., p. 42-43). O direito,  
assim como a religião, tem aí uma série de determinações materiais colocadas na  
realidade da divisão do trabalho, que só depois de conhecidas nos permite  
compreender melhor suas expressões como formas ideológicas de consciência4. Como  
Lukács bem aponta, esta é uma escolha “metodológica” presente no jovem Marx que  
não proclama uma dependência mecânica das formas ideológicas sobre o  
desenvolvimento econômico e nem uma dedutibilidade esquemática dele -, “mas  
apenas é constatada a unidade, já de muitas maneiras identificada por nós, do  
processo histórico enquanto continuidade ontológica, a despeito de toda a sua  
contraditoriedade e necessária desigualdade” (LUKÁCS, 2013, p. 270).  
Assim também tomemos o itinerário marx-engelsiano, tentando compreender  
melhor esta relação entre direito e história mencionada acima5. Com enfoque nos  
escritos d’A ideologia alemã, poderemos encontrá-la partindo das condições mais  
básicas de divisão do trabalho, que se desenrolam e complexificam com o  
desenvolvimento do Estado e sua relação com a propriedade privada. Partindo das  
formas mais simples da produção humana, poderemos ver como se desenvolvem delas  
seu reflexo prático-idealista: o Estado, assim como o conjunto dos diversos produtos  
e formas da consciência (MARX; ENGELS, 2011, p. 42-43) nas quais acreditamos se  
encaixar a forma jurídica de consciência. Tal percurso não é errático: reiterando a  
interação histórica entre o homem e o meio sensível não permitindo que se faça da  
história puramente um processo da consciência6 -, tem-se uma atividade material  
múltipla que determina difusamente a produção da vida humana. É justamente por  
4
Em um prefácio, escrito cerca de 12 anos após A ideologia alemã, Marx relembra o seu percurso da  
década de 1840, destacando algumas das conclusões às quais chegou na época. Dentre elas está a de  
que “convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que  
podem ser verificadas fielmente com ajuda das ciências físicas e naturais e as formas jurídicas, políticas,  
religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem  
consciência desse conflito e o levam até o fim” (MARX, 2008, p. 48) (grifos nossos).  
5
Convém deixar a questão da religião para uma oportunidade futura. Vale ressaltar que o tratamento  
dos autores dessa questão em outros escritos - já foi sido esboçada por Gabriel Andrade Perdigão  
(Cf. 2018).  
6
Esta posição é, inclusive, crítica à que assumem os interlocutores de Marx e Engels de A ideologia  
alemã: “Dado que para esses jovens-hegelianos as representações, os pensamentos, os conceitos em  
resumo, os produtos da consciência por eles autonomizada são considerados os autênticos grilhões  
dos homens, exatamente da mesma forma que para os velhos-hegelianos eles eram proclamados como  
os verdadeiros laços da sociedade humana, então é evidente que os jovens-hegelianos têm de lutar  
apenas contra essas ilusões da consciência” (MARX; ENGELS, 2011, p. 84).  
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meio do caráter terreno dessa interação que é possível encontrar as determinações  
práticas que se colocam às organizações humanas. Estado e direito, nesta exposição,  
encontram lugar em uma lógica de dominação colocada pela divisão do trabalho  
baseada na propriedade privada.  
Uma vez sabendo que os autores tratam do direito apenas em meio a outras  
tantas determinações a saber: Estado, propriedade privada, divisão do trabalho,  
forças produtivas , fica ressaltado o caráter não-autônomo dessa esfera da  
sociabilidade humana, que só pode ser realmente compreendido e tratado em meio a  
elas. O pontear desse emaranhado determinístico não se satisfaz apenas de  
representar o real na ideia, mas de constatar a impossibilidade de superação isolada  
em qualquer uma dessas esferas. Ou seja, não pode o direito ou o Estado nos levarem,  
sozinhos, à fundação de uma nova sociedade, mas sim a superação operada em todos  
os planos da produção da vida humana portanto, também na divisão do trabalho, na  
propriedade privada, na apropriação das forças produtivas e ainda em outras. Como o  
direito e o Estado têm suas raízes bem fundadas nessa sociedade que se deseja  
suprimir, é certo que a realização dessa última passa pela destruição daqueles.  
O artigo certamente se afeta por esse caráter que acabamos de citar: para  
melhor compreender o local do Estado e do direito na sociedade civil-burguesa, se  
torna preciso apresentar suas bases materiais. Por isso, assim como os autores fazem,  
partimos do trabalho e seu processo de complexificação, para então entender o papel  
que cumprem o direito e o Estado enquanto formas ideológicas de consciência. A  
história da sociedade civil-burguesa, portanto, tem nessa discussão um papel  
protagonista7.  
Antes de começar, vale trazer alguns pequenos esclarecimentos sobre o  
conjunto dos textos que é objeto deste trabalho, bem como alguns desafios que  
existem ao estudá-los:  
A ideologia alemã se constitui de um conjunto de manuscritos redigidos por  
Marx e Engels durante suas estadas em Bruxelas, entre 1845 e 1847. Neles, além do  
7
Inclusive, a história como categoria que trata do ser é algo que Lukács considera genial na obra  
marxiana, e que tem seu marco nos escritos que aqui analisaremos: “A mais insignificante e modesta  
concretização no âmbito do problema das categorias conduz diretamente à questão central da teoria  
marxiana: a história como princípio fundamental de todo ser. Em termos gerais e precisos, isso foi  
enunciado por Marx já muito cedo (em A ideologia alemã); de fato, é este o princípio que domina do  
início ao fim suas argumentações sobre o ser. Essa constatação tem um caráter profético genial, na  
medida em que, na época de sua formulação, seu fundamento ontológico, o ser como processo  
permanente e irreversível, ainda estava longe de ser reconhecido como constituição ontológica  
fundamental da natureza, muito menos conhecido amplamente” (LUKÁCS, 2010, p. 365)  
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caráter polemista inserido no debate filosófico alemão , há também um quê de  
autoesclarecimento por parte dos autores em escrevê-los8. Ainda na esteira dos  
escritos que fizeram até 1844, a exemplo dos artigos publicados nos Anais Franco-  
Alemães9 e do livro A sagrada família - este último escrito conjuntamente -, nossos  
autores desenham suas críticas àquela que até então era a “mais recente filosofia  
alemã”. Estes manuscritos, que não chegaram a ser editorados em livro e nem a ser  
publicados por Marx e Engels em vida10, contêm críticas direcionadas a alguns dos  
estudiosos de Hegel de seu tempo, em especial: Bruno Bauer, Max Stirner e Ludwig  
Feuerbach11. Estes embates, em que Marx e Engels tentariam acertar as contas com  
suas antigas consciências filosóficas, não encontraram a luz do dia no século XIX em  
razão das adversidades editoriais que se apresentaram ainda na década de 1840 (Cf.  
MARX, 2008, p. 49).  
À época de escrita, Marx declarou em cartas que o manuscrito em coautoria  
com Engels “é necessário para preparar o público para o ponto de vista da minha  
economia, que se opõe diretamente à ciência alemã anterior12 (MARX; ENGELS, 2020,  
p. 48-49). Engels, por outro lado, declarou em 1888 que, ao reencontrar os  
manuscritos, percebeu “o quanto eram incompletos, por àquela época, nossos  
conhecimentos da história econômica” (ENGELS, 2012, p. 132). Na mesma ocasião,  
porém, concordou sobre o valor apreciável que tem o manuscrito que ficou conhecido  
como Teses sobre Feuerbach, de Marx, “por ser o primeiro documento que contém o  
gérmen genial da nova concepção de mundo” (Idem). Vê-se, desde já, que os textos  
redigidos pela dupla em Bruxelas têm grande importância no itinerário intelectual dos  
8
No famoso prefácio de 1859, nos narra Marx: “E quando, na primavera de 1845, ele [Engels] também  
veio domiciliar-se em Bruxelas, resolvemos trabalhar em comum para salientar o contraste de nossa  
maneira de ver com a ideologia da filosofia alemã, visando, de fato, acertar as contas com a nossa antiga  
consciência filosófica. O propósito se realizou sob a forma de uma crítica da filosofia pós-hegeliana. O  
manuscrito [A ideologia alemã], dois grossos volumes em oitavo, já se encontrava há muito tempo em  
mãos do editor na Westphalia, quando nos advertiram que uma mudança de circunstâncias criava  
obstáculos à impressão. Abandonamos o manuscrito à crítica roedora dos ratos, tanto mais a gosto  
quanto já havíamos alcançado nosso fim principal, que era nos esclarecer” (MARX, 2008, p. 49).  
9
Lá encontramos publicados os textos Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução e Sobre a  
questão judaica de Marx e Esboço para uma crítica da economia política de Engels.  
10  
Alguns fragmentos dos manuscritos chegaram a ser publicados em vida pelos autores em outros  
formatos. Exemplo disso é o artigo Karl Grün: Die soziale Bewegung in Frankreich und Belgien  
(Darmstadt 1847) oder Die Gesischichtschreibung des wahren Sozialismus, que Marx publicou em 1847  
na revista Das Westphälische Dampfboot. Outro exemplo foi a publicação, por Engels, das Teses sobre  
Feuerbach, em 1888, como anexo de seu livro Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.  
11  
As recentes declarações dos editores da MEGA² indicam que “dois terços das páginas transmitidas  
do manuscrito de Feuerbach se originaram do embate com Stirner” (HUBMANN; PAGEL, 2022, p. 30).  
As discussões com Feuerbach, assim, têm um ponto de partida comum com as discussões contra Stirner,  
e provavelmente se desenrolariam em um capítulo próprio, que nunca foi terminado (Ibid., p. 36-37).  
12 Carta de Marx para o editor Carl Friedrich Julius Leske, de 1 de agosto de 1846.  
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O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória  
autores, embora não vão além de apresentar seus posicionamentos que já  
despontavam em processo de maturação.  
Ao serem finalmente publicados, os manuscritos não deixaram de ter recepção  
controversa: se, para alguns, contém “a exposição mais completa da teoria social  
fundada por Marx” (RUBEL, 2011, p. 139), ou se representa, para outros, “um corte  
epistemológico inequívoco” no ponto em que o próprio Marx situa sua crítica à sua  
antiga consciência filosófica (ALTHUSSER, 2015, p. 23-24), ou para ainda outros a  
sessão dedicada a Feuerbach foi um dos trabalhos de Marx mais centrais”  
13  
(MCLELLAN, 1973, p. 151); para os atuais editores da MEGA² - do seu lado - é  
pacífico que A ideologia alemã não se trata de uma obra, e que deve ser entendida  
dentro destes limites (Cf. HUBMANN; PAGEL, 2022). Esta última conclusão, vale dizer,  
é baseada no novo projeto filológico de editoração da MEGA (Cf. HUBMANN, 2012),  
que tem encarado os manuscritos de 1845-1847 como fragmentários e incompletos,  
incompatíveis com a configuração de tal estatuto textual.  
Se a descoberta se é que se pode chamar assim dos editores da Marx-  
Engels-Gesamtausgabe sobre A ideologia alemã tem sentido, então vemos suavizadas  
as palavras dos primeiros receptores “da obra” (MUSTO, 2021, p. 36). Não se pode  
esquecer, mesmo assim, que a MEGA, em seu projeto de “despolitização” das  
publicações de Marx14, “é também marcada por uma certa configuração histórica que  
incentiva comentários interpretativos que, [...], cauterizam os aspectos mais incômodos  
e revolucionários do pensamento de Marx” (MARTINS, 2013, p. 142).  
Frente a tudo isso, a leitura que se faz dos manuscritos de Marx e Engels de  
1845-1847 neste trabalho deve assumir o compromisso em questionar o estatuto do  
texto que está sendo analisado, estando subordinada ao sentido nele existente  
objetivamente (FORTES; VAISMAN, 2020, p. XII), buscando na sua tecitura interna a  
gênese social e seus possíveis pontos de contradição. De certo que falamos da análise  
13  
Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA) é o projeto que organiza e editora os escritos deixados por  
Marx e Engels para fins de publicação de suas obras completas. O projeto, descontinuado anteriormente,  
tem agora um novo esforço na Academia de Ciências de Berlim e na Fundação Internacional Marx-Engels  
(IMES) em Amsterdã.  
14  
Declaração do editor Gerald Hubmann: “De início, destaquemos mais uma vez que foi justamente o  
caráter filológico que salvou da mudança histórica o empreendimento da MEGA, antes político. Embora  
pouco de fato pudesse ser revisto no núcleo filológico da MEGA 2 depois de 1990, era ainda preciso  
garantir uma validade consequente para o primado da filologia. A tarefa de despolitização da edição  
era algo novo, especialmente nos comentários. No lugar das anteriores interpretações e imperativos  
editoriais politicamente motivados, surge agora o princípio da historicização consequente da obra de  
Marx. Isso implica uma contextualização intelectual que discuta o pensamento de Marx no nexo de seu  
tempo e no horizonte de seus problemas e questões” (HUBMANN, 2012, p. 43).  
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imanente (Cf. CHASIN, 2009). Tal compromisso - que se toma em respeito à gênese,  
estrutura e função nos textos -, não permite deixar de lado os aspectos “incômodos e  
revolucionários” de Marx e de Engels, evitando também recair em comentários mais  
ou menos destros pelos quais rotineiramente se abordam os discursos deles (Ibid., p.  
25).  
Marx e Engels na história: do trabalho ao Estado ou o Estado como  
comunidade ilusória  
Já pudemos comentar que Marx e Engels têm como ponto de partida para  
uma análise histórica a práxis dos homens na produção de sua vida material imediata.  
A história, assim, tem seu desenvolvimento dependente das condições pelas quais esta  
vida material é produzida. Em outras palavras: “devemos começar por constatar o  
primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a  
história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver  
para poder ‘fazer história’” (MARX; ENGELS, 2011, p. 32-33). Dessa forma, uma  
condição histórica fundamental é a de que seus agentes garantam - antes de tudo -  
comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. A satisfação destas  
necessidades primeiras não encerra, contudo, o percurso histórico: o ato da satisfação  
e o instrumento da realização - uma vez adquirido - são o que conduzem a novas  
necessidades (idem). É justamente no renovar diário das próprias vidas e das  
necessidades que, para nossos autores, reside a história; processo esse no qual os  
homens vão necessariamente estabelecendo relações sociais e desenvolvendo as  
condições de divisão do trabalho, intercâmbio e forças produtivas:  
A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em  
que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de  
produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por  
um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente  
alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente  
diferente as antigas condições. (Ibid., p. 40).  
Esta produção da vida, vale dizer, já aparece como uma relação dupla: de um  
lado como relação natural, de outro como relação social (Ibid., p. 34). Se, por um lado,  
a satisfação das necessidades mais básicas do homem tem lugar na natureza, por  
outro, ele também tem a consciência da necessidade de firmar relações com os  
indivíduos que o cercam. Dessa forma, o homem é atravessado não só pelas relações  
próprias do mundo natural, mas também por aquelas relações que só podem existir  
no seio da sociedade. A realização das necessidades humanas incontornavelmente se  
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O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória  
dá em meio às relações sociais adquiridas historicamente, tanto porque estas  
necessidades agora só podem ser garantidas em meio a elas, quanto porque algumas  
destas necessidades derivam em certa medida dessas relações. Podemos dizer,  
assim, que “Marx não admite uma divisão absoluta entre natureza e sociedade”  
(SCHMIDT, 1971, p. 49). O processo histórico do qual falamos aqui, portanto, está no  
engendrar objetivo e subjetivo das conexões do homem nestes dois “polos”.  
Mostra-se, portanto, desde o princípio, uma conexão materialista dos  
homens entre si, conexão que depende das necessidades e do modo  
de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens uma  
conexão que assume sempre novas formas e que apresenta, assim,  
uma “história”. (MARX; ENGELS, 2011, p. 34).  
Uma vez que tal conexão não se dá de forma idêntica durante todos os  
tempos, estando em constante mudança e a depender das necessidades e do modo  
de produção, pode se falar numa “história” da conexão dos homens no seio da divisão  
do trabalho, já que ela toca imediatamente nas condições práticas das organizações  
humanas, tanto objetivas quanto subjetivas. Se, num dado momento, nossos autores  
apontam essa conexão materialista na cooperação como uma relação social, “no  
sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais  
forem as condições, o modo e a finalidade” (Idem); num outro a cooperação aparece  
como relação não-voluntária e natural (Ibid., p. 38), pois, imposta pela divisão do  
trabalho, é inescapável ao indivíduo uma vez que se identifica com a garantia dos seus  
meios de vida. A relação dupla se expressa novamente: embora com uma faceta  
natural, atravessa os indivíduos com relações sociais, um “poder social”, que aparece  
a eles:  
... como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual não  
sabem de onde veio nem para onde vai, uma potência, portanto, que  
não podem mais controlar e que, pelo contrário, percorre agora uma  
sequência particular de fases e etapas de desenvolvimento,  
independente do querer e do agir dos homens e que até mesmo dirige  
esse querer e esse agir. (Idem).  
Faz-se notar que as relações sociais adquiridas no seio da divisão do trabalho  
tenham, desde já, o poder de dirigir os homens em seu “querer e agir”. Uma força  
como essa só pode ser resultado da interação entre o aumento das necessidades e do  
surgimento de novas relações sociais: a complexificação da divisão do trabalho, que  
se autonomiza com a força de todos os indivíduos cooperados. “Desse modo, todas  
as capacidades que resultam da atividade conjunta dos indivíduos se objetivam como  
entidades autônomas, cada qual conforme o tipo de capacidades e suas formas de  
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realização” (COTRIM, 2012, p. 3-4). Lívia Cotrim percebe bem que para nossos autores  
o Estado figura entre essas entidades, como “corporificação do poder social dos  
indivíduos, previamente extraído deles” (Idem). Antes de chegarmos a ele, ainda temos  
um elemento que compõe sua base que queremos apresentar:  
A chave do nosso “quebra-cabeça” não é apenas a divisão do trabalho, mas  
também o produto da atividade engendrada por ela: a propriedade privada15. Esta  
que, pelos manuscritos d’A ideologia alemã, tem sua primeira forma “na família, onde  
a mulher e os filhos são escravos do homem”16 (MARX; ENGELS, 2011, p. 36),  
atravessa a história e se desenvolve, desde o início, como o poder de dispor da força  
de trabalho alheia. Se a conexão materialista dos homens no seio da divisão do  
trabalho tem uma história, já que se refere à produção de vida humana em permanente  
alteração pelas suas condições objetivas, assim também tem a propriedade, que  
corresponde ao produto dela17.  
Como vimos, na história, as condições de produção legadas por uma geração  
estarão sofrendo constantes alterações operadas pelas seguintes (MARX; ENGELS,  
2011, p. 40). Assim, também sofre alterações a forma da propriedade que  
corresponde a estas condições. As forças produtivas, no processo de seu  
desenvolvimento:  
... aparecem como plenamente independentes e separadas dos  
indivíduos, como um mundo próprio ao lado destes, o que tem sua  
razão de ser no fato de que os indivíduos, dos quais elas são as forças,  
15  
“Além do mais, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas – numa é dito  
com relação à própria atividade aquilo que, noutra, é dito com relação ao produto da atividade” (MARX;  
ENGELS, 2011, p. 37).  
16 Como pôde demonstrar Ronaldo Vielmi Fortes, a partir dos cadernos etnológicos de Marx de 1880-  
1882, o processo de inferiorização da mulher na sociedade acompanha o surgimento da família  
monogâmica no contexto do nascimento da propriedade privada (FORTES, 2018, p. 443). Percebe o  
autor, com isso, uma correlação com as teses que Marx e Engels defendiam já n’A ideologia alemã a  
saber, aquelas pelas quais “a essência da individualidade da mulher característica do período é uma  
determinação histórica, posta e constituída pela forma específica das relações humanas da época, na  
qual a mulher é socialmente subjugada, oprimida pelo homem” (Ibid., p. 445). Melhor dizendo, a  
condição de inferiorização da mulher se relaciona com as condições de produção historicamente  
constituídas, a partir da divisão do trabalho baseada na propriedade privada. É igualmente válido  
conferir a relação entre homem e mulher e estranhamento em Lukács (2013) e no artigo de Ana e Vera  
Cotrim, que também têm em conta a natureza, a sensibilidade, os desejos e as paixões (2020).  
17  
“A divisão social do trabalho e a propriedade privada que lhe corresponde têm, pois, uma história,  
cujo sentido foi a ampliação da própria divisão social do trabalho e, consequentemente, a ampliação da  
cisão entre propriedade e comunidade, até o ponto em que, tendo a propriedade alcançado a forma  
pura, isto é, extinta a comunidade, a sociabilidade toma a forma de estado separado da sociedade civil.  
Também coerentemente com o exposto em textos anteriores, a constituição plena tanto da sociedade  
civil quanto do decorre da completa separação entre vida privada e vida pública, entre indivíduo e  
sociedade, ou entre indivíduo e gênero. Cindidas do conjunto dos indivíduos e coaguladas sob a forma  
de estado, as forças sociais são apropriadas, evidentemente, por outros homens – pela burguesia”  
(COTRIM, 2007, p. 29).  
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O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória  
existem dispersos e em oposição uns com os outros, enquanto, por  
outro lado, essas forças só são forças reais no intercâmbio e na  
conexão desses indivíduos. Portanto, de um lado, há uma totalidade  
de forças produtivas que assumiram como que uma forma objetiva e  
que, para os próprios indivíduos, não são mais as forças dos  
indivíduos, mas as da propriedade privada e, por isso, são as forças  
dos indivíduos apenas na medida em que eles são proprietários  
privados. (Ibid., p. 72).  
O desenvolvimento da propriedade privada emerge como elemento que  
possibilita a autonomização das forças produtivas com relação aos indivíduos. Sendo  
a divisão do trabalho um elemento real dentro da conexão materialista dos homens,  
ela se corporifica e alcança autonomia por meio das relações sociais próprias deles.  
Assim, a propriedade privada se autonomiza contrapondo os indivíduos: “no interior  
da divisão do trabalho, surge uma divisão na vida de cada indivíduo, na medida em  
que há uma diferença entre a sua vida pessoal e a sua vida enquanto subsumida a um  
ramo qualquer do trabalho e às condições a ele correspondentes” (Ibid., p. 64-65). A  
contraposição dos indivíduos, dessa forma, só se dá na medida em que eles são  
proprietários privados, já que as forças produtivas de seu coletivo foram apoderadas  
pela propriedade privada. A separação entre vida pessoal e vida do trabalho escancara  
tal oposição: na condição de proprietários privados, a personalidade desses indivíduos  
“é condicionada e determinada por relações de classe bem definidas” (Idem).  
Dessa conexão entre os homens na divisão do trabalho é que pode se dar a  
contradição entre o interesse de indivíduos ou de famílias singulares e o interesse  
coletivo de todos os indivíduos que se relacionam mutuamente. Se tal conexão dos  
homens é observada efetivamente no trabalho e se esses interesses coletivos são  
expressão dos interesses singulares, sabemos que todos eles são reais e que se  
pautam na cisão entre dois momentos da atividade humana: o momento da elaboração  
e projeção subjetiva do trabalho e o da sua efetivação (COTRIM, 2007, p. 26-27) em  
outras palavras, na divisão social do trabalho consumada. É desta contradição entre  
os interesses coletivos e particulares, possibilitada pela cisão colocada no trabalho, –  
Marx nos deixa saber em nota que:  
... o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma autônoma,  
separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo,  
como comunidade ilusória, mas sempre fundada sobre a base real dos  
laços existentes em cada conglomerado familiar e tribal, tais como os  
laços de sangue, a linguagem, a divisão do trabalho em escala  
ampliada e demais interesses. (MARX; ENGELS, 2011, p. 37).  
Finalmente chegando à questão do Estado, fica claro que ele é a encarnação  
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autonomizada desse interesse coletivo, em contradição com os interesses particulares  
dos indivíduos, colocados em oposição pela divisão social do trabalho. Mas, mais  
importante do que isso, percebemos que Marx e Engels não pressupõem o Estado - e  
nem o direito - como formas naturais de organização dos homens; nossos autores,  
pelo contrário, submetem estas instituições a uma profunda análise histórica, da qual  
elas emergem derivativas das próprias condições práticas das organizações humanas.  
Não existe aí uma noção do Estado como fiel expressão dos interesses de uma  
comunidade, ou de um Estado que dá significado aos indivíduos que a ele pertencem18;  
na verdade, estamos pensando no Estado como uma comunidade ilusória que tem,  
sim, uma base nos laços realmente existentes na materialidade, mas que é uma  
expressão ilusiva e separada dos reais interesses singulares e gerais dos indivíduos  
contrapostos pela propriedade privada. Se o Estado parece se impor aos indivíduos  
quando os interesses individuais destes são diversos do daquele, isso se dá apenas  
porque tal relação de imposição esteve dada desde sempre na realidade da divisão do  
trabalho e da cooperação. Na crítica dos autores vemos emergir claramente as  
determinações materiais que se colocam ao Estado, percebendo que é delas que  
emanam a dimensão política e autônoma deste último. Mais claramente: não só a  
existência do Estado, mas a sua autonomia também, é resultado dos processos de  
desenvolvimento da divisão do trabalho e da propriedade privada19.  
Por meio da emancipação da propriedade privada em relação à  
comunidade, o Estado se tornou uma existência particular ao lado e  
fora da sociedade civil; mas esse Estado não é nada mais do que a  
forma de organização que os burgueses se dão necessariamente,  
tanto no exterior como no interior, para a garantia recíproca de sua  
propriedade e de seus interesses. (Ibid., p. 75).  
Na exposição de nossos autores, o Estado tem um local muito bem demarcado  
na história das civilizações humanas, que alcança sua forma moderna juntamente com  
o desenvolvimento da propriedade privada moderna. Neste momento, impera  
candente sobre ele a dominação da burguesia pelo sistema da dívida pública, sendo a  
sua existência inteiramente dependente do crédito comercial que lhe é concedido pelos  
18  
Esta é a crença, por exemplo, de Max Stirner: “A tese, frequentemente enunciada por São Sancho  
[Max Stirner], de que cada um é o que é por meio do Estado é no fundo a mesma tese segundo a qual  
o burguês é somente um exemplar do gênero burguês; uma tese que pressupõe que a classe do burguês  
já existia antes dos indivíduos que a constituem” (Ibid., p. 63).  
19 Este fato parece não ser trivial para Max Stirner, que, “em sua singeleza, acredita que ‘o Estado vincula  
a posse da propriedade’, ‘assim como faz com tudo, por exemplo, com o casamento, a certas condições’”  
(Ibid., p. 344).  
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proprietários privados20 (Idem). É certo, porém, que o domínio da propriedade e do  
Estado em todas as épocas é vinculado a certas condições, “em primeira linha  
econômicas, dependentes do estágio de desenvolvimento das forças produtivas e do  
intercâmbio” (Ibid., p. 344). Assim, é coincidente da forma mais recente desse Estado  
com a burguesia no poder e em todas as épocas, que ele corresponda à forma de  
garantia da dominação de um certo grupo, da sua propriedade e de seus interesses.  
É bom frisar, uma vez mais, que o fato de o Estado se colocar enquanto  
comunidade ilusória, para Marx e Engels, não significa que se faça dele um construto  
imaginário de conteúdo vazio. Pelo contrário, ele é a expressão própria dos interesses  
coletivos dominantes, que se colocam autonomamente aos interesses singulares e  
gerais. Para garantir a realização dos seus interesses, ele tem a seu dispor o poder  
social, “isto é, a força de produção multiplicada que nasce da cooperação dos diversos  
indivíduos condicionada pela divisão do trabalho” (Ibid., p. 38). Contudo, quando  
falamos das lutas no interior do Estado - por exemplo, a luta entre democracia,  
aristocracia e monarquia -, estamos falando de formas ilusórias da comunidade, por  
meio das quais são travadas as lutas reais entre diferentes classes (Ibid., p. 37). Nossos  
autores nos ensinam que, quando se conjuntura um real histórico, é importante se ter  
em conta que o Estado ocupa apenas um dos locais por onde a história humana é  
travada: o da comunidade ilusória, a expressão política do real dentro da sua  
sociabilidade própria. Ausente das relações de trabalho e propriedade que contrapõem  
os indivíduos, as lutas no interior do Estado isoladas têm pouco a nos dizer sobre uma  
certa sociedade.  
Uma vez que o Estado não está no ponto de partida do desencadear histórico  
como temos mostrado, ele reflete os acontecimentos mediado pelas condições  
materiais de produção da vida e pela disposição dos interesses coletivos e individuais  
dos grupos entre os quais o trabalho está dividido -, é evidente que o desenvolvimento  
histórico é melhor representado não a partir das ações políticas dos príncipes e dos  
Estados, mas a partir da produção material da vida imediata, localizando a sociedade  
civil-burguesa em seus diferentes estágios de onde podemos encontrar os diferentes  
20  
Este tema, que aparece discretamente na Ideologia alemã, assume lugar de grande importância no  
itinerário marxiano posterior, sendo melhor discutido em O capital (Cf. MARX, 2017). Nos manuscritos  
de 1845-1847 vemos apenas a constatação de que o desenvolvimento da acumulação e da propriedade  
burguesa tornou alguns indivíduos cada vez mais ricos, ao passo que o Estado se tornou cada vez mais  
endividado. Tal fato, que inaugura um contínuo estado de dependência do Estado pela burguesia,  
profetizaria o arremate dele por ela (Cf. MARX; ENGELS, 2011, p. 349).  
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grupos de interesses individuais e coletivos contrapostos. Do contrário, caímos em  
uma concepção de história que compartilha das ilusões de cada época histórica. Ou  
seja, nesse caso tomaríamos como força determinante e ativa - que domina a prática  
dos homens - a imaginação, a representação, desses homens sobre a sua práxis real21  
(Ibid., p. 44). Dessa forma, Marx e Engels consumam a concepção de história de que  
falamos até aqui: desenvolvendo o processo real de produção, torna-se possível  
explicar a partir dele as diferentes formas de consciência que dele derivam,  
apresentando o objeto em sua totalidade (Ibid., p. 42).  
Já pincelamos algumas considerações sobre Marx e Engels, n’A ideologia alemã,  
sobre história. Nelas, são notáveis os esforços em não opor natureza e história,  
evitando uma relação de excludência entre elas (Ibid., p. 43-44) - ou seja, um esforço  
em não tratar a produção material da vida como elemento meramente pré-histórico,  
de forma que ter-se-ia, assim, como agente determinante da história um elemento  
extra e supraterreno. Pelo que pudemos demonstrar, nossos autores levantam uma  
concepção que parte do desenvolvimento da produção material da vida em todas as  
épocas, que só então nos permite identificar nas condições desse processo os  
desenvolvimentos ideais (“supraterrenos”) que se fazem delas. Em debate direto com  
os comentadores de Hegel de seu tempo, os autores do Manifesto comunista se  
esforçam em rebater posições que veem na história o desenvolvimento de conceitos,  
ou a realização de uma tal autoconsciência (Cf. Ibid., p. 174-175).  
Dessa maneira, se o Estado e as relações sociais reificadas dos indivíduos têm  
surgimento com uma transformação na sociedade operada pelo desenvolvimento da  
divisão do trabalho, de certo que a superação deste quadro não pode ser operada por  
uma retirada de dentro da cabeça das pessoas da representação do Estado e das  
relações sociais. Pelo contrário, o que defende a dupla é que esta superação só pode  
ocorrer na esfera material, ou seja, “se os indivíduos voltarem a subsumir essas forças  
reificadas a si mesmos e superarem a divisão do trabalho” (Ibid., p. 64).  
21  
“Daí que tal concepção veja na história apenas ações políticas dos príncipes e dos Estados, lutas  
religiosas e simplesmente teoréticas e, especialmente, que ela tenha de compartilhar, em cada época  
histórica, da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época se imagina determinada por motivos  
puramente ‘políticos’ ou ‘religiosos’, embora ‘religião’ e ‘política’ sejam tão somente formas de seus  
motivos reais, então o historiador dessa época aceita essa opinião. A ‘imaginação’, a ‘representação’  
desses homens determinados sobre a sua práxis real é transformada na única força determinante e ativa  
que domina e determina a prática desses homens” (MARX; ENGELS, 2011, p. 44).  
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O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória  
O direito sem história  
A crítica ao Estado também vale para o direito: no Estado, podemos separar as  
ideias das classes dominantes de um período histórico das condições práticas dessa  
dominação, e chegar, com isso, à conclusão de que certas ideias ou conceitos  
dominaram durante aquele período: “então poderemos dizer, por exemplo, que  
durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra,  
fidelidade etc.” (Ibid., p. 48). Faltaria, assim, localizar corretamente o lugar que ocupa  
a esfera do Estado no sistema de dominação, e assim perceber que as classes  
dominantes de uma época são as detentoras da força material dominante da  
sociedade, e, portanto, também da força espiritual dominante. Mais claramente: “as  
ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais  
dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias” (Ibid., p.  
47). Marx e Engels nos fazem perceber que as classes dominantes só dominam  
idealmente porque também dominam materialmente - na esfera da produção da vida  
humana e da divisão do trabalho , e que é daí que vem a sua capacidade de tornar  
as suas ideias os ideais dominantes. Assim sendo, as lutas travadas no interior do  
Estado, isoladas, novamente falham diante da completude do objeto histórico. O  
Estado não tem uma história própria.  
Para o direito, igualmente:  
Da mesma maneira se pode aqui, separar, por sua vez, o direito de  
sua base real [realen], com o que então se consegue extrair uma  
“vontade soberana” que se modifica diferentemente nas diferentes  
épocas e que em suas criações, as leis, possui uma história própria,  
independente. Desse modo, a história política e burguesa se dissolve  
ideologicamente numa história do domínio de leis sucessivas. Esta é  
a ilusão específica de juristas e políticos...22 (Ibid., p. 319).  
Se, no Estado, é possível fazer uma história do domínio de ideias sucessivas,  
no direito podemos acreditar num domínio sucessivo de leis. Isto só é possível isolando  
as esferas do direito e do Estado de suas bases reais. É certo, porém, que tal maneira  
de enxergar a história faz parte do imaginário ilusório dos políticos e juristas. Eles  
criam ilusões:  
... tão mais necessárias quanto isso já é condicionado pela própria  
natureza do ofício. As relações, na jurisprudência, na política,  
convertem-se em conceitos na consciência; por não estarem acima  
dessas relações, também os conceitos dessas relações são, na cabeça  
22  
“... da qual Jacques le bonhomme [Jacó, o tonto Max Stirner] adota sans façon [sem rodeios]” é o  
resto do trecho.  
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de religiosos, juristas, políticos e moralistas, conceitos fixos; o juiz,  
por exemplo, aplica o código, e por isso a legislação vale, para ele,  
como o verdadeiro motor ativo. Respeito por sua mercadoria, pois seu  
negócio tem a ver com o geral. (Ibid., p. 78).  
Há aí uma relação duplamente atravessada: não simplesmente o trabalho do  
jurista e do político se insere na lógica de dominação do indivíduo pelas relações  
sociais próprias da divisão do trabalho no seio da propriedade privada como já vimos  
-, mas também há nele uma afirmação, inerente ao próprio ofício, da dominação de  
conceitos abstratos sobre a realidade, que obscurecem a real dominação que se dá na  
esfera material do trabalho. O fato de que a aplicação do código, para o jurista, valha  
como o verdadeiro motor ativo da sociedade tem relação com o respeito que ele tem  
com o próprio ofício, que lhe aparece como “o verdadeiro ofício”, ao mesmo tempo  
que também lhe é seu meio de vida, sua mercadoria. Reflete nesta postura, contudo,  
o ocultamento ou a insciência dos nexos materiais colocados entre direito e  
propriedade privada23.  
Já sabemos que as relações de produção se autonomizam dos indivíduos no  
âmbito da divisão do trabalho. Essas relações, naturalmente, passam a só poderem ser  
expressas em termos de linguagem na forma de conceito. A crítica de Marx e Engels  
endereçada a Max Stirner aproxima-o dos políticos e juristas e explica estas ilusões  
comuns a eles, reafirmando que são as relações de produção, e não o direito, o  
verdadeiro fundamento das reais relações de propriedade:  
O fato de essas generalidades e esses conceitos serem considerados  
como forças misteriosas, é uma consequência necessária da  
autonomização das relações reais [realen], cuja expressão eles  
constituem. Além dessa validade para a consciência comum, essas  
generalidades ainda adquirem uma validade e uma conformação  
especial dos políticos e juristas, os quais, em virtude da divisão do  
trabalho, dependem do cultivo desses conceitos e veem neles, e não  
nas relações de produção, o verdadeiro fundamento de todas as reais  
[realen] relações de propriedade. (Ibid., p. 351).  
Sobre estas falas de Marx e Engels, há um interessante trabalho já escrito  
quanto à questão da posição dos juristas na divisão do trabalho e suas ilusões (Cf.  
MACHADO, 2022). Nele conclui-se, em certo momento, que os autores tratam estas  
ilusões como uma forma de estranhamento presente no direito, sendo o autor certeiro  
a respeito da classe dos juristas frente a ele:  
Um dos corolários desse estranhamento imanente ao Direito se  
expressa no fato de que seus especialistas, os juristas, tenham  
23 Nexos esses que serão melhor explorados à frente.  
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precisamente nessa determinação “geral” da lei e do direito a sua  
“mercadoria” e seu “negócio” em sua vida prática, donde fica ainda  
mais claro em que sentido os juristas são, ainda que não o saibam ou  
queiram conscientemente, os “ideólogos da propriedade privada”24: o  
são na medida em que hipostasiam as leis e relações jurídicas de sua  
base real e professam sem peias a lei como expressão (se não efetiva,  
ao menos em potência) da vontade geral e as relações jurídicas como  
resultados contingentes de vontades livres e autônomas, com o que  
simultaneamente naturalizam e glorificam as relações de produção e  
propriedade que efetivamente dão o conteúdo da lei e demais  
manifestações do direito. (MACHADO, 2022, p. 20)  
Machado percebe aí que, na medida em que partilham dessas ilusões jurídicas,  
a posição dos juristas é “uma posição no mínimo conservadora diante da realidade  
presente” (Idem). Sendo o direito um aparato que se pretende de caráter universal e  
autoengendrado, pode-se alimentar a partir dele a ilusão de que tudo pode ser feito  
e mediado por seus institutos. Acreditando que as relações jurídicas são impulsionadas  
pelas vontades livres dos indivíduos, como expressão da vontade geral, não enxergam  
as raízes que elas têm na produção da vida humana, baseada na dominação pelo  
trabalho. Assim, ainda que o jurista se considere um revolucionário, as determinações  
objetivas da lei e do direito “restringem qualquer luta neste âmbito a uma luta para  
alterar pontualmente, mas de modo algum suprimir, as condições médias de vida da  
dominação burguesa” (Idem). É claro que é necessário, assim, que a ilusão presente  
entre os juristas - e a sua insciência dela - corrobore com a função social real que essa  
classe exerce na reprodução das condições da dominação burguesa (Ibid., p. 22-23).  
Voltando à Ideologia alemã, poderemos perceber melhor este caráter conservador do  
direito e do jurista frente à realidade:  
Assim como puderam revelar o Estado como forma derivativa das organizações  
humanas no seio da divisão do trabalho, também podem Marx e Engels agora partir  
do direito, encontrando seus fundamentos materiais: para nossos autores, da mesma  
forma como o Estado aparece enquanto comunidade ilusória, dando uma  
representação autônoma aos interesses coletivos dominantes, o direito também se faz  
instrumento de dominação: “na lei, os burgueses devem fornecer uma expressão geral  
de si mesmos, precisamente porque dominam como classe” (MARX; ENGELS, 2011, p.  
77). Na lei, como no Estado, a classe que domina imprime seus interesses particulares  
como se estes fossem um interesse geral, e logo se deixam expressar enquanto classe  
nestes espaços, pois é nisto que consiste o ordenamento social que tem como  
24 Machado faz referência à jocosa expressão de Marx e Engels: “Já o jurista, o ideólogo da propriedade  
privada, ainda pode tagarelar algo nesse sentido” (MARX; ENGELS, 2011, p. 225).  
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fundamento a dominação (Ibid., p. 49). Este não é um fato que se dá pela pura  
arbitrariedade dos indivíduos dominantes, mas que se dá porque:  
A vida material dos indivíduos, que de modo algum depende de sua  
mera “vontade”, seu modo de produção e as formas de intercâmbio  
que condicionam reciprocamente são a base real do Estado e  
continuam a sê-lo em todos os níveis em que a divisão do trabalho e  
a propriedade privada ainda são necessárias, de forma inteiramente  
independente da vontade dos indivíduos. Essas condições reais de  
modo algum foram criadas pelo poder do Estado; elas são, antes, o  
poder que o cria. Os indivíduos que dominam nessas condições,  
abstraindo do fato de que seu poder deve se constituir como Estado,  
têm de conferir à sua vontade condicionada por essas condições bem  
determinadas uma expressão geral como vontade do Estado, como  
lei. (Ibid., p. 317-318).  
O que nossos autores deixam claro é que há a ilusão de que a lei se baseie na  
vontade dos indivíduos; uma vontade que, geralmente, é separada de sua base real,  
uma “vontade livre”25. A ilusão cai por terra assim que se percebe que a lei é uma  
expressão geral dos interesses dos indivíduos dominantes condicionada pela produção  
de sua vida material, seu modo de produção e as formas de intercâmbio aí conectadas.  
Não há como se falar em uma “vontade livre” nesse caso, mas em uma vontade  
condicionada pelas próprias condições de dominação no desenvolvimento da divisão  
do trabalho. O Estado não cria estas condições que se colocam na vida material dos  
indivíduos, pelo contrário, ele que é criado por elas - e é daí que vem a sua “soberania”.  
Em outras palavras: “não é o Estado que subsiste por meio da vontade dominante,  
mas o Estado que procede do modo de vida material dos indivíduos tem também a  
forma de uma vontade soberana” (Ibid., p. 318).  
Ainda sobre isso, Marx e Engels apontam que os teóricos do direito discordam  
se o poder ou a vontade é o fundamento do direito. Não é possível dizer que nossos  
autores se alinhem com alguma dessas interpretações, mas é certo que uma delas  
sintomatiza algo que eles já vinham dizendo sobre o direito a saber, a de que o  
poder do Estado deriva do “poder social” dos indivíduos cooperados: “Se o poder é  
suposto como a base do direito, como fazem Hobbes etc., então direito, lei etc. são  
apenas sintomas, expressão de outras relações nas quais se apoia o poder do Estado”  
(Ibid., p. 317).  
Da longa passagem que acabamos de trazer (Cf. MARX; ENGELS, 2011, p. 317-  
25  
Max Stirner é a quem se direcionou essa crítica, pois, em sua obra O Único e sua propriedade, ele  
teria dito que “os Estados só duram enquanto houver uma vontade dominante e essa vontade for vista  
como idêntica à vontade própria. A vontade do senhor é.… lei” (STIRNER, 2004, p. 156).  
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O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória  
318), ainda há mais a ser dito: a vida material dos indivíduos, seu modo de produção  
e as formas de intercâmbio de um certo momento histórico são a base real do Estado  
enquanto forem necessárias a divisão do trabalho e a propriedade privada. Assim,  
existe o Estado independentemente da vontade dos indivíduos que o compõem. Para  
além disso: os elementos que compõem sua base real persistem enquanto  
necessitarem os indivíduos da divisão do trabalho e da propriedade privada que lhe  
correspondem. Enquanto não existirem condições de superá-las, os indivíduos viverão  
contrapostos de forma inescapável no seio destas relações adquiridas historicamente.  
O direito, para aqueles que dominam nestas condições e que tem seu poder  
constituído como Estado -, serve como forma de expressar a si e a seus interesses.  
Já temos delineados os fundamentos que levam os autores a crer que “o direito  
não tem uma história própria” (Ibid., p. 77). De acordo com o que vimos, embora o  
Estado e o direito tenham se autonomizado dos indivíduos no desenvolvimento das  
relações produtivas e da propriedade privada, estas esferas não estão apartadas das  
condições práticas da produção material da vida. Um olhar histórico para o direito e  
para o Estado nos leva a perceber que todo o conteúdo deles esteve sempre atrelado  
a estas últimas. Assim sendo, o direito não é capaz de nos revelar sobre um período  
histórico muito mais do que a expressão jurídica dos interesses das classes dominantes  
de um certo tempo. Ele é incapaz sozinho de direcionar o desenvolvimento de uma  
sociedade, já que isto depende de uma série de fatores práticos colocados na  
materialidade. O que é seguro dizer é que o direito tem seu desenvolvimento  
simultâneo com o da propriedade privada, e, portanto, com o desenvolvimento das  
condições de produção da vida: “sempre que, por meio do desenvolvi[mento] da  
indústria e do comércio, surgiram novas formas de [in]tercâmbio, [...] o direito foi, a  
cada vez, obrigado a admiti-las entre os modos de adquirir a propriedade” (Idem).  
Assim, para nossos autores, o direito não tem um desenvolvimento simultâneo paralelo  
às relações de propriedade, mas um desenvolvimento conectado e em relação direta  
e de obrigação com elas. Ele é, nesse caso, reconhecimento das novas formas de  
propriedade.  
Sabendo disso, são exemplificativos os fatos de que “Amalfi, a primeira cidade  
que, na Idade Média, praticou um extenso comércio marítimo, formulou também o  
direito marítimo” e de que “tão logo a indústria e o comércio desenvolveram a  
propriedade privada, primeiro na Itália e mais tarde noutros países, o desenvolvido  
direito privado romano foi imediatamente readotado e levado à posição de autoridade”  
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(Ibid., p. 76). Diferentemente do caso romano, no qual o desenvolvimento da  
propriedade privada e do direito privado não teriam gerado consequências industriais  
e comerciais pois não teria provocado também uma expansão da indústria e do  
comércio -, o que temos para o direito na época da dissolução da comunidade feudal  
é um conjunto de determinações práticas que se colocam: assim que a regulação da  
propriedade privada se ergueu necessária, vimos o direito romano ser reincorporado  
- e ressignificado, já que aqueles princípios e conceitos estavam sendo inseridos em  
um contexto histórico completamente diferente. Podemos dizer, assim, que o direito  
expressa os interesses comuns das classes dominantes de um certo período, os  
consolidando e/ou reiterando. Além disso, o desenvolvimento dele, neste último  
exemplo, tem um caráter desigual ressaltado uma vez que ele se dá em face do  
desenvolvimento da propriedade privada caso no qual o espaço de balizamento dele  
parece curto demais para falarmos em uma autodeterminação. Pelo contrário, Marx e  
Engels parecem indicar que, de fato, o direito é objeto de instrumentalização pelas  
relações de produção.  
Outro fator, ainda, chama a atenção sobre aqueles exemplos da Ideologia alemã:  
o direito tem seu desenvolvimento bem presente em um contexto em que a produção  
já coloca a cidade e o campo em oposição. Não se trata de mera coincidência, mas, de  
fato, estamos falando de um período em que a divisão do trabalho subjuga os  
indivíduos e reproduz diariamente a oposição entre eles: a oposição cidade-campo “é  
a expressão mais crassa da subsunção do indivíduo à divisão do trabalho, a uma  
atividade determinada, a ele imposta uma subsunção que transforma uns em  
limitados animais urbanos, outros em limitados animais rurais” (Ibid., p. 52). É certo  
que falamos de uma oposição que só pode existir no interior da propriedade privada  
e que cria sua própria administração: “Com a cidade surge, ao mesmo tempo, a  
necessidade da administração, da polícia, dos impostos etc., em uma palavra, a  
necessidade da organização comunitária e, desse modo, da política em geral” (Idem).  
Este é um processo colocado em marcha pela autonomização do “poder social” dos  
indivíduos cooperados, projeto no qual o direito tem um papel de viabilização dos  
interesses “gerais” dominantes. Sendo inegável que a marca da oposição entre campo  
e cidade seja o desenvolvimento unilateral dos indivíduos, que, na expressão de Marx  
e Engels, se tornam limitados animais urbanos e rurais, “a superação da oposição entre  
cidade e campo é uma das primeiras condições da comunidade” (Idem). Para que ela  
se realize, porém, dizem os autores haver uma série de “pressupostos materiais” a  
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O direito sem história e o Estado como comunidade ilusória  
serem satisfeitos, bem como há consequências: o desaparecimento das bases dessa  
oposição a saber, da divisão do trabalho, da propriedade privada, do direito, do  
Estado, da política, da apropriação unilateral das forças produtivas etc. Para saber mais  
sobre a oposição cidade-campo como colocada pelos autores na Ideologia alemã,  
conferir Barboza Filho (Cf. 2022) e Sartori (Cf. 2023).  
Voltando às bases materiais do direito, é possível perceber a partir da evolução  
histórica do poder dos tribunais processo marcado pela lamúria dos feudalistas em  
relação à evolução do direito26 - o quanto as condições jurídicas estão associadas ao  
desenvolvimento do “poder social” oriundo da divisão do trabalho:  
Exatamente na época entre o domínio da aristocracia e o da burguesia,  
quando colidiram os interesses de duas classes, quando o intercâmbio  
comercial entre as nações europeias começou a ganhar importância e,  
em consequência, a própria relação internacional assumiu um caráter  
burguês, o poder dos tribunais começou a ter mais relevância,  
chegando ao seu ápice sob o domínio burguês, para o qual essa  
divisão consumada do trabalho é incontornavelmente necessária.  
(Ibid., p. 331).  
No período de dissolução da sociedade feudal, tiveram os comerciantes um  
papel fundamental. A especialização de uma classe comerciante possibilitou uma maior  
ligação entre as cidades e uma separação entre produção e comércio27. Rompida com  
a limitação local, a produção operada pelos homens está cada vez mais conectada e,  
assim, fica evidente a dependência multifacetada dos indivíduos nessa “forma natural  
de cooperação histórico-mundial” (Ibid., p. 41). É neste momento, de já avançado  
desenvolvimento da divisão social do trabalho, que começa a burguesia a ganhar um  
certo poder; não porque domina a máquina estatal isso só ocorreria mais tarde -,  
26 A referência de Marx e Engels neste assunto, apontada em nota, é o historiador Amans Alexis-Monteil,  
de quem podemos encontrar coisas como: “Y a-t-il rien de plus bizarre qu’um magistrat qui, em hiver,  
juge les différends des citoyens, est gardien de leurs droits respectifs et qui, em été, va dans la  
campagne ennemie butiner, ravager, incendier ? Qui, en hiver, tient suspendu le glaive de la justice sur  
la tête de l’accusé qu’on amène pieds et poings liés devant son tribunal, et qui, en été, prend sa plus  
longue épée, va s’en escrimer à tort et à travers sur les champs de bataille, où tantôt il frappe et tantôt  
il est frappé ? [...] Répondez-moi encore, Messires ; pensez-vous que des gend’armes qui ne savent rien  
soient bien heureux d’être conseillés par des conseillers savants ? Pensez-vous aussi que des conseillers  
savants soient bien heureux de conseiller des gend’armes qui ne savent rien, qui ne sont pas même en  
état de recevoir leus conseils ? Soyez sûrs que dans ces cours de bailliage, de sénéchaussée, où la  
science en robe longue, en chaperon est présidée par l’ignorance en robe courte, en épée, personne  
n’est heureux” (MONTEIL, 1848, p. 285-286).  
27  
“Com o comércio constituído numa classe especial, com a expansão do comércio por meio dos  
comerciantes para além dos arredores mais próximos da cidade, surgiu prontamente uma ação recíproca  
entre a produção e o comércio. As cidades estabeleceram ligação umas com as outras, novas  
ferramentas formam levadas de uma cidade para outra e a separação entre produção e comércio  
provocou rapidamente uma nova divisão da produção entre as diversas cidades, que passaram cada  
qual a explorar um ramo industrial predominante. A limitação inicial à localidade começou gradualmente  
a desaparecer” (MARX; ENGELS, 2011, p. 54-55).  
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mas porque domina a produção, que neste momento cresce incontornavelmente. Passa  
ela a imprimir seus interesses no comércio internacional e na jurisprudência, já que é  
protagonista nestas demandas. A chegada ao poder do Estado marca apenas a  
consumação dessa divisão do trabalho, que é profundamente necessária ao domínio  
burguês.  
Assim sendo, fica delimitado o local do jurista no seio da divisão do trabalho  
baseada na propriedade privada, e a história que o direito tem está completamente  
subsumida à história do conjunto dessas relações produtivas; de forma que “é  
totalmente indiferente o que os servos da divisão do trabalho, os juízes, e até mesmo  
os professores juris [professores da ciência jurídica] imaginam sobre isso” (Ibid., p.  
331). Trata-se de um domínio que não pode ser parado por um simples decreto de  
Estado ou por um mando judicial: falamos de um domínio que nasce das próprias  
condições organizativas da produção da vida humana. Marx e Engels percebem que  
os poderes de fato que surgem da divisão do trabalho não podem ser convertidos  
arbitrariamente no poder pessoal de alguém por meio do direito28, pois a história dele  
próprio está imbricada com o desenvolvimento desses poderes. Historicamente  
enraizado nas condições práticas colocadas pela divisão do trabalho, se coloca como  
instrumento a elas necessário e delas dependente enquanto não puderem ser ambos  
superados. Da esfera subjetiva, toda apologética que se possa fazer do direito  
enquanto motor ativo da sociedade se mostra improlífera e diz mais sobre como a  
classe dos juristas enxerga a si própria do que sobre a efetiva manifestação dele na  
história.  
A ciência da história: uma maneira de concluir  
Há um célebre trecho n’A ideologia alemã que trata da história a saber, aquele  
em que Marx e Engels declarariam: “Conhecemos uma única ciência, a ciência da  
história” (Ibid., p. 86-87). Eles anunciariam na passagem seguinte uma história da  
natureza e uma história dos homens, que, enquanto existirem homens, sempre se  
28 Contra Max Stirner: “Para ele, trata-se tão somente das designações, pois a coisa mesma ele não toca,  
já que não conhece as condições reais sobre as quais se apoiam essas diversas formas do direito e na  
expressão jurídica das relações de classe só consegue vislumbrar as designações idealizadas daquelas  
condições bárbaras. [...]. Em última instância, portanto, São Sancho [Stirner] chega, uma vez mais, apenas  
ao impotente mandamento moral de que cada Um deve buscar satisfação para si mesmo e aplicar penas  
a si mesmo. Ele acredita em Dom Quixote quando este lhe diz que, por meio de um simples mandamento  
moral, pode sem mais nem menos transformar os poderes de fato que surgem da divisão do trabalho  
em poderes pessoais” (MARX; ENGELS, 2011, p. 331).  
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condicionarão reciprocamente (Idem). Embora confirmem que os dois lados não  
possam ser separados, o restante do trecho anunciaria algo sobre as intenções de  
Marx e de Engels [vai abaixo a passagem completa]:  
Conhecemos uma única ciência, a ciência da história [Wissenschaft der  
Geschichte]. A história pode ser examinada de dois lados, dividida em  
história da natureza [Geschichte der Natur] e história dos homens  
[Geschichte der Menschen]. Os dois lados não podem, no entanto, ser  
separados; enquanto existirem homens, história da natureza e história  
dos homens se condicionarão reciprocamente. A história da natureza,  
a assim chamada ciência natural [Naturwissenschaft], não nos diz  
respeito aqui; mas, quanto à história dos homens, será preciso  
examiná-la, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção  
distorcida dessa história ou a uma abstração dela. A ideologia, ela  
mesma, é apenas um dos lados dessa história. (Idem).  
Faz-se importante pontuar que os manuscritos deixados por Marx e Engels são  
cadernos cujas folhas se encontram divididas em duas colunas: na esquerda vai o texto,  
na direita as anotações deles. O trecho acima, embora muitas vezes publicado como  
parte do texto integral, se inclui na coluna destra (Cf. ENDERLE, 2011, p. 19; Cf. MARX;  
ENGELS, 1970, p. 567). É, certamente, tortuoso afirmar contundentemente sobre  
trechos que os autores suprimiram, especialmente em se tratando de um conjunto de  
rascunhos não editorados e não publicados em vida. Mais irresponsável seria utilizar  
as passagens como máximas, sem as devidas mediações. Tomando os devidos  
cuidados, veremos o que este trecho nos diz sobre o que vimos hoje:  
Parte-se da inseparabilidade entre “história da natureza” e “história dos  
homens”. Evitando a oposição entre ambas, nos aproximamos de uma concepção pela  
qual a “história dos homens” é diretamente relacionada com a interação destes homens  
com a natureza, que integra a base real dessa história (Cf. MARX; ENGELS, 2011, p.  
43-44). Schmidt identifica que estas duas frentes formam uma unidade diferenciada,  
sem deixar que uma se funde na outra29 (SCHMIDT, 1971, p. 45). Defendem Marx e  
Engels, assim, uma atividade sensível, na qual se compreende os homens em suas  
contínuas interações entre si e com o meio que os cerca, na produção de sua vida  
material imediata.  
Se temos o foco nestas interações na materialidade, fica claro que Marx e Engels  
não tratam a questão histórica como algo que se engendra de um processo de  
consciência do indivíduo. Sobre isso, eles são enfáticos que, “desde o início, portanto,  
29 “Natural and human history together constitute for Marx a differentiated unity. Thus human history is  
not merged in pure natural history; natural history is not merged in human history” (SCHMIDT, 1971, p.  
45).  
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a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens”  
(MARX; ENGELS, 2011, p. 35). A consciência, para além de seu atravessamento natural,  
se desenvolve na medida em que os indivíduos se associam e melhoram as condições  
de produção de suas vidas30; e, como a melhoria destas condições é necessariamente  
concebida enquanto resultado da associação dos indivíduos no trabalho, então a  
sociabilidade é entendida como condição de possibilidade do pensamento (VAISMAN,  
1996, p. 187). Assim sendo, os elementos mais determinantes para a história estão  
nestas condições práticas que se colocam aos indivíduos para satisfação de suas  
necessidades - não no produto da consciência humana frente a elas. Como vimos, estas  
condições, enquanto frutos da interação sensível entre homens e natureza  
reciprocamente, se encontram sempre alteradas a cada geração que sucede.  
Se tal concepção da história não admite um devir já que é multideterminada  
por condições práticas e imediatas operadas pelos homens e pelo seu meio, sem  
regras fixas -, também é difícil dizer que admita etapismos ou um caminhar mecânico.  
Permanece curioso, assim, o fato de que a passagem célebre que comentamos fale em  
uma “ciência da história” [Wissenschaft der Geschichte]: destoa da reivindicação de tal  
ciência a ausência, nos manuscritos, de direcionamentos teóricos-metodológicos da  
forma como operam as ciências para a análise histórica. Aliás, todos os outros trechos  
do manuscrito falam apenas em concepção - ou visão - da história  
[Geschichtsauffassung], e não em ciência. Mas, se dela for o caso, tal ciência parece se  
mover de forma peculiar, e não por meio de uma “arrumação operativa” da  
subjetividade acompanhada de procedimentos ditos científicos31. Pelo contrário, Marx  
e Engels fazem a crítica desta postura, anunciando que sua concepção de história não  
necessita:  
... de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações  
ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de  
que todas as formas e [todos os] produtos da consciência não podem  
30 “Essa consciência de carneiro ou consciência tribal obtém seu desenvolvimento e seu aperfeiçoamento  
ulteriores por meio da produtividade aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da  
população, que é a base dos dois primeiros” (MARX; ENGELS, 2011, p. 35).  
31  
O professor José Chasin parece resumir bem àquilo que nos referimos: “Se por método se entende  
uma arrumação operativa, a priori, da subjetividade consubstanciada por um conjunto normativo de  
procedimentos, ditos científicos, com os quais o investigador deve levar a cabo seu trabalho, então, não  
há método em Marx. Em adjacência, se todo método pressupõe um fundamento gnosiológico, ou seja,  
uma teoria autônoma das faculdades humanas cognitivas, preliminarmente estabelecida, que sustente  
ao menos parcialmente a possibilidade do conhecimento, ou, então, se envolve e tem por compreendido  
um modus operandi universal da racionalidade, não há, igualmente, um problema do conhecimento na  
reflexão marxiana. E essa inexistência de método e gnosiologia não representa uma lacuna” (CHASIN,  
2009, p. 89).  
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ser dissolvidos por obra da crítica espiritual, [...], mas apenas pela  
demolição prática das relações sociais reais de onde provêm essas  
enganações idealistas. (MARX; ENGELS, 2011, p. 43).  
Chegamos a um ponto de encontro com o que nos resta analisar da passagem  
célebre: Marx e Engels compreendem a necessidade de adotar uma visão crítica da  
historiografia, pois é na medida em que ela é idealizada que nos aproximamos de uma  
abstração ou de uma distorção, propriamente, da história real32. Se abstraímos da  
história o seu conteúdo real, que é dado pelas condições materiais e práticas da  
produção da vida humana, chegamos a uma representação deste processo que é  
encaminhado por conceitos demasiado abstratos e unilaterais. A dupla nos ensina que,  
com isso, não nos aproximamos de explicar o objeto histórico; pelo contrário,  
passamos a crer que um processo que se realiza na interação sensível - pelos homens  
entre si e com seu meio é encaminhado por um conjunto de ideias derivadas de uma  
ou algumas esferas da socialização humana. Contra esse equívoco, os autores deixam  
o aviso: “A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história” (Ibid., p. 87);  
de forma que não se pode admitir uma história do direito ou do Estado apartada das  
outras condições de produção da vida humana, pois formam um todo diferenciado as  
formas ideológicas e todos os pressupostos materiais dados tanto pela natureza  
quanto pela sociedade que aí incidem. Resume bem o que queremos dizer a  
professora Ester Vaisman, ao constatar que “O caráter determinante da vida, de um  
lado, e o determinado da consciência, de outro, suprimem a possibilidade da existência  
de uma história ideal independente da história realmente constituída pelos indivíduos  
em seu meio material” (VAISMAN, 1996, p. 151).  
Não parece estar em jogo aqui uma noção de ideologia enquanto falseamento  
ou falsa-consciência, mas sim uma reafirmação da determinação social do pensamento  
(Cf. VAISMAN, 1996). Quanto mais nos aproximamos dos reais determinantes da  
produção da vida humana, mais percebemos a incompletude das formas ideológicas  
de consciência e dos conceitos enquanto narradores da história. Se desenvolvemos o  
processo real de produção a partir da produção material da vida imediata, concebendo  
a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção por ele engendrada,  
explicando a partir disso o conjunto das diferentes criações teóricas e formas de  
32 Acreditamos estar correta a professora Ester Vaisman ao notar que “na obra em questão [A ideologia  
alemã], o termo ideologia se refere categoricamente à filosofia especulativa neohegeliana” (VAISMAN,  
1996, p. 152) e que “’idealismo’ e ‘ideologia’ são empregados explicitamente como equivalentes,  
designando procedimentos de caráter especulativo” (VAISMAN, 1996, p. 146).  
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consciência, então somos capazes de apresentar nosso objeto na totalidade (MARX;  
ENGELS, 2011, p. 42). Neste processo, percebemos que o homem e a sua consciência  
não podem ser separados da natureza, uma vez que “a capacidade do homem de  
pensar é um produto da natureza e da história” (SCHMIDT, 1971, p. 31)33. Entendendo  
a relação sensível que o homem tem com o seu entorno, passamos a compreendê-lo  
não somente como agente movente, mas também como agente movido. Marx e Engels,  
assim, despem as formas ideais de consciência: tornando evidentes as origens e  
determinantes materiais colocadas historicamente para elas, descem nuas do pedestal  
de demiurgos do processo histórico.  
Isto não impede, contudo, que os juristas e políticos acreditem que as esferas  
do direito e do Estado estejam conduzindo a história, dissolvendo todo o caráter  
político e burguês que ali reside em uma história das leis e dos príncipes (MARX;  
ENGELS, 2011, p. 319). Já sabemos como essas narrativas são possíveis uma vez que  
o direito e o Estado têm seus fundamentos nas condições práticas de produção da  
vida material. Não se pode esquecer, porém, que representam unilateral e  
ilusoriamente os verdadeiros interesses colocados dentro desse processo: “a ideologia  
[...] é apenas um dos lados dessa história” (Ibid., p. 87). Marx e Engels ensinam que  
tais representações ilusórias só podem se concretizar com a autonomização das  
relações de produção, pois é a partir do momento em que a divisão do trabalho se dá  
consumada que “a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da  
consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real”  
(Ibid., p. 35). Ainda assim, teríamos uma resposta incompleta se disséssemos que as  
ilusões criadas pelos juristas são resultado de mero equívoco: elas têm uma função  
social real na lógica de dominação dada pela divisão do trabalho baseada na  
propriedade privada e reproduzem diariamente as condições dessa dominação.  
Portanto, concordamos com Machado que, “longe de ser uma distorção mental de  
indivíduos, a ilusão dos juristas é ilusão necessária e determinada objetivamente pela  
natureza mesma de seu ofício e pela mercadoria com a qual trabalha” (MACHADO,  
2022, p. 16).  
Todo o esforço empregado por Marx e Engels no ponteio da produção da vida  
material imediata, percebendo as formas ideológicas de consciência como parte  
determinada pelas condições dessa produção, tem um arremate prático: todos estes  
33 Nature cannot be separated from man; man and the accomplishments of his spirit cannot be  
separated from nature. Man’s capacity for thought is a product of nature and history”.  
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produtos da consciência não podem ser superados apenas tirando-os da cabeça ou  
criticando-os; antes, a superação deles depende da demolição prática das relações  
sociais que lhes dão origem (MARX; ENGELS, 2011, p. 43). Há ao fim de tudo a  
constatação de que, se se considera que as classes estão contrapostas na concorrência:  
... enquanto as forças produtivas não tiverem se desenvolvido a ponto  
de tornar supérflua a concorrência e, por essa razão, reiteradamente  
provocarem a concorrência, as classes dominadas quererão algo  
impossível se tiverem a “vontade” de eliminar a concorrência e, junto  
com ela, Estado e lei. (Ibid., p. 318).  
A ironia é clara: a existência da lei e do Estado em nada depende da vontade dos  
indivíduos em especial, das classes dominadas (Idem), mas depende das condições  
pelas quais a produção da vida humana se dá, baseada na propriedade privada e na  
divisão do trabalho. Se estas condições ditam um jogo de dominação entre classes  
distintas, a superação desse quadro também não se torna possível pela simples  
vontade da classe dominada, mas apenas com um revolucionamento que desenvolve  
e apodera os homens dessas forças produtivas, tornando supérfluas as condições de  
dominação. Com isso, não apenas se nega a possibilidade de se ditar a história por  
meio do direito ou pela mera vontade, mas também reiteram os autores a necessidade  
de se alterar as condições de produção, pois nelas residem os reais determinantes da  
história humana. Marx e Engels não se contentam, assim, com a mera constatação de  
um Estado enquanto comunidade ilusória e de um “direito sem história”; eles acabam  
por perceber a incompletude que existe nestas formas ideológicas de consciência. A  
11ª tese de Marx contra Feuerbach resume bem sua posição: “os filósofos apenas  
interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX,  
2011, p. 535). Se as formas ideológicas são constatadas enquanto unilaterais frente  
ao todo histórico, igualmente não é por meio delas que se quer nele interferir: antes,  
há que se abrir mão de todos os pressupostos materiais que dão base a elas não só  
o Estado e o direito, mas também a divisão do trabalho, a propriedade privada, a  
oposição cidade-campo, as classes etc.  
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Como citar:  
BARBOZA FILHO, Edmundo. O direito sem história e o Estado como comunidade  
ilusória: Marx e Engels sobre história em A ideologia alemã. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 29, n. 1, pp. 154-181; jan.-jun., 2024  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 154-181 jan.-jun., 2024 | 181  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.707  
O papel do terreno jurídico na Prússia  
revolucionária: uma análise da função ideológica  
do direito nos escritos marxianos da Nova Gazeta  
Renana  
The role of the legal terrain in revolutionary Prussia: an  
analysis of the ideological function of law in the Marxian  
writings of the New Rhenish Gazette  
José Roberto Almeida Sales Júnior*  
Resumo: O presente artigo tem como objetivo  
discutir o papel do direito na Prússia na  
Revolução de 1848 tendo os escritos de Marx na  
Nova Gazeta Renana como referência. Busca-se  
com isso um delineamento de qual teria sido a  
função do terreno jurídico para o autor alemão  
no período em questão e os seus reflexos  
posteriores para a formação do capitalismo  
prussiano tendo como base seus escritos  
jornalísticos do período.  
Abstract: The present paper has the aim of  
discussing the role of law in the 1848  
Revolution occurred in Prussia having the works  
of Marx in the Neue Reinisch Zeitung as the  
frame of reference. The objective of the present  
work is to underscore the function of the  
Prussian legal basis for the German writer within  
the chosen timeframe and its repercussions on  
the development of Prussian capitalism, having  
his journalistic texts of the time as research  
material.  
Palavras-chave: Marx; Nova Gazeta Renana;  
direito;  
Capitalismo; Via prussiana.  
Terreno  
jurídico;  
Revolução;  
Keywords: Marx, Neue Reinische Zeitung; Law;  
Legal basis; Revolution; Capitalism; Prussian  
path to capitalism.  
O presente artigo tem como objetivo expor a visão de Marx sobre o papel do  
que ele denominava como “terreno do direito” (utilizado de forma intercambiável com  
“direito” no presente texto1) na Revolução de 1848 a partir dos textos da Neue  
Reinisch Zeitung (Nova Gazeta Renana, em tradução livre, a partir daqui referenciada  
como NGR)2. A partir disso pretende-se concluir se e de que maneira e extensão o  
*
Graduado e mestre em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:  
malarauco@hotmail.com  
1
Marx usa a expressão “terreno do direito” entre aspas de forma irônica em alguns textos ou trechos  
da Nova Gazeta Renana, notadamente ao comentar a teoria ententista de Camphausen, exposta  
posteriormente. Entretanto, em diversos outros excertos ele a utiliza de forma intercambiável com  
“direito”, opção aqui realizada para retomar a sua terminologia.  
2
Trata-se de estudo desenvolvido em sede de dissertação de mestrado denominada “O direito como  
“freio irracional” na formação do capitalismo na Prússia revolucionária: a analítica marxiana do território  
jurídico na Nova Gazeta Renana” realizado por José Roberto Almeida Sales Júnior no Programa de Pós-  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
direito teria exercido influência na formação do capitalismo prussiano para o autor  
renano, uma vez que o destino da malsucedida Revolução de 1848 significou uma  
implantação incompleta do projeto burguês ali e nos estados alemães, incidindo  
decisivamente na forma que o capitalismo viria a assumir na futura Alemanha unificada,  
caracterizando a chamada via prussiana de formação do capitalismo, distinta da via  
clássica observada em França e na Inglaterra.  
Para dar conta dessa empreitada, optou-se pela utilização da análise imanente  
dos textos marxianos. Com isso, buscou-se uma penetração profunda nas palavras do  
próprio Marx para tentar extrair dali a sua percepção dos fenômenos históricos que se  
desenrolavam em seu tempo, utilizando-se da visão do autor renano para poder  
observar de que forma o direito teria influenciado na Revolução de 1848 e os  
desdobramentos disso no futuro desenho institucional da Prússia e,  
consequentemente, da Alemanha, e de que forma tal arcabouço institucional teria  
interagido com o capitalismo alemão.  
A análise imanente caracteriza-se como uma postura investigativa defendida  
pelo filósofo J. Chasin que pregava pelo mergulho dentro do texto marxiano, sem se  
perder em abstrações ideais por parte do investigador. Com isso seria buscada a  
objetividade contida no texto original de Marx, desvendo a lógica do real presente nos  
seus escritos, sem perder de vista os problemas que a forma escrita traz por também  
ser uma abstração ideal3.  
Essa postura busca afastar os condicionamentos prévios do intérprete da obra  
marxiana ao erigir como horizonte interpretativo o fato de a obra do autor renano ser  
algo novo no desenvolvimento da filosofia, inaugurando um momento que encarava a  
concretude da materialidade na sua complexidade ontológica em vez de submeter o  
concreto à lógica de formações ideais prévias, desnudando a estrutura operativa  
mesma de funcionamento do real (CHASIN, 2009, p. 27).  
Defende-se então o respeito estrito ao texto marxiano como balizador  
fundamental da descoberta da lógica de operação do direito no período em questão.  
Esse esforço metodológico, por sua vez, demanda uma análise sistemática que exaure  
Graduação em Direito e Inovação da Universidade Federal de Juiz de Fora.  
3
[...] a postura analítica deve propender ao compromisso com a solidez dos vigamentos que  
caracterizam a chamada análise imanente ou estrutural. Tal análise, na melhor tradição reflexiva, encara  
o texto - a formação ideal - em sua consistência autossignificativa aí compreendida toda a grade de  
vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e  
suficiências, como também as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. (CHASIN, 2009, p.  
25, grifos do autor).  
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do texto esses nexos lógicos. Por isso, tal esforço exige um quadro de investigação  
complexo e extenso, de forma a reproduzir, na medida do possível, a totalidade das  
interações sociais da época de acordo com a ótica do autor renano.  
Ainda esclarecemos que o terreno jurídico ou o direito será analisado na sua  
função ideológica, aqui partindo-se de uma concepção ontoprática de ideologia. Com  
origem na obra de Lukács, a leitura do direito na sua função ideológica ontoprática,  
caracteriza-o como complexo social apto a orientar o desenvolvimento social numa  
direção específica4, dando materialidade organizativa favorável a um dos lados de um  
conflito social, no caso em análise, no conflito entre as classes burguesa, aristocrata,  
operária e camponesa da Prússia na época. Distante da mera concepção gnosiológica  
que equipara ideologia com uma “falsa consciência”, entende-se então o direito como  
ideologia numa acepção que baliza a sua atuação material, concreta, destacando o seu  
efeito real sobre o embate entre as classes sociais destacadas e o seu desfecho, de  
forma a deixarem expostas as preferências e associações de classe dos operadores do  
direito no mundo concreto, desnudando assim a lógica de atuação efetiva do terreno  
jurídico no mundo social:  
Na análise da ideologia do direito, o critério válido é, portanto, a  
verificação se, mesmo que falso, o seu ser-precisamente-assim é capaz  
de desempenhar uma função de regulação e ordenação da vida  
socioeconômica de forma eficiente. (VAISMAN, 2010, p. 53).  
Percebe-se então que a análise imanente é uma ferramenta apta a encarar o  
estudo da função do direito na função ideológica. Na medida em que o estudo do  
direito como ideologia importa no esclarecimento do seu papel histórico concreto  
dentro da interlocução entre os setores sociais, tendo o econômico como eixo  
articulador, a análise imanente do texto marxiano auxilia no esclarecimento da lógica  
operativa própria desse setor no caso específico da investigação da Revolução de  
1848 e o nascimento do capitalismo prussiano. Ao subsidiar o pesquisador com um  
ferramental rigoroso de análise dos textos marxianos para extração do panorama  
histórico das articulações dos setores sociais concretos que compunham a  
sociabilidade no período revolucionário, a análise imanente permite então que seja  
4 Na medida em que o ser social exerce uma determinação sobre todas as manifestações e expressões  
humanas, qualquer reação, ou seja, qualquer resposta que os homens venham a formular, em relação  
aos problemas postos pelo seu ambiente econômico-social, pode, ao orientar a prática social, ao  
conscientizá-la e operacionalizá-la, tornar-se ideologia. Ou seja, ser ideologia não é um atributo  
específico desta ou daquela expressão humana, mas, qualquer uma, dependendo das circunstâncias,  
pode se tornar ideologia. (VAISMAN, 2010, p. 50).  
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exposta a lógica operativa real do direito na sua aplicação prática pela burocracia  
prussiana através dos relatos de Marx, em detrimento de uma análise puramente  
ideológica sobre os diplomas ou teorias legais da época5. Ressalta-se apenas que, em  
virtude das limitações do formato artigo6, a apresentação do resultado da pesquisa  
desenvolvida será focada nos principais pontos levantados pela investigação realizada.  
Assim, quando se fala em analisar o direito e seu papel na formação do  
capitalismo prussiano, pretende-se não apenas uma análise do direito encarado como  
ciência teórica cujo objeto de estudo são os pronunciamentos estatais gerais e  
abstratos, mas também a função e forma práticas do terreno jurídico no meio social, a  
forma como os operadores jurídicos agem na realidade material concreta7. Apenas  
dessa maneira será possível uma apreensão global do fenômeno jurídico nas suas  
diversas articulações como o meio social, em que a prioridade ontológica do fenômeno  
econômico não encapsula o direito de forma separada das outras esferas sociais, mas  
serve como eixo articulador desse substrato material com o próprio terreno jurídico,  
bem como desse último com os outros setores sociais, abrangendo uma totalidade de  
interações recíprocas que perfazem o meio social8.  
O recurso ao texto jornalístico, inclusive, embora tenha as suas limitações (que  
serão abordadas posteriormente), também favorece essa concepção na medida em  
que, além de deixar resplandecer as observações do Marx enquanto teórico abstrato,  
também permite que o autor renano desenvolva as suas observações acompanhando  
o desenrolar dos fatos, atuando quase como historiador9. Isso fornece ao pesquisador  
5
Por análise imanente, portanto, não se compreende o estudo que confere ao produto ideológico  
explícito, origem e desenvolvimento imanente ao próprio campo das ideologias. Isso equivale a dizer  
que as ideologias, como todas as manifestações superestruturais, não possuem uma história autônoma,  
mas esta sua condição de dependência genética das forças motrizes de ordem primária não implica que  
elas não se constituam em entidades específicas, com características próprias em cada caso, que cabe  
descrever numa investigação concreta que respeite a trama interna de suas articulações, de modo que  
fique revelado objetivamente seu perfil de conteúdos e a forma pela qual eles se estruturam e afirmam.  
(CHASIN, 1978, p. 77).  
6
Para maiores informações sobre o método de análise (análise imanente) e o objeto (direito na sua  
função ideológica) da pesquisa que embasou o presente artigo cf. SALES JÚNIOR, 2018, p. 15-25.  
7 Marx, inclusive, ao defender a NGR da perseguição judicial sofrida pelo jornal em função do seu papel  
no contexto revolucionário, comentava sobre a relação entre burocracia judiciária e poder soberano  
real, numa acepção aproximativa com o conceito aqui utilizado para orientar a pesquisa: “Se, em um  
discurso, “incito ao armamento contra o poder soberano”, não é evidente que incito à “resistência  
violenta contra funcionários”? A existência do poder soberano é justamente seus funcionários, exército,  
administração, juízes. Abstraído deste seu corpo ele [o poder soberano] é uma sombra, uma ilusão, um  
nome. (MARX, 2010h, p. 482, grifos do autor e comentário nosso).  
8
Para maiores considerações sobre o direito como ideologia a partir de uma perspectiva ontoprática  
cf. VAISMAN, 2010, p. 41-64.  
9
Embora o foco no presente texto seja uma parcela da história prussiana que possa ser enquadrada  
como história do direito, importa salientar que os escritos de Marx na NGR englobam uma miríade de  
assuntos que não se limitam ao direito da época.  
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a oportunidade de ter em Marx uma testemunha da época gerando um relato de  
primeira mão sobre acontecimentos históricos do período analisado, bem como  
imprimindo o seu olhar teórico ao observado, formando um quadro analítico rico no  
qual o autor alemão descreve os acontecimentos aplicando e formando entendimentos  
que, em maior ou menor maturação, fariam parte do seu horizonte intelectual.  
Tendo, portanto, esses dois eixos articuladores, a análise imanente do texto  
marxiano bem como o objetivo de dele extrair a função ideológica do direito na  
Revolução de 1848 na Prússia, tem-se delimitado o objeto e o modo de investigação.  
Já o objetivo, como ressaltado, será a busca por compreender qual teria sido o papel  
do terreno jurídico nesse período e, a partir disso, se e em que medida ele teria  
influenciado a formação do capitalismo alemão, especialmente no que tange às suas  
particularidades.  
Para fazer jus a proposta apresentada, primeiro será exposta a maneira como  
Marx encarava, no momento dos textos da NGR, a relação entre direito e sociedade.  
Após será mostrado um breve resumo sobre o desenrolar dos fatos históricos da  
Revolução de 1848 até o golpe que a derrubou. Por fim, será mostrado o desenho  
institucional jurídico pensado para a Prússia no período pós-1848 pela aristocracia  
feudal, de forma a se encaminhar para uma conclusão a partir da análise da função  
concreta do direito, indicando por fim o que foi possível extrair dos textos marxianos  
sobre o papel do terreno jurídico na formação da via prussiana do capitalismo.  
Direito e sociedade na NGR  
Especificamente sobre a relação geral entre direito e sociedade, os escritos da  
NGR trazem uma posição de Marx bastante concisa, porém clara, sobre o tema. Importa  
então destacá-la uma vez que ela vai ao encontro da linha adotada no presente artigo,  
justificando a interação entre o terreno jurídico e o desenvolvimento dos modos de  
produção em uma sociedade específica, abordando como o direito em especial pode  
favorecer ou obstaculizar esse desenvolvimento.  
Ao defender o Comitê Distrital dos Democratas Renanos em relação à  
perseguição jurídica sofrida por este último10, Marx profere um longo discurso,  
reproduzido no jornal, no qual ele questiona a legitimidade da legislação eleitoral  
produzida pela Dieta Unificada. Marx argumentava que esse corpo legislativo, formado  
10 Para maiores detalhes cf. MARX, 2010k, p. 459-475 ou SALES JÚNIOR, 2018, p. 261-276.  
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por latifundiários, representava uma forma de organização social em vias de superação  
e transformação, sendo confrontada por um novo modo de vida, a organização  
burguesa da sociedade:  
O modo de vida, de produção, de ocupação desses senhores já  
mostra, portanto, a mentira de suas tradicionais e pomposas ilusões.  
A propriedade fundiária como elemento social dominante pressupõe  
o modo de produção e de troca medieval. A Dieta Unificada  
representava esse modo de produção e de troca medieval, que há  
muito cessara de existir, e cujos representantes, por mais que se  
apeguem aos velhos privilégios, igualmente desfrutam e exploram as  
vantagens da nova sociedade. (MARX, 2010k, p. 462, grifo do autor)  
A revolução de 1848, por sua vez, teria significado a negação e superação  
desse modelo de sociedade11, não sendo possível que a Dieta Unificada tivesse  
legitimidade para embasar o novo direito que surgiria após a revolução pois ela  
representava apenas:  
A defesa de leis pertencentes a uma época social passada, elaboradas  
por representantes de interesses sociais decadentes ou declinantes,  
portanto apenas a elevação a lei destes interesses que estão em  
contradição com as necessidades gerais. (MARX, 2010k, p. 463).  
Com isso, o Marx da NGR defendia que o terreno jurídico de uma determinada  
sociedade tivesse como embasamento a sua forma própria de sociabilidade. Assim,  
não era o direito o ponto originário de uma sociedade, não era o terreno jurídico o  
responsável por estruturar a forma específica de uma dada sociedade, mas sim a  
vivência concreta dos cidadãos na materialidade das suas relações sociais,  
particularmente as atinentes ao seu modo de produção específico, que deveria ditar  
os rumos de conformação do direito às suas necessidades sociais:  
Mas a sociedade não se baseia na lei. Isso é uma ilusão jurídica. Ao  
contrário, a lei deve basear-se na sociedade, deve ser expressão de  
seus interesses e necessidades comuns, resultantes do modo de  
produção material atual, contra o arbítrio do indivíduo isolado. (MARX,  
2010k, p. 463, negritos nossos).  
Como exemplo dessa situação, Marx retoma o Code Napoléon12 francês,  
11  
A sociedade nova, burguesa, apoiada em fundamentos totalmente diferentes, em um modo de  
produção transformado, precisava apoderar-se também do poder; precisava arrebatá-lo das mãos que  
representavam os interesses da sociedade declinante, um poder político cuja organização inteira  
resultara de relações sociais materiais muito diferentes. Daí a revolução. A revolução foi, por isso,  
dirigida igualmente contra a monarquia absoluta, a expressão política mais alta da velha sociedade, e  
contra a representação estamental, que representava uma ordem social há muito negada pela indústria  
moderna, ou no máximo as ruínas ainda arrogantes de estamentos a cada dia mais superados pela  
sociedade burguesa, empurrados para o segundo plano, dissolvidos. (MARX, 2010k, p. 462-463, grifos  
do autor).  
12 O Code Napoléon foi instituído na região do Reno após a sua conquista por Napoleão. Representava  
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conjunto de leis promulgadas em França para atender aos interesses burgueses. Ali  
era visível que a alteração social engendrada pela ascensão do modo de produção  
burguês determinou a criação de uma nova legislação apta a satisfazer as necessidades  
desse novo modelo produtivo. Futuramente, cessando a predominância desse modelo,  
tal legislação deveria ser abandonada. O mesmo deveria ocorrer na Prússia, não sendo  
possível então que a antiga legislação do período feudal servisse de fundamento para  
as novas exigências legais que as alterações liberais da sociabilidade prussiana  
almejavam, já que essas leis medievais não criaram a situação material tipicamente  
feudal, mas apenas serviram às necessidades que essa condição anteriormente  
demandava; tampouco era possível que essa legislação feudal restaurasse tais  
condições sociais ultrapassadas:  
O Code Napoléon, que eu tenho aqui em mãos, não gerou a moderna  
sociedade burguesa. Ao contrário, a sociedade burguesa, nascida no  
século XVIII e desenvolvida no século XIX, apenas encontra no Code  
sua expressão legal. Assim que deixar de corresponder às relações  
sociais, ele não passará de um pedaço de papel. Os senhores não  
podem fazer das velhas leis o fundamento do novo desenvolvimento  
social, assim como tampouco estas velhas leis geraram as velhas  
condições sociais. (MARX, 2010k, p. 463, negrito nosso).  
Ao surgirem em contextos determinados, notadamente no contexto de  
predominância das relações de produção medievais, com o desaparecimento desse  
contexto específico, deve essa antiga legislação medieval também ser superada. A  
insistência na manutenção desse arcabouço jurídico contra as tendências do progresso  
burguês representaria apenas uma forma da aristocracia feudal de tentar manter os  
seus interesses em detrimento dos anseios sociais modernos, tentativa essa que dava  
ao terreno jurídico um caráter notadamente reacionário. Ao se utilizar do direito para  
bloquear, em vez de fomentar, as tendências de alteração nos padrões de produção  
dos setores econômicos da Prússia, tem-se que:  
A defesa das velhas leis contra as novas necessidades e exigências do  
desenvolvimento social não passa, no fundo, da defesa hipócrita de  
interesses particulares anacrônicos contra o interesse geral  
contemporâneo. Esta defesa do terreno do direito pretende que tais  
interesses particulares vigorem como dominantes quando eles não  
mais dominam; pretende impor à sociedade leis que foram  
condenadas pelas próprias relações vitais desta sociedade, por sua  
forma de trabalho, seu intercâmbio, sua produção material, pretende  
manter legisladores que se ocupam apenas de interesses particulares,  
uma legislação mais moderna, de molde burguês, em contraponto às obrigações feudais, extintas após  
a tomada do território e não completamente retomadas mesmo após a re-anexação à Prússia.  
(VASILYEVA, 2010, v. 7, p. 627, nota 186)  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
pretende abusar do poder político para sobrepor violentamente os  
interesses da minoria aos da maioria. Ela entra, pois, a todo momento  
em contradição com as necessidades existentes, inibe a circulação, a  
indústria, ela prepara crises sociais que explodem em revoluções  
políticas. (MARX, 2010k, p. 463, grifos do autor).  
Marx relatava que a Dieta Unificada havia acabado por ficar responsável por  
estabelecer as leis orgânicas que coordenariam a atuação da Assembleia Nacional  
Prussiana13, criada pela Revolução de 1848 para proceder às reformas burguesas. Tal  
papel recaiu sobre a Dieta em virtude da teoria ententista14 de Camphausen e a  
tentativa de manutenção de uma continuidade do terreno jurídico na Prússia. A  
Assembleia Nacional, entretanto, retirava a sua legitimidade da revolução, de forma  
que ela teria apenas concedido uma formalidade à Coroa (representada pela Dieta), já  
que a Assembleia havia sido:  
[...] eleita pelo povo para estabelecer autonomamente uma  
constituição que correspondesse às condições de vida que haviam  
entrado em conflito com a organização política até então vigente e  
com as leis até então vigentes.” (MARX, 2010k, p. 464).  
Assim, ao destacar o conflito entre Assembleia e Coroa no momento após a  
contrarrevolução, Marx indicava que era importante enfatizar que esse embate não era  
apenas entre facções políticas com discordâncias pontuais, tais como entre situação e  
oposição num cenário político corriqueiro, mas sim representava uma discordância  
fundamental entre os modos de sociabilidade que tais setores representavam, o  
burguês e o feudal, respectivamente:  
O que houve aqui não foi um conflito político entre duas frações sobre  
o terreno de uma sociedade, foi o conflito entre duas sociedades  
mesmas, um conflito social que assumiu uma figura política, foi a luta  
da velha sociedade feudal-burocrática com a moderna sociedade  
burguesa, a luta entre a sociedade da livre concorrência e a sociedade  
corporativa, entre a sociedade dos proprietários fundiários e a  
sociedade da indústria, entre a sociedade da fé e a sociedade do  
saber. A expressão política correspondente à velha sociedade era a  
coroa pela graça de Deus, a burocracia tuteladora, o exército  
independente. O fundamento social correspondente a este velho  
poder político era o proprietário fundiário nobre e privilegiado com  
seus camponeses servis ou semisservis, a pequena indústria patriarcal  
ou corporativamente organizada, os estamentos isolados uns dos  
outros, o brutal antagonismo entre campo e cidade, e sobretudo o  
domínio do campo sobre a cidade. (MARX, 2010k, p. 470-471, grifos  
do autor).  
13  
Corpo legislativo convocado para escrever a constituição da Prússia após a revolução, que deveria  
ser promulgada em comum acordo com a Coroa (VASILYEVA, 2010, v. 7, p. 606, nota 10).  
14 Explicada em maiores detalhes no item seguinte.  
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Nessa situação, destaca-se, como apontado no trecho acima, que a Coroa teria  
o seu poder político erodido caso a sua base social de sustentação fosse solapada,  
qual seja, a propriedade fundiária e a predominância do campo sobre a cidade. De  
forma recíproca, a aristocracia feudal e a burocracia percebiam que o seu poder político  
seria podado caso a Assembleia obtivesse êxito em superar os privilégios feudais e  
alterar a base da sociedade prussiana, levando a união desses setores contra o projeto  
burguês.  
Já a burguesia, pontuava Marx, necessitava abolir os privilégios da aristocracia,  
burocracia estatal e setores do exército para obter controle sobre o direcionamento  
da indústria e comércio nacionais. Esses privilégios, por sua vez, eram agressivos à  
consolidação da livre concorrência, idealizada pelos burgueses como eixo estruturante  
da sua atuação material. Além disso, os interesses dos setores medievais prejudicavam  
a lida do estado prussiano em direção às necessidades burguesas, notadamente às  
referentes ao controle do comércio internacional, do orçamento público e a superação  
da baixa integração entre as regiões germânicas, já que ainda existiam institutos  
jurídicos que perpetuavam tanto essa divisão geográfica como a separação ente o  
campo e a cidade:  
As condições de existência desta última [da burguesia] requerem que  
a burocracia e o exército, de dominadores do comércio e da indústria,  
sejam rebaixados a seus instrumentos, sejam convertidos em meros  
órgãos do intercâmbio burguês. Ela não pode tolerar que a agricultura  
seja limitada por privilégios feudais, e a indústria pela tutela  
burocrática. Isso se opõe a seu princípio vital, a livre concorrência. Não  
pode tolerar que as relações comerciais externas sejam reguladas, não  
pelos interesses da produção nacional, mas sim pelas considerações  
de uma política de corte internacional. Precisa subordinar a gestão  
financeira às necessidades da produção, enquanto o velho estado  
deve subordinar a produção às necessidades da coroa pela graça de  
Deus e dos remendos da muralha do rei, da sustentação social desta  
coroa. Assim como a indústria moderna de fato nivela, a sociedade  
moderna precisa demolir toda barreira social e política entre cidade e  
campo. Nela ainda há classes, mas não mais estamentos. Seu  
desenvolvimento consiste na luta entre essas classes, mas elas estão  
unidas em contraposição aos estamentos e sua monarquia pela graça  
de Deus. (MARX, 2010k, p. 471, grifos do autor e comentário nosso).  
A falta de apoio da Coroa às demandas burguesas, por sua vez, não  
representava uma simples falta de vontade pessoal de um governante ou ministros  
específicos. Justamente por deter a sua base social de sustentação nos institutos  
típicos da sociedade feudal, a autopreservação da nobreza dependia da continuidade  
dessa sociedade: “assim como os elementos sociais feudais vêm na monarquia pela  
graça de Deus sua cabeça política, a monarquia pela graça de Deus vê nos estamentos  
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feudais sua base social [...]” (MARX, 2010i, p. 392, grifos do autor). Uma alteração  
social de tal monta como a revolução apontava seria fatal para a Coroa, fazendo com  
que a sua adesão à contrarrevolução fosse inevitável: “depois de uma revolução, a  
contrarrevolução é a sempre renovada condição de existência da coroa.” (MARX,  
2010k, p. 472).  
Isso demonstrava que o conflito entre esses setores sociais antagônicos era  
inescapável, pois se tratava da questão de um embate entre as diferentes sustentações  
materiais respectivas de cada setor, confronto esse determinante para que ou  
aristocracia ou a burguesia conduzisse os rumos da Prússia:  
Portanto, não há paz entre essas duas sociedades. Seus interesses e  
necessidades materiais implicam uma luta de vida ou morte, uma deve  
vencer, a outra sucumbir. Esta é a única mediação possível entre  
ambas. Portanto, também não há paz entre os mais altos  
representantes políticos dessas duas sociedades, entre a coroa e a  
representação popular. (MARX, 2010k, p. 472).  
Assim, a contenda em questão no período revolucionário não era, para Marx,  
um embate meramente político, mas uma guerra deflagrada entre dois modos de  
sociabilidade, fundamentados em dois modos de produção radicalmente diferentes.  
Nesse confronto aberto, o direito, entendido na sua acepção ideológica, teria sido um  
dos setores que atuou em favor da aristocracia pela manutenção da forma feudal de  
sociedade, justamente pela sustentação que o modelo feudal dava aos responsáveis  
pela elaboração e aplicação do terreno jurídico (os aristocratas e a Coroa que  
mantinham o poder político necessário para influenciar na produção legislativa e a  
burocracia estatal que aplicava concretamente esse direito). Vista essa concepção e  
seu delineamento básico, prosseguiremos nessa argumentação, com maior grau de  
detalhamento e mantendo a base na obra marxiana, no próximo item.  
As facetas do terreno jurídico no período revolucionário e a intervenção no  
estado prussiano  
Estabelecidos os apontamentos gerais da intersecção entre direito e sociedade  
contidos na NGR, passe-se aos relatos e à análise que Marx faz do terreno jurídico no  
período revolucionário e na contrarrevolução que se seguiu. Pretende-se com isso  
demonstrar como o direito teria atuado no momento contrarrevolucionário em  
consonância com os interesses da elite prussiana para manter os padrões feudais de  
sociabilidade, impedindo o desenvolvimento pleno do modo de produção capitalista.  
Será possível observar que ali foi impressa uma direção geral ao direito que indicava  
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que o papel desse setor social seria “frear” a modernização capitalista no contexto  
prussiano, atuando, portanto, como “freio irracional” sobre o processo de  
desenvolvimento capitalista prussiano, irracional justamente por ser um obstáculo à  
superação das formas feudais de sociabilidade na Prússia do século XIX. Conforme  
será aprofundado na conclusão, essa expressão contrasta com a usada por Marx para  
se referir ao papel do direito no processo de consolidação do capitalismo britânico,  
onde ali o terreno jurídico teria sido um “freio racional” (MARX, 2013, p. 673) favorável  
ao desenvolvimento do capitalismo inglês justamente por ter impedido que uma  
aceleração desmedida do modo de produção capitalista acabasse levando à sua  
destruição.  
Para tanto, primeiro será repassada uma breve perspectiva histórica do período  
revolucionário para se chegar à contrarrevolução. No primeiro momento, o terreno  
jurídico teria exercido sua influência no desenvolvimento do capitalismo prussiano  
mediante a sua atuação contrária à preservação da revolução burguesa; já no momento  
contrarrevolucionário seguinte ficará mais clara a direção intervencionista que o direito  
projetado pela reestabelecida elite prussiana pretendia impor ao desenvolvimento  
econômico, deixando exposta de forma mais direta a relação negativa entre o terreno  
jurídico e a frustrada modernização econômica burguesa.  
Assim, ocorrida a Revolução em 1848, a NGR cuidou de noticiar os  
acontecimentos nos seguidos governos burgueses, que se sucederam até o advento  
da contrarrevolução. Seguindo a esquematização proposta por Marx15, é possível  
dividir o período em três partes: os governos Camphausen, Hansemann e  
Brandenburg-Manteuffel.  
A principal característica do governo Camphausen foi a tentativa de afastar o  
povo da revolução, negando-a como fundamento do novo governo para justificar um  
acordo pelo alto entre aristocracia e burguesia, portanto, contrariando a concepção de  
que a Assembleia Nacional Prussiana tinha como sua base legal de sustentação e  
legitimidade a revolução (conforme argumentou Marx no item anterior). Com isso se  
pretendia estabilizar o cenário político prussiano após a revolução.  
A expressão jurídica desse acordo, por sua vez, foi a elaboração da teoria  
ententista. Esse expediente teórico defendia uma continuidade entre o direito  
15  
Se o boato se confirmar teremos chegado então, finalmente, de um ministério de mediação [o  
ministério Camphausen], através do Ministério de Ação [o ministério Hansemann], a um ministério da  
contrarrevolução [o ministério Brandenburg]. (MARX, 2010j, p. 139, grifo do autor, comentários nossos)  
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tipicamente feudal e aquele que passaria a vigorar após a revolução, de forma que a  
estrutura legitimadora do direito medieval fosse estendida para os institutos jurídicos  
que o governo burguês buscava fundar ou reforçar. Segundo Marx, Camphausen “[...]  
inventou a teoria ententista para salvar o terreno do direito [...]” (MARX, 2010a, p.  
318). Isso teria como efeito afastar a revolução como novo fundamento político, como  
“título jurídico”, das novas estruturas jurídicas que se pretendia inaugurar, mantendo  
o controle do “terreno do direito” nas mãos das elites prussianas. Haveria então  
apenas a transferência do controle do terreno jurídico da aristocracia para a burguesia,  
afastando o povo e seu papel na revolução:  
O “terreno do direito” significava simplesmente que a revolução não  
havia conquistado seu terreno e que a velha sociedade não havia  
perdido o seu, que a revolução de março não fora mais do que um  
“evento”, que havia dado “impulso” ao “entendimento” entre o trono  
e a burguesia, de há muito preparado no interior do velho estado  
prussiano, cuja necessidade a própria Coroa havia expresso em  
elevadíssimas isenções precedentes, mas que antes de março não  
julgara “urgente”. Em uma palavra, o “terreno do direito” significava  
que a burguesia, depois de março, queria negociar com a Coroa no  
mesmo pé que antes de março, como se não tivesse havido nenhuma  
revolução, e a Dieta Unificada tivesse alcançado seu objetivo sem a  
revolução. O “terreno do direito” significava que o título jurídico do  
povo, a revolução, não existia no contrato social entre o governo e a  
burguesia. A burguesia deduzia suas reivindicações da velha  
legislação prussiana, a fim de que o povo não deduzisse reivindicação  
nenhuma da nova revolução prussiana. (MARX, 2010a, p. 329, grifo  
nosso em negrito e grifos do autor em itálico).  
Essa postura conciliatória da burguesia alemã, por sua vez, acabaria  
transformando a Revolução de 1848 em uma revolução incompleta, permitindo que a  
contrarrevolução ocorresse logo em seguida: “(o) ministério Camphausen vestira a  
contrarrevolução com sua roupagem liberal-burguesa. A contrarrevolução sente-se  
suficientemente forte para livrar-se da importuna máscara.” (MARX, 2010o, p. 112)  
A tendência de acordo entre as classes dominantes frustrou a expectativa de  
que a continuidade do período revolucionário se seguisse à tomada do poder político  
pela burguesia, abortando a promessa de uma profunda reformulação da estrutura  
burocrática estado prussiano, nos moldes do que havia ocorrido em França após a  
Revolução de 1789 (onde ocorreu inclusive a destituição dos ocupantes dos diversos  
cargos públicos do estado francês16). O que se verificou na prática, portanto, não  
16 As ações e declarações da Corte de Cassação Renana, do Supremo Tribunal de Berlim, dos Tribunais  
Superiores de Münster, Bromberg, Ratibor contra Esser, Waldeck, Temme, Kirchmann, Gierke provaram  
mais uma vez que a Convenção francesa é e permanece o farol de todas as épocas revolucionárias. Ela  
inaugurou a revolução destituindo, por um decreto, todos os funcionários. Também os juízes não  
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correspondeu a esse desiderato:  
Ele [Camphausen] a rejeitou [a revolução], por certo, em teoria, mas  
na prática somente se opunha às suas pretensões e não tolerou a não  
ser a reconstituição dos velhos poderes estatais.” (MARX, 2010a, p.  
330, comentário nosso e grifos do autor).  
Assim, sucedeu-se na Prússia um processo revolucionário histórico de forma  
dissonante do que havia ocorrido no processo revolucionário francês, havendo essa  
diferença marcante entre ambos:  
Mas, na França, a burguesia passou para a vanguarda da  
contrarrevolução depois de ter derrubado todos os obstáculos que  
havia no caminho da dominação de sua própria classe. Na Alemanha  
ela se encontra rebaixada a caudatária da monarquia absoluta e do  
feudalismo antes de ter ao menos garantido as condições vitais  
básicas de sua própria liberdade civil e dominação. Na França ela se  
apresentou como déspota e fez sua própria contrarrevolução. Na  
Alemanha ela se apresentou como escrava e fez a contrarrevolução de  
seus próprios déspotas. Na França ela venceu para humilhar o povo.  
Na Alemanha ela se humilhou para que o povo não vencesse. A  
história inteira não mostra outra miséria tão ignominiosa como a da  
burguesia alemã. (MARX, 2010q, p. 259, grifos do autor)  
Já a burocracia prussiana, por sua vez, detinha uma histórica ligação com a  
aristocracia feudal e os moldes feudais de sociabilidade, ocorrendo entre ambas uma  
interação simbiótica de mútua preservação dos seus privilégios, já que a aristocracia,  
detentora do poder político de fato em função da sua supremacia econômica,  
participava da formação dos cargos públicos de acordo com os seus interesses, criando  
uma estrutura estatal apta a preservar o modo de vida feudal. Essa estrutura  
burocrática jurídico-política, ao não ser erradicada pela burguesia, se voltaria contra  
ela no período contrarrevolucionário, impedindo que a burguesia consolidasse o  
domínio do aparato estatal, afastando o estado prussiano da modernização pretendida  
pelos burgueses:  
Toda situação política provisória posterior a uma revolução exige uma  
ditadura, e ademais uma ditadura enérgica. Criticamos Camphausen  
desde o início por não ter agido ditatorialmente, por não ter destruído  
e removido imediatamente os restos das velhas instituições. Assim,  
enquanto o sr. Camphausen se embalava no sonho constitucional, o  
partido vencido fortalecia suas posições na burocracia e no exército,  
e ousava mesmo, aqui e acolá, a luta aberta. (MARX, 2010c, p. 213)  
A tendência conciliatória da burguesia prussiana ocorre por diversos fatores,  
destacando-se dentre eles a intensa resistência e contestação que o proletariado nos  
passam de funcionários, o que os supracitados tribunais testemunharam perante toda a Europa. (MARX,  
2010b, p. 357, grifos do autor e negrito nosso)  
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países mais adiantados na implantação do capitalismo já fazia sobre a relação capital-  
trabalho e as suas consequências17, notadamente o proletariado francês. Já existia,  
assim, algum grau de autonomia e consciência de classe no proletariado alemão à  
época, embora ainda incipiente, mas num grau já suficiente para deixar receosa à  
burguesia alemã, principalmente tendo em vista a experiência francesa que se  
desenrolava na mesma época:  
A burguesia alemã tinha se desenvolvido com tanta indolência,  
covardia e lentidão que, no momento em que se ergueu ameaçadora  
em face do feudalismo e do absolutismo, percebeu diante dela o  
proletariado ameaçador, bem como todas as frações da burguesia  
cujas ideias e interesses são aparentados aos do proletariado. E tinha  
não apenas uma classe detrás de si, diante dela toda a Europa a  
olhava com hostilidade. A burguesia prussiana não era, como a  
burguesia francesa de 1789, a classe que, diante dos representantes  
da antiga sociedade, da monarquia e da nobreza, encarnava toda a  
sociedade moderna. Ela havia decaído ao nível de uma espécie de  
casta, tanto hostil à Coroa como ao povo, querelando contra ambos,  
mas indecisa contra cada adversário seu tomado singularmente, pois  
sempre via ambos diante ou detrás de si [...]. (MARX, 2010a, p. 324,  
grifos do autor).  
Essa condição despertou na burguesia alemã o receio de que a aliança entre  
burguesia e proletariado forjada para alcançar o poder político do estado e superar a  
aristocracia ultrapassasse a barreira da discussão sobre política e entrasse na  
contestação própria da relação capital-trabalho. Essa situação vai fazer com que a  
burguesia, em vez de terminar a revolução e encerrar de vez o período feudal, como  
ocorre na via clássica, se alie a enfraquecida aristocracia agrária para coibir as  
aspirações políticas do povo, parando a revolução nos seus trilhos e permitindo com  
isso que os Junkers e as classes mais afeitas aos modos feudais de sociabilidade se  
recuperassem:  
A serviço da grande burguesia, teve de procurar privar a revolução de  
seus frutos democráticos; em luta contra a democracia, teve de se aliar  
ao partido aristocrático e tornar-se o instrumento de seus apetites  
contrarrevolucionários. Este se sente suficientemente fortalecido para  
desembaraçar-se de seu protetor. O senhor Camphausen semeou a  
reação no sentido da grande burguesia e colheu-a no sentido do  
partido feudal. (MARX, 2010o, p. 113, grifo do autor).  
17  
Cotrim resume bem a situação quando aduz: “Havia também o surgimento de um proletariado:  
Mesclam-se [na Prússia] batalhas que, em outros povos, se deram em momentos distintos: pela  
unificação nacional e centralização política, contra o absolutismo e, ao mesmo tempo, o combate  
efetivamente contemporâneo, pois o proletariado já se levanta contra a burguesia o movimento dos  
trabalhadores começa com as insurreições operárias da Silésia e da Boêmia em 1844, alguns anos  
antes, portanto, da revolução de 1848, enquanto na França ou na Inglaterra só após as respectivas  
revoluções burguesas ocorre um levante operário.” (COTRIM, 2014, p. 331, comentário nosso).  
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A reticência da burguesia num momento fulcral manteria nos estados  
germânicos elementos feudais que prejudicariam a plena modernização burguesa,  
marcando de forma indelével a via de formação do capitalismo alemão: “A parte  
comercial e industrial da burguesia se lança nos braços da contrarrevolução por medo  
da revolução.” (MARX, 2010i, p. 395).  
Após esse primeiro momento de estabilização da situação política conjugada  
com a manutenção das pretensões burguesas encapsulado na teoria ententista, é  
escolhido Hansemann para suceder Camphausen. Embora tenha ficado pouco tempo  
no governo, Marx se debruça sobre os objetivos projetados por Hansemann  
justamente por esse governo representar, para o autor renano, a mudança de postura  
da burguesia, onde essa última partiria para afastar ativamente a participação popular  
da estruturação do novo estado prussiano. Para Marx, esse governo foi quando se “[...]  
pretendia passar, do período de traição passiva ao povo em favor da Coroa, ao período  
de subjugação ativa do povo sob seu domínio em compromisso com a Coroa”. (MARX,  
2010a, p. 330, grifo do autor). Isso se daria através do fortalecimento da combalida  
estrutura burocrática, enfraquecida pela revolução, onde esse aparato atuaria para  
conter os ímpetos da população. Pela postura ativa contra o povo Marx, ironicamente,  
chamava tal ministério de “ministério da ação”.  
Assim, com papel de destaque redivivo pelos burgueses, tanto o judiciário  
quanto a polícia da Prússia passaram a atuar repressivamente contra as demandas  
populares relativas à forma de condução dos assuntos estatais. Marx nota que  
importante para a consolidação desse quadro foram as Jornadas de Junho acontecidas  
naquele ano em França. Tal evento, caracterizado pela forte repressão do proletariado  
europeu pelo exército francês, reverberou no imaginário da burguesia europeia, tanto  
instigando seus medos em relação às demandas dos operários como também  
apontando a forma de solucionar a questão, ou seja, através de forte intervenção  
repressiva: “A revolução de junho [em França] era os bastidores do ministério de ação,  
como a revolução de fevereiro era os bastidores do ministério de mediação”. (MARX,  
2010a, p. 331, grifos do autor e comentário nosso).  
Animada por esse ímpeto, a burguesia prussiana instigou o aparelho repressivo  
penal da Prússia contra os líderes e intelectuais dos operários e camponeses, de forma  
a constringir a atuação deles na vida política pós-revolução. Nesse período foram  
notadamente restringidos os direitos de liberdade de imprensa e associação, bem  
como a liberdade individual, havendo a perseguição a líderes trabalhistas e refugiados  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
políticos opositores da burguesia18.  
Dessa forma, o terreno jurídico prussiano, que num primeiro momento serviu  
para estabilizar o cenário jurídico-político da Prússia, no período pós-revolucionário  
rapidamente adaptou a sua função para uma postura ofensiva contra o elemento  
popular da Revolução de 1848:  
Sob o ministério de ação “fortaleceram-sepor conseguinte a velha  
polícia prussiana, o judiciário, a burocracia, o exército porque  
Hansemann acreditava que, estando estes a soldo, também estavam a  
serviço da burguesia. (MARX, 2010a, p. 335, grifos do autor).  
Aqui a função ideológica assumida pelo terreno jurídico não dependia nem  
mesmo da confecção de novas leis. Observa-se que bastou uma postura pró-ativa da  
burocracia prussiana contra a revolução para que as antigas legislações do período  
monárquico na Prússia fossem utilizadas contra o elemento popular do período  
revolucionário: “eis o alto patamar alcançado pela contrarrevolução, eis a ousadia com  
que a burocracia saca e consegue fazer valer contra a nova vida política as armas que  
ainda se encontram no arsenal da velha legislação.” (MARX, 2010g, p. 143)  
Isso não impediu, entretanto, que a discussão acerca da confecção de  
legislações agressivas às conquistas revolucionárias, que permitiriam à burguesia  
prussiana expandir a repressão ao povo, ocorressem, tais como a lei de imprensa, a  
lei da guarda civil e a lei do empréstimo compulsório19:  
A argúcia prussiana pressentiu que toda nova instituição  
constitucional oferece a interessantíssima oportunidade para novas  
leis punitivas, novos regulamentos, nova medida disciplinar, novo  
controle, novas chicanas e nova burocracia. (MARX, 2010m, p. 157)  
No outro lado da moeda, a tentativa de implantação do modelo de  
modernização burguês não conseguiu avançar sobre os privilégios da aristocracia  
agrária. Marx destacava que, em função do prestígio ainda possuído pelos Junkers e  
pela aliança de classe entre estes últimos e a burguesia representada pela continuidade  
do terreno jurídico encapsulado na teoria ententista, não foi possível implementar na  
Prússia um robusto programa de revisão das obrigações feudais que reduzissem  
significativamente o peso desses encargos na vida produtiva da época20. Assim, a  
tentativa de abolir a propriedade feudal foi frustrada pela contradição de se abolir esse  
18  
Para uma análise mais detalhada de como Marx enxergou essas perseguições cf. SALES JÚNIOR,  
2018, p. 87-90.  
19 Para a análise que Marx faz dessas legislações na NGR, cf SALES JÚNIOR, 2018, p. 96-111.  
20 Para maiores detalhes acerca da discussão jurídica de Marx sobre a continuidade dessas obrigações  
cf. SALES JÚNIOR, 2018, p.111-119.  
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tipo de propriedade ao mesmo em que se tentava conservar a propriedade burguesa:  
Certamente, o sr. Gierke ataca a propriedade é inegável mas não  
a propriedade moderna, burguesa, e sim a feudal. Ele reforça a  
propriedade burguesa, que se ergue sobre as ruínas da propriedade  
feudal, destruindo a propriedade feudal. E é somente por isso que não  
quer revisar os contratos de resgate, porque, por meio destes  
contratos, as relações feudais de propriedade são convertidas em  
relações burguesas, porque não pode, portanto, revisá-los sem ao  
mesmo tempo violar formalmente a propriedade burguesa. E a  
propriedade burguesa é naturalmente tão sagrada e inviolável quanto  
a propriedade feudal é atacável e, segundo as necessidades e a  
coragem dos senhores ministros, violável. (MARX, 2010n, p. 181)  
Nesse sentido, nem mesmo as pesadas indenizações devidas pelo campesinato  
aos Junkers pela abolição dos privilégios feudais, negociadas em momentos anteriores,  
antiga reivindicação dos setores populares no campo, conseguiu ter algum avanço.  
Assim, a manutenção do terreno jurídico anterior, representado pela teoria ententista,  
serviu como argumento para a defesa desses privilégios, mesmo em frente à  
necessidade de modernização das relações de propriedade na Prússia. Ao comentar a  
lei patrocinada pelo deputado Gierke sobre o tema: “A isto [abolição dos privilégios  
feudais] “se opõem direitos e leis formais, que se opõem sobretudo a todo progresso,  
que cada nova lei revoga uma antiga e um velho direito formal.” (MARX, 2010n, p.  
180, comentário nosso).  
Já no que tange à organização estatal, a burguesia não conseguiu estruturar  
algum desenho institucional favorável a ela em relação às finanças públicas do estado  
prussiano, sendo que ao final ela sucedeu apenas em majorar alguns poucos tributos  
sobre gêneros alimentícios que acabaram recaindo mais pesadamente sobre as  
camadas populares, inflando a insatisfação dessas com os burgueses: “[...] suas  
tentativas de reforma em geral apareciam, aos olhos do povo, como simples  
expedientes financeiros para encher os cofres do “poder estatal” fortalecido.” (MARX,  
2010a, p. 336).  
Ao final do curto governo Hansemann, portanto, houve um afastamento das  
camadas populares do movimento revolucionário ao mesmo tempo em que a  
burocracia estatal e a aristocracia começam a retomar a proeminência afastada pelo  
golpe da revolução:  
A burguesia francesa começou pela libertação dos camponeses. Com  
os camponeses conquistou a Europa. A burguesia prussiana estava  
tão atrapalhada com seus interesses mais estreitos e imediatos, que  
ela própria desperdiçou esse aliado e fez dele um instrumento nas  
mãos da contrarrevolução feudal. (MARX, 2010a, p. 339).  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
Dessa forma, a reticência e covardia da burguesia prussiana, protagonista  
imediata do momento pós-revolucionário, começava a pavimentar o caminho para  
inevitável contrarrevolução e volta dos senhores de terra e da burocracia estatal  
acessória aos seus objetivos ao poder.  
O Ministério de Ação quer fundar o domínio da burguesia concluindo  
ao mesmo tempo um compromisso com a velha polícia e o velho  
estado feudal. Nessa tarefa dúplice e plena de contradições, vê a todo  
momento o domínio ainda a ser fundado da burguesia e sua própria  
existência sobrepujados pela reação no sentido absolutista, feudal –  
e sucumbirá a ela. A burguesia não pode lutar por seu próprio domínio  
sem se aliar provisoriamente a todo o povo, sem, por isso, apresentar-  
se como mais ou menos democrática. (MARX, 2010m, p. 161).  
Após ser fortalecida pelo governo Hansemann, a burocracia e exército  
prussianos foram ponta de lança da aristocracia e da nobreza no governo Bradenburg-  
Manteuffel, que culminou no processo contrarrevolucionário posto contra o projeto  
burguês e popular de modernização do substrato feudal da sociabilidade prussiana.  
Ao suceder nesse desiderato, o aparato jurídico-burocrático prussiano torna-se  
importante elemento fiador de preservação das formas feudais de interação social,  
buscando com isso conservar as bases sociais que garantiriam a sustentação tanto dos  
seus privilégios sociais como daqueles da aristocracia e da nobreza, como será visto  
adiante.  
Nessa esteira, atentando-se particularmente para a faceta que o terreno jurídico  
assume a partir do advento do período contrarrevolucionário, é possível, a nível  
esquemático, a divisão do papel do direito em duas frontes, subterfúgio utilizado para  
melhor apreensão do fenômeno jurídico em relevo.  
Primeiro, tem-se como destaque o papel mais imediato de repressão penal para  
deter o ímpeto dos setores revolucionários, expediente que foi manejado desde os  
governos burgueses mas intensifica-se após a ascensão de Brandenburg e a  
contrarrevolução. Utilizando-se do aparato policial e jurídico, o recurso à manutenção  
da ordem posta foi amplamente direcionado contra os líderes populares que clamavam  
pela alteração da estrutura política e pela implementação das garantias que a  
modernização das relações sociais civis e políticas já havia conquistado nos países de  
constituição da via clássica do capitalismo. Não é de se surpreender que, para manter  
inalterado o estado de coisas, a repressão penal tenha sido usada com liberalidade  
pelas classes dominantes para ceifar o ímpeto revolucionário do povo (com destaque  
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para as prisões dos líderes trabalhistas e a perseguição jurídica à NGR21), com ampla  
utilização de medidas de exceção, notadamente a decretação do estado de sítio, para  
agredir as garantias da população:  
[...] o governo Brandenburg só pode se manter com meios  
extraordinários; sabemos que sua situação já teria se tornado  
insustentável há muito se o país não estivesse em estado de sítio. O  
estado de sítio é o estado legal do governo Brandenburg. (MARX,  
2010f, p. 293, grifos do autor).  
Nesse contexto, dentre os relatos trazidos por Marx no período relativo à  
atuação repressora do estado prussiano, tem-se como destaque as perseguições aos  
líderes trabalhistas. Importa ressaltar que o autor renano se debruçou longamente  
sobre a análise legal da legislação referente às prisões e procedimentos penais  
relativos a esses episódios, assim como também sobre a atuação das cortes,  
demonstrando a abusividade e muitas vezes ilegalidade dos acontecimentos22:  
Mal as notícias oficiais sobre a formação de um Ministério  
contrarrevolucionário [o Ministério Brandenburg] chegaram ao Reno e  
a procuradoria pública da região subitamente desenvolveu não só um  
apetite voraz por prisões mas um zelo por essa atividade não  
encontrado mesmo nos antigos estados policiais. (MARX; ENGELS23,  
2010r, v. VII, p. 452, tradução livre e comentário nosso).  
Também importante é a “análise jurídica”24 que Marx faz das legislações  
reacionárias promulgadas ou cuja promulgação era estuda na época, demonstrando o  
seu caráter agressivo aos objetivos revolucionários. Diversos dispositivos legais  
específicos desses diplomas são expostos e criticados por Marx, destacando quais  
seriam as garantis e direitos civis que essas normas tolheriam. São analisadas leis  
relativas à liberdade de associação (em clubes e assembleias), ao direito de reunião, à  
afixação de pôsteres ou cartazes e à regulação de imprensa25.  
21 A perseguição jurídica à NGR e à imprensa no geral é bastante discutida por Marx em diversos textos  
da época, mesmo antes da contrarrevolução, mas intensificando-se após a sua consolidação. Para  
maiores detalhes cf. SALES JÚNIOR, 2018, p.90-99, p. 205-218 e p. 261-276.  
22  
Tais episódios não serão aprofundados por imposição da manutenção do foco do presente artigo.  
Para uma análise mais detalhada dessas discussões cf. SALES JÚNIOR, 2018, p.87-90 para as prisões  
antes da contrarrevolução. Em relação à perseguição no período contrarrevolucionário cf. SALES JÚNIOR,  
2018, p. 201-205 e 218-231.  
23 Dentre os textos pesquisados da Nova Gazeta Renana alguns não haviam indicação de autoria clara,  
sendo indiscriminadamente atribuído a Marx e Engels. Pela autoria não ser clara evitamos utilizar esses  
textos ao longo do trabalho, com exceção do trecho indicado pois ilustrativo do momento político do  
período em questão.  
24  
Expressão entre aspas para indicar que Marx, embora analise o texto legal, não faz uma análise  
propriamente jurídica, ou seja, não analisa a lei tendo como parâmetro da sua crítica construções  
teóricas do tipo jurídico ideais, mas expõe a função do direito na materialidade do contexto  
revolucionário.  
25  
Também por limitação de foco não será possível expor em profundidade essa análise marxiana.  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
A importância das garantias que estavam sendo afastadas para a burguesia foi  
realçada por Marx, na medida em que tais “direitos” eram necessários à burguesia para  
a consolidação dos seus interessantes. Representavam prerrogativas cuja plena  
implementação era de interesse não só da classe burguesa, mas especialmente dela,  
adquirindo significados específicos para tal classe, que lutava para as garantir até  
mesmo antes da Revolução de 1848. Eram direitos que, a despeito da sua formulação  
geral, detinham importância especial para os burgueses por representar a  
oportunidade de expor livremente suas opiniões, debater os seus interesses em  
conjunto com os negócios do governo, sedimentar a livre concorrência, etc.:  
Para alcançar seu fim, [a burguesia] tinha que poder debater  
livremente seus interesses, suas opiniões e os negócios do governo.  
A isso denominou “direito à liberdade de imprensa”. Tinha que poder  
se associar sem embaraços. A isso chamou “direito de livre  
associação”. Tinha também que reivindicar liberdade religiosa e assim  
por diante, consequência necessária da livre concorrência. E antes de  
março de 1848 a burguesia estava no melhor dos caminhos para ver  
a efetivação de todos os seus desejos. (MARX, 2010a, p. 321, grifos  
do autor, comentário nosso).  
Nesse contexto, Marx, no único comentário específico que ele traz sobre o papel  
da magistratura prussiana no período contrarrevolucionário, aduz que ela foi  
condescendente com a perseguição da aristocracia aos apoiadores da revolução. A  
consolidação da contrarrevolução, advinda da covardia da burguesia, permitiu que  
esse segmento da burocracia estatal se postasse do lado da elite agrária, fomentando  
a aguda crise institucional que instalou no estado prussiano naquele momento, de  
forma a ameaçar mesmo a estabilidade jurídica tão cara à manutenção da propriedade  
burguesa. Essa postura reforça o papel da burocracia, aqui notadamente a  
especificamente judiciária, no conflito:  
[...] a burguesia se convenceu de que sua traição contra o proletariado  
desamparava justamente o que pensava assegurar com essa traição –  
a propriedade burguesa. Na Prússia, por sua covarde confiança no  
governo e sua traidora desconfiança contra o povo, a burguesia vê  
ameaçada a indispensável garantia da propriedade burguesa a  
organização burguesa da justiça. (MARX, 2010b, p. 361, grifos do  
autor).  
Talvez a legislação mais representativa do período e sobre a qual Marx também  
se debruça seja justamente o decreto relativo ao estado de sítio (bem como as normas  
Destaca-se apenas que um dos objetivos principais dessas legislações eram afastar a incidência da  
aplicação do Code Napoléon (mais afinando com as necessidades burguesas) nas regiões germânicas  
anteriormente sob domínio francês e que ainda utilizavam essa estrutura legal. Para maiores detalhes  
cf. SALES JÚNIOR, 2018, p. 205-218.  
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e ordens militares conexas recebidas pelo exército), necessário para deflagrar a tensão  
política que permeou o período, asseverando a retomada do poder político da  
aristocracia. Nessa análise o autor renano chegava mesmo a asseverar que a situação  
jurídica de exceção criada por esse conjunto normativo deveria ser considerada como  
o novo estatuto jurídico real da Prússia, situação na qual o decreto do estado de sítio  
figuraria como a verdadeira nova constituição prussiana ou “constituição lei-marcial”  
(MARX, 2010e, p. 572):  
Certa vez se disse que jamais um “pedaço de papel” se interporia  
entre o rei e seu povo. Agora se diz: somente um pedaço de papel  
deve se interpor entre o rei e seu povo. A verdadeira constituição da  
Prússia é o estado de sítio. A Constituição francesa outorgada  
continha apenas um parágrafo 14, que a suprimia. Cada parágrafo da  
constituição prussiana outorgada é um parágrafo 1426. (MARX,  
2010a, p. 341, grifos do autor)  
Tal afirmação se devia ao fato de que mesmo as garantias e direitos previstos  
na constituição outorgada poderiam ser suspensos quando confrontados com as  
exigências impostas pela regulamentação do estado de sítio (MARX, 2010d, p. 565).  
Dentre as pesadas restrições às liberdades civis esmiuçadas por Marx lista-se a  
supressão da imprensa (mais intensa que a simples censura), a possibilidade de  
realização de prisões arbitrárias julgadas por tribunais militares de exceção, a  
suspensão do funcionamento dos tribunais, execuções, a citada suspensão de algumas  
das garantias previstas na constituição outorgada pela simples vontade dos  
comandantes militares (garantias tais como as relativas à liberdade de imprensa,  
inviolabilidade dos domicílios, liberdade de expressão, princípio do juiz natural etc.), a  
suspensão dos governos locais, dentre outras27.  
Essa lei também criava procedimentos e processos específicos para julgamento  
daqueles que incorriam nas proibições nela previstas, criticados por Marx por também  
não serem aptos a preservação das garantias civis28. Para o autor renano tais normas  
processuais representavam apenas uma tentativa de [...] preservar para o estúpido  
burguês a aparência de um procedimento jurídicoe entretanto assegurar ao mesmo  
26  
Tal artigo afirmava que o rei era o comandante do estado (SAZONOV, 2010, v. VIII, p. 559, nota  
168).  
27  
Marx analisou separadamente a maioria dos artigos do decreto do estado de sítio  
pormenorizadamente, indicando quais e como eram violadas as garantias elencadas. Em virtude da sua  
extensão e grau de complexidade essa análise não poderá ser aprofundada no presente artigo. Para  
mais detalhes cf. SALES JÚNIOR, 2018, p. 218-231.  
28  
Pelos motivos acima, também a exposição detalhada dos artigos que disciplinavam esses  
procedimentos não será possível. Para mais detalhes cf. SALES JÚNIOR, 2018, 218-231.  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
tempo a condenação pela superioridade numérica dos servos assassinos militares [...]”  
(MARX, 2010e, p. 576).  
Em suma, é possível perceber através da análise desses escritos a implantação  
de uma situação de exceção na Prússia na época com vistas a debelar a revolução.  
Embora os erros já expostos da burguesia tenham afastado o campesinato e o  
proletariado da revolução, ainda sim houve resistência desses três polos à simples  
retomada de poder pela aristocracia, burocracia e nobreza e retomada da condição  
político-social anterior. Nesse cenário o terreno jurídico teve papel de proeminência  
na estabilização da situação, uma vez que ele assume formas repressivas extremas  
para apaziguar a situação, chegando a adotar as medidas interventivas incisavas sobre  
as liberdades civis vistas acima, para as quais necessitava da decretação do estado de  
sítio, remédio jurídico amplamente denunciado por Marx.  
Já a segunda faceta do papel do terreno jurídico para interromper o progresso  
do desenvolvimento do capitalismo na sociedade prussiana, e que detinha maior  
relação direta com o terreno econômico, foi a função intervencionista dada a esse  
campo. O desenho institucional que se vislumbrava na constituição outorgada após a  
contrarrevolução e nas leis que se seguiram davam à burocracia estatal extensos  
poderem para exercer influência sobre a vida econômica da Prússia, trazendo diversas  
disposições regulatórias relativas à indústria, agricultura e comércio prussianos,  
criando embaraços para o pleno desenvolvimento desses setores nos moldes liberais  
burgueses:  
O sistema de tutela burocrática assegurado pela constituição  
outorgada é a morte da indústria. Basta considerar a administração  
das minas, os regulamentos fabris e assemelhados! Quando o  
fabricante inglês compara seus custos de produção com os do  
fabricante prussiano, sempre coloca em primeiro lugar a perda de  
tempo a que o fabricante prussiano se submete pela observância dos  
regulamentos burocráticos. (MARX, 2010i, p. 393, grifo do autor)  
Nesse cenário, mesmo formas de organização produtiva já ultrapassadas ou  
tipicamente feudais encontravam no arcabouço normativo defendido pelos setores  
feudais proteção para a sua subsistência, como as corporações29. Tratava-se, portanto,  
29 A constituição presenteada pelo atual governo prussiano é digna dele. Para caracterizar a hostilidade  
deste governo à burguesia basta atentar a seu projetado código industrial. O governo procura regredir  
para a corporação sob o pretexto de avançar para a associação. A concorrência obriga a produzir cada  
vez mais barato, portanto, em escala cada vez maior, isto é, com capital maior, com divisão do trabalho  
sempre ampliada e com uma sempre crescente utilização de maquinaria. Toda nova divisão do trabalho  
desvaloriza a velha habilidade dos artesãos, toda nova máquina substitui centenas de trabalhadores,  
todo trabalho em maior escala, isto é, com capital maior, arruína os pequenos negócios e os  
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da criação de um cenário jurídico institucional agressivo aos negócios e ao modelo de  
propriedade burgueses:  
Portanto, não se trata absolutamente, neste momento, de uma luta  
contra as relações de propriedade burguesas, como ocorre na França  
e se prepara na Inglaterra. Trata-se antes de uma luta contra uma  
constituição política que põe em risco as “relações de propriedade  
burguesas” entregando o leme do estado aos representantes das  
“relações de propriedade feudais”, ao rei pela graça de Deus, ao  
exército, à burocracia, aos Junker e a alguns barões das finanças e  
filisteus aliados a eles. (MARX, 2010i, p. 391, grifos do autor).  
Além da interferência regulatória, importa também destacar que o desenho  
proposto para a estruturação do direito financeiro do estado prussiano projetado pelas  
antigas elites prussianas não era favorável ao modelo capitalista liberal, uma vez que  
mantinha o orçamento estatal prussiano sequestrado em favor da manutenção das  
vantagens da nobreza, aristocracia e burocracia. Nesse sentido, é interessante notar  
que Marx chegava mesmo a comparar o orçamento público da Prússia com o dos  
Estados Unidos no texto “O orçamento dos Estados Unidos e o germano-cristão”  
(MARX, 2010l), demonstrando como este último era mais eficiente e apropriado ao  
desenvolvimento econômico em comparação com o primeiro, pródigo. Assim, a  
burguesia prussiana “[...] insiste obstinadamente em que a monarquia pela graça de  
Deus, com seu exército de guerra e de funcionários, seus bandos de pensionistas, suas  
gratificações, extraordinários etc. nunca poderá ser suficientemente bem paga.” (MARX,  
2010l, p. 376); os burgueses norte-americanos, por sua vez, “[...] são tão teimosos  
que nada sabem de nossas instituições germano-cristãs, e preferem pagar impostos  
baixos em vez de altos.” (MARX, 2010l, p. 376)”.  
O autor renano, por sua vez, era claro ao enfatizar que, para garantir o seu  
desenvolvimento econômico, a burguesia deveria assumir o controle do estado  
prussiano, notadamente do direcionamento das finanças públicas, de forma a aplicar  
esses recursos materiais no fomento das capacidades materiais dos estados alemães,  
garantindo a satisfação dos seus “interesses mais sagrados”:  
Somente ela própria [a burguesia] seria capaz de fazer valer  
legalmente suas necessidades industriais e comerciais. Tinha que tirar  
empreendimentos pequeno-burgueses. O governo promete proteger, por meio de instituições  
corporativas feudais, o artesão contra a empresa fabril, a habilidade herdada contra a divisão do  
trabalho, o pequeno capital contra o grande. E a nação alemã, especificamente a prussiana, que luta  
com muita dificuldade e à custa de extremo esforço para não sucumbir totalmente à concorrência  
inglesa, deve ser lançada indefesa os braços dela pela imposição de uma organização industrial  
contraposta aos modernos meios de produção e que a indústria moderna desmanchou no ar! (MARX,  
2010i, p. 394-395, grifos do autor).  
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das mãos de uma burocracia ultrapassada, tão ignorante quanto  
arrogante, a administração de seus “interesses mais sagrados”. Tinha  
que reclamar para si o controle do tesouro do estado, do qual se  
acreditava criadora. Depois de ter tomado da burocracia o monopólio  
da assim chamada educação, consciente de ser em muito superior a  
ela no conhecimento real das necessidades da sociedade burguesa,  
tinha também a ambição de conquistar uma posição política  
correspondente à sua posição social. (MARX, 2010a, p. 320-321,  
grifo do autor, comentário nosso)  
O impedimento ao florescimento dos negócios burgueses vislumbrado por Marx  
no desenho da constituição outorgada se verificava mesmo no plano da política  
internacional. O autor renano projetava que, dentro do arcabouço institucional  
proposto pela nova constituição, os acordos comerciais firmados entre as classes  
dirigentes do estado prussiano e as de outras nações não raramente prejudicariam os  
negócios da burguesia alemã:  
No interior, a indústria coibida pelos grilhões burocráticos e a  
agricultura pelos privilégios feudais, no exterior, o comércio vendido  
pela contrarrevolução à Inglaterra eis os destinos da riqueza  
nacional sob a égide da constituição outorgada. (MARX, 2010i, p.  
394).  
Portanto, dentro do arranjo jurídico-político encapsulado na constituição  
outorgada, a classe burguesa da Prússia não podia esperar do estado a utilização dos  
recursos públicos para fomentar o desenvolvimento do modelo produtivo capitalista,  
incentivando tal modelo ou amenizando as suas crises. O estado prussiano, caso  
continuasse a ser comandado pela elite agrária, pela nobreza e pela burocracia, teria  
a sua atuação orientada precipuamente de forma a manter os vultuosos privilégios  
dessas classes em detrimento do suporte às necessidades burguesas, como havia  
ocorrido até então:  
E quanto às crises comerciais, meu caro? Quando irrompe uma crise  
comercial europeia, o estado prussiano não é capaz de pensar em  
nada mais ansiosamente do que em extorquir a última gota d’água às  
fontes usuais de impostos, valendo-se da execução ou outros meios  
semelhantes. Pobre estado prussiano! Para neutralizar a crise  
comercial, o estado prussiano precisaria ter, além do trabalho  
nacional, uma terceira fonte de rendimentos nas nuvens. Se os votos  
de ano novo do Altíssimo, a ordenança ao exército de Wrangel ou os  
decretos ministeriais de Manteuffel fizessem dinheiro brotar da terra,  
certamente a “negação dos impostos” não teria provocado um medo  
tão pânico na “fiel amada” prussiana e também a questão social  
poderia ser resolvida sem constituição outorgada. (MARX, 2010i, p.  
389, grifo do autor).  
Em suma, na configuração institucional antecipada pela aristocracia após a  
contrarrevolução, os burgueses prussianos não podiam esperar que o estado atuasse  
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como “ferramenta profana” dos seus interesses:  
Estas quantias, subtraídas do bolso dos demais cidadãos para que a  
aristocracia levasse uma vida adequada a seu status e para manter  
bem escorados os “pilares” da monarquia feudal, não passam de  
insignificâncias em comparação com a administração pública  
outorgada junto com a constituição de Manteuffel. Acima de tudo, um  
exército forte, para que a minoria domine a maioria; o maior exército  
de funcionários possível, para que o maior número possível deles se  
aliene do interesse comum em virtude de seus interesses privados;  
utilização do dinheiro público da maneira mais improdutiva, para que  
a riqueza não torne atrevidos os súditos, como diz a N[ova] G[azeta]  
P[russiana]; a máxima economia possível do dinheiro público em vez  
de seu uso industrial, para que o governo pela graça de Deus possa  
enfrentar autonomamente o povo nos facilmente previsíveis  
momentos de crise eis os contornos fundamentais da administração  
pública outorgada. Utilização dos impostos para manter o poder  
estatal como um poder opressor, autônomo e sagrado diante da  
indústria, do comércio e da agricultura, em vez de rebaixá-lo a  
ferramenta profana da sociedade civil eis o princípio vital da  
constituição prussiana outorgada! (MARX, 2010i, p. 394, negrito  
nosso)  
As considerações levantadas indicam que o terreno jurídico no período em  
questão se portou como um óbice ao pleno desenvolvimento do capitalismo na  
Prússia. Na medida em que as formas jurídicas foram manejadas pelas elites  
dominantes para manter o padrão de sociabilidade feudal através da constituição de  
institutos jurídicos e políticos aptos a manter essa sociabilidade, com vistas a  
conservação dos privilégios das suas elites, percebe-se que, através dos relatos de  
Marx, é possível conceder ao direito prussiano da época o papel específico de  
obstaculizar o progresso liberal. Atuando como linha auxiliar para imobilizar a  
modernização das estruturas jurídico-políticas prussianas, tirando da burguesia o  
acesso aos recursos estatais e garantindo à burocracia extensos poderes regulatórios,  
bem como impedindo que o processo revolucionário fosse adiante, percebe-se que o  
terreno jurídico no período teve papel de destaque no projeto de interrupção ou atraso  
do desenvolvimento do modo de produção capitalista na Prússia, isso quando  
comparado ao ocorrido no percurso econômico histórico do capitalismo nos países da  
via clássica.  
Conclusão  
Portanto, embora o período analisado seja cronologicamente breve, pois a  
produção intelectual da Nova Gazeta Renana, assim como o período mais agudo da  
revolução, durou cerca de apenas um ano, é possível perceber através dos escritos  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
marxianos a direção que a aristocracia agrária buscava impor ao desenvolvimento  
econômico no estado prussiano. Nesse quadro, fica patente que o projeto burguês de  
modernização das estruturas institucionais necessárias a um desenvolvimento mais  
robusto do capitalismo nos estados germânicos seria deixado de lado sempre que  
houvesse confronto com os interesses dos Junkers, uma vez que não houve a  
superação da proeminência desses últimos na vida política germânica, nem das classes  
cujos privilégios estavam atreladas ao modelo feudal de sociabilidade, como a  
burocracia, em virtude dos elementos já destacados.  
É possível asseverar, assim, que o direito exerceu um grau de influência  
significativo no período revolucionário, ajudando a estancar a pressão pela  
modernização burguesa representada pelo evento da Revolução de 1848, bem como  
é notória a influência dos interesses da aristocracia feudal no desenho dos institutos  
jurídicos no período contrarrevolucionário, tornando o direito uma ferramenta para  
manutenção do status quo produtivo da Prússia. Dessa forma, embora o terreno  
jurídico, pelas suas particularidades intrínsecas dentro de um período de instabilidade  
institucional como o que se seguiu na Prússia pós-revolução, tenha tido momentos ou  
eventos nos quais não foi fiel aplicador do projeto feudal, como, por exemplo, no curto  
período de proeminência representado pelo governo tripartite burguês, é possível  
argumentar que o terreno jurídico assumiu uma direção geral contrária ao elemento  
popular da revolução, sendo uma ferramenta importante para impedir alterações  
significativas na estrutura social da Prússia, atuando como verdadeiro freio irracional.  
Isso porque julgamos ter demonstrado que o terreno jurídico foi um dos fatores  
para que a via prussiana do capitalismo se caracterizasse de forma diferenciada da via  
clássica. Enquanto a modificação dos institutos jurídicos nos casos francês e inglês  
favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nessas nações, na Prússia ocorreu o  
oposto. Assim, tem-se que mesmo as regulamentações fabris na Inglaterra, embora  
insatisfatórias para a classe burguesa no período imediato da sua implantação,  
viabilizaram a consolidação das formas capitalistas de produção naquele país ao  
impedir que o avanço da exploração do operariado levasse a um grau de insatisfação  
desse último que ameaçasse desestabilizar a sociedade inglesa, levando Marx a  
encarar tal regulamentação como um “freio racional”, racional pois permitia a  
consolidação de longo prazo das relações sociais necessárias ao desenvolvimento do  
capitalismo.  
Já o contrário aconteceu na Alemanha. Ali o direito serviu aos interesses  
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imediatos da aristocracia feudal, criando formas de intervenção ao avanço burguês  
cujo objetivo último era conservar os traços do feudalismo favoráveis à manutenção  
dos privilégios das elites. A modernização das relações de produção nos moldes  
burgueses levaria fatalmente à erosão da base social feudal e à perda desses  
privilégios. Portanto ali ele atuou como “freio irracional”, irracional porque a sua  
atuação concreta foi no sentido de impedir o progresso da sociedade prussiana em  
direção à sociedade liberal-burguesa. Pode-se afirmar, portanto, que essa foi a função  
ideológica que o terreno jurídico assumiu no período em questão, ou seja, operou  
como “freio irracional”.  
Diante desse quadro, é necessário estabelecer que o terreno jurídico na via  
prussiana assume essa função sempre num contexto de inter-relação com os outros  
movimentos ou fatores históricos nos quais se desenrolaram os fatos que  
caracterizaram a via prussiana. De acordo com Marx, para que o direito assumisse essa  
função ideológica específica foi notadamente importante foi a reticência da burguesia  
prussiana em levar a cabo a revolução após o período de agudização em que ela  
efetivamente assumiu o poder. Ao não reformular o estado prussiano e reestruturar a  
sua base jurídica, inclusive reformando o aparelho burocrático historicamente ligado à  
aristocracia feudal, a burguesia prussiana perdeu a oportunidade de assumir as rédeas  
do direcionamento do desenvolvimento da sociedade prussiana:  
[A burguesia] (d)eixou em vigor a velha legislação prussiana sobre  
crimes políticos e os antigos tribunais. Sob seu governo, a antiga  
burocracia e o antigo exército tiveram tempo para se recuperar do  
susto e se recompor completamente. Sem qualquer restrição, todos  
os chefes do antigo regime permaneceram em seus postos. (MARX,  
2010a, p. 318, comentário nosso)  
Assim, o direito apresentou-se como uma das vias alternativas possíveis  
para a sobrevida de um modelo de sociabilidade com afinidade às formas feudais na  
Prússia, interrompendo o caminho da modernização burguesa, diferente do que  
acontecia nos países europeus de capitalismo avançado. A aliança entre aristocracia e  
burocracia estatal, calcada na manutenção do privilégio de ambas, teve no terreno  
jurídico uma válvula de escape para atrasar a modernização liberal dos estados  
germânicos. Percebe-se, portanto, que a função do direito verificada nos relatos de  
Marx refletia amplamente os fatores materiais históricos daquele momento específico  
da vida prussiana.  
Essa conclusão, por sua vez, pode ser extraída da análise imanente dos textos  
marxianos, na medida em que eles expõem com clareza a função do terreno jurídico  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
na Primavera dos Povos e no período subsequente, bem como aponta a tendência que  
esse terreno teria sob a organização da aristocracia, como o desenho constitucional  
dos institutos jurídicos interventores na economia demonstrava. O relato vivo de Marx  
na forma de texto jornalístico desnuda justamente essa atuação ideológica efetiva na  
materialidade, em vez de se prender a teorias abstratas dos ideólogos do direito da  
época, como é comum no estudo da teoria geral do direito. A realidade da atuação  
efetiva do terreno jurídico enquanto fenômeno histórico, tanto repressor do povo como  
articulador da interferência da burocracia sobre o terreno econômico, reforçam a  
defesa dessa conclusão.  
Insta ressaltar que a análise aqui realizada observa a tendência do terreno  
jurídico enquanto direção geral, partindo do concreto para apontar um vetor de  
atuação histórico. É possível afirmar que não foi toda e qualquer produção jurídica da  
época que exerceu essa função. Marx chega mesmo a fazer nos escritos da Nova Gazeta  
Renana uma crítica jurídica a legislações trabalhistas favoráveis à burguesia enquanto  
agressivas aos trabalhadores30. A análise realizada dos escritos marxianos apresenta  
uma tendência e direção gerais, não devendo se perder de vista que o terreno jurídico  
foi um dentro de uma miríade de fatores que caracterizaram a via prussiana, fatores  
esses que dialogavam com o jurídico mas tinham a base material como eixo articulador.  
A título de encerramento, é necessário destacar os limites da pesquisa  
empreendida. Por se tratar de material jornalístico, com objetivo de informação célere  
para movimentar os ânimos da classe trabalhadora e informar o público sobre os  
movimentos institucionais do período em questão, os textos elaborados por Marx  
detêm um grau de análise talvez um pouco mais direto e menos detalhado do que o  
encontrado nos seus estudos posteriores, inclusive pelas limitações de extensão da  
escrita que o formato impunha. Embora seja possível vislumbrar nesses escritos parte  
da teoria marxiana, ressaltando notadamente o foco entre as relações de classe dentro  
do movimento histórico, a importância do modelo produtivo como elemento fulcral de  
orientação da estruturação social de uma sociedade e, consequentemente, a  
materialidade como eixo articulador do ser social, aqui especificamente como  
orientadora do terreno jurídico, esses elementos não são desenvolvidos a exaustão e  
com grau de complexidade analítico que se encontra nas obras de fôlego do autor  
renano.  
30 Crítica presente no texto “Um documento burguês” (MARX, 2010p). Para mais informações cf. SALES  
JÚNIOR, 2018, p. 257-261.  
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Ressaltamos mais uma vez que a inspiração em se utilizar os textos jornalísticos  
marxianos buscou encontrar no Marx da NGR uma combinação de jornalista historiador  
com analista, tentando extrair das suas observações do movimento de forças na  
Prússia de sua época o quadro geral da função ideológica do direito no período.  
Também o período destacado pelas obras foi extremamente breve, pois a Nova Gazeta  
Renana teve curta duração em função da perseguição política empreendida contra os  
apoiadores da Revolução de 1848 e que obrigou Marx a fugir da Alemanha.  
Assim, dados mais complexos sobre o estado da indústria e do comércio  
alemão, bem como o seu desenvolvimento nas décadas seguintes, além de estudos  
mais aprofundados de como o terreno jurídico variou no período pós-revolucionário,  
notadamente a sua influência sobre o desenvolvimento do capitalismo prussiano, são  
de extrema valia para asseverar ou refutar a tese aqui aventada. Seria necessário  
observar em que grau a legislação intervencionista destacada por Marx foi  
efetivamente aplicada pela burocracia, a sua duração, eventuais modificações, a reação  
da burguesia a essa regulação, dentre outros fatores.  
Asseveramos, portanto, que os escritos marxianos aventados apontam para  
uma direção geral em relação ao comportamento do terreno jurídico e sua relação com  
o capitalismo alemão, tese que necessita de confirmação posterior, que não foi possível  
em virtude do escopo finito da pesquisa desenvolvida.  
Assim, também dentro dos limites aqui expostos, importa relembrar que o foco  
no terreno jurídico foi uma opção metodológica para a investigação realizada. Não  
está se afirmando que o fator principal que incidiu sobre o caráter único da via  
prussiana foi o direito, mas apenas que, pelos escritos marxianos indicados, o direito  
foi um dos elementos a conformar a especificidade da via prussiana. Em virtude da  
complexidade da interrelação real dos diversos elementos sociais dentro da  
materialidade histórica, mesmo apontar um papel de destaque ao direito seria  
prematuro. O terreno jurídico foi um dentre diversos fatores responsáveis pela  
caracterização do atraso da via prussiana, longe de ser o único ou necessariamente o  
mais relevante.  
Entretanto, mesmo diante desses limites bastante restritos, acreditamos ter  
fornecido alguma contribuição para o estudo do papel do direito dentro da análise  
marxiana histórica relativa à formação do capitalismo, notadamente o caso prussiano.  
Julgamos que os parâmetros científicos propostos, particularmente a tentativa de  
aferição da atuação do direito enquanto função ideológica no mundo real, os contornos  
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O papel do terreno jurídico na Prússia revolucionária  
da sua aplicação pela burocracia prussiana em detrimento da análise puramente  
idealista das teorias em voga no período, seja um caminho válido para o  
desenvolvimento de uma análise materialista do direito. A tentativa de demonstrar,  
mesmo que num período extremamente limitado e na perspectiva particular de Marx,  
a relação entre o jurídico e o econômico no período aventado, mostrou-se um desafio  
que, com alguma sorte, será frutífera, mesmo que num grau mínimo, para o  
desenvolvimento de uma análise marxista do direito.  
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Renana. Tradução, apresentação e notas: Lívia Cotrim. São Paulo: Educ, 2010g. p.  
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_____. “Lassalle”. In: MARX, Karl. Nova Gazeta Renana. Tradução, apresentação e notas:  
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Nova Gazeta Renana. Tradução, apresentação e notas: Lívia Cotrim. São Paulo: Educ,  
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_____. “O orçamento dos Estados Unidos e o germano-cristão”. In: MARX, Karl. Nova  
Gazeta Renana. Tradução, apresentação e notas: Lívia Cotrim. São Paulo: Educ,  
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José Roberto Almeida Sales Júnior  
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Tradução, apresentação e notas: Lívia Cotrim. São Paulo: Educ, 2010q. p. 259-261.  
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SAZONOV, Vladmir. Marx & Engels Collected Works, v. VIII. Prefácio e notas: Vladmir  
Sazonov. London: Lawrence And Wishart, 2010.  
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Disponível  
em:  
http://www.verinotio.org/conteudo/0.49365995032122.pdf.  
Acesso em: 20 jan. 2018.  
VASILYEVA, Tatyana. Marx & Engels Collected Works, v. VII. Prefácio e notas: Tatyana  
Vasilyeva. London: Lawrence And Wishart, 2010.  
Como citar:  
SALES JÚNIOR, José Roberto Almeida. O papel do terreno jurídico na Prússia  
revolucionária: uma análise da função ideológica do direito nos escritos marxianos  
da Nova Gazeta Renana. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 182-212; jan.-  
jun., 2024  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.708  
A batalha pelos significados dos Grundrisse e o  
labirinto criativo de leituras marxistas sobre o  
direito  
The battle for the meanings of the Grundrisse and  
creative labyrinth of Marxist readings of law  
Moisés Alves Soares*  
Resumo: A importância dos Grundrisse no  
itinerário da obra de Marx é um debate pleno de  
repercussões para o pensamento marxista. Não  
poderia ser diferente para a teoria marxista do  
direito. Para tanto, será discutido 4 importantes  
abordagens (Rosdolsky, Vygodski, Dussel e  
Negri), que dividiram a quadra histórica e  
geopolítica sobre o tema, bem como suas  
repercussões nas leituras marxistas sobre o  
direito. Neste ponto, no interior do labirinto dos  
Grundrisse, pode-se observar uma abordagem  
imanente do texto; uma construção categorial  
fundante da teoria marxista do direito (Stutchka  
e Pachukanis); teorizações heterodoxas ou que  
perpassam o marxismo (Direito Insurgente e  
Autonomismos).  
Abstract: The importance of the Grundrisse in  
the itinerary of Marx’s work is a debate full of  
repercussions for Marxist thought. It could not  
be different for the Marxist theory of law. To this  
end, 4 important approaches will be discussed  
(Rosdolsky, Vygodski, Dussel and Negri), which  
shared the same historical moment and  
geopolitical scene on the topic, as well as their  
repercussions on Marxist readings of law. At this  
point, within the labyrinth of the Grundrisse, an  
immanent approach to the text can be observed;  
a founding categorical construction of the  
Marxist theory of law (Stuchka and Pashukanis);  
heterodox theories or those that permeate  
Marxism (Insurgent Law and Autonomism).  
Keywords: Marx and Marxism; Grundrisse;  
Marxist Theory of Law; Method  
Palavras-chave: Marx e marxismo; Grundrisse;  
Teoria Marxista do Direito; Método.  
O lugar e os significados dos Grundrisse  
Apesar da enorme importância dos Grundrisse no projeto de Marx, o contexto  
de sua publicação em plena segunda guerra mundial, ocorrendo, inclusive, o  
adiamento de sua impressão (3100 exemplares) do dia 21 de junho para 28 de junho  
de 1941 em virtude da invasão alemã à União Soviética implicou o exílio da obra no  
desenvolvimento do pensamento marxista.  
Em pouquíssimo tempo, estas primeiras cópias dos Grundrisse, por terem  
*
Professor Adjunto de História do Direito da Universidade Federal de Jataí (UFJ). Vice-Coordenador e  
Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFJ. Coordenador do Grupo  
de Pesquisa Teorias Críticas do Direito e Desigualdades Sociais (Críticas do Direito - UFJ). Foi membro  
da Secretaria Executiva do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e, atualmente,  
é coordenador do GT Direito e Marxismo.  
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Moisés Alves Soares  
servido “no fronte de guerra como material de agitação contra os soldados alemães e  
depois nos campos como material de estudo para prisioneiros de guerra” (VASINA,  
2008, p.204), tornaram-se bastante raras, uma vez que somente alguns exemplares  
conseguiram cruzar as fronteiras soviéticas. Além disso, os Manuscritos de 1857-58  
não fizeram parte da primeira edição russa das obras de Marx e Engels, Сочинения  
(192847), sendo retomadas como nova edição apenas em 1953 (30000  
exemplares), restrita à língua alemã, mas agora impressa e distribuída por Berlim  
Oriental.  
O fim deste eclipse ou “100 anos de solidão” (MUSTO, 2008, p.181) não se  
reverte espontaneamente em impacto teórico e político entre os militantes comunistas.  
Pode-se “dizer que até 1960 as discussões entre os marxistas não os mencionavam  
nem tampouco se pensava em traduções em outros idiomas” (ARICÓ, 2007, p.VIII).  
Uma obra que seria alvo, na próxima década, de intenso interesse, sendo dissecada  
em seu mosaico de possiblidades pelas mais diversas vertentes.  
O primeiro estudo dedicado exclusivamente a uma análise dos Grundrisse foi  
elaborado por Roman Rosdolsky (1968). Ele, a partir de um contato inesperado com  
um dos raríssimos exemplares da primeira edição, compreendeu que estava diante de  
uma obra fundamental, porém críptica e densa, e pôs-se a escrever uma obra que  
ampliasse seu círculo de leitores e desvendasse suas principais descobertas. Não há  
dúvida que atingiu seu objetivo, pois o escrito, Gênese e Estrutura de O Capital de  
Marx, constitui-se em uma referência internacional não é equívoco afirmar que ainda  
é considerado o principal estudo dos escritos de 1857-58 –, sendo “traduzido em  
muitas línguas, encorajando a publicação e circulação do trabalho de Marx e exercendo  
uma considerável influência em todos os intérpretes posteriores” (MUSTO, 2008,  
p.184).  
Outra importante obra neste debate da apreensão e sobre o significado dos  
Grundrisse é A história de uma grande descoberta de Marx: a criação de O Capital de  
Vitali Vygodski [Виталий Выгодский]1 impressa em 1965 na Rússia, antes mesmo  
do livro de Rosdolsky, mas atingindo o grande público só em 1973 com sua tradução  
publicada na República Democrática da Alemanha. Tal análise, embora não seja  
centrada unicamente sobre os Grundrisse, assume vital interesse, uma vez que, em  
paralelo ao Gênese e Estrutura de O Capital de Marx, traça o caminho de Marx ao O  
1 Será mantida a transliteração inglesa em respeito a tradução que será utilizada.  
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Capital na visão de um dos mais representativos teóricos soviéticos Vygodski seria  
mais tarde, em 1968-69, o editor da tradução russa dos Grundrisse , recuperando  
os esquecidos Manuscritos de 1857-58 de seu exílio no leste europeu. Da mesma  
forma que Rosdolsky, o trabalho de Vygodski transformou-se em parada obrigatória  
sobre a temática.  
Após essas duas grandes obras sobre o assunto, em poucos anos o interesse  
sobre os Grundrisse cresceu exponencialmente, causando o surgimento de inúmeras  
traduções e intervenções de pensadores de diversas matizes dentro do marxismo na  
batalha pela hegemonia da interpretação destes escritos. Entre eles, destacam-se por  
suas posições inovadoras e controversas a respeito dos significados e potencialidades  
dos Grundrisse, Antonio Negri e Enrique Dussel. Tanto o pensador italiano, em Marx  
para além de Marx (1979), quanto o filósofo argentino/mexicano, em A produção  
teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse (1985), ressignificam, de maneiras  
diferentes, a partir dos Grundrisse, a teoria marxista e recolocam os próprios termos  
da discussão sobre o lugar dos Manuscritos de 1857-58 na totalidade da obra de  
Marx.  
Avaliar e estudar as repercussões deste campo de batalha sobre os sentidos  
dos Grundrisse é fundamental para compreender, sobretudo, as raízes, mesmo que  
profundas, de várias tentativas de produzir teorias marxistas do direito ou até de  
teorias críticas do direito pesadas em sentido amplo. Para tanto, de forma analítica,  
serão expostas as principais leituras sobre os significados dos Grundrisse: os  
Grundrisse como caminho ao O Capital em Roman Rosdolsky; a revitalização da  
interpretação soviética em Vitali Vygodski; Marx contra Marx: a leitura dos Grundrisse  
de Antonio Negri; os Grundrisse como abertura para América Latina em Enrique Dussel.  
Por fim, a partir da exposição de tais concepções, caminharemos pelo labirinto crítico  
em suas repercussões, em particular, sobre a teoria marxista do direito.  
Os Grundrisse como caminho ao O Capital em Roman Rosdolsky  
A obra Gênese e Estrutura de O Capital de Marx de Roman Rosdolsky é um  
marco no debate sobre o significado dos Grundrisse na totalidade do projeto de Marx.  
Ela reconstitui, com fidelidade textual, os principais passos tracejados por Marx nos  
Grundrisse e disseca, por meio da análise das modificações dos planos constantes nos  
manuscritos, as desventuras dos caminhos que levam ao O Capital. “Se os Grundrisse  
representam o ‘laboratório teórico’ de Marx, numa metáfora conhecida, o livro de  
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Rosdolsky é o diário da vida do laboratório, o inventário dos métodos e  
procedimentos, do material e dos modos de fazer, dos protocolos de ação e síntese  
de resultados” (PAULA, 2010, p.69). Mas não se trata apenas de um estudo que  
observa o processo de elaboração dos Grundrisse a partir dos resultados de seu ponto  
de chegada, O Capital, uma vez que a reafirmação do papel da dialética como elemento  
central na teoria marxiana a partir dos Manuscritos 1857-58 lança outra interpretação,  
pelas mãos do próprio Marx, de sua obra fundamental. Por esta via, Rosdolsky enfatiza  
a raiz hegeliana da dialética conceitual e histórica nos Grundrisse e em O Capital. Isso  
emerge, justamente, quando a interpretação estruturalista francesa de Marx formula o  
‘corte epistemológico’ com o humanismo, a antropologia” (RABINBACH,1974, p.56).  
Ao observar as variações na estrutura dos projetos para crítica da economia  
política de Marx, Rosdolsky, como é plenamente indicativo pelo título de seu trabalho,  
observa os Grundrisse como um ponto de inflexão na trajetória de elaboração de O  
Capital. Isto é, sobre o sentido dos Grundrisse, para ele, “o que Marx esboçou em  
1857-1858 é, de fato, o programa de sua obra posterior [O Capital]” (ROSDOLSKY,  
2001, p.56).. Pois, “como se sabe, Marx elaborou dois planos – em 1857 e 1866 (ou  
1865) que deveriam servir de base para sua principal obra econômica. Entre ambos  
há um período de nove anos de experimentação e de permanente busca da forma  
expositiva adequada. Verificam-se uma contração do plano inicial e, ao mesmo tempo,  
uma ampliação da parte remanescente” (ROSDOLSKY, 2001, p.27).  
O fio condutor, para Rosdolsky, que permite compreender tais alterações  
promovidas no plano de trabalho de Marx é o método desenvolvido nos Grundrisse,  
em especial, o delineado em sua introdução. O movimento dialético que vai do abstrato  
ao concreto e do simples ao complexo e, sobretudo, a perspectiva da totalidade2 –  
acento conferido por Rosdolsky em consonância com as contribuições de György  
Lukács em História e Consciência de Classe permanecem enquanto princípios  
metódicos centrais do projeto marxiano. Além disso, em que pese as mudanças no  
livro 3, o esboçado por Marx em 1857 permanece como o programa em seu trabalho  
final em linhas gerais. Pois, assim como nos Grundrisse, os livros I e II de O Capital  
estão também limitados, nas próprias palavras de Marx, unicamente à ‘visão abstrata  
2 “A categoria da totalidade não reduz, portanto, seus elementos a uma uniformidade indiferenciada, a  
uma identidade; a manifestação de sua independência, de sua autonomia autonomia que eles possuem  
na ordem de produção capitalista só se revela como pura aparência na medida em que eles chegam  
a uma inter-relação dialética e dinâmica e passam a ser compreendidos como aspectos dialéticos e  
dinâmicos de um todo igualmente dialético e dinâmico”. LUKÁCS, 2003, p.83-84.  
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A batalha pelos significados dos Grundrisse  
do fenômeno da formação do capital, isto é, estão confinados à análise do processo  
de circulação e reprodução ‘na sua forma fundamental’ – a consideração do ‘capital  
em geral’” (ROSDOLSKY, 1974, p.70).  
O “capital em geral” – “não uma abstração arbitrária, mas uma abstração que  
capta a diferença específica do capital em oposição a todas as demais formas de  
riqueza ou modo em que a produção (social) se desenvolve” (MARX, 2007, p.409) –  
representa somente o que os capitais têm como essencial: a capacidade de expandir  
seu próprio valor extraindo a mais-valia por meio da exploração do trabalho. Os vários  
capitais ou as expressões presentes em concreto nas ações dos capitalistas em relação,  
em particular a partir da concorrência, podem apenas ser desvendados após o  
estabelecimento das leis básicas terem sido desenvolvidas no estudo do capital em  
geral. Nesse sentido, “as situações concretas em que o sistema capitalista se  
encontrará historicamente depende tanto das leis gerais tanto das manifestações  
concretas da realidade capitalista” (CATEPHORES, 1978, p.579). Desta forma, as  
manifestações reais da pluralidade de capitais são inteligíveis somente através da  
teorização de sua forma mais abstrata o “capital em geral”.  
As categorias “capital em geral” e “pluralidade de capitais” acabam, conforme  
o marxista ucraniano, sendo a “chave para compreender não só os Grundrisse mas  
também O Capital(ROSDOLSKY, 2001, p.56). Pois,  
assim como os Grundrisse, o primeiro e segundo tomos de O Capital  
limitam-se apenas, em última análise, a ‘enfocar abstratamente, em  
forma pura, o fenômeno da formação do capital’ e analisar o processo  
de circulação e reprodução ‘em sua forma fundamental, reduzido à  
sua expressão mais abstrata’; ou seja, a considerar ‘o capital em geral’”  
(ROSDOLSKY, 2001, p.56).  
A diferença de método sobressalta apenas no terceiro livro de O Capital, uma  
vez que Marx conduz suas observações para além da categoria mais abstrata de  
“capital em geral” em direção à totalidade concreta do processo global de produção  
capitalista na ação recíproca dos diversos capitais entre si em seu movimento real  
(lucro industrial, taxa de interesse, lucro comercial, renda da terra, juros etc.), na  
concorrência e na consciência habitual dos próprios agentes da produção. A  
abordagem dessas formas concretas, embora também sejam tratadas nos Grundrisse,  
“em sua última seção, do lucro, da taxa geral de lucro e da queda tendencial desta  
taxa, o enfoque permanece centrado no ‘lucro em geral’, no ‘lucro da classe capitalista’,  
e não no lucro de ‘um capital individual em detrimento de outro’” (Ibid.).  
É justamente pela questão do método que se explicitam as distinções do  
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Moisés Alves Soares  
executado no plano dos Manuscritos de 1857-58 e o realizado na obra de 1867. Pois,  
nos Grundrisse, a centralidade conferida no estudo da sociedade capitalista à  
determinação abstrata do ‘capital em geral’, relega, conscientemente, inúmeros  
problemas concretos que só teriam tratamento adequado em O Capital. Assim sendo,  
estão ausentes nos Grundrisse “não só a análise da circulação do capital-dinheiro, do  
capital produtivo e do capital-mercadoria, mas também o exame fundamental da  
reprodução e circulação do capital social global” (Ibid., p.30). Por este motivo,  
Rosdolsky ressalta a condição de primeiro projeto ao O Capital e afirma que “não  
devemos exagerar o parentesco das duas obras. Não podemos ignorar a circunstância  
de que a reestruturação posterior do primeiro ‘Livro sobre o capital’ também produziu  
e devia produzir uma certa modificação dos conceitos fundamentais desse livro”  
(Ibid., p.56-57).  
O marxista ucraniano, deste modo, ressalta a continuidade na descontinuidade  
entre os Grundrisse e O Capital, visto que, evidentemente, há um desenvolvimento  
categorial a partir dos Manuscritos de 1857-58, que resultam na modificação da  
estrutura do projeto inicial na medida em que, a partir da análise concreta, evidencia-  
se não mais como fundamentais o foco específico em determinados objetos por  
exemplo, todo o estudo do processo de produção e circulação do capital foram  
elaboradas em detrimentos dos temas dos livros sobre propriedade da terra e trabalho  
assalariado (constantes no plano dos Grundrisse), que foram incorporados em O  
Capital e a extensão de outros problemas antes não suficientemente dimensionados.  
Há na obra de Rosdolsky, portanto, um claro esforço em resgatar a dialética  
marxiana para o marxismo tanto no que tange à análise interna dos Grundrisse quanto  
no significado de seu caminho na gênese do/para O Capital. Nesta tarefa, ele se  
aproxima do famoso aforismo de Lênin, para quem “é completamente impossível  
compreender O Capital de Marx, em especial seu primeiro capítulo, sem haver  
estudado a fundo toda a Lógica de Hegel” (LENIN, 1972, p.172), posto que pensa não  
haver “tema tratado com mais descuido pelos comentadores da teoria econômica de  
Marx do que o de seu método e, particularmente, de sua relação com Hegel”  
(ROSDOLSKY, 2001, p.15). E infere que se “em O Capital, a influência de Hegel só se  
manifesta, à primeira vista, em algumas notas de pé de página. Já os Grundrisse são  
uma grande remissão a Hegel, especialmente à sua Ciência da Lógica, e mostram a  
radical inversão materialista de Hegel” (Ibid. p.17). Ponto que, certamente, abre a  
dimensão de sua obra não apenas como um mero caminho descritivo ao O Capital,  
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A batalha pelos significados dos Grundrisse  
mas, sobretudo, provoca uma abertura na interpretação dialética da obra marxiana a  
partir dos Grundrisse.  
O aparecimento dos Grundrisse, chega a afirmar Rosdolsky, pode “eliminar,  
talvez, a necessidade de morder o fruto amargo e ‘estudar minuciosamente o conjunto  
da lógica de Hegel’ para compreender O Capital de Marx” (ROSDOLSKY, 1974, p.64).  
Ele considera, por sua forma de exposição, que por meio da investigação dos  
Manuscritos de 1857-58 é possível alcançar, mais diretamente, a compreensão do  
significado da obra principal de Marx. Pois, “é precisamente nos Grundrisse que se  
demonstra a extensão da centralidade da dialética na construção de O Capital, bem  
como se indica o papel decisivo atribuído por Marx às categorias de método derivadas  
de Hegel. Categorias como: a relação entre forma e conteúdo, essência e aparência, o  
geral, o particular e o individual; entre imediatez e mediação, entre diferença, oposição  
e contradição, etc.” (Ibid.). Nesse sentido, Rosdolsky defende que “a caracterização de  
Lassale da filosofia hegeliana como um ‘sistema conceitual de mediações’ é válido  
também para o sistema econômico marxiano. A diferença, sem dúvida, é que o ‘sistema  
de mediações’ de Marx não se restringe a meros conceitos, mas é dirigido para captar  
a totalidade do mundo empírico” (ROSDOLSKY, 2001, p.67).  
A ênfase na raiz hegeliana da dialética marxiana em os Grundrisse e sua  
continuidade mais apurada em O Capital, para Rosdolsky, apontam, portanto, no  
sentido da “inadequação das interpretações puramente econômicas de Marx, que  
negligenciam o caráter histórico-dialético da teoria social em seu trabalho, ignorando,  
frequentemente, a importância do trabalho produtor de valor como o lado subjetivo  
do capital, bem como a transformação histórica do valor de uso em forma mercadoria”  
(ROSDOLSKY, 1974, p. 56). O marxista ucraniano, deste modo aborda, rigorosamente,  
os Grundrisse como um manuscrito ao O Capital com imensa potencialidade teórica,  
porém sem estatura de obra autônoma sempre tracejando o caminho dos planos de  
trabalho , no tocante a abertura da dogmatizada teoria marxista sob a pena do  
próprio do Marx.  
A revitalização da interpretação soviética em Vitali Vygodski  
Em paralelo e com objetivo aparentemente próximo ao livro de Rosdolsky, Vitali  
Vygodski, em seu A história de uma grande descoberta de Marx: como Karl Marx  
escreveu “O Capital, aborda a caminhada de Marx até a formulação das teses  
principais de sua obra mestra, englobando o período de gênese de sua crítica da  
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economia política (1850-1863). Deste modo, embora não seja um trabalho  
explicitamente centrado no alcance e significado dos Grundrisse, os Manuscritos de  
1857-58 são considerados peça fundamental em sua construção teórica, sendo  
abordados transversalmente e, em especial, em dois capítulos: “Um Mont Blanc de  
fatos” e “A célula econômica da sociedade burguesa”. Além disso, fato certamente  
mais importante é a retirada do limbo, na União Soviética, devido ao seu potencial  
heterodoxo, de uma parte relegada do projeto teórico de Marx basta dizer que, após  
a primeira publicação em 1939-41, somente foi levada a cabo uma tradução para a  
língua russa dos Grundrisse em 1968-69 sob edição do próprio Vygodski. Tal  
recuperação assume, igualmente, um papel diferenciado na interpretação soviética da  
totalidade da obra de Marx, pois “estudar a história da teoria econômica de Marx revela  
seu método criativo e nos leva para dentro de seu laboratório criativo”, permitindo,  
assim, o domínio do método marxiano, que consiste no caminho para compreender “a  
teoria marxista-leninista de um modo criativo e aplicá-la corretamente para explicar os  
fenômenos da vida na sociedade humana de nossa época” (VYGODSKI, 1973, p.14).  
Neste estudo, o autor russo, delimita seu período de análise entre 1850 e  
1863, pois considera estar nesse ínterim o desdobramento de categorias  
fundamentais como valor, mais-valor, lucro médio, preço de produção, que dão vida  
ao centro de sua crítica da economia política: a teoria do mais-valor. Ao demarcar a  
relevância inaugural desta fase no pensamento marxiano, Vygodski julga que “tudo  
produzido por Marx antes desse período, entre 1843 e 1849, no campo da economia  
política, pode ser designado como pré-história de sua teoria econômica” (VYGODSKI,  
1973, p.15). Apesar de operar esse corte no campo econômico, ele não relega a  
importância dos escritos anteriores na integralidade da obra marxiana, uma vez que é,  
precisamente, este pré-Marx que “formula as teses básicas da dialética e concepção  
materialista da história” – nada próximo a uma ideia de um não-Marx desprezável  
perante o Marx propriamente dito, mas somente a delimitação do desenvolvimento  
autônomo de seus estudos econômicos –, “devotando toda sua atenção à investigação  
das relações de produção da formação capitalista da sociedade” (Ibid., p.16). E é a  
partir da constituição dessa teoria materialista da história, tendo como momento  
predominante a economia, que Marx é impulsionado a elaborar sua teoria econômica  
posteriormente.  
Por esta via, é no caminho da constituição da crítica marxiana da economia  
política, que Vygodski compreende os Manuscritos de 1857-58 como um passo  
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fundamental neste processo de construção. Nos Grundrisse, para o autor russo, Marx  
“expõe, detalhadamente, a base metodológica de sua teoria econômica [...], as  
características básicas do desenvolvimento de sua teoria da mais-valia, bem como os  
elementos essenciais das teorias da reprodução e da crise econômica" (VASINA, 2024).  
Assim, no primeiro manuscrito ao O Capital, “Marx elaborou o mais importante aspecto  
de sua teoria econômica: a teoria do valor e da teoria do mais-valor” (VYGODSKI,  
1973, p.17). Isto é, “Engels disse que Marx fez duas grandes descobertas: a primeira  
é a concepção materialista da história e a segunda trata-se da teoria do mais-valor.  
Foi precisamente trabalhando nos Manuscritos de 1857-58 que Marx fez sua segunda  
grande descoberta(Ibid., p.17, grifo do autor).  
Nesse sentido, para Vygodski, “um relatório detalhado de como Marx descobriu  
a ‘célula econômica’ da sociedade burguesa e a formulação de sua teoria do valor foi  
dado no ‘Capítulo sobre o Dinheiro’, o primeiro capítulo dos Grundrisse(Ibid., p.57).  
Em sua crítica aos proudhonistas e suas utopias monetárias, Marx observa que a  
contradição interna das mercadorias, a contradição entre a uniformidade qualitativa  
como valor e sua diversidade natural como valor de uso, é aparentemente resolvida  
no processo de troca na duplicação das mercadorias enquanto mercadoria e dinheiro,  
isto é, o valor das mercadorias adquire uma existência independente numa forma  
especial de mercadoria – o dinheiro. “Com base nesta análise do duplo fator  
contraditório das mercadorias, Marx chega à conclusão de que o valor de troca é a  
forma necessária exterior de valor, em outras palavras, que o dinheiro é necessário”  
(VYGODSKI, 1973, p.52).  
Tal divisão da mercadoria entre valor de uso e valor, sempre conforme o autor  
russo, no que se refere ao processo de troca, leva Marx a descobrir, igualmente, o  
duplo caráter do trabalho produtor de mercadorias.  
A teoria do duplo caráter do trabalho na produção de mercadorias  
constitui o fundamento da teoria do valor de Marx. É precisamente  
este ponto que marca a diferença da teoria marxiana em relação à  
teoria do valor-trabalho dos clássicos da economia política burguesa.  
(Ibid., p.54)  
O ponto de partida dos economistas burgueses que consideram o modo de  
produção capitalista como eterno e natural levou-os a abstrair da forma social da  
mercadoria, do valor enquanto forma socialmente determinada, somente a discussão  
da magnitude. Deste modo, “a economia política burguesa não avançou no sentido de  
dividir a mercadoria e separar seu envelope social do seu conteúdo material” (Ibid.,  
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p.56). Sendo assim, quando Marx,  
em sua teoria do valor divide a mercadoria, separando a forma social  
da mercadoria do seu conteúdo físico e estabelecendo a distinção  
entre valor de uso e valor, bem como a magnitude do valor e sua  
forma, ele criou a condição essencial para superar do fetichismo em  
relação a mercadoria da economia política burguesa para quem o  
valor de uso e valor teriam ‘crescido’ juntos (Ibid.).  
Nos Manuscritos de 1857-58, então, Vygodski entende que Marx já parte da  
célula econômica da sociedade burguesa: a mercadoria. No entanto, ressalta que ainda  
há uma dubiedade em sua teoria econômica em construção, uma vez que algumas  
vezes ainda procede do valor de troca.  
Nos Grundrisse, o primeiro capítulo era para ter sido chamado de  
‘Valor’, mas em ‘A contribuição à crítica da economia política’ o título  
usado foi ‘A mercadoria’. É evidente que não se tratou de apenas uma  
mudança formal. Ela expressa, sobretudo, o caráter materialista da  
teoria dialética e econômica de Marx (Ibid., p.55).  
Há, deste modo, nos Grundrisse, o encaminhamento teórico do problema da  
troca entre trabalho e capital com base na lei do valor e o delineamento dos  
fundamentos da sua teoria do mais-valor, que constituirá a pedra angular de toda sua  
crítica da economia política.  
A descoberta do mais-valor foi o maior acontecimento revolucionário  
da ciência econômica. Ela permitiu a Marx, pela primeira vez na  
história da economia política, desvelar e explicar cientificamente o  
mecanismo da exploração capitalista. Na linguagem vigorosa de  
Vladimir Maiakovski, Marx ‘pegou os ladrões da mais-valia em  
flagrante’ (VYGODSKI, 1973, p.54).  
Ele demonstra, o que desenvolverá de forma mais acabada em O Capital, que a  
aquisição pela burguesia do mais-valor criado pelos trabalhadores é a base do modo  
de produção capitalista e ocorre em pleno acordo com suas leis internas,  
especialmente com a lei do valor.  
Para Vygodski, portanto, a hipótese científica da década de 1840 do “pré-  
Marx”, tornou-se uma tese cientificamente comprovada nos Manuscritos de 1857-58.  
Deste modo, “os Grundrisse nos levam ao laboratório criativo de Marx e nos permite  
seguir passo a passo o processo no qual Marx elaborou sua teoria econômica” (Ibid.,  
p.44). O marxista russo, da mesma forma que Rosdolsky, ressalta o caráter de  
continuidade e progressão no desenvolvimento da teoria de Marx nas fases de  
elaboração por ele propostas e aponta o significado da obra como o marco  
fundamental na conformação de sua economia política em virtude da descoberta do  
mais-valor. No entanto, cerra o seu sentido numa concepção estritamente econômica  
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em consonância com o marxismo soviético o que talvez aponte para ares de  
enquadramento da obra a linha oficial , não impulsionando em toda potência a  
capacidade criativa que os Grundrisse poderiam fornecer aos textos de Marx. No  
entanto, o estudo significa importante resgate que será avaliado e deglutido por  
autores como Negri e Dussel.  
Marx contra Marx: Antonio Negri diante do novelo revolucionário dos  
Grundrisse  
Outro importante e controverso trabalho sobre os Grundrisse é Marx para além  
de Marx de Antonio Negri. A obra é fruto dos textos que serviram de base aos nove  
seminários sobre os Manuscritos de 1857-58 proferidos por Negri, a convite de  
Althusser, na École Normale Supérieure durante a primavera de 1978. Inclusive, reputa  
o filosofo italiano tal estudo como o único comentário existente a respeito desse vital  
escrito de Marx, posto que as análises anteriores foram realizadas no sentido  
meramente filológico, tendo como objetivo vasculhar o “laboratório marxiano” para  
compreender a gênese do pensamento exposto em O Capital, e não desenvolver uma  
apropriação original de seu espírito revolucionário para discussão contemporânea.  
O próprio critério filológico adotado por tais abordagens é posto em xeque por  
Negri, uma vez que indaga “se é correto considerar a obra definitiva de Marx, O Capital  
em nosso caso, como sintética e exaustiva a respeito de toda investigação marxiana”  
(NEGRI, 2001, p.19-20). No sentido contrário, argumenta que, caso se observe o  
previsto nos esquemas preparatórios, O Capital é apenas uma parte da temática global  
marxiana e não o elemento absolutamente fundamental. O Capital, sobretudo, é  
supervalorizado como centro nodal pelos teóricos por ser a única parte do plano  
realmente levada a cabo, acarretando, por isso, uma redução nos horizontes  
interpretativos substancialmente incongruentes com o espírito global da obra de Marx.  
Deste modo, evidentemente, Negri compreende que “as gêneses de O Capital,  
expostas por ilustres companheiros estudiosos, se acham a meu juízo viciadas pela  
premissa de que O Capital constitui o ponto mais elevado da análise marxiana” (Ibid.,  
p.20). Assim sendo, ao construir seu posicionamento acerca do significado dos  
Grundrisse enquanto obra aberta, em primeiro lugar, faz um balanço crítico de tais  
interpretações representadas nas figuras de Vygodski e Rosdolsky.  
Em relação ao trabalho do marxista russo, Negri ressalta a forte tensão genética  
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por captar uma ideia de continuidade sem contradições antagônicas3 no  
desenvolvimento teórico de Marx a linha crescente de sua teoria econômica, tendo  
como ponto fundamental a descoberta da teoria do mais-valor nos Grundrisse, até O  
Capital. “O avanço teórico de Vygodski [...] não logra caracterizações definitivas, não  
somente porque Vygodski não vai além da descoberta do mais-valor, mas também  
porque não apreende até as últimas consequências o alcance desse descobrimento”  
(NEGRI, 2001, p.21). Desta forma, a despeito de sua interpretação econômica ser  
frequentemente correta, Negri considera que a obra de Vygodski pertence,  
inequivocamente, a um “new look do Diamat(Ibid., p.30). Tal face dos Grundrisse,  
reabsorvida pelo marxismo oficial, atenua a ortodoxia, não menos rígida, mas nem  
sempre adequada, do sistema ideológico soviético.  
Conjugar os Grundrisse com a vulgata soviética de O Capital significa  
permitir essa modernização do Diamat por parte do poder [...], visando  
desenvolver melhor dialética e conflitivamente o potencial de domínio  
da teoria do valor, que a leitura economicista e/ou stalinista de O  
Capital igualmente expressa” (NEGRI, 2001, p.30).  
A leitura de Vygodski, portanto, para Negri, ao se restringir estritamente a esfera  
econômica, não alcança em nenhum nível a dimensão antagonista da dialética,  
provinda do elemento central da teoria do mais-valor, à totalidade das categorias  
marxianas.  
Por sua vez, Negri é muito mais comedido ao tecer críticas sobre Gênese e  
Estrutura de O Capital de Marx, visto que  
na conjugação dos Grundrisse e de O Capital, Rosdolsky sempre  
buscou um terreno intermediário, nunca intentou a redução do  
primeiro ao segundo, antes pretendera fazer uma interpretação  
revolucionária e uma leitura com frequência original e inovadora de O  
Capital(Ibid.).  
Os Grundrisse e O Capital movem-se um no interior do outro a partir de uma ideia de  
totalidade da obra marxiana, capturando, para o filosofo italiano, a forte tensão  
antagonista até o limite do “catastrofismo marxiano”. No entanto, a obra de Rosdolsky  
3
“O Marxismo Soviético introduz a distinção entre contradições antagônicas e não-antagônicas  
(‘conflitos’ e ‘contradições’): a primeira, irreconciliável e ‘solúvel’ apenas através da explosão catastrófica;  
a última, sujeita a solução gradual por meio do controle político; a primeira, característica da sociedade  
de classes; a última, característica da sociedade socialista. O Marxismo Soviético sustenta que a mudança  
da forma explosiva para a transição dialética gradual tem sido possível na URSS com o estabelecimento  
do estado Soviético. [...] Obviamente, a concepção do Marxismo Soviético sobre a dialética é mais  
adequada para servir à estabilização ideológica do estado estabelecido: atribui ao estado a tarefa  
histórica de resolver as "contradições não-antagônicas" e evita, teoricamente, a necessidade de uma  
outra revolução no caminho ao comunismo”. MARCUSE, 1969, p.153-54.  
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se estriba nos limites do tecido ideológico dos entreguerras:  
“por um lado, um objetivismo extremo, por outro, a necessidade de o  
fundamentar na recuperação da ortodoxia. [...] Sua leitura dos  
Grundrisse pretende mediar a extraordinária novidade do texto, que  
Rosdolsky, reiteradamente, adverte com a ingenuidade do verdadeiro  
intelectual e a continuidade da ortodoxia (Ibid.).  
O elemento central dessa crítica ao marxista ucraniano, apesar de admitir os méritos  
em alargar o horizonte interpretativo da totalidade da obra marxiana, consiste na  
manutenção de O Capital enquanto traço acabado de Marx e, por conseguinte, no  
entendimento da viabilidade de aplicação de seu aporte categorial, com a oxigenação  
dos Grundrisse, sem revisionismos à realidade concreta.  
Em oposição a tais concepções, Negri não lê os Grundrisse como um texto,  
prioritariamente, utilizável para estudar a constituição do Capital, tampouco se  
contenta em definir o método da crítica da história e economia política capitalista, mas  
o visualiza como um escrito potencialmente político: a conjugação da possibilidade  
revolucionária decorrente da crise iminente e a necessidade de elaboração de uma  
síntese teórica que orientasse a ação comunista da classe operária frente àquele  
momento histórico. É justamente na abertura para a prática que os Grundrisse  
recuperam Marx, não por sua fidelidade textual, mas como teoria revolucionária. Por  
isso, ao revés das interpretações anteriores, o filósofo italiano considera que  
os Grundrisse representam o ápice do pensamento revolucionário  
marxiano; com tais cadernos atinge-se a fratura teórico-prática que  
constitui o comportamento revolucionário e funda sua diferença tanto  
da ideologia quanto do objetivismo. Nos Grundrisse, a análise teórica  
é constitutiva da prática revolucionária (NEGRI, 2001, p.32).  
Sendo assim, pode-se  
contemplar a síntese efetuada pelos Grundrisse em seu sentido real:  
representam o centro do desenvolvimento teórico de Marx, porque  
representam o momento no qual o sistema em formação não se fecha,  
mas se abre à totalidade da prática (Ibid.).  
Tal dinamismo aberto irradiado pelos Grundrisse na teoria marxiana se  
desenvolve a partir da vinculação crise-emergência resolvida na erupção da  
subjetividade revolucionária. A centralidade, para Negri, dessa relação é tamanha que  
chega a afirmar que “o marxismo bem poderia denominar-se uma ciência da crise e da  
subversão” (Ibid., p.24). Então, a crise e a luta de classes estão articuladas tão  
profundamente que a primeira toma a forma, dentro desta dialética antagônica, de  
catástrofe, enquanto a segunda toma forma de comunismo. Para Negri,  
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os Grundrisse constituem, pois, uma aproximação subjetiva (‘crise  
iminente’) à análise da subjetividade revolucionária no processo do  
capital. Representam, simultaneamente, o ponto mais alto de análise  
e da imaginação-vontade revolucionária de Marx (Ibid., p.22-23).  
Procurando extrair dos Grundrisse elementos para a refundação do movimento  
revolucionário contemporâneo, Negri, baseado nos comentários sobre a maquinaria,  
formula sua teoria do trabalho imaterial sem dúvida, a parte mais controversa de seu  
pensamento. Ele considera que “o desenvolvimento capitalista conduz a uma  
sociedade na qual o trabalho obreiro industrial (enquanto trabalho imediato) é a partir  
de um certo momento unicamente um elemento secundário na organização do  
capitalismo; isto é, quando o capital subsome a sociedade a organizando a sua imagem  
e semelhança, o trabalho produtivo torna-se trabalho intelectual, cooperativo,  
imaterial” (Ibid., p.8). Deste modo, ao considerar que a forma de trabalho  
predominante do “capitalismo maduro” é a imaterial, sepulta no nascedouro a grande  
descoberta dos Grundrisse: a teoria da mais-valia.  
A teoria do mais-valor descoberta nos Grundrisse, então, passa a representar,  
ao invés do centro nervoso da teoria marxiana que deveria orientar a práxis no sentido  
da reabsorção do trabalho alienado, uma estaca na organização do movimento  
revolucionário. Mais: Marx torna-se “o teórico da grande sublevação do capital desde  
o ponto de vista da crise da lei do valor” (NEGRI, 2001, p.31). Isto provoca todo um  
rearranjo categorial da teoria “marxista” e na estratégia revolucionária – senão seu  
abandono , tendo como eixo central “a liberação do trabalho intelectual, como mise  
en forme dos processos de produção subjetiva (fonte matriz de valor e riqueza), que  
nos Grundrisse aparece como chave interpretativa do projeto comunista” (Ibid., p.8).  
O trabalho de Negri, portanto, em que pese apresentar contribuições de  
extrema fecundidade, como a insistência no resgate da dimensão subjetiva da teoria  
marxiana, não vai além de Marx tal qual o título da própria obra indica: Marx Oltre  
Marx , mas sim, em grande medida, contra Marx. O que não significa uma teoria  
potente em oposição ao mundo do capital, porém sob outros marcos e estratégia  
política. O filosofo italiano não só alça os Grundrisse, ao contrário das outras  
interpretações, como uma obra autônoma de ineditismo absoluto, mas a coloca como  
centro da teorização marxiana, inclusive, em oposição ao próprio O Capital. Pois, além  
da síntese teórica entre crise e sublevação a teoria aliada com a práxis revolucionária  
inexistente em O Capital, enxerga nos Grundrisse uma antecipação teórica da  
sociedade capitalista contemporânea a era do trabalho imaterial. Neste Marx contra  
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Marx, por via da elevação do significado dos Grundrisse como obra definitiva da teoria  
marxiana, Negri, curiosamente no escrito em que há a descoberta da mais-valia, vê  
como pedra angular o fim da vigência da teoria do valor e traça seu caminho para  
“para além” do marxismo.  
Os Grundrisse como abertura para América Latina em Enrique Dussel  
Enrique Dussel, em La producción teórica de Marx: un comentario a los  
Grundrisse (1985), elabora um estudo indispensável dos Grundrisse em que procura  
extrair, mediante uma interpretação criativa que em diferente dimensão, igualmente,  
desloca o eixo conceitual marxiano , elementos para revolucionar a realidade  
concreta, em especial, a latino-americana. No entanto, ao contrário de Negri, o qual  
deliberadamente se afasta do marxismo, Dussel se reivindica como partícipe da melhor  
tradição marxista, uma vez que sua teorização desenvolve o discurso implícito, mas  
coerente e sem contradição com o discurso explícito de Marx. Isso porque “o discurso  
que continua Marx é marxista enquanto não trai sua lógica, seus fundamentos, o já  
realizado em sua teoria; mas, ao mesmo tempo, não é meramente repetitivo, tampouco  
explicativo, senão criador: realiza e constrói um discurso próprio, abre-se para novos  
horizontes que não foram explorados por Marx (que não puderam ser pensados por  
seu espaço e tempo)” (DUSSEL, 1985, p.336-337). O filósofo argentino, então, rejeita  
qualquer simulacro de revisionismo, pelo contrário, traça por meio dos Grundrisse, o  
aprofundamento da teoria já exposta conjugada ao desdobramento das categorias  
ontológicas que Marx utiliza sem descrever ou construir diretamente.  
Nesse sentido, para Dussel, evidentemente em discordância das leituras de  
Rosdolsky e Vygodski, os Grundrisse  
não são apenas escritos preparatórios ao O Capital. De maneira  
alguma. Se O Capital não tivesse sido escrito, os Grundrisse já  
haveriam delineado as questões essenciais. Estes oito cadernos  
iniciados em 1857 expressam o momento criador fundamental da  
produção teórica de Marx, é neles que alcança a claridade do que, em  
definitivo, será o descobrimento teórico radical de toda sua vida (Ibid.,  
p.12),  
o mais-valor. Por isso, ele considera que os Grundrisse são a porta de entrada para o  
“Marx mesmo”, isto é, uma passagem ao momento essencial da produção teórica  
marxiana.  
‘Essencial’ no sentido de que, nos Grundrisse, o leitor desavisado será  
conduzido ao Marx mesmo, com sua própria mão de pedagogo, a seus  
descobrimentos centrais, fundamentais, com suas próprias palavras,  
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categorias, e na ordem que ele foi descobrindo em seu ‘laboratório’  
teórico (Ibid., p.11).  
A valorização dos Grundrisse como obra autônoma e fundamental no interior  
da totalidade do projeto marxiano, não significa, contudo, adotar posição semelhante  
a de Negri, visto que Dussel identifica em O Capital a continuação inconclusa do plano  
de trabalho dos Manuscritos de 1857-58 daí a grande importância dos elementos  
não explicitados. Assim, observa-se que  
os Grundrisse são a única obra em que vemos surgir, geneticamente,  
objetivamente não já formuladas segundo as exigências de  
exposição, senão, intrinsecamente, segundo a necessidade das  
próprias determinações constitutivas do conceito as categorias  
essenciais do discurso de Marx, do qual O Capital de 1867 é seu  
maior exemplo expositivo desenvolvido (Ibid., p.14).  
Nos Grundrisse, então, neste processo teórico ao O Capital, a mão de pedagogo  
de Marx tem, “enquanto ontologia, no segundo tratado da Lógica de Hegel sobre a  
‘essência’ um verdadeiro fio condutor” (Ibid., p.19). Há, para Dussel, além da  
centralidade de categorias como mediação e totalidade, inclusive, em relação ao  
método, um tratamento analógico entre a Lógica e os Grundrisse. Hegel, pois,  
distingue a essência em três partes: essência simples, que existe em si, em suas  
determinações no interior de si mesma; essência como ente, que está representada em  
sua existência e aparição e essência como realidade. Por sua vez, nos Grundrisse,  
observa-se a essência do capital em si mesmo na categoria “capital em geral”, tendo  
como determinação fundamental o valor; já o nível da existência ou aparição se  
expressa em suas formas de aparição dinheiro, trabalho assalariado, meios de  
produção, etc. estruturada na distinção ontológica da ordem fenomênica entre uma  
esfera mais superficial (circulação) e outra mais profunda (produção); por fim, a  
essência como realidade figura enquanto “capital produtivo” ou na ordem da  
realização do capital mais tarde aparecerá em O Capital, livro III, como unidade entre  
produção e circulação no processo global de produção capitalista.  
O que Marx elabora, deste modo, nos Manuscritos de 1857-58, é “uma  
ontologia do capital, em estrito sentido filosófico e, ao mesmo tempo, em estrito  
sentido econômico, tendo categorias especificas de ambos os campos epistêmicos.  
Está é sua originalidade dialética” (DUSSEL, 1985, p.347-48). É nestes escritos que  
Marx passa a delinear e ter pleno domínio de sua ontologia, pois “este sair do ‘mundo  
das mercadorias’ – nível superficial dos fenômenos, a aparência hegeliana para  
passar ao ‘mundo essencial’ da produção em íntima relação com a essência é o  
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A batalha pelos significados dos Grundrisse  
movimento dialético de fundo de todo os Grundrisse(Ibid., p.20). Assim, Dussel, em  
oposição àqueles que defendem que desde 1845 a problemática marxiana seria  
somente econômica, defende que, nos Grundrisse, há a inauguração definitiva da  
filosofia como um marco problemático não negligenciável do projeto marxiano, posto  
que é no horizonte ontológico que tais categorias se constituem e ordenam. Por isso,  
querer reduzir capital, mais-valor, produção, circulação, lucro etc., em  
Marx, a somente categorias econômicas é destruir seu discurso; o  
mesmo que reduzi-lo a mero discurso filosófico. [A obra de Marx] é  
uma ontologia da economia, e uma economia ontológica (Ibid., p.348).  
A teoria marxiana, para Dussel, em especial nos Grundrisse, constitui-se na  
primeira ontologia do capital, que, pela clareza de seu delineamento categorial, logra  
alcançar linhas definitivas de sua crítica da economia política. Entretanto, em  
discordância com a ontologia do ser social de Lukács, “que hipostasia a totalidade e  
bloqueia a visão do ‘fora’” (Ibid., p.350), Dussel busca na ontologia marxiana o  
caminho para exterioridade ao mundo do capital. Nesse sentido, a criticidade da teoria  
marxista origina-se da ontologia, mas a partir dessa ideia de exterioridade, que se  
encontra para além dessa mesma ontologia: o não-capital, o outro (como sujeito vivo),  
o trabalhador como capacidade criadora de valor. “A totalidade do capital é superada  
por um âmbito que transcende seu fundamento. Se a ontologia pensa o ser (e a crítica  
da economia política capitalista é, por isso, uma ‘ontologia econômica’), a crítica do  
ser se efetua desde uma alteridade(DUSSEL, 1985, p.359). A exterioridade que se  
consubstancia nessa utopia concreta (à Bloch) alteridade futura – como “polo afetivo,  
tendencial (triebende, diria Marx) que mobiliza a ação. O oprimido, alienado,  
subsumido ao capital tem, assim, um ‘projeto de libertação’ que cria o fundamento  
para uma práxis revolucionária libertadora” (Ibid.) uma ética da libertação, uma teoria  
da justiça, em oposição à realidade capitalista e à moral burguesa.  
A realização desta crítica ao ser do capital, desde a exterioridade prática e  
utópica, é o que Dussel conceitua como transcendentalidade analética – “por analética  
queremos indicar o ‘para além’ (em grego anó-) do horizonte ontológico” (Ibid., p.366).  
Desta forma, “a negação da negação da totalidade (a negação do trabalho assalariado  
como subsumido ao capital) somente pode partir da afirmação da exterioridade  
analética ou desde a capacidade da transcendentalidade que o homem possui por ser  
homem” (Ibid.). Tal afirmação pode se realizar somente através da realização das  
mediações concretas de libertação, “mas antes de sua concretização, há que se situar  
na prática a denominada exterioridade, há que se formular uma teoria crítica radical,  
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há que se organizar mediações políticas e, há, por fim, que se efetivar na história a  
nova ordem alternativa” (Ibid.).  
É justamente nos Grundrisse que Dussel vê a grande abertura teórica para  
desenvolver, em consonância com o não-explícito em Marx, sua leitura marxista latino-  
americana. Ele conjuga com o aparato categorial clássico de Marx desdobramentos de  
outras categorias já existentes, mas não desenvolvidas, na teoria marxiana para  
compreender a realidade periférica. Então, deste encontro com o real:  
a pobreza atroz, sanguinária, lacerante de nosso continente, nos fez  
há anos delinear a questão do ‘pobre’ como categoria antropológica  
e metafísica de origem e estatuto ético. [...] [Nesse sentido], os  
Grundrisse nos têm dado a pista para poder agora começar a  
construir, como categorias analíticas estritas, os conceitos de pobre e  
povo um no singular e outro o coletivo histórico (Ibid., p.18).  
Isto é, além das categorias “pobre” e “povo”, dos Manuscritos de 1857-58,  
Dussel extrai outros elementos fundamentais, senão base dessas primeiras, para  
discussão da questão popular: a dimensão da dialética entre o capital periférico e  
central (a teoria da dependência) a partir dessa relação dúplice do capital pode-se  
analisar o fenômeno do colonialismo, nacionalismo, imperialismo inseridos na ideia de  
exterioridade deste povo oprimido.  
O filósofo argentino, desta forma, tem nos Grundrisse um verdadeiro  
laboratório, para utilizar a recorrente metáfora, da teoria social marxista latino-  
americana. Uma obra que, a despeito de sua ligação genética com O Capital, possui  
luz própria e merece tratamento autônomo o que não quer dizer elevá-la a centro  
do pensamento marxiano. Certamente, não é isso que Dussel faz. Ele sobrevaloriza os  
Grundrisse, sem deslocar a essencialidade de O Capital, porém ressignifica a partir de  
extratos de Marx a centralidade da estrutura categorial marxiana. Quer se situar como  
um marxismo extremamente heterodoxo, no entanto, como Negri, abandona os  
postulados essenciais em prol de sua própria teorização: a filosofia da libertação.  
Do laboratório ao labirinto criativo de aproximações com o Direito  
Conforme foi esboçado nos tópicos anteriores, os Grundrisse, quando  
analisados na totalidade de seus escritos, caem como uma bomba em certas  
teorizações dominantes do marxismo. Se não causou o mesmo impacto do  
aparecimento dos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1932), o ensaio geral presente  
nos lineamentos de 1857-58 possibilita ampliar a análise da totalidade da obra de  
Marx afetando diretamente o dissecar de Marx em períodos e o desidratar de seu  
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pensamento, bem como o esquematismo presente em algumas versões soviéticas e,  
sobretudo, o repensar da práxis revolucionária diante dos desafios do século XX.  
Por óbvio, como já restou nítido na batalha pelos sentidos Grundrisse, a grande  
descoberta ali efetuada é a teoria do mais-valor com suas dimensões objetivas e  
subjetivas. No entanto, não menos relevantes são os excertos metódicos implícitos e  
explícitos presentes na obra. Inclusive, um de seus textos introdutórios, a famosa  
Introdução de 1857, publicada em 1903 sob a batuta de Kautsky, tornou-se marco  
nos debates sobre método em Marx.  
É possível extrair, dentro das limitações deste trabalho, três tipos de  
considerações sobre o labirinto criativo dos Grundrisse em relação ao direito: 1) uma  
aproximação imanente4 do direito nos Manuscritos de 1857-58; 2) A hipótese que a  
partir da leitura metódica dos Grundrisse é fundada a teoria marxista do direito  
propriamente dita a partir das leituras de Stutchka e Pachukanis; 3) A abertura de  
teorias críticas que perpassam o marxismo, sobretudo, a partir das chaves de leitura  
de Negri e Dussel.  
A primeira, de fato, uma conjectura autoral5 dentro da abertura e possibilidades  
que uma obra como os Grundrisse fragmentada e incompleta permite, isto é, observar  
que no nascedouro da teoria do mais-valor, tal demonstrado por Rosdolsky e  
Vygodski, há uma articulação entre uma normatividade do trabalho e a normatividade  
jurídica um eixo genético entre apropriação e alienação.  
Nos Grundrisse, de forma constitutiva, há o surgimento categorial descritivo de  
outra forma qualitativa de acumulação, sendo o direito um elemento mediador do  
processo de apropriação no confronto entre trabalho e capital. Em trecho emblemático,  
Marx afirma, em linguagem próxima aos Manuscritos de Paris, que  
O ser-para-si autônomo do valor frente à capacidade viva de trabalho  
4
Embora não seja uma análise sistemática dos Grundrisse e, na verdade, mais centrada em situar os  
acertos e descaminhos de Pachukanis e dos pachukanianos brasileiro, Vitor Sartori realiza análise  
importante dos argumentos contidos nos Manuscritos de 1857-58. Em breve exposição, afirma: “Mesmo  
que a ênfase de Marx seja diferente daquela do autor soviético, ambos destacam que as condições de  
produção modernas dão um conteúdo completamente diferente à igualdade e à liberdade que aquele  
explícito na antiguidade. No lugar do trabalho compulsório, tem-se o trabalho formalmente livre e regido  
pela valorização do valor. Há também uma atomização dos sujeitos que só pode ser efetiva com a  
supressão das entidades comunais, bem como dos privilégios [...] Porém, pelo que vimos acima, também  
é preciso que se volte os olhos com mais cuidado ao fetichismo do dinheiro, bem como para a  
autonomização do Direito e para o papel da esfera jurídica na distribuição; deve-se, assim, colocar o  
principal tema pachukaniano sob o solo em que está em Marx, aquele da crítica da economia política”.  
SARTORI, 2002, p.118.  
5
Cf. SOARES, Moisés Alves. Direito e alienação nos Grundrisse de Karl Marx. Florianópolis: Curso de  
Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.  
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daí sua existência como capital ; a indiferença objetiva, conservada  
em si mesma; a alienação das condições objetivas do trabalho ante a  
capacidade viva do trabalho, alienação que chega ao ponto de que  
estas condições da pessoa do trabalhador se contrapõem na pessoa  
do capitalista como personificações com vontade e interesses  
próprios” (MARX, 2007, p.413).  
Acrescenta que  
esta dissociação, separação absoluta a respeito da propriedade, ou  
seja, das condições objetivas de trabalho sobre a capacidade viva de  
trabalho de tal modo que se contrapõem como propriedade  
alienada, como a realidade de outro sujeito de direito, domínio  
absoluto da vontade, e de tal modo que também o trabalho se  
apresente ante o valor personificado no capitalista ou ante às  
condições de trabalho, como trabalho alienado (Ibid.).  
O direito pode ser compreendido, em breves linhas, como um manipulador dos  
tempos do capital e um criador/destruidor de subjetividades (jurídicas) que operam a  
alienação do trabalho. Em síntese, a  
fertilidade do laboratório teórico de Marx está disposta na relação  
dialética entre a descoberta progressiva dos mecanismos de extração  
do mais-valor e os meios de conformação social, em particular da  
alienação jurídica, que normatiza esse processo de apropriação do  
trabalho sem equivalente, conferindo uma aparente equivalência a tal  
relação de exploração (SOARES, 2018, p. 1652).  
Por sua vez, a leitura metódica presente nos Grundrisse, é o eixo ontogenético  
que dá surgimento a uma teoria marxista do direito propriamente. Apesar da grande  
influência da metáfora arquitetônica entre base e superestrutura presente na  
Introdução de 1859, que levou ao desenvolvimento de leituras deterministas sobre a  
forma do direito, é com base, nas pistas dos Grundrisse, de pluralidade de tempos  
históricos e apoiado na categoria de totalidade estruturada em “relações desiguais”  
que se elaboram teorias materialistas sobre o direito. Na aclamada Introdução de  
1857, há uma importante advertência:  
De uma maneira geral, não usar o conceito de progresso sob a forma  
habitual. [...] Mas aqui o ponto realmente difícil é: a maneira como as  
relações de produção seguem, como relações jurídicas, um  
desenvolvimento desigual. Assim por exemplo, a relação entre o  
direito privado romano (isto é menos válido para o direito penal e o  
direito público) e a produção moderna (MARX, 2007, p.31, grifo  
nosso).  
É sustentado nessa leitura, absolutamente, alheia a dogmatismos que o  
pensamento jurídico soviético foi erigido na figura de Piotr Stutchka e Evguiéni  
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Pachukanis, que, ao que tudo indica como afirmou Umberto Cerroni6, foram os  
primeiros marxistas a trabalhar nos marcos metódicos esboçados por Marx nos  
Grundrisse.  
A obra de Stutchka, “O papel revolucionário do direito e do Estado”, resultado  
de um processo de reflexão derivado do comunismo de guerra, traça a primeira grande  
elaboração sistemática de uma teoria marxista do direito (1921) sob calor da revolução  
de outubro. Tal obra inaugural se propõe ao desafio de realizar uma análise imanente  
dos traços que demarcam as formas do direito para além da surrada alegoria base e  
superestrutura. “Extravasando abordagens economicistas, Stutchka trabalha nos traços  
metódicos de Marx expostos na conhecida Introdução de 1857 (Grundrisse) e em O  
Capital (livros I e III)” (PAZELLO; SOARES, 2023, p.29). Portanto, no ensaio geral de  
uma teoria marxista do direito, Stutchka lança mão da categoria de desenvolvimento  
desigual para compreender a dialética do que constituiria as formas do direito em sua  
totalidade. Uma combinação forjada historicamente entre formas concretas (as relações  
de produção e apropriação) e formas abstratas (a ideológica gestada pelo direito +  
norma imposta por poder organizado). Com base nesta construção, sobretudo a partir  
da metódica dos Grundrisse, é possível estabelecer análises frente ao desafio do “que  
fazer” com o direito.  
Por sua vez, apesar da recepção brasileira ilustrar Stutchka e Pachukanis como  
autores antagônicos, ambos estiveram num esforço coletivo na revolução de outubro  
de formulação de uma teoria geral do direito a partir do método de Marx. Não por  
acaso, Pachukanis também tenta remontar a protoforma jurídica a partir de categorias  
como mercadoria e sujeito de direito e fluir dentro de um circuito de trocas em estrita  
relação com a produção e reprodução do mundo do capital. Em obra bastante  
celebrada no Brasil, Teoria Geral do Direito e Marxismo (1924), Pachukanis identifica  
uma ligação genética entre a forma jurídica e a forma mercantil, mas sem negligenciar  
as interrelações com o mundo da produção. O autor russo, no sentido oposto das  
análises anteriores que centravam seu foco sobre o conteúdo (de classes) das “normas  
jurídicas”, atende a exigência metodológica de Marx e procura esmiuçar as razões por  
que certa relação social adquire, sob determinadas condições, a forma jurídica. Essa  
crítica ontogenética deve-se a Pachukanis ser, como abordado, um dos poucos juristas  
marxistas a ter trabalhado nos marcos dos Grundrisse.  
6
Cf. CERRONI, 1976, p.65.  
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Como os Grundrisse tornou-se um texto chave, parada quase obrigatória, para  
boa parte do marxismo que queria se libertar do dogmatismo por sua diversidade de  
temas não suficientes explorados em outros escritos publicados de Marx, igualmente,  
houve a formulação de teorias jurídicas marxistas bastante heterodoxas com inspiração  
nos textos de 1857-58. De alguma forma, as quatro abordagens já expostas  
sintetizam as principais categorias utilizadas em tais formulação: método dialético,  
mercado mundial, práxis jurídica/subjetividade revolucionária e relação entre trabalho  
vivo/exploração. Em particular, a partir das principais interpretações do Grundrisse, é  
possível observar o impacto das reflexões de Dussel e Negri nas aproximações à teoria  
marxista do direito.  
De outra parte, temos leituras que dialogam direita ou indiretamente com a  
leitura marxista de Dussel, como a de Celso Ludwig e Ricardo Pazello, para ficar em  
autores brasileiros. O professor Ludwig foi um pioneiro na recepção na recepção do  
pensamento de Dussel no Brasil, contudo operando um diálogo maior com a tradição  
do Direito Alternativo do que propriamente com a teoria marxista7. Em particular,  
aprofunda sua teorização, dando substância por meio da reflexão dusseliana de Marx,  
ao longo do livro A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse, no  
capítulo 17 - Os Grundrisse e a Filosofia da Libertação - com a finalidade de mostrar  
a contradição capital-trabalho diante do movimento que vai da exterioridade ao frente  
a frente” (LUDWIG, 2018, p.1871).  
Ainda, com grande influência da leitura de Dussel, mas legatário de uma  
tradição mais ampla latino-americana, bem como fortemente influenciado pela teoria  
marxista do direito soviética, Pazello, em particular, em seu “Direito Insurgente: para  
uma crítica marxista ao direito”, recupera a tradição que dá nome ao livro e tenta  
ressignificá-la em torno de uma teoria/práxis insurgente ao século XXI. Há  
representativa contribuições dos Grundrisse em seu tracejar equilibrista, contudo a  
maior força parece estar no método.  
Ali [sobretudo, a Introdução de 1857], Marx esboça aquilo que  
tomamos como o primordial para o entendimento do seu sentido do  
método. Assim, sua proposta se nucleia em três grandes aspectos os  
quais podemos chamar de totalidade, historicidade’  
essencialidade’” (PAZELLO, 2021, p.37).  
e
7
Em particular, a partir de Dussel, Ludwig propõe que “a partir das categorias filosóficas desse  
paradigma da vida concreta de cada sujeito que na perspectiva crítica, é negação da vida, ou de  
aspectos da vida , foi possível construir um discurso para uma filosofia jurídica de libertação”. LUDWIG,  
2011, p.176.  
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De maneira provocativa com os adeptos das proposições de Roberto Lyra Filho,  
Pazello demonstra em sua metódica o direito achado n’O Capital, bem como reivindica  
o imperativo de uma práxis insurgente orientada por usos táticos do direito.  
Por fim, nesse campo fértil de possibilidades abertas pelo surgimento dos  
Grundrisse, há leituras autonomistas inspiradas nos traços de Negri centrada no  
antagonismo, potência e revolução. Há algumas tentativas desenvolvidas pelo próprio  
Antonio Negri, contudo no Brasil, com maior aproximação com o marxismo, pode-se  
visualizar a produção de Francisco Guimaraens e de Adriano Pilatti. Uma das categorias  
mais fundamentais nesse esforço é a de Poder Constituinte. Para Guimaraens, Negri  
realiza uma associação entre o conceito de trabalho vivo (presente nos Grundrisse) e  
a noção de poder constituinte, com duas finalidades: “a) conferir consistência material  
ao poder constituinte, ou seja, inseri-lo no âmbito da produção; b) retirar,  
definitivamente, o conceito de poder constituinte do domínio jurídico ao compreender  
a natureza da criatividade e da inovação constituintes” (GUIMARAENS, 2016, p.148).  
Em síntese, Negri “retomou o conflito entre trabalho vivo e trabalho morto, proposta  
por Marx, para desenvolver a análise do antagonismo entre poder constituinte e poder  
constituído” (GUIMARAENS, 2024, p.149). Ainda, Pilatti, que é tradutor da obra O  
poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade8 de Negri, realizou  
potente análise do processo constituinte brasileiro9 sob esses marcos e sobre as  
denominadas jornadas de junho de 201310.  
Os Grundrisse, portanto, possui os problemas e encanto próprios de textos  
potentes e inacabados, isto é, a abertura hermenêutica presente nas categorias  
nascentes e temas explorados, porém não desenvolvidos plenamente. A batalha pelos  
sentidos dos Manuscritos de 1857-58 foi apresentada a partir dos intérpretes mais  
influentes do ponto de vista teórico e geopolítico (Rosdolsky, Vygodski, Dussel e  
Negri), que partilharam uma quadra histórica de reflexão de revitalização e debates  
sobre a atualidade do pensamento marxista. A crueza de O Capital encontraria em os  
Grundrisse um ritmo de construção categorial diferente do anteriormente desenhado,  
um estilo/conteúdo recheado de “humanismos” e problemas a serem respondidos com  
o caminhar do seu processo de investigação. Todos os autores citados afirmaram o  
lugar e o grau de autonomia que os Grundrisse teriam no itinerário de Marx, porém,  
8
Cf. NEGRI, 2002, p.264-315.  
9 Cf. PILATTI, 2020, p.1-18.  
10 Cf. PILATTI, 2016, p. 115-134.  
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especialmente, apontaram novos caminhos para a teoria marxista na  
contemporaneidade.  
Como abordado, tais teorizações influíram direta ou indiretamente na formação  
da teoria marxista do direito. Foi possível visualizar um reposicionamento de uma  
leitura imanente do direito nas obras de Marx, em especial a partir da dinâmica entre  
alienação e apropriação. Ainda, afirmar que é a partir dos juristas soviéticos (Stutchka  
e Pachukanis), com base na metódica dos Grundrisse, que temos a emergência da  
teoria marxista do direito propriamente dita. E, por fim, centrando a abordagem em  
autores brasileiros, o debate de um marxismo heterodoxo estruturado em torno do  
“Direito Insurgente” e de abordagens autonomistas. O ponto decisivo é que apesar do  
esforço de tradução da obra ao português, ainda o impacto no campo do direito é  
diminuto e conhecer esses caminhos parcialmente trilhados podem ajudar o  
aprofundamento das pesquisas das relações entre Marx e o direito.  
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German Democratic Republic: Verlag Die Wirtschaft, 1973.  
Como citar:  
SOARES, Moisés Alves. A batalha pelos significados dos Grundrisse e o labirinto  
criativo de leituras marxistas sobre o direito. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1,  
pp. 213-237; jan.-jun., 2024  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 213-237 jan.-jun., 2024 | 237  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.709  
Marx e o movimento do Direito nos textos  
econômicos tardios (1857-1879)  
Marx and the movement of law in late economic texts  
(1857-1879)  
Lucas Almeida Silva*  
Resumo: Este artigo investiga o Direito nos  
textos econômicos tardios de Marx, de 1857 em  
diante. O objeto derivado, portanto, apenas  
poderia ser a via clássica de objetivação do  
capitalismo. Desta investigação pudemos  
concluir que há em Marx duas etapas do  
movimento do Direito feudal inglês. No primeiro  
momento, temos a revogação dos restos do  
Direito feudal, que obstava a acumulação  
nascente, e a instituição de um Direito  
viabilizador do capitalismo, que atualiza seus  
pressupostos objetivos. No segundo momento,  
com o amadurecimento do modo de produção  
capitalista, o funcionamento de suas leis  
imanentes leva a um Direito propriamente  
capitalista.  
Abstract: This paper investigates Law in Marx’s  
late economic texts, from 1857 onwards. Our  
object could only thus be the objectification of  
capitalism in its classical path. From this  
investigation we conclude that there are in Marx  
two stages in English feudal Law. At first, we  
have the abolition of the remnants of feudal law,  
which hindered the nascent accumulation, and  
the institution of a law that could enable  
capitalism, one that actualizes its objective  
presuppositions. Later, with the maturing of the  
capitalist mode of production, the operation of  
its immanent laws leads to a properly capitalist  
law.  
Keywords: Karl Marx; Law; Capitalism.  
Palavras-chave: Karl Marx; Direito; Capitalismo.  
O objetivo deste artigo não é fazer uma teoria geral do Direito marxista nem  
refletir se ela é possível. Trata-se antes de apresentar em que termos o processo do  
Direito se desdobra nos textos econômicos de Marx - nem mais, nem menos.  
Não se cuidará, portanto, de relacionar a extensa historiografia sobre a gênese  
do modo de produção capitalista ou de investigar a precisão da apreensão de Marx  
da realidade mesma, mas apenas de elucidar o movimento da objetivação do modo de  
produção capitalista como Marx o expõe em seus textos econômicos de maturidade.  
Para tanto, o modo de exposição aqui se configura em duas seções: a primeira,  
em que exponho os efeitos da materialidade sobre o Direito, e a segunda, em que  
exponho o movimento do Direito sobre a materialidade. Não é supérfluo lembrar que  
*
Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail:  
lucas1770@protonmail.com.  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
a divisão é meramente expositiva.  
Da materialidade ao Direito  
Começo pelos efeitos que a materialidade, a produção da vida material, exerce  
sobre o elemento jurídico. Aqui nos dedicamos à tarefa de expor as relações de mútua  
dependência, reciprocidade não mecânica e pressuposição objetiva, ainda que num  
desenvolvimento desigual, no caso concreto inglês.  
No caso específico de nosso objeto, o pressuposto objetivo mais elementar era  
a criação de uma força de trabalho adequada à acumulação nascente. Daí o impulso  
para a revogação de todas as disposições em contrário, acompanhada da mais crua  
violência da assim chamada acumulação primitiva.  
No período da assim chamada acumulação primitiva, o processo material tinha  
um caráter primordialmente de separação entre trabalhador e condições de produção,  
cujo resultado se provou a criação da força de trabalho livre adequada à produção  
capitalista. Essa força de trabalho é livre em dois sentidos:  
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem,  
portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre,  
e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua  
força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser  
alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto,  
carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização  
de sua força de trabalho (MARX, 2013, p. 244).  
Consequentemente, o sentido geral tem o seguinte movimento:  
O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o  
processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das  
condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado,  
transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção  
e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores  
assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por  
conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre  
produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque  
constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe  
corresponde (MARX, 2013, p. 786).  
O que nos importa, porém, é que, no caso do Direito, esse processo guarda a  
dissolução de todas as determinações bem talhadas à produção feudal. Na objetivação  
do modo de produção capitalista, cujo local clássico foi a Inglaterra, o Direito feudal  
local obstaculizava a acumulação nascente. Assim, a atualização dos pressupostos  
objetivos do modo de produção moderno requeria a neutralização do Direito local.  
Apesar de longa, leia-se a seguinte passagem:  
Verinotio  
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Lucas Almeida Silva  
O que nos interessa aqui, antes de tudo: o comportamento do  
trabalho em relação ao capital, ou às condições objetivas do trabalho  
como capital, pressupõe um processo histórico que dissolve as  
diferentes formas em que o trabalhador é proprietário, ou em que o  
proprietário trabalha. Sobretudo, por conseguinte: 1) dissolução do  
comportamento em relação à terra território como condição  
natural de produção, com a qual ele se relaciona como sua própria  
existência inorgânica; como o laboratório de suas forças e domínio de  
sua vontade. Todas as formas em que essa propriedade ocorre  
supõem uma comunidade cujos membros, a despeito das diferenças  
formais que possa haver entre eles, são proprietários como membros  
da comunidade. Por isso, a forma original dessa propriedade é, ela  
mesma, propriedade comum imediata (forma oriental, modificada na  
forma eslava; desenvolvida até o contrário, mas permanecendo ainda  
a base secreta, embora contraditória, na propriedade antiga e na  
germânica). 2) Dissolução das relações em que ele figura como  
proprietário do instrumento. Assim como a forma da propriedade de  
terra acima presume uma comunidade real, essa propriedade do  
trabalhador sobre os instrumentos presume uma forma particular do  
desenvolvimento do trabalho manufatureiro como trabalho artesanal;  
associado a isso, o sistema de guildas e de corporações etc. [...] 3)  
Incluído em ambos está o fato de que ele tem em seu poder, antes da  
produção, os meios de consumo necessários para viver como produtor  
ou seja, durante sua produção, antes da conclusão desta. Como  
proprietário de terra, ele aparece diretamente munido com o fundo de  
consumo necessário. Como mestre artesão, ele os herdou, adquiriu,  
poupou, e, como oficial artesão, ele ainda é aprendiz, condição em  
que ainda nem figura como trabalhador autônomo propriamente dito,  
mas de forma patriarcal comparte a mesa com o mestre. Como oficial  
(de fato), há certo caráter comunitário no fundo de consumo em poder  
do mestre. Embora tal fundo não seja propriedade do oficial, pelas  
leis da guilda, suas tradições etc., ele é ao menos seu copossuidor etc.  
(Assunto a ser aprofundado.) 4) Por outro lado, dissolução na mesma  
medida das relações em que os próprios trabalhadores, as próprias  
capacidades de trabalho vivas, ainda fazem parte diretamente das  
condições objetivas de produção e são apropriados enquanto tais —  
ou seja, são escravos ou servos. Para o capital, o trabalhador não é  
uma condição de produção, mas só o trabalho. Se ele puder realizá-  
lo por meio de máquinas ou até por meio da água, do ar, tanto melhor.  
E o capital não se apropria do trabalhador, mas do seu trabalho —  
não diretamente, mas pela mediação da troca (MARX, 2011, pp. 408–  
409).  
Ou seja, eis aí os pressupostos históricos para que o trabalhador venha a se  
tornar livre, no sentido moderno. Temos essa longa enumeração dos pressupostos  
objetivos do modo de produção moderno, que se devem atualizar por meio da  
dissolução do modo de produção feudal, que o antecedeu. É uma exposição sintética  
dos condicionamentos que a materialidade impõe ao Direito, que, acossado pela  
mudança material, deve afrouxar tudo quanto embarace a acumulação nascente, como  
as “leis da guilda, suas tradições etc.” Sua dissolução, na medida em que são a  
regulação jurídica de relações em que “as próprias capacidades de trabalho vivas”  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
ainda pertencem diretamente às “condições objetivas de produção e são apropriados  
enquanto tais”, é a face jurídica da ruína da feudalidade e de suas disposições legais.  
A revogação das normas referentes às guildas, fique claro, segue de perto a queda  
das próprias guildas. De modo mais geral, vale o mesmo para o desmonte de todas  
as disposições fundadas sobre relações de dependência direta e dissolução das  
relações mesmas, sejam de “escravos ou servos”. Cabe lembrar que, adicionamos ao  
acima, instituir um Direito adequado ao modo de produção que vinha apontando era  
igualmente uma necessidade.  
Obliquamente, demonstra-se a reciprocidade não mecânica do Direito e da  
materialidade. Se, num momento, a criação de uma força de trabalho assalariada  
demanda a “dissolução das relações em que ele [o trabalhador] figura como  
proprietário do instrumento”, no próximo, a preservação dessa mesma força de  
trabalho requer a intervenção do Direito, por meio da legislação fabril. O mesmo  
impulso move a revogação da legislação feudal sobre a inamovibilidade do  
trabalhador: o desenvolvimento capitalista “(…) pressupõe a abolição de todas as leis  
que impedem os trabalhadores de transferir-se de uma esfera da produção a outra ou  
de uma sede local da produção para outra qualquer” (MARX, 2014, p. 231). Da mesma  
forma, o desenvolvimento da assim chamada acumulação primitiva pode revestir certos  
pretextos jurídicos, que evidentemente não podem ser explicados a partir de si  
próprios:  
Se estudássemos a história das terras comunais inglesas, como estas  
foram sucessivamente convertidas em propriedade privada e  
incorporadas ao cultivo pelas Enclosure Bills […]. O fator decisivo,  
nesse caso, foi muito mais a ocasião que faz o ladrão: os pretextos  
jurídicos de apropriação, mais ou menos plausíveis, que se ofereciam  
aos grandes proprietários de terra (MARX, 2017, p. 830).  
Sobre o movimento de usurpação da propriedade comunal, veja-se também:  
A propriedade comunal absolutamente distinta da propriedade  
estatal anteriormente considerada era uma antiga instituição  
germânica, que subsistiu sob o manto do feudalismo. Vimos como a  
violenta usurpação dessa propriedade comunal, em geral  
acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens,  
tem início no final do século XV e prossegue durante o século XVI.  
Nessa época, porém, o processo se efetua por meio de atos  
individuais de violência, contra os quais a legislação lutou, em vão,  
durante 150 anos. O progresso alcançado no século XVIII está em que  
a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo,  
embora os grandes arrendatários também empreguem paralelamente  
seus pequenos e independentes métodos privados. A forma  
parlamentar do roubo é a das “Bills for Inclosures of Commons” (leis  
para o cercamento da terra comunal), decretos de expropriação do  
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povo, isto é, decretos mediante os quais os proprietários fundiários  
presenteiam a si mesmos, como propriedade privada, com as terras  
do povo (MARX, 2013, p. 796).  
Marx resume o movimento real, aqui exposto em duas partes. Antes, o Direito  
lutava contra os “atos individuais de violência”. Depois, torna-se ele próprio um veículo  
de violência, como é possível depreender.  
Provamos com isso um ponto importante do movimento. A objetivação do  
modo de produção capitalista na via clássica passava pela dissolução das condições  
da feudalidade e do Direito que lhe correspondia. Na citação aqui reproduzida, esse  
processo material, “em geral acompanhad[o] da transformação das terras de lavoura  
em pastagens”, se deu em virtude de “atos individuais de violência, contra os quais a  
legislação lutou”. A legislação, portanto, era um impedimento à acumulação nascente.  
Esse contexto dá lugar a um momento em que se forma um Direito mais harmônico à  
acumulação em processo, de modo que “a própria lei se torna, agora, o veículo do  
roubo das terras do povo”.  
As duas faces do processo da dita acumulação “primitiva” — a substituição de  
um Direito feudal por outro abertamente violento, que se torna força material, ao agir  
na objetivação do capitalismo inglês são demonstradas na mesma citação, nas  
condições do processo inglês. A queda do Direito feudal está muito próxima a um  
Direito da acumulação nascente, que leva adiante o processo.  
O vetor resultante do processo é, frise-se, a criação social de uma força de  
trabalho adequada à valorização do valor, que passava à época pelo fim de todas as  
relações diretas de dominação. Que tenha tomado a forma dos meios mais brutais é  
um fato incontestável. A consequência jurídica dessa mudança material é que a  
produção da força de trabalho, formalmente livre, leva ao fim dos privilégios feudais e  
assenta as bases da rearticulação do Direito romano sobre a base da produção  
moderna:  
[Q]ue o trabalhador confronta o capitalista, que possui dinheiro, como  
o proprietário de sua própria pessoa, e, portanto, de sua própria força  
de trabalho, e como o vendedor do uso temporário desta. Assim,  
ambos se encontram como possuidores de mercadorias, como  
vendedor e comprador, enfim como pessoas formalmente livres, entre  
as quais nenhuma outra relação existe além daquela de vendedor e  
comprador, nenhuma outra relação de dominação ou subordinação  
política ou socialmente fixada (MARX, 1994, p. 95, tradução livre).  
É preciso adicionar que Marx reconhece explicitamente que tais tendências,  
como seria de se esperar, alteram o movimento do Direito, uma vez que sua base real  
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é alterada. Prova disso, aliada à evidência de que a liberdade pessoal encarnada na  
venda da força de trabalho é um pressuposto objetivo do modo de produção  
capitalista, pode-se ler a seguir:  
Embora os direitos civis” dos trabalhadores não afetem a “sua posição  
econômica”, sua posição econômica no entanto afeta seus direitos  
civis.  
O
trabalho assalariado em escala nacional  
e,  
consequentemente, também o modo de produção capitalista é  
possível somente onde os trabalhadores são pessoalmente livres. Ele  
se baseia na liberdade pessoal dos trabalhadores (MARX, 1991, p.  
354, tradução livre).  
Não é demais lembrar que, embora a dimensão jurídica ocupe o primeiro plano,  
o processo invisível e subjacente é a já aludida violência direta na separação entre  
trabalhadores e condições de produção. Nesse sentido, veja-se:  
A dissolução de todos os produtos e atividades em valores de troca  
pressupõe a dissolução de todas as relações fixas (históricas) de  
dependência pessoal na produção, bem como a dependência  
multilateral dos produtores entre si. A produção de todo indivíduo  
singular é dependente da produção de todos os outros; bem como a  
transformação de seu produto em meios de vida para si próprio torna-  
se dependente do consumo de todos os outros. Os preços são  
antigos; a troca também; mas a crescente determinação dos primeiros  
pelos custos de produção, assim como a predominância da última  
sobre todas as relações de produção, só se desenvolvem  
completamente, e continuam a desenvolver-se cada vez mais  
completamente, na sociedade burguesa, a sociedade da livre  
concorrência […] (MARX, 2011, p. 104).  
A dissolução das “relações fixas (históricas) de dependência pessoal na  
produção” deve ser compreendida no contexto mais geral da dissolução de todo o  
Direito feudal, como a já citada legislação de guildas, mas também a legislação de  
aprendizagem, vista abaixo. Acrescente-se outra passagem relevante:  
Na relação monetária, no sistema de trocas desenvolvido (e essa  
aparência seduz a democracia), são de fato rompidos, dilacerados, os  
laços de dependência pessoal, as diferenças de sangue, as diferenças  
de cultura etc. (todos os laços pessoais aparecem ao menos como  
relações pessoais); e os indivíduos parecem independentes (essa  
independência que, aliás, não passa de mera ilusão e, mais justamente,  
significa apatia no sentido de indiferença), livres para colidirem uns  
contra os outros e, nessa liberdade, trocar (MARX, 2011, p. 111).  
Ultrapassa este trabalho explorar como a aparência do “sistema de trocas  
desenvolvido […] seduz a democracia”. No momento, basta provar o sentido geral  
desse processo. Para tanto, mobiliza-se outra passagem, talvez a mais assertiva:  
Na história efetiva, o trabalho assalariado resulta da dissolução da  
escravidão e da servidão ou do declínio da propriedade comunal,  
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como se deu entre povos orientais e eslavos e, em sua forma  
adequada que faz época, forma que abarca toda a existência social do  
trabalho, procede da destruição da economia das corporações, do  
sistema estamental, do trabalho natural e da renda em espécie, da  
indústria operando como atividade rural acessória, da pequena  
economia rural ainda de caráter feudal etc. Em todas essas transições  
históricas efetivas o trabalho assalariado aparece como dissolução,  
como destruição de relações em que o trabalho era fixado em todos  
os aspectos, em seu rendimento, seu conteúdo, sua localização, sua  
extensão etc. Portanto, como negação da fixidez do trabalho e de sua  
remuneração (MARX, 2011, p. 34).  
O elemento comum a todas as passagens reunidas é que, para direcionar, para  
levar adiante os conflitos sociais, foi preciso lançar mão de um poder que  
impulsionasse o processo de transformação do modo de produção feudal em  
capitalista e abreviasse a transição de um para o outro. Tal poder, como visto, abreviou  
as dores do parto da transição, em virtude do que, do ponto de vista do Direito, temos  
bem demonstrado que o momento inaugurador da assim chamada acumulação  
primitiva, além das óbvias mudanças materiais, resultou na ruína de todo o Direito, em  
sentido amplo, feudal. Assim, as guildas, o “sistema estamental” etc. e suas expressões  
jurídicas. A passagem seguinte é decisiva:  
Prescindindo de motivos mais elevados, os interesses mais  
particulares das atuais classes dominantes obrigam-nas à remoção de  
todos os obstáculos legalmente controláveis que travem o  
desenvolvimento da classe trabalhadora. É por isso que, neste volume,  
reservei um espaço tão amplo à história, ao conteúdo e aos resultados  
da legislação inglesa relativa às fábricas. Uma nação deve e pode  
aprender com as outras. Ainda que uma sociedade tenha descoberto  
a lei natural de seu desenvolvimento e a finalidade última desta  
obra é desvelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna  
, ela não pode saltar suas fases naturais de desenvolvimento, nem  
suprimi-las por decreto. Mas pode, sim, abreviar e mitigar as dores do  
parto (MARX, 2013, p. 79).  
A reciprocidade complexa entre o momento jurídico e o econômico, sendo este  
o momento preponderante, são determinações presentes no trecho citado. O  
desenvolvimento do Direito é possibilitado pela produção material dos homens,  
desenvolvimento, porém, que pode assumir formas que travem ou que impulsionem  
sua produção social. É o que se lê quando Marx sustenta que “os interesses mais  
particulares das atuais classes dominantes obrigam-nas à remoção de todos os  
obstáculos legalmente controláveis que travem o desenvolvimento da classe  
trabalhadora” (MARX, 2013, p. 79).  
Como temos demonstrado, um exemplo claro é a legislação medieval de  
guildas, um entrave à produção moderna:  
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Nas guildas medievais, o mestre não podia se tornar capitalista,  
devido às regulações da guilda, que restringia o número de  
trabalhadores passíveis de serem empregados em determinado  
momento a um máximo bem baixo (MARX, 1988, p. 270, tradução  
livre).  
É uma legislação que trava um possível desenvolvimento capitalista, e, portanto,  
tinha de ser tornada inoperante de algum modo para que o capital se pudesse  
desenvolver.  
A determinação material do Direito nesse caso aponta que o desenvolvimento  
do capitalismo nascente afasta todas as limitações à livre operação de suas leis  
imanentes: “E de fato as leis sobre o aprendizado seriam repelidas logo após o  
surgimento da maquinaria” (MARX; ENGELS, 1991, p. 499, tradução livre); “[…] O  
trabalho fabril deixa ao trabalhador apenas o conhecimento de certos movimentos  
manuais; com isso, portanto, dá-se cabo às leis de aprendizado” (MARX; ENGELS,  
1994, p. 34, tradução livre).  
Veja-se aqui que a categoria econômica madura prescinde das mediações  
anteriores. A criação de uma força de trabalho adequada agora não passa mais pelo  
aprendizado, e, portanto, a mudança material o sistema fabril em processo de  
maturação torna possível descartar a legislação que a antecedeu. O fascinante é  
que o próprio Direito foi uma mediação para a generalização do sistema fabril, que,  
por sua vez, foi primordial para tornar supérflua a mediação jurídica na determinação  
de categorias econômicas. Assim, as leis do aprendizado são descartadas assim que a  
criação de uma força de trabalho adequada podia ser deixada às leis imanentes do  
modo de produção moderno.  
O capitalismo maduro, portanto, não carece de muletas, por assim dizer, e  
naturalmente tem outra relação com a mediação jurídica em relação ao capital em seu  
estado larval:  
Enquanto o capital é fraco, ele próprio procura ainda apoiar-se nas  
muletas dos modos de produção do passado ou que estão  
desaparecendo com o seu surgimento. Tão logo ele se sente forte,  
joga as muletas fora e se movimenta de acordo com as suas próprias  
leis (MARX, 2011, p. 546).  
Pode ser de interesse lembrar que a acumulação primitiva não é um guia geral,  
passível de ser meramente aplicado. É uma nota importante, considerada a  
possibilidade da aplicação, fundada numa analogia apressada, dos escritos marxianos.  
Os mesmos pressupostos gerais da acumulação capitalista se têm de atualizar, está  
claro. A via de sua objetivação, porém, pode variar enormemente. Sendo O capital uma  
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obra que se debruça sobre as tendências mais gerais do capital, no que é  
complementada pela maior parte dos textos econômicos, não seria razoável esperar  
uma análise imanente das vias não clássicas de objetivação do modo de produção  
capitalista. Apesar de ser um ponto que aparece, aqui e ali, nesta exposição, não carece  
de maiores considerações para além da passagem a seguir:  
A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao  
camponês, constitui a base de todo o processo [da acumulação  
primitiva]. Sua história assume tonalidades distintas nos diversos  
países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes  
épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país  
como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica  
(MARX, 2013, pp. 787788).  
Até o momento expusemos as provas do primeiro momento da objetivação do  
modo de produção capitalista, em que o bom desenrolar do processo carecia da  
abolição de todos os obstáculos materiais e legais, sendo este nosso objeto  
privilegiado. Processo correlato mostrou-se a instituição de um Direito correspondente  
à acumulação primitiva, cuja função era a compulsão ao trabalho.  
Nesse ponto, devemos ressaltar que Marx não sugere que todo o movimento  
superestrutural segue o movimento da base. O movimento superestrutural não tem  
lógica própria, e, portanto, se reporta sempre a um momento anterior que possibilita  
sua existência, sendo este o momento preponderante. O Direito possui especificidade,  
porém não lógica inteiramente sua. A relação de pressuposição objetiva traz em seu  
bojo a questão do desenvolvimento desigual. Antes de abrirmos a questão do que  
seria o desenvolvimento desigual, uma última citação marxiana que prova a  
pressuposição objetiva da materialidade em relação a complexos superiores:  
Os burgueses não consideram que a atual distribuição é “justa”? E  
não é ela a única distribuição “justa” tendo como base o atual modo  
de produção? As relações econômicas são reguladas por conceitos  
jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das  
relações econômicas? (MARX, 2012, p. 27).  
No mesmo sentido:  
Não faz sentido falar aqui de justiça natural […]. A justiça das  
transações que se realizam entre os agentes da produção repousam  
no fato de que essas transações derivam das relações de produção  
como uma consequência natural. As formas jurídicas, nas quais essas  
transações econômicas aparecem como atos de vontade dos  
envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como  
contratos cuja execução pode ser imposta às partes contratantes pelo  
Estado, não podem determinar, como meras formas que são, esse  
conteúdo. Elas podem apenas expressá-lo. Quando corresponde ao  
modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é justo;  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base do modo de  
produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à  
qualidade da mercadoria (MARX, 2017, pp. 386387).  
As relações materiais em determinado estágio, é bom notar, também dependem  
das relações jurídicas, ainda que não sejam estas que engendrem aquelas. Chamemos  
a atenção a este fato: nessa reciprocidade, o Direito pode ser importante mediação ou  
para impedir que a materialidade se desenvolva ou para levar a materialidade a outro  
patamar. Esse patamar superior, na sua constituição e talvez na sua manutenção, como  
no caso da legislação fabril, que não pode ser inteiramente descartada, precisa do  
desenvolvimento jurídico. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento jurídico não é o  
momento preponderante.  
As relações jurídicas necessitam de determinados desenvolvimentos materiais  
que possibilitem sua existência, porém sempre de forma contingente, dentro de um  
espectro, mais ou menos largo, de desenvolvimentos historicamente viáveis. Para que  
fique claro, é preciso expor outro ponto importante de nossa investigação, a saber, o  
fato de que essa relação de pressuposição objetiva, bem entendida, convive com o  
desenvolvimento desigual.  
Esse ponto é importante para demonstrar outra matéria, a saber, que a  
burguesia, em sua fase ascendente, rearticulou o Direito romano. Mais fecundo que se  
dedicar a provar que o Direito romano não é um Direito propriamente dito, tese  
sustentada no Teoria Geral do Direito e Marxismo de Pachukanis e que encontra fortes  
ecos no Brasil, é compreender o movimento objetivo do Direito e a modificação de  
seu centro gravitacional de uma sociedade fundada no escravagismo antigo a outra  
fundada na produção moderna.  
O ponto chave do desenvolvimento desigual se encontra nos Grundrisse. Como  
afirma Marx, é “[a] relação desigual do desenvolvimento da produção material” (MARX,  
2011, p. 62) com outros desenvolvimentos.  
Mas o ponto verdadeiramente difícil de discutir aqui é o de como as  
relações de produção, como relações jurídicas, têm um  
desenvolvimento desigual [ungleiche Entwicklung]. Em consequência  
disso, p. ex., a relação do Direito privado romano (nem tanto o caso  
no Direito penal e no Direito público) com a produção moderna  
(MARX, 2011, p. 62).  
Há várias formas de entificação do Direito possíveis e abertas pela mesma base,  
ou seja, que assentam sobre as mesmas condições de possibilidade. Como Marx afirma,  
o Direito privado romano, em específico, foi rearticulado na produção moderna, o que  
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não ocorreu com os Direitos penal e público (lembrando que o próprio Direito penal,  
de certa forma, desempenha um papel na época das workhouses). Esse ponto  
demonstra a importante função desempenhada pelo Direito, que foi mediação na fase  
ascendente da burguesia contra a feudalidade.  
Para nossos propósitos mais específicos, devemos falar aqui do  
desenvolvimento desigual que os vários complexos têm sobre sua base material, sobre  
suas condições objetivas de possibilidade.  
O desenvolvimento desigual se refere também ao fato de que uma mudança  
material “transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal  
superestrutura” (MARX, 2008, p. 50). A base material e a superestrutura, portanto,  
podem apresentar, dentro de certos limites, rumos diferenciados, ainda que em  
reciprocidade. A questão é difícil, porém, no âmbito específico do Direito, podemos  
destacar que, além do fato de a produção moderna rearticular o Direito privado  
romano, e nem tanto os Direitos penal e público, o Direito privado em Roma é em  
grande medida oposto aos seus fundamentos. Assim, o desenvolvimento do Direito  
privado romano, que só pode existir posta certa produção anterior, pode coincidir com  
a dissolução da comunidade romana, ou seja, pode ser desarmônica diante de seus  
pressupostos objetivos:  
Por essa razão, é igualmente claro que esse Direito, embora  
corresponda a uma situação social na qual a troca não estava de modo  
algum desenvolvida, pôde, entretanto, na medida em que estava  
desenvolvido em determinado círculo, desenvolver as determinações  
da pessoa jurídica, precisamente as do indivíduo da troca, e antecipar,  
assim, o Direito da sociedade industrial (em suas determinações  
fundamentais); mas, sobretudo, teve de se impor como o Direito da  
sociedade burguesa nascente perante a Idade Média. Mas seu próprio  
desenvolvimento coincide completamente com a dissolução da  
comunidade romana (MARX, 2011, pp. 188189).  
Com o desenvolvimento desigual, demonstra-se que a tarefa marxiana não é  
apenas compreender que as formas ideológicas têm determinações materiais, ou seja,  
que têm pressupostos objetivos nas relações materiais. É evidente que o Direito  
pressupõe toda uma série de relações. O que ocorre, porém, é a necessidade de uma  
crítica imanente, que demonstre as condições de surgimento da forma ideológica, sua  
gênese e sua função concreta.  
Engels, deve-se notar, tinha em mente o desenvolvimento desigual. Numa carta  
a Karl Kautsky, datada de 26 de junho de 1884, afirma:  
O Direito romano é a consumação do Direito da produção simples de  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
mercadorias, isto é, pré-capitalista, embora encarne muito do sistema  
legal do período capitalista. Era exatamente o que nossos burgueses  
precisavam ao tempo de sua ascensão e não encontravam no Direito  
tradicional local (ENGELS, 1979, p. 167, tradução livre).  
O bom curso da acumulação capitalista carecia de um Direito mais apropriado.  
O Direito tradicional das localidades não se coadunava com a acumulação capitalista,  
com o que o Direito romano, que integrava uma sociabilidade pré-capitalista, agora é  
rearticulado. A fonte acima, porém, é Engels. Marx, por sua vez, escreve  
inequivocamente:  
A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é  
extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e  
servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e, por  
sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se funda,  
porém, toda a estrutura da entidade comunitária econômica, nascida  
das próprias relações de produção; simultaneamente com isso, sua  
estrutura política peculiar. Em todos os casos, é na relação direta entre  
os proprietários das condições de produção e os produtores diretos  
relação cuja forma eventual sempre corresponde naturalmente a  
determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho e,  
assim, a sua força produtiva social que encontramos o segredo  
mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social e,  
consequentemente, também da forma política das relações de  
soberania e de dependência, isto é, da forma específica do Estado  
existente em cada caso. Isso não impossibilita que a mesma base  
econômica a mesma no que diz respeito às condições principais —  
graças a inúmeras circunstâncias empíricas de diversos tipos,  
condições naturais, raciais, influências históricas externas etc.,  
manifeste-se em infinitas variações e matizes, que só se podem  
compreender por meio uma análise dessas circunstâncias empíricas  
(MARX, 2017, p. 852).  
Ora, o desenvolvimento do Direito, repita-se, tem especificidade, ou seja,  
características próprias, não sendo mero epifenômeno da base econômica, mas não  
lógica inteiramente própria. O Direito é heterogêneo em relação à economia.  
Quanto à tradição em específico e sua relação com o Direito, Marx a elabora  
nos seguintes termos:  
[…] [E]stá claro que nas situações naturais e não desenvolvidas em  
que se fundamenta essa relação social de produção e o modo de  
produção a ela correspondente, a tradição tem de desempenhar um  
papel predominante [übermächtige Rolle]. Ademais, é nítido que aqui,  
como sempre, à parte dominante da sociedade interessa consagrar o  
que já existe, conferindo-lhe o caráter de lei, e fixar como legais as  
barreiras estabelecidas pelo uso e pela tradição (MARX, 2017, p.  
853).  
Se “nas situações naturais e não desenvolvidas […] a tradição tem de  
desempenhar um papel predominante”, a contrario sensu temos que, nas situações  
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desenvolvidas, como a sociedade moderna, a tradição não pode desempenhar papel  
predominante, vindo a se separar gradualmente do Direito, em seu desenvolvimento  
superestrutural, tornando-se “Direito racional”.  
Não houve em qualquer outro modo de produção grau assemelhado de  
diferenciação entre política e Direito como no capitalismo. O desenvolvimento histórico  
geral aponta no sentido da diferenciação tendencial entre os elementos da  
superestrutura. Com a complexificação das sociedades, fica cada vez mais necessário  
dividir especificamente entre “Direito racional” e tradição, por exemplo. A tradição dá  
conta de conflitos sociais em sociedades relativamente simples, mas não naquelas  
altamente complexas, como a moderna.  
A linha de demonstração apenas passa aí na trajetória de provar a rearticulação  
do Direito romano sobre a base da produção moderna. O sentido do processo tornou  
necessário rearticular um Direito pré-capitalista, como tal heterogêneo à materialidade,  
no próprio processo material de dissolução da feudalidade e constituição da moderna  
sociedade civil-burguesa. Em relação à não correspondência, ou heterogeneidade, do  
Direito em relação a seus pressupostos objetivos, veja-se Marx:  
[…] o Direito romano, mais ou menos modificado, foi adotado pela  
sociedade moderna porque a representação jurídica que o sujeito da  
livre concorrência faz de si corresponde à da pessoa romana (não que  
eu tenha qualquer intenção de cá adentrar na vital questão de que a  
representação jurídica de certas relações de propriedade, por mais  
que delas surgindo, não são nem podem ser com elas de todo  
congruentes) (MARX, 1974, p. 614, tradução livre).  
O importante nesse quesito é demonstrar que o desenvolvimento do Direito  
não é mecânico e deve sempre se reportar a tais condições de possibilidade, por sua  
vez agindo sobre elas com efeitos variados. No caso da obra econômica marxiana, que  
se debruça precipuamente sobre a via clássica, o movimento geral foi exposto. Essa  
parte, em específico, pode iluminar toda a série de condicionamentos que a atualização  
das condições de possibilidade do capitalismo exerce sobre o Direito. É evidente que  
não é um condicionamento de mão única. Os efeitos não mecânicos que o Direito pode  
ter sobre a materialidade, a seu turno, ficam para o próximo item.  
Do Direito à materialidade  
Neste item elaboramos os efeitos que o Direito, em sentido amplo, pode ter  
sobre a materialidade. Em sua maior parte, Marx trata dos efeitos da legislação  
parlamentar sobre a materialidade, ainda que o Direito não se resuma à lei.  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
Como seu objeto primário nos textos analisados é desvelar o desenvolvimento  
das leis econômicas, o que se podia observar nos países industrialmente mais  
avançados, França e Inglaterra, não surpreende que sejam objeto de análises mais  
demoradas. Não é à toa que a legislação parlamentar inglesa é tão longamente citada  
por meio dos Blue Books [Livros Azuis].  
Como afirma Marx sobre a legislação fundiária:  
As leis podem perpetuar um instrumento de produção, a terra, por  
exemplo, em certas famílias. Essas leis só ganham significado  
econômico quando a grande propriedade fundiária está em harmonia  
com a produção social, como na Inglaterra, por exemplo. Na França, a  
pequena agricultura era praticada apesar da grande propriedade  
fundiária, daí porque esta última foi destruída pela Revolução. Mas e  
a perpetuação do parcelamento, por exemplo, pelas leis? A despeito  
dessas leis, a propriedade se concentra novamente. A influência das  
leis na manutenção das relações de distribuição e, daí, seu efeito sobre  
a produção devem ser particularmente determinados (MARX, 2011, p.  
52).  
Temos aí o desenvolvimento desigual do Direito em relação à materialidade, o  
fato de que propriedade não é mero conceito jurídico e que a materialidade assenta  
as condições de possibilidade sobre que pode se erigir um Direito harmônico ou  
desarmônico em face da materialidade, ao “perpetuar um instrumento de produção  
[…] em certas famílias”. Lembre-se cá que Marx já falara noutra ocasião que “o Direito  
não é mais que o reconhecimento oficial do fato” (MARX, 1985, p. 86).  
Neste item resumimos os achados marxianos mais significativos. Todos têm em  
comum o fato de mostrarem que o Direito, longe de poder ser compreendido  
meramente em virtude de uma teoria geral, deve sempre se reportar a suas condições  
concretas de possibilidade e de articulação no presente, ou seja, deve sempre se  
apresentar no contexto particular de sua produção, desenvolvimento, rearticulação ou  
abolição. Compreender o movimento concreto do Direito é o desafio marxiano, visto  
pela lente estreita do objeto jurídico.  
Ponto importante se lê no Règlement organique, com o que Marx compara uma  
legislação semi-feudal à legislação inglesa, a mais desenvolvida à época:  
A comparação da avidez por mais-trabalho nos Principados do  
Danúbio com a mesma avidez nas fábricas inglesas tem um interesse  
especial, visto que o mais-trabalho na corveia apresenta uma forma  
independente, palpável (MARX, 2013, p. 310).  
A avidez por mais-trabalho, porém, ainda que presente tanto nos Principados  
do Danúbio quanto nas fábricas inglesas, possui uma dinâmica significativamente  
diferente nas últimas:  
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Se o Règlement organique dos Principados do Danúbio foi uma  
expressão positiva da avidez por mais-trabalho, legalizada a cada  
parágrafo, as Factory Acts inglesas são uma expressão negativa dessa  
mesma avidez. Essas leis refreiam o impulso do capital por uma sucção  
ilimitada da força de trabalho, mediante uma limitação compulsória da  
jornada de trabalho pelo Estado e, mais precisamente, por um Estado  
dominado pelo capitalista e pelo landlord [proprietário de terras].  
Abstraindo de um movimento dos trabalhadores que se torna a cada  
dia mais ameaçador, a limitação da jornada de trabalho nas fábricas  
foi ditada pela mesma necessidade que forçou a aplicação de guano  
nos campos ingleses. A mesma rapacidade cega que, num caso,  
exauriu o solo, no outro matou na raiz a força vital da nação.  
Epidemias periódicas são, aqui, tão eloquentes quanto a diminuição  
da altura dos soldados na Alemanha e na França (MARX, 2013, p.  
313).  
A avidez por mais-trabalho, como se nota no item citado, pode ocorrer tanto  
numa organização feudal da sociedade, mediante a prestação direta de serviços por  
dependência pessoal, como no capitalismo inglês, o mais avançado de sua época, sob  
a forma do mais-valor. Aduz Marx:  
Meu objetivo aqui é simplesmente ilustrar o paralelo com o apetite  
ganancioso dos boiardos, aduzindo certas citações dos mais recentes  
relatórios de fábrica; e, de forma semelhante, apresentar um ou dois  
exemplos em relação aos ramos da indústria em que as leis fabris  
ainda não foram introduzidas (rendados) ou acabaram de ser  
introduzidas (tipografias). Tudo de que precisamos aqui são algumas  
ilustrações para uma tendência que não opera mais fortemente na  
Valáquia do que na Inglaterra (MARX, 1988, p. 216, tradução livre).  
É evidente que a constituição de um código da corveia nos Principados do  
Danúbio passa por uma relação de pressuposição objetiva, de modo que a constituição  
das relações que o Direito vem a reconhecer toma a seguinte forma:  
O trabalho dos camponeses livres sobre sua terra comunal se  
converteu na corveia para os ladrões da terra comunal. Com isso,  
desenvolveram-se, ao mesmo tempo, relações de servidão, ainda que  
apenas de fato, não de Direito, até que a Rússia, a libertadora do  
mundo, legalizou essas relações sob o pretexto de abolir a servidão.  
O código da corveia, proclamado em 1831 pelo general russo  
Kisselev, foi, naturalmente, ditado pelos próprios boiardos. Assim, a  
Rússia conquistou, com um só golpe, os magnatas dos Principados do  
Danúbio e o aplauso dos liberais cretinos de toda a Europa (MARX,  
2013, p. 311).  
Ressalte-se o uso do Direito como pretexto jurídico da abolição da escravidão,  
solidificando, na realidade, relações de corveia.  
A citação abaixo não deixa dúvidas de que o papel que o Direito desempenha  
no caso concreto é central no projeto científico de Marx:  
Onde a produção capitalista se instalou plenamente entre nós [isto é,  
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na Alemanha] por exemplo, nas fábricas propriamente ditas , as  
condições são muito piores que na Inglaterra, pois aqui não há o  
contrapeso das leis fabris. Em todas as outras esferas, atormenta-nos,  
do mesmo modo como nos demais países ocidentais do continente  
europeu, não só o desenvolvimento da produção capitalista, mas  
também a falta desse desenvolvimento. Além das misérias modernas,  
aflige-nos toda uma série de misérias herdadas, decorrentes da  
permanência vegetativa de modos de produção arcaicos e antiquados,  
com o seu séquito de relações sociais e políticas anacrônicas.  
Padecemos não apenas por causa dos vivos, mas também por causa  
dos mortos. Le mort saisit le vif! [O morto se apodera do vivo!]  
Comparada com a inglesa, a estatística social da Alemanha e dos  
demais países do ocidente do continente europeu ocidental é  
miserável. Não obstante, ela levanta suficientemente o véu para deixar  
entrever, atrás dele, uma cabeça de Medusa. Ficaríamos horrorizados  
ante nossa própria situação se nossos governos e parlamentos, como  
na Inglaterra, formassem periodicamente comissões para investigar as  
condições econômicas; se a essas comissões fossem conferidas a  
mesma plenitude de poderes para investigar a verdade de que gozam  
na Inglaterra; se, para essa missão, fosse possível encontrar homens  
tão competentes, imparciais e inflexíveis como os inspetores de fábrica  
na Inglaterra, seus relatores médicos sobre public health [saúde  
pública], seus comissários de inquérito sobre a exploração de  
mulheres e crianças, sobre as condições habitacionais e nutricionais  
etc. Perseu necessitava de um elmo de névoa para perseguir os  
monstros. Nós puxamos o elmo de névoa sobre nossos olhos e  
ouvidos para poder negar a existência dos monstros (MARX, 2013, p.  
79).  
Marx chama a atenção aos diferentes graus de desenvolvimento do objeto —  
no caso específico, a produção capitalista. É claro que o capitalismo pode estar mais  
ou menos desenvolvido, mais ou menos preso a restos de modos de produção  
anteriores. Porém mesmo esses restos de modos de produção anteriores mostram que  
as formas concretas de entificação do capitalismo são heterogêneas. A história inglesa,  
como bem consta em O capital, demonstrou que o desenvolvimento capitalista  
gradualmente se desvencilhou de seus embaraços feudais. O Direito foi,  
contraditoriamente, instrumento para a viabilização do modo de produção capitalista  
e, posteriormente, instrumento de “contrapeso” ou freio racional, por meio das leis  
fabris, à dinâmica interna da acumulação.  
No caso prussiano, a existência de traços pré-capitalistas e a miséria alemã  
deságuam na via prussiana. As consequências materiais são enormes. Na Inglaterra  
puderam surgir Direitos civis amplos, além dos Direitos do trabalho postos pela  
legislação fabril.  
Um ponto que demonstra ainda mais evidentemente a função concreta do  
Direito, sendo este um papel inerente a seu funcionamento como ideologia, temos na  
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jornada normal de trabalho. A atuação jurídica é complexa, passando da violência  
ostensiva, num primeiro momento, à compulsão econômica, quando a produção social  
de uma classe trabalhadora adequada à acumulação capitalista está num estágio  
adiantado. Como aduz nosso autor:  
Para “se proteger” contra a serpente de suas aflições, os  
trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de  
uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos  
de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e a  
suas famílias à morte e à escravidão (MARX, 2013, p. 3734).  
Ao mesmo tempo, pode Marx sustentar que “a legislação sobre o trabalho  
assalariado, desde sua origem cunhada para a exploração do trabalhador”, seja  
“sempre hostil a ele” (MARX, 2013, p. 809).  
Como visto, a jornada normal de trabalho, um compromisso imposto pela  
revolta crescente da classe trabalhadora em cada país, é produto das próprias  
contradições imanentes ao capitalismo. Assim, com o tempo, e com a normalização  
das condições de concorrência, ela teve de se generalizar:  
O modo de produção material modificado, ao qual correspondem as  
relações sociais modificadas entre os produtores, engendra, de início,  
abusos desmedidos e provocam, como reação, o controle social que  
limita, regula e uniformiza a jornada de trabalho e suas pausas. Por  
isso, durante a primeira metade do século XIX, esse controle aparece  
como mera legislação de exceção […]. A legislação foi, por isso,  
obrigada a livrar-se progressivamente de seu caráter excepcional, ou,  
onde ela é aplicada segundo a casuística romana, como na Inglaterra,  
a declarar arbitrariamente como fábrica (factory) toda e qualquer casa  
onde algum trabalho é executado (MARX, 2013, pp. 369370).  
A importância da análise da legislação fabril é provada com todas as letras:  
Somente com a lei fabril de 1833 que incluía as indústrias de  
algodão, lã, linho e seda foi instituída na indústria moderna uma  
jornada normal de trabalho. Nada caracteriza melhor o espírito do  
capital do que a história da legislação fabril inglesa de 1833 a 1864!  
(MARX, 2013, p. 350).  
Como sempre, é bom notar que Direito e política estão em reciprocidade  
complexa, e que o Direito, tanto quanto a política, é um campo provisório, isto é, não  
resolutivo. Dito de outro modo, o Direito assenta sobre certas condições de  
possibilidade, não podendo ultrapassar os limites circunscritos por determinada  
sociabilidade. Em última análise, portanto, o Direito pode ser relevante campo de  
batalha para gerir a produção material da vida, gestão essa que não consegue dar  
cabo da irresolubilidade inata da organização societária cindida em classes. Em suma,  
o Direito é sintoma de uma sociabilidade que precisa gerenciar conflitos com meios  
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inócuos para superá-los.  
De qualquer forma, somos levados a crer que o amplo desenvolvimento do  
Direito sobre a produção capitalista medeia uma série de relações imprescindíveis à  
reprodução social do valor. Ao mesmo tempo em que responde a influências de outras  
esferas do ser social, como tratamos no capítulo anterior, acaba por atuar de formas  
heterogêneas sobre a realidade concreta. Logo, o Direito pode contribuir para o  
desenvolvimento das determinações do dinheiro, por exemplo, ou pode contribuir para  
a manutenção de uma classe trabalhadora adequada à valorização do valor, tudo de  
forma heterogênea em relação à economia e de forma contingente.  
Ao falar da mudança da jornada normal de trabalho como atuação dos  
trabalhadores, por meio do Estado, sobre o estado atual de coisas da vida material  
como um importante passo rumo ao reino da liberdade, devemos relembrar que não  
cabe ao pesquisador, como falamos mais de uma vez neste trabalho, repetir conclusões  
acerca de possibilidades que existem no processo histórico mesmo por meio de seus  
sistemas doutorais. Afirma nosso autor:  
Pelo que diz respeito à limitação da jornada de trabalho, tanto na  
Inglaterra quanto em todos os outros países, ela nunca foi  
regulamentada a não ser por intervenção legislativa. E sem a  
constante pressão exterior dos operários, essa intervenção nunca se  
efetivaria. Em todo o caso, esse resultado não seria alcançado por  
acordos particulares entre os operários e os capitalistas. É a  
necessidade de uma ação política geral que demonstra claramente  
que, na luta puramente econômica, o capital é a parte mais forte  
(MARX, 2010a, p. 137).  
Note-se que o próprio desenvolvimento da lei fabril avança desigualmente, em  
reciprocidade com outros momentos, em cada local, o que demonstra o projeto  
científico instaurado por Marx. Como escreve ele:  
A França se arrasta, claudicante, atrás da Inglaterra. Foi necessária a  
Revolução de Fevereiro para trazer à luz a Lei das 12 Horas, muito  
mais defeituosa que a original inglesa. Apesar disso, o método  
revolucionário francês também mostra suas vantagens peculiares. De  
um só golpe, ele estabelece para todos os ateliês e fábricas, sem  
distinção, os mesmos limites da jornada de trabalho, ao passo que a  
legislação inglesa cede à pressão das circunstâncias, ora nesse ponto,  
ora noutro, e está no melhor caminho para se perder em meio a novos  
imbróglios jurídicos. Por outro lado, a lei francesa proclama como um  
princípio aquilo que a Inglaterra conquistou apenas em nome das  
crianças, dos menores e das mulheres, e que só recentemente foi  
reivindicado como um Direito universal (MARX, 2013, pp. 371372).  
Não poderia ser mais claro o fato de que o Direito está concretamente ligado  
às circunstâncias de cada país, como a concorrência mundial, o estágio da luta de  
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classes, a organização jurídica, se casuística e de common law ou de inspiração  
romano-germânica (civil law) etc. Não obstante, dado que a materialidade, no processo  
de objetivação do capitalismo, impunha circunstâncias mais ou menos similares na  
Europa ocidental, o desenvolvimento da legislação fabril no continente europeu pôde  
seguir o caminho inglês:  
Os governos do continente (França, Prússia, Áustria etc.) foram  
compelidos, proporcionalmente ao desenvolvimento da produção  
capitalista, e, portanto, do sistema fabril, a seguir o exemplo inglês,  
limitando o dia de trabalho d’une manière ou d’autre autre [de um  
jeito ou de outro]. Eles, em sua maior parte, com certas modificações,  
inevitavelmente copiaram a legislação da fábrica inglesa (MARX, 1988,  
p. 220, tradução livre).  
Portanto, as legislações dos governos europeus continentais puderam exercer  
efeitos semelhantes porque passavam por circunstâncias mais ou menos semelhantes,  
o que, em verdade, pôs as bases que ativaram a mediação jurídica em primeiro lugar.  
Assim, nesse ponto específico o continente europeu seguiu univocamente na  
instituição da jornada normal de trabalho, ainda que, e este é o ponto a reter, isso não  
signifique que todos os aspectos jurídicos seguiram dessa forma, muito menos de  
outros momentos, como o político. Em relação à Prússia, em particular, já nos referimos  
à existência de um corpo teórico acerca da via prussiana, com o que podemos evitar  
maiores menções ao assunto.  
Como as atuações do Estado e do Direito são complexas, é possível extrair  
determinações contraditórias do movimento concreto. Ao mesmo tempo em que o  
Direito pode ser uma reação de proteção dos trabalhadores, ainda que “sempre hostil  
a ele[s]”, pode também ser um freio racional contra os excessos da grande indústria:  
As investigações profundamente conscienciosas da Child. Empl.  
Comm. [Children’s Employment Commission] demonstram, de fato,  
que em algumas indústrias a regulamentação da jornada de trabalho  
não fez mais do que distribuir uniformemente, ao longo de todo o  
ano, a massa de trabalho já empregada; que tal regulação foi o  
primeiro freio racional aplicado aos volúveis caprichos da moda,  
homicidas, carentes de sentido e por sua própria natureza  
incompatíveis com o sistema da grande indústria; que o  
desenvolvimento da navegação transoceânica e dos meios de  
comunicação em geral suprassumiu a base propriamente técnica do  
trabalho sazonal; que todas as demais circunstâncias pretensamente  
incontroláveis são varridas pela construção de novos edifícios, pelo  
incremento de maquinaria, pelo aumento do número de trabalhadores  
simultaneamente empregados e pelo efeito retroativo que isso gera  
sobre o sistema do comércio atacadista. Entretanto, o capital, como  
ele mesmo reiteradamente declara pela boca de seus representantes,  
consente em tal revolucionamento “sob a pressão de uma lei geral  
do Parlamento” que regule coercitivamente a jornada de trabalho  
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(MARX, 2013, pp. 550551).  
O aspecto do Direito como freio racional, segundo nos parece, não recebe a  
devida atenção na literatura marxista1. Ao mesmo tempo em que demonstra  
claramente os efeitos que o Direito tem sobre a materialidade, não deixa de ser um  
momento da produção social de uma classe trabalhadora adequada à acumulação  
capitalista e da eliminação de excessos da grande indústria. Os grilhões da regulação  
legal sem dúvida foram reação necessária ao prolongamento desmedido da jornada  
de trabalho e à “voracidade de lobisomem” do capital. A partir de então, a extração  
de mais-trabalho deve deslocar sua tônica do prolongamento em termos absolutos da  
jornada de trabalho para a redução do tempo de trabalho necessário por meio do  
desenvolvimento técnico. Numa frase, é o deslocamento do papel preponderante da  
extração de mais-valor absoluto para a extração de mais-valor relativo.  
Em termos breves, há duas formas, em Marx, de produção de mais-valor. A  
primeira é o mais-valor absoluto, obtido pelo prolongamento da jornada de trabalho,  
de modo que aumenta o tempo dedicado à produção de excedente, pela intensificação  
do trabalho ou pela supressão de tempo ocioso ou pouco produtivo. A segunda é o  
mais-valor relativo, derivado da redução do tempo de trabalho necessário por meio  
do avanço técnico, de forma que o mais-trabalho passa a ocupar proporcionalmente,  
no mesmo tempo de trabalho dado, proporção maior, mediante o aumento da força  
produtiva. A consequência é a elevação da composição orgânica do capital, ou,  
expresso por outras palavras, o aumento da parcela morta ou técnica do trabalho sobre  
a parcela viva, ou capital constante sobre capital variável.  
Retomando a citação, cabe mostrar que o desenvolvimento exposto não se deu  
por uma súbita iluminação espiritual dos capitalistas, mas por uma “lei geral do  
Parlamento”, feita pela pressão da revolta crescente da classe trabalhadora. Devido a  
seu caráter de generalidade e abstração, o Direito pode se tornar o campo privilegiado  
de conflitos sociais, ainda que esta mediação se revele incapaz de extirpar os conflitos  
sociais, passando apenas a gerenciá-los.  
Ao mesmo tempo, é evidente que isto não exclui outra determinação marxiana,  
segundo a qual:  
A legislação fabril, essa primeira reação consciente e planejada da  
sociedade à configuração natural-espontânea de seu processo de  
1 A bem da verdade, há poucas exceções, até onde foi possível ao autor apreender a literatura sobre o  
tema. Não surpreende que sejam de outros estudiosos do tema do mesmo círculo, a saber, Elcemir Paço  
Cunha, José Roberto Almeida Sales Júnior e Vitor Bartoletti Sartori.  
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produção, é, como vimos, um produto tão necessário da grande  
indústria quanto o algodão, as self-actors e o telégrafo elétrico  
(ibidem, p. 551).  
O Direito desempenha seus inúmeros papéis, dentro do espectro do possível,  
simultânea e contraditoriamente, tanto de um freio racional ao impulso do capital  
quanto de elemento essencial à reprodução desse mesmo capital, ao criar e manter  
uma força de trabalho adequada a seu movimento regular. O próprio Marx sempre se  
reporta à realidade e ao desenvolvimento particular e não mecânico de cada país:  
Esses estatutos do trabalho [cuja função prática é alongar  
compulsoriamente a jornada de trabalho], que também se encontram  
ao mesmo tempo na França, nos Países Baixos etc., só foram  
formalmente abolidos em 1813, muito tempo depois que as  
mudanças nas relações de produção os haviam tornado obsoletos  
(ibidem, p. 343).  
No capitalismo, existe a tendência para o alongamento desmesurado do mais-  
valor absoluto, isto é, o alongamento absoluto da jornada de trabalho, diminuição dos  
intervalos e períodos de descanso e/ou refeições etc. Essa tendência se expressa de  
formas variadas:  
Mas a avidez do capitalista por mais-trabalho se manifesta como  
ímpeto por um prolongamento ilimitado da jornada de trabalho, ao  
passo que a do boiardo mais simplesmente como caça direta por dias  
de corveia (ibidem, p. 311).  
É tal tendência que leva à resistência, ou seja, à luta pela diminuição  
compulsória da jornada de trabalho. O Direito, considerando-se que essa diminuição  
compulsória tem de tomar a forma da limitação legal e geral da jornada normal de  
trabalho, é uma das mediações pivotais para a acumulação capitalista. Por isso a  
comparação entre as regulações legais da fase de transição do feudalismo ao  
capitalismo, que tomam a forma de alargamento da jornada de trabalho e da legislação  
sanguinária contra os trabalhadores, com as regulações do capitalismo desenvolvido,  
com sua limitação da jornada de trabalho. Segue-se que é apenas de determinado  
momento do desenvolvimento do capital que este cessa de necessitar de ajuda  
externa, noutras palavras, não lança mão de outras mediações que não suas leis  
imanentes.  
Por outro lado, tutelar legalmente uma jornada normal de trabalho generaliza  
as condições de extração de mais-valor relativo e normaliza a concorrência. Quanto a  
isto, como afirma Marx, “a igual exploração da força de trabalho é o primeiro Direito  
humano do capital” (MARX, 2013, p. 364). O trecho a seguir é explícito quanto à  
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incitação da busca por mais-valor relativo:  
Ao mesmo tempo, operou-se uma modificação no caráter do mais-  
valor relativo. Em geral, o método de produção do mais-valor relativo  
consiste em fazer com que o trabalhador, por meio do aumento da  
força produtiva do trabalho, seja capaz de produzir mais com o  
mesmo dispêndio de trabalho no mesmo tempo. O mesmo tempo de  
trabalho agrega ao produto total o mesmo valor de antes, embora  
esse valor de troca inalterado se incorpore agora em mais valores de  
uso, provocando, assim, uma queda no valor da mercadoria individual.  
Diferente, porém, é o que ocorre quando a redução forçada da jornada  
de trabalho, juntamente com o enorme impulso que ela imprime no  
desenvolvimento da força produtiva e à redução de gastos com as  
condições de produção, impõe, no mesmo período de tempo, um  
dispêndio aumentado de trabalho, uma tensão maior da força de  
trabalho, um preenchimento mais denso dos poros do tempo de  
trabalho, isto é, impõe ao trabalhador uma condensação do trabalho  
num grau que só pode ser atingido com uma jornada de trabalho mais  
curta (ibidem, p. 482).  
Sobre a revolta crescente na via clássica, é possível adicionar: “[a]ssim que a  
classe trabalhadora, inicialmente aturdida pelo ruído da produção, recobrou em  
alguma medida seus sentidos, teve início sua resistência, começando pela terra natal  
da grande indústria, a Inglaterra” (MARX, 2013, p. 350).  
Já aludimos que essa resistência generaliza as condições de extração do mais-  
valor relativo e leva o modo de produção nascente a um novo patamar. Nesse mesmo  
sentido:  
[O]s Factory Reports ingleses unanimemente demonstram duas coisas:  
1) que desde a introdução da Lei das 10 Horas (mais tarde modificada  
para 10h12) os pequenos e gradativos melhoramentos na maquinaria  
se deram numa escala maior e mais contínua do que em qualquer  
período anterior, e 2) que a velocidade e o número do maquinário que  
o trabalhador individual tem de supervisionar aumentou deveras a  
intensidade do trabalho, as demandas sobre os nervos e músculos do  
trabalhador.  
Ademais, os mesmos Reports não deixam dúvidas sobre os seguintes  
dois fatos: 1) que sem a legislação trabalhista, a limitação da jornada  
de trabalho absoluta, a grande revolução no funcionamento da  
indústria não haveria ocorrido, posto que implementada pelo limite  
externo fixado pela legislação à exploração do trabalhador; 2) que o  
experimento não seria possível, isto é, não seria possível tão  
bruscamente com um resultado tão favorável, sem o alto nível de  
desenvolvimento tecnológico já alcançado e os meios de assistência  
dados pelo nível da produção capitalista adquiridos em geral (MARX,  
1982, pp. 19071908, tradução livre).  
O Direito, ao instituir uma jornada normal de trabalho, acaba por, em virtude  
da concorrência, normalizar a extração de mais-valor relativo. Outro efeito da regulação  
jurídica é o aumento dos custos de produção pois aumenta o valor da força de  
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Lucas Almeida Silva  
trabalho com seus direitos trabalhistas. Assim, os pequenos produtores são  
destituídos pelo aumento dos custos de produção. A consequência é a concentração  
de capitais, uma vez que os pequenos produtores, como as oficinas menores, passam  
a ter uma margem de lucro agudamente reduzida:  
Se a lei fabril, por meio de todas as suas medidas coercitivas, acelera  
indiretamente a transformação das oficinas menores em fábricas,  
interferindo, assim, indiretamente no Direito de propriedade dos  
capitalistas menores e garantindo o monopólio aos grandes, a  
imposição legal do volume de ar necessário para cada trabalhador na  
oficina expropriaria diretamente, de um só golpe, milhares de  
pequenos capitalistas! Ela atingiria a raiz do modo de produção  
capitalista, isto é, a autovalorização do capital, seja grande ou  
pequeno, por meio da “livre” compra e consumo da força de trabalho  
(MARX, 2013, pp. 552553).  
Esse efeito material do Direito pode levar a enormes mudanças, como o declínio  
das condições materiais de vida, a concentração de capitais, o rebaixamento dos  
salários etc. No caso específico da Inglaterra, a instituição de uma jornada normal de  
trabalho e a subsequente busca por mais-valor relativo, o que implica trabalho mais  
intenso, em vez de extenso, como na busca por mais-valor absoluto, conviveu com um  
aumento do valor socialmente produzido e mesmo com o aumento de salários:  
Esta é a razão pela qual, com a introdução da Lei das dez horas, não  
houve apenas um crescimento na produtividade dos ramos da  
indústria inglesa em que foi introduzida, mas também um aumento,  
em vez de uma queda, na quantidade de valor que produziram, e  
mesmo em salários (MARX, 1991, p. 383).  
No mesmo sentido, e mais explicitamente:  
Os Factory Reports mostram que, nos ramos da indústria que foram  
cobertos (até abril de 1860) pela lei fabril e em que, portanto, a  
semana de trabalho foi reduzida por lei a 60 horas, os salários não  
caíram (comparando 1859 com 1839), mas antes aumentaram,  
enquanto eles caíram positivamente durante este período em fábricas  
onde “o trabalho de crianças, jovens e mulheres” ainda era “sem  
restrições” […].  
O fenômeno de que a Lei das dez horas não tenha reduzido os lucros  
dos fabricantes ingleses, apesar do encurtamento do dia útil, é  
explicado por dois motivos:  
1) A hora de trabalho inglesa está acima da continental, relacionando-  
se a ela como trabalho mais complexo em relação a trabalho simples.  
(Daí a relação do fabricante inglês com o estrangeiro é a mesma que  
a relação de um fabricante que introduziu novo maquinário com seu  
competidor) […].  
2) O que se perde através da redução do tempo de trabalho absoluto  
é obtido na condensação do tempo de trabalho, de modo que, de fato,  
1 hora de trabalho é agora igual a 65 ou mais horas de trabalho  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
(MARX, 1988, pp. 337338, tradução livre).  
Os efeitos materiais da lei das dez horas (e meia) aparecem elencados ainda a  
seguir:  
Todos conhecem a Lei das dez horas, ou antes, a Lei das dez horas e  
meia, em vigor desde 1848. Foi uma das maiores mudanças  
econômicas que testemunhamos. Foi uma alta súbita e compulsiva de  
salários, não apenas a alguns negócios locais, mas aos principais  
ramos da indústria, pelos quais a Inglaterra domina os mercados do  
mundo […]. Bem, qual foi o resultado [desta lei]? Um aumento dos  
salários em dinheiro dos operários das indústrias, apesar da  
diminuição da jornada de trabalho, um grande aumento no número de  
operários ocupados nas indústrias, uma queda constante nos preços  
dos seus produtos, um maravilhoso desenvolvimento nas forças  
produtivas do seu trabalho, uma extraordinária expansão progressiva  
dos mercados para suas mercadorias (MARX, 2010a, pp. 8182).  
Consideradas as citações imediatamente acima, é preciso concluir que os efeitos  
materiais da legislação fabril, a qual instituiu a jornada normal de trabalho de dez  
horas (e meia), necessitaram da produção material mais desenvolvida da Inglaterra, de  
modo que o trabalho social inglês era mais complexo que seu correspondente  
continental. Deve-se igualmente concluir que a busca generalizada pelo mais-valor  
relativo era uma possibilidade historicamente aberta pelo desenvolvimento anterior,  
que, por sua vez, leva o modo de produção capitalista a um novo patamar de  
acumulação, dado o rápido avanço das forças produtivas. Essa possibilidade histórica,  
porém, não necessariamente se encontra aberta em outras vias de objetivação do  
capitalismo, e, portanto, legislações similares em conteúdo podem ter efeitos materiais  
significativamente distintos.  
É curioso notar que essa legislação que regula a jornada normal de trabalho e  
aumenta os salários é um momento posterior àquelas que os rebaixam forçosamente:  
[…] a partir de Henrique VII (quando começa simultaneamente a  
limpeza da terra das bocas supérfluas mediante a transformação da  
lavoura em pastagens, o que perdura por mais de 150 anos, pelo  
menos as reclamações e a interferência legislativa; portanto, crescia o  
número das mãos colocadas à disposição da indústria), o salário na  
indústria não era mais fixado, mas só na agricultura […]. Com o  
trabalho livre, ainda não está plenamente posto o trabalho  
assalariado. Os trabalhadores ainda encontram apoio nas relações  
feudais; sua oferta ainda é muito pequena; por isso, o capital ainda é  
incapaz de, como capital, reduzir o salário ao mínimo. Daí as  
determinações estatutárias do salário. Enquanto o salário ainda é  
regulado por meio de estatutos, não se pode dizer nem que o capital  
como capital subsumiu a produção a si mesmo, nem que o trabalho  
assalariado recebeu o seu modo de existência adequado […].  
Em 1514, o salário é outra vez regulamentado, quase da mesma forma  
Verinotio  
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Lucas Almeida Silva  
como da vez anterior. O horário de trabalho é também outra vez  
fixado. Quem não quisesse trabalhar quando requisitado era preso.  
Portanto, ainda trabalho forçado dos trabalhadores livres por um  
salário determinado. Eles primeiro têm de ser forçados a trabalhar nas  
condições postas pelo capital. O sem-propriedade está mais inclinado  
a tornar-se vagabundo, ladrão e mendigo do que trabalhador. Isso só  
fica evidente no modo de produção desenvolvido do capital. No  
estágio preliminar do capital, coerção do Estado para converter os  
sem-propriedade em trabalhadores em condições favoráveis ao  
capital, que aqui ainda não são impostas aos trabalhadores por meio  
da concorrência dos trabalhadores entre si (MARX, 2011, pp. 615-  
616).  
Acerca do primeiro Statute of Labourer [Estatuto dos Trabalhadores], de 1349,  
Marx afirma que “[s]alários razoáveis foram, assim, fixados compulsoriamente por lei,  
assim como os limites da jornada de trabalho” (MARX, 2013, p. 344).  
Aludimos acima que a legislação foi instrumental para a transição da produção  
manufatureira à fabril. O trecho abaixo é explícito quanto a isso:  
Essa revolução industrial, que transcorre de modo natural-  
espontâneo, é artificialmente acelerada pela expansão das leis fabris  
a todos os ramos da indústria em que trabalhem mulheres,  
adolescentes e crianças. A regulamentação compulsória da jornada de  
trabalho em relação a sua duração, pausas, início e término, o sistema  
de revezamento para crianças, a exclusão de toda criança abaixo de  
certa idade etc. exigem, por um lado, o incremento da maquinaria e a  
substituição de músculos pelo vapor como força motriz. Por outro,  
para ganhar em espaço o que se perde em tempo, tem-se a ampliação  
dos meios de produção utilizados em comum: os fornos, os edifícios  
etc., portanto, em suma, uma maior concentração dos meios de  
produção e, por conseguinte, uma maior aglomeração de  
trabalhadores […].  
Mas se, desse modo, a lei fabril acelera artificialmente a maturação  
dos elementos materiais necessários à transformação da produção  
manufatureira em fabril, ela ao mesmo tempo acelera, em virtude da  
necessidade de um dispêndio aumentado de capital, a ruína dos  
pequenos mestres e a concentração do capital (MARX, 2013, pp.  
545548).  
É o Direito sendo importante mediação para levar a materialidade a um patamar  
superior, como já havia conseguido antes, ao possibilitar a acumulação capitalista com  
o Direito terrorista, e como, a contrario sensu, a impedia, ou pelo menos obstava, com  
sua legislação feudal.  
Soma-se a isso o desenvolvimento de Marx, por exemplo, de que a Liga Contra  
a Lei dos Cereais inglesa girava em torno da necessidade de uma aliança entre  
capitalistas industriais e a classe trabalhadora contra a aristocracia, que encontrou na  
legislação aduaneira seu campo de batalha. Marx o cita no contexto da decadência  
científica da burguesia em economia vulgar:  
Verinotio  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
De qualquer forma, mesmo os importunos opúsculos lançados aos  
quatro ventos pela Anti-Corn Law League [Liga Contra a Lei dos  
Cereais], tendo à frente os fabricantes Cobden e Bright, ainda  
possuíam um interesse, se não científico, ao menos histórico, por sua  
polêmica contra a aristocracia fundiária (MARX, 2013, p. 86).  
Sobre o movimento contra a legislação dos cereais, escreve:  
Eram os mesmos melífluos livre-cambistas [que se opunham à Lei das  
10 Horas], exalando amor à humanidade, que por 10 anos inteiros,  
durante a anti-corn law agitation [movimento contra a lei dos cereais],  
haviam assegurado aos trabalhadores, calculando até o último tostão,  
que com a livre importação de cereais e com os meios da indústria  
inglesa apenas 10 horas de trabalho seriam suficientes para  
enriquecer os capitalistas (MARX, 2013, p. 363).  
Há prova mais cabal de que o Direito tem enormes efeitos sobre a materialidade  
e sobre o momento da acumulação capitalista? E que é importante lançar mão de  
análises de realidade para apreender o complexo movimento da realidade, seja na  
criação, rearticulação ou revogação de um Direito? No caso específico sob análise, a  
lei dos cereais elevava o valor da força de trabalho, além da luta contra a aristocracia  
fundiária.  
No contexto da luta em torno da Lei dos Cereais, havia determinado estágio da  
produção da vida material dos homens que tornava desejável a supressão de  
determinado Direito, eminentemente aduaneiro e tributário, que emperrava uma  
acumulação superior do capital. Os setores interessados na derrubada deste Direito  
lograram revogá-lo, e este êxito mudou a vida material.  
Em suma, temos demonstrado neste trabalho como o Direito, em reciprocidade  
complexa com outros momentos, pode assumir, o que jamais deve ser atribuído a uma  
determinação conceitual e puramente formal, formas mais violentas, e depois pode  
deixar a violência latente. A legislação sanguinária pela compulsão do trabalho, que  
leva a uma nova etapa de acumulação econômica, não é senão a expressão jurídica  
deste movimento. Assim que a própria compulsão econômica consegue funcionar  
espontaneamente, sem a ajuda de necessidades externas, a legislação correspondente  
se torna supérflua e pode ser revogada.  
Em seu conjunto, esses itens devem demonstrar a determinação material do  
Direito nos textos econômicos marxianos. Como vimos, a separação do movimento  
nestes capítulos não deve impedir a compreensão abrangente de todos estes  
momentos em reciprocidade. A seguir retomamos todo o desenvolvido e concluímos  
a exposição.  
Verinotio  
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Lucas Almeida Silva  
Conclusão  
Exposta a argumentação fundamental de nosso trabalho, devemos retomar as  
teses centrais da investigação. Muito do que exploramos neste trabalho corresponde  
ao desenvolvimento marxiano referente à via clássica de objetivação do capitalismo, a  
expressão mais completa ao tempo de Marx, o movimento mais desenvolvido  
transposto para a intelecção por meio de abstrações.  
Em suma, toda a exposição anterior culmina no que podemos sumarizar  
simplificadamente a seguir. A tendência geral do movimento do Direito na via clássica  
aponta para dois grandes momentos, cada um com duas divisões ou traços principais.  
No primeiro momento de objetivação do modo de produção capitalista, o  
Direito feudal inglês emperrava a acumulação capitalista nascente. Tal Direito devia  
ser repelido para que a objetivação pudesse se desenrolar, compreendendo, portanto,  
o sentido geral da assim chamada acumulação primitiva, cujo ponto central é a  
separação dos trabalhadores das condições objetivas do trabalho e sua subsequente  
ruína em força de trabalho assalariada. Esse processo tomou a forma da expulsão da  
população campesina, do cercamento das áreas tradicionalmente comuns etc.  
Esse primeiro momento, assim, guarda dois traços principais em relação ao  
Direito. De um lado, são repelidas as legislações referentes à aprendizagem,  
suprimem-se as guildas, enfim, revoga-se toda a legislação feudal, que agora é um  
empecilho à produção material. Por outro lado, coloca-se um novo Direito sanguinário  
para viabilizar o modo de produção nascente, um movimento em virtude do qual cria-  
se uma classe trabalhadora adequada à produção moderna, submetida ao  
assalariamento e livre como pássaros.  
Os dois traços desse momento são, enfim, o fim do Direito feudal e a instituição  
de um Direito da assim chamada acumulação primitiva, se nos for permitida a  
expressão. Demonstramos que a burguesia ascendente lança mão de um Direito mais  
apropriado ao mundo que cria em sua imagem e semelhança, e, portanto, rearticula-  
se o Direito romano sobre a base da produção moderna.  
No segundo momento, com o amadurecimento do modo de produção  
capitalista, um novo Direito deve surgir para a compulsão ao trabalho e a máxima  
extração do mais-trabalho e simultaneamente para a autoproteção da classe  
trabalhadora. Esse, porém, é um momento da produção social de uma força de trabalho  
adequada à acumulação, de tal modo que a legislação capitalista, como desenvolvido,  
é simultaneamente hostil ao trabalhador e freio racional à rapacidade cega do capital.  
Verinotio  
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Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios (1857-1879)  
Esse novo Direito prescinde da violência explícita, uma vez que o trabalhador pode  
ser deixado às leis imanentes da produção.  
Com o desenvolvimento das leis internas do modo de produção capitalista, toda  
a legislação anterior caduca e pode ser revogada ou ignorada. Os salários passam a  
ser regulados pelo valor da força de trabalho em questão, e não mais por uma  
mediação jurídica. A categoria econômica desenvolvida, que é um resultado histórico,  
agora renuncia à mediação jurídica que viabilizou seu desenvolvimento em estágios  
imaturos.  
Ao mesmo tempo, esse novo Direito social, incorporado na legislação fabril,  
generaliza as condições de extração de mais-valor relativo, desembocando num  
patamar superior de acumulação, porque se funda primordialmente no aumento de  
produtividade, tendendo a busca por mais-valor a se centrar no relativo, não apenas  
no absoluto, ainda que o impulso primordial do capital seja extrair mais-valor na forma  
em que puder. O trabalho inglês torna-se mais produtivo e sua hora de trabalho produz  
mais valor do que sua correspondente continental, de modo que este capitalismo  
maduro inglês teve as condições de passar de sua adolescência violenta a uma  
maturidade comparativamente serena, em que o aumento da produtividade toma o  
lugar da rapacidade pelo mais-valor absoluto, que, no limite, transformaria o sangue  
de crianças em capital.  
Esse segundo momento, enfim, guarda dois traços principais: a criação do  
moderno Direito social, ou Direito trabalhista, e o início de um novo patamar da  
acumulação capitalista, agora fundada na igualdade de concorrência e na extração  
facilitada de mais-valor relativo. Juntos, esses dois momentos são a determinação  
material do Direito na via clássica.  
Aludimos às legalidades mais gerais do movimento concreto. O Direito  
pressupõe relações materiais que lhe assentam condições de possibilidade, sobre elas  
agindo de forma não mecânica. Essa reciprocidade complexa leva a toda sorte de  
contradições, com que os homens concretos devem lidar.  
Aí jaz talvez o pequeno valor que este artigo pode ter: contribuir para o acervo  
da crítica ao Direito no Brasil. Se a realidade é sempre mutante, a reprodução ideal do  
movimento real está sempre a persegui-la, de tal forma que Marx não pode esgotar  
todo o movimento histórico. O Direito, em suma, também não pode se resumir a um  
conceito marxiano nem incumbe a Marx fazer qualquer conceito de semelhante  
natureza.  
Verinotio  
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nova fase  
Lucas Almeida Silva  
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_____. Grundrisse: manuscritos econômicos de 18571858: esboços da crítica da  
economia política. São Paulo e Rio de Janeiro: Boitempo e Ed. UFRJ, 2011.  
_____. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010b.  
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capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017.  
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_____. Zur kritik der politischen ökonomie (manuskript 18611863) v. II.3.6. (Marx-  
Engels Gesamtausgabe II). Berlim: Dietz Verlag, 1982.  
Como citar:  
SILVA, Lucas Almeida. Marx e o movimento do Direito nos textos econômicos tardios  
(1857-1879). Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 238-266; jan.-jun., 2024  
Verinotio  
266 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 238-266 jan.-jun., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.710  
Forma de aparecimento que torna invisível a  
relação efetiva e mostra precisamente o oposto  
dessa relação: Marx diante do salário e a crítica  
marxiana ao direito  
Form of appearance which makes the actual relation  
invisible and shows the direct opposite of that relation:  
Marx before wages and the Marxian critique of law  
João Lucas Sales Prates*  
Resumo: Neste artigo, a partir daquilo que J.  
Chasin chama de análise imanente, procuraremos  
expor a crítica marxiana à categoria salário tendo  
como ponto de partida o Livro I de O Capital.  
Entende-se que o pensador alemão em sua  
crítica da economia política considera o salário –  
que na superfície da sociedade civil-burguesa  
aparece como valor ou preço do trabalho uma  
forma de aparecimento invertida e irracional para  
o valor da força de trabalho, na qual todo  
trabalho aparece como trabalho pago. Tendo em  
conta que no estatuto marxiano as categorias  
são formas de ser [Daseinformem], demonstrar-  
se-á que a expressão preço do trabalho, com seu  
caráter irracional, é efetiva, ou seja, uma  
categoria dada não somente nas cabeças dos  
indivíduos, mas expressão de uma contradição  
que existe, dotada de objetividade e movimento  
no real. Por fim, analisa-se a relação entre o  
direito e o salário tendo em vista a crítica  
marxiana ao direito. Procurar-se-á dar sentido à  
assertiva marxiana segundo a qual a consciência  
jurídica reconhece apenas uma diferença material  
no intercâmbio entre capital e trabalho, o que a  
leva a aceitar a irracionalidade da expressão  
preço do trabalho, que ao mesmo tempo é a base  
para as “tolices apologéticas” da economia  
vulgar e para as “representações jurídicas”  
Abstract: In this paper, from what J. Chasin  
called immanent analysis, we try to showcase  
the Marxian critique of the wage category taking  
Das Kapital’s first volume as a starting point. It  
is believed that Marx’s critique of political  
economy considers wage which in civil-  
bourgeois society’s surface appears as value or  
price of labour an irrational and inverted form  
of appearance to the value of the labour power,  
in which all labour appears as paid labour.  
Taking in consideration that in Marxian thought  
categories are forms of being [Daseinformem],  
it will be demonstrated that the inversion in the  
wage-form and its irrational character are  
effective, that is, they are given not only in the  
heads of the individuals, but express  
contradictions that exist, equipped with  
objectivity and movement in reality. At last, it is  
analyzed the relation between the wage  
category and law in view of Marx’s critique of  
law. We try to make sense of the marxian  
statement according to which the legal  
conscience recognizes  
a
merely material  
difference in the interchange between capital  
and labour. This standpoint leads the legal  
conscience to accept the irrationality of the  
expression price of labour, which is also the  
basis to the vulgar economy’s “apologetic  
foolishness” and to the “legal notions”  
[Rechtsvorstellungen] of both worker and  
capitalist..  
[Rechtsvorstellungen]  
capitalista.  
de  
trabalhador  
e
Palavras-chave: O Capital; Salário; Direito.  
Keywords: Das Kapital; Wage; Law.  
*
Graduando  
em  
Direito  
pela  
Universidade  
Federal  
de  
Minas  
Gerais.  
E-mail:  
joaolucasprates.com@gmail.com  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
nova fase  
 
João Lucas Sales Prates  
Introdução  
O objeto do presente artigo é a crítica marxiana à categoria salário presente no  
Livro I de O Capital e a relação desta com sua crítica ao direito. Nesse sentido, nosso  
primeiro objetivo é demonstrar que o autor de O Capital compreende o salário como  
uma forma de aparecimento [Erscheinungsform] invertida para o valor da força de  
trabalho, na qual o conceito de valor “converteu-se em seu contrário”1. A  
irracionalidade da expressão do salário, contudo, não é concebida como acidental ou  
simplesmente uma deformação da realidade operada apenas nas cabeças dos agentes  
sociais. A partir do que o filósofo brasileiro J. Chasin denominou de análise imanente2,  
defende-se que Marx pensa a forma do salário [Form des Arbeitslohns] como uma  
categoria que, conquanto irracional, expressa uma irracionalidade que corresponde às  
relações de de produção capitalistas e explica fenômenos reais da superfície da  
sociedade civil-burguesa, que é ela mesma efetivamente regida por formas irracionais.  
Seu caráter mistificador não é senão o resultado necessário das relações de produção  
vigentes, em que a irracionalidade se coloca como imperativo.  
Sobre essa forma irracional e mistificadora em que todo trabalho aparece  
1
Nesse sentido, alinhamo-nos a San Martins (2016, pp. 10-14), segundo o qual o aspecto da crítica  
marxiana ao salário enquanto forma de manifestação irracional é um ponto ainda pouco explorado pela  
literatura marxista. Em sua pesquisa, Martins identifica duas linhas no que tange à pesquisa sobre o  
salário em Marx. A primeira, para o pesquisador, sequer se coloca a questão do salário como uma  
categoria que comporta uma tensão entre o seu conteúdo e a sua expressão. Escapa a esses autores  
que a expressão do salário e o conteúdo que esta vela (a venda da força de trabalho) são coisas  
qualitativamente distintas, sendo o salário uma expressão irracional e invertida do valor da força de  
trabalho. Mesmo autores de vulto como Rosdolsky (2001, p. 237) incorrem nesse erro. Segundo este  
autor, “o preço da força de trabalho é o salário”. Marx teria simplesmente, “assim como aqueles que o  
antecederam”, distinguido o salário do valor da força de trabalho por este ser a grandeza média pela  
qual a força de trabalho é vendida, enquanto aquele seria o preço da força de trabalho, que depende  
da relação entre oferta e demanda no mercado de trabalho. Assim, Rosdolsky admite que o salário seria  
conceitualmente idêntico ao preço da força de trabalho. Note-se como, ao ignorar que Marx tinha o  
salário como uma forma de manifestação irracional para o valor ou preço da força de trabalho, Rosdolsky  
perde de vista justamente um dos aspectos mais originais da crítica marxiana da economia política,  
identificando, de certo modo, o tratamento de Marx a algo que já se colocava havia muito tempo na  
economia política. Por outro lado, Martins traça uma segunda linha, composta por autores como David  
Harvey, que admite textualmente que o salário seja uma forma de manifestação irracional, cujo conceito  
adequado seria o valor da força de trabalho. Essa vertente, contudo, não aprofunda a investigação no  
sentido da necessidade dessa expressão, não procura derivá-la a partir do conteúdo essencial que ela  
oculta, tampouco aborda como ela decorre necessariamente das relações sociais imanentes à sociedade  
produtora de mercadorias.  
2
“Trata-se de procedimento analítico que “encara o texto —a formação ideal em sua consistência  
autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como  
negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e  
incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos  
quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do  
para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o  
observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes  
não deixariam, por isso, de existir [...]” (CHASIN, 2009, p. 26).  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
como trabalho pago e a fração não paga da jornada de trabalho é ocultada repousam,  
segundo Marx, todas as representações jurídicas, todas as ilusões de liberdade do  
modo de produção capitalista e todas as tolices apologéticas da economia vulgar.  
Diante disso, outro objetivo assumido pela presente pesquisa é dar sentido e elaborar  
essa assertiva. Em particular, procura-se esclarecer por que o direito aceita a expressão  
irracional do salário e, a partir desta, é elencado por Marx lado a lado das apreensões  
mais apologéticas e mistificadoras da sociedade do capital. A expectativa é que a  
pesquisa possa, tomando as considerações marxianas sobre a relação do direito com  
a forma do salário como ponto de partida provocativo, lançar alguma luz sobre a crítica  
marxiana ao direito enquanto tal presente na sua maior obra de crítica da economia  
política.  
Nessa empreitada, partiremos do Livro I da obra prima de Karl Marx. Este tomo  
e em particular a seção VI, que versa especificamente sobre o salário encerra a  
análise mais pormenorizada do salário como forma de aparecimento e constitui o  
ponto nevrálgico da crítica ao salário em todo O Capital3. Em especial, o capítulo 17,  
intitulado “transformação do valor (ou preço) da força de trabalho em salário”, é o  
primeiro da sexta seção e trata justamente da oposição entre valor da força de trabalho  
e salário e da transformação necessária daquela nesta última forma irracional. Por essa  
razão, a presente análise se constrói sobretudo a partir desse capítulo.  
A crítica marxiana ao salário, porém, não se esgota no referido capítulo, nem  
mesmo em todo O Capital, embora neste livro se encontre mais acabada e mais bem  
exposta. Além disso, é necessário ter em mente que as considerações marxianas sobre  
o direito no referido capítulo não estão plenamente desenvolvidas e, nesse compasso,  
por nós são tomadas como questionamentos cuja elucidação orienta o trabalho de  
pesquisa a outros textos. Por estes motivos nós nos valeremos de muitas outras  
passagens de outros tomos dO Capital, das Teorias do mais-valor, do Grundrisse, d’A  
Ideologia Alemã enfim, onde quer que a referência a outras passagens a um só tempo  
enriqueça o debate e respeite a malha categorial própria de cada texto. Segundo os  
mesmo critérios, o artigo emprega textos de comentadores, em especial Vitor Sartori,  
3
Uma série de temas sobre o salário como suas formas particulares e outras digressões empírico-  
históricas cuja abordagem estaria a princípio reservada a um livro autônomo sobre o trabalho  
assalariado, foram, com o abandono de projetos pretéritos para O Capital, inseridos ao longo do  
primeiro tomo. Entende-se, pois, que a maior parte do conteúdo, ou ao menos os fundamentos, de sua  
crítica do trabalho assalariado se encontra no Livro I, em especial na Seção VI, intitulada “O Salário”. Cf.  
ROSDOLSKY, 2001, pp. 61-65.  
Verinotio  
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que trata sobretudo da relação entre crítica da economia política e crítica ao direito;  
Isaak Illich Rubin, cujo principal mérito reside em ter exposto pela primeira vez um  
estudo rigoroso do fetichismo da mercadoria; Roman Rosdolsky, que  
monumentalmente aborda a relação entre os diversos manuscritos para O Capital, sua  
gênese e sua estrutura, e Fábio Luiz San Martins, que em sede de tese doutoral  
abordou com fôlego e em português brasileiro a questão do salário como forma de  
manifestação.  
O salário enquanto forma de aparecimento irracional  
É preciso assinalar, antes de mais nada, em que consiste a crítica marxiana ao  
salário. O primeiro passo de Marx no capítulo em análise é explicar a oposição, já  
enunciada no próprio título, entre salário e valor da força de trabalho. Para tanto, o  
autor primeiro expõe de que maneira o salário se apresenta, qual seja, como o valor  
do trabalho:  
Na superfície [Oberfläche] da sociedade burguesa [bürgerlichen  
Gesellschaft] o salário [Arbeitslohn] do trabalhador aparece [erscheint]  
como preço do trabalho, como determinada quantidade de dinheiro  
paga por determinada quantidade de trabalho (MARX, 2017a, p. 605).  
Em primeiro lugar, é interessante notar que o autor relaciona o salário aos  
aspectos mais imediatos da sociedade civil-burguesa: aquele aparece, na superfície  
desta, como preço do trabalho. Essa constatação merece atenção, pois em Marx a  
relação entre aparecimento e a superfície da sociedade capitalista não é nada ingênua.  
Na verdade, é na superfície da sociedade civil-burguesa que as coisas assumem uma  
aparência contraditória e invertida que simultaneamente oculta e pressupõe sua base  
efetiva (SARTORI, 2019).  
Conforme a forma-mercadoria se generaliza e a produção subjetiva e  
objetivamente volta-se para a troca, os produtos do trabalho humano passam a  
somente funcionar como elos do metabolismo social e integrar o trabalho social total  
mediante a troca. Nesse contexto, em que as relações sociais assumem  
necessariamente a forma de relações entre coisas, os indivíduos colocados na  
concorrência figuram como portadores de relações sociais na troca de mercadorias4.  
4
Cf RUBIN, 1987. O grande mérito de Rubin consiste em expor como a teoria do fetichismo da  
mercadoria em Marx não é um apêndice mais ou menos acessório de sua teoria do valor. As condições  
objetivas da produção sob o capital a separação entre trabalho e meios objetivos de produção, a  
independência entre as unidades de produção etc. exige que os produtos sociais transformados em  
mercadorias só funcionem como elo do trabalho social mediante a troca. Dessa maneira, as relações  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
Assim, a superfície da sociedade civil-burguesa é o espaço em que os indivíduos, no  
âmbito da troca e da concorrência, atuam como portadores de relações sociais, sendo  
também o ponto de partida de onde os sujeitos elaboram representações e formas de  
consciência como o salário que lhes permitem tomar consciência dessas mesmas  
relações:  
Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de  
trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros. O  
conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total.  
Como os produtores só travam contato social mediante a troca de  
seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de  
seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou,  
dito de outro modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente  
como elos do trabalho social total por meio das relações que a troca  
estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio destes, também  
entre os produtores. A estes últimos, as relações sociais entre seus  
trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não  
como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios  
trabalhos, mas como relações reificadas entre pessoas e relações  
sociais entre coisas (MARX, idem, p. 148).  
Contudo, o que é essencial para o modo de produção capitalista a relação-  
capital e a valorização do valor não reside na circulação, senão na produção, no  
mais-valor que se extrai da exploração da força de trabalho. Nas palavras de Marx  
(2017b, p. 390): “Em seu movimento real, o capital não existe como tal dentro do  
processo de circulação, mas apenas no processo de produção, no processo de  
exploração da força de trabalho”. Assim, enquanto se afastam da esfera da produção,  
as formas da circulação e da concorrência parecem eclipsar precisamente a relação  
essencial para essa sociedade a relação-capital com sua respectiva extração de mais-  
valor , produzindo um certo apagamento do trabalho:  
Assim, na concorrência, tudo aparece invertido. As figuras acabadas  
das relações econômicas, tal como se mostram na superfície, em sua  
existência real e, por conseguinte, também nas representações por  
meio das quais os portadores e os agentes dessas relações procuram  
obter uma consciência clara dessas mesmas relações, são muito  
distintas e, de fato, invertidas, antitéticas a sua figura medular interior  
essencial, porém encoberta e ao conceito que lhe corresponde.  
(MARX, 2017b, p. 245. Destaque no original).  
Na circulação e na concorrência, onde o salário se apresenta como valor do  
trabalho, a exploração do trabalho na produção, o momento preponderante  
[übergreifende Moment]5 que dá a tônica dos demais, não se vislumbra imediatamente,  
sociais assumem necessariamente a aparência de relações travadas entre e presididas por coisas.  
5 “O importante aqui é apenas destacar que, se produção e consumo são considerados como atividades  
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é apenas pressuposto. Precisamente aquilo que produz o salário enquanto tal a  
determinação do trabalho como trabalho assalariado, o trabalho alijado de suas  
condições objetivas de produção, a relação entre trabalho e capital está pressuposto  
e oculto pelas formas que se dão na superfície da sociedade produtora de mercadorias  
na esfera da concorrência.  
Se o trabalho não fosse determinado como trabalho assalariado, o  
modo pelo qual participa dos produtos não apareceria como salário,  
como, por exemplo, na escravidão. Um indivíduo que participa da  
produção na forma de trabalho assalariado participa na forma do  
salário nos produtos, nos resultados da produção. A articulação da  
distribuição está totalmente determinada pela articulação da  
produção. A própria distribuição é um produto da produção, não só  
no que concerne ao seu objeto, já que somente os resultados da  
produção podem ser distribuídos, mas também no que concerne à  
forma, já que o modo determinado de participação na produção  
determina as formas particulares da distribuição, a forma de  
participação na distribuição. (MARX, 2011, p. 49).  
A produção capitalista fundada na relação-capital determina o trabalho como  
trabalho assalariado. O indivíduo só toma parte na riqueza socialmente produzida na  
forma do salário porque todo o restante do produto de valor não lhe pertence, embora  
seja resultado de seu trabalho. Porém, considerado o salário tal como esse se  
apresenta na superfície da sociedade civil-burguesa, isto é, como preço do trabalho,  
isto está oculto, embora lhe seja a base efetiva.  
Desse modo, logo o primeiro período do capítulo já nos conduz a considerar o  
salário como uma categoria ligada à apreensão mais imediata das relações capitalistas,  
precisamente no espaço em que estas aparecem invertidas e ocultam seu conteúdo  
essencial a relação-capital e a exploração da força de trabalho. No que tange  
especificamente ao salário, essa forma de aparecimento oculta precisamente aquilo  
que torna a mercadoria força de trabalho uma mercadoria sui generis na valorização  
do valor, pois a expressão preço do trabalho apresenta toda a jornada de trabalho  
como trabalho pago, como se o trabalhador recebesse um pagamento equivalente à  
integralidade de sua jornada, ocultando a parcela não-paga da jornada de trabalho,  
que consiste no mais-valor: “A forma-salário [Form des Arbeitslohns] extingue,  
portanto, todo vestígio da divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e  
mais-trabalho, em trabalho pago e trabalho não pago. Todo trabalho aparece  
de um sujeito ou de muitos indivíduos, ambos aparecem em todo caso como momentos de um processo  
no qual a produção é o ponto de partida efetivo, e, por isso, também o momento preponderante  
[übergreifende Moment]” (MARX, 2011, p. 49)  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
[erscheint] como trabalho pago” (MARX, 2017a, p. 610).  
Não à toa, após destacar que se trata de uma expressão ligada à apreensão  
superficial da sociedade do capital, o autor logo em seguida começa a expor o salário,  
compreendido como valor ou preço do trabalho, como uma expressão irracional que  
oculta a extração de mais-valor.  
Mas o que é o valor de uma mercadoria? A forma objetiva do trabalho  
social gasto em sua produção. E como medimos a grandeza de seu  
valor? Pela grandeza do trabalho nela contido. Como podemos  
determinar o valor, por exemplo, de uma jornada de 12 horas? Pelas  
12 horas de trabalho contidas numa jornada de trabalho de 12 horas,  
o que é uma absurda tautologia. [...] O trabalho é a medida imanente  
dos valores, mas ele mesmo não tem valor nenhum. (MARX, 2017a,  
pp. 605-06).  
A expressão valor ou preço do trabalho é irracional, pois o trabalho não possui,  
em si mesmo, nenhum valor. Na realidade, o que o trabalhador vende ao capitalista  
não é o trabalho em si mas a sua capacidade de trabalho colocada na mercadoria força  
de trabalho. Afinal, a impossibilidade de alienar [veräußern] o próprio trabalho é antes  
um pressuposto do assalariamento na medida em que o trabalhador é despojado dos  
meios objetivos de realização do trabalho6. Desprovido dos meios de produção, o  
trabalhador só pode alienar ao capital a sua capacidade de trabalho, o complexo  
[Inbegriff] de músculos, nervos e energia necessários à realização de trabalho, a força  
puramente subjetiva de trabalho que reside no próprio corpo do trabalhador7.  
No mercado, o que se contrapõe diretamente ao possuidor de  
dinheiro não é, na realidade, o trabalho, mas o trabalhador. O que  
este último vende é a sua força de trabalho, mal seu trabalho tem  
início efetivamente e a força de trabalho já deixou de lhe pertencer.  
[...] O valor da força de trabalho, que existe na personalidade do  
trabalhador e é tão diferente de sua função, o trabalho, quanto uma  
máquina de suas operações. (MARX, 2017a, pp. 607-09)  
O que o trabalhador efetivamente troca com o capitalista, recebendo por isto o  
equivalente em dinheiro, é sua força de trabalho, e não o trabalho em si, como aparece  
no salário. A força de trabalho, cujo consumo é o emprego da capacidade de trabalho  
do trabalhador numa forma útil e determinada, durante uma jornada, possui a  
característica de produzir mais valor do que ela mesma vale. Sua função no processo  
6
“Para ser vendido no mercado como mercadoria, o trabalho teria, ao menos, de existir antes de ser  
vendido. Mas se o trabalhador pudesse dar ao trabalho uma existência independente, o que ele venderia  
seria uma mercadoria, e não trabalho” (MARX, 2017a, p. 606).  
7
"Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o complexo [Inbegriff] das capacidades  
físicas e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na personalidade viva de um homem e que  
ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo" (MARX, idem, p. 242).  
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de valorização do valor consiste precisamente em fornecer um valor maior do que o  
que o capitalista emprega na sua compra, e dessa diferença resulta o mais-valor.  
É importante pontuar que a solução marxiana ao resgatar o conceito adequado  
de valor da força de trabalho não é meramente silogística, pois não resolve uma falha  
puramente lógica na expressão preço do trabalho ou salário. Ao contrário: a crítica do  
chamado método especulativo, que traz os conceitos autoengendrados e  
silogisticamente relacionados, é um ponto de inflexão central para a formação do  
pensamento marxiano, que se afirma na direção da análise imanente do objeto e suas  
próprias determinações8.  
A operação que se leva a cabo não é uma que, a partir da dedução dos  
conceitos autonomizados, encontra a categoria logicamente adequada. Trata-se antes  
de um esforço por, partindo do real, expor o movimento efetivo em categorias que  
no estatuto do pensamento marxiano não são mais do que “formas de ser  
[Daseinformem], determinações de existência9. Nesse sentido, adverte Rosdolsky  
(2001, p. 108): “um leitor não familiarizado com a obra de Marx poderia considerar  
que essa dedução é uma ‘construção’, um exemplo de uma simples ‘dialética  
conceptual’ que atribui vida própria às categorias econômicas e faz com que elas, de  
um modo autenticamente hegeliano, surjam umas das outras e se transformem umas  
nas outras”. Pelo contrário, em Marx, arremata o comentador, “as categorias  
econômicas representam relações reais e não podem ser deduzidas apenas pela lógica,  
independentemente da história”. Nesse sentido, a própria existência da força de  
trabalho enquanto mercadoria é resultado de um processo histórico que formou,  
segundo Marx, homens livres num duplo sentido, pois tanto não pertencem a ninguém  
quanto nada a eles pertence em termos de meios de produção10. Deve-se ter em conta,  
8 “O fundamental da recusa marxiana à especulação não é algo circunscrito à sua fisionomia técnica ou,  
menos ainda, restrito a defeitos ou insuficiências particulares da mesma, os quais, inadvertidos no seio  
originário, uma vez retificados, pudessem levar à retomada do paradigma a que pertencem. Ao inverso,  
trata-se de uma rejeição de fundo, porque de caráter ontológico. Em poucas palavras, o que Marx  
impugna, entendendo que seja o defeito capital da especulação, é o próprio fundamento das operações  
hegelianas: a ideia como origem ou princípio de entificação [...], o fato como realização da ideia, pois  
esse como tal é um mero resultado místico, um produto do “misticismo lógico”. Cf. CHASIN, 2009, p.  
72.  
9
“Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter  
presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça,  
e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência” (MARX,  
2011, p. 59).  
10 “Se um pressuposto do trabalho assalariado e uma das condições históricas do capital são o trabalho  
livre e a troca desse trabalho livre por dinheiro a fim de reproduzir e valorizar o dinheiro, [...] outro  
pressuposto é a separação do trabalho livre das condições objetivas de sua realização do meio de  
trabalho e do material de trabalho. [...] O pôr do indivíduo como um trabalhador, nessa nudez, é ela  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
portanto, que a expressão irracional que o salário apresenta superficialmente não é  
simplesmente produto da incapacidade intelectual dos sujeitos da sociedade civil-  
burguesa; antes remete à irracionalidade da próprias relações de produção de que os  
indivíduos são portadores na circulação:  
se a expressão consciente das relações efetivas desses indivíduos é  
ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para  
baixo, isto é consequência de seu modo limitado de atividade material  
e das suas relações sociais limitadas que daí derivam (MARX, 2007,  
p. 93).  
Com efeito, longe de ser um volteio silogístico, o que Marx faz neste momento  
é retomar sua exposição anterior sobre a produção do mais-valor. A esse respeito, o  
mérito do autor de O Capital reside em expor como a produção de mais-valor passa  
pela circulação mas não é resultado dela. Para reproduzir-se como tal, o capital precisa  
de encontrar na circulação as formas que lhe servirão como suportes [Träger] no  
movimento de valorização do valor11. Por outro lado, se é certo que a valorização do  
valor não prescinde da circulação, essa esfera, no entanto, não é o central. Embora a  
circulação seja um momento imprescindível para o movimento de valorização do valor,  
o mais-valor tem origem em algo que, considerada a circulação, ocorre pelas suas  
costas, lhe é invisível o processo de trabalho12. Da simples troca de equivalentes,  
que se coloca como uma lei imanente da sociedade produtora de mercadorias, não  
surge mais-valor, e a investigação volta suas atenções para a produção, onde não  
por força da lógica, mas real e efetivamente apresenta-se a exploração da força de  
trabalho como a origem do mais-valor.  
No entanto, na superfície da sociedade civil-burguesa, onde os indivíduos estão  
determinados simplesmente como trocadores na circulação e na concorrência, essa  
exploração está apagada. Na expressão do salário como valor ou preço do trabalho  
não se divisa a fração não-paga da jornada de trabalho a forma do salário exprime  
que o capitalista compra o trabalho, e a aparência é que todo o produto da jornada  
própria um produto histórico” (MARX, 2011, p. 388).  
11  
“As formas independentes, as formas-dinheiro que o valor das mercadorias assume na circulação  
simples servem apenas de mediação para a troca de mercadorias e desaparecem no resultado do  
movimento. Na circulação D-M-D, ao contrário, mercadoria e dinheiro funcionam apenas como modos  
diversos de existência do próprio valor: o dinheiro como seu modo de existência universal, a mercadoria  
como seu modo de existência particular, por assim dizer, disfarçado. O valor passa constantemente de  
uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático  
do processo” (MARX, 2017a, pp. 229-230).  
12  
“Mostrou-se que o mais-valor não pode ter origem na circulação, sendo necessário, portanto, que  
pelas suas costas ocorra algo que nela mesma é invisível” (MARX, 2017a, p. 240).  
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de trabalho recebeu do capitalista um pagamento equivalente. Trata-se, portanto, de  
uma forma de aparecimento transformada [verwandelten Erscheinungsform] para o  
valor da força de trabalho que oculta a exploração da força de trabalho ao apresentar  
todo o trabalho como trabalho pago.  
Dessa maneira: “conclui-se, evidentemente, que o valor do trabalho tem de ser  
sempre menor que seu produto de valor, pois o capitalista sempre faz a força de  
trabalho funcionar por mais tempo do que o necessário para a reprodução desta  
última” (MARX, 2017a, p. 609). Assim, a expressão irracional do salário que se extrai  
da superfície da sociedade civil-burguesa engendra a aparência mistificadora de que  
uma jornada de trabalho que gera um produto de valor de 2x vale, ela mesma, apenas  
X.  
As razões de ser da expressão do salário e a consciência jurídica  
O salário, portanto, como tantas outras expressões que se ligam à apreensão  
imediata das relações sociais na superfície da sociedade civil-burguesa, é uma  
categoria irracional que oculta a figura medular do capital. “Na expressão valor do  
trabalho, o conceito de valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em  
seu contrário. É uma expressão imaginária, como valor da terra” (MARX, 2017a, p.  
607). Essa irracionalidade, porém, não é simplesmente tomada pelo autor como  
produto de uma má-consciência:  
Essas expressões imaginárias surgem, no entanto, das próprias  
relações de produção. São categorias para as formas em que se  
manifestam relações essenciais. Que em sua manifestação as coisas  
frequentemente apareçam invertidas é algo conhecido em quase todas  
as ciências, menos na economia política (MARX, 2017a, p. 607).  
Na melhor tradição do tratamento marxiano, a irracionalidade da categoria é  
encarada como uma forma de ser colocada não somente na cabeça dos sujeitos, mas  
na realidade. Se o salário encerra uma aparência irracional e mistificadora, ele não faz  
que expressar, enquanto categoria, irracionalidades e mistificações reais e efetivas,  
imanentes ao modo de produção capitalista, cuja raiz remonta às suas relações de  
produção e à irracionalidade de suas leis.  
É por essa razão que a solução marxiana não se resolve logicamente; antes,  
impele a investigação à realidade, instiga-se a buscar no real as razões de ser da  
categoria que é objeto da crítica. Tendo como pano de fundo a concepção de que as  
categorias expressam formas de ser, aliada a uma recusa à crítica puramente lógica  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
das categorias da sociedade civil-burguesa, a crítica marxiana ocupa-se de explicar de  
que maneira uma categoria irracional que contradiz o conceito de valor é efetiva, e  
que relação esta expressão irracional guarda com o conceito adequado que ela oculta.  
O autor, ao mesmo tempo em que assinala a aparência invertida da forma do  
salário, consigna que se trata de inversão realmente efetiva nos campos da circulação  
e da concorrência, precisamente onde a figura medular do capital e a exploração da  
força de trabalho estão ocultas. Nas chamadas Teorias do mais-valor a relação entre a  
forma do salário e o campo da concorrência – que n’O Capital, conquanto inteligível,  
é tratada muito brevemente aparece mais explicitamente:  
Considerando a relação geral nós devemos levar em conta apenas  
excepcionalmente essa forma invertida [a forma do salário] na qual o  
valor da capacidade de trabalho aparece. Essa forma invertida, no  
entanto, é a maneira como ela aparece no processo real da  
concorrência, onde tudo aparece numa forma invertida, e na  
consciência tanto do trabalhador quanto do capitalista. (MARX, 1994,  
p. 77, tradução livre13).  
Nessa forma, o valor, preço do trabalho é uma expressão específica  
que contradiz diretamente o conceito de valor. Mas esta contradição  
existe. [...] Essa forma torna-se importante quando se examina o  
salário em seu movimento real. Ela também é importante à  
compreensão de muitos equívocos na teoria. (MARX, 1994, p. 72.  
Destaque no original, tradução livre14).  
Há uma confluência entre a exposição do Capital e das Teorias na medida em  
que em ambos os textos o autor toma o cuidado de assinalar que a inversão presente  
na categoria salário expressa uma objetividade do modo de produção capitalista. O  
valor da força de trabalho se converte em preço do trabalho não apenas nas  
consciências de trabalhador e capitalista, mas também no processo real de  
concorrência. Por essa razão, a crítica marxiana do salário não se dá apenas no plano  
da lógica, não se contenta em apontar a irracionalidade da expressão para dar-lhe as  
costas. O essencial é compreender que se trata de uma forma de ser que expressa  
irracionalidades reais e que, por esse motivo, deve ser não simplesmente abandonada  
mas levada em conta quando o objetivo for explicar fenômenos da realidade que são  
efetivamente regidos por essas formas irracionais.  
13 “In considering the general relation we have only to take account by way of exception of this inverted  
form in which the value of labour capacity appears. This inverted form is, however, the way in which it  
appears in the real process of competition, where everything appears in an inverted form, and in the  
consciousness of both worker and capitalist”  
14 In this form, the value, price of labour is a specific expression, which directly contradicts the concept  
of value. But this contradiction exists. [...] This form becomes important when one is examining wages  
in their real movement. It is also important in understanding many misconceptions in the theory.”  
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Nessas passagens Marx é bastante claro ao enfatizar que as contradições da  
expressão preço do trabalho exprimem uma contradição real que inclusive explica o  
movimento dos salários na esfera da concorrência, onde a prática é de fato regida por  
formas irracionais. Nesse sentido, conquanto irracional, a expressão que se tem no  
salário ajuda a explicar o movimento dos salários na concorrência, onde o preço da  
força de trabalho, na forma do salário, pode cair abaixo de seu valor:  
Em países há mais tempo desenvolvidos, a própria máquina produz,  
por meio de sua aplicação em alguns ramos de negócios, uma tal  
superabundância de trabalho em outros ramos, que a queda do salário  
abaixo do valor da força de trabalho impede aí o uso da maquinaria,  
tornando supérfluo e frequentemente impossível, do ponto de vista  
do capital, cujo lucro provém da diminuição não do trabalho aplicado,  
mas do trabalho pago [...] Como ele [o capital] não paga o trabalho  
aplicado, mas o valor da força de trabalho aplicada, o uso da máquina  
lhe é restringido pela diferença entre o valor da máquina e o valor da  
força de trabalho por ela substituída. [...] Considerando-se, além disso,  
que o verdadeiro salário do trabalhador ora cai abaixo de seu valor,  
ora sobe acima dele, a diferença entre o preço da maquinaria e o preço  
da força de trabalho a ser substituída por ela pode variar muito [...].  
Mas é apenas a primeira diferença que determina os custos de  
produção da mercadoria para o próprio capitalista e o influencia  
mediante as leis coercitivas da concorrência. (MARX, 2017a, p. 466).  
É dizer, dado que no capitalismo o preço e o valor das mercadorias só  
coincidem tendencialmente, o salário pode cair abaixo do valor da força de trabalho.  
Nesse caso, as leis da concorrência obrigam o capitalista a empregar mais trabalho  
superexplorado do que a maquinaria, vez que, ainda que contenham mais trabalho  
humano objetivado, as mercadorias assim produzidas serão vendidas por um preço  
mais baixo. Vê-se dessa maneira que os nexos da forma de aparecimento salário com  
o conceito adequado que oculta (valor da força de trabalho), podem romper-se  
completamente quando o salário cai drasticamente abaixo do valor da força de  
trabalho, caso em que a forma do salário será efetiva ao reger, mediante as leis  
coercitivas da concorrência, o comportamento dos agentes no mercado (SAN MARTINS,  
2016, pp. 153-157). Eis uma evidência decisiva de que o salário, conquanto irracional,  
é uma expressão efetiva que explica fenômenos reais e rege a atividade cotidiana dos  
agentes sociais colocados na concorrência.15  
Por outro lado, essas formas como a expressão preço do trabalho não podem  
ser tomadas apenas negativamente, isto é, compreendidas como mero obscurecimento  
15 Para uma análise detalhada da regência dos movimentos do salário pela sua expressão irracional, ver  
“O movimento dos salários” In: SAN MARTINS, 2016.  
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do pensamento. Em alguma medida, é a partir dessas formas que os sujeitos da  
sociabilidade capitalista tomam consciência de si e, no limite, sua própria atividade é  
mediada por e a partir de essas expressões16. Qualquer um pode imaginar, por  
exemplo, de que maneira a reivindicação por melhores salários integra o léxico das  
lutas dos trabalhadores do passado e do presente, como essa expressão medeia sua  
apreensão da luta em que se encontram contra o capital etc.  
Nessa esteira o autor de O Capital ocupa-se de expor as razões de ser do  
salário, as razões de ordem prática e cotidiana que conformam essa aparência  
irracional: “Se a história universal precisa de muito tempo para descobrir o segredo  
do salário, não há, em contrapartida, nada mais fácil de compreender do que a  
necessidade, as raisons d’être [razões de ser], dessa forma de aparecimento  
[Erscheinungsform]” (MARX, 2017a, p. 610).  
O direito, que até então estava aparentemente ausente na exposição, surge de  
modo bastante interessante quando Marx trata das razões e condições concretas que  
explicam a assunção da aparência irracional do salário pelo valor da força de trabalho  
na superfície da sociedade capitalista.  
Ao cuidar das referidas razões de ser da forma de aparecimento do salário, a  
primeira consideração levantada pelo autor é que a troca que se dá entre capital e  
trabalho não se distingue à primeira vista da troca de quaisquer outras mercadorias:  
Inicialmente, o intercâmbio entre capital e trabalho apresenta-se à  
percepção exatamente do mesmo modo como a compra e a venda de  
todas as outras mercadorias. O comprador dá certa soma de dinheiro,  
e o vendedor, um artigo diferente do dinheiro. (MARX, 2017a, p. 611)  
Nos estreitos limites da relação de troca, a expressão preço do trabalho não parece  
ser mais irracional do que o preço das uvas em todo caso, há simplesmente a  
expressão do valor de uma mercadoria em um equivalente monetário de igual  
grandeza.  
Além disso, é notado que “como o valor de troca e o valor de uso são, em si  
mesmos, grandezas incomensuráveis, as expressões “valor do trabalho” e “preço do  
trabalho” não parecem ser mais irracionais do que as expressões “valor do algodão”  
e “preço do algodão” (MARX, 2017, p, 61). Mais uma vez, há algo próprio da anatomia  
16 “Convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção [...] e as  
formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo as formas ideológicas sob as  
quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim” (MARX, 2008, p. 48. Grifo  
nosso).  
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da relação de valor que concorre para que a expressão preço do trabalho não salte  
aos olhos como uma patente contradição: a troca de mercadorias, ao equiparar  
diferentes valores de uso, expressa uma objetividade social a qualidade de serem  
ambos produtos de trabalho humano na forma de uma qualidade que se prende à  
coisa, na forma da igualdade de valores. Por essa razão, falar-se em preço do trabalho  
não parece ser mais absurdo que falar do preço da corda etc. Há algo objetivamente  
colocado na troca, âmbito em que os indivíduos atuam como portadores de relações  
sociais e de onde eles tiram as formas pelas quais tomam consciência dessas mesmas  
relações, que chancela a expressão do salário. A apreensão imediata das relações  
sociais capitalistas a partir da troca de mercadorias em nada contradiz, antes reforça,  
a expressão valor ou preço do trabalho.  
O autor ainda assinala que, diante da troca entre capital e trabalho na  
circulação, a consciência jurídica se comporta de modo bastante interessante: “Nesse  
fato, a consciência jurídica [Rechtsbewußtsein] reconhece, quando muito, uma  
diferença material, expressa em fórmulas juridicamente equivalentes [rechtlich  
äquivalenten Formeln]: do ut des, do ut facias, facio ut des, e facio ut facias” (MARX,  
idem, ibidem).  
Surge neste momento uma relação mais direta entre a forma do salário e o  
direito, cuja investigação foi objeto da presente pesquisa. Com esta assertiva, Marx  
parece relacionar o direito ao âmbito da troca de mercadorias: a consciência que se  
coloca a partir do direito reconhece no intercâmbio entre capital e trabalho uma  
diferença meramente material em relação às outras trocas, pelo que é capaz de  
expressá-lo numa forma juridicamente idêntica a qualquer outra troca. Como a  
natureza socialmente específica da relação entre capital e trabalho não se revela nos  
limites da troca, mas no processo produtivo, para o qual o momento da troca é  
somente um pressuposto, o direito parece assumir o ponto de vista da circulação ao  
não reconhecer aquilo que, considerada a relação de troca, não se revela. Desse modo,  
as distintas naturezas das mercadorias trocadas, as diferentes funções que cada agente  
assume no processo de produção que tem a relação da troca como ponto de partida,  
a qualidade especial da mercadoria força de trabalho, em suma, que um trocador seja  
trabalhador e o outro capitalista, são, à consciência jurídica, fatos acessórios que não  
lhe impedem de expressar a relação em uma fórmula idêntica a qualquer outra troca.  
Há uma outra passagem do mesmo capítulo em que a relação do direito com a  
forma invertida do salário recebe do autor um tratamento mais detido. Marx primeiro  
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distingue o assalariamento de formas de trabalho correspondentes a outros modos de  
produção para destacar a diferença específica daquele. Segundo o autor (2017, p.  
610), na corveia a relação é mais transparente, porque o trabalho que o servo realiza  
para si mesmo e o trabalho que realiza a serviço do senhor se distinguem espacial e  
temporariamente. Já na escravidão, o escravizado é em si mesmo propriedade de  
outrem, pelo que todo seu trabalho, mesmo aquele que serve para sua precária  
reprodução, aparece-lhe como trabalho realizado para um terceiro. No assalariamento,  
por sua vez, a forma do salário apresenta todo o trabalho como trabalho pago,  
produzindo a aparência mistificadora de que o trabalhador trabalha apenas para si  
mesmo, apagando o tempo de mais-trabalho: “No trabalho assalariado, ao contrário,  
mesmo o mais-trabalho ou trabalho não pago aparece como trabalho pago. No  
primeiro caso, a relação de propriedade oculta o trabalho do escravo para si mesmo;  
no segundo, a relação monetária oculta o trabalho gratuito do assalariado” (MARX,  
2017, p. 610). A forma do salário e a relação monetária ocultam o trabalho gratuito  
pois aquele apresenta toda a jornada de trabalho como jornada remunerada, e aquela,  
que é a figura transformada do produto do trabalho, apaga na sua forma que o que  
reflui para o trabalhador não é mais do que uma fração do seu produto de trabalho  
total17.  
A expressão do salário, pois, liga-se a uma diferença específica do  
assalariamento em relação a outras formas de trabalho. Se na corveia e na escravidão  
a aparência de dominação é imediata, no assalariamento a expressão preço do trabalho  
e a mediação do dinheiro como meio de pagamento ocultam todo o trabalho realizado  
gratuitamente que serve à valorização do valor, conformando uma aparência de  
independência e liberdade do trabalhador por baixo da qual está oculta a sua  
dominação pelo capital. Após apresentar o assalariamento como uma forma mais  
mistificadora de extração de mais-trabalho, que apresenta a exploração como  
liberdade e o trabalho gratuito como trabalho pago, arremata o autor:  
17  
“O que reflui continuamente para o trabalhador na forma-salário [Form des Arbeitslohns] uma parte  
do produto continuamente reproduzido por ele mesmo. Sem dúvida, o capitalista lhe paga em dinheiro  
o valor das mercadorias, mas o dinheiro não é mais do que a forma transformada do produto do  
trabalho. [...] É com seu trabalho da semana anterior ou do último semestre que será pago seu trabalho  
de hoje ou do próximo semestre [...] A ilusão gerada pela forma-dinheiro desaparece de imediato assim  
que consideramos não o capitalista e o trabalhador individuais, mas a classe capitalista e a classe  
trabalhadora. A classe capitalista entrega constantemente à classe trabalhadora, sob a forma-dinheiro,  
títulos sobre parte do produto produzido por esta última e apropriado pela primeira. De modo  
igualmente constante, o trabalhador devolve esses títulos à classe capitalista e, assim, dela obtém a  
parte de seu próprio produto que cabe a ele próprio. A forma-mercadoria do produto e a forma-dinheiro  
da mercadoria disfarçam a transação” (MARX, 2017a, pp. 642-643).  
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Compreende-se, assim, a importância decisiva da transformação do  
valor e do preço da força de trabalho em valor e preço do próprio  
trabalho. Sobre essa forma de manifestação [Erscheinungsform], que  
torna invisível a relação efetiva e mostra precisamente o oposto dessa  
relação, repousam todas as noções jurídicas [Rechtsvorstellungen],  
tanto do trabalhador como do capitalista, todas as mistificações do  
modo de produção capitalista, todas as ilusões de liberdade  
[Freiheitsillusionen], todas as tolices apologéticas da economia vulgar.  
(MARX, 2017a, p. 610).  
Nesta segunda passagem que relaciona diretamente a fora do salário ao direito,  
Marx uma vez mais destaca que o salário é uma forma de aparecimento  
[Erscheinungsform] invertida, uma expressão irracional em que o valor da força de  
trabalho se converte. Para o autor, essa forma antitética à figura medular do capital  
que oculta a relação essencial do modo de produção capitalista seria a pedra de toque  
para representações jurídicas [Rechtsvorstellungen], mistificações, ilusões de liberdade  
e tolices apologéticas. O direito, em sua relação com a forma do salário, aparece ao  
lado de elementos associados ao que há de mais simplório e apologético na apreensão  
do modo de produção capitalista: segundo Marx, a inversão operada na expressão  
preço do trabalho, que apresenta toda o trabalho realizado como trabalho pago, é  
uma forma de exploração de mais-trabalho que, na sua especificidade social, é mais  
sofisticada que a escravidão, menos transparente que a corveia e fornece ao mesmo  
tempo a base para as representações jurídicas e para mistificações, ilusões de  
liberdade e tolices apologéticas correspondentes ao modo de produção capitalista.  
Ante o exposto, tem-se que o capítulo 17 é um ponto de partida relevante para  
a pesquisa sobre a crítica de Marx ao direito. Ao tratar da transformação do valor da  
força de trabalho em valor ou preço do trabalho, Marx oferece pistas importantes para  
se compreender a posição que o direito ocupa em sua obra: por um lado, o direito  
parece coadunar-se com o ponto de vista da troca ao expressar no intercâmbio entre  
capital e trabalho uma diferença apenas material e no mesmo compasso aceitar a  
expressão irracional do salário; por outro, a inversão da forma do salário é tomada  
como base tanto para representações jurídicas quanto para concepções apologéticas  
do modo de produção capitalista.  
As determinações abstratas da troca como bases reais para o desenvolvimento  
das determinações jurídicas  
Diante disso, a pesquisa ocupou-se de explicar precisamente por que o direito  
recebe esse tratamento no salário. Em outras palavras, tomando as assertivas  
marxianas sobre a relação entre o direito e a forma do salário como ponto de partida,  
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ocupamo-nos de buscar em outras passagens de O Capital e em outros textos  
possíveis explicações para por que o direito se comporta precisamente assim diante  
da inversão do salário, com esperanças de jogar alguma luz sobre a crítica marxiana  
ao direito enquanto tal. Como se pretende demonstrar, a pesquisa revelou que a  
afinidade do direito com a expressão preço do trabalho e com as ilusões de liberdade  
e concepções apologéticas e mistificadoras do modo de produção capitalista remete  
na realidade a uma mesma questão: a conexão entre o direito e a relação de troca de  
mercadorias, em que esta se coloca, segundo Marx, como pressuposto para o  
desenvolvimento de determinações jurídicas.  
A relação entre o direito e o âmbito da circulação de mercadorias é bastante  
forte e se repete em outros momentos da crítica marxiana da economia política. Na  
introdução de 1857 do Grundrisse, o autor, ao tratar do desenvolvimento desigual  
entre as relações de produção e sua base produtiva, aponta na Roma antiga um  
desenvolvimento desigual entre sua produção e o direito privado:  
Mas o ponto verdadeiramente difícil de discutir aqui é o de como as  
relações de produção, como relações jurídicas, têm um  
desenvolvimento desigual. Em consequência disso, p. ex., a relação do  
direito privado romano (nem tanto o caso no direito penal e no direito  
público) com a produção moderna (MARX, 2011, p. 62).  
Haveria um desenvolvimento desigual entre o direito romano e a sua base  
efetiva na medida em que ele tem uma relação forte com a produção moderna,  
bastante distinta da produção romana. Uma pista para a explicação do referido  
desenvolvimento desigual parece ser oferecida mais adiante:  
Por isso, no direito romano o servus é corretamente determinado  
como aquele que não pode adquirir nada para si pela troca (ver  
Institut). Por essa razão, é igualmente claro que esse direito, embora  
corresponda a uma situação social na qual a troca não estava de modo  
algum desenvolvida, pôde, entretanto, na medida em que estava  
desenvolvido em determinado círculo, desenvolver as determinações  
da pessoa jurídica, precisamente as do indivíduo da troca, e antecipar,  
assim, o direito da sociedade industrial (em suas determinações  
fundamentais); mas, sobretudo, teve de se impor como o direito da  
sociedade burguesa nascente perante a Idade Média. Mas seu próprio  
desenvolvimento coincide completamente com a dissolução da  
comunidade romana (MARX, 2011, pp. 188-189).  
Ora, nessa passagem Marx, ao tratar do direito romano, afirma que, embora a  
troca ali não fosse plenamente desenvolvida, esta era suficientemente desenvolvida ao  
ponto de tornar possível aos romanos o desenvolvimento das determinações da  
pessoa jurídica. O desenvolvimento do direito privado romano, que é resgatado na  
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sociedade capitalista em oposição ao privilégio feudal, se dá segundo Marx justamente  
na esteira do desenvolvimento da troca de mercadorias certo desenvolvimento da  
troca é considerado como pressuposto para a elaboração de determinações jurídicas18.  
Nesse sentido, o servus diferenciar-se-ia da pessoa jurídica justamente pela sua  
incapacidade de adquirir bens pela troca. O que explicaria o desenvolvimento desigual  
das relações jurídicas em Roma em relação com sua base produtiva seria precisamente  
o desenvolvimento em um certo grau de relações de troca que permitem o  
desenvolvimento da pessoa jurídica como um dos momentos do sujeito da troca,  
determinações que seriam resgatadas e mais desenvolvidas pela nascente sociedade  
civil-burguesa.  
Claro está que em Marx há uma correlação entre o direito e a circulação de  
mercadorias; algum grau de desenvolvimento da troca é considerado a chave para o  
desenvolvimento de determinações jurídicas. Diante disso, ao exame da relação entre  
o direito e a forma do salário importa examinar as determinações da relação de troca.  
É dizer, se o desenvolvimento da troca é pressuposto para a elaboração de  
determinações jurídicas e o direito se coloca sobre as determinações da relação de  
troca, reconhecendo-as e as elaborando juridicamente, importa analisar precisamente  
o que essa relação exprime e como determinações do direito são engendradas a partir  
disso. Ainda no mesmo texto, Marx expõe em detalhe algumas determinações da  
relação de troca:  
De fato, como a mercadoria ou o trabalho estão determinados tão  
somente como valor de troca e a relação pela qual as diferentes  
mercadorias se relacionam entre si [se apresenta] como troca desses  
valores de troca, como sua equiparação, os indivíduos, os sujeitos,  
entre os quais esse processo transcorre, são determinados  
simplesmente como trocadores. Entre eles não existe absolutamente  
nenhuma diferença, considerada a determinação formal, e essa  
determinação é econômica, a determinação em que se encontram  
reciprocamente na relação de intercâmbio; o indicador de sua função  
social ou de sua relação social mútua. Cada um dos sujeitos é um  
trocador, i.e., cada um tem a mesma relação social com o outro que o  
outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por isso, a  
relação da igualdade. É impossível detectar qualquer diferença ou  
mesmo antagonismo entre eles, nem sequer uma dissimilaridade.  
Além disso, as mercadorias que trocam são, como valores de troca,  
equivalentes ou ao menos valem enquanto tais [...]. Os equivalentes  
são a objetivação de um sujeito para o outro; i.e., eles próprios são  
de mesmo valor e se confirmam no ato da troca como valendo igual  
18 Dessa maneira Marx parece admitir a existência de uma forma de direito pré-capitalista ainda que,  
por certo, ligado à dissolução da comunidade romana o que diferencia sua concepção da  
pachukaniana, cf. SARTORI, 2022.  
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e, ao mesmo tempo, como reciprocamente indiferentes. Na troca, os  
sujeitos são sujeitos uns para os outros exclusivamente pelos  
equivalentes, como sujeitos de igual valor, e se afirmam enquanto tais  
pela permuta da objetividade em que um é para o outro. Uma vez que  
só são assim, um para o outro, como sujeitos de igual valor, como  
possuidores de equivalentes e como sujeitos que atestam essa  
equivalência na troca, como sujeitos de igual valor são ao mesmo  
tempo indiferentes uns aos outros; suas outras diferenças individuais  
não lhes interessam; são indiferentes a todas as suas outras  
peculiaridades individuais (MARX, 2011, pp. 184-185).  
A forma do valor exige que na troca as mercadorias valham apenas como  
invólucros de valor: a relação realiza uma abstração de todas as qualidades materiais  
etc. das mercadorias ao colocá-las como permutáveis entre si enquanto invólucros da  
mesma quantidade de trabalho social abstrato. Ao mesmo tempo, a relação de troca  
determina os indivíduos tão-somente como trocadores, e eles valem apenas como  
guardiões dessas mercadorias de mesmo valor, como suportes dessa relação na  
medida em que precisam colocar as mercadorias em contato umas com as outras. Eles  
existem um para o outro apenas como possuidores, guardiões de mercadorias de igual  
valor.  
Se entre os produtos a troca realiza uma abstração de toda diferença e os  
relaciona apenas como valores, com os possuidores de mercadorias não pode ser  
distinto. Determinados objetivamente apenas como trocadores, nessa relação não há  
entre eles qualquer diferença, e um tem com o outro a mesma relação que este tem  
consigo na medida em que se apresentam como guardiões de mercadorias de mesmo  
valor. A troca, pois, estabelece objetivamente uma relação de igualdade que é fundada  
na forma-mercadoria; nessa relação as mercadorias se igualam como invólucros de  
valor de mesma grandeza e seus guardiões, ao relacionarem essas coisas entre si,  
também se conformam enquanto iguais possuidores. Conforma-se um sentido de  
igualdade bastante singular: a forma do valor, ao equiparar os produtos do trabalho  
humano exige que sua igualdade se expresse na forma da igualdade entre coisas e  
os seus guardiões só são iguais entre si na medida em que se apresentam como  
possuidores de mercadorias de igual valor. A relação monetária realiza os indivíduos  
como iguais mas apenas indiretamente: são iguais como sujeitos apenas por e na  
medida em que são os guardiões de coisas igualáveis enquanto invólucros de valor.  
Ainda nessa relação, à igualdade somam-se os momentos da liberdade e do  
direito:  
[A diversidade natural de necessidades e mercadorias dos indivíduos]  
constitui o motivo para a integração desses indivíduos, para a sua  
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relação social como trocadores, relação em que são pressupostos e  
se afirmam como iguais, à determinação da igualdade soma-se a da  
liberdade. Ainda que o indivíduo A sinta necessidade da mercadoria  
do indivíduo B, não se apodera dela pela força, nem vice-versa, mas  
reconhecem-se mutuamente como proprietários, como pessoas cuja  
vontade impregna suas mercadorias. Em decorrência, aqui entra de  
imediato o momento jurídico da pessoa e da liberdade, na medida em  
que está contida na primeira. Nenhum deles se apodera da  
propriedade do outro pela força. Cada um a cede voluntariamente.  
Mas isso não é tudo: o indivíduo A serve à necessidade do indivíduo  
B por meio da mercadoria a somente na medida em que, e porque, o  
indivíduo B serve à necessidade do indivíduo A por meio da  
mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao outro para servir a si  
mesmo; cada um se serve reciprocamente do outro como seu meio.  
(MARX, 2011, p. 187).  
As distintas necessidades que os impulsionam para a troca, o valor de uso de  
suas mercadorias etc. constituem apenas o pressuposto para seu contato social mas  
são indiferentes para a relação monetária enquanto tal e para a sua determinação  
enquanto trocadores. A liberdade se afirma na medida em que nenhum sujeito  
apropria-se da mercadoria alheia senão pela troca, mediante o acordo de vontades em  
que ambos reconhecem-se mutuamente como proprietários. Trata-se de um sentido  
de liberdade que objetivamente não quer dizer senão que o indivíduo somente se  
serve do que outro possui por meio de um acordo de vontades que pressupõe o mútuo  
reconhecimento da qualidade de proprietário de mercadorias. Ambos só se relacionam  
mutuamente como sujeitos livres na medida em que necessitam da mercadoria alheia  
uma vez mais trata-se de um sentido de liberdade que é objetivamente realizado  
pela troca e, nessa medida, só atinge o sujeito na mediação pelas formas da mercadoria  
e da relação de valor, e que não é mais que o corolário de seu egoísmo privado. É  
patente, pois, que se trata de momentos de igualdade e liberdade em cuja testa está  
escrito que correspondem a um modo de produção em que as coisas dominam as  
pessoas: liberdade e igualdade são antes determinações que decorrem da relação  
entre mercadorias enquanto valores, predicados que somente atingem os seres  
humanos indiretamente enquanto possuidores dessas mercadorias e que se colocam  
fundamentalmente como uma necessidade imanente à troca de mercadorias19.  
Daí decorreria, para Marx, o momento jurídico da pessoa e da liberdade, em  
que a liberdade em verdade está contida na primeira, isto é, no momento jurídico da  
pessoa. Outra vez, portanto, o autor traz o direito como corolário da relação de troca.  
19 Inclusive, vale mencionar que na sequência do desenvolvimento dessas passagens Marx traz o sujeito  
de maneira ainda mais abstrata, como mera individuação do Dinheiro, que realiza objetivamente a  
liberdade enquanto forma universal da mercadoria (SARTORI, 2022, pp. 103-108).  
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Os momentos jurídicos são engendrados a partir da relação de troca reconhecem  
situações dadas por relações econômicas e, em relação às determinações de liberdade  
e igualdade realizadas por estas, não são mais do que a mesma base elevada a outra  
potência20.  
Longe de ser o central na análise marxiana, o direito atua tão somente  
reconhecendo determinações que são dadas pela relação de troca, chancelando  
inclusive sentidos de igualdade e liberdade que, longe de qualquer pretensão  
grandiloquente, significam relações objetivamente dadas pela forma-mercadoria e sua  
respectiva relação de valor. Na medida em que se afasta da esfera da produção onde  
o capital existe como capital mediante a exploração da força de trabalho e opera seu  
reconhecimento a partir da circulação, o direito realiza uma apreensão do modo de  
produção capitalista a partir daquilo que se revela em sua superficialidade. Ele  
referenda a irracionalidade da expressão preço do trabalho justamente na medida em  
que, à relação de troca e à determinação dos indivíduos como trocadores, as distintas  
necessidades dos trocadores, a natureza particular de suas mercadorias e as distintas  
funções sociais que exercem no processo produtivo são irrelevantes. Quanto à  
categoria salário, essa correlação explicaria por que a consciência jurídica vislumbra  
no intercâmbio entre capital e trabalho uma diferença apenas material que não afeta a  
respectiva fórmula jurídica implicando em uma aceitação da expressão irracional  
preço do trabalho.  
A referida relação entre desenvolvimento do direito e troca de mercadorias  
também se faz presente no próprio Capital, em que Marx, ao tratar novamente da troca  
das mercadorias, estabelece o mútuo reconhecimento dos indivíduos colocados na  
troca como proprietários como pressuposto para o desenvolvimento do acordo de  
vontades na forma do contrato.  
Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias,  
seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como  
pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que  
um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria  
mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por  
meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de  
se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação  
jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou  
não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O  
20  
“Igualdade e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores  
de troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liberdade. Como  
ideias puras, são simples expressões idealizadas dessa base; quando desenvolvidas em relações  
jurídicas, políticas e sociais, são apenas essa base em uma outra potência” (MARX, 2011, p. 188).  
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João Lucas Sales Prates  
conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação  
econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas  
como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como  
possuidoras de mercadorias. (MARX, 2017a, pp. 159-160)  
Aqui, como na passagem dos Grundrisse, Marx pontua a necessidade de  
apropriar-se da coisa alheia apenas por meio da troca como o fundamento a partir do  
qual se coloca o elemento jurídico. Outra vez mais o mútuo reconhecimento da  
qualidade de proprietário de mercadoria aparece como fundamento de uma liberdade  
objetivamente realizada na troca a partir da qual desenvolvem-se determinações  
jurídicas, como o contrato. Além disso, é assinalado de modo explícito que a relação  
jurídica travada entre os indivíduos não faz mais que refletir a relação econômica, que  
lhe dá não apenas o conteúdo como lhe é pressuposto.  
Em outra passagem de O Capital, a relação entre o direito e a esfera da  
circulação é ainda mais explícita. Na medida em que ela se conforma como o âmbito  
em que livres trocadores trocam equivalentes, na circulação predominam a liberdade  
e a igualdade, o reino dos direitos inatos do homem e de Bentham. Nela, trabalhador  
e capitalista defrontam-se como juridicamente iguais, atuando como comprador e  
vendedor de força de trabalho, respectivamente.  
A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se  
move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um  
verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem [angebornen  
Menschenrechte]. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade,  
da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e  
vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho,  
são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como  
pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos [als freie, rechtlich  
ebenbürtige Personen]. O contrato é o resultado, em que suas  
vontades recebem uma expressão legal [Rechtausdruck] comum a  
ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro  
apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por  
equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu.  
Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força  
que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria,  
de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. (MARX, 2017a,  
pp. 250-51).  
A circulação, portanto, traz o elemento jurídico ao realizar em seus limites os  
direitos inatos do homem. O direito conforma-se desenvolvendo um papel importante  
na circulação onde, tomando os livres trocadores e o egoísmo das vontades como  
pressupostos, opera um reconhecimento dessa liberdade e das relações que se  
estabelecem na troca. Trata-se do reconhecimento jurídico, do contrato como  
expressão jurídica das vontades dos indivíduos egoístas colocados como trocadores  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
no campo da circulação que, na realidade, sequer é o central para a produção do mais-  
valor. Os indivíduos reconhecem-se como proprietários de iguais direitos sobre as suas  
mercadorias, das quais só podem apropriar-se mediante a troca. Longe dos elevados  
ares que contemporaneamente lhes são atribuídos, Marx traz os direitos do homem  
[Menschenrechte] com um papel bem mais singelo e mesmo mesquinho em que há  
apenas a expressão jurídica daquilo que antes de existir juridicamente já se colocava  
como fato, o reconhecimento jurídico do indivíduo atomizado, do egoísmo privado que  
rege a esfera da circulação.  
O cotejo dessas passagens com os trechos do Grundrisse acima expostos revela  
uma importante linha de continuidade na crítica marxiana da economia política: a  
despeito dos distintos modos de exposição e do nível de amadurecimento do  
pensamento do autor em cada obra, num e noutro caso Karl Marx afirma que o  
momento jurídico na forma da liberdade, da pessoa jurídica, dos direitos do homem  
etc. se liga de modo bastante forte à circulação, à relação de troca, e somente se  
afirma quando a troca se encontra suficientemente desenvolvida. Em ambos os textos  
o desenvolvimento do direito é colocado sobre uma base histórica efetiva: as  
determinações jurídicas somente se afirmam onde a troca está suficientemente  
desenvolvida, afirmam-se a partir da troca, operando um reconhecimento, uma  
elaboração de determinações que se revelam na relação de troca. Em todo caso, é  
evidente que para o autor o direito é algo longe do essencial, e em verdade apenas  
exprime juridicamente relações econômicas e chancela sentidos de igualdade e  
liberdade que se realizam no sistema monetário, pressupondo o egoísmo privado e  
afirmando-se apenas por meio de qualidades que residem nas coisas e em que os  
homens só valem enquanto possuidores, guardiões dessas coisas.  
Observe-se como, embora de fato exista na crítica marxiana uma relação muito  
próxima entre a isonomia dos iguais proprietários de mercadorias e a igualdade  
jurídica, não é possível aceitar a tese pachukaniana segundo a qual o sentido de  
pessoa na passagem em análise corresponde à figura do sujeito de direito21. O central  
nessas passagens, acreditamos, é nem tanto o desenvolvimento marxiano do sujeito  
de direito categoria da Teoria Geral do Direito e em verdade estranha à malha  
categorial da exposição de Marx mas a relação entre as determinações da pessoa  
jurídica, em que esta é um dos muitos momentos da pessoa, que figura como uma  
21  
Cf. PACHUKANIS, 2017. Para uma crítica à leitura pachukaniana da noção de pessoa em Marx, ver  
SARTORI, 2019b.  
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possuidora de coisas, e a troca de mercadorias (cf. SARTORI, 2020; 2022).  
É patente que muito do que há de mais valioso no texto marxiano estaria  
perdido com uma análise que se contentasse em assinalar a proximidade existente  
entre o sujeito de direito e a forma-mercadoria. O mais relevante nesse ponto parece  
ser a exposição da troca de mercadorias como uma base efetiva de uma igualdade e  
de uma liberdade que se instauram mediante coisas o que remete à constatação de  
que as formas do modo de produção capitalista expressam uma realidade em que as  
coisas dominam os homens22. Afinal, estes só são iguais na medida em que se  
relacionam como possuidores de mercadorias de mesmo valor; são livres as pessoas  
na medida em que somente se apossam da coisa alheia num ato de vontade levado a  
cabo na troca. Nesse contexto, longe de uma aproximação entre Marx e categorias da  
Teoria Geral do Direito mesmo o direito enquanto tal aparece de modo bastante  
singelo vez que apenas reflete ao seu modo um conteúdo econômico o essencial é  
e não poderia deixar de ser uma crítica arguta às categorias da sociedade civil-  
burguesa a partir da crítica de sua anatomia, a economia política.  
A relação do valor coloca determina os indivíduos tão somente como  
portadores de mercadorias de igual valor, estabelecendo uma igualdade objetiva  
diante da qual os trocadores reconhecem-se mutuamente enquanto proprietários que  
não podem apropriar-se da mercadoria alheia senão por um acordo de vontades,  
donde decorre sua relação jurídica. Assim, ao determinar os indivíduos simplesmente  
como trocadores, a troca parece dar as condições para o reconhecimento recíproco  
destes como iguais proprietários; há a realização e o reconhecimento de uma  
igualdade que se dá por intermédio das mercadorias e se realiza com o sistema  
monetário. Nela, abstrai-se de toda qualidade concreta das mercadorias: estas estão  
postas tão somente como invólucros de trabalho humano abstrato de mesma  
dimensão, e a natureza particular de cada mercadoria, a necessidade particular que  
levou cada indivíduo à troca estão abstraídas. Do ponto de vista da relação de troca,  
portanto, que um trocador seja trabalhador e outro capitalista, que um leve sua própria  
22 “É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor e a grandeza de  
valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais se colocou a seguinte questão:  
por que esse conteúdo assume aquela forma, e, portanto, por que o trabalho se representa no valor e  
a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho?  
Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo  
de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua  
consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo”  
(MARX, 2017a, pp. 155-156).  
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corporeidade à troca e o outro um equivalente monetário, é indiferente.  
Uma vez que se afirma a partir da relação de troca e da determinação dos  
indivíduos como trocadores, o momento jurídico não faz que elaborar as  
determinações da troca de mercadorias, sendo indiferente ao que é essencial nessa  
relação. Nos limites da relação de troca, como se viu, não é absurdo falar em valor ou  
preço do trabalho porque toda relação de valor exprime o valor na equiparação com  
um valor de uso qualquer. A irracionalidade da expressão preço do trabalho, afinal, só  
se revela de modo mais flagrante na produção, onde se dá a exploração da força de  
trabalho e onde é possível observar que um trabalho que “vale” X produz 2X. Como é  
característico do ponto de vista da troca de mercadorias, o direito é indiferente à  
natureza particular da mercadoria força de trabalho e ao seu papel específico na  
reprodução do capital, que somente se realiza no processo de produção. Logo, ao  
direito a expressão preço do trabalho não é mais irracional do que o preço das maçãs.  
Em conclusão, é por essa razão que a consciência que se coloca a partir do direito,  
como corolário da troca de mercadorias, é capaz de exprimir a compra e a venda da  
força de trabalho numa fórmula juridicamente equivalente à troca de quaisquer outras  
mercadorias, como a maçã e a pêra.  
A circulação como demiurgo do direito e das ilusões de liberdade capitalistas  
Ao mesmo tempo, a noção de que para Marx o direito se coloca a partir da  
troca é chave importante para se compreender por que, sobre a base do salário, o  
direito aparece lado a lado com as apreensões mais apologéticas e mistificadoras do  
modo de produção capitalista. Para Marx, afinal, refugiar-se nas determinações  
abstratas de liberdade e igualdade da troca determinações estas a partir da qual se  
colocam as determinações jurídicas são um lugar-comum dos apologistas da  
sociedade do capital:  
Por outro lado, na determinação da relação monetária, tal como  
desenvolvida até aqui em sua pureza e sem referência a relações de  
produção mais desenvolvidas, está implícito que todas as antíteses  
imanentes da sociedade burguesa parecem apagadas nas relações  
monetárias concebidas de modo simples, e, sob esse aspecto, refugia-  
se sempre no dinheiro para fazer a apologia das relações econômicas  
existentes, pela democracia burguesa mais ainda do que pelos  
economistas burgueses [...] (MARX, 2011, p. 184).  
A relação monetária determina os indivíduos tão-somente como trocadores.  
Nessa relação estão apagadas todas as suas diferenças naturais na medida em que se  
afirmam um para o outros como possuidores de mercadorias de igual valor. Refugiar-  
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se na liberdade e na igualdade que o sistema monetário realiza e tomar a relação de  
troca como régua para avaliar a sociedade civil-burguesa é um lugar-comum  
apologético porque significa julgar a sociedade do capital pelos seus momentos mais  
abstratos perdendo de vista o essencial: a valorização do valor no processo de  
produção. Em outro exemplo que sugere uma continuidade de pensamento entre o  
Grundrisse e O Capital, Marx em nota de rodapé repisa que um procedimento comum  
entre apologistas do modo de produção capitalista é avaliar a sociedade civil-burguesa  
a partir de seus momentos mais abstratos na relação de troca:  
Dois pontos são aqui característicos do método da apologética  
econômica. Em primeiro lugar, a identificação da circulação de  
mercadorias com a troca imediata de produtos mediante a simples  
abstração de suas diferenças. Em segundo lugar, a tentativa de negar  
as contradições do processo capitalista de produção dissolvendo as  
relações de seus agentes de produção nas relações simples que  
surgem da circulação de mercadorias. A produção e a circulação de  
mercadorias são, porém, fenômenos que pertencem aos mais distintos  
modos de produção, por mais variados sejam em sua dimensão e  
alcance. Portanto, ainda não se sabe nada da differentia specifica  
[diferença específica] desses modos de produção e, por conseguinte,  
não é possível julgá-los enquanto se conhecem apenas suas  
categorias abstratas, comuns a todos os modos de produção. Em  
nenhuma ciência além da economia política impera tal pedantaria  
acompanhada de lugares-comuns tão elementares. Por exemplo, J. B.  
Say julga-se no direito de dar um veredito sobre as crises porque ele  
sabe que a mercadoria é um produto (MARX, 2017a, pp. 187-188).  
Em ambas as passagens é dito que a relação de troca em sua pureza é algo  
que diz respeito a diversos modos de produção o desenvolvimento da troca, afinal,  
é um pressuposto para o desenvolvimento de determinações jurídicas na Roma antiga,  
muitos séculos antes do amadurecimento do modo de produção capitalista e que  
existe no capitalismo apenas como um de seus momentos mais abstratos. Nessa  
relação, conforme exposto, os indivíduos aparecem simplesmente como trocadores,  
proprietários de mercadoria. É a partir disso que se colocam os momentos jurídicos  
da pessoa e da liberdade.  
O autor é claro ao pontuar que, embora esse momento seja real e só tenha se  
desenvolvido plenamente no modo de produção capitalista, tomá-lo em sua pureza e  
abstração como ponto de partida para um julgamento da sociedade civil-burguesa é  
um lugar-comum da apologética, vez que nele está apagada a diferença específica do  
modo de produção capitalista, assim como todas as suas contradições. Afinal, é muito  
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diferente a troca do excedente de produção no modo de produção asiático23 para a  
produção voltada para a troca de uma fazenda capitalista, muito diferente ainda  
quando a troca se coloca como ponto de partida para a cessão da capacidade de  
trabalho, o que pressupõe o assalariamento etc. Por essa razão, o ponto de vista que  
toma as determinações abstratas da troca e a liberdade e a igualdade que se realizam  
ali como parâmetro para investigação da sociedade civil-burguesa será sempre  
apologético e mistificador, pois abdica de encarar as contradições essenciais a esse  
modo de produção, como a contradição entre capital e trabalho no processo de  
produção, em favor dos sentidos abstratos de igualdade e liberdade que se realizam  
na troca. No entanto, para o economista vulgar, cujo procedimento é marcado pela  
apologia do existente, as determinações abstratas de troca e a expressão irracional  
que apresenta o todo trabalho como trabalho pago representam “uma base segura de  
operações para sua superficialidade, fundada no princípio do culto das aparências”  
(MARX, 2017a, p. 609).24  
Uma vez que se desenvolve a partir da relação de troca, o direito parece operar  
um reconhecimento, isto é, uma elaboração a seu próprio modo, das determinações  
que se colocam na troca. Da mesma forma que o economista vulgar toma as  
determinações abstratas de relação de troca como ponto de partida, sendo-lhe  
indiferente se fala-se de um intercâmbio entre capitalista e trabalhador ou da venda  
do excedente da produção de um romano livre, o direito é indiferente à natureza  
concreta das mercadorias trocadas, pelo que interpreta a diferença como uma mera  
diferença material que não obsta a elaboração de uma fórmula jurídica idêntica.  
Dessa maneira, o direito, que tem como base efetiva o desenvolvimento da  
23  
“Nos modos de produção asiáticos, antigos etc. a transformação do produto em mercadoria e, com  
isso, a existência dos homens como produtores de mercadorias, desempenha um papel subordinado,  
que, no entanto, torna-se progressivamente mais significativo à medida que as comunidades avançam  
em seu processo de declínio” (MARX, 2017a, p. 154).  
24 Uma exposição detalhada da relação da economia vulgar com o salário foge aos limites deste artigo.  
Cabe registrar, no entanto, que a afirmação de que a forma do salário fornece as bases para a operação  
da economia vulgar passa longe de ser simplesmente retórica. Para o autor de O Capital, a inversão  
operada pela expressão preço do trabalho é mesmo a pedra de toque para o desenvolvimento da  
famigerada fórmula trinitária da economia vulgar: “Uma vez que aqui o salário aparenta ser o produto  
específico do trabalho, o único produto do trabalho (e o salário é realmente o único produto do trabalho  
para o trabalhador assalariado), as outras frações do valor - renda da terra e lucro (juros) - parecem fluir  
tão necessariamente de outras fontes específicas. Assim como aquela fração do valor do produto que  
se reduz em salário [é concebida] como o produto específico do trabalho, as outras frações do valor  
que são compostas de renda da terra e lucro devem ser consideradas como o resultado específico de  
agências para as quais elas existem e às quais elas se acumulam, ou seja, como renda da terra e capital,  
respectivamente” (MARX, 1989a, pp. 530-531; Tradução nossa).  
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troca e que toma as determinações desta como pressupostos para o desenvolvimento  
das suas próprias, guarda uma proximidade evidente justamente com o que há de mais  
apologético no modo de produção capitalista. As determinações abstratas da troca,  
afinal, são ao mesmo tempo a base para o desenvolvimento do direito e o refúgio  
preferido da apologia do modo de produção capitalista justamente em razão de sua  
abstração, onde as contradições capitalistas estão apagadas. Por isso o  
comportamento análogo do direito diante da expressão irracional preço do trabalho,  
que oculta a exploração da força de trabalho, aceita tanto pelo economista vulgar  
apologista quanto pela consciência jurídica revela uma proximidade entre a posição  
do direito e dos elementos mais apologéticos do capitalismo.  
Tomando as determinações abstratas da troca como parâmetro para suas  
próprias operações, o direito também conforma uma ilusão de liberdade em sua  
atuação no intercâmbio entre capital e trabalho na circulação. No mercado de trabalho  
na esfera da circulação, portanto, onde sua subordinação ao capital não aparece  
imediatamente e onde o salário se apresenta como preço do trabalho o trabalhador  
assalariado se apresenta real e efetivamente como um proprietário, um vendedor de  
sua mercadoria “trabalho”. No intercâmbio entre capital e trabalho na circulação, as  
determinações de liberdade e igualdade da relação de troca que não são mais do  
que corolários do egoísmo privado e resultados das necessidades imanentes da  
circulação de mercadorias outra vez são o ponto de partida para o desenvolvimento  
de determinações jurídicas, na figura dos direitos inatos do homem [angebornen  
Menschenrechte] e do contrato de trabalho como resultado das vontades de pessoas  
livres, dotadas dos mesmos direitos [freie, rechtlich ebenbürtige Personen] (MARX,  
2017a, pp. 250-251).  
Mais uma vez, portanto, o direito aparece como caudatário da circulação de  
mercadorias que reconhece as determinações da troca e as elabora. Não surpreende,  
pois, que o direito em sua relação com o salário apareça como mais uma forma de  
consciência apologética ou mistificadora: ao tomar os momentos da igualdade e  
liberdade da circulação como pontos de partida, a consciência que se coloca ao direito  
é cega para o que é essencial ao modo de produção capitalista, a relação capital que,  
conquanto pressuposta na circulação, somente se revela no processo de exploração  
da força de trabalho no campo da produção.  
Ao mesmo tempo, porém, a apreensão unilateral que o direito faz desses  
momentos abstratos de liberdade e igualdade da troca e que, em sua relação com a  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
forma invertida do salário, o aproxima da apologética da sociedade civil-burguesa, não  
é de modo algum acidental. Por um lado, como se viu, a aproximação do direito com  
a circulação em Marx é algo que diz respeito à própria gênese do direito enquanto  
relação social afinal, o desenvolvimento da troca em Roma é considerado pelo autor  
a condição real para o desenvolvimento do direito privado romano que seria resgatado  
pela nascente sociedade civil-burguesa. Por outro, a mediação do direito é um  
elemento importante à própria reprodução da relação-capital e do assalariamento na  
medida em que o reconhecimento do trabalhador como um sujeito que não renuncia  
à titularidade dos direitos sobre si mesmo definitivamente, mas apenas  
transitoriamente no processo de produção é uma condição que o distingue enquanto  
assalariado da situação do escravo ou do servo25.  
O que se tem é uma atuação do direito conformando uma ilusão de liberdade  
que diz respeito à própria valorização do valor, produzida pelas relações sociais  
especificamente capitalistas. A subordinação do trabalhador ao capital não se mostra  
na circulação, o demiurgo do direito, mas somente no processo produtivo. Nesse  
sentido, segundo Marx, a amarras que prendem o trabalhador ao capital são fios  
invisíveis:  
O escravo romano estava preso por grilhões a seu proprietário; o  
assalariado o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência  
é mantida pela mudança constante dos patrões e pela fictio iuris do  
contrato. (MARX, 2017a, p. 648).  
A subordinação do trabalho ao capital, ao contrário do que ocorre na  
escravidão, não se apresenta tão imediata e transparentemente. À primeira vista, há  
uma relação de igualdade travada nas trocas que somente se supera quando se  
considera não a relação isolada do trabalhador com o capitalista enquanto meros  
possuidores, mas a relação entre trabalhadores e capitalistas enquanto classe. Nesse  
sentido, a ficção jurídica do contrato, segundo a qual trabalhador e capitalista são  
sujeitos substancialmente livres e independentes, e somente em razão do contrato  
surge uma obrigação voluntariamente assumida do trabalhador de ceder sua  
capacidade do trabalho, chancela a aparência de liberdade própria da circulação de  
mercadorias. O trabalhador, afinal, jamais renuncia aos seus direitos de propriedade  
25  
“A continuidade dessa relação requer que o proprietário da força de trabalho a venda apenas por  
um determinado período, pois, se ele a vende inteiramente, de uma vez por todas, vende a si mesmo,  
transforma-se de um homem livre num escravo, de um possuidor de mercadoria numa mercadoria”  
(MARX, 2017a, p. 242).  
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sobre sua capacidade de trabalho definitivamente fato que torná-lo-ia um escravo –  
, mas apenas transitória e livremente. Sob essa aparência esconde-se a relação do  
trabalhador com o capital enquanto tal, a completa ausência de meios de objetivar o  
próprio trabalho, a participação sempre mediata e estranhada nos produtos do próprio  
trabalho na forma dos salários etc. Tudo isso, no entanto, não diz respeito à esfera da  
circulação e, por consequência, considerada a relação jurídica, é algo fora desta.  
Afinal, a compra e venda da força de trabalho é um momento fundamental à  
própria existência do capital como tal e da valorização do valor enquanto algo que  
passa pela circulação mas ao mesmo tempo não reside propriamente nesta. É  
necessário à reprodução do trabalho enquanto trabalho assalariado e ao capital  
enquanto capital que o trabalhador se relacione com sua força de trabalho enquanto  
um possuidor juridicamente igual e livre cuja mercadoria não lhe pode ser alienada  
senão mediante um acordo de vontades na forma do contrato:  
Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor  
dela, portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho,  
de sua pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram no  
mercado e estabelecem uma relação mútua como iguais possuidores  
de mercadorias, com a única diferença de que um é comprador e o  
outro, vendedor, sendo ambos, portanto, pessoas juridicamente  
iguais. [...] Como pessoa, ele tem constantemente de se relacionar com  
sua força de trabalho como sua propriedade e, assim, como sua  
própria mercadoria, e isso ele só pode fazer na medida em que a  
coloca à disposição do comprador apenas transitoriamente,  
oferecendo-a ao consumo por um período determinado, portanto, sem  
renunciar, no momento em que vende sua força de trabalho, a seus  
direitos de propriedade sobre ela. (MARX, 2017a, pp. 242-243).  
Na circulação, o trabalhador relaciona-se com sua capacidade de trabalho como  
um proprietário. Diante do capitalista, estabelece uma relação de iguais possuidores  
de mercadorias um, possuidor de dinheiro; o outro, da mercadoria força de trabalho  
, pessoas juridicamente iguais. Ao mesmo tempo, coloca-se como uma necessidade  
imanente à compra e venda da força de trabalho que o trabalhador se relacione com  
sua capacidade de trabalho como pessoa que a tenha como sua propriedade colocada  
à disposição apenas transitoriamente, sem jamais renunciar “a seus direitos de  
propriedade sobre ela”. A correlação entre a necessidade de o trabalhador, diante do  
capitalista, relacionar-se como pessoa com sua própria capacidade de trabalho e a  
apreensão jurídica dessa relação também é tratada por Marx nos Grundrisse:  
As duas partes se defrontam como pessoas. Formalmente, sua relação  
é a relação igual e livre de trocadores. Que essa forma seja aparência,  
e aparência enganosa, apresenta-se, considerada a relação jurídica,  
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Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
como algo situado fora desta. [...] O trabalhador vende a manifestação  
de força particular a um capitalista particular, com quem se defronta  
como indivíduo independente. É claro que essa não é a sua relação  
com a existência do capital como capital, i.e., com a classe dos  
capitalistas. Em sua própria totalidade, a capacidade de trabalho  
aparece diante do trabalhador livre como sua propriedade, como um  
dos momentos sobre o qual ele exerce o domínio como sujeito e que  
ele conserva ao alienar (MARX, 2011, pp. 617-618).  
O que se tem é uma relação que simultaneamente conforma trabalhador e  
capitalista como livres possuidores e, nessa mesma medida, pessoas juridicamente  
iguais. Pelo prisma jurídico, que se coaduna com as determinações de troca, o  
trabalhador se apresenta como livre e igual diante do comprador de sua força de  
trabalho. Ao mesmo tempo, a expressão do salário conforma uma mistificação  
especificamente capitalista ao apresentar toda a jornada de trabalho como trabalho  
pago, velando a exploração da força de trabalho.  
Trata-se, é claro, de uma ilusão de liberdade porquanto não representa sua  
relação perante a existência do capital como capital, que só se revela no processo de  
exploração da força de trabalho. A relação jurídica, como corolário da relação de  
igualdade que os indivíduos estabelecem entre si enquanto iguais possuidores de  
mercadorias de mesmo valor, não considera a articulação da produção ao mesmo  
tempo que a pressupõe. Que um trocador seja trabalhador que, desprovido de meios  
de produção, só é capaz de alienar-se sua própria corporeidade e outro seja capitalista,  
ansioso por usufruir de capacidade de trabalho no processo produtivo é, considerada  
a relação jurídica, algo estranho a ela justamente porque tratam-se de determinações  
que escapam aos domínios da relação de troca. A consciência jurídica, afinal, limita-se  
a reconhecer o que se revela na circulação, sendo-lhe indiferente todo o resto.  
Ao passar da circulação rumo à produção, onde se produz o acréscimo de valor  
às custas do mais-trabalho e diante da qual o olhar jurídico se retrai, a coisa muda de  
figura:  
Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de  
mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções,  
conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do  
trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação,  
ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae  
[personagens teatrais]. O antigo possuidor de dinheiro se apresenta  
agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu  
trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido  
por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe  
sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar  
além da... esfola (MARX, 2017a, p. 251).  
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nova fase  
João Lucas Sales Prates  
Longe do Éden que se coloca na circulação, os livres trocadores contemplados  
pelo direito como iguais possuidores de mercadorias são substituídos pelas figuras  
concretas de trabalhador e capitalista. Note-se que, uma vez mais, a esfera da troca  
de mercadorias, ao mesmo tempo em que dita os limites da concepção jurídica, é  
apontada como referência da economia vulgar para julgar a sociedade do capital, o  
que reforça a aproximação entre direito e apologética observada na questão do salário.  
Diante do campo da produção, o livre-cambista vulgar e o elemento jurídico se retraem  
precisamente onde se passa o movimento essencial à produção de mais valor mediante  
o consumo da força de trabalho. Os possuidores de mercadorias da circulação recebem  
máscaras dramáticas menos pomposas; sua igualdade de proprietários esvai-se  
conforme a natureza específica da mercadoria que cada um levou à troca determina  
suas respectivas funções na produção. Aquele que levou ao mercado dinheiro tendo  
em vista fazer mais dinheiro atua como capitalista, isto é, capital personificado26; o  
segundo, que vendeu sua própria capacidade de trabalho, subitamente encontra-se no  
papel de trabalhador. No entanto, para usar a dicção dos Grundrisse, essa diferença é,  
considerada a relação jurídica, algo que se coloca fora desse. Coloca-se fora da relação  
jurídica justamente na medida em que é algo que remete para além das determinações  
simples da relação de troca.  
Outra vez, a relação entre o direito e o âmbito da circulação prova-se uma chave  
importante para interpretar-se a afirmação marxiana segundo a qual a inversão  
presente na categoria salário oferece as bases para as representações jurídicas de  
trabalhador e capitalista ao mesmo tempo que as oferece para ilusões de liberdade e  
concepções apologéticas. Conquanto ilusórios, porque apreendidos unilateralmente e  
tomados em sua abstração e pureza como parâmetro para julgar a sociedade do capital  
pela apologética, os momentos de liberdade e igualdade do intercâmbio entre trabalho  
e capital na circulação, elaborados juridicamente, são ao mesmo tempo algo que diz  
respeito à própria gênese do direito e uma necessidade imanente à reprodução da  
relação capital.  
A expressão irracional do preço do trabalho e sua aparência que oculta a  
exploração do mais-valor não são simplesmente trapaças capitalistas: encontram  
26  
“Como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua  
pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro. O conteúdo objetivo  
daquela circulação a valorização do valor é sua finalidade subjetiva, e é somente enquanto a  
apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo de suas operações que ele funciona como  
capitalista ou capital personificado, dotado de vontade e consciência (MARX, 2017a, p. 229).  
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lastro, inclusive, na atuação dos possuidores de mercadorias que se coloca como  
necessária à compra e venda da força de trabalho, e no reconhecimento jurídico disso  
na igualdade jurídica. Na esfera da circulação e da concorrência, o trabalhador se  
relaciona com sua força de trabalho como uma mercadoria. Ele atua, em razão das  
próprias leis imanentes da troca de mercadorias, que se desenvolvem livremente no  
modo de produção capitalista, como um proprietário. Não tem lugar aqui simplesmente  
uma ilusão mesquinha do trabalhador; trata-se de algo que se coloca efetivamente na  
sociedade civil-burguesa.  
É nesse sentido que a forma invertida do salário oferece as bases para as  
representações jurídicas, que aparecem ao lado das ilusões de liberdade, mistificações  
e tolices apologéticas da economia vulgar. Uma vez que a relação de troca se afirma  
como ponto de partida para o desenvolvimento das determinações jurídicas, as formas  
de consciência que se erguem a partir do direito tomam como pressuposto os  
momentos de liberdade e igualdade da troca. Trata-se de uma liberdade e uma  
igualdade que, conquanto não sejam propriamente falsas, correspondem aos  
momentos mais abstratos da circulação no modo de produção capitalista, onde a figura  
medular do capital com a exploração do mais-valor está oculta. Diante da forma do  
salário, portanto, o direito aparece ao lado das apreensões mais apologéticas da  
sociedade do capital precisamente porque um dos topos prediletos da apologética  
burguesa é julgar essa formação social a partir dos momentos mais abstratos da troca,  
em que as contradições do modo de produção capitalistas estão apagadas em favor  
da liberdade e da igualdade.  
Desse modo, há uma relação bastante forte entre o direito, a forma do salário,  
e o assalariamento. A consciência jurídica, ao passo que se conforma à esfera da  
circulação, é afim à expressão irracional preço do trabalho pois a mistificação operada  
por esta só se revela na produção, longe dos olhos jurídicos. Ao mesmo tempo, o  
direito, na figura do contrato e do direito de propriedade do trabalhador, é importante  
à reprodução do trabalho enquanto trabalho assalariado pois realiza uma mediação  
em que a venda da força de trabalho se dá sempre de forma transitória. Dessa maneira,  
ao mesmo tempo em que reconhece a mistificação da forma do salário, liga-se à  
própria reprodução da relação capital e da valorização do valor ao mediar a compra e  
venda da força de trabalho.  
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Conclusão  
Ante todo o exposto, sentimo-nos habilitados a concluir que existe, em O  
Capital, uma distinção qualitativa entre salário e valor da força de trabalho.  
Precisamente, aquele é uma forma de manifestação irracional e invertida para este  
último. No salário, o valor da força de trabalho aparece como preço do trabalho,  
expressão em que o conceito de valor se converteu em seu contrário e toda jornada  
de trabalho aparece como paga, ocultando o mais-valor.  
Diante dessa forma de aparecimento, a tarefa da ciência, segundo Marx, é  
desvelar seu conteúdo oculto, a relação essencial que reside por trás da aparência  
invertida e os nexos internos entre ambas27. Além de simplesmente mostrar o que a  
manifestação esconde, é necessário explicar por que aquele conteúdo oculto se  
apresenta precisamente daquela maneira. Nessa esteira, de maneira coerente com o  
seu próprio estatuto ideológico em cujo seio as categorias são formas de ser,  
determinações de existência , Marx em O Capital trata sempre a irracionalidade da  
expressão do salário como uma contradição com suas próprias razões de ser dadas  
não somente no pensamento, mas também na realidade. A irracionalidade presente na  
aparência invertida do salário corresponde à irracionalidade existente na superfície da  
sociedade civil-burguesa, onde a figura medular do capital é oculta e somente  
pressuposta, e o movimento real é efetivamente regido por figuras irracionais.  
Ao mesmo tempo, a relação da expressão irracional do salário com o direito,  
embora tratada esparsamente por Marx, oferece fundamentos valiosos para a  
compreensão da sua crítica ao direito. A investigação da razão por trás da aproximação  
entre o direito e as posições apologéticas quanto à irracionalidade da expressão do  
salário revela um tratamento bastante coeso da questão do direito em distintos textos  
de crítica da economia política marxiana: o cotejo dos textos do Grundrisse com O  
capital revela que em ambas obras Marx relaciona o direito à circulação de  
mercadorias, sendo o desenvolvimento da troca apontado como base histórica efetiva  
para a possibilidade do desenvolvimento de determinações jurídicas. Em razão disso,  
por um lado, a expressão preço do trabalho, considerada a relação de troca, não parece  
ser mais irracional do que o preço do algodão, pelo que uma consciência que se coloca  
27 De resto, com a forma de manifestação “valor e preço do trabalho” ou “salário”, em contraste com a  
relação essencial que se manifesta, isto é, com o valor e o preço da força de trabalho, ocorre o mesmo  
que com todas as formas de manifestação e seu fundo oculto. As primeiras se reproduzem de modo  
imediatamente espontâneo, como formas comuns e correntes de pensamento; o segundo tem de ser  
primeiramente descoberto pela ciência.  
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a partir da circulação não haveria motivos para dela desconfiar. Noutro giro, as  
determinações de liberdade e igualdade que se afirmam na circulação que traz  
consigo os direitos inatos do homem e o mútuo reconhecimento da condição de  
proprietário como condição para o contrato , pelo direito reconhecidas e elaboradas,  
são tomadas em sua pureza pelos apologistas da sociedade do capital para julgá-la,  
justamente em razão da sua abstração que apaga a diferença específica desse modo  
de produção e suas contradições essenciais.  
Por fim, cumpre registrar que, tratando-se de um autor para o qual categorias  
expressam formas de ser, essas ilusões de liberdade e apologias ao lado das quais  
aparece o direito, conquanto formas de consciência mistificadoras, não são  
simplesmente trapaças ou resultados da inaptidão intelectual dos juristas. Trata-se, em  
verdade, de determinações que remetem à própria gênese do direito e de sua  
mediação na reprodução da relação-capital, para a qual é imperativo que o trabalhador  
no intercâmbio com o capitalista se relacione com sua capacidade de trabalho sem  
jamais renunciar aos seus direitos sobre ela.  
Porém, mesmo nos seus instantes de atuação mais enfática, como quando a  
titularidade jurídica da capacidade de trabalho se coloca como um aspecto necessário  
à reprodução do assalariamento e da relação-capital, o direito jamais é o central, e  
passa longe de ser o principal objeto das considerações marxianas. Embora o direito  
muitas vezes tenha um papel ativo sobre a realidade, não é ele quem engendra os  
objetos de seu reconhecimento. Sua atuação, afinal, coloca-se sobretudo como  
reconhecimento oficial do fato, ou seja, como uma determinada recepção de  
fenômenos que, antes de existirem juridicamente, já estavam dados faticamente28.  
Marx, portanto, realiza uma crítica mordaz ao salário. Não se trata de uma crítica  
parcial, uma espécie de grito piedoso por melhores salários, tampouco um lamento  
sincero por um estado momentâneo do nível dos salários, senão de um ataque decisivo  
contra o salário enquanto categoria, como uma “forma de ser” típica de uma sociedade  
atravessada pelo estranhamento da relação-capital.  
Isso não autoriza nenhum cinismo não se trata de simplesmente dar de  
ombros à massa inculta que ignora o caráter irracional da categoria salário e  
abandonar qualquer reivindicação que passe pela forma do salário. Antes, um dos mais  
28  
“O ouro e a prata só são aceitáveis de direito porque o são de fato, e o são de fato porque a  
organização atual da indústria necessita de um agente universal de troca. O Direito não é mais que o  
reconhecimento oficial do fato” (MARX, 1989b, p. 86). Para uma análise detalhada desta passagem e  
do papel ativo do direito sobre a realidade a partir de O Capital, ver SARTORI, 2021.  
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decisivos desafios de sua crítica consiste precisamente em compreender de que  
maneira uma categoria carente de conceito é possível, isto é, dotada de objetividade  
e movimento no real. Observa-se que sua natureza mistificadora não se deve a uma  
espécie de desvio cognitivo geral, mas reside em e se deve ao real, à efetividade em  
que a irracionalidade é ao mesmo tempo resultado e pressuposto necessários das  
relações de produção vigentes, do próprio modo como a vida é produzida naquela  
sociedade.  
Em inúmeras ocasiões e de modo mais detido nos capítulos em que trata das  
lutas pela regulamentação da jornada de trabalho, do desenvolvimento da maquinaria,  
do exército industrial de reserva, da chamada acumulação primitiva etc. Marx  
denuncia rigorosamente as condições de trabalho e a miserabilidade dos rendimentos  
das famílias operárias de sua época e de anos passados, em muitos casos, inclusive,  
rebaixados mesmo além do nível considerado “normal”, necessário para a reprodução  
da força de trabalho. Disso não decorre que se deva aceitar a categoria salário,  
simplesmente incorporá-lo ao léxico da crítica da economia política como uma  
categoria inocente. Pelo contrário: a crítica das condições de vida da população  
trabalhadora conduz à crítica do salário enquanto tal em sua expressão carente de  
conceito e mistificadora, indissociavelmente entranhada às relações que produzem o  
trabalhador enquanto um miserável.  
Dessa maneira, a crítica da economia política não pode simplesmente valer-se  
dela enquanto tal, sob pena de incorrer na piedade castíssima que simplesmente clama  
por melhores salários sem compreender os nexos internos dessa forma de  
manifestação com os fundamentos da sociedade capitalista, ao modo do socialismo  
vulgar29. Mesmo quando Marx emprega o termo salário para abordar tal ou qual tema,  
ele o faz com ressalvas. Por exemplo, sua adoção do termo salário se faz útil sobretudo  
ao explicar seus movimentos, uma vez que o movimento efetivo do salário, que se  
processa na superfície da sociedade produtora de mercadorias, é justamente regido  
por essas irracionalidades.  
29  
A título de exemplo, pode-se ver na crítica do programa de Gotha como Marx (2012, pp. 28-29)  
condena Lassalle por empregar ingenuamente a categoria salário. “Desde a morte de Lassalle, impôs-  
se em nosso partido o ponto de vista científico de que o salário não é o que aparenta ser, isto é, o valor  
do trabalho ou seu preço, mas apenas uma forma disfarçada do valor ou preço da força de trabalho.  
[...] E depois que esse ponto de vista se estabeleceu cada vez mais em nosso partido, retrocede-se  
agora aos dogmas de Lassalle, mesmo que hoje seja impossível ignorar que Lassalle não sabia o que  
era o salário, senão que, seguindo os economistas burgueses, tomava a aparência da coisa por sua  
essência”.  
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Por fim, se a tarefa da ciência consiste, como aponta Marx, em desvelar o  
conteúdo essencial das aparências investidas, esperamos tê-lo logrado nessa  
exposição.  
Referências bibliográficas:  
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SAN MARTINS, Fábio. A forma-salário no pensamento econômico de Marx. 2016. Tese  
(Doutorado) apresentado ao Setor de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade  
Federal do Paraná, Curitiba, 2016.  
SARTORI, Vitor. Acerca da categoria de “pessoa” e de sua relação com o processo de  
reificação em "O capital" de Karl Marx: um debate com Pachukanis. Cadernos De  
Ética E Filosofia Política, v.1 n. 14, pp. 06-37, maio/2019b.  
_____. Acerca do sujeito, da pessoa e do Direito nos Grundrisse. Sofia, v. 11 n. 1, pp.  
96-123, maio/2022.  
_____. Fetichismo, transações jurídicas, socialismo vulgar e capital portador de juros;  
o livro III de O capital diante do papel ativo do Direito. Revista da Sociedade  
Brasileira de Economia Política, n. 52, Ano XX, pp. 124-155, maio/2019a.  
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v. 30 n.1, pp. 11-35, maio/2021.  
_____. Marx e o sujeito de direito? A leitura dos Grundrisse diante da leitura  
pachukaniana do autor de O Capital. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais,  
v. 7 n.2, pp. 311-363, maio-agosto/2020.  
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João Lucas Sales Prates  
Como citar:  
PRATES, João Lucas Sales. Forma de aparecimento que torna invisível a relação efetiva  
e mostra precisamente o oposto dessa relação: Marx diante do salário e a crítica  
marxiana ao direito. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 267-304; jan.-jun.,  
2024  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 267-304 jan.-jun., 2024  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.711  
De pré-marxiano a propriamente marxiano: o  
tratamento do crime e da punição em dois  
momentos da obra de Marx  
From pre-Marxian to properly Marxian: the treatment of  
crime and punishment in two moments of Marx's work  
Nayara Rodrigues Medrado*  
Resumo: Buscaremos, neste artigo, apontar as  
diferenças gerais na forma de compreensão do  
crime e da punição entre um Marx pré-marxiano  
Abstract: In this article, we will seek to point out  
the general differences in the way crime and  
punishment are understood between a pre-  
Marxian Marx and a properly Marxian Marx. For  
this purpose, we will privilege the analysis of  
texts published by the author in the Gazeta  
Renana in 1842, in an effort comparative with  
later works, located between 1844 and 1853.  
e
um  
Marx  
propriamente  
marxiano.  
Privilegiaremos, para isso, a análise de textos  
publicados pelo autor na Gazeta Renana em  
1842, em esforço comparativo com obras  
posteriores, situadas entre 1844 e 1853.  
Palavras-chave: Marx; Crime; Punição.  
Keywords: Marx; Crime; Punishment.  
Introdução  
Abordando dois momentos centrais da trajetória intelectual de Marx, marcada,  
na concepção de Chasin, pela passagem de uma determinação ontopositiva da  
politicidade para uma determinação ontonegativa, buscaremos analisar neste artigo,  
adaptação do primeiro capítulo de nossa dissertação de Mestrado, as implicações  
dessa viragem sobre as concepções de crime e de punição no pensamento do autor  
alemão. Para isso, tomaremos como referenciais importantes de análise alguns dos  
textos publicados por Marx em 1842 n’A Gazeta Renana, com destaque para aquele  
que recebeu o título de Debates acerca da lei sobre o furto de lenha, e, de outro lado,  
passagens sobre o tema constantes em A Sagrada Família (escrita em 1844 e  
publicada pela primeira vez em 1845), n’A Ideologia Alemã (escrita entre 1845 e  
1846 e publicada apenas em 1932) e no artigo Capital Punishment, publicado em  
1853 no Jornal The New York Tribune.  
*
Mestre em Direito em Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Assistente da Universidade  
Federal de Juiz de Fora campus Governador Valadares.  
Verinotio  
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Nayara Rodrigues Medrado  
Buscaremos demonstrar, a partir dessas obras, como, à semelhança do que  
ocorre com as noções de Marx sobre a política, o Estado e o direito, há uma mudança  
drástica no tratamento do crime e da punição, com a transição de um Marx ainda  
bastante influenciado, com ressalvas e particularidades, pela teorização hegeliana a  
um Marx que, nas concepções sobre direito e política, rompe de forma explícita com  
os fundamentos da obra de Hegel. Para tanto, passaremos, inicialmente, por uma  
caracterização geral de cada um desses momentos – o do Marx “pré-marxiano” e o do  
Marx “propriamente marxiano” – abordando traços gerais da compreensão sobre a  
politicidade, sobre o Estado e sobre o direito, para, a partir daí, ter condições de  
apreender as decorrências dessa virada nas determinações do crime e da punição no  
pensamento do autor.  
Marx pré-marxiano: do conceito à crítica do realmente existente  
As obras juvenis de Marx produzidas entre 1841 e meados de 1843, que  
englobam sua tese doutoral e os seus artigos publicados na Gazeta Renana, seriam  
representativas daquilo que Chasin chamou de um “Marx pré-marxiano” (CHASIN,  
2009, p. 41), na medida em que os pontos fundamentais que constituiriam seu  
pensamento maduro ainda não estavam definitivamente colocados. Estamos falando  
de um Marx cuja reflexão, fortemente influenciada pelo pensamento hegeliano Marx  
compunha a corrente dos chamados “neo-hegelianos de esquerda” – estava “confinada  
ao quadro da autoconsciencialidade”, sendo “por esta estruturada” (CHASIN, 2009, p.  
47).  
Em uma Alemanha marcada pelo atraso econômico e político comparativamente  
com outros países europeus, predominava o caráter idealista e especulativo daquilo  
que se convencionou chamar de “filosofia clássica alemã”, que teve em Hegel seu  
expoente máximo (ENGELS, 2023). O legado hegeliano era disputado basicamente  
entre os chamados velhos hegelianos (ou hegelianos de direita) e os jovens hegelianos  
(ou hegelianos de esquerda). Enquanto o primeiro grupo enfatizava a máxima  
hegeliana "o racional é real" como uma forma de chancela ao efetivamente existente  
(em especial, do Estado Prussiano), o segundo grupo destacava a segunda parte da  
frase "o real é racional" , de modo a denunciar a irracionalidade do realmente  
existente. Ainda, enquanto o primeiro grupo privilegiava a construção sistêmica do  
pensamento do Hegel, sustentando o Estado como realização da razão na história e o  
Estado Prussiano, por consequência, como "fim da história", os jovens hegelianos  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
enfocavam sobretudo o método hegeliano, destacando o caráter negativo da dialética  
e, portanto, a perecibilidade de uma realidade irracional (ASSUNÇÃO, 2004, p. 09).  
Marx, à época estudante da Universidade de Berlim, tendo sido orientado por  
Bruno Bauer (1809-1882), um jovem hegeliano destacado por suas críticas à religião,  
compunha o segundo grupo de herdeiros da tradição hegeliana, embora já mantivesse  
significativas diferenças em relação aos demais integrantes da vertente, que não  
formava exatamente um bloco monolítico de pensadores absolutamente concordantes  
entre si (CHASIN, 2009, p. 47)1. O autor alemão, portanto, era também herdeiro e  
tributário de um tipo de filosofia que se movia sobre os terrenos da abstração e da  
especulação, sendo sua filosofia marcada, como prefere classificar Chasin (2009, p.  
45), por um tipo de “idealismo ativo”. O próprio Marx descreve aquela tradição  
filosófica, dotada de uma “visão mais ideal e mais profunda”, e que pode ser tida como  
o ponto de chegada da filosofia clássica alemã, e da qual ele era, com suas  
peculiaridades, tributário. Ela “considera o Estado como um grande organismo no qual  
a liberdade jurídica, ética e política devem alcançar a própria realização, e no qual o  
cidadão singular, obedecendo às leis do Estado, obedece somente às leis naturais da  
sua própria razão, da razão humana. Sapienti sat(MARX, 1998b, p. 244). A essa  
tradição, Marx agregava uma “dimensão crítica particularizadora, que o distingue tanto  
de Hegel quanto dos neo-hegelianos, em especial no que tange à problemática das  
relações entre filosofia e mundo” (CHASIN, 2009, p. 47): a filosofia deixa de ser algo  
metafísico e isolado para imbricar-se com a própria vida, transformando-a e sendo  
transformada por ela. Tratava-se, para Marx, de realizar a filosofia (ASSUNÇÃO, 2004,  
p. 14)  
De qualquer modo, o pensamento político desse Marx pré-marxiano que se  
torna, em 1842, editor-chefe da Gazeta Renana é marcado, na acepção de Chasin, por  
uma determinação ontopositiva da politicidade. A política e o Estado são concebidos  
como locus da própria “realização do humano e de sua racionalidade”, na medida em  
que constituiriam um atributo intrínseco, perene e eterno do ser social: “politicidade  
1
“Marx emerge como pensador no momento que há uma claríssima disputa pelo legado monumental  
que é a obra de Hegel. Desde o princípio, mostra simpatia pelos autores da esquerda hegeliana e muito  
especialmente para com Feuerbach. Mas, mesmo quando se soma às fileiras da esquerda hegeliana,  
tem uma atitude diferenciada que remetia a filosofia hegeliana à realidade prussiana (e a  
incompreensões do próprio método pelo velho filósofo) e mantinha uma atitude crítica em relação a ela.  
Já nos textos jornalísticos podemos encontrar críticas sociais radicais que inexistem em Hegel: isso se  
deve ao desenvolvimento burguês na Alemanha pós-Hegel, à influência de M. Hess e do socialismo  
francês sobre Marx e à recusa deste das soluções hegelianas para o conflito Estado-sociedade civil”  
(ASSUNÇÃO, 2004, p. 09).  
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como atributo perene, positivamente indissociável da autêntica entificação humana,  
portanto, constitutiva do gênero, de sorte que orgânica e essencial em todas as suas  
atualizações” (CHASIN, 2013, p. 43). Por sua vez, o Estado é concebido como esfera  
universal, “encarnação da razão e entidade compelida ao progresso pela crítica  
filosófica, ferramenta espiritual na eliminação das irracionalidades do real pela  
determinação de cada existente pela essência, de toda realidade particular pelo seu  
conceito” (CHASIN, 2009, p. 50).  
Dessa forma, o tom crítico de Marx em seus textos da Gazeta Renana não se  
dirige ao Estado em si, mas ao Estado realmente existente, às distorções da realidade  
do Estado Prussiano, que o desvirtuariam dos atributos originais do “conceito” ou da  
“ideia” de Estado enquanto manifestação do Espírito. Trata-se, para Eidt (1998, p.  
146), de uma contraposição do “estado racional” (ou do conceito de estado) ao  
“estado reacionário” (o estado realmente existente).  
O direito, como emanação desse Estado, também teria por atributos  
fundamentais a racionalidade e a universalidade, sendo a esfera que, criada pelo  
homem para mediar os conflitos surgidos no confronto de infinitos interesses  
particulares, instauraria a liberdade e a igualdade, tendo sempre como base as  
necessidades humanas, e não um objeto externo qualquer tal como a propriedade  
privada (EIDT, 1998, p. 148). Objetivo e racional, e confundindo-se mesmo com a  
existência da liberdade, o direito seria capaz de frear tanto os ímpetos autoritários de  
Estados efetivamente existentes (como no caso do Estado prussiano da época) quanto  
o anseio dos estamentos em impor suas pretensões individualistas.  
Desse modo, o Marx do início dos anos 1840, redator e posteriormente editor-  
chefe de um jornal financiado pela burguesia liberal renana, estava comprometido com  
a reforma do Estado Prussiano que partisse de uma matriz democrata radical e se  
orientasse no sentido da construção de um Estado de direito que superasse o  
absolutismo prussiano. Basicamente, portanto, o Marx da Gazeta Renana “procurou  
resolver problemas socioeconômicos pelo recurso ao formato racional do estado  
moderno e da universalidade do direito” (CHASIN, 2013, p. 43).  
A ruptura definitiva com uma determinação ontopositiva da politicidade apenas  
se daria com a escrita de Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução, em  
1843. A partir daí, no entanto, a mudança seria permanente, e a determinação agora  
negativa da política constituiria uma marca do pensamento de Marx até o fim de sua  
vida.  
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nova fase  
De pré-marxiano a propriamente marxiano  
A Gazeta Renana: o Marx neo-hegeliano e a ontopositividade da pena  
A Gazeta Renana foi um veículo eminentemente liberal do qual Marx participou  
como simples colaborador e, posteriormente, como editor-chefe. Ainda fortemente  
influenciado pela herança hegeliana, Marx trazia, nos seus escritos para a gazeta, ainda  
uma visão ontopositiva do direito e do Estado (CHASIN, 2009), com a qual apenas  
romperá posteriormente, nos artigos dos Anais Franco-Alemães. Essa visão  
ontopositiva sobre o Estado e o direito tem uma repercussão direta na forma como  
Marx, nesse momento de sua trajetória intelectual, tematiza a questão do crime e da  
punição.  
Dos textos da Gazeta Renana, o Debatten über das Holzdiebstahlsgesetz,  
traduzido por Celso Eidt como Debates acerca da lei sobre o furto de lenha e mais  
recentemente pela Boitempo sob o título de “Os Despossuídos”, é o que, pela  
pertinência temática, nos interessa em especial. Publicado em 1842, o Debates sobre  
a lei do furto de lenha é composto por uma série de comentários, escritos por Marx e  
divididos em vários artigos, em relação a uma proposta de lei submetida à VI Dieta  
Renana. A proposta legislativa tinha o objetivo de equiparar os atos de subtração de  
lenha caída e de recolha de lenha seca sem autorização do proprietário da floresta ao  
ato de furtar madeira verde em caule, elevando os dois primeiros à categoria de crime  
de furto. Com isso, a coleta de madeira empreendida pela população pobre da região  
da Renânia passaria a ser sancionada penalmente, em um contexto de aumento  
contínuo do pauperismo rural e de crescente utilização da madeira, por parte da  
população empobrecida (até então tidos como simples possuidores da madeira  
recolhida), para fins comerciais (BENSAÏD, 2017, p. 16).  
Marx, opondo-se à aprovação da lei, lança uma série de argumentos contra a  
pretensão do projeto. Dentre eles, destacam-se: 1) a lenha caída já é lenha cortada e,  
portanto, não faz parte do organismo árvore, sendo resultado não de um juízo  
arbitrário emitido pelo recolhedor contra seu proprietário, mas sim de um juízo já  
emitido pela própria árvore; 2) a lei tem o dever universal de dizer a verdade, guiando-  
se pela natureza jurídica das coisas, e viola esse dever, sacrificando o pobre a uma  
“mentira legal” e impedindo que ele alcance uma posição real de direitos, quando  
equipara duas condutas (furtar madeira e ajuntar madeira caída no chão) que são  
essencialmente diferentes, tanto em relação ao conteúdo quanto em relação à forma  
das ações; e 3) a aplicação do rigor penal a um caso indevido importa na perda da  
credibilidade da lei (MARX, 2017a, p. 91).  
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Contra um Estado que transforma a desgraça em crime e o crime em desgraça,  
Marx defende que o problema material concreto dos camponeses empobrecidos seja  
resolvido “politicamente”, em consonância com a razão do Estado e com a moralidade  
pública. Contra um Estado que viola seu dever incondicional de “não transformar em  
crime o que foi convertido em contravenção unicamente por circunstâncias”, Marx  
advoga a necessidade de um Estado “humano, rico e generoso”, que conceda ao  
direito uma “esfera positiva de ação”, que, privando todo impulso jurídico de sua  
essência negativa, não apenas afastará a “impossibilidade de que os integrantes de  
uma classe pertençam de direito a uma esfera mais elevada, mas elevará sua própria  
classe a uma possibilidade real de direitos” (MARX, 2017a, p. 91).  
Fica nítido aqui como Marx, nesse momento um neo-hegeliano com  
particularidades próprias, especialmente no que se refere “à crítica à religião, aos  
propósitos políticos e ao modo de encarar a prática teórica” (CHASIN, 2013, p. 44),  
parte de uma visão ontopositiva da politicidade, “uma das inclinações mais fortes e  
características do movimento dos jovens hegelianos” (VAISMAN; ALVES, 2008, p. 49).  
Justamente pelo fato de a política ser concebida como pressuposto inarredável da  
própria sociabilidade humana, como a atividade humana mais elevada realizada no  
âmbito da comunidade estatal, é que o problema dos “despossuídos” – de direitos e  
de condições dignas de existência – deve ser resolvido “politicamente”, a partir de sua  
elevação à condição real de detenção e de exercício de direitos ou a partir daquilo que  
Marx chamou de “leis e medidas preventivas racionais”.  
Naquilo que nos interessa mais diretamente, embora por derivação e em íntima  
conexão com os demais temas colocados, o questionamento sobre a violação frente a  
um considerado dever legal de dizer a verdade é também, em grande medida,  
fundamentado em uma visão ontopositiva da pena. A punição para o jovem Marx de  
que tratamos aqui, quando aplicada onde e como deve ser aplicada, representa o êxito  
do direito em sua liberdade e universalidade. Por essa razão, o modo como a  
população enxerga a lei e, mais especificamente, a sua aplicação concreta têm, para  
ele, uma significativa relevância.  
Rompendo com qualquer concepção que enxergue o crime como uma violação  
do indivíduo (MARX, 2017a, p. 113), o Marx pré-marxiano da Gazeta Renana considera  
o delito essencialmente como uma violação do direito em sua racionalidade, liberdade  
e dignidade. Nesse sentido, “a essência criminosa da ação não é o ataque à madeira  
material, mas o ataque ao veio público da madeira, ao direito à propriedade como tal,  
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consistindo na realização da intenção contrária ao direito” (MARX, 2017a, p. 114).  
Por isso, a pena surge como “a harmonização do crime com a razão do Estado,  
sendo, por consequência, um direito do Estado, e um direito tal que ele não pode  
cedê-lo a agentes privados, do mesmo modo que um indivíduo não pode ceder a outro  
sua consciência” (MARX, 2017a, p. 115). A pena não pressupõe o exercício de um  
poder punitivo que viola a liberdade do cidadão. Ao contrário, ela própria é exercício  
de liberdade, na medida em que significa “a restauração do direito”, “a vitória do  
direito contra os atentados ao direito” (MARX, 2017a, p. 113).  
A punição estatal representa, nesse sentido, uma espécie de reafirmação do  
direito a partir da anulação da intenção expressa no crime. O direito, assim, apesar de  
violado pelo crime, permanece vigente e tem sua racionalidade e sua universalidade  
reforçados. Ou, colocado nos termos do próprio Marx, o direito, que tem como atributo  
a imperecibilidade, determina e explicita a perecibilidade do crime: “o Estado pode e  
tem de dizer: eu garanto o direito contra todas as contingências. Para mim, a única  
coisa imperecível é o direito, e é por isso que lhe provo a perecibilidade do crime,  
anulando-o” (MARX, 2017a, p. 119). Com isso, afirmando sua própria  
imperecibilidade, o Estado aproxima-se, uma vez mais, de seu conceito, de sua própria  
realidade efetiva.  
Ao mesmo tempo, a pena possibilita a reconciliação do cidadão com o Estado,  
do crime com a lei, algo muito caro, na medida em que essa reconciliação é condição  
para a própria sustentação do Estado (Racional) enquanto comunidade orgânica, locus  
por excelência da sociabilidade humana. Como interpreta Eidt (1998, p. 176), o  
Estado, para o Marx da Gazeta Renana, é definido “como um organismo no qual se  
realiza a liberdade racional dos seres humanos enquanto seres sociais; a razão reina  
livre no Estado”. Cada cidadão é membro de um organismo vivo que recebe o nome  
de Estado, no qual exerce a atividade humana mais elevada a atividade política e  
cuja unidade resulta da diversidade de seus membros, que são, por intermédio desse  
organismo, elevados à condição de igualdade:  
[...] O Estado, portanto, verá também alguém que violou a lei da  
madeira como uma pessoa, como um membro vivo, no qual circula o  
seu sangue, um soldado que defende a pátria, uma testemunha cuja  
voz deve ter validade diante do tribunal, um membro da comunidade  
que deve poder exercer funções públicas, um chefe de família cuja  
existência é santificada, acima de tudo um cidadão do Estado, e o  
Estado não excluirá levianamente um dos seus membros de todas  
essas determinações, pois o Estado amputa a si mesmo toda vez que  
transforma um cidadão em criminoso (MARX, 2017a, p. 92).  
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Assim, ao contrário do interesse privado, que “converte a lei em apanhador de  
ratos que quer exterminar a praga, pois não é um pesquisador da natureza e, por isso,  
vê ratos apenas como praga”, o Estado, que aqui emerge como “comunidade”  
(VAISMAN, ALVES, 2009, p. 51), pressupõe uma ligação vital com todos os seus  
membros, os seus cidadãos. Por isso, o violador de suas leis – aquele que “cortou  
autocraticamente um nervo” – não pode ser tratado como simples praga, como um  
inimigo a ser aniquilado, na medida em que isso representaria a aniquilação, a  
“amputação” do próprio Estado. Por sua ligação vital com os cidadãos, o Estado, ao  
mesmo tempo que tem o dever de aplicar a pena, em uma reafirmação do direito  
diante de uma violação, deve fazê-lo em respeito à dignidade do cidadão: “o Estado  
não só tem os recursos para agir de maneira adequada tanto à sua razão,  
universalidade e dignidade quanto ao direito, à vida e à propriedade do cidadão  
incriminado, mas tem também o dever incondicional de ter esses recursos e aplicá-los”  
(MARX, 2017a, p. 98).  
De tudo isso se conclui que a pena constitui, a um só tempo, um direito e um  
dever do Estado e que, para além disso, o cidadão, como membro organicamente  
ligado a este, tem o direito de ver aplicados todos aqueles recursos de que o Estado  
dispõe para o tratamento adequado desse sujeito incriminado quanto ao seu direito,  
à sua vida e à sua propriedade. Mas não é só. Por seu próprio caráter, a pena pública,  
ao mesmo tempo que constitui direito e dever do Estado, intransmissível a agentes  
privados, consiste, assim como “todo direito público do Estado contra um criminoso”,  
concomitantemente em um “direito público do criminoso” (MARX, 2017a, p. 115).  
É bastante evidente a influência da teoria hegeliana sobre a concepção de crime  
e de pena do Marx da Gazeta Renana. Quanto à ideia de pena como reconciliação do  
criminoso com o Estado, e do crime com a lei, Hegel sustenta a repressão penal como  
“reconciliação do direito consigo mesmo na pena” (HEGEL, 1997, p. 196). O crime  
aparece, em Hegel, como uma “violação do direito enquanto direito”, ao passo que a  
pena, de forma muito similar ao tratamento marxiano, surge como “negação da  
negação”, a partir da anulação do crime. Mas essa repressão expressa sob a forma de  
negação da negação não se confunde com mera vingança esta última marcada pela  
subjetividade e pela contingência –, mas, antes, é a reconciliação da “realidade do  
direito” com ela mesma por meio da pena. Do ponto de vista objetivo, essa  
reconciliação se dá justamente a partir da anulação do crime, por meio da qual a lei  
se restabelece e realiza sua validade. Do ponto de vista subjetivo, há a reconciliação  
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do criminoso (cidadão do Estado) com a lei, por ele conhecida, tida como válida e  
aceita como expressão de sua própria liberdade (HEGEL, 1997, p. 196).  
A semelhança dessa compreensão com o entendimento de Marx, já apreensível  
por tudo que se disse até aqui, aparece de forma particularmente explícita no  
tratamento dado, pelo editor-chefe da Gazeta Renana, à Lei de Imprensa. Na coletânea  
Os Debates sobre a liberdade de imprensa e a publicação das discussões da Dieta,  
também integrante da Gazeta Renana, Marx, se opondo à elaboração de uma lei de  
censura e argumentando em defesa de uma lei protetora da liberdade de imprensa,  
afirma que a “lei de imprensa declara a liberdade como a natureza do delinquente” e  
que “o que ele fez contra a liberdade fez contra si mesmo, e esta auto-lesão lhe aparece  
como um castigo, que é para ele o reconhecimento da própria liberdade” (MARX,  
1998a, p. 209): As leis são muito mais as normas positivas, claras e universais, nas  
quais a liberdade adquiri (sic) existência impessoal, teórica e independente do arbítrio  
individual. Um código de leis é a Bíblia da liberdade de um povo (MARX, 1998a, pp.  
209-210).  
Também é presente em Hegel, no que parece uma inspiração adaptada da  
filosofia kantiana, a ideia da pena como direito do criminoso, como algo pressuposto  
na sua própria ação, na sua própria vontade enquanto ser racional. O “criminoso”  
submete-se à pena como quem se submete ao seu próprio direito. Objetivamente, “a  
pena com que se aflige o criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também  
o ser em si da vontade do criminoso, uma maneira da sua liberdade existir, o seu  
direito”. Subjetivamente, em relação ao criminoso, “constitui ela [a pena] um direito,  
está já implicada na sua vontade existente, no seu ato. Porque vem de um ser de razão,  
este ato implica a universalidade que por si mesmo o criminoso reconheceu e à qual  
se deve submeter como ao seu próprio direito” (HEGEL, 1997, p. 89).  
Tanto em Hegel quanto em um Marx pré-marxiano a pena aparece, portanto,  
como uma espécie de compensação frente a uma violação do direito, mas não uma  
compensação qualquer, tal como um castigo taliônico, tampouco como mera  
repressão, mas uma compensação que implica, ao mesmo tempo, em reconciliação. A  
pena, negando a negação, nas palavras de Hegel, ou anulando a violação, na expressão  
do Marx de 1842, surge, nesse sentido, como reafirmação do direito em sua  
racionalidade e em sua universalidade, declarando, em sua imperecibilidade, o caráter  
perecível do crime. Ao mesmo tempo, enquanto o crime representa um arbítrio  
individual contra a universalidade pressuposta no direito (ação contra a liberdade,  
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portanto), a pena representa, para o criminoso, o reconhecimento da própria liberdade  
e a imposição de seu exercício.  
No entanto, se essa formulação leva Hegel a referendar a pena de morte,  
abrindo divergência com o contratualismo de Beccaria (HEGEL, 1984, p. 89), o Marx  
da Gazeta Renana, na particularidade de sua construção teórica, levará o argumento à  
sustentação de um direito consuetudinário dos pobres, enfatizando a degradação do  
direito ao punir camponeses empobrecidos que recolhiam lenha e ao restringir a  
liberdade de imprensa. Disso fica claro como, apesar da influência hegeliana e de seus  
interlocutores entre os herdeiros dessa tradição, Marx, no seu confronto enquanto  
jornalista com os interesses materiais, apresentava já ali uma filosofia própria, uma  
filosofia que se pretendia situada no mundo, e, desde já, uma concepção de direito  
atenta a essa “massa mais baixa, sem posses e elementar”, a quem destina, a ela e só  
a ela, um direito consuetudinário (MARX, 2017a, p. 84).  
Para o Marx pré-marxiano, o mandamento de que o direito expresse a verdade,  
aplicando a pena tão-somente onde ela deve ser aplicada, em conformidade com a  
natureza jurídica das coisas, relaciona-se, de um lado, com o próprio atributo de  
racionalidade do direito, e, de outro, com a necessidade de se assegurar a sua  
credibilidade frente aos cidadãos, membros da comunidade estatal. É nesse sentido  
que Marx argumenta, ainda em favor do reconhecimento da diferenciação entre a  
recolha de lenha caída e o crime de furto de lenha, que “a população vê a pena, mas  
não vê o crime, e justamente por ver a pena onde não há crime não verá crime onde  
houver a pena”. O jovem autor completa o raciocínio dizendo que “ao aplicar a  
categoria de furto onde ela não pode ser aplicada, os senhores a abrandam onde ela  
tem de ser aplicada” (MARX, 2017a, p. 82).  
A pena, portanto, desempenha um papel “retributivo” de reafirmação do direito  
a partir da negação de sua negação, mas o exercício desse papel depende  
invariavelmente da confiança da população no direito, guiado que deve ser, este  
último, pela natureza jurídica das coisas. Se o direito mente, contrariando essa mesma  
natureza, acaba por perder sua credibilidade e, com isso, ocorre a sua própria  
revogação: “Ao negar a diferença entre tipos essencialmente diferentes do mesmo  
crime, os senhores negam o crime como diferença em relação ao direito, revogam o  
próprio direito” (MARX, 2017a, p. 82).  
Fica claro, então, que estamos falando de um Marx que carrega uma crença no  
direito e mais especificamente na pena como pressupostos da realização humana  
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na comunidade ética do Estado, de um Marx que acredita em um direito e em uma  
pena que têm de ser aplicados pelo Estado caso contrário, este estará decretando o  
seu “suicídio”, na medida em que “a desistência de seus deveres não seria mera  
negligência, mas crime” (MARX, 2017a, p. 115). Como o crime representa uma  
diferença em relação ao direito, a pena se apresenta reativamente como êxito do  
direito. É nesse sentido que, dirá Marx, o próprio conceito de crime exige a pena  
(MARX, 2017a, p. 83).  
Daí porque a pena aparece, para o Marx da Gazeta Renana, como dotada de  
uma determinação ontopositiva. As determinações da pena passam por algo um tanto  
mais complexo que uma mera funcionalidade preventiva. Se a politicidade é tida, nesse  
momento, como pressuposto inarredável da própria sociabilidade humana, como a  
mais elevada atividade humana no âmbito do Estado, essa “livre comunidade de  
homens éticos” (MARX, 1998b, p. 235), a pena representa uma mediação fundamental  
num sentido reconciliatório, essencial para a manutenção da organicidade da própria  
comunidade estatal.  
Para Marx, não é possível se falar em uma finalidade “preventiva” da pena, no  
sentido de dissuadir possíveis comportamentos criminosos. A atuação da lei, entendida  
como “inconsciente lei natural da liberdade” transmutada em “lei consciente do  
Estado”, é a posteriori: naqueles casos em que o homem, em sua ação prática,  
desobedece a lei natural da liberdade (aquelas “leis vitais” inerentes ao seu agir,  
inerentes a uma “vida da liberdade”), ela “o obriga a ser livre”, por meio da imposição  
da pena. Só aí ela se torna “lei ativa”, embora antes disso já se constitua como “lei  
verdadeira”:  
Não existem leis preventivas atuais. A lei só previne enquanto  
mandamento. Ela se torna lei ativa apenas quando é transgredida,  
porque é uma lei verdadeira só quando nela a inconsciente lei natural  
da liberdade tornou-se lei consciente do Estado. Lá onde a lei é real,  
ou seja, é a existência da liberdade, ela é a verdadeira existência da  
liberdade humana. As leis não podem prevenir as ações do homem,  
porque elas mesmas são as leis vitais inerentes ao seu agir, as  
projeções conscientes de sua vida. A lei, portanto, fica atrás da vida  
do homem, enquanto vida da liberdade, e só depois de a ação prática  
ter demonstrado que ele não mais obedece à lei natural da liberdade,  
a lei se faz valer enquanto lei do Estado e o obriga a ser livre, assim  
como as leis da física apenas aparecem como algo estranho quando  
minha vida deixou de ser a vida destas leis, quando está doente. Uma  
lei preventiva é, portanto, uma contradição sem sentido (MARX,  
1998a, p. 210).  
Mais que uma finalidade preventiva, então, a pena aparece como algo que  
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pressupõe a liberdade e que coage o cidadão, eventualmente criminoso, a uma vida  
de liberdade. Essa mencionada ontopositividade da pena, no entanto, não pode servir  
de argumento legitimador para uma aplicação desmedida e sem critérios da punição.  
Marx, ao criticar a afirmação do “deputado da nobreza” Eduard Bergh de que a  
“exploração da madeira” ocorreria com frequência pelo fato de a atitude não ser  
considerada crime de furto, o que justificaria a criminalização, afirma que “por essa  
analogia, o mesmo legislador deveria concluir o seguinte: bofetadas são desferidas  
com tanta frequência porque uma bofetada não é considerada assassinato. Decrete-  
se, portanto, que bofetada é assassinato” (MARX, 2017a, p. 78). O argumento parece  
apontar, de um lado, para a já trabalhada necessidade de a lei nesse caso a lei penal  
dizer a verdade, e, de outro, para a desproporcionalidade de se punir, com a mesma  
pena do assassinato, uma bofetada.  
Em defesa de uma proporcionalidade na aplicação da lei penal, Marx afirmará  
que se o conceito de crime exige a pena, a realidade do crime exige uma medida da  
pena, já que “[...] é um fato tão histórico quanto racional que a severidade  
indiscriminada anula o êxito da pena, pois anulou a pena enquanto êxito do direito”  
(MARX, 2017a, p. 82). O limite da pena deve ser o limite do ato: ela deve “aparecer  
ao criminoso como o efeito necessário de seu próprio ato e, por conseguinte, como  
seu próprio ato(MARX, 2017a, p. 83). A medida da pena dependeria, assim, da  
medida do conteúdo violado pelo crime. Se a classificação de determinada conduta  
como crime encontra seu limite na natureza jurídica das coisas, a que cabe ao direito  
meramente reconhecer e proclamar, o modo de aplicação da pena toma por critério-  
limite a avaliação do conteúdo violado pelo crime.  
É também por conferir um viés positivo a essa “pena pública” que o Marx pré-  
marxiano, também em alguma semelhança a Hegel mas utilizando de exemplos  
bastante diversos, vai criticar enfaticamente qualquer pretensão de reduzi-la a uma  
espécie de sanção privada. Em tal situação, afirma, a pena do crime converter-se-ia  
“de uma vitória do direito contra os atentados ao direito em vitória do interesse  
pessoal contra os atentados ao interesse pessoal” (MARX, 2017a, p. 113). A crítica  
remete novamente ao rebaixamento da universalidade do Direito às particularidades  
do interesse privado e da propriedade privada, ou à distorção da lei visando à  
satisfação de interesses de certos estamentos. Como exemplo desse rebaixamento da  
lei ao interesse privado, ele menciona o lucro gerado pela punição: o proprietário  
recebe não apenas a reposição do valor subtraído, mas também o valor da multa e  
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uma “indenização especial”, cabendo ainda a “servidão temporal do devedor” em caso  
de inadimplemento (MARX, 2017a, p. 117).  
Em oposição aos “costumes dos privilegiados”, a ideia de um “direito  
consuetudinário dos pobres” aparece como espécie de resistência a um direito  
reduzido à condição de servo do interesse particular e da propriedade privada. Em seu  
lugar, propõe-se a efetivação de um direito que corresponda ao seu conceito, isto é,  
que seja detentor de um “conteúdo humano” e que acolha não a particularidade dos  
interesses privados, mas que seja expressão da própria generidade humana, que no  
lugar de acolher os privilégios de alguns, afirme o “privilégio do espírito humano”  
(MARX, 1998a, p. 204). Marx aponta, nesse sentido, para a defesa de um direito  
popular, que se coloca ao lado daquelas classes elementares, e democrático, na  
medida em que fundado na satisfação das necessidades humanas universais (EIDT,  
1998, p. 148). Há claramente aqui a defesa de um direito humano este dotado de  
meios racionais e orientado à consagração dos interesses universais em  
contraposição a um “direito animal”, pautado na lógica “prática” dos interesses  
privados e, portanto, contrários à racionalidade e à liberdade próprios ao direito.  
Em resumo, o Marx “pré-marxiano” da Gazeta Renana, como decorrência lógica  
de uma concepção do direito como esfera da racionalidade, da liberdade e da  
universalidade, entendia o crime como uma violação a essa esfera como um todo, e a  
pena como forma possível de reconciliação do crime e do cidadão autor de um crime  
com o direito e com o próprio Estado, entendido como comunidade ética. O próprio  
conceito de crime pressuporia a aplicação da pena, conhecida e aceita pelo criminoso  
como produto de sua própria vontade, no exercício de sua liberdade, como um produto  
necessário de seu ato. A pena aparece como mediação necessária à conservação da  
organicidade da comunidade ética do Estado, daí sua determinação ontopositiva.  
De qualquer forma, Marx apresentava uma perspectiva crítica em relação à  
manipulação desse direito, principalmente no que tange à aplicação da pena, no  
sentido de assegurar privilégios e garantir interesses privados, o que, em sua visão,  
importaria na degradação e no rebaixamento da universalidade do Estado a um  
particularismo egoísta, incompatível com um Estado que almeja a universalidade e a  
racionalidade. Em substituição, Marx defende um direito penal cuja aplicação é dever  
e condição de existência do Estado guiado pela natureza jurídica das coisas e  
concretizado segundo padrões de proporcionalidade da pena.  
Trata-se de uma visão, em suma, ao mesmo tempo ontopositiva e democrático-  
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radical da pena. Ontopositiva porque, como vimos, parte de uma crença na pena como  
mediação do cidadão com o Estado, isto é, do cidadão com a esfera da racionalidade  
e da universalidade, pressupondo a dimensão da politicidade como atributo intrínseco  
do ser social constituído enquanto membro da comunidade estatal. Democrático-  
radical porque reivindica o fim dos particularismos e das arbitrariedades de um direito  
orientado à consagração de privilégios (transformados em direitos), em favor de uma  
aplicação igualitária do direito, guiado por princípios jurídicos e orientado à satisfação  
das necessidades humanas universais. Assim, muito embora Marx, nesse momento de  
seu percurso intelectual, não possa ser taxado simplesmente de “liberal radical”, pelo  
teor democrático de suas reivindicações, não há, decididamente, uma análise  
materialista sobre a pena e sua concatenação com a ordem de coisas que em certa  
medida aí ele começara a perceber e a descrever.  
Marx propriamente marxiano: a determinação ontonegativa da politicidade e  
da pena em 1843-1844  
Chasin destaca a ocorrência, pouco tempo após a saída de Marx da Gazeta  
Renana e de suas correspondências com Arnold Ruge, de uma “viragem radical” no  
pensamento marxiano, que teria se dado não com, mas contra a natureza do  
pensamento político expresso na Gazeta Renana (CHASIN, 2009, p. 53). A experiência  
político-jornalística na Gazeta havia propiciado a Marx, de forma inédita e  
“embaraçosa”, o contato com os por ele reconhecidos interesses materiais (MARX,  
2008, p. 46). Pela primeira vez, Marx deixava de estar recluso aos debates  
exclusivamente teóricos e se colocava o desafio de analisar situações concretas, como  
a problemática real por detrás dos projetos de lei de censura e a respeito do furto de  
lenha.  
Provocado, de um lado, pelo embate frente a esses assim chamados “interesses  
materiais”, e pelo contato com dois textos recém-publicados por Ludwig Feuerbach,  
um dos jovens hegelianos com mais influência sobre Marx, o teórico passa a caminhar  
em uma direção que mudaria drasticamente o cerne de seu pensamento político, com  
mudanças centrais em três dimensões especiais: 1) o descarte da especulação; 2) o  
reconhecimento do caráter fundante da realidade objetiva; e 3) a identificação da  
sociabilidade como base da inteligibilidade (CHASIN, 2009, p. 57).  
É esse o ponto de viragem ontológica de Marx: da concepção do Estado como  
“demiurgo racional da sociabilidade”, passa-se a uma centralidade da sociedade civil  
como “campo da interatividade contraditória dos agentes privados, a esfera do  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
metabolismo social”, o “demiurgo real que alinha o Estado e as relações jurídicas”  
(CHASIN, 2009, p. 58). Marx passa a negar a possibilidade mesma de um Estado  
racional e universal, e o faz a partir “da crítica ontológica à mais elevada expressão, à  
época, da reflexão política” (CHASIN, 2013, p. 46): a filosofia do direito de Hegel.  
São três, segundo Chasin, os textos que marcam essa virada no pensamento  
marxiano: Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução; Sobre a Questão  
Judaica; e Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”.  
De um Prussiano”. Os três textos marcariam o deslocamento de Marx rumo a uma  
determinação ontonegativa da politicidade, característica de seu pensamento maduro.  
Marx passa, a partir de então, a problematizar os limites da política na compreensão  
dos males sociais e na busca pela emancipação humana.  
Em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Introdução, Marx, tentando superar  
a limitação da crítica apenas à religião sagrada, marca de neo-hegelianos como Bruno  
Bauer, propõe o desafio da crítica ao “erro profano”: dissolvido o “além da verdade”,  
tratava-se de desvelar a “verdade do aquém”. Contra a crítica do céu, onde a filosofia  
hegeliana insistia em se estabelecer, o autor alemão afirma a crítica da terra aquela  
crítica da religião, da teologia, mas também “da política” e “do direito(MARX, 2010b,  
p. 146). E é assim que da defesa de um Estado racional e laico, Marx passa à crítica  
ao próprio direito e à própria política enquanto tal, como formas invariavelmente  
ligadas à autoalienação humana.  
O Marx já propriamente marxiano passa a se opor radicalmente à noção de  
política como um atributo constitutivo do ser social, como “depositário dos princípios  
universais que tornariam todos os homens iguais em direitos e deveres”,  
demonstrando, ao contrário, como a politicidade e o Estado são conteúdos externos  
ao ser social, um defeito de sociabilidade: “Marx sustenta que o estado se origina  
exatamente das insuficiências de uma sociedade em realizar em si mesma, de forma  
concreta, estes ideais universalistas, ou seja, de garantir em sua dinâmica a igualdade  
de condições sociais” (ALBITANI, 2008, p. 55).  
Já em Sobre a Questão Judaica, publicada em 1844 em resposta a um texto  
escrito por Bruno Bauer, Marx trabalha as contradições entre Estado e sociedade civil,  
de um lado, e entre burguês (bourgeois) e cidadão (citoyen), de outro. O bourgeois  
representa o homem da sociedade civil: individualista, fragmentado, egoísta,  
competitivo, voltado à consagração de seus próprios interesses, ao passo que o  
citoyen representa o cidadão abstrato, o indivíduo genérico, voltado para a busca dos  
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interesses comuns, como membro de uma comunidade política ilusória. O Estado  
aparece como expressão formal da determinação humana, porém vazia de conteúdo,  
e a sociedade civil aparece como a esfera da fragmentação, do material que não  
encontra uma vinculação com sua expressão mais genérica (ALBINATI, 2008, p. 53). O  
homem burguês colocado na sociedade civil não se reconhece na universalidade  
abstrata do Estado, ao mesmo tempo em que o cidadão abstrato, pertencente à  
comunidade política, não se traduz na sua realidade empírica. O Estado aparece como  
uma tentativa de pseudoconciliação, de universalidade formal em relação às  
disparidades verificáveis na conformação da realidade objetiva da sociedade civil,  
definida por Marx como a “esfera do egoísmo, da guerra de todos contra todos”. O  
Estado consiste, portanto, em um ente abstrato, “que somente ganha existência pelo  
isolamento em relação à vida real, que é impensável sem a contraposição organizada  
entre ideia universal e existência individual do ser humano” (MARX, 2010c, p. 51).  
Portanto, embora a emancipação política, aquela fruto das revoluções  
burguesas, que afirma o cardápio dos direitos do homem no Estado, seja um “grande  
progresso”, a “forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial  
vigente até aqui” (MARX, 2010c, p. 41), a emancipação humana não pode se dar  
através por Estado, implicando, ao contrário, na própria supressão do conjunto das  
relações sociais de produção e reprodução da vida material, que teria como  
pressuposto a própria negação do Estado enquanto tal. Afinal, “o limite da  
emancipação política aparece logo no fato de que o Estado pode libertar-se de uma  
barreira sem que o homem esteja realmente livre dela, [no fato de] que o Estado pode  
ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (MARX, 2010c, p. 48).  
Por sua vez, em suas Glosas Críticas Marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a  
Reforma Social, de um prussiano”, escritas em 1844 e publicadas já no Vorwärts!,  
Marx enfatiza as limitações da política na compreensão e na busca por soluções para  
as mazelas sociais. O agora editor dos Anais Franco-Alemães usa o exemplo da  
Inglaterra, que, mesmo considerado “o país político por excelência”, não se esquivou  
da tendência de colocar a culpa do pauperismo na política e de buscar tão-somente  
na crítica a uma determinada forma do Estado acompanhada da afirmação de uma  
outra forma de Estado por princípio igualmente problemática a resolução para as  
mazelas sociais (MARX, 2010b, p. 30).  
Marx sustenta a tese segundo a qual o caráter “político” de um país está  
justamente em sempre buscar as soluções para seus males dentro do circunscrito  
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espectro da política, isto é, sem lançar mão de qualquer tipo de crítica à própria  
politicidade ou ao próprio Estado enquanto tal. Essa característica forma de pensar,  
que apenas se move “dentro dos limites da política” é, para Marx, precisamente o que  
torna seus adeptos incapazes de compreender, de fato, as reais raízes das mazelas  
sociais, as quais não podem ser buscadas em outro lugar que não no próprio princípio  
do Estado, isto é, na própria conformação social no qual ele se encontra assentado:  
“O entendimento político é entendimento político justamente porque pensa dentro dos  
limites da política. Quanto mais aguçado, quanto mais ativo ele for, tanto menos capaz  
será de compreender mazelas sociais (MARX, 2010b, pp. 40-41)”.  
Dessa análise fica claro, uma vez mais, como Marx, por um lado, passa a conferir  
primazia à própria sociedade civil (em detrimento do Estado) como eixo central da  
realização do humano2, e, por outro por decorrência dessa primeira conclusão ,  
como aquela crença na política como atributo intrínseco do ser social, outrora  
caracterizadora de sua formulação teórica, é substituída por uma crítica decisiva à  
própria politicidade. De um Marx que concebe a vida política no Estado como a  
atividade humana mais elevada, passamos a um Marx que vê uma relação direta entre  
politicidade e produção/manutenção das mazelas sociais.  
É justamente essa aposta cega e essa pressuposição da politicidade que impede  
a compreensão das origens dos males sociais e a consequente formulação de  
alternativas reais a eles, tendo como norte o horizonte da emancipação humana. Na  
medida em que se pensa apenas dentro dos restritos limites da política e do Estado,  
a resposta às mazelas sociais apenas poderá passar por aquilo que o Estado oferta  
por alternativas: medidas administrativas, assistência (ampliação ou redução) e, enfim,  
repressão.  
É o que ocorreu com a Inglaterra, país político por excelência. Pensando  
politicamente, a Inglaterra não consegue ver as raízes reais do pauperismo, e tal como  
se deu com os partidos políticos que empurravam a responsabilidade das misérias  
sobre o partido adversário , a Administração buscou atribuir a culpa ora na escassez  
de beneficência, ora em seu excesso, ora em sua falha. Aqueles problemas originários  
do moderno processo de industrialização problemas sociais que são são explicados  
como meros defeitos de administração e a eles são opostas soluções igualmente  
administrativas que, com o tempo, não mais buscavam sufocar o pauperismo, mas  
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O marco, nesse sentido, é a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, escrita ainda em 1843 (MARX,  
2010a).  
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“discipliná-lo, perpetuá-lo”. Ao fim, “a miséria foi vista como culpa dos miseráveis e,  
como tal, punida neles mesmos. O Estado inglês, longe de ir além das medidas  
administrativas e beneficentes, retrocedeu aquém delas. Ele se restringe a administrar  
aquele pauperismo que, de tão desesperado, deixa-se apanhar e jogar na prisão  
(MARX, 2010b, p. 35). Oscila-se, com isso, entre dois polos extremos, a assistência e  
a repressão, sendo que ambos, por sua própria natureza, não são resolutivos da  
questão.  
Antes que apareça uma formulação mais direta sobre a própria noção de pena  
(o que se dá, de forma mais própria, em artigo de 1853 que analisaremos no tópico  
subsequente), o Marx propriamente marxiano de 1844 já apresenta alguns dos  
desdobramentos dessa concepção ontonegativa de politicidade sobre a “questão  
penal”: de mediação reconciliatória do cidadão criminoso com o Estado, ofendido por  
meio do crime em sua dignidade, racionalidade e universalidade, a repressão penal  
aparece aqui como, fruto que é do “entendimento político”, uma tentativa de  
perpetuação e de administração do pauperismo convertido em “instituição nacional”,  
uma tentativa que se mostra, por óbvio, ainda aquém das já problemáticas medidas  
administrativas de beneficência, na medida em que, quanto ao pauperismo, nada mais  
faz que “cavar-lhe o túmulo”.  
Marx dá explicações mais minuciosas para essa escolha: partindo da teoria  
malthusiana da população, que considera o pauperismo como uma “lei natural eterna”,  
e considerando a miséria como culpa dos próprios pobres, a reforma da política  
assistencial inglesa de 1834 toma a assistência como um incentivo público à miséria.  
E é assim que a miséria passa a ser punida como crime. E aqui parece ser a primeira  
vez que Marx trata das workhouses, ali definidas como “asilo dos pobres”, “cuja  
organização interna dissuade os miseráveis de buscar nelas refúgio para não morrerem  
de fome. Nas workhouses, a beneficência está engenhosamente entrelaçada com a  
vingança da burguesia contra o miserável que apela à sua beneficência” (MARX,  
2010b, p. 34).  
A questão é resgatada em um artigo escrito por Marx para a Nova Gazeta  
Renana. As workhouses inglesas são definidas como “estabelecimentos públicos em  
que a população trabalhadora excedente vegeta às custas da sociedade burguesa” e  
que aliariam “de maneira verdadeiramente refinada a caridade à vingança que a  
burguesia descarrega nos miseráveis coagidos a apelar à sua caridade” (MARX, 2020,  
p. 363). Essas instituições, que se encobriam sob as vestes de caridade pública, em  
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praticamente nada se diferenciavam, quanto à estrutura de acomodação, das casas de  
correção (destinadas, em tese, aos criminosos), exceto quanto à sua ainda maior  
precariedade. Caracterizavam-se pela união de privação de liberdade com trabalho  
compulsório e improdutivo:  
Os pobres diabos não apenas são alimentados com os meios de  
subsistência mais parcos, miseráveis e que mal são suficientes para a  
reprodução física, como também sua atividade é limitada a uma  
simulação de trabalho improdutiva, repugnante, embotadora do  
espírito e do corpo por exemplo, mover moinhos a pedal (MARX,  
2020, p. 363).  
Também no tocante às suas finalidades, as workhouses em nada se  
diferenciariam das casas de detenção comuns. Destinadas especialmente à população  
excedente, isto é, àquela parcela da população (sobretudo ex-camponeses) que não  
estava imediatamente engajada na produção manufatureira/industrial, as casas de  
trabalho exerciam um importante papel de regulação dos salários e da mão-de-obra  
aos níveis exigidos pelo mercado, além de, nos momentos necessários, servir ao  
adestramento e à adaptação dessa parcela da população à rotina de trabalho fabril.  
De modo geral, as workhouses evitariam que os paupers ameaçassem “a ordem  
burguesa e a atividade comercial” caso fossem todos repentinamente lançados à rua  
(MARX, 2020, p. 363). A administração desse público em uma instituição oficial  
evitaria possíveis atos de contestação, inclusive por meio do crime. Por outro lado,  
“essa ‘caridade feroz’ da burguesia inglesa responderia às demandas do mundo do  
trabalho nos diferentes ciclos de acumulação.  
Nos períodos de “febril superprodução, em que a demanda por braços mal  
pode ser atendida e os braços devem ser obtidos tão barato quanto possível”, as  
workhouses manteriam à disposição um exército industrial de reserva, viabilizando a  
oferta de força de trabalho no volume e com a regularidade exigidos pelo mercado e  
impedindo uma escassez que tenderia a gerar aumento salarial. Ao mesmo tempo,  
essa população trabalhadora excedente e a constante ameaça de desemprego que ela  
representa, pressiona o exército ativo de trabalhadores, favorecendo uma maior  
exploração do trabalho. Essa influência da superpopulação relativa ou exército  
industrial de reserva sobre a exploração do trabalho livre e a regulação dos níveis  
salariais é resgatada e aprofundada, dentre outros momentos, no capítulo 23 do Livro  
I d’O Capital, em que Marx trata da Lei Geral da Acumulação Capitalista3.  
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“O curso vital característico da indústria moderna, a forma de um ciclo decenal interrompido por  
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Já nos períodos “desfavoráveis para o comércio”, “de recuo comercial, em que  
a produção excede largamente o consumo e apenas com esforço a metade dos  
trabalhadores pode ser empregada, com metade dos salários”, as casas de trabalho  
administrariam esses trabalhadores excedentes, no sentido de transformá-los, “pela  
punição nestes piedosos estabelecimentos, em máquina sem vontade, sem resistência,  
sem exigências, sem necessidades” (MARX, 2020, p. 363). Em momentos de recessão,  
portanto, marcados pela centralização de capitais e pela agudização do desemprego  
e da pauperização, com muitos trabalhadores sendo lançados às fileiras do exército  
industrial de reserva, as workhouses concorreriam para neutralizar formas de  
insubmissão, organizadas ou não, aos capitalistas.  
É nítida, pois, a continuidade entre os textos de 1844 e de 1848, embora o  
primeiro seja recorrentemente tido como de um jovem Marx e o segundo de um Marx  
maduro, segundo a tradição que defende um corte epistemológico na obra do autor.  
De qualquer modo, aqui, já com mais algum acúmulo em termos de crítica à economia  
política, Marx, que já havia conectado a repressão criminalizante das workhouses com  
o desenvolvimento da indústria, consegue perceber com maior nitidez essas conexões.  
Aderir a essa “medida negativa”, mais do que uma vingança burguesa contra o pauper  
ou uma forma de dissuadi-lo a buscar abrigo no Estado, funda-se, também, em razões  
“muito práticas, inteiramente calculáveis”: atender às demandas das indústrias  
nascentes por força de trabalho, seja a partir da formação de um exército industrial de  
reserva para os períodos favoráveis, seja pela transformação desse pauper, agora  
candidato a trabalhador fabril, em “máquina sem vontade, sem resistência, sem  
exigências, sem necessidades”. Perceba-se, no entanto, que essa dimensão de  
vingança permanece afinal, em um regime de exploração da força de trabalho, ser  
inexplorável apenas pode ser representar o maior dos crimes:  
Para tornar perfeitamente claro a grandeza de seu crime, um crime  
que consiste em, no lugar de ser material produtivo e lucrativo para a  
burguesia, como no curso normal da vida, ter se transformado antes  
em custo para seu usufrutuário nato, do mesmo modo que os tonéis  
oscilações menores de períodos de vitalidade média, produção a todo vapor, crise e estagnação,  
repousa sobre a formação constante, sobre a maior ou menor absorção e sobre a reconstituição do  
exército industrial de reserva ou superpopulação. Por sua vez, as oscilações do ciclo industrial conduzem  
ao recrutamento da superpopulação e, com isso, convertem-se num dos mais enérgicos agentes de sua  
reprodução” (MARX, 2017, p. 708). Por superpopulação relativa, Marx está designando “uma população  
trabalhadora adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de  
valorização do capital e, portanto, supérflua” produzida constantemente pela acumulação capitalista,  
“na proporção de sua energia e volume” (MARX, 2017, p. 705). O termo “exército industrial de reserva”  
parece designar o mesmo, especificamente no contexto da Grande Indústria.  
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de bebidas deixados no depósito se tornam custo para o comerciante  
de álcool; para que aprendam a perceber toda a grandeza desse crime,  
são privados de tudo o que se concede aos criminosos comuns,  
convívio com mulher e filhos, entretenimento, fala tudo (MARX,  
2020, p. 363).  
Mas o exemplo não se esgota na Inglaterra. Marx já enxergava, nas Glosas, a  
adoção do direito penal no trato com o pauperismo como algo não apenas local, mas  
como uma tendência universal, própria daqueles países que pensam politicamente,  
como era também o caso da França. Pensando politicamente, Napoleão quis também  
lidar com o pauperismo em uma canetada. Optou pela repressão criminalizante, aqui  
ainda mais explicitamente travestida de beneficência: uma “instituição de custódia  
policial”, logo convertida em penitenciária, que representa, para a carência, “refúgio”;  
para a pobreza, “meio de subsistência”; para a infância, acolhimento; para os  
trabalhadores, “encorajamento” e “ocupação”; para os franceses: “fim de uma visão  
repugnante das enfermidades e da vergonhosa miséria” (MARX, 2010b, p. 36).  
Aqui,  
ainda  
mais,  
fica  
nítido  
como  
a
repressão  
e
a
beneficência/caridade/assistência aparecem como dois elos indissociáveis, dotados de  
um mesmo pano de fundo e operando sob uma lógica similar, e ambas, ainda,  
expressão concreta de um determinado modo politicista de pensar, alvo de incisiva  
crítica pelo Marx de 1844. O autor também interpreta as razões por detrás da  
“beneficência policial francesa”, adotada no lugar da assistência ou de outras medidas  
administrativas: escolher em sentido contrário, com “a alimentação e educação das  
crianças desvalidas, isto é, a alimentação e educação de todo o proletariado em fase  
de crescimento, representaria o aniquilamento do proletariado e do pauperismo”  
(MARX, 2010b, p. 37).  
Em resumo, o Marx propriamente marxiano que aparece após a viragem  
fundamental promovida em seu pensamento a partir de meados de 1843, será um  
crítico ferrenho da Política e do Estado. O foco deixa de ser a “revolução política pelo  
estado racional” e passa a ser a revolução radical das próprias condições de vida, que  
teria por central não mais a mera emancipação política, mas, sobretudo, a emancipação  
humana geral, levada a cabo por uma classe que representa, em essência, a dissolução  
mesma das classes enquanto tais (CHASIN, 2009, p. 62).  
A busca por essa emancipação deve ter por norte não uma mera prática política,  
mas, sobretudo, uma prática metapolítica, isto é, um fazer político que desfaça a  
política”, [...] que se desembarace de formas particularmente ilegítimas e  
comprometidas de dominação política, para substituí-las por outras supostas como  
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melhores, mas que vá se desfazendo, desde o princípio, de toda e qualquer  
politicidade, à medida que se eleva da aparência política à essência social das lutas  
históricas concretas, à proporção em que promove a afloração e realiza seus objetivos  
humano-societários, os quais, em suma, têm naquela ultrapassagem, indissociável da  
simultânea superação da propriedade privada dos meios de produção, a condição de  
possibilidade de sua realização (CHASIN, 2009, pp. 65-66). Marx passa, assim, de uma  
apologia à ideia de Estado enquanto atributo universal e racional da sociabilidade  
humana, como esfera em que se realiza a liberdade humana, a uma crítica ontológica  
à própria noção de Estado.  
No plano do direito, Marx aparece, enfim, como crítico aos chamados direitos  
do homem e do cidadão, como sendo expressão de uma emancipação meramente  
política e, como tal, limitada. Quanto à pena, em específico, o autor alemão explicita o  
modo como ela foi utilizada, por aqueles países que mais se reivindicaram políticos,  
como medida de administração e de perpetuação do pauperismo. Marx aponta  
particularmente como essa espécie de “beneficência policial” esteve historicamente ao  
lado e por vezes se confundindo com a assistência, na medida mesma em que ambas  
foram fruto de um “entendimento político” circunscrito aos limites do que o Estado  
tem a ofertar. Em íntima conexão com sua crítica à política, ao Estado e ao direito,  
como não poderia deixar de ser, Marx também empreende aqui uma crítica à “verdade  
do aquém” da pena, deixando clara sua determinação também ontonegativa: longe de  
um atributo intrínseco do ser social, de uma espécie de segunda natureza, a pena tem  
uma história, que parece estar intimamente ligada à história daquela forma de  
sociabilidade que o autor passa, naqueles anos, a criticar de forma decisiva.  
Desenvolvimentos posteriores de uma determinação ontonegativa da pena:  
Pena Capital, A Sagrada Família e A Ideologia Alemã  
O momento em que a ruptura empreendida no pensamento de Marx fica mais  
evidente quanto aos temas que nos interessam em especial neste estudo se situa em  
um artigo escrito em 1853 para o The New York Tribune, periódico que Marx passou  
a compor como representante internacional. No artigo, denominado Pena Capital  
(MARX, 2014), o Marx já propriamente marxiano e maduro entra em polêmica com a  
concepção descrita por Marx como “kantiana-hegeliana” de crime e punição. Como diz  
Marx, Hegel, em seu Filosofia do Direito, afirmara ser a pena um direito do criminoso,  
na medida em que seria fruto de um ato de sua própria vontade. Sendo o crime a  
negação do direito, a punição representaria a negação da negação e, por  
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consequência, uma afirmação do direito, demandada pelo próprio criminoso (MARX,  
2014, p. 33).  
Essa concepção kantiana, levada às suas últimas consequências por Hegel,  
apresenta semelhanças, como mostramos, com aquela defendida por Marx na Gazeta  
Renana. O crime, como um ato voluntário, representaria uma ruptura com o direito, e  
a pena surgiria no sentido de reconciliar o violador com a esfera jurídica, reafirmando,  
com isso, o direito em sua imperecibilidade.  
Contudo, em Pena Capital, Marx faz uma análise bastante crítica de tal  
interpretação, afirmando que ela partiria de uma concepção segundo a qual o  
criminoso é um ser livre e autodeterminado, quando, na verdade, ele nada mais é que  
um “mero objeto”, um “mero escravo da justiça” (MARX, 2014, p. 33). Marx amplia a  
crítica para toda a tradição do idealismo alemão, de que Kant e Hegel são  
representantes, afirmando que essa filosofia acaba, nesse caso e na maioria dos outros,  
por apenas “dar uma sanção transcendental às leis da sociedade existente” (MARX,  
2014, p. 33).  
Marx sinaliza, aqui, para o rompimento com o idealismo alemão, que exerceu  
uma forte influência em suas obras de juventude. Com isso, o autor antecipa a máxima  
que viria a desenvolver anos depois no Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia  
Política, segundo a qual: “não é a consciência dos homens que determina o seu ser;  
ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2008, p. 47).  
Rompendo, assim, com uma tendência idealista de análise do realmente existente (em  
meio a ele, o Estado, o Direito, o crime etc.) a partir de um “conceito” ou “ideia” desses  
elementos – o que acabava por resultar em uma “sanção” ou uma legitimação  
transcendental às regras da realidade efetiva , Marx toma como ponto de partida o  
realmente existente, em uma tentativa de apreender as determinações da realidade  
objetiva e, assim, poder exercer um papel transformador sobre ela.  
E é com base nessa perspectiva materialista que Marx conclui seu raciocínio  
acerca do papel da punição na reprodução social, afirmando “claramente, e  
dispensando todas as paráfrases”, que “a punição nada mais é que um meio de a  
sociedade defender-se contra a infração de suas condições vitais, qualquer que seja o  
caráter destas” (MARX, 2014, p. 33). O papel da punição não está em reconciliar o  
homem com o direito, esfera da liberdade e da igualdade por excelência, mas, ao  
contrário, a assegurar a manutenção e a perpetuação de um estado de coisas, ainda  
que esse status quo tenha por referência uma sociedade baseada na desigualdade e  
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na exploração, que se transmuta, para citar Hegel, em um “espetáculo de devassidão  
bem como o da corrupção e da miséria" (HEGEL, 1997, p. 169).  
Quanto à função preventiva da pena, o Marx de 1853 afirma que “a punição,  
geralmente, tem sido defendida como um meio quer de melhoramento quer de  
intimidação. Que direito terias tu de punir-me para melhorar ou amedrontar outrem?”  
(MARX, 2014, p. 33). O autor completa o raciocínio classificando essa função declarada  
como algo carente de qualquer comprovação científica: “E, além disso, há história – há  
uma coisa como a estatística que prova com a mais clara evidência que desde Caim  
ninguém no mundo em nada foi amedrontado ou melhorado pela punição. Muito ao  
contrário” (MARX, 2014, p. 33). Há, novamente, uma ruptura clara com seus escritos  
de 1842, nos quais, conforme analisamos, era nítida a defesa de uma função  
preventiva da pena pública.  
Em Pena Capital, portanto, Marx apresenta uma visão essencialmente crítica a  
respeito das funções declaradas da pena pública, uma concepção que, agora, mais se  
aproxima da ideia do direito como mero “reconhecimento oficial do fato” (MARX,  
1985) e como mero sancionador do existente do que propriamente como esfera  
universal da liberdade. Ao mesmo tempo, questiona os discursos que atribuem a  
legitimidade dessa forma de punição a um pretenso livre-arbítrio do criminoso.  
Com isso, Marx consolida uma linha de definição sobre o crime e a pena que já  
vinha mostrando suas nuances desde 1844, com os textos analisados no tópico  
anterior, mas que também aparece na fase imediatamente posterior de sua formulação  
teórica, em textos como A Sagrada Família, escrita em 1844, e A Ideologia Alemã,  
escrita entre 1845 e 46.  
N’A Sagrada Família, Marx aparece como um crítico de uma teoria penal que  
não questiona a pena em si, mas apenas o modo de sua aplicação. Como um profundo  
crítico da moral, entendida como “impotência posta em ação”, Marx empreende uma  
crítica não-moral à moralidade burguesa, alicerce de uma teoria da pena que,  
equivalendo as noções de essência e de existência (de modo a sancionar as regras do  
realmente existente), aniquila individualidades. Contra uma visão que pressupõe o  
indivíduo atomizado, isolado, que age em conformidade puramente com sua vontade  
e que deve se moldar a uma dada visão de mundo tida como universal e necessária,  
Marx afirma que o crime consiste na manifestação de forças essenciais humanas, por  
vezes defeituosas ou excessivas, mas ainda forças essenciais humanas. O autor  
questiona o trato aniquilador e mutilador dessas manifestações essenciais, presente,  
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nova fase  
De pré-marxiano a propriamente marxiano  
no âmbito literário, na teoria penal de Rodolfo personagem do romance de Eugéne  
Sue e considerado uma encarnação da teoria neo-hegeliana dos irmãos Bauer e, no  
âmbito da realidade histórica, no sistema prisional celular. De forma mais ampla, a  
pena, como imposição ligada à defesa de uma determinada moralidade, a qual, por  
sua vez, é expressão de uma dada configuração social, contradiz o comportamento  
humano, na medida em que faz caso omisso da individualidade, pressupondo-a  
universal, pré-formatada, a-histórica e uniforme, abstraindo, com isso, a concretude da  
natureza humana e o caráter ativo, dinâmico, histórico e social da objetivação dessa  
natureza. A pena criminal, assim como a penitência religiosa, atua como instrumento  
de castração de individualidades, ao passo que o que importa, Marx afirmou sem o  
assumir, é desvelar as raízes antissociais do crime e formar as circunstâncias  
humanamente, na medida em que é meio a essas circunstâncias que a subjetividade  
do homem (necessariamente histórica e socialmente determinada) é formatada (MARX;  
ENGELS, 2003, p. 150). O caminho é, Marx deixa implícito ao analisar uma visão  
atribuída ao Materialismo Francês, não castigar o crime no indivíduo, mas propiciar  
que esses sujeitos tenham condições de exteriorizar livremente sua individualidade,  
construindo as circunstâncias nas quais o próprio indivíduo, necessariamente ser  
social, forja sua existência humanamente.  
Se em 1845 esse tratamento aparecia em meio a um questionamento à  
moralidade burguesa como um todo, enquanto esfera escamoteadora dos conflitos  
reais, n’A Ideologia Alemã o autor concebe o crime, de forma mais explícita, como uma  
“luta do indivíduo isolado contra as condições dominantes”, como algo, portanto, que  
nada tem de “arbitrário” e que, “ao contrário, está nas mesmas condições que aquele  
domínio [o direito]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318).  
Além disso, Marx também reitera seu tratamento crítico quanto à concepção  
hegeliana da pena, embora reconheça em Hegel mais méritos que em Max Stirner,  
contra cuja teoria se dirigia naquele momento. Afirmando de modo mais claro sua  
concepção materialista da história, Marx, em conjunto com Engels, questionava a  
concepção de Max Stirner aliás antitética com sua própria obra segundo a qual o  
direito é o espírito da sociedade, consistindo na própria vontade soberana e arbitrária  
desta. Stirner, portanto, contraditoriamente à sua própria alegação anterior do direito  
como “poder do homem”, concebe a vontade como base do direito.  
Para Marx e Engels, no entanto, entender o direito como baseado puramente  
na vontade, isto é, entender o direito como uma criação da vontade, significaria  
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Nayara Rodrigues Medrado  
hipostasiar todas as condições materiais que constituem, essas sim, a base real sobre  
a qual o direito (e também o Estado) se apoiam. Tal resultaria, no fim, em uma visão  
idealista sobre o direito.  
Como afirmam os autores, “o direito não procede da pura arbitrariedade”, mas  
é, ao contrário, expressão do próprio modo de vida material dos indivíduos, ainda que  
os indivíduos que pertencem à classe dominante tenham de “conferir à sua vontade  
condicionada por essas condições bem determinadas uma expressão geral como  
vontade do Estado, como lei uma expressão cujo conteúdo sempre é dado pelas  
condições dessa classe, do que o direito privado e o direito criminal são a prova mais  
cabal” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318). Ou seja, o direito e o Estado não provêm do  
mero arbítrio dos indivíduos, sendo, contrariamente, expressão de um determinado  
modo de produção e reprodução da vida material, correspondente a um determinado  
estágio de desenvolvimento das forças produtivas, muito embora esse Estado –  
reitere-se: procedente do modo de vida material dos indivíduos – tenha “também a  
forma de uma vontade soberana”, expressa de forma genérica na lei (MARX; ENGELS,  
2007, p. 318).  
De fato, para manter suas condições de dominação, uma determinada classe  
precisa afirmar seus interesses interesses de classe que são como interesses gerais,  
como uma vontade geral consubstanciada no Estado e expressa em lei. Essa expressão  
genérica serve, materialmente, tanto para garantir seus interesses em contraste com  
aqueles das classes dominadas quanto para, em um nível intraclasse, servir como  
autoafirmação de interesses na média dos casos, elevando a lei a um estrato fora do  
alcance da arbitrariedade pessoal e do egoísmo de cada indivíduo pertencente à  
própria classe dominante e, com isso, servindo como uma espécie de “autorrenúncia  
como exceção” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318).  
Não há, portanto, uma vontade como mero arbítrio, desvinculada das próprias  
condições pelas quais os indivíduos produzem sua existência. Ao contrário, “a vida  
material dos indivíduos, que de modo algum depende de sua ‘mera vontade’, seu modo  
de produção e as formas de intercâmbio que se condicionam reciprocamente são a  
base real do Estado” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 317-318). Os autores reforçam:  
“essas condições reais de modo algum foram criadas pelo poder do Estado; elas são,  
antes, o poder que o cria” (MARX; ENGELS, 2007, pp. 317-318). Entender em sentido  
contrário, na visão exposta n’A Ideologia Alemã, significaria conceber o Estado e o  
direito como sendo dotados de uma história própria, recaindo naquilo que Marx e  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
Engels chamaram de “ilusão específica dos juristas e políticos” (MARX; ENGELS, 2007,  
p. 319).  
O crime, para os autores, e aqui Marx e Engels parecem estar se referindo a  
uma determinada utilização específica do crime, situa-se no mesmo domínio do direito,  
isto é, como algo que não pode ser entendido como proveniente exclusivamente do  
arbítrio, de uma vontade “identificável em todas as épocas e sob todas as  
circunstâncias” (MARX; ENGELS, 2007, p. 318). O crime aparece como expressão –  
não a única possível, nem a necessária – de um “querer” das classes dominadas de  
eliminar determinadas condições de vida predominantes, isto é, o crime aparece como  
fruto de uma “vontade” que não encontra como correlato um suficiente  
desenvolvimento das forças produtivas capaz de tornar a concorrência, e com ela o  
Estado e o direito, algo supérfluo e, portanto, superável.  
Com isso, os autores fogem tanto da robinsonada de conceber o crime como  
mero ato de vontade do sujeito, como também não recaem em uma romantização do  
delito como algo revolucionário já que, embora expressão de uma luta contra as  
condições dominantes, o crime é a luta do indivíduo isolado, não mediado pela  
consciência de classe, não incorporado a uma forma de organização coletiva e colocada  
em um contexto em que as condições objetivas para uma ação revolucionária efetiva  
não estão colocadas. Ao mesmo tempo, Marx e Engels apontam que o direito penal,  
como todo o direito, não tem uma história própria independente da história dos modos  
de produção da vida material, e ele tende a expressar as contradições da própria luta  
de classes ou, mais especificamente, os interesses da classe dominante.  
Desse modo, se entre 1842 e 1843 o que se percebe é uma viragem, uma  
ruptura decisiva no pensamento de Marx sobre o crime e a punição, no período  
subsequente, que vai de 1844 a 1853 para considerar apenas a miríade de textos  
aqui selecionados , o que se percebe é uma tendência de continuidade, embora com  
desenvolvimentos, incorporação de novos elementos e argumentos e complexificação  
das análises, em diferentes níveis de abstração. O mesmo se poderia dizer, ainda que  
aqui não tenhamos espaço para desenvolver o argumento, em relação ao restante do  
percurso intelectual de Marx que, n’O Capital, seguirá apontando, a partir da análise  
das leis terroristas ou sanguinárias, das leis para compressão dos salários e das leis  
anticoalizão, a historicidade das formas punitivas, bem como sua ligação umbilical com  
as demandas colocadas pelo capitalismo, enquanto novo modo de produção em  
desenvolvimento (Cf. SARTORI; MEDRADO, 2021; MEDRADO, 2021).  
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Nayara Rodrigues Medrado  
Considerações finais  
Buscamos apontar, a partir de textos de ao menos dois diferentes momentos  
da obra de Marx, como o acerto de contas com a obra de Hegel imprimiu também uma  
viragem brusca no pensamento marxiano quanto ao crime e à punição. À semelhança  
do que ocorre com o tratamento do Estado, da política e do direito, percebe-se a  
passagem de uma visão ontopositiva para uma visão ontonegativa da pena.  
Na Gazeta Renana, de 1842, a punição é entendida como mediação possível  
entre criminoso e o direito, este concebido, assim como o Estado, enquanto esfera da  
liberdade, da universalidade e da racionalidade. A aplicação da pena representaria um  
autoenjuizamento do criminoso, na medida em que já estaria pressuposta em sua  
manifestação de vontade de violar a racionalidade do direito. A pena, então, permitiria  
ao indivíduo que praticou um crime, um cidadão que compõe um dos milhares de  
nervos do organismo vivo Estado, reconciliar-se com essa comunidade política e ética  
estatal, mantendo, com isso, sua organicidade. A pena significa, nesse sentido,  
condenar um cidadão a uma vida de liberdade, coincidente com a vida política na  
comunidade ética do Estado.  
A partir de 1843 e 1844, como mostrado, Marx, na exata medida que passa a  
ser um crítico do Estado, da política e do direito, enxerga a pena, em uma conceituação  
já presente implicitamente nos textos escritos nesse período, mas explicitado  
definitivamente apenas em 1853, como um meio de a sociedade, seja qual for seu  
caráter, se defender contra a infração de suas condições vitais. É tomando essa  
conceituação como pressuposto que Marx empreenderá uma profunda crítica às  
workhouses, como sendo, ao lado da beneficência, mas aquém dela, a expressão de  
um politicismo que, para lidar com as mazelas decorrentes do próprio processo de  
gestação e de desenvolvimento do capitalismo, assume a feição de “caridade feroz”  
ou de “beneficência policialesca”. O pauperismo, convertido em “instituição nacional”,  
passa a ser gerenciado, de um modo tal a castigar aqueles miseráveis que ousam  
apelar à caridade burguesa, como Marx defende na Glosas Críticas de 1844.  
No período imediatamente subsequente à viragem, de 1845-1853, a  
ontonegatividade da pena permanece uma constante, ao mesmo tempo que recebe  
novos contornos. São incorporados elementos da crítica à economia política e de uma  
crítica não-moral à moralidade burguesa, ao mesmo tempo que são mobilizados outros  
argumentos em torno da crítica ao Estado e ao direito. As workhouses agora aparecem  
como meio de servir às necessidades do capitalismo, em diferentes fases de seu  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
desenvolvimento, controlando a disponibilidade de mão-de-obra, os níveis salariais e  
o potencial de insubmissão do proletariado e do lumpen, conforme a perspectiva  
expressa em 1848 na Nova Gazeta Renana. O desenvolvimento é coerente,  
acreditamos, com todo o restante do percurso intelectual de Marx, que, n’O Capital,  
complexificará ainda mais a análise, apontando o papel das leis sanguinárias, das leis  
para compressão dos salários e das leis anticoalizão na infância do capitalismo de via  
clássica.  
O Marx propriamente marxiano é, em resumo, um profundo crítico da pena,  
crítica essa que se situa, no entanto, não como uma crítica ao sistema penal em  
apartado, mas, ao contrário, é uma crítica que se concatena com a própria crítica à  
sociabilidade capitalista como um todo, que tem por consectário a crítica ao Estado, à  
política e ao direito. O crime, entendido como luta do indivíduo isolado contra as  
condições dominantes carrega consigo uma série de nuances, que se relacionam nem  
a um determinismo nem à noção de uma vontade desimpedida, mas, antes, às próprias  
condições engendradas por um determinado modo de produção e de reprodução da  
vida.  
Com isso, esperamos ter desmitificado tanto uma visão determinista, que reduz  
às contribuições de Marx à “questão penal” à pressuposição de uma relação imediata  
e mecânica entre crime e pobreza, quanto uma visão de que o autor dê um trato  
moralista à questão. Ainda, esperamos ter demonstrado a relevância do estudo  
daquelas obras frequentemente tidas como “de juventude” do autor, embora  
expressem já um Marx propriamente marxiano, para a crítica ao Estado, ao direito e,  
sobretudo, ao sistema penal, seja sob a forma de “beneficência policialesca”, seja sob  
a forma de pena propriamente dita.  
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nova fase  
Nayara Rodrigues Medrado  
artigos da Gazeta Renana (1842-1843). 1998. Dissertação (Mestrado) apresentada  
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(1842 1843). Dissertação (Mestrado) apresentada à Faculdade de Filosofia e  
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, 1998b, pp. 228-244.  
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MEDRADO, Nayara. Marx e Engels como inauguradores de uma economia política da  
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SARTORI, Vitor Bartoletti; MEDRADO, Nayara. Apontamentos sobre crime, Direito Penal  
e pauperismo em Marx In: Revista Brasileira de Ciências Criminais: RBCCrim, São  
Paulo, v. 29, n. 181, p. 229-272, jul. 2021.  
VAISMAN, Ester; ALVES, Antônio José Lopes. Apresentação. In.: CHASIN, José. Marx:  
estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.  
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De pré-marxiano a propriamente marxiano  
Como citar:  
MEDRADO, Nayara Rodrigues. De pré-marxiano a propriamente marxiano: o  
tratamento do crime e da punição em dois momentos da obra de Marx. Verinotio,  
Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 305-335; jan.-jun., 2024  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 305-335 jan.-jun., 2024 | 335  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.712  
Os direitos humanos à luz de O capital  
Elementos para uma aproximação  
(Parte 01)  
The human rights in the light of The Capital  
Elements for an approximation  
(Part 01)  
Vinícius Casalino*  
Resumo: O artigo procura compreender a  
natureza dos direitos humanos à luz de O capital,  
de Karl Marx. Sustenta a hipótese de que tais  
direitos devem ser analisados sob a óptica da  
esfera da circulação mercantil em conexão com a  
esfera da produção do mais-valor. A partir da  
noção de interversão das leis de produção  
mercantil em leis de apropriação capitalista,  
busca demonstrar como os direitos humanos  
devem ser compreendidos através da articulação  
entre identidade formal dos sujeitos de direito e  
diferença material entre classes sociais. As  
conclusões revelam que tais direitos, embora  
expressem e assegurem modos capitalistas de  
exploração e acumulação, abrem importantes  
espaços de lutas sociais de resistência em  
âmbitos institucionais. O método utilizado é o  
dialético-materialista.  
Abstract: The article seeks to understand the  
nature of human rights in the light of Karl Marx’s  
The Capital. It supports the hypothesis that such  
rights must be analyzed from the sphere of  
mercantile circulation in connection with the  
sphere of production of surplus value. Based on  
the notion of interversion of the laws of  
mercantile production into laws of capitalist  
appropriation, it seeks to demonstrate how  
human rights should be understood through the  
articulation between formal identity of subjects  
of law and material difference between social  
classes. The conclusions reveal that such rights,  
although they express and ensure capitalist  
modes of exploration and accumulation, open  
important spaces for social struggles of  
resistance in institutional settings. The method  
used is dialectical-materialist.  
Palavras-chave: Crítica marxista do direito;  
forma mercantil e forma jurídica; equivalência e  
interversão; sujeito de direito e classes sociais;  
direitos humanos e capitalismo.  
Keywords: Marxist critique of law; mercantile  
form and legal form; equivalence and  
interversion; subject of law and social classes;  
human rights and capitalism.  
E a igual exploração da força de trabalho  
é o primeiro direito humano do capital.  
Karl Marx  
Introdução1  
O problema dos direitos humanos tem sido quase sempre uma espécie de  
* Professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica  
de Campinas (PUC-Campinas). Doutor e mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito  
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco USP). Email:  
vinicius.casalino@puc-campinas.edu.br.  
1 O trabalho divide-se em três partes das quais a primeira, que é o conteúdo deste trabalho, analisa os  
Verinotio  
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nova fase  
   
Os direitos humanos à luz de O capital  
“pedra no sapato” do marxismo. Desde que Marx publicou Sobre a questão judaica e  
mostrou, acertadamente, que os direitos do homem não passam dos direitos do  
indivíduo burguês e egoísta que habita a sociedade capitalista, “recolhido ao seu  
interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade” (MARX, 2010,  
p. 50), os marxistas têm sérias dificuldades para lidar com o tema.  
Esta dificuldade decorre do caráter ambíguo, ou melhor, contraditório, do  
objeto. Se é certo, por um lado, que os direitos humanos são produzidos no contexto  
de um modo de produção fundado na exploração e na dominação de uma classe por  
outra, assegurando, de fato, esse estado de coisas; é certo também, por outro lado,  
que sua linguagem humanista e universal abre relevantes espaços de lutas de  
resistência e reivindicações que não podem ser desprezados, mesmo por aqueles e  
aquelas que clamam pela superação revolucionária da sociedade capitalista.  
É necessário, portanto, adotar uma dupla precaução: não mistificar os direitos  
humanos, procurando sua origem em postulados metafísicos como a “natureza do  
homem” ou a “dignidade da pessoa humana”, como faz a teoria tradicional, e  
tampouco desprezá-los ou tratá-los de modo displicente, como se não passassem de  
artifícios retóricos ou simples “ilusões” criadas pela sociedade capitalista.  
Antes de tudo, é preciso chamar a atenção para duas constatações.  
Em primeiro lugar, registre-se que Marx não conheceu os chamados direitos de  
segunda dimensão, isto é, os direitos econômicos e sociais, cuja positivação nas  
constituições teve lugar somente na primeira metade do século XX2. Assim, em Sobre  
a questão judaica, o filósofo tem em mente os denominados direitos de primeira  
dimensão, ou seja, aqueles ligados à superfície da economia de mercado, a saber:  
liberdade, propriedade privada, igualdade formal e segurança. Nada obstante, os  
direitos de segunda dimensão cumprem importante papel no que concerne à  
redistribuição, ou melhor, à devolução do excedente econômico à classe trabalhadora,  
o que permite sua manutenção existencial em patamares mínimos que viabilizem a  
organização para lutas de resistência e, quiçá, revolucionárias.  
Em segundo lugar, Marx não presenciou e talvez sequer julgasse possível a  
chamados direitos de primeira dimensão. A segunda parte, que será o conteúdo de um segundo artigo,  
tratará dos direitos de segunda dimensão. A terceira e última parte, conteúdo de um terceiro trabalho,  
apresentará a síntese necessária à compreensão global dos direitos humanos sob a óptica marxista.  
2
Não nos deteremos nas diferenças doutrinárias entre “direitos do homem”, “direitos humanos” e  
“direitos fundamentais”, tampouco nas distinções entre “gerações” e “dimensões” de tais direitos,  
questões típicas da teoria tradicional. Para um olhar abrangente e bem contextualizado sobre o tema,  
sob perspectiva tradicional, veja-se: (SARLET, 2012, pp. 27-57).  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 336-366 jan.-jun., 2024 | 337  
nova fase  
 
Vinícius Casalino  
captura da classe trabalhadora pelas forças políticas reacionárias e de extrema direita,  
como ocorreu nos regimes totalitários fascista e nazista. Sobretudo este último, que  
aplicou os princípios da moderna divisão do trabalho à eliminação sistemática do povo  
judeu, dos comunistas e de outras minorias, impõe ao marxismo que reflita seriamente  
sobre a natureza dos direitos humanos, deixando de lado bravatas e simplificações  
que, enfraquecendo tais direitos, têm por consequência, no limite, o fortalecimento da  
nova direita e dos regimes de subversão interna da democracia formal3.  
Assim, este trabalho, que é dividido em três partes4, procura analisar a natureza  
dos direitos humanos à luz de O capital, obra de maturidade de Karl Marx.  
Não se trata, evidentemente, de abandonar as concepções marxianas expostas  
nas obras de juventude. Trata-se, sim, de incorporá-las à dinâmica de amadurecimento  
da reflexão econômico-filosófica de Marx, acompanhando o desenvolvimento de seu  
percurso intelectual até o auge, que se encontra na crítica da economia política5. A  
hipótese que se sustenta pode ser enunciada do seguinte modo: a estrutura dos  
direitos humanos é decifrada a partir da análise da esfera da circulação mercantil, da  
troca de equivalentes e da identidade formal que caracteriza a figura do sujeito de  
direito (numa palavra, juridicamente); a partir daí, é preciso considerar a esfera da  
produção do mais-valor absoluto e relativo, o intercâmbio de valores não-equivalentes,  
a exploração de uma classe social por outra e, portanto, as relações políticas que daí  
provêm. É na síntese destas duas esferas, cuja chave para compreensão reside na  
categoria da interversão, que se pode compreender adequadamente a estrutura social  
e normativa dos direitos humanos, sua origem material e seus limites práticos.  
Desse modo, a primeira parte do trabalho, conteúdo deste artigo6, procura  
investigar a gênese dos chamados direitos humanos de primeira dimensão, cuja origem  
3
É preciso considerar, com a devida seriedade, as observações de Herbert Marcuse sobre a potência  
totalitária que há no discurso e na prática liberal: “A mudança do Estado liberal ao Estado total-  
autoritário ocorre no plano da mesma ordem social. No que concerne a essa unidade da base econômica  
é possível afirmar: o liberalismo ‘gera’ a partir de si próprio o Estado total-autoritário, como sendo a  
sua realização plena num estágio evoluído do desenvolvimento. O Estado total-autoritário fornece a  
organização e a teoria social que correspondem ao estágio monopolista do capitalismo” (MARCUSE,  
2006, p. 61). Assim, o apoio teórico, jurídico e político aos direitos humanos, pelas forças progressistas,  
pode se revelar como uma importante forma de “bloqueio” desta passagem que, no limite, é quase  
inevitável.  
4 Vide nota de rodapé nº 01.  
5
Nesse sentido, Reichelt observa: “Por essa razão, queremos aplicar mais uma vez à própria obra de  
Marx a sua indicação metodológica quanto à elaboração conceitual de formações sociais mais antigas  
(...) e interpreta as formulações anteriores a partir da perspectiva da obra tardia” (REICHELT, 2013, p.  
34, passim).  
6 Vide nota de rodapé nº 01.  
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encontra-se na esfera da circulação mercantil. Trata-se de mobilizar o aparato  
conceitual produzido por Marx e Pachukanis para compreender de que maneira tais  
direitos podem ser considerados expressão da forma jurídica. Nesse sentido, a primeira  
seção propõe a passagem de Sobre a questão judaica a O capital com o objetivo de  
entender como o indivíduo burguês e egoísta apresentado na primeira, ressurge, na  
segunda, como guardião de mercadorias. Em seguida, analisa-se a figura do sujeito de  
direito e a noção, teoricamente incorreta, de que os direitos humanos podem ser  
compreendidos como espécies de direitos subjetivos (MASCARO, 2017). A terceira  
seção procura mostrar como a passagem da circulação simples à circulação do dinheiro  
como capital, embora implique uma diferença formal, projeta uma identidade jurídica  
no âmbito da forma do sujeito de direito, o que é fundamental para o sentido geral e  
universal dos direitos humanos. A última seção demonstra como o trabalhador e a  
trabalhadora, por serem proprietários da mercadoria força de trabalho, também  
assumem a forma de sujeito de direito e, portanto, sentem-se contemplados pelos  
direitos de primeira dimensão. Tal constatação coloca em questão uma abordagem  
marxista meramente negativa dos direitos humanos.  
Na segunda parte do trabalho7, analisar-se-á a produção do mais-valor absoluto  
e relativo e o modo como as classes sociais são integradas à apresentação marxiana,  
dando ensejo a relações políticas e revelando a natureza dos direitos de segunda  
dimensão. A terceira e última parte apresentará a noção dialética de interversão, com  
apoio na leitura de Ruy Fausto8. O objetivo será o de compreender a articulação precisa  
entre as esferas da circulação e da produção, cuja síntese permite descobrir a natureza  
específica dos direitos humanos e sua abertura para novas dimensões.  
As conclusões alcançadas, que vêm à tona em toda a sua extensão apenas na  
última parte do trabalho9, revelam que os direitos humanos, em sua essência, visam à  
conservação da estrutura econômica, jurídica e política da sociedade do capital,  
assegurando modos de exploração e acumulação capitalistas e apresentando,  
portanto, caráter conservador. Contraditoriamente, no entanto, sua forma aparente,  
7 Vide nota de rodapé nº 01.  
8 Tal categoria, que é fundamental para a compreensão da estrutura lógica de apresentação de O capital,  
tem passado despercebida pela teoria marxista e, em especial, pela crítica do direito. A propósito,  
Fausto anota: “A esse respeito, é impressionante constatar como o conteúdo desses textos, e mesmo,  
simplesmente, o seu sentido geral, foi ignorado ou mal conhecido. A razão desse curto-circuito é a  
mesma proposta de ‘simplificação’ da teoria da circulação simples: num caso e no outro, trata-se de um  
texto rigorosamente dialético” (FAUSTO, 2021, pp. 30-31).  
9 Vide nota de rodapé nº 01.  
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por contemplar aspecto humanista e universal, permite vocalizar reivindicações e  
aspirações da classe trabalhadora e de minorias vulneráveis, revelando natureza  
progressista e demarcando importantes espaços de lutas sociais e institucionais de  
resistência.  
O método utilizado é o dialético-marxiano, isto é, a dialética tal como concebida  
por Karl Marx e concretizada, sobretudo, em O capital. Vale lembrar que, ao contrário  
do método desenvolvido por Hegel, que é idealista, Marx busca a análise concreta das  
relações sociais, de modo que as abstrações teóricas não devem ser confundidas com  
estruturas de pensamento autônomas ou ensejadoras da realidade, mas como sínteses  
de múltiplas determinações que emanam da realidade contraditória, ou seja, como o  
concreto pensado (MARX, 2011, p. 54).  
I. Passagem de Sobre a questão judaica para O capital  
Em Sobre a questão judaica, trabalho publicado em 1844, Marx, seguindo de  
perto o texto da declaração francesa de 1789, analisa os direitos humanos sob duas  
perspectivas: os direitos do homem e os direitos do cidadão. Trata-se daquilo que a  
teoria tradicional chama de direitos de primeira geração ou dimensão10.  
Tais direitos surgem no contexto da sociedade moderna - diferente e  
superadora do mundo feudal - que se organiza em torno da indústria e do comércio  
privados. São novos modos de sociabilidade do indivíduo burguês que, acorrentado à  
lógica do excedente econômico, dá vazão à produção e reprodução econômica por  
intermédio de relações bem demarcadas, caracterizadas pela liberdade de  
empreendimento, igualdade formal e autonomia para a disposição de bens.  
Estas novas relações sociais emanam da propriedade privada que visa ao lucro  
e, portanto, dissolvem antigos nexos sociais comunitários baseados na feudalidade.  
Isso significa que, se outrora os poderes econômico e político concentravam-se nas  
mãos dos senhores feudais, da aristocracia ou realeza, agora eles foram cindidos e  
separados. A atividade econômica pertence ao indivíduo que produz e comercializa  
10 Mesmo neste caso, em que Marx faz a crítica dos direitos humanos, não a faz no sentido meramente  
negativo, mas com vistas à compreensão das limitações que tais modos de sociabilidade apresentam  
no que concerne a uma eventual e desejável emancipação. A propósito, Mészáros anota: “O objeto da  
crítica de Marx não consiste nos direitos humanos enquanto tais, mas no uso dos supostos ‘direitos do  
homem’ como racionalizações pré-fabricadas das estruturas predominantes de desigualdade e  
dominação. Ele insiste que os valores de qualquer sistema determinado de direitos devem ser avaliados  
em termos de determinações concretas a que estão sujeitos os indivíduos da sociedade em causa; de  
outra forma, esses direitos se transformam em esteios de parcialidade e da exploração, às quais se  
supõe, em princípio, que se oponham em nome do interesse de todos” (MÉSZÁROS, 2008, p. 161).  
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bens e serviços sob a óptica do excedente econômico - numa palavra: o burguês. A  
função política demarca o indivíduo que se dedica à ação comunitária, que representa  
não o interesse egoísta, mas o de toda a comunidade - em suma: o cidadão.  
A produção e a circulação capitalista dão ensejo a modos de sociabilidade  
distintos daqueles que existiam no antigo regime, substituindo o privilégio feudal pelo  
direito burguês. Enquanto o primeiro se expressava por normas concretas e singulares,  
que asseguravam a dominação local e tradicional e o imobilismo da propriedade, o  
segundo demanda normas gerais e abstratas, aplicáveis a todos, cujo conteúdo  
exprime a liberdade, a igualdade formal e o fluxo perpétuo de bens e serviços.  
Uma vez que o direito burguês é declarado politicamente pelas forças  
vencedoras das revoluções liberais, seus múltiplos aspectos são reunidos e  
denominados “direitos humanos”. Estes, por sua vez, são considerados “direitos do  
homem”, quando ligados ao indivíduo em sua faceta econômica, e “direitos do  
cidadão” quando vinculados ao aspecto político.  
Esta cisão é reflexo da cisão que ocorre no interior da própria sociedade, isto  
é, da separação entre as esferas econômica e política, acima citada. A primeira  
caracteriza aquilo que Marx, mais tarde, denominará, na esteira de Hegel, de  
“sociedade civil”, ou seja, o âmbito da produção e troca privada de bens e serviços; a  
segunda demarca o chamado Estado moderno e a pretensa tutela do “interesse  
público”. Marx esclarece:  
Observemos por um momento os assim chamados direitos humanos,  
mais precisamente os direitos humanos sob sua forma autêntica, ou  
seja, sob a forma que eles assumem entre seus descobridores, entre  
os norte-americanos e os franceses. Esses direitos humanos são em  
parte políticos, direitos que são exercidos somente em comunhão com  
outros. O seu conteúdo é constituído pela participação na  
comunidade, mais precisamente na comunidade política, no sistema  
estatal. Eles são classificados sob a categoria da liberdade política sob  
a categoria dos direitos do cidadão, os quais, como vimos, de modo  
algum pressupõem a superação positiva e irrefutável da religião, e,  
portanto, inclusive por exemplo do judaísmo. Resta, então, analisar a  
outra parte dos direitos humanos, os droits de l´homme [direitos do  
homem], na medida em que são distintos dos droits du citoyen  
[direitos do cidadão] [...] Os droits de l´homme, os direitos humanos,  
são diferenciados como tais dos droits du citoyen, dos direitos do  
cidadão. Quem é esse homme que é diferenciado do citoyen?  
Ninguém mais ninguém menos do que o membro da sociedade  
burguesa. Por que o membro da sociedade burguesa é chamado de  
“homem”, pura e simplesmente, e por que seus direitos são chamados  
de direitos humanos? A partir de que explicaremos esse fato? A partir  
da relação entre o Estado político e a sociedade burguesa, a partir da  
essência da emancipação política (MARX, 2010, pp. 47/48, passim).  
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Note-se que, para o Marx de 1844, os direitos do homem, que marcam o núcleo  
dos direitos humanos, são as formas de sociabilidade ligadas ao indivíduo econômico,  
ao burguês, àquele que produz e comercializa sob o manto da propriedade privada  
visando ao lucro, enfim, “do homem egoísta, do homem separado do homem e da  
comunidade” (MARX, 2010, p. 48). Em síntese: a igualdade formal; a liberdade,  
sobretudo de comércio; a segurança, em especial a polícia; e a propriedade privada,  
com destaque para a transmissibilidade quase absoluta de bens e serviços11.  
Não bastasse a cisão entre a economia e a política, produzida pela sociedade  
moderna e suas formas de produção e circulação, há ainda a submissão da segunda à  
primeira. Em outras palavras, os direitos de cidadania ficam submetidos aos direitos  
do homem à medida que o Estado deve se submeter aos imperativos econômicos. As  
forças políticas, reunidas sob a forma estatal, devem organizar-se institucionalmente  
de modo a dar vazão às relações econômicas e nunca obstá-las. Marx anota:  
Esse fato se torna ainda mais enigmático quando vemos que a  
cidadania, a comunidade política, é rebaixada pelos emancipadores à  
condição de mero meio para a conservação desses assim chamados  
direitos humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como serviçal  
do homme egoísta; quando vemos que a esfera em que o homem se  
comporta como ente comunitário é inferiorizada em relação àquela em  
que ele se comporta como ente parcial; quando vemos, por fim, que  
não o homem como citoyen, mas o homem como Bourgeois é  
assumido como o homem propriamente dito e verdadeiro (MARX,  
2010, p. 50)12.  
A descrição levada a cabo por Marx nos revela ainda o papel ativo do Estado  
na conservação dos direitos humanos. Os direitos do cidadão, isto é, as liberdades  
políticas, devem ser usadas para a preservação dos direitos do homem, ou seja, da  
liberdade econômica, igualdade formal, propriedade e segurança. O poder estatal não  
cria tais direitos; pelo contrário, é criado num terreno em que os direitos do homem  
já figuram como modos ativos de sociabilidade.  
Em outras palavras, a revolução francesa não criou os direitos declarados em  
1789. Pelo contrário, porque esses já existiam na realidade francesa concreta, a  
11  
Um rápido passar de olhos pelo artigo 5º, caput, da Constituição brasileira de 1988 dá conta da  
atualidade destes direitos: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,  
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida,  
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]”.  
12 De fato, o art. 2º da declaração francesa de 1789 estabelece: “O fim de toda a associação política é  
a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a  
propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Em outras palavras, a associação política - em  
termos modernos, o Estado - existe para conservar os direitos do homem, isto é, do burguês egoísta,  
separado da sociedade.  
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burguesia pôde, através da luta política, conquistar o aparato estatal ligado ao antigo  
regime, voltando-o contra as forças econômicas e políticas feudais. As declarações e  
positivações de direitos humanos são o resultado da vitória burguesa, a formalização  
de modos de sociabilidade que já estão em vigor no âmbito econômico.  
Isso significa que os direitos humanos, quer sob a óptica de direitos do homem,  
quer sob o aspecto de direitos do cidadão, passam pelo Estado, isto é, dependem da  
forma estatal, não para a sua constituição ou existência, mas para a sua preservação.  
De fato, a passagem do privilégio feudal para o direito burguês ocorre a partir da  
economia, mas não se afirma e nem sobrevive sem a conquista do Estado.  
A organismo estatal formaliza e assegura, no âmbito institucional, as condições  
políticas para que o direito burguês seja permanentemente o modo de expressão das  
relações econômicas de produção e circulação de bens visando ao lucro. O aparelho  
estatal, conquistado pela burguesia, passa a reconhecer explicitamente e assegurar os  
direitos humanos. No entanto, como não pode explicá-los, parte do pressuposto de  
que são evidentes, ou seja, “naturais”. Marx anota:  
A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade  
burguesa nos indivíduos independentes cuja relação é baseada no  
direito, assim como a relação do homem que vivia no estamento e na  
guilda era baseada no privilégio se efetiva em um só e mesmo ato.  
O homem, na qualidade de membro da sociedade burguesa, o homem  
apolítico, necessariamente se apresenta então como homem natural.  
Os droits de l´homme se apresentam como droits naturels, pois a  
atividade consciente se concentra no ato político. O homem egoísta é  
o resultado passivo, que simplesmente está dado, da sociedade  
dissolvida, objeto da certeza imediata, portanto, objeto natural (MARX,  
2010, p. 53).  
Os direitos do homem são considerados “naturais” porque a sua positivação,  
isto é, o ato político de inscrevê-los em declarações ou constituições, reputa-se a si  
mesma como atividade consciente, quer dizer, exercício intelectual ativo.  
Nada obstante, a revolução não pode explicar a origem destes direitos, pois o  
movimento revolucionário não é um ato crítico; é um ato prático. O homem comum, o  
burguês egoísta, é tratado pelo homem político, o cidadão, como um dado prévio,  
quase um objeto da natureza, que deve ser reconhecido e preservado. Os direitos são,  
assim, “naturais”, porque são evidentes, como as estações do ano, que não são criadas  
pelo homem, mas apenas conhecidas e estudadas. Por isso, os direitos naturais podem  
ser descobertos pela razão, já que sua existência independe das forças políticas.  
Pois bem, se pudéssemos dar um salto no percurso intelectual de Marx,  
abandonando Sobre a questão judaica e aterrissando em O capital, no ano de 1863,  
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encontraríamos uma estrutura categorial homóloga.  
Esta estrutura pode ser remetida, com os cuidados metodológicos  
necessários13, à obra de juventude, reformulada, entretanto, à luz das enormes  
conquistas teóricas obtidas no campo da economia política, alcançadas pelo filósofo  
alemão a partir de 1847, quando seu pensamento adquire ares definitivamente  
científicos14.  
Assim, em O capital, os indivíduos burgueses, egoísta natos; aqueles que vivem  
da produção e comercialização de bens e serviços visando ao lucro, cujo modo de  
sociabilidade é o direito e não o privilégio feudal, ressurgem na primeira seção do  
Livro I, no primeiro nível de abstração categorial utilizado por Marx, como possuidores  
de mercadorias, isto é, indivíduos que, a partir do trabalho próprio, criam valores de  
uso que devem ser levados ao mercado para realizarem seus valores de troca, isto é,  
para serem trocados. No famoso parágrafo inicial do capítulo 02, Marx observa:  
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se  
umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus  
guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso,  
não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas,  
ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à  
força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como  
mercadorias, seus guardiões têm que estabelecer relações uns com os  
outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de  
modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar  
a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro,  
portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm,  
portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados.  
Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente  
desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a  
relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é  
dado pela própria relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas  
para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por  
conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência de  
nosso desenvolvimento veremos que as máscaras econômicas das  
pessoas não passam de personificações das relações econômicas,  
como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras (MARX,  
2013, pp. 159-160; 1962, pp. 99-100).  
13  
Em razão dos limites deste trabalho, a demonstração metodológica da viabilidade e necessidade  
desta passagem não pode ser efetuada. De qualquer maneira, registre-se, desde logo, a seguinte  
observação de Reichelt: “A exposição exata desta ideia é O capital, como ainda veremos. O que Marx  
tem em vista aqui, ele caracteriza mais tarde, no Rascunho de O capital, como ‘capital existente para si’,  
e em O capital como personificação de categorias econômicas. Em Sobre a questão judaica, ao contrário,  
isso não passa de um indício, que, como indício, no entanto, só pode ser decifrado sobre o pano de  
fundo da obra tardia” (REICHELT, 2013, p. 34).  
14  
Nas palavras do próprio Marx, escritas no famoso prefácio à Contribuição à crítica da economia  
política: “Os pontos decisivos das nossas concepções foram cientificamente esboçados pela primeira  
vez, ainda que de forma polêmica, no meu texto contra Proudhon publicado em 1847: Miséria da  
filosofia etc.” (MARX, 2003, p. 07, grifo meu).  
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Marx aponta, aí, a origem material; a gênese concreta do direito. Em outras  
palavras, o direito é uma relação social, isto é, a forma que é projetada pelo  
intercâmbio mercantil. A troca de valores equivalentes exige que os indivíduos que se  
encontram no mercado se considerem reciprocamente como proprietários privados,  
livres, formalmente iguais e autônomos.  
Desse modo, o enlace econômico mercantil reflete a relação jurídica, cuja forma  
é o contrato, reconhecida legalmente ou não. Note-se que a norma posta pelo Estado  
não é essencial à caracterização jurídica da relação. O decisivo, aqui, é a relação  
econômica que serve de base material e o modo como ela se constitui: a troca de  
valores equivalentes.  
O “indivíduo burguês”, o “egoísta nato” de Sobre a questão judaica, ressurge  
aqui, neste recorte específico, como pessoa, isto é, como o representante da  
mercadoria. Para que a troca ocorra, os guardiões mercantis precisam se reconhecer  
mutuamente como proprietários privados, livres, formalmente iguais e autônomos.  
Estes são os caracteres da pessoa que contrata, isto é, que ajusta sua vontade  
com outra. A personalidade não surge da norma posta pelo Estado e tampouco reside  
na “natureza humana”. Ela existe apenas ali, concretamente, no momento do contrato  
que, a seu turno, apenas dá vazão ao movimento econômico de circulação mercantil.  
O “salto” de Sobre a questão judaica para O capital, permite que se confira  
materialidade e concretude à figura do “homem” que surge na primeira. Trata-se, sem  
dúvida, do indivíduo burguês; do homem egoísta situado no contexto das novas  
relações econômicas capitalistas.  
Concretamente, no entanto, sua origem remonta àquele indivíduo que vai ao  
mercado para trocar a sua mercadoria, produto do seu próprio trabalho. Eis o  
momento econômico fundamental a partir do qual a noção de “direitos do homem”  
pode ser reconstituída.  
II. O sujeito de direito e a natureza específica dos direitos do homem e do  
cidadão  
A pessoa da qual fala Marx no início do capítulo 02, do Livro I, de O capital não  
é ninguém mais, ninguém menos, do que o famoso sujeito de direito, descrito de modo  
abstrato e ideologizado pela teoria tradicional. O primeiro autor do campo marxista a  
identificar esta correspondência foi Evgeny Pachukanis15 que, em 1927, no prefácio à  
15  
A recepção da obra de Pachukanis, no Brasil, deu-se inicialmente pelas mãos de Márcio Bilharinho  
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segunda edição de Teoria geral do direito e marxismo, observa:  
A tese fundamental, a saber, de que o sujeito de direito das teorias  
jurídicas possui uma relação extremamente próxima com os  
proprietários de mercadoria, não precisa ser provada uma segunda  
vez depois de Marx. Ademais, não acrescentou nada de novo a  
conclusão seguinte, qual seja: aquela filosofia do direito cuja base é a  
categoria do sujeito com sua capacidade de autodeterminação (e  
nenhum outro sistema coerente de filosofia do direito foi apresentado  
pela ciência burguesa) é, com efeito, a filosofia da economia mercantil  
a estabelecer as condições mais gerais, mais abstratas, de acordo com  
as quais a troca pode se realizar em função da lei do valor, e a  
exploração se passa sob a forma de “contrato livre” (PACHUKANIS,  
2017, pp. 60-61; 2003, pp. 36-37).  
A relação jurídica é precisamente a forma de expressão da relação econômica  
da troca mercantil. Daí por que se tornou célebre a tese de Pachukanis da “forma  
jurídica”, que não significa senão o reflexo da relação econômica, isto é, o modo  
específico como esta relação envolve os indivíduos que dela participam, ou seja, os  
possuidores de mercadorias que se apresentam, então, como sujeitos de direito.  
Assim, no início do capítulo 04 de Teoria geral do direito e marxismo,  
Pachukanis observa: “Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o  
átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não pode mais ser  
decomposto. É por ele, então, que começaremos nossa análise” (PACHUKANIS, 2017,  
p. 117; 2003, p. 109).  
A figura do sujeito de direito e seus atributos (liberdade, igualdade formal,  
propriedade privada e autonomia da vontade) são a base concreta a partir da qual os  
direitos do homem e do cidadão devem ser analisados.  
Os direitos de primeira geração são, portanto, a formulação lógica e abstrata,  
levada a cabo pela teoria tradicional, para racionalizar, num nível distinto de relações  
sociais, os atributos do “homem e do cidadão”, categorias que não passam do  
resultado da elaboração filosófica daquela primeira (sujeito de direito), desenvolvida  
em um nível superior de abstração16.  
Naves (2000; 2014), que interpreta a obra do autor russo à luz do pensamento de Louis Althusser.  
Dando prosseguimento a esta linha, cite-se Alysson Leandro Mascaro (2003). Leituras críticas à  
recepção althusseriana têm se destacado nos últimos tempo. Destaque-se a proposta de um direito  
insurgente, levada a cabo por Ricardo Pazello (2021) e a interpretação, à luz da obra de Lukács,  
desenvolvida por Vitor Sartori (2023).  
16  
Note-se, a propósito, como a teoria tradicional, ainda hoje, apresenta a origem destes direitos de  
modo abstrato e ideológico. Ao remeter sua origem ao pensamento liberal, ela se posiciona, do ponto  
de vista filosófico, antes do próprio Feuerbach: “Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu  
reconhecimento nas primeiras Constituições escritas são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo  
social, característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de  
marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado,  
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Nada obstante, é importante não confundir a figura da pessoa ou sujeito de  
direito - das quais falam Marx e Pachukanis, respectivamente, em O capital e Teoria  
geral do direito e marxismo - com a figura do homem e do cidadão, das quais trata o  
filósofo alemão em Sobre a questão judaica. Aquelas estão numa relação mais próxima  
e íntima com a economia do que estas, que, por sua vez, dependem da mediação  
política para se constituírem e se consolidarem.  
De fato, para Pachukanis o sujeito de direito da teoria tradicional não passa da  
figura do possuidor de mercadorias apreendido a partir da unilateralidade do ponto  
de vista jurídico. Em outras palavras, a teoria jurídica “isola” os atributos do sujeito,  
desconsiderando a relação econômica que funciona como base, e desenvolve aqueles  
atributos separadamente, sem consideração pelo conteúdo material.  
Para o marxismo, contudo, é impossível desenvolver teoricamente a figura da  
pessoa sem a análise da base econômica, pois ela perde o sentido. Assim, Pachukanis  
observa:  
Na verdade, não há dúvida de que a categoria do sujeito de direito  
abstrai-se do ato da troca mercantil. Justamente nesses atos o homem  
realiza na prática a liberdade formal de autodeterminação. A relação  
mercantil transforma essa oposição entre sujeito e objeto em um  
significado jurídico particular. O objeto é a mercadoria, o sujeito, o  
possuidor da mercadoria, que dispõe dela nos atos de aquisição e  
alienação. Justamente no ato de troca o sujeito releva, pela primeira  
vez, a plenitude de suas determinações. O conceito formalmente mais  
bem acabado de sujeito, que se detém unicamente na capacidade  
jurídica, nos afasta ainda mais do sentido vivo, histórico, real, dessa  
categoria jurídica (PACHUKANIS, 2017, p. 124; 2003, p. 116-117).  
É importante compreender, portanto, que o sujeito de direito existe  
concretamente apenas no contexto de uma relação social que expressa uma troca de  
valores equivalentes. Fora dessa relação, pode-se encontrar a projeção formal daquela  
figura, mas não sua existência concreta.  
Na relação entre Fisco e contribuinte, por exemplo, verifica-se formalmente a  
existência de dois sujeitos de direito. Sob o ponto de vista concreto, no entanto,  
percebe-se que são formas projetadas, isto é, abstraídas artificialmente, pois a  
exigência de pagamento de tributo não dá ensejo a uma relação de equivalência, mas  
justamente a sua negação.  
Por isso, há uma diferença estrutural entre as figuras da pessoa ou sujeito de  
mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e  
uma esfera de autonomia individual em face de seu poder” (SARLET, 2012, pp. 46-47, grifo nosso).  
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direito e do homem e do cidadão. Estas são formas politicamente mediadas daquelas.  
Em outras palavras, l´homme e citoyen apenas surgem no contexto social no  
momento em que a persona já configura a forma jurídica dominante do nexo social  
econômico. Tanto do ponto de vista histórico, como lógico, a formulação das figuras  
do homem e do cidadão depende do estabelecimento e consolidação de uma classe  
social que, apoiada na figura do sujeito de direito, está apta à reivindicação do  
comando político da sociedade. Esta classe é a burguesia.  
Por isso, os chamados direitos do homem e do cidadão apenas surgem na arena  
política no momento em que a produção e circulação de mercadorias já tomou por  
completo a estrutura do organismo social. As formas mercantil e jurídica já moldaram  
o conjunto de nexos sociais através dos quais a sociedade engendra seu metabolismo,  
de modo que resta apenas conquista do poder político17.  
As declarações de direitos do século XVIII tinham como objetivo, portanto,  
forjar, em sentido amplo, a figura política do indivíduo à luz de sua figura jurídica.  
Para tanto, constroem-se duas formas de expressão: a do homem, ou seja, do  
indivíduo em sua vida privada, que transplanta as capacidades jurídicas do sujeito de  
direito à vida moral, religiosa, econômica etc.; e a do cidadão, isto é, a do indivíduo  
no âmbito político em sentido estrito, ou seja, transplantando as capacidades jurídicas  
do sujeito de direito à participação na gestão e administração da máquina estatal.  
Por isso, ao contrário do sujeito de direito, cuja existência concreta independe  
do Estado, a existência do homem e do cidadão dependem da mediação política, tanto  
para seu surgimento (ligado à classe social), quanto para a sua consolidação e  
manutenção (ligada ao Estado).  
Nesse sentido, a formulação teórica do conceito de direitos humanos, tal como  
estabelecida por Alysson Leandro Mascaro, está teoricamente incorreta, ao menos  
quando se pretende uma leitura efetuada à luz da obra de Karl Marx e Evgeny  
Pachukanis. De fato, o autor observa:  
Os direitos humanos se configuram, estruturalmente, como uma espécie dos  
17 Esse movimento econômico-histórico é apresentado pela teoria tradicional do seguinte modo: “Como  
aponta Perez Luño, o processo de elaboração doutrinária dos direitos humanos, tais como reconhecidos  
nas primeiras declarações do Século XVIII, foi acompanhado, na esfera do direito positivo, de uma  
progressiva recepção de direitos, liberdades e deveres individuais, que podem ser considerados os  
antecedentes dos direitos fundamentais. É na Inglaterra da Idade Média, mais especificamente no Século  
XIII, que encontramos o principal documento referido por todos que se dedicam ao estudo da evolução  
dos direitos humanos. Trata-se da Magna Charta Libertatum, pacto firmado em 1215 pelo Rei João  
Sem-Terra e pelos bispos e barões ingleses” (SARLET, 2012, p. 41).  
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direitos subjetivos. Suas lógicas e seu processo de formação são iguais, ainda que  
ressalvadas ambiguidades e contradições nessa dinâmica [...]. Assim, os direitos  
humanos são um quantum de direitos subjetivos específicos que venha a ser dado a  
partir da forma geral do sujeito de direito. Para que haja direitos humanos, é preciso  
que, antes, os indivíduos naturais sejam considerados sujeitos de direito. Então, após  
essa qualidade formadora, os chamados direitos humanos são certo grupo de  
garantias políticas e jurídicas específicas respaldadas às mesmas individualidades  
(MASCARO, 2017, p. 116/117-118, passim)18.  
Mascaro acerta, sem dúvida, quando relaciona os direitos humanos ao sujeito  
de direito. Erra, no entanto, no momento em que os caracteriza como direitos  
subjetivos. Esta conceituação o afasta da crítica marxista e o aproxima do idealismo  
abstrato, típico da teoria tradicional, que procura ver “direitos subjetivos” em  
quaisquer reivindicações que os indivíduos ou grupos sociais possam fazer.  
Ora, para Pachukanis a noção de direito subjetivo emerge no contexto de uma  
relação econômica bem concreta e delimitada, que é a troca de mercadorias. Fora  
desse contexto não existe direito subjetivo. De fato, o russo anota:  
Cada proprietário, assim como todos de seu círculo, compreende  
magnificamente bem que o direito que lhe assiste como proprietário  
tem em comum com o dever apenas o fato de ser seu polo oposto. O  
direito subjetivo é primário, pois ele, em última instância, apoia-se nos  
interesses materiais que existem independentemente de  
regulamentação externa, ou seja, consciente, da vida social [...] A  
esfera de domínio que envolve a forma do direito subjetivo é um  
fenômeno social atribuído ao indivíduo do mesmo modo que o valor,  
também um fenômeno social, é atribuído à coisa como produto do  
trabalho. O fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo  
da jurídico (PACHUKANIS, 2017, pp. 109/124; 2003, pp. 99/117).  
Apenas há direito subjetivo onde há valor. Na ausência desta figura econômica,  
não há que se cogitar daquela. Ademais, o direito subjetivo apoia-se imediatamente  
em interesses materiais, independentemente de regulação externa, isto é, institucional  
ou estatal. Basta pensar no direito do comércio internacional, que se desenvolve  
bastante bem sem quaisquer regulamentações autoritárias. Recordemo-nos, pois, da  
18  
Mais à frente, o autor observa: “Os direitos humanos, como um tipo de direito subjetivo, estão  
perpassados pelo núcleo da estrutura da própria reprodução do capitalismo. Estado e norma jurídica  
secundam e conformam a condição de sujeitos de direito aos indivíduos constituídos a partir das  
relações entre as classes exploradoras e exploradas do capitalismo [...] Os direitos humanos, sendo um  
núcleo específico dos direitos subjetivos, são considerados, louvados e reputados como aqueles que  
promovem determinado padrão político e social de dignidade; essencialmente, porém, garantem as  
estruturas político-jurídicas necessárias à dinâmica de reprodução do próprio modo de produção  
capitalista” (MASCARO, 2017, pp. 122/123, passim).  
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famosa Lex Mercatoria.  
Assim, os direitos do homem e do cidadão, por demandarem a mediação  
política para a sua constituição, não podem ser considerados direitos subjetivos, ao  
menos do ponto de vista marxista. Dependem sempre da articulação no âmbito da  
classe social ou do Estado, o que os inviabiliza sempre que uma ou outro não estiverem  
dotados de força, poder ou disposição para os fazerem valer na prática.  
As declarações de direitos, tanto quanto a positivação destes em constituições,  
são manifestações de força política das classes sociais que os reivindicam. Por isso,  
nem umas, nem outras garantem a existência destes direitos na prática, ao contrário  
do que ocorre com os direitos subjetivos, que têm lugar no quotidiano da sociedade  
capitalista, independentemente da participação do Estado.  
Por isso, a chamada “eficácia” dos direitos humanos, cuja ausência é tão  
lamentada pela teoria tradicional, não é um problema jurídico, mas político19.  
A base jurídica para as figuras do homem e do cidadão já está dada, uma vez  
que a forma do sujeito de direito está em plena operação. No entanto, é a luta política  
que faz com que aquelas figuras obtenham significação social concreta, isto é, deixem  
de figurar apenas e tão somente como linguagem normativa e passem a caracterizar  
relações sociais materiais. Isso apenas pode ocorrer através do constrangimento das  
forças institucionais à observância das disposições normativas.  
III. Circulação mercantil e sujeito de direito: diferença econômica e identidade  
jurídica  
O homem e o cidadão apresentados por Marx em Sobre a questão judaica são  
modos de sociabilidade ligados ao indivíduo burguês, egoísta, que cuida apenas e tão  
somente de seus negócios e não se preocupa com nada, além de seus interesses  
privados, orientados à indústria e comércio que geram lucro.  
Comparados aos privilégios feudais, que aquinhoavam por nascença e  
hereditariedade os suseranos da aristocracia, nobreza e clero, os direitos de primeira  
dimensão constituíram, sem dúvida, um progresso, pois representaram a demanda da  
burguesia, uma classe então em ascensão, pela dissolução dos vínculos da feudalidade,  
como a servidão e a ligação perpétua do camponês à terra e a um senhor.  
19  
A teoria tradicional que se pretende menos alienada já alcançou esta conclusão. Norberto Bobbio,  
por exemplo, observa: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto  
o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político” (BOBBIO,  
2004, p. 16).  
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Isso não significa que tais direitos devam ser considerados uma forma de  
emancipação. Desde sempre, Marx considera as liberdades individuais uma espécie de  
“prisão” para o indivíduo. Este se liberta dos grilhões feudais para se ver amarrado  
aos grilhões da economia de mercado; liberta-se do feudo para atar-se às correntes  
da indústria, comércio e lucro. Liberta-se da suserania, vassalagem e campesinato para  
recair na cadeia das liberdades individuais:  
A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no homem, só  
que no tipo de homem que realmente constituía esse fundamento, no  
homem egoísta. Esse homem, o membro da sociedade burguesa,  
passa a ser a base, o pressuposto do Estado político. Este o reconhece  
como tal nos direitos humanos. No entanto, a liberdade do homem  
egoísta e o reconhecimento dessa liberdade constituem, antes, o  
reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais  
e materiais que constituem seu teor vital. Consequentemente, o  
homem não foi libertado da religião. Ele ganhou a liberdade de  
religião. Ele não foi libertado da propriedade. Ele ganhou a liberdade  
de propriedade. Ele não foi libertado do egoísmo e do comércio. Ele  
ganhou a liberdade de comércio (MARX, 2010, pp. 52-53).  
Como vimos, é possível associar a figura do indivíduo burguês apresentado por  
Marx em Sobre a questão judaica ao possuidor de mercadorias exposto no início do  
capítulo 02, do Livro I, de O capital. Este não está menos amarrado às relações sociais  
do que aquele. Sua “liberdade” consiste em estar preso à relação jurídica, isto é, à  
forma da relação econômica da troca mercantil.  
Nesse sentido, é importante compreender que há, ainda no Livro I de O capital,  
uma passagem categorial importante, que vai do capítulo 02 ao capítulo 04, sobretudo  
no que concerne à compreensão da figura do sujeito de direito e, especificamente no  
que toca a este trabalho, dos direitos humanos de primeira geração.  
Esta passagem consiste no ressurgimento do guardião da mercadoria, que está  
no capítulo 02, como capitalista e trabalhador assalariado, no capítulo 04. Tal  
passagem, no entanto, precisa ser mediada pelas funções do dinheiro, apresentadas  
no capítulo 0320.  
Inicialmente, recorde-se que, no capítulo 02, compreende-se que as  
20 Como observa Christopher Arthur (numa passagem que deverá ser criticada no momento adequado),  
“a dialética sistemática, tal como empregada por Hegel e Marx, investiga as conexões conceituais entre  
as formas internas de uma dada totalidade; uma sequência de níveis categóricos estabelece-se, na qual  
formas mais desenvolvidas enraízam-se nas mais primordiais. Esta lógica não depende de modo algum  
do desenvolvimento histórico que primeiramente lançou as pré-condições elementares do sistema, pois  
estas são articuladas e fundamentadas no interior do próprio ordenamento lógico. O ordenamento  
lógico corresponde às relações internas do objeto, retraçando as formas mutuamente positivas que  
garantem a reprodução da totalidade” (ARTHUR, 2016, p. 92).  
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mercadorias, por serem coisas, não podem ir sozinhas ao mercado e trocarem-se umas  
pelas outras. É preciso voltar a atenção a seus possuidores, os guardiões de  
mercadorias, que devem ajustar suas vontades para que a troca ocorra.  
Neste momento, os guardiões se qualificam como pessoas, de modo que a  
relação social, objetivamente, sem a necessidade da norma estatal, produz os  
caracteres da liberdade, igualdade formal, propriedade privada e autonomia da  
vontade em suma: os sujeitos de direito.  
Ainda neste capítulo, Marx mostra como o dinheiro surge da circulação de  
mercadorias. Trata-se de uma mercadoria especial, cujo valor de uso possui  
características específicas que a habilitam à substituição de todas as outras no  
mercado: raridade, maleabilidade para fracionamento e facilidade de transporte.  
Assim, os metais preciosos, notadamente a prata e o ouro, deixam de ser  
simples mercadorias e assumem o papel de mercadoria universal, intercambiável por  
quaisquer outras, em qualquer localidade, isto é, dinheiro.  
Em seguida, no capítulo 03, Marx apresenta a chamada metamorfose das  
mercadorias ou circulação simples, que pode ser expressa pela fórmula MDM.  
Trata-se da troca de mercadoria por dinheiro (MD) ou venda, e posterior troca  
de dinheiro por mercadoria (DM) ou compra. Enfim, vender para comprar. O objetivo  
da circulação simples é contemplar necessidades individuais de consumo. Troca-se a  
mercadoria “A” por dinheiro para, depois, trocar o dinheiro pela mercadoria “B”. Assim,  
troca-se arroz por dinheiro e, depois, dinheiro por carne. Substitui-se o arroz pela  
carne, com a mediação do dinheiro. O cristal monetário funciona como medida de  
valores e meio de circulação.  
Note-se que a circulação MDM é a troca direta de mercadorias (MM) com a  
presença do dinheiro (D). Trata-se da complexificação daquela, na medida em que a  
forma particular do valor (M) é entremeada por sua forma universal (D).  
Do ponto de vista jurídico, a pessoa ou sujeito de direito que surge na troca  
direta de mercadorias (MM) ressurge na circulação simples (MDM) com os mesmos  
caracteres. A única diferença é que os guardiões das mercadorias são, agora, também  
possuidores de dinheiro. Sob a óptica econômica há diferença; do ponto de vista  
jurídico, não.  
Nada obstante, “a circulação de mercadorias distingue-se da troca direta de  
produtos não só formalmente, mas também essencialmente” (MARX, 2013, p. 185;  
1962, p. 126). Isso ocorre porque a presença do dinheiro (D) permite romper os limites  
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territoriais e temporais da troca direta, projetando a relação econômica no tempo e no  
espaço. Pode-se vender uma mercadoria na Itália, hoje, e comprar outra, na França,  
daqui a seis meses. Essa dinâmica transforma o dinheiro em meio de pagamento.  
De fato, na compra à vista (DM) o dinheiro funciona como meio de compra,  
pois se recebe a mercadoria no momento em que se transfere o cristal monetário. A  
projeção da relação econômica no tempo e no espaço viabiliza a alienação imediata  
da mercadoria pelo recebimento do dinheiro no futuro. Entrega-se a mercadoria agora,  
mas se receberá o dinheiro daqui a seis meses (M ... D). Como afirma Marx, “o vendedor  
se torna credor, e o comprador, devedor” (MARX, 2013, p. 208; 1962, p. 149).  
Do ponto de vista jurídico, credores e devedores são sujeitos de direito, tanto  
quanto vendedores e compradores ou permutadores diretos de mercadorias.  
No primeiro caso, a pessoa opta por um contrato de crédito; no segundo, de  
compra e venda; no terceiro, de escambo. Não há modificação de forma: todos são  
pessoas dotadas de liberdade, igualdade formal, propriedade privada e autonomia de  
vontade.  
Note-se, pois, que o movimento mercantil, por mais que seja diferente do ponto  
de vista econômico, (MM), (MDM) ou (M...D...M), é sempre o mesmo do ponto de  
vista jurídico.  
Em todas as situações são sujeitos de direito (SD) exercendo autonomamente  
sua liberdade contratual e escolhendo, a partir de suas vontades egoístas, os modelos  
de contratos mais adequados às suas necessidades particulares: (SD-SD), (SD-SD-SD)  
ou (SD...SD...SD).  
A principal transformação do dinheiro ocorre, no entanto, no capítulo 04. Aqui  
o dinheiro deixa de ser mero dinheiro e transforma-se em capital. Marx observa:  
Inicialmente, o dinheiro como dinheiro e o dinheiro como capital se  
distinguem apenas por sua diferente forma de circulação. A forma  
imediata da circulação de mercadorias é MDM, conversão de  
mercadoria em dinheiro e reconversão de dinheiro em mercadoria,  
vender para comprar. Mas ao lado dessa forma encontramos uma  
segunda, especificamente diferente: a forma DMD, conversão de  
dinheiro em mercadoria e reconversão de mercadoria em dinheiro,  
comprar para vender. O dinheiro que circula deste último modo  
transforma-se, torna-se capital e, segundo sua determinação, já é  
capital (MARX, 2013, pp. 223-224; 1962, p. 161-162).  
A circulação DMD ou circulação do dinheiro como capital significa comprar  
(DM) para vender (MD): compra-se açúcar e, logo em seguida ou algum tempo  
depois, vende-se o produto. É o oposto da circulação MDM, que significa vender  
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(MD) para comprar (DM): compra-se açúcar, troca-se por dinheiro e, com este último,  
compra-se carne. A primeira transforma o dinheiro em capital; a segunda o mantém  
apenas como dinheiro21.  
Em ambos os casos, no entanto, as circulações podem ser fracionadas em  
momentos que são idênticos. Tanto em DMD como em MDM, tem-se compras (D–  
M) e vendas (MD). A diferença está apenas na ordem em que ocorrem.  
Nesse sentido, do ponto de vista jurídico, não há diferença entre as circulações.  
Vendedores e compradores ou credores e devedores, conforme o caso, são sempre  
sujeitos de direito (SD) escolhendo os contratos que melhor atendam a seus interesses.  
Tanto em DMD, como em MDM, a projeção jurídica é SDSDSD.  
Nada obstante, enquanto a circulação MDM visa a contemplar necessidades  
individuais, pois significa a substituição de uma mercadoria por outra, isto é, um  
produto diferente do outro, a circulação DMD visa ao dinheiro, ou seja, a um fim  
que é qualitativamente idêntico ao início. Dinheiro é sempre igual a dinheiro. Isso  
significa que há, em DMD, uma tautologia. Marx anota:  
Na circulação simples de mercadorias, os dois extremos têm a mesma  
forma econômica. Ambos são mercadorias. Eles são, também,  
mercadorias de mesma grandeza de valor. Porém, são valores de uso  
qualitativamente diferentes, por exemplo, cereal e roupas. A troca de  
produtos, a variação das matérias nas quais o trabalho social se  
apresenta é o que constitui, aqui, o conteúdo do movimento.  
Diferentemente do que ocorre na circulação DMD. À primeira vista,  
ela parece desprovida de conteúdo, por ser tautológica, mas ambos  
os extremos têm a mesma forma econômica. Ambos são dinheiro,  
portanto, não-valores de uso qualitativamente distintos, uma vez que  
o dinheiro é justamente a figura transformada das mercadorias, na  
qual estão apagados seus valores de uso específicos. Trocar £ 100  
por algodão e, em seguida, voltar a trocar esse mesmo algodão por £  
100, ou seja, trocar dinheiro por dinheiro, o mesmo pelo mesmo,  
parece ser uma operação tão despropositada quanto absurda. Uma  
quantia de dinheiro só pode se diferenciar de outra quantia de  
dinheiro por sua grandeza. Assim, o processo DMD não deve seu  
conteúdo a nenhuma diferença qualitativa de seus extremos, pois  
ambos são dinheiro, mas apenas à sua distinção quantitativa. Ao final  
do processo, mais dinheiro é tirado da circulação do que nela fora  
lançado inicialmente. O algodão comprado por £ 100 é revendido por  
£ 100 + £ 10 ou £ 110. A forma completa desse processo é, portanto,  
DM–D’, onde D’ = D + Δ D, isto é, a quantia de dinheiro inicialmente  
21  
A modificação da ordem da circulação, de M-D-M para D-M-D, representa uma modificação social  
estrutural que faz toda a diferença. A partir daí, todo o metabolismo da sociedade passa a seguir a  
lógica capitalista. Giannotti observa: “No plano do pensamento meramente abstrato é fácil passar do  
modo de produção simples de mercadoria (M-D-M-D ...) para o modo de produção capitalista. Basta  
cortar a sequência e começar pelo dinheiro (D-M-D-M ...). Mas o processo mudou completamente de  
sentido. O proprietário de D não é um entesourador, mas alguém que acumula dinheiro para investi-lo  
em busca de lucro. Sempre tendo um sistema legal a seu lado” (GIANNOTTI, 2013, p. 69).  
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adiantada mais um incremento. Esse incremento ou excedente sobre  
o valor original, chamo de mais-valor (surplus value). O valor  
originalmente adiantado não se limita, assim, a conservar-se na  
circulação, mas nela modifica sua grandeza de valor, acrescenta a essa  
grandeza um mais-valor ou valoriza-se. E esse movimento o  
transforma em capital (MARX, 2013, pp. 226-227; 1962, pp. 164-  
165).  
O que transforma dinheiro em capital é a expansão de valor que ocorre por  
intermédio da circulação DMD.  
Ao final do processo não se pode retirar do circuito a mesma quantia de  
dinheiro que fora lançada no início. Isso não faria sentido. Mais inteligente seria  
entesourar, ou seja, manter o dinheiro consigo, sem o lançar aos perigos da circulação.  
Por isso, na circulação DM–D o objetivo é transformar D em D’, ou seja, a quantia  
inicial, mais um acréscimo. O resultado é DM–D’. O símbolo (’) representa o acréscimo  
de valor que provém da circulação: o famoso mais-valor22.  
Nesse sentido, Marx observa que, “como portador consciente desse movimento,  
o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o  
ponto de partida e de chegada do dinheiro” (MARX, 2013, p. 229; 1962, p. 167).  
Do ponto de vista econômico, a circulação DM–D’ revela a presença de uma  
nova figura, que é o capitalista, ou seja, o indivíduo que impulsiona o movimento, isto  
é, que dá origem à circulação, na medida em que desembolsa a quantia inicial D.  
Sob o aspecto jurídico, no entanto, esta figura assume a forma de sujeito de  
direito. De fato, a circulação DM–D’ começa com um contrato de compra, tanto quanto  
a circulação MDM se encerra com este mesmo contrato. O fato de que o dinheiro,  
na circulação DM–D’, amplia sua magnitude, não modifica em nada os negócios  
jurídicos que são celebrados para que isso ocorra. O mais-valor é realizado ao final do  
processo e não nos seus entremeios.  
Nesse sentido, tanto em DM, como em M–D’, compras e vendas são pactuadas  
por pessoas dotadas de liberdade, igualdade formal, propriedade privada e autonomia  
da vontade. O capitalista é tão sujeito de direito quanto o credor ou devedor, o  
comprador ou vendedor e o permutador simples de mercadorias.  
A circulação DM–D’ apresenta-se juridicamente como SDSDSD.  
22 Anselm Jappe, a propósito, anota: “Para se conservar dentro da circulação, o valor tem de desenvolver  
uma forma no âmbito da qual, no final do processo de circulação o valor seja maior do que no início.  
Na sociedade mercantil desenvolvida, a primeira fórmula converte-se então numa outra: dinheiro-  
mercadoria-dinheiro (D-M-D) (...) Não se exagera muito se se afirmar que a conversão da fórmula M-D-  
M na fórmula D-M-D’ encerra em si toda a essência do capitalismo” (JAPPE, 2006, p. 60-61, passim).  
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Isso significa que o advento da circulação do dinheiro como capital (DM–D’)  
não modifica o complexo de relações jurídicas que já está formado pela troca direta  
de mercadorias (MM), pela circulação simples (MDD) ou pela circulação de  
mercadorias à base de crédito (M...D...M).  
Pelo contrário, como o capital se transforma em sujeito e substância  
automáticos em processo23, ou seja, alimenta-se a si mesmo infinitamente, ampliando  
as magnitudes de valor em jogo em escalas cada vez mais elevadas, ele reconstitui a  
todo momento as relações de troca pelas quais se estabelece e, com isso, também as  
relações jurídicas.  
Isso significa que o ordenamento jurídico é criado pelo capital. A  
complexificação dos sistemas de direito, quer sejam ligados à civil law ou à common  
law, dependem, em última instância, do estabelecimento, expansão e complexificação  
das relações capitalistas de produção.  
Finalmente, é importante registrar que a identidade dos sujeitos de direito não  
é produzida pelo fenômeno jurídico, mas pelo substrato econômico. A forma jurídica  
reflete a identidade que subjaz ao movimento econômico.  
De fato, embora, as formas econômicas sejam formalmente distintas entre si,  
revezando-se entre mercadoria (M) e dinheiro (D) que, por sua vez, ocupam posições  
distintas a depender da forma da circulação, elas não passam de expressões de uma  
identidade originária, que é o valor.  
Ora, uma quantidade de valor é idêntica a outra, não importa se expressa em  
mercadoria ou dinheiro. Assim, mil reais são mil reais, quer assumam a forma de dez  
notas de cem reais; vinte notas de cinquenta reais; vinte quilos de certa qualidade de  
carne ou a fração de uma pedra de diamante.  
A identidade jurídica, como reflexo da identidade econômica é, no entanto,  
fundamental para a compreensão dos direitos humanos, pois ela é o ponto de apoio  
da norma universal, geral e abstrata suposta no interior da sociedade, a partir da qual  
os direitos do homem e do cidadão são enunciados em declarações ou normas de  
direito positivo.  
IV. O proprietário da força de trabalho e os direitos do homem e do cidadão  
Por mais consentânea que seja com o circuito de relações jurídicas pautadas  
23 “O valor se torna, assim, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital” (MARX, 2013,  
p. 231; 1962, p. 170).  
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nos padrões de equivalência e identidade, a circulação DM–D’ carrega consigo uma  
importante contradição.  
De fato, o primeiro momento da circulação do dinheiro como capital, a compra  
(D-M), coincide com o último momento da circulação simples de mercadorias (MD–  
M); do mesmo modo, o último momento daquela, a venda (MD), coincide com o  
primeiro momento desta. Por outro lado, a circulação simples não passa da troca direta  
de mercadorias (MM) entremeada pelo dinheiro (D). Isso significa que não há a criação  
de valor, nem em uma, nem em outra.  
Desse modo, a circulação do dinheiro como capital não pode gerar a expansão  
do valor, pois tanto na circulação simples, como na permuta direta, o que se trocam  
são valores idênticos, de igual magnitude. Como anota Marx, “na medida em que a  
circulação de mercadorias opera tão somente uma mudança formal de seu valor, ela  
implica, quando o fenômeno ocorre livre de interferências, a troca de equivalentes”  
(MARX, 2013, p. 233; 1962, p. 173).  
Se a troca de valores equivalentes não pode gerar mais-valor, e a circulação do  
dinheiro com capital cinde-se em duas trocas de equivalentes, (D M e M D), de  
onde surge, então, o excedente de valor?  
A circulação DM–D’ deve ser desdobrada para que seja compreendida  
adequadamente. Na realidade, ela se apresenta assim: D – M ... P ... M’ – D’.  
O símbolo (...) significa a interrupção da circulação. Após a compra da  
mercadoria por seu valor, ou seja, pautada pela equivalência (DM), o capitalista se  
desloca a um ambiente distinto da circulação, que é a esfera da produção (P)24.  
Ali ele agrega valor à mercadoria adquirida, expandindo sua magnitude. Uma  
vez que o processo produtivo esteja concluído ele volta à circulação, mas agora com  
uma mercadoria dotada de mais valor do que aquela inicialmente adquirida (M’).  
Finalmente, ele vende a mercadoria valorizada, não por um valor acima do que  
ela possui, mas por seu valor exato. O mais-valor não surge da circulação, mas da  
produção. Por isso, a venda da mercadoria (M’–D’) também se caracteriza pelo  
intercâmbio de valores equivalentes.  
Do ponto de vista jurídico, a fórmula D – M ... P ... M’ – D’ pode ser representada  
24  
Como observa Christopher Arthur, “a transição-chave em O capital não é da produção mercantil  
simples à produção capitalista, mas da ‘esfera da circulação simples ou troca de mercadorias’ ao ‘edifício  
oculto da produção’. Uma vez feita esta reorientação, a circulação é tomada com a esfera na qual as  
relações de produção estão refletidas” (ARTHUR, 2016, p. 40). Este argumento será retomado na  
segunda parte deste trabalho. Vide nota de rodapé nº 01.  
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assim: SD SD ... P ... SD SD. O surgimento do mais-valor, que ocorre na produção,  
mantém o circuito jurídico intacto. Afinal, como observa Marx, “eventos que ocorram  
entre a compra e venda, fora da esfera da circulação, não alteram em nada esta forma  
do movimento” (MARX, 2013, p. 231; 1962, p. 170).  
A questão que se coloca, portanto, é a seguinte: como funciona a produção  
do capital? Em outras palavras, como o capitalista agrega valor, na esfera produtiva,  
às mercadorias adquiridas na esfera da circulação sem violar o parâmetro de  
equivalência das trocas, mantendo intactas as subsequentes relações jurídicas? Marx  
explica:  
A mudança de valor do dinheiro destinado a se transformar em capital  
não pode ocorrer nesse mesmo dinheiro, pois em sua função como  
meio de compra e de pagamento ele realiza apenas o preço da  
mercadoria que ele compra ou pela qual ele paga, ao passo que,  
mantendo-se imóvel em sua própria forma, ele se petrifica como um  
valor que permanece sempre o mesmo. Tampouco pode a mudança  
ter sua origem no segundo ato da circulação, a revenda da mercadoria,  
pois esse ato limita-se a transformar a mercadoria de sua forma  
natural em sua forma-dinheiro. A mudança tem, portanto, de ocorrer  
na mercadoria que é comprada no primeiro ato DM, porém não em  
seu valor, pois equivalentes são trocados e a mercadoria é paga pelo  
seu valor pleno. Desse modo, a mudança só pode provir de seu valor  
de uso como tal, isto é, de seu consumo. Para poder extrair valor do  
consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter  
a sorte de descobrir no mercado, no interior da esfera da circulação,  
uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica  
peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto,  
objetivação de trabalho e, por conseguinte, a criação de valor. E o  
possuidor do dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria  
específica: a capacidade de trabalho, ou força de trabalho (MARX,  
2013, pp. 241-242; 1962, p. 181).  
A criação do mais-valor na esfera da produção depende da aquisição, pelo  
capitalista, de uma mercadoria especial: a força de trabalho.  
Como observa Marx, por força de trabalho se entende “o complexo das  
capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade, na personalidade viva de  
um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de  
qualquer tipo” (MARX, 2013, p. 242; 1962, p. 181). Assim, a força de trabalho é a  
capacidade física e mental que homens e mulheres têm para trabalhar. No capitalismo,  
ela se transforma em mercadoria, ou seja, possui valor de troca e valor de uso25.  
25  
“O que caracteriza a época capitalista é, portanto, que a força de trabalho assume para o próprio  
trabalhador a forma de uma mercadoria que lhe pertence, razão pela qual seu trabalho assume a forma  
do trabalho assalariado. Por outro lado, apenas a partir desse momento universaliza-se a forma-  
mercadoria dos produtos do trabalho” (MARX, 2013, p. 245; 1962, p. 184, nota de rodapé nº 41).  
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O valor de troca designa quanto vale a força de trabalho, isto é, a quantidade  
de trabalho abstrato depositado em sua composição e, portanto, a quantia de dinheiro  
que dever ser oferecida em troca de seu uso. O valor da força de trabalho coincide  
com o valor dos bens necessários à sobrevivência do trabalhador ou trabalhadora, tais  
como alimentação, vestuário, moradia etc. Esta cesta de bens, expressa em dinheiro,  
chama-se salário. Desse modo, o trabalhador e a trabalhadora trocam sua força de  
trabalho por salário.  
O valor de uso significa a qualidade física da mercadoria, isto é, as  
características materiais que, uma vez consumidas, contemplam alguma necessidade  
concreta. O valor de uso da força de trabalho é o próprio trabalho, ou seja, a atividade  
humana que, agregada às matérias de natureza, resulta em bens que, no capitalismo,  
podem ser alienados, ou seja, assumem a forma de mercadoria. A força de trabalho  
pode ser usada pelo próprio trabalhador, quando costura para si mesmo ou pode ser  
vendida para um terceiro que possua dinheiro, como ocorre no capitalismo.  
Como qualquer mercadoria, a força de trabalho é adquirida na esfera da  
circulação, juntamente com outros bens e insumos, que se caracterizam como matérias-  
primas. Na esfera da produção ocorre a fusão entre força de trabalho e matérias-  
primas, ou seja, o trabalhador ou trabalhadora efetivamente trabalham os produtos  
previamente adquiridos pelo capitalista, depositando neles sua energia vital e dando  
ensejo a novas mercadorias, dotadas de maior valor do que aquele originalmente  
lançado na produção. Este valor a mais ou mais-valor provém do consumo da força de  
trabalho, ou seja, da extração de trabalho do empregado ou empregada.  
Assim, a fórmula D – M ... P ... M’ – D’ deve ser desdobrada para uma melhor  
compreensão. Ela se apresenta assim: D – M ... P [MP + FT] ... M’ – D’.  
A esfera da produção (P) deve ser compreendida como fusão das matérias-  
primas (MP) à força de trabalho (FT), de modo que ambas são consumidas no processo.  
As primeiras experimentam uma modificação de seus valores de uso, de maneira que  
o algodão se transforma em tecido, por exemplo. A segunda experimenta a drenagem  
de sua energia vital, ou seja, o exercício de atividade laborativa pelo trabalhador ou  
trabalhadora, isto é, o trabalho que deve ser agregado às matérias-primas modificando  
sua características físicas e adicionando mais trabalho àquele que já estava  
incorporado nos bens. Este mais trabalho é a origem do mais-valor, que será realizado  
na circulação pela troca das mercadorias valorizadas ao final do processo (M’–D’).  
O decisivo, aqui, é compreender que a força de trabalho é uma mercadoria.  
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Portanto, o trabalhador ou a trabalhadora são seus guardiões, isto é, os possuidores  
desta mercadoria. Eles devem levá-la ao mercado para que seja trocada.  
Como todo proprietário de mercadorias, o empregado ou a empregada devem  
contratar para que a venda seja efetuada. Neste caso, eles devem contratar com o  
capitalista, ou seja, o possuidor do dinheiro que dará início ao circuito DM–D’.  
Ora, aquele que leva uma mercadoria ao mercado para trocar, ou seja, o  
possuidor da mercadoria, qualifica-se como pessoa ou sujeito de direito por ocasião  
do contrato. Isso ocorre no caso da troca direta (MM), da circulação simples (MDM)  
e, também, na circulação do dinheiro como capital (DM–D’).  
Portanto, o empregado e a empregada, na relação de compra e venda da força  
de trabalho com o capitalista, também se qualificam como pessoas, dotado dos  
mesmos atributos que quaisquer sujeitos de direito: liberdade, igualdade formal,  
propriedade privada e autonomia da vontade. Marx observa:  
A troca de mercadorias por si só não implica quaisquer outras relações  
de dependência além daquelas que resultam de sua própria natureza.  
Sob esse pressuposto, a força de trabalho só pode aparecer como  
mercadoria no mercado ne medida em que é colocada à venda ou é  
vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a  
própria força de trabalho. Para vendê-la como mercadoria, seu  
possuidor tem de poder dispor dela, portanto, ser o livre proprietário  
de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor de  
dinheiro se encontram no mercado e estabelecem uma relação mútua  
como iguais possuidores de mercadorias, com a única diferença de  
que um é comprador e o outro, vendedor, sendo ambos, portanto,  
pessoas juridicamente iguais. A continuidade dessa relação requer  
que o proprietário da força de trabalho a venda apenas por um  
determinado período, pois, se ele a vende inteiramente, de uma vez  
por todas, vende a si mesmo, transforma-se de homem livre num  
escravo, de um possuidor de mercadoria numa mercadoria. Como  
pessoa, ele tem constantemente de se relacionar com sua força de  
trabalho como sua propriedade e, assim, como sua própria  
mercadoria, e isso ele só pode fazer na medida em que a coloca à  
disposição do comprador apenas transitoriamente, oferecendo-a a  
consumo por um período determinado, portanto, sem renunciar, no  
momento em que vende a sua força de trabalho, a seus direitos de  
proprietário sobre ela (MARX, 2013, pp. 242-243; 1962, p. 181-182,  
grifo meu).  
Note-se, como afirma Marx, que por ocasião da compra e venda da força de  
trabalho, o trabalhador ou a trabalhadora aparecem como pessoas juridicamente iguais  
ao capitalista, ou seja, como sujeitos de direito26.  
26  
No capítulo 04 de Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis observa: “O servo está um uma  
situação de completa subordinação ao senhor justamente porque esta relação de exploração não exige  
uma formulação jurídica particular. O trabalhador assalariado surge no mercado como um livre vendedor  
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Sob a perspectiva do método dialético, percebe-se que os guardiões de  
mercadorias que surgiram no capítulo 02, assumindo a qualidade de sujeitos de direito  
e ajustando suas vontades para que a troca ocorresse, ressurgem agora, no capítulo  
04, como proprietários da força de trabalho e de dinheiro, ou seja, diferentes do ponto  
de vista social e econômico, mas com idênticos atributos jurídicos e formais, ajustando  
suas vontades para que o contrato seja realizado.  
A fórmula econômica D – M ... P [MP + FT] ... M’ – D’ pode ser traduzida  
juridicamente do seguinte modo: SD SD ... P [MP + FT] ... SD SD. O circuito jurídico  
é totalmente preservado com a produção do capital.  
Assim, o trabalhador ou a trabalhadora, tanto quanto o capitalista, são pessoas  
ou sujeitos de direito, dotados de liberdade, igualdade formal, propriedade privada e  
autonomia da vontade, aptos a contratarem livremente no mercado, dispondo de suas  
mercadorias da maneira que bem lhes aprouver. Nesse sentido, o proletário ou  
proletária se sentem tão bem na esfera da circulação mercantil quanto quaisquer  
outros proprietários de mercadorias. Marx anota:  
A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se  
move a compra e venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro  
Éden dos direitos naturais do homem. Ela é o reino exclusivo da  
liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade,  
pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo,  
a força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles  
contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O  
contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão  
legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam  
um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam  
equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe  
apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si  
mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de  
sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses  
privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo  
mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em  
consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os  
auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a  
obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral  
(MARX, 2013, pp. 250-251; 1962, pp. 189-190, grifo meu).  
O início do capítulo 02, do Livro I, de O capital, ressurge no final do capítulo  
04 ressignificado, isto é, com determinações mais complexas e abstrações mais  
concretas.  
de sua força de trabalho porque a relação capitalista de exploração é mediada pela forma jurídica do  
contrato. Acredita-se que esses exemplos sejam suficientes para se admitir o significado decisivo da  
categoria de sujeito para a análise da forma jurídica” (PACHUKANIS, 2013, p. 118; 2003, p. 110).  
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Naquele momento os guardiões de mercadorias dispõem de coisas que foram  
produzidas pelo trabalho próprio. Aqui houve uma complexificação, de modo que uma  
parte dispõe da forma universal do valor, o dinheiro (o capitalista), e a outra parte  
detém a forma particular do valor, a força de trabalho (o trabalhador ou trabalhadora).  
Aquela relação jurídica, cuja forma é o contrato, reconhecida legalmente ou não,  
ressurge agora. Se do ponto de vista econômico elas são diferentes, pois lá se deparam  
mercadoria com mercadoria (MM), enquanto aqui se deparam dinheiro e força de  
trabalho (DFT), do ponto de vista jurídico elas são idênticas, pois em ambos os casos  
são sujeitos de direito contratando (SDSD). Assim, à forma-mercadoria da força de  
trabalho corresponde a forma de sujeito de direito do trabalhador ou trabalhadora.  
Ora, se o sujeito de direito oferece a forma a partir da qual a figura do homem  
e do cidadão se estabelecem como modos de socialidade dos chamados direitos  
humanos, é evidente que o trabalhador e a trabalhadora, por assumirem a forma de  
sujeitos de direito no momento da compra e venda da força de trabalho, também se  
sentem contemplados pelas figuras do homem e do cidadão.  
Portanto, o empregado e a empregada, do ponto de vista da circulação de  
mercadorias e, portanto, dos circuitos jurídicos por ela engendrados, estão aptos a  
receberem a forma do homem e do cidadão e os respectivos atributos por elas  
contemplados. Também gozam das liberdades clássicas, da propriedade privada, da  
igualdade formal e da segurança jurídica.  
Ao utilizar a alegoria do “Éden”, Marx, apesar da ironia, está falando sério. A  
circulação mercantil é a sede dos direitos naturais do homem. É precisamente ali, por  
ocasião da troca de mercadorias e do estabelecimento do contrato entre sujeitos de  
direito, que surgem concretamente as formas de sociabilidade que conhecemos como  
liberdade, igualdade, propriedade e segurança.  
Considerada isoladamente, isto é, sem conexão com a esfera da produção, a  
circulação de mercadorias parece, de fato, um paraíso. Contratos são feitos porque as  
pessoas querem, já que ninguém as obrigam; todos são iguais, uma vez que carregam  
consigo somas idênticas de valor; a propriedade privada impera, já que a transferência  
mercantil depende apenas e tão somente da concordância de cada um. Todos cuidam  
do seu interesse próprio, sem preocupação com os demais.  
Além do mais, figura do “Éden” nos permite estabelecer um paralelo com o item  
04, do capítulo 01, que trata do famoso fetiche da mercadoria. De fato, naquele  
momento Marx observa que a mercadoria, apesar de ser uma coisa trivial, é dotada de  
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“sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. Uma mesa, por exemplo, assim que  
aparece como mercadoria “mantém os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo  
diante de todas as outras mercadorias (...)” (MARX, 2013, p. 146; 1962, p. 85, passim).  
Esta inversão dialética (os pés no chão, mas a cabeça para baixo) é fundamental  
para compreender o método de Marx.  
A forma de mercadoria subverte o sentido do produto do trabalho humano. A  
atividade humana prático-produtiva (o trabalho) depositada no produto mercantil  
desaparece, aparecendo apenas o aspecto quantitativo em que uma mercadoria se  
troca por outra, ou seja, seus valores. Assim, “as relações entre produtores, nas quais  
se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma  
relação social entre os produtos do trabalho” (MARX, 2013, p. 147; 1962, p. 86).  
Isso significa que a relação social por intermédio da qual se trocam mercadorias  
aparece como relação entre coisas, e não entre indivíduos. Aos olhos destes, parece  
que o valor da mercadoria não tem qualquer relação com o trabalho que a produziu,  
sendo algo implícito a ela, ou seja, que se encontra nos átomos que a compõem. Marx  
observa:  
Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar  
na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro  
humano parecem dotados de vida própria, como figuras  
independentes que travam relações umas com as outras e com os  
homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os  
produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola  
aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como  
mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de  
mercadorias (MARX, 2013, pp. 147-148; 1962, pp. 86-87).  
Ora, se o fetiche da mercadoria significa que uma relação social aparece como  
uma relação entre coisas, e não entre indivíduos, isso significa que o guardião da  
mercadoria se submete inteiramente à lógica mercantil, estando, portanto, sujeito à  
mercadoria. Ela é, pois, sujeito de direito.  
Nada obstante, como vimos, os portadores de mercadorias são pessoas. Desse  
modo, o fetiche da mercadoria é transpassado ao sujeito de direito. Assim, esta figura  
também assume caráter físico-metafísico, ou seja, existe apenas no contexto de uma  
relação social específica, que é a troca de valores idênticos.  
Por isso, a ligação que se pode estabelecer entre Sobre a questão judaica e o  
capítulo 02, do Livro I, de O capital, pode ser replicada ao capítulo 04, em que as  
abstrações do capítulo segundo são repostas num nível superior de concretude.  
Isso significa que os direitos do homem e do cidadão também contemplam os  
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trabalhadores e trabalhadoras, sujeitos de direito que contratam livremente no  
mercado. Por isso, não faz sentido para o marxismo a crítica negativa, não dialética,  
dos direitos de primeira dimensão.  
Estas formas de sociabilidade abrangem relações sociais e não indivíduos. As  
relações que, de alguma maneira, atraiam para si a forma do sujeito de direito, ainda  
que não sejam estritamente jurídicas, estão aptas à configuração concretas da figura  
do homem e do cidadão e, portanto, dos atributos que a acompanham.  
Não por outra razão, os discursos de direita e extrema direita que apelam às  
noções de liberdade e propriedade privada, prometendo a defesa radical destas,  
seduzem e conquistam os proletários e proletárias, enquanto o discurso progressista,  
muitas vezes crítico dos direitos humanos de primeira dimensão, afastam a classe  
trabalhadora.  
A defesa do proletariado não passa pela crítica simplesmente negativa e não  
dialética dos direitos humanos, mas pela compreensão crítico-positiva de sua natureza  
constitutiva e pela luta por sua superação dialética.  
Conclusões  
A apresentação efetuada até o momento não permite dizer o que são os direitos  
humanos, mas permite dizer o que eles não são. Definitivamente, não são espécies de  
direitos subjetivos. Estes apenas existem concretamente no âmbito da troca de  
mercadorias ou da compra e venda da força de trabalho. Fora deste contexto, são  
apenas abstrações, mais ou menos concretas, conforme o caso.  
A compreensão da natureza específica dos direitos humanos depende da  
mediação política. É verdade que eles assumem a forma jurídica, mas esta forma é  
apenas uma projeção. Eles dependem, antes de tudo, da articulação de uma classe  
social: a burguesia. A partir daí, a luta de classes os transforma em categorias  
universais, aplicáveis também aos trabalhadores e trabalhadoras.  
Por isso, a adequada compreensão da natureza dos direitos humanos depende,  
antes, da adequada compreensão das classes sociais e de sua organização política,  
isto é, do Estado nacional. Isso sem mencionar o desdobramento internacional das  
lutas de classes, o que passa pelas relações entre Estados nacionais no âmbito externo,  
como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas etc.  
A natureza dos direitos de primeira dimensão, por selarem, no nível político, os  
atributos jurídicos do sujeito de direito, seduzem a classe trabalhadora como um canto  
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de sereia. Por isso, os discursos de direita e extrema direita, que apelam para a defesa  
da liberdade, da propriedade privada, da igualdade formal e da segurança, atraem os  
trabalhadores e trabalhadoras que, submersos na ideologia da sociedade capitalista,  
interpretam-se a si próprios como empreendedores natos.  
Uma vez que conquistam o poder político, as forças conservadoras se põem  
logo e destruir os direitos humanos que supostamente defendiam, pois sabem que sua  
linguagem universal e humanista, por mais irônica que seja, funciona como uma  
espécie de baliza aos abusos do poder estatal.  
Por isso, as forças progressistas em geral, e os marxistas em particular,  
cometem um gravíssimo equívoco quando subestimam a potência política de  
resistência ligada aos direitos humanos, tratando-os como meras “ilusões” ou artifícios  
criados pelas classes dominantes. Numa época de avanços do totalitarismo de direita,  
tais direitos surgem como polo aglutinador e divisa comum para lutas democráticas.  
É no mínimo uma irracionalidade, para não dizer crua estupidez, fazer a crítica  
meramente negativa e não dialética dos direitos humanos. Renuncia-se a um  
importante espaço institucional de lutas de resistência pelo simples fato de não se  
compreender adequadamente a natureza de um objeto. Como diria Marx, a ignorância  
nunca ajudou a libertar ninguém.  
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Como citar:  
CASALINO, Vinícius. Os direitos humanos à luz de O capital: elementos para uma  
aproximação (Parte 01). Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 336-366; jan.-  
jun., 2024  
Verinotio  
366 |  
ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 336-366 jan.-jun., 2024  
nova fase  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.713  
Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das  
Glosas marginais ao Programa de Gotha  
Critique of the idea of justice in Marx based on the  
Marginal glosses to the Gotha Program  
Arthur Bastos Rodrigues*  
Resumo: Este artigo faz uma análise bibliográfica  
crítica sobre a ideia de justiça em Marx, a partir  
das considerações marxianas ao Programa de  
Gotha de 1875, procurando identificar os  
fundamentos apresentados pelos autores (as) na  
demarcação da questão central, tendo como  
parâmetro de análise as considerações de Marx  
e Engels na crítica do direto e da justiça.  
Abstract: This paper conducts  
a
critical  
bibliographic analysis of the notion of justice in  
Marx, focusing on the author's considerations  
regarding the 1875 Gotha Program. The aim is  
to identify the foundations presented by the  
authors in outlining the central issue, using as a  
parameter the reflections of Marx and Engels in  
the critique of law and justice.  
Palavras-chave: programa de Gotha; Marx;  
Justiça; Direito.  
Keywords: Gotha Program; Marx; Justice; Law.  
I Introdução  
A ideia de justiça nos apresenta cotidianamente como um assédio da  
moralidade que complementa o direito, muitas vezes, no ímpeto voluntarista e crítico  
daquilo que se denuncia como injusto, de modo que, comumente como denúncia de  
injustiça social, em busca de reconhecimento e redistribuição, que a filosofia e a teoria  
do direito amplamente desenvolveram. E com a denúncia da injustiça da chamada  
questão social”, denunciar como “injusto” até o próprio sistema capitalista.  
A questão geral aqui colocada sobre a fraseologia do justo e do injusto,  
incrustrada na dinâmica de generalização da vida cotidiana, é como a relação estreita  
entre direito e justiça, na perspectiva marxista, apresenta-se ligada ao desenvolvimento  
do modo de produção da sociedade civil-burguesa.  
Trata-se de uma pesquisa teórico-bibliográfica sobre o problema da justiça em  
Marx e no marxismo, em que se debate de forma delimitada parte da bibliografia em  
periódicos nacionais que trata, direta ou indiretamente, da ideia de justiça a partir do  
autor alemão. Tendo em vista que determinadas passagens das Glosas Marginais  
* Professor Adjunto DCJ/UFPB. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais UFF. arthurbr_1@hotmail.com.  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
nova fase  
 
Arthur Bastos Rodrigues  
Críticas do Programa de Gotha (2012) apareceram de modo preponderante nos textos  
encontrados, em que há uma valorização positiva da ideia de justiça, procurou-se  
balizar o debate, especialmente, a partir dessas considerações críticas de Marx sobre  
o direito e, consequentemente, a justiça.  
Apresenta-se, inicialmente, elementos que indicam a posição determinada de  
Marx e Engels como críticos do direito e da justiça, com os debates do direito como  
ideologia e a preponderância da esfera produtiva. Adiante, apresenta-se a  
sistematização crítica dos textos acadêmicos encontrados em bancos de dados  
bibliográficos digitais1, publicados no período mais recente em periódicos nacionais  
no Brasil.  
A maior parte dos textos aponta direta ou indiretamente uma ideia de justiça  
em Marx, ou mesmo uma teoria marxista da justiça. Nestes trabalhos é recorrente a  
fundamentação a partir da afirmação de Marx (2012), na Crítica ao Programa de Gotha,  
de que na “fase superior do comunismo [...] [valeria a bandeira] de cada um segundo  
as suas capacidades, para cada um segundo as suas necessidades”  
A discussão é pertinente, tendo em vista que, nas últimas décadas,  
especialmente após o fim da União Soviética, o debate em torno de temas como  
“justiça” e “moral”, com grande influência do liberalismo igualitarista, ganharam muita  
centralidade, também, entre os marxistas e a esquerda em geral. Nesse sentido é  
bastante recorrente uma posição da esquerda contemporânea no enfrentamento da  
“questão social” majoritariamente ligada à uma “luta pela justiça” e “por direitos”, que  
se aproximaria em alguma medida do caráter estatista do Programa de Gotha, criticado  
por Marx (2012) e Engels.  
De modo que, o tema da “justiça”, especialmente da “justiça social”, é muito  
presente no discurso da esquerda com interpretações da realidade excessivamente  
incrustradas no terreno do Direito, o que impossibilitaria avanços reais na  
transformação efetiva do modo de produzir a vida em sociedade.  
II Crítica do direito e da justiça em Marx e Engels  
A obra de Marx e Engels, apesar de particularidades significativas em cada,  
relaciona a ideia de justiça às esferas da circulação e da distribuição de mercadorias,  
1 Realizada em janeiro e fevereiro de 2023, a bibliografia foi selecionada a partir dos indexadores “Marx  
justiça”; “Marx justo”; “Marx teoria da Justiça”; “Gotha justiça”; “marxismo justiça”; “marxista justiça”,  
utilizados nas plataformas Scielo Brasil e Google Acadêmico, e dos objetivos traçados.  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
isto é, só faz sentido falar de justiça enquanto reflexo, com múltiplas reciprocidades,  
da esfera da produção, tendo em vista o caráter superestrutural do direito e da justiça.  
Afirma Marx, neste sentido, a ideia de “justiça das transações”, contra a  
ideia de uma “justiça natural”, de modo que não teria razão a denúncia de injustiça  
contra o modo de produção capitalista, pois a justiça, como o direito, é um parâmetro  
próprio deste:  
Não faz sentido falar aqui de justiça natural [...] A justiça das  
transações que se realizam entre os agentes da produção repousa no  
fato de que essas transações derivam das relações de produção como  
uma consequência natural. As formas jurídicas, nas quais essas  
transações econômicas aparecem como atos de vontade dos  
envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como  
contratos cuja execução pode ser imposta às partes contratantes pelo  
Estado, não podem determinar, como meras formas que são, esse  
conteúdo. Elas podem apenas expressá-lo. Quando corresponde ao  
modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é justo;  
quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base do modo de  
produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à  
qualidade da mercadoria (Marx, 2017, p. 333)  
O direito para Marx integra a “colossal superestrutura” (Marx, 2009, p. 47-8),  
enquanto formas superestruturais ideológicas, sendo que “são as relações jurídicas  
que derivam das relações econômicas” (Marx, 2012). A definição do direito como  
ideologia na perspectiva marxiana, guarda a prioridade ontológica, ou seja, a  
preponderância da base econômica, de maneira que mesmo as categorias e abstrações  
mais universais, são, também, produtos da prática concreta efetiva das relações  
históricas.  
Sendo que o  
modo de produção da vida material condiciona o processo geral de  
vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que  
determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que  
determina a sua consciência [...] é preciso explicar essa consciência a  
partir das contradições da vida material, a partir do conflito existente  
entre as forças produtivas sociais e as relações de produção [...] [e a]  
transformação que se produziu na base econômica transforma mais  
ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura.  
Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre  
a transformação material das condições econômicas de produção [...]  
e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em  
resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem  
consciência desse conflito e o levam até o fim (Marx, 2009, p. 47-  
48)2  
2
Sobre o final desta passagem, comenta Sartori (2019, p. 184-5) que o problema não é o uso da  
fraseologia de justiça, mas a sua “valorização exacerbada”: “Assim, não é indiferente, dentro dos limites  
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Nota-se que a produção social é o momento preponderante, de modo que é  
determinante na crítica marxiana à “justiça das transações” (2017) e à “justiça  
distributiva” (2012) o problema da autonomização da esfera da distribuição com a,  
consequente, naturalização da esfera produtiva. Desta forma, não seria possível tratar  
da justiça sem levar em conta as considerações críticas de Marx ao direito, criando  
uma diferenciação autonomista entre os dois termos3.  
A posição equivocada que coloca o direito, o Estado e a justiça enquanto  
autodeterminantes do seu conteúdo, realiza uma inversão da realidade, como já  
criticado por Marx (2013) na crítica à filosofia do direito de Hegel, demonstrando  
continuidades determinantes em sua obra. Deste modo, assim como o Direito, cabe  
tratar a justiça como ideologia4, isto é, como fatores da superestrutura ideológica,  
enquanto “reconhecimento oficial do fato”.  
Conforme destacado por Karl Marx (1985), no texto contra Proudhon, a  
determinação do direito como ideologia passa obrigatoriamente pela sua função  
enquanto “reconhecimento oficial”, isto é, posterior dos fatos. De modo que, o alemão  
conclui sobre o direito: “a legislação, tanto política como civil, apenas enuncia,  
verbaliza as exigências das relações econômicas.” (ibid., p. 83) e, de forma mais clara,  
“o direito não é mais que o reconhecimento oficial do fato” (ibid., p. 86).  
Ao criticar a noção de Proudhon de “equalização do trabalho”, que seria  
expressão de uma “justiça eterna”, Marx adverte que “esta equalização do trabalho  
não é obra da justiça eterna do Sr. Proudhon; é simplesmente o fato da indústria  
moderna” (Marx, 1985). Para Marx, a “equalização”, que seria uma forma de  
“distribuição” ou “transação”, é fruto do modo de produção moderno, isto é, “da  
indústria moderna” e do trabalho assalariado, não cabendo aqui uma valorização  
do modo de produção capitalista, se algo é visto como “injusto”, “antijurídico”, ou contrário a qualquer  
espécie de “razão de Estado”. Ou seja, a questão da “justiça” ou da “injustiça”, de certo modo, pode ter  
importância na tomada de consciência acerca da existência mesma de determinados conflitos sociais”  
(Sartori, 2017a, p. 333). Contudo, “[p]or mais que, por meio de uma vontade embebida de uma crítica  
ao presente as “injustiças” possam ser denunciadas de modo vigoroso, tal crítica estaria muito mais  
ligada à denúncia (legítima, porém, não suficiente) de determinada ordem social do que a uma posição  
que real e efetivamente se colocasse contra esta ordem e contra o modo concreto pelo qual ela  
realmente opera” (Sartori, 2017a, p. 336-7).  
3 Afirma Sartori (2017a, p. 330) que “neste sentido, falar de “justiça” e de uma “distribuição justa” seria  
uma espécie de “fraseologia” já que, ao fazê-lo, deixar-se-ia de lado justamente os “agentes da  
produção” enquanto conformadores das determinações do conteúdo que seria trazido à esfera da  
distribuição e da circulação.”  
4 Apontamentos sobre direito como ideologia na crítica marxista do direito, especialmente, com Lukács,  
pode ser encontrado em Rodrigues (2022).  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
autonomizante da ideia de “justiça eterna” ou “equidade”5.  
Na crítica de Engels (2016, p. 67-8; 135) à ideia de “sistemas” de Duhring e,  
também, na crítica à Menger (Engels; Kautsky, 2012)6 é bastante destacado o problema  
do apelo moral na valorização da ideia de Estado, e de justiça. Tratando-se, pois, de  
uma pretensão idealista, de constelação fechada de ideias e concepções, com  
afirmações “falsas ou tortas” tentativa que, também, “se deu na ciência jurídica”. Sendo  
que neste sistema fechado as “concepções duhringuianas referentes à moral e à justiça  
para todos os mundos [...] [e] todos os tempos [...] uma verdade definitiva de última  
instância” (ibid., p. 135). Sendo que a crítica à moral e à justiça, enquanto verdade  
definitiva, é bastante decisiva no autor.  
Engels (2016, p. 148-9), nesse sentido, alerta que não é possível “jogar a  
realidade histórica pela porta afora que ela retorna pela janela”, de modo que as  
“noções morais e jurídicas como expressão – positiva ou negativa, afirmativa ou  
polêmica [são] correspondente[s], em maior ou menor [grau], às relações sociais e  
políticas nas quais [se] vive”. Tratar de justiça, portanto, mesmo como um ímpeto crítico  
à realidade de exploração e miséria da sociedade civil-burguesa, significa fazê-lo com  
um apelo moralista7.  
Sartori (2017b) aponta que Marx e Engels se colocam durante toda as suas  
trajetórias como críticos decididos das noções de justiça, de direito e, também, da  
moralidade.  
Com essa perspectiva, cabe analisar criticamente as noções abstratas de justiça  
no marxismo quando apresentadas separadas da noção de direito e, especialmente,  
da esfera produtiva. Procura-se uma análise da obra marxiana tomada como um todo,  
sem análises parciais ou de rupturas.  
5
Comenta Sartori (2017a, p. 340) que “O apelo à “justiça das transações”, pelo que diz Marx, assim,  
parte de premissas insustentáveis. Buscando uma forma de “justiça” que se oponha à conformação real  
e efetiva das relações econômicas, vem-se a buscar o impossível, e de modo bastante ilusório. Procura-  
se, assim, trazer a “justiça” como substância, ao se apoiar em uma inversão inaceitável que se apresenta  
quando se acredita que “simples formas” são uma potência real e efetiva diante do conteúdo  
socioeconômico, fazendo muito mais do que expressar este conteúdo”  
6
Afirmam os autores que Marx não tinha como central as “reivindicações jurídicas”: “Tentamos por  
todos os meios fazer com que esse obstinado jurista [Menger] compreendesse que Marx nunca  
reivindicou o ‘direito ao produto integral do trabalho’, nem jamais apresentou reivindicações jurídicas  
de qualquer tipo em suas obras teóricas” (Engels; Kautsky, 2012, p. 34).  
7
Afirmam Marx e Engels que o destaque “é a ruptura mais radical com as relações tradicionais de  
propriedade; não admira, portanto, que no curso de seu desenvolvimento se rompa, do modo mais  
radical, com as ideias tradicionais”. Mas quais são essas verdades eternas que são, junto com “toda  
moral”, mencionadas como candidatas à abolição? Cito: “a liberdade, a justiça etc.” (MARX; ENGELS,  
1975, p. 504 apud Geras, 2018).  
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III Crítica da ideia de Justiça em Marx  
Nas pesquisas que procuraram identificar na obra de Marx, como, também, na  
de Engels, a crítica do direito, é recorrente uma valorização positiva da ideia de justiça  
em relação ao primeiro, com uma consequente diferenciação entre ambos. É possível  
observar esta perspectiva em importantes autores estrangeiros marxistas como, por  
exemplo, em Lênin8, em Stutchka9 e em Edelman10, e, também, em autores da crítica  
marxista do direito no Brasil11 como, por exemplo, Lyra Filho12, Mascaro13 e Wolkmer  
(2002)14. Na teoria do direito estrangeira, Kelsen (2000) se destaca ao defender a  
existência de uma teoria da justiça na obra do autor de O Capital.  
Por outro lado, autores marxistas estrangeiros como Pachukanis (2017)15,  
Althusser (1999) além de críticos marxistas do direito no Brasil como, por exemplo,  
Naves (2014)16 parecem rejeitar a ideia valorativa e positiva de justiça em Marx.  
8 “o ‘direito igual’ equivale a uma violação da igualdade e da justiça” (Lênin, s/d). Apontamentos sobre  
a passagem de Lenin em Sartori (2017a)  
9
O jurista soviético, ao diferenciar um direito socialista de um direito burguês, em que ambos seriam  
classistas, também, valoriza positivamente a ideia de Justiça: “A lei burguesa tende precisamente a  
dissimular a verdadeira natureza do sistema de modo que, sublinhemos mais uma vez, o direito é  
constituído justamente por este sistema e não somente pela lei. Teoricamente, a lei deve proporcionar  
o princípio fundamental (por exemplo, da propriedade privada feudal ou capitalista) e, possivelmente,  
uma definição clara, exaustiva e suficientemente concreta das principais instituições jurídicas. O restante  
corresponde à aplicação do direito, e será sempre injusto para a classe oprimida e justo para a classe  
dominante” (Stutchka, 1988, p. 125).  
10 “O direito peca constantemente contra a sua hipótese de base: a propriedade privada. A pretensão à  
justiça torna-se prática da injustiça, a pretensão a dizer o homem, prática do proprietário” (Edelman,  
1976, p. 22).  
11 Como realçado por Almeida (2018).  
12  
“Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se divorciam com frequência [...] A Justiça  
não é, evidentemente, esta coisa degradada. Isto é negação da Justiça [...] Porém, onde fica a Justiça  
verdadeira? [...]a Justiça real está no processo histórico, de que é resultante, no sentido de que é nele  
que se realiza progressivamente [...] Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios  
condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a  
exploração e opressão do homem pelo homem” (Lyra Filho, 1990, p. 55-6).  
13  
Para uma análise das passagens de Lyra Filho (1983; 1990) e Mascaro (2012) ver Sartori (2017a;  
2017b)  
14 Wolkmer (2002, p. 148-9) apresenta noções de justiça, distintas do direito, na discussão apresentada  
por Kelsen (2000) a partir das obras de Marx, que defende uma ideia e teoria de justiça na obra de  
Marx. Afirma o autor brasileiro, “nessa perspectiva, não há como negar que o Direito comunista é justo,  
sem contradições, pois tal conceito não se revestirá de caráter ideológico no sentido pejorativo. Por sua  
vez, o Direito burguês, caracterizado por assimilação normativa, não é justo por essência”.  
15 “A transição para o comunismo evoluído não se apresenta, segundo Marx, como uma passagem para  
novas formas jurídicas, mas um aniquilamento da forma jurídica enquanto tal [...] Olvidava-se nos  
meandros da luta jurídica que, além da fuga ao cerne da questão da transformação do modo de  
produção, o aniquilamento de certas categorias jurídicas [...] do direito burguês, em nenhum caso  
significaria a sua substituição pelas novas categorias do direito proletário” (Pachukanis, 2017, p. 77-  
78). Romão (2017) aponta que as considerações de justiça em Pachukanis estão de acordo com a  
“teoria social marxista” (Romão, 2017, p. 18), isto é: “Percebe-se aqui que o conceito de justiça é  
impensável se apartado do conceito de economia (transações econômicas) e direito (formas jurídicas).  
Isto porque direito e justiça são dois fenômenos pertencentes ao campo das ideias; e, justamente por  
isto, sofrem a determinação das relações de produção” (ibid., p. 21).  
16 Afirma Naves (2014, p. 99): “se a relação de capital não pode ser nem “justa” nem “injusta”, é porque  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
No Brasil, a controvérsia é destacada e foi objeto de análises como, por  
exemplo, em Sartori (2017ª; 2017b; 2022), Albinati (2009; 2019), Almeida (2018) e  
Almeida (2015), contudo com balizamentos diversos.  
Do material bibliográfico encontrado nesta pesquisa em periódicos nacionais,  
o debate sobre a ideia de justiça em Marx, e no marxismo, também se faz presente de  
modo variado. Contudo, das duas dezenas e meia de textos selecionados, ao menos,  
uma quinzena apresenta argumentos em favor de uma teoria da justiça em Marx, em  
alguns casos, baseado no chamado “marxismo analítico” e, em outros, a partir da  
suposta presença de um “princípio de justiça” na “bandeira” exposta por Marx (2012)  
na crítica ao Programa de Gotha, “de cada um segundo suas capacidades, a cada um  
segundo suas necessidades”.  
Nestas glosas marginais de 1875 ao Programa de Gotha, Marx é bastante  
incisivo17 ao apontar criticamente a “credulidade servil no Estado” (Marx, 2012, p. 46)  
presente no mesmo, afirmando que um “programa socialista não pode permitir que  
tais fraseologias burguesas possam silenciar as condições que, apenas elas, dão algum  
significado” (Marx, 2012, p. 24), especialmente, a “fraseologia da distribuição justa”  
(ibid., p. 28).  
Rejeitando as teses lassalianas presentes no programa, o autor de O Capital  
apresenta diretamente a crítica às noções de “igual direito” e de “distribuição justa”  
que seriam “dogmas, noções que tiveram algum sentido numa certa época, mas que  
hoje se tornaram restolhos fraseológicos ultrapassados, [para] deturpar a concepção  
realista(Marx, 2012, p. 33). De modo que, trata-se de um texto decisivo na crítica  
marxiana do direito18.  
a análise imanente que dela Marx faz permitindo a compreensão da natureza objetiva do domínio de  
classe que se materializa nas formas técnicas de produção, é totalmente incompatível com um  
julgamento de valor moral ou jurídico, que nos remeteria inexoravelmente a alguma modalidade de  
transcendência. Ora, se o capitalismo não é a expressão da “injustiça”, o comunismo, que é, no entanto  
e justamente por isso – o seu contrário direto, não poderia ser igualmente expressão da “justiça”  
17 Demonstrando a característica marcante de crítica e autocrítica como motor central da obra marxiana  
e da posição política de Marx e Engels dentro do seu campo de disputa, “que se distancia muito do  
imobilismo”, inclusive no texto em destaque com um caráter mais “propositivo” de pensar a transição  
socialista e a sociedade comunista (Sartori, 2019, p.180).  
18  
Afirma Althusser que, “Em Marx, essa recusa [de um direito socialista] vai muito longe já que,  
manifestamente a seu ver, todo Direito, sendo em última instância o Direito de relações mercantis,  
permanece definitivamente marcado por essa tara burguesa: portanto, todo Direito é, por essência, em  
última instância, desigualitário e burguês. A esse respeito, ver as admiráveis, embora por demais  
sucintas, observações da Crítica do Programa de Gotha” (Althusser, 1999, p. 87). Para mais análises  
sobre a crítica do direito e do Estado presente neste texto marxiano ver Sartori (2019), no qual:  
“Também têm Marx por central, e isto é bastante visível no texto, uma crítica ao Direito e ao Estado a  
qual, por sua vez, passa por apontamentos importantes mesmo que bastante sumários sobre a  
transição ao comunismo. Só este último ponto já faz a Crítica do Programa de Gotha um texto sui  
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Aponta o alemão que o Programa apresenta um “estatismo exarcebado” de  
caráter social reformista, no qual descola a noção de Estado da sociedade civil-  
burguesa, tornando-os supostamente independentes entre si, como “um ser autôno-  
mo, dotado de seus próprios ‘fundamentos espirituais, morais, livres” (Marx, 2012, p.  
42), sem se preocupar concretamente com o processo de transformação  
revolucionária, apenas fazendo a ligação idealista entre as palavras “povo” e “Estado”  
(ibid., p. 43), com uma “superstição democrática (ibid., p. 46)19.  
Afastando das teses marxianas de prioridade ontológica da economia sobre as  
formas superestruturais (Lukács 2012), o Programa acaba por valorizar  
unilateralmente o direito, ao relacionar a ideia de “igual direito” enquanto igual padrão  
de medida com a valorização do “trabalho produtivo”, contudo, uma valorização  
acrítica, “oca” de significado (Marx, 2012, p. 26), isto é, sem qualquer relação com as  
condições postas ou com o “desaparecimento” da sociedade burguesa. Afirma Marx  
que, “esse igual direito é desigual para trabalho desigual(Marx, 2012, p. 32)20 e,  
portanto, o direito, ou a justiça, não poderia ser um direito da igualdade. O “direito [e  
a justiça] nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por  
ela condicionado, da sociedade” (ibidem)21.  
A ideia de “igual direito” dos “frutos do trabalho” defendida pelo Programa, na  
tese lassaliana, é rechaçada por Marx:  
Esse igual direito é direito desigual para trabalho desigual. Ele não  
reconhece nenhuma distinção de classe, pois cada indivíduo é apenas  
trabalhador tanto quanto o outro; mas reconhece tacitamente a  
desigualdade dos talentos individuais como privilégios naturais e, por  
conseguinte, a desigual capacidade dos trabalhadores. Segundo seu  
conteúdo, portanto, ele é, como todo direito, um direito da  
desigualdade. O direito, por sua natureza, só pode consistir na  
aplicação de um padrão igual de medida; mas os indivíduos desiguais  
(e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só  
generis (Sartori, 2019, p. 179) e Medrado et al (2019).  
19  
Löwy (2012, p. 16) classifica a obra de Marx como “antiestatista”, em oposição ao “estatismo” de  
Lassalle, como pode ser observado inclusive quando o autor de O Capital critica a ideia de cooperativas  
“oficiais”, vinculadas ao Estado: “No que diz respeito às atuais sociedades cooperativas, elas só têm  
valor na medida em que são criações dos trabalhadores e independentes, não sendo protegidas nem  
pelos governos nem pelos burgueses.” (Marx, 2012, p. 41).  
20 Indicando que o importante é a transformação do modo de produção, ao criticar à tese lassalliana da  
lei de bronze dos salários presente no Programa, aponta ironicamente: “superando-se o trabalho  
assalariado, é claro que se superam também suas leis, sejam elas de “bronze” ou de esponja. Mas a  
oposição de Lassalle ao trabalho assalariado gira quase que exclusivamente em torno dessa pretensa  
lei” (Marx, 2012, p. 38) e não das condições e da transformação do modo de produção.  
21  
Complementa: “esse igual direito continua marcado por uma limitação burguesa. O direito dos  
produtores é proporcional a seus fornecimentos de trabalho; a igualdade consiste, aqui, em medir de  
acordo com um padrão igual de medida: o trabalho [...] seus fornecimentos de trabalho; a igualdade  
consiste, aqui, em medir de acordo com um padrão igual de medida: o trabalho. (Marx, 2012, p. 31-2).  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
podem ser medidos segundo um padrão igual de medida quando  
observados do mesmo ponto de vista, quando tomados apenas por  
um aspecto determinado, por exemplo, quando, no caso em questão,  
são considerados apenas como trabalhadores e neles não se vê nada  
além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados [...] A fim  
de evitar todas essas distorções [nas realidades cotidianas de cada  
trabalhador], o direito teria de ser não igual, mas antes desigual [...] O  
direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o  
desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade (Marx,  
2012, p. 32-33)  
O que se observa é a naturalização da realidade posta pelo modo de produção  
capitalista, através da atuação do direito na relação com o Estado.  
Tanto o Estado quanto o direito atuam apenas em relação à esfera de circulação,  
distribuição e consumo, não tendo potência de transformação da esfera produtiva,  
condicionante da situação objetiva de exploração da força de trabalho e  
miserabilidade. “[F]oi em geral um erro transformar a assim chamada distribuição em  
algo essencial e pôr nela o acento principal” (Marx, 2012, p. 33).  
Aqui, o autor de O Capital aponta a desigualdade do direito enquanto padrão  
igual de medida, na sua relação direta com a “forma econômica [...] da sociedade”,  
complementando a crítica da ideia de “igual direito” à crítica da ideia de “distribuição  
justa”.  
Neste sentido, Marx abrange na crítica do direito a crítica da justiça, no sentido  
da vinculação ontológica destes com as condições postas pelo modo de produção  
capitalista. Questiona-se:  
O que é distribuição “justa”? Os burgueses não consideram que a  
atual distribuição é “justa”? E não é ela a única distribuição “justa”  
tendo como base o atual modo de produção? As relações econômicas  
são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações  
jurídicas que derivam das relações econômicas? Os sectários  
socialistas não têm eles também as mais diferentes concepções de  
distribuição ‘justa’? (Marx, 2012, p. 28).  
Tem-se claramente uma noção de justiça ontologicamente ligada à esfera  
produtiva, no sentido de que, como o direito, a ideia de justiça está definida na sua  
relação com as “formas jurídicas” do capitalismo.  
Marx (2012, p. 28) aponta críticas à noção de "justo" indicando que é justo se  
estiver de acordo com a dinâmica da sociedade burguesa, de manutenção da  
exploração da força de trabalho e da pobreza, no limite de "distribuir" e "elevar" e não  
de "transformar" ou “criar”. Sendo ainda mais enfático em relação ao fato da “justiça”  
não ser um parâmetro de cálculo da luta pela transformação do modo de produção,  
aponta o alemão:  
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Essas deduções [lassalianas] do “fruto integral do trabalho” são uma  
necessidade econômica e sua grandeza deve ser determinada de  
acordo com os meios e as forças disponíveis, em parte por cálculo de  
probabilidades, porém elas não podem de modo algum ser calculadas  
com base na justiça. (Marx, 2012, p. 29)  
Portanto, qual o sentido Marx está dando para a “justiça” nestes casos?  
Observa-se que o autor busca se desvencilhar de uma perspectiva especulativa e  
moralista, que complementa a ideia de justiça, ao pensar a organização de uma  
sociedade socialista e comunista, com foco na concretude da “necessidade econômica  
[...] de acordo com os meios e as forças disponíveis”, portanto, não na ideia de justo  
ou injusto.  
Além disso, a necessidade de se desvencilhar da perspectiva moralista está no  
fato de que a luta pela transformação do modo de produção carrega em si dificuldades  
latentes pela permanência dos fatores superestruturais do modo anterior, como moral  
e justiça,  
[n]osso objeto aqui é uma sociedade comunista, não como ela se  
desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como  
ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de  
nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da  
velha sociedade de cujo ventre ela saiu (Marx, 2012, p. 30-1)  
O que não significa que Marx não colocasse a importância da reivindicação  
organizada por uma lei como um freio à exploração22. Neste sentido, sobre a  
reivindicação do Programa de Gotha: “Supervisão estatal da indústria fabril, oficinal e  
doméstica” (Marx, 2012, p. 47), comenta Marx:  
Diante do Estado prussiano-alemão, dever-se-ia exigir taxativamente  
que os inspetores só possam ser removidos por medida judicial; que  
todo trabalhador possa denunciá-los aos tribunais por violação do  
dever; que eles tenham de pertencer à classe médica [...] Note-se, de  
passagem, que, ao tratar da jornada normal de trabalho,  
desconsiderou-se a parte da legislação fabril referente às medidas  
sanitárias e aos meios de proteção contra acidentes etc. (Marx, 2012,  
p. 47-8)  
Com o balizamento destas considerações críticas de Marx ao direito e à justiça,  
nas Glosas marginais ao Programa de Gotha, voltamos a atenção para as cerca de uma  
quinzena de textos encontrados nesta pesquisa que apontam uma ideia de justiça em  
22  
Aliás como pode-se observar em outros momentos na obra como de Marx (2013) e Engels (2012)  
em: “Mas a burguesia engendrou o antípoda de si mesma, o proletariado, e com ele novo conflito de  
classes, que irrompeu antes mesmo de a burguesia conquistar plenamente o poder político. Assim como  
outrora a burguesia, em luta contra a nobreza, durante algum tempo arrastara atrás de si a concepção  
teológica tradicional de mundo, também o proletariado recebeu inicialmente de sua adversária a  
concepção jurídica e tentou volta-la contra a burguesia” (Engels, 2012, p. 19).  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
Marx. Nota-se que a maior parte recorre à compreensão cotidiana naturalizada, de  
apelo moralista, da ideia abstrata de Justiça, e de “justiça social”.  
Neste sentido, pode-se ressaltar como influência, no Brasil, as afirmações de  
Lyra Filho (1983; 1999) que defende a tese de que há um “princípio jurídico” de  
justiça nas glosas marginais de 187523:  
Na Crítica do Programa de Gotha, depois de falar um bocado no  
direito burguês, como se fosse “todo direito”, o que se apresenta,  
afinal, não é a morte do Direito, mas daquele mesmo “direito burguês”  
(sic!) para desfraldar-se a bandeira de outro princípio jurídico: “de  
cada um, conforme as próprias aptidões: a cada um, segundo as suas  
próprias necessidades” (Lyra Filho, 1983, p. 66).  
O autor coloca nestes termos para indicar algum grau de contradição em Marx,  
que evitaria de todo modo tratar do termo justiça, mas que acabaria deixando  
escaparo princípio de justiça na passagem destacada contra o Programa Gotha,  
visando criticar a ideia de fenecimento do direito.  
Segundo Lyra Filho (1983, p. 67), a crítica do direito em Marx é a crítica  
da “lei” e não do direito o da justiça propriamente ditos. Afirma que o próprio  
Marx favorece muito o reducionismo dos discípulos, dando alimento à  
gana de liquidar o Direito [...] [e que] vai daí a consequência de  
inadmitir a implosão daquela ordem e a explosão de novas e mais  
avançadas visões do Direito e da Justiça, ficando a Justiça arquivada  
como um conto-do-vigário filosófico e o Direito extinto, com o advento  
da sociedade perfeita (Lyra Filho, 1983, p. 66).  
Em outro texto, reivindicando uma “justiça verdadeira”, afirma Lyra Filho (1990,  
p. 55) que “a Justiça real está no processo histórico, de que é resultante, no sentido  
de que é nele que se realiza progressivamente”.  
De fato, esta perspectiva apresentada pelo autor brasileiro é bastante  
recorrente na bibliografia encontrada. Vejamos a sistematização abaixo da bibliografia  
encontrada.  
Em relação à compreensão de que a bandeira comunista enunciada por Marx  
nas glosas marginais traria um princípio de justiça podemos citar: Falcão (2014, p. 28;  
23  
Defende, também, a ideia de que o direito se diferencia da lei, e o que o primeiro não se resume  
apenas ao Estado (1990). Sobre a influência desta visão nas teorias críticas do direito no Brasil: “Os  
problemas decorrentes dessa interpretação que implica obviamente na crença de possibilidade de  
construção de algo distinto do assim chamado “direito burguês” ainda dentro do terreno do direito –  
fomentaram no Brasil, assim como em alguns outros países, principalmente na América Latina  
considerando as discussões sobre Pluralismo Jurídico e Direito alternativo, que constituem apostas no  
Direito, ou melhor nas possibilidades de uso do Direito enquanto ferramenta contramajoritária, ou até  
mesmo de um “outro” Direito, pretensamente emancipatório.” (Medrado et al, 2019, p. 170).  
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32)24; Pergher (2016, p. 88-89)25; Wiser (2022)26; Barbosa e Paiva (2012, p. 14; 17)27;  
Albinati (2009; 2019).  
Em relação à Albinati, que com bastante coerência e cuidado procura valores  
em uma concepção de justiça subjacente em Marx, pode-se analisar com maior enfoque  
a sua argumentação de que haveria princípios de justiça na obra do alemão,  
especialmente em A Ideologia Alemã e na Crítica ao Programa de Gotha. Afirma a  
autora que:  
A nosso ver, é disso que se trata na abordagem de Marx sobre a  
justiça: da possibilidade de novas formas de equilíbrio social. A  
precedência das condições objetivas para tanto é reiterada por Marx  
24  
Eis o raciocínio da autora: “Assim, [...] em sua teoria, Marx (1818-1883) reconhece dois tipos de  
igualdade: um se pauta no princípio “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo o  
trabalho realizado”. O outro se baseia no princípio “de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual  
segundo suas necessidades”. Veja-se que, nos dois tipos de igualdade, ele considera “de cada qual  
segundo sua capacidade”, ou seja, em qualquer sociedade, é justo que se exija de cada um conforme  
sua capacidade [...] Dessa forma, os dois tipos de igualdade, só poderão se concretizar numa sociedade  
alternativa ao capitalismo, com a eliminação de todos os critérios pelos quais a produção e a distribuição  
têm sido feita, isto é, quando estes critérios atuais da sociedade burguesa forem considerados ilegítimos  
e injustos. Nesse raciocínio, então, fica claro o entendimento de Marx sobre justiça [...]. Pelo exposto,  
fica explicito, portanto que, para Marx, justiça equivale a condições concretas de igualdade humana,  
passando não apenas pelas garantias formais de igualdades essas, necessárias, mas não suficientes –  
mas, concomitantemente, garantindo sua plena concretização, pela via da plenitude dos direitos sociais  
e humanos. E é, nesse sentido que Marx critica a concepção liberal sobre o direito, refletida na tensão  
entre justiças formal e concreta (Falcão, 2014, p. 27-28; 32).  
25  
A autora, dialogando com os autores do chamado “marxismo analítico”, aponta que é possível o  
esforço de elaborar uma interpretação da justiça a partir de Marx desde que se baseie em três pilares:  
abordagem ética, “a ideia de transcendência da autoalienação” e a máxima marxiana presente na Crítica  
ao Programa de Gotha: “de cada qual segundo suas capacidades, a cada qual segundo suas  
necessidades” (Pergher, 2016, p. 88-89).  
26  
Apesar de não ser brasileiro, o texto do autor Wiser (2022) foi traduzido e publicado em periódico  
nacional, de modo que apareceu, também nesta pesquisa. Especialmente, a partir de passagens da  
Crítica ao Programa de Gotha, mas se utilizando de autores distantes do marxismo como Derrida para  
diferenciar direito de Justiça, o autor aponta que em Marx haveria, também, esta distinção e, além disso,  
a presença de “princípios de justiça”: “É por isso que Marx acrescenta que “para evitar todos esses  
inconvenientes, o direito não deve ser igual, mas desigual” O direito desigual seria o direito que faz jus  
à diferença, que não reproduz a desigualdade sob sua abstração jurídica. Propriamente falando, um tal  
direito faria justiça, seria um princípio de justiça em vez de um princípio de direito [...] A lógica mecânica  
do direito equivalente é substituída [no comunismo] por uma lógica das necessidades, fazendo justiça  
aos indivíduos [...] Ela se inscreve na disjunção de uma fórmula de estandarte [referência à bandeira do  
comunismo expressa por Marx nas glosas marginas]” (Wiser, 2022, p. 17). E em relação específica sobre  
a bandeira de Marx, aponta que se trata de um momento “qualitativo” colocado enquanto  
“equivalência”, que traria para o autor a noção de “justiça” em Marx, concluindo que “É por isso que a  
Crítica do Programa de Gotha se opõe à fala de Engels a propósito da extinção do Estado” (Wiser,  
2022, p. 19).  
27 A partir da chamada “teoria marxista humanista”, com base na interpretação de Bobbio sobre a obra  
marxiana e na diferenciação de Mascaro entre marxistas humanistas e estruturalistas, os autores afirmam  
que seria possível extrair uma “teoria marxista da justiça”, em que o direito seria capaz de fomentar  
“não só reformas, como também revoluções”. O raciocínio, também, é construído a partir da bandeira  
de Marx, pensando o comunismo em glosas críticas, que, segundo os autores, “o pensamento de Marx  
impõe relevante contribuição, uma vez que flexibiliza o conceito de “mínimo” na tentativa de adequar  
os bens as necessidades de cada um” (Barbosa; Paiva, 2012, p. 5). Apontam os autores que “Marx não  
estava preocupado em localizar o conceito de Direito no debate da luta de classes, mas sim em elaborar  
um conceito de Justiça que fosse além da isonomia formal” (Barbosa; Paiva, 2012, p. 17).  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
como possibilidade (e evidentemente não como condição suficiente)  
para que se efetue uma mudança de horizonte que torne possível a  
emergência de uma nova ideia de justiça [...] A ideia de justiça em  
Marx não significa um ideal de justiça a ser alcançado em virtude de  
uma dada natureza humana ou de uma filosofia da história de caráter  
escatológico. Diferentemente, parece-nos tratar de uma possibilidade  
que se vincula à expansão da capacidade produtiva social, uma vez  
regulada em outras bases societárias. A ideia de justiça em Marx  
rompe com a métrica do equivalente, porque acompanha a superação  
histórico-social dessa medida (Albinati, 2009, p. 8-9)  
Em texto publicado dez anos após o citado anteriormente, autora faz uma  
análise mais mediada da questão e reconhece que a “longa incursão crítica” na obra  
de Marx, no que toca a questão da Justiça, trata da crítica à “justiça das transações”  
(Albinati, 2019, p. 463) e que  
a questão da justiça na sociabilidade capitalista se pauta por uma  
naturalização das relações de produção, e de uma suposta liberdade  
socialmente conduzida nos assuntos relativos à distribuição dos bens  
[...] [em que] o próprio termo “justiça redistributiva” acolhe como  
natural a distribuição determinada pela produção capitalista [...]  
[sendo que] os autores que desconsideram a origem social das  
regulações jurídicas lançam a questão da justiça para a esfera da  
circulação e supervalorizam os aspetos secundários na determinação  
da força de trabalho (ibid., p. 466).  
Contudo, conclui, aproximando-se do texto pretérito, que a bandeira comunista  
levantada por Marx nas glosas marginais seria “uma referência mais explícita a uma  
outra forma de justiça [...] momento único na obra de Marx na qual poderíamos dizer  
de um princípio normativo” (ibid., 468).  
A questão é levantada, então, é se esse princípio seria, também, um princípio  
de justiça ou um princípio “para além da justiça”, como afirma Agnes Heller. A resposta  
mediada de Albinati seria de que não se trataria de um princípio “para além da justiça”,  
pois Marx não seria um pensador “utópico” da “redenção humana” (ibid., 469), mas  
afirmando se tratar de uma questão complexa, defende que no texto marxiano em  
destaque, teríamos um princípio normativo de uma “possibilidade de justiça”, no  
sentido de uma “justiça em relação ao gênero humano”, “das potencialidades  
humanas”, isto é, uma “justiça assimétrica” (ibid., p. 470; 471; 472; 473), dando um  
caráter valorativo à noção de justiça em Marx.  
Afirma de forma mais decisiva:  
De acordo com a análise de Marx na Crítica ao Programa de Gotha,  
temos que a transição do mundo capitalista ao socialista envolve a  
discussão acerca desse princípio de justiça, e autoriza a suposição de  
sua extinção. Mas isso não significa dizer da extinção de um outro  
princípio de justiça, não necessariamente jurídico, mas como princípio  
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normativo de outra forma de existência social. Dizer da extinção dessa  
forma de justiça enquanto equivalência não significa, a nosso ver,  
dizer da extinção da justiça como parâmetro normativo em outra  
formação social [...] uma mudança de horizonte que torne possível a  
emergência de uma nova ideia de justiça, completamente  
desvinculada de uma medida única, portanto, uma outra ideia de  
justiça, impensável numa sociabilidade dos equivalentes” (Albinati,  
2019, p. 470-1).  
Lukács (2012) interpreta que as passagens da crítica ao Programa de Gotha  
apontam para uma impossibilidade da existência de um “direito socialista”, portanto,  
também, de uma “outra justiça”. Nesta esteira, alerta Sartori (2022, p. 89-90), em  
diálogo com a autora em destaque, que a bandeira comunista afirmada nas glosas  
marginais, na verdade, “trata-se, então, de uma situação de fato, e não de um princípio  
da justiça, como parece querer Ana Selva Albinati ao procurar a “ideia de justiça em  
Marx”.  
Iber (2014, p. 15), também, discorda que a bandeira do comunismo, levantada  
por Marx na crítica ao Programa de Gotha, trataria de um princípio de justiça e de  
igualdade de tratamento, mas, ao contrário, um princípio de fato da diferença28.  
É importante destacar que essa “bandeira” com a frase de efeito é popularizada  
na contemporaneidade por Marx, pelos escritos em 1875, contudo é uma expressão  
cotidiana no período e utilizada, com algumas variações, por muitas socialistas  
utópicos, comunistas e anarquistas da primeira metade do século XIX.  
A bandeira que é “fincada” nas glosas marginais, especialmente, para se opor  
a existência do trabalho assalariado, trata-se de uma oposição ao capitalismo e as  
teses, como as lassallianas, de “fruto do trabalho”, “igual trabalho” etc. De modo que,  
não pode ser tratada como uma definição acabada em Marx, que conteria princípios  
normativos, morais e de justiça. Além disso, no contexto da tentativa propositiva de  
pensar o socialismo e o comunismo, é uma afirmação com certo grau especulativo, que  
não pode ser analisada de forma isolada dentro da obra do autor de O Capital para  
fundamentar uma “teoria da justiça” em Marx. O caráter especulativo da bandeira fica  
mais evidente se levarmos em conta a famosa passagem de Marx: “Os homens fazem  
sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias  
de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e  
28  
“Poder-se-ia ser induzido a ver esta fórmula do comunismo como uma definição da justiça. De fato,  
o princípio expressa como se poderia fazer justiça efetivamente aos homens. Mas isso nós não  
compreendemos como justiça, a qual sempre tem a ver com uma igualdade de tratamento. A fórmula  
de Marx do comunismo é, pelo contrário, um princípio da diferença” (Iber, 2014, p.15)  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
transmitidas pelo passado”.  
Almeida (2018, p. 1605-6) aponta que as críticas de Engels (e Kautsky, 2012)  
contra Menger, possuem uma relação direta com a crítica de Marx ao Programa de  
Gotha, no sentido de determinar concretamente o “igual direito” das teses lassalianas  
e da crítica à “justiça de transações”, de modo que, esta visão ampla da obra de Marx  
e Engels, evita interpretações que vislumbram princípios normativos e de justiça na  
bandeira da “fase superior do comunismo”.  
Apesar de criticar a noção de “verdadeira justiça”, contudo, a crítica é  
fundamentada pelo caráter formalista da justiça vinculada ao sistema de justiça. Já,  
utilizando-se da chave da “luta de classes”, a autora (ibidem) se questiona se seria “a  
justiça [...] uma síntese da luta de classes associada à reprodução do capital?”  
A resposta positiva pode parecer óbvia, contudo, ainda conclui: “Diante dessa  
função constitutiva [da dinâmica da luta de classes], não é possível às instituições  
jurídicas garantir “a verdadeira justiça”, visto que o tema da justiça, nesse tipo de  
sociedade, é definido pelo lado mais forte na luta de classes”  
A afirmação pode gerar margens para dúvidas em relação à uma valorização ou  
não do sentido de justiça, sendo que se as instituições jurídicas não poderiam garantir  
a “verdadeira justiça”, outros fatores o poderiam fazer. Mais ainda, a ideia de justiça  
vinculada ao “lado mais forte na luta de classes” poderia afastar o caráter ontológico  
da noção de justiça e sua definição como ideologia, tendo o momento preponderante  
da esfera da produção.  
Além destes achados da tese da valoração da ideia de justiça relacionada à  
determinadas passagens da Crítica do Programa de Gotha, também, destacaram-se  
alguns textos em que a ideia ou teoria de justiça em Marx surgiria a partir de certo  
diálogo do texto marxiano com a influência, especialmente a partir da década de 1970,  
de “marxismos” variados e tentativas de acoplar ideias alheias à obra de Marx, como  
do chamado “marxismo analítico”29, “marxismo humanista”, “pós-marxismo”,  
“marxismo ecológico”, dentre outros.  
Pode-se citar, nesse sentido, respectivamente: Pergher (2016), Freitas e Costa  
29  
Para uma crítica inicial da “teoria marxista da justiça” no chamado “marxismo analítico” ver Sartori  
(2022) e, sobre a influência das teorias igualitaristas, como Rawls e Fraser, nesse tipo de “marxismo”  
ver Almeida (2015).  
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(2017)30, Mendes (2015), Bullio (2017)31; Rammê (2011)32; Junior (2020)33.  
Por fim, entre os autores encontrados, pode-se destacar aqueles que inferem  
que haveria uma ideia de justiça a partir da obra marxiana, e, também, da tradição  
marxista, tendo em vista que, para estes, estaria implícito para ao alemão que o sistema  
capitalista seria injusto, tendo sido sua obra e sua trajetória marcadas por uma  
denúncia das injustiças sociais da modernidade.  
Pode-se citar, nesse sentido, Pinheiro et al (2014)34, Bernardes e Silva (2014)35,  
30  
Defendem uma teoria da justiça em Marx e Engels, a partir das análises do chamado “marxismo  
analítico” que: “Levados a discutir sobre temas como o igualitarismo e distribuição justa os autores do  
marxismo analítico começaram a analisar quais princípios normativos eram compatíveis com os  
fundamentos do marxismo [...] “podemos concluir que os autores [do marxismo analítico] de forma geral,  
reformularam a relação entre marxismo e justiça e acabam aceitando a presença de certa teoria marxista  
da justiça, além da existência de uma teoria jurídica sobre o marxismo, embora não haja consenso entre  
os autores” (Freitas; Costa, 2017, p. 144-146).  
31 Com base em autores do chamado “Pós-marxismo”, como Badiou relaciona “o entrelaçar da Justiça e  
do Comunismo antiestatal e antijurídico”: “A subjetividade da justiça se enlaça à sua objetividade. Só a  
transposição do indivíduo tomado pelos seus anseios inserido numa unidade pode se adequar à Justiça  
no Comunismo se ele estiver conectado ao coletivo.” (Bullio, 2017, P. 111).  
32  
A partir de trecho da obra de Marx sobre a relação do homem e natureza, contida nos Manuscritos  
econômico-filosóficos de 1844, aponta o autor que haveria “origens ou semelhanças daquilo que hoje  
se define por justiça ambiental no pensamento de Marx”, e que caracterizaria o chamado “marxismo  
ecológico” (Rammê, 2011, p. 227-228).  
33  
Afirma haver uma relação de influência da ideia de justiça de Platão na obra Marx, tendo em vista  
que, na defesa da construção de uma sociedade comunista, haveria a ideia de “bem comum” e  
“constatou-se que há uma relação entre os dois pensamentos [Platão e Marx], nos quais os aspectos  
abordados tem uma finalidade entre si, que é a busca do bem geral ou bem comum [...] como ponto  
chegada [...] e por fim a justiça, como uma ideia de bem comum pra todos. “A análise da luta de classes  
na história demonstra o quanto a posse dos instrumentos e meios de produção gera injustiças entre os  
próprios homens, e o capitalismo seria mais um destes sistemas que, em meados do século XIX, testa  
a distorção da forma em que distribui as riquezas e as relações humanas em sociedade” (Junior, 2020,  
p. 81). E citando o manifesto comunista de Marx e Engels conclui que: “questão primordial da reflexão  
marxista está na justiça social, o que se pode fazer por meio da reorganização das forças sociais  
produtivas, uma vez que a economia determina as estruturas e as classes de uma sociedade” (Junior,  
2020, p. 85).  
34 Na obra coletiva Direito e marxismo: transformações na América Latina Contemporânea (Bello, 2014),  
é possível identificar a tendência em alguns textos em diferenciar direito e justiça, procurando ressaltar  
as reivindicações de “justiça social” e denunciar as “injustiças” do sistema capitalista, pensando uma  
“nova justiça” decolonial. Nesse sentido, pode-se ressaltar Pinheiro et al (2014, p. 130) que, a partir  
das considerações críticas de Marx à economia política em O Capital, aponta que “A teoria marxiana  
esclarece que as relações sociais estão permeadas pela estrutura social, que gera desigualdades  
gritantes, ou seja, a injustiça social, a exclusão social, o abandono dos sujeitos desta sociedade a sua  
própria sorte”.  
35  
E também Bernardes e Silva (2014, p. 218), justificando a necessidade de um “retorno à Marx”,  
afirmam que “Marx buscou compreender, de forma sistemática e profunda a sociedade capitalista  
moderna, demonstrando suas contradições e suas injustiças estruturais.”  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
Ribeiro (2014)36, Fabres (2014)37, Mendes (2015)38, Junior (2020).  
Pelo exposto, observa-se que a perspectiva de vincular uma teoria da justiça  
em Marx ou uma formulação de justo a partir da perspectiva moral, encontra muitos  
percalços na própria obra de Marx e Engels, analisada como um todo. Os pontos  
centrais da crítica dos autores à ideia de “igual direito”, com base em um “padrão igual  
de medida” que é o trabalho assalariado e a afirmação da impossibilidade de existência  
de um “direito socialista39, dada a relação intrínseca entre direito e modo de produção  
capitalista, nos leva a concluir que uma valorização positiva do conceito de justiça  
pode ser inferida apenas fora da obra marxiana.  
Mesmo com caráter propositivo na crítica ao Programa de Gotha nas  
especulações sobre relações de fato possíveis em sociedades pós-capitalistas, se  
tratando de glosas marginais sucintas, não é possível identificar perspectivas  
moralistas ou princípios normativos de justiça nas aspirações e análises de Marx. Alerta  
o autor de O Capital:  
O socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da  
democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de  
considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo  
36  
Procurando discutir uma perspectiva de “justiça enquanto práxis” voltada para as capacidades e  
necessidades dos indivíduos, baseada nos escritos do “jovem Marx” em que haveria uma visão  
ontológica dos seres humanos (Ribeiro, 2014, p. 954), argumenta o autor que na obra do alemão a  
“igualdade deve ser pensada enquanto práxis”, igualando o raciocínio para a justiça (p. 958 ) Para a  
justiça como práxis, não basta apenas interpretar “o mundo de diferentes maneiras; o que importa é  
transformá-lo”, como diz Marx [...] A justiça como práxis não se restringe ao consumo, mas considera,  
de forma mais ampla, as relações sociais entre os agentes,” (Ribeiro, 2014, p. 959). Afirmando existir  
uma “natureza injusta do sistema capitalista [...] [que] consideramos necessário indicar a natureza geral  
desta injustiça” (Ribeiro, 2014, p. 960).  
37 Apesar de ressaltar as críticas do “jovem Marx” à esfera da moralidade, aponta o autor que “tanto a  
crítica à exploração capitalista quanto o desenho de um novo modelo de organização social expostos  
por Marx estão baseados em princípios de justiça” (Fabres, 2014, p. 169), tendo em vista que haveria  
um “declínio da política de classes” com o fim da União Soviética e a necessidade de aproximar o  
marxismo de “princípios normativos” (ibidem).  
38 O autor procura apontar fundamentos éticos na crítica marxiana do sistema capitalista e na defesa do  
socialismo, apontando que haveria nesta crítica uma ética da libertação, sendo Marx um “moralista não  
assumido” que sempre rejeitou teses moralistas. Além disso, afirma que o fim do capitalismo é “apenas  
uma possibilidade cuja realização implica compromisso moral com a defesa de uma sociedade mais  
livre, mais justa e mais igualitária [...] [em] que a crítica da sociedade capitalista terá necessariamente  
de se apoiar na defesa de uma teoria da justiça” (Mendes, 2015, p. 55-56). Apoiado em autores do  
“marxismo analítico” que afirmam que a tanto a teoria da exploração no Capital, como a teoria da  
distribuição na Crítica ao Programa de Gotha incorporam princípios de justiça, conclui o autor que “pelo  
menos implicitamente, Marx considera o capitalismo como um sistema injusto, podemos admitir que a  
sua crítica implica uma condenação moral. (ibid., p. 59).  
39 Pachukanis (2017), ao concluir “que a moral, o direito e o Estado são formas da sociedade burguesa”,  
no contexto da sociedade soviética e do debate em torno de um “direito socialista”, ressalva sobre as  
ideologias que “o proletariado necessita usá-las [...] [mas] deve ter uma atitude crítica sóbria não apenas  
para com o Estado burguês e a moral burguesa, mas também para com seu próprio Estado e sua moral  
proletária, ou seja, conhecer a necessidade histórica tanto de sua existência quanto de seu  
desaparecimento” (PACHUKANIS, 2017, p. 160-161).  
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Arthur Bastos Rodrigues  
de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma  
doutrina que gira principalmente em torno da distribuição. Depois de  
a relação real estar há muito esclarecida, por que retroceder? (Marx  
2012, p. 34)40  
A valorização positiva da justiça, de modo acrítico, traz consigo à não  
consciência sobre a realidade da formação e da reprodução da sociedade civil-  
burguesa, de modo que se naturaliza a relação-capital e o trabalho assalariado,  
tornando-se mais fraca a perspectiva crítica ao modo de produção capitalista, com o  
consequente isolamento da esfera da distribuição das suas conformações concretas.  
III Considerações finais  
Marx, portanto, não pode ser tratado como um teórico da justiça ou do Direito.  
Na verdade, em sua obra, ele se destaca como um crítico da noção de justiça e de  
direito.  
Nesta pesquisa bibliográfica, pode-se notar que é bastante recorrente na  
literatura nacional de periódicos que trata, direta ou indiretamente, da ideia de justiça  
em Marx e no marxismo, a presença de uma tese de valorização positiva do sentido  
de justiça (ou teoria marxista da justiça), desgarrado do direito e isolado em relação  
ao momento preponderante da esfera produtiva.  
Além das posições menos ortodoxas de diversos “marxismos” contemporâneos,  
com variadas influências liberais, a fundamentação à tese de teoria marxista da justiça  
se deu de duas formas: primeiro, a partir da posição crítica de Marx à sociedade civil-  
burguesa, que teria conotação de denúncia à “injustiça social” e; segundo, com maior  
rigor teórico, as que identificam princípios normativos de justiça nas formulações  
propositivas sobre o socialismo e o comunismo nas glosas marginais críticas ao  
Programa de Gotha.  
A questão se torna mais complexa, pelo fato dos comentários de Marx ao  
Programa serem definitivamente marcados por uma crítica decisiva ao Estado, ao  
“igual direito” e à “justiça distributiva”, indicando continuidade de um caráter  
40 Ainda enquanto alerta, aponta Almeida (2018, p. 1602-1603-4) que a crença de setores da esquerda  
brasileira em uma “justiça verdadeira”, trata-se de um “fetichismo do direito”, que “confiante na  
edificação de um “outro direito” ou de um “direito emancipatório”, conectado com a realização dos  
direitos humanos e com a transformação social. Esta variante fetichista se contrapõe à versão positivista  
dominante, que caracteriza o direito pela sua neutralidade e objetividade, valorizando assim o respeito  
à ordem jurídica como garantia do “bem comum” e da “paz social [...] Estas ilusões parecem até aqui  
ter dominado o estado da arte da crítica jurídica no Brasil [...] Daí se conclui pela necessidade de  
construir outro tipo de direito, “alternativo” ao que está posto, “justo”, “crítico”, “emancipatório”, que  
supere o positivismo em direção a outro modelo de sociedade.”  
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Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas marginais ao Programa de Gotha  
antimoralista em sua obra e sua trajetória, isto é, a prioridade ontológica da esfera  
produtiva em relação à “colossal superestrutura” (moral, direito, justiça, Estado...).  
A questão é complexa, especialmente pelo caráter ideológico e cotidiano da  
fraseologia de justiça que, por um lado, pode servir de denúncia e ponto de partida  
para tomada de consciência dentro do “limitado horizonte burguês”, mas, por outro,  
é idealista, pois tomado pelas limitações da esfera da distribuição que naturaliza  
anatomia da sociedade burguesa, afirmando a manutenção do trabalho assalariado e  
da miserabilidade.  
O problema, então, não na utilização da inescapável fraseologia da vida  
cotidiana, mas na força excessiva de valorização acrítica das ideias de justo e injusto  
que comumente vem associada à ideia de direito, justiça (re)distributiva, justiça social,  
justiça ecológica, justiça verdadeira etc.  
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Como citar:  
RODRIGUES, Arthur Bastos. Crítica da ideia de justiça em Marx a partir das Glosas  
marginais ao Programa de Gotha. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 367-  
387; jan.-jun., 2024  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.714  
O terreno do direito achado na renda fundiária:  
introdução a uma crítica jurídica a partir do Livro  
III, de O capital de Marx*  
The Terrain of Law Found in Land Rent: Introduction to a  
Juridical Critique Based on Book III, of Marx’s Capital  
Ricardo Prestes Pazello**  
Resumo: Neste ensaio de interpretação,  
pretende-se dar continuidade à leitura do texto  
de Marx encontrado na seção VI, do livro III de O  
capital, quanto à problemática jurídica. Trata-se  
de leitura específica, ainda que descritiva, dos  
apontamentos do revolucionário alemão sobre o  
direito no contexto dos escritos sobre o processo  
global da produção capitalista. A metodologia de  
interpretação segue pesquisa anterior que  
estabeleceu os sentidos do direito no texto  
Abstract: In this interpretation essay, we intend  
to continue the reading of Marx’s text found in  
section VI, of book III of Capital, regarding the  
legal issue. This is a specific, albeit descriptive,  
reading of the German revolutionary's notes on  
Law in the context of writings on the global  
process of capitalist  
production. The  
methodology of interpretation follows previous  
research that established the meanings of Law  
in the Marxian text, understanding it as  
fundamentally characterized by legal relations  
that differ from mere normative dimensions.  
Regarding the advances achieved, Marx’s  
understanding of the “form of land ownership”  
that imposes specific relations in economic or  
legal spheres is contemplated. The “legal  
representation” results from a transformation  
historically parallel to the processes of  
subsumption of labor to capital and the  
derivation of social forms, starting with the  
original accumulation of capital. There is a  
contractualization of access to land, made  
capital through the specific legal notion of land  
ownership. Hence, the land rent is extracted. For  
the purposes of critical analysis of the Law, the  
specialization of agricultural work and the  
overexploitation of rural workers are  
marxiano,  
compreendendo-o  
como  
fundamentalmente caracterizado por relações  
jurídicas que se distinguem de meras dimensões  
normativas.  
Relativamente  
aos  
avanços  
alcançados, contempla-se o entendimento de  
Marx sobre a “forma da propriedade fundiária”  
que impõe relações específicas nos âmbitos  
econômicos ou jurídicos. A “representação  
jurídica” decorre de uma transformação  
historicamente paralela aos processos de  
subsunção do trabalho ao capital e da derivação  
das formas sociais, com início na acumulação  
originária  
do  
capital.  
Ocorre  
uma  
contratualização do acesso à terra, tornada  
capital por via da noção jurídica específica de  
propriedade fundiária. Daí se extrai, por  
decorrência, a renda da terra. Para fins de análise  
* Uma primeira versão deste texto, que agora aparece modificado e bastante ampliado, foi apresentada  
na mesa intitulada “Ecologia, gênero, direito e marxismo: contribuições dos estudos sobre renda  
fundiária para a organização popular”, por nós coordenada, durante o Colóquio Marx e o Marxismo  
2021 O futuro exterminado? Crise ecológica e reação anticapitalista (ver PAZELLO, 2021b).  
**  
Professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal  
do Paraná (UFPR). Pesquisador em estágio pós-doutoral do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia  
e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Líder do Núcleo de Direito  
Cooperativo e Cidadania (NDCC/UFPR). Pesquisador do GT de Direito e Marxismo do Instituto de  
Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). Coordenador do projeto de extensão/comunicação  
popular Movimento de Assessoria Jurídica Universitária Popular - MAJUP Isabel da Silva, integrante do  
coletivo Planejamento Territorial  
e
Assessoria Popular (PLANTEAR), da UFPR. E-mail:  
ricardo2p@yahoo.com.br.  
Verinotio  
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nova fase  
   
O terreno do direito achado na renda fundiária  
crítica ao direito, ressalta-se a especialização do  
trabalho agrícola e a superexploração do  
trabalhador rural, bem como a conformação de  
tradição cultural do capitalismo no campo que  
implicam a compreensão de como se opera  
produção de mais-trabalho a partir da renda  
fundiária, por isso haver o seu distintivo como  
transformação de mais-valia em renda. Todas  
essas noções são fundamentais para se pensar  
uma crítica marxista ao direito desde a América  
Latina.  
emphasized, as well as the formation of the  
cultural tradition of capitalism in the field, which  
implies an understanding of how to produce  
more work from land rent, so there is its  
distinctiveness as a transformation of surplus  
value into rent. All of these notions are  
fundamental to thinking about a Marxist critique  
of law from Latin America.  
Keywords: Land rent; Land ownership; Law and  
Marxism; Legal form.  
Palavras-chave: Renda da terra; Propriedade  
fundiária; Direito e marxismo; Forma jurídica.  
Introdução demarcatória  
A práxis inspirada pela obra de Karl Marx precisa levar adiante a tarefa, de  
cunho teórico, de compreender a totalidade dos fenômenos sociais e, ao mesmo  
tempo, encontrar a especificidade de suas formas. O processo histórico de  
desenvolvimento do capitalismo, que condiciona nosso atual modo de vida, requer tal  
dialética a fim de que se consiga saber o significado profundo de suas formas sociais  
e de que se possa intervir sobre elas. Neste sentido, a recuperação de alguns  
momentos menos debatidos da produção teórica marxiana apresenta-se como  
decisiva, até para dar conta de não só percorrer o caminho por ela mesma elaborado  
mas também para viabilizar sua continuidade com o desiderato radicalmente  
transformador que igualmente a caracteriza.  
É por isso que propomos, aqui, começar a realização de uma leitura de textos  
de Marx por ele legados como manuscritos e que foram sendo publicados após sua  
morte como consolidação de seu contributo para a história do pensamento crítico e  
das lutas sociais. Em específico, intentaremos demarcar a análise inicial dos capítulos  
(notadamente os de número 37, 38 e 45, em que estão delineadas as noções mais  
gerais que apresentam as rendas diferencial e absoluta da terra) os quais introduzem  
a temática da seção VI, do livro III, de O capital, dedicada à “Transformação do lucro  
extra em renda fundiária”, com o intuito de encontrar suas contribuições para a uma  
crítica ao direito, como forma social própria do capitalismo. A metodologia de  
efetivação de tal leitura no que tange ao direito será apresentada na sequência da  
abordagem sobre o texto. Antes, porém, gostaríamos de situar referidos manuscritos  
no todo da obra do autor, até para oportunizar o entendimento de sua valia em  
comparação aos textos mais conhecidos e publicados por ele mesmo em vida.  
O vasto território em que Marx situa sua produção teórica propicia compreender  
suas delimitações próprias, as quais buscaremos em O capital, fazendo dialogar  
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interpretações anteriormente havidas no contexto do livro I e que, agora, fazemos  
avançar para o livro III. Reconheceremos, nesse sentido, um terreno singular para tal  
debate, qual seja, o dos capítulos introdutórios ao problema da renda fundiária, tanto  
em seu cenário de renda diferencial quanto em sua paisagem ligada à renda absoluta.  
Pretendemos, assim, apontar para uma das lacunas mais sensíveis da crítica marxista  
ao direito contemporânea, a de compreender uma das dimensões instituintes da  
estrutura de classes de uma sociedade de capitalismo periférico como a nossa, vale  
dizer, a nossa base agrário-capitalista.  
1. O território marxista da crítica à economia política e ao direito  
Entendemos que, para realizarmos uma introdução à crítica jurídica extraível da  
análise da renda fundiária, é preciso posicionar minimamente os pressupostos  
marxianos que nos conduzirão ao alargamento de suas fronteiras de análise para  
estâncias ainda não bem estabelecidas. É mais que evidente que, por outro lado, não  
teríamos condição de recobrar todo o trajeto da crítica marxista ao direito, resgatando  
não só a imensidão da obra de Marx mas também a de seus continuadores nas suas  
mais diversas vertentes. Resignados ante tal inviabilidade, entendemos aqui ser  
suficiente assinalar o lugar do livro III de O capital na produção teórica mesma de Marx,  
uma vez que será o escrito marxiano ao qual nos dedicaremos mais de perto, assim  
como resenhar a cartografia singular deste mesmo livro III para, em seguida,  
reapresentar considerações sobre nossa investigação anterior a respeito do direito  
achado n’O capital, livro I. A partir, portanto, de um esforço de fundamentação da  
implicação entre relações sociais de produção e relações jurídicas (ou seja, de  
compreensão do direito, tal qual o valor, como dimensões eminentemente relacionais  
da vida social e não meramente normativas), propomos uma liminar aproximação à  
crítica geral definida por Marx, tal como segue.  
1.1. O lugar do livro III de O capital na produção teórica de Marx  
O livro III de O capital foi publicado por Friedrich Engels, em 1894, mais de dez  
anos após o falecimento de Marx, a partir de um laborioso estudo havido junto aos  
seus originais não editados. Portanto, trata-se de um conjunto de anotações que  
compõem um quadro ainda maior de manuscritos sistematizados em materiais  
elaborados entre 1863 e 1865 e antecedidos por cadernos redigidos entre 1861 e  
1863. Segundo Enrique Dussel, estamos diante de quatro redações de O capital,  
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O terreno do direito achado na renda fundiária  
sendo que o livro III é escrito na segunda e, fundamentalmente, na terceira delas: “esta  
foi a única vez na vida de Marx em que escreveu por inteiro os três livros de O capital.  
É, além disso, o único texto completo (embora em certas partes seja apenas um  
esboço) dos livros II e III” (DUSSEL, 2011, p. 38). O estudo do filósofo argentino-  
mexicano revela, porém, que há materiais escritos no período da quarta redação que  
também são do livro III. A propósito, na interessante interpretação filológica de Dussel,  
as quatro redações se referem a: 1ª) o período entre 1857 e 1858, que engloba a  
elaboração dos Grundrisse (“elementos fundamentais”) e do Urtext (“texto original”);  
2ª) o período dos Manuscritos de 1861-1863, o qual tem seu anúncio já na  
Contribuição à crítica da economia política, livro de 1859; 3ª) o período dos  
Manuscritos de 1863-1865 que, como vimos, abarca uma redação global dos três  
livros de O capital; e, por fim, 4ª) o período que se inicia em 1866 e assiste à  
publicação de O capital em 1867, recebendo uma segunda edição em 1873 e uma  
tradução para o francês em 1875, seguindo-se de manuscritos que alcançam até o  
ano de 1882.  
Logo, estamos diante de toda uma vida dedicada a formular e reformular,  
constantemente, uma crítica à economia política, a propósito da compreensão dos  
fundamentos da realidade social e de sua transformação. Compreender o capitalismo  
e fazer a revolução socialista, portanto, também impunham uma tarefa teórica, a qual  
Marx, aliás, iniciara cerca de duas décadas antes de começar a redigir os Grundrisse.  
Com isso indicamos que o interesse de Marx pela economia política não se delimita ao  
período de 1857 em diante, mas nele se amadurece sensivelmente. Mesmo assim,  
seria interessante destacar que pelo menos desde 1842, quando escreveu acerca, por  
exemplo, dos debates sobre a lei de furto de madeira, e especialmente a partir do  
contato travado com Engels, que lhe apresenta a economia política clássica em famoso  
artigo publicado em 1844, Marx se atinha ao que chamava de “interesses materiais”  
(MARX, 2009, p. 46).  
1.2. A ampla região do livro III de O capital  
Dadas as linhas gerais do contexto no qual se insere o livro III dentro da obra  
de Marx, faz-se-nos interessante apresentar muito sumariamente a proposta deste  
momento de reflexão sobre o capital, a partir da edição organizada por Engels, a fim  
de se localizar o estudo de Marx sobre a renda da terra. Como consta de seu subtítulo,  
trata-se de investigação sobre “O processo global da produção capitalista”, após a  
Verinotio  
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Ricardo Prestes Pazello  
lógica de exposição de Marx apresentar os processos de produção e circulação do  
capital nos livros I e II, respectivamente. Considerando que a categoria de mais-valia  
já havia sido explicitada no primeiro livro e que, no segundo, se demonstra sua  
reprodução pelos ciclos e rotação do capital, o terceiro livro permite ascender ao  
concreto a partir das várias transformações que o capital sofre, tendo em vista a  
totalidade na qual o seu objeto se assenta. Assim, vemos a transformação da mais-  
valia em lucro, tendo por pivô a noção de preço de custo; a transformação do lucro  
em lucro médio, acúmulo nodal para a compreensão da sequência da obra; a  
transformação do capital mercantil e monetário em capital comercial; bem como a já  
referida transformação do lucro extra em renda fundiária, a qual receberá nossa maior  
atenção. Estão aqui sumariadas, então, as seções I, II, IV e VI, respectivamente.  
Além de tais transformações do capital, que marcam bem o método de Marx  
não baseado em conceitos estanques mas em categorias tradutoras do movimento das  
formas sociais (o mais próximo possível de sua realidade), outras duas muito  
importantes geram impactos sensíveis na recepção da obra contemporaneamente, por  
se referirem ao problema das crises do capitalismo e de sua financeirização. Referimo-  
nos à lei da queda tendencial da taxa de lucro, por um lado, e ao capital portador de  
juros, por outro. A tendência de queda da taxa de lucro costuma ser um argumento ao  
qual se recorre constantemente nos estudos mais atuais para a explicação das  
constantes e mais incisivas crises do capital. Este tema é próprio da seção III. Já a  
divisão do lucro em juros e ganho empresarial, conformando o ambiente de intelecção  
do capital portador de juros, sugere aproximações que, de fato, são fundamentais para  
se entender a economia financeirizada atualmente, pautada por um verdadeiro capital  
fictício. Eis a seção V do livro. Afora estas, cabe também referência à última seção  
dedicada a uma espécie de teoria geral dos rendimentos, segundo a fórmula trinitária  
de suas fontes e que vai abrir espaço para se pensar ainda que sob a pena de Marx  
com certa provisoriedade a concorrência e as classes sociais (último capítulo não  
terminado pelo autor).  
Como fizemos perceber, não nos empenharemos em resenhar ou sintetizar o  
livro III de O capital como um todo. Nosso intuito aqui é apenas o de indicar o seu  
percurso a fim de mais bem posicionar a questão da renda fundiária sob a ótica  
marxiana. De todo modo, a simples descrição das partes da obra já indica a  
característica que marca a reflexão do autor, compreendendo o capital a partir de seus  
desdobramentos categoriais.  
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nova fase  
O terreno do direito achado na renda fundiária  
A proposta, a partir de agora, será a de inventariar as referências que Marx  
realiza a respeito da problemática jurídica no âmbito de seu estudo sobre a renda  
fundiária, sob a justificativa de que a concretude dos capítulos dedicados ao tema bem  
como a reconhecida centralidade para se compreender o capitalismo dependente  
favorecem a elaboração de comentários, ainda que bastante provisórios, para  
continuarmos desenvolvendo uma crítica marxista ao direito, desde um marxismo  
assumidamente latinoamericanizado.  
1.3. Sobre o direito achado n’O capital, livro I: as fronteiras precedentes  
Para envidarmos tal proposta, de nossa parte, resgataremos a metodologia de  
análise geral utilizada em pesquisa anterior, a partir da qual encontramos os sentidos  
do direito no primeiro livro de O capital. Não sem certa provocação, chamamos o  
resultado desta análise de “O direito achado n’O capital” (PAZELLO, 2021a, p. 48 e  
seguintes) e, em breves linhas, é dela que trataremos a seguir.  
Realizando uma leitura do livro I de O capital, pudemos sistematizar ali a  
existência de, ao menos, quatro sentidos possíveis para o direito, afora as significações  
análogas. Ademais, como se trata da obra máxima de Marx, verificar a presença de  
959 referências a alguma dimensão do fenômeno jurídico, tendo por base a  
identificação dos sentidos aludidos, não é de se desprezar. O principal deles e mais  
nevrálgico para o que se delineará aqui como contribuição de análise é o sentido de  
relação jurídica, uma vez que o seu encontro nos posiciona diante da própria teoria  
do valor. A propósito, é no famoso parágrafo inicial do capítulo 2 do livro I que se  
esboça este sentido, quando Marx (2014, p. 159) diz que as mercadorias não vão por  
si se trocarem no mercado e dependem de seus “possuidores de mercadorias” se  
relacionarem para, a partir de “um ato de vontade comum”, estabelecerem uma  
“relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não [...]  
na qual se reflete a relação econômica”. Ou seja, na relação há o reconhecimento  
recíproco de que ela mesma é constituída por “proprietários privados” e todas essas  
noções enfeixam-se de modo tal a criarem o sentido essencial da forma jurídica (ou,  
poderíamos dizer, a relação jurídica essencial), desde Marx. Assim sendo, aparições  
categoriais como as de posse/propriedade (e, por decorrência, os sujeitos possuidores  
e proprietários), contrato, ato de vontade, momento legal da relação jurídica esta  
última em si já uma categoria própria – e “reflexo” da relação econômica, todas elas  
sugerem o cerne do debate jurídico sob o prisma marxiano.  
Verinotio  
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Ricardo Prestes Pazello  
Segundo nossa interpretação, aí está a essência da análise de Marx, ainda que  
não especificamente sistematizada, sobre o direito. Acompanham-na, no entanto,  
outros sentidos da juridicidade em sua obra cuja caracterização entendemos  
encontrar-se no âmbito da aparência deste fenômeno. Se no capítulo 2 inaugura-se,  
classicamente, a abordagem essencial da relação jurídica, nos capítulos 8 e 13 não  
negligencia Marx o estudo dos sentidos aparentes materializados em fontes  
legislativas e judiciais. Não à-toa nos reportamos aos dois capítulos porque um  
(capítulo 8), ao tratar da jornada de trabalho, apresenta uma longa descrição da  
legislação fabril inglesa, o que denominamos de verdadeira “sociologia da legislação  
fabril” (PAZELLO, 2021a, p. 65 e seguintes); e o outro (capítulo 13), ao historicizar o  
período da maquinaria e grande indústria, também relata, com certo fôlego, a nova  
legislação fabril do período. No encalço da discussão sobre os atos normativos mais  
gerais, Marx também consulta vários pronunciamentos judiciais, o que representa ao  
mesmo tempo as fontes para estudo da sociedade do capital mas também o  
reconhecimento de relativa autonomia dos centros produtores de tais documentos  
jurídicos que, sem dúvida, também podem ser tidos como políticos, agregadamente.  
O fato é que esta chave de leitura dos sentidos do direito em Marx, divididos  
mais amplamente entre seus âmbitos essencial e aparentes, oportuniza uma  
operacionalização da leitura dos seus textos com foco na questão jurídica. Apesar de  
não serem textos sobre o direito, o jurídico aparece reincidentemente e a presente  
metodologia é um esforço de sistematização, dentre os possíveis esforços, que serve  
para estendê-lo também ao estudo do trecho do livro III ao qual pretendemos nos  
dedicar. Indiquemos, ainda, que o quarto sentido aventado, em torno de uma noção  
(crítica) de justiça, é tão lacônico que sobre ele não cabe aqui grande aprofundamento  
(isto porque Marx a ele se refere muito mais como uma contraposição do que uma  
proposta de análise).  
Esboçada a apresentação de tal metodologia, desenvolvida em pesquisa  
anterior, demos o passo definitivo para nos aproximarmos de sua aplicação aos  
capítulos sobre a renda da terra, no livro III. Não sem antes acentuar a existência de  
um percurso de pesquisa que marca nossos interesses de investigação mais  
recentemente. Trata-se do caminho que parte da atenção dada à acumulação originária  
do capital e passa pelo debate sobre a subsunção do trabalho ao capital até chegar à  
renda fundiária.  
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O terreno do direito achado na renda fundiária  
2. O terreno do direito achado na renda fundiária diferencial e absoluta  
Apresentamos, agora, nossa prospecção relativa às preciosas indicações que  
Marx faz, no livro III de O capital, ao problema da renda fundiária, nos dois casos sobre  
os quais se debruça, procurando extrair daí alguns raciocínios a propósito do direito,  
coerentes, aliás, com o direito achado no livro I. Antes, porém, de dedicarmos atenção  
especial aos capítulos mais introdutórios à renda fundiária diferencial e, depois,  
absoluta, vale a pena também um breve excurso sobre como podemos chegar à  
categoria “renda fundiária” na obra de Marx, resgatando um percurso prévio de sua  
produção. Ressaltamos, entretanto, que tal resgate nem de longe esgota as  
possibilidades de sua análise, ainda que aponte para contribuições nevrálgicas a nosso  
argumento desde a crítica marxiana à economia política, por conseguinte, ao direito.  
2.1. Um prévio percurso possível até a renda fundiária  
Acreditamos ser interessante demonstrar um arco de reflexões de Marx que  
pode servir de bússola para uma melhor compreensão do debate sobre a renda a terra  
desde este autor. É verdade que haveria muitos textos atacando o problema, desde os  
já citados debates sobre furto de lenha até os Grundrisse (MARX, 2017b; 2011).  
Posteriormente, contudo, é que categorias fortes entrariam em seu debate, como  
acumulação originária do capital e subsunção do trabalho ao capital. A partir delas, a  
discussão sobre a renda fundiária ganha, a nosso ver, contornos mais instigantes.  
Ainda sobre o assunto, tomemos um dos exemplos de reconstituição do  
itinerário marxiano mais amplo como é o de Dussel, ao indicar que  
hay etapas en la constitución del concepto de renta en Marx: l] En los  
Manuscritos del 44 (donde se relaciona la renta con la propiedad del  
suelo); 2] En La miseria de la filosofía; 3] En los Cuadernos de extractos  
de Londres (1851-1856) (donde comienza la crítica sistemática contra  
Ricardo); 4] En los Grundrisse; 5] En los Manuscritos de1 61-63  
(donde descubre el concepto “científico” de renta), y 6] En el  
Manuscrito principal del libro III que estamos comentando (DUSSEL,  
1990, p. 118).  
Não temos condições de seguir tal trajetória de Marx em torno da discussão  
sobre a categoria “renda”, mas, de qualquer forma, registramo-la. Nossa opção, assim,  
é por destacar, tal como assinalamos antes, dois momentos que não coincidem com  
essa estrita correlação categorial, cuja visualização se dá a partir da assim chamada  
acumulação primitiva e da subsunção (formal e, depois, real) do trabalho. Aqui,  
também, evidentemente, haveria muito o que ser dito, porém restringir-nos-emos a  
uma breve passagem sobre tais argumentos para enredar nossa proposta mais ampla  
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Ricardo Prestes Pazello  
de interpretação.  
Com a acumulação que preferimos chamar de originária do capital, e não  
primitiva conforme as traduções mais difundidas (para tanto, ver PAZELLO, 2016),  
assistimos à interpretação histórica de Marx (2014, p. 785 e seguintes), no final do  
livro I, de O capital, sobre gênese agrícola do capitalismo, em coalizão com sua  
expansão marítimo-mercantil. Expropriação da terra e colonialismo geram o  
entroncamento que origina o modo capitalista de produzir a vida. A autonomia da  
renda da terra em face das outras fontes de riqueza, como lucro e salário para  
lembrar a fórmula trinitária na qual Marx (2017a, p. 877) encontrou “todos os  
segredos do processo de produção social” – inequivocamente encontra suas raízes  
neste que é um processo de transição. Por se tratar de uma transição, inclusive, o  
mesmo processo é descrito de outro modo quando da referência que Marx (2022) faz  
à outra das categorias que realçamos, qual seja, a da passagem da subsunção formal  
à subsunção real do trabalho ao capital, sendo que não apenas a desvinculação do  
produtor com relação à terra prevalece, mas também relativamente a todos os demais  
meios de produção (subsunção formal) até se chegar ao seu próprio saber-fazer  
(subsunção real). Ou, para usar as palavras de um intérprete, há a “expropriação do  
conhecimento dos agentes produtivos”, logo a “materialização desse saber numa  
forma externa aos mesmos” (ROMERO, 2007, p. 127).  
Pois bem, a lógica da expropriação rege os pressupostos que permitem uma  
visualização mais robusta da questão da renda da terra. Trata-se de um processo de  
contínua violência que vai se normalizando, a partir das transformações impostas pelo  
capital à produção social da riqueza, criando formas próprias a ele, ou seja, formas  
subsumidas, subordinadas, derivadas e incluídas. Em face disso, com relação à questão  
fundiária o problema ganha contornos equivalentes e o direito é uma das dimensões  
que sobre ela atua. Senão vejamos.  
2.2. Sobre o direito achado na renda diferencial da terra: uma visita a seus capítulos  
iniciais  
Nos capítulos 37 (“Preliminares”) e 38 (“A renda diferencial: considerações  
gerais”) do livro III de O capital, Marx destaca algumas questões introdutórias sobre a  
renda da terra em face das quais passaremos a nos posicionar agora cabendo  
destacar que os próximos seis capítulos da seção (do 39 ao 44) aprofundam tais  
noções centrando-se nas formas da renda diferencial. Na realidade, acaba sendo  
relevante lembrar que a organização do livro III foi feita por Engels, uma vez que os  
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escritos de Marx seguem um caminho lógico de redação, ainda que convivam também  
com uma proposta de redefinição da ordem dos capítulos. Sobre o assunto, novamente  
nos valemos de Dussel para relembrar que fôra o próprio Marx quem sugerira uma  
readequação de tal ordenação, em excerto do capítulo 43: “en el Manuscrito” – que é  
como o filósofo latino-americano se refere ao texto em que se encontra o estudo sobre  
a renda da terra alocada no livro III, já que sua investigação se debruçou sobre os  
originais que estavam no Instituto Marxista Leninista de Berlim, em 1987 (DUSSEL,  
1990, p. 9) – “Marx desarrolla el orden lógico. Sin embargo, él mismo propone otro  
orden – y en éste se inspiró Engels” (DUSSEL, 1990, p. 117). Tal como Dussel,  
reproduzamos essa repropositura do texto marxiano por seu próprio autor:  
A renda deve ser tratada sob as seguintes rubricas:  
A. Renda diferencial.  
1. Conceito da renda diferencial. Ilustração com a energia hidráulica.  
Transição para a renda agrícola propriamente dita.  
2. Renda diferencial I, que surge da diferente fertilidade de diferentes  
solos.  
3. Renda diferencial II, que tem origem nos sucessivos investimentos  
de capital no mesmo solo. Deve investigar -se a renda diferencial II:  
a. com preço de produção constante;  
b. com preço de produção decrescente;  
c. com preço de produção crescente.  
Além disso:  
d. transformação do lucro extra em renda.  
4. Influência dessa renda sobre a taxa de lucro.  
B. Renda absoluta.  
C. Preço da terra.  
D. Considerações finais sobre a renda fundiária (MARX, 2017a, p.  
787-788).  
Quer dizer, a disposição dos textos manuscritos de Marx sobre a renda fundiária  
não coincidiu com o que ele pretendia expor, recolocando o problema da distinção  
entre método de investigação e método de exposição. Independentemente disso,  
vamos seguir aquele que parece ser o itinerário argumentativo mais plausível e que  
está vertido na organização engelsiana do texto. Assim, desde logo, podemos  
considerar que o ponto de partida de Marx parece ser mesmo o entendimento de que  
“a agricultura está dominada pelo modo de produção capitalista exatamente do mesmo  
modo que a manufatura” (MARX, 2017a, p. 675). Tendo isso assentado,  
imediatamente em seguida, ainda no primeiro parágrafo do capítulo 37 o primeiro  
da seção VI tal como disposta seguindo o método de exposição acima aludido , ele  
caracteriza a “forma de propriedade fundiária” como “uma forma histórica específica,  
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a forma transformada mediante a influência do capital e do modo de produção  
capitalista” (MARX, 2017a, p. 675 – itálico no original). Esta “forma transformada”,  
longe de ser uma redundância, é uma ênfase que permite compreender o movimento  
explicativo marxiano originado com as noções de expropriação e subsunção. Assim,  
expropriação, subsunção e transformação filiam-se ao mesmo percurso teórico que  
desemboca, metodicamente, em uma compreensão histórica das formas sociais.  
Marx se esforça, aqui, para afastar quaisquer universalismos ou seja,  
etnocentrismos – da análise das formas sociais e acentua a existência de uma “forma  
moderna da propriedade fundiária” cuja marca é a de carregar consigo “relações  
específicas de produção e de intercâmbio” (MARX, 2017a, p. 676). E no bojo de tais  
especificidades, já nos revela a problemática jurídica de fundo: “a representação  
jurídica da livre propriedade do solo” nada mais é que a implicação de que “o  
proprietário fundiário pode proceder com a terra tal como o proprietário de  
mercadorias o faz em relação a estas últimas” (MARX, 2017a, p. 677). Em resumo, ao  
tempo em que define a propriedade fundiária, Marx sobre ela reflete indicando sua  
dimensão jurídica, assim como, no capítulo 2 do livro I de O capital, liga a troca  
mercantil à relação jurídica. Logo, estamos diante da relação jurídica, em seu sentido  
essencial, ainda que percebida a partir da especificidade proprietária (privada).  
A propriedade é, portanto, a representação jurídica que o capital cria para  
traduzir em seus termos a apropriação da terra. Eis a definição contundente de Marx:  
“a propriedade fundiária baseia-se no monopólio de certas pessoas sobre porções  
definidas do globo terrestre como esferas exclusivas de sua vontade privada, com  
exclusão de todas as outras” (MARX, 2017a, p. 676). Percebamos a vinculação entre  
propriedade, vontade privada e exclusividade como o negativo da fotografia sobre a  
relação de troca sob o capitalismo. Daí aparecer com evidência a “representação  
jurídica” independentemente de uma positivação em lei pública – o momento aparente  
da juridicidade , o que permite a Marx, desde logo, uma crítica a Hegel e sua  
compreensão sobre o “direito positivo” (MARX, 2017a, p. 677, nota 26). Portanto,  
podemos dizer que a noção de “representação jurídica” é a mudança qualitativa que  
adquire a propriedade privada do solo quando “transformada”, quer dizer, quando  
transita para uma forma jurídica propriamente dita, sendo que antes, desde esse ponto  
de vista, era apenas uma protoforma (apesar de, inegavelmente e nem o Marx o nega  
ou mesmo teria condições de negar , existir antes de disso).  
No contexto de discussão da origem do capitalismo e sua relação com a  
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propriedade fundiária, Marx relembra explicitamente o capítulo 24 do livro I de O  
capital, mencionando sua categoria de acumulação originária, referindo-se inclusive à  
noção de expropriação. Como a senda subsuntiva de seu argumento prevalece, ele  
ressalta que as “formas jurídicas” anteriores ao capital (no âmbito da questão da terra  
adiciona-se uma complexidade à intelecção dessas formas, pois elas são protoformas  
do ponto de vista do capitalismo, mas formas pregressas do ponto de vista da  
cosmovisão medieval) “se transmutam na forma econômica correspondente a esse  
modo de produção” (MARX, 2017a, p. 678). Isto se confirma, segundo Marx, porque  
“todos os enfeites e amálgamas políticos e sociais” servis desaparecem, liberando-se  
a terra para um novo modo de produzir, baseado na “redução da propriedade da terra  
ad absurdum” (MARX, 2017a, p. 679), já que propriedade e solo/posse estão  
separados desde logo.  
O capitalismo se apodera da terra contratualizando-a a partir da relação entre  
arrendatário e proprietário fundiário. O contrato daí decorrente implica a existência de  
um pagamento da renda da terra, que vai redundar na terceira grande fonte da  
produção social e vai, portanto, complexificar a análise das classes sociais. Mais à  
frente, já no capítulo seguinte, Marx assevera que “em nada alteraria as coisas se o  
próprio capitalista fosse proprietário” (MARX, 2017a, p. 709), no sentido da extração  
de uma renda da terra, ainda que do ponto de vista das classes sociais, é forçoso que  
o digamos, tudo se altera com isso e é exatamente o que estamos vivenciando na  
agricultura capitalista contemporânea, em especial em contextos periféricos como o  
da América Latina (verificar, por exemplo, FERNANDES; SANTOS, 2020).  
A relação jurídica da propriedade fundiária e o contrato são as grandes  
expressões da juridicidade no âmbito da discussão marxiana sobre a renda diferencial  
da terra. Todas estas questões sugerem o sentido de direito como relação jurídica,  
aquele sentido mais essencial descoberto desde o livro I de O capital. Relação jurídica  
e econômica continuam imbricadas, mas com a especificidade da questão fundiária:  
“um dos segredos [...] do crescente enriquecimento dos proprietários fundiários” reside  
no fato de que se “vende não apenas o solo, mas o solo melhorado, o capital  
incorporado à terra, que não lhe custou nada” (MARX, 2017a, p. 680), a partir dos  
investimentos dos arrendatários capitalistas.  
Após consolidar tal explicação essencial, tal como a consideramos, sobre o  
direito no âmbito da renda da terra, Marx abre espaço para contínuas referências a  
legislações rurais, mantendo-se coerente com seu apelo a fontes de pesquisa que  
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denotam haver, sob sua pena, uma sociologia legislativa agora agrícola, já que antes,  
nos capítulos 8 e 13 do livro I, fabril (há, contudo e como sabemos, ampla  
referenciação marxiana, ainda no livro I, sobre legislações aplicadas ao âmbito rural).  
É o que vemos no conjunto de suas indicações sobre uma “legislação rural irlandesa”  
(MARX, 2017a, p. 686), “leis dos cereais de 1815” (MARX, 2017a, p. 687), e “leis dos  
pobres nos distritos agrícolas” (MARX, 2017a, p. 688), dentre outros exemplos. Além  
de isso, ao mencionar um discurso parlamentar britânico, traz em sua citação  
referências à criminalização do pauperismo, já que suas vítimas lançam mão dos mais  
diversos recursos para sobreviver e, por óbvio, o judiciário os condena: “por esse delito  
[furto de trave de madeira de 6 pence], os juízes de paz o condenaram a 14 ou 20  
dias de prisão” (BRIGHT apud MARX, 2017a, p. 693). Eis, portanto, um legislativo e  
um judiciário de classe. Logo, os sentidos aparentes do direito ganham seu lugar na  
análise de Marx sobre as questões preliminares à explicação da renda fundiária.  
Curioso é notar, ainda, que no contexto da discussão sobre o pauperismo, não  
por acaso mencionado ao lado escravidão, em especial a havida nos Estados Unidos,  
Marx percebe a situação do trabalhador agrícola de modo muito peculiar: “a  
compressão do salário do trabalhador agrícola propriamente dito abaixo de seu nível  
médio normal, de modo que ao trabalhador é subtraída uma parte do salário” (MARX,  
2017a, p. 688). Trata-se de um dos estabelecimentos primeiros de uma  
superexploração da força de trabalho (que se repete, exemplarmente, em vários outros  
instantes do livro III, ainda que não só), antecipando e inspirando toda uma tradição  
marxista que estudou a dependência e o subdesenvolvimento.  
Seguindo este caminho, Marx conclui seu capítulo 37 do livro III de O capital  
indicando que  
a peculiaridade da renda fundiária não está nos produtos agrícolas se  
transformarem em valores e evoluírem como tais, isto é, que eles como  
mercadorias se defrontem com outras mercadorias e que os produtos  
não agrícolas se defrontem com eles como mercadorias ou que se  
desenvolvam como expressões particulares do trabalho social. A  
especificidade é que, com as condições em que os produtos agrícolas  
se desenvolvem como valores (mercadorias) e com as condições de  
realização de seus valores, há também o poder da propriedade  
fundiária de apropriar-se de uma parte crescente desses valores  
criados sem sua participação, e uma parte cada vez maior do mais-  
valor é convertida em renda fundiária (MARX, 2017a, p. 701).  
Ou seja, a “peculiaridade” da relação jurídica essencial proprietária é, do ponto  
de vista de um direito de propriedade fundiária, garantir a renda da terra (logo,  
“também o poder da propriedade fundiária de apropriar-se [...de] valores criados sem  
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sua participação” – ressaltemos a importância da palavra “também”, na frase, porque  
a renda da terra tem outras dimensões, as quais, do ponto de vista do direito,  
relacionam-se à contratualização e à representação jurídica).  
A contribuição que a análise marxiana dá ao debate é sensível. Há uma  
especificidade da renda da terra. No entanto, ela é subsumida à lógica do capital, ainda  
que preservando sua autonomia como fonte de riqueza. Nem por isso, porém, o  
“trabalho puramente agrícola” deixa de estar vinculado ao desenvolvimento do  
capitalismo, não devendo ser encarado como “natural espontâneo”, já que sumamente  
“moderno” (MARX, 2017a, p. 694). A nosso ver, o interessante é perceber que essa  
dialética entre autonomia e atrelamento está premida igualmente pela lógica da  
relação jurídica que acompanha a circulação mercantil e a titularidade dos sujeitos de  
direito proprietários. No caso, proprietários da terra e não dos meios maquinais de  
produção. Assim é que Marx vai passar a distinguir a renda da terra a partir de agora,  
ressaltando seu caráter diferencial no quadro da produção social (logo, capitalista) de  
riquezas.  
O capítulo 38, por seu turno, é bastante objetivo no que tange a possíveis  
inferências a respeito da juridicidade em seu conteúdo. As remissões transitam entre  
o sentido relacional do direito, a partir da figura do proprietário de terras como sujeito  
jurídico, e o sentido econômico, marcadamente insculpido na lógica da regulação do  
que o “preço de produção” como “preço regulador de mercado” (MARX, 2017a, p.  
704) é o seu maior exemplo. Estas últimas questões (vinculadas à regulação  
econômica) aparecem ao longo do texto marxiano e também podem ser notadas no  
capítulo 45, ao qual nos referiremos a seguir sem destacar esta dimensão que fica só  
aqui consignada. Já tivemos oportunidade. todavia, de emparelhar, ainda que as  
caracterizando como análogas, as dimensões de regularidade geral, regulação  
econômica e regulação jurídica (ver PAZELLO, 2021a, p. 51). Elas comportam, então,  
tanto um sentido relacional (notadamente a segunda e terceira) quanto de legalidade  
(científico-natural, econômico-política e político-jurídica).  
Trata-se de um capítulo, este 38, bastante elucidativo no que tange ao caráter  
social da produção capitalista, aplicando em concreto o entendimento de  
“transformação”. Trabalhando com a problemática do lucro extra, Marx alcança a  
categorização da renda diferencial. O lucro extra representa o resultado de produção  
com custos abaixo da média social. Sendo assim, tal lucro é “igual à diferença entre o  
preço de produção individual [...] e o preço de produção social geral” (MARX, 2017a,  
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p. 704). Analogamente a isto, Marx infere que as “forças naturais [...] são tão  
monopolizadas pelo capital quanto as forças sociais naturais do trabalho” (MARX,  
2017a, p. 706) e a partir daí exemplifica com o caso do lucro extra obtido com uma  
queda-d´água natural ao invés da força motriz advinda do carvão. Aqui, este lucro  
decorre da “maior força produtiva natural espontânea do trabalho, vinculada à  
utilização de uma força natural, que não se encontra à disposição de todo capital na  
mesma esfera da produção” (MARX, 2017a, p. 707). Neste contexto, o problema do  
direito parece se aproximar de nova silhueta: “a posse dessa força natural constitui um  
monopólio nas mãos de seu possuidor, uma condição da elevada força produtiva do  
capital investido que não pode ser engendrada pelo próprio processo de produção do  
capital; essa força natural, assim monopolizável, está sempre ligada à terra” (MARX,  
2017a, p. 708). Aparece aqui a dimensão do monopólio na posse, o qual é justificado  
pela relação jurídica de propriedade. Portanto, outra faceta do sentido essencial do  
direito, no âmbito fundiário.  
Em realidade, ao afirmá-lo, estamos nos questionando se sem a relação  
(jurídica) de propriedade poderia ser transformado em outras palavras, garantido –  
o lucro extra em renda fundiária. Ante a questão, parece Marx querer responder o  
seguinte:  
a propriedade da terra não cria a parcela de valor que se transforma  
em lucro extra, apenas capacita o proprietário fundiário, o proprietário  
da queda-d’água, a transferir esse lucro extra do bolso do fabricante  
para seu próprio bolso. Ela é a causa não da criação desse lucro extra,  
mas de sua conversão à forma da renda fundiária e, assim, da  
apropriação dessa parte do lucro ou do preço da mercadoria pelo  
proprietário fundiário ou proprietário da queda-d’água (MARX,  
2017a, p. 710).  
A noção de “capacitar” a transferência do lucro extra atrela-se à juridicidade e  
é mais uma modalidade da forma jurídica nesse contexto, que gera uma transformação  
social e cultural do latifúndio. Portanto, propriedade da terra, contratualização e  
capacitação são faces do mesmo diamante fundiário. E, com isso, contribui-se para  
uma melhor caracterização do direito neste ambiente. Como este apresenta-se  
marcado pela transformação da mais-valia em lucro e o lucro em renda, temos um fio  
condutor da interpretação: a necessidade de compreender a especificidade da  
dimensão fundiária (tão importante, aliás, para contextos como os da América Latina  
coeva, desde onde falamos). De algum modo, contrastando a explicação sobre a renda  
diferencial com a da renda absoluta, é possível dar um passo a mais, bastante  
importante, rumo a essa elucidação. Vejamos, então, como isso se dá a seguir.  
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O terreno do direito achado na renda fundiária  
2.3. Sobre o direito achado na renda absoluta da terra: uma paragem em seu capítulo  
geral  
No capítulo 45, cujo título é “A renda fundiária absoluta”, Marx avança para  
uma segunda expressão da renda da terra. No entanto, realiza-a de maneira  
comparativa, contrastando o que pretende caracterizar como renda absoluta  
justamente com a renda diferencial (que, como dissemos, possui oito capítulos do  
37 ao 44 dedicados a ela). Cerca de metade do que Marx escreveu neste capítulo  
tem a ver com esta última. A partir, todavia, da reflexão sobre situações fundiárias em  
que a produtividade do solo e mesmo a produtividade do trabalho são, por  
comparação, insuficientes para se explicar a renda da terra é que Marx chega à renda  
absoluta: “uma renda do solo independente da diferença na fertilidade dos tipos de  
solo ou dos sucessivos investimentos de capital no mesmo solo; em suma, a existência  
de uma renda distinta da renda concebida como diferencial e que, por isso, podemos  
designar como absoluta” (MARX, 2017a, p. 821).  
Sendo a renda absoluta caracterizada por um “preço monopólico” e que este,  
por sua vez, “consiste em não serem [os produtos agrícolas] nivelados ao preço de  
produção” (MARX, 2017a, p. 823) – a tal ponto de uma autora como Vânia Bambirra  
(2019, p. 184), de nodais contribuições ao marxismo latino-americano, subscrever a  
tese de que “a renda absoluta provém da propriedade monopólica da terra”, o que  
não parece ser o mais exato ainda que facilite a uma explicação didática da questão –  
podemos destacar, por assim dizer, uma nova fenomenologia da transformação que  
se opera com a renda da terra, se tomada em consideração a renda diferencial. Aqui,  
a “renda absoluta, derivada do excedente do valor sobre o preço de produção, é  
apenas parte do mais-valor agrícola”, ou seja, há uma “transformação desse mais-valor  
em renda, a captação dele pelo proprietário da terra” (MARX, 2017a, p. 824). O que  
queremos fazer notar é que a transformação da propriedade fundiária em uma forma  
moderna de propriedade logo, uma forma-propriedade fundiária exige a  
fundamental transformação, corolário de muitas outras, da mais-valia em lucro extra e  
deste em renda. Dessa maneira, a realidade do fenômeno jurídico que se lobriga –  
ainda que com certa sofreguidão acompanha a realidade da relação social de  
produção que o capitalismo impõe sob suas subsunções, para usar o termo sem o  
mesmo rigor que antes.  
É bom resgatar, nessa seara de considerações, uma vez mais a exegese de  
Dussel (1990, p. 120), para quem a renda absoluta é, sobretudo, o que é o essencial,  
enquanto que a renda diferencial ser-lhe-ia derivada. Isso é o que explicaria Marx  
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propor começar sua exposição (segundo o seu já mencionado método expositivo) pela  
renda diferencial e suas formas, ainda que tendo escrito ao contrário, iniciando, de  
fato, pela lógica do ponto de partida entabulado na renda absoluta (via seu método  
de investigação). Como interessa passar do simples ao complexo e do abstrato ao  
concreto, a questão se resolve assim. Nesse sentido, contudo, chegarmos ao momento  
expositivo da renda absoluta já estando implicada a bagagem contida na renda  
diferencial. Pressuporemos, portanto, todo o caminho descrito anteriormente e  
traduzido em categorias eminentemente jurídicas: propriedade fundiária transformada;  
representação jurídica; transmutação das protoformas de propriedade tradicional na  
forma jurídica propriedade da terra; liberação das terras servis de seus elementos  
político-sociais; contratualização; dimensões aparentes do direito de propriedade  
fundiária (legislações rurais e criminalização judicial do pauperismo); capacitação e  
garantia da renda da terra; em síntese, todas as dimensões da relação jurídica  
proprietária fundiária, em seus momentos essencial e aparentes. Assim como estamos  
pressupondo a categoria “preço de produção” – “preço igual ao capital investido mais  
o lucro médio” (MARX, 2017a, p. 810) – como elemento da teorização geral de Marx,  
é inevitável falar da renda absoluta da terra sem pressupor as citadas categorias  
dimensionadas a partir da renda diferencial.  
Feito esse alerta, podemos agora dedicar algumas palavras ao que se pode  
encontrar, em sua especificidade, a respeito da juridicidade no capítulo 45 do livro III  
de O capital. É mais do que evidente que, sempre que Marx menciona a propriedade  
fundiária e seus proprietários, ele está atrelando tais ideias às condições de sua  
transformação capitalista e, portanto, de sua condição jurídica. Assim sendo, para além  
de tais dimensões categoriais, do ponto de vista de um direito achado na renda  
absoluta podemos mencionar, principalmente, alguns âmbitos relacionais do  
fenômeno, em pontuações a respeito do assunto, ainda que também, esporadicamente,  
encontremos exemplificações laterais dos seus elementos aparentes, em sentidos  
residualmente normativos.  
Comecemos por estes últimos. Os momentos aparentes do direito no capítulo  
45 encontram-se nas referências que Marx (2017a, p. 830) faz, por exemplo, às  
Enclosure Bills”. A estas leis (bills), aliás, já havia se referido no capítulo 24 do livro I  
de O capital como verdadeira “forma parlamentar do roubo” (MARX, 2014, p. 796)  
das terras comunais, por via de seu cercamento (enclosure) nada mais nada menos  
que uma forma histórica da expropriação ontogeneticamente capitalista. É curioso  
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notar, porém, que uma menção legal como esta venha seguida de uma avaliação  
negativa acerca do que chama de “pretextos jurídicos de apropriação” (MARX, 2017a,  
p. 830). Por avaliação negativa estamos chamando a postura irônica de Marx que não  
vê nessas leis a atribuição de um sentido constitutivo do capital via realidade jurídica;  
não, aqui se trata de mero “pretexto” (diríamos, aparência) “jurídico”.  
Nessa mesma toada, Marx também traz algumas intersecções entre o plano  
jurídico e o político, ao realizar uma aproximação analógica entre a questão da  
propriedade da terra e eventuais desdobramentos de tipo estatal. É o que se verifica  
na questão sobre o já referido “preço monopólico”: seria ele “um preço em que a renda  
entra na forma de imposto, porém arrecadado pelo proprietário fundiário, em vez de  
pelo Estado?” A forma estatal é lembrada para contrastar o sentido capitalista da renda  
absoluta da terra, com relação ao que segue Marx: “A questão é saber se a renda  
proporcionada pelo pior solo entra no preço de seu produto que, conforme o  
pressuposto, regula o preço geral de mercado da mesma maneira que um imposto  
entra no preço da mercadoria sobre a qual ele recai, isto é, como elemento  
independente de seu valor” (MARX, 2017a, p. 818).  
“Estado”, “imposto” ou mesmo “tributo” são mencionados aqui e ali ao longo  
do capítulo, no exato sentido de uma comparação. Eis o exemplo em que Marx retoma  
o capítulo 25 do livro I, sobre o colonialismo, para dizer que “é indiferente se os  
colonos se apropriam simplesmente do solo ou apenas pagam ao Estado, a título de  
preço nominal do solo, uma taxa por um título jurídico válido sobre o solo”; assim  
como “também é indiferente se colonos já estabelecidos são juridicamente  
proprietários da terra” ou não (MARX, 2017a, p. 817). Aqui, ter “título jurídico” ou ser  
“juridicamente proprietário” não significa muita coisa que permita legitimar a  
apropriação privada da terra para além de um âmbito de violências. A violência (ou  
acumulação) originária está em andamento e sua normalização ainda não se  
concretizou. A problemática reaparece a partir do sentido plúrimo de tributo que,  
sabidamente, permeia as análises de Marx sobre diversos modos de produção: “a  
propriedade fundiária só atua de maneira absoluta, como barreira, na medida em que  
condiciona o acesso ao solo em geral, enquanto campo de investimento de capital, ao  
pagamento de um tributo ao proprietário fundiário” (MARX, 2017a, p. 825). O  
arrendatário está para o proprietário fundiário assim como o contribuinte estaria para  
o estado. A analogia tem seus limites, mas estilisticamente permite uma compreensão  
facilitada do tema.  
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Todos esses usos de expressões, hoje tidas por jurídicas, na verdade apontam  
para a construção histórica do direito que não tinha nelas sua exata realização. Por  
isso denominamo-las, do ponto de vista do direito mesmo, de momentos aparentes  
da relação jurídica (ainda que possam importar essências de outras formas sociais, as  
quais aqui não abordaremos). O direito propriamente dito, no entanto, segue um  
percurso que essencialmente extravasa consideravelmente tais dimensões político-  
normativas.  
Fundamentalmente, seguindo o que já vimos nos dois capítulos da renda  
diferencial que analisamos, é a contratualização e a representação jurídica que se  
fazem presentes com maior vigor argumentativo no texto de Marx, para permitir uma  
aproximação à essência do direito. É bastante persuasivo ler um trecho no qual o  
revolucionário alemão indica uma utilização da expressão “pessoa”, admitindo  
novamente retomar o livro I, em seu famoso parágrafo inicial do capítulo 2: “a  
transferência dessa parte do preço de uma pessoa para a outra, do capitalista ao  
proprietário fundiário” remete ao fato de que “a propriedade da terra é apenas a causa  
da transferência de um aumento do preço da mercadoria, ocorrido sem sua intervenção  
[...] e que se transforma em lucro extra”. Marx continua explicando que, entretanto, “a  
propriedade da terra não é a causa que gera esse componente do preço ou a elevação  
de preço que ele pressupõe”, complexificando o argumento que distingue “causa da  
transferência de um aumento do preço da mercadoria” da “causa que gera esse  
componente do preço”. Logo, a causa da transferência de um preço elevado não é a  
causa desse aumento mesmo. Não temos intenção de explorar a fundo esse momento  
do texto marxiano, mas sim notar que ele se insere em uma problematização a  
propósito da qual o elemento juridificante central é o “contrato de arrendamento”  
(MARX, 2017a, p. 816, para todas citações deste nosso parágrafo). Nesse caso, o  
contrato guarda consigo a característica de ser a formalização jurídica das vontades  
recíprocas, amalgamando direito e economia (tanto a que produz quanto a que circula  
mercadorias).  
A questão do contrato já havia aparecido em trechos anteriores do capítulo,  
justamente para posicionar o problema da transformação capitalista da propriedade  
fundiária, ou seja, sua forma jurídica proprietária. Repitamos algo que já aparecia nas  
entrelinhas de nossos comentários anteriores: “durante a vigência do contrato de  
arrendamento desaparece a barreira da propriedade fundiária para o investimento de  
seu capital no solo” (MARX, 2017a, p. 813). É o contrato de arrendamento – logo, a  
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dimensão da contratualização que faz recepcionar sob o capitalismo a propriedade  
fundiária. Nesse sentido, não só toda a agricultura já é, a esta altura, capitalista, como  
o próprio capitalismo nasce agrícola. Desse modo, o contrato faz a mediação dos  
interesses de dois representantes de classes distintas proprietário de terra e burguês  
e acaba por se estribar em um vínculo jurídico.  
A esse propósito, o texto de Bambirra que citamos antes discorre,  
supreendentemente, sobre uma utopia do capital que, ao não se realizar, explica a  
permanência da classe dos proprietários de terra mesmo sob a hegemonia produtiva  
da burguesia. Ela assim se expressa: “quando a terra é arrendada, a renda é recebida  
por seu proprietário, enquanto o arrendatário tem que se contentar apenas com o  
lucro médio do capital”. Por outro lado, “quando a propriedade é abolida, o Estado  
substitui o antigo proprietário na apropriação dessa renda diferencial”. Por fim, ela  
sentencia: “ainda que se demonstre teoricamente que a abolição completa da  
propriedade privada da terra corresponde aos mais consequentes interesses do  
desenvolvimento capitalista, esta jamais foi vista em nenhum país sob o sistema  
capitalista” (BAMBIRRA, 2019, p. 185). No que se refere a nossa argumentação, ao  
mostrarmos que esse mundo ideal de abolição da propriedade da terra pelo capital  
não tem lastro histórico, ele se encarna na historicidade juridificante das relações de  
produção capitalistas, criando uma contratualização que empresta seu sentido próprio  
à propriedade privada da terra subsumida ao capital. Daí a importância inescusável do  
arrendamento percebido contratualmente, intuída inclusive por Marx ao comentar  
sobre a hipotética condição de vir a se dar, “ainda que não juridicamente, a supressão  
da propriedade fundiária” (MARX, 2017a, p. 812 - grifamos).  
Além dessas questões, o capítulo 45 do livro III apresenta também uma menção  
à “propriedade jurídica do solo” em sua especificidade ou ao menos em um de seus  
níveis. Trata-se da argumentação marxiana segundo a qual está descrito o  
entendimento de que  
a mera propriedade jurídica do solo não cria renda para o proprietário,  
mas lhe dá o poder de subtrair suas terras à exploração até que as  
condições econômicas permitam uma valorização que lhe dê um  
excedente, tanto se o solo é empregado para a agricultura  
propriamente dita quanto para outras finalidades de produção, como  
construções etc.” (MARX, 2017a, p. 818).  
Aqui, indicamos haver uma espécie de ápice da reflexão jurídica sobre a propriedade  
fundiária, em Marx, porque o interesse de valorização determina qualquer sentido de  
uso da terra, implicando a compreensão de que a terra só adquire sua plena marca  
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capitalista na medida em que adentrar o mercado. Mas isso traz consigo a contradição  
de que ela, a terra, se torna mercantilizável conquanto possa ser tirada de circulação,  
para ser reinserida posteriormente. Aqui, toda uma reflexão interessantíssima poderia  
se abrir sobre as terras que, por exemplo, estão sob a posse de populações  
tradicionais, as quais não são exatamente proprietárias privadas no estrito sentido  
moderno/colonial/capitalista do termo, e portanto estão fora, de algum modo, do  
mercado de terras mesmo. Considerando que “terra mercadoria, terra vazia” (SOUZA  
FILHO, 2015), ou seja, dado o alto custo (social e simbólico) da espoliação pura e  
simples (cuja existência, ainda assim, percebe-se reiteradamente), é melhor transformar  
em pequenos proprietários privados os integrantes de populações tradicionais,  
individualizando-os, para, em não sendo propriamente caracterizáveis como  
proprietários fundiários por não obterem sua renda, terem de vender suas terras. Aqui,  
atestamos as sugestões atuais as quais podemos remontar à leitura do texto de Marx,  
especialmente para realidade latino-americana.1  
Eis, com isso, uma apreciação geral sobre o problema da renda da terra naquilo  
que nos informa sobre o direito. O direito achado na renda da terra, seja a diferencial  
ou agora a absoluta, aponta-nos para as questões em aberto de nossa conjuntura  
atual, notadamente a do capitalismo dependente, mas também para a necessidade de  
compreensão do significado do fenômeno jurídico na dinâmica específica da  
transformação da propriedade fundiária em forma de capitalismo agrícola e, logo, das  
possibilidades mais complexas de apreensão do movimento de desenvolvimento  
categorial que o direito implica, para além de suas perspectivas na circulação  
(majoritariamente apresentadas pela leitura especializada), na produção  
(enfrentamento ainda por se efetivar) e no processo global do modo de produzir e  
reproduzir a vida segundo os ditames do capital (algo que muito modestamente  
intentamos aqui, unindo esforços com outras propostas de investigação que nos  
antecederam [ver, por exemplo, SARTORI, 2019; 2021; FREITAS, 2014]).  
O direito, como forma social do capital, angaria especificidades sob o prisma  
da renda da terra que reforçam sua condição relacional percebida a propósito do  
1
Sobre a questão, achamos importante referir os estudos de Carcanholo (1981, p. 36 e seguintes)  
acerca do capitalismo dependente na Costa da Rica, destacando a questão da renda fundiária, assim  
como as mais posteriores formulações de Bartra (2006) sobre o México, abarcando uma interpretação  
sobre a renda da terra, dentro de um quadro verdadeiramente criativo do marxismo latino-americano,  
ou ainda o texto de Osorio (2017) acerca da situação argentina que rebate críticas feitas por outros  
autores à teoria da dependência a partir da questão da renda da terra.  
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estudo mais abstrato do capital, mas também que apresentam novos desdobramentos,  
como pudemos fazer perceber nesse estudo. A leitura da seção dedicada à renda da  
terra, no livro III de O capital, ainda não está encerrada e este ensaio foi esforço de  
sedimentação de uma pesquisa que começa a esboçar seus resultados.  
Considerações agrimensoras  
O esboço de análise aqui realizado teve por intuito contribuir com um  
aprofundamento da apreciação do direito desde Marx, a fim de projetar força a uma  
teoria que se alimenta de intervenção na realidade. O fundamental aqui é viabilizar a  
intelecção de formuladores e lideranças dos movimentos populares e, entre eles, se  
destacam os movimentos territoriais do campo, das florestas, das águas e das cidades  
a respeito do papel do direito no que toca à questão da terra, já que estes mesmos  
movimentos costumam traduzir suas reivindicações, mesmo as mais disruptivas, como  
uma luta por direitos. Como o fenômeno jurídico expressa, em sua particularidade, os  
movimentos do capital, cabe aos movimentos populares entenderem-se a si mesmos  
como partícipes desta complexidade, não para deparar-se com a inércia da constatação  
dos limites do todo social, mas para ante ele insurgir-se. Eis uma oportunidade para  
se pensar, pois bem, em um direito insurgente, tipicamente atribuível à produção  
teórica do campo de investigações sobre “direito e movimentos sociais”, em geral, e  
sobre “direito e marxismo”, em especial. Foi este, aqui, o nosso intento – provisório –  
de contribuição.  
Trocando em miúdos essa admoestação final, o que queremos dizer é que os  
usos táticos de um direito insurgente dinamizado pelos movimentos populares precisa  
compreender o papel da renda fundiária no capitalismo, sua combinação  
com/transformação em lucro pelos capitalistas-proprietários de terra, bem como sua  
expressão juridificada na contratualização mesma da terra e na relação jurídica de  
propriedade privada do solo que garante aquela renda, por um lado, e a exploração  
da força de trabalho, por outro. Tudo com a aparência da legalidade que nunca  
viabilizará, entre nós, uma reforma agrária (a qual, mesmo sendo traduzida como  
“reforma”, não importará menos rupturas radicais e estruturantes), a não ser com muita  
organização e luta. A compreensão (que é, ao mesmo tempo, formação e formulação)  
sobre o assunto é condição-chave para avançarmos no sentido do combate ao capital  
e a suas formas históricas, entre as quais está o terreno do direito, bem como da  
viabilidade de suas superações.  
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Ricardo Prestes Pazello  
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Como citar:  
PAZELLO, Ricardo Prestes. O terreno do direito achado na renda fundiária: introdução  
a uma crítica jurídica a partir do Livro III, de O capital de Marx. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 29, n. 1, pp. 388-411; jan.-jun., 2024  
Verinotio  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.715  
O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos,  
contextos e debates  
The concept of “justice” by Marx: its elements, contexts,  
and debates  
Thiago Aguiar Simim*  
Resumo: Este artigo tem o objetivo de tratar do  
tema da “justiça” na obra de Karl Marx, a partir  
das ocorrências deste conceito e de suas  
variações no própria obra do autor. A ideia  
desta análise é contextualizar e sintetizar o  
sentido dado por Marx à “justiça” no quadro  
teórico de sua crítica ao capitalismo. O debate  
contemporâneo sobre “justiça em Marx” emerge  
em especial após a década de 1970, com a  
intensificação da discussão normativa na filosofia  
política, por ocasião da revitalização da teoria da  
justiça liberal igualitária. Com isso, diversos  
autores buscaram compreender os critérios  
normativos por trás da crítica de Marx ao  
capitalismo e se questionaram se tal padrão de  
crítica poderia ser entendido como um ideal de  
justiça para ele. Sendo assim, o próprio sentido  
de justiça em Marx teve que ser negligenciado,  
em prol de uma definição mais ampla e mais  
atual de justiça com fronteiras menos claras  
com conceitos como “moral” e “ética”. A intenção  
deste artigo vai no sentido oposto, de restringir  
os termos da discussão, tentando inicialmente  
identificar quais os elementos, os contornos e o  
contexto do emprego do conceito de “justiça” na  
obra de Marx.  
Abstract: The aim of this article is to discuss the  
theme of “justice” in the work of Karl Marx,  
based on the occurrences of this concept and  
its variations in the author's own work. The  
idea of this analysis is to contextualize and  
synthesize the meaning given by Marx to  
“justice” within the theoretical framework of his  
critique to capitalism. The contemporary debate  
on “justice in Marx” emerged especially after the  
1970s, with the intensification of the normative  
discussion in political philosophy, on the  
occasion of the revitalization of the liberal  
egalitarian theory of justice. As a result, various  
authors sought to understand the normative  
criteria behind Marx's critique of capitalism and  
questioned whether this pattern of critique  
could be understood as an ideal of justice for  
him. Therefore, the very meaning of justice in  
Marx had to be neglected in favor of a broader  
and more current definition of justice with less  
clear boundaries with concepts such as  
“morality” and “ethics”. The intention of this  
article is to restrict the terms of the discussion,  
initially trying to identify the elements, contours  
and context of the use of the concept of “justice”  
in Marx's work.  
Palavras-chave: Karl Marx; Conceito de Justiça;  
Crítica do capitalismo.  
Keywords: Karl Marx; Concept of Justice;  
Critique of capitalism.  
1. Introdução  
A pergunta “seria o capitalismo seria injusto para Marx?” já foi levantada e  
discutida por diversos autores (cf. COHEN, 1980; GARGARELLA, 2008; GERAS, 2018;  
*
Doutor em Sociologia pela Universidade de Frankfurt/M e pelo Instituto de Pesquisa Social (IfS/  
Frankfurt). Professor adjunto na área de Sociopolítica do Departamento de Administração Pública da  
Universidade Federal de Lavras. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2877-8477. E-mail:  
thiagosimim@gmail.com.  
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ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1 jan.-jun., 2024  
nova fase  
 
O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
KALLSCHEUER, 1986).1 Na verdade, mais que “justiça”, este debate se desenrolou em  
torno de categorias morais e éticas na obra de Marx de forma mais ampla, algumas  
vezes abrindo mão inclusive da definição desses conceitos para Marx, na intenção de  
compreender o sentido da crítica ao capitalismo nos termos do debate na filosofia  
política normativa contemporânea. O contexto deste debate é inicialmente os Estados  
Unidos e a Europa do pós-guerra, em especial dos anos 1970 em diante.  
Usualmente este contexto é apresentado a partir da revitalização da teoria da  
justiça pelo liberalismo igualitário de John Rawls (cf. RAWLS, 1999). Este contexto  
abrange, contudo, não somente um desenvolvimento teórico específico, mas também  
condições históricas e políticas do pós-guerra. Kallscheuer (1986) expõe sobretudo o  
ambiente pós-1970 a partir de três condicionantes: uma teórico-histórica, uma  
doutrinária filosófica e outra de concepção política (1986, p. 121 ff). Do ponto de vista  
(i) teórico-histórico a década de 1970 marca a chamada “crise do marxismo”, a qual  
ganhou impulso, não por último, dos movimentos de 1968. Com a pretensa perca da  
centralidade da classe trabalhadora vem à tona também, mesmo no seio de correntes  
marxistas, a discussão sobre o papel das instituições sociais e dos princípios  
normativos para a luta política. Já a incursão (ii) doutrinária se relaciona inicialmente  
com o diálogo de algumas correntes teóricas marxianas com a teoria da justiça de  
Rawls. De acordo com Kallscheuer (1986), esta condicionante histórica é mais  
propriamente acadêmica e anglo-saxã, surgindo a partir da retomada mais ampla do  
kantismo e do debate ético na crítica ao utilitarismo (cf. também GARGARELLA, 2008).  
A saída neocontratualista e principiológica de Rawls recoloca os termos do debate em  
teoria da justiça e passa a representar uma posição com ou contra a qual diversas  
autoras e autores da filosofia política e social não puderam deixar de argumentar.  
Nesta arena se posicionaram também defensores da obra marxiana, os quais  
produziram a maior parte das teorias sobre “justiça” em Marx, como já mencionado  
acima (cf. ANGEHRN; LOHMANN, 1986; GERAS, 2018; WOOD, 1980). A (iii) terceira  
mudança histórica que condiciona a emergência deste debate é, segundo Kallscheuer  
(1986), da ordem da concepção política, afetando a existência do socialismo como  
1
Norman Geras formula um panorama e uma classificação sobretudo dos autores “norte-americanos”  
neste debate, apresentando uma lista nominal que aparece na primeira nota de rodapé de seu texto, cf.  
GERAS, 2018, p. 506. Vide sobretudo a coletânea em COHEN, 1980. Para uma análise mais específica  
do debate entre os marxistas analíticos cf. CARVER; THOMAS, 1995; GARGARELLA, 2008, p. 103 ff.  
Sobre debate normativo em Marx no contexto alemão cf. ANGEHRN; LOHMANN, 1986; KALLSCHEUER,  
1986.  
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alternativa presente no horizonte da ação política. Se até antes da crise do stalinismo  
na década de 1950 haveria entre “socialistas kantianos” – representados nos partidos  
social-democratas – e “marxismo ortodoxo” um debate em torno de como alcançar e  
qual socialismo se almejar, este confronto teria deixado de existir. No lugar grande  
parte dos partidos e governos de esquerda passam a questionar o próprio socialismo  
como objetivo, adotando o chamado “compromisso histórico” com a economia de  
mercado (KALLSCHEUER, 1986, p. 124). Para além da mudança na concepção política,  
no sentido do Estado de bem-estar social, esta virada representou também uma  
mudança no jargão político, a exemplo da profusão de termos como “justiça social”.  
Neste projeto, a esquerda e a classe trabalhadora se sentiam representadas pelas  
políticas sociais, de redistribuição e nos acordos carreados pela classe trabalhadora  
tradicional e sindicalizada. Com o desmantelamento do Estado social a partir dos anos  
1970, os limites do projeto político da esquerda ficaram ainda mais claros, o que a  
forçou a reinventar sua posição e seus objetivos políticos para além do repertório  
marxiano. Nesse sentido, segundo Kallscheuer, o debate sobre “justiça” em Marx é  
fruto de uma crise “ético-política” mais ampla, uma “crise da própria ideia da esquerda”  
(1986, p. 125). Com esta breve reconstrução do ambiente histórico em que emerge o  
debate sobre “justiça” em Marx, é possível compreender sua função, suas razões e  
suas condicionantes, para além de uma perspectiva centrada na história das ideias.  
Como mencionado, a pergunta sobre a “justiça” em Marx se deu, na maior parte  
das vezes, em torno da pergunta sobre a normatividade de maneira ampla, e em alguns  
casos a resposta sobre se essa normatividade estaria abrangida pelo conceito de  
justiça ou não. As categorias mais diretas são, por óbvio, a “alienação” e a “exploração”  
(cf. p.e. PEFFER, 1990; WILDT, 1986), porém alguns autores defendem Marx teria  
também padrões positivos, como “solidariedadeou necessidade(cf. TUCKER, 1969).  
Igualmente, tanto Ziyad Husami (1980) quanto Philip Kain (1986) afirmam que Marx  
adota uma concepção moral positiva, contudo de forma posicionada, na moral da  
classe proletária. Nesse sentido, ele critica, de fato, a justiça da sociedade burguesa  
enquanto uma ideologia da classe dominante, mas se coloca ao lado da moral  
proletária, que representaria, segundo Husami (1980), o ponto de vista da superação  
da cisão entre classes, da perspectiva, portanto, de um estágio histórico posterior ao  
capitalismo, de uma sociedade sem classes. Por outro lado, a moral burguesa  
desempenharia uma função na manutenção das relações de exploração. Ela aparece  
como troca livre, mas sua realidade efetiva consistiria em uma troca “injusta”, conforme  
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O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
Kain (1986). A “sociedade sem classes” é vista por Douglas Kellner (1981) como um  
ideal normativo na teoria de Marx, ou seja, uma sociedade na qual o trabalho pudesse  
ser realizado de maneira não-alienada e que não representasse uma relação de  
exploração. De maneira semelhante, Charles Taylor, um dos principais representantes  
do debate em teoria da justiça contemporânea da oposição fundamental ao  
liberalismo rawlsiano já havia defendido (cf. TAYLOR, 1966) que a posição moral de  
Marx está implícita na sua construção teleológica da natureza humana, o que se  
manifesta, não por último, também na bandeira política de Marx em prol de uma  
sociedade comunista.  
Também nos anos 1980, Georg Brenkert (1983) defende que na base da teoria  
de Marx haveria um critério normativo transcultural e trans-histórico presente no  
conceito de “liberdade”. Este conceito normativo se manifesta na crítica à esfera da  
produção capitalista, que necessita de trabalhadores expropriados, “livres” dos (ou  
seja, sem os) meios de produção e livres para contratar, os quais, para viver, são na  
verdade forçados a vender sua única mercadoria (a força de trabalho), para trabalhar  
sob o comando do capitalista, portanto com sujeição, de forma não-livre. Não se trata,  
é claro, da liberdade formal individual, mas de um conceito positivo de liberdade, de  
inspiração na “eticidade” hegeliana e na ética aristotélica (cf. LINDNER, 2013). Para  
Brenkert a “liberdade” para Marx pode ser entendida como uma ética da  
autodeterminação, a qual se compõe de virtudes e não de deveres. Além deste sentido  
de “liberdade”, o objetivo prático político da obra de Marx poderia ser compreendido  
a partir da perspectiva da “emancipação” (cf. DEMIROVIĆ, 2017) humana, ou seja, da  
“libertação”, o que seria passível de interpretação também através poucas passagens  
que Marx escreveu sobre o comunismo.2  
2 É bem representativa dessa relação a seguinte passagem do Livro III dO Capital: O reino da liberdade  
só começa, de fato, onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades  
externas; portanto, pela própria natureza da questão, isso transcende a esfera da produção material  
propriamente dita. Assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas  
necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de  
fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu  
desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, pois se ampliam as necessidades; mas,  
ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas, que as satisfazem. Nesse terreno, a liberdade só  
pode consistir em que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu  
metabolismo com a Natureza, trazendo-o para seu controle comunitário, em vez de serem dominados  
por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as  
condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Mas este sempre continua a ser um reino  
da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças humanas, considerado como  
um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino da  
necessidade como sua base” (MARX, 1986, p. 273). [MEW 25, p. 828]  
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De um outro lado, como para Allen Wood, as categorias normativas não seriam  
centrais para Marx, pois ele teria uma abordagem metaética de justiça ou, como Wood  
afirma de um modo contraintuitivo, um conceito “não moral” de “bom” (cf. WOOD,  
1980). Tanto Wood, quanto autores como Richard Miller (cf. 2020), entre outros,  
sustentam a posição fundamental de que não seria possível encontrar em Marx a  
adesão a nenhum princípio moral positivo. Os motivos de tal negação categorial da  
“justiça” são de diferentes ordens, como tratarei melhor no desenvolvimento deste  
artigo.  
Contudo o objetivo deste artigo não consiste em apresentar as construções  
teóricas dos autores e teses exemplificadas acima e nem recolocar a pergunta sobre  
se Marx criticaria o capitalismo como injusto. Na verdade, a diversidade de critérios  
presentes nessas teorias é reflexo do modo fragmentado e pouco sistemático –  
provavelmente intencionalmente (cf. HAUG, 1986) – que Marx dá ao tema da “justiça”.  
Por este motivo tratar da justiça a partir de uma definição atual da filosofia política,  
para analisar a obra de Marx me parece uma tarefa complexa e que depende de  
diversas ressalvas, apesar de poder ser um tema legítimo. A intenção do presente  
artigo é bem mais singela e mais próxima ao texto de Marx: o de entender “justiça” a  
partir dos aspectos presentes nas ocorrências deste conceito e de suas variações em  
sua obra. Inicialmente não se fez aqui nenhuma distinção entre textos de juventude e  
de maturidade, nem de textos mais filosóficos, ou mais econômicos, ou mais políticos.  
O objetivo aqui é tentar inicialmente refletir em geral sobre quais elementos, quais  
condicionantes e qual abordagem Marx apresentou no conceito de “justiça”.  
2. Elementos do conceito de “justiça” na obra de Marx  
Não é uma novidade que “justiça” seja, como outros conceitos normativos,  
inevitavelmente um conceito polissêmico e aberto, o que abriga a possibilidade de  
sentidos não somente distintos como também contraditórios entre si (cf. DUBET,  
2014). Perguntar sobre “justiça” em Marx, portanto, implica partir do sentido que ele  
atribui a este conceito. Entendo que nas poucas passagens em que Marx emprega o  
termo “justiça” pode-se extrair acepções distintas mas que possuem uma linha  
condizente com a teoria marxiana, sendo algumas delas as mais frequentes, como  
tratarei abaixo lembrando que, em geral, Marx raramente empregou este conceito  
(cf. DEMIROVIĆ, 2017; HAUG, 1986) e o utilizou em geral em citações ou em menção  
direta a outros autores.  
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O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
No todo, as ocorrências do conceito de justiça em Marx não aparecem de uma  
forma positiva, pois, em geral, seu emprego consiste em uma referência direta a  
concepções com as quais Marx está, na ocasião do texto, rivalizando ou as quais ele  
pelo menos critica, como veremos em seguir. Sendo assim, identificar os termos do  
debate como seus opositores, ideias, correntes e conjunturas políticas pode  
contribuir para a compreensão do sentido atribuído por ele ao conceito de justiça. E  
mais que os debates e conjunturas mais situadas, o pano de fundo central da crítica à  
ideia de justiça é a sua análise ampla da estrutura e funcionamento do capitalismo.  
Um dos primeiros e mais significativos destinatários da crítica de Marx é o  
socialismo de Pierre-Joseph Proudhon. É a ele e a seu “socialismo utópico” – e mais  
tarde em relação à economia política que Marx acusa de defender uma noção de  
“justiça eterna”, ou seja, uma “justiça” a-histórica. Algumas passagens neste sentido  
se encontram inicialmente na Sagrada Família (MARX; ENGELS, 1962), em especial na  
sessão dedicada à leitura que o jovem hegeliano Edgar Bauer faz de Proudhon, em  
que Marx critica a interpretação de Edgar Bauer, já apontando contudo também uma  
crítica à ideia “absoluta” de justiça. Como se sabe, as críticas mais diretas de Marx a  
Proudhon são trabalhadas sobretudo na Miséria da Filosofia (MARX, 1977), mas a  
remissão à “justiça eterna” de Proudhon continua tendo lugar em textos posteriores,  
como no próprio livro I de O Capital (MARX, 1996b, a).  
Em Miséria da filosofia Marx menciona algumas vezes a “justiça eterna” (cf.  
MARX, 1985a, p. 45, 58, 79, 139)3 do “Senhor Proudhon” (MARX, 1985a, p. 58),  
apontando para a justiça como concepção própria do modo de produção na sociedade  
burguesa dito em outros termos, como consciência e forma de pensar ideológicas  
(cf. HAUG, 1986).  
É central aqui, para Marx, a percepção da naturalização da “concorrência” por  
Proudhon e seu discurso moralista e sobre como o socialismo de Proudhon trata das  
demais categorias da sociedade civil burguesa como se fossem verdades naturais e  
eternas.4 Com a cegueira quanto ao caráter histórico e objetivo do modo de produção  
3
[MEW 4, p. 73, 85, 105, 161]. Utilizo, onde é possível, as publicações traduzidas das passagens  
citadas de Marx. Nestes casos, insiro aqui, em nota de rodapé, a referência abreviada do texto no  
original, nas Marx-Engels-Werke (MEW), seguida do número do volume e da página, para fins de  
consulta.  
4 Como bem ilustra a seguinte passagem: “Toda a lógica do Sr. Proudhon se resume nisto: a concorrência  
é uma relação social no interior da qual desenvolvemos atualmente as nossas forças produtivas. Desta  
verdade, ele não oferece desdobramentos lógicos, mas fórmulas frequentemente bem desenvolvidas,  
dizendo que a concorrência é a emulação industrial, o modo atual de ser livre, a responsabilidade no  
trabalho, a constituição do valor, uma condição para o advento da igualdade, um princípio de economia  
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resta à crítica proudhoniana moralizar a ação humana, debatendo com a economia  
política no âmbito da superfície e da aparência dos fenômenos econômicos. De modo  
semelhante Marx se posiciona, no curto texto Die moralisierende Kritik und die  
kritisierende Moral (A crítica moralizante e a moral criticante) (MARX, 1977), em uma  
querela com Karl Heinzen5, o qual é criticado, entre outros motivos, por fazer uma  
crítica moralizante. Heinzen menciona, na referência que Marx faz, a “injustiça nas  
relações de propriedade privada” (MARX, 1977, p. 337; 338)6, como se essa  
“injustiça” fosse fruto do poder político da burguesia, enquanto Marx insiste em dizer,  
em relação a esta opinião, que “se o proletariado derrubar a dominação política da  
burguesia, então sua vitória será somente temporária, somente um momento em  
serviço da própria revolução burguesa [...]” (MARX, 1977, p. 338).7 Ou seja, o objetivo  
da classe trabalhadora8 deveria ser não a justiça, mas revolucionar as condições  
materiais econômicas do modo de produção capitalista.  
O embate com os “socialistas” deixa muito claro o tom do emprego de “justiça”  
e “injustiça” para Marx, enquanto um jargão que pertence a uma crítica moralizante  
das relações entre indivíduos na crítica a Proudhon, por exemplo ou entre classes  
na crítica a Heinzen , uma terminologia, portanto, que não se presta à transformação  
real e à emancipação da sociedade. A leitura de uma justiça como ideia absoluta é  
própria dessa sociedade burguesa, a qual os socialistas também criticam,  
reproduzindo, contudo, o mesmo discurso da “justiça eterna”. Os principais elementos  
desse conceito de “justiça” são o fato de ela ser compreendida como eterna, enquanto  
ela, na verdade, consiste em uma concepção moralizante própria da sociedade  
social, uma necessidade da alma humana, uma inspiração da justiça eterna, a liberdade na divisão, a  
divisão na liberdade, uma categoria econômica(MARX, 1985a, p. 138139). [MEW 4, p. 160-161]  
5
Esta mesma querela na qual Engels se posiciona no texto chamado “Die Kommunisten und Karl  
Heinzen“ (Os comunistas e Karl Heinzen), no qual se tem uma das melhores passagens sobre “justiça”  
a partir de uma leitura marxista já que o texto é assinado não por Marx, mas por Engels: O Sr. Heinzen  
parece, com isso, supostamente aludir ao fato de que os comunistas ridicularizaram a sua feição  
altamente moral e zombaram de todas aquelas ideias sagradas e sublimes, como virtude, justiça,  
moralidade, etc., as quais o Sr. Heinzen imagina serem o fundamento de toda a sociedade. Nós  
aceitamos essa acusação. Os comunistas não serão impedidos, pela indignação moral do ilustre Sr.  
Heinzen, de zombar dessas verdades eternas. A propósito, os comunistas asseveram que aquelas  
verdades eternas não seriam de forma alguma a base, mas, pelo contrário, o produto da sociedade na  
qual elas figuram(ENGELS, 1977, p. 319, tradução livre).  
6 Tradução livre de: „Die Ungerechtigkeit in den Eigentumsverhältnissen.  
7 Tradução livre de: Stürzt daher das Proletariat die politische Herrschaft der Bourgeoisie, so wird sein  
Sieg nur vorübergehend, nur ein Moment im Dienst der bürgerlichen Revolution selbst sein […].  
8 Este endereçamento direto à classe trabalhadora no sentido de discutir suas bandeiras está presente  
também em diversos outros textos de Marx, como no “Manifesto do partido comunista” (MARX; ENGELS,  
1977), como em “Salário, preço e lucro” (MARX, 1982b) e na “Crítica do programa de Gotha” (MARX,  
2012).  
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O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
burguesa.  
Tais elementos da “justiça” permanecem em maior ou menor grau em toda a  
obra de Marx, mas sua abordagem ganha contornos mais próximas da sua análise  
econômica materialista do modo de produção capitalista. Uma síntese da crítica a  
Proudhon é apresentada no livro I dO Capital nos seguintes termos:  
Proudhon cria, primeiramente, seu ideal de justiça, da justice éternelle,  
a partir das relações jurídicas correspondentes à produção de  
mercadorias, com o que, diga-se de passagem, proporciona a prova  
tão consoladora a todos os filisteus de que a forma de produção de  
mercadorias é algo tão eterno quanto a justiça. Depois inversamente,  
ele pretende remodelar a produção real de mercadorias e o direito  
real correspondente a ela segundo esse ideal. (MARX, 1996b, p. 209,  
nota de rodapé 126).9  
O que esta citação nos mostra é que, para Marx, a “justiça” deve, em oposição  
à noção “eterna” e ideal de Proudhon, ser entendida de modo relativo10 a uma  
determinada realidade social, como adequada a determinado modo de produção e  
correspondente ao ideal jurídico. Neste sentido, a “justiça” é tratada como  
manifestação daquilo que Marx chama frequentemente de “leis econômicas”,  
sobretudo à lei da troca de equivalentes. As citações mais usadas neste debate (cf.  
KALLSCHEUER, 1986) sobre justiça em Marx são aquelas que reproduzem justamente  
esse mecanismo de funcionamento entre base material e concepções políticas, jurídicas  
e culturais. Uma delas, no Livro I d’O Capital, diz:  
A circunstância de que a manutenção diária da força de trabalho só  
custa meia jornada de trabalho, apesar de a força de trabalho poder  
operar, trabalhar um dia inteiro, e por isso, o valor que sua utilização  
cria durante um dia é o dobro de seu próprio valor de um dia, é grande  
sorte para o comprador, mas, de modo algum, uma injustiça contra o  
vendedor (MARX, 1996b, p. 311)11.  
Aqui Marx está explicitando a conversão de dinheiro em capital a partir da  
compra e venda da força de trabalho, na forma do trabalho assalariado, e conclui na  
sequência que “finalmente a artimanha deu certo. Dinheiro se transformou em capital.  
Todas as condições do problema foram resolvidas e, de modo algum, as leis do  
intercâmbio de mercadorias foram violadas. Trocou-se equivalente por equivalente”  
(MARX, 1996b, p. 312, grifos meus)12. Desse modo, a justiça deve ser compreendida  
9 [MEW 23, p. 99, nota de rodapé 38].  
10  
Tanto Brenkert (1983) quanto Wood (1980) afirmam de maneira mais enfática que Marx teria uma  
concepção “relativista” de justiça e de moral.  
11 [MEW 23, p. 208].  
12 [MEW 23, p. 209].  
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como uma espécie de adequação ao modo de produção, às suas leis econômicas.  
A troca de equivalentes no modo de produção capitalista se mantém ilesas na  
exploração do trabalho. Marx reafirma constantemente esta realidade econômica nos  
seus debates com os socialistas e indiretamente também com políticos social-  
democratas (cf. MARX, 2012) , que insistem em tratar dos problemas sociais advindos  
deste sistema a partir do jargão da justiça. Já nos Grundrisse (2011b) Marx trata com  
muita clareza desse ponto de partida da sua análise, a qual deve, portanto, ir para  
além desses termos: Temos de supor aqui que é pago o salário economicamente  
justo, i.e., o salário determinado pelas leis gerais da economia.” (MARX, 2011b, p.  
349)13. Mesmo que haja a possibilidade e a tendência de injustiças concretas no  
pagamento de um salário menor que o valor da força de trabalho, diz Marx (cf. MARX,  
2011b, p. 349), acusar esta injustiça não tem em si o poder de transformar as relações  
de exploração, que se mantêm intactas mesmo com o pagamento justo do salário. Em  
resumo, como Marx apresenta em “Para a crítica da economia política” (MARX, 2010):  
O capitalista paga ao trabalhador um equivalente pelo valor diário da sua capacidade  
laboral; mas ele recebe por isso o direito de valorizar a capacidade laboral para além  
do seu valor14 (MARX, 1990, p. 164)15. Esta ideia é apresentada também em Salário,  
preço e lucro (MARX, 1982) de uma maneira intencionalmente mais didática:  
Dentro do sistema do salariado, o valor da força de trabalho se fixa  
como o de outra mercadoria qualquer; e, como distintas espécies de  
força de trabalho possuem distintos valores ou exigem para a sua  
produção distintas quantidades de trabalho, necessariamente tem que  
ter preços distintos no mercado de trabalho. Pedir uma retribuição  
igual ou simplesmente uma retribuição justa, na base do sistema do  
salariado, é o mesmo que pedir liberdade na base do sistema da  
escravatura. O que pudésseis considerar justo ou equitativo não vem  
ao caso. O problema está em saber o que vai acontecer necessária e  
inevitavelmente dentro de um dado sistema de produção (MARX,  
1982b, p. 160161)16.  
Aquilo que é correto depende justamente dos critérios, que são, como Marx  
afirma em diversas passagens, dependentes do contexto, em especial do modo de  
produção material da vida em uma determinada sociedade. Um dos trechos mais  
13 [MEW 42, p. 340].  
14  
Tradução livre de: Der Kapitalist zahlt dem Arbeiter ein Äquivalent für den täglichen Wert seines  
Arbeitsvermögens; aber er erhält dafür das Recht, das Arbeitsvermögen über seinen eignen Wert hinaus  
zu verwerten.  
15  
Trata-se aqui dos manuscritos de 1861 a 1863, que compõem o “Terceiro capítulo – O capital em  
geral” do Para a crítica da economia política. Existe uma versão traduzida deste texto (vide MARX,  
2010). Eu utilizo, contudo, a versão original da MEW 43, por não ter acesso a essa tradução.  
16 [MEW 16, p. 131-132].  
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O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
citados neste ponto é extraído do livro III d’O Capital, como a seguir:  
A justiça das transações que se efetuam entre os agentes da produção  
baseia-se na circunstância de se originarem das relações de produção  
como consequência natural. As formas jurídicas em que essas  
transações econômicas aparecem como atos de vontade dos  
participantes, como expressões de sua vontade comum e como  
contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio  
do Estado não podem, como simples formas, determinar esse  
conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo contanto  
que corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado. É  
injusto, assim que o contradisser. A escravatura, na base do modo de  
produção capitalista, é injusta; da mesma maneira a fraude na  
qualidade da mercadoria (MARX, 1986, p. 256)17.  
As comparações históricas do modo de produção capitalista com o sistema  
servil ou escravocrata são exploradas em diversos momentos por Marx, não somente  
como forma de exemplificar as especificidades do atual momento, mas também  
desnaturalizar ou seja, relativizar – o “estado atual” (cf. MARX, 1985a; MARX;  
ENGELS, 1962). A citação acima não deixa dúvida de que Marx entende “justiça” como  
uma forma de adequação a um dado contexto. Esta é uma característica central do  
conceito de justiça em Marx: sua forma relacional e situada em um contexto histórico  
mesmo naqueles contextos que entendem a si mesmos como naturais, absolutos e  
universais.  
Outro elemento que aparece nas últimas passagens citadas é a relação entre a  
“justiça” e o “jurídico”. Esta relação não é óbvia, ainda mais se pensada a partir do  
debate contemporâneo em teoria da justiça (cf. GARGARELLA, 2008), portanto da  
perspectiva de uma filosofia política normativa, que pretende apresentar uma  
concepção moral abrangente e independente de determinações do direito e de suas  
categorias. Também por este motivo os termos do debate sobre “justiça em Marx” se  
apresentam com alguns enviesamentos conceituais. De todo modo, em Marx essa  
relação entre a “justiça” e o “direito legítimo” – mesmo que contra legem, como em  
Proudhon (cf. MARX, 1985a; MARX; ENGELS, 1962) faz parte da sua definição de  
justiça, o que aponta para um sentido bem mais restrito que o atual conceito de justiça  
apresenta. Um exemplo dessa relação é a passagem extraída do livro I d’O Capital, e  
já citada mais acima, sobre a “justiça eterna” de Proudhon, a qual é redigida justamente  
como uma nota de rodapé ao trecho no qual Marx comenta as categorias e formas  
jurídicas que formam as ficções presentes no funcionamento do intercâmbio de  
17 [MEW 25, p. 351-352].  
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mercadorias como o reconhecimento da propriedade da mercadoria, a relação  
jurídica através do contrato e o respeito à manifestação de vontade dos indivíduos ,  
cujo conteúdo “é dado por meio da relação econômica mesma(MARX, 1996b, p.  
209)18. Além disso, Marx, em diversas passagens ou opõe a “injustiça” (Unrecht) ao  
“justo / jurídico / legítimo” (Recht), ao “correto”, ou assemelha este mesmo “Recht” à  
“justiça” e ao “justo” (gerecht). “Finalmente, daí é deduzido o eterno direito do capital  
aos frutos do trabalho alheio, ou, melhor dizendo, seu modo de aquisição é  
desenvolvido a partir das leis simples e “justas” da troca de equivalentes” (MARX,  
2011b, p. 414)19. No livro I d’O Capital está presente, no mesmo sentido da citação  
dos Grundrisse acima, a versão publicada da mesma ideia, empregando o termo “justo”  
(desta vez sem as aspas) em relação direta ao jurídico20, ao direito legítimo.  
A mais-valia é sua propriedade, ela jamais pertenceu a outro. [...] Que,  
dessa vez, esse fundo se origina do trabalho não-pago de seus  
trabalhadores, não altera absolutamente nada na coisa. Se o  
trabalhador B é ocupado com a mais-valia que o trabalhador A  
produziu, então, primeiro, A forneceu essa mais-valia sem que se  
tenha deduzido um real do justo preço de sua mercadoria, e, segundo,  
B não tem absolutamente nada a ver com esse negócio. O que B exige  
e tem direito de exigir é que o capitalista lhe pague o valor de sua  
força de trabalho (MARX, 1996a, p. 219, grifos meus)21.  
Na contramão da filosofia prática moderna, a concepção de “justiça” em Marx  
não se apresenta como um “dever-ser” apartado da realidade social, mas sim como  
vinculada a esta realidade material. Por este motivo, o ideal de justiça, segundo Marx,  
está estreitamente conectado às “leis econômicas” e às categorias jurídicas que  
outorgam legitimidade leia-se “justiça” – a esta estrutura de exploração do trabalho.  
Nas Glosas marginais ao Manual de economia política de Adolph Wagner (2017) Marx  
comenta o fato de que “no valor não ‘constituídopelo trabalho do capitalista está  
incluída uma parte da qual ele pode se apropriar legalmente, isto é, sem ferir o direito  
correspondente ao intercâmbio de mercadorias(MARX, 2017, p. 256)22. Neste  
sentido, “exploração” e “injustiça” fazem parte, para Marx, de dois registros diferentes  
de crítica.23 Por isso, o esforço em se responder à pergunta sobre se “Marx critica o  
18 [MEW 23, p. 99].  
19 [MEW 42, p. 412].  
20 Este é também o entendimento de Allen Wood: “The concept of justice [...] is in the Marxian account  
the highest expression of the rationality of social facts from the juridical point of view” (WOOD, 1980,  
p. 13).  
21 [MEW 23, p. 612].  
22 [MEW 19, p. 360].  
23 É importante ressaltar, novamente, para evitar equívocos, que esta conceituação teórica e restrita de  
“justiça” em Marx não coincide com o uso da noção de “justiça” nos contextos teóricos e concretos  
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O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
capitalismo como injusto?” (cf. GERAS, 2018) só seria possível se se ampliasse o  
conceito de justiça para além daquele empregado pelo próprio Marx. A proposta do  
presente artigo não consiste em tomar posição sobre a pertinência desta questão, mas  
sim em compreender, neste primeiro momento, qual o significado do conceito de  
justiça para Marx.  
Em síntese, analisando as ocorrências da “justiça” em Marx, entendo que ela  
não pode ser compreendida como um conceito positivo postulado por ele, mas sim  
como um termo na versão restritiva de Marx, como adequação ao direito legítimo  
em um determinado modo de produção manejado usualmente de forma equivocada  
quando tratado como uma verdade imutável (como entre alguns socialistas e na  
economia política) ou um conceito que limita a reflexão e o horizonte da prática  
transformadora (no caso do debate com os socialistas, com os partidários da recém  
criada social-democracia alemã ou com as organizações políticas de trabalhadores).  
Sendo assim, o impulso do debate sobre “justiça” em Marx é externo e condicionado  
por sua intenção crítica.  
O termo “justiça distributiva”, por exemplo, é tematizado por Marx por ocasião  
do emprego deste conceito no projeto político do Programa de Gotha. Desse modo, a  
Crítica do programa de Gotha (MARX, 2012) é um dos principais textos em que Marx  
discute o conceito de justiça, mesmo que não haja, a meu ver, nenhuma novidade no  
sentido de justiça neste texto, se comparado aos elementos dos textos mais antigos  
já mencionados.24 De todo modo, a citação de um trecho deste texto é válida, pela  
síntese que produz do debate:  
O que é distribuição “justa”?  
Os burgueses não consideram que a atual distribuição é “justa”? E  
não é ela a única distribuição “justa” tendo como base o atual modo  
de produção? As relações econômicas são reguladas por conceitos  
jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das  
relações econômicas? Os sectários socialistas não têm eles também  
as mais diferentes concepções de distribuição “justa”?  
contemporâneos. Em tais contextos, a crítica à “injustiça da exploração” parte de um significado mais  
abrangente do termo, seja pela influência da filosofia kantiana nas teorias da justiça (cf. GARGARELLA,  
2008; RAWLS, 1999), seja pelo uso amplo e indiscriminado da acusação de “injustiça” nos contextos  
concretos da luta política da classe trabalhadora (cf. DÖRRE, 2017; DUBET, 2014; SIMIM, 2023), o que  
proporciona o uso frequente da denúncia, por exemplo, à “exploração injusta”.  
24  
Com a ressalva do slogan frequentemente citado – “De cada um segundo suas capacidades, a cada  
um segundo suas necessidades!” (MARX, 2012, p. 32) que aparece como artifício teórico de crítica à  
justiça distributiva pelo prisma de uma sociedade emancipada, comunista, pois “[...] apenas então o  
estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado(MARX, 2012, p. 32). [MEW 19,  
p. 21]  
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Para saber o que, nesse caso, deve-se entender pela fraseologia  
“distribuição justa”, temos de justapor o primeiro parágrafo ao  
segundo. Neste, supõe-se uma sociedade em que “os meios de  
trabalho são patrimônio comum e o trabalho total é regulado  
cooperativamente”, enquanto, no primeiro parágrafo, temos que “o  
fruto do trabalho pertence inteiramente, com igual direito, a todos os  
membros da sociedade”. “A todos os membros da sociedade”?  
Também aos que não trabalham? Como fica, então, o “fruto integral  
do trabalho”? Ou apenas aos membros da sociedade que trabalham?  
Nesse caso, como fica “o igual direito” de todos os membros da  
sociedade? (MARX, 2012, p. 2728)25.  
De modo geral, a obra de Marx deixa, com o tempo, de criticar a “justiça eterna”  
na filosofia jovem-hegeliana e socialista, para levantar objeções contra adoção do  
conceito de justiça presente na economia política e nas demandas políticas, mantendo,  
contudo, os mesmos objetivos teóricos, ainda que os oponentes e os temas variem.  
Assim, ele se dedica igualmente a explicitar, sem equívocos, quais objetivos a prática  
política deveria se colocar: a saber, para além da “correção”, da justa adequação, o  
objetivo da transformação do modo de produção no sentido da emancipação humana.  
Em Salário, preço e lucro (MARX, 1982b), Marx comenta a importância da luta pelas  
melhorias nas condições de trabalho sobretudo no aumento de salário , mas alerta  
que a classe trabalhadora “não deve esquecer-se de que luta contra os efeitos, mas  
não contra as causas desses efeitos”, pois com as melhorias ela “aplica paliativos, mas  
não cura a enfermidade” e, portanto, “em vez do lema conservador de: Um salário  
justo para uma jornada de trabalho justa!, deverá inscrever na sua bandeira esta divisa  
revolucionária: Abolição do sistema de trabalho assalariado!’” (MARX, 1982b, p.  
184)26.  
Apesar de já mencionado acima, vale ressaltar o caráter ideológico da “justiça”,  
na acepção empregada por Marx, no interior da sociedade burguesa (MAIHOFER,  
1992; MARX; ENGELS, 1977, p. 480). A “justiça”, neste sentido, seria um ideal  
condicionado pela estrutura material da sociedade, que possuiria uma função na  
manutenção desta mesma sociedade e que encontraria, apesar de “ideológica”, uma  
realidade objetiva, cuja transformação não depende somente de uma tomada de  
consciência, mas também da prática revolucionária. Em A guerra civil na França  
(2011a) Marx comenta, em uma das ocorrências do termo “justiça” em sua obra, em  
que medida essa ideologia se desestabiliza em momentos de tensão na luta de classes:  
“a civilização e a justiça da ordem burguesa aparecem em todo o seu pálido esplendor  
25 [MEW 19, p. 18].  
26 [MEW 16, p. 150].  
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O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
sempre que os escravos e os párias dessa ordem se rebelam contra seus senhores.  
Então essa civilização e essa justiça mostram-se como uma indisfarçada selvageria e  
vingança sem lei(MARX, 2011a, p. 72)27.  
Para além do valor de sua análise conjuntural histórica, esta passagem sugere  
algo presente em boa parte da crítica da economia política marxiana, a saber, o fato  
de que, por trás da relação justa entre portadores de mercadoria que trocam  
equivalentes através do contrato, um ato formalmente volitivo, individual e livre, ou  
seja, por trás da justiça das transações se oculta, de modo constitutiva, a força e a  
violência.28 Neste sentido, o termo “justiça” traz implicitamente uma concepção de paz  
social e harmonia, que é própria da imagem de mundo da sociedade burguesa.  
Assim, um aspecto relevante na crítica de Marx à concepção de justiça se  
encontra justamente em seu caráter ideológico e, portanto, determinado pelas  
condições materiais. Isso significa que a crítica moralizante ao capitalismo, embasada  
no conceito de justiça, é insuficiente, limitadora e falseadora, na medida em que abdica  
de uma análise das condições objetivas (SARTORI, 2022). Em uma passagem das  
Glosas marginais ao Manual de economia política de Adolph Wagner (MARX, 2017)  
Marx reafirma, por um lado, a “justa” e legítima apropriação do mais-valor pelo  
capitalista, apontando, contudo, em oposição à crítica moralizante, a existência de uma  
dimensão objetiva do mecanismo de valorização do valor:  
Ora, em minha apresentação, de fato, o ganho do capital não é  
"apenas uma subtração ou um 'roubo' do trabalhador". Pelo contrário,  
apresento o capitalista como funcionário necessário da produção  
capitalista e demonstro bem extensamente que ele não apenas  
"subtrai" ou "rouba", mas arranca à força a produção do mais-valor,  
ou seja, ajuda primeiro a criar aquilo a ser subtraído; demonstro  
detalhadamente, ainda, mais adiante, que mesmo sendo o caso de que  
no intercâmbio de mercadorias são trocados apenas equivalentes, o  
capitalista desde que pague ao trabalhador o valor efetivo de sua  
força de trabalho ganharia com todo direito, ou seja, com o direito  
correspondente a esse modo de produção, o mais-valor (MARX, 2017,  
27 [MEW 17, p. 355].  
28  
Na citação apresentada esta violência se manifesta nas ações do aparato estatal da sociedade  
burguesa na manutenção da ordem. Contudo a análise de Marx sobre o fundamento do Capital  
demonstra justamente como que por trás de uma ficção da economia política clássica se encontra, na  
verdade, um ato violento de expropriação, uma violência necessária para cindir os produtores de seus  
meios de produção e criar trabalho “livre”, no duplo sentido da palavra. Trata-se da violência necessária  
na criação de trabalhadores assalariados e para disciplina-los para esta nova atividade , além de ter  
sido necessária também na “assim chamada acumulação primitiva” (cf. MARX, 1996a). Mesmo que a  
análise de Marx da expropriação seja situada historicamente (cf. MARX, 1987), sua dinâmica real como  
um ato de violência é exemplificativa do funcionamento do capital em sua constituição e, segundo Rosa  
Luxemburgo, também em sua expansão histórica (LUXEMBURG, 2013). Uma versão atualizada e mais  
contemporânea desta tese se encontra, por exemplo, em David Harvey (2005) e em Klaus Dörre (2012).  
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p. 256)29.  
Desse modo, é como se na crítica moral à injustiça levantada pelos socialistas  
o modo de produção não figurasse como um problema central, mas sim uma simples  
forma de apropriação indevida, “inapropriada” (MARX, 2017, p. 277)30, pelo  
capitalista, sem se perceber a objetividade do funcionamento do sistema capitalista.  
Em um dos anexos sobre a economia vulgar e o socialismo vulgar no Teorias do mais-  
valor, Marx formula de forma suscinta mais uma vez seu desinteresse pela “justiça”  
frente à importância do movimento real do capitalismo. Conforme esta passagem, o  
processo de produção é visto como um instrumento para “pescar trabalho alheio” e  
“não importa que se ache isso justoou injusto, com ou sem fundamento. Aí  
pressupõe-se e subentende-se sempre a relação do capitalista com o trabalhador”  
(MARX, 1985b, p. 1495)31. Como já mencionado, o objetivo de fazer uma análise da  
realidade efetiva do modo de produção capitalista relega às manifestações culturais,  
políticas e sociais um caráter secundário. O direito e, por conseguinte, a “justiça”  
pensada a partir de sua racionalidade, pertence a esta ordem de fenômenos, como  
lembra Marx no prefácio de Para a crítica da economia política (MARX, 1982a), algumas  
linhas acima da conhecida citação sobre a relação entre “base” e “superestrutura”  
(1982a, p. 25), que as “relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser  
compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado  
desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas  
relações materiais de vida [...]” (MARX, 1982a, p. 25).  
Essa primazia da realidade objetiva que marca o materialismo de Marx tem  
como ponto de partida o modo de produção enquanto o motor da história. A relação  
entre as diferentes esferas da economia, um tema constante na obra de Marx, tem  
consequências teóricas importantes para a abordagem da “justiça” – ou melhor, para  
a recusa da abordagem enfática deste tema. Na Introdução para a crítica da economia  
política (MARX, 1982a) Marx debate com os “representantes” e os “inimigos” da  
economia política e se posiciona claramente contra a cisão operada por estes entre as  
esferas da produção e da distribuição, contra a ideia de que “[...] a distribuição é uma  
esfera independente, autônoma, que existe ao lado da produção” (MARX, 1982a, p.  
29 [MEW 19, p. 359].  
30 [MEW 19, p. 382].  
31 [MEW 26 (3), p. 446]. Para evitar equívocos, reproduzo aqui este trecho na sua versão original: “Dies  
mag als ‚Recht‘ oder ‚Unrecht‘, begründet oder unbegründet, verhandelt werden, das Verhältnis des  
Kapitalisten zum Arbeiter ist hier immer unterstellt und untergedacht.“ (MARX, 1968, p. 446).  
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7). Ele critica sobretudo a tendência dos economistas em pensar a esfera da  
distribuição como ponto de partida da economia, como se o que determinasse a  
produção fosse a distribuição de recursos, ao invés de enxergar essas duas esferas  
como momentos de uma unidade (MARX, 1982a, p. 7). Isso porque a distribuição  
aparece aos indivíduos de forma imediata e parece determinar a sua posição na esfera  
da produção. Ou seja, segundo este pensamento da economia vulgar, a economia é  
compreendida do mesmo modo que ela apareceria para os indivíduos: seria a  
disposição sobre certos recursos, como determinadas ferramentas, instrumentos de  
produção, conhecimentos ou propriedade ou a ausência desses recursos que  
determinaria a posição dos indivíduos na esfera da produção como agricultor, como  
trabalhador, como capitalista etc. Portanto, conforme esta forma de pensar, seria a  
distribuição o momento determinante, como se o modo de produção se escravocrata,  
feudal, capitalista, se agrário ou industrial32 não tivesse relação com a distribuição  
de bens e recursos. Nesse sentido, a distribuição é vista como historicamente  
condicionada, enquanto a produção é naturalizada, como se não houvesse variação  
entre seus diferentes modos na história. Nas palavras de Marx, “aqui ressurge  
novamente o absurdo dos economistas que consideram a produção como uma verdade  
eterna, enquanto proscrevem a História ao domínio da distribuição33 (MARX, 1982a,  
p. 12)34. O resultado prático deste pensamento é a naturalização do modo de produção  
32  
Estes exemplos do caráter histórico e determinante do modo de produção estão no próprio Marx:  
“Pelo próprio processo de produção convertem-se de fatores espontâneos em fatores históricos e se,  
em relação a um período, aparecem como pressuposição natural à produção, em relação a outro  
constituem seu resultado histórico. No interior da produção são constantemente transformados. O  
emprego da máquina, por exemplo, modifica a distribuição dos instrumentos de produção tanto como  
dos produtos, e até a grande propriedade fundiária moderna é resultado tanto do moderno comércio  
como da indústria moderna, como também da aplicação desta à agricultura(MARX, 1982a, p. 12).  
[MEW 13, p. 628].  
33  
Em outra citação, um pouco mais longa e completa, Marx detalha melhor seu argumento: “Mas isso  
ainda não é tudo o que, efetivamente, preocupa os economistas nesta parte geral. Trata-se, antes, de  
representar a produção veja por exemplo Mill diferentemente da distribuição, como regida por leis  
naturais, eternas, independentes da História; e nessa oportunidade insinuam-se dissimuladamente  
relações burguesas como leis naturais, imutáveis, da sociedade in abstrato. Essa é a finalidade mais ou  
menos consciente de todo o procedimento. Na distribuição, ao contrário, os homens permitir-se-iam,  
de fato, toda classe de arbitrariedade. Abstraindo a brutal disjunção da produção e da distribuição, e  
de sua relação efetiva, e de todo evidente, à primeira vista, que por diversificada que possa ser a  
distribuição nos diferentes graus da sociedade, deve ser possível tanto nesta como na produção buscar  
determinações comuns, do mesmo modo que é possível confundir e extinguir todas as diferenças  
históricas em leis geralmente humanas. O escravo, o servo, o operário assalariado, por exemplo,  
recebem todos uma quantia de alimentos que lhes permite existirem como escravo, servo, operário  
assalariado. Enquanto vivam, o conquistador de tributo, o funcionário de impostos, o proprietário  
fundiário da renda, o frade de esmolas, e o levita dos dízimos, todos recebem uma cota da produção  
social, cota que é determinada por leis distintas da dos escravos etc.” (MARX, 1982a, p. 56). [MEW  
13, 618-619]  
34 [MEW 13, p. 628]  
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capitalista e o deslocamento do debate e das possibilidades de transformação para a  
esfera da distribuição, na qual figura, portanto, a concepção de “justiça”. A “justiça  
distributiva”, portanto, não se questiona sobre a origem dos bens a serem distribuídos,  
mas se resume a pensar a depender de sua corrente em formas mais igualitárias,  
equitativas, eficientes, racionais etc. de alocação de recursos. Este é um dos motivos  
pelos quais Marx crítica mais tarde a “justiça das transações” e a “justiça distributiva”,  
nas passagens já citadas mais acima, extraídas respectivamente do Livro III do Capital  
(MARX, 1986) e da Crítica do programa de Gotha (MARX, 2012).  
Apesar de haver, para Marx, uma clara prevalência da esfera produtiva, ele deixa  
claro que não se trata aqui de ignorar a distribuição, o que seria pressupor uma cisão  
entre essas dimensões. Para ele as relações de distribuição não passam de relações  
de produção sob outro aspecto” (MARX, 1985b, p. 1111)35, elas se constituem,  
portanto, em um momento no funcionamento do capitalismo. Não se trata aqui de  
afirmar que “a produção, a distribuição, o intercâmbio, o consumo, são idênticos, mas  
que todos eles são elementos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade”  
(MARX, 1982a, p. 13)36. Com o foco na distribuição, a “justiça” abdica de compreender  
e transformar o conteúdo das relações econômicas, se limitando a refletir sobre uma  
de suas expressões, sobre um momento, sobre a aparência desta realidade (cf.  
SARTORI, 2017).  
3. Considerações finais  
A intenção deste artigo foi oferecer um panorama dos elementos centrais  
presentes na definição de “justiça” na obra de Marx. Não importou, neste primeiro  
momento, a classificação e interpretação das passagens sobre o tema de acordo com  
as diferentes fases do pensamento de Marx, apesar de um recorte temporal mais  
restrito poder ser relevante no aprofundamento do debate.  
A partir deste sobrevoo na obra de Marx, pode-se, como tratado no item acima,  
encontrar as seguintes condicionantes e elementos centrais na sua conceituação de  
justiça: quanto aos termos do debate, (i) “justiça” vem como provocação externa. A  
análise das ocorrências dos termos “justiça”, “injustiça”, “justo” e “injusto” em Marx  
demonstra que boa parte desses termos se manifestam nas citações que Marx faz de  
outros autores. Salvo as poucas e conhecidas passagens, Marx parece evitar usar o  
35 [MEW 26 (3), p. 51]  
36 [MEW 13, p. 630]  
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O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e debates  
conceito de “justiça” de um modo positivo (cf. HAUG, 1986). Os (ii) debates são  
travados sobretudo com os “socialistas” – sejam os franceses, os utópicos, vulgares  
ou os de cátedra , com os representantes da economia política clássica e vulgar, bem  
como em discussões sobre a prática política de organizações como partido político e  
sindicato.  
Quanto ao status da “justiça” em geral, para Marx, (iii) as comparações com  
outras épocas e contextos históricos sugerem que “justiça” seria relativa, seria uma  
adequação a um determinado estado de coisas. Em todo caso, (iv) a compreensão e a  
crítica da “justiça” só podem advir de uma análise da objetividade, uma vez que Marx  
adota uma perspectiva materialista. Além disso, (v) tratar dos fenômenos sociais,  
econômicos, políticos e históricos em termos de “justiça” consistiria em moralizar  
relações que são, na verdade, objetivas e materiais. Portanto, a crítica social deve partir  
desta realidade efetiva.  
Mais especificamente quanto à crítica de Marx ao capitalismo mesmo que ele  
sugira que alguns desses aspectos seriam transversais , (vi) em sua obra, o problema  
central do conceito de “justiça” passa pela sua adequação à ordem burguesa, sua  
função ideológica; (vii) enquanto ideologia, a “justiça” defendida por seus oponentes  
apresenta a ficção de serem naturais, universais, eternas e necessárias ou um estágio  
de evolução necessário e mais avançado, por isso a comparação constante, tanto de  
Marx quanto de seus oponentes, com a escravidão e a servidão categorias que, na  
verdade, são sociais, historicamente condicionadas e relativas. Outro aspecto  
significante é a (viii) correspondência da “justiça” a uma forma de racionalidade  
especificamente jurídica, portanto própria do direito, sendo que o direito pode ser  
visto – nessas passagens em que Marx trata da “justiça” – como um epifenômeno das  
leis gerais da economia, da base material. Tal base material (ix) não pode ser  
totalmente apreendida a partir da esfera da distribuição, como sugerem as análises  
econômicas clássicas, mas sim a partir da esfera da produção, do modo de produção  
material da sociedade capitalista, que tem uma prevalência na análise de Marx frente  
aos outros momentos na economia, de tal modo que a justiça distributiva ou nas  
transações pode ser criticada no mínimo como parcial, incompleta e, nesse sentido,  
falsa (cf. DEMIROVIĆ, 2017).  
Neste sentido, apesar de ser possível que Marx possua critérios normativos em  
sua análise crítica, sejam eles trans-históricos ou não, seja liberdade, a emancipação,  
a solidariedade, a necessidade, seja a realização da natureza humana no trabalho, o  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 412-432 jan.-jun., 2024 | 429  
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Thiago Aguiar Simim  
ideal do comunismo, seja a sociedade sem classes , esse padrão não pode ser  
conceituado, para ele, como “justiça”. Essa vinculação só seria possível se  
transpusermos o conceito de justiça da filosofia política contemporânea para as  
contribuições teóricas da análise de Marx, à revelia de sua própria definição.  
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Como citar:  
SIMIM, Thiago Aguiar. O conceito de “justiça” em Marx: seus elementos, contextos e  
debates. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 412-432; jan.-jun., 2024  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.716  
Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da  
servidão na Rússia  
Alexander, the unamazing: Marx and the abolition of serfdom in  
Russia  
Gabriella M. Segantini Souza*  
Resumo: em 1858, Marx escreveu dois artigos  
para o jornal ianque New York Daily Tribune  
tratando dos preparativos do czar Alexandre II  
para a abolição da servidão. O presente artigo  
tem por objetivo analisar como nesses artigos o  
Estado e o Direito aparecem no tratamento de  
Marx sobre a servidão russa à luz da relação  
entre o Estado, a nobreza e os servo. Enquanto  
o autor renano demonstra a todo tempo que o  
Estado e o Direito russos não possuíam  
efetivamente qualquer função de progresso na  
Rússia, para Marx existia no desenvolvimento da  
questão da emancipação dos camponeses  
enservados ao final da década de 1850 e nas  
tensões entre o Estado, a aristocracia e os servos  
russos um real potencial para mudanças  
profundas na outrora retrógrada Rússia.  
Abstract: in 1858, Marx wrote two articles for  
the Yankee newspaper New York Daily Tribune  
dealing with the preparations of Tsar Alexander  
II for the abolition of serfdom. The present  
article aims to analyze how in those articles the  
Russian state and law appear in Marx’s  
treatment of the Russian serfdom in light of the  
relationship between the state, the nobility and  
the serfs. While the Rhenish author  
demonstrates at all times that the Russian state  
and law did not have a progressive role in  
Russia, for Marx in the development of the  
question of the emancipation of enserfed  
peasants the end of the 1850s and in the  
tensions between the state, the Russian  
aristocracy and bondaged peasants there was a  
real potential for profound changes in the once  
retrograde Russia.  
Palavras-chave:  
servidão; Emancipação  
Marx; Rússia; Abolição da  
dos servos;  
Keywords: Marx; Russia; Abolition of serfdom;  
Emancipation of the serfs; Peasants; Aristocracy;  
Czardom; State; Law.  
Camponeses; Aristocracia; Czarismo; Estado;  
Direito  
Introdução  
O presente artigo tem por objetivo analisar o tratamento de Marx acerca da  
questão da abolição da servidão na Rússia nos artigos escritos pelo autor renano para  
o New York Tribune em outubro e dezembro de 1858 (The question of the abolition  
of serfdom in Russia e The emancipation question, parte I e II), abordando a forma  
como aparecem nesses artigos o Estado e o Direito russos e como Marx os relaciona  
ao desenvolvimento russo. Embora este artigo se dedique ao tratamento de Marx  
sobre a abolição da servidão russa, priorizando análise dos textos do New York Daily  
Tribune, também será feito uso de outros textos do autor pertinentes ao estudo da  
*
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestranda em Direito pela  
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: gabriella.segantini.souza@gmail.com.  
Verinotio  
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Gabriella M. Segantini Souza  
servidão russa. Outrossim, também será empregada bibliografia complementar de  
textos de outros autores que trataram da servidão russa e alguns aspectos de sua  
abolição. Recorreremos a esses outros autores com o intuito de obter uma  
compreensão mais aprofundada das particularidades da servidão russa e da forma  
como foi abolida a fim de auxiliar na análise de como a servidão e a emancipação dos  
servos aparecem nos textos de Marx, bem como para contribuir com a exposição do  
tema para o leitor brasileiro, talvez pouco familiarizado com a história da Rússia antes  
de 1905.  
Este artigo não pretende apresentar um tratamento completo da questão da  
Rússia na obra de Karl Marx, mas somente tratar de um aspecto pontual dos estudos  
do autor sobre aquele país e como ali aparecem o Estado e o Direito. Ademais, o  
objeto deste texto se insere em um problema muito maior do que a discussão de Marx  
sobre a abolição da servidão e do papel da política e do direito, a saber, a investigação  
de como se coloca a miséria russa na obra de Marx e como se desenvolveu a análise  
das problemáticas russas dentro da crítica à economia política. De modo semelhante,  
o presente artigo também se insere em uma pesquisa de maior escopo promovida pela  
autora deste texto, tratando-se do estudo de como se desenvolve a forma através da  
qual Marx aborda o potencial de uma revolução na Rússia entre 1848 e 1883.  
As particularidades da servidão russa  
Em 1861, o czar Alexandre II aboliu por decreto a servidão na Rússia. A  
longevidade da qual desfrutou um instituto de ares tão feudais na Rússia já muito nos  
indica sobre a particularidade da servidão russa. Basta, por exemplo, lembrarmo-nos  
como na Inglaterra o instituto da servidão já havia desaparecido quase que de forma  
absoluta na segunda metade do século XIV, sendo que já no século XV a maioria da  
população inglesa era composta de “camponeses livres, economicamente autônomos”  
(Marx, 2017, p. 788). Na Rússia, a servidão não só foi abolida de forma tão tardia —  
comparada a outros países europeus que também possuíram formas semelhantes de  
organização do trabalho , mas ela também se desenvolveu ali de forma tardia.  
Em geral, tanto a tradição historiográfica russa antes e durante a União  
Soviética, quanto ocidental traçam as origens da servidão na Rússia até os séculos XVI  
e XVII (Stanziani, 2018; Robinson, 1932). Ainda que as origens da transformação de  
camponeses outrora livres em servos possam ser encontradas nos séculos XIII, XIV e  
XV (Blum, 1961, p. 219), é nos séculos XVI, XVII que as tendências de enservamento  
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dos camponeses se intensificam as quais se consolidariam na lei russa de forma  
definitiva no final do século XVII e no XVIII , uma vez que até o século XVI, as  
obrigações que um camponês devia ao senhor das terras em que vivia se mantiveram  
relativamente estáveis, sem grandes aumentos (Blum 1961, p. 221).  
Entre os séculos XVI e XVII, a Rússia viveu uma grande expansão dos direitos  
da nobreza russa sobre as terras camponesas e, portanto, sobre seus ocupantes,  
acarretando também um crescimento das obrigações e encargos decorrentes dessa  
autoridade crescente e tornando o camponês russo cada vez mais preso à terra e ao  
seu senhor (Robinson, 1932). As obrigações devidas pelos camponeses foram sendo  
convertidas em obrigações monetárias (obrok) e a barshchina (trabalho obrigatório do  
camponês para o senhor) foi se tornando cada vez mais comum e foi aumentada de  
um dia de trabalho por semana a dois a três dias de trabalho por semana, de modo  
que o total das obrigações a serem prestadas pela família camponesa foram somente  
crescendo (Blum, 1961, p. 220). Enquanto o camponês inglês já era livre e autônomo  
há quase dois séculos, durante o século XVI o camponês russo se aproximava cada  
vez à condição de servo, ainda que a lei russa ainda não o reconhecesse oficialmente  
como servo.  
No concernente às leis relativas à organização do trabalho no campo e à  
servidão, a legislação russa do século XVII muito contribuiu com a fixação dos  
camponeses à terra, principalmente com a finalidade de facilitar a cobrança de  
impostos. Em novembro de 1601, um ukase de Boris Godunov, que era o regente na  
época, estabeleceu a proibição de que os servos viajassem livremente pela Europa,  
vinculando-os à terra em que nasceram (Marx, 2010b, p. 139) e 48 anos depois, o  
famoso Ulozhenie de 1649 consolida ainda mais a ligação do camponês à terra e à  
autoridade do senhor (Robinson, 1932, p. 20). Além disso, nos séculos XVI e XVII o  
Estado moscovita colocou em vigor diversas leis que instituíam o registro das terras e  
das almas1 associadas a elas com a finalidade de aumentar a receita tributária e o  
alistamento militar compulsório, acabando por limitar a mobilidade dos servos  
(Stanziani, 2018). Entre os séculos XVI e XVIII, vai sendo extinta a possibilidade de  
encerrar a relação de obrigação e vinculação do camponês ao seu senhor, uma vez  
que se excluía progressivamente a possibilidade de o camponês quitar suas obrigações  
1
A partir da era Petrina (reinado do czar Pedro, o Grande), passou-se a se referir por almas (dushi ou  
души) os camponeses tributáveis, sujeitos ao imposto por cabeça ou imposto das almas (poduchnaia  
podat ou подуш[ная] податъ).  
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com o seu senhor e de se tornar um homem livre, inclusive em razão de empréstimos  
contraídos pelos camponeses com os senhores das terras para arcar com os  
pagamentos e serviços devidos pelo uso da terra, os quais eram acordados com o  
senhor (Robinson, 1932, p. 19).  
Entretanto, até o século XVIII, a transformação do camponês em servo por parte  
da nobreza rural, a progressiva submissão daqueles à condição de propriedade  
privada desta ainda se colocava como uma usurpação ilegal por parte dos boiardos  
(Marx, 2010b, p. 139). É só no século XVIII, durante o reinado de Pedro, o Grande e  
de Catarina, a Grande, que os camponeses se tornam servos na lei russa. Dessa forma,  
quando com as revoluções de tipo europeu” (Marx, 2020, p. 323) já havia triunfado  
a burguesia e havia sido proclamada uma nova ordem política para a nova sociedade  
europeia” (Marx, 2020, p. 323), o século XVIII na Rússia foi marcado pelo  
desenvolvimento da servidão de forma intensiva e extensiva e de um fortalecimento  
da nobreza russa (Robinson, 1932, p. 25). Durante o reinado de Pedro, o Grande  
(1682-1725), o czar torna legal o enservamento dos camponeses pela nobreza (Marx,  
2010b, p. 139) e passou a reconhecer a hereditariedade do poder da nobreza agrária  
sobre os servos, consolidando esses nobres como senhores hereditários das almas de  
terras. Durante o reinado de Pedro, os camponeses que viviam numa dada propriedade  
foram transformados em propriedade privada e hereditária do nobre a quem pertencia  
aquela terra (Marx, 2010b, p. 139). A nobreza adquiriu ainda o poder de vender seus  
servos, seja de forma individual ou em lotes, juntos ou separados da terra, bem como  
se tornou legalmente responsável por seus servos e pelos impostos devidos por eles  
ao governo (Marx, 2010b, p. 139).  
Além de consolidar os privilégios da nobreza e consumar sua emancipação em  
relação ao Estado russo na sua Carta Régia à Nobreza de 17852, Catarina II teve um  
papel central na fixação dos camponeses enquanto servos. Na Carta de 1785 a czarina  
2 Pedro, o Grande tornou também obrigatório que os integrantes da nobreza russa servissem ao Estado  
russo durante toda sua vida adulta, colocando toda a classe nobre russa a serviço do czar. Contudo,  
enquanto a lei russa só aboliria a servidão em 1861, a obrigação da nobreza de servir ao Estado russo  
foi abolida já em 1762 mediante o Manifesto de Pedro III, o qual abolia a obrigatoriedade dos serviços  
da nobreza ao Estado instituída por Pedro, o Grande e estabelecia que o serviço ao Estado só seria  
obrigatório para os nobres em caso de emergências públicas, marcando o começo do que ficou  
conhecido como a emancipação da nobreza russa que seria levada a cabo no reinado de Catarina, a  
Grande. A consumação dessa emancipação por Catarina teria se dado em 1785 com sua Carta Régia  
da Nobreza, que consistia em um estatuto definindo a nobreza russa, seus privilégios e de seu papel  
na sociedade russa, substituindo o caos da antiga profusão de leis repetitivas e contraditórias que  
tratavam do mesmo objeto por um único texto legal e fortalecendo o domínio dos nobres e, portanto,  
a lealdade da nobreza com a czarina (Jones, 1973).  
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Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia  
reconheceu definitiva e oficialmente o servo como propriedade privada do nobre,  
tornando o camponês em situação servil absolutamente submetido à autoridade  
despótica de seu senhor (Jones, 1973, p. 291). Por demais, embora as leis russas que  
tratavam da relação entre senhor e servo supostamente obrigassem o nobre a  
alimentar seus servos e o impedia de exercer violência exagerada ou crueldade contra  
seus servos, “the law did not even go so far as to provide a specific punishment for a  
landlord who tortured a peasant to death a thing by no means unheard of in this  
enlightened time3 (Robinson, 1932, p. 28). Durante todo o reinado de Catarina II só  
foram registrados 20 casos de senhores punidos por crueldade contra seus senhores  
e considerando que um servo que fizesse reclamações contra seu senhor poderia  
ser punido por flagelação e exílio para trabalhos forçados na Sibéria, esse pequeno  
número se torna ainda mais esclarecedor. Assim, “for them [bondaged plowmen and  
courtyard people] the century of the Enlightment was a century of abysmal darkness  
and depression4(Robinson, 1932, p. 27).  
Assim, ao longo dos reinados de Pedro, o Grande e Catarina, a Grande as  
prerrogativas dos senhores sobre os seus servos iam se assomando a tal ponto que o  
nobre exercia poderes dos mais diversos sobre a vida do camponês. O nobre poderia  
como bem quisesse, para citar apenas alguns: aumentar ou reduzir as terras da vila  
camponesa ou da família camponesa individual; aumentar as obrigações e serviços  
devidos pelo camponês; interferir na distribuição e redistribuição das terras comunais;  
apreender os bens móveis do camponês; limitar as relações do camponês com pessoas  
de fora da propriedade; decidir sobre o casamento do camponês (Robinson, 1932).  
Por exemplo, Robinson (1932, pp. 27-28) aponta que durante o reinado de Catarina  
II ocorreu um enorme aumento no obrok5 pago pelos camponeses aos senhores,  
podendo esse aumento ser estimado em cerca de 100%; ademais, nas terras em que  
as obrigações dos servos com seus senhores eram pagas na forma da barshchina6 o  
número de dias de trabalho nas terras senhoriais podiam chegar até 5 dias, durante  
os quais as terras do camponês ficariam sem ser semeadas e sua colheita apodreceria  
na terra (Robinson, 1932, p. 28).  
3 A lei não chegava longe o suficiente a ponto de providenciar uma punição específica para um senhor  
de terras que torturasse um camponês até a morte algo de forma alguma inaudito nessa Era  
Iluminada. (tradução livre)  
4
Para eles (lavradores tornados servos e servos de pátio) o século do Iluminismo foi um século de  
escuridão abismal e depressão. (tradução livre)  
5 Espécie de pagamento monetário pelo uso das terras.  
6 Espécie de pagamento em forma de trabalho forçado pelo uso da terra.  
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Gabriella M. Segantini Souza  
Mas se por um lado a nobreza tornava cada vez mais miserável a vida do servo  
russo e o a mão de ferro do Estado russo muito bem se assegurava disso , de  
outro, esses nobres encontravam no camponês uma feroz resistência. O reinado de  
Catarina II foi marcado por diversas revoltas camponesas, tendo nos anos de 1773 a  
1775 a Rússia sido palco da maior revolta cossaca-camponesa de sua história, a  
revolta de Pugachev. Em 1773, logo depois de deixar uma prisão de Kazan e fazendo-  
se passar czar Pedro III que já estava morto desde 1762 , cossaco Pugachev  
reuniu em torno de si uma força considerável de camponeses e cossacos e espalhou  
terror pelas províncias dos Urais, invadindo diversas propriedades da nobreza e  
executando famílias nobres inteiras (Robinson, 1932, p. 31). O exército de Pugachev  
conseguiu em derrotar as primeiras forças do Exército Russo enviadas pela czarina  
para reprimir a revolta e em tomar a cidade de Kazan (Robinson, 1932, p. 32). A fúria  
dessa revolta foi, contudo, recebida com uma reação da czarina em igual fúria, tendo  
sido a revolta duramente reprimida, os cossacos e os camponeses dispersados e  
Pugachev executado (Robinson, 1932).  
Outras revoltas camponesas eclodiram no século XVIII, mas nenhuma com as  
proporções da revolta de Pugachev, e todas elas incluindo a pugachevshchina —  
fracassaram em melhorar a condição dos servos russos. Depois que os camponeses e  
os cossacos de Pugachev foram duramente reprimidos e o incitador da revolta  
executado, Catarina se tornou uma ansiosa adepta do reacionarismo. Depois da  
revolta, a czarina nunca mais fez menção a qualquer reforma na organização do  
trabalho servil para reduzir a tirania à qual era submetido o servo, tendo concluído  
que o controle absoluto dos servos pelos nobres era um mal menor comparado à  
possibilidade de perda do controle dos servos (Jones, 1973, p. 292)7. Evidência disso  
é a já mencionada Carta Régia de 1785, o texto legal mais simbólico da aliança entre  
o Estado e a nobreza russa em prol da garantia da ordem na Rússia. Nessa Carta Régia,  
reconhecia-se os privilégios da nobreza e os fortalecia, inclusive como uma reação à  
pugachevshchina, que ameaçava esses próprios privilégios, bem como se dava  
reconhecimento definitivo do servo como uma propriedade do nobre.  
Não é por razão alguma que o século XVIII tenha ficado conhecido na história  
7
Depois da pugachevshchina, qualquer potencial revolucionário que os cossacos tinham nesse  
momento foi suprimido parte dos cossacos se tornou proprietária de terras, convertendo-se em  
nobreza pequeno russa (ucraniana), parte foi transformada em um serviço militar especial e parte foi  
despida completamente de qualquer elemento que os distinguia efetivamente do camponês comum.  
Sobre isso, cf. Robinson, 1932.  
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russa como a “Era de Ouro da Nobreza Russa” (Robinson, 1932), embora não seja  
pelas razões que se costuma atribuir, pois não se trata de um período de verdadeiros  
avanços civilizatórios. Pelo contrário, as reformas levadas a cabo pelos “grandiosos”  
Pedro e Catarina nada mais fizeram do que introduzir na Rússia “sham and show8  
(Marx, 2010b, p. 147) de civilização, apesar das palavras grandiosas proferidas por  
Catarina II no começo de seu reinado. Em verdade, esse período pode ser dito a “Era  
de Ouro da Nobreza Russa”, pois nunca antes pareceu tão sólida a base social de sua  
dominação, nunca antes seu poder pareceu tão absoluto e inquebrável. Nesse período  
se solidificou a servidão do camponês russo, foi o século do triunfo do sistema servil,  
da exploração mais brutal e absoluta do servo por seus senhores. Como indica Geroid  
T. Robinson,  
not in absence of opposition, but in spite of it, about nineteen and  
one-half million of persons stood bondaged to the landlords in 1797,  
while the State peasantry […] numbered about fourteen and one-half  
million some thirty-four millions altogether, in a total population of  
thirty-six (Robinson, 1932, p. 33)9.  
Assim, esse período terminou por prender à terra e à tirania da nobreza e do  
Estado cerca de 94% de toda a população russa, solidificando as bases da dominação  
da aristocracia russa. Contudo, nessas bases foram se mostrando cada vez mais as  
rachaduras, até que chegamos no final da década de 1850, às vésperas da abolição  
da servidão.  
Marx e as preparações para a emancipação dos servos: The question of the  
abolition of serfdom in Russia”  
Quando era correspondente do jornal norte americano New York Daily Tribune,  
Marx escreveu dois artigos tratando das propostas do czar Alexandre II para a abolição  
da servidão, um escrito e publicado em outubro de 1858 The Question of the  
abolition of serfdom in Russia e outro escrito em dezembro de 1858 e publicado  
em duas partes em janeiro de 1859 The Emancipation Question. Trataremos  
primeiro do texto de outubro, que trata do momento em que foram tornados públicos  
os preparativos do czar para a emancipação, com a convocação dos nobres a São  
Petesburgo para discutirem a questão dos servos. Depois trataremos dos textos de  
8 Farsa e espetáculo. (tradução livre)  
9
Não com ausência de oposição, mas apesar dela, cerca de dezenove e meio milhões de pessoas  
estavam enservadas aos senhores de terras em 1797, enquanto o campesinato do Estado somava cerca  
de quatorze e meio milhões um total de trinta e quatro milhões, numa população de trinta e seis.  
(tradução livre)  
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dezembro, os quais abordam os princípios propostos pelo czar para a abolição da  
servidão.  
No segundo semestre do ano de 1858 o terceiro ano de reinado do filho de  
Nicolau I e dois anos depois do fim da Guerra da Crimeia (1853-1856) , a questão  
da abolição da servidão havia chegado a um ponto de inflexão durante o reinado do  
czar Alexandre II. Em outubro desse ano, Marx escreve o artigo The question of the  
abolition of serfdom in Russia enquanto correspondente do jornal ianque New York  
Daily Tribune para explicar as circunstâncias dessa inflexão, sobretudo as que  
provocaram as movimentações do czar, além de tratar do estado geral de ânimos entre  
os russos naquele momento.  
Escreveu Marx que em 1858, o czar havia sido levado a um “extraordinary  
step10 (Marx, 2010b, p. 51) em relação a questão da servidão com a convocação a  
São Petesburgo de um conselho geral de nobres para fins de discussão da abolição  
da servidão, tendo dessa convocação surgido o chamado Chief Peasant Question  
Committee11. Esse passo indicou uma virada séria na questão dos servos russos, na  
medida que Alexandre II (que de forma alguma não era o primeiro czar a flertar com a  
emancipação dos servos) avançava na questão de forma definitiva em seus planos para  
libertar os servos, diferentemente do que haviam feito seus antecessores, inclusive seu  
pai, Nicolau I e seu tio, Alexandre I. Contudo, e Marx bem o ressalta, é importante notar  
que o czar não avançava com a questão da emancipação por qualquer tipo de  
sentimento humano ou vontade pessoal, ele fora forçado, levado a, “driven to12 (Marx,  
2010b, p. 51) a tal passo por contingências que o impediam de desviar de uma  
10 Passo extraordinário.  
11  
Segundo a nota 46 na Marx Engels Collected Works, “the Chief Peasant Question Committee is the  
name given in January 1858 to the Secret Committee "for discussing measures to arrange the life of the  
landowners' peasants" which began its sittings on January 3, 1857 with Alexander II as chairman. The  
aim of the Chief Committee was to consider "the decisions and proposals concerning serfdom". The  
Grand Duke Constantine was among its members. In November 1857 a rescript was issued inviting each  
gubernia to form landowners' committees for the purpose of drafting the conditions for the abolition of  
serfdom. Such committees were set up in all gubernias in the course of 1858. Their composition varied,  
the majority consisting of big serfowners and the minority, of liberal landowners.” (MECW, p. 648) [o  
Chief Peasant Question Committee é o nome dado em janeiro de 1858 ao Comitê Secreto “para discutir  
medidas para organizar a vida dos camponeses dos senhores de terras”, o qual iniciou seus encontros  
em 3 de janeiro de 1857, com Alexandre II como diretor. O propósito do Chief Committee era considerar  
as “decisões e propostas relativas à servidão”. O Grão Duque Constantine estava entre seus membros.  
Em novembro de 1857, uma ordem imperial foi emitida convidando cada gubernia a formar um comitê  
de proprietários de terras com o propósito de redigir as condições da abolição da servidão. Esses  
comitês foram formados em cada gubernia ao longo de 1858. Sua composição variava, a maioria  
consistindo de grandes senhores e servos e a minoria de proprietários de terras liberais]. (tradução  
livre)  
12 Levado a. (tradução livre)  
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discussão séria sobre a abolição da servidão, as quais serão discutidas mais à frente.  
Ao contrário do que esperava Alexandre II (Marx, 2010b, p. 53), não se  
avançava com a questão com boa vontade da nobreza russa. Pelo contrário, os avanços  
na questão propostos pelo czar eram recebidos com aberta resistência no próprio  
comitê por ele convocado para tratar da abolição, bem como dos diversos comitês  
provinciais cuja criação o governo havia ordenado em 1857 (cf. nota nº 10). Sobre os  
trabalhos iniciais da comissão, Marx escreve que  
The labors of the "Chief Peasant Question Committee" have proved  
little better than abortive, and only led to fierce quarrels among its  
own members, quarrels in which the Chairman of that Committee, the  
Grand Duke Constantine13, sided with the old Russian party against  
the Czar14(Marx, 2010b, p. 51).  
Essa atuação quase abortiva do Comitê Central também se repetia nos Comitês  
Provinciais, em que os nobres pareciam em grande parte ter abraçado a oportunidade  
concedida pela discussão oficial acerca dos passos preparatórios para a emancipação  
não com a finalidade de debater as condições do fim da servidão e fazer avançar a  
discussão, mas sim com a finalidade de turvar a questão. Ou seja, aquilo que Alexandre  
II queria que fossem os nobres russos para a emancipação dos servos instrumentos  
nas grandiosas mãos libertadoras do czar , esses nobres não mostravam de forma  
alguma dispostos em sê-lo.  
Marx ressalta que certamente havia dentre a nobreza russa alguns que  
apoiavam em maior ou menor medida, um “abolicionist party15 (Marx, 2010b, p. 51),  
como diz o autor renano16. Mas de forma alguma podemos superestimar o tamanho  
ou influência desse grupo, eis que era composto por uma minoria numérica e de forma  
alguma havia dentre eles qualquer tipo unidade quanto aos pontos mais importantes  
da questão em verdade, Marx aponta que a moda dentre a nobreza era se declarar  
contrário à servidão, mas defender que fosse conduzida de tal forma que se tornasse  
uma mera farsa (Marx, 2010b, p. 51). Assim, a posição predominante da nobreza  
quanto à emancipação, senão uma aberta resistência, era de um apoio morno, o que  
não era nada além do esperado da classe que se beneficiava diretamente da  
13 O Grão-Duque Constantino era o irmão mais velho de Nicolas I e Alexandre I.  
14  
os trabalhos do Comitê Central da Questão Camponesa se demonstraram pouco mais do que  
abortivos e só levaram a fortes disputas entre seus membros, disputas nas quais o presidente daquele  
comitê, o Grão Duque Constantine, se posicionou com o velho partido russo contra o czar. (tradução  
livre)  
15 Partido abolicionista. (tradução livre)  
16  
Geroid T. Robinson se propõe a explicar algumas das razões pelas quais havia dentre os nobres  
russos alguns que defendiam o fim da servidão; cf. Robinson, 1932, p. 57-58.  
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exploração dos servos. Como bem explica Marx,  
It is a story as old as the history of nations. In fact, it is impossible to  
emancipate the oppressed class without injury to the class living upon  
its oppression, and without simultaneously discomposing the whole  
superstructure of the State reared on such a dismal social basis. When  
the time of change arrives, much enthusiasm is at first manifested;  
joyful felicitation upon mutual good will is dealt in, with great pomp  
of words as to the general love of progress, and so forth. But so soon  
as words are to be exchanged for deeds, some retire in fright at the  
ghosts raised, while most declare themselves ready to stand and fight  
for their real or imaginary interests. (Marx, 2010b, p. 52)17  
Ou seja, no momento inicial em que se tomou conta de que o tempo da servidão  
estava se aproximando do fim, que o tempo de mudança se aproximava e em que  
disso se deram conta, muito se felicitou quanto ao progresso que finalmente chegaria  
à Rússia. Não obstante, isso se colocava na cabeça e na boca dos nobres somente  
como uma bela frase que de forma alguma pretendiam tornar efetiva. Eis que no  
momento no qual o czar começa a dar indícios de querer transformar em ação a frase  
da emancipação, de fazer valer suas promessas de abolição a nobreza recua assustada  
diante da ameaça aos seus interesses (sejam reais ou imaginários) e se horroriza diante  
da possibilidade da dissolução efetiva da base social de sua dominação. E em verdade,  
não haveria como esperar que ela agisse de forma diferente (Marx, 2010b, p. 52). Com  
que razão se esperaria que a nobreza russa, a própria classe que vivia da servidão,  
abrisse mão voluntariamente dessa base social, que com suas mãos elas destruísse as  
bases de sua dominação, a exploração dos servos?  
Isso tudo se agravava diante da situação em que as finanças da aristocracia  
russa se encontrava. Como expõe Marx, os nobres russos ressaltavam que antes  
mesmo da abolição já era difícil a obtenção de empréstimos assegurados pela  
propriedade da terra em certas províncias graças à incerteza generalizada provocada  
pela depreciação iminente do valor da propriedade da terra. E mais, como os  
proprietários de terras cumpririam com suas obrigações com o governo, indagavam  
os nobres e grande parte das propriedades da Rússia eram hipotecadas ao próprio  
Estado russo. O que seria dos vários nobres que viviam das obrigações devidas por  
17  
É uma história tão antiga quanto a história das nações. De fato, é impossível emancipar a classe  
oprimida sem danos à classe vivendo sob sua opressão e sem simultaneamente decompor toda a  
superestrutura do Estado baseada em uma base social tão sombria. Quando o tempo de mudança  
chega, muito entusiasmo é de início manifestado; felicitação alegre quanto à boa vontade mútua é  
tratada, com grande pompa quanto o amor geral pelo progresso e assim em diante. Mas assim que  
palavras estão para ser trocadas por atos, alguns recuam atemorizados diante do fantasma levantado,  
enquanto a maioria se declara pronta para se erguer e lutar por seus interesses reais ou imaginários.  
(tradução livre)  
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seus servos instalados nas cidades? E os boiardos que possuíam um limitado número  
de servos e propriedades de terras igualmente limitadas? O que seria deles se cada  
servo emancipado recebesse uma pequena parcela de terra, conforme pretendia o  
czar? E depois da emancipação, que tipo de de limite efetivo contra o poder imperial  
restaria à disposição dos nobres? Afinal, o fim da servidão representaria uma séria  
redução no poder político que estavam acostumados a exercer, sem mencionar que a  
abolição da servidão pelo czar não era para a nobreza nada senão uma séria  
interferência do Estado em seus assuntos. Esses eram alguns dos pontos discutidos  
pela nobreza e formavam so many strong positions behind which the friends of  
serfdom pitch their tents18 (Marx, 2010b, p. 52).  
Mas apesar disso tudo, Alexandre II supunha que os nobres russos,  
submeteriam-se às ordens imperiais sem recuar ou oferecer resistência. Não só isso, o  
czar esperava que até mesmo considerariam a mark of honor19 (Marx, 2010b, p. 53)  
que lhes fosse permitido through the instrumentality of their several committees20  
(Marx, 2010b, p. 53) que pudessem tomar parte ativa nesse grande drama (Marx,  
2010b, p. 53). Entretanto, assim como é de se esperar que a nobreza resistisse aos  
planos de abolição, tampouco o equívoco de Alexandre II se deveu exclusivamente a  
suposições gratuitas do czar. Em verdade, até aquele momento a nobreza russa estava  
acostumada a se submeter às ordens imperiais. Embora Marx não traga no texto as  
razões pelas quais a nobreza russa até então estava habituada a se submeter às ordens  
imperiais sem muita resistência às ordens imperiais, podemos supor que tenha relação  
com a eficácia com a qual Nicolau I e o Conde Beckendorf promoveram o esmagamento  
do levante dezembrista em 1825 (Herzen, 2013, p. 165).  
Depois de 1825, quando membros republicanos da aristocracia russa  
(principalmente oficiais do exército) se levantaram contra o czarismo (cf. Yarmolinsky,  
1956), qualquer caráter minimamente progressista que algum dia tenha existido na  
nobreza russa foi aniquilado, tendo ela perdido, na dicção romântica de Alexandre  
Herzen21, “as noções, fracamente assimiladas, de honra e mérito […]; tudo que havia  
18 Tantas posições fortes atrás das quais os amigos da servidão montavam suas tendas. (tradução livre)  
19 Um distintivo de honra. (tradução livre)  
20 Por meio da instrumentalidade de seus vários comitês. (tradução livre)  
21  
Marx e Engels chamavam Alexandre Herzen de um “beletrista” (Marx, 2013, p. 54), pois lhe faltaria  
rigor científico. Ao apêndice à primeira edição de O Capital (removido já na segunda edição alemã),  
Marx escrevia que Herzen havia descoberto o ‘comunismo russo’ em Haxthausen (Marx, 2013, p. 54).  
Herzen possuía também, por sua vez, certa aversão a Marx, mas não por um confronto de ideias, mas  
sobretudo em razão da relação conflituosa entre o autor alemão e Mikhail Bakunin, amigo de Herzen.  
Em 1869, Herzen teria afirmado que toda sua hostilidade com Marx e os marxistas se devera a Bakunin,  
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nela de nobre e magnânimo esgotava-se nas minas da Sibéria” (Herzen, 2013, p.  
163)22. E assim, quando 33 anos depois depois dos dezembristas a nobreza sai de  
seu covarde servilismo e resiste às ordens do czar, ela o fez pelas razões mais vis e  
egoístas, a manutenção de uma das formas mais brutais de exploração do trabalho —  
e talvez não seja nada menos que natural que ela assim agisse, pois como aludido  
acima por Marx, it is a story as old as the history of nations. In fact, it is impossible to  
emancipate the oppressed class without injury to the class living upon its  
oppression23(Marx, 2010b, p. 52), apesar de qualquer “honra e mérito” que Herzen  
enxergasse nessa classe.  
Entretanto, como já adiantado acima, tampouco podemos superestimar os  
motivos pelos quais Alexandre II pretendia abolir a servidão e atribuir ao czar algum  
tipo de sentimento humanitário ou compadecimento pelos camponeses. Para o filho  
de Nicolau I, abolir ou não a servidão consistia em uma escolha entre despertar ou não  
os elementos adormecidos (Marx, 2010b, p. 53). O czar temia que, caso ele mesmo  
não abolisse a servidão e libertasse os camponeses em seus termos ainda que  
comprometendo as bases sob as quais assentava a velha sociedade russa , esses  
elementos adormecidos não dormiriam por muito mais tempo e logo destruiriam com  
suas próprias mãos, arrancando tijolo por tijolo, as bases de sua exploração. E isso  
não se trata de mera suposição gratuita por parte de Marx, eis que em 1856 Alexandre  
II teria dito que it were better that the emacipation came from above, than from  
bellow24 (Robinson, 1932, p. 61). O uso do Direito aqui possui uma função  
evidentemente conservadora, de evitar que os inflamados camponeses russos  
transformassem com suas próprias mãos a sociedade russa de maneira radical.  
Alexandre II sabia bem que uma reforma da sociedade russa feita por cima, isto é, uma  
reforma promovida pelo Estado por meio do Direito traria menos riscos do que se  
fosse deixado nas mão dos servos que conquistassem sua própria liberdade, pois uma  
tendo inclusive se surpreendido em 1869 ao descobrir que Marx e Bakunin trocavam correspondências  
entre si e que Bakunin tinha planos de traduzir O Capital para o russo. Sobre isso, (apesar de alguns  
equívocos teóricos). cf. Mervaud, 2012).  
22  
Depois do levante de dezembro de 1825, grande parte dos participantes da insurreição em sua  
maioria, nobres em serviço militar foram condenados ao exílio na Sibéria ou a serviço militar no  
Cáucaso, com exceção de cinco dos idealizadores da conspiração, o coronel Pavel Pestel, Kondraty  
Ryleyev, o tenente-coronel Sergey Muravyov-Apostol e o tenente Bestuzhev-Ryumin. (cf. Yarmolinsky,  
1956)  
23  
É uma história tão antiga quanto a história das nações. De fato, é impossível emancipar a classe  
oprimida sem danos à classe vivendo sob sua opressão e sem simultaneamente decompor toda a  
superestrutura do Estado baseada em uma base social tão sombria. (tradução livre)  
24 Seria melhor que a emancipação viesse de cima do que de baixo. (tradução livre)  
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Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia  
vez esses camponeses começassem pela abolição da servidão, nada garantiria que  
parariam por aí. Isso tampouco é uma suposição tirada de lugar algum. Teria sido dito  
por Catarina II antes da pugachevshchina, quando a imperatriz passou a adotar uma  
postura reacionária (Jones, 1973, p. 295) e repetido por Nicolas II que caso não se  
modificasse a servidão russa, os servos tomariam a questão em suas próprias mãos  
(Robinson, 1932, p. 61). Pode-se supor que também tenha vindo a Alexandre II essa  
realização.  
Alexandre II tinha plena consciência de que de a guerra que lhe fora legada  
pelo pai (Guerra da Crimeia) havia exigido enormes sacrifícios do povo russo, como  
Marx explica. Sobre a extensão desses, Marx diz  
Sacrifices, the extent of which may be estimated from the simple fact  
that, during the epoch commencing in 1853 and ending in 1856, the  
paper money of forced currency was increased from three hundred  
and thirty-three millions to about seven hundred millions of roubles;  
all this increase of paper money representing, in fact, but taxes  
anticipated25 (Marx, 2010b, p. 53)  
Para amenizar o golpe desses sacrifícios, Alexandre II tomou o exemplo de seu  
tio, Alexandre I, que durante a invasão da Rússia pela Grande Armée de Napoleão de  
1812, motivava os camponeses a lutar contra os franceses com promessas de dar fim  
à servidão. Contudo, ele não poderia fazer o mesmo que o tio e quebrar as promessas  
feitas aos camponeses. Como explica Marx  
The war, moreover, led to a humiliation and a defeat, in the eyes at  
least of the serfs, who cannot be supposed to be adepts in the  
mysteries of diplomacy. To initiate his new reign by apparent defeat  
and humiliation, both of them to be followed by an open breach of the  
promises held out in war-time to the rustics, was an operation too  
dangerous even for a Czar to venture upon.26 (Marx, 2010b, p. 53)  
Muitos sacrifícios foram exigidos dos camponeses e muitas promessas lhes  
foram feitas para que suportassem os custos daquela guerra que lhes pesava nas  
costas como um fardo, tudo isso para que ao fim a guerra o único espólio de guerra  
da Rússia tenha sido humilhação e derrota ao menos no olhar dos camponeses, dos  
25  
Sacrifícios cuja extensão pode ser estimada pelo simples fato de que, durante a época iniciada em  
1853 à terminada em 1856, o papel moeda de curso forçado foi aumentado de trezentos e trinta e  
três milhões para cerca de setecentos milhões de rublos; todo esse aumento de papel moeda  
representando, de fato, nada senão impostos antecipados. (tradução livre)  
26 A guerra, além disso, levou a humilhação e derrota aos olhos dos servos, os quais não se pode supor  
que sejam adeptos aos mistérios da diplomacia. Iniciar seu novo reinado pela aparente derrota e  
humilhação, ambas a ser seguidas por um descumprimento aberto das promessas feitas durante a  
guerra aos rústicos era uma operação perigosa demais até para um czar se aventurar. (tradução livre)  
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quais não se espera que sejam adeptos aos mistérios da diplomacia (Marx, 2010b, p.  
53). Diante dessa situação, abandonar as promessas feitas aos servos seria um passo  
temeroso demais até mesmo para o czar da Grande Rússia, de modo que Alexandre II  
se viu forçado pelas contingências a avançar com a abolição da servidão. E os riscos  
ficavam cada vez mais evidentes de romper com as promessas feitas aos servos, na  
medida que esses camponeses haviam sido levados a acreditar que o czar lhes  
reservava maravilhas que jamais haviam experimentado. Diante da lentidão com a qual  
a questão era levada, a ansiedade dos camponeses se converteu em impaciência e  
revolta, de modo que insurreições camponesas se proliferavam pela Grande e Pequena  
Rússia como fogo em um palheiro, espalhando medo nos corações nobres da  
aristocracia e do czar de que a fúria daqueles servos poderia incinerar a sociedade  
russa até os ossos. Na dicção de Marx  
the peasantry, with exaggerated notions even of what the Czar  
intended doing for them, have grown impatient at the slow ways of  
their seigneurs. The incendiary fires breaking out in several provinces  
are signals of distress not to be misunderstood. It is further known  
that in Great Russia, as well as in the provinces formerly belonging to  
Poland, riots have taken place, accompanied by terrible scenes, in  
consequence of which the nobility have emigrated from the country to  
the towns, where, under the protection of walls and garrisons, they  
can bid defiance to their incensed slaves.27 (Marx, 2010b, p. 53)  
Assim, Alexandre II considerou que esse seria um momento oportuno para  
convocar os nobres à capital e por transformar em ação as discussões sobre a  
necessidade da emancipação dos servos, dando um passo que não poderia reverter  
exceto se estivesse disposto a ver os camponeses atearem fogo por toda a Rússia.  
Mas de outro lado, via-se também confrontado pela resistência da nobreza, que se não  
oferecia resistência aberta à questão e agiam de forma a frear qualquer avanço em  
direção ao fim da servidão na Rússia, ofereciam um apoio morno à abolição.  
Marx sobre o projeto imperial de abolição: The emancipation question,  
partes I e II  
No artigo The emancipation question, escrito em dezembro de 1858, Marx  
27 Os camponeses, com noções exageradas inclusive daquilo que o czar pretendia fazer por eles, haviam  
se tornado impacientes com os modos lentos de seus senhores. Os fogos incendiários que se iniciaram  
por diversas províncias são sinais de perigo a não serem mal-compreendidos. Sabe-se ainda que na  
Grande Rússia, assim como em províncias antes pertencentes à Polônia, revoltas ocorreram  
acompanhadas de cenas terríveis, em consequência das quais a nobreza emigrou do campo para as  
cidades, onde, sob a proteção de muros e guarnições, podem desafiar seus escravos inflamados.  
(tradução livre)  
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parte para analisar o relatório que foi produzido pela Comissão Imperial Central e  
entregue para Alexandre II no dia 13 de novembro de 58, documento no qual the  
bases are laid down on which the emancipation of the serfs is proposed to be carried  
out28 (Marx, 2010b, p. 139). Esse relatório continha dez princípios fundamentais que  
guiariam a abolição da servidão, expressando, ainda que indiretamente, as ideias do  
czar Alexandre II acerca da grande questão social da Rússia. Na primeira parte do  
artigo, Marx parte para analisar o que os oito pontos representariam para a nobreza  
russa e o que daí se poderia esperar para o futuro da relações entre a aristocracia  
russa e o czar. Na segunda, ele trata do que se poderia esperar dos camponeses.  
Conforme apontado por Marx, o relatório de 13 de novembro tratava-se de uma  
simples continuação ou até mesmo um complemento ao programa que havia sido feito  
pelo Comitê Central na primavera anterior, o qual tratava-se de a mere form […] which  
they were expected to fill up29 (Marx, 2010b, p. 141) para mostrar à nobreza russa a  
que direção em que deveriam agir. Contudo, quando mais se entrava na questão do  
fim da servidão e o que isso significaria para a aristocracia russa, maior era a repulsa  
da nobreza quanto a tudo, de modo que o plano que deveria ter sido elaborado de  
forma espontânea pelos nobres do comitê teve de ser elaborado pelo governo oito  
meses depois. Assim, Alexandre II se viu forçado a cumprir a tarefa que ele esperava  
ser feita de forma espontânea pelos próprios nobres.  
Mas enquanto a nobreza russa não pensava que já era tempo da chegada do 4  
de agosto de 1789 na Rússia, que ainda estava distante a necessidade de sacrificar  
seus privilégios no altar de seu país (Marx, 2010b, p. 141), Alexandre II, um verdadeiro  
samoderjetz vserossiiski30 (Marx, 2010a, p. 141) já havia chegado na Declaração dos  
Direitos do Homem. Logo no primeiro ponto de seu relatório declarava-se o seguinte  
Serfdom and all its attributes are abolished forever, without any  
consideration being paid to their former proprietors; for, says the  
report, serfdom was arbitrarily introduced by Czar Boris Godunov,  
grew by an abuse of power into part and parcel of the common law,  
and thus, having been created by the will of the sovereign, may also  
be abolished by the will of the sovereign. As to a pecuniary  
consideration for its abolition, such a money payment in return for  
rights which belong to the peasantry by nature, and should never have  
been taken away from them, would form, says the report, a disgraceful  
28  
São postas as bases sobre as quais se propõe que a emancipação dos servos fosse levada a cabo.  
(tradução livre)  
29 Um mero formulário que deveriam preencher. (tradução livre)  
30 Autocrata das Rússias. (tradução livre)  
Verinotio  
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Gabriella M. Segantini Souza  
page, indeed, in Russian history31. (Marx, 2010b, p. 139) [grifo meu]  
O czar proclamava abertamente o fim dos privilégios da nobreza ou ao  
menos era como via a nobreza. Ele afirmava que a servidão seria abolida de uma vez  
por todas e que o seria sem consideração aos seus antigos proprietários, pois uma  
consideração pecuniária paga pela abolição em troca dos direitos que pertenceriam  
por natureza aos camponeses e que nunca deveriam ter-lhes sido privados seria uma  
mácula nas páginas da história russa. Dizia ainda que a servidão havia sido introduzida  
de forma arbitrária pelo czar Boris Godunov e que se desenvolveu por um abuso de  
poder e que a partir desse abuso de poder se tornou parte essencial do direito comum  
e que, como havia sido introduzida pela vontade soberana de um czar, poderia ser da  
mesma forma abolida.  
Em primeiro lugar, é interessante notar como o relatório traz que a servidão  
teria sido introduzida por Boris Godunov, um czar que era considerado um usurpador  
(Dunning, 1992) e que não era da mesma dinastia que Alexandre II, e que teria se  
tornado parte do direito comum russo por meio de um abuso de poder. O relatório  
convenientemente ignora que, na verdade, a servidão até o reinado de Pedro, o Grande  
ainda se colocava como uma usurpação ilegal por parte da nobreza e que o czar  
legalizasse a servidão e colocasse os servos como propriedade privada e hereditária  
dos nobres, bem como que Catarina, a Grande foi a responsável pelo enservamento  
de milhões de camponeses durante seu reinado. Assim, a verdade é que a servidão  
conforme ela existia no século XIX na Rússia foi produto não do abuso de Boris  
Godunov, mas das reformas promovidas por Pedro, o Grande e por Catarina, a Grande  
durante o século XVIII (Marx, 2010b, p. 139). Como Marx bem aponta, dificilmente um  
documento oficial da Rússia czarista mencionaria o papel central que os czares  
Romanovs tiveram no estabelecimento da servidão como a principal forma de  
organização do trabalho na Rússia, de modo que recaía sobre Boris Godunov os  
pecados de seus sucessores (Marx, 2010b, p. 139).  
Ademais, é extremamente irônico que o relatório do czar dissesse que não seria  
paga nenhuma consideração monetária aos antigos senhores dos servos em troca de  
31  
Servidão e todos os seus atributos estão abolidos para sempre, sem qualquer consideração sendo  
paga aos seus antigos proprietários; pois, diz o relatório, a servidão foi arbitrariamente introduzida pelo  
czar Boris Godunov, tornou-se a partir de um abuso de poder em parte necessária e inevitável do direito  
comum, e então, tendo sido criada pela vontade do soberano, pode também ser abolida pela vontade  
do soberano. Quanto à consideração pecuniária pela sua abolição, tal pagamento monetário em troca  
do retorno de direitos que pertencem ao campesinato por natureza e nunca deveria ter sido retirados,  
formaria, diz o relatório, uma página realmente desgraciosa na história russa. (tradução livre)  
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Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia  
seus “direitos naturais”, isto é, que não se pagaria o resgate pela liberdade dos servos,  
quando se sabe que a coisa se deu de forma exatamente oposta. Já o próprio relatório  
se contradiz, pois no mesmo ponto em que faz essa essa bela declaração de que os  
servos não deveriam pagar por sua liberdade estabelecia que os ex-servos ficariam  
num período de obrigação provisória de 12 anos em relação a seus antigos mestres,  
período durante o qual haveriam ainda obrigações a serem pagas se isso não é  
para o czar uma consideração pecuniária paga aos antigos senhores, o que seria?  
Sabe-se ainda que depois que a Emancipação foi levada a cabo em 1861, os servos  
foram efetivamente obrigados a indenizar os seus antigos mestres pelos tributos e  
serviços que estes não mais poderiam cobrar daqueles, isto é, eram obrigados a pagar  
o resgate das obrigações que deviam aos seus antigos senhores para serem livres (cf.  
Marx, 2020, p. 104), de modo que, ao contrário do que foi dito, os ex-servos foram  
forçados a pagar por sua liberdade.  
Por demais, não escapa a Marx a ironia como czar urgia a Rússia que finalmente  
chegasse em 1789 (mesmo que 69 anos atrasada), que o velho sistema de privilégios  
tivesse fim e que fosse devolvido aos servos os direitos que lhe pertenciam por  
natureza (!). Tempos estranhos esses, como diz Marx, em que o ninguém menos que  
um czar clamava pelos direitos do homem, aquele símbolo de tudo aquilo que havia  
de mais conservador e antigo na Europa, o soberano de todas as Rússias clamando  
pelo fim dos privilégios e pelo reconhecimento dos direitos do homem, isto é, pelo  
reconhecimento do Direito burguês a igualdade da troca de mercadorias e a  
liberdade da venda da força de trabalho. Aqui a alusão à Revolução Francesa e o papel  
que ela desempenhou no desenvolvimento do capitalismo na França é evidente e  
esclarecedora. Quando o czar clama pelos direitos que pertencem ao servo por  
natureza, fica claro (e os eventos das décadas seguintes só iriam comprová-lo) que ele  
clama por nada menos que pela moderna sociedade civil burguesa, pelo  
desenvolvimento capitalista da Rússia e pelo Direito burguês.  
Basta lembrarmos como na segunda metade do século XIX Estado russo  
assumiria um papel central e ativo na dissolução das estruturas comunais do campo  
russo e no desenvolvimento do capitalismo na Rússia, nutrindo os “intrusos  
capitalistas” (Marx, 2013, p. 87) às custas dos camponeses e da comuna agrária russa.  
Como Marx explica nos rascunhos de resposta à carta de Vera Zasulitch, própria  
dissolução da obshchina foi diretamente catalisada pela opressão do Estado russo e  
pelos “novos pilares sociais” (Marx, 2013, p. 80) que, tutelados pelo Estado, sugavam  
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até as últimas gotas a vitalidade da comuna agrária russa e dos mujiques. O capitalismo  
que se desenvolvia na Rússia, segundo Marx, era um nutrido às expensas dos  
camponeses por intermédio do Estado” (Marx, 2013, p. 87). Como explica Marx sobre  
o contexto russo ao fim dó século XIX, “à custa dos camponeses, o Estado deu forte  
impulso aos ramos do sistema capitalista ocidental que, sem desenvolver de nenhum  
modo as capacidades produtivas da agricultura, são os mais apropriados para facilitar  
o roubo de seus frutos pelos intermediários improdutivos” (Marx, 2013, p. 79), dando  
fôlego para que um novo parasita capitalista” (Marx, 2013, p. 79) passasse a sugar o  
sangue da já debilitada obschina. Assim, não bastasse a carga fiscal com a qual o  
Estado sufocava a obschina desde 1861, o Estado russo abriu as portas para que o  
vampiro capitalista se juntasse à sangria da comuna agrária. Como coloca Marx “o  
Estado concorreu para o desenvolvimento precoce dos meios técnicos e econômicos  
mais apropriados, a fim de facilitar e precipitar a exploração do agricultor, isto é, da  
maior força produtiva da Rússia, além de enriquecer os ‘novos pilares sociais’” (Marx,  
2013, p. 79). E para que isso tudo fosse possível, era preciso dar fim à servidão na  
Rússia, essa relação que prendia o trabalhador à terra e a um único senhor, dado que  
o desenvolvimento de relações capitalistas pressupõe a separação entre produtores e  
meios e condições de produção (Marx, 2017, p. 786)  
Essa alusão aos direitos naturais do homem nos leva a um segundo ponto.  
Embora seja necessário um grande cuidado ao comparar a situação russa em 1858 e  
a alemã, aqui não podemos deixar de lembrar daquilo que Marx traz sobre a miséria  
alemã na década de 40. Na década de 40, a Alemanha se encontrava numa situação  
semelhante à russa diante da qual nos defrontamos nos textos aqui analisados. Sobre  
aquele contexto alemão, Marx diz que “a negação de nosso presente político é já um  
fato empoeirado no quarto de despejo histórico das nações modernas” (Marx, 2010a,  
p. 146), referindo-se ao fato de que em 1843-1844 a Alemanha vivia um presente  
político que há muito já havia sido superado pelas nações modernas como a França e  
Inglaterra, eis que a Alemanha nunca havia passado pelas revoluções de tipo europeu  
que a França e a Inglaterra haviam vivido: o status quo alemão, ainda marcado pela  
feudalidade e pelos privilégios, era o passado dessas nações modernas, expressando  
a “perfeição manifesta do ancien régime” (Marx, 2010a, p. 148).  
Nesse sentido, “se nego as perucas empoadas, fico ainda com as perucas  
desempoadas” (Marx, 2010a, p. 146), isto é, negar o presente político alemão da  
década de 40 ainda assim deixaria a Alemanha no passado das nações europeias  
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Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia  
modernas, “quando nego a situação alemã de 1843, não me encontro nem mesmo,  
segundo a cronologia francesa, no ano de 1789, quanto menos no centro vital do  
período atual” (Marx, 2010a, p. 146). Em razão desse atraso alemão, saudava-se na  
Alemanha em 1843-44 “como a aurora de um futuro glorioso que ainda mal ousa  
passar de uma teoria astuta a uma prática implacável” (Marx, 2010a, p. 149) aquela  
“situação antiga, apodrecida, contra a qual essas nações se rebelam teoricamente e  
que apenas suportam como se suportam grilhões” (Marx, 2010a, p. 149). Isto é, aquilo  
que se via na Alemanha como um progresso, algo de propositivo, a ‘moderna  
sociedade civil-burguesa’, já mostrava-se podre e caduco. O que a Revolução Gloriosa  
havia consolidado na Inglaterra no século XVII e que a Revolução Francesa havia  
consumado na França no século XVIII havia efetivamente sido revolucionário naquele  
momento, pois significou a dissolução das relações feudais e possibilitou que a  
sociedade civil burguesa se colocasse sob seus próprios pés (Marx & Engels, 2005),  
mas que em 1840 já era uma situação apodrecida, contra a qual esses países se  
rebelavam teoricamente e suportavam como grilhões. Ali os direitos naturais do  
homem foram efetivamente uma “força explosiva revolucionária” (Lukács, 2015, p.  
169), eis que possuíram diretamente função na derrubada dos alicerces da velha  
sociedade feudal.  
Diante do apelo do czar aos ‘direitos naturais’ do campesinato, não nos escapa  
o paralelo da miséria russa com a miséria alemã. Todavia, na Rússia de 1858, a coisa  
se colocava de forma ainda mais cômica que na Alemanha de 1843. Dez anos depois  
de 1848 quando a Europa havia sido varrida uma revolução, a arma da crítica havia  
se tornado a crítica da arma, a teoria havia se tornado força material apropriando-se  
das massas e o comunismo havia se tornado uma ameaça real à sociedade civil-  
burguesa o czar dizia ser tempo da Rússia chegar a 1789. E isso tudo assume uma  
nova dimensão quando consideramos que, a partir da atuação do Estado russo de  
modo a trazer a Rússia a 1789 e consolidar ali relações burguesas, a comuna agrária  
russa seria levada à decomposição a qual, uma vez desenvolvida a partir da  
apropriação das riquezas engendrada pelo capitalismo, possuía o potencial de  
possibilitar a transição da Rússia para uma sociedade comunista sem a necessidade  
de que a Rússia se tornasse capitalista (cf. Marx, 2013). Não só o czar buscava  
consolidar na Rússia algo que já demonstrava claros sinais de apodrecimento, mas  
com isso ele progressivamente destruía a melhor chance que um povo já teve de  
construir uma forma de sociabilidade superior, isto é, a comunista (Marx, 2013, p. 54).  
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Referimo-nos aqui ao posicionamento defendido por Marx em 1881 em resposta à  
carta de Vera Zasulitch, em que o autor defende a possibilidade de revolucionar a  
Rússia a partir da comuna agrária russa possibilidade que inclusive dependeria da  
supressão do Estado e do Direito russos, conforme já adiantado (Marx, 2013). Ali o  
autor de O Capital fala no fato de a obschina ter sobrevivido com tanta vitalidade até  
um momento em que não só era contemporânea ao modo de produção capitalista,  
mas o encontrava em um momento de crise, de maneira que era possível a apropriação  
das riquezas engendradas pelo modo de produção capitalista no Ocidente (isto é, do  
desenvolvimento de forças produtivas).  
Ela poderia assim, “incorporar as conquistas positivas realizadas pelo sistema  
capitalista sem passar por seus forcados caudinos’” (Marx, 2013, p. 91), isto é,  
apropriar dos desenvolvimentos materiais proporcionados pelo capitalismo sem que  
fosse necessário ela mesma se submeter ao regime capitalista, podendo então “tornar-  
se o ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade  
moderna e trocar de pele sem precisar antes cometer suicídio.” (Marx, 2013, pp. 91-  
92). No entanto, para que isso fosse possível, era necessário antes de tudo colocar a  
obschina em condições normais, isto é, retirá-la do estado sufocado e anêmico em que  
se encontrava desde a emancipação dos servos graças ao Estado russo e a carga  
tributária exorbitante que recaía sobre o camponês e aos ramos do capitalismo  
ocidental que foram impulsionados pelo Estado russo. Assim, fazia-se necessária a  
uma revolução russa para salvar a comuna agrária russa e colocá-la sob condições  
normais, o que necessariamente envolveria a supressão do Estado.  
Dessa maneira, se na Revolução Francesa os direitos naturais possuíram uma  
força explosiva revolucionária(Lukács, 2015, p. 169), demarcando um rompimento  
com a feudalidade e com os privilégios e o nascimento da moderna sociedade civil-  
burguesa, aqui, em 1858 na Rússia não havia qualquer traço disso o Direito e o  
Estado possuem na Rússia naquele momento uma função absolutamente regressiva.  
Na Inglaterra e sobretudo na França, os direito não posto (direito natural) atuou  
ativamente na tragédia vivida pelo Ancien Régime naqueles países (Marx, 2010a, p.  
148). Na Rússia, foi um dos protagonistas de sua comédia.  
Entretanto, se em 58 Alexandre II acreditava ser hora da Rússia chegar ao  
menos ao 1789 da França, a nobreza russa sequer não tinha certeza nem disso ela  
bem gostaria de retornar a 1789 na Rússia. Se o século XVIII foi a Era de Ouro da  
nobreza russa, na metade do XIX ela enfrentava um tempo de dificuldades. Marx estima  
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que 90% da nobreza russa estava profundamente endividada com os bancos de  
crédito, os quais, por sua vez, eram instituições da Coroa, de forma que a nobreza  
também devia indiretamente ao Estado (Marx, 2010b, p. 143). A soma total dessa  
dívida chegava a 400 milhões de rublos de pratas, sendo que cerca de 13 milhões de  
servos estavam dados de garantia para esses empréstimos. (Marx, 2010b, p. 143)  
Para piorar, uma das principais formas de ganhos da nobreza constituía ou em vender  
a força de trabalho de seus servos ou em permitir que seus servos se locomovessem  
livremente e ganhassem a vida como quisessem em troca de um pagamento anual  
(obrok) (Marx, 2010b, p. 142). Além disso, ainda que os itens VI e IX no relatório  
assegurasse que os nobres ainda seriam os senhores dos camponeses recém libertos  
que vivessem em suas propriedades e manteriam assim um certo grau de jurisdição  
sobre os camponeses, o fim da servidão significava o fim da possibilidade de extorsão  
livre e desinibida praticada pelos senhores contra seus antigos servos, extortions by  
which a large portion of the Russian nobility have scraped together the means to keep  
fashionable lorettes in Paris and to gamble at German watering places32 (Marx, 2010b,  
p. 142). Isso na medida que com a emancipação, os servos ganhariam os direitos de  
todos os outros cidadãos russos, significando inclusive que poderiam então ajuizar  
ações contra seus senhores e testemunhar contra eles, algo que antes a um servo não  
era permitido (Marx, 2010b, p. 142). Isso tudo sem mencionar o fato de que o projeto  
do czar para a emancipação previa a alocação de terras aos servos libertos, as quais  
deveriam ser dadas pelo ex-senhor dos servos em questão terras que esses  
camponeses já ocupavam, sim, mas o faziam sob o controle dos nobres e em troca de  
serviços e obrigações estipuladas exclusivamente por eles; com a emancipação, os  
camponeses ocupariam aquelas terras conforme determinação do Estado, com as taxas  
e serviços estipuladas pela lei.  
A emancipação significava, pois, uma enorme perda material para a nobreza e  
uma séria perda do poder político exercido pela aristocracia russa. A nobreza se  
recusava a celebrar o 4 de agosto e o czar informava-lhes abertamente que seriam  
compelidos a fazê-lo o czar exigia-lhes que abrissem mão resignadamente de  
grande parte de seus ganhos, além de regular o restante de seus ganhos de forma  
que não só os limitaria, mas também manteria baixo o limite em questão.  
E assim eles o fizeram. Naquele ano de 1858, Alexandre II fez várias viagens  
32  
Extorsões por meio das quais uma larga porção da nobreza russa juntou os meios para manter  
elegantes lorettes [prostitutas] em Paris e apostar nas termas alemãs. (tradução livre)  
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pelas províncias russas, dirigindo-se aos seus nobres com arengas que ora assumiam  
roupas filantrópicas, ora assumiam a forma de exposições didáticas com o fim de  
persuadir, ora assumiam o tom agudo de ameaça e comando (Marx, 2010b, p. 144).  
Embora não ousasse dirigir a palavra negativa ao czar e resistir aberta e  
eloquentemente às propostas do czar, a nobreza respondeu de forma negativa aos  
sentimentos do czar com silêncio e inatividade. O czar esperava que a nobreza ecoasse  
suas palavras, que aplaudissem seus sentimentos e que se pusessem em movimento.  
Ao invés disso, a nobreza manteve-se quieta e adotou como política de seus comitês  
a procrastinação. Pouco tempo depois, o Comitê de Nobres interrompeu esse silêncio.  
Os membros do comitê redigiram nada menos que uma “petição de direitos” — Marx  
alude à petition of rights apresentada pelo Parlamento a Carlos I em 1628 , exigindo  
um parlamento de nobres para que pudessem discutir com o governo não só a questão  
da servidão, mas toda ordem de questões políticas. Dessa forma, assim como a  
nobreza francesa fez em 1788 convocando a Assemblée des Etats généraux, a nobreza  
russa exigia a convocação de uma Semski Sobor ou Semskaja Duma (Marx, 2010b, p.  
145). Com isso, movida pelo interesse de manter a antiquada base social da pirâmide  
a servidão e os privilégios da nobreza dela decorrentes a própria nobreza  
atacava o ponto de gravitação política dessa pirâmide, o caráter despótico do Estado  
russo. Contudo, essa pequena convulsão da nobreza não teve nenhum fruto muito  
significativo, não tendo sequer sido criado o órgão que a nobreza exigiu e toda  
tentativa posterior por parte da nobreza de manifestar sua oposição ao czar foi  
abafada ou suprimida e tudo ocorreu par ordre du moufti33 (Marx, 2020, p. 100),  
segundo a vontade de Alexandre II.  
Passemos ao outro lado da questão os próprios servos.  
Como Marx bem nota, 1858 não fora a primeira vez que um czar conjurava a  
fata morgana na emancipação diante dos servos. Tanto o pai de Alexandre II, Nicolas  
I, quanto o tio, Alexandre I, fizeram-no. Logo no começo de seu reinado, Alexandre I  
tentou convocar a nobreza à emancipação dos servos e foi recebido com a mesma  
frieza e resistência que seu neto seria anos depois. Em 1812, Alexandre I trouxe  
novamente à tona a questão da libertação dos servos, quando se passou a conceder  
liberdade aos servos que lutassem na Narodnoe Opolchenie [milícia popular] contra a  
invasão francesa se não de forma oficial, ao menos com o consentimento tácito do  
33 Segundo a vontade do moufti. (tradução livre)  
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imperador , na medida que the men who had defended Holy Russia could no longer  
be treated as slaves34 (Marx, 2010b, p. 145). Entretanto, a no reinado de Alexandre  
I questão não avançou mais do que em casos isolados de emancipação.  
Morre Alexandre I em novembro de 1825 e em dezembro assume seu irmão  
mais novo, o grão-duque Nicolas. Apesar do susto que foi o levante Dezembrista no  
primeiro dia de reinado do novo czar, durante seu reinado, Nicolas I fez diversos  
ukases que restringiam o poder dos nobres sobre os servos, avançando talvez no  
sentido de emancipar os servos. Em 1842, um ukase imperial passou a permitir que  
os servos celebrassem contratos com seus proprietários acerca dos serviços que  
aqueles deveriam prestar a estes, o que admitia, ainda que indiretamente, que os  
servos pudessem pleitear suas causas em juízo contra seus senhores (Marx, 2010b, p.  
145). Em 1844, foi baixado um ukase que comprometia o governo com a garantia do  
cumprimento das obrigações relacionadas aos contratos acima. Em 1846, um ukase  
passou a permitir que os servos comprassem sua liberdade caso a propriedade à qual  
estavam vinculados estivesse para ser vendida. Por fim, em 1847 passou a ser  
permitido que a corporação dos servos vinculados a uma propriedade que estivessem  
a venda pudesse adquirir tal propriedade. Esse impulso reformador de Nicolas I foi  
abruptamente interrompido em 1848. Quanto mais liberdade era dada aos servos,  
para grande espanto do czar e da nobreza, mais aqueles se demonstravam prontos  
aproveitar de sua nova condição: o servos passaram a adquirir propriedade atrás de  
outra e em muitos casos, os nobres haviam se tornado apenas proprietários no nome,  
tendo sido liberados de suas dívidas pelo dinheiro de seus servos, os quais, por sua  
vez, haviam se assegurado de sua liberdade e da propriedade das terras (Marx, 2010b,  
p. 146).  
Diante dessa demonstração de grande inteligência e energia por parte dos  
camponeses eles estavam gradualmente retirando a nobreza de suas terras e se  
consolidando como seus donos e atemorizado pelas revoluções que eclodiam na  
Europa em 48, as quais tornaram Nicolas um ansioso adepto ao conservadorismo,  
Nicolas I fez logo questão de recuar e aniquilar as liberdades que haviam sido  
concedidas. Ukase por ukase, Nicolas I fez questão de virtualmente anular os atos  
anteriores e quebrar qualquer esperança de emancipação. Primeiro, em março de 1848  
o czar estendeu o direito de compra que antes pertencia somente às associações de  
34  
Os homens que haviam defendido a Santa Rússia não poderiam mais ser tratados como escravos.  
(tradução livre)  
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servos aos servos individuais, de modo a enfraquecer ou até mesmo quebrar as  
associações que existiam nas vilas camponesas e entre as vilas de um dado distrito,  
impossibilitando que os servos concentrassem capital suficiente para adquirir as terras  
(Marx, 2010b, p. 146).  
Ademais, foi estabelecido que toda a transação estava condicionada à  
autorização do antigo senhor, bem como que os servos poderiam adquirir as terras  
dos nobres, mas não as pessoas vinculadas a elas, significando, portanto, que os  
servos não mais poderiam adquirir sua liberdade por meio da compra das terras às  
quais estavam vinculados: pelo contrário, ao comprarem as terras (o que só ocorreria  
por meio da autorização de seus antigos mestres, reduzindo a possibilidade de toda  
a transação efetivamente ocorrer), esses camponeses permaneceriam servos (Marx,  
2010b, p. 146). Não bastasse, o ukase de março de 1848 indiretamente autorizou e  
até mesmo encorajou que os nobres cujas propriedades estavam, por assim dizer, in  
trust of their serfs35 (Marx, 2010b, p. 146) quebrassem essa “confiança” e  
recuperassem a posse de suas terras, tendo sido toda reclamação levada pelos servos  
contra os nobres excluídas das cortes. Assim, as terras que as associações de servos  
conseguiram adquirir autorizados pelo ukase de 1847, isto é, autorizados pela lei,  
foram, também com base na lei (ukase de 1848), pouco tempo depois retomadas pelos  
nobres. De 1848 a 1853, Nicolas I fez questão de estraçalhar as esperanças de  
liberdade que ele mesmo havia incitado nos servos. Seria só com a Guerra da Crimeia  
(1853-1856) que as esperanças de emancipação foram reacesas, quando as  
necessidades da guerra exigiram o armamento dos servos e Nicolas I se viu forçado  
renovar as promessas de abolição (Marx, 2010b, p. 146).  
Depois desses antecedentes, não havia como Alexandre II não se sentir  
compelido a tratar com seriedade a questão dos servos só sabe o bom Deus o que  
teriam feito os camponeses russos se mais uma vez vissem estilhaçadas as promessas  
que lhes foram feitas de emancipação. Mas isso não significaria que o camponês russo  
se contentaria com a abolição nos termos que o czar propunha. Afinal, a história russa  
nos mostra que o campesinato russo não era o “saco de batatas” que fora grande  
parte do campesinato francês em 1848-1851 (Marx, 2011, p. 142)36: foi o terror das  
insurreições camponesas que haviam se tornado uma epidemia na Rússia desde 1842  
e que haviam se agravado desde a Guerra da Crimeia (Marx, 2010b, p. 147) que  
35 Colocados sob a confiança dos servos. (tradução livre)  
36 Importante deixar claro que tampouco era todo o campesinato francês um ‘saco de batatas’.  
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tornaram impossível a Alexandre II postergar a questão da abolição. Marx aponta que  
de acordo com estatísticas oficiais do Ministério do Interior russo, algo cerca de  
sessenta nobres eram assassinados anualmente por camponeses. Robinson (1932, p.  
49) aponta que nos trinta e cinco anos antecedentes à Emancipação de 1861, foram  
registradas quase mil e duzentos casos de insubordinação dos servos em propriedades  
da nobreza, as quais envolviam não alguns servos isolados, mas grupos de servos,  
vilas inteiras e até mesmo um conjunto de vilas camponesas vizinhas. Alexandre  
Herzen fala ainda sobre como a primeira metade do século XIX foi marcada por um  
significativo aumento do ”número de processos contra incendiários, a frequência de  
assassinatos de proprietários de terras, as revoltas camponesas” (Herzen, 2013, p.  
166) e como o governo russo fazia de tudo para encobrir o fato de que por toda a  
Rússia a insatisfação do camponês estourava em violência, dizendo que “poucos  
sabem o que está ocorrendo sob a mortalha com que o governo encobre cadáveres,  
manchas de sangue e execuções, anunciando, hipócrita e desdenhosamente, que ali  
não tem cadáveres, nem sangue” (Herzen, 2013, p. 166).  
Em função dessa fúria que movia os servos russos, Marx indagava  
What will the peasantry say to a twelve years probation, accompanied  
by heavy corvées, at the end of which they are to pass into a state  
which the Government does not venture to describe in any particular?  
What will they say to an organization of communal government,  
jurisdiction and police, which takes away all the powers of democratic  
self-government, hitherto belonging to every Russian village  
community, in order to create a system of patrimonial government,  
vested in the hands of the landlord, and modeled upon the Prussian  
rural legislation of 1808 and 1809? a system utterly repugnant to  
the Russian peasant, whose whole life is governed by the village  
association, who has no idea of individual landed property, but  
considers the association to be the proprietors of the soil on which he  
lives.37 (Marx, 2010b, p. 147)  
Com razão, Marx avalia que os termos da emancipação seriam absolutamente  
inaceitáveis aos servos que nas últimas décadas antes da emancipação haviam  
invadido tantas casas senhoriais e assassinado seus senhores em nome da liberdade  
37 O que dirá o campesinato a um período condicional de doze anos, acompanhado de pesadas corveias,  
no fim da qual eles passarão a um estado sobre o qual o governo não se aventura a descrever nada em  
particular? O que dirão a uma organização de administração, jurisdição e polícia comunais que retira  
todos os poderes democráticos de auto-governo, até então pertencente a toda comunidade camponesa  
russa, de forma a criar um sistema de administração patrimonial investido nas mãos do proprietário de  
terras e modelado a partir da legislação rural prussiana de 1808 e 1809? um sistema absolutamente  
repulsivo ao camponês russo, cuja vida inteira é governada pela associação da vila, e que não tem  
qualquer concepção de propriedade individual da terra, mas considera ser a associação a proprietária  
do solo em que ele vive. (tradução livre)  
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e da terra, de modo que ele previa ser inevitável uma tremenda conflagração entre a  
população rural russa (Marx, 2010b, p. 147). Isso porque, em primeiro lugar, apesar  
de todas as promessas do czar de liberdade, de devolver aos servos seus direitos  
naturais, de não exigir dos servos nada em troca da emancipação, os servos não  
teriam liberdade imediata, pois ficariam sujeitos aos seus antigos senhores por um  
período de obrigação provisória, durante o qual ainda teriam corveias a pagar aos  
nobres. Ou seja, durante esse tempo, a situação concreta do camponês em  
pouquíssimo se diferenciaria de como se encontrava quando ainda era servo. E sabe-  
se ainda que esse período de obrigação temporária acabou durando para a maioria  
dos servos mais que 12 anos, pois só terminaria quando o servo pagasse todas as  
obrigações que devia ao nobre, isto é, depois que completasse o pagamento do seu  
resgate (Robinson, 1932).  
Além disso, para não despir os nobres totalmente de sue poder sobre o  
camponês, com a emancipação o governo russo reformava completamente a  
organização das comunidades camponesas, introduzindo uma forma de administração  
que era totalmente alheia ao camponês russoe submetendo-a totalmente à autoridade  
dos nobres, que poderiam reverter ou modificar as resoluções tomadas pela  
comunidade camponesa. Como explica Marx, toda a vida dos camponeses russos era  
regida pela comunidade da vila e eles não possuíam a idea of individual landed  
property, but considers the association to be the proprietors of the soil on which he  
lives38 (Marx, 2010a, p. 147), de maneira que a tentativa do governo de introduzir  
um modelo de organização do campo que retirava da comunidade da vila o poder de  
decidir sobre as questões do camponeses, além de introduzir uma organização  
baseada na propriedade privada da terra (ideia totalmente alheia ao mujique),  
fatalmente não seria bem aceita39. E tudo isso se agravava no coração do camponês  
pelo fato de que estavam absolutamente convencidos e se guiavam por essa  
convicção de que o czar, o batiushka [querido pai ou paizinho] do povo russo (Keep,  
1982, p. 48), estava por eles, mas que era impedido de avançar na libertação dos  
servos (Marx, 2010a, p. 147).  
38  
Ideia de propriedade individual, mas considera a associação de proprietários do solo em que vive.  
(tradução livre)  
39  
Em 1881 Marx retomaria essa ideia em seus rascunhos para resposta à carta escrita a ele pela  
revolucionária russa Vera Zasulitch, nos quais o autor de O Capital discute o futuro da comuna agrária  
russa e seus potencial de servir de base para a transformação da sociedade russa. Nesses esboços, o  
autor renano retoma como o camponês russo nunca foi proprietário da terra que cultivava.  
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Sobre tudo isso, Marx conclui que  
the Emperor, tossed about between state necessity and expediency,  
between fear of the nobles and fear of the enraged peasants, is sure  
to vacillate; and the serfs, with expectations worked up to the highest  
pitch, and with the idea that the Czar is for them, but held down by  
the nobles, are surer than ever to rise. And if they do, the Russian  
1793 will be at hand; the reign of terror of these half-Asiatic serfs will  
be something unequaled in history; but it will be the second turning  
the point in Russian history, and finally place real and general  
civilization in the place of that sham and show introduced by Peter the  
Great.40 (Marx, 2010b, p. 147)  
Embora essa hipótese não tenha se concretizado da forma como o autor renano  
aqui propôs, não podemos ignorar como aqui é evidente para Marx o potencial  
revolucionário do camponês russo. Embora o autor aqui ainda não coloque a  
perspectiva de uma revolução propriamente comunista, uma vez ele traz o  
campesinato russo atuando de forma semelhante aos jacobinos na França  
revolucionária, que deram o golpe fatal na velha sociedade feudal francesa e  
possibilitaram que a sociedade civil burguesa se colocasse sobre seus pés, Marx trata  
aqui de um real potencial que uma revolta camponesa teria de transformar  
radicalmente a sociedade russa, de retirá-la da estagnação na qual era mantida pelas  
velhas estruturas e de lançá-la a um novo momento de sua história. Isso se torna ainda  
mais interessante quando trazemos o já aludido posicionamento defendido por Marx  
em 1881 em resposta à carta de Vera Zasulitch, em que o autor defende a  
possibilidade de revolucionar a Rússia a partir da comuna agrária russa.  
Sobre a reação dos servos à forma como se propunha a emancipação, em certa  
medida Marx também estava correto. De fato, os servos não se contentaram com os  
termos de sua emancipação e nos quatro meses seguintes à Emancipação, foram  
registradas mais de 600 revoltas camponesas movidas por rumores de que uma  
emancipação mais completa fora planejada pelo czar, mas que teria sido escondida  
dos camponeses pelos nobres (Robinson, 1932). Todavia, essas revoltas foram logo  
suprimidas e não se desenvolveram em algo maior do que insurreições isoladas.  
Contudo, a sociedade russa realmente sofreu transformações profundas a partir das  
40 O imperador, jogado entre necessidade do Estado e expediência, entre medo dos nobres e medo dos  
camponeses enfurecidos, certamente vacilará; e os servos, com expectativas levadas até o ápice, e com  
a ideia de que o czar é por eles, mas é impedido pelos nobres, certamente se insurgirão. E se o fizerem,  
o 1793 russo terá chegado; o reinado de terror desses servos maio-asiáticos será algo sem precedentes  
na história; mas será o segundo ponto de inflexão na história russa, e finalmente implementará uma  
civilização real e geral no lugar da farsa introduzida por Pedro, O Grande. (tradução livre)  
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reformas do czar, embora não da forma ou no sentido que Marx propôs em 1858 —  
pelo contrário. Depois da emancipação, os ex-servos foram lançados em uma situação  
de miséria que em alguns casos chegavam a ser pior do que antes da abolição, tanto  
em razão do pagamento do preço de resgate que foram obrigados a pagar por sua  
liberdade e pelas terras que lhes foram concedidas, quanto pela pesada carga  
tributária que recaía sobre os camponeses por exemplo, comparando a quantidade  
de tributos pagos pelos nobres na década de 1870 e o que os camponeses pagavam  
aos Estado russo, o total de tributos pagos pela nobreza era cerca de um décimo  
daquilo que os camponeses deviam ao Estado (Robinson, 1931, p. 95).  
Em seus cadernos dedicados ao estudo da situação russa depois da Reforma  
de 1861, Marx aponta que a maior parte do orçamento do Estado russo em 1864 era  
proveniente de impostos sobre os camponeses (117 milhões de rublos de impostos  
diretos e 231 milhões de rublos de impostos indiretos) (Marx, 2020, p. 120). Para  
arcar com a enorme carga de suas obrigações, muitos camponeses se viam forçados a  
complementar seus ganhos de outras formas, como a venda de sua força de trabalho,  
pois era impossível cumprir com todos os pagamentos apenas com seus ganhos  
advindos da atividade agrícola (Robinson, 1932).  
Ademais, Marx aponta em seus cadernos que o nadel concedido aos  
camponeses ou era de tamanho insuficiente o que ocorria com frequência nas férteis  
terras negras, pois quanto mais fértil era a terra, menores eram os lotes de terras  
concedidos aos camponeses ou era de baixa fertilidade, de modo que se viam  
forçados a arrendar terras ou recrutar mão de obra assalariada, fazendo com que os  
conflitos de interesses inerentes à obschina se aflorassem e se desenvolvessem,  
acelerando a decomposição da comuna agrária na medida que provoca a dissolução  
de seu elemento igualitário (cf. Marx, 2013). Isso sem mencionar que normalmente os  
lotes de terras não tinham áreas de pastagem ou floresta, fazendo com que os  
camponeses precisavam arrendar essas áreas de seus antigos senhores, mantendo-se  
economicamente dependentes destes (Marx, 2020, p. 108).  
Esses dados só arranham a superfície de como a forma pela qual o Estado russo  
emancipou os servos lançou os camponeses numa situação de miséria por ele próprio  
engendrada não só por meio da carga tributária colossal que recaia sobre os  
camponeses, mas também pelo incentivo dado pelo Estado aos “intrusos capitalistas”,  
que também passariam a viver da exploração do camponês , fazendo com que a  
comuna agrária russa, que até 1861 encontrava-se com bastante vitalidade, fosse  
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colocada numa situação de anemia extrema até que em 1881 estivesse quase extinta  
(Marx, 2013, p. 79) e, com isso, se esvanecesse a “melhor chance que a história já  
ofereceu a um povo” (Marx, 2013, p. 54) para desenvolver uma sociedade comunista.  
Assim, de um lado o czar se encontrava pressionado a fazer a questão da  
emancipação avançar por medo de ver o povo tomar a questão com suas próprias  
mãos. Por outro lado, o czar via seus avanços freados pela nobreza russa, que de  
forma alguma estava pronta a abrir mão dos privilégios associados à servidão. Em  
meio à essa perigosa situação, Alexandre II se via forçado a agir. Sobre esse contexto,  
em dezembro de 1859 Marx escreveu em uma carta a Engels que in Russia the  
movement is progressing better than anywhere else in Europe. On the one hand the  
constitutionalism of the aristocracy versus the Tsar, on the other of the peasants versus  
the aristocracy41 (Marx, 2010c, p. 522). Marx via nas agitações que estouravam na  
Rússia, na forte contradição que marcava as relações entre Estado, camponeses e  
aristocratas russos como sinais de uma revolução gestando no ventre da Rússia, onde  
na década de 50 as coisas se desenvolviam mais rápido que em qualquer outro lugar  
na Europa. Nota-se, contudo, que Marx não atribui propriamente às ações do czar e  
do Estado russo a rapidez com que as coisas mudavam na Rússia, sim à tensão entre  
os principais elementos sociais russos, a qual os planos do czar de abolir a servidão  
somente alimentava essa tensão já existia ali, tendo inclusive o czar por elas tenha  
sido forçado a avançar com a questão da emancipação. Em razão disso tudo, Marx  
escreve a Engels que “come the next revolution and Russia will oblige by joining in”42  
(Marx, 2010c, p. 522) viesse a próxima revolução, escrevia Marx, e a Rússia não  
desempenharia a mesma função que teve em 1848.  
Em janeiro de 1861, Marx escreve à Engels expressando as mesmas convicções  
de dezembro de 1859. Ele escreve a Engels que In my view, the most momentous  
thing happening in the world today is the slave movementon the one hand, in  
America, started by the death of Brown, and in Russia, on the other43 (Marx, 2010d,  
p. 4). O autor renano considerava, portanto, que o desenvolvimento da questão dos  
servos na Rússia junto com a questão dos escravos norte-americanos eram os dois  
41  
Na Rússia, o movimento está progredindo melhor do que qualquer outro lugar na Europa. De um  
lado, o constitucionalismo da aristocracia versus o czar, do outro, os camponeses versus a aristocracia.  
(tradução livre)  
42 Venha a próxima Revolução, a Rússia irá atender juntando-se. (tradução livre)  
43  
A meu ver, a coisa mais momentosa acontecendo no mundo nesse momento é o movimento  
escravagista em uma mão, na América, começado pela morte de Brown, e na Rússia, de outra.  
(tradução livre)  
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eventos mais relevantes naquele momento. Marx via na forma como a questão dos  
servos movia na Rússia na década de 1860, com revoltas camponesas eclodindo por  
toda a Rússia, como um dos principais desenvolvimentos que ocorria no mundo  
naquele momento: na Rússia, país em que a servidão havia subsistido por tanto tempo  
e que era a base de toda sua ordem vigente, os servos estavam sendo emancipados e  
isso inevitavelmente levaria a profundas transformações naquele país retrógrado —  
quem sabe, até mesmo uma revolução. Sobre isso, Marx continua:  
You will have read that the aristocracy in Russia literally threw  
themselves into constitutional agitation and that two or three  
members of leading families have already found their way to Siberia.  
At the same time, Alexander has displeased the peasants, for the  
recent manifesto declares outright that, with emancipation, 'THE  
COMMUNISTIC PRINCIPLE' must be abandoned. Thus, a 'social'  
movement has been started both in the West and in the East. Together  
with the impending DOWNBREAK in Central Europe, this promises  
great things.44 (Marx, 2010d, p. 4)  
Assim, Marx considerava que toda a questão da servidão as ações do Estado,  
que claramente não levavam em consideração os interesses ou o bem estar dos servos  
emancipados; a reação constitucionalista da aristocracia, que atacava o “ponto de  
gravitação político” de toda a estrutura da sociedade russa; a inquietação polvorosa  
dos servos insatisfeitos com a forma como a abolição era promovida eram sinais de  
que eram iminentes e profundas transformações na Rússia. Tanto no Oeste, com as  
movimentações relativas à escravidão norte americana, quanto no Leste, com as  
movimentações da abolição da servidão na Rússia iniciavam-se movimentos ‘sociais’,  
no sentido de que eram iminentes profundas mudanças nessas sociedades,  
possivelmente uma revolução.  
Conclusão  
Ainda que de forma alguma objeto do presente artigo tenha sido exaurido, foi  
aqui exposto em linhas gerais o papel do Estado e do Direito russos na abolição da  
servidão na Rússia e o que Marx teve a dizer sobre esse papel. Tendo sido abolida a  
servidão russa por meio de uma reforma conduzida pelo Estado, seu escopo foi  
44  
Você terá lido que a aristocracia na Rússia literalmente se jogou em uma agitação constitucional e  
que dois ou três membros de famílias importantes já encontraram seu caminho para a Sibéria. Ao mesmo  
tempo, Alexander desagradou os camponeses, pois o manifesto recente declara diretamente que, com  
a emancipação, o “PRINCÍPIO COMUNISTA” deverá ser abandonado. Assim, um movimento ‘social’  
começou tanto no oeste quanto no leste. Junto do colapso iminente na Europa Central, isso promete  
grandes coisas. (tradução livre)  
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Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão na Rússia  
extremamente limitado, tendo seus resultados beirado a catastróficos para o povo  
russo. Como Marx bem resume a situação, “Alexandre II estava decidido desde o início  
a dar aos proprietários tanto quanto possível e aos camponeses tão pouco fosse  
possível” (Marx, 2020, p. 100).  
Ficou claro também que a emancipação dos servos foi executada em 1861 por  
Alexandre, “o Libertador” sem qualquer propósito real de realmente emancipar os  
servos, dado que a situação que fora legada o czar por seus antecessores era uma  
insustentável, tendo se tornado imperativo o Estado abolir a servidão de modo a evitar  
que os servos se emancipassem por suas próprias mãos. Também se evidenciou a  
ausência de qualquer função progressista do Estado e do Direito na Rússia, pois não  
só aquilo que era almejado pelo czar era o desenvolvimento de relações que na Europa  
já evidenciavam seu estado de decrepitude e apodrecimento absolutos, mas também  
a forma como se libertou os camponeses da servidão somente os lançou em uma nova  
situação de miséria aguda. Apesar de Marx não ver nas ações do Estado russo qualquer  
caráter efetivamente progressista, também ficou claro como para Marx havia naquele  
momento na Rússia um real potencial para a transformação daquele país,  
possivelmente de forma revolucionária, potencial esse que o autor renano considerava  
ser possível de ser realizado pelos camponeses russos.  
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Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 433-464 jan.-jun., 2024 | 463  
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Como citar:  
SOUZA, Gabriella M. Segantini. Alexandre, o pequeno: Marx e a abolição da servidão  
na Rússia. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 433-464; jan.-jun., 2024.  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.717  
A crítica ao direito nos “assim chamados”  
Cadernos etnológicos de Karl Marx: os comentários  
a Henry Sumner Maine  
The criticism of Law on Karl Marx’s “so-called” Ethnological  
notebooks: the commentary on Henry Sumner Maine  
Ana Carolina Marra de Andrade*  
Resumo: Pretendemos analisar a crítica ao direito  
marxiana exposta nos comentários à obra  
Lectures on the early history of institutions, do  
jurista inglês Henry Sumner Maine, presentes nos  
"assim chamados" Cadernos etnológicos. Para  
tal, passaremos pela crítica de Karl Marx à teoria  
do direito de Maine, passando também por  
considerações sobre os juristas analíticos John  
Austin e Jeremy Bentham, nos quais o autor das  
Lectures se baseia fortemente. Em seguida,  
trataremos das críticas à concepção de Maine  
sobre a origem do Estado e do direito. Então,  
explicaremos como Marx se contrapõe a Maine  
voltando-se para o solo da história real, e assim  
analisa a gênese e o desenvolvimento direito na  
Irlanda e sua associação com a religião cristã,  
tanto antes quanto durante a colonização  
inglesa, observando também a violência por trás  
da imposição das leis coloniais.  
Abstract: We intend to analyze Karl Marx’s  
criticism of Law exposed in the comments to  
Lectures on the early history of institutions, by  
the English jurist Henry Sumner Maine, present  
in the "so-called" Ethnological notebooks. To do  
so, we will go through Karl Marx's criticism of  
Maine’s theory of law, also passing through  
considerations about the analytical jurists John  
Austin and Jeremy Bentham, upon whom the  
author of the Lectures heavily relies. Next, we  
will deal with the criticisms of Maine's  
conception of the origin of the State and law.  
Then, we will explain how Marx counters Maine  
by turning to the soil of real history, and thus  
examines the genesis and development of the  
Irish law and its association with Christianity,  
both before and during the English colonization,  
also noticing the violence behind the imposition  
of colonial Laws.  
Palavras-chave:  
Colonização; Irlanda; Cadernos etnológicos.  
Marx; Direito; Religião;  
Keywords: Marx; Religion; Colonization; Ireland;  
Ethnological Notebooks.  
I. Introdução  
No presente trabalho, pretendemos tratar da crítica ao direito nos comentários  
de Karl Marx ao britânico Henry Sumner Maine, mais especificamente da obra Lectures  
on the early history of institutions, originalmente publicada em 1874. Nosso objeto  
consiste nos “assim chamados”1 Cadernos Etnológicos de Karl Marx, um conjunto de  
* Graduada em direito pela UFMG, mestranda em direito pela UFMG. E-mail: anamarra7@gmail.com.  
1
Fazemos referência à expressão utilizada por Marx para tratar da “assim chamada acumulação  
primitiva” [ursprüngliche Akkumulation] em O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de  
produção do capital (cf.: MARX, 2017, p. 785). Utilizamos essa referência para ressaltar que o título e  
a seleção dos textos que compõem os Cadernos Etnológicos apresentam uma forte interpretação  
pessoal de seu organizador, Lawrence Krader, acerca de quais excertos foram selecionados e de qual  
Verinotio  
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Ana Carolina Marra de Andrade  
anotações deixadas por Marx nas quais são traçados comentários acerca dos autores  
Lewis Henry Morgan, John Budd Phear, Henry Sumner Maine e John Lubbock.  
Para dar início a nossa análise, é necessário compreender o caráter específico  
dos Cadernos, o momento em que eles foram escritos, a forma de anotações  
rascunhadas em que foram deixados, e as problemáticas envolvendo o contexto em  
que vieram a público (quase um século após a morte de Marx). Traduzidos e  
organizados por Lawrence Krader, foram publicados originalmente em 1972 com a  
denominação de Ethnological Notebooks, conforme escolhido pelo editor em razão de  
sua atribuição aos autores estudados pelo filósofo alemão enquanto escritores de  
etnologia que abordaram as temáticas de “pré-história, proto-história e história  
primitiva da humanidade, e o estudo etnológico de povos vivos” (KRADER, 1974, p. 2  
- tradução livre)2.  
Na década de 1970, próximo à publicação original dos Cadernos de Krader,  
também estavam sendo publicados os primeiros volumes advindos do resgate do  
projeto MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe), criado originalmente na Rússia pós-  
revolucionária, já na década de 1920, e interrompida na década de 1930, no que ficou  
conhecido como a MEGA-2, que visa à publicação de uma edição completa de todos  
os escritos deixados por Marx e Engels. Em 1990, surge o Internationale Marx-Engels-  
Stiftung (IMES), em Amsterdã, com o intuito de continuar as publicações da MEGA-2,  
e atualmente planeja-se finalizar todo esse longo trabalho de edição e, finalmente,  
publicar a obra completa dos autores até 20253.  
É notável que edição de Krader apresenta, no mínimo, uma escolha parcial,  
dado que ela contém aproximadamente metade das notas de Marx de 1879 a 1882  
sobre sociedades não ocidentais e pré-capitalistas, excluindo comentários que Marx  
traçou a textos de outros autores4 (cf. ANDERSON, 2019, p. 344). Na verdade, os  
comentários do mouro na época se estendem para muito além do recorte traçado na  
edição original. Segundo Anderson, que também é um dos editores da MEGA-2:  
seria o conteúdo e as supostas intenções da crítica marxiana. Nesse sentido, para uma análise mais  
objetiva, buscaremos atentar o leitor dessa intervenção de Krader, por mais que ocasionalmente também  
utilizemos simplesmente “os Cadernos” para referirmo-nos ao texto em questão. Álvares (2019) também  
utiliza a expressão “assim chamados Cadernos Etnológicos” com sentido semelhante.  
2
“prehistory, proto-history and early history of mankind, and the ethnological study of living peoples”  
(KRADER, 1974, p. 2).  
3
Cf.: Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA). Disponível em: <https://mega.bbaw.de/de>. Acesso em  
01/02/2022  
4
Krader chega a mencionar em sua Introdução que Marx também estudou Georg L. Maurer and Maxim  
M. Kovalévski (cf. KRADER, 1974, p. I).  
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A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos etnológicos de Karl Marx  
Os cadernos restantes, alguns ainda inéditos em qualquer língua,  
dizem respeito às anotações de Marx sobre o estudo do antropólogo  
russo Maksim Kovalévski acerca da propriedade comunal nas  
Américas, na Índia e na Argélia, sobre a história indiana, baseadas em  
um livro do funcionário público colonial Robert Sewell, sobre os  
escritos dos historiadores sociais alemães Karl Bücher, Ludwig  
Friedländer, Ludwig Lange, Rudolf Jhering e Rudolf Sohm acerca de  
classe, status e gênero em Roma e na Europa medieval, sobre o estudo  
do advogado britânico J. W. B. Money acerca da Indonésia (Java), sobre  
novas obras de antropologia física e paleontologia, sobre estudos da  
língua russa da Rússia rural e, finalmente, sobre a interferência inglesa  
no Egito na década de 1880. Incluindo aquelas previamente  
publicadas por Krader, essas notas totalizariam mais de oitocentas  
páginas impressas (ANDERSON, 2019, pp. 344-345).  
Desse modo, na realidade, as anotações da época não se restringem aos  
supostos “etnólogos” Morgan, Phear, Maine e Lubbock, e se estendem a comentários  
sobre Maksim Kovalévski, Karl Bücher, Ludwig Friedländer, Ludwig Lange5, Rudolf  
Jhering, Rudolf Sohm e J. W. B. Money. Os escritos sobre Kovalévski foram publicados  
por Hans-Peter Harstick em 1977 junto com os demais excertos da edição de Krader  
em uma edição boliviana denominada Escritos sobre la comunidad ancestral (editores:  
Silvia de Alarcón e Vicente Prieto)6. A previsão para a publicação integral dos  
comentários marxianos é no Volume IV/27 da MEGA com o título Antropologia,  
sociedades não-ocidentais, gênero e história da propriedade da terra.  
Nesse sentido, os assim chamados Cadernos Etnológicos são fruto de uma  
edição baseada nas preferências pessoais de Krader, que fez um recorte dentre o  
material existente ao qual imputou etnológico, ainda que os autores comentados por  
Marx não se autodenominam como tal. Ademais, também ressaltamos que a  
denominação cadernos talvez não seja a mais adequada, tratando-se de anotações  
marginais, comentários rascunhados que não chegaram sequer a integrar um  
manuscrito ou rascunhos, não podendo ser equiparáveis aos Manuscritos econômico-  
5 Heather Brown (2012) já teve acesso à parte do projeto não-publicado da MEGA relativa aos escritos  
de Marx sobre a obra Römische Alterthümer, de Ludwig Lange, e traça comentários relevantes em um  
dos capítulos de sua obra Marx on gender. Ela afirma que os comentários sobre Lange, ainda que  
escritos em 1879, antes das notas sobre Morgan, já apresentam algumas semelhanças com o argumento  
do norte-americano sobre o desenvolvimento da família à partir da gens. Segundo Brown, as notas  
sobre Lange exploram, em linhas gerais, o desenvolvimento das divisões de classe em Roma, de modo  
que uma parte significativa das citações trazidas por Marx tratam da evolução da família patriarcal  
patrícia até a família patriarcal plebeia, e a relação delas com o Estado. Vale ressaltar que, para Marx, o  
conceito romano de família é mais amplo que a atual família nuclear, incluindo todos os membros da  
casa (servos, escravos, etc.). A autora aponta que, como Maine, Lange entendia que a família patriarcal  
era a unidade primária das comunidades primitivas, e o mouro já traça duras críticas com relação a essa  
percepção, de forma coerente com a análise que faz do pensador inglês, conforme veremos mais à  
frente (cf. BROWN, 2012, pp. 199-200).  
6 Ver MARX, 2015.  
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filosóficos, à A Ideologia Alemã ou aos Grundrisse; e diferenciam-se também do  
formato de cartas enviadas pelo filósofo, muitas das quais também foram publicadas  
postumamente7.  
Marx está, aqui, muito mais como um leitor crítico que como um autor  
propriamente dito, e, apesar de Friedrich Engels expor que seu amigo, antes de falecer,  
tinha intenção de publicar os resultados de uma nova pesquisa sobre a história em  
conexão com sua pesquisa sobre Morgan (cf. ENGELS, 2019, p. 19), não temos  
qualquer outro registro de que Marx de fato pretendia escrever sobre as temáticas que  
veremos no presente texto, que se estendem para além dos comentários acerca de  
Ancient Society8. No entanto, como veremos, muito pode ser extraído através das  
bases do texto enquanto tal, por mais que existam uma série de lacunas advindas da  
falta de um posicionamento completo e estruturado.  
Essas anotações são de um estudo realizado por um Marx já maduro, durante  
seus últimos anos de vida, fase (1881-1883) em que é referido por alguns autores  
como “o velho Marx” (cf. MUSTO, 2018) ou “o último Marx” (cf. SHANIN, 2017),  
período logo antes de sua morte em março de 1883. Outro escrito extremamente  
relevante desse momento (1881) é a Carta a Vera Zasulich (com seus esboços), na  
qual Marx esboça respostas à correspondência enviada pela revolucionária acerca da  
possibilidade de uma revolução comunista a partir da comuna agrária russa. Em 1882,  
Marx também escreveu um prólogo à edição russa de O Manifesto do Partido  
Comunista, o qual “foi o último texto significativo (firmado por ele e por Engels)  
tornado público em vida de Marx”, ainda que sua atividade intelectual tenha  
prosseguido até poucas semanas antes do seu falecimento (NETTO, 2020, p. 484).  
A relevância de retornar a este texto hoje se coloca frente à ampla negligência  
com que é tratado, especialmente com respeito à crítica feita a Maine. Para Lucas  
Parreira Álvares, são quatro pontos centrais que explicariam o desmazelo com que a  
tradição marxista aborda a obra:  
1) a constatação do distanciamento que a forma rascunho desses  
Cadernos possuem em relação a outros escritos consagrados que  
incidiram no modo como esse autor teve sua importância reconhecida;  
7
Vale mencionar que discordamos parcialmente de Álvares (2019) quando ele trata dos Cadernos  
enquanto rascunhos, ainda que reconheça que não são equiparáveis a manuscritos ou cartas (cf.  
ÁLVARES, 2019, p. 15). Acreditamos que é mais prudente tratar dos Cadernos como anotações ou  
comentários críticos rascunhados, que como um rascunho que pode dar a ideia de uma primeira versão  
de um texto que poderia ser publicado.  
8 Para melhor compreensão acerca da recepção de Marx, bem como suas diferenças e semelhanças com  
a de Engels, da obra de Morgan, cf. ÁLVARES, 2019.  
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A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos etnológicos de Karl Marx  
2) sob o modo como são concebidos, os chamados Cadernos  
Etnológicos integralmente vieram a público tardiamente, no ano de  
1972, quando os textos “basilares” do pensamento marxiano já  
dispunham de um lugar consolidado nas estantes de livros dos  
intérpretes, simpatizantes e críticos das obras de Marx; 3) houve uma  
certa indisposição, por parte de alguns intérpretes marxistas, de  
investigar de modo original tal obra, aceitando fielmente as  
formulações desenvolvidas por parte do editor dos Cadernos  
Etnológicos, o antropólogo Lawrence Krader; 4) a existência de  
características singulares que compõem o corpo desses intitulados  
Cadernos Etnológicos, impondo esforços morosos àqueles que se  
atém a investigá-los (ÁLVARES, 2019, p. 17).  
Ou seja, essas anotações são negligenciadas muito em razão de sua publicação  
tardia, quando outros textos do Marx já haviam se consolidado como de maior  
importância, e muitos intérpretes acabaram se dispensando da dificuldade de se  
analisá-los, partindo, na melhor das hipóteses, somente da interpretação de Krader e  
não do texto original. Além disso, quando são resgatados, geralmente os Cadernos  
são tratados somente no recorte da crítica a Morgan, mais especificamente da obra  
Ancient Society (1977), o que se deve muito em razão do destaque dado por Friedrich  
Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, na qual coloca  
que:  
Ninguém menos que Karl Marx havia reservado para si a tarefa de  
expor os resultados das pesquisas de Morgan em conexão com os  
resultados de sua e, em certa medida, posso dizer nossa –  
investigação materialista da história e, desse modo, evidenciar toda a  
sua importância. Pois foi Morgan quem redescobriu na América do  
Norte a concepção materialista de história descoberta por Marx  
quarenta anos antes e, ao comparar barbárie com civilização, foi  
levado por ela, no que diz respeito aos seus pontos principais, aos  
mesmos resultados obtidos por Marx (ENGELS, 2019, p. 19).  
Se Engels, após o falecimento de seu amigo, realiza a tarefa de expor os  
resultados da “redescoberta da concepção materialista de história” de Morgan com  
maestria, ou se de fato há uma identidade entre o pensamento dos dois pensadores,  
são pontos que não aprofundaremos no presente trabalho9. O que pretendemos  
demonstrar é que existem pontos de grande relevância também nos comentários  
acerca de Maine que não devem ser menosprezados pela tradição marxista.  
Não obstante, sobretudo no âmbito da análise jurídica, a leitura da obra de Karl  
Marx no Brasil vem sendo bastante mediada pela interpretação de Evguiéni Pachukanis  
e sua principal publicação, Teoria geral do Direito e marxismo. Essa tradição da crítica  
9 Para aprofundar nesse debate, ver ÁLVARES, 2019.  
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marxista ao direito é encabeçada sobretudo por Márcio Naves e sucessores como  
Alysson Mascaro e Silvio Luís de Almeida, e também se assenta fortemente nas  
determinações da herança althusseriana (cf. SARTORI, 2020, p. 313), além de não se  
debruçar sobre os Cadernos. O próprio Pachukanis menciona Maine, apresentando-o  
como um “famoso historiador do direito”, porém o traz de forma acrítica, até certo  
ponto elogiosa, utilizando-se de citações do britânico como complementares a sua  
teoria geral (cf. PACHUKANIS, 2017, p. 157; p. 166; p. 169), por mais que não se  
aprofunde na análise das obras do britânico.  
Não é necessário esforço para demonstrar a importância dos estudos e  
reflexões de Pachukanis no século XX e nos marxismos posteriores. No entanto, há  
evidentes problemas em tomar a visão pachukaniana como um pressuposto na leitura  
dos textos marxianos, em especial na compreensão do Direito: Pachukanis não teve  
acesso aos Cadernos nem a outras grandes obras de Marx, dentre elas os Manuscritos  
econômico-filosóficos e os Grundrisse, nas quais podemos extrair uma série de  
determinações do próprio Marx acerca do direito ausentes no estudo do exitoso jurista  
russo, além de pouco se valer dos livros II e III de O Capital: crítica da economia  
política10, o que pode significar uma grande lacuna para a tradição brasileira da crítica  
ao Direito.  
Nesse sentido, ressaltamos mais uma vez a relevância da leitura da obra em  
questão. Maine, ainda que tenha caído no esquecimento ao longo do tempo, foi um  
acadêmico britânico de grande influência para a Europa do século XIX. Foi professor  
da Universidade de Cambridge e da Universidade de Oxford, chegando a ocupar o  
conselho do Governador-Geral da Índia no período de 1863 a 1869, e exerceu  
importante papel na codificação de leis do Raj britânico durante o período colonial.  
Ele é considerado, por vezes, um jurista, e outras, um etnólogo ou antropólogo, e  
talvez esteja situado entre essas duas áreas do conhecimento. Até hoje, ele é bastante  
retomado pela teoria do direito anglo-americana, ao lado de John Austin e Jeremy  
Bentham.  
Tentaremos, em nosso artigo, explicitar não somente as críticas de Marx à  
defesa que Maine faz do direito, mas também o posicionamento concreto de Marx tal  
como deixado para nós em suas anotações. Veremos como o mouro mantém, ao final  
de sua vida, uma postura decididamente crítica ao direito, ao Estado, à colonização e  
10 Ver SARTORI, 2021.  
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à religião, que aqui se colocam de forma bastante interconectada.  
Não obstante, tratando-se da análise dos Cadernos, o leitor pode se questionar  
acerca de um problema central. Como já avaliamos, nosso principal objeto de análise  
são meras anotações, comentários. O cientista político Kevin Anderson ressalta que  
Marx nunca publicou os resultados de suas pesquisas sobre sociedades não ocidentais  
e pré-capitalistas em seus últimos anos de vida, com a exceção de um prefácio a uma  
edição russa de 1882 do Manifesto do Partido Comunista, feita em coautoria com  
Engels (cf. ANDERSON, 2019, p. 343); ainda que a carta de resposta à Vera Zasulich  
tenha sido enviada, ela não foi publicada. Segundo Marcello Musto, o genro de Marx  
e militante socialista Paul Lafargue chegou a expor, após o falecimento de seu sogro,  
que ele “jamais publicou nada que não tivesse reelaborado várias vezes, até encontrar  
a forma adequada’ e que ‘preferia queimar seus manuscritos a publicá-los  
incompletos’” (MUSTO, 2018, p. 23).  
Ainda assim, defendemos a possibilidade de analisar o presente texto e extrair  
dele contribuições relevantes para a compreensão do pensamento de Marx acerca de  
vários tópicos distintos, em especial de sua crítica ao direito. Entendemos que nossa  
análise, nesse sentido, não pode ser outra que não a análise imanente, tal como  
proposta por José Chasin (2009) com base na crítica imanente lukácsiana, que se  
propõe a observar todo discurso em sua gênese, estrutura e função. Ou seja, trata-se,  
em linhas gerais, de compreender o contexto (histórico, geográfico, social) em que foi  
produzido; voltar-se ao conjunto das afirmações, conexões e suficiências que,  
objetivamente, o conformam; além de assimilar função específica que aquele discurso  
expressa na realidade. Como função, entendemos a utilidade, a aplicabilidade do texto  
frente à realidade efetiva, partindo do papel ativo das ideias como “co-protagonistas  
de qualquer efetivação humana, inclusive quando falsas” (CHASIN, 2009, p. 112),  
considerando que todo discurso sofre influência, mas também exerce influência na  
realidade.  
A “análise imanente” (LUKÁCS, 2020, p.11), ou “estrutural” (CHASIN, 2009, p.  
25) é um procedimento de rigor analítico pautado em encarar o texto a partir de sua  
consistência autossignificativa, “aí compreendida toda a grade de vetores que o  
conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões  
e suficiências, como também as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam”.  
Desse modo, pretendemos explicitar a posição de Marx, reproduzindo o “trançado  
determinativo de seus escritos, ao modo como o próprio autor os concebeu e  
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expressou” (CHASIN, 2009, p. 25).  
Para Ester Vaisman e Ronaldo Vielmi Fortes, em A Destruição da Razão:  
O procedimento analítico básico adotado por Lukács na investigação  
das obras da longa lista de autores compulsados é, como referimos  
acima, a análise imanente. Contrariamente ao que uma observação  
mais ligeira sobre a questão poderia denotar, não se trata de simples  
alinhavo de paráfrases ou de atulhamento do escrito com citações em  
grande quantidade, enumeradas acriteriosamente pelo intérprete de  
acordo com suas próprias crenças e convicções, mas procedimento  
investigativo de rigor que almeja identificar a estrutura categorial das  
obras, alvo da atenção do filósofo. Trata-se, enfim, de atitude de  
respeito ao texto, em que o intérprete se subordina ao sentido nele  
existente objetivamente. Que se trata de empreendimento de difícil  
execução, não resta a menor dúvida. Muito mais cômodo e fácil seria  
simplesmente atribuir ao material estudado o significado que  
subjetivamente o intérprete é capaz de formular, à revelia da própria  
tessitura significativa presente no escrito. Somente por meio da  
análise imanente do texto é que seria possível para Lukács a  
‘comprovação objetiva, filosófica, da incoerência e contradição interna  
etc. de cada uma das filosofias, se se quer - de modo real e concreto  
- tornar evidente seu caráter reacionário (FORTES et. al., 2020, pp. XI-  
XII).  
Ressaltamos, nesse sentido, a "inexistência de qualquer tipo de antessala  
lógico-epistêmica ou apriorismo teórico-metodológico” (CHASIN, 2009, p. 91) em  
nossa análise dos textos, que devem ser tomados a partir de sua própria gênese,  
estrutura e função. No caso dos Cadernos, é especialmente relevante compreender sua  
gênese, ou seja, o contexto em que foram redigidos nos últimos anos de vida de Marx,  
bem como sua estrutura, enquanto conjunto de notas críticas tardiamente publicadas.  
Não estamos partindo de um método inquebrável ou uma teoria do  
conhecimento prévia ou metafisicamente consolidada. Não havendo uma  
multiplicidade ilimitada de interpretações possíveis a um discurso, devemos  
compreendê-lo de acordo com sua lógica específica, desvendá-lo, dissecá-lo,  
reproduzi-lo a partir de seu nexo constitutivo objetivo; eis a leitura imanente. O  
propósito é a “propulsão categórica à objetividade”, a postura voltada para “apreender  
o texto na forma própria à objetividade de seu discurso enquanto discurso” (idem, p.  
25). Somente assim é possível explicitar o pensamento do autor com um rigor  
necessário.  
Portanto, não se trata, de um lado, de trazer interpretações sem fundamento  
objetivo, nem, de outro, simplesmente compilar citações diretas. Conforme Fortes e  
Vaisman explicitam, do mesmo modo que Lukács (2020) investiga o caminho traçado  
pela filosofia alemã até Hitler em A Destruição da Razão, é imprescindível apreender  
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A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos etnológicos de Karl Marx  
o texto na objetividade de seu discurso antes de interpretá-lo ou criticá-lo.  
Ao tratar dos Cadernos e de toda a sua especificidade, traçar este panorama se  
torna imprescindível para demonstrar não só a possibilidade, mas também a relevância  
de análise deste texto tão negligenciado pela tradição marxista, sobretudo ao se tratar  
da crítica ao direito e sua recepção no Brasil.  
Antes de darmos início a nossa análise, é válido traçar apenas mais alguns  
comentários sobre sua estrutura. As Lectures tratam-se de aulas de Maine, que foram  
dadas na Universidade de Oxford, na qual Maine lecionava. A obra se divide em 13  
capítulos:  
I. NOVOS MATERIAIS PARA A HISTÓRIA ANTIGA DAS INSTITUIÇÕES  
II. A ANTIGA LEI IRLANDESA  
III. O PARENTE COMO BASE DA SOCIEDADE  
IV. A TRIBO E A TERRA  
V. O CHEFE E SUA ORDEM  
VI. O CHEFE E A TERRA  
VII. DIVISÕES ANTIGAS DA FAMÍLIA  
VIII. O CRESCIMENTO E DIFUSÃO DE IDEIAS PRIMITIVAS  
IX. AS FORMAS PRIMITIVAS DE RECURSOS LEGAIS  
X. AS FORMAS PRIMITIVAS DE RECURSOS LEGAIS  
XI. A HISTÓRIA INICIAL DA PROPRIEDADE LIQUIDADA DE MULHERES  
CASADAS  
XII. SOBERANIA  
XIII. SOBERANIA E IMPÉRIO  
(MAINE, 1914, p. VI - tradução livre) 11  
De acordo com o prefácio à primeira edição, o objetivo desse trabalho seria dar  
continuidade aos esforços da obra Ancient Law, focando em analisar a negligenciada  
Brehon Law. É chamado de Brehon Law o conjunto de Ancient Irish Laws [leis  
irlandesas antigas], sendo Senchus Mor e o Livro de Aicill os maiores tratados de leis  
irlandesas antigas publicados. Para o britânico, as leis que compõem a Brehon Law  
“em nenhum sentido são uma construção legislativa, e assim não só são um  
monumento autêntico de um grupo muito antigo de instituições Arianas; são também  
11 I. NEW MATERIALS FOR THE EARLY HISTORY OF INSTITUTIONS  
II. THE ANCIENT IRISH LAW  
III. KINSHIP AS THE BASIS OF SOCIETY  
IV. THE TRIBE AND THE LAND  
V. THE CHIEF AND HIS ORDER  
VI. THE CHIEF AND THE LAND  
VII. ANCIENT DIVISIONS OF THE FAMILY  
VIII. THE GROWTH AND DIFFUSION OF PRIMITIVE IDEAS  
IX . THE PRIMITIVE FORMS OF LEGAL REMEDIES  
X. THE PRIMITIVE FORMS OF LEGAL REMEDIES  
XI. THE EARLY HISTORY OF THE SETTLED PROPERTY OF MARRIED WOMEN  
XII. SOVEREIGNTY  
XIII. SOVEREIGNTY AND EMPIRE  
(MAINE, 1914, p. VI)  
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Ana Carolina Marra de Andrade  
uma coleção de regras que foram gradualmente se desenvolvendo em uma forma  
muito favorável à preservação de peculiaridades arcaicas” (MAINE, 1914, p. 11).  
As Lectures tratam principalmente do direito bretão, como pode-se perceber  
pela divisão de capítulos supramencionada, de modo que a parte mais extensa dos  
comentários do Marx aqui também é sobre a Irlanda. Entretanto, também é analisada  
a sociedade indiana da época, marcada, no âmbito do direito, pelo Mitakshara  
(Mitākarā). Escrito por Vijnaneshwara no século XII, este é um dos tratados jurídicos  
mais antigos do direito indiano, e aborda sobretudo questões relativas à herança.  
Tanto o direito bretão quanto o direito indiano também são frequentemente  
comparados por Maine ao direito romano, que considera bastante admirável,  
ocasionalmente também comparando-os a institutos do direito inglês, sobretudo  
àqueles que supostamente derivam dos institutos romanos. Nota-se que o direito  
possui uma posição de destaque na análise do autor das Lectures.  
Por uma restrição de espaço necessária ao formato de artigo em que, não  
poderemos nos debruçar sobre os comentários referentes à Índia e ao Mitakshara.  
Além dos comentários sobre filosofia do direito, focaremos nas passagens sobre o  
direito bretão, que são maiores em extensão, e, portanto, conteúdo. Tal escolha  
também é facilitada pois algumas conclusões chegadas por Marx na análise do direito  
bretão são semelhantes às alcançadas ao analisar o direito indiano, sobretudo no  
âmbito da violência relacionada com a imposição do direito inglês nos territórios  
coloniais, cada qual com suas devidas especificidades. Não obstante, reiteramos que  
ainda se faz necessário um outro trabalho que analise de forma mais detida o material  
específico acerca do direito indiano.  
Frente à falta de uma edição em português, e em razão da dificuldade de  
separar, na leitura, os trechos do Maine dos comentários do Marx, utilizaremos duas  
edições dos Cadernos Etnológicos para trazer as citações: a edição original, sendo ela:  
The Ethnological Notebooks (studies of Morgan, Phear, Maine, Lubbock) (transcribed  
and edited with an introduction by Lawrence Krader). 2ª ed. Assen: Van Gorcun &  
Comp. B. V., 1974; e também utilizaremos a tradução em castelhano de José Maria  
Ripalda: Los apuntes etnológicos (Org. Lawrence Krader). Trad.: José María Ripalda.  
Madrid, Editorial Pablo Iglesias, 1988. Na primeira, via de regra, as constatações do  
Maine estão em inglês, e os comentários do Marx em alemão, sendo mais claro de  
diferenciar ambos. Já na segunda, trazemos a nota do tradutor acerca das divisões do  
próprio texto para facilitar nossa interpretação:  
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A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos etnológicos de Karl Marx  
Marx usa parênteses () e colchetes [] alternadamente, embora ele os  
use preferencialmente para comentários pessoais ou acréscimos ao  
texto extraído. Tanto a edição crítica quanto a tradução alemã os  
utilizam como o próprio Marx. Na tradução espanhola, o uso desses  
sinais é homogeneizado: os parênteses e hífens correspondem a  
trechos do texto extraído, os colchetes enquadram interpolações de  
Marx. Desta forma torna-se possível saber imediatamente quais  
passagens foram interpoladas por Marx.  
Os colchetes <> indicam intervenções do tradutor (em 3 casos, do  
editor, L. Krader), para completar textos gramaticalmente elípticos ou  
incompletos. Quando colchetes angulares cercam um colchete <[> ,  
eles indicam que esta é uma interpolação de Marx que não foi indicada  
graficamente por Marx e poderia passar despercebida. (RIPALDA,  
1988, p. X - tradução livre)12  
Ademais, é importante reiterar que não temos o objetivo de exaurir, mas tão  
somente de introduzir a crítica ao direito nos comentários de Marx a Maine em alguns  
de seus aspectos mais relevantes, considerando que o texto em que nos baseamos  
contém uma vasta gama de informações notáveis relativamente a este conteúdo. Isto  
posto, passemos para o texto.  
II. A crítica ao direito nos comentários a Henry Sumner Maine  
Um aspecto essencial para a crítica marxista ao direito é a crítica à teoria do  
direito e a sua função específica. Portanto, para dar início a nossa argumentação,  
situaremos a posição de Maine na ciência jurídica partindo das duas últimas Lectures  
de sua obra, na qual comentários acerca das teorias do direito inglesas. Segundo ele,  
as teorias da história normalmente utilizadas pelos juristas ingleses causaram um  
grande dano tanto para o estudo de direito quanto para o estudo da história, de modo  
que deve ser formulada não só uma nova história do direito, como também uma nova  
filosofia do direito no país. O britânico considera que o maior mérito do estudo  
filosófico jurídico no país se deve à escola analítica, em especial a Bentham e Austin13,  
12  
Marx usa indistintamente paréntesis () y corchetes [], aunque preferentemente emplea éstos para  
comentarios o añadidos personales en el texto extractado. Tanto la edición crítica como la traducción al  
alemán los emplean tal y como lo hizo el propio Marx. En la traducción castellana se halla  
homogeneizado el empleo de estos signos: los paréntesis y guiones corresponden a pasajes del texto  
extractado, los corchetes encuadran interpolaciones por y/o de Marx. De este modo se hace posible  
saber inmediatamente qué pasajes han sido interpolados por Marx.  
Las grapas angulares <> señalan intervenciones del traductor (en 3, casos del editor, L. Krader), para  
completar textos gramaticalmente elípticos o incompletos. Cuando las grapas angulares encuadran un  
corchete <[> , indican que se trata de una interpolación de Marx que éste no ha indicado gráficamente  
y que de otro modo podría pasar inadvertida. (RIPALDA, 1988, p. X)  
13  
Ambos os autores, bem como a tradição analítica, são ponto de partida e elemento central de uma  
série de pensadores posteriores, como Herbert Lionel Adolphus Hart (1907 1992). O próprio Marx  
reconhece que a obra Province of jurisprudence determined, de Austin, foi, por muito tempo, um dos  
manuais mais respeitados na Universidade de Oxford (cf. MARX, 1988, p. 287).  
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ainda que também trace uma crítica a concepções de ambos que considera  
equivocadas (cf. MAINE, 1914, pp. 342-43).  
Porém, o próprio inglês se contradiz ao reconhecer que o essencial das ideias  
de Austin, no que também coincidem com as de Bentham, advém de Thomas Hobbes.  
Para justificar tal posicionamento, recorre ao argumento de que Hobbes tinha um  
propósito político, enquanto o propósito de Austin seria “estritamente científico”. Marx  
ironiza essa percepção, questionando que tipo de significado a palavra “científico”  
pode ter para os “estúpidos juristas britânicos”. Vejamos:  
Mas Maine diz: Hobbes tinha um propósito político; o propósito de  
Austin era <<estritamente científico>> (355 <: 317 ss.>) (Científico!  
Será no significado que esta palavra pode ter para os estúpidos  
juristas britânicos, entre os quais a classificação, definição etc.  
ultrapassada é considerada ciência. Cf. para os demais 1º Maquiavel  
e 2º Linguet.] Além disso, Hobbes raciocinou sobre as origens do  
Estado (governo e soberania); Este problema não existe para o jurista  
Austin; para ele esse fato existe, de certa forma, a priori. Isso é o que  
Maine diz na. p.356 <: 318 e seguontes.>. <[>Tampouco o infeliz do  
Maine tem ideia de que onde existe um Estado (depois de b  
comunidade primitiva, etc.), isto é, uma sociedade politicamente  
organizada, o Estado não é de forma alguma o príncipe, apenas o  
parece <]> (MARX, 1988, pp. 288-289 - tradução livre) 14  
O mouro considera que o autor de Leviatã ou Matéria, Palavra e Poder de um  
Governo Eclesiástico e Civil ainda seria melhor que seus sucessores da escola analítica,  
uma vez que ele reflete minimamente acerca das origens do Estado (associado às  
ideias de governo e soberania), enquanto o próprio Austin toma o Estado como uma  
existência, de certo modo, a priori. Hobbes ainda teria o mérito de buscar traçar uma  
origem coerente do Estado, e não tomá-lo como uma entidade dada, sempre existente,  
14  
Pero Maine dice: Hobbes tenía un propósito político; el propósito de Austin era <<estrictamente  
científico>>. (355 <: 317 ss.>). (¡Científico! Ya será en el significado que puede tener esta palabra para  
los estúpidos juristas británicos, entre los cuales se tiene por ciencia la anticuada clasificación, la  
definición, etc. Cf. por lo demás 1º Maquiavelo y 2° Linguet.] Además Hobbes razonaba sobre los  
orígenes del Estado (gobierno y soberanía); este problema no existe para el jurista Austin; para él ese  
hecho existe en cierto modo a priori. Es lo que dice Maine en la. p.356 <: 318 ss.>. <[>Tampoco el  
infeliz de Maine tiene ni idea de que allí donde hay Estado (después de b comunidad primitiva, etc.), es  
decir una sociedad organizada politicamente, el Estado no es de ningún modo el príncipe, sólo lo parece.  
<]> (MARX, 1988, pp. 288-289).  
Aber sagt Maine: Hobbes’ Object war politisch; das des Austin “strictly scientific” (355) [Scientific! doch  
nur in d. Bdtg, dies dies Wort im Kopf of blockheadish British lawyers haben kann, wo altmodische  
Classification, Definition etc als scientific gilt. Vgl. übrigens i) Machiavelli u. 2) Linguet.] Ferner: Hobbes  
will origin of Staat (Government u. Sovereignty) ergründen; dies Problem existirt für lawyer Austin nicht;  
für ihn dies fact gewisser- massen a priori vorhanden. Dies sagt Maine p. 356. D. unglückliche Maine  
selbst hat keine Ahnung davon, dass da wo Staaten existiren (after the primitive Communities etc) i.e.  
eine politisch organisirte Gesellschaft, der Staat keineswegs d. Prinz ist; er scheint nur so (MARX, 1974,  
pp. 328-9)  
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enquanto o “infeliz” do Maine não tem ideia do que é o Estado, de modo que ele não  
é o príncipe, apenas aparece como o príncipe.  
Maine, no entanto, se contrapõe a uma ideia que, segundo ele, seria própria  
dos discípulos dos juristas analíticos:  
Uma afirmação, no entanto, que os grandes juristas analíticos não  
podem ser acusados de fazer, mas que alguns dos seus discípulos  
chegam muito perto de arriscar, é que a pessoa ou grupo soberano  
na verdade exerce a força acumulada da sociedade através de um  
exercício descontrolado da vontade, certamente nunca está de acordo  
com os fatos. Um déspota com um cérebro perturbado é o único  
exemplo concebível de tal soberania. A vasta massa de influências,  
que podemos chamar, resumidamente, de morais, perpetuamente  
molda, limita ou proíbe a direção real das forças da sociedade por seu  
Soberano (MAINE, 1914, p. 359)15  
Ou seja, para o autor das Lectures, o que impede o soberano de exercer a  
vontade da sociedade, o que defenderiam alguns discípulos de Austin, são elementos  
que podem ser resumidos como morais, os quais moldam, limitam a direção das forças  
sociais. Acerca dessa afirmação, Marx pontua: “[este <<morais>> mostra quão pouco  
sabe Maine sobre o assunto; enquanto essas influências (sobretudo económicas) têm  
um modo de existência moral, é sempre um modo derivado, secundário e nunca  
prioritário]” (MARX, 1988, p. 289 - tradução livre)16. Enquanto Maine destaca o papel  
da moral, Marx aponta que influências que recaem sobre o âmbito político são,  
sobretudo, de caráter econômico. Logo, o mouro não adere a crítica a Austin como  
colocada nas Lectures, tratando dela como uma crítica fraca e que se resume a  
elementos morais. Por mais que a moral seja existente e atuante, ela exerce influência  
política somente pressupondo as influências econômicas, de forma subsidiária.  
Marx prossegue: “Maine ignora algo muito mais profundo: que até a existência,  
aparentemente suprema e independente, do Estado, não é mais que uma aparência, e  
que o Estado em todas as suas formas é uma excrescência da sociedade”. Maine toma  
15An assertion, however, which the great Analytical Jurists cannot be charged with making, but which  
some of their disciples go very near to hazarding, that the Sovereign person or group actually wields  
the stored-up force of society by an uncontrolled exercise of will, is certainly never in accordance with  
fact. A despot with a disturbed brain is the sole conceivable example of such Sovereignty. The vast mass  
of influences, which we may call for shortness moral, perpetually shapes, limits, or forbids the actual  
direction of the forces of society by its Sovereign (MAINE, 1914, p. 359)  
16  
[este <<morales>> muestra la poca idea que tiene Maine del asunto; en cuanto estas influencias  
(ante todo económicas) poseen un modus moral de existencia se trata siempre de un modus derivado,  
secundario y nunca prioritario]” (MARX, 1988, p. 289)  
[dies “moral” zeigt wie wenig Maine von der Sache versteht; so weit diese influences (economical before  
everything else) “moral” modus of existence besitzen, ist dies immer ein abgeleiteter, secundärer modus  
u. nie das prius] (MARX, 1974, p. 329).  
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o Estado como algo dado, sem se debruçar sobre sua origem, muito menos sobre seu  
fim. Segundo Marx, “Mesmo a sua aparência [do Estado] não se apresenta até que a  
sociedade tenha alcançado um certo grau de desenvolvimento, e desaparecerá  
novamente quando a sociedade chegue a um nível até agora inalcançado” (idem -  
tradução livre)17. E não é mera coincidência que o jurista britânico defenda esse atual  
estado de coisas de maneira apologista:  
Primeiro, a individualidade é separada dos vínculos originalmente não  
despóticos (ao contrário de como o idiota do Maine os entende), mas  
satisfatórios e agradáveis que reinavam no grupo, nas comunidades  
primitivas; assim, a individualidade vem à tona unilateralmente. Mas a  
verdadeira natureza dessa individualidade não é mostrada até que se  
analisem <<seus>> interesses. Então descobrimos que esses  
interesses, por sua vez, são interesses comuns a certos grupos sociais  
e característicos deles, interesses de classe etc., e todos eles são, em  
última análise, baseados em condições econômicas. Sobre estas bases  
se constrói o Estado e as pressupõe. (ibidem) - tradução livre).18  
Nesta longa passagem, Marx traz uma série de elementos fundamentais a sua  
crítica a Maine. O britânico, confundindo o príncipe e o Estado, não entende a relação  
entre interesses individuais e interesses de classe, ou seja, em linhas gerais, interesses  
objetivos comuns a determinados grupos de indivíduos. A aparência do Estado  
moderno à qual Maine se refere é assentada sobre a sociedade civil-burguesa, e  
pressupõe um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas. O Estado é  
17  
[Maine ignora algo mucho más profundo: que incluso la existencia, aparentemente suprema e  
independiente, del Estado, no es más que una apariencia, y que el Estado en todas sus formas es una  
excrecencia de sociedad. Incluso su apariencia no se presenta hasta que la sociedad ha alcanzado un  
cierto grado de desarrollo, y desaparece<rá> de nuevo en cuanto la sociedad llegue a un nivel hasta  
ahora inalcanzado (MARX, 1988, p. 289).  
[Maine ignores das viel Tiefere: dass d. scheinbare supreme selbständige Existenz des Staats selbst nur  
scheinbar u. dass er in allen seinen Formen eine excrescence of society is; wie seine Erscheinung selbst  
erst auf einer gewissen Stufe der gesellschaftlichen Entwicklung vorkömmt, so verschwindet sie wieder,  
sobld d. Gesellscft eine bisher noch nicht erreichte Stufe erreicht hat. (MARX, 1974, p. 329).  
18 Primero la individualidad se escinde de los vínculos originariamente no despóticos (al revés de como  
los entiende el zoquete de Maine) sino satisfactorios y agradables que reinaban en el grupo, en las  
comunidades primitivas; así llega a destacarse unilateralmente la individualidad. Pero la verdadera  
naturaleza de esta individualidad no se muestra hasta analizar <<sus>> intereses. Entonces nos  
hallamos con que estos intereses a su vez son intereses comunes a ciertos grupos sociales y  
característicos de ellos, intereses de clase, etc., y éstos se basan todos en última instancia, en  
condiciones económicas. Sobre éstas como sus bases se edifica el Estado y las presupone (MARX, 1988,  
p. 289).  
Erst Losreissung der Individualität von d. ursprünglich nicht despotischen Fesseln (wie blockhead Maine  
es versteht), sondern befriedige(ti)den u. gemüthlichen Banden der Gruppe, der primitiven  
Gemeinwesen, - damit d. einseitige Herausarbeitung der Individualität. Was aber die wahre Natur der  
letzteren zeigt sich erst wenn wir d. Inhalt - d. Interessen dieser “letzteren” analysiren. Wir finden dann,  
dass diese Interessen selbst wieder gewissen gesellscftlichen Gruppen gemeinsame u. sie  
charakterisirende Interessen, Klasseninteressen etc sind, also diese Individualität selbst Klassen- etc  
Individualität ist u. diese in letzter Instanz haben alle ökonomische Bedingungen zur Basis. Auf diesen  
als Basen baut sich der Staat auf u. setzt sie voraus.] (MARX, 1974, p. 329).  
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resultado de processos sociais e históricos, produto da ação humana, e Marx procura  
compreendê-lo em sua gênese e necessidade, para além de sua mera aparência. Ao  
voltar-se para o movimento real da história, Marx consegue entender que o Estado  
pressupõe condições econômicas determinadas pela existência de diferentes grupos  
de indivíduos com interesses contrapostos, refletindo a dominação de um desses  
grupos ou de uma classe sobre os demais.  
Deste modo, temos que Marx critica até mesmo a crítica feita por Maine a seus  
predecessores. Há, também, algo em comum na mediocridade de todos os “estúpidos  
juristas britânicos”, no qual se encaixam tanto Maine quanto os juristas analíticos. Após  
traçar suas críticas e elogios a seus predecessores, Maine irá explicitar a solução que  
encontra para a origem do Estado, que será emprestada de Austin no livro The  
Province of Jurisprudence Determined:  
Suponhamos que uma única família de selvagens viva absolutamente  
alienada de qualquer outra comunidade. E suponhamos que o pai,  
chefe dessa família isolada, receba a obediência habitual da mãe e dos  
filhos. Ora, como não é um membro de outra comunidade maior, a  
sociedade formada pelos pais e filhos é claramente uma sociedade  
independente e, como o resto de seus membros obedece  
habitualmente ao seu chefe, essa sociedade independente formaria  
uma sociedade política, caso o número de seus membros não fosse  
extremamente pequeno. Mas como o número de seus membros é  
extremamente pequeno, seria, creio eu, considerada uma sociedade  
em estado de natureza”; isto é, uma sociedade composta por pessoas  
que não estão em estado de sujeição. Sem a aplicação dos termos,  
que teriam um toque de ridículo, dificilmente poderíamos qualificar a  
sociedade de sociedade política e independente, o pai e chefe  
imperativos monarca ou soberano, ou a mãe obediente e filhos súditos  
(MAINE, 1914, pp. 378-379, apud. MARX, 1974, p. 333 - tradução  
livre).19  
Assim, a sociedade em estado de natureza seria formada pelos pais e as  
crianças, e o pai, chefe da família, recebe a “habitual obediência” da mãe e das crianças.  
Ainda que Maine admita que não pode-se ver, no chefe, a figura de um monarca ou  
soberano, e na mãe e seus filhos, dos súditos, de fato existiria uma sujeição natural  
19  
“Let us suppose that a single family of savages lives in absolute estrangement from every other  
community. And let us suppose that the father, the chief of this isolated family, receives habitual  
obedience from the mother and children. Now , since it is not a limb of another and larger community,  
the society formed by the parents and children, is clearly an independent society, and, since the rest of  
its members habitually obey its chief, this independent society would form a society political, in case the  
number of its members were not extremely minute. But since the number of its members is extremely  
minute, it would, I believe, be esteemed a society in a state of nature” ; that is, a society consisting of  
persons not in a state of subjection. Without an application of the terms, which would somewhat smack  
of the ridiculous, we could hardly style the society a society political and independent, the imperative  
father and chief a monarch or sovereign, or the obedient mother and children subjects (MAINE, 1914,  
pp. 378-379, apud. MARX, 1974, p. 333).  
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em menor grau ao homem, patriarca. O que impede que essa sociedade natural  
independente (que é, basicamente, uma família patriarcal semelhante à romana), de  
formar uma sociedade política, é o pequeno número de membros. Ademais, Maine  
distingue estado de natureza e estado de sujeição, mas chama de estado de natureza  
uma organização em que as mulheres estão sujeitas aos homens, e, portanto, mulheres  
não são membros plenos da sociedade política.  
Então, Marx comenta sarcasticamente o trecho retirado de Austin: “(Sehr tiefe!)”,  
que pode ser traduzido como “muito profundo!”. Daí, segue: “Até aqui tudo vai muito  
bem para o Maine” e cita o britânico “<<pois como diza forma de autoridade que  
concede, a do patriarca ou paterfamilias sobre sua família, é, ao menos de acordo com  
uma teoría moderna [de Maine e companhia] o elemento ou germe a partir do qual se  
desenvolve gradualmente todo poder permanente do homem sobre o homem >>20  
(MARX, 1988, pp. 292-293 - tradução livre).  
A origem do Estado traçada por Austin e reforçada por Maine se trata de uma  
“robinsonada” das mais esdrúxulas. Chamamos de “robinsonada” o procedimento de  
transpor as relações sociais burguesas até um mundo abstrato e mitológico, de modo  
a justificar a existência de instituições que são históricas, naturalizando-as21. Essa  
expressão é utilizada por Marx não nos Cadernos, mas em O Capital: crítica da  
economia política: livro I: o processo de produção do capital, na Introdução aos  
Grundrisse, em Contribuição à crítica da Economia Política e em Miséria da filosofia:  
Resposta à Filosofia da Miséria do Sr. Proudhon, e acreditamos ser cabível também  
para analisar sua crítica a Maine. Nos referidos textos, Marx resgata o personagem  
fictício Robinson Crusoé, um marinheiro inglês que, ao naufragar, fica preso em uma  
ilha deserta, na qual tenta reproduzir o cotidiano de sua vida na Inglaterra, para  
denunciar a transposição de costumes tradicionais britânicos para um universo  
ficcional que não faz parte dessa sociedade, porém a carrega consigo, procedimento  
que seria comum na economia política22.  
20  
Hasta aquí todo le viene muy bien a Maine, <<pues como dicela forma de autoridad que  
concede, la del patriarca o paterfamilias sobre su familia, es, al menos según una teoría moderna [de  
Maine y compañía] el elemento o germen a partir del qual se ha desarollado gradualmente todo poder  
permanente del hombre sobre el hombre>> (MARX, 1988, pp. 292-293).  
Dies so far Wasser auf d. Mühle Maine’s, “since, wie er sagt, the form of authority about which it is made,  
the authority of the Patriarch or Paterfamilias over his family, is, at least according to one (Maine’s u.  
consorts) modern theory, the element or germ out of which all permanent power of man over man has  
been gradually developed” (MARX, 1974, p. 333).  
21 Para aprofundar no tópico, ver MARRA DE ANDRADE, 2023.  
22  
Tomemos como exemplo como a “robinsonada” aparece na Introdução aos Grundrisse: “Indivíduos  
produzindo em sociedade por isso, o ponto de partida é, naturalmente, a produção dos indivíduos  
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A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos etnológicos de Karl Marx  
A “robinsonada” aqui estaria justamente na criação de uma comunidade  
“selvagem” isolada, em que a família inglesa é reproduzida de forma natural, de modo  
que a obediência da mulher e dos filhos ao pai é pressuposta. Neste mundo isolado,  
Maine também naturaliza o domínio do homem sobre a mulher e os filhos, ou seja, a  
família pautada no patriarca ou paterfamilias, e é através desse domínio, que ganha  
dimensão ahistórica, do qual todo o “poder permanente do homem sobre o homem”  
se derivaria. Aqui, a ideia de família patriarcal remete formalmente à família e ao  
paterfamilias romanos, mas materialmente à família inglesa, que já pressupõe a  
existência da figura do patriarca, mas que exclui do núcleo familiar servos e escravos,  
por exemplo.  
Segundo Marx, no entanto, é logo em seguida que Maine “saca sua artilharia  
pesada”: o inglês deixa explícito como, para ele, a origem das comunidades políticas  
denominadas Estados consiste, basicamente, na aglomeração de grupos, dos quais o  
originário nunca foi mais reduzido que a família patriarcal: “Segundo o jovem Maine, a  
origem das comunidades políticas chamadas Estados consiste na aglomeração de  
grupos, dos quais o original nunca foi menor que a família patriarcal. [De novo!]”  
(MARX, 1988, pp. 293-294 - tradutor)23. A rigor, é como se a base de todas as  
comunidades existentes fosse a família pautada no domínio do homem perante seus  
subordinados, e o Estado viesse simplesmente da junção de várias dessas famílias.  
Maine faz um procedimento semelhante ao tratar da origem do direito, trazendo  
a Actio sacramenti como metáfora dramática de sua gênese histórica. Trata-se da  
seguinte narrativa mitológica: dois homens lutam entre si, um dos quais carrega uma  
lança, quando o pretor passa e intervém para parar a luta, então, os dois homens  
expõem o assunto a ele e concordam que ele seja o árbitro da discussão e que o  
socialmente determinada. O caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e  
Ricardo, pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII, ilusões que de  
forma alguma expressam, como imaginam os historiadores da cultura, simplesmente uma reação ao  
excesso de refinamento e um retorno a uma vida natural mal-entendida. Da mesma maneira que o  
contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação e conexão sujeitos por natureza  
independentes, não está fundado em tal naturalismo. Essa é a aparência, apenas a aparência estética  
das pequenas e grandes robinsonadas. Trata-se, ao contrário, da antecipação da ‘sociedade burguesa’,  
que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para sua maturidade”  
(MARX, 2011, p. 54).  
23  
“Según el mozo Maine el origen de las comunidades políticas llamadas Estados consiste en la  
aglomeración de grupos, de los cuales el originario nunca fue má reducido que la familia patriarcal.  
[¡Otra vez!]” (MARX, 1988, pp. 293-294)  
Nach d. Burschen Maine d. origin of the political communities called States is that they were formed by  
the coalescence of groups, the original group having been in no case smaller than the patriarchal family.  
(Again!) (MARX, 1974, p. 334).  
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perdedor, além de renunciar ao objeto da disputa, paga uma quantia em dinheiro ao  
árbitro (o pretor).  
Maine diz, ainda, que tal interpretação é sustentada por uma “coincidência  
surpreendente”: a cerimônia descrita na Legis Actio é análoga à descrita por Homero  
no momento da forja do escudo de Aquiles por Hefesto (cf. MAINE, 1914, p. 253).  
Assim, Maine também aproxima a Legis actio sacramenti da poesia homérica, mais  
especificamente de um conflito descrito na Ilíada em que dois homens, discutindo na  
ágora acerca da indenização supostamente devida por um deles por ter assassinado  
um terceiro, deixam no meio uma quantidade de ouro a ser dada por aquele que  
proferir a sentença mais justa, leia-se nos seguintes versos:  
Mas o povo estava reunido na ágora; pois surgira aí  
Um conflito e dois homens discutiam a indenização  
Por outro, assassinado. Um deles afirmava ter pagado tudo,  
Em declarações ao povo; o outro negava-se a aceitar o que fosse.  
Os arautos continham o povo; mas os anciãos  
Estavam sentados em pedras no círculo sagrado,  
Segurando nas mãos os cetros dos arautos de voz penetrante.  
Com eles se levantavam e julgavam um de cada vez.  
Jaziam no meio dois talentos de ouro, para serem dados  
Àquele dentre eles que proferiu a sentença mais justa.  
(Ilíada, 18, 497-508)  
Em suas Lectures, Maine expõe que “A primeira destas antigas actiones  
[romanas] é a legis actio sacramenti, antepassado inquestionável de todas as actiones  
romanas e consequentemente da maioria dos procedimentos atualmente em uso no  
mundo”24 (MARX, 1988, p. 276 - tradução livre). Marx, então, escreve: “Isso parece  
mais uma dramatização de como as disputas legais se tornaram uma fonte de  
honorários advocatícios para os advogados! E é isso que, como advogado, o Sr. Maine  
chama de ‘a origem da justiça’!”25 (MARX, 1988, p. 277)  
Marx, então, ressalta o quanto é traiçoeiro que um advogado, como Maine, trate  
dessa dramatização mitológica como a origem da justiça, sendo que está mais próxima  
da origem da compensação monetária dada ao jurista, dos honorários advocatícios.  
24  
La primera de estas antiguas actiones [romanas] es la legis actio sacramenti, antepasado indudable  
de todas las actiones romanas y por consiguiente de la mayoría de los procedimientos actualmente en  
uso por el mundo (MARX, 1988, p. 276).  
D. first dieser alten (Roman) actiones ist die: Legis Actio Sacramenti, the undoubted parent of all the  
Roman actions u. daher of most of the civil remedies now in use in the world (MARX, 1974, p. 315)  
25¡Esto parece más bien una dramatización de cómo las disputas de derecho se convirtieron en una  
fuente de honorarios para los juristas ¡Y esto es lo que, como abogado, llama el señor Maine <<el  
origen de la justicia>>! (MARX, 1988, p. 277)  
(Dies scheint rather Dramatisation of how law disputes were becoming a source of fees profit to lawyers!  
u. dies nennt Herr Maine, als a lawyer, “the Origin of Justice”!) (MARX, 1974, p. 315)  
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Na Legis Actio Sacramenti, a própria lança, que o britânico considera como um símbolo  
da força do homem de armas, símbolo da propriedade ante todos e contra todos, o  
mouro coloca que é, em realidade, símbolo da violência como a origem da propriedade,  
não só a romana como também qualquer outra (cf. idem).  
Ademais, a referência específica à Actio Sacramenti romana tampouco é  
aleatória. Maine se coloca como um grande defensor do direito romano, e a utilização  
de instituições jurídicas da antiguidade detém um relevante papel em sua conformação  
teórica. Marx reconhece essa postura de forma bastante clara, compreendendo que  
isto representa um padrão comum aos juristas modernos que, não raro, apropriam-se  
de categorias do direito romano retiradas de seu contexto e tratam-nas de maneira  
romantizada, debruçando-se pouco sobre sua história real. Não obstante, Marx  
demonstra muito mais conhecimento sobre direito romano que Maine ao longo de  
seus comentários, além de não tratá-lo de modo idealizado, agregando em seus  
comentários a Maine evidências de que possuía um estudo considerável de pensadores  
como Cícero, Gaio e Barthold Georg Niebuhr.  
Não nos aprofundaremos no tópico, mas é válido mencionar que o direito  
romano é muito utilizado pelo jurista inglês para criticar instituições do direito indiano  
pré-colonial, especialmente o Stridhan, a propriedade da mulher casada inalienável  
pelo marido prevista no Mitakshara, e muito inserida no cotidiano indiano. Para Maine,  
a legislação indiana fornece às mulheres um nível de independência muito elevado, e,  
por isso mesmo, era inferior à romana, que, em geral, previa um vínculo mais acentuado  
da propriedade da mulher ao controle de seu marido. A família patriarcal romana é  
colocada como um padrão ideal, e basilar da organização familiar, tampouco sendo  
entendida a partir de suas bases reais, e Maine parte dele para defender que a Índia  
teria relaxado as obrigações do “despotismo familiar” patriarcal, colocando a família  
inglesa, na qual as mulheres tinham menos direitos de controle de propriedade:  
Se, então (um bom “se” baseado apenas na “confiante afirmação” do  
próprio Maine) em algum período remoto, [Maine transporta a sua  
família Romana “patriarcal” até o início dos tempos] a mulher casa  
detinha, entre os Hindus, a sua propriedade totalmente emancipada  
do controle de seu marido [“emancipada”, por assim dizer, a partir da  
“afirmação confiante” de Maine], não é fácil explicar por que as  
obrigações do despotismo familiar [a principal doutrina de estimação  
do John Bull cabeça-dura ao ler “despotismo” original] foram  
relaxadas nesse momento em particular (MARX, 1988, p. 284 -  
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tradução livre)26. (MARX, 1988, p. 284)  
Nesse sentido, a romantização das instituições romanas também é uma  
constante na análise de Maine, que “transporta a sua família romana ‘patriarcal’ até o  
início dos tempos”, a partir da qual enxerga as organizações familiares das colônias  
inglesas. Por família patriarcal, aqui, podemos entender uma organização familiar  
fortemente baseada em um certo número de pessoas livres e não livres em uma mesma  
família, sob o poder paterno do “chefe”, o patriarca ou paterfamilias. Para o britânico,  
existe na Índia um despotismo “relaxado” do grupo (família) sobre os indivíduos  
(homem e mulher), que é mais “completo” que em outras sociedades de cultura e  
civilização semelhantes (cf. MAINE, 1914, p. 327), percepção colonialista e  
patriarcalista à qual Marx se contrapõe veementemente, conforme exposto.  
Novamente, a família romana aparece aqui em termos formais, somente na  
medida em que está de acordo com a constituição familiar concreta da família inglesa  
de seu tempo, cujo núcleo familiar é composto pelo marido, que ocupa a posição de  
patriarca de forma semelhante ao paterfamilias, a mulher e os filhos, submissos ao pai.  
Ou seja, Maine utiliza de institutos romanos na medida em que permanecem de forma  
semelhante na sociedade inglesa, e ignora suas bases originais. No caso da família  
patriarcal, Maine retira a escravidão da relação familiar, focando no núcleo privado  
principal que permaneceu na Inglaterra do século XIX.  
Isto posto, ressaltamos que, para além da crítica à dramatização romântica da  
Legis Actio Sacramenti feita por Maine, pautada na romantização do direito romano,  
Marx também traça considerações importantes acerca da origem real do direito na  
Irlanda, e sua profunda conexão com a religião cristã. Enquanto Maine se põe a analisar  
alguns elementos da história, mas os envolve em idealismo, a retomada da história  
real é uma constante na análise de Marx.  
Em seus comentários, voltando-se para a história da Irlanda, Marx irá pontuar  
26 Si, [bonito <<si>>, basado exclusivamente en la propia <<seguridad>> de Maine] pues, [este “pues”,  
hipócrita] en alguna época lejana [Maine traslada su familia “patriarcal” romana al mismo comienzo de  
las cosas) los bienes de la mujer casada estaban entre los hindúes enteramente libres de la intervención  
del marido [“libres”, o sea partiendo de la “seguridad” de Maine], no es fácil explicar por qué los  
derechos del despotismo familiar [idea favorita capital del zeneque de John Bull, la de encontrar  
“despotismo” en los orígenes] habían de sufrir una relajación (MARX, 1988, p. 284).  
If, then, (a nice “ If” only resting upon Maine’s own confident assertion”) then, (dies “ then” Pecksniffian),  
at any early period, [Maine transports his “patriarchal” Roman family into the very beginning of things]  
the married woman had among the Hindoos her property altogether enfranchised from her husband's  
control [“enfranchised” , that is to say, from Maine’s “ confident assertion”], it is not easy to give a  
reason why the obligations of the family despotism [a principal pet-doctrine of blockheaded John Bull  
to read in original “despotism” ] were relaxed in this one particular (MARX, 1974, p. 324).  
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que a constituição do direito bretão, a primeira constituição jurídica escrita que se tem  
registro no país, é concomitante à conversão do povo celta ao cristianismo (por volta  
do séc. IV), período no qual todo o poder clerical irlandês foi concentrado nas mãos  
de monges missionários (que constituíam a chamada “tribo dos santos”) ou bispos  
vinculados a eles, que apagaram dos institutos jurídicos os traços de religiosidade  
não-cristã que os antecederam. Também passou a ser imposto que os litígios fossem  
solucionados frente a uma autoridade bretã, de modo a homogeneizar o direito bretão  
como dominante. A “lei natural” ou o direito costumeiro, como colocavam os bretões,  
só era vinculante se coincidisse com a “lei da letra” por eles estabelecida, o que Marx  
critica como uma “baixaria” cristã (cf. MARX, 1988, p. 251).  
Os bretões chegaram a defender que São Patrício e outros grandes santos  
irlandeses sancionaram o direito bretão, e que alguns teriam diretamente revisado os  
tratados legais. Esse conjunto de normas também sofreu, através do clero, muita  
influência de direito canônico romano, do qual foram retiradas as previsões de  
testamento em benefício da Igreja e da ideia de contrato embasada no caráter sagrado  
das promessas. Os interesses materiais da Igreja também estavam muito bem  
protegidos pelos tratados, principalmente em uma seção do Senchus Mor denominada  
Corus Bescna (cf. idem). Assim, desde os primeiros registros escritos da legislação  
irlandesa, o vínculo do direito com o cristianismo é muito acentuado.  
Durante o domínio celta na Irlanda, muitas frações de terra foram transferidas  
para a Igreja, razão pela qual os eclesiásticos tiveram um grande papel em defesa da  
propriedade privada. Marx ressalta a seguinte passagem: “existe uma constante  
transferência de terras para a Igreja e uma estreita interpenetração entre direitos tribais  
e eclesiásticos... O direito bretão mostra que, na época em que estava em vigor, as  
causas etc. que eles agiram em conjunto em favor da propriedade privada...,  
produziram amplamente seu efeito” (MARX, 1988, p. 253 - tradução livre)27.  
O Corus Bescna é o principal tratado que versa sobre a propriedade coletiva da  
tribo e dos membros individuais ou das famílias que a compõem, no entanto, suas  
determinações efetivas são obscurecidas pela parcialidade dos juristas bretões em  
27 “y hay una constante transferencia de tierras a la Iglesia y una estrecha compenetración entre derechos  
tribales y eclesiásticos… El Derecho brehón muestra que, en la época en la que estaba vigente, las  
causas, etc. que febraban de concierto en favor de la propiedad privada…, habían producido  
ampliamente su efecto (92<:86>)” (MARX, 1988, p. 253).  
“and there is a constant transfer of lands to the Church, and an intimate intermixture of tribal rights with  
ecclesiastical rights Brehon law shows that by the time it was put into shape, causes etc. tending to  
result in Several Property ... had largely taken effect. (95)” (MARX, 1974, p. 290).  
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defender os interesses da Igreja:  
O principal tratado de direito bretão que revela os direitos recíprocos  
concernentes à propriedade coletiva da tribo e dos membros  
individuais ou famílias que a compõem se chama Corus Bescna. O que  
obscurece o assunto é a <<grande parcialidade que o compilador  
claramente demonstra a favor dos interesses da Igreja; de efeito, parte  
do tratado se faz declaradamente consagrada a normas da  
propriedade eclesiástica e de organização das instituições religiosas.  
Quando este escritor afirma que em certos casos um membro da tribo  
pode conceder ou prometer em contrato terras da tribo, sua  
propensão eclesiástica constantemente gera dúvidas no que toca a  
esta doutrina jurídica”28 (MARX, 1988, p. 254 - tradução livre)  
Desse modo, a propriedade coletiva é obscurecida no direito bretão, que  
manifestamente prioriza a propriedade eclesiástica. Não se sabe, por exemplo, se de  
fato era uma prática efetiva na organização social irlandesa antiga a concessão de  
terras coletivas à Igreja, prática que, à luz do direito bretão, seria juridicamente válida.  
Em outro momento, Marx também ressalta que os clérigos cobriram o direito bretão  
de uma espécie de “ficções jurídicas”, ou seja, cláusulas fabricadas pela Igreja que não  
correspondem à realidade, como pode ser o caso das doações de terras coletivas. Os  
clérigos eram os juristas na formação do direito bretão, ou seja, eram juristas clericais,  
não havendo a separação entre Igreja e Direito na forma como existe hoje. Marx  
também aponta que “além disso, já por serem juristas, seja de qual classe forem,  
servem-se com facilidade de classificações fictícias” (MARX, 1988, p. 258 - tradução  
livre)29.  
28 “El principal tratado de derecho brehón que pone de manifiesto los derechos recíprocos concernientes  
a la propiedad de la tribu colectiva y de los miembros individuales o familias que la componen se llama  
el Corus Bescna. impreso en el tomo tercero de la edición oficial (103 <:95». Lo que oscurece todo el  
asunto es la gran parcialidad que muestra. palmariamente el compilador tn favor de los intereses de la  
Iglesia; en efecto. parte del tratado se halla declaradamente consagrada a las normas de la propiedad  
eclesiastica y de organización de las casas religiosas. Cuando este escritor afirma que en cienos casos  
un miembro de la tribu puede conceder o dar en prenda tierras de la tribu, su propensión eclesiástica  
genera constantemente dudas en lo que toca a esta doctrina jurídica (104 <:96>)” (MARX, 1988, p.  
254).  
“D. chief Brehon law tract setting forth the mutual rights of of the collective tribe tribe and of individual  
tribesmen or households of tribesmen in respect of tribal property, is | called the Corus Bescna, printed  
in the third volume of the official edition. (103) Das was die ganze Sache verdunkelt ist the ‘strong and  
palpable bias of the compiler towards the interest of the Church; indeed, part of the tract is avowedly  
devoted to the law of Church property and of the organisation of religious houses. When this writer  
affirms that, under certain circumstances, a tribesman may grant or contract away tribal land, his  
ecclesiastical leaning constantly suggests a doubt as to his legal doctrine’ (104)” (MARX, 1974, p. 291)  
29 “los verdaderos nobles, los aires, distribuidos <en grados> [por los juristas clericales del <Derecho>  
Brehón, nota bene; este, como todos los viejos libros clericales (por ejemplo, Manu), repleto de ficciones  
en interés de la Iglesia. Aparte de esto ya por ser juristas, de la clase que sean, echan mano con facilidad  
de clasificaciones ficticias]” (MARX, 1988, p. 258).  
“D. true nobles - the Aires getheilt [von d. Pfaffenjuristen, d. Brehons notabene; dies wie alle alten  
Pfaffenbücher (Menu f.i.) voller fictions in Interesse d. Chiefs, höheren Stände etc, schliesslich all das  
wieder in Interesse der Kirche. Ausserdem sind sie wie Juristen aller Sorten bei d. Hand mit fictive  
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Nesse sentido, há também uma relação entre classificações jurídicas em geral e  
a teologia, entre as “ficções jurídicas” e as classificações fictícias do direito e da religião  
como um todo, ou seja, aproxima-se o aparato categorial da religião com o do direito.  
Temos aqui o modo como religião e direito na história da Irlanda também se conectam  
diretamente com o desenvolvimento da propriedade privada. Essa relação,  
estendendo-se para além da mera constituição do direito bretão, também vai aparecer  
quando Marx trata do embargo no direito inglês, trazendo sua percepção sobre a  
teoria do direito: que a jurisprudência é pena do mesmo pássaro que as formalidades  
religiosas. Vejamos:  
Do mesmo modo, Blackstone faz, com relação à lei inglesa sobre  
embargo, a seguinte observação: <<As inúmeras formalidades que  
acompanham um embargo, antigamente tornavam-no um  
procedimento arriscado, pois bastava a menor irregularidade para  
viciá-lo por completo. [...]>>  
[Esse tecnicismo exagerado do Direito antigo mostra que a  
jurisprudência é uma pena do mesmo pássaro que as formalidades  
religiosas, v. g. em presságios! - etc., ou a mágica do curandeiro entre  
os selvagens!] (MARX, 1988, pp. 280-281 - tradução livre)30  
Jurisprudência, aqui, remete ao surgimento da teoria do direito, e não ao  
sentido atualmente utilizado de conjunto de entendimentos e decisões tomadas por  
tribunais acerca de um tema ou matéria de direito (acórdãos, súmulas, decisões  
monocráticas etc.). Marx traz o jurista inglês William Blackstone (1723 - 1780), autor  
de Commentaries on the Laws of England (1765-69), demonstrando seu conhecimento  
sobre a filosofia do direito britânica, para falar sobre as formalidades, os rituais  
burocráticos intrínsecos ao uso cotidiano do direito. E é justamente em seu tecnicismo  
que Marx aproxima o direito da religião, e mais especificamente das formalidades  
religiosas, como “penas do mesmo pássaro”, destacando o caráter ritualístico de  
classifications.)]” (MARX, 1974, p. 295).  
30  
Igualmente Blackstone hace, a propósito del Derecho inglés sobre el embargo, la siguiente  
observación: <<Las numerosas formalidades que acompañan un embargo, lo convirtieron antiguamente  
de ordinario en un procedimiento arriesgado, porque bastaba la menor irregularidad para viciarlo  
totalmente. [...] >>  
[¡Este tecnicismo exagerado del Derecho antiguo muestra que la jurisprudencia es una pluma del mismo  
pájaro que las formalidades religiosas, v. g. en los augurios! - etc., o la prestidigitación del curandero  
entre los salvajes!] (MARX, 1988, pp. 280-281).  
Ebenso Blackstone remarks on English Law of Distress: “The many particulars which attend the taking  
of a distress used formerly to make it a hazardous kind of proceeding; for, if any one irregularity was  
committed, it vitiated the whole.” (273)  
[Diese excessive technicality of ancient law zeigt Jurisprudenz as feather of the same bird, als d.  
religiösen Formalitäten z.B. bei Augur’s etc, od. d. Hokus Pokus des medicine man der savages!] (MARX,  
1974, p. 320)  
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ambos, sua unidade em comum.  
Mais à frente, Marx ironiza a postulação de Maine de que o jurista não tem  
relação com a moral (entre colchetes), vejamos: “< << > O jurista propriamente dito  
não tem nada a ver com nenhum tipo ideal de lei ou moral>> [Correto! Tampouco a  
teologia!]” (MARX, 1988, p. 291 - tradução livre)31, sinalizando que o jurista estaria  
tão vinculado a uma percepção de lei e moral idealistas quanto está à religião no que  
se diz respeito à lei e à moral divinas, ressaltando novamente o vínculo entre direito e  
religião, mais especificamente à teologia, não só na Irlanda, mas como um todo.  
Já no início do século XVII, os juízes anglo-irlandeses declararam vigentes em  
toda a Irlanda o common law inglês (cf. MARX, 1988, p. 254). Desse modo, agora o  
direito inglês se sobrepunha não só aos costumes irlandeses, mas também às regras  
do direito bretão, em mais uma tentativa de homogeneização da legalidade dominante,  
neste momento diretamente relacionada com as exigências de domínio colonial.  
Marx não poupa palavras para criticar a colonização inglesa na Irlanda e os  
representantes da monarquia inglesa, desvelando seus interesses reais. Chama James  
I de um “imbecil e pedante louco, o qual Hume elogiou como o ‘Salomão britânico’”32  
(ibidem, p. 268 - tradução livre), cujo objetivo consciente era o espólio e a pilhagem  
das terras irlandesas, e “cuja insaciável rapinagem e constantes apuros de dinheiro  
são notórios” (ibidem, p. 267 - tradução livre). Os irlandeses foram “expulsos e  
submetidos” e tiveram terras e bens confiscados, “tudo sobre o pretexto do  
antipapismo” (cf. ibidem, p. 267). Ademais, este rei escolheu como o “miserável  
adequado” para ser fiscal geral da Irlanda sir John Davis, que trouxe como remédio  
para os males do país nada mais que guerra e destruição (cf. ibidem).  
Várias leis severas foram editadas para assegurar a adequação ao modo de vida  
inglês. O direito irlandês de embargo (procedimento que consistia em penalizar o autor  
de um prejuízo embargando seus bens), por exemplo, foi classificado como crime  
capital com pena de morte pelos “cachorros dos ingleses”. Porém, se o embargante,  
ao tentar de boa fé seguir a lei estrangeira, cometesse um equívoco qualquer, ele  
também podia ser levado à forca: “Ou seja, enforcado se agisse de acordo com sua lei  
31 < << >El jurista propiamente dito no tiene nada que ver con ningún tipo ideal de ley o de moral>>  
(370 <:331>) [!Muy cierto! !Como tampoco la teología!] (MARX, 1988, p. 291).  
The jurist, properly so called, has nothing to do with any ideal standard of law or morals.” (p. 370. Very  
true this! as little as theology has!) (MARX, 1974, p. 332).  
32  
[este <<imbecil y pedante loco>>, a quem Hume alabó como el <<Salomón británico>>] (MARX,  
1988, p. 268)  
[dieser “silly, pedantic fool”, der “British Solomon lauded by Hume] (MARX, 1974, p. 306)  
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tradicional, e igualmente enforcado se tentasse se adaptar à lei inglesa imposta!”  
(ibidem, p. 283 - tradução livre). Marx ressalta, então, o contrassenso, a hipocrisia da  
violência colonial, e o papel do direito inglês em afirmar ativamente essas atrocidades.  
Entretanto, para Maine, a máxima felicidade do maior número de pessoas é o  
que rege o direito e o que está por trás do valor de uma legislação. Certamente, essa  
constatação, trazida do utilitarismo de Bentham33, é no mínimo absurda perante a  
forma violenta e coercitiva pela qual as leis inglesas foram impostas perante as  
colônias, como vimos de modo um pouco mais detido no exemplo da Irlanda, mas  
também na Índia. Ela uma “grande ideia” que, para Maine, sempre serviu de base para  
o desenvolvimento humano:  
Sem o desaparecimento dos <<grupos sociais menores>> e a ruína  
da autoridade que, seja o governo popular ou autocrático, eles  
possuíam sobre seus membros, como diz o honorável Maine, sempre  
nos faltariam várias grandes ideias que dominam o conjunto de nossas  
noções (86<:80>). E quais são essas grandes ideias?: (...) <<a  
atividade sempre crescente da legislação burro / asno (asinus)o  
teste do valor de uma legislação… a saber: <<a maior felicidade do  
maior número>> (MARX, 1988, pp. 252-253 - tradução livre)34.  
Maine sugere uma série de ideias, mas aqui focamos na que Marx intervém  
diretamente. Mais uma vez, ao se direcionar ao jurista como asno (asinus), Marx deixa  
claro para nós como a teoria do direito em Maine é apologista, negando o  
desenvolvimento da história, a gênese real do direito e a violência colonial com a  
33  
Bentham traz como central em sua teoria o princípio da utilidade, o qual define, basicamente, como  
o princípio que aprova ou desaprova qualquer ação de acordo com a tendência que ela apresenta em  
aumentar ou diminuir a felicidade (como sinônimo de benefício, vantagem ou prazer) da parte  
interessada, seja ela um indivíduo específico ou uma comunidade (representada pela soma dos  
interesses daqueles que a compõem) (cf. BENTHAM, 2000, pp. 14-15).  
34  
Sin la desaparición de los <<grupos sociales menores>> y la ruina de Ia autoridad que, fuera el  
gobierno popular o autócrata, poseían sobre sus miembros, según dice el digno Maine, hubiéramos  
carecido siempre de varias grandes ideas que dominan el conjunto de nuestras nociones (86<: 80>). Y  
¿cuáles son esas grandes ideas?: <<La de la tierra como una mercancía intercambiable, diferente de  
las demás sólo en que sus existencias son limitadas>> (86, 87<: 80>), <<la teoría de la soberanía>>  
o, en otros términos, de un <<<poder coercitivo ilimitado ejercido por una parte de cada comunidad  
sobre el resto>>, <<la teoría de la ley como emanación de la voluntad exclusiva del soberano uno o  
múltiple>>, <<la actividad progresivamente creciente de los legisladores y [¡burro!]la piedra de  
toque del valor de una legislación… a saber: <<la máxima felicidad del mayor número de gente>>  
(MARX, 1988, pp. 252-253).  
Ohne d. collapse der “smaller social groups” and the decay of the authority which, whether popularly or  
autocratically governed, they possessed over the men composing them, wie sagt d. würdige Maine,  
(we)10 “should never have had several great Conceptions which lie at the base of our stock of thought”  
(86) u. zwar sind diese great conception(s): “the conception of land as an exchangeable commodity,  
differing only from others in the limitation of the supply” (86, 87), “the theory of Sovereignty ”, or (in  
other words) of a portion in each community possessing unlimited coercive force over the rest”, ,“the  
theory of Law as exclusively the command of a sovereign One or Number”, “the ever increasing activity  
of legislation” u. - [asinus!] - der test of the value of legislation ... viz: “the greatest happiness of the  
greatest number.” (MARX, 1974, p. 289)  
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máxima utilitarista que sugere uma associação direta entre direito e felicidade. Assim,  
temos que a crítica marxiana à teoria do direito é central em sua crítica a Maine, da  
qual defende a necessidade de compreender o direito real a partir de sua gênese,  
assim como a família e o Estado, que também são construções sociais e históricas,  
conforme expomos.  
Considerações finais  
Frente a uma análise detalhada de uma série de trechos retirados dos Cadernos,  
passamos agora para as considerações finais. Não vemos propósito em sintetizar as  
conclusões chegadas ao longo do texto, empobrecendo-as, mas tão somente em  
estender nossa análise frente aos resultados obtidos, ainda que repetindo alguns  
elementos já mencionados. Nesse sentido, concordamos com Chasin, que não cabe o  
que é tradicionalmente entendido por uma conclusão, tratando-se de “uma  
redundância empobrecida, pois não seria mais do que um simples resumo, enquanto  
a análise imanente propriamente dita, a seu plano, é conclusiva no seu próprio  
decurso” (CHASIN, 1978, p. 604).  
Em geral, os “assim chamados” Cadernos Etnológicos, mais especificamente na  
crítica de Marx a Maine, detém um material muito rico para quem se debruça sobre a  
temática, e não devem ser deixados de lado pelas dificuldades que envolvem sua  
leitura. É evidente que os breves e elogiosos comentários de Pachukanis sobre Maine  
não são suficientes para a crítica ao direito, e que tampouco devemos tomar como  
base insuperável os comentários de Krader sobre o conteúdo que ele mesmo editou,  
e por isso ressaltamos a relevância do retorno ao próprio texto como um esforço a ser  
empreendido pela tradição marxista hoje.  
Todas as citações que Pachukanis traz de Maine em sua obra Teoria geral do  
direito e marxismo são extremamente formais, por exemplo:  
Assim, Maine, por exemplo, aponta que o próprio jus gentium era fruto  
do desprezo que os romanos alimentavam para com todo direito  
estrangeiro e de sua relutância em conceder aos estrangeiros os  
privilégios de seu próprio jus civile nativo. Os antigos romanos,  
segundo Maine, gostavam tão pouco do jus gentium quanto dos  
estrangeiros aos quais ele se destinava. A própria palavra aequitas  
significava igualdade, embora, provavelmente, essa expressão não lhe  
atribuísse a princípio nenhum matiz ético, e não há fundamento para  
presumir que o processo indicado por essa expressão despertasse  
qualquer coisa além de aversão na mente do romano primitivo.  
(PACHUKANIS, 2017, pp. 157-8)  
O estudo do próprio Marx, no entanto, ao qual Pachukanis não teve acesso,  
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A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos etnológicos de Karl Marx  
mostra-se fundamentado em uma crítica à teoria do direito enquanto base do  
pensamento de Maine. Ao passo que o soviético traz elementos úteis das obras de  
Maine, ele o faz, em geral, de modo acrítico, perdendo o ponto central, o caráter  
apologista das obras do jurista inglês, e, por isso, as anotações do próprio Marx são  
muito mais completas para este estudo.  
O retorno aos Cadernos para a crítica marxista ao direito também se mostra  
relevante quando consideramos que não somente a edição de Krader é parcial, como  
também sua compreensão do texto não é perfeita. Acerca da crítica de Maine à visão  
de soberania de Austin, que expusemos acima, Krader entende que Marx concorda  
com Krader entende que Marx concorda com Maine que a visão de soberania de Austin  
é “resultado de uma abstração”, e somente adiciona aspectos nesse sentido (cf.  
KRADER, 1974, p. 39). No entanto, conforme demonstramos, Marx não concorda com  
a crítica de Maine, entendendo que ela é moralista, resume-se a elementos morais.  
Para o mouro, o soberano não é o representante das forças sociais, mas a crítica de  
Maine apenas revela o quão pouco o jurista sabe sobre o assunto, dado que ignora,  
dentre outros aspectos, a influência fundamental dos elementos econômicos na política  
e na moral (cf. MARX, 1988, p. 289). Este exemplo nos serve para demonstrar que  
tampouco podemos partir de Krader como o último argumento de autoridade sobre o  
tema.  
Nos trechos que trabalhamos dos Cadernos, temos um Marx maduro, que não  
só faz críticas a Maine e a outros pensadores de sua época, mas também expõe um  
pensamento autêntico e coerente com a percepção desenvolvida ao longo de sua vida.  
Marx demonstra que consegue ir muito além daquilo que era prestigioso em seu  
tempo, contrapondo-se ao pensamento colonialista e patriarcalista, que, em Maine, é  
bastante amparado na teoria da escola analítica do direito, de modo que, a crítica ao  
direito e a crítica à teoria do direito tomam uma posição de destaque nos comentários  
marxianos. Além da interpretação de outros autores, o texto traz temas novos que  
enriquecem a crítica marxiana ao direito, dentre eles a colonização, e a análise da  
história da Irlanda. Assim, ressaltamos a importância de um estudo detido dos  
Cadernos, o que no presente artigo se coloca de modo apenas incipiente.  
Referências bibliográficas:  
ÁLVARES, Lucas Parreira. Flechas e Martelos: Marx e Engels como leitores de Lewis  
Morgan. Dissertação (mestrado) da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo  
Horizonte: UFMG, 2019.  
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Ana Carolina Marra de Andrade  
ANDERSON, Kevin B. Marx nas margens. São Paulo: Boitempo, 2019.  
BENTHAM, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Batoche  
Books: Kitchener, 2000.  
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Como citar:  
ANDRADE, Ana Carolina Marra de. A crítica ao direito nos “assim chamados” Cadernos  
Etnológicos de Karl Marx: os comentários a Henry Sumner Maine. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 29, n. 1, pp. 465-492; jan.-jun., 2024  
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ISSN 1981 - 061X v. 29, n. 1, pp. 465-492 jan.-jun., 2024  
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TRADUÇÃO  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.721  
Tradução  
_____  
Quem escreveu o artigo Socialismo dos juristas?  
Problemas para estabelecer a autoria na edição do  
Volume I/31 da MEGA-2*  
Renate Merkel-Melis**  
O artigo Socialismo dos juristasapareceu no segundo número da Neue Zeit  
em 1887.1 O tema era o texto de Anton Menger, O direito ao produto integral do  
trabalho. Exposição histórica. Nele, Menger objetivou, como ele escreveu na  
Introdução, “lidar com as ideias fundamentais do socialismo de um ponto de vista  
jurídico”.2 Ele entendia que isto era a transformação das ideias socialistas em conceitos  
jurídicos sóbrios e queria usar isto como base para fornecer uma fundamentação para  
o socialismo. Ele traçou o desenvolvimento do direito ao produto integral do trabalho  
na literatura socialista e acusou Marx e Rodbertus de plagiarem os antigos teóricos  
ingleses e franceses. Apesar do escrito de Menger ter causado grande agitação quando  
foi publicado, ele mesmo não alcançou nenhuma importância significativa em sua  
época e, na melhor das hipóteses, alcançou certo impacto duradouro com suas críticas  
ao primeiro rascunho do BGB [Código Civil da Alemanha] em 1890.  
Curiosamente, na década de 1970, uma nova atenção se voltou para o  
socialismo jurídico e com ela uma redescoberta de Anton Menger. Isto foi justificado  
*
Tradução de Murilo Leite Pereira Neto e revisão técnica da tradução de Vitor Sartori. O Artigo foi  
publicado originalmente em Beiträge zur Marx-Engels-Forschung. Neue Folge 2000, sob o título Wer  
schrieb den Artikel „Juristen-Sozialismus“? Probleme der Autorschaftsbegründung bei der Bearbeitung  
für Band I/31 der MEGA-2. O texto original pode ser acessado em: https://marxforschung.de/2016/wp-  
content/uploads/2022/07/BzMEF_NF20_R.-Merkel-Melis_S.-86-94.pdf. [Nota do Tradutor]  
** Renate Merkel-Melis (1937 2012) foi uma historiadora e editora alemã, nascida em Berlim. Trabalhou  
para o Institut für Marxismus-Leninismus, na década de 1950, e para a Marx-Engels-Gesamtausgabe  
(MEGA). Produziu inúmeros artigos sobre a edição das obras de Marx e Engels. [Nota do tradutor]  
1
Juristen-sozialismus. In: Die Neue Zeit, Revue des geistigen und öffentlichen Lebens Stuttgart, Jg. 5,  
1887, H. 2, S. 49-62.  
2 Anton Menger: Das Recht auf den vollen Arbeitsertrag in geschichtlicher Darstellung, Stuttgart 1886,  
S. IV.  
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Renate Merkel-Melis  
pela “reorientação da ciência do direito [Jurisprudenz] de uma ciência do espírito para  
uma ciência social”, na qual “o legado anteriormente enterrado e escondido do século  
XIX [...] está finalmente a ser restaurado”3. Isto incluiu as críticas de Menger às  
instituições e ideologias do direito civil [bürgerlichen Rechts] e o seu engajamento  
social com as classes populares pobres e exploradas. Quatro dissertações apareceram  
em pouco tempo; a revista Quaderni fiorentini dedicou um número duplo a uma revisão  
historiográfica criteriosa em 1974/75. Em 1977, uma tradução do Socialismo dos  
juristas foi publicada nos EUA com uma breve introdução.4  
Sabendo disso, vamos agora passar aos problemas de edição do artigo do Neue  
Zeit para MEGA-25. A tarefa dos editores hoje não é mais avaliar as polêmicas,  
glorificar o socialismo de Marx como unicamente científico e condenar Menger. Em vez  
disso, como nós já começamos com Eugen Dühring na MEGA-2 Volume I/27, é  
importante olhar para ele de uma perspectiva diferenciada, em sua própria época. O  
lugar para isso é a história do texto. O principal problema da edição histórico-crítica  
do texto, porém, é a determinação mais precisa da autoria, e esta questão será o foco  
das considerações seguintes.  
Nenhum autor foi citado na crítica ao livro de Menger para o Neue Zeit; mas  
sabe-se que foram Friedrich Engels e Karl Kautsky. Para a edição, foi necessário tentar,  
indo além das descobertas anteriores, determinar com mais precisão a contribuição de  
Engels e Kautsky. A questão do título deste artigo necessita ser precisada. Não é quem  
escreveu o artigo Socialismo dos juristas, mas quem escreveu o quê para este artigo?  
Como esse problema foi tratado na literatura até agora? Engels e Kautsky foram  
nomeados autores pela primeira vez em 1904, numa tradução francesa de Léon Remy  
para a revista Le Mouvement Socialiste: Engels aparece como autor no índice, e uma  
nota de rodapé introdutória indica a autoria conjunta com Kausky.6 Em 1905, o  
Registro geral dos conteúdos dos anos de 1883 a 1902 do Neue Zeit listou Engels e  
3
Norbert Reich: Der Juristensozialismus von Anton Menger (1841-1906) im neunzehnten Jahrhundert  
und heute. ln: Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, Milano, 3-4 (1974-75),  
S. 158.  
4 Piers Beirne: Introduction to Juridical Socialism; Friedrich Engels and Karl Kautsky: Juridical Socialism.  
In: Politics and Society, Thousand Oaks, Calif, (u. a.), Vol.7, 1977, Nr. 2, S. 199-201, 203-220.  
5
Trata-se do mais abrangente projeto editorial das obras de Marx e Engels, a Marx-Engels-  
Gesamtausgabe (MEGA), cujo objetivo é publicar as obras completas dos autores alemães, a partir da  
edição histórico-crítica, respeitando o estado dos originais. O complemento “2” remete à história de  
descontinuidade do aludido projeto editorial, que tem sua primeira fase iniciada na década de 1920 e  
foi retomada, após uma longa interrupção na década de 1930, em 1975, quando, de fato, inicia a  
segunda fase do projeto editorial. [Nota do Tradutor]  
6
Socialisme de Juristes. In: Le Mouvement Socialiste. Revue mensuelle internationale, Paris, 6e année,  
15. Januar 1904, S. 572 und 97.  
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Quem escreveu o artigo Socialismo dos juristas?  
Kautsky como autores.7  
Nas edições das obras de Marx-Engels, não foi feita nenhuma tentativa de  
determinar com mais precisão as respectivas contribuições de Engels e Kautsky. Do  
volume 2l de Sočinenija8 de 1961 passando pelo volume 2l de MEW9 de 1962 até o  
volume 26 de Collected Works10, publicado em 1990, a mensagem lacônica é:  
“Considerando que a caligrafia deste artigo não pode ser encontrada e, portanto, não  
é possível determinar qual parte do artigo foi escrita por Engels e qual parte foi escrita  
por Kautsky, o artigo é reproduzido na íntegra como um anexo neste volume”.11  
Na literatura que tratou do Socialismo dos juristase do seu representante  
Anton Menger com surpreendente intensidade na década de 1970, apenas Thilo Ramm  
abordou a questão da autoria. Em ensaio publicado em 1975 no anuário italiano  
Quaderni Fiorentini, ele defendeu a tese que “a introdução [...] e a conclusão [...], bem  
como algumas outras formulações do texto, provavelmente são de Engels”.12 Ele não  
deu uma fundamentação. Referindo-se a isso, Peter Schöttler declarou no jornal  
trimestral Demokratie und Recht de 1980 que a afirmação de Ramm de que Engels  
havia escrito o início e o fim do artigo era “pura especulação”. Além disso, para ilustrar  
a estreita relação entre os dois, citou, dessa época (6/04/1887), a carta de Engels a  
Sorge, na qual afirmava que confiava em Kautsky tal como confiava em si próprio.13  
Em 1992, Till Schelz-Brandenburg utilizou a correspondência de Kautsky-  
Bernstein, a partir da qual foi possível “a investigação mais detalhada da autoria que  
ainda estava aberta poderia ser esclarecida até certo ponto”.14 Schelz-Brandenburg  
desenvolve a seguinte tese: o plano e o primeiro esboço são de Kautsky, Engels editou  
então este manuscrito completamente; Kautsky depois assumiu novamente a edição  
final porque Engels ficou doente. Esta afirmação também levanta preocupações  
7 General-Register des Inhalts der Jahrgänge 1883 bis 1902 der Neuen Zeit. In: Die Neue Zeit, Stuttgart  
1905, S.20.  
8
Edição russa das obras de Marx e Engels, ativa entre 1928 e 1947, publicou 28 volumes. [Nota do  
Tradutor]  
9 A Marx-Engels-Werke (MEW) foi a edição alemã das obras de Marx e Engels, publicou 41 volumes em  
43 livros, entre 1956 e 1968. [Nota do Tradutor].  
10  
Marx/Engels Collected Works (MECW) é a edição e tradução inglesa das obras de Marx e Engels,  
publicadas de 1975 a 2004, em 50 volumes. [Nota do Tradutor]  
11 MEW 21, S. 617, Anm. 464.  
12 Thilo Ramm: Juristensozialismus in Deutschland. In: Quaderni Fiorentini per la storia  
des pensiero giuridico moderno, Milaono, 3-4 (1974-75), S. 7.  
13  
Peter Schöttler: Friedrich Engels und Karl Kautsky als Kritiker des Juristen-Sozialismus. In:  
Demokratie und Recht, Hamburg, 8. Jg., H. l/1980, S. 5.  
14  
Till Schelz-Brandenburg: Eduard Bernstein und Karl Kaursky. Entstehung und Wandlung des  
sozialdemokratischen Parteimarxismus im Spiegel ihrer Korrespondenz 1879 bis 1932, Köln, Weimar,  
Wien 1992, S. 99, Anm. 133.  
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significativas sobre a edição completa do manuscrito por Engels.  
Para a edição do Socialismo dos juristasno volume da MEGA, a gênese teve  
que ser examinada primeiro, ou seja, a datação teve que ser determinada e a  
correspondência avaliada. O livro de Menger foi anunciado no Börsenblatt em 20 de  
outubro de 1886 como “recém-publicado”.15 No final de Outubro como se pode ver  
no fragmento não datado de uma carta a Bernstein , Kautsky tomou contato com o  
livro em Londres.16 Laura Lafargue escreveu a Engels no final de outubro sobre os  
comentários rancorosos de Menger contra Marx.17 Engels respondeu no dia 2 de  
Novembro: “Temos o livro aqui e darei notas a Kautsky suficientes para que ele possa  
esmagar esse descarado”.18 Até agora, a pré-história.  
Sobre a gênese em si. Na quinta-feira, 18 de novembro, Kautsky disse a  
Bernstein que estava trabalhando em um artigo sobre Menger, com o qual Engels  
queria ajudá-lo, mas que só seria acrescentado no final desta semana ou no início da  
próxima semana devido à revisão. Ele não queria terminar o artigo sem ele.19 Na  
segunda-feira, 22 de novembro, Kautsky escreveu a Bernstein: “Vou dar uma boa surra  
em Menger, o que não é nenhuma arte quando o General lhe escreve metade ou  
mais”.20 Dois dias depois, Engels relatou a Laura Lafargue: “Dei a K. os materiais  
necessários e, em parte, resolvi-os sozinho, na medida do necessário”.21  
Daí se segue: Kautsky começou a trabalhar em 18 de novembro, Engels ainda  
não. Em 22 de novembro claramente houve um acordo sobre a divisão do trabalho  
planejada; no dia 24 de novembro, Engels não só deu apontamentos a Kautsky, mas  
também entregou o manuscrito. Kautsky revelou confidencialmente algo sobre os  
motivos pelos quais Engels não assumiu pessoalmente a polêmica: ele não queria “dar  
ao sujeito a honra de espancá-lo pessoalmente”.22  
No entanto, Engels não conseguiu cumprir a sua parte na contenda na extensão  
15 Börsenblatt für den Deutschen Buchhandel und die mit ihm verwandten Geschäftszweige, Leipzig, 53.  
Jg., Bd. 4, Nr. 245, 22. Oktober 1886, S. 5852.  
16 Quando questionado sobre isto por Bernstein em 24 de outubro de 1886 (IISG, Nachlass Karl Kautsky,  
Sign. D V 73), Kautsky respondeu: “Notabene. Menger é um burro”. (Russisches staatliches Archiv für  
Sozial- und Politikgeschichte (RGA), f 204, op. 1, d. 899).  
17  
Laura Lafargue an Engels, [30.] Oktober 1886. In: Friedrich Engels, Paul und Laura Lafargue:  
Correspondance, t. 1 (1868-1886), Paris 1956, S. 403/404.  
18  
“Estamos de posse do livro aqui, e darei a Kautsky apontamentos suficientes para que ele possa  
acabar com esse sujeito atrevido” (MEW 36, S. 565.).  
19 RGA, f. 204, op. 1, d. 903.  
20 RGA, f. 204, op. 1, d. 905.  
21  
“Eu forneci a K[autsky] os materiais necessários e eu mesmo elaborei alguns deles quando preciso”  
(MEW 16. S. 572.).  
22 RGA, f. 204, op. 1, d. 905.  
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planejada a doença impediu-o de o fazer e obrigou Kautsky a terminar o artigo.23 Na  
sua carta a Bernstein de 8 de dezembro de 1886, ao discutir o “mal-estar” de Engels,  
Kautsky disse que Engels confessara uma vez que, “enquanto trabalhava no artigo,  
não conseguia manter os pensamentos sob controle e muitas vezes escrevia  
disparates”.24  
O trabalho de Engels pode, portanto, ser datado por volta de 22 de novembro,  
não tendo se iniciado antes do dia 19 (“final desta semana”) e, em princípio, foi  
concluído no mais tardar no dia 24. Não se pode descartar que ele ainda estivesse  
lidando com isso na semana seguinte. Assim, é possível que a datação fornecida na  
MEW seja a mais precisa. A nota correspondente aqui afirma que “em outubro de  
1886” Engels “[...] planejou” o artigo25; ou, nos dados biográficos, que trabalhou nele  
“de novembro a início de dezembro”26.  
Passemos agora às respectivas contribuições de Engels e Kautsky. Kautsky disse  
na sua carta a Bernstein de 22 de novembro: “você reconhecerá por si mesmo o que  
vem de mim e o que vem dele”. Essa afirmação quebra a cabeça do editor, mas precisa  
ser relativizada. O artigo ainda não estava terminado (“Vou dar uma surra em Menger”),  
a parte exata de Engels ainda não foi determinada (“metade ou mais”) e ele não  
conseguiu trabalhar nisso na extensão pretendida.  
Quase vinte anos depois, na sua crítica da Nova Teoria Ética [Neuer Sittenlehre]  
de Menger, Kautsky regressou ao seu trabalho de 1886 e comentou sobre a autoria  
partilhada do Socialismo dos juristas: “Naquele tempo, Engels escreveu uma crítica do  
livro para o Neue Zeit, mas tive de terminá-la porque Engels foi impedido de fazê-lo  
por uma doença súbita”.27 Quase quarenta anos depois, durante os preparativos para  
a edição das cartas de Engels, Bernstein perguntou sobre “a cooperação do general”  
e presumiu que Kautsky tinha redigido o artigo e Engels tinha fornecido aditamentos.28  
(ênfase de R.M.-M.)  
Para determinar a autoria, critérios adicionais relacionados ao conteúdo devem  
ser utilizados, além das passagens sobre a história da gênese na correspondência. Por  
um lado, podem ser identificados aqui paralelos e analogias com outras obras de  
23 RGA, f. 204, op. 1, d. 906.  
24 Ibidem.  
25 MEW 21, S. 617, Anm. 464.  
26 Ibidem, S. 654.  
27 Karl Kautsky: Mengers Neue Sittenlehre. In: Die Neue Zeit, Stuttgart, 24. fg., 1905-06, Bd.1, Nr. 3,  
S, 77.  
28 Eduard Bernstein an Karl Kaursky, 29. Mai 1924. (IISG, Kautsky-Familienarchiv, Nr. 135.).  
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Engels e Kautsky; por outro lado, há indícios claros nas polêmicas concretas que  
apontam para a autoria de Engels.  
A parte teórica introdutória do artigo, começando com a afirmação: “A visão de  
mundo da Idade Média era essencialmente teológica”29, é um esboço independente da  
história das visões de mundo e tem uma série de paralelos e analogias com outras  
obras de Engels e Kautsky. Em termos de dicção é semelhante ao capítulo “I. Geral”  
da “Introdução” do Anti-Dühring.30 Contém vários pontos de contato com este e com  
o Capítulo X, “Moral e Direito. Igualdade” da “Primeira Seção: Filosofia”.31 Há também  
ecos de passagens do capítulo IV da obra de Engels Ludwig Feuerbach e o fim da  
filosofia clássica alemã, da qual uma passagem também é citada em nota de rodapé.32  
Algumas destas declarações são muito gerais: a formação do cristianismo como  
religião correspondente à Idade Média e a subordinação de todas as formas de  
ideologia à teologia,33 o desenvolvimento da burguesia “no ventre” da Idade Média  
feudal.34 Em Ludwig Feuerbach encontra-se a imagem da religião como uma "bandeira"  
e disfarce para os interesses da burguesia na revolução burguesa inglesa, com a  
passagem imediatamente posterior para a França e a menção às principais figuras do  
iluminismo, Pierre Bayle e Voltaire.35 A ideia de que o proletariado surgiu como  
“oposiçãoà burguesia ou como sua “sombra” é desenvolvida no Anti-Dühring36, e no  
mesmo ponto também aparece a ideia da expansão da exigência de igualdade do  
terreno dos direitos políticos à situação social.37 Há outro paralelo com o Anti-Dühring:  
os grandes utópicos Saint-Simon, Fourier e Owen abstraíram-se do contexto histórico  
e apelaram à humanidade, o que fez com que o momento para a realização das suas  
exigências se tornasse completamente fortuito no Anti-Dühring 500 anos, no  
Socialismo dos juristas1000 anos, mais cedo ou mais tarde.38  
Contudo, a estreita ligação com as ideias de Engels não está em contradição  
com o fato de Kautsky ter, provavelmente, escrito a parte introdutória. Como pode ser  
29 Juristen-Sozialismus, a.a.O. S. 49.  
30 Friedrich Engels: Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring). In: MEGA-2 I/27,  
S. 226-237.  
31 Ibidem, S. 303-305.  
32  
Friedrich Engels: Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen philosophie. IV. In:  
Die Neue Zeit, Stuttgart, Jg. 4, 1886, S. 206. Sp. l/2.  
33 Cf. Engels: Ludwig Feuerbach ..., a.a.O., S.207. Sp.2.  
34 Cf. Engels: Herrn Eugen Dührings ..., a.a.O., S. 303.39-41.  
35 Cf. Engels: Ludwig Feuerbach ..., a.a.O., S.208. Sp.1.  
36 Cf. Engels: Herrn Eugen Dührings ..., a.a.O., S. 229.21-26 e S. 305.27-30.  
37 Ibidem, S. 229.38-40 e S. 305.37-39.  
38 Cf. Engels: Herrn Eugen Dührings ..., a.a.O., S. 230.24-25.  
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visto em sua carta a Bernstein datada de 18 de outubro39 de 1886, ele havia começado  
a trabalhar. O Anti-Dühring de Engels foi formativo para o desenvolvimento de sua  
visão de mundo foi por meio dele que ele se tornou "um marxista convicto e  
consequente".40 É claro que ele conhecia Ludwig Feuerbach, que foi publicado no Neue  
Zeit em 1886.  
O material era familiar a Kautsky: em 1885 ele havia estudado sobre a história  
do cristianismo e escrito um longo artigo sobre o assunto para o Neue Zeit. A seção  
acima mencionada em Socialismo dos juristascontém ecos de suas passagens  
introdutórias, nas quais a identificação das construções sociais da Idade Média e da  
monarquia absoluta com a Igreja, bem como a necessidade histórica da luta do  
iluminismo e sua vitória sobre a teologia são delineados.41 No ano seguinte, publicou  
uma série de artigos em várias partes sobre A Miséria da Filosofia e O Capital no Neue  
Zeit, nos quais elogiou a concepção materialista da história desenvolvida por Marx e  
delineou o conteúdo do primeiro volume de O Capital.42 Imediatamente antes de  
trabalhar no Socialismo dos juristas, Kautsky completou uma versão popular de O  
capital no verão de 1886 as Lições Econômicas de Karl Marx, que Engels revisou –  
e, portanto, tinha prática em resumir declarações teóricas básicas. É seguro assumir  
que a referência ao Ludwig Feuerbach de Engels não veio da sua própria pena;  
provavelmente remonta a uma referência correspondente.  
Engels poderia ser o autor de pelo menos partes das passagens subsequentes  
do artigo, que tratam diretamente da escrita de Menger. A forma de primeiro citar o  
oponente, depois condenar as suas declarações como infundadas, sem poupar  
zombarias mordazes, corresponde ao método polemista praticado por Engels, como  
já o havia utilizado contra Eugen Dühring e em muitos outros escritos.  
Nessas passagens, há indícios de uma influência concreta no conteúdo. No  
breve tratamento de Proudhon, é feita a referência ao seu falido banco de câmbio, que  
Engels forneceu quando aditou uma nota de rodapé de Marx na tradução alemã de  
Misère de la philosophie, que ele revisou.43  
39  
É provável que aqui o autor tenha feito confusão com as datas, o correto seria 18 de novembro.  
[Nota da tradução]  
40 Karl Kautsky: Erinnerungen und Erörterungen. Hrsg. v. Benedikt Kautsky, 'S Gravenhage 1960, S.437.  
41 Karl Kautsky: Die Entstehung des Chistentums. In: Die Neue Zeit, Stuttgart, 3. Jg., 1885, S.481.  
42 Die Neue Zeit, Stuttgart, 4. Jg., 1886, S. 7-19, 49-58, 117-129 e 157-165.  
43 Cf. Karl Marx: Misère de la philosophie. Réponse à la Philosophy de la misère de M. Proudhon, Paris,  
Bruxelles 1847. P. 62, nota de rodapé, em que Marx descreve os bazares de troca justa do produto  
do trabalhofundados na Inglaterra, segundo a teoria de John Francis Bray, e todos eles falharam e  
ligou isso com uma advertência a Proudhon. Na tradução alemã, Engels referiu-se ao Banco de troca de  
Verinotio  
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O trabalho com livros de sua biblioteca fala a favor da autoria de Engels. Ao  
examinar o significado em que o termo mais-valor é usado por William Thompson, ele  
obviamente tomou em mãos seus escritos e, em seguida, forneceu as passagens  
citadas com sublinhados, grifos e notas marginais.44 O termo “produto excedente”  
também está sublinhado no escrito correspondente à referência a David Ricardo.45  
Ao tratar da acusação de que Marx e, depois dele, Engels citaram erroneamente,  
faz-se referência à controvérsia entre Marx e Lujo Brentano, que Sedley Taylor retomou  
em 1883.46 Engels, que escreveu uma brochura abrangente sobre o assunto quatro  
anos depois, é provavelmente o autor aqui. Frases como “Pobre Lujo Brentano”,  
“Enforque-se, Lujo”, “Cuidado, Lujo!” falam por sua autoria.  
Kautsky poderia ter escrito a parte final do artigo, possivelmente após a alusão  
a Brentano, seguindo instruções de Engels. A sugestão aqui expressa de que Menger  
procura um cargo no Ministério da Justiça pode ser encontrada numa carta de Engels  
a Laura Lafargue.47 As suas sugestões poderiam incluir a ideia de que os socialistas,  
como qualquer partido político, teriam de formular as suas reivindicações em  
exigências legais.  
Em resumo, pode-se provavelmente supor que Kautsky iniciou o trabalho, a  
maior parte do texto vem de Engels, e as passagens restantes foram influenciadas  
conceitualmente e nos pormenores por ele, e Kautsky fez a edição final. Como nenhum  
manuscrito do artigo sobreviveu, todas as afirmações só podem ter caráter de  
hipótese. A análise da história da sua gênese é complementada pela procura de  
Proudhon de 1849 em uma adição a esta nota de rodapé (Karl Marx: Das Elend der Philosophie. Antwort  
auf Proudhons Philosophie des Elends. Deutsch von E. Bernstein und K. Kautsky. Mit Vorwort und  
Noren von Friedrich Engels. Stungart 1885, S. 62).  
44  
William Thompson: An inquiry into the principles of the distribution of wealth most conducive to  
human happiness. Uma nova edição de William Pare, Londres 1850, p. 128: “A medida do capitalista,  
pelo contrário, seria o valor adicional produzido pela mesma quantidade de trabalho, em consequência  
do uso da maquinaria ou de outro capital; todo esse mais-valor a ser desfrutado pelo capitalista por  
sua inteligência e habilidade superiores em acumular e adiantar aos trabalhadores seu capital, ou no  
uso dele”. No exemplar pessoal de Engels, “mais-valor”, sublinhado, contornado a lápis; a linha com  
“mais-valor” adicionalmente grifada e com nota marginal: p. 127. Ibidem, p. 127: “Os materiais, os  
edifícios, as máquinas, os salários nada podem acrescentar ao seu próprio valor. O valor adicional  
provém apenas do trabalho”. - No exemplar manuscrito sublinhado por Engels, contornado a lápis e  
com nota marginal a tinta: “p. 128”. Cf. Die Bibliotheken von Karl Marx und Friedrich Engels. Annotiertes  
Verzeichnis des ermittelten Bestandes.. In: MEGA-2 IV/32, S. 637 (Nr. 1310).  
45 David Ricardo: On the principles of political economy, and taxation 3d ed., London 1821. Chapter V:  
On wages. In: The Works of David Ricardo. With a notice of the life and writings of the author. By J.R.  
Mc Culloch, London 1852, S.53. Na cópia pessoal de Engels, produção excedentesublinhado e  
contornado a lápis. Cf. Die Bibliotheken .... a.a.O.. S. 550 (Nr. 1116).  
46 Friedrich Engels: In Sachen Brentano kontra Marx wegen angeblicher Zitatsfälschung. In: MEW 22, S.  
161.  
47  
Cf. Engels an Laura Lafargue, 24. November 1886. In: MEW, Bd. 36, S. 572. Cf. auch Engels an  
Laura Lafargue, 2. November 1886. A.a.O. S. 565.  
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Quem escreveu o artigo Socialismo dos juristas?  
paralelos e analogias em termos de conteúdo e estilo com outras obras dos autores.  
A indexação das bibliotecas pessoais de Marx e Engels também pode auxiliar na  
determinação da autoria. Com base nesses princípios, uma hipótese é apresentada no  
MEGA-2 Volume I/31.  
Como citar:  
MERKEL-MELIS, Renate. Quem escreveu o artigo Socialismo dos juristas? Problemas  
para estabelecer a autoria na edição do Volume I/31 da MEGA-2. Trad. Murilo Leite  
Pereira Neto. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 493-501; jan.-jun., 2024  
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ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 493-501 jan.-jun., 2024 | 501  
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RESENHA  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.718  
A gênese da crítica marxista ao direito: um convite  
à leitura d’O papel revolucionário do direito e do  
Estado, de Piotr Stutchka  
Resenha:  
STUTCHKA, Piotr. O papel revolucionário do direito e do Estado: teoria  
geral do direito. Org. Moisés Alves Soares, Ricardo Prestes Pazello.  
Trad.Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Contracorrente, 2023. 397 p.  
Matheus Daltoé Assis*  
A recepção e produção acerca do debate sobre direito e marxismo no ambiente  
intelectual brasileiro encontram, hoje, terreno fecundo. Pode-se dizer que, sem  
pretensão de exaurir o debate, houve três momentos marcantes no processo de  
circulação e recepção das ideias fundadas pela tradição soviética da crítica marxista  
ao direito, quais sejam, as leituras de Lyra Filho entre 1960 e 19801; o Movimento  
Direito Alternativo2, entre finais da década de 1980 e os anos de 1990 e, por fim, a  
viragem teórica de orientação marxista althusseriana promovida por Márcio Bilharinho  
Naves, em meados de 1990, que, ainda hoje, hegemoniza o debate no campo teórico  
em questão (Pazello, 2021).  
No que tange às primeiras duas correntes mencionadas, cumpre destacar que  
a crítica jurídica soviética encontra pouca vazão, sendo apenas mencionada, na figura  
de Pachukanis, por Lyra Filho (Pazello, 2021) e sendo recepcionada, no segundo  
momento, sob lentes orientadas à rejeição da experiência soviética de corte  
eurocomunista, relegando os fundadores da crítica marxista ao direito, P. Stutchka e  
*
Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista. Bacharel em Direito pela  
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Membro do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos  
Sociais (IPDMS). E-mail: m.daltoe.a@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-9417-2561.  
1 No âmbito da Universidade de Brasília (UnB), Lyra Filho fundou a Nova Escola Jurídica Brasileira, que  
ficou conhecida pela expressão teórica do Direito Achado na Rua.  
2
O Movimento Direito Alternativo (MDA) foi um movimento eclético teoricamente, orientado por um  
progressismo difuso de alas próximas ao Partido dos Trabalhadores (PT). O MDA congregava vertentes  
como: a do Direito Insurgente, cujos expoentes são os advogados populares Miguel Pressburger e  
Miguel Baldèz; a pluralista, representada por Antonio Carlos Wolkmer e a propriamente alternativista,  
que tinha Edmundo Arruda Jr. como expressão intelectual marxista ao reivindicar a tradição gramsciana  
de corte eurocomunista (Cf. Wolkmer, 2008).  
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RESENHA: A gênese da crítica marxista ao direito  
E. Pachukanis, a uma posição de subalternidade intelectual vinculada a um suposto  
determinismo economicista.  
Há um salto qualitativo no que se reporta à recepção da crítica jurídica soviética  
pelo movimento intelectual capitaneado por Marcio Naves (Sartori, 2024; 2023). A  
partir de sua tese de doutoramento (1996), que deu origem ao livro Marxismo e  
direito: um estudo sobre Pachukanis, Naves refunda a crítica marxista do direito sobre  
outras bases, com uma perspectiva althusseriana sobre a relação entre direito e  
marxismo. Insta ressalvar quanto a referida abordagem que, mesmo significando um  
ganho de qualidade na crítica marxista, além da problemática referente à cesura  
epistemológica operada no que se refere ao pensamento marxiano, que acabou por  
orientar a crítica numa perspectiva focada no Livro I d’O Capital (Cf. Sartori, 2023;  
2018), a linha proposta por Naves, seguida por toda uma vertente de estudos  
(Akamine, Jr., 2017, Davoglio, 2018, Ferrer, 2022, Kashiura Jr., 2009, Mascaro,  
2013), delineou a forma sobre a qual se deu recepção brasileira3 do debate soviético  
sobre o direito.  
Esse último aspecto é de grande relevo no que se refere à obra ora resenhada,  
pois, por conta da difusão - em alguma medida distorcida - das teses de Naves, Piotr  
Stutchka, ao revés de sua importância histórica no “esforço de construção de uma  
teoria do direito que se quer rigorosamente em conformidade com a concepção de  
Marx e Engels” (Naves, 2008, p.27), foi relegado à posição de um teórico de menor  
capacidade analítica, vinculado à ideia de taticismo que, em última instância,  
comprometeria a relevância de sua leitura para a análise do debate jurídico soviético4.  
Longe dessa última posição se encontra o real papel desempenhado por  
Stutchka. O revolucionário letão (1865-1932), natural de Riga, teve importante papel  
na conformação do Estado soviético em seus primeiros anos. Stutchka, desde o  
período de formação na Universidade de São Petersburgo (1880-1884), travou  
contato com a literatura marxista, onde conheceu Aleksandr Uliánov, irmão de Lenin,  
e, a partir de então, viveu sob constante tensão junto aos militantes dos círculos  
3 É possível encontrar estudos sobre o tema em: Pazello, 2021, Sartori, no prelo, Silva, 2020 e Soares;  
2020.  
4
Fato que reforça o argumento é que, no âmbito dos autores vinculados ao “marxismo jurídico  
brasileiro”, houve a organização de duas traduções da obra Teoria Geral do Direito e Marxismo, de E.  
Pachukanis, ambas lançadas em comemoração do centenário da Revolução Russa em 2017, sendo uma  
pela editora Sundermann e outra pela Boitempo. A iniciativa de tradução e lançamento da obra de P.  
Stutchka partiu de outro núcleo organizador, originada do Grupo Temático “Direito e Marxismo” do  
Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).  
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revolucionários estudantis (Soares, Pazello, 2023).  
O intelectual de Riga, entre 1888 e 1907, atuou como articulista em diversos  
jornais e esteve próximo ao Partido Operário Social-Democrata Letão, ambiente no  
qual, em 1905, auxiliou na organização de uma greve geral (Cf. Soares, Pazello, 2023).  
Posteriormente, em 1907, mudou-se para São Petersburgo por conta de perseguições  
políticas, onde atuou como advogado em favor de presos políticos do regime tsarista.  
Nessa época, já tendo conhecido Lênin (1905), Piotr Stutchka já era reconhecido como  
importante jurista e revolucionário.  
Após ter lutado para a consolidação da Revolução de Outubro, Stutchka  
ocupou, por dois momentos, o cargo de Comissário do Povo para a Justiça: entre 15  
de novembro e 9 de dezembro de 1917 e entre 18 de março e 22 de agosto de  
1918. Ainda nesse ano, P. S. irá, como membro da delegação do Comissário do Povo  
os Negócios Estrangeiros, Trótski, para assinatura da “Paz de Brest-Litovsk”. No final  
de 1918, retornou para Letônia para auxiliar no processo revolucionário por lá  
desencadeado, onde ocupou a função de chefe de governo durante o período  
revolucionário (1918-1920) e auxiliou na instituição da Constituição da República  
Socialista Soviética da Letônia (1919). A Revolução Letã foi derrotada pela reação com  
apoio das potências imperialistas.  
Durante o restante de sua vida, entre 1923 e 1932, Stutchka permaneceu como  
professor e diretor do instituto de direito da Universidade de Moscou, além de exercer  
o cargo de Presidente do Tribunal Supremo da Rússia. Em 25 de janeiro de 1932, o  
revolucionário letão falece e é enterrado com honras no Kremlin, não vivendo para  
tornar-se mártir dos expurgos como Pachukanis, mas seu legado sofreu acusações de  
Vychinski, o que ocasionou a interdição de sua obra até a reabilitação ocorrida na  
época de Khrushchev.  
No que tange à produção intelectual de Stutchka, os organizadores da edição  
em comento a dividem em cinco pontos: teoria do direito; direito civil; escritos  
políticos; textos de popularização e a elaboração legislativa (Soares; Pazello, 2023). A  
principal obra de Stutchka, O papel revolucionário do direito e do Estado: teoria geral  
do direito, encontra-se nesse primeiro eixo e almeja responder o problema do que é  
o direito como sistema de relações sociais. Embora seja apenas uma fração da ampla  
produção intelectual do autor - produção esta que mereceria maior vazão editorial -,  
a edição publicada pela Contracorrente cumpre a função de preencher parte de uma  
lacuna editorial que, de algum modo, esbarra nos problemas de recepção  
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anteriormente mencionados.  
A obra, até o lançamento dessa tradução, era acessada em língua portuguesa  
pelas edições portuguesa (editora Centelha,1973; 1976) e brasileira (editora  
Acadêmica, 1988), nas quais o texto base para a tradução não provinha da edição  
russa e o título figurava como Direito e luta de classes, o que distanciava muito do  
título original da obra.  
Na nota da edição, os organizadores e a tradutora expõem o fato dessa edição  
ser uma tradução direta do russo, que parte de uma terceira edição, publicada, em  
1924, pela Editora da Academia Comunista, Moscou, como resultado de uma revisão  
e ampliação realizada pelo próprio autor. Cumpre ressaltar que a obra em questão é  
a única, segundo a investigação dos organizadores, que traduz integralmente a partir  
da terceira edição.  
Há aspectos da tradução5 que foram destacados e que, nesse pequeno texto,  
serão comentados apenas dois. O primeiro deles é referente à palavra russa rol,  
traduzida nessa edição por “papel”, destoando das traduções de importantes como a  
espanhola (función) e a italiana (funzione). O segundo aspecto a ser destacado é o que  
se refere à palavra russa mirovozzriénie, que remete à Weltanschauung. Nesse  
caso, a referida edição optou por traduzir pela palavra “cosmovisão”, uma tradução  
distinta das comumente utilizadas para o português.  
A edição brasileira traz uma variedade de elementos pré e pós-textuais. A  
edição conta com uma apresentação escrita pelos organizadores da obra, os  
professores Moisés Alves Soares e Ricardo Prestes Pazello. Há quatro prefácios na  
obra, sendo dois deles escritos por Stutchka para as ocasiões da edições primeira  
(1921) e terceira (1924) do livro, os outros são prefácios de edições espanhola e  
boliviana. O primeiro, escrito para a edição espanhola de 1969, pelo jurista  
alternativista Juan-Ramón Capella, e o segundo, extraído da edição boliviana de 2008,  
escrito pelo ex-Ministro do Trabalho, Emprego e Seguridade Social da Bolívia José  
Gonzalo Trigoso Agudo. Ainda há o texto do jurista italiano Umberto Cerroni, que  
figurou originalmente como introdução para uma coletânea de escritos selecionados  
sobre Stutchka e, na edição brasileira em comento, encontra-se no posfácio do livro.  
Reportando-se ao texto de Stutchka (2023, p.78), cabe ressaltar que, no  
5 Além da própria “nota da edição brasileira” contida no livro, é possível obter mais informações sobre  
o processo de tradução na exposição feita pela tradutora no minicurso “Introdução à obra de Stutchka”,  
organizado do âmbito IPDMS, cujo link é:  
https://www.youtube.com/live/BzMs0Xc8NzM?si=ZC9EiDvMTEIgVTbb&t=623  
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prefácio da terceira edição, em junho de 1924, o autor estabelece diálogo crítico com  
Pachukanis, no qual menciona que, “ainda que em divergência”, a recém lançada Teoria  
Geral do Direito e marxismo (1924) complementava seu trabalho. A menção a  
Pachukanis se justifica pelo fato de que Stutchka aprofundou e reviu partes de sua  
obra para a terceira edição partindo do trabalho pachukaniano. É válido citar que  
Pachukanis (2017, p.60) faz menção ao comentário de Stutchka no prefácio da  
segunda edição de seu livro, dizendo que o autor letão havia definido “com bastante  
propriedade minha abordagem da teoria geral do direito”. Tal exposição de detalhes  
encontra sentido justamente para fortalecer o argumento contrário ao difundido pelo  
dito “marxismo jurídico brasileiro”, que coloca os dois revolucionários quase que de  
modo antagônico, quando, na realidade, ambos ocupavam posições próximas e  
mantinham produção intelectual em complementaridade.  
Piotr Stutchka conhecia as obras de Marx e Engels, fato que pode ser ilustrado  
pela utilização de textos considerados de pequena circulação à época como a  
Introdução dos Grundrisse. Durante a obra, Stutchka parte da perspectiva marxista  
para fundamentar o que pode ser considerado uma exposição sobre a história do  
direito, para além de uma teoria geral, como era corrente em sua época. Entre os textos  
nos quais se respalda a perspectiva de Stutchka, pode-se destacar O Estado e a  
revolução, de Lenin6, e A origem da família, da propriedade privada e do Estado e  
Anti-Dühring, de Engels. Partindo dessas obras, o autor irá extrair sua concepção sobre  
a gênese e as condições para o fenecimento do Estado. Ao passo que apresenta o  
arcabouço sólido no qual se ancora, o autor apresenta que seu objetivo é auxiliar a  
conformar as novas gerações de intelectuais segundo a doutrina marxista, nas palavras  
de Stutchka (2023, p.76)“foi quase exclusivamente para a juventude que meu trabalho  
foi escrito”. Em razão desse aspecto, o livro mantém um modo de exposição didático,  
por meio, muitas vezes, de perguntas iniciais respondidas no desenvolver do capítulo.  
Já no primeiro capítulo, o autor dá início interrogando sobre o que é o direito.  
Para responder a tal questionamento, parte de um conceito elaborado coletivamente  
a propósito da publicação da resolução sobre os “Princípios diretivos do direito penal”.  
O conceito que resulta desse movimento tem a seguinte formulação: "o direito é um  
sistema (ou um ordenamento) de relações sociais correspondentes aos interesses da  
classe dominante e protegido por sua força organizada (ou seja, dessa classe)" (ibid.,  
6
Em nota de rodapé, Stutchka explicita que, para leitura de seu livro, pressupõe “o conhecimento por  
parte do leitor do trabalho capital do camarada Lenin” (Stutchka, 2023, 156).  
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p.94). Partindo dos elementos do conceito, segundo o qual o “interesse de classe é o  
conteúdo fundamental, a característica fundamental de qualquer direito” (ibid., p.94),  
o autor pontua sobre o elemento coercitivo que é o “garantidor do interesse dessa  
mesma classe dominante” e que o “direito é sua proteção do poder organizado da  
classe dominante (geralmente, o Estado)” (ibid., p.101).  
A partir dessa formulação, o autor irá discorrer sobre os aspectos de sua  
fundamentação durante os quatro capítulos iniciais, dedicando o segundo capítulo aos  
conceitos de sociedade e relações sociais e o terceiro capítulo para o conceito de  
classe e as implicações para a ideia de interesse de classe. No quarto capítulo o autor  
sustenta a posição sobre o poder organizado da classe dominante.  
Ainda nesse primeiro capítulo, aos moldes da concepção de ciência de sua  
época, de inspiração bukhariniana, irá pontuar que, pela primeira vez, se alcançou o  
terreno possível para que se abordasse o direito de modo científico e que isso somente  
foi possível por ser analisado do ponto de vista de classe, como um “fenômeno social  
que se altera na luta de classes” (ibid., p.95). Stutchka pontua que a tendência  
sociológica do direito permitiu tal avanço, mas que isso se dava de forma limitada,  
como caso da obra de Ihering. Para Stutchka, Ihering não pode alcançar a  
“compreensão de classe das relações sociais”, o que lhe permitiu apenas vislumbrar  
parcialmente uma concepção verossímil do direito. Nesse sentido, “apenas a  
compreensão de classe confere a clareza necessária, sem a qual a jurisprudência é  
apenas uma simples técnica de literatura, uma serva’ da classe dominante” (ibid.,  
p.101).  
Em diálogo com a temática da gênese do direito, ao defender a existência do  
direito em épocas passadas, o autor pondera que não se pode “aplicar nosso direito  
a uma sociedade que não tem classes, mas veremos a seguir que ali também não há  
o direito no sentido moderno” (ibid., p.103).  
Ao adentrar no segundo capítulo, questiona sobre o conceito de relações  
sociais e de sociedade. Ao iniciar exposição sobre as relações sociais que conformam  
a sociedade, parte da célebre passagem marxiana segundo a qual sujeitos contraem  
relações mútuas e que, no interior delas, realiza-se a produção (ibid., pp.109-110). A  
partir da citação de Marx, irá definir que “o conjunto das pessoas, conectadas em um  
determinado estágio histórico de desenvolvimento por um conjunto de condições de  
produção, como base de suas inter-relações, chama-se sociedade” e a relações de  
produção (ou de trabalho) são as relações sociais desses produtores (ibid., p.110).  
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Matheus Daltoé Assis  
Adiante, passa para uma exposição sobre a fases de apropriação características  
das sociedades ao longo da história, desde a associações gentílicas até a sociedade  
burguesa (ibid., pp.114-123), sendo a sociedade burguesa a que consolidou a “última  
fase do desenvolvimento da propriedade privada: a propriedade capitalista não apenas  
da terra, mas também de todos os meios de produção” (ibid., p.124). Ao fim dessa  
argumentação, consigna que a Revolução de Outubro “derrubou o poder da burguesia  
e seu modo de apropriação”, mas com a ressalva de que “esse trabalho destrutivo já  
consistiu num longo processo” (ibid., p.125) e que, naquele momento, apesar de estar  
sendo dado “um passo atrás” - em referência à Nova Política Econômica l-, não se  
perdia de vista “erradicação gradual” da propriedade dos meios de produção (ibid.,  
p.126).  
No capítulo terceiro, o autor irá desenvolver sobre o aspecto do interesse de  
classe presente no conceito de direito firmado em 1919. De início, parte do  
questionamento marxiano sobre “o que vem a ser uma classe”, presente no capítulo  
inacabado do Livro III d’O Capital. No capítulo, o autor parte de algumas citações do  
Livro III, bem como menções à Miséria da Filosofia e ao 18 Brumário, para tensionar  
com a concepção de conciliação de classe proposta por revisionistas como K. Kautsky.  
Stutchka, em meio ao referido debate, coloca que, “para a classe trabalhadora, o único  
meio verdadeiro de luta continua sendo a luta radical, ou seja, a luta de classes  
revolucionária, em outras palavras, a guerra civil” (ibid., p.134).  
Após colocar-se desse modo, argui que o interesse de classe “não se trata de  
uma simples soma de interesses isolados”, suas determinações existem “de maneira  
objetiva a despeito da vontade dos próprios membros da classe, e o estágio de  
consciência de classe sobre seu interesse é um fenômeno puramente histórico” (ibid.,  
p.140). No que se refere ao interesse da “classe exploradora”, não há interesse da  
extinção da classe dos explorados, pois acarretaria seu próprio perecimento. Já no que  
se refere ao interesse da classe explorada, essa “não pode deixar de desejar a  
eliminação da classe de seus exploradores” (ibid., p.144), argumentando junto de Marx  
- e contra os conciliadores - que não se “trata de atenuar os antagonismos de classe,  
mas de abolir as classes” (Marx apud Stutchka, 2023, p.145).  
No início do quarto capítulo, o autor abre investigação sobre as origens do  
Estado e parte, em grande medida, da exposição engelsiana para respaldar seu  
argumento. Stutchka (2023, p.166) observa que foi dedicado um “espaço  
relativamente insignificante ao direito internacional”, algo que busca justificar, com  
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base na experiência imperialista da Grande Guerra, sobre a efemeridade do poder  
organizado intraburguesias, “tendo em vista o inevitável conflito entre as burguesias  
dos distintos países e entre os capitalistas dos distintos setores” (ibid., p.167).  
Após delinear aspectos da organização do poder através do Estado, o autor  
põe em questão o elemento da persuasão, para além da coerção7. Ao explicitar o  
substrato no qual se funda o poder da burguesia, coloca a questão dos intelectuais,  
categoria que “não se furta a atirar-se nos braços até mesmo da Igreja”, não no sentido  
da luta de classes aberta, “mas em nome da conciliação de classes (Burgfrieden), da  
harmonia, do acordo de interesses contraditórios, em resumo, ‘da democracia pura’”.  
Stutchka termina essa discussão com a citação do texto engelsiano “Progresso da  
reforma social do continente” (ibid., p.165, grifo do autor).  
Ainda sobre os elementos de coerção e persuasão, agora no sentido da  
“transição para uma nova sociedade”, argumenta sobre a necessidade da construção  
de um “aparato especial de educação e formação políticas”. Se tiver êxito, “de acordo  
com a penetração na vida das massas de uma nova disciplina”, conduziria ao fato de  
que “a coerção definha e morre, e se fortalece o elemento da persuasão” (ibid., p.169).  
Ao finalizar a exposição dos argumentos que fundamentam o conceito de direito  
apresentado no primeiro capítulo, Stutchka apresenta, no quinto capítulo, o cerne de  
sua contribuição para a crítica marxista ao direito, sobre a interpretação das formas  
jurídicas. Argumenta que “cada relação econômica, conquanto seja ao mesmo tempo  
jurídica [...] tem três formas: uma concreta (I) e duas abstratas (II e III)”, admitindo a  
influência recíproca entre elas. De todo modo, reconhece a primazia da forma concreta,  
pois “relaciona-se com a base”, utilizando, não sem ressalvas, a metáfora arquitetônica8  
(ibid., pp. 180-184).  
A forma concreta (I) se ancora nas relações sociais de produção e, em razão  
disso, “na relação concreta, o caráter de classe decorre da própria distribuição dos  
meios de produção e, consequentemente, também da distribuição das pessoas em  
suas inter-relações”. Já no que se refere à forma abstrata (II), essa seria representada  
7
A discussão apresentada por Stutchka se aproxima aos problemas que Gramsci irá explorar nos  
Quaderni del Carcere sobre o conceito de hegemonia. Nesse sentido, pode ser encontrado trabalho que  
busca estabelecer tais proximidades em: Soares, 2017.  
8
Stutchka, contra a simplificação mecanicista, diz: “Está claro que Marx e Engels atribuíam à palavra  
‘superestrutura’ somente um sentido figurativo de comparação” (ibid., p.183). Desenvolve, no mesmo  
sentido, que em Marx e Engels não há causalismo e que a ideia de desenvolvimento não está  
vulgarmente relacionada à de progresso, que a “passagem de um período histórico [...] para outro, por  
sua vez, tem suas leis gerais do movimento, mas, justamente, de um movimento não evolutivo” (p.181,  
grifo do autor).  
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na pela lei, na norma jurídica emanada pelo poder organizado de classe do Estado. A  
terceira forma jurídica, a forma abstrata (III) seria caracterizada, propriamente, “pela  
ideologia, pela consciência de classe”, o que denota, em sua obra, o caráter não  
intrinsecamente negativo quanto ao conceito de ideologia (ibid., p.191).  
No sexto capítulo, o mais longo da obra (44 páginas), o revolucionário letão  
desenvolve o argumento de fundamentação política para a tese que dá nome ao livro,  
sobre o papel revolucionário do direito e do Estado. No decorrer da argumentação,  
empreende luta teórica contra a vertente que angariava postos após a revolução, a do  
socialismo dos juristas.  
A partir de uma exposição sobre a história do Direito, com especial atenção ao  
instituto da propriedade privada, o autor constrói o argumento sobre os momentos  
transicionais em que o direito desempenhou papel revolucionário, como nos episódios  
narrados sobre as leis sanguinárias na “assim chamada acumulação primitiva” (ibid.,  
p.229).  
O autor desenvolve, ainda nesse capítulo, a discussão sobre a destituição de  
todo o ordenamento anterior (e com ele seus dirigentes), citando o texto da Nova  
Gazeta Renana em que Marx defende que, quando uma revolução alcança sucesso, os  
adversários “podem ser varridos do caminho como inimigos vencidos, não podem ser  
julgados como criminosos” (Marx apud Stutchka, p.238).  
Por fim, sinaliza a tarefa ainda por ser feita, dado que “a destruição das velhas  
relações de produção era necessária, mas ainda falta substituí-la por uma nova  
organização” (ibid., p. 242).  
O revolucionário letão encaminha-se para os capítulos finais do livro e, diante  
disso, expõe as questões que são mais afeitas ao aspecto da técnica jurídica. No texto  
sobre “direito e lei”, conceitua como “norma jurídica ou lei a regra coercitiva  
proveniente do poder de Estado e que se relaciona ao domínio do direito” (ibid.,  
p.247). Adiante, ao explicar o ordenamento jurídico soviético, comenta a rejeição do  
modelo constitucionalista que estabelece a hierarquia entre as normas (ibid., p.266).  
Traz uma longa autocitação de texto elaborado no chamado “período  
‘comunista’” de 1918, no qual expõe sobre a necessidade, de momento, da criação de  
códigos e instituições jurídicas para preparar o período de transição, tendo sempre  
em mente que a “vitória final dessa revolução terminará também o processo de  
definhamento e morte do próprio direito proletário” (ibid., p.261).  
No final do capítulo, aborda a problemática ideia de “legalidade revolucionária”,  
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segundo a qual o julgamento deve ser formado a partir dos “interesses da revolução”  
e da “consciência jurídica revolucionária”, termos demasiadamente abstratos, que  
podem ser conduzidos a chancelar processos em que, na prática, se concede o caráter  
de norma em branco.  
No oitavo capítulo, sobre a análise da relação jurídica, Stutchka (ibid., p.271),  
apesar de explicitar que “não é a relação jurídica que cria o direito, em essência; ela é,  
como vimos ‘apenas a realização formal’ da relação econômica”, apresenta temas  
comuns à técnica jurídica, como corriqueira questão da interpretação da norma. Ainda  
nesse capítulo, autocriticamente em relação ao recuo da NEP, escreve que o direito  
“trata da questão das inter-relações entre as pessoas e, dentro de determinados  
limites, da exploração de uma pessoa por outra pessoa” (ibid., p.275).  
No penúltimo capítulo, Stutchka elabora um excurso sobre o que chamou de  
“história da concepção jurídica pré-revolucionária”, que culmina na concepção jurídica  
soviética. Nos termos das discussões parcelares, pode-se dizer que Stutchka passa  
pelos temas história e da filosofia do direito até a teoria política e da história do  
pensamento político. Inicia a exposição por Aristóteles, passando por Aquino,  
Maquiavel e Grócio. Após expor sobre os teóricos contratualistas, irá empenhar mais  
espaço para a discussão sobre a perspectiva kantiana. Sobre Kant, irá justificar tal  
atenção, pois “já há algumas décadas, por parte de nossa contrarrevolução, outrora  
denominada revolução, convoca um ‘retorno’ a ele” (ibid., p.298). No que importa ao  
pensamento pós-Kant, tece breves comentários a intelectuais como Hegel, Bentham e  
aos da Escola Histórica, com os quais Marx teve contato já no início de sua formação.  
Para o fechamento da discussão proposta, Stutchka irá reservar o último  
capítulo para o programa de estudos sobre a jurisprudência. Imbuído da assumida  
influência bukhariniana em sua concepção de ciência, estabelece que, a partir de sua  
compreensão das formas jurídicas, o campo da teoria da jurisprudência deve ocupar-  
se “do estudo da substância das formas concretas de relações sociais” (ibid., p.319,  
grifo do autor), de modo que possam ser compreendidas “aquelas formas por meio  
das quais as pessoas [...] realizam formalmente, efetivam (vermitteln) as relações  
sociais, como, por exemplo, as relações do capital, da propriedade, da troca de  
mercadorias, etc.” (ibid., pp.318-319, grifo do autor).  
Um último elemento da obra que merece um destaque crítico se refere à função  
do direito penal, que herda uma concepção moralizante em seu conceito de defesa  
social. Para Stutchka, o direito penal seria “um meio auxiliar de manutenção tanto do  
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sistema político quanto social e de suas instituições e atividades isoladas” (ibid.,  
p.321). Desse modo, as normas penais funcionam de modo que “o sistema de relações  
sociais de uma dada sociedade de classes se protege de violação (‘delito’) mediante  
as assim chamadas medidas de defesa social” (ibid., p.325). A finalidade da norma é  
a readaptação e a condição para que cesse o isolamento (medida última) é o  
“desaparecimento das condições” que motivaram. Essa concepção estava explicitada  
na compilação de leis em vigor, portanto, chegou a produzir impactos no sistema penal  
soviético.  
No intuito concluir o presente texto, convém enfatizar, mais uma vez, a  
importância da obra fundante da crítica marxista ao direito, posicionando crítica contra  
as tendências interpretativas dominantes, que relegam ao autor d’O papel  
revolucionário do direito e do Estado um lugar de subalternidade em relação ao que  
consideram o cânone da crítica marxista ao direito. No decorrer da argumentação  
dessa resenha, espera-se que tenha sido possível convencer o leitor da necessidade  
de se conhecer a obra de tão importante intelectual, sem o qual não se pode conhecer  
o debate jurídico soviético, até para se ir além dele; espera-se, também, que tenha  
sido possível auxiliar na desconstrução da ideia segundo a qual os dois grandes  
autores do debate soviético seriam antagonistas, quando, em fato, fundaram juntos o  
campo de investigação conhecido por “direito e marxismo”.  
Referências  
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DAVOGLIO, Pedro. Althusser e o direito. São Paulo: Ideias & Letras, 2018.  
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2022.  
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2009.  
MASCARO, Alysson. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.  
NAVES, Marcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo:  
Boitempo, 2008.  
PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. Paula Vaz de  
Almeida. 1. ed. São Paulo, Boitempo, 2017.  
PAZELLO, Ricardo Prestes. Jardim suspenso entre dois céus: um ensaio sobre o estado  
da arte da relação entre marxismo e direito no Brasil, hoje. Revista Culturas Jurídicas,  
v. 8, n. 20, p. 65-87, 2021.  
SARTORI, Vitor Bartoletti. Lukács e Pachukanis diante da gênese do Direito e da forma  
jurídica. REVISTA QUAESTIO IURIS, v. 16, n. 4, p. 2458-2479, 2024.  
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entre limites e tensões. Dissertação (mestrado em Direito). Universidade Estadual  
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.  
SOARES, Moisés Alves; PAZELLO, Ricardo Prestes. Apresentação - A práxis jurídica  
insurgente de Stutchka. in: STUTCHKA, PIOTR. O papel revolucionário do direito e  
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Trad. Paula Vaz de Almeida. 1. ed. São Paulo: Contracorrente, 2023.  
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2020.  
Disponível  
teoria-marxista-do-direito-brasileira/ Acesso em: 02 jan. 2024.  
STUTCHKA, Piotr. O papel revolucionário do direito e do Estado: teoria geral do direito.  
Org. Ricardo Prestes Pazello, Moisés Alves Soares. Trad. Paula Vaz de Almeida. 1.  
ed. São Paulo: Contracorrente, 2023.  
WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 6.ed. rev. e  
atual. São Paulo: Saraiva, 2008.  
Como citar:  
ASSIS, Matheus Daltoé. A gênese da crítica marxista ao direito: um convite à leitura  
d’O papel revolucionário do direito e do Estado, de Piotr Stutchka. Verinotio, Rio  
das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 502-513; jan.-jun., 2024.  
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RESENHA  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.719  
Continuando com o direito insurgente  
Resenha:  
PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente: para uma crítica marxista  
ao direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. 1, 2021.  
Marina Marques de Sá Souza*  
Em meados de julho de 2021, Guilherme Cavicchioli Uchimura e Pedro Pompeo  
Pistelli Ferreira escreveram Retorno ao Direito Insurgente, por ocasião do lançamento,  
em maio do mesmo ano, do primeiro volume da obra de Ricardo Prestes Pazello,  
intitulado Direito insurgente: para uma crítica marxista ao direito. Desde então, alguns  
eventos separam a publicação do livro do verão de 2024, como o acirramento das  
contradições do capital à época da pandemia do coronavírus, conflitos geopolíticos e  
o retorno de um governo progressista no Brasil. Se “é próprio de cada retorno nunca  
se encontrar a mesma totalidade de coisas fixadas” (Uchimura; Ferreira, 2021, p. 390),  
como advertiram aqueles autores, é certo que as formulações de Pazello, calcadas no  
materialismo-histórico, continuam sendo bússola a orientar a compreensão da  
totalidade orgânica e concreta sob a qual erige o sistema capitalista.  
Professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do Bloco de  
Samba Boca Negra, Ricardo Pazello tem uma trajetória consolidada na produção  
teórica dedicada à crítica marxista ao direito e ao giro descolonial. Fazendo jus à sua  
biografia, o autor reflete em suas incursões as virtudes que o compõem: a forma  
jurídica é pensada por meio da poesia de Manoel de Andrade, escolhida para epigrafar  
o livro; da música popular, embalado por “O malandro”, de Chico Buarque (Pazello,  
2019), ou pelas canções latino-americanas que interpreta, sempre acompanhado de  
um violão; e mesmo por meio do futebol nacional (Pazello; Almeida; D’Carmo, 2023),  
mirado desde o ponto de vista da teoria da dependência.  
Apesar de suas características particulares, que singularizam os seus escritos,  
* Professora e advogada. Mestra em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), pós-  
graduada em Filosofia e Direitos Humanos (PUC/PR) e doutoranda em Direito Ecológico e Direitos  
Humanos  
pela  
Universidade  
Federal  
de  
Santa  
Catarina  
(UFSC).  
E-mail:  
marinamarquessasouza@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3515-2405  
Verinotio  
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o pesquisador militante registra que a obra, resultado da tese de doutoramento, é  
fruto de um projeto de compartilhamento coletivo. Escrito na primeira pessoa do plural,  
o livro reflete a sua gestação, que se deu em meio às discussões no Grupo Temático  
“Direito e Marxismo” do IPDMS (Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais),  
coordenado também por ele. Mas não só. Na melhor convergência entre marxismo e  
luta popular, pressupostos da refundação da crítica jurídica brasileira, o professor  
curitibano é também coordenador do Movimento de Assessoria Jurídica Universitária  
Popular MAJUP Isabel da Silva/UFPR. Pesquisa, ensino e extensão integram o  
quefazer pedagógico de Pazello rumo à compreensão do fenômeno jurídico,  
equalizando no direito insurgente às ondas sonoras do uso tático do direito e do seu  
necessário definhamento.  
Para a compreensão do direito sob o signo da insurgência, entendida como “o  
vínculo que torna possível o contato entre reivindicações e contestações e, portanto  
entre direito e movimentos populares” (Pazello, 2021, p. 36), o autor divide sua  
exposição, tão somente para fins didáticos, porquanto complementares, entre crítica  
marxiana e crítica marxista ao direito.  
No primeiro capítulo, a análise recai sobre o entendimento de Marx acerca do  
jurídico. Metodologicamente, o direito é compreendido considerando “a totalidade  
concreta na qual se insere, a historicidade categorial que representa e, sob uma  
linguagem dialética, o movimento que desenvolve entre a aparência do fenômeno e  
sua essência” (Pazello, 2021, p. 35). Para tanto, são manejados textos em que Marx  
enfrentou a problemática jurídica, dentre eles, Sobre a questão judaica, Crítica do  
Programa de Gotha e O capital.  
Naquela que foi a obra máxima e definitiva do autor alemão, O capital, Pazello  
elencou mais de 700 oportunidades em que Marx se debruçou sobre a ideia de direito  
e legalidade, resultando em um mapa conceitual dos cinco sentidos em que o jurídico  
pode ser concebido contrariando, portanto, entendimentos que negligenciam a  
contribuição de Marx para o trato da “matéria das leis” (Pazello, 2021, p. 52). Da  
pluralidade de sentidos atribuídos à forma jurídica, Pazello a organiza em formas  
aparentes (lei e decisão judicial) e transitivas (moral e regulação privada), que são  
atreladas à forma fundante (relação econômica) e que têm na especificidade da  
garantia da circulação de mercadorias, entre sujeitos equivalentes, a sua forma  
essencial. As intersecções dos sentidos do direito evidenciam, segundo o autor, duas  
coisas: “de um lado, a função não negligenciável das legislações, de outro, a íntima  
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vinculação entre o processo de produção econômica e as relações jurídicas” (Pazello,  
2021, p. 86).  
Esta conclusão, a propósito, só é possível quando compreendida a forma  
jurídica como decorrência da análise do valor, empreitada didaticamente explorada por  
Pazello. Pela teoria do valor como relação social, entende-se que o trabalho abstrato  
“expressa a forma social do valor que aparece na superfície dos fenômenos sociais  
como valor de troca. É quando uma troca se realiza entre pessoas individualizáveis  
que se pode estabelecer a gênese lógica do direito”, pressuposto que será  
aprofundado posteriormente por Pachukanis (Pazello, 2021, p. 58). É do trabalho  
como fonte de explicação do valor que se extrai uma das interpretações que  
fundamentam o direito insurgente, a saber, a luta pela limitação e redução da jornada  
de trabalho. A defesa dos postulados legais que limitam a exploração da mercadoria  
força trabalho pelos operários manifesta-se, a um só tempo, como “proteção dos  
trabalhadores” e como “concentração do capital com a generalização da indústria”  
(Pazello, 2021, p. 80) um uso tático, portanto, do direito, mas compreendendo o  
seu limite no contexto da legalidade burguesa.  
Outros dois textos compõem o arsenal teórico em que Marx confronta o  
fenômeno jurídico, rechaçando a sua atemporalidade, porque direito burguês, mas  
reconhecendo o seu uso, ainda que no estreito horizonte jurídico da sociedade  
capitalista. Em Sobre a questão judaica, Marx não rejeita completamente a  
emancipação política (e sua luta por direitos) dos judeus, dada ser a única emancipação  
possível dentro da ordem, mas assinala que esta distinta, portanto, de uma  
emancipação humana é própria do estado completo, “que pressupõe a liberdade  
religiosa, assim como a liberdade proprietária” (Pazello, 2021, p. 98).  
Já na Crítica do Programa de Gotha, no bojo na tentativa de unificação dos  
partidos operários alemães a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (ADAV)  
e o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores (SDAP) o autor alemão distingue  
um período político de transição, caracterizado pela ditadura revolucionária do  
proletariado, e o comunismo propriamente dito (Pazello, 2021, p. 101). Trata-se do  
direito “potencialmente extinguível ainda que remanescente na transição  
revolucionária” (Pazello, 2021, p. 103).  
Das leituras sobre a participação da forma jurídica na totalidade de reprodução  
do capital, Pazello conclui pela indissociabilidade entre a crítica à sociedade concreta  
e a transição que torna possível superar esta mesma sociedade. Ainda que com os  
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“limites de toda e qualquer reivindicação dentro da ordem” (Pazello, 2021, p. 104),  
combates ordinários, como a movimentação operária do século XIX, aguçam o que está  
para além da sociedade fundada no modo de produção capitalista. Eis a convergência  
entre a classe trabalhadora e o projeto político revolucionário, que inaugura o debate  
sobre os movimentos sociais ou populares e que encerra a primeira parte da pesquisa  
do autor de Direito insurgente.  
O segundo capítulo é dedicado à crítica marxista ao direito, desde a tradição  
dos seguidores de Marx. Verticalmente, trata-se da busca por respostas à pergunta  
sobre “o que é direito”; horizontalmente, a visualização da trajetória da crítica jurídica  
marxista na Europa. A análise é tida, ainda, como interna ou externa ao campo do  
jurídico. A pesquisa situa-se na crítica ao direito externa, portanto, posto que  
reconhece os limites e imperfeições do campo jurídico e pugna pela sua ultrapassagem  
histórica.  
O direito continua sendo interpretado por Pazello, é bom dizer, à luz da crítica  
das relações sociais, mas lastreado pela sua inserção na luta de classes: “os  
movimentos sociais não apenas são formas sociais que ganham sua plenitude com a  
sociedade capitalista, mas também implicam necessariamente reivindicações de  
direitos (por certo, direitos de estreito horizonte burguês) e, daí, um uso político do  
jurídico” (Pazello, 2021, p. 139). Trata-se de um uso tático do direito, porque se  
vincula a um projeto anticapitalista, em contraposição a um uso estratégico, que faz  
da juridicidade seu fim último.  
A relação entre projeto político revolucionário e uso tático do direito é  
enfrentada por meio do tripé Lênin-Stutchka-Pachukanis. Em Lênin, há o  
desenvolvimento de uma teoria da organização política para a concretização do  
processo revolucionário socialista. Preocupado com a especificidade contextual russa,  
à época da revolução, Lênin defendeu a legalização do movimento operário, o que não  
deveria significar, por certo, a “hipertrofia da organização política” (Pazello, 2021, p.  
166). Para Pazello, a posição leninista não deixa dúvidas, “pois significa aproveitar-se  
dos potenciais que a legalidade proporciona, aventando-se, inclusive, que a cilada  
armada não é a da burguesia contra os operários, mas o contrário” (Pazello, 2021, p.  
166).  
Stutchka e Pachukanis, por sua vez, convalidaram o uso tático do direito no  
período da transição revolucionária. Para o primeiro, a extinguibilidade do jurídico é  
necessária, desde que finalizado o processo revolucionário e atingida, portanto, a fase  
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superior da sociedade comunista. Para Pazello, Stutchka “esteve mais preocupado com  
a construção de um direito durante o após-revolução, por força das circunstâncias, do  
que em refletir sobre seu necessário definhamento” (Pazello, 2021, p. 201-202). O  
letão desempenhou, entretanto, função importante no trabalho concreto com o direito,  
prevenindo posturas que remetam a um antinormativismo anarquista.  
É com Pachukanis, contudo, que a crítica marxista ao direito atinge um novo  
estágio. Valendo-se das elaborações teóricas de Stutchka, Pachukanis percebe o  
direito não só como forma fundada nas relações econômicas, mas também como  
detentor de uma especificidade: para o soviético, o sujeito de direito “é o sólido ponto  
de partida para compreender a realidade na qual o direito se insere exatamente porque  
é este sujeito que representa as mercadorias em suas relações de troca” (Pazello,  
2021, p. 212). Quanto ao tema da transição, Pachukanis reconhece a sobrevivência  
do estreito horizonte jurídico burguês, “ainda que o processo revolucionário  
caracterize-se por debelar a hegemonia das relações mercantis no seio da sociedade”  
(Pazello, 2021, p. 231).  
Como não poderia deixar de ser, em uma pesquisa que se pretenda materialista  
e histórica, há a preocupação do autor com as lutas concretas, em especial, com a  
práxis dos movimentos populares latino-americanos. Por certo, elas serão mais bem  
aprofundadas com a publicação do segundo volume da obra, dedicado ao giro  
decolonial do poder e que tem na assessoria jurídica popular o seu elemento-chave.  
No entanto, é possível extrair de Direito insurgente, desde logo, categorias úteis para  
a compreensão do uso político do jurídico no Brasil contemporâneo, a saber, o uso  
tático do direito por povos e comunidades tradicionais.  
A partir de certo entendimento marxiano, povos originários compõem a  
chamada “superpopulação relativa”, fruto da “acumulação de miséria correspondente  
à acumulação de capital” (Marx, 2017, p. 877). Como destaca Pazello, “novas  
subformas da forma geral movimento social, subsumida pelo contínuo originar de  
novos estratos da população centripetamente constituídos, têm no movimento  
operário sua forma originária” (Pazello, 2021, p. 116). Nesse sentido, as bases  
materiais e objetivas do movimento indígena podem ser pensadas desde o movimento  
operário como síntese de formas de revolta. Assim, o movimento social dos  
trabalhadores e dos povos indígenas têm um ponto de partida em comum: a  
expropriação com relação aos seus meios de produção bem como “a submissão de  
sua energia vital a uma estrutura social de opressão” (Pazello, 2021, p. 106).  
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Em que pese o entrelaçamento das resistências históricas, a heterogeneidade  
de lutas e o aprofundamento da crise estrutural do capital promovem a disputa em  
torno de um modelo de transição para uma outra sociabilidade e, consequentemente,  
táticas a serem empreendidas para a superação do modo de produção capitalista.  
Enquanto para uma parcela dos movimentos sociais temas como a transição energética  
e a sustentabilidade não sejam de primeira ordem na agenda revolucionária, para a  
população originária, ciente dos riscos da generalização, o desmatamento zero é  
condição para a manutenção de seus modos de vida. Há, atualmente, departamentos  
jurídicos indígenas distribuídos por todo o território nacional para tornar visível a  
situação dos direitos dos povos originários e reivindicar do Estado brasileiro o  
atendimento das demandas e reivindicações dos povos indígenas.  
Na senda do que propõe Ricardo Pazello sobre a crítica ao direito, a formulação  
teórica do direito insurgente, antes que justo meio entre posições que remetam a um  
socialismo jurídico ou a um anarquismo antinormativista, configura uma “totalidade  
que dialetiza a forma histórica do direito, buscando desvendar sua essência partindo  
dos fenômenos aparentes que o ensejam” (Pazello, 2021, p. 153). Por essa razão,  
cabem aos/às pesquisadores/as militantes e à luta massiva continuar tensionando as  
categorias abstratas com a realidade social, para que, desta forma, uma teoria marxista  
do direito desde a periferia atinja avanços qualitativos na compreensão e contestação  
sobre o direito.  
Referências  
Marx, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do  
capital / Karl Marx ; tradução Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.  
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de Janeiro: Lumen Juris, vol. 1, 2021.  
Pazello, Ricardo Prestes. Teorias críticas do direito e assessoria jurídica popular.  
Revista Direitos Humanos & Sociedade, PPGD UNESC, v. 2, n. 2, p. 141-161, 2019.  
Disponível  
em:  
https://periodicos.unesc.net/ojs/index.php/dirhumanos/article/view/5890. Acesso  
em: 26 jan. 2024.  
Pazello, Ricardo Prestes; Almeida, Alexandre Oliveira; D’Carmo, Max (orgs.). As veias  
abertas do futebol brasileiro: memórias crônicas e paixões sociais. Porto Alegre:  
Letra1, 2023.  
Uchimura, G. C.; Ferreira, P. P. P. Retorno ao Direito Insurgente: PAZELLO, Ricardo  
Prestes. Direito Insurgente: para uma crítica marxista ao direito. Rio de Janeiro:  
Lumen Juris, 2021. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília,  
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em: https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/38970. Acesso  
Verinotio  
ISSN 1981 - 061X v. 29 n. 1, pp. 513-519 jan.-jun., 2024 | 519  
nova fase  
Marina Marques de Sá Souza  
em: 26 jan. 2024.  
Como citar:  
SOUZA, Marina Marques de Sá. Continuando com o direito insurgente. Verinotio, Rio  
das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 514-520; jan.-jun., 2024.  
Verinotio  
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DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.720  
Pachukanis e o estreito horizonte do Direito  
Resenha:  
PACHUKANIS, Ievguiénii B. O marxismo revolucionário de Pachukanis:  
obras escolhidas. Trad. Anna Savitskaia, Oleg Savitskii. São Paulo: Lavra  
Palavra, 2023, p. 368 p.  
Antonio Ugá Neto*  
No ano de centenário da publicação da primeira edição de sua obra teórica  
seminal, Teoria Geral do Direito e o Marxismo (doravante TGDM), o legado do  
revolucionário soviético Evgeny Pachukanis (2017) encontra um notável  
reconhecimento editorial e acadêmico no Brasil. Inspiradas pelo trabalho pioneiro de  
Márcio Bilharinho Naves (2008), além de diversas coletâneas e dossiês sobre a crítica  
pachukaniana ao Direito, várias obras traduzidas diretamente do russo têm sido  
disponibilizadas em português desde 2017.  
Dentre essas iniciativas, O marxismo revolucionário de Pachukanis, destaca-se  
como uma das mais abrangentes. Além da quantidade de textos traduzidos, a  
amplitude da obra apresentada ao público brasileiro possui dois aspectos principais:  
em primeiro lugar, abarca praticamente todo o período de maturidade da produção  
intelectual do autor soviético, desde textos escritos originalmente em 1922, dois anos  
antes da publicação de TGDM, até 1936, próximo à sua trágica execução pelo Estado  
soviético em 19371. Em segundo lugar, oferece uma variedade temática inédita em  
português. Além dos tradicionais ensaios sobre crítica marxista ao direito, inclui textos  
que exploram temas como história, filosofia e fundamentos da crítica marxista, bem  
como textos de embate político imediato na conjuntura da revolução soviética e do  
marxismo internacional.  
Pela amplitude temática, embora os ensaios da coletânea estejam dispostos em  
*
Doutorando em Direito PPGD-UFMG. Mestre em Serviço Social PPGSS-UFAL. Especialista em Direito  
Processual (UNIT/AL). Bacharel em Direito (FDA/UFAL). Pesquisador do Grupo de Pesquisa Estado,  
Direito e Capitalismo Dependente (CNPQ/UFAL). E-mail: antoniouganeto@gmail.com.  
1 Diferente de outras coletâneas e publicações mais frequentes, a maioria dos ensaios se concentra na  
década de 1930.  
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Antonio Ugá Neto  
ordem cronológica, propomos os agrupar a partir de uma divisão em dois eixos  
temáticos para melhor realizar a exposição.  
A primeira divisão temática são os trabalhos de embate teórico e crítica seja no  
interior do marxismo ou com outras correntes teóricas. Primeiramente, há os artigos  
específicos sobre a conjuntura e história da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas  
(URSS), notadamente: A ditadura do proletariado e a oposição (1928); Sobre a questão  
da luta de classes no interior da transição (1930); A reconstrução do aparato do Estado  
e a luta contra o burocratismo (1934); O bolchevismo e os Soviets de 1905 (1935).  
Também podemos inserir nesta linha ensaios de crítica teórica sobre contribuições de  
autores específicos, uma vez que a tônica é sempre a disputa de interpretações seja  
com teóricos burgueses, seja com a social-democracia da II Internacional ou no interior  
da URSS, são os textos: As novíssimas revelações de Karl Kautsky (A propósito do livro  
A concepção materialista da história) (1929); Hegel: o Estado e o Direito (Em  
homenagem ao centenário de sua morte) (1931); A teoria da luta e vitória do  
proletariado (a propósito do 50º aniversário da morte de Marx) (1931); O leninismo  
segue triunfando (1934); Engels como teórico do marxismo e lutador pelo marxismo  
revolucionário (1936).  
A segunda divisão temática trata da análise sobre a história e estudo do direito,  
presentes principalmente nos textos: Os primeiros meses de existência do Tribunal  
Popular de Moscou (1922); Sobre os momentos revolucionários do Estado e do Direito  
inglês (1927); A propósito da questão da preparação de quadros edificação soviética  
e do Direito Soviético (1934); A constituição de Stálin e a legalidade socialista (1936)  
e O Estado e o Direito sob o Socialismo (1936). Pelos limites de uma resenha,  
priorizaremos o estudo deste eixo temático, ainda que mencionado brevemente  
comentários esporádicos sobre a crítica ao Direito presentes nos demais trabalhos.  
Antes, no entanto, é importante observar que a coletânea impõe uma atenção  
redobrada ao leitor. Como iniciativa de editora independente, é compreensível que,  
em suas mais de 360 páginas, tenha sido dada prioridade à publicação do máximo de  
ensaios do revolucionário soviético. Contudo, como resultado, além das notas da  
tradução e edição, resta apenas uma breve apresentação dos tradutores na orelha do  
livro. Dada a abrangência temporal e temática supracitada, evidencia-se a carência de  
um debate que situe os textos dentro da trajetória intelectual do revolucionário  
soviético. Essa falta é agravada pelo fato de Pachukanis ser um autor que, além das  
mudanças e amadurecimentos teóricos típicos, foi obrigado a realizar diversas  
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autocríticas e até mesmo a modificar radicalmente suas posições ao longo do tempo.  
Portanto, se em geral, a obra de Pachukanis requer uma leitura cuidadosa que  
considere não apenas o contexto histórico e conjuntural, mas também a periodização  
específica das citadas modificações. A atenção deve ser redobrada em relação à  
coletânea que concentra em sua maioria textos posteriores à década de 1930. Dentre  
as propostas de periodização da crítica ao Direito do autor soviético, a proposição do  
teórico brasileiro Márcio Bilharinho Naves (2008) nos parece a mais frutífera.  
É por essa razão que, antes de comentar sobre os ensaios presentes em O  
marxismo revolucionário de Pachukanis, importante apresentar brevemente a proposta  
de Naves (2008, p. 125) para compreensão dessa intricada produção teórica, o autor  
brasileiro caracteriza a substancial modificação das concepções teóricas da crítica ao  
direito originárias de TGDM como processo de autocrítica e recuperação do Direito  
burguês. Adverte, porém, que a identificação do momento no qual Pachukanis realiza  
essa mudança é uma polêmica entre os estudiosos, não apenas de fundo teórico, mas  
pelas determinantes políticas e ideológicas de cada pesquisador.  
Alguns autores localizam o processo de revisão das teses centrais expostas em  
TGDM já em 1925, antes, inclusive da sua segunda (1926) e terceira edição (1927)2.  
Tal perspectiva, no entanto, descaracteriza o cerne do que provoca as principais  
mudanças teóricas do autor soviético: as suas autocríticas realizadas partir da década  
de 1930 não são fruto de uma simples revisão teórica, mas provocadas por uma  
crescente perseguição e amoldamento realizados durante a consolidação do período  
stalinista.  
Contudo, a riqueza da interpretação de Naves (2008, p. 127-128) se expressa  
na divergência com autores que localizam simplesmente a “virada” teórica em 1930,  
afirmando que, embora o período de fato demarque mudanças de concepções, textos  
publicados até 1935 retomam aspectos centrais de TGDM, cujo abandono completo e  
explícito apenas ocorre nos derradeiros ensaios de 1936 (presentes na coletânea),  
apenas neste ano culmina o processo de “recuperação do Direito burguês”. O contraste  
presente entre a produção precedente e as “novas posições” assumidas por  
Pachukanis permitem uma reflexão mais acurada sobre suas principais contribuições  
para a crítica ao Direito, algo que certamente será provocado pela iniciativa da  
coletânea. Embora não se concentre apenas em aspectos jurídicos, alguns dos ensaios  
2 A terceira edição é a base para as traduções disponíveis em português.  
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de O marxismo revolucionário de Pachukanis expressam o percurso e ponto de  
chegada do completo abandono das teses centrais de TGDM, algo que trataremos em  
pormenor ao dialogar sobre tais trabalhos.  
Realizadas as ressalvas, partamos para os comentários sobre os ensaios de  
crítica ao direito. A coletânea é inaugurada pelo pequeno texto Os primeiros meses de  
existência do Tribunal Popular de Moscou (1922), um relato da experiência de  
Pachukanis enquanto juiz-popular, seu principal atributo é demonstrar as dificuldades  
históricas provenientes do período de transição e do exercício jurisdicional após o  
decreto que estabelecia o fim da estrutura jurídica pré-revolução e estabelecia a  
definição de juízes-populares a partir das votações democráticas pelos sovietes.  
Ao defender o decreto, colabora a visão de Pokrovski que, na primeira reunião  
de juristas convocada pelo Soviete de Moscou, expressava que o proletariado não  
poderia deixar o “[...] aparato judicial fora da luta revolucionária”, deixando “[...] os  
tribunais nas mãos de seus inimigos de classe”, afirmando que mesmo nos marcos de  
disputas interburguesas “[...] para atingir os seus fins e incluir entre os magistrados  
seus partidários”. Concluindo a estranheza de se “[...] exigir que o proletariado abra  
mão disso na sua revolução” (Pachukanis, 2023, p. 9).  
O soviete esperava dos juristas revolucionários um trabalho prático, consistente  
em preparar a organização dos tribunais populares e as eleições de juízes-populares  
nos bairros e controlar o aparato judicial. Logo Pachukanis foi eleito juiz-popular,  
mesmo sem estar presente e opinar sobre a questão, algo que o surpreendeu diante  
da ausência de qualquer experiência prática na esfera judicial, uma vez que mesmo  
formado em direito, desempenhava estudos no âmbito da filosofia e teria geral do  
direito (Pachukanis, 2023, p. 10). O boicote dos antigos juízes de paz czaristas e dos  
servidores da justiça, foi um dos primeiros obstáculos para a prestação de contas e  
utilização das estruturas da justiça. Antes da inauguração das Câmaras de Julgamentos,  
realizaram-se reuniões de intenso trabalho que funcionavam como  
[...] uma espécie de cursos de capacitação. A metade dos juízes eram  
oriundos dos operários. Era preciso traçar, às pressas, as linhas  
principais de trabalho para o tribunal popular. As questões  
organizacionais e processuais, as questões do direito material, tudo  
isso requeria solução imediata e as reuniões gerais dos juízes  
populares eram o único lugar em que se elaborava e se generalizava  
a nova prática. Não é de admirar que, inicialmente, elas costumavam  
ser realizadas semanalmente e prolongar-se até as 11-12h da noite.  
(Pachukanis, 2023, p. 12)  
O desafio de Pachukanis enquanto juiz-popular também se deu para encontrar  
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assessores jurídicos entre o proletariado, somente tornado possível a partir  
sensibilização do Soviete de Moscou, sindicatos e fábricas, e a realização de colóquios  
formativos e aulas regulares, cujo resultado prático foi que “[...] da primeira leva de  
assessores jurídicos, conseguimos escolher os juízes populares-operários para  
preencher as vagas desocupadas nas Câmaras de Julgamento” (Pachukanis, 2023, p.  
12). Por fim, conclui que o desenvolvimento dos tribunais populares acontecia em  
consonância com o da República Soviética, perpassando “[...] por todas as etapas da  
luta pela sua existência, sofria de todos os seus males e agora” e, quando da  
publicação do texto “[...] ocupa um lugar firme e indiscutível, tal como o próprio poder  
soviético, em meio ao mundo burguês circundante(Pachukanis, 2023, p. 12).  
O problema de construção de instituições jurídico-políticas e mesmo normativas  
em uma sociedade de transição pós-capitalista impunha aos revolucionários soviéticos,  
além da busca pela superação dos limites do marxismo da Segunda Internacional e  
aprofundamento da crítica marxista, a necessidade de investigação de exemplos  
históricos precedentes. Como a experiência anterior de maior perenidade da luta  
revolucionária do proletariado foi a Comuna de Paris, com a duração de pouco mais  
de dois meses, tornou-se imperioso estudar períodos de transição das revoluções  
anteriores, em especial as capitaneadas pela burguesia. Uma vez que “[...] é indiscutível  
que a natureza genuína das instituições estatais e jurídicas se revela de forma mais  
nítida nos momentos da demolição do sistema social antigo e se sua substituição pelo  
novo” (Pachukanis, 2023, p. 15).  
Razão pela qual a Seção de Direito da Academia Comunista estabeleceu como  
tarefa a investigação das épocas revolucionárias mais relevantes. E. B. Pachukanis ficou  
responsável pelo estudo das revoluções inglesas, o que resultou no ensaio Sobre os  
momentos revolucionários do Estado e do Direito inglês (1927), o mais extenso texto  
da coletânea. Contrariando a lógica dos juristas burgueses que valorizavam a chamada  
“Revolução Gloriosa” de 1688-1689, e a perenidade de suas mudanças institucionais,  
e desprezaram a Revolução de 1642-1649 tratando-a como “Grande Rebelião”, centra  
especial atenção nesta última, argumentando quanto mais massificado e popular um  
processo de revolta e revolução “[...] mais forte fica o desejo dos ideólogos burgueses  
de retratá-lo como uma revolta cega e infecunda que apenas destrói, mas nada cria”  
(Pachukanis, 2023, p. 18), uma vez que “[...] o traço comum dos historiadores  
burgueses é que, para eles, a auto-organização das massas equivale ao caos”  
(Pachukanis, 2023, p. 63). Ao contrário O significado de transformações sociais de  
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grande monta, como é o caso de revoluções, não se limita, é claro, a conquistas  
imediatas e explicitamente expressas na forma de novas instituições e novos cargos”,  
considerando que “[...] as reformas das velhas instituições são, amiúde, apenas  
subprodutos das revoluções” que “[...] são pontos nodais do desenvolvimento social,  
o qual é por elas predeterminado por séculos à frente” (Pachukanis, 2023, p. 18).  
O centro da argumentação do autor soviético não está em observar as simples  
características institucionais e normativas, mas as posições das classes em conflito e  
as lições apreendidas no período de duplo poder e de transição, uma vez que somente  
“[...] as referências ao curso inevitável do desenvolvimento histórico são  
completamente insuficientes”, portanto, defende que “[...] uma investigação realmente  
materialista e marxista deve ter como tarefa elucidar precisamente quais eram as  
classes que travavam a luta e os meios que empregavam” (Pachukanis, 2023, p. 40).  
Para Pachukanis (2023, p. 59, grifo original), são comumente desconsiderados,  
os fatos mais relevantes do ponto de vista revolucionário, quais sejam: “[...]o espírito  
de iniciativa das massas populares, a criação de organizações por sua própria iniciativa,  
organizações que são órgãos de luta revolucionária e, por conseguinte, órgãos  
embrionários do poder revolucionário, o destaque da análise se dá não a história das  
instituições, elementos jurídicos ou da legalidade, mas à luta política de massas. Neste  
cenário, a fundamentado em Lenin, estabelece-se uma disjuntiva no processo  
revolucionário, uma vez que:  
Na realidade, a solução de questões políticas por meio do uso da força  
armada e da renúncia à legalidade está longe de esgotar o conceito  
de revolução, inclusive na esfera puramente política. Deve-se, aqui,  
levar em conta a distinção na qual insistia Lênin: ou a mudança é  
efetivada pelas massas populares que cerram fileiras no próprio  
processo de luta, criando, a partir de baixo, os órgãos da insurreição  
espontâneos estaremos, então, diante de uma revolução popular; –  
ou essa mudança é obra de uma minoria, e, ainda por cima, de uma  
minoria que faz parte das classes possuidoras privilegiadas e que se  
apoia em uma organização pronta, por exemplo, no exército. Nesse  
caso, a massa popular não desempenha um papel ativo e  
independente. Ela é posta de antemão à disposição da elite dirigente  
e está fadada a desempenhar o papel de instrumento cego  
(Pachukanis, 2023, p. 67-68).  
Em resumo, são nítidas na exposição as correlações traçadas com a revolução  
russa e a transição socialista, com destaque para as lições da experiência de duplo  
poder do Conselho de Soldados de Oliver Cromwell, suas insuficiências e vacilações,  
para a duplicidade de poder própria aos sovietes de trabalhadores, camponeses e  
soldados da Revolução Russa e as lições para as demais experiências revolucionárias.  
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Publicado contemporaneamente às primeiras autocríticas explícitas em relação  
às concepções expostas em TGDM, em Hegel: o Estado e o Direito (Em homenagem  
ao centenário de sua morte) (1931) Pachukanis expõe as diferentes possibilidades  
abertas pela obra de Hegel, sua apropriação pelos setores reacionários da burguesia,  
o uso pela social-democracia e reconhece sua importância para o desenvolvimento da  
obra de Marx, Engels e Lenin, as principais influências teóricas do jurista soviético.  
Embora neste exercício não centre atenção nas dimensões jurídicos, retoma um  
dos aspectos centrais de TGDM quando reconhece como relevantes e significativos os  
raciocínios de Hegel sobre a sociedade civil burguesa. Em sua Filosofia do Direito,  
com base na economia política inglesa, o teórico alemão destaca que as pessoas  
particulares se relacionam, se afirmam e satisfazem suas necessidades por meio da  
outra, de tal modo que “[...] a necessidade externa manifesta-se formalmente como um  
contrato”, raciocínio que, para Pachukanis (2023, p. 23) deve ser contraposto às  
passagens “[...] do primeiro volume de O capital, onde Marx estabelece a relação entre  
o fato da troca de mercadoras e algumas formas jurídicas da propriedade e do  
contrato” (Pachukanis, 2023, p. 182). O revolucionário soviético conclui que “[a] teoria  
idealista de Hegel é posta sobre seus próprios pés. As formas jurídicas são explicadas  
pelas relações econômicas que jazem na sua base” (Pachukanis, 2023, p. 182).  
Já em A propósito da questão da preparação de quadros edificação soviética e  
do Direito Soviético (1934), Pachukanis realiza uma crítica da formação e preparação  
dos quadros dos diferentes organismos administrativos do Estado soviético e do  
judiciário (incluindo tribunais e a procuradoria), apontando inúmeras deficiências e  
ressaltando as potenciais consequências drásticas desse despreparo: “[...] uma  
abordagem inábil, politicamente míope, com uma organização ruim, tal processo pode  
converter-se em seu contrário, trazer prejuízo à edificação socialista e fazer o jogo do  
inimigo de classe” (Pachukanis, 2023, p. 259). Para o Pachukanis (2023, p. 273), a  
negligência com a lei soviética, gera “Caos, desordem, desorganização e confusão”, os  
problemas na seleção e formação dos potenciais quadros da edificação soviética e  
para as tarefas jurídicas, as condições estruturais, as desigualdades regionais e a  
ausência de professores qualificados geram consequências nos processos judiciais e  
investigativos:  
Daí, a qualidade correspondente do trabalho dos investigadores, da  
procuradoria e da justiça; daí as queixas constantes quanto à má  
preparação dos casos, quanto ao grande número de decisões que têm  
de ser anuladas, quanto ao grande número de processos instaurados  
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que têm de ser extintos; daí as queixas de que os trabalhadores da  
procuradoria e da justiça não demonstram o devido faro político, não  
sabem focar sua atenção nos aspectos mais importantes do trabalho  
no sentido político-econômico e separar casos ou categorias de casos  
que, em certas circunstâncias, representam o elo decisivo. Daí as  
queixas quanto ao formalismo de um lado, e quanto a exageros, de  
outro (Pachukanis, 2023, p. 263)  
Embora Pachukanis nunca tenha negado a existência e mesmo papel do Direito  
na transição socialista e necessária preparação de quadros para cumprirem tarefas  
jurídicas, o artigo apresenta elementos de revisão das ideias originárias mesmo sem  
ainda afirmar expressamente a existência de um “Direito socialista”, ressaltando uma  
“legalidade revolucionária” e o papel do Direito soviético:  
Quanto ao Direito soviético, ainda deparamos, na prática, com  
atitudes desdenhosas que, às vezes, se estendem, inclusive, às tarefas  
de preparação de quadros correspondentes. É óbvio que, em teoria,  
ninguém contesta a legalidade revolucionária todos são a favor da  
legalidade revolucionária, mas, na realidade, na prática, não raras  
vezes, encontramos uma atitude “esquerdista” desdenhosa em relação  
a toda a espécie de “sutilezas jurídicas” (Pachukanis, 2023, p. 272-  
273)  
A teoria staliniana de fortalecimento do Estado e do Direito durante a ditadura  
do proletariado é afirmada por Pachukanis (2023 p. 274), “[...] o papel do Direito  
soviético e da lei soviética crescerá e a nossa tarefa consiste em fazer a lei soviética  
mais eficaz, mais flexível, mais vigorosa”, uma vez que o Direito protege “[...] a  
propriedade pública socialista, que regula o trabalho e a produção, que determina a  
remuneração segundo a qualidade e a quantidade”, já a lei “[...] pune o inimigo de  
classe e qualquer um que viole a disciplina socialista, qualquer desorganizador da  
produção socialista”, de tal modo que “[...] estão longe de definhar”..  
O artigo evidencia que mesmo inserido no processo autocrítico e revisando  
parte de suas concepções originais, permanece no revolucionário soviético uma ampla  
criticidade sobre a realidade da URSS, denunciando problemas que serão  
corporificados de maneira intensa nos processos de Moscou que o vitimaram poucos  
anos depois. No entanto, a revisão completa de suas teses estão presentes nos dois  
últimos textos da coletânea.  
Ressalve-se, porém, que Pachukanis sempre esteve preocupado em confrontar  
os aspectos teóricos com a realidade concreta do capitalismo e do processo  
transicional, um estudo profundo de suas mudanças teóricas e autocríticas na década  
de 1930 demandaria uma análise também histórica, biográfica e elementos que estão  
para além dos textos escritos, ainda mais considerados apenas os disponíveis na  
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coletânea. Dentre estes, os ensaios de polêmica e disputa no interior do Partido  
Bolchevique, que datam desde 1928, expressam uma posição crítica de Pachukanis  
tanto em relação à “oposição de esquerda”, liderada por Trotsky, quanto à “oposição  
de direita”, capitaneada por Bukhárin. Em suma, ao menos nos ensaios disponíveis, o  
revolucionário soviético nunca deixou de reconhecer o processo soviético e legitimar  
a posição da liderança de Stálin, a aparência do processo e sua adesão política  
impunha do ponto de vista teórico confrontar aspectos de sua teorização presentes  
em TGDM, algo que não pode ser exclusivamente atribuído às coerções que sofreu,  
portanto a tarefa interpretativa impõe imensa dificuldade.  
Nesse diapasão, entre os ensaios presentes na coletânea, principalmente a  
partir de 1930, é possível notar um adensamento nas referências à Josef Stálin, no  
início são realizadas citações esparsas e mesmo protocolares, algumas de fato  
dialogam com a temática de cada ensaio, principalmente quando se tratam de disputas  
no interior da URSS, no entanto, as citações laudatórias passam a ganhar cada vez  
mais destaque e ganham culminância no artigo que destaca o então líder soviético no  
próprio título, A constituição de Stálin e a legalidade socialista (1936). Embora  
apresente aspectos teóricos importantes, o ensaio contrasta com os demais por  
estarem ausentes a riqueza de citações à Marx, Engels, Lenin e outros autores,  
possuindo maior caráter descritivo e mesmo de análise legislativa constitucional.  
Pachukanis (2023, p. 327) afirma o projeto de Constituição então submetido  
ao sufrágio popular como “[...] um grandioso monumento histórico à época stalinista  
da edificação vitoriosa da sociedade socialista sem classes”, uma vez que “[o] primeiro  
plano quinquenal erigiu os fundamentos da economia socialista” e, com o segundo  
plano quinquenal, “[...] esses fundamentos teriam de ser coroados com uma  
superestrutura correspondente”, considerado o “[...] socialismo não como um conceito  
abstrato, mas como uma sociedade socialista concreta, historicamente efetivada[...]” na  
União Soviética (Pachukanis, p. 333-334).  
Com o fim do processo de coletivização do campo e a eliminação dos culaques,  
defende-se o fim da existência das classes exploradoras e a transformação do campo  
em socialista, no entanto, há certa imprecisão e ambiguidade no artigo (ou ao menos  
em sua tradução), em alguns momentos Pachukanis afirma que, como previsto na  
Constituição, a base social do Estado socialista de trabalhadores e camponeses  
pressupõe a existência da divisão de classes, uma vez que “[...] a eliminação das  
distinções de classe entre a classe operária e o campesinato ainda não é um fato  
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consumado, que o processo de supressão das diferenças ainda continua e tem seus  
prazos” (Pachukanis, 2023, p. 331). Para em outros reafirmar existência de “[...] uma  
sociedade sem classes” (Pachukanis, 2023, p. 329), apresentando “operários e  
camponeses” como as “[...] duas camadas sociais [que] constituem o fundamento social  
da URSS” e “[...] cuja aliança é o princípio superior da ditadura do proletariado”,  
camadas sociais que são acompanhadas pela “[...] intelligentsia trabalhadora soviética  
e uma numerosa camada de servidores estatais e sociais [...]” que se juntaram aos  
operários, camponeses e soldados do Exército Vermelho nos renomeados sovietes de  
deputados dos trabalhadores (Pachukanis, 2023, p. 331, grifo nosso).  
O centro da argumentação de Pachukanis (2023, p. 327-328) é que a  
Constituição Stalinista “[...] é a expressão mais generalizada de uma nova  
superestrutura política estatal e jurídica da sociedade socialista” e traz uma miríade de  
contribuições teóricas importantes à “[...] doutrina marxista-leninista socialista e, em  
particular, sobre o papel e o significado do Estado sob o socialismo, assim como sobre  
a democracia socialista soviética”. É dada especial atenção à “[...] doutrina do camarada  
Stálin sobre o fortalecimento do poder de Estado por todos os meios possíveis no  
período de edificação da sociedade sem classes”, tese que é considerada uma  
grandiosa realização da teoria marxista-leninista, uma vez que “[...] dá uma resposta  
concreta sobre caminhos a seguir rumo à fase superior do comunismo”, tratando-se  
[...] não de algum problema particular ou de uma fase de curta duração, mas da questão  
fundamental para todo o período histórico” (Pachukanis, 2023, p. 329). Portanto,  
afirma Pachukanis (2023, p. 329),  
Trata-se do fato de que apenas uma organização estatal poderosa  
poderá garantir uma consolidação mais rápida do sistema econômico  
socialista e dos fundamentos da sociedade sem classes na URSS,  
assim como da vitória do socialismo à escala mundial.  
A ambiguidade no tratamento da existência ou não de classes sociais também  
se dá em relação ao tratamento do Estado da “sociedade sem classes”, uma vez que  
em determinado momento Pachukanis (2023, p. 329) questiona “Se os elementos  
capitalistas realmente foram eliminados e uma sociedade sem classes foi construída  
na URSS, por que é que ainda se conserva o Estado ali?”. Ainda que a qualifique como  
uma pergunta “inocente” e que mascara “[...], com sucesso, a sua verdadeira face de  
um hipócrita, de um inimigo raivoso do socialismo”, tendemos a concordar com a  
interpretação de Naves (2008, p. 150) que, na esteira de N. S. Timasheff, ressalta “[...]  
o sentido crítico dessa passagem, não apenas porque Pachukanis não oferece uma  
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resposta satisfatória à sua pergunta, mas também porque, deixando de fazê-lo, sugere  
que a sociedade soviética pode não ter uma natureza socialista”, embora compreende-  
se que o questionamento principal não é sobre o caráter “socialista”, mas sobre a não  
existência de classes sociais.  
Por fim, o autor soviético afirma que a Constituição coroa uma série de decisões  
partidárias e governamentais realizadas nos anos anteriores e “[...] voltadas para a  
consolidação da legalidade socialista”, de forma que “a lei soviética não é apenas um  
registro que põe por escrito o que foi incorporado na vida, ela é um meio de ação  
ativa sobre as relações sociais, ela é um ato que organiza e dirige a ação das massas”  
(Pachukanis, 2023, p. 337). É então que Pachukanis afirma “[...] a edificação com base  
[na constituição] de um sistema íntegro do direito socialista”.  
A afirmação de um Direito Socialista e uma nova revisão e negação explícita de  
TGDM é realizada no derradeiro ensaio O Estado e o Direito sob o Socialismo (1936),  
com maior densidade teórica e consideravelmente menos ambíguo que o artigo  
anterior, o revolucionário soviético reafirma inicialmente a eliminação das classes  
exploradoras e o Estado soviético “[...] enquanto superestrutura política da sociedade  
socialista sem classes”, diante de uma nova etapa de desenvolvimento ditadura do  
proletariado e da democracia soviética, fundadas nas transformações socioeconômicas  
que resultaram na “[...] criação das relações de produção socialista de um só tipo tanto  
na cidade como no campo” (Pachukanis, 2023, p. 349).  
A partir de uma citação de O Estado e a Revolução de Lenin, Pachukanis (2023,  
p. 352) destaca que tal qual existem diferentes formas de Estado capitalistas, sem que  
se altere a sua essência de ditadura da burguesia, a transição entre a sociedade  
capitalista e sua superação até que se chegue ao comunismo, o Estado proletário  
manterá o seu papel e “[...] apesar de toda a variedade de possíveis formas políticas,  
a ditadura do proletariado será a essência e o conteúdo desse Estado”. De tal modo,  
embora o poder soviético represente uma forma estatal da ditadura do proletariado  
de importância histórica mundial, o Estado soviético é mutável e se desenvolve “[...]  
em ligação com os sucessos na luta pela eliminação das classes” (Pachukanis, 2023,  
p. 352). Afirma ainda, inexistir antagonismo entre Estado socialista e sociedade, o que  
o difere do Estado capitalista (Pachukanis, 2023, p. 354)  
O marxista soviético afirma que apesar de, no fundamental, construída a  
sociedade sem classes, não se chegou a fase superior da sociedade comunista,  
segundo sua interpretação a distinção entre o socialismo e o comunismo “[...] ou entre  
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Antonio Ugá Neto  
a fase superior e a fase inferior do comunismo consiste, sobretudo, no fato de que,  
sob o socialismo, que se caracteriza pelo domínio da propriedade social socialista, a  
distribuição de bens se dá segundo o trabalho”, já no comunismo, pressupondo a  
consolidação e o desenvolvimento da propriedade social, [...] o desenvolvimento da  
propriedade social, a distribuição se dará segundo as necessidades”, possibilitando  
“[...] também a supressão das contradições entre o trabalho intelectual e físico e a  
transformação do trabalho em primeira necessidade do ser humano”, resultando,  
somente então, nas circunstâncias nas quais “[...] as pessoas são capazes de trabalhar  
sem ‘capatazes e contabilistas’, sem normas jurídicas e sem força coercitiva, sem o  
Estado (Pachukanis, 2023, p. 352-353, grifo nosso).  
De tal modo, o processo de definhamento do Estado é próprio apenas à etapa  
futura e superior do comunismo, uma vez que “[...] não poderá ser desencadeado sem  
que, antes, desapareça o caráter coercitivo do trabalho”, premissa econômica  
fundamental “[...] para que o processo de definhamento, de adormecimento do poder  
de Estado possa começar”, por desconsiderar tal premissa econômica, a teoria que  
afirmava o início do processo real de definhamento Estado já a partir da Revolução de  
Outubro é qualificada pelo revolucionário soviético como errônea e oportunista  
(Pachukanis, 2023, p. 353). Confusão gerada, segundo Pachukanis (2023, p. 353),  
[...] dessa questão ser confundida com a questão da natureza do  
Estado proletário enquanto semi-Estado, enquanto um Estado que,  
diferentemente dos Estados exploradores, não pretende ser eterno,  
mas, pelo contrário, prepara as condições e premissas para a  
destruição do Estado propriamente dita. Uma vez derrubada a  
burguesia, o proletariado cria um Estado de tipo especial, o qual, em  
oposição aos Estados exploradores, não representa o poder da  
minoria exploradora sobre a maioria, mas, ao contrário, é um  
instrumento da maioria trabalhadora dirigido contra os exploradores.  
Pachukanis (2023, p. 355-356) adensa a necessidade do Estado numa  
“sociedade sem classes” ao afirmar a persistência da luta de classes e a continuidade  
imperativa “[...] tanto do trabalho subsequente de educação e reeducação das massas  
trabalhadoras quanto da repressão dos elementos hostis” que não se renderam e  
permanecem resistindo em luta contra o socialismo “[...] que, que se mascaram, que  
prejudicam”, de tal forma que “[o] aparato de coerção é indispensável para combater  
os inimigos do socialismo”. Também permanecendo “[...] a tarefa de organização da  
defesa contra o cerco capitalista. A defesa da pátria socialista exige preocupação  
incansável com a consolidação do poderio militar do Exército Vermelho e de todas as  
forças armadas” (Pachukanis, 2023, p. 356).  
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RESENHA: Pachukanis e o estreito horizonte do Direito  
Afirma-se, portanto, a manutenção completa do Estado Socialista e do Direito  
Socialista até a etapa superior do comunismo, momento em que “[...] as pessoas  
aprenderão a trabalhar sem capatazes e sem normas jurídicas”, é então que Pachukanis  
(2023, p. 356) reafirma explicitamente a sua autocrítica em relação as concepções de  
TGDM, “[...] para evitar a repetição dos velhos equívocos e da velha confusão em outras  
formas e em outra base”, reelabora a sua interpretação da passagem sobre o Direito  
presente em Crítica ao Programa de Gotha de Marx:  
Visto que a distribuição segundo o trabalho guarda certa semelhança  
com a troca equivalente de mercadorias, Marx e Lênin apontavam que,  
sob o socialismo, o Direito burguês seria completamente abolido  
apenas em relação à propriedade dos meios de produção. Aqui, a  
propriedade privada é substituída pela propriedade social. Mas, na  
esfera da distribuição, vigora um Direito que, condicionalmente, entre  
aspas, podemos chamar de Direito burguês, pois consiste na aplicação  
de uma escala igual a pessoas que são, de fato, desiguais. Ele inclui a  
manutenção da desigualdade efetiva entre pessoas; baseado na  
medida média igual do trabalho, não leva em consideração as  
diferenças de forças, capacidades, estado civil etc. (Pachukanis, 2023,  
p. 356-357)  
Pachukanis (2023, p. 357) reconhece que o “[...] princípio de remuneração  
segundo o trabalho é um princípio socialista”, uma vez que é aplicado “[...] em uma  
sociedade em que ninguém pode dar senão seu trabalho, onde não há exploração,  
nem crises e nem desemprego”. De forma que tal Direito “burguês” não guarda  
qualquer relação com os interesses da burguesia, de tal forma que “[...] esse Direito é  
o Direito do Estado socialista que serve aos interesses dos trabalhadores e do  
desenvolvimento da produção socialista”, portanto, afirmar este “[...] Direito com  
desprezo como um Direito ‘burguês’ só é próprio dos heróis da ‘fraseologia  
esquerdista’, simpatizantes do anarquismo, e dos defensores da nivelação pequeno-  
burguesa”. Assim, se Marx afirmava a “[...] necessidade da distribuição segundo o  
trabalho como um “defeito” da sociedade socialista, é evidente por si mesmo que essa  
expressão tem um significado muito relativo”, somente considerado em relação a fase  
superior do comunismo (Pachukanis, 2023, p. 357).  
A concepção existente em TGDM é considerada como uma exposição  
completamente equivocada e antimarxista, uma vez que no livro o Direito, o Estado e  
a moral são puramente “[...] declarados como formas burguesas que não podem ser  
preenchidas com nenhum conteúdo socialista e devem definhar na medida de  
realização desse conteúdo”, assegura-se, pelo contrário, o caráter proletário do  
Estado, a moral proletária comunista e, ao fim, o “[...] Direito soviético enquanto Direito  
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do Estado proletário, enquanto Direito que serve como instrumento de edificação do  
socialismo” (Pachukanis, 2023, p. 357).  
Critica-se, também, a concepção do “[...] Direito “exclusivamente como uma  
forma que medeia a troca mercantil”, na qual “[a] relação entre os proprietários de  
mercadorias foi proclamada como o verdadeiro conteúdo específico de qualquer  
Direito”, pelo contrário “[...] o principal conteúdo de classe de qualquer sistema de  
Direito que consiste na propriedade dos meios de produção foi empurrado para o  
plano de fundo” (Pachukanis, 2023, p. 358). Pachukanis (2023, p. 358) chama de  
“teoriazinhas esquerdistas” as concepções sobre “[...] o definhamento do comércio e  
do dinheiro, e da transição para a troca direta de mercadorias encontram-se lógica e  
imediatamente ligadas às teorias do ‘definhamento do Estado’ e da ‘erosão da  
superestrutura jurídica’”.  
Apesar de pouco extenso, o artigo traz outras dimensões teoricamente  
relevantes para estudos, contudo, sua exposição extrapolaria os limites da presente  
resenha. Em resumo, a coletânea tende a confirmar o centro da tese de Naves (Naves,  
2008, p. 159-164) de que somente no último período da obra de Pachukanis há uma  
aceitação plena da caracterização e existência de um direito socialista e a consequente  
adoção de uma concepção normativista do direito, que se torna hegemônica na União  
Soviética e se consolida nas interpretações de Pavel Yudin e Andrey Vychinski. Antes  
da culminância desse processo nos textos de 1936, há um destaque do  
reconhecimento do caráter de classe do direito, principalmente com o delineamento  
do caráter proletário do direito soviético, acompanhado pelo paulatino abandono da  
concepção de correlação entre forma jurídica e troca mercantil em favor de uma  
determinação direta do direito pelas relações de produção tratadas genericamente,  
que, por fim, é desconsiderada em benefício de uma determinação normativa do  
direito. O direito passa a ter papel de instrumento na construção do socialismo. De tal  
forma que o “[...] direito proviria das relações de produção, mas essa determinação só  
produz os seus efeitos por meio da mediação do aparelho de Estado”, o papel central  
da norma jurídica e, consequentemente do Estado, é apenas mitigado por uma  
determinação abstrata da superestrutura política enquanto “reflexo” da economia  
(Naves, 2008, p. 151-152).  
Verifica-se, por fim, que a coletânea traz a público ensaios que demonstram o  
caráter multifacetado de Pachukanis, autor que não se circunscreve ao papel de  
“jurista”, mas que, cumprindo tarefas neste terreno, procurou avançar na crítica  
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RESENHA: Pachukanis e o estreito horizonte do Direito  
marxista ao Direito. O acesso aos textos publicadas após suas autocríticas iniciadas na  
década de 1930 demonstram que, mesmo no processo de negação das teses centrais  
da década de 1920, temos um crítico perspicaz e não subordinado totalmente ao  
“marxismo oficial” imposto. É, então, facilitado aos leitores do português realizar uma  
estudo crítico do percurso teórico de Pachukanis e explorar caminhos que ele foi  
impedido de realizar no âmbito da crítica ao Direito.  
Referências  
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo:  
Boitempo, 2008.  
PACHUKANIS, Evgeny. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos  
(1921-1929). Tradução: Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017.  
Como citar:  
UGÁ NETO, Antonio. Pachukanis e o estreito horizonte do Direito. Verinotio, Rio das  
Ostras, v. 29, n. 1, pp. 521-535; jan-jun, 2024.  
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RESENHA  
DOI 10.36638/1981-061X.2024.29.1.722  
A reconstrução em construção da crítica do Direito  
de Karl Marx por Vinícius Casalino  
Resenha:  
CASALINO, Vinícius. Karl Marx e a crítica do direito. Curitiba: Íthala, 2024.  
Rayan Thales Araújo Maia*  
Karl Marx e a crítica do direito é um ensaio escrito por Vinícius Casalino e  
publicado pela Editora Íthala, no ano de 2024. Esse ensaio é uma contribuição ao  
debate que circunda a temática “Marxismo e Direito” e objetiva, modestamente, alertar  
que “as forças progressistas têm uma teoria jurídica para chamar de sua” (Casalino,  
2024, p. 14). Diante dos avanços e complicações da crítica marxista do direito no  
Brasil, recepcionada através das obras de Evguiéni Pachukanis e Piotr Stutchka, o autor  
visa demonstrar que ela “oferece os elementos teóricos necessários à compreensão do  
momento jurídico das relações humanas, sua articulação política e seu modo de  
atuação prático” (Casalino, 2024, p. 14), bem como destacar que “se perde muito, do  
ponto de vista teórico e prático, quando se propõe o afastamento da pesquisa marxista  
daquilo que se compreende como tradição dialética”, algo promovido pelas leituras  
althusserianas da obra de Karl Marx (Casalino, 2024, p. 6). Para alcançar esses  
objetivos, o ensaísta propõe a reconstrução do pensamento desse autor, não bastando  
sua simples enunciação ou a reprodução de determinados trechos isolados.  
Na introdução, Casalino realiza um panorama histórico da teoria do direito no  
séc. XX. Nesse período, havia três escolas de pensamento que disputavam a  
supremacia teórica na ciência do direito europeu: a teoria tradicional, representada por  
Hans Kelsen; a teoria marxista, cujo expoente era Evguiéni Pachukanis e a teoria  
conservadora ligada ao nacional-socialismo, representada por Carl Schmitt. Após a  
derrota do nazifascismo em 1945, a teoria conservadora desmorona e a teoria  
tradicional alcança a hegemonia teórica da ciência do direito. A teoria marxista não  
chegou sequer a disputar a supremacia teórica, porque, embora a União Soviética  
*
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Currículo Lattes:  
http://lattes.cnpq.br/8807836375341063. E-mail: rayanthales@hotmail.com.  
Verinotio  
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nova fase  
 
RESENHA: A reconstrução em construção da crítica do Direito Karl Marx por Vinícius Casalino  
tenha vencido a Segunda Grande Guerra, foi derrotada internamente no âmbito  
político, devido à divergência entre a teoria de Pachukanis e os interesses da URSS em  
validar o direito soviético como um direito autenticamente socialista. Após a vitória de  
Stalin, o abandono da NEP e as medidas de implantação do socialismo num único país,  
as reflexões de Pachukanis declinaram, pois Andrei J. Vichinsky, procurador-geral da  
URSS, promoveu a perseguição política contra as escolas de Pachukanis e de Stutchka,  
para apagar a existência de uma crítica marxista ao direito capaz de ameaçar a  
legitimidade do direito soviético.  
O primeiro capítulo do livro, A crítica do direito na crítica da dialética idealista,  
dedica esforços à análise dos textos marxianos do período de 1843 e 1844. Na Crítica  
da filosofia do direito de Hegel, Marx apreende a relação entre propriedade privada e  
Estado, a qual “revela a natureza da relação entre direito e organização política da  
sociedade” (Casalino, 2024, p. 23). A compreensão do direito por Marx, nesse  
momento, é apresentada por meio de um duplo movimento: “a apresentação da  
propriedade privada, na época medieval, como uma espécie de privilégio, e o  
desenvolvimento antecipado do direito da propriedade privada, feito alguns séculos  
antes, pelos romanos” (Marx, 2024, p. 24). Esse movimento demonstra que,  
historicamente, a propriedade privada encontra-se em diversas sociedades, enquanto  
o direito da propriedade privada, não. Durante a Idade Média a propriedade aparece  
como privilégio, caracterizando os vínculos cristalizados das relações sociais dessa  
sociedade, tal como a servidão, em Roma, a propriedade surge como direito, já que,  
nessa sociedade, as relações sociais dependem em maior grau da vontade dos sujeitos  
envolvidos.  
Em Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução, Casalino menciona a  
relação entre crítica da religião e crítica do direito. A afirmação de Marx acerca da  
transformação da crítica do céu em crítica da terra é apreendida pelo ensaísta como a  
necessidade de superar o idealismo da dialética hegeliana e de alcançar uma  
“concepção que abranja os modos de organização material da sociedade e seus  
respectivos modos políticos de ordenação” (Casalino, 2024, p. 25). Essa  
transformação é importante, pois “na sociedade moderna os vínculos de propriedade  
enraizados nos modos de organização material são expressos juridicamente” (Casalino,  
2024, p. 25). Ademais, nesse texto, Marx empreende uma crítica à escola histórica do  
direito, no sentido de evidenciar o caráter conservador e retrógrado dessa escola,  
revelando também seu posicionamento perante a filosofia hegeliana. Apesar de seu  
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Rayan Thales Araújo Maia  
caráter idealista da filosofia de Hegel, “a arquitetura categorial de sua dialética oferecia  
a possibilidade de um manancial teórico progressista que, bem ou mal, poderia  
apontar para a necessária modernização alemã”, ao contrário da escola histórica do  
direito, que objetiva não somente preservar o presente, mas retroceder o  
desenvolvimento histórico alemão.  
Adentrando em Sobre a questão judaica, Casalino identifica a problemática  
envolvendo a reivindicação dos judeus quanto aos direitos de cidadão e aos direitos  
humanos. O autor percebe que Marx identifica a duas figuras que constituem os  
direitos humanos: os direitos do cidadão e os direitos do homem, as quais estão  
relacionadas com as figuras do cidadão e do burguês e suas respectivas vidas. Através  
da análise de Marx acerca desses direitos, Casalino (2024, p. 33) conclui que “os  
direitos humanos não passam, portanto, da consagração do homem egoísta; do  
homem que não cede um centímetro na defesa de seus interesses pessoais”. Nesse  
sentido, a emancipação política aparece como o meio pelo qual os direitos humanos e  
os interesses burgueses são assegurados.  
Continuando sua reconstrução, Casalino (2024, p. 39) menciona que Marx “não  
nos legou a brochura em que apresentaria a crítica do direito” nos Manuscritos  
econômico-filosóficos, razão por que avança para A sagrada família. Devido ao direito,  
Casalino aproxima-se do Capítulo VI desse escrito, poruqe Marx retoma o que foi  
desenvolvido em Sobre a Questão Judaica sobre a relação entre direito e privilégio. A  
partir disso, Casalino (2024, p. 36) extrai que “ambos expressam modos distintos de  
relações sociais”, sendo o privilégio expressão da feudalidade, das relações sociais  
ligadas ao estamento e à guilda, e o direito expressão da sociedade civil, das relações  
sociais entre indivíduos egoístas. Assim, Casalino (2024, p. 41) entende que o  
privilégio remete a uma “sociabilidade fundada nos estamentos […] entre classes  
sociais organizadas na base da hierarquia”, enquanto o direito remete a uma “esfera  
de sociabilidade inerentemente burguesa, fundada na lógica da propriedade privada e  
no egoísmo que esta põe em marcha”, revelando a natureza contraditória do direito,  
fundada na sua capacidade de aparecer como um garantidor da liberdade enquanto  
“engendra, no subterrâneo, uma nova escravidão” (Casalino, 2024, p. 43).  
O segundo capítulo, A crítica do direito na crítica do materialismo  
contemplativo, foca no texto A Ideologia Alemã, escrito por Marx e Engels, porém  
publicado apenas na década de 30’. Após uma breve menção ao texto Glosas Críticas  
ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um Prussiano” de autoria de Karl  
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RESENHA: A reconstrução em construção da crítica do Direito Karl Marx por Vinícius Casalino  
Marx, Casalino prossegue para a análise de A Ideologia Alemã. Para Casalino (2024,  
p. 59), o novo materialismo desenvolvido nesse texto modifica a reflexão sobre o  
direito, porque “exige que a realidade seja compreendida não como coleção de coisas  
a serem contempladas, mas como expressão objetiva da atividade humana subjetiva,  
prático-sensível”, devendo ser “entendida como produção que se esfacela em razão  
da divisão social do trabalho e de uma distribuição desigual dos respectivos produtos”,  
que engendra “figuras de consciência que se autonomizam relativamente ao momento  
material e se tornam autônomas” e que “são absorvidas e impulsionadas pelos  
representantes da classe dominante no sentido de exprimirem de modo ideal as  
relações de dominação, concebendo-as como se fossem relações naturais e  
inevitáveis”.  
Baseado nisso, Casalino (2024, p. 60) entende que o direito não é somente  
“uma esfera de sociabilidade específica de uma classe social”, mas o “fenômeno que  
está entranhado na atividade humana prático-sensível que organiza a sociedade”.  
Portanto, o direito deve ser investigado tal como se encontra no interior da divisão  
social do trabalho e das relações de produção, as quais permitem o escoamento das  
forças produtivas. Disso decorre o caráter histórico do direito, o qual não existe em  
toda sociedade, mas apenas “naquelas em que a divisão social do trabalho se organiza  
de tal forma que a propriedade privada surge como força dissolutória da propriedade  
comunitária” (Casalino, 2024, p. 63). Entretanto, Casalino observa que “o surgimento  
de um direito plenamente desenvolvido, como o que temos atualmente, não depende  
apenas do advento e consolidação da propriedade privada, mas exige também a  
indústria e o comércio” (Casalino, 2024, p. 63).  
No último capítulo, A crítica do direito na crítica da economia política, Casalino  
direciona sua atenção aos textos de economia política de Marx, extraindo a crítica do  
direito desses escritos. Chegando à Miséria da Filosofia, Casalino adverte que a crítica  
do direito nesse texto é sumária, porém importante. Ela surge da crítica de Marx ao  
caráter metafísico do pensamento de Proudhon, que defende a existência da liberdade  
de compradores e vendedores de negociarem entre si no Capitalismo. Casalino, então,  
identifica duas ideias importantes. A primeira consiste no caráter ilusório dessa  
liberdade, que, antes de repousar na opinião dos negociantes, baseiam-se na  
necessidade, a qual liga-se à situação social dos negociantes e à organização global  
de produção. A segunda ideia é a ligação entre direito e propriedade, que condiciona  
o surgimento de relações sociais e jurídicas historicamente específicas, tais como as  
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Rayan Thales Araújo Maia  
dos tabeliães e dos registradores de imóveis, os quais pressupõem uma organização  
econômica em que a propriedade é alienada livremente. Diante da explicação de Marx  
sobre o surgimento da moeda, Casalino identifica o direito como “reconhecimento  
oficial do fato” (Marx, 2017, p. 84), que, relativo à moeda, seria “o resultado da  
consolidação de uma economia de mercado que utiliza esses metais preciosos como  
meios universais de troca. As exigências da economia impõem o reconhecimento  
jurídico” (Casalino, 2024, p. 85).  
Durante a análise do Manifesto Comunista, Casalino compreende a importância  
de considerar a luta de classes na análise crítica do direito. O ensaísta explica que,  
nesse texto, Marx e Engels apresentam uma crítica da propriedade privada e do direito,  
expressões da vontade da classe dominante. Nesse sentido, a propriedade privada e  
suas formas específicas seriam a consolidação de determinadas relações de produção  
provenientes da divisão social do trabalho, desenvolvida no modo de produção  
capitalista. Disso decorre a necessidade de novas relações jurídicas que deem vazão  
às relações econômicas originadas no bojo desse modo de produção, somente possível  
quando o direito se manifesta universalmente, por meio de mecanismos normativos  
que assegurem as relações comerciais e que efetuem o controle social da classe  
explorada. Exemplo disso é a lei, expressão da vontade da classe dominante e cuja  
gênese remete a um modo de produção fundado na propriedade privada dos meios  
de produção, no intercâmbio de mercadorias e na oposição entre burguesia e  
proletariado. Como percebe Casalino, a consequência dessa oposição é o surgimento  
de uma contradição que somente pode ser resolvida através da revolução ou da  
destruição dessas classes, sendo o papel da lei postergar a resolução dessa  
contradição ao máximo.  
Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Casalino destaca como Marx identifica a  
origem material do direito público na recepção dos privilégios feudais pelo Estado e  
na adaptação daqueles à economia privada. O ensaísta, através de Marx, explica que  
a recepção do privilégio feudal ocorreu em razão da apropriação e adaptação pela  
burguesia do aparelho estatal monárquico durante a Revolução Francesa, possível  
porque o Estado monárquico originou-se e desenvolveu-se no feudalismo. Assim, os  
privilégios estamentais e o princípio de hierarquia feudal foram preservados no na  
estrutura do Estado e reformulados conforme o Capitalismo. Essa exige a substituição  
do privilégio feudal pelo direito, mas não totalmente, pois aquele é deslocado para o  
Estado, que lhe conserva a essência hierárquica. Portanto, o direito público é o  
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nova fase  
RESENHA: A reconstrução em construção da crítica do Direito Karl Marx por Vinícius Casalino  
resultado deste movimento contraditório: “o princípio político de hierarquia que se  
movimenta através do padrão jurídico privado, desestabilizado esse modelo, mas  
preservando e agindo no interior de seus pressupostos” (Casalino, 2024, p. 98).  
Avançando aos Grundrisse, Casalino encontra em Marx orientações  
metodológicas para a crítica do direito, bem como o fundamento material do princípio  
da igualdade. Quanto ao primeiro, o autor se depara com a “orientação metodológica”  
(Casalino, 2024, p. 102) de Marx quanto à cientificidade da reprodução teórica do  
objeto de estudo, que direciona a análise de diversos elementos a uma síntese,  
resultando “num conjunto maior e mais denso conceitualmente” (Casalino, 2024, p.  
100). A partir disso, Casalino busca aplicar essa “orientação metodológica” à análise  
do direito e, ao examinar a sociedade capitalista, o ensaísta identifica, por meio de  
Marx, o capital como ponto de partida e de chegada para o estudo do direito, devendo  
este ser desenvolvido e criticado a partir do capital e não isoladamente. Quanto ao  
fundamento material do princípio da igualdade, Casalino conclui, por meio de Marx,  
que esse princípio não provém do intelecto humano ou da evolução da consciência  
dos homens, senão da realidade material, organizada pelo intercâmbio de coisas de  
idêntico valor, identidade que é transferida para os possuidores de mercadoria. A  
igualdade não asseguraria o intercâmbio de mercadorias; ao contrário, é a relação  
econômica que exige uma forma de sociabilidade específica em que os trocadores se  
reconhecem como iguais.  
Prosseguindo à Contribuição da Crítica da Economia Política, o ensaísta  
constata que esse texto tange o direito, salvo rápidos trechos sobre a figura contratual  
de credores e devedores e do Prefácio, seção onde se concentram esses trechos, razão  
pela qual ganhará maior destaque por Casalino. Baseado em uma interpretação  
dialética da relação entre estrutura e superestrutura, o autor apreende a dupla  
implicação dessas esferas, isto é, “a economia determina o direito e a política, sem  
dúvida; mas estes, por sua vez, interferem com a estrutura das relações econômicas,  
alterando-as dentro de certos limites” (Casalino, 2024, p. 118), os quais são definidos  
pela própria organização econômica, não sendo possível superá-los, exceto através de  
uma revolução.  
Casalino finalmente chega a’O Capital, livro em que Marx (2017, p. 78) intenta  
investigar “o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de  
produção e circulação”. Em relação ao direito, Casalino destaca que, logo no capítulo  
2 d’O Capital, Marx apresenta a relação econômica como gênese material do direito.  
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Rayan Thales Araújo Maia  
Através da análise marxiana, o ensaísta explica que a relação jurídica enquanto  
resultado da vontade do indivíduo é somente a forma da relação de troca mercantil  
cujo conteúdo é o produto do trabalho. Embora a lei seja um elemento importante  
para compreender o direito, não é seu fundamento: “a gênese do direito reside no  
movimento econômico, especificamente no intercâmbio de mercadorias que expressam  
valores equivalentes” (Casalino, 2024, p. 132). O constante desenvolvimento das  
relações econômicas capitalistas implica a aparência de que as figuras jurídicas estão  
sustentadas apenas na vontade dos contratantes, pois, em determinadas relações (e.g.  
compra e venda de coisa futura e pagamento por meio de título de crédito), a figura  
do devedor tendem à suspensão, deixando de possuir paulatinamente um fundamento  
concreto, fundando-se apenas na promessa de pagamento.  
Ademais, novamente a partir do capítulo 2 d’O Capital, o ensaísta enfatiza a  
descoberta do sujeito de direito, uma das figuras jurídicas fundamentais para a teoria  
do direito. Já que as mercadorias não são capazes de deslocarem-se ao mercado e  
trocarem-se entre si, devem seus guardiões relacionarem entre si, trocando-as. Para  
que o intercâmbio de mercadorias se efetive, os portadores seus portadores devem se  
reconhecer enquanto sujeitos livres e iguais, isto é, como proprietários privados.  
Casalino (2024, p. 26), então, constata que a figura do sujeito “faz desaparecer as  
qualidades econômicas dos agentes envolvidos na troca, relegando a segundo plano  
suas qualidades concretas”, considerando essa ser a principal característica do  
fenômeno jurídico. Explica ainda que essa identidade jurídica não é criada  
autonomamente às relações econômicas, senão provém delas, pois o direito é “o modo  
de expressão desta relação; a maneira como a identidade de valores das mercadorias  
se manifesta nos indivíduos que participam do intercâmbio, tornando-os também  
idênticos e, como tais, sujeitos de direito” (Casalino, 2024, p. 146).  
Após desbravar O Capital, Casalino se debruça sobre os últimos escritos de  
Marx: Crítica do Programa de Gotha e Glosas marginais ao tratado de economia política  
de Adolph Wagner. No primeiro escrito, o ensaísta constata que a temática jurídica  
surge da abordagem de Marx quanto a uma sociedade comunista fortuita, bem como  
da relação entre a extinção da troca de mercadorias e o desaparecimento do valor. A  
partir de Marx, Casalino identifica o fundamento do fenômeno jurídico: o princípio da  
equivalência, bem como sua permanência nas fases iniciais da sociedade comunista  
como a forma de regulação da relação trabalho-produto. Já no segundo texto, a  
temática jurídica surge da crítica de Marx à concepção de Adolph Wagner, que defendia  
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uma concepção sociojurídica da economia, valendo-se de diversos conceitos sem o  
rigor científico necessário. A crítica de Marx reafirma a precedência do econômico ao  
jurídico, sendo o direito uma projeção das relações econômicas de intercâmbio de  
mercadorias, concepção contrária a de Wagner.  
Karl Marx e a crítica do direito apresenta uma proposta fundamental: reconstruir  
o pensamento de Marx, especialmente sua crítica do direito. Deparar-se com esse  
intento capta imediatamente o interesse de pesquisadores comprometidos com o  
respeito ao texto analisado, principalmente numa época rendida às “‘hermenêuticas’  
da imputação” (Chasin, 2009, p. 25), caracterizadas pela projeção da subjetividade do  
hermeneuta na obra interpretada, dilacerando-lhe sua malha de sentidos. Para efetuar  
essa proposta, Casalino (2024, p. 5) adota para seu livro a forma do ensaio, porque  
entende que esse gênero literário “oferece uma liberdade criativa que não se encontra  
em outras modalidades de escrita, pois admite uma autonomia extraordinária no que  
concerne à eleição do objeto e aos rumos a serem percorridos”. O posicionamento  
hermenêutico de Casalino revela o comprometimento e o respeito desse autor frente  
a obra de Marx, não se limitando à importante análise de Pachukanis, senão reconhece  
sua importância, transcendendo-a e compreendendo que o pensamento deste autor  
“precisa, antes de tudo, ser interpretado à luz das obras de Marx, especialmente de O  
Capital”, justificando que, “uma vez compreendido o sentido do direito para Marx,  
pode-se, então, fazer o caminho de volta e perceber onde acertaram e erraram os  
principais expoentes do pensamento jurídico marxista” (Casalino, 2024, p. 6-7).  
Quanto à unidade entre a proposta reconstrutiva do pensamento de Marx e o  
caráter ensaístico do texto, entendo não haver incompatibilidades; ao contrário,  
acredito ser uma unidade proveitosa e corajosa. Todavia, examinando os elementos  
constitutivos do livro, deparei-me com uma introdução ao pensamento de Marx, não  
com um ensaio propriamente dito. Dentre os principais elementos deste gênero  
literário há a presença de uma tese crítica e problematizante que servirá de guia para  
a exposição das reflexões do ensaísta. O que se observa no livro é a exposição  
sequencial dos textos marxianos e o destaque dos principais elementos relacionados,  
direta ou indiretamente, à crítica do direito, ou seja, o que guia a exposição não é uma  
tese orientadora, senão a ordem cronológica dos textos de Marx, resultado da  
proposta reconstrutiva do pensamento desse autor. Devo salientar que isso não é,  
necessariamente, prejudicial às propostas e objetivos lançados por Casalino, até  
porque, o autor explicita o caráter introdutório de seu livro ao afirmar que “este ensaio  
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busca apenas iniciar o enfrentamento destas questões”. Essa introdução, além de  
executada com esmero e exposta ao leitor de modo interessante, é indiscutivelmente  
importante para a tradição marxista, principalmente para a brasileira (Casalino, 2024,  
p. 7).  
Em geral, a análise dos textos de Marx por Casalino mostrou-se coerente e  
cuidadosa. O exame deste autor abrange grande parte das obras daquele, partindo  
dos textos da Gazeta Renana até as Glosas marginais ao tratado de economia política  
de Adolph Wagner. Casalino também demonstrou compreender o contexto e as  
discussões nos quais cada texto estava inserido e foram produzidos, apresentando,  
antes de adentrar propriamente nos textos de Marx, as informações necessárias para  
a contextualização do leitor, localizando devidamente o objeto de estudo. Destacou e  
interpretou os principais trechos relacionados, direta ou indiretamente, à crítica do  
direito de Marx, explicando-os acertadamente. Apreendeu temáticas fundamentais dos  
textos marxianos, seja aquelas relacionadas ao direito, seja as que o fundamenta, tais  
como a diferença entre direito e privilégio, a relação entre direito e relações  
econômicas, a relação entre Estado e direito, a historicidade do direito etc. Conforme  
avança em sua análise, Casalino critica, por meio de Marx, tanto autores e correntes  
importantes para a teoria do direito, como Carl Schmitt e seu decisionismo e Hans  
Kelsen e seu normativismo, quanto entendimentos tradicionais professados nos cursos  
de Direito, e.g. a existência de um direito do trabalho e de entendimentos que  
defendem a existência de um direito tributário no Feudalismo.  
Apesar da qualidade analítica e apreensiva de Casalino, observo a ausência de  
alguns elementos importantes no percurso formativo do pensamento do Marx.  
Adianto, desde logo, que as seguintes insuficiências não devem ser atribuídas a  
Casalino, senão ao caráter introdutório do livro, que, por si, limita a exposição e o  
detalhamento de determinados pontos. Diante dessa proposta, observa-se a  
necessidade de aprofundar o exame dos textos da Gazeta Renana, que, embora  
algumas noções sejam descontinuadas por Marx em textos posteriores, são  
fundamentais para a reconstrução de seu pensamento. Ademais, verifica-se a ausência  
da análise de alguns pontos dos textos de 1843 e 1844 que, quando interpretados  
com o direito, possibilitaria a apreensão de outros elementos da crítica marxiana do  
direito, evidenciado, e.g., pela ausência do exame da relação entre crítica da religião e  
da teologia e da crítica do direito e da política (razão pela qual a categoria do  
“estranhamento” não aparecer durante o livro), relação entre Estado político e direito,  
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RESENHA: A reconstrução em construção da crítica do Direito Karl Marx por Vinícius Casalino  
função garantidora dos direitos humanos relativa às limitações ao gênero humano,  
religião e política como formas de reconhecimento do homem e sua relação com o  
direito, dentre outras relações. Apesar de a ordem cronológica guiar a exposição do  
texto, Casalino não interliga as continuidades e as descontinuidades entre os textos  
examinados, implicando a ausência de conclusões capazes de revelar outros aspectos  
da crítica marxiana do direito. Por fim, não há uma conclusão sintetizante dos diversos  
elementos destacados durante o livro.  
No mais, Karl Marx e a crítica do direito é uma leitura indispensável para  
qualquer estudioso de Marx, do marxismo ou da teoria do direito, sendo uma grata  
contribuição para essas áreas. No presente livro, Casalino empreendeu algo, até então,  
não publicado: reconstruir o pensamento de Marx através de uma análise cronológica  
que abrangesse, senão todos, pelo menos a maioria de seus escritos, trazendo uma  
fundamentação distinta daquela caracterizada pela tradição althusseriana. De fato, a  
crítica do direito de Marx realmente “oferece os elementos teóricos necessários à  
compreensão do momento jurídico das relações humanas, sua articulação política e  
seu modo de atuação prático” (Casalino, 2024, p. 14), evidenciados e explicados com  
esmero por Casalino. A reconstrução dessa crítica ainda está em construção, trabalho  
de diversos estudiosos e pesquisadores, devendo ser paulatinamente aprofundada e  
densificada, mas suas linhas gerais foram traçadas no livro ora resenhado. Esse livro é  
leitura obrigatória, merecendo o reconhecimento dos leitores.  
Referências  
CASALINO, Vinícius. Karl Marx e a crítica do direito. Curitiba: Íthala, 2024.  
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,  
2009.  
MARX, Karl. Miséria da filosofia. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Boitempo, 2017.  
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do  
capital. Trad. Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.  
Como citar:  
MAIA, Rayan Thales Araújo. A reconstrução em construção da crítica do Direito Karl  
Marx por Vinícius Casalino. Verinotio, Rio das Ostras, v. 29, n. 1, pp. 536-545; jan.-  
jun., 2024.  
Verinotio  
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nova fase  
Edição especial  
A crítica do  
direito em Marx  
A compreensão do presente leva à necessidade de abordar com  
cuidado o movimento das formas e das figuras econômicas no ca‐  
pitalismo atual. No que diz respeito ao direito, é extremamente  
necessário ver como as formas jurídicas se ligam a este movimen‐  
to. Sem isso, não é possível começar a se falar de uma críꢀca mar‐  
xista ao direito que não fique restrita a 100 anos atrás. 100 anos  
depois, é preciso compreender o capitalismo contemporâneo e,  
em meio a ele, a políꢀca e o direito. No ꢁtulo das obras de Pachu‐  
kanis e de Stutchka consta a expressão teoria do direito; por mais  
que seja preciso retomar e estudar tais autores, não há como  
apoiar-se em qualquer teoria do direito, mesmo que marxista.  
Marx não procurou uma economia políꢀca críꢀca, mas uma críꢀ‐  
ca da economia políꢀca. Não podemos procurar desenvolver sim‐  
plesmente uma teoria críꢀca do direito, é preciso uma críꢀca ao  
direito. Os passos e os desafios teóricos que mencionamos são  
urgentes. Mas aquilo que os completa (e mesmo propicia) é uma  
análise cuidadosa da realidade, em nosso caso, do capitalismo  
contemporâneo.  
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